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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAÇADORES DO CREPUSCULO / Darren Shan
CAÇADORES DO CREPUSCULO / Darren Shan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Foi uma era de erros trágicos. Para mim, a tragédia começou há quatorze anos, quando, hipnotizado pela fantástica tarântula de um vampiro, eu a roubei dele. Depois de um furto inicialmente bem-sucedido, tudo acabou dando errado e paguei meu crime com a minha humanidade. Fingindo a minha própria morte, deixei meu lar e a minha família e viajei pelo mundo com o Circo dos Horrores, como assistente da criatura noturna bebedora de sangue. Meu nome é Darren Shan. Sou meio-vampiro. Também sou — devido a uma série de fatos tão espantosa que ainda tenho dificuldade para acreditar que de fato transcorreram — um Príncipe Vampiro. Os príncipes são os líderes do clã dos vampiros, respeitados e obedecidos por todos. Só existem cinco deles — os outros são Paz Celestial, Mika Ver Leth, Arqueiro e Vancha March. Já sou vampiro há seis anos, vivendo dentro dos corredores e salões da Montanha do Vampiro (a fortaleza do clã), aprendendo os costumes e as tradições da minha gente, e descobrindo como fazer para me tornar um vampiro de boa reputação. Também venho aprendendo os fundamentos da arte da guerra, e como usar armas. As regras de batalha são componentes essenciais da educação de qualquer vampiro, mas agora mais do que nunca — porque estamos em guerra. Nossos oponentes são os vampixiitas, nossos irmãos de sangue de pele púrpura. Eles são muito parecidos com os vampiros de várias maneiras, mas divergem em um aspecto básico — matam sempre que bebem sangue. Os vampiros não prejudicam aqueles dos quais se alimentam — simplesmente pegamos uma pequena amostra de sangue de cada ser humano que alvejamos —, mas os vampixiitas são da opinião de que é vergonhoso alimentar-se sem drenar suas vítimas até deixá-las secas. Embora não houvesse nenhuma afeição perdida entre os vampiros e os vampixiitas, durante centenas de anos perdurara uma incômoda trégua entre os dois clãs. Isso mudou há seis anos, quando um grupo de vampixiitas — ajudado por um vampiro traidor chamado Kurda Smahlt — atacou a Montanha do Vampiro numa tentativa de tomar o controle do Salão dos Príncipes. Nós o derrotamos (graças em grande parte ao fato de eu ter descoberto o plano antes do ataque) e depois interrogamos os sobreviventes, perplexos com as razões que os levaram a optar pela invasão. Ao contrário dos vampiros, os vampixiitas não possuem líderes — seu regime é totalmente democrático —, mas quando se separaram de nós, há seiscentos anos, um poderoso e misterioso mágico conhecido como Sr. Tino lhes fez uma visita e deixou o caixão do fogo em seu poder. Este caixão queimava vivo qualquer um que dentro dele se deitasse — mas o Sr. Tino disse que, numa noite, um homem deitaria em seu interior e sairia incólume, e tal homem os lideraria numa guerra vitoriosa contra os vampiros, estabelecendo os vampixiitas como os soberanos absolutos da noite. Durante o interrogatório, descobrimos, para nosso horror, que o Senhor dos Vampixiitas havia finalmente aparecido, e vampixiitas em todo o mundo se preparavam para a guerra sangrenta e violenta que estava por vir. Assim que os invasores foram condenados a uma morte dolorosa, as notícias se espalharam rapidamente pela Montanha do Vampiro: “Estamos em guerra contra os vampixiitas!” E desde então estamos travando combates, lutando dolorosamente, desesperados para desmentir a profecia sombria do Sr. Tino — de que estávamos fadados a perder a guerra e sermos varridos da face da Terra...

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CAPÍTULO UM
 
Foi outra noite longa e cansativa no Salão dos Príncipes. Um general vampiro chamado Staffen Irve estava despachando comigo e com Paz Celestial. Paz era o mais velho vampiro vivo, com mais de oitocentos anos nas costas. Tinha abundantes cabelos brancos, uma barba longa e grisalha e havia perdido a orelha direita numa briga fazia muitas décadas.
Staffen Irve atuara no campo de batalha durante três anos, e andara nos dando um rápido relatório de suas experiências na Guerra das Cicatrizes, e de como ela se tornou conhecida (uma referência às cicatrizes nas pontas dos nossos dedos, a marca comum de um vampiro ou vampixiita). Era uma guerra estranha. Não havia grandes batalhas e nenhum dos lados usava armas que disparavam mísseis — vampiros e vampixiitas só lutam com armas para combate corpo a corpo, como espadas, maças e lanças. A guerra era uma série de escaramuças isoladas, três ou quatro vampiros brigando de uma vez só com um número igual de vampixiitas, lutando até a morte. — Havia quatro de nós contra três deles — disse Irve, falando-nos sobre um dos seus mais recentes encontros. — Mas meus homens estavam com as bocas secas, enquanto os vampixiitas eram duros na queda. Consegui matar um deles mas os outros fugiram, deixando dois dos meus rapazes mortos e o terceiro com um braço inutilizado. — Algum dos vampixiitas falou do seu senhor? — perguntou Paz. — Não, majestade. Aqueles que consigo capturar vivos só sabem rir das minhas perguntas, mesmo sob tortura. Nos seis anos que passamos à caça do senhor deles, não obtivemos o menor sinal. Sabíamos que não havia sido iniciado na arte da guerra — vários vampixiitas nos disseram que ele estava aprendendo seus costumes antes de se tornar um deles — e a opinião geral era de que, se tivéssemos alguma chance de frustrar as previsões do Sr. Tino, teríamos que encontrar e matar seu senhor antes que ele assumisse o controle total do clã. Um grupo de generais esperava sua vez de falar com Paz. Eles avançaram enquanto Staffen Irve partia, mas eu sinalizei para que dessem um passo atrás. Peguei uma caneca de sangue quente e a passei para o príncipe de uma orelha só. Ele sorriu e bebeu profundamente, depois limpou as manchas avermelhadas que ficaram em volta da sua boca com o dorso da mão trêmula — a responsabilidade de administrar o conselho de guerra estava exigindo muito do velho vampiro. — Você quer dar por encerrada a reunião? — perguntei, preocupado com a saúde de Paz. Ele balançou a cabeça. — A noite é uma criança — murmurou. — Mas você não — disse uma voz familiar atrás de mim — o Sr. Crepsley. O vampiro de manto vermelho passava a maior parte do tempo ao meu lado, dando conselhos e me encorajando. Ele estava numa posição peculiar. Como um vampiro comum, não ostentava nenhuma patente reconhecida, e podia receber ordens do menos graduado dos generais. Contudo, como meu guardião, detinha os poderes extra-oficiais de um príncipe (já que eu seguia os seus conselhos praticamente o tempo todo). A realidade era que o Sr. Crepsley era o segundo em
comando apenas para Paz Celestial, ainda que ninguém reconhecesse isso abertamente. Protocolo dos vampiros — imagine só! — Você devia descansar — disse o Sr. Crepsley para Paz, enquanto colocava uma das mãos sobre o ombro do príncipe. — Essa guerra irá durar muito tempo. Você não deve se exaurir cedo demais. Precisaremos da sua ajuda mais tarde. — Tolice! — riu Paz. — Você e Darren são o futuro. Eu sou o passado, Larten. Não viverei para ver o fim dessa guerra caso ela se arraste por tanto tempo quanto tememos. Se eu não deixar minha marca agora, jamais o farei. O Sr. Crepsley começou a se opor, mas Paz o silenciou curvando um dos dedos. — Uma velha coruja detesta que lhe digam o quanto ela é jovem e viril. Estou à beira da morte, e qualquer um que diga o contrário é um tolo, um mentiroso ou ambos. O Sr. Crepsley acenou com a cabeça, obediente. — Muito bem. Não vou discutir com você. — Espero que não — torceu o nariz Paz, para depois se ajeitar preguiçosamente em seu trono. — Mas esta foi uma noite cansativa. Vou conversar com esses generais e depois rastejar até o meu caixão para tirar uma soneca. Será que Darren pode lidar com tudo isso sem mim? — Darren vai resolver tudo — disse o Sr. Crepsley confidencialmente. Ele ficou um pouco atrás de mim enquanto os generais se aproximavam, prontos para deliberar quando fossem solicitados. Paz não arrumou seu caixão durante o crepúsculo. Os generais tinham muito para discutir — ao estudar relatórios sobre os movimentos dos vampixiitas, eles tentavam apontar o possível esconderijo de seu senhor — e já era quase meiodia quando o velho príncipe escapuliu. Resolvi me dar uma pequena pausa, peguei um pouco de comida e depois fui escutar três dos professores de luta da montanha, que estavam treinando a última turma de generais. Depois disso, tive que mandar dois novos generais ao campo de batalha para que pudessem sentir o gosto do seu primeiro combate. Realizei rapidamente a pequena cerimônia — tinha que manchar suas testas com sangue vampiro e murmurar uma antiga prece de guerra sobre elas — e depois lhes desejei boa sorte e os enviei para matar os vampixiitas — ou morrer. Depois chegou a hora de os vampiros se aproximarem de mim com uma farta gama de problemas e indagações. Como príncipe, esperavam que eu lidasse com todo tipo de questão sob a lua. Eu era apenas um meio-vampiro jovem e inexperiente, que havia se tornado um príncipe mais por descuido do que por mérito, mas os membros do clã colocavam toda a confiança que tinham nos seus príncipes, e por isso eu recebia o mesmo grau de respeito dedicado a Paz ou a qualquer um dos outros.
Quando o último vampiro partiu, consegui tirar umas três horas de sono numa rede que eu havia pendurado no fundo do salão. Quando despertei, comi um pouco de carne de javali salgada e malcozida, bebi um gole d’água e uma pequena caneca de sangue. Depois, era chegada a hora de voltar para o meu trono a fim de fazer mais planos, mapas e relatórios.
 
CAPÍTULO DOIS
 
 
Despertei com o som de gritos. Acordei dando um pulo e caí da minha rede, sobre o chão duro e frio da minha câmara rochosa. Minha mão correu automaticamente para a pequena espada que ficava ao meu alcance o tempo todo. Logo, a bruma do sono desanuviou e percebi que era apenas Harkat tendo um pesadelo.
Harkat Mulds era um Pequenino, uma criatura de baixa estatura que usava mantos azuis e trabalhava para o Sr. Tino. Outrora fora um ser humano, embora não se lembrasse de quem havia sido, nem de quando ou onde viveu. Quando morreu, sua alma continuou presa à Terra até o Sr. Tino o trazer de volta num corpo novo e mirrado. — Harkat — murmurei, sacudindo-o com força. — Acorde. Você está sonhando de novo. Harkat não tinha pálpebras, mas seus olhos verdes enormes ficavam turvos quando ele dormia. Agora, a luz neles tremeluzia e ele gemia em voz alta, caindo de sua rede, da mesma forma como aconteceu comigo momentos antes. — Dragões! — gritou, com a voz abafada pela máscara que ele sempre usava — Harkat não conseguia respirar ar normalmente por mais de dez ou doze horas, e sem a máscara ele poderia morrer. — Dragões! — Não — suspirei. — Você andou sonhando. Harkat me fitou com seus olhos verdes pouco naturais, depois relaxou e puxou sua máscara para baixo, revelando uma boca grande, cinzenta, entalhada e cheia de dentes. — Desculpe, Darren. Eu acordei... você? — Não — menti. — Eu já tinha acordado. Comecei a me balançar novamente na rede e fiquei sentado olhando para Harkat. Não havia como negar que ele era uma criatura das mais grotescas. Baixinho e gordo, com uma pele morta e cinzenta, e nenhum nariz ou orelhas visíveis — ele tinha ouvidos costurados no meio da pele do seu couro cabeludo, mas não tinha olfato ou paladar. Não possuía nenhum fio de cabelo, mas tinha olhos verdes e redondos, dentes pequenos e afiados, e uma língua cinzenta e escura. Seu rosto havia sido todo remendado, assim como o do monstro de Frankenstein. Evidentemente, eu não era nenhum modelo — poucos vampiros o eram! Meu rosto, meu corpo e meus membros estavam cheios de cicatrizes e marcas de queimaduras, muitas adquiridas durante os meus Testes de Iniciação (nos quais fui aprovado na segunda tentativa, há dois anos). Também era tão calvo quanto um bebê, como resultado da minha primeira bateria de testes, quando fiquei gravemente queimado. Harkat era um dos meus amigos mais próximos. Ele havia salvado a minha vida duas vezes, quando fui atacado por um urso selvagem na trilha para a Montanha do Vampiro, e depois numa luta contra javalis selvagens durante o meu primeiro e fracassado Testes de Iniciação. Vê-lo tão incomodado com os pesadelos que o afligiam durante os últimos anos me deixava mal. — Esse pesadelo foi igual aos outros? — perguntei. — Sim — respondeu ele, acenando com a cabeça. — Estava vagando por uma vasta terra devastada. O céu era vermelho. Estava em busca de alguma
coisa mas não... sabia o quê. Havia buracos cheios de estacas. Um dragão me atacou. Consegui rechaçá-lo mas... um outro apareceu. E depois mais outro. E depois... — suspirou desconsoladamente. O discurso de Harkat havia melhorado bastante desde que começara a falar. No começo, tinha que fazer uma pausa para respirar a cada duas ou três palavras, mas ele aprendera a controlar sua técnica de respiração e agora só parava durante frases longas. — Os homens-sombra estavam lá? — perguntei. As vezes ele sonhava com figuras sombrias que o perseguiam e o atormentavam. — Não desta vez, embora eu ache que eles teriam aparecido se você... não tivesse me acordado. — Harkat estava suando. Seu suor tinha uma cor verde e lívida. E seus ombros tremiam um pouco. Ele sofria enormemente durante o sono e permanecia o maior tempo possível acordado, só dormindo quatro ou cinco horas a cada setenta e duas. — Quer algo para comer ou beber? — Não. Não estou com fome. — Ele se levantou e esticou seus braços robustos. Estava usando apenas um pano em volta do pulso, de modo que eu podia ver seu estômago e seu peito lisos. Harkat não tinha mamilos nem umbigo. — É bom ver você — prosseguiu, puxando seus mantos azuis, os quais nunca perdeu o hábito de usar. — Já faz muito tempo que... estamos juntos. — Eu sei — suspirei. — Essa história de guerra está acabando comigo, mas não posso deixar Paz lidar com tudo isso sozinho. Ele precisa de mim. — Como vai o Senhor Celestial? — Agüentando firme. Mas é difícil. Tantas decisões para tomar, tantas tropas para organizar, tantos vampiros a mandar para a morte. Ficamos em silêncio por algum tempo, pensando na Guerra das Cicatrizes e nos vampiros — incluindo alguns bons amigos de ambos — que nela pereceram. — Como você está? — perguntei, tentando afastar os pensamentos mórbidos. — Ocupado. Sebá vem fazendo com que eu trabalhe o tempo todo, com um empenho cada vez maior. — Depois de alguns meses vagando sem destino pela Montanha do Vampiro, Harkat fora trabalhar para o intendente, Sebá Nilo, que estava encarregado de estocar e manter os suprimentos de comida, roupas e armas da montanha. Harkat começou carregando engradados e sacas, mas havia aprendido rapidamente a lidar com os suprimentos, como atender às necessidades dos vampiros, e agora era o principal assistente de Sebá. — Você tem que retornar para o Salão dos Príncipes logo? — perguntou Harkat. Sebá gostaria de vê-lo. Ele quer lhe mostrar... algumas aranhas. A montanha servia como lar para milhares de aracnídeos, conhecidos como as aranhas de Halen. — Tenho que voltar — afirmei com tristeza —, mas tentarei aparecer por lá
o mais breve possível. — Faça isso — retrucou Harkat com seriedade. — Você parece exausto. Paz não é o único que... precisa de descanso. Harkat tinha que partir logo depois a fim de se preparar para a chegada de um grupo de generais. Deitei na minha rede e fiquei olhando para o teto escuro e rochoso, incapaz de pegar no sono novamente. Aquela era a alcova que eu e Harkat dividimos quando viemos pela primeira vez à Montanha do Vampiro. Gostava daquele pequeno cubículo — era a coisa mais próxima que eu tinha de um quarto —, mas raramente o via. Passava a maior parte das minhas noites no Salão dos Príncipes, e as poucas horas que eu tinha durante o dia eram normalmente gastas com refeições e exercícios. Passei a mão na minha cabeça calva enquanto descansava e rememorava os meus Testes de Iniciação. Levei-os a cabo na segunda vez. Não precisava ter passado por eles — como príncipe, eu não era obrigado —, mas não teria me sentido bem se não o fizesse. Ao passar pelos Testes, havia provado a mim mesmo que era digno de ser um vampiro. Além das cicatrizes e das queimaduras, eu não havia mudado muito nos últimos seis anos. Como meio-vampiro, eu só envelhecia um ano a cada cinco que se passavam. Era um pouco mais alto do que quando deixei o Circo dos Horrores com o Sr. Crepsley, e minhas feições haviam engrossado e amadurecido levemente. Mas eu não era um vampiro completo e não mudaria muito até me tornar um. Quando atingisse esse estágio evolutivo, com certeza seria muito mais forte. Também teria o poder de curar ferimentos com a minha saliva, soltar um gás capaz de deixar as pessoas inconscientes e me comunicar telepaticamente com outros vampiros. Além disso, conseguiria voar a uma velocidade super-rápida à qual só os vampiros conseguem chegar. Em compensação, seria vulnerável à luz do sol e não poderia andar por aí durante o dia. Mas tudo isso ficaria para um futuro distante. O Sr. Crepsley havia dito algo sobre quando eu me vampirizasse por inteiro, mas concluí que isso não aconteceria até que eu me tornasse adulto. Isso só se daria daqui a uns dez ou quinze anos — meu corpo ainda era o de um adolescente —, por isso havia tempo de sobra para eu aproveitar (ou aturar) minha infância prolongada. Fiquei ali deitado e relaxando por mais meia hora, e depois me levantei e me vesti. Resolvi usar roupas num tom azul-claro, calças compridas e uma túnica, cobertas por um manto longo e magnífico. Meu polegar direito ficou preso na manga da túnica enquanto a vestia, como normalmente acontecia — eu havia quebrado meu polegar há seis anos, que ficava virado para fora num ângulo meio esquisito. Tomando cuidado para não rasgar o tecido com minhas unhas extremamente duras — que podiam cavar buracos em rochas mais maleáveis
—, soltei meu polegar e terminei de me vestir. Coloquei um par de sapatos confortáveis e passei a mão na cabeça para me certificar de que eu não havia sido mordido por carrapatos. Ultimamente eles estavam espalhados por toda a montanha, incomodando todo mundo. Depois, segui de volta para o Salão dos Príncipes para mais uma longa noite de táticas e debates.
 
CAPÍTULO TRÊS
 
 
As portas do Salão dos Príncipes só podiam ser abertas por um príncipe que encostasse a mão nas portas ou tocasse um painel nos tronos dentro do Salão. Nada podia romper as paredes do Salão, que fora construído pelo Sr. Tino e seus pequeninos há séculos. A Pedra de Sangue estava alojada no Salão, e era de vital importância. Era
um artefato mágico. Qualquer vampiro que viesse até a montanha (a maior parte dos três mil vampiros do mundo já haviam feito a viagem pelo menos uma vez na vida) colocava as mãos na Pedra e deixava que ela absorvesse parte do seu sangue. A Pedra poderia então ser usada para rastrear aquele vampiro. Por isso, se o Sr. Crepsley queria saber onde o Arqueiro estava, bastava para isso colocar suas mãos na Pedra e pensar nele, que em segundos teria uma noção de onde estava o príncipe. Ou, se pensasse numa determinada região, a Pedra lhe diria quantos vampiros nela estariam. Eu não podia usar a Pedra de Sangue para procurar os outros — apenas vampiros completos tinham como fazer isso —, mas podia ser rastreado, já que ela tomou meu sangue quando me tornei um príncipe. Se a Pedra chegasse a cair nas mãos dos vampixiitas, eles poderiam usá-la para rastrear todos os vampiros que a ela se ligaram. Esconder-se deles seria impossível. Eles iriam nos aniquilar. Por causa desse perigo, alguns vampiros queriam destruir a Pedra de Sangue — mas havia uma lenda que dizia que ela poderia nos salvar em nosso momento de maior necessidade. Eu pensava em tudo isso enquanto Paz usava a Pedra de Sangue para manobrar as tropas no campo de batalha. Enquanto nos chegavam relatórios que davam as posições dos vampixiitas, Paz usava a Pedra para checar onde seus generais estavam, e depois se comunicava telepaticamente com eles, ordenando que se movessem de um lugar para outro. Era isso que o exauria tão profundamente. Outros poderiam ter usado a Pedra, mas, como príncipe, a palavra de Paz era a lei, e lhe era mais rápido delegar as ordens por conta própria. Enquanto Paz se concentrava na Pedra, o Sr. Crepsley e eu passávamos grande parte do nosso tempo organizando relatórios de campo e montando um quadro que indicasse com precisão os movimentos dos vampixiitas. Muitos outros generais também estavam fazendo isso, mas era nossa função pegar suas descobertas, fazer a triagem, pegar o que era mais importante e fazer sugestões a Paz. Tínhamos vários mapas com alfinetes marcando as posições dos vampiros e dos vampixiitas. O Sr. Crepsley estava estudando atentamente um dos mapas há dez minutos e parecia preocupado. — Você viu isso? — perguntou-me enfim, chamando-me. Olhei para o mapa. Havia três bandeiras amarelas e duas vermelhas muito perto umas das outras em torno de uma cidade. Usávamos cinco cores principais para nos ajudar na identificação das coisas. As bandeiras azuis representavam vampiros. As amarelas eram os vampixiitas. As verdes eram fortalezas vampixiitas — cidades que eles defendiam como bases. As brancas estavam afixadas em locais onde havíamos vencido batalhas. As vermelhas, onde as perdemos.
— O que estou procurando mesmo? — perguntei, olhando para as bandeiras amarelas e vermelhas. Meus olhos estavam embaçados por causa das poucas horas de sono e por me concentrar muito em mapas e em relatórios rabiscados mal e porcamente. — O nome da cidade — disse o Sr. Crepsley, passando o dedo por cima. O nome não significou nada para mim a princípio. Então, minha mente clareou. — Esse é o nosso lar original — murmurei. Era a cidade onde o Sr. Crepsley havia vivido quando era um ser humano. Há doze anos ele retornara ao local, junto comigo e Ofídio (um menino-cobra do Circo dos Horrores), para que juntos detivéssemos um vampixiita louco chamado Vampirado, que havia irrompido numa fúria assassina. — Encontre os relatórios — ordenou o Sr. Crepsley. Havia um número em cada bandeira, ligando-a aos relatórios em nossos arquivos, por isso sabíamos exatamente o que cada uma delas representava. Depois de alguns minutos, encontrei as folhas de papel relevantes e rapidamente as examinei. — Dos vampixiitas vistos por lá — murmurei —, dois seguiam em direção à cidade. O outro estava de partida. A primeira bandeira vermelha é de um ano atrás; quatro generais haviam sido mortos numa grande batalha com diversos vampixiitas. — E a segunda bandeira marca o ponto em que Staffen Irve perdeu dois dos seus homens — disse o Sr. Crepsley. — Foi quando estava afixando essa bandeira ao mapa que notei o grau de atividade em torno da cidade. — Você acha que isso quer dizer alguma coisa? — perguntei. Não era comum ver tantos vampixiitas numa só locação. — Não tenho certeza. Os vampixiitas podem ter montado uma base por lá, mas não vejo por quê. Ela está fora da rota de suas outras fortalezas. — Poderíamos mandar alguém para checar — sugeri. Ele considerou tal possibilidade, mas depois balançou a cabeça. — Já perdemos muitos generais por lá. Estrategicamente falando, não é um ponto importante. É melhor deixá-lo em paz. O Sr. Crepsley passou a mão na longa cicatriz que dividia a carne do lado esquerdo do seu rosto e continuou olhando para o mapa. Ele havia cortado seu cabelo alaranjado mais curto do que o habitual — muitos vampiros estavam usando o cabelo curto por causa dos carrapatos — e parecia quase calvo sob a luz forte do Salão. — Isso incomoda você, não? — percebi. Ele acenou positivamente. — Se eles estabeleceram uma base, devem estar se alimentando de seres humanos. Ainda considero aquele lugar como o meu lar, e não gosto de pensar nos meus vizinhos e amigos espirituais sofrendo nas mãos dos vampixiitas.
— Podíamos enviar uma equipe para expulsá-los. Ele suspirou. — Isso não seria adequado. Eu acabaria colocando questões particulares acima do bem-estar do clã. Se eu chegar a entrar em campo, irei checar a situação por conta própria, mas não há necessidade de mandar outros soldados. — Quais são as chances de eu e você sairmos daqui? — perguntei de propósito. Não gostava de lutar, mas, depois de seis meses entocado na montanha, daria as minhas unhas em troca de algumas noites ao ar livre, mesmo que isso significasse correr o risco de ter que enfrentar doze vampixiitas sozinho. — Do jeito que as coisas estão... poucas — admitiu o Sr. Crepsley. — Acho que iremos ficar presos aqui até o final da guerra. Se um dos outros príncipes for seriamente ferido e tiver que ser retirado da batalha, poderemos ter que substituílo. Caso contrário... — Ele bateu com os dedos no mapa e fez uma careta. — Você não tem que ficar — afirmei calmamente. — Há muitos outros que poderiam me orientar. Ele deu uma sonora gargalhada. — Há muitos que poderiam guiá-lo — concordou —, mas quantos poderiam puxar a sua orelha caso você cometesse um erro? — Não muitos — respondi rindo. — Eles pensam em você como príncipe, ao passo que eu ainda o vejo, antes de tudo, como uma criança intrometida com propensão para roubar aranhas. — Que encantador! — retruquei, ofendido. Eu sabia que ele estava brincando. O Sr. Crepsley sempre me tratava com o respeito que a minha posição merecia. Mas havia um fundo de verdade na sua brincadeira. Havia uma ligação especial entre nós, como a que existe entre pai e filho. Ele podia me dizer coisas que nenhum vampiro ousaria proferir. Eu estaria perdido sem ele. Depois que colocamos o mapa do antigo lar do Sr. Crepsley de lado, nos voltamos para as questões mais importantes da noite, e pouco sonhamos com os eventos que acabariam no fim das contas nos levando de volta para a cidade onde meu tutor passou a sua juventude, ou com o terrível confronto que nos esperava por lá.
 
CAPÍTULO QUATRO
 
 
Os salões e os túneis da Montanha do Vampiro murmuravam de entusiasmo — Mika Ver Leth havia retornado depois de uma ausência de cinco anos, e os rumores eram de que ele tinha notícias sobre o Senhor dos Vampixiitas! Eu estava na minha alcova, descansando, quando a história começou a circular. Sem perder tempo, vesti minhas roupas e corri para o Salão dos Príncipes no topo da
montanha, para checar se as histórias eram verdadeiras. Mika estava falando com Paz e o Sr. Crepsley quando cheguei, cercado por uma tropa de generais ansiosos por notícias. Vestia preto dos pés à cabeça, como era de hábito, e seus olhos de falcão pareciam mais escuros e severos do que nunca. Ele me saudou com uma das mãos quando me viu chegando. Fiquei em posição de sentido e o saudei de volta. — Como vai o príncipe novato? — perguntou ele com um sorriso rápido e apertado. — Nada mau — respondi, estudando-o em busca de sinais de ferimentos. Muitos que voltavam para a Montanha do Vampiro carregavam as cicatrizes da batalha. Mas, embora parecesse cansado, Mika não estava visivelmente ferido. — E quanto ao Senhor dos Vampixiitas? — perguntei objetivamente. — De acordo com o que se anda dizendo por aí, você sabe onde ele está. Mika fez uma careta. — Como se eu soubesse! — Olhando em volta, ele prosseguiu. — Será que podíamos nos reunir? Tenho notícias, mas prefiro anunciá-las para todo mundo no Salão ao mesmo tempo. — Todos os presentes se acomodaram em seus lugares no mesmo instante. Mika se ajeitou no seu trono e suspirou satisfeito. — É bom estar de volta — afirmou, batendo com os braços na cadeira dura. — Sebá tem cuidado direito do meu caixão? — Que o seu caixão vá para a casa dos vampixiitas! — gritou um general, que momentaneamente se esqueceu da sua posição. — Quais são as notícias que você traz do Senhor dos Vampixiitas? Mika passou a mão em seu cabelo preto-azeviche. — Em primeiro lugar, vamos deixar claro; não sei onde ele está. — Um suspiro se espalhou pelo Salão. — Mas tive notícias dele — acrescentou, fazendo com que todos os ouvidos no recinto ficassem atentos. — Antes de começar — prosseguiu Mika —, vocês estão sabendo dos últimos recrutas vampixiitas? — Todos pareciam estupefatos. — Os vampixiitas os têm acrescentado a suas tropas desde o começo da guerra, vampirizando mais seres humanos do que o normal, com o intuito de aumentar o seu número. — Essas notícias são velhas — murmurou Paz. — Há muito menos vampixiitas do que vampiros no mundo. Esperávamos que eles fossem morder pescoços humanos afoitamente. Mas não é nada com que tenhamos que nos preocupar; ainda somos muito mais numerosos. — Sim — concordou Mika. — Mas agora eles também estão usando seres humanos que não foram vampirizados. Chamam-nos de “vampitietes”. Aparentemente, o próprio Senhor dos Vampixiitas criou o nome. Assim como ele, estão aprendendo as regras vampixiitas de vida e de guerra como seres humanos, antes de serem vampirizados. Ele pretende montar um exército de ajudantes humanos.
— Podemos lidar com os seres humanos — rosnou um general, e então ouviram-se gritos de aprovação. — Normalmente — concordou Mika. — Mas precisamos ser cautelosos com esses vampitietes. Ao mesmo tempo que lhes faltam os poderes dos vampixiitas, eles estão aprendendo a lutar da mesma forma. Além disso, como não são vampirizados, não precisam ser fiéis às leis vampixiitas mais restritivas. Não têm a obrigação moral de dizer a verdade, não precisam seguir antigos costumes... e não precisam limitar-se a não passar armas adiante. Murmúrios furiosos se espalharam pelo Salão. — Os vampixiitas estão usando armas? — perguntou Paz, chocado. Os vampixiitas eram ainda mais rigorosos do que os vampiros no que dizia respeito a armamentos. Podíamos usar bumerangues e lanças, mas os vampixiitas jamais os tocavam. — Os vampitietes não são vampixiitas — grunhiu Mika. — Não há razão que impeça um vampitiete não vampirizado de usar uma arma. Não creio que todos os seus mestres aprovem isso, mas sob as ordens do seu Senhor, eles permitem. — Mas os vampitietes são um problema para outra noite — prosseguiu Mika. — Só os estou mencionando agora porque é relevante para que vocês saibam como descobri coisas sobre o seu Senhor. Um vampixiita morreria gritando antes de trair o seu clã, mas os vampitietes não são tão duros na queda. Capturei um há alguns meses e arranquei dele alguns detalhes interessantes. O mais importante é que... o Senhor dos Vampixiitas não possui uma base. Ele viaja pelo mundo com um pequeno grupo de guardas, que se revezam nas várias unidades de combate, para manter a moral das tropas. O general recebeu as notícias com bastante entusiasmo — se o Senhor dos Vampixiitas se movia constantemente e era pouco protegido, estava mais vulnerável a um ataque. — Esse vampitiete sabia onde estava o Senhor dos Vampixiitas? — perguntou o Sr. Crepsley. — Não — disse Mika. — Ele já o viu, mas isso foi há mais de um ano. Só aqueles que o acompanham conhecem as suas rotas de viagem. — O que mais ele lhe disse? — indagou Paz. — Que seu Senhor ainda não havia sido vampirizado. E que, apesar dos seus esforços, a moral é baixa. As perdas vampixiitas são altas, e muitos não acreditam que eles possam vencer a guerra. Houve um boato sobre um tratado de paz... e até de uma rendição completa. Houve muitos gritos e aplausos. Alguns generais ficaram tão felizes com as palavras de Mika que um grupo adiantou-se, pegou-o nos braços e o carregou pelo Salão afora. Foi possível ouvi-los cantando e gritando enquanto seguiam na direção dos engradados de cerveja e vinho estocados mais abaixo. Os outros generais, mais afeitos à sobriedade, olharam para Paz em busca de orientação.
— Acompanhem-nos — aconselhou, sorrindo, o príncipe de idade avançada. — Seria indelicado deixar Mika e seus ávidos companheiros bebendo sozinhos. Os generais restantes aplaudiram o anúncio e se apressaram, deixando apenas uma pequena comitiva no Salão: eu, o Sr. Crepsley e Paz. — Isso é uma tolice — resmungou Crepsley. — Se os vampixiitas estão realmente pensando em se entregar, deveríamos partir com força para cima deles, não perder tempo... — Larten — interrompeu-o Paz. — Siga os outros, encontre o maior barril de cerveja que puder e tome um belo e grande porre. O Sr. Crepsley olhou para o príncipe com a boca aberta. — Paz! — exclamou, arfante. — Você já ficou tempo demais aprisionado aqui — retrucou Paz. — Vá até lá, solte-se, e não volte aqui sem uma ressaca. — Mas... — Isso é uma ordem, Larten — rosnou o príncipe. O Sr. Crepsley parecia que tinha engolido uma enguia viva, mas não era do tipo que desobedecia às ordens de um superior, por isso bateu os calcanhares, fez continência e murmurou: — Sim, senhor — e saiu correndo em direção às despensas, ofendido. — Nunca vi o Sr. Crepsley de ressaca — gargalhei. — Como é que é? — Como um... como é que os seres humanos dizem? Um gorila com dor de cabeça? — Paz tossiu até cerrar o punho (ele vinha tossindo muito ultimamente) e depois sorriu. — Mas isso irá lhe fazer bem. As vezes, Larten leva a vida muito a sério. — E quanto a você? Quer ir? Paz fez uma expressão amarga. — Uma caneca de cerveja seria o fim da linha para mim. Vou aproveitar a pausa para deitar no caixão atrás do Salão e ter um dia inteiro de sono. — Tem certeza? Posso ficar, se você quiser. — Não. Vá até lá e aproveite. Ficarei bem. — Certo — pulei do meu trono e segui na direção da porta. — Darren — chamou-me de volta Paz. — Uma quantidade excessiva de álcool é tão ruim para os jovens quanto para os velhos. Se você for esperto, irá beber com moderação. — Lembra-se do que me falou sobre sabedoria há alguns anos, Paz? — O quê? — Você disse que a única maneira de adquirir inteligência é ganhando experiência. — Piscando, saí correndo do Salão e logo estava partilhando um barril de cerveja com um vampiro mal humorado de cabelo laranja. O Sr. Crepsley acabou se alegrando enquanto a noite avançava, e estava cantando em
voz alta na hora em que voltou cambaleando para o seu caixão pela manhã.
 
CAPÍTULO CINCO
 
 
Não podia entender por que havia duas luas no céu quando acordei, ou por que elas eram verdes. Suspirando, esfreguei as costas das mãos sobre os olhos e depois reparei novamente nas coisas. Percebi que estava deitado no chão, vendo os olhos verdes de um Harkat Mulds que ria para valer. — Divertiu-se na noite passada? — perguntou ele.
— Fui envenenado — afirmei gemendo, com o estômago embrulhado, como se estivesse no convés de um navio durante uma violenta tempestade. — Acho então que não vai querer tripas de javali e... sopa de morcego... — Não! — Estremeci à mera idéia de comer. — Você e os outros devem ter consumido... metade do suprimento de cerveja da montanha na noite passada — assinalou Harkat, enquanto me ajudava a levantar. — Está havendo um terremoto? — perguntei enquanto ele me largava. — Não — respondeu, perplexo. — Então por que o chão está tremendo? Ele deu uma gargalhada e me conduziu até a minha rede. Eu estava dormindo no chão da nossa alcova. Tinha vagas lembranças de ter caído da rede toda vez que nela tentara subir. — Vou ficar sentado no chão por um tempo — respondi. — Como quiser — Harkat deu uma risadinha. — Você gostaria de um pouco de cerveja? — Vá embora ou vou bater em você — grunhi. — Você não gosta mais de cerveja? — Não! — Que engraçado. Você estava cantando algo sobre o quanto... a adorava mais cedo. “Cerveja, cerveja, bebo como quem beija, sou o... príncipe, o príncipe da cerveja”. — Eu podia mandar alguém torturá-lo — alertei-o. — Deixe para lá. O clã inteiro enlouqueceu na noite passada. É muito difícil um vampiro ficar bêbado, mas... muitos conseguiram. Vi alguns vagando pelos túneis, parecendo... — Por favor — implorei —, não os descreva. — Harkat riu novamente, fez com que eu me levantasse e me tirou do cubículo, conduzindo-me pelo labirinto de túneis. — Aonde você está indo? — Para o Salão de Perta Vin Grahl. Perguntei para Sebá sobre tratamentos para... ressacas... tenho a impressão de que você está com uma... e ele disse... normalmente uma ducha resolve. — Não! — gemi. — Os chuveiros não! Tenha piedade! Harkat não deu bola para os meus apelos e logo estava me jogando debaixo das águas gélidas das cachoeiras internas do Salão de Perta Vin Grahl. Achei que minha cabeça fosse explodir quando a água caiu sobre mim, mas depois de alguns minutos o pior da minha dor de cabeça havia passado e meu estômago havia se acomodado. Enquanto me enxugava com a toalha, já me sentia cem vezes melhor. Passamos por um Sr. Crepsley de rosto esverdeado no caminho de volta para a nossa alcova. Acenei, dando-lhe boa-noite, mas ele apenas rosnou em
resposta. — Nunca entenderei o fascínio do... álcool — disse Harkat enquanto se vestia. — Você nunca ficou bêbado? — Talvez na minha vida passada, não desde que... me tornei um pequenino. Não tenho papilas gustativas e o álcool não... me afeta. — Sorte sua — murmurei amargamente. Assim que me vesti, andamos até o Salão dos Príncipes para ver se Paz precisava de mim, mas o local estava totalmente deserto e Paz ainda dormia em seu caixão. — Vamos fazer uma expedição pelos túneis... no meio dos salões — sugeriu Harkat. Fizemos muitas explorações quando viemos à montanha pela primeira vez, mas já fazia dois ou três anos que não saíamos para uma aventura. — Você não tem trabalho a fazer? — perguntei. — Sim, mas... — Ele franziu a testa. Demorou um tempo para que eu me acostumasse com as expressões de Harkat, mas eu aprendera a entendê-las. Era difícil saber se alguém sem pálpebras e nariz estava fechando a cara ou sorrindo. — O trabalho vai esperar. Sinto-me estranho. Preciso estar em movimento. — Certo, vamos dar uma caminhada. Começamos pelo Salão de Corza Jarn, onde generais em treinamento aprendiam a lutar. Eu havia passado muitas horas por aqui, especializando-me no uso de espadas, facas, machados e lanças. A maior parte das armas era fabricada para adultos, muito grande, e por isso eu me mostrava desajeitado ao manejá-las. Mas consegui pegar as noções básicas. O instrutor mais graduado era um vampiro cego chamado Vanez Blane. Ele havia sido meu mestre durante meus dois Testes de Iniciação. Havia perdido seu olho esquerdo numa briga com um leão muitas décadas atrás, e o segundo há seis anos numa batalha contra os vampixiitas. Vanez estava lutando com três jovens generais. Embora fosse cego, não havia perdido nem um pouco de sua agilidade, e o trio acabou se estatelando rapidamente no chão, sob a ação do mestre de cabelos ruivos. — Vocês precisam aprender a fazer melhor do que isso — disse-lhes. Depois, de costas para nós, falou: — Olá, Darren. Saudações, Harkat Mulds. — Oi, Vanez — respondemos, nem um pouco surpresos com o fato de ele saber quem éramos. Os vampiros têm olfato e audição muito aguçados. — Ouvi você cantando na noite passada, Darren — afirmou o mestre, deixando seus três alunos se recuperando e se reagrupando. — Não! — arfei, abatido. Achava que Harkat estava brincando. — Muito esclarecedor — sorriu Vanez. — Não cantei — gemi. — Diga-me que não! O sorriso de Vanez foi escancarado.
— Eu não me preocuparia. Muitos outros encheram a cara também. — A cerveja deveria ser banida — rugi. — Não há nada errado com a cerveja — discordou meu antigo instrutor. — São os bebedores de cerveja que precisam ser controlados. Contamos para Vanez que iríamos seguir numa excursão até os túneis mais baixos e perguntamos se ele queria nos acompanhar. — Não tem por quê — disse ele. — Não consigo ver nada. Além do mais... — Baixando a voz, ele nos falou que os três generais que vinha treinando estavam prestes a serem despachados para o campo de batalha. — Cá entre nós, eles formam o pior trio que eu já considerei pronto para o dever — suspirou. Muitos vampiros estavam sendo mandados às pressas para a guerra, para substituir aqueles que morreram na Guerra das Cicatrizes. Esse era um ponto controverso dentro do clã (normalmente levava um mínimo de vinte anos para que um general fosse declarado de boa estirpe), mas Paz disse que tempos insensatos clamavam por medidas insensatas. Ao deixar Vanez para trás, seguimos para as despensas a fim de encontrar o antigo mentor do Sr. Crepsley, Sebá Nilo. Aos setecentos anos de idade, Sebá era o segundo vampiro mais velho. Usava roupas vermelhas como Crepsley e falava da mesma maneira. Estava enrugado e encolhido por causa da idade e mancava bastante — assim como Harkat — devido a um ferimento que teve na perna esquerda, ganho na mesma batalha que arrebatara o olho de Vanez. Sebá estava feliz em nos ver. Quando soube que viemos fazer uma exploração, insistiu em nos acompanhar. — Tem algo que quero mostrar a vocês — disse. Assim que deixamos os salões e adentramos a ampla rede de túneis baixos e interconectados, cocei minha cabeça calva com as unhas. — Carrapatos? — perguntou Sebá. — Não. Ultimamente minha cabeça tem coçado demais. Minhas pernas e braços também, assim como minhas axilas. Acho que tenho alguma espécie de alergia. — Alergias são raras entre vampiros. Deixe-me examiná-lo. — Liquens fosforescentes cresciam ao longo de muitas das paredes e formavam uma mancha iluminada que possibilitava que ele me examinasse. — O que é? — perguntei. — Você está ficando velho, mestre Shan. — O que isso tem a ver com a coceira? — Você descobrirá — afirmou num tom misterioso. Sebá parava sempre que via teias, para examinar as aranhas. O velho intendente era fascinado, de um jeito incomum, pelos predadores de oito patas. Ele não as guardava como animais de estimação, mas passava muito tempo estudando seus hábitos e padrões. Tinha como se comunicar com elas usando a
força da mente. O Sr. Crepsley também conseguia, assim como eu. — Ah! — acabou exclamando, ao parar em frente a uma teia enorme. — Chegamos. — Apertando os lábios, começou a assobiar suavemente, e instantes depois uma aranha grande e cinzenta com curiosas pintas verdes desceu correndo pela teia até parar sobre a mão de Sebá, que estava virada com a palma para cima. — De onde veio essa daí? — perguntei, enquanto me aproximava para olhar mais atentamente. Ela era maior do que as aranhas normais da montanha e tinha uma coloração diferente. — Gostou dela? — perguntou Sebá. — Chamo-as de aranhas de Shan. Espero que não tenha nada contra elas. — O nome parecia inapropriado. — Aranhas de Shan? — repeti. — Por que... Parei. Há quatorze anos, eu roubara uma aranha venenosa do Sr. Crepsley — a Madame Octa. Oito anos depois, eu a soltei — depois de ser aconselhado por Sebá — para construir um novo lar com as aranhas da montanha. Sebá disse que ela não teria como se acasalar com as outras. Eu não a via desde que a libertara e quase me esquecera dela. Mas agora a memória havia voltado e eu sabia de onde essa aranha tinha vindo. — É uma das crias da Madame Octa, não? — suspirei. — Sim — confirmou Sebá. — Ela cruzou com as aranhas de Halen. Percebi essa nova linhagem há três anos, embora ela só tivesse começado a se multiplicar no ano passado. Elas estão tomando o controle. Acho que se tornarão a espécie dominante na montanha, talvez daqui a dez ou quinze anos. — Sebá! — afirmei, depois que tive um estalo. — Só soltei a Madame Octa porque você me disse que ela não poderia ter descendentes. Elas são venenosas? O intendente encolheu os ombros. — Sim, mas não são tão mortíferas quanto a mãe. Se quatro ou cinco atacarem juntas, podem matar, mas não uma sozinha. — E se elas ficarem agressivas? — bradei. — Não ficarão — afirmou Sebá com firmeza. — Como você sabe? — Pedi-lhes que não o fizessem. São incrivelmente inteligentes, assim como a Madame Octa. Têm quase os mesmos poderes mentais dos ratos. Estou pensando em treiná-las. — Para fazer o quê? — gargalhei. — Lutar — disse num tom sombrio. — Imagine se pudéssemos enviar exércitos de aranhas treinadas mundo afora, com ordens para encontrar os vampixiitas e matá-los. Virei-me suplicante para Harkat. — Diga a ele que está maluco. Faça com que tenha juízo. Harkat sorriu.
— Isso parece uma boa idéia... para mim — afirmou. — Ridículo! — bufei. — Vou contar tudo para Mika. Ele odeia aranhas. Mandará tropas para cá com o intuito de esmagá-las. — Por favor, não — disse Sebá calmamente. — Mesmo se não puderem ser treinadas, eu gosto de vê-las se desenvolvendo. Por favor, não me negue um dos últimos prazeres que me restaram. Suspirei e voltei meus olhos para o teto. — Certo. Não direi nada para Mika. — Nem para os outros — insistiu ele. — Eu me tornaria bastante impopular caso essa história vazasse. — O que você quer dizer? Sebá pigarreou com culpa. — Os carrapatos — murmurou. — As novas aranhas tem se alimentado de carrapatos, e por isso eles subiram: para escapar. — Oh! — exclamei, pensando em todos os vampiros que haviam cortado o cabelo e as barbas e raspado as axilas por causa do surto de carrapatos. E arreganhei os dentes. — No fim das contas, as aranhas irão perseguir os carrapatos até o topo da montanha e a epidemia passará — prosseguiu Sebá —, mas até lá preferia que ninguém soubesse o que a está causando. Dei uma gargalhada. — Você seria enforcado, caso isso se espalhasse! — Eu sei — disse o intendente, fazendo uma careta. Prometi que iria guardar segredo da história das aranhas. Depois disso, Sebá voltou para os Salões — a viagem curta o havia deixado fatigado — e eu e Harkat continuamos a descer pelos túneis. Quanto mais avançávamos, mais silencioso Harkat ficava. Ele parecia inquieto, mas quando lhe perguntei o que havia de errado, disse que não sabia. Acabamos encontrando um túnel que dava lá fora. Nós o seguimos até onde ele se abria na face íngreme da montanha e ficamos olhando o céu noturno. Já fazia meses que eu não colocava minha cabeça do lado de fora e mais de dois anos desde que dormi pela última vez ao ar livre. O ar parecia fresco e convidativo, porém estranho. — Está frio — notei, esfregando as mãos nos meus braços desnudos, para cima e para baixo. — É mesmo? — perguntou Harkat. Sua pele morta e cinzenta só registrava temperaturas extremamente baixas ou altas. — Devemos estar no final do outono ou no começo do inverno. — Era difícil acompanhar a sucessão de estações quando se vivia dentro de uma montanha. Harkat não estava ouvindo. Estava, sim, esquadrinhando as florestas e os vales mais abaixo, como se esperasse encontrar alguém por lá.
Andei um pouco montanha abaixo. Harkat seguiu-me até me alcançar e aumentou sua velocidade. — Cuidado! — gritei, mas ele não prestou atenção. Logo que começou a correr, acabei ficando para trás, imaginando com o que ele estava brincando. — Harkat! — gritei. — Você vai tropeçar e quebrar a cabeça se... Parei. Ele não ouviu uma palavra sequer. Rogando pragas, tirei meus sapatos, contraí os dedos do pé e comecei a procurá-lo. Tentei controlar minha velocidade, mas isso não era possível numa descida tão íngreme, e logo estava caindo montanha abaixo, espalhando seixos e poeira para todo lado, gritando de irritação e de medo, com toda a força dos meus pulmões. De algum modo conseguimos nos manter em pé e chegamos à base da montanha intactos. Harkat continuou correndo até chegar a um pequeno círculo de árvores, onde finalmente parou e ficou imobilizado como se estivesse congelado. Corri atrás dele e também acabei parando. — O que... foi... isso? — solucei. Levantando sua mão esquerda, Harkat apontou na direção das árvores. — O quê? — perguntei, enquanto não via nada a não ser troncos, galhos e folhas. — Ele está vindo — sibilou Harkat. — Quem? — O mestre dos dragões. Encarei Harkat de um jeito esquisito. Ele parecia estar acordado, mas talvez tivesse dormido involuntariamente e agisse como sonâmbulo. — Acho que temos que levá-lo para dentro de novo — afirmei, enquanto segurava seu braço esticado. — Encontraremos uma fogueira e... — Olá, rapazes! — gritou alguém de dentro do círculo de árvores. — Vocês fazem parte do comitê de recepção? Larguei o braço de Harkat, fiquei em pé ao seu lado — agora tão rijo quanto ele — e olhei novamente para a moita. Achei que tinha reconhecido aquela voz — embora esperasse que estivesse errado! Instantes depois, três figuras emergiram da escuridão. Duas eram pequeninas, que pareciam exatamente iguais a Harkat, a não ser pelo fato de terem capuzes sobre a cabeça e se moverem com uma firmeza que meu amigo perdera durante os anos que passou com os vampiros. O terceiro era um homem de cabelos brancos, pequeno e sorridente, que me causava mais medo do que um bando de ladrões vampixiitas. Sr . Tino! Mais de seiscentos anos depois, Desmond Tino havia retornado à Montanha do Vampiro, e eu sabia que, enquanto ele andava a passos largos na nossa direção, radiante como um caçador de ratos aliado ao flautista de Hamelin, que seu reaparecimento não era prenúncio de nada a não ser transtornos.
 
CAPÍTULO SEIS
 
 
O Sr. Tino fez uma breve pausa quando nos alcançou. O homem baixo e atarracado usava um terno amarelo e esfarrapado — uma jaqueta fina, sem sobretudo —, botas de borracha verdes de criança e um par de óculos de aros grossos. Além do relógio em forma de coração que ele sempre carregava pendurado numa corrente em frente ao paletó. Alguns diziam que o Sr. Tino era
um agente do destino — seu primeiro nome era Desmond, e, se você o encurtasse e colocasse os dois nomes juntos, dava Sr . Destino. — Você cresceu, jovem Shan — afirmou, passando os olhos em mim. — E você, Harkat... — Sorriu para o pequenino, cujos olhos verdes pareciam mais arregalados e arredondados do que nunca. — Você mudou tanto que não dá para reconhecê-lo. Usando o seu capuz para baixo, trabalhando para vampiros... e falando! — Você sabia... que eu podia falar — murmurou Harkat, retomando seu velho hábito de falar de forma entrecortada. — Você sempre... soube. O Sr. Tino acenou com a cabeça e depois começou a andar para a frente. — Chega dessa conversa fiada. Tenho um trabalho a fazer e preciso ser rápido. O tempo é precioso. Um vulcão está prestes a entrar em erupção numa pequena ilha tropical amanhã. Todos dentro de um raio de dez quilômetros serão queimados vivos. Quero estar lá... parece que vai ser divertido. Ele não estava brincando. Era por isso que todos o temiam — tragédias que deixavam todos que eram meio-humanos tremendo nas bases lhe davam prazer. Seguimos o Sr. Tino enquanto ele subia a montanha, seguido pelos dois pequeninos. Harkat olhava constantemente para trás na direção dos seus “irmãos”. Acho que eles estavam se comunicando — os pequeninos podem ler os pensamentos dos outros —, mas meu amigo não me contou nada. O Sr. Tino entrou na montanha por um túnel diferente daquele que havíamos usado. Era um túnel no qual eu nunca havia estado, mais alto, amplo e seco do que a maioria. Não havia guinadas ou túneis laterais que pudessem nos desviar do caminho. Ele ia direto até o cume da montanha. O Sr. Tino me pegou olhando para as paredes daquele túnel nada familiar. — Este é um dos meus atalhos — disse ele. — Tenho passagens secretas espalhadas pelo mundo, em lugares com os quais você jamais sonhou. Economizam tempo. Enquanto prosseguíamos, passamos por grupos de seres humanos muito pálidos usando farrapos, alinhados e grudados nas laterais do túnel, curvando-se para o Sr. Tino. Esses eram os Guardiões do Sangue, pessoas que viviam no interior da Montanha do Vampiro e nos doavam seu sangue. Em troca, lhes era permitido extrair os órgãos internos e o cérebro de um vampiro quando morresse — os quais eram degustados em cerimônias especiais! Fiquei nervoso quando passei pelas fileiras de guardiões — nunca havia visto tantos reunidos antes —, mas o Sr. Tino apenas sorriu e acenou em sua direção, sem parar para trocar uma só palavra. Quinze minutos depois estávamos no portão que se abria para os Salões da Montanha do Vampiro. Assim que batemos, o guarda de serviço o empurrou com o intuito de abri-lo, mas parou quando viu o Sr. Tino e o fechou pela metade novamente.
— Quem é você? — vociferou defensivamente o oficial, enquanto sua mão serpenteava até a espada que estava em seu cinto. — Você sabe quem eu sou, Perlat Cheil — afirmou o Sr. Tino, enquanto esbarrava no guarda assustado. — Como você sabe o meu...? — espantou-se Perlat Cheil, e depois parou e se voltou para a figura que se afastava. Ele tremia e sua mão havia caído e largado a espada. — Será que ele é quem estou pensando? — perguntou, enquanto eu passava com Harkat e os pequeninos. — Sim — respondi simplesmente. — Pelas tripas de Charna! — arfou, fazendo o sinal do toque da morte, apertando a testa com o dedo médio da mão direita, enquanto o indicador e o anular se posicionavam um pouco acima das pálpebras. Era um sinal que os vampiros faziam quando achavam que a morte estava próxima. Marchamos por entre os túneis, silenciando conversas e fazendo com que queixos caíssem. Mesmo aqueles que jamais haviam encontrado o Sr. Tino o reconheciam e paravam o que estavam fazendo para nos seguir sem dizer uma palavra, como se acompanhassem um carro funerário. Só havia um túnel que dava no Salão dos Príncipes — eu havia encontrado um outro há seis anos, que no entanto fora bloqueado — e este era protegido pelos melhores guardas da montanha. Eles estavam incumbidos de parar e revistar qualquer um que tentasse entrar no palácio, mas quando o Sr. Tino se aproximou, todos ficaram olhando embasbacados, baixaram as armas e depois o deixaram — assim como o resto da procissão — passar desimpedido. O Sr. Tino finalmente parou nas portas do Salão e olhou para o prédio abobadado que ele havia construído fazia seis séculos. — Ele passou muito bem pelo teste do tempo, não? — assinalou para ninguém em especial. Depois, colocando uma das mãos sobre as portas, abriu-as e entrou. Supostamente, só príncipes podiam abrir as portas, mas não me surpreendeu o fato de o Sr. Tino ter o poder para controlá-las também. Mika e Paz estavam dentro do Salão, discutindo a guerra com um bando de generais. Havia um monte de gente com dor de cabeça e olhos turvos, mas todos se voltaram quando viram o Sr. Tino adentrando o recinto a passos largos. — Pelos dentes dos deuses! — exclamou Paz, ofegante, com o rosto empalidecendo. Ele se encolheu enquanto o Sr. Tino punha os pés na plataforma dos tronos, para depois se ajeitar e dar um sorriso forçado. — Desmond, é bom ver você. — Vê-lo também é bom, Paz — respondeu o visitante. — A que devemos esse prazer inesperado? — perguntou Paz com uma cortesia forçada. — Espere um minuto que já vou lhe dizer — respondeu e caiu num dos tronos (o meu!), cruzou as pernas e ficou à vontade. — Mande a gangue entrar —
disse, curvando o dedo na direção de Mika. — Tenho algo a dizer, e é para todos ouvirem. Em poucos minutos, quase todos os vampiros da montanha haviam superlotado o Salão dos Príncipes e estavam colados às paredes — o mais longe possível do Sr. Tino —, esperando o visitante misterioso falar. O Sr. Tino andara olhando para suas unhas e as tinha esfregado na parte frontal da sua jaqueta. Os pequeninos estavam em pé atrás do trono. Harkat ficou a sua esquerda, parecendo indeciso. Percebi que ele não sabia se devia ficar com seus irmãos naturais ou seus irmãos de opção — os vampiros. — Todos os presentes estão nos seus lugares? — perguntou o Sr. Tino. Ele se levantou e andou gingando na parte da frente da plataforma. — Então irei direto ao ponto. O Senhor dos Vampixiitas foi vampirizado. — Fez uma pausa, prevendo suspiros, gemidos e gritos de terror. Mas todos nós simplesmente nos pusemos a encará-lo, chocados demais para reagir. — Há seiscentos anos — prosseguiu — falei para seus antepassados que o Senhor dos Vampixiitas levaria seus comandados a travar uma guerra contra vocês e a eliminá-los. Esta era uma verdade... mas não a verdade. O futuro está aberto e fechado ao mesmo tempo. Há apenas um “será assim” mas normalmente há centenas de “pode ser”. O que significa que o Senhor dos Vampixiitas e seus seguidores podem ser derrotados. A respiração ficou presa nas gargantas de todos os vampiros e dava para sentir a esperança se formando no ar a nossa volta, como se fosse uma nuvem. — O Senhor dos Vampixiitas é apenas meio-vampixiita no momento — continuou o Sr. Tino. — Se vocês o encontrarem e o matarem antes que ele seja totalmente vampirizado, a vitória será nossa. Foi só ele dizer isso, que urros e berros começaram a se erguer e, de repente, vampiros batiam uns nas costas dos outros e entravam num estado de euforia. Alguns não embarcaram na onda de apupos e gritos. Aqueles que já conheciam previamente o Sr. Tino — eu, Paz, o Sr. Crepsley — perceberam que ele ainda não terminara e que devia haver uma cilada por trás daquilo tudo. O Sr. Tino não era do tipo que sorria escancaradamente quando trazia boas notícias. Só sorria assim quando sabia que haveria sofrimento e desgraça. Quando a onda de entusiasmo arrefeceu, o Sr. Tino levantou a mão direita. E agarrou seu relógio em forma de coração com a esquerda. Este brilhou, emitiu uma luz vermelho-escura e subitamente sua mão direita começou a brilhar também. Todos os olhos se fixaram nos cinco dedos avermelhados e o Salão ficou num silêncio sinistro. — Quando o Senhor dos Vampixiitas foi descoberto há sete anos — afirmou o Sr. Tino, com o rosto iluminado pelo brilho dos dedos —, estudei as cadeias que ligavam o presente ao futuro e vi que havia cinco chances de impedir o curso do destino. Uma dessas já veio e se foi.
O brilho vermelho sumiu do seu polegar, o qual dobrou para dentro da mão. — Tal chance foi Kurda Smahlt — afirmou o visitante. Kurda era o vampiro que fez com que os vampixiitas se voltassem contra nós, numa tentativa de assumir o controle da Pedra de Sangue. — Se Kurda fosse bem-sucedido, a maior parte dos vampiros teria sido absorvida pelos vampixiitas e a Guerra das Cicatrizes, como vocês a chamam, teria sido evitada. Mas vocês o mataram, destruindo o que provavelmente seria a maior esperança de sobrevivência em todo esse processo. — Ele balançou a cabeça, impaciente. — Isso foi uma tolice. — Kurda Smahlt era um traidor — rugiu Mika. — Nada de bom vem da deslealdade. Prefiro morrer de forma honrosa a ficar devendo a minha vida a um desertor. — Como você é tolo — disse o Sr. Tino com uma baita risada, para depois sacudir seu mindinho cintilante. — Isso representa a sua última chance, caso todas as outras venham a falhar. Como os fatos a ela interligados só ocorrerão daqui a algum tempo (se ocorrerem), temos que ignorá-la. — Ele abaixou o dedinho, e com isso restaram os três do meio. — Isso me lembra o motivo que me trouxe até aqui. Se eu os deixasse fazer o que quisessem, tais chances iriam passar despercebidas. Vocês continuariam tocando as coisas como estão, as janelas das oportunidades iriam passar e antes que percebessem... Bum! — Ao longo dos próximos doze meses — afirmou delicadamente, porém com firmeza — deve haver três encontros entre certos vampiros e o Senhor dos Vampixiitas... supondo que vocês tenham prestado atenção ao meu aviso. Três vezes em que ele estará a sua mercê. Se aproveitarem uma dessas oportunidades e o matarem, a guerra será de vocês. Se falharem, haverá um confronto final e decisivo, no qual o destino de todos os vampiros vivos estará na balança. — Ele fez uma pausa inoportuna. — Para ser honesto, gostaria que tudo ficasse para o final... Adoro epílogos grandiosos e dramáticos! Ele deu as costas para o Salão e um de seus pequeninos lhe passou um frasco, do qual bebeu todo o conteúdo. Sussurros e conversas furiosas se espalharam pelos vampiros reunidos enquanto o Sr. Tino bebia, e quando ele se virou para encarar novamente a multidão, Paz Celestial o esperava. — Você foi muito generoso em nos trazer tal informação, Desmond — afirmou o príncipe. — Em nome de todos aqui, eu lhe agradeço. — Não há de quê — afirmou o visitante. Seus dedos haviam parado de brilhar, ele havia largado seu relógio e suas mãos pousavam no seu colo. — Você será ainda mais generoso e nos dirá que vampiros estão destinados a encontrar o Senhor dos Vampixiitas? — perguntou Paz. — Sim — respondeu de um jeito presunçoso. — Mas vou deixar uma coisa
clara: os encontros só ocorrerão se os vampiros optarem por caçar o Senhor dos Vampixiitas. Os três que eu mencionar não terão obrigatoriamente que aceitar o desafio de persegui-lo ou assumir a responsabilidade pelo futuro do clã dos vampiros. Mas, se não o fizerem, vocês estarão condenados, pois é neles, apenas neles, que recai a capacidade de mudar o destino. Ele olhou lentamente em volta do Salão, encarando cada um dos vampiros presentes, buscando sinais de fraqueza e medo. Nenhum de nós desviou o olhar ou definhou sob a face de tal fardo medonho. — Muito bem — grunhiu o Sr. Tino. — Um dos caçadores está ausente, por isso não direi seu nome. Se os outros dois seguirem para a cova de Lady Evanna, provavelmente cruzarão com ele ao longo do caminho. Se não, suas chances de terem um papel ativo no futuro ficarão para trás, e tudo o mais irá por água abaixo para essa pobre dupla. — E são eles...? — perguntou Paz, tenso. O Sr. Tino se voltou para mim, e com um frio horrível no estômago imaginei o que viria a seguir. — Os caçadores devem ser Larten Crepsley e seu assistente Darren Shan — disse ele simplesmente, e, enquanto todos os olhos no Salão se viraram para nos procurar, tive a sensação de que copos invisíveis fizeram um brinde e que meus anos de tranqüilidade e segurança dentro da Montanha do Vampiro haviam chegado ao fim.
 
CAPÍTULO SETE
 
 
A possibilidade de recusar o desafio jamais chegou a passar pela minha cabeça. Seis anos vivendo entre vampiros haviam me imbuído dos seus valores e crenças. Qualquer vampiro daria a vida pelo bem do clã. Claro, isso não era tão simples quanto dar a vida — eu tinha uma missão a cumprir e, caso falhasse, todos iriam sofrer —, mas o princípio era o mesmo. Eu havia sido escolhido, e um vampiro
que é escolhido nunca diz “não”. Houve um curto debate, no qual Paz disse para o Sr. Crepsley e para mim que aquilo não era um dever oficial e não tínhamos que concordar em representar o clã — nenhuma vergonha recairia sobre nós se nos recusássemos a cooperar com o Sr. Tino. No final da conversa, o Sr. Crepsley deu um passo à frente, com a capa vermelha batendo nas suas costas que nem asas, e disse: — Terei o maior prazer de sair à caça do Senhor dos Vampixiitas. Acompanhei-o, lamentando muito o fato de não estar usando meu manto azul chamativo, e falei no que esperava ser um tom de bravura: — Eu também. — O garoto sabe como ser curto e grosso — murmurou o Sr. Tino, piscando para Harkat. — E quanto ao resto de nós? — perguntou Mika. — Passei cinco anos à caça desse maldito Senhor. Gostaria de acompanhá-los. — Ora! Eu também! — gritou um general no meio da multidão, e logo todos estavam gritando para o Sr. Tino, em busca de permissão para se juntarem a nós na caçada. O Sr. Tino balançou a cabeça. — Três caçadores devem ir atrás dele... nem mais, nem menos. Nãovampiros podem ajudá-los, mas, se algum dos seus familiares os seguir, com certeza eles fracassarão. Tal declaração foi recebida com murmúrios furiosos. — Por que devemos acreditar em você? — perguntou Mika. — Com certeza, dez têm mais chance do que três, vinte, mais do que dez, e trinta... O Sr. Tino estalou os dedos. Ouviu-se um som agudo e crepitante e deu para ver a poeira caindo de cima. Ao levantar os olhos, vi rachaduras longas e entalhadas aparecendo no teto do Salão dos Príncipes. Outros vampiros as viram também e gritaram, alarmados. — Será que vocês, que não testemunharam três séculos de história, ousam dizer para mim, que meço o tempo sentindo as correntes continentais, quais são os mecanismos do destino? — perguntou o Sr. Tino num tom ameaçador. Ele estalou os dedos novamente e as rachaduras aumentaram. Pedaços do teto caíram no interior do salão. — Mil vampixiitas não conseguiriam tirar um pedaço que fosse deste Salão; contudo eu, estalando os dedos, posso fazer com que ele venha abaixo. — Ele levantou os dedos com o intuito de estalá-los novamente. — Não! — gritou Mika. — Perdão! Não queria ofendê-lo! O Sr. Tino abaixou a mão. — Pense nisso antes de se colocar contra mim, Mika Ver Leth — vociferou antes de acenar para os pequeninos que vieram com ele e seguiram até as portas do Salão. — Eles consertarão o teto antes de partirmos. Mas, na próxima vez em que me deixarem enfurecido, reduzirei este Salão a escombros, deixando vocês e
sua preciosa Pedra de Sangue à mercê dos vampixiitas. Soprando a poeira do seu relógio em forma de coração, o Sr. Tino sorriu novamente. — Creio que estamos conversados... serão três, certo? — Três — concordou Paz. — Três — murmurou Mika friamente. — Como eu disse, não-vampiros podem... de fato, devem... ter algum papel nisso, mas, durante o próximo ano, nenhum vampiro deve procurar os caçadores, a não ser por motivos que nada tenham a ver com a busca pelo Senhor dos Vampixiitas. Sozinhos eles devem ficar e sozinhos devem triunfar ou fracassar. Com isso, ele terminou a reunião. Descartando Paz e Mika com um aceno de mão arrogante, fez um sinal para que eu e o Sr. Crepsley nos aproximássemos, e nos sorriu enquanto se recostava no meu trono. Chutou para longe uma de suas botas de cano alto ao mesmo tempo que falava. Não estava usando meias, e fiquei chocado ao ver que ele não tinha dedos — seus pés eram palmados nas extremidades, com seis pequenas garras projetadas como as de um gato. — Amedrontado, mestre Shan? — perguntou ele, com os olhos piscando maliciosamente. — Sim — respondi —, mas estou orgulhoso por poder ajudar. — E se você não for de nenhuma valia? — zombou. — Se falhar e condenar os vampiros à extinção? Encolhi os ombros. — O que vier nós traçamos — afirmei, repetindo um dito comum entre as criaturas da noite. O sorriso do Sr. Tino desapareceu. — Gostava mais de você quando era menos esperto — resmungou e depois se virou para o Sr. Crepsley. — E quanto a você? Apavorado com o peso das suas responsabilidades? — Sim — respondeu o meu instrutor. — Você acha que pode fraquejar na hora h? — Pode ser — disse o Sr. Crepsley, calmamente. O Sr. Tino fez uma careta. — Vocês dois são engraçados. É impossível irritá-los. Harkat! — berrou. O pequenino se aproximou na mesma hora. — O que você acha disso? O destino dos vampiros o incomoda? — Sim — respondeu Harkat. — Incomoda. — Você liga para eles? — Meu amigo acenou positivamente. — Hmmm. — O Sr. Tino esfregou seu relógio, que brilhou por um instante, e depois tocou no lado esquerdo da cabeça de Harkat. O pequenino bafejou e caiu de joelhos. — Você vem tendo pesadelos — notou o Sr. Tino, com os dedos ainda na têmpora de
Harkat. — Sim — gemeu meu colega de quarto. — Você quer que eles parem? — Sim. O Sr. Tino largou Harkat, que ficou gritando antes de apertar os dentes afiados e se levantou. Pequenas lágrimas esverdeadas de dor escorreram pelos cantos dos seus olhos. — É hora de você aprender a verdade sobre si próprio — disse o visitante. — Se vier comigo, eu a revelarei e os pesadelos acabarão. Se não, eles irão continuar e piorar, e dentro de um ano você será um ser arruinado e histérico. Harkat tremeu nas bases, mas não saiu correndo para o lado do Sr. Tino. — Se eu esperar — perguntou —, será que terei... outra chance de aprender... a verdade? — Sim, mas sofrerá muito enquanto isso, e eu posso garantir sua segurança. Se você morrer antes de descobrir quem realmente é, sua alma se perderá para todo o sempre. Harkat franziu a testa, cheio de dúvidas. — Tenho a sensação — murmurou. — Algo está me sussurrando — ele tocou no lado esquerdo do seu peito — aqui. Sinto que devo ir com Darren... e Larten. — Se o fizer, as chances de eles derrotarem o Senhor dos Vampixiitas aumentarão — afirmou o Sr. Tino. — Sua participação não é decisiva, mas pode vir a ser importante. — Harkat — disse eu suavemente —, você não nos deve nada. Já salvou minha vida duas vezes. Vá com o Sr. Tino e aprenda a verdade sobre a sua vida. Meu amigo franziu a testa. — Acho que se... deixar que vocês aprendam a verdade, a pessoa que fui... não vai gostar do que fiz. — O pequenino passou mais alguns segundos difíceis meditando e depois se colocou diante do Sr. Tino. — Irei com eles. Certo ou errado, sinto que meu lugar é... com os vampiros. Tudo o mais deve esperar. — Que seja assim então — desdenhou o visitante. — Se você sobreviver, nossos caminhos se encontrarão novamente. Se não... — Seu sorriso foi paralisante. — E quanto a nossa busca? — perguntou o Sr. Crepsley. — Você mencionou Lady Evanna. Começamos com ela? — Se você quiser — disse o Sr. Tino. — Não posso e não vou guiá-lo, mas é aí que eu iria começar. Depois disso, sigam o seu coração. Esqueçam a jornada e vão para onde sintam que devem ir. O destino irá guiá-los como lhe convier. Esse foi o fim da conversa. O Sr. Tino foi embora sem dar um adeus, levando seus pequeninos (que haviam completado seu trabalho de reparo enquanto ele falava), sem dúvida ansioso para contemplar aquele seu vulcão
fatal no dia seguinte. A Montanha do Vampiro ficou em alvoroço naquela noite. A visita e a profecia do Sr. Tino foram extensamente debatidas e dissecadas. Os vampiros concordavam que o Sr. Crepsley e eu tínhamos que partir sozinhos, para nos unirmos ao terceiro caçador — quem quer que fosse —, mas estavam divididos quanto ao que o resto deles devia fazer. Alguns achavam que, como o futuro do clã estava nas mãos de três caçadores solitários, todos deviam esquecer a guerra com os vampixiitas, já que ela não servia mais para nenhum propósito. A maior parte discordava e dizia que seria uma loucura parar de lutar. O Sr. Crepsley conduziu a mim e a Harkat para fora do Salão pouco antes do amanhecer, deixando para trás os príncipes e generais que discutiam, dizendo que precisávamos de um bom dia de descanso. Era difícil dormir com as palavras do Sr. Tino ecoando no meu cérebro, mas consegui me virar durante algumas horas. Acordamos cerca de três horas antes do pôr-do-sol, fizemos uma refeição rápida e arrumamos nossos parcos pertences (peguei um jogo de roupas a mais, algumas garrafas de sangue e o meu diário). Dissemos adeus para Vanez e Sebá — o velho intendente ficou especialmente triste em nos ver partir — e depois encontramos Paz Celestial no portão de saída dos Salões. Ele nos disse que Mika ficava para ajudar no noite-anoite da guerra. Parecia muito adoentado enquanto eu apertava sua mão, e tive a impressão de que ele não tinha muitos anos pela frente — se nossa busca nos afastasse da Montanha do Vampiro por um período muito longo, talvez estivéssemos nos vendo pela última vez. — Sentirei sua falta, Paz — afirmei, enquanto o abraçava fortemente, depois de termos apertado as mãos. — Também sentirei saudades, jovem príncipe — retrucou para depois me apertar com força e cochichar no meu ouvido: — Encontre-o e mate-o, Darren. Estou sentindo uma friagem nos meus ossos, que não tem nada a ver com o abatimento que vem com a idade. O Sr. Tino falou a verdade; se o Senhor dos Vampixiitas usar todo o seu poder, tenho certeza de que todos iremos perecer. — Eu o encontrarei — jurei, encarando o velho príncipe. — E, se tiver a chance de matá-lo, farei exatamente o necessário. — Então, que a sorte dos vampiros esteja com você — desejou Paz. Juntei-me ao Sr. Crepsley e a Harkat. Saudamos aqueles que se juntaram para nos ver partir, nos voltamos para os túneis mais abaixo e seguimos em frente. Andávamos com rapidez e segurança, e duas horas depois havíamos deixado a montanha e estávamos caminhando em chão aberto, sob o céu claro da noite. Nossa caçada ao Senhor dos Vampixiitas havia começado!
 
CAPÍTULO OITO
 
 
Era demais estar de volta à estrada. Podíamos estar seguindo para o coração de um inferno e nossos camaradas sofreriam imensamente se falhássemos, mas tais preocupações ficariam para o futuro. Naquelas primeiras semanas, tudo em que conseguia pensar era em como era agradável poder esticar as pernas e respirar ar puro, sem estar aprisionado com dezenas de vampiros suados e fedorentos.
Estava no mais alto astral enquanto traçávamos um caminho pelas montanhas durante a noite. Harkat estava muito quieto e passou um bom tempo meditando sobre o que o Sr. Tino havia dito. O Sr. Crepsley estava tão carrancudo como sempre, embora eu soubesse que por trás daquela fachada sombria ele estava tão feliz quanto eu por estar a céu aberto. Seguíamos num passo firme e o mantivemos, cobrindo muitos quilômetros ao longo de cada noite, dormindo profundamente durante o dia entre árvores e arbustos, ou dentro de cavernas. O frio era intenso e cortante quando partimos mas, enquanto seguíamos pela cordilheira, ele foi diminuindo. Quando chegamos à planície, estávamos tão à vontade quanto um humano num dia tempestuoso de outono. Levávamos garrafas sobressalentes de sangue humano e nos alimentávamos com animais selvagens. Fazia muito tempo que eu não caçava e, para começo de conversa, estava um pouco enferrujado, mas logo peguei novamente o embalo. — Isso é que é vida, não? — notei numa daquelas manhãs enquanto devorávamos a carcaça assada de um cervo. Não acendíamos fogueiras na maior parte dos dias — comíamos carne crua —, mas era bacana relaxar em volta de um monte de toras em brasa de vez em quando. — E como — concordou o Sr. Crepsley. — Gostaria que pudéssemos fazer isso sempre. O vampiro sorriu. — Você não está com pressa de voltar para a Montanha do Vampiro? Fiz uma careta. — Ser um príncipe é uma grande honra, mas não é muito divertido. — Você teve uma iniciação muito dura — afirmou de um jeito solidário. — Se não estivéssemos em guerra, haveria tempo para aventuras. A maior parte dos príncipes vaga pelo mundo durante décadas antes de se dedicar aos afazeres reais. A sua época foi infeliz. — Ainda assim não posso reclamar — retruquei alegremente. — Estou livre agora. Harkat mexeu no fogo e se aproximou de nós. Não havia dito muita coisa depois que deixamos a Montanha do Vampiro, mas naquele instante abaixou a máscara e falou. — Eu amava a Montanha do Vampiro. Lá me sentia como se estivesse em casa. Nunca fiquei tão à vontade antes, mesmo quando... estava com o Circo dos Horrores. Quando tudo isso acabar, se puder... escolher, voltarei. — Há sangue vampiro dentro de você — disse o Sr. Crepsley. Ele estava brincando, mas Harkat levou a afirmativa a sério. — Pode ser — supôs o pequenino. — Sempre me perguntei se havia sido um vampiro... na minha vida anterior. Isso pode explicar o porquê de eu ter sido enviado para a Montanha do Vampiro... e porque me adaptei tão bem a ela.
Também pode explicar as estacas... nos meus sonhos. Os sonhos de Harkat normalmente continham estacas. O chão costumava ceder em seus pesadelos e ele caía num poço cheio delas, ou era perseguido por vultos das sombras que as carregavam e as usavam para atravessar seu coração. — Há alguma nova pista sobre quem você pode ter sido? — perguntei. — Será que o encontro com o Sr. Tino avivou a sua memória? Harkat balançou a cabeça entroncada e sem pescoço. — Não tive mais nenhum insight — suspirou. — Por que o Sr. Tino não lhe contou a verdade sobre você se era chegada a sua hora de aprender? — perguntou o Sr. Crepsley. — Não creio que a coisa seja... tão simples assim — retrucou Harkat. — Tenho que me tornar merecedor da verdade. É parte do... acordo que fizemos. — Não será estranho se Harkat tiver sido um vampiro? — observei. — E se tiver sido um príncipe, será que ainda conseguiria abrir as portas do Salão dos Príncipes? — Não acho que fui príncipe — disse Harkat enquanto ria para valer e os cantos de sua boca se erguiam. — Ei, se eu posso me tornar um príncipe, qualquer um pode. — É verdade — murmurou o Sr. Crepsley, antes de se inclinar prontamente enquanto eu lhe passava uma coxa de cervo. Assim que nos livramos das montanhas, seguimos para sudoeste e logo alcançamos as cercanias da civilização. Era estranho ver luzes elétricas, carros e aviões novamente. Sentia-me como se estivesse vivendo no passado e tivesse saído de uma máquina do tempo. — É tudo tão barulhento — comentei uma noite enquanto passávamos por uma cidade movimentada. Só a adentramos para tirar sangue dos seres humanos, rasgando-os durante o sono com nossas unhas, pegando uma pequena quantidade de sangue, e fechando os cortes com a saliva curativa do Sr. Crepsley, deixandoos alheios ao fato de que nos haviam alimentado. — Muitas músicas, risadas e gritos. — Meus ouvidos zumbiam com o barulho. — Os seres humanos sempre conversam como se fossem macacos — disse o meu instrutor. — É o jeito deles. Costumava me opor quando ele dizia coisas assim, mas não o faço mais. Quando me tornei seu assistente, me agarrava à esperança de que pudesse retomar a minha antiga vida. Sonhava em recuperar minha humanidade e voltar para a minha família e amigos. Isso não acontece mais. Meus anos na Montanha do Vampiro me livraram dos meus desejos humanos. Agora eu era uma criatura da noite — e feliz como tal. A coceira estava piorando. Antes de deixar a cidade, encontrei uma farmácia e comprei várias pomadas e loções antiprurido, as quais esfreguei na minha pele. Tais medicamentos não trouxeram nenhum alívio. Nada fazia a
coceira parar e por isso fiquei me coçando de um jeito irritante enquanto viajávamos até a gruta de Lady Evanna. O Sr. Crepsley não nos dizia muita coisa sobre a mulher que iríamos encontrar; onde ela vivia, se era vampira ou humana, e por que iríamos vê-la. — Você devia me falar essas coisas — resmunguei uma manhã enquanto acampávamos. — É se algo lhe acontecer? Como eu e Harkat a encontraremos? O Sr. Crepsley afagou a longa cicatriz que corria pelo lado esquerdo do seu rosto — mesmo depois de todos os anos que passamos juntos, eu ainda não sabia como ele a adquirira — e acenou positivamente, depois de pensar muito. — Você tem razão, farei um mapa antes do cair da noite. — É nos contará quem ela é? Ele hesitou. — Isso é mais difícil de explicar. Será melhor que venha dos seus próprios lábios. Evanna conta coisas diferentes para pessoas diferentes. Ela pode não fazer objeção a que você saiba a verdade... mas de repente pode. — Ela é uma inventora? — insisti. O Sr. Crepsley tinha uma coleção de panelas e frigideiras que se encaixavam umas nas outras, formando um pequeno pacote, que as tornava mais fáceis de carregar. Ele me dissera que Evanna as havia fabricado. — As vezes ela inventa. Trata-se de uma mulher de muitos talentos. Passa a maior parte do tempo criando sapos. — O quê? — pisquei. — É o hobby dela. Algumas pessoas cuidam de cavalos, cães ou gatos. Evanna cuida de sapos. — Como ela pode criar sapos? — bufei, cético. — Você descobrirá. — Depois disso ele se inclinou para a frente e bateu no meu joelho. — Pode dizer o que quiser, mas não a chame de bruxa. — Por que eu a chamaria de bruxa? — Porque ela é... uma espécie de feiticeira. — Nós vamos encontrar uma bruxa? — vociferou Harkat, preocupado. — Isso o preocupa? — perguntou o Sr. Crepsley. — Às vezes nos meus sonhos... há uma bruxa. Nunca vi seu rosto... não claramente... e não tenho certeza... se ela é boa ou má. Há horas em que corro em sua direção em busca de ajuda e outras... em que fujo, com medo. — Você não havia mencionado isso antes — afirmei. O sorriso de Harkat foi trêmulo. — Com todos os dragões, estacas e homens das trevas... o que é uma pequena bruxa? A menção de dragões me lembrou algo que ele havia dito quando encontramos o Sr. Tino. O pequenino o chamara de “mestre dos dragões”. Perguntei a Harkat sobre isso e ele não se lembrava de ter dito nada parecido.
— Embora — cismou — eu às vezes vejo o Sr. Tino nos meus sonhos, cavalgando... dragões. Uma vez ele arrancou o cérebro de um deles e... o jogou para mim. Estiquei-me para pegá-lo mas... acordei antes de conseguir. Ficamos pensando naquela imagem durante um bom tempo. Vampiros dão muita importância aos sonhos. Muitos acreditam que os sonhos agem como elos que nos ligam ao passado e ao futuro, e que muita coisa pode ser aprendida com eles. Mas os sonhos de Harkat pareciam não ter nenhuma ligação com a realidade e, no fim das contas, o Sr. Crepsley e eu os descartamos, rolamos para o lado e dormimos. Harkat não — ele permaneceu acordado, com os olhos verdes brilhando sutilmente, adiando o sono o máximo de tempo possível, evitando os dragões, estacas, bruxas e outros perigos dos seus pesadelos agitados.
 
CAPÍTULO NOVE
 
 
Com o crepúsculo, acordei com uma sensação de conforto absoluto. Enquanto olhava para cima e via um céu vermelho que ia escurecendo, tentei entender por que me sentia tão bem. Depois percebi — a coceira havia parado. Fiquei deitado por mais alguns minutos, com medo de que ela fosse voltar caso eu me mexesse, mas quando finalmente me levantei, não havia a mínima sensação de comichão.
Sorrindo, fui até uma pequena lagoa perto de onde havíamos acampado, para molhar minha garganta. Mergulhei minha cabeça na água fresca e clara do lago e a bebi profundamente. Enquanto me erguia, notei um rosto nada familiar refletido na superfície — um homem barbado de cabelos longos. Estava bem na minha frente, o que significava que devia estar em pé logo atrás de mim — mas eu não havia ouvido ninguém se aproximar. Enquanto girava meu corpo rapidamente, minha mão alcançou a espada que eu havia trazido da Montanha do Vampiro. Já havia retirado metade dela da bainha quando parei, confuso. Não havia ninguém ali. Olhei em volta à procura do homem barbudo e esfarrapado, mas ele não estava em parte alguma. Por perto não havia árvores ou pedras atrás das quais ele pudesse ter se escondido; nem mesmo um vampiro poderia se mover rápido o bastante para desaparecer tão prontamente. Voltei-me para o lago e olhei novamente para dentro d’água. Lá estava ele! Claro e peludo como antes, franzindo a testa para mim. Dei um grito curto e pulei para trás. Será que o homem barbudo estava dentro do lago? Se estivesse, como poderia respirar? Dei um passo à frente, encarei o peludão — ele se parecia com um homem das cavernas — pela terceira vez e sorri. Ele sorriu de volta. — Olá — saudei-o. Seus lábios se moveram junto com os meus, mas silenciosamente. — Meu nome é Darren Shan. — Mais uma vez seus lábios se moveram ao mesmo tempo que os meus. Já estava ficando incomodado... será que ele estava curtindo com a minha cara? Foi quando percebi o que estava acontecendo. Aquele era eu! Dava para ver meus olhos e a forma da minha boca agora que observava mais atentamente, assim como a pequena cicatriz triangular logo acima do meu olho direito, que havia se tornado uma parte de mim assim como meu nariz ou meus ouvidos. Era o meu rosto, não havia dúvida — mas de onde viera todo aquele cabelo? Toquei no meu queixo e encontrei uma barba grossa e cerrada. Passei a mão direita sobre a cabeça — que deveria estar lisa — e fiquei atordoado ao sentir mechas grossas e espessas de cabelo. Meu polegar, que se projetava num certo ângulo, ficou preso no meio de tantos fios, e eu estremeci enquanto o soltava, pois arranquei um pouco de cabelo junto. O que, em nome de Khledon Lurt, havia acontecido comigo? Continuei a checar. Arranquei minha camiseta e um peito e uma barriga cobertos de pêlos se revelaram. Também haviam se formado grandes bolas de pêlo debaixo das axilas e sobre os ombros. Estava peludo no corpo todo! — Pelas tripas de Charna! — disse, rugindo, e depois corri para acordar
meus amigos. O Sr. Crepsley e Harkat estavam levantando acampamento quando cheguei correndo, ofegando e gritando. O vampiro olhou para o meu semblante peludo, puxou uma faca e rugiu para que eu parasse. Harkat correu para trás do meu instrutor, com uma expressão medonha no rosto. Enquanto eu parava, bafejando, vi que eles não me reconheceram. Levantando minhas mãos para mostrar que estavam vazias, disse numa voz baixa e áspera. — Não... ataquem! Sou... eu! Os olhos do Sr. Crepsley se arregalaram. — Darren? — Não pode ser — rosnou Harkat. — É um impostor. — Não — gemi. — Eu me levantei, fui até a lagoa para beber um pouco d’água e encontrei... encontrei... — Balancei meus braços peludos em sua direção. O Sr. Crepsley deu um passo à frente, embainhou sua faca e estudou meu rosto, incrédulo. E depois gemeu. — O expurgo! — murmurou. — O quê? — gritei. — Sente-se, Darren — disse meu instrutor num tom sério. — Temos muito o que conversar. Harkat, vá encher nossos cantis e faça uma nova fogueira. Quando o Sr. Crepsley conseguiu organizar seus pensamentos, explicou para mim e Harkat o que estava acontecendo. — Vocês sabem que meio-vampiros se tornam vampiros integralmente quanto mais sangue vampiro lhes é bombeado. O que nunca falamos, já que não poderia imaginar que isso fosse acontecer tão rápido, foi sobre as outras coisas que podem acontecer com o sangue de um vampiro. Basicamente, se alguém continua sendo um meio-vampiro durante um período de tempo extremamente longo (a média é de quarenta anos), suas células vampirescas acabam atacando as humanas e as transformam, o que resulta num vampirismo completo. Chamamos a isso de expurgo. — Você está querendo dizer que eu me tornei um vampiro completo? — perguntei calmamente, intrigado e amedrontado com o fato. Intrigado porque aquilo implicava mais poder, a capacidade de voar e de me comunicar telepaticamente. Amedrontado porque também significava que teria que me afastar totalmente da luz do dia e do mundo da humanidade. — Ainda não — disse o Sr. Crepsley. — O cabelo é apenas o primeiro estágio. Temos que raspá-lo imediatamente e, embora ele vá crescer de novo, sumirá de vez daqui a um mês ou coisa parecida. Você irá passar por outras mudanças durante esse período... crescerá, sofrerá com dores de cabeça e emitirá rajadas energéticas... mas isso também irá cessar. No fim dessas mudanças, seu sangue de vampiro poderá até substituir
inteiramente o sangue humano, mas é provável que não o faça, deixando-o normal novamente... por alguns meses ou anos. Mas em algum momento, durante esses poucos anos, seu sangue se transformará por completo. Você entrou nos últimos estágios do meio-vampirismo. Não há como voltar atrás. Passamos a maior parte do resto da noite falando sobre o expurgo. O Sr. Crepsley disse que era raro um meio-vampiro passar pelo expurgo depois de menos de vinte anos, mas aquilo ao que tudo indica estava ligado ao momento em que me tornei Príncipe Vampiro — durante o cerimonial, mais sangue vampírico fora acrescentado às minhas veias, e isso deve ter acelerado o processo. Lembrei-me de Sebá me examinando nos túneis da Montanha do Vampiro, e falei sobre isso para o meu instrutor. — Ele devia saber do expurgo. Por que não me avisou? — perguntei. — Não era função dele. Como seu instrutor, sou responsável por informá-lo. Estou certo de que ele teria me falado, para que eu pudesse me sentar com você e explicar tudo, mas não houve tempo... o Sr. Tino chegou e tivemos que deixar a montanha. — Você disse que Darren iria crescer durante... o expurgo — disse Harkat. — Quanto? — Não há como dizer — afirmou o Sr. Crepsley. — Potencialmente falando, ele pode atingir a idade adulta no espaço de alguns meses, mas isso é improvável. Pode envelhecer alguns anos, mas talvez nada mais do que isso. — Você quer dizer que finalmente chegarei à adolescência? — perguntei. — Imagino que sim. Pensei nisso por um tempo e depois sorri. — Bacana!
 Mas o expurgo estava longe de ser bacana — era uma maldição! Ter que raspar todos os pêlos do meu corpo já era ruim — o Sr. Crepsley usava uma lâmina longa e afiada, que me arranhava ao ponto de deixar minha pele cheia de ferimentos —, mas as mudanças pelas quais meu corpo passava eram muito piores. Os ossos estavam se alongando e se fundindo. Minhas unhas e dentes cresciam — eu tinha que roer minhas unhas e ranger os dentes enquanto andava durante a noite para mantê-los em forma — e meus pés e mãos aumentavam de tamanho. Em poucas semanas, já estava cinco centímetros mais alto, todo dolorido por causa das dores do crescimento. Meus sentidos estavam na mais completa desordem. Sons leves eram amplificados — o partir de um galho fino parecia uma casa desabando. O mais insípido dos cheiros deixava o meu nariz formigando. Meu paladar me abandonou completamente. Tudo tinha gosto de papelão. Comecei a entender como devia ser a vida para Harkat e resolvi nunca mais caçoar dele novamente
por causa de sua falta de papilas gustativas. Até mesmo luzes turvas estavam cegando o meu olho ultra-sensível. A lua parecia um holofote no meio do céu, e, se eu abrisse os olhos durante o dia, poderia muito bem enfiar dois alfinetes flamejantes dentro deles — o interior da minha cabeça chamejaria com uma dor metálica. — É assim que a luz do sol age sobre os vampiros completos? — perguntei um dia ao Sr. Crepsley, enquanto estremecia sob um grosso cobertor, com os olhos fechados e apertados, evitando os raios dolorosos do sol. — Sim — disse ele. — É por isso que evitamos até mesmo períodos curtos de exposição à luz do dia. A dor das queimaduras solares não é tão grande assim... não durante os dez ou quinze primeiros minutos... mas o brilho do sol é instantaneamente insuportável. Sofri de imensas dores de cabeça durante o expurgo, devido ao fato de ter perdido o controle dos meus sentidos. Houve momentos em que pensei que minha cabeça fosse explodir e chorei indefeso por causa da dor. O Sr. Crepsley me ajudou a lutar contra os efeitos atordoantes. Amarrou tiras leves de pano para tapar meus olhos — ainda dava para enxergar muito bem — e enfiou bolas de capim nos meus ouvidos e narinas. Aquilo era desconfortável e eu me sentia ridículo — os uivos e gargalhadas de Harkat não ajudavam —, mas as dores de cabeça diminuíram. Outro efeito colateral foi o surto violento de energia. Sentia-me como se estivesse funcionando com baterias. Tinha que andar na frente de Harkat e do Sr. Crepsley durante a noite e depois voltar para encontrá-los, apenas com o intuito de me cansar. Ficava me exercitando que nem um maluco toda vez que parávamos — flexões, levantamentos, abdominais — e normalmente acordava muito antes do meu instrutor, incapaz que era de dormir mais do que algumas horas por vez. Subia em árvores e despenhadeiros, e nadava em rios e lagos, tudo com a intenção de gastar minha reserva energética extraordinária. Teria lutado contra um elefante se tivesse encontrado um. Finalmente, depois de seis meses, a tormenta passou. Parei de crescer. Não tinha mais que me barbear (embora os cabelos tivessem ficado — eu não era mais careca!). Retirei o pano e as bolas de capim, e meu paladar voltou, embora ainda meio debilitado. Estava cerca de sete centímetros mais alto do que quando o expurgo se abateu sobre mim, e notadamente mais encorpado. A pele do meu rosto havia ficado mais calejada, dando-me a aparência de alguém levemente mais velho — agora eu parecia ter quinze ou dezesseis anos. O mais importante de tudo era que eu continuava sendo um meio-vampiro. O expurgo não chegou a eliminar minhas células sangüíneas humanas. O lado ruim era que eu teria que passar pelo desconforto do expurgo mais uma vez no futuro. Por outro lado, poderia continuar a desfrutar a luz do sol por enquanto,
antes de ter que abandoná-la para sempre em favor da noite. Embora estivesse entusiasmado para me tornar um vampiro completo, sentiria falta do mundo à luz do dia. Uma vez que o meu sangue se transformasse, não haveria volta. Eu aceitava isso, mas estaria mentindo se dissesse que não estava nervoso. Assim, eu teria meses — talvez um ano ou dois — para me preparar para a mudança. Eu havia crescido demais para caber em minhas roupas e sapatos, por isso tive que me abastecer num pequeno entreposto humano (estávamos deixando a civilização para trás novamente). Numa loja que vendia artigos militares usados, escolhi um vestuário semelhante ao antigo, acrescentando um par de camisas em tom púrpura às minhas azuis e uma calça verde-escura. Enquanto pagava pelas roupas, um homem alto e magro entrou. Ele usava uma camisa marrom, uma calça preta e um boné de beisebol. — Preciso de suprimentos — resmungou para o balconista, enquanto lhe atirava uma lista. — Você precisará de uma licença para levar as armas — disse o dono da loja, enquanto passava os olhos na relação de itens. — Eu tenho. — O homem estava enfiando a mão num bolso da camisa quando viu minhas mãos e ficou paralisado. Eu segurava minhas roupas novas na frente do peito, e as cicatrizes nas pontas dos dedos — por onde eu fora vampirizado pelo Sr. Crepsley — estavam aparentes. O homem relaxou instantaneamente e me deu as costas — mas tive certeza de que ele reconhecera as cicatrizes e soube o que eu era. Saí correndo da loja, encontrei Harkat e o meu instrutor nos limites da cidade e lhes contei o que havia acontecido. — Ele estava nervoso? — perguntou o Sr. Crepsley. — Chegou a seguir você? — Não. Simplesmente ficou parado quando viu as marcas, depois agiu como se não as tivesse visto. Mas sabia o que elas significavam... estou certo disso. O Sr. Crepsley esfregou sua cicatriz, pensativo. — Seres humanos que conhecem a verdade sobre as marcas dos vampiros são incomuns, mas existem alguns. Pelo jeito, é uma pessoa normal que simplesmente ouviu histórias sobre vampiros e as pontas dos seus dedos. — Mas ele pode ser um caçador de vampiros — afirmei calmamente. — Caçadores de vampiros são raros... mas existem. — Meu instrutor ficou algum tempo pensando até chegar a uma decisão. — Vamos proceder como planejado, mas fiquemos de olhos abertos, sendo que você ou Harkat permanecerão de vigília durante o dia. Se vier um ataque, deveremos estar prontos. — Ele sorriu com firmeza e tocou no cabo de sua faca. — E esperando!
 
CAPÍTULO DEZ
 
 
Quando amanheceu, sabíamos que tínhamos uma briga nas mãos. Estávamos sendo seguidos, não por uma só pessoa, mas por três ou quatro. Eles haviam seguido a nossa trilha alguns quilômetros para fora da cidade e vinham nos rastreando desde então. Moviam-se com uma discrição admirável, e, se não tivéssemos previsto problemas, poderíamos não perceber que algo estava errado.
Mas, quando um vampiro está alerta para o perigo, nem o ser humano mais ligeiro é capaz de alcançá-lo. — Qual é o plano? — perguntou Harkat enquanto acampávamos no meio de uma pequena floresta, protegidos do sol entre galhos e folhas que se entrelaçavam. — Eles esperarão o sol ficar a pino para atacar — afirmou o Sr. Crepsley, mantendo um tom de voz baixo. — Agiremos como se tudo estivesse na mais perfeita normalidade e fingiremos que estamos dormindo. Quando chegarem, lidaremos com eles. — Você não terá problemas no meio do sol? — perguntei. Embora estivéssemos protegidos no lugar onde nos encontrávamos, uma batalha poderia nos puxar para longe da sombra. — Os raios não irão me causar danos durante o tempo que será necessário para lidarmos com essa ameaça. E protegerei meus olhos com uma faixa de pano, como você fez durante o expurgo. Arrumamos nossas camas no meio dos musgos e das folhas que estavam no chão, cobrimo-nos com nossos mantos e nos instalamos. — É claro, eles podem ser apenas curiosos — murmurou Harkat. — Podem simplesmente querer ver... como é um vampiro de verdade. — Eles estão se movendo muito sutilmente para isso — discordou o meu instrutor. — Estão aqui a trabalho. — Acabei de me lembrar — afirmei, cochichando. — O sujeito na loja estava comprando armas! — A maior parte dos caçadores de vampiros vêm adequadamente armados — resmungou o Sr. Crepsley. — Já lá se vão as noites em que os tolos carregavam apenas um martelo e uma estaca de madeira. Conversou-se um pouco mais depois. Ficamos deitados, com os olhos fechados (exceto Harkat, que cobria os olhos sem pálpebras com seu manto), respirando calmamente, fingindo que estávamos dormindo. Os segundos se passavam lentamente, durando uma era para virar minutos, e uma eternidade para virar horas. Já haviam se passado seis anos desde que eu experimentara pela última vez um combate feroz. Meus membros estavam estranhamente frios, enquanto serpentes rijas e geladas se enrolavam e se desenrolavam nas paredes do meu estômago. Continuei curvando os meus dedos sob as dobras do meu manto, nunca me afastando muito da minha espada, pronto para puxá-la. Pouco depois do meio-dia — quando o sol era mais prejudicial para um vampiro —, os homens se aproximaram para a matança. Havia três deles, espalhados num semicírculo. A princípio, dava para ouvir o roçar das folhas enquanto o grupo se aproximava, e um galho se partindo de vez em quando. Mas, à medida que nos cercavam, fui ficando atento a sua respiração pesada, ao
estalar dos seus ossos tensos e ao batimento acelerado e apavorado dos seus corações. Ficaram parados a dez ou doze metros de distância, escondidos atrás de árvores, enquanto se preparavam para nos atacar. Houve uma pausa longa e tensa — até que se ouviu o som de um cão de espingarda sendo lentamente armado. — Agora! — urrou o Sr. Crepsley, enquanto se levantava num salto, lançando-se na direção do homem que estava mais próximo. Enquanto ele cercava seu oponente numa velocidade incrível, Harkat e eu visávamos os outros. Aquele no qual eu havia colocado meus olhos disse um palavrão em voz alta, saiu de trás da árvore, apontou seu rifle e deu um tiro na mesma hora. Uma bala passou raspando por mim, errando o alvo por alguns centímetros. Antes que pudesse atirar novamente, eu já estava sobre ele. Arranquei o rifle das mãos do homem e o arremessei para longe. Uma arma disparou atrás de mim, mas não havia tempo para ajudar meus amigos. O homem à minha frente já havia sacado uma longa faca de caçador, por isso desembainhei rapidamente a minha espada. Os olhos do sujeito se arregalaram quando viram a espada — a área em volta dos seus olhos ficou pintada com círculos vermelhos que pareciam sangue —, mas depois se estreitaram. — Você é apenas um garoto — disse em tom ríspido, enquanto me ameaçava com sua faca. — Não — discordei, saindo do alcance de sua lâmina, golpeando-o com minha espada. — Sou muito mais. Enquanto o homem me golpeava novamente, levantei minha espada e fiz um corte seco em forma de arco, atravessando a pele, os músculos e os ossos de sua mão direita, cortando três dos seus dedos, desarmando-o num instante. O sujeito gritou agoniado e caiu para trás. Aproveitei a oportunidade para ver como o Sr. Crepsley e Harkat estavam indo. Meu instrutor já havia despachado seu adversário e seguia a passos largos na direção de Harkat, que lutava com seu oponente. O pequenino parecia estar levando vantagem, mas o Sr. Crepsley tomava posição para ajudá-lo, caso a batalha mudasse para pior. Satisfeito por tudo estar correndo ao nosso favor, desviei novamente minha atenção para o homem que estava no chão, preparando-me psicologicamente para a tarefa desagradável de acabar com o sujeito. Para minha surpresa, vi que ele sorria de um jeito tenebroso na minha direção. — Você devia ter cuidado da minha outra mão também! — urrou. Meus olhos se fixaram na mão esquerda do homem e fiquei com a respiração presa — ele segurava uma granada de mão perto do peito! — Não se mova! — gritou o homem enquanto eu dava uma guinada em sua
direção. Ele apertou o detonador até a metade com o polegar. — Se isso explodir, levará eu e você juntos. — Calma — suspirei, enquanto recuava aos poucos, fitando com pavor a granada preparada. — Terei calma no inferno — gargalhou de um jeito sádico. Ele havia raspado a cabeça e havia um “V” escuro tatuado nas duas laterais do crânio, logo acima das orelhas. — Agora, diga ao seu imundo parceiro vampiro e àquele monstro de pele cinza para deixarem meus amigos irem embora, ou então... Ouviu-se um som agudo de assobio vindo das árvores à minha esquerda. Algo havia arremessado a granada, que voou das mãos do homem. Ele gritou e pegou outra granada (tinha várias amarradas em volta do peito). Ouviu-se um segundo silvo e um objeto cintilante e cheio de pontas enterrou-se no meio da cabeça do sujeito. O homem caiu para trás com um grunhido, tremeu alucinadamente e depois ficou ali deitado. Olhei para ele, confuso, e me inclinei automaticamente para a frente a fim de ter uma visão mais clara do quadro. O objeto em sua cabeça era uma estrela dourada. Nem o Sr. Crepsley nem Harkat carregavam uma arma como essa — então quem a havia jogado? Em resposta à minha pergunta não verbalizada, alguém pulou de uma árvore próxima e andou até onde eu estava a passos largos. — Jamais dê as costas para um cadáver! — vociferou o estranho enquanto eu me virava para encará-lo. — Vanez Blane não lhe ensinou isso? — Eu... esqueci — afirmei, ofegante, perplexo demais para dizer algo a mais. O vampiro (tinha que ser um de nós) era um homem robusto de altura média, com a pele avermelhada e cabelo tingido de verde, usando couro animal púrpura costurado de forma grosseira. Tinha olhos enormes (quase tão grandes quanto os de Harkat) e uma boca surpreendentemente pequena. Ao contrário do Sr. Crepsley, sua visão estava descoberta, embora ele piscasse dolorosamente quando se voltava para a luz do sol. Não usava sapatos e não carregava arma alguma a não ser dezenas de estrelas douradas amarradas a vários cintos que envolviam seu tronco. — Vou pegar meu shuriken de volta, obrigado — disse o vampiro para o homem morto, enquanto extraía a estrela com dificuldade, limpava o sangue e a atava a um dos seus cintos. Ele virou a cabeça do sujeito para a esquerda e para a direita e reparou na cabeça raspada, nas tatuagens e nos círculos vermelhos em volta dos olhos. — É um vampitiete! — bufou. — Já os enfrentei antes. Malditos patifes. — Cuspiu no cadáver e depois usou seu pé descalço para rolá-lo para o lado, a fim de que ficasse com o rosto virado para baixo. Quando o vampiro virou para se dirigir a mim, sabia quem era o sujeito — ele já me havia sido descrito muitas vezes — e o cumprimentei com o respeito que merecia.
— Vancha March — falei, curvando a cabeça em reverência. — É uma honra conhecê-lo, senhor. — Igualmente — respondeu alegremente. Vancha March era o Príncipe Vampiro que eu jamais encontrara, o mais bárbaro e tradicional de todos os príncipes. — Vancha! — encheu-se de júbilo o Sr. Crepsley, enquanto tirava a venda dos seus olhos, cruzava o espaço que havia entre nós e batia nos ombros do príncipe. — O que está fazendo aqui, majestade? Achava que estava lá pelo norte. — E estava mesmo — desdenhou Vancha, soltando as mãos e esfregando os nós dos dedos da mão esquerda no nariz, para depois escarrar algo verde e viscoso. — Mas não havia nada acontecendo, por isso vim para o sul. Estou indo atrás de Lady Evanna. — Nós também — afirmei. — Já imaginava. Venho seguindo vocês desde a noite retrasada. — Você devia ter se apresentado antes, majestade — disse o Sr. Crepsley. — Esta é a primeira vez que eu vejo o novo príncipe — respondeu Vancha. — Queria observá-lo de longe por algum tempo. — Ele me estudou rigorosamente. — Com base nessa luta, devo dizer que estou profundamente impressionado! — Eu errei, majestade — afirmei duramente. — Estava preocupado com meus amigos e cometi o erro de fazer uma pausa quando deveria prosseguir. Aceito toda a responsabilidade e, muito humildemente, peço desculpas. — Pelo menos ele sabe dar uma boa desculpa — riu Vancha, batendo nas minhas costas. Vancha March estava coberto de lama e sujeira, e cheirava que nem um lobo. Era a sua aparência-padrão. Vancha era um verdadeiro habitante da selva. Mesmo entre vampiros, ele era considerado um extremista. Só usava roupas que fazia com a pele de animais selvagens, e jamais comia carne assada ou bebia algo que não fosse água fresca, leite e sangue. Enquanto Harkat vinha mancando até onde estávamos — tendo acabado com seu algoz —, Vancha se sentou e cruzou as pernas. Ao levantar o pé esquerdo, ele abaixou a cabeça em sua direção e começou a roer as unhas! — Então este é o pequenino que fala — murmurou Vancha, olhando para Harkat por sobre a unha do seu dedão esquerdo. — Harkat Mulds, não? — Sim, majestade — respondeu meu colega de quarto, baixando a máscara. — Devo lhe dizer com franqueza, Mulds: não confio em Desmond Tino e em nenhum de seus discípulos atarracados. — E eu não confio em vampiros que... roem suas unhas do pé — devolveu Harkat, para depois fazer uma pausa e acrescentar maliciosamente: —
Majestade. Vancha riu daquilo e cuspiu um naco de unha. — Acho que vamos nos dar bem, Mulds! — A viagem foi dura, majestade? — perguntou o Sr. Crepsley, enquanto se sentava ao lado do príncipe e cobria seus olhos novamente com a venda. — Nada mau — grunhiu Vancha, descruzando as pernas. E logo começou tudo de novo com as unhas do pé direito. — E vocês? — A viagem tem sido boa. — Alguma novidade da Montanha do Vampiro? — Várias — respondeu meu instrutor. — Guarde-as para mais tarde. — Vancha largou seu pé e deitou para trás. Pegou seu manto púrpura e o jogou sobre si. — Acorde-me no crepúsculo — disse, bocejando, antes de rolar para o lado, pegar no sono imediatamente e começar a roncar. Fiquei olhando, com os olhos arregalados, para o príncipe adormecido, para as unhas que ele roeu e depois cuspiu, para suas roupas esfarrapadas e seu cabelo verde e sujo, e depois para Harkat e o Sr. Crepsley. — Ele é um Príncipe Vampiro? — sussurrei. — Sim — disse sorrindo o meu instrutor. — Mas ele se parece com um... — murmurou Harkat inseguro. — E age como... — Não se deixe enganar pelas aparências — disse o Sr. Crepsley. — Vancha optou por viver rusticamente, mas é o melhor dos vampiros. — Se você está dizendo — respondi intrigado, e passei a maior parte do dia deitado e olhando para o céu nublado, acordado por causa dos roncos estridentes de Vancha March.
 
CAPÍTULO ONZE
 
 
Deixamos os vampitietes deitados onde os havíamos assassinado (Vancha disse que eles não mereciam ser enterrados) e partimos ao anoitecer. Enquanto marchávamos, o Sr. Crepsley falou para o príncipe sobre a visita do Sr. Tino à Montanha do Vampiro e o que ele havia previsto. Vancha pouco falou, enquanto meu instrutor contava tudo, e meditou em silêncio sobre suas palavras um bom
tempo depois de ele terminar. — Não acho que é preciso ser um gênio para conjeturar que eu sou o terceiro caçador — disse o príncipe no final. — Ficaria muito surpreso se não fosse você — concordou o Sr. Crepsley. Vancha andara palitando os dentes com a ponta de um galho afiado. Agora o jogava para o lado e cuspia no meio da poeira da trilha. Vancha era um mestre na arte do cuspe — o seu era grosso, verde, globular, e podia acertar uma formiga a vinte passos de distância. — Não confio naquele intrometido do Tino — vociferou. — Já cruzei meu caminho com o dele algumas vezes e tomei como hábito fazer exatamente o contrário de qualquer coisa que ele diz. O Sr. Crepsley acenou com a cabeça. — Em geral, eu concordaria com você. Mas estamos vivendo tempos perigosos, majestade, e... — Larten! — interrompeu o príncipe. — É “Vancha”, “March” ou “Ei, feioso!” enquanto estivermos na trilha. Não quero que fique me bajulando. — Muito bem — sorriu o meu instrutor —, feioso. — Mas logo ficou sério novamente. — Estamos vivendo tempos perigosos, Vancha. O futuro da nossa raça está em jogo. Será que podemos ignorar a profecia do Sr. Tino? Se há esperança, devemos nos agarrar a ela. Vancha deixou escapar um suspiro longo e infeliz. — Durante centenas de anos, Tino nos fez pensar que estávamos condenados a perder a guerra quando surgiu o Senhor dos Vampixiitas. Por que ele vem nos dizer agora, depois de todo esse tempo, que não está tudo definido e que só poderemos evitar o que há por vir se seguirmos suas instruções? — O príncipe coçou a nuca e cuspiu no matagal à nossa esquerda. — Isso me parece um monte de esterco. — Talvez Evanna possa trazer alguma luz para essa questão — disse o meu instrutor. — Ela partilha alguns dos poderes do Sr. Tino e pode sentir os rumos do futuro. Pode ter como confirmar ou descartar suas previsões. — Se for o caso, acreditarei nela — disse Vancha. — Evanna poupa a língua mas, quando fala, diz a verdade. Se ela disser que o nosso destino está na estrada, irei trabalhar com vocês alegremente. Se não... — Ele encolheu os ombros e deixou o assunto morrer. Vancha March era esquisito — e não estou exagerando! Nunca havia conhecido ninguém como ele. O sujeito tinha um código de conduta todo próprio. Como eu já sabia, ele jamais comia carne assada ou bebia nada a não ser água fresca, leite e sangue, e fazia suas próprias roupas usando as peles dos animais que caçava. Mas aprendi muito mais sobre aquele vampiro durante as seis noites que levamos para chegar até Lady Evanna. Ele seguia as antigas regras dos vampiros. Há muito tempo, os vampiros
acreditavam que descendíamos dos lobos. Se aproveitássemos bem as nossas vidas e permanecêssemos fiéis às nossas crenças, nos tornaríamos lobos de novo quando morrêssemos e vagaríamos pelas florestas do paraíso como criaturas espirituais da luz eterna. Para esse fim, eles viviam mais como lobos do que como homens, evitando a civilização a não ser quando tinham que beber sangue, fazer suas próprias roupas e seguir as leis da floresta. Vancha jamais dormia em caixões — ele dizia que eram muito confortáveis! O príncipe achava que um vampiro devia dormir no chão a céu aberto, cobrindo-se com nada além do seu manto. Respeitava os vampiros que dormiam em caixões, mas tinha um conceito muito baixo daqueles que dormiam em camas. Nem ousei lhe falar sobre a minha preferência por redes! Ele tinha muito interesse por sonhos e ocasionalmente comia cogumelos selvagens, que o levavam a ter sonhos e visões vibrantes. Acreditava que o futuro estava mapeado em nossos sonhos e, se aprendêssemos a decifrá-los, poderíamos controlar nossos destinos. Ficou fascinado com os pesadelos de Harkat e passou muitas e longas horas discutindo-os com o pequenino. As únicas armas que ele usava eram os seus shurikens (as estrelas que arremessava), que entalhava sozinho a partir de várias pedras e metais. Para ele, o combate corpo a corpo devia ser exatamente isso — envolver apenas os corpos dos lutadores. Não tinha tempo para espadas, lanças ou machados e se recusava a tocar nesses tipos de armas. — Mas como se enfrenta alguém que tem uma espada? — perguntei numa noite enquanto nos preparávamos para levantar acampamento. — Fugindo? — Não fujo de nada! — respondeu Vancha na mesma hora. — Deixe-me mostrar. — Esfregando suas mãos, ele ficou em pé do meu lado e me pediu para sacar minha espada. Como hesitei, ele bateu no meu ombro esquerdo e zombou de mim. — Está com medo? — É claro que não — vociferei. — Só não quero machucar você. Ele gargalhou em voz alta. — Não há muito o que temer, não é, Larten? — Eu não teria tanta certeza assim — alegou o Sr. Crepsley. — Darren é apenas meio-vampiro, mas é rápido. Ele poderia testá-lo, Vancha. — Que bom — afirmou o príncipe. — Gosto de oponentes dignos. Olhei suplicante para o meu instrutor. — Não quero atacar um homem desarmado. — Desarmado? — gritou Vancha. — Mas eu tenho dois braços! — E os acenou para mim. — Vá em frente — disse o Sr. Crepsley. — Vancha sabe o que está fazendo. Puxei minha espada, encarei Vancha e dei um bote sem muita convicção. Ele não se moveu. Simplesmente ficou olhando enquanto eu levantava a ponta da minha arma branca.
— Patético — desdenhou ele. — Isso é uma estupidez — retruquei. — Não sou... Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se lançou à frente, agarroume pelo pescoço e fez um pequeno e doloroso corte no meu pescoço com as unhas. — Ai! — berrei, enquanto cambaleava e me afastava dele. — Da próxima vez, vou arrancar o seu nariz — disse, calmamente. — Não vai mesmo! — rosnei e fui para cima dele com minha espada, dessa vez de forma apropriada. Vancha se esquivou do arco traçado pela lâmina. — Muito bom — sorriu. — Assim é bem melhor. Ele circulou ao meu redor, com os olhos fixos nos meus, enquanto seus dedos se dobravam lentamente. Fiquei mantendo a ponta da espada baixa, até que o sujeito parou e eu andei em sua direção e o ataquei. Esperava que ele fosse desviar para o lado mas, em vez disso, trouxe a palma da mão direita para cima e bateu na lâmina, afastando-a, como faria com um bastão. Enquanto me esforçava para trazê-la de volta à posição, ele deu um passo, prendeu a minha mão segurando o braço logo acima do pulso, e o torceu com força, fazendo com que eu largasse a espada — com isso fiquei desarmado. — Está vendo? — sorriu ele, dando um passo para trás e levantando as mãos para mostrar que a luta havia acabado. — Se fosse para valer, você iria comer grama pelo rabo. — Vancha tinha a boca suja — esse foi um dos seus insultos mais leves. — Grande coisa — afirmei, furioso, enquanto esfregava meu pulso dolorido. — Você derrotou um meio-vampiro. Não derrotaria um vampiro completo ou um vampixiita. — Posso e já derrotei — insistiu ele. — As armas são ferramentas do medo, usadas por aqueles que têm o que temer. Aquele que aprende a lutar com as mãos sempre tem vantagem sobre aqueles que contam com espadas e facas. Sabe por quê? — Por quê? — Porque eles esperam vencer — afirmou, radiante. — As armas são falsas — não são naturais — e inspiram uma falsa confiança. Sempre que eu luto, espero pela morte. Mesmo agora há pouco, quando lutei com você, antevi o meu fim e me conformei com ele. A morte é a pior coisa que este mundo pode lhe oferecer, Darren. Se aprender a aceitá-la, ela não exercerá nenhum poder sobre você. Ele pegou minha espada, a passou para mim e ficou observando para ver o que eu faria. Tive a sensação de que o príncipe queria que eu a jogasse para o lado — e estava tentado a fazê-lo, para merecer o seu respeito. Mas me sentiria nu sem ela e por isso a enfiei de volta na bainha e fiquei olhando para o chão,
levemente Vancha apertou a minha nuca de um jeito afável. — Não deixe que isso o incomode — disse ele. — Você é jovem. Tem muito tempo para aprender. — Seus olhos se enrugaram enquanto pensava no Sr. Tino e no Senhor dos Vampixiitas. — Espero.
 Pedi a Vancha que me ensinasse como lutar com as minhas próprias mãos. Eu havia estudado combates à mão desarmada na Montanha do Vampiro, mas enfrentei oponentes que também estavam desarmados. Além de algumas lições sobre o que fazer caso eu perdesse a minha arma durante uma batalha, nunca me haviam ensinado como enfrentar um adversário totalmente armado usando apenas as minhas mãos. Vancha disse que eu levaria anos para aprimorar isso, e que poderia esperar muitos cortes e feridas ao longo do aprendizado. Rejeitei tais preocupações — adorava a idéia de poder levar a melhor sobre um vampixiita armado com as minhas próprias mãos. O treinamento não podia começar durante a nossa peregrinação, mas Vancha me falou sobre algumas táticas básicas de defesa enquanto descansávamos durante o dia, e prometeu me passar exercícios de verdade assim que chegássemos à casa de Evanna. O príncipe não me falou mais sobre a bruxa do que o Sr. Crepsley, embora tivesse dito que ela era, ao mesmo tempo, a mais formosa e a menos atraente das mulheres — o que não fazia nenhum sentido! Achei que Vancha era fortemente antivampixiita — os vampiros que mais hostilizavam os vampixiitas eram normalmente aqueles mais atrelados às velhas regras —, mas para a minha surpresa ele não tinha nada contra eles. — Os vampixiitas são nobres e verdadeiros — disse ele algumas noites antes de chegarmos à casa de Evanna. — Não concordo com seus hábitos alimentares; não há necessidade de matar quando bebemos. Mas por outro lado os admiro. — Vancha designou Kurda Smahlt para se tornar um príncipe — assinalou meu instrutor. — Eu admirava Kurda — disse o príncipe. — Ele era conhecido por sua inteligência, mas também era corajoso. Foi um vampiro notável. — Você não... — Tossi e diminuí a voz até ficar em silêncio. — Diga o que está pensando — falou Vancha. — Você não se sente mal por tê-lo designado depois do que ele fez, liderando os vampixiitas contra nós? — Não — respondeu ele abruptamente. — Não aprovo suas atitudes e, se fizesse parte do Conselho, não teria testemunhado a seu favor. Mas ele estava seguindo o que dizia o seu coração. Agiu pelo bem do clã. Mal orientado como estava sendo, não creio que Kurda fosse um traidor de verdade. Ele agiu de maneira abjeta, mas seus motivos eram puros.
— Concordo — disse Harkat, entrando na conversa. — Acho que Kurda foi mal compreendido. Foi certo ele ter sido morto quando... foi capturado, mas é errado dizer que era um vilão e não ter seu nome mencionado... no Salão dos Príncipes. Não reagi a tal afirmação. Gostara imensamente de Kurda e sabia que ele havia feito o melhor possível para poupar os vampiros da ira do Senhor dos Vampixiitas. Mas ele havia assassinado um dos meus outros amigos — o Sr. Torvelinho — e trouxe a morte para outros mais, incluindo Arra Barbatanas, uma vampira que fora companheira do Sr. Crepsley. Descobri a identidade do verdadeiro inimigo de Vancha um dia antes de chegarmos ao fim da primeira fase da nossa jornada. Consegui dormir, mas o meu rosto estava coçando — um efeito colateral do expurgo — e acordei antes do meio-dia. Sentei-me, cocei o queixo e avistei Vancha na beira do acampamento, com as roupas jogadas para o lado — exceto por uma faixa de pele de urso enrolada em volta da cintura —, esfregando cuspe no corpo. — Vancha? — perguntei calmamente. — O que está fazendo? — Vou sair para caminhar — disse ele, e continuou a esfregar cuspe nos ombros e nos braços. Olhei para o céu. Era um belo dia e quase não havia nuvens para tapar o sol. — Vancha, é dia — afirmei. — Sério? — respondeu ele, sarcasticamente. — Jamais poderia ter imaginado. — Os vampiros queimam à luz do sol — lembrei, enquanto me perguntava se ele havia batido com a cabeça e esquecido quem era. — Não imediatamente — retrucou, para depois me encarar de repente. — Você já se perguntou por que os vampiros queimam ao sol? — Bem, não, não exatamente... — Não há uma razão lógica. De acordo com as histórias que os homens contam, é porque eles são malignos, e seres malignos não podem encarar o sol. Mas isso é bobagem... não somos malignos, e, mesmo se fôssemos, ainda assim conseguiríamos andar por aí durante o dia. Veja os lobos, por exemplo. Supõe-se que sejamos seus descendentes, mas eles podem agüentar a luz do sol. Até criaturas verdadeiramente noturnas como morcegos e corujas podem sobreviver à luz do dia. O sol pode confundi-los, mas não os mata. Então por que ele mata os vampiros? Balancei minha cabeça, inseguro. — Não sei. Por quê? Vancha deu uma gargalhada em voz alta. — É ruim eu saber! Ninguém sabe. Alguns alegam que fomos amaldiçoados por uma bruxa ou feiticeira qualquer, mas duvido muito. O mundo está cheio de servos das artes negras, mas nenhum com poder suficiente para
rogar uma maldição tão letal. Minha intuição diz que o culpado é Desmond Tino. — O que o Sr. Tino tem a ver com isso? — perguntei. — De acordo com as lendas antigas... esquecidas pela maioria... Tino criou os primeiros vampiros. Dizem que ele fez experiências com lobos e misturou seu sangue com o dos homens, resultando em... — Ele bateu no peito. — Isso é ridículo — bufei. — Talvez. Mas, se essas lendas forem verdadeiras, nossa fraqueza relacionada ao sol também é obra de Tino. Dizem que ele tinha medo de que ficássemos tão poderosos a ponto de dominar o mundo, por isso maculou o nosso sangue e nos tornou escravos da noite. — Ele parou de esfregar cuspe e olhou para cima, e sua visão começou a ranger contra os raios do sol que sempre nos deixavam confusos. — Nada é tão horrível quanto a escravidão. Se tais histórias forem verdadeiras e formos escravos da noite por causa da interferência de Tino, só há uma maneira de recuperarmos nossa liberdade: lutando! Precisamos enfrentar o inimigo, encará-lo e cuspir nos seus olhos. — Você está dizendo que devemos enfrentar o Sr. Tino? — Não diretamente. Ele é um sujeito muito escorregadio para que possamos encurralá-lo. — Então quem? — Temos que lutar contra seu servo — afirmou. No que percebeu que eu não havia entendido, ele foi mais específico: — O sol. — O sol! — ri, e depois parei quando vi que o príncipe estava falando sério. — Como você pode enfrentar o sol? — É simples. Você o encara, recebe suas pancadas e depois volta para apanhar mais. Há anos eu venho me submetendo aos raios solares. De vez em quando fico andando durante uma hora por dia, deixando o sol me queimar, endurecendo a minha pele e meus olhos, testando-o e vendo por quanto tempo consigo sobreviver. — Você é maluco! — dei uma risadinha. — Você realmente acha que pode vencer o sol? — Não vejo por que não. Um adversário é um adversário. Se ele pode ser atraído é porque pode ser derrotado. — Já fez algum progresso? — perguntei. — Na verdade, não — suspirou. — Ainda não saí do estágio inicial desde que comecei. A luz me deixa meio cego. Leva quase um dia inteiro para que a minha visão volte ao normal e as dores de cabeça cessem. Os raios fazem com que minha pele fique avermelhada em dez ou quinze minutos, e logo depois começo a sentir dores. Já consegui agüentar algo em torno de oitenta minutos algumas poucas vezes, mas sempre fico seriamente queimado no fim, e levo de cinco a seis noites de descanso para me recuperar. — Quando foi que começou a travar essa guerra?
— Vejamos — meditou. — Estava com cerca de duzentos anos no princípio... A maior parte dos vampiros não tem certeza da sua idade exata; quando se vive tanto tempo, os aniversários não significam muita coisa... e já estou com mais de trezentos agora, por isso creio que ela já tomou boa parte de um século. — Cem anos! — exclamei, ofegante. — Você já ouviu a frase “batendo com a cabeça na parede”? — É claro — respondeu Vancha com um sorriso malicioso —, mas você se esquece, Darren, de que os vampiros podem quebrar paredes com suas cabeças! Com isso, ele deu uma piscadela e saiu andando no meio do sol, assobiando em voz alta, para se dedicar ao seu embate maluco contra uma bola enorme de gás incandescente, que estava dependurada a milhões e milhões de quilômetros de distância no meio do céu.
 
CAPÍTULO DOZE
 
 
Uma lua cheia brilhava quando chegamos à residência de Lady Evanna. Ainda assim, eu não teria notado a clareira se o Sr. Crepsley não tivesse me cutucado e dito: — Chegamos. Mais tarde descobri que Evanna havia feito um encanto que ocultava a sua
casa. Por isso, a não ser que você soubesse onde olhar, sua visão passaria pela casa e não a registraria. Olhei-a bem de frente, mas durante alguns segundos não consegui enxergar nada além de árvores. Então, o poder do encanto se desvaneceu, as árvores imaginárias “sumiram” e me vi fitando um lago de água cristalina, que brilhava num leve tom esbranquiçado por causa dos raios da lua. Havia um morro do outro lado do lago, e dava para ver a entrada escura de uma caverna, em forma de arco, dentro dele. Enquanto descíamos a leve inclinação que dava no lago, o ar noturno foi preenchido com o som de coaxos. Parei, alarmado, mas Vancha sorriu e disse: — Sapos. Estão alertando Evanna. Eles irão parar assim que ela disser que não tem problema. Instantes depois, o coro de sapos se calou e voltamos a andar em silêncio. Andávamos na beira do lago; Vancha e o Sr. Crepsley ficaram alertando a mim e a Harkat para que não pisássemos nos sapos, já que milhares deles descansavam dentro da água fria. — Sapos são assustadores — sussurrou o pequenino. — Sinto que eles estão... nos observando. — E estão — afirmou o príncipe. — Eles são os guardiões do lago e da caverna, e protegem Evanna dos intrusos. — O que um bando de sapos pode fazer contra intrusos? — perguntei rindo. Vancha se curvou e pegou um sapo. Segurando-o sob a luz da lua, apertou levemente as laterais do corpo do animal. Sua boca se abriu e uma língua enorme se projetou para fora. Vancha pegou a língua com os dedos indicador e polegar da mão direita, tomando cuidado para não tocar nas beiradas. — Está vendo essas pequenas bolsas nas laterais? — perguntou. — Essas protuberâncias amarelas e vermelhas? — retruquei. — O que elas têm? — Estão cheias de veneno. Se este sapo enrolasse a língua em volta do seu braço ou da sua panturrilha, as bolsas explodiriam e o veneno se infiltraria na sua pele. — Ele balançou a cabeça de um jeito severo. — Morte em trinta segundos. Vancha colocou o sapo de volta na grama molhada e largou sua língua. O bicho saltou para longe. Eu e Harkat passamos a andar com extremo cuidado depois disso! Quando chegamos à boca da caverna, paramos. O Sr. Crepsley e Vancha se sentaram e largaram o que carregavam. O príncipe pegou um osso que vinha mastigando durante as últimas noites e o levou novamente à boca, só parando para cuspir em um ou outro sapo que se aproximava demais. — Não vamos entrar? — perguntei. — Não sem sermos convidados — respondeu meu instrutor. — Evanna não trata bem os intrusos.
— Não há uma campainha que possamos tocar? — Evanna não precisa de campainhas — disse ele. — Ela sabe que estamos aqui e virá nos cumprimentar no seu tempo. — Evanna não é uma dama que se precipita — concordou Vancha. — Uma vez, um amigo meu achou que iria entrar na caverna em silêncio para surpreendê-la. — Ele comia alegremente o seu osso. — Ela fez com que crescesse um monte de verrugas em seu corpo inteiro. O sujeito ficou parecido com... com... — O vampiro franziu a testa. — E difícil dizer, porque eu nunca havia visto nada como aquilo... e já vi de tudo na vida. — Será que devíamos ficar aqui se ela é assim tão perigosa? — perguntei, preocupado. — Evanna não nos fará mal — garantiu o Sr. Crepsley. — Ela tem o pavio curto e é melhor não irritá-la, mas jamais mataria alguém com sangue vampiro, a não ser que fosse provocada. — Apenas se lembre de que não deve chamá-la de bruxa — avisou Vancha, provavelmente pela centésima vez. Meia hora depois que nos instalamos na caverna, dezenas de sapos — maiores do que aqueles que cercavam o lago — vieram saltando. Formaram um círculo a nossa volta e se sentaram, piscando lentamente, e nos encurralaram. Pensei em me levantar mas meu instrutor me mandou permanecer sentado. Instantes depois, uma mulher saiu da caverna. Era a mulher mais feia e relaxada que eu já havia visto. Era pequena — um pouco mais alta do que Harkat Mulds agachado — e tinha o cabelo longo, escuro e despenteado. Possuía músculos encrespados e pernas grossas e fortes. Suas orelhas eram afiadas e pontudas, seu nariz era pequeno — parecia que havia apenas dois buracos acima do lábio superior — e seus olhos eram apertados. Quando ela se aproximou mais, vi que um dos olhos era verde e o outro, marrom. O mais estranho era que as cores se alternavam — num minuto, seu olho esquerdo ficava marrom, no seguinte, era o direito. Ela era extremamente peluda. Seus braços e pernas estavam cobertos de pêlos escuros; suas sobrancelhas pareciam duas enormes lagartas; fios em abundância saíam das orelhas e das narinas; ela tinha uma barba razoável e seu bigode deixaria Otto von Bismarck envergonhado. Seus dedos eram muito curtos e grossos. Como bruxa, eu esperava que ela tivesse verdadeiras garras, embora imaginasse que fosse apenas uma imagem que fiz depois de ler muitas revistas e livros quando era pequeno. Suas unhas eram curtas, a não ser nos dois dedos mindinhos, onde elas cresceram mais a ponto de ficarem afiadas. Não usava roupas tradicionais ou peles de animais, como Vancha. Em vez disso, vestia-se com cordas. Cordas longas, densamente trançadas e amareladas, que agasalhavam seu peito e seu baixo-ventre, deixando os braços, pernas e
barriga à mostra. Seria difícil imaginar uma mulher mais medonha e desconcertante, e minhas vísceras gorgolejaram inquietas quando ela se arrastou na nossa direção. — Vampiros! — disse ela bufando, enquanto atravessava a muralha de sapos, que abriam caminho à medida que sua dona avançava. — São os mesmos vampiros horrorosos e sanguinários de sempre! Por que os bonitos homens nunca me requisitam? — Provavelmente teriam medo de que você fosse comê-los — riu Vancha em resposta, para depois se levantar e abraçá-la. Ela o apertou com força a ponto de levantar o príncipe do chão. — Meu pequeno Vancha — arrulhou ela, como se estivesse embalando um bebê. Você andou ganhando peso, majestade. — E você está mais feia do que nunca, minha Lady — grunhiu ele, ofegante. — Você só está dizendo isso para me agradar — riu Evanna, antes de largálo e se voltar para o Sr. Crepsley. — Larten — acenou educadamente. — Evanna — respondeu ele, enquanto se levantava e se curvava. Então, sem avisar, pulou na direção dela. Mas, por mais que ele fosse rápido, a bruxa foi mais ligeira. Ela agarrou a perna do meu instrutor e a torceu. Ele virou e caiu estatelado no chão. Antes que pudesse reagir, Evanna pulou nas suas costas, segurou seu queixo e levantou sua cabeça com força. — Rende-se? — gritou ela. — Sim — disse ele, ofegante, com o rosto corado — não de vergonha, mas de dor. — Garoto esperto — riu a mulher e beijou rapidamente a testa do seu oponente. Depois ela levantou e estudou a mim e a Harkat, passando um olho verde e curioso sobre ele e o marrom sobre mim. — Lady Evanna — falei no tom mais caloroso possível, tentando não bater os dentes. — É um prazer conhecê-lo, Darren Shan. Seja bem-vindo. — Lady — disse Harkat, curvando-se educadamente. Ele não estava tão nervoso quanto eu. — Olá, Harkat — cumprimentou-o, retribuindo a reverência. — Você também é bem-vindo... como antes. — Antes? — repetiu o pequenino. — Esta não é a sua primeira visita — disse ela. — Você mudou de muitas maneiras, por dentro e por fora, mas eu o reconheço. Esse é o meu dom. As aparências não me enganam por muito tempo. — Você quer dizer que... sabe quem eu era... antes de me tornar um pequenino? — perguntou Harkat, surpreso. Quando Evanna acenou com a
cabeça, ele se inclinou para a frente ansiosamente. — Quem era eu? A bruxa balançou a cabeça. — Não posso dizer. Isso você terá que descobrir. Harkat queria estender o assunto, mas, antes que pudesse fazê-lo, ela fixou seu olhar em mim e deu um passo à frente para que pudesse segurar meu queixo com seus dedos frios e calejados. — Então este é o príncipe mais novo — murmurou, virando a cabeça para a esquerda e depois para a direita. — Achava que você era mais jovem. — Ele foi atingido pelo expurgo enquanto viajamos para cá — informou o Sr. Crepsley. — Isso explica tudo. — Ela não largou o meu rosto e seus olhos continuavam me varrendo, como se estivessem sondando alguma fraqueza. — Então — falei, sentindo-me à vontade, e disse a primeira coisa que me veio à cabeça —, você é uma bruxa, não é? O Sr. Crepsley e Vancha gemeram. As narinas de Evanna tremeluziram e sua cabeça se projetou para a frente, de modo que nossos rostos ficaram a milímetros de distância. — Do que você me chamou? — perguntou, sibilando. — Hum. Nada. Desculpe. Não tive a intenção. Eu... — A culpa é de vocês dois — rugiu furiosa, dando-me as costas para encarar os estremecidos Sr. Crepsley e Vancha March. — Vocês lhe disseram que eu era uma bruxa! — Não, Evanna — apressou-se o príncipe. — Dissemos a ele para que não a chamasse disso — garantiu meu instrutor. — Eu devia destripar os dois — rosnou Evanna, apontando o dedinho da mão direita na direção de ambos. — Eu o faria, se Darren não estivesse aqui — mas odeio causar uma primeira impressão ruim. — Com o olhar furioso, ela relaxou o mindinho. Vancha e o Sr. Crepsley ficaram mais calmos. Eu mal podia acreditar. Já havia visto meu instrutor encarar vampixiitas totalmente armados sem se encolher, e estava certo de que Vancha agia da mesma forma em face de um grande perigo. Contudo, lá estavam os dois, tremendo perante uma mulher pequena e feiosa com nada mais ameaçador do que um par de unhas longas! Comecei a rir dos vampiros até que Evanna se virou e a risada morreu nos meus lábios. Seu rosto havia mudado de expressão e agora ela parecia mais animal do que humana, com uma boca grande e longas presas. Dei um passo para trás, apavorado. — Cuidado com os sapos! — gritou Harkat, agarrando o meu braço para que eu não pisasse em um dos guardas venenosos. Olhei para baixo a fim de me certificar de que não havia esmagado nenhum daqueles batráquios. Quando levantei o rosto novamente, o rosto de Evanna havia
voltado ao normal. Ela sorria. — Aparências, Darren — afirmou. — Não se deixe levar por elas. — O ar à sua volta emitia uma luz vaga. Quando clareou, ela era alta, leve e linda, tinha o cabelo dourado e usava um vestido branco e esvoaçante. Meu queixo caiu e encarei-a sem a menor cerimônia, impressionado com a sua beleza. Ela estalou os dedos e voltou ao seu corpo original. — Sou uma feiticeira. Uma das três Fúrias. Uma encantadora. Uma sacerdotisa dos arcanos. Não sou — acrescentou, desferindo um olhar penetrante para o Sr. Crepsley e Vancha — uma bruxa. Sou uma criatura que possui muitos talentos mágicos. Eles me permitem assumir a forma que eu desejar — pelo menos nas mentes daqueles que me vêem. — Então por que... — comecei a dizer, antes de me lembrar dos meus modos. — ... optei por essa forma medonha? — terminou ela para mim. Com as maçãs do rosto coradas, acenei positivamente com a cabeça. — Sinto-me à vontade desse jeito. A beleza não significa nada para mim. Esta foi a forma que assumi quando me fiz parecer humana pela primeira vez, por isso é a ela que retorno com mais freqüência. — Prefiro você quando está linda — murmurou Vancha, e depois tossiu grosseiramente quando percebeu que havia falado em voz alta. — Tenha cuidado, Vancha — riu Evanna — ou erguerei minha mão para você como fiz com Larten há muitos anos. — Ela levantou a sobrancelha para mim. — Ele já lhe disse como adquiriu aquela cicatriz? Olhei para a longa cicatriz que descia pelo lado esquerdo do rosto do meu instrutor e balancei a cabeça. O vampiro ficou roxo de tão envergonhado. — Por favor, Lady — implorou ele. — Não fale sobre isso. Eu era jovem e tolo. — Com certeza o era — concordou Evanna, antes de cutucar as minhas costelas. — Eu estava usando um dos meus lindos rostos. Larten estava levemente embriagado de vinho e tentou me beijar. Arranhei-o de leve para lhe ensinar boas maneiras. Eu estava atordoado. Sempre achei que ele havia adquirido aquela cicatriz lutando contra os vampixiitas ou algum animal selvagem da floresta! — Você é cruel, Evanna — lamentou o Sr. Crepsley, enquanto afagava sua cicatriz com tristeza. Vancha estava rindo tanto que o muco pingava do seu nariz. — Larten! — uivava. — Espere até eu contar para os outros! Sempre me perguntei por que você era tão reservado em relação a essa cicatriz. Normalmente os vampiros se vangloriam dos seus ferimentos, mas você... — Cale a boca! — vociferou o Sr. Crepsley com uma rudeza nada característica.
— Eu poderia ter feito com que ela ficasse menos aparente — disse Evanna. — Se o ferimento tivesse sido costurado imediatamente, não estaria tão evidente como está. Mas ele se mandou como um cachorro que houvesse sido chutado e só voltou trinta dias depois. — Não me senti muito desejado — disse o Sr. Crepsley com suavidade. — Pobre Larten — disse a feiticeira com um sorriso malicioso. — Você se achava um verdadeiro cavalheiro quando era um jovem vampiro, mas... — Ela fez uma careta e blasfemou. — Eu sabia que havia me esquecido de uma coisa. Queria que eles estivessem preparados para quando vocês chegassem, mas me distraí. — Murmurando sozinha, voltou-se para os sapos e coaxou baixinho. — O que ela está fazendo? — perguntei a Vancha. — Conversando com os sapos. — Ele ainda estava rindo por causa da cicatriz do meu instrutor. Harkat arfou e caiu de joelhos. — Darren! — gritou, apontando para um sapo. Quando me agachei ao seu lado, vi que nas costas do sapo havia um retrato nítido e misterioso de Paz Celestial, feito nos tons verde-escuro e preto. — Que esquisito — afirmei, tocando delicadamente na imagem, pronto para recuar caso o sapo abrisse a boca. Fechei a cara e tracei as linhas com mais firmeza. — Ei — afirmei —, isso não é pintura. Acho que é uma marca de nascença. — Não pode ser — afirmou Harkat. — Nenhuma marca de nascença pode parecer... tanto com uma pessoa, especialmente com uma que nós... Ei! Há uma outra! Virei-me e olhei para onde ele estava apontando. — Esse não é Paz — afirmei. — Não — concordou Harkat —, mas é um rosto. E há um terceiro. — Ele apontou para um sapo diferente. — E um quarto — reparei, já em pé e olhando em volta. — Eles devem ter sido pintados — disse o pequenino. — Mas não foram — afirmou Vancha, que se curvou, pegou um sapo e o estendeu para que o examinássemos. Perto assim, com a ajuda da luz forte da lua, pudemos ver que as marcas estavam, de fato, sob a camada de pele mais externa do sapo. — Eu falei para vocês que Evanna cria sapos — lembrou-nos o Sr. Crespley. Ele tirou o animal das mãos de Vancha e traçou o formato do rosto, que era robusto e barbado. — É uma mistura de natureza e magia. Ela encontra sapos com fortes marcas naturais, realça-as usando a magia e os cria, produzindo rostos. Ela é a única no mundo que sabe fazer isso. — Aqui estamos — disse Evanna, empurrando a mim e a Vancha para o lado, levando nove sapos para o Sr. Crepsley. — Sinto-me culpada por ter
provocado essa cicatriz, Larten. Não devia tê-lo cortado tão profundamente. — Já esqueci, Lady — disse sorrindo, delicadamente. — A cicatriz já faz parte de mim. Tenho orgulho dela — voltou-se para Vancha —, mesmo que outros só consigam zombar. — Ainda assim, isso me deixa aborrecida. Já lhe dei presentes ao longo dos anos, como as panelas e frigideiras dobráveis, mas eles não me deixaram satisfeita. — Não há necessidade — insistiu o Sr. Crepsley. — Cale-se e deixe-me terminar! — resmungou Evanna. — Acho que finalmente tenho um presente que irá compensar tudo. Não é algo que você possa pegar, apenas uma pequena... lembrança. Meu instrutor olhou para os sapos. — Espero que não esteja com a intenção de me dar os sapos. — Não exatamente — ela coaxou uma ordem para os batráquios e os bichos se reagruparam. — Sei que Arra Barbatanas foi morta na luta com os vampixiitas há seis anos. — A cara do Sr. Crepsley desmoronou à simples menção do nome de Arra. Os dois foram muito íntimos e sua morte havia sido um rude golpe para ele. — Ela morreu bravamente — afirmou ele. — Acho que você não guardou algo que pertencesse a ela, não é? — Como o quê? — Uma mecha de cabelos, uma faca que lhe era muito útil, um pedaço de uma de suas roupas? — Vampiros não se apegam a essas tolices — disse grosseiramente. — Pois deveriam — suspirou Evanna. Os sapos pararam de se mover, ela olhou para os animais, acenou com a cabeça e deu um passo para o lado. — O que... — disse espantado o Sr. Crepsley, para depois cair em silêncio enquanto seus olhos prestavam atenção nos sapos e no rosto enorme que se expandiu pelas suas costas. Era o rosto de Arra Barbatanas, um pedaço nas costas de cada sapo. O rosto era perfeito em cada detalhe e tinha mais cores do que os rostos nos outros sapos. Evanna trabalhara com amarelos, azuis e vermelhos, trazendo vida para os olhos, as bochechas, os lábios e o cabelo. Vampiros não podem ser fotografados — seus átomos ficam pulando de um lado para o outro de um jeito esquisito, e é impossível captá-los em filme —, mas isso era o mais próximo de uma foto de Arra Barbatanas que se podia imaginar. O Sr. Crepsley não se moveu. Sua boca era uma linha apertada atravessando a metade inferior do seu rosto, mas seus olhos estavam cheios de ternura, tristeza e... amor. — Obrigado, Evanna — sussurrou. — Não precisa agradecer — ela sorriu suavemente e depois se voltou para o
resto de nós. — Acho que devíamos deixá-lo sozinho por um tempo. Venham para dentro da caverna. Sem dizer uma palavra, nós a seguimos. Até mesmo o normalmente rouco Vancha March estava quieto, e só fez uma pausa para colocar a mão sobre o ombro esquerdo do meu instrutor e apertá-lo de um jeito confortador. Os sapos pulavam atrás de nós, a não ser os nove que traziam as feições de Arra afixadas às costas. Eles ali ficaram, mantendo sua formação e fazendo companhia ao Sr. Crepsley enquanto ele contemplava com pesar o rosto da companheira de outrora e discorria longamente sobre o seu doloroso passado.
 
CAPÍTULO TREZE
 
 
Evanna havia preparado um banquete para todos nós, mas era todo de vegetais e frutas — ela era vegetariana e jamais permitiria que alguém comesse carne na sua caverna. Vancha brincou com ela: — Ainda está nessa de comida para vaca, Lady? — mas o príncipe comeu sua parte junto comigo e com Harkat, embora só optasse por alimentos que não
tivessem sido cozidos. — Como pode comer isso? — perguntei, revoltado, enquanto ele se empanturrava de nabo cru. — Estou acostumado — retrucou, piscando, mastigando com vontade. — Hmm... uma minhoca! O Sr. Crepsley se juntou a nós quando estávamos terminando. Ficou triste durante o resto da noite, sem falar muito, olhando para o nada. A caverna era muito mais luxuosa que as da Montanha do Vampiro. Evanna fez dela um verdadeiro lar, com camas de penas macias, belas pinturas nas paredes e enormes lamparinas com velas, que projetavam um brilho róseo sobre tudo. Havia sofás para que pudéssemos nos deitar, ventiladores para nos refrescar, frutas exóticas e vinho. Depois de muitos anos vivendo na dureza, aquilo parecia um palácio. Enquanto relaxávamos e digeríamos a refeição, Vancha pigarreou e começou a puxar o assunto que nos levara até lá. — Evanna, viemos discutir... Ela o silenciou com um aceno de mão. — Hoje à noite não falaremos sobre nada disso — insistiu ela. — Assuntos oficiais podem ficar para amanhã. Este é um momento de amizade e descanso. — Muito bem, Lady. Estes são os seus domínios e me curvo aos seus anseios. — Deitado, Vancha arrotava em voz alta e depois procurou um lugar onde pudesse cuspir. Evanna lhe passou um pequeno vaso de metal. — Ah! Uma escarradeira. — Ele se inclinou em sua direção e forçou a barra para cuspir. Ouviu-se um leve silvo e Vancha grunhiu de felicidade. — Passei dias limpando a casa depois da última vez que ele me visitou — observou Evanna, voltando-se para mim e Harkat. — Havia poças de cuspe por toda parte. Com sorte, a escarradeira vai fazer com que ele tenha mais zelo. Agora, se houvesse algum lugar em que ele pudesse enfiar suas melecas... — Você está reclamando de mim? — perguntou Vancha. — É claro que não, majestade — respondeu a feiticeira, sarcasticamente. — Que mulher iria se opor a um homem invadindo a sua casa e cobrindo o chão de muco? — Não penso em você como uma mulher, Evanna — respondeu, rindo. — Ah, não? — Havia uma certa frieza em sua voz. — Como é que você pensa em mim? — Como uma bruxa — disse ele inocentemente, para depois pular do sofá e sair correndo para fora da caverna antes que ela pudesse lhe lançar um feitiço. Mais tarde, quando Evanna havia recuperado o seu senso de humor, Vancha voltou às escondidas para o seu sofá, afofou uma almofada, esticou-se e ficou mastigando uma verruga da palma de sua mão esquerda. — Achava que você só dormia no chão — observei.
— Habitualmente — concordou —, mas seria uma desfeita recusar a hospitalidade de outra pessoa, sobretudo quando a anfitriã é a Lady das Florestas. Levantei-me curioso. — Por que vocês a chamam de Lady? Ela é uma princesa? A gargalhada de Vancha ecoou pela caverna. — Ouviu isso, Lady? O garoto acha que você é uma princesa! — O que há de tão estranho nisso? — perguntou ela, enquanto acariciava o seu bigode. — As princesas não são todas assim como eu? — Abaixo do paraíso, talvez — riu o príncipe. Os vampiros acreditam que as almas dos seus bons semelhantes vão para o paraíso, além das estrelas, quando morrem. Não existe nada que nem o inferno na mitologia vampiresca. Muitos acreditam que as almas dos vampiros maus ficam presas na Terra. Mas de vez em quando alguém se refere a um “abaixo do paraíso”. “Não”, Vancha falou sério. “Você é muito mais importante e magnífica do que uma simples princesa.” — Ora, Vancha — comentou ela num tom amoroso —, isso foi quase lisonjeiro. — Posso bajular alguém quando quero — afirmou antes de peidar em alto e bom som. — E enojar também! — Que asco — disse Evanna com desprezo, embora tivesse dificuldade para esconder um sorriso. — Darren ficou perguntando sobre você no caminho até aqui — continuou Vancha. — Não lhe falamos nada sobre o seu passado. Você se importaria de deixá-lo a par das coisas? Evanna balançou a cabeça. — Conte você, Vancha. Não estou com muita disposição para contar histórias. Mas seja breve — acrescentou, enquanto ele abria a boca para começar. — Serei — prometeu. — E não seja grosseiro. — Lady Evanna! — disse ele, ofegante. — Alguma vez já fui? — Sorrindo, Vancha passou a mão no seu cabelo verde, pensou um pouco, e depois começou a falar num tom de voz suave, o qual nunca o havia ouvido usar antes. — Atenção, crianças; nós, criaturas da noite, não fomos feitas para gerar herdeiros. Nossas mulheres não podem dar à luz e nossos homens não podem gerar rebentos. É assim desde que o primeiro vampiro começou a andar sob a luz da lua, e que achamos que as coisas sempre fossem ser. Mas, há mil e setecentos anos, viveu um vampiro cujo nome era Corza Jarn. Ele era normal sob todos os pontos de vista e vinha vencendo na vida, até se apaixonar e se juntar a uma vampira chamada Sarfa Grall. Eles eram felizes, caçavam e lutavam lado a lado, e quando o primeiro período do seu acordo de
união expirou, concordaram em se unir novamente. “É assim que funcionam os casamentos entre vampiros. Normalmente, os vampiros não admitem ficar com outra pessoa pelo resto da vida, apenas por dez, quinze ou vinte anos. Uma vez que tal prazo acaba, eles podem concordar em passar mais uma ou duas décadas juntos, ou seguir cada um para um lado.” “No meio do seu segundo período”, continuou Vancha, “Corza estava impaciente. Ele queria ter um bebê com Sarfa e criar um filho seu. Recusava-se a aceitar suas limitações naturais e saiu atrás de uma cura para a esterilidade vampírica. Passou décadas numa busca infrutífera, com a leal Sarfa ao seu lado. Cem anos vieram e se passaram. Duzentos. Sarfa morreu durante a jornada, mas isso não desanimou Corza. Na verdade, fez com que ele se empenhasse ainda mais na busca de uma solução. Finalmente, há mil e quatrocentos anos, sua jornada o levou àquele intrometido que anda de relógio... Desmond Tino.” “Agora”, prosseguiu o príncipe asperamente, “não se sabe exatamente quanto poder o Sr. Tino exerce sobre os vampiros. Alguns dizem que ele nos criou, outros, que outrora foi um de nós, e outros mais, que não passa de um observador interessado. Corza Jarn não conhecia mais a verdadeira natureza do Sr. Tino do que o resto, mas acreditava que o mágico podia ajudar e o seguiu pelo mundo, implorando para que ele colocasse um fim na maldição enfadonha do clã dos vampiros. Durante dois séculos, Tino riu de Jarn e se recusou a atender seus apelos. Ele disse ao vampiro — então velho, fraco e próximo da morte — para parar de se preocupar. Acrescentou que vampiros não estavam destinados a ter filhos. Corza não aceitava isso. Importunou Tino e o implorou para que desse uma esperança para os vampiros. Ofereceu sua alma em troca de uma solução, mas o Sr. Tino o olhou com desprezo e disse que, se quisesse a alma de Corza, iria simplesmente tomá-la.” — Não havia ouvido essa parte da história antes — interrompeu Evanna. Vancha encolheu os ombros. — As lendas são flexíveis. Acho que é bom lembrar às pessoas da natureza cruel de Tino, e é isso que faço a cada chance que tenho. No fim das contas — disse ele, voltando para a história —, por razões particulares, Tino cedeu. Falou que havia criado uma mulher capaz de gerar uma criança vampira, mas armou uma cilada: a mulher e seu filho tanto poderiam tornar o clã mais poderoso do que nunca... como nos destruir completamente! Corza ficou perturbado com as palavras de Tino, mas tentou com muita determinação e por um longo tempo se sentiu dissuadido pela ameaça. Ele concordou com os termos do sujeito e deixou que este tomasse um pouco do seu sangue. Tino misturou o sangue de Corza com o de uma loba grávida e fez estranhos feitiços com ela. A fêmea deu à luz quatro filhotes. Dois eram natimortos e normais em aparência, mas os outros estavam vivos... e eram seres humanos em aparência! Um era menino e o outro, menina.
Vancha fez uma pausa e olhou para Evanna. Eu e Harkat fizemos o mesmo, com os olhos arregalados. A bruxa fez uma careta, depois se levantou e fez uma reverência. — Sim — disse ela. — Eu era aquele filhote peludo. — As crianças cresceram rápido — prosseguiu Vancha. — Em um ano já haviam virado adultos e deixaram sua mãe e Corza para sair em busca do seu destino na floresta. O garoto saiu primeiro, sem dizer nada, e ninguém sabe o que aconteceu com ele. Antes de partir, a menina deu a Corza uma mensagem que pediu que fosse passada para o clã. Ele ficou de lhes contar o que havia acontecido, e dizer que ela levava os seus deveres muito a sério. Também ficou de lhes contar que ela não estava pronta para a maternidade e que nenhum vampiro deveria sair em seu encalço com o intuito de se tornar um parceiro. Disse que havia muitas coisas a considerar e levaria décadas (talvez mais tempo) antes que fizesse uma opção. Essa foi a última vez que um vampiro a viu durante quatrocentos anos. Ele parou, por um instante parecia pensativo, e depois pegou uma banana e começou a comê-la, com casca e tudo. — Fim — murmurou. — Fim? — gritei. A história não pode acabar aqui! O que aconteceu depois? O que ela fez durante esses quatro séculos? Será que escolheu um parceiro quando voltou? — Não escolheu parceiro nenhum — disse Vancha. — Ainda não. Quanto ao que ela fez... — O príncipe sorriu. — Talvez você devesse perguntar à própria. Eu e Harkat nos voltamos para Evanna. — E aí? — perguntamos juntos. Evanna franziu os lábios. — Escolhi um nome — disse ela. Dei uma gargalhada. — Você não pode ter passado quatrocentos anos escolhendo um nome! — Isso não foi tudo o que fiz — concordou mas dediquei grande parte do meu tempo a tal escolha. Nomes são vitais para seres do destino. Tenho um papel a desempenhar no futuro, não só no do clã dos vampiros, mas no de todas as criaturas do mundo. O nome que eu escolhi tem um peso nesse papel. No fim das contas, acabei me decidindo por Evanna. — Pausa. — Acho que foi uma boa escolha. Ao se levantar, Evanna coaxou algo para seus sapos, que seguiram para a entrada da caverna. — Tenho que ir — anunciou a feiticeira. — Já falamos muito do passado. Ficarei ausente durante a maior parte do dia. Quando eu voltar, discutiremos a jornada de vocês e o meu papel nela. — Ela foi atrás dos sapos e, instantes depois, havia desaparecido no meio dos raios da alvorada que começava a surgir.
Eu e Harkat ficamos olhando fixamente para ela. Depois, o pequenino perguntou a Vancha se a lenda que ele havia contado era verdadeira. — Tão verdadeira quanto qualquer lenda — respondeu o príncipe, alegremente. — O que isso quer dizer? — perguntou Harkat. — As lendas mudam quando são contadas. Mil e setecentos anos é bastante tempo, mesmo para os padrões dos vampiros. Será que Corza Jarn realmente se arrastou pelo mundo atrás de Desmond Tino? Será que aquele agente do caos concordou mesmo em ajudar? Será que Evanna e o garoto nasceram mesmo do ventre de uma loba? — Ele coçou uma das axilas, cheirou os dedos e suspirou. — Só três pessoas no mundo sabem a verdade: Desmond Tino, o garoto (se ainda estiver vivo) e Lady Evanna. — Você já perguntou a ela se isso é verdade? — indagou Harkat. Vancha balançou a cabeça. — Sempre preferi uma lenda boa e inspiradora a fatos velhos e cansativos. — Com isso, o príncipe virou para o lado e pegou no sono, deixando que eu e Harkat discutíssemos a história calmamente e ficássemos imaginando coisas.
 
CAPÍTULO QUATORZE
 
 
Despertei junto com Vancha algumas horas depois do meio-dia e comecei meu treinamento numa sombra perto da entrada da caverna. Harkat ficou nos observando com interesse, como fez o Sr. Crepsley quando acordou no meio da tarde. Vancha me iniciou com um bastão, dizendo que demoraria meses antes que eu pudesse usar armas de verdade. Passei a tarde vendo-o bater e dar golpes
com o bastão. Eu não tinha que fazer mais nada, apenas observar os movimentos do bastão e aprender a identificar e prever os vários movimentos que um atacante podia fazer. Ficamos treinando até Evanna retornar, meia hora depois de o sol ter se posto. Ela nada falou a respeito de onde estivera ou o que havia feito, nem ninguém perguntou. — Divertindo-se? — perguntou ela, entrando na caverna com seu séquito de sapos. — E como — respondeu Vancha, jogando o bastão para o lado. — O garoto quer aprender a lutar com as próprias mãos. — As espadas são muito pesadas para ele? Vancha fez uma careta. — Muito engraçado. A gargalhada de Evanna iluminou a caverna. — Desculpe. Mas lutar com as mãos (ou com espadas) me parece algo tão infantil. As pessoas deviam guerrear com suas mentes. Franzi a testa. — Como? Evanna me encarou e, de repente, toda a força das minhas pernas se esvaiu e eu fui ao chão. — O que está acontecendo? — perguntei, gritando, enquanto caía pesadamente como um peixe morto. — O que há de errado comigo? — Nada — disse Evanna e, para o meu alívio, minhas pernas voltaram ao normal. É assim que você luta com o cérebro — afirmou, enquanto eu me recobrava. — Todas as partes do corpo estão ligadas ao cérebro. Nada funciona sem ele. Ataque com a mente e a vitória estará quase garantida. — Será que eu poderia aprender a fazer isso? — perguntei, ansioso. — Sim — respondeu a feiticeira. — Mas levaria uns cem anos e você teria que largar os vampiros e se tornar meu assistente. — Ela sorriu — O que você acha, Darren? Será que valeria a pena? — Não tenho certeza — murmurei. Gostava da idéia de aprender magia, mas viver com Evanna não me atraía muito. Com seu pavio curto, duvidava muito que ela fosse se tornar uma professora compreensiva e generosa! — Deixe-me a par caso mude de idéia. Já faz um bom tempo que eu não tenho um assistente, e nenhum deles completou os estudos. Todos fugiram depois de alguns anos, embora eu não consiga imaginar por quê. Evanna passou roçando por nós enquanto adentrava a caverna. Alguns instantes depois ela nos chamou e, quando entramos, encontramos outro banquete nos esperando. — Você se valeu de magia para preparar tudo tão rapidamente? — perguntei enquanto me sentava para comer. — Não. Simplesmente me movi um pouco mais rápido do que o normal.
Posso trabalhar em grande velocidade quando quero. Saboreamos um grande jantar e depois nos sentamos em volta de uma fogueira e discutimos a visita do Sr. Tino à Montanha do Vampiro. Evanna parecia já saber de tudo, mas nos deixou contar a história e não falou nada até terminarmos. — Os três caçadores — meditou assim que lhe deixamos a par dos fatos. — Venho esperando por vocês há muitos séculos. — É mesmo? — perguntou o Sr. Crepsley, espantado. — Eu não partilho o mesmo discernimento que Desmond tem do futuro — disse ela —, mas vejo parte do que está por vir... ou do que pode vir a ser. Sei que três caçadores surgiriam para encarar o Senhor dos Vampixiitas, mas não sabia quem seriam. — Você sabe se eles serão bem-sucedidos? — perguntou Vancha, observando-a de um jeito penetrante. — Duvido que até mesmo Desmond saiba disso. Dois futuros sólidos encontram-se mais à frente, um tão provável quanto o outro. É raro o destino se reduzir a duas contingências tão perfeitamente equiparadas. Normalmente, os caminhos do futuro são muitos. Quando há dois que se apresentam dessa forma, a sorte decide qual deles o mundo vai adotar. — E quanto ao Senhor dos Vampixiitas? — perguntou o Sr. Crepsley. — Tem alguma idéia de onde ele está? — Sim — sorriu Evanna. A respiração do meu instrutor ficou presa na garganta. — Mas você não vai nos dizer, não é? — Vancha bufou de desgosto. — Não — respondeu a feiticeira, com um sorriso escancarado. Seus dentes eram longos, serrilhados e amarelos como os de um lobo. — Você pode nos dizer como iremos encontrá-lo? — perguntou o Sr. Crepsley. — E quando? — Não. Se eu dissesse, estaria mudando o curso do futuro, e isso não é permitido. Vocês devem procurá-lo por conta própria. Eu os acompanharei na próxima etapa da sua jornada, mas não posso... — Você vem conosco? — Vancha explodiu de perplexidade. — Sim. Mas apenas como companheira de viagem. Não terei papel nenhum na busca pelo Senhor dos Vampixiitas. Vancha e o Sr. Crepsley trocaram olhares inquietos. — Você nunca viajou com vampiros antes, Lady — disse o meu instrutor. Evanna riu. — Sei como sou importante para a sua gente, e por esse motivo tenho evitado ter muito contato com as crianças da noite... Cansei de vampiros me implorando para me juntar a eles e ter bebês. — Então por que está vindo conosco agora? — perguntou Vancha
abruptamente. — Há alguém que eu quero conhecer. Poderia buscá-lo sozinha, mas prefiro não fazê-lo. Meus motivos ficarão claros em tempo hábil. — Bruxas são tão infames e reservadas — rosnou o príncipe, mas Evanna não mordeu a isca. — Se vocês preferirem viajar sem mim, não tem problema. Não pretendo impor a minha presença. — Ficaremos honrados em tê-la como membro da nossa comitiva, Lady Evanna — garantiu o Sr. Crepsley. — E, por favor, não tome o fato de parecermos desconfiados ou importunos como ofensa... esses são tempos enfadonhos e confusos e por isso vociferamos quando às vezes deveríamos apenas sussurrar. — Bem colocado, Larten — disse ela, sorrindo. — Se está resolvido, vou juntar minhas coisas e pegaremos a estrada. — Tão cedo? — pestanejou o Sr. Crepsley. — Agora é uma hora tão boa quanto qualquer outra. — Espero que os sapos não venham — afirmou Vancha, irritado. — Não estava pensando em levá-los, mas agora que você mencionou... — Ela riu da sua expressão. — Não se preocupe. Meus sapos irão ficar e deixar as coisas em ordem para quando eu voltar. — Evanna já ia partindo, quando parou, virou-se lentamente e se agachou. — Mais uma coisa — acrescentou e, pela sua expressão séria, soubemos que algo ruim estava por vir. — Desmond devia ter dito isso a vocês, mas obviamente optou por não fazê-lo. Estava fazendo jogos mentais, sem dúvida. — O que é, Lady? — perguntou Vancha assim que ela fez uma pausa. — Tem a ver com a busca pelo Senhor dos Vampixiitas. Não sei se vocês serão bem-sucedidos ou se falharão, mas já observei cada um dos futuros e recolhi alguns fatos relativos ao que está por vir. Não irei falar do futuro no qual vocês triunfarão. Não é minha função comentar sobre isso. Mas se falharem... — Mais uma vez ela parou. Ela estendeu a mão esquerda e com ela pegou as duas de Vancha (que parecia ter crescido demais) e com a outra segurou as de Crepsley. Enquanto estava de mãos dadas com os dois, a feiticeira me encarou e disse: — Estou falando isso porque acho que vocês deviam saber. Não falo para apavorá-los, mas para prepará-los, caso o pior venha à tona. “Vocês estão fadados a cruzar com o Senhor dos Vampixiitas quatro vezes. Se isso acontecer, terão meios para acabar com ele em cada uma dessas ocasiões. Se falharem, os vampixiitas estarão fadados a vencer a Guerra das Cicatrizes. Disso vocês já sabem.” “Mas o que Desmond Tino não lhes disse é que, lá pelo fim da caçada, se tiverem encarado o Senhor dos Vampixiitas quatro vezes e não conseguirem
matá-lo, apenas um de vocês estará vivo para testemunhar a queda do clã dos vampiros.” Enquanto baixava o rosto e largava as mãos do Sr. Crepsley e de Vancha, ela disse algo num volume menor do que um sussurro. “Os outros dois irão morrer .”
 
CAPÍTULO QUINZE
 
 
Marchamos solenemente para fora da caverna de Evanna e demos a volta no lago, enquanto cada um de nós refletia sobre a profecia da bruxa. Sabíamos desde o começo que esta seria uma busca repleta de riscos, sem que a morte ficasse muito tempo distante dos nossos calcanhares. Mas uma coisa é prever o seu final possível, outra bem diferente era saber que havia uma certeza caso
você falhasse. Não seguimos nenhuma direção em especial naquela primeira noite, só ficamos andando vagamente no meio da escuridão, sem dizer nada, mal reparando no que nos cercava. Harkat não fora incluído na profecia de Evanna — ele não era um dos caçadores —, mas estava tão perturbado quanto qualquer um de nós. Quando se aproximava a alvorada, enquanto levantávamos acampamento, Vancha subitamente caiu na gargalhada. — Olhem para nós! — gritou, enquanto o encarávamos, inseguros. — Passamos a noite toda vagando sem destino, como se fôssemos quatro almas tristes num funeral. Como fomos idiotas! — Você acha engraçado saber que temos uma sentença de morte que nos está sendo imposta, majestade? — perguntou o Sr. Crepsley, maliciosamente. — Pelas tripas de Charna! — amaldiçoou Vancha. — A sentença já está dada desde o princípio dos tempos... o que mudou é que agora a conhecemos. — Um pouco de conhecimento é... algo perigoso — murmurou o pequenino. — Essa é a maneira humana de pensar — repreendeu-o Vancha. — Prefiro saber o que está para acontecer, seja bom ou mau. Evanna nos fez um favor quando nos contou. — Como você pode fazer uma avaliação dessas? — perguntei. — Ela confirmou que teremos quatro chances de matar o Senhor dos Vampixiitas. Pensem nisso: por quatro vezes sua vida estará à nossa mercê para que a tiremos. Por quatro vezes iremos encará-lo e guerrear. Ele pode ter a vantagem sobre nós uma vez. Talvez duas. Mas vocês realmente acham que ele irá nos escapar quatro vezes seguidas? — Ele não estará sozinho — disse o Sr. Crepsley. Ele viaja com guardas, e todos os vampixiitas que estiverem por perto se apressarão a vir ajudá-lo. — O que o faz pensar assim? — desafiou-o Vancha. — Ele é o Senhor deles. Irão sacrificar suas vidas para protegê-lo. — Será que nossos amigos vampiros não nos darão cobertura caso fiquemos em apuros? — perguntou Vancha. — Não, mas isso porque... — meu instrutor foi interrompido. — ...o Sr. Tino lhes disse que não o fizessem — afirmou o príncipe, sorrindo. — E, se ele escolheu apenas três vampiros para enfrentarem o Senhor dos Vampixiitas, talvez... — ...só tenha escolhido três vampixiitas para ajudar o seu Senhor — concluiu o Sr. Crepsley, entusiasmado. — Isso — concordou Vancha, radiante. — Por isso, as chances de levarmos vantagem sobre ele são, na minha opinião, maiores do que nunca. Concordam? — Todos acenamos positivamente com a cabeça, depois de refletirmos um pouco. — Agora, digamos que nosso serviço não seja bem-feito. Que nós o
encaremos quatro vezes, estraguemos tudo, e nossas chances de derrotá-lo acabem. O que acontece depois? — Ele irá liderar os vampixiitas na guerra com os vampiros e vencerá — afirmei. — Exatamente. — O sorriso de Vancha sumiu. — A propósito, não acredito nisso. Não me importa que o seu Senhor seja poderosíssimo ou o que diz Des Tino... estou certo de que, numa guerra contra os vampixiitas, iremos vencer. Mas, se isso não acontecer, prefiro morrer antes, lutando pelo nosso futuro, a estar lá para ver as muralhas do nosso mundo desabando. — Belas palavras — grunhi amargamente. — A verdade — insistiu Vancha. — Você preferiria morrer nas mãos do Senhor dos Vampixiitas, enquanto a esperança ainda estiver do nosso lado, ou sobreviver e testemunhar a queda do nosso clã? — Nada respondi, por isso o príncipe prosseguiu. — Se as previsões estiverem certas e falharmos, não quero estar por perto para ver o fim de tudo. Seria uma tragédia terrível, e enlouqueceria todos que a presenciassem. Acreditem em mim, os dois que morrerem em tal eventualidade serão afortunados. Não devíamos nos preocupar com a morte... é a vida que precisaremos temer caso fracassemos!
 Não consegui dormir muito naquele dia, pensando no que Vancha havia dito. Duvido que algum de nós tenha conseguido dormir muito, a não ser Evanna, que roncava ainda mais alto do que o príncipe. Vancha tinha razão. Se falhássemos, aquele que sobrevivesse passaria pelos piores bocados. Teria que ver os vampiros sucumbindo e carregar o fardo da culpa. Se fracassar fosse o nosso destino, a morte ao longo do caminho seria o melhor que qualquer um de nós poderia esperar. Nosso ânimo melhorou quando levantamos ao anoitecer. Não estávamos mais com medo do que vinha pela frente e, em vez de falarmos negativamente, discutimos a nossa rota. — O Sr. Tino nos disse para seguirmos o que manda os nossos corações — lembrou-nos o Sr. Crepsley. — Ele falou que o destino iria nos guiar se nos colocássemos em suas mãos. — Você não acha que devíamos tentar localizar o Senhor dos Vampixiitas? — perguntou Vancha. — Nossa gente passou seis anos em seu encalço, sem sucesso. É claro que temos que ficar de olho mas, por outro lado, acredito que devemos continuar dando seqüência ao que estamos fazendo como se ele não existisse. — Não gosto disso — resmungou o príncipe. — O destino é uma amante cruel. E se ele não nos levar até o sujeito? Você quer fazer um relato daqui a um ano e dizer: “Desculpe, não conseguimos encontrar o colega, má sorte, e daí?”. — O Sr. Tino disse para seguirmos os nossos corações — repetiu o Sr.
Crepsley, teimosamente. Vancha jogou as mãos para o ar. — Certo, vamos fazer as coisas do seu jeito. Mas vocês dois terão que escolher o caminho a seguir. Como muitas mulheres já atestaram, sou um grosseirão sem limites que não tem coração. O Sr. Crepsley deu um sorriso tímido. — Darren? Para onde você quer ir? Já ia começar a dizer que não me importava, mas então parei quando uma imagem apareceu nos meus pensamentos — um quadro no qual um garotocobra tocava o nariz com uma língua extremamente longa. — Gostaria de ver como está o Ofídio — falei. O Sr. Crepsley acenou positivamente. — Ótimo. Na noite passada eu me perguntava o que o meu velho amigo Hibérnio Altão estaria fazendo. Harkat? — Parece-me uma boa idéia — concordou o pequenino. — Que seja então. — Encarando Vancha, meu instrutor falou no tom mais arrogante possível. — Majestade, vamos para o Circo dos Horrores. E com isso nosso rumo foi decidido e o dado do destino foi lançado.
 
CAPÍTULO DEZESSEIS
 
 
O Sr. Crepsley tinha como penetrar na mente do Sr. Altão e apontar a posição do Circo dos Horrores. O circo itinerante estava relativamente perto, e levaríamos apenas três semanas para alcançá-lo, caso forçássemos o passo. Depois de uma semana, alcançamos a civilização novamente. Enquanto passávamos por uma cidade pequena numa certa noite, perguntei ao Sr. Crepsley
por que não embarcávamos num ônibus ou num trem, que nos levaria muito mais rápido até o Circo. — Vancha não aprova os meios de transporte humanos. Ele nunca entrou num carro ou num trem. — Nunca? — perguntei ao príncipe descalço. — Nem sequer cuspi num carro — afirmou. — São objetos medonhos. O formato, o barulho, o cheiro. — Ele tremeu dos pés à cabeça. — E quanto aos aviões? — Se os deuses dos vampiros quisessem que nós voássemos, teriam nos dado asas. — E quanto a você, Evanna? — perguntou Harkat. — Já voou alguma vez? — Só num cabo de vassoura — disse a feiticeira. Não sabia se ela estava brincando ou não. — E você, Larten? — perguntou o pequenino. — Uma vez, há muito tempo, quando os irmãos Wright estavam de passagem. — Ele fez uma pausa. — O avião bateu. Por sorte, não estava voando muito alto, por isso não fiquei seriamente ferido. Mas essas novas geringonças, que pairam acima das nuvens... acho que não. — Você tem medo? — perguntei com um sorriso malicioso. — Gato escaldado tem medo de água fria — respondeu. Éramos um grupo estranho, não havia dúvida. Não tínhamos quase nada em comum com os seres humanos. Eles eram criaturas de uma era tecnológica, enquanto nós pertencíamos ao passado — vampiros não sabiam nada de computadores, satélites receptores ou transmissores, fornos de microondas ou quaisquer comodidades modernas; viajávamos a pé a maior parte do tempo, tínhamos gostos e prazeres simples, e caçávamos como animais. Enquanto os homens mandavam aeronaves para suas guerras e lutavam apertando botões, íamos para as batalhas com espadas e as nossas próprias mãos. Vampiros e seres humanos podiam repartir o mesmo planeta, mas vivíamos em mundos diferentes.
 Acordei numa tarde dessas ao som dos gemidos de Harkat. Ele estava tendo outro pesadelo e se remexendo de forma muito agitada no gramado onde havíamos adormecido. Inclinei-me para acordá-lo. — Espere — disse Evanna. A bruxa estava nos galhos mais baixos de uma árvore, observando Harkat com um interesse inconveniente. Um esquilo explorava os cabelos longos de sua cabeça e um outro roía as cordas que ela usava como roupas. — Ele está tendo um pesadelo — afirmei. — Ele os tem com freqüência? — Quase toda vez que dorme. Tenho sempre que acordá-lo se perceber que
está tendo um. — Curvei-me para sacudi-lo. — Espere — repetiu Evanna, pulando para baixo. Ela se arrastou e tocou com os três dedos centrais da mão direita na testa do pequenino. Fechou os olhos e ficou ali agachada por um minuto, para depois os abrir e se afastar. — Dragões. Maus sonhos. Seu momento de insight está próximo. Desmond não disse nada sobre revelar quem Harkat era em sua vida anterior? — Sim, mas ele preferiu vir conosco, para sair à caça do Senhor dos Vampixiitas. — Muito nobre da parte dele, mas que tolice — cismou a feiticeira. — Se você lhe dissesse quem ele era, será que isso atenuaria seus pesadelos? — Não. Ele precisa descobrir a verdade sozinho. Eu tornaria as coisas piores caso interferisse. Mas há uma maneira de aliviar temporariamente a sua dor. — Como? — Alguém que fale a língua dos dragões pode ajudar. — Onde iremos encontrar alguém assim? — bufei, e depois fiz uma pausa. — Você pode...? — deixei a pergunta em suspenso. — Não eu. Posso conversar com muitos animais, mas não com dragões. Só aqueles que se ligaram a répteis voadores podem falar sua língua. — Ela se levantou. — Você poderia ajudar. — Eu? — franzi a testa. — Jamais me liguei a um dragão. Nunca vi um. Achava que eles eram imaginários. — Neste tempo e lugar são — concordou Evanna. — Mas há outros tempos e lugares, e laços podem ser estabelecidos no mundo do desconhecido. Isso não fazia sentido, mas, se pudesse ajudar Harkat de algum modo, eu o faria. — Diga-me o que tenho que fazer. Evanna sorriu em aprovação e depois me disse para colocar as mãos na cabeça de Harkat e fechar os olhos. — Concentre-se — disse ela. — Precisamos encontrar uma imagem para você se fixar. Que tal a Pedra de Sangue? Você é capaz de imaginá-la, vermelha e pulsante, enquanto o sangue dos vampiros flui por suas veias misteriosas? — Sim — respondi, trazendo a pedra à mente sem fazer esforço. — Continue pensando nela. Daqui a alguns minutos você irá experimentar sensações desagradáveis e, quem sabe, ter vislumbres dos pesadelos de Harkat. Ignore-os e continue focado na Pedra. Eu farei o resto. Fiz o que ela disse. No começo foi fácil, mas depois comecei a me sentir meio estranho. O ar à minha volta parecia cada vez mais quente e estava ficando mais difícil respirar. Ouvi o batimento de asas imensas e depois vislumbrei algo caindo de um céu vermelho que nem sangue. Encolhi-me, quase larguei Harkat, mas me lembrei do conselho de Evanna e forcei a barra para me manter concentrado na imagem da Pedra de Sangue.
Senti algo enorme aterrissar ao meu lado e olhos quentes furando as minhas costas, mas não me virei nem me encolhi. Lembrei-me de que aquilo não passava de um sonho, uma ilusão, e pensei na Pedra. Harkat apareceu na minha frente na visão, estirado sobre uma cama de estacas, que empalavam seu corpo inteiro. Ele estava vivo mas sentia uma dor incrível. Não podia me ver — as pontas de duas estacas saíam pelas cavidades onde seus olhos deveriam estar. — A dor dele não é nada em comparação com o que você irá sentir — disse alguém e, olhando para cima, vi uma figura das sombras, indefinível e obscura, pairando e se aproximando cada vez mais. — Quem é você? — suspirei, esquecendo-me momentaneamente da Pedra. — Sou o Senhor da Noite Escarlate — respondeu, zombeteiro. — O Senhor dos Vampixiitas? — Deles e de todos os outros — disse o homem das sombras, me ridicularizando. — Estava esperando por você, Príncipe dos Condenados. Agora eu o tenho em minhas mãos... e não irei largar mais! — A entidade se lançou à frente, e seus dedos eram dez longas garras de tenebrosa ameaça. Olhos vermelhos brilhavam no poço negro que era o seu rosto. Por um momento aterrorizante, pensei que ele fosse me pegar e me devorar. Até que uma voz pequena (a de Evanna) sussurrou: — É apenas um sonho. Ele não pode feri-lo, ainda não, não se você continuar concentrado na Pedra. Fechando meus olhos dentro do sonho, ignorei a investida do homem das sombras e me concentrei na pulsante Pedra de Sangue. Ouvi um grito assobiado e me senti como se uma onda de loucura espumante houvesse quebrado dentro de mim. Então o pesadelo terminou e eu estava de volta ao mundo real. — Pode abrir seus olhos agora — disse Evanna. Meus olhos se abriram num estalo. Larguei Harkat e passei as mãos no rosto, reagindo como se tivesse sido tocado por algo sujo. — Você foi bem — congratulou-me a feiticeira. — Aquela... coisa — falei, bafejando. — O que era aquilo? — O Senhor da Destruição. O Mestre das Sombras. O pretenso soberano da noite eterna. — Ele era tão poderoso, tão demoníaco. Ela acenou com a cabeça. — Será. — Será? — repeti. — O que você viu foi uma sombra do futuro. O Senhor das Sombras ainda não surgiu, mas surgirá, no fim dos tempos. Isso não poderá ser evitado, e você não deve se preocupar com isso. Tudo o que importa por enquanto é que o sono do seu amigo será mais tranqüilo. Olhei para Harkat, que descansava em paz.
— Ele está bem? — Ficará assim, por um tempo. Os pesadelos retornarão e, quando isso acontecer, ele terá que encarar o seu passado e descobrir quem era, ou sucumbir à loucura. Mas, por enquanto, ele pode dormir a sono solto, sem medo. Ela voltou para sua árvore. — Evanna — fiz com que ela se detivesse com um chamado sutil. — O Senhor das Sombras... Havia algo familiar nele. Não consegui decifrar o seu rosto, mas senti que o conhecia. — É bem possível — sussurrou em resposta. Ela hesitou, ponderando sobre o quanto podia me falar. — O que vou dizer agora fica entre nós dois — alertoume. — Não deve ser passado para mais ninguém. Nem mesmo para Larten ou Vancha. — Não direi nada — prometi. Ainda de costas para mim, ela disse: — O futuro é negro, Darren. Há dois caminhos, e ambos são sinuosos, preocupantes, e estão pavimentados com a alma dos mortos. Em um dos futuros possíveis, o Senhor dos Vampixiitas se tornou o Mestre das Sombras e soberano das trevas. No outro... Ela fez uma pausa e sua cabeça se inclinou para trás, como se estivesse olhando para o céu em busca de uma resposta. — No outro, o Senhor das Sombras é você. E então ela partiu, deixando-me confuso e abalado, desejando a todo custo que os gemidos de Harkat não tivessem me acordado.
 Algumas noites depois, alcançamos o Circo dos Horrores. O Sr. Altão e sua companhia estavam atuando na periferia de um pequeno vilarejo, numa igreja abandonada. O espetáculo estava se aproximando do final quando chegamos, por isso entramos e ficamos vendo o show das últimas filas. Thorso e Konthorso — os gêmeos contorcionistas — estavam no palco, um girando em volta do outro e fazendo incríveis manobras acrobáticas. O Sr. Altão veio logo depois deles, vestindo um terno escuro, com seu costumeiro chapéu e luvas vermelhas, e disse que o espetáculo estava terminado. As pessoas começaram a sair, reclamando do final fraco, quando duas cobras deslizaram das vigas, espalhando o medo pela multidão. Sorri quando vi as cobras. Era assim que a maior parte dos shows se encaminhava para o final. As pessoas eram levadas a pensar que o espetáculo havia acabado, quando as cobras apareciam e davam mais um susto na platéia. Antes que as serpentes pudessem causar algum dano maior, Ofídio — seu mestre — entrava para acalmá-las. Foi assim mesmo; quando as cobras estavam prestes a escorregar pelo chão, Ofídio deu um passo à frente. Mas ele não estava sozinho — havia uma criança
pequena ao seu lado, que foi até onde estava um dos répteis e o controlou, enquanto Ofídio domava o outro. O garoto era uma nova aquisição. Supus que o Sr. Altão o recrutara durante uma de suas viagens. Depois que Ofídio e o menino haviam enrolado as cobras em volta dos seus corpos, o dono do circo veio ao picadeiro novamente e disse que, daquela vez, o show havia terminado para valer. Ficamos no meio das sombras enquanto a multidão se dissipava, tagarelando de tanta excitação. Então, enquanto os dois artistas se livravam das serpentes e se limpavam, eu me aproximei. — Ofídio! — bradei. Ofídio girou o corpo, assustado. — Quem está aí? — Não respondi nada, mas segui rapidamente em sua direção. Seus olhos se arregalaram com encanto e satisfação. — Darren! — gritou, jogando os braços à minha volta. Abracei-o com força, ignorando a sensação que me causavam aquelas escamas escorregadias, e feliz por vê-lo depois de tantos anos. — Onde você esteve? — perguntou em voz alta quando nos separamos. Havia lágrimas de felicidade nos seus olhos. Os meus estavam úmidos também. — Na Montanha do Vampiro — afirmei vivamente. — E você? — Por todo o mundo. — Ele me examinou com curiosidade. — Você cresceu. — Só recentemente. E não tanto quanto você. — Ofídio era um homem agora. Tinha apenas alguns anos a mais do que eu e parecíamos ter quase a mesma idade quando eu entrei pela primeira vez no Circo dos Horrores, mas agora ele podia passar por meu pai. — Boa noite, Ofídio — disse o Sr. Crepsley, que deu alguns passos à frente para apertar as mãos do rapaz. — Larten — retrucou ele. — Já faz tanto tempo. Estou feliz em vê-lo. Meu instrutor se afastou para o lado e apresentou nossos companheiros. — Gostaria que você conhecesse Vancha March, Lady Evanna e Harkat Murds, do qual acredito que se lembre. — Olá — grunhiu Vancha. — Saudações — sorriu Evanna. — Oi, Ofídio — disse Harkat. O encantador de serpentes pestanejou. — A coisa fala! — afirmou, ofegante. — Harkat tem falado muito nas últimas noites — falei, sorrindo. — A coisa tem um nome? — Tem — informou Harkat. — E a “coisa” gostaria muito... de ser chamada de “ele”. Ofídio não sabia o que dizer. Quando morávamos juntos, passávamos boa parte do nosso tempo juntando comida para os pequeninos, e nunca um deles
havia dito uma palavra. Achávamos que eles não podiam falar. Agora eu estava aqui com um pequenino — o que mancava e que apelidamos de Esquerdinha —, agindo como se o fato de ele falar não fosse grande coisa. — Bem-vindo de volta ao Circo dos Horrores, Darren — disse alguém, e ao olhar para cima me vi encarando o umbigo do Sr. Altão. Havia me esquecido de como o dono do Circo podia se mover rápida e silenciosamente. — Sr. Altão — respondi, acenando com a cabeça, educadamente (ele não gostava de apertar mãos). Cumprimentou os outros pelo nome, incluindo Harkat. O pequenino devolveu o cumprimento, mas o Sr. Altão não parecia nem um pouco surpreso. — Vocês gostariam de comer? — perguntou para nós. — Isso seria um prazer — respondeu Evanna. — E gostaria de ter uma palavra ou duas com você mais tarde, Hibérnio. Há coisas que precisamos conversar. — Sim — concordou ele sem piscar. — Há mesmo. Enquanto íamos saindo em fila da igreja, eu vinha ao lado de Ofídio para conversarmos sobre os velhos tempos. Ele carregava sua cobra sobre os ombros. O garoto que havia atuado junto com meu amigo nos alcançou enquanto saíamos, arrastando a outra cobra como se ela fosse um brinquedo. — Darren — disse Ofídio —, gostaria que você conhecesse Shanco. — Oi, Shanco — falei, apertando a mão do menino. — Olhe só — respondeu ele, que tinha o mesmo cabelo amarelado e esverdeado, olhos apertados e escamas multicoloridas de Ofídio. — Você é o Darren Shan que inspirou o meu nome? — perguntou. Virei-me e encarei meu colega. — Está falando de mim? — Sim — riu ele. — Shanco é o meu primogênito. Achei que seria... — Primogênito? — interrompi. — Ele é seu? Você é pai dele? — Espero com certeza que sim — sorriu Ofídio. — Mas ele é tão grande! Tão crescido! Shanco se envaideceu e ficou cheio de orgulho com minha afirmação. — Logo vai fazer cinco anos. Ele é alto para a idade. Eu o introduzi no número há alguns meses. Ele tem um talento natural. Isso era fantástico! Claro, Ofídio tinha idade suficiente para ser casado e ter filhos, e não havia motivo algum para que eu ficasse surpreso com a notícia — mas pareciam ter se passado apenas alguns meses desde que andávamos juntos o tempo todo como adolescentes, imaginando como seria a vida quando crescêssemos. — Você tem outros filhos? — perguntei. — Um casal. Urcha, com três, e Lília, que fará dois no mês que vem. — Todos eles são crianças-cobra?
— Urcha não. Isso o magoa, pois ele também queria ter escamas. Mas tentamos fazer com que se sinta tão amado e extraordinário quanto os outros. — Tentamos...? — Eu e Merla. Você não a conhece. Ela se juntou ao espetáculo pouco depois de você sair... nosso romance foi fulminante. Ela é capaz de arrancar as orelhas e usá-las como mini bumerangues. Você vai gostar dela. Rindo, afirmei que estava certo disso, e depois acompanhei Ofídio e Shanco, junto com todos os outros, para o jantar.
 Era maravilhoso estar de volta ao Circo dos Horrores. Eu andara impaciente e mal-humorado durante a última semana e meia, pensando no que Evanna havia dito, mas meus medos sumiram uma hora depois que voltei ao convívio do pessoal do Circo. Encontrei muitos velhos amigos — Mano Mão, Sancho Duas Panças, Torso e Konthorso, Cormac Limbs e Diana Dentada. Também pude ver o Homem-Lobo, mas não foi tão agradável encontrá-lo quanto aos outros, e mantive distância do sujeito o mais que pude. Truska — a mulher que podia deixar crescer uma barba quando lhe apetecesse, e depois absorvê-la para dentro do rosto novamente — também estava lá e feliz por me ver. Cumprimentou-me com um inglês macarrônico. Há seis anos, não conseguia falar a língua, mas Ofídio vinha lhe dando aulas e ela fazia progressos. — É difícil — disse ela enquanto nos misturávamos com os outros numa escola grande e abandonada que servia como base para o Circo. — Eu não boa em línguas. Mas Ofício paciente e eu aprender lenta. Ainda ter erros, mas... — Todos cometemos erros, belezura — interrompeu Vancha, surgindo ao nosso lado. — E o seu foi não me ver como um vampiro honesto quando teve a chance! — Ele abraçou Truska e a beijou. Ela riu quando o príncipe a largou e apontou um dedo em sua direção. — Seu malvado! — disse ela, rindo. — Vocês dois se conhecem, já percebi — comentei, secamente. — Oh, sim — afirmou Vancha, olhando de esguelha. — Somos velhos amigos. Muitas foram as noites em que mergulhamos juntos em oceanos azuis e profundos, hein, Truska? — Vancha — disse ela em tom de reprovação. — Você prometeu não isso mencionar! — Não disse nada — retrucou o príncipe, rindo para valer, e começou a conversar com a amiga em sua língua nativa. Pareciam um par de focas batendo um papo. Ofídio me apresentou a Merla, que era muito simpática e bonita. Ele a fez mostrar as orelhas destacáveis. Concordei que eram fabulosas, mas recusei o convite que me foi feito para arremessá-las.
O Sr. Crepsley estava tão feliz em voltar quanto eu. Como um vampiro obediente, ele havia dedicado grande parte da sua vida aos generais e sua causa, mas eu suspeitava que seu coração estava secretamente ligado ao Circo dos Horrores. Ele adorava atuar e acho que sentia falta do palco. Muitas pessoas lhe perguntaram se havia voltado para ficar de vez e expressaram desapontamento quando ele disse que não. Meu instrutor pareceu não levar aquilo muito a sério, mas acho que ficou genuinamente tocado pelo interesse de todos e, se pudesse, ficaria. Havia pequeninos com o Circo dos Horrores, como sempre, mas Harkat manteve distância deles. Tentei fazer com que ele se enturmasse com os outros, mas as pessoas ficavam nervosas à sua volta — não estavam acostumadas com um pequenino que conseguia falar. Ele passou a maior parte da noite sozinho ou num canto com Shanco, que ficou fascinado e não parava de lhe fazer perguntas indelicadas (grande parte delas querendo saber se ele era macho ou fêmea — de fato, como todos os pequeninos, não era nem uma coisa nem outra). Evanna era conhecida por muitos no Circo dos Horrores, embora poucos houvessem tido a oportunidade de encontrá-la antes — pais, avôs ou bisavôs em geral já haviam falado sobre ela. A feiticeira passou algumas horas entrando em contato e levantando o passado — tinha uma memória impressionante para nomes e rostos —, para depois se despedir de todos e partir com o Sr. Altão para conversar sobre assuntos estranhos, agourentos e misteriosos (ou então para falar sobre sapos e truques de magia!). Retiramo-nos com a chegada da alvorada. Demos boa-noite para aqueles que ainda estavam acordados e depois Ofídio nos guiou até nossas tendas. O Sr. Altão havia preparado o caixão do Sr. Crepsley e o vampiro entrou nele com um ar de profundo contentamento — os vampiros amavam seus caixões de um jeito que homem algum podia entender. Eu e Harkat penduramos algumas redes e dormimos numa tenda ao lado da de Ofídio e Merla. Evanna se acomodou numa van contígua à do Sr. Altão. E Vancha... Bem, quando o encontramos naquela noite, ele jurou de pés juntos que havia ficado com Truska e se gabou de como era um sucesso com as mulheres. Mas, por todas as folhas e gramas presas ao seu cabelo e às suas peles, acho mais provável que tenha passado o dia sozinho debaixo de um arbusto.
 
CAPÍTULO DEZESSETE
 
 
Harkat e eu nos levantamos mais ou menos uma hora antes do pôr-do-sol e andamos em volta do acampamento com Ofídio e Shanco. Estava feliz pelo fato de meu amigo ter se inspirado no meu nome para batizar seu primogênito e prometi mandar presentes para o garoto no futuro, se fosse possível. Ele queria que eu lhe desse uma aranha — Ofídio havia lhe falado tudo sobre a Madame
Octa —, mas eu não tinha a menor intenção de lhe mandar uma das aranhas venenosas da Montanha do Vampiro — sabia, por experiência própria e dolorosa, quantos problemas uma tarântula podia causar! O Circo dos Horrores estava a mesma coisa de sempre. Alguns novos números haviam sido incorporados, e um ou dois haviam saído do espetáculo, mas no grosso era tudo mais ou menos a mesma coisa. Embora o circo não tivesse mudado, eu tinha. Senti isso depois de um tempo, enquanto andávamos de uma caravana para outra ou de uma tenda para a seguinte, parando para conversar com os artistas e o pessoal de cena. Quando vivia com o Circo eu era jovem — pelo menos em aparência — e as pessoas me tratavam como criança. Não o faziam mais. Embora eu não parecesse tão mais velho assim, devia haver alguma coisa diferente em mim, porque ninguém abaixava mais a cabeça para falar comigo. Embora viesse agindo como adulto há anos, esta era a primeira vez que eu realmente pensava no quanto havia mudado e como jamais poderia voltar aos dias mais luminosos da minha juventude. Há eras a fio o Sr. Crepsley vinha me dizendo — normalmente quando eu reclamava da lentidão do meu amadurecimento — que chegaria uma noite na qual eu desejaria ser jovem novamente. Agora percebi que ele tinha razão. Minha infância havia sido um caso de longa duração, mas em um ou dois anos o expurgo me levaria tanto o sangue humano quanto a juventude, e depois disso não haveria mais volta. — Você parece pensativo — notou Ofídio. — Estou pensando no quanto as coisas mudaram — suspirei. — Você está casado e tem filhos. Eu tenho minhas preocupações. A vida costumava ser muito mais simples. — Sempre o é para os mais jovens — concordou ele. — Não paro de dizer isso para Shanco, mas ele não acredita em mim, da mesma forma que nós quando éramos crianças. — Estamos ficando velhos, Ofídio. — Não mesmo. Estamos ficando mais velhos. Vai demorar anos para eu atingir a terceira idade... e séculos para você. Isso era verdade, mas não conseguia me livrar da sensação de que havia envelhecido que nem um ancião de uma noite para outra. Durante mais de vinte e cinco anos eu vivera e pensara que nem uma criança — Darren Shan, o menino príncipe —, mas agora sentia que não era mais criança. O Sr. Crepsley nos encontrou enquanto devorávamos salsichas fritas em volta da fogueira do acampamento. Truska as havia preparado e as estava oferecendo. O vampiro pegou uma, agradeceu e a engoliu com duas mordidas rápidas. — Saborosa — disse ele, lambendo os lábios, para depois se virar na minha direção com um brilho nos olhos. — Você gostaria de subir no palco hoje à noite?
Hibérnio disse que nós podemos atuar. — O que faríamos? — perguntei. — Não temos mais a Madame Octa. — Posso fazer truques de magia, como fazia quando me juntei pela primeira vez ao Circo dos Horrores, e você pode ser o meu assistente. Com nossa velocidade e força de vampiros, podemos fazer alguns encantos verdadeiramente notáveis. — Não sei. Já faz tanto tempo. Posso ficar nervoso diante da platéia. — Que nada. Não aceitarei “não” como resposta. — Se você pensa assim... — sorri. — Você precisará se enfeitar um pouco se viermos a nos apresentar perante o público — disse meu instrutor, fitando-me com um olhar crítico. — Um corte de cabelo e um certo trato com as unhas das mãos vão cair bem. — Deixe comigo — disse Truska. — Eu tenho traje pirata de Darren ainda. Posso dar jeito nele de novo. — Você ainda tem aquela velharia? — perguntei, lembrando-me de como era bacana quando Truska me vestia de pirata não muito tempo depois de eu me juntar ao Circo dos Horrores. Tive que deixar para trás as roupas mais legais quando parti e segui para a Montanha do Vampiro. — Sou boa guardadora de coisas — disse ela sorrindo. — Vou pegar roupa e tirar medidas suas. O traje pode não pronto ficar hoje noite mas amanhã pronto fica. Venha ver eu daqui uma hora, para medidas. Vancha ficou com ciúmes quando soube que iríamos nos apresentar. — E quanto a mim? — resmungou. — Sei um pouco de magia. Por que não posso me apresentar também? O Sr. Crepsley encarou o príncipe de cabelos verdes, com seus pés descalços, pernas e braços cheios de lama, peles de animais e shurikens. Sentiu o cheiro que estava no ar — Vancha havia tomado um banho de chuva há seis noites e não se lavara desde então — e seu nariz se enrugou. — Você não está o que se pode chamar de apresentável, majestade — comentou cuidadosamente. — O que há de errado comigo? — perguntou Vancha, olhando para baixo, sem notar a falta de nada. — Quem sobe no palco tem que estar elegante — disse o Sr. Crepsley. — Falta-lhe um certo je ne sais quoi{1}. — Não sei de nada disso — afirmei. — Acho que tem uma função no espetáculo que vai cair como uma luva para ele. — Isso! — exclamou Vancha, radiante. — O garoto tem visão. — Ele podia entrar no começo, junto com o Homem-Lobo — opinei, fazendo muito pouco esforço para manter uma expressão séria. — Podíamos fingir que eles são irmãos. Vancha ficou me encarando enquanto o Sr. Crepsley, Harkat, Ofídio e
Shanco caíam na gargalhada. — Você está ficando muito espertinho! — vociferou o vampiro, que depois saiu berrando em busca de alguém com quem pudesse reclamar. Na hora marcada eu saí para tirar minhas medidas e cortar meu cabelo com Truska. Ofídio e Shanco também saíram a fim de se preparar para o espetáculo, enquanto Harkat ajudava o Sr. Crepsley a procurar acessórios para usar em seu número. — A vida ser boa para você? — perguntou Truska, enquanto acertava a minha franja recém-crescida. — Podia estar pior. — Vancha disse você agora é príncipe. — Ele não devia contar para ninguém — reclamei. — Não medo tenha. Segredo guardo eu. Vancha e eu velhos amigos. Ele sabe segredos sei guardar. — Ela largou a tesoura e me olhou de um jeito estranho. — Você tem Sr. Tino visto desde partida? — Que pergunta estranha — respondi com cuidado. — Ele aqui esteve, muitos meses atrás. Veio Hibérnio ver. — É mesmo? — Isso deve ter sido antes da sua visita à Montanha do Vampiro. — Hibério preocupado ficou depois de visita. Disse que tempos negros à frente estavam. Disse que eu podia querer para minha gente voltar. Que mais segura estaria lá. — Ele falou algo sobre... — baixei meu tom de voz — o Senhor dos Vampixiitas ou de um Mestre das Sombras? Ela balançou a cabeça. — Apenas disse que para noites duras devíamos nos preparar, que muita luta e morte haveria antes do fim. — Então continuou a acertar minha franja e depois tirou minhas medidas para o terno. Fiquei pensando bastante na nossa conversa quando deixei a van de Truska e saí atrás do Sr. Crepsley. Pode ser que, impulsionado pelas minhas preocupações, meus pés tivessem me levado de propósito para a van do Sr. Altão, ou talvez fosse algo acidental. De qualquer maneira, me vi vagando sem destino alguns minutos depois, ponderando sobre a situação e se devia ir até lá para conversar sobre isso. Enquanto eu estava parado, deliberando, a porta se abriu e o Sr. Altão e Evanna saíram. A bruxa usava um manto negro, quase invisível na escuridão da noite nebulosa. — Gostaria que você não fizesse isso — disse o Sr. Altão. — Os vampiros têm sido grandes amigos nossos. Devíamos ajudá-los. — Não podemos escolher lados, Hibérnio — respondeu Evanna. — Não é nossa função escolher os rumos do destino. — Ainda assim — murmurou, com seu longo rosto enrugado —, acolher
esses outros e negociar com eles... não gosto disso. — Temos que permanecer neutros — insistiu ela. — Não temos aliados nem inimigos entre as criaturas da noite. Se eu ou você escolhermos um lado, poderemos destruir tudo. Até onde nos diz respeito, ambos devem ser iguais, nem bons nem maus. — Você tem razão — suspirou ele. — Já passei muito tempo com Larten. Estou deixando minha amizade por ele atrapalhar meu julgamento. — Não há nada de errado em favorecer esses seres — disse Evanna. — Mas não devemos nos envolver pessoalmente, não até o futuro se desenredar ou se tornar necessário. Com isso, ela beijou o Sr. Altão na testa — não sei como alguém tão pequena conseguia ficar à altura de uma pessoa tão alta, mas ela o fez — e saiu rumo ao acampamento. Ele ficou vendo-a partir, com uma expressão infeliz no rosto, e depois fechou a porta para continuar com seus afazeres. Permaneci onde estava por um instante, repassando aquela estranha conversa. Não tinha certeza absoluta do que estava acontecendo, mas deduzi que Evanna estava prestes a fazer algo que não era do agrado do Sr. Altão — algo que não parecia ser de bom agouro para os vampiros. Como príncipe, deveria esperar Evanna voltar e desafiá-la abertamente no que dizia respeito à conversa. Não era próprio para alguém da minha estatura ficar à espreita, e seria obviamente rude da minha parte seguir para o acampamento atrás dela. Mas a educação e as boas maneiras nunca estiveram no topo da minha lista de prioridades. Preferia que Evanna tivesse um conceito pior de mim — e até que me punisse pela minha insolência — e saber o que ela estava planejando, a deixá-la escapar e ter que enfrentar uma surpresa desagradável mais à frente. Chutei meus sapatos para longe, saí do acampamento numa carreira, avistei o topo da sua cabeça encapuzada sumindo por trás de uma árvore à distância — ela estava se movendo em alta velocidade — e saí em seu encalço o mais rápida e silenciosamente possível.
 Era difícil acompanhar Evanna. Ela era veloz, tinha o andar seguro, e quase não deixava vestígios da sua passagem. Se a busca prosseguisse, eu logo a perderia, mas ela acabou fazendo uma pausa três ou quatro quilômetros depois, ficou pegando ar durante alguns instantes, e depois andou até um pequeno matagal, assobiando em voz alta, e o adentrou. Fiquei esperando alguns minutos para ver se ela sairia. Por não tê-lo feito, fui até a beira do matagal e fiquei tentando escutar alguma coisa. Não ouvi nada e, por isso, me enfiei no meio das árvores e avancei cautelosamente. O chão estava molhado e mascarava os sons dos meus passos, mas não me arrisquei: a audição de Evanna era, no mínimo, tão aguçada quanto a de um vampiro — um
galho partido seria o suficiente para alertá-la da minha presença. Enquanto prosseguia, o som de uma conversa em voz baixa foi ficando mais audível. Havia algumas pessoas mais à frente, mas falavam num volume muito baixo, e eu estava muito distante para entender o que diziam. Com uma sensação de mal-estar cada vez maior, me arrastei mais à frente e finalmente fiquei perto o suficiente para identificar um grupo de figuras sombrias no meio do matagal. Não me movi nem mais um pouco, com medo de que fosse revelar a minha presença, mas me agachei, olhei e ouvi. Suas vozes estavam abafadas e só dava para entender algumas meias-palavras ou meias-frases. As vozes aumentavam de volume ocasionalmente quando brotavam risadas, mas mesmo assim tomavam cuidado para não rir muito alto. Meus olhos foram aos poucos se acostumando com a escuridão e consegui ter alguma noção das formas. Além de Evanna — cuja sombra era impossível de ser confundida — contei oito pessoas, sentadas, agachadas ou deitadas. Sete eram robustas e musculosas. A oitava era esguia, usava um capuz e um manto, e servia comida para os outros. Todos pareciam ser homens. Não dava para ser mais preciso, dada a distância e a escuridão. Ou eu teria que me aproximar bem mais para descobrir algo, ou a lua teria que brilhar. Olhando para cima, na direção do céu nublado, em meio aos galhos densos das árvores, percebi que não havia muita chance de isso acontecer. Levantei-me em silêncio e comecei a me afastar. Foi quando o criado que usava o manto acendeu uma vela. — Apague isso, idiota! — vociferou um dos outros, enquanto uma mão forte jogou a vela no chão, onde uma sola de pé a apagou brutalmente. — Desculpe — guinchou o empregado. — Achei que estávamos seguros com Lady Evanna. — Nunca estamos seguros — disse rispidamente o sujeito corpulento. — Lembre-se disso e jamais cometa tal erro de novo. Os homens retomaram a conversa com Evanna, com suas vozes baixas e impenetráveis, mas eu não estava mais interessado no que eles tinham para dizer. Durante os poucos segundos em que a vela ficou acesa, avistei peles púrpura, olhos e cabelos vermelhos, e soube quem e o que aqueles homens eram, e por que Evanna havia sido tão reticente — ela viera encontrar um grupo de vampixiitas!
 
CAPÍTULO DEZOITO
 
 
Furtivamente, afastei-me do matagal. Vendo que não havia nenhum guarda, voltei correndo para o Circo dos Horrores, sem parar para respirar ou pensar. Alcancei o local do acampamento dez minutos depois, tendo corrido o máximo que meus poderes permitiam. O espetáculo havia começado e o Sr. Crepsley estava em pé no que outrora
fora a sacristia da igreja, vendo Sancho Duas Panças comendo um pneu. Estava muito vistoso com seu traje vermelho, e havia passado um pouco de sangue na cicatriz do lado esquerdo do seu rosto, chamando atenção para ele, tornando-o mais misterioso que o normal. — Onde você esteve? — vociferou assim que entrei, ofegante. — Procureio por toda parte. Achei que teria que atuar sozinho. Truska já aprontou sua roupa de pirata. Se nos apressarmos, poderemos... — Cadê o Vancha? — perguntei, arfando. — Está de mau humor em algum lugar por aí — disse o meu instrutor rindo. — Ele ainda não... — Larten — interrompi-o. Ele parou, alertado pelo perigo que representava o raro uso do seu primeiro nome. — Esqueça o show. Temos que encontrar Vancha. Agora! Ele não fez perguntas. Depois de pedir para um assistente de palco informar ao Sr. Altão que ele estava se retirando do programa, conduziu-me para fora e fomos atrás de Vancha. Nós o encontramos com Harkat na tenda que eu dividia com o pequenino. Ele o ensinava a jogar shurikens. Harkat estava achando difícil — seus dedos eram grandes demais para segurar com facilidade as pequenas estrelas. — Olha só quem está aí — zombou Vancha assim que entramos. — O rei dos palhaços e seu pupilo. Como vai o show business, rapazes? Fechei a tenda e me acomodei. O príncipe percebeu a expressão séria nos meus olhos e guardou os shurikens. Rápida e calmamente, contei a todos o que havia acontecido. Fez-se uma pausa quando terminei, quebrada por Vancha, que desfilou uma série inesgotável de palavrões. — Não devíamos ter confiado nela — vociferou. — Bruxas são traiçoeiras por natureza. Ela provavelmente deve estar nos entregando para os vampixiitas neste exato momento. — Duvido muito — opinou o Sr. Crepsley. — Evanna jamais precisaria da ajuda dos vampixiitas se quisesse nos causar algum mal. — Você acha que ela foi até lá para conversar sobre sapos? — apregoou Vancha. — Não sei o que eles estão conversando, mas não acredito que ela esteja nos traindo — disse meu instrutor, resoluto. — Talvez devêssemos perguntar ao Sr. Altão — sugeriu Harkat. — Pelo que Darren disse, ele sabe o que Evanna... está querendo. Talvez nos diga. Vancha olhou para o Sr. Crepsley. — Ele é seu amigo. Devíamos tentar? O Sr. Crepsley balançou a cabeça. — Se Hibérnio soubesse que estávamos em perigo, e pudesse nos avisar ou
ajudar, ele o faria. — Muito bem — disse o príncipe, sorrindo. — Vamos ter que enfrentá-los sozinhos. — Ele se levantou e checou seu estoque de shurikens. — Nós vamos enfrentá-los? — perguntei, com as entranhas se contraindo. — Não vamos ficar por aqui e esperar que eles venham atacar! — respondeu Vancha. — O elemento surpresa é vital. Enquanto o tivermos, temos que fazer bom uso dele. O Sr. Crepsley parecia preocupado. — Talvez eles não estejam planejando nos atacar. Só chegamos na noite passada. Não poderiam saber que estávamos a caminho. O fato de estarem aqui pode não ter nada a ver com a gente. — Bobagem! — gritou o príncipe. — Eles estão aqui para matar e, se não atacarmos primeiro, estarão sobre nós antes que... — Não tenho tanta certeza — murmurei. — Agora que pensei melhor, vi que eles não estavam em guarda ou nervosos, como estariam se estivessem se preparando para um embate. Vancha falou mais alguns palavrões e depois se sentou novamente. — Certo. Digamos que eles não estão no nosso encalço. Talvez seja tudo coincidência e os caras não saibam que estamos aqui. — Ele se inclinou para a frente. — Mas saberão assim que Evanna terminar de lhes deixar a par de tudo! — Você acha que ela vai lhes falar sobre nós? — perguntei. — Seríamos tolos se não contássemos com isso. — Ele pigarreou. — Caso tenha esquecido, estamos em guerra. Não tenho nada pessoal contra os nossos irmãos de sangue, mas por enquanto eles são nossos inimigos, e temos que lhes mostrar que não temos piedade. Digamos que esses vampixiitas e esse empregado não tenham nada a ver com o fato de estarmos aqui. E daí? É nosso dever nos empenharmos num embate contra eles e matá-los. — Isso é assassinato, não autodefesa — disse Harkat suavemente. — É — concordou Vancha. — Mas você preferiria que eles viessem matar alguns dos nossos? Nossa busca ao Senhor dos Vampixiitas está acima de tudo, mas, se toparmos com uma chance de estraçalhar alguns vampixiitas ao acaso, seria uma tolice (uma traição, até) não aproveitá-la. O Sr. Crepsley suspirou. — E Evanna? E se ela ficar do lado dos vampixiitas e contra nós? — Então teremos que enfrentá-la também — torceu o nariz Vancha. — Você supõe que tem alguma chance contra ela? — disse meu instrutor, dando um sorriso sem graça. — Não. Mas sei qual é o meu dever. — Ele se levantou, e dessa vez havia uma certeza em sua postura. — Vou matar vampixiitas. Se vocês quiserem vir, que venham. Se não... — Ele encolheu os ombros. O Sr. Crepsley olhou para mim.
— O que você diz, Darren? — Vancha tem razão — afirmei lentamente. — Se deixarmos que eles partam para matar vampiros depois, nos sentiríamos culpados. Além do mais, há algo que estamos esquecendo... o Senhor dos Vampixiitas. — Os dois vampiros me encararam. — Estamos destinados a cruzar nossos passos com os dele, mas acho que temos que perseguir tal destino. Talvez esses vampixiitas saibam onde ele está ou estará. Duvido que seja coincidência o fato de estarmos aqui ao mesmo tempo que eles. Esta pode ser uma armação do destino para nos levar até ele. — É uma argumentação incontestável — disse Vancha. — Talvez. — O Sr. Crepsley não parecia convencido. — Lembram-se das palavras do Sr. Tino? — perguntei. — Para que seguíssemos os nossos corações? Meu coração diz que devemos enfrentar esses vampixiitas. — O meu também — disse Harkat depois de um momento de hesitação. — E o meu — acrescentou o príncipe. — Achava que vocês não tinham coração — murmurou o meu instrutor, para depois se levantar. — Mas o meu coração também exige o confronto, embora minha cabeça discorde. Vamos. Vancha sorriu cruelmente e bateu nas costas do Sr. Crepsley e então, sem mais demora, saímos às escondidas no meio da noite.
 Ao chegar ao matagal, traçamos nossos planos. — Vamos cercá-los vindo de quatro ângulos diferentes — disse Vancha, assumindo o comando. — Desse jeito eles pensarão que há mais de nós. — Eles são nove ao todo — observou o Sr. Crepsley, incluindo Evanna. — Como vamos nos dividir? — Dois vampixiitas para você, dois para mim, dois para Harkat. Darren fica com o sétimo e com o criado. Ele provavelmente é um meio-vampixiita ou um vampitiete, por isso não deve oferecer muita resistência. — E Evanna? — perguntou o Sr. Crepsley. — Podemos todos pegá-la no fim — sugeriu o príncipe. — Não — decidiu meu instrutor. — Eu fico com ela. — Tem certeza? Ele acenou com a cabeça. — Sendo assim, tudo o que nos resta é nos separarmos e ficarmos em nossas posições. Aproximem-se o máximo possível. Vou começar lançando alguns sburikens. Vou mirar nos braços e nas pernas. Assim que ouvirem gritos e blasfêmias, podem atacar com vontade. — As coisas seriam bem mais fáceis se você mirasse nas cabeças e nas gargantas — observei.
— Não luto dessa maneira — resmungou Vancha. — Apenas covardes matam um inimigo sem o encarar. Se for preciso, como quando matei o vampitiete com uma granada de mão, eu o farei, mas prefiro lutar limpamente. Nós quatro nos separamos e cercamos as árvores, entrando no matagal em pontos diferentes. Senti-me vulnerável e pequeno quando me vi sozinho no meio da floresta, mas rapidamente joguei tal sentimento para escanteio e me concentrei na missão. — Que os deuses dos vampiros nos guiem e nos protejam — murmurei em voz baixa, antes de avançar, com a espada desembainhada. Os vampixiitas e Evanna ainda estavam na clareira no meio do matagal, falando suavemente. A lua havia atravessado as nuvens e, embora os galhos dependurados bloqueassem a maior parte da luz, a área estava mais iluminada que da primeira vez. Seguindo vagarosamente, fiquei o mais próximo possível dos vampixiitas, depois me escondi atrás de um tronco e esperei. Tudo era silêncio à minha volta. Achava que Harkat poderia alertá-los da nossa presença — ele não conseguia se mover com tanta rapidez quanto um vampiro —, mas o pequenino estava tomando bastante cuidado e não emitiu som algum. Comecei a contar, silenciosamente, dentro da cabeça. Já estava em noventa e seis quando ouvi um zunido bem à minha esquerda, seguido por um grito de medo. Menos de um segundo depois, ouvi outro zunido e outro grito. Segurando com força no cabo da minha espada, saí de trás da árvore e me lancei à frente, berrando desenfreadamente. Os vampixiitas reagiram rápido, e já estavam em pé, com suas armas à mão, na hora em que os alcançamos. Por mais rápidos que fossem, Vancha e o Sr. Crepsley foram mais, e, no que minha espada se enganchou com a de um vampixiita alto e musculoso, de cuja canela esquerda brotava um shuriken prateado, pude ver o Sr. Crepsley abrir o estômago e o peito de um dos nossos oponentes, matando-o instantaneamente, enquanto o polegar de Vancha arrancava o olho esquerdo de um outro — que caiu no chão, gritando de dor. Tive tempo suficiente para notar que o homem no solo não tinha a pele púrpura como o resto — era um vampitiete! —, então eu tinha que me concentrar no vampixiita à minha frente. Ele era pelo menos duas cabeças mais alto que eu, mais forte e robusto. Mas tamanho, como me havia sido ensinado na Montanha do Vampiro, não era tudo e, enquanto ele investia sobre mim com golpes brutais, eu dava estocadas e me esquivava, cortando aqui, socando ali, tirando sangue, enfurecendo-o, atrapalhando sua mira e seu ritmo, fazendo com que ele balançasse erraticamente. Enquanto evitava um dos seus golpes, alguém tombou por trás de mim e me fez cair no chão. Rolando rapidamente, me levantei e vi um vampixiita caído com o rosto ensangüentado, respirando com dificuldade. Harkat Mulds estava
sobre ele, com um machado manchado de vermelho na mão esquerda e um braço direito ferido dependurado e claudicante ao lado do corpo. O vampixiita que vinha me atacando se concentrava agora em Harkat. Com um berro, ele deu um golpe visando a cabeça do pequenino. Harkat levantou seu machado bem a tempo, jogando a espada para o alto, e depois deu um passo para trás, tentando o oponente para que este avançasse. Olhei em volta rapidamente, para ter uma idéia de como estava a batalha. Três dos nossos adversários estavam no chão, embora o vampitiete que havia perdido o olho se arrastasse atrás de uma espada e aparentasse estar pronto para voltar à ação. O Sr. Crepsley enfrentava um vampixiita que preferia lutar com facas, e os dois rodavam e se cortavam como se formassem um par de dançarmos rodopiando. Vancha estava ocupado com um brutamontes que brandia um machado. Duas vezes maior que o de Harkat. Contudo, ele o rolava no meio dos seus dedos imensos como se não pesasse nada. Vancha suava e sangrava por causa de um corte na altura da cintura, mas não dava nenhum terreno para o seu oponente. Do meu lado, o sétimo vampixiita — alto, magro, com o rosto liso, o cabelo comprido amarrado num rabo-de-cavalo, vestindo um traje verde-claro — e o criado encapuzado observavam a luta. Ambos seguravam longas espadas e estavam prontos para fugir caso a batalha parecesse perdida ou para cair dentro e acabar com tudo caso sentissem a iminência da vitória. Táticas céticas assim me deixavam enojado e por isso puxei uma faca e a lancei, visando a cabeça do empregado, que não era muito maior do que eu. O homem pequeno que usava um manto viu a faca e desviou a cabeça da sua rota. Pela sua rapidez, logo soube que devia ser uma criatura da noite vampirizada — nenhum ser humano poderia se mover a tal velocidade. O vampixiita ao lado do sujeito franziu a testa enquanto eu puxava outra faca, ficou parado por um instante e depois atravessou a clareira, correndo na minha direção, antes que eu pudesse fazer mira. Larguei a faca, ergui minha espada e consegui evitar seu golpe, mas mal consegui levantar a tempo de desviar seu segundo ataque. Ele era rápido e bem treinado nas artes da guerra. Eu estava em apuros. Afastei-me do vampixiita, protegendo-me da melhor forma possível. A ponta da sua espada se tornou um borrão assim que ele me atacou, e, embora eu tivesse me defendido com habilidade, sua lâmina logo me atingiu. Senti uma ferida se abrir no topo do meu braço esquerdo... um corte profundo na minha coxa direita... um arranhão entalhado na testa. Encostei-me numa árvore e fiquei com a manga da minha camisa presa num galho. O vampixiita enfiou a espada na direção do meu rosto. Pensei que o fim havia chegado, mas então meu braço se soltou e consegui bloquear sua espada e empurrá-la para baixo. Tentei usar a minha arma para que ele largasse
a sua, mas o sujeito era muito forte e levantou sua lâmina com um sutil movimento reverso. A bainha de sua espada deslizou por toda a extensão da minha, gerando uma cachoeira de faíscas. Ela se movia com tanta rapidez, e havia tanta força por trás das suas manobras que, em vez de ser desviada pelo cabo da minha quando lá chegou, conseguiu atravessar a bainha dourada — assim como a carne e o osso do meu polegar direito que nela se apoiava! Gritei quando o meu polegar foi atirado para longe, no meio da escuridão. Minha espada caiu da mão e eu tombei, indefeso. O vampixiita olhou em volta, casualmente, descartando-me como ameaça. O Sr. Crepsley estava vencendo a guerra das facas — o rosto do seu oponente estava todo retalhado. Harkat ignorara a vantagem que representava o seu braço ferido para o adversário, e afundou a ponta do seu martelo no estômago do vampixiita — embora ele gritasse com valentia e continuasse a lutar, estava certamente perdido. Vancha enfrentava seu oponente e estava segurando as pontas, já que, quando o Sr. Crepsley e Harkat viessem em seu auxílio, sua força combinada seria suficiente para dar um fim ao gigante. O vampitiete que havia perdido o olho estava aos seus pés, com a espada na mão, mas oscilava inconstante e não representava grande problema. Enquanto tudo isso acontecia, Evanna permanecia sentada no chão, com um olhar neutro no rosto, sem participar da batalha. Nós íamos vencer e o vampixiita de traje verde sabia disso. Rosnando, ele deu mais um golpe de espada na direção da minha cabeça — visando cortá-la na altura do pescoço, mas consegui rolar para o lado, desviando-me, e cair em cima de um monte de folhas. Em vez de mergulhar sobre mim para acabar com a luta, ele deu meiavolta e correu até onde estava o empregado encapuzado, pegou uma espada que havia sido largada no chão, e depois correu para as árvores, empurrando o criado que estava à sua frente. Levantei-me, gemendo em voz alta por causa da dor, mas depois rangi os dentes para combatê-la, peguei a faca que havia deixado cair antes, e avancei para ajudar Harkat a acabar com seu oponente. Não foi muito nobre da minha parte enfiar uma faca nas costas do bárbaro, mas tudo que eu queria naquele instante era terminar a batalha, e não senti nem um pouco de pena do vampixiita quando ele endureceu e tombou, com a minha faca enterrada bem fundo no meio das suas omoplatas. O Sr. Crepsley havia despachado o vampixiita com as facas depois de cuidar do vampitiete de um olho só — dando um único e rápido corte em sua garganta — e se adiantou para ajudar Vancha. Foi quando Evanna levantou e gritou para ele: — Você também irá levantar suas lâminas na minha direção, Larten?
Meu instrutor hesitou, com as facas pairando em suas mãos, mas depois baixou a guarda e se ajoelhou num só pé à sua frente. — Não, Lady — suspirou. — Não irei. — Então também não levantarei a mão para você — disse ela, que começou a andar de um vampixiita morto até outro, ajoelhando perto de cada um, fazendo o toque da morte, e sussurrando: — Que até na morte vocês sejam vitoriosos. O Sr. Crepsley se levantou e estudou Vancha enquanto ele enfrentava o maior de todos os adversários. — Passou perto, majestade — observou secamente meu instrutor enquanto o gigante errava por pouco o topo do escalpo do príncipe com seu enorme machado de guerra. Como resposta, Vancha honrou o colega com mais um dos seus palavrões. — Será que você ficaria ofendido se eu oferecesse a minha ajuda, senhor? — perguntou educadamente. — Venha cá rápido! — rosnou Vancha. — Dois estão fugindo. Temos que... pelas tripas de Charna! — gritou, depois de se esquivar mais uma vez da lâmina do machado que passou raspando. — Harkat, fique comigo — disse o Sr. Crepsley, dando alguns passos à frente para interceptar o gigante. — Darren, vá com Vancha atrás dos outros. — Certo — respondi. Não mencionei o fato de que havia perdido um polegar. Tais considerações não eram nada no calor da vida ou da batalha mortal. Enquanto o Sr. Crepsley e Harkat iniciavam o ataque ao gigante. Vancha se desvencilhou, parou para respirar e depois acenou para que eu o seguisse enquanto ele corria atrás do vampixiita e do criado. Fiquei o mais perto que pude dele, chupando o coto sangrento onde costumava ficar o meu polegar, e pegando, com a mão esquerda, uma faca que estava em meu cinto. Quando saímos do meio das árvores, deu para ver a dupla mais adiante. O empregado estava montado nas costas do vampixiita — era claro que eles planejavam sair voando. — Não! — vociferou Vancha, que arremessou um shuriken escuro. Ele atingiu o criado logo acima da omoplata direita. Ele gritou e caiu de cima do vampixiita. Este se virou, inclinou-se para pegar o colega que havia tombado, viu Vancha se aproximando e se levantou, puxando uma espada e dando um passo à frente. Hesitei, para não ficar no caminho de Vancha, mas fiquei de olho no servo caído, esperando para ver como transcorreria a luta. O príncipe estava muito perto do inimigo quando resolveu parar, como se estivesse machucado. Achei que ele devia ter sido atingido por alguma coisa — uma faca ou flecha —, mas não parecia ferido. Ficou apenas ali em pé, com os braços esticados, encarando o vampixiita. Este também estava imóvel, com os olhos vermelhos arregalados, e uma expressão de incredulidade no rosto púrpura escuro. Então ele baixou a espada, enfiou-a na bainha, virou-se e pegou o criado. Vancha não fez nada para detê-lo.
Atrás de mim, ouvi o Sr. Crepsley e Harkat saindo do meio das árvores. Eles vinham correndo e depois pararam ao meu lado quando viram o vampixiita escapando e Vancha parado, olhando. — O quê... — começou o Sr. Crepsley, mas naquele instante o vampixiita já havia atingido velocidade suficiente para voar e desapareceu. Vancha se voltou para nós e depois caiu no chão. Meu instrutor rogou todas as pragas possíveis — não de um jeito tão sujo quanto Vancha no acesso de raiva que teve mais cedo, mas chegou perto — e embainhou a faca de tanto desgosto. — Você os deixou escapar! — gritou. Ele deu um passo largo à frente, ficou em pé acima de Vancha e o contemplou com indisfarçável desprezo. — Por quê? — rosnou, com os punhos cerrados. — Não pude detê-lo — sussurrou o príncipe, com o olhar abatido. — Você nem ao menos tentou! — disse enfurecido o Sr. Crepsley. — Não pude enfrentá-lo. Sempre temia esta noite. Rezava para que ela nunca viesse, mas uma parte minha sabia que viria. — O que está dizendo não faz sentido! — vociferou meu instrutor. — Quem era aquele vampixiita? Por que o deixou escapar? — Seu nome é Gannen Harst — disse Vancha num tom de voz baixo e entrecortado. Ele levantou os olhos e deu para ver lágrimas firmes e resplandecentes. — Ele é meu irmão.
 
CAPÍTULO DEZENOVE
 
 
Durante um bom tempo nada foi dito. Harkat, o Sr. Crepsley e eu ficamos olhando para Vancha, cujos olhos estavam fixos no solo. Mais acima, a lua havia sumido por trás de espessas camadas de nuvens. Quando elas finalmente se separaram, Vancha começou a falar, como se tivesse sido incitado pelos raios lunares.
— Meu verdadeiro nome é Vancha Harst — afirmou. — Mudei-o quando me tornei um vampiro. Gannen é um ano ou dois mais novo do que eu... ou seria o contrário? Já faz tanto tempo, não consigo me lembrar. Éramos muito próximos quando crianças. Fazíamos tudo juntos... inclusive nos juntarmos aos vampixiitas. O vampixiita que nos vampirizou era um homem honesto e um bom professor. Disse-nos exatamente como seriam as nossas vidas. Explicou-nos suas regras e crenças, como eles se viam como guardiões da história ao manter vivas as lembranças daqueles cujo sangue bebiam. (Se um vampiro ou vampixiita bebe o sangue de uma pessoa, ele absorve parte da sua alma e das suas lembranças.) Ele disse que os vampixiitas matavam quando bebiam, mas o faziam de forma rápida e indolor. — Isso torna a conduta deles correta? — vociferei. — Para os vampixiitas, sim — afirmou Vancha. — Como você pode... — comecei a explodir. O Sr. Crepsley me deteve com um leve aceno de mão. — Isso não é hora para um debate moral. Deixe Vancha falar. — Não há muito mais para dizer. Gannen e eu fomos vampirizados como meio-vampixiitas. Servimos juntos por alguns anos como assistentes. Não consegui me acostumar com tanta matança. Por isso caí fora. — Foi simples assim? — perguntou o Sr. Crepsley, cético. — Não. Os vampixiitas normalmente não permitem que os assistentes vivam caso resolvam se separar do clã. Nenhum vampixiita mata seu semelhante, mas tal lei não se aplica aos meio-vampixiitas. Meu mestre deveria ter me matado quando eu disse que queria ir embora. “Gannen me salvou. Ele suplicou para que me deixassem viver. Depois que todas as tentativas falharam, ele disse que o nosso mestre também teria que matá-lo. No fim das contas, minha vida foi poupada, mas fui avisado para evitar todos os vampixiitas no futuro, incluindo Gannen, o qual eu nunca mais havia visto até hoje à noite.” “Durante muitos anos vivi angustiado. Tentei me alimentar como os vampiros, sem matar aqueles dos quais eu sugava o sangue, mas o sangue vampixiita exerce um domínio muito poderoso. Eu perdia o controle quando me alimentava, e matava apesar das minhas convicções. No fim das contas, resolvi que não iria me alimentar mais e morrer. Foi quando conheci Paz Celestial, que me protegeu.” — Paz vampirizou você? — perguntou o Sr. Crepsley. — Sim. — Embora soubesse quem você era? Vancha acenou positivamente. — Mas como se pode vampirizar alguém como vampiro, se este já foi vampirizado como vampixiita? — perguntei.
— É possível para aqueles que não foram completamente vampirizados — afirmou meu instrutor. — Um meio-vampiro pode se tornar um vampixiita e vice-versa, mas é uma operação perigosa que raramente é tentada. Conheço três outros casos. Dois deles terminaram em morte, tanto para o vampirizado quanto para o vampirizador. — Paz sabia dos riscos — disse Vancha —, mas só me falou sobre eles depois. Não teria passado por tudo aquilo se soubesse que a vida dele corria perigo. — O que ele teve que fazer? — perguntou Harkat. — Pegar o meu sangue e me dar o dele, a mesma coisa que acontece em qualquer vampirização. A única diferença era que metade do meu sangue era vampixiita, que é venenoso para os vampiros. Paz pegou meu sangue maculado e as defesas naturais do seu organismo o tornaram inofensivo. Mas ele poderia facilmente tê-lo matado, assim como o sangue dele também poderia ter acabado comigo. Mas a sorte dos vampiros estava conosco — ambos sobrevivemos, embora nossa agonia tivesse sido imensa. Com o meu sangue vampixiita transformado pelo sangue de Paz, eu pude controlar minha ânsia de fome. Estudei sob a orientação de Paz e, em tempo hábil, treinei para me tornar um general. Minhas ligações com os vampixiitas não foram reveladas a ninguém a não ser os outros príncipes. — Eles aprovaram a sua vampirização? — perguntou o Sr. Crepsley. — Depois de terem provado a minha lealdade várias vezes, sim. Eles estavam preocupados por causa de Gannen. Temiam que a minha lealdade ficasse dividida caso eu o encontrasse novamente, como aconteceu hoje à noite. Mas me aceitaram e juraram guardar segredo em relação à minha história. — Por que não me falaram de você? — perguntei. — Se eu tivesse vindo para a Montanha do Vampiro depois, você acabaria sabendo. Mas é indelicado falar de uma pessoa quando ela está ausente. — Isso é muito frustrante — resmungou o Sr. Crepsley. — Entendo bem suas razões para não falar sobre isso antes, mas, se soubéssemos, eu poderia ter ido atrás do seu irmão e deixado que você cuidasse do gigante no meio das árvores. — Como eu poderia saber? — sorriu Vancha timidamente. — Não tinha visto seu rosto até avançar para matá-lo. Ele era a última pessoa com a qual eu esperava esbarrar. Atrás de nós, Evanna emergiu do meio do matagal. Suas mãos estavam vermelhas de sangue dos vampixiitas mortos. Ela carregava alguma coisa. Enquanto se aproximava, percebi que era o meu polegar que havia sido arrancado. — Encontrei isso — disse a feiticeira, jogando-o para mim. — Achei que você gostaria de pegá-lo de volta.
Peguei o polegar e depois olhei para o coto de onde ele havia sido extirpado. Não me dei conta da dor enquanto ouvia Vancha falar, mas agora a palpitação havia se intensificado. — Será que poderíamos costurá-lo de volta? — estremeci. — Possivelmente — disse o meu instrutor, examinando o coto e o polegar. — Lady Evanna, você tem o poder para fixá-lo imediatamente e sem fazer esforço, não? — Sim — concordou Evanna —, mas não o farei. Bisbilhoteiros não merecem ter favores especiais atendidos. — Ela apontou o dedo na minha direção. — Você devia ter sido espião, Darren. — Era difícil dizer se a bruxa estava incomodada ou entretida. Vancha possuía uma linha e uma agulha feita de espinha de peixe e, enquanto o Sr. Cresley segurava o meu polegar no lugar, o príncipe o costurou de volta, muito embora os seus pensamentos estivessem em outra parte. Aquilo doía imensamente, mas tudo que eu podia fazer era olhar para longe e ranger os dentes. A sutura terminou e os vampiros esfregaram seu cuspe em volta da área costurada, para acelerar o processo de cicatrização, enfaixaram o polegar aos outros dedos para que os ossos se fundissem, e deixaram assim. — Isso é o melhor que podemos fazer — disse o Sr. Crepsley. — Se o dedo ficar infeccionado, teremos que cortá-lo novamente e você terá que se virar sem ele. — Tudo bem — resmunguei. — Veja o lado bom. — É a minha cabeça que vocês deviam cortar — afirmou Vancha amargamente. — Eu deveria ter colocado o dever acima da consangüinidade. Não mereço viver. — Bobagem! — exclamou meu instrutor, irritado. — Qualquer homem que ataca o próprio irmão não é totalmente homem. Você fez o que qualquer um de nós teria feito. É uma infelicidade que o tenha encontrado agora, mas não fomos ameaçados pelo seu deslize, e eu acho... Ele parou por causa de um acesso de riso de Evanna. A bruxa gargalhava, como se o vampiro tivesse contado uma piada sensacional. — Eu disse algo engraçado? — perguntou o Sr. Crepsley, confuso. — Oh, Larten, se você soubesse! — dizia ela, em tom estridente. Ele levantou a sobrancelha para mim, Vancha e Harkat. — Do que ela está rindo? Nenhum de nós sabia. — Dane-se o que a está levando a dar gargalhadas — afirmou Vancha, dando um passo à frente para enfrentar a bruxa. — Eu quero saber, para começar, o que ela estava fazendo aqui, e por que estava se associando ao inimigo enquanto fingia ser nossa aliada. Evanna parou de rir e o encarou. Ela cresceu magicamente, até ascender
sobre ele como se fosse uma naja em espiral, mas o príncipe nem piscou. Aos poucos o ar ameaçador foi lhe escapando até ela retomar sua forma padrão. — Nunca afirmei que era sua aliada, Vancha. Viajei e fiz refeições ao seu lado, mas nunca disse que estava do seu lado. — Isso quer dizer que você está do lado deles! — vociferou ele. — Não tomo o partido de ninguém — respondeu friamente a feiticeira. — A divisão entre vampiros e vampixiitas não me interessa. Vejo vocês como garotos tolos e briguentos que numa noite terão juízo e irão parar de cuspir furiosamente um no outro. — É um ponto de vista interessante — comentou ironicamente o Sr. Crepsley. — Não entendo — afirmei. — Se você não está do lado deles, o que estava fazendo naquela clareira? — Conversando. Apreciando os seus méritos, como fiz com vocês. Sentei com os caçadores e os estudei. Agora fiz a mesma coisa com os caçados. Sejam quais forem as conseqüências da Guerra das Cicatrizes, terei que lidar com os vitoriosos. É bom saber de antemão o calibre daqueles aos quais o seu futuro está ligado. — Alguém está conseguindo entender alguma coisa? — perguntou Vancha. Evanna deu um sorriso malicioso, encantada com a nossa confusão. — Vocês, cavalheiros finos e guerreiros, já leram romances de mistério? — perguntou ela. Encaramos a bruxa com um olhar vago. — Se o fizessem, já teriam imaginado o que está acontecendo. — Você já bateu numa mulher? — perguntou o príncipe para o Sr. Crepsley. — Não. — Eu já — grunhiu Vancha. — Que sujeito equilibrado — a bruxa riu, mas depois ficou séria. — Se vocês têm algo precioso e outras pessoas o procuram, qual é o melhor lugar para escondê-lo? — Se essa asneira continuar... — avisou o príncipe. — Não é asneira — afirmou Evanna. — Até mesmo os seres humanos sabem a resposta para essa pergunta. Pensamos nela em silêncio. Pouco depois eu levantei a mão, como se estivesse no colégio, e falei: — Ao ar livre, na frente de todo mundo? — Exatamente — Evanna aplaudiu. — As pessoas que buscam algo, ou caçam, raramente encontram o que procuram se está colocado bem à sua frente. É comum deixar passar aquilo que é mais óbvio. — O que isso tudo tem a ver com... — começou o Sr. Crepsley. — O homem que usava o manto... não era empregado coisa nenhuma — interrompeu Harkat severamente. Nossas cabeças se viraram, inquisidoras. —
Foi isso que deixamos passar... não foi? — Precisamente — disse a bruxa, e agora sua voz assumia um tom mais simpático. — Ao vesti-lo e tratá-lo como um empregado — como fizeram desde que pegaram a estrada —, os vampixiitas sabiam que ele seria o último alvo que alguém visaria durante um ataque. — Mostrando quatro dedos, Evanna lentamente abaixou o indicador e prosseguiu. — Seu irmão não saiu correndo porque estava com medo, Vancha. Ele fugiu para salvar a vida do homem que estava protegendo... o falso criado... o Senhor dos Vampixiitas!
 
CAPÍTULO VINTE
 
 
Sob as ordens de Evanna — ela ameaçou nos cegar e nos ensurdecer caso desobedecêssemos —, enterramos os vampixiitas e os vampitietes mortos no matagal, cavando covas profundas e colocando-os de frente para o céu e para o paraíso, antes de cobri-los. Vancha estava inconsolável. Assim que voltamos para o Circo dos Horrores,
ele pediu uma garrafa de conhaque e depois se trancou num pequeno trailer e se recusou a atender nossos chamados. Ficou se culpando pela fuga do Senhor dos Vampixiitas. Se houvesse atacado o irmão, o Senhor dos Vampixiitas estaria à nossa mercê. Era a primeira das nossas quatro chances prometidas de matá-lo, e era difícil imaginar uma oportunidade mais simples caindo assim do céu. O Sr. Altão já sabia o que havia acontecido. Ele vinha esperando pelo confronto e nos disse que os vampixiitas já circulavam pelo Circo dos Horrores fazia mais de um mês. — Eles sabiam que estávamos a caminho? — perguntei. — Não. Estavam nos seguindo por outros motivos. — Mas você sabia que estávamos vindo... não? — desafiou-o Harkat. O Sr. Altão acenou com tristeza. — Eu os teria avisado, mas as conseqüências teriam sido medonhas. Aqueles que têm discernimento do futuro estão proibidos de influenciá-lo. Apenas Desmond Tino pode interferir diretamente nas questões ligadas ao tempo. — Você sabe para onde eles foram — perguntou o Sr. Crepsley — ou quando iremos enfrentá-los novamente? — Não. Eu poderia descobrir, mas leio o futuro o mínimo possível. O que posso lhes dizer é que Gannen Harst é o primeiro protetor do Senhor dos Vampixiitas. Os seis que vocês mataram são guardas normais que podem ser substituídos. Harst é o guarda principal. Aonde quer que o Senhor vá, ele vai atrás. Se tivesse sido morto, as chances de um sucesso futuro aumentariam enormemente para o seu lado. — Se pelo menos eu tivesse ido atrás de Harst em vez de Vancha — suspirou meu instrutor. Evanna, que não havia dito nada desde que voltamos, balançou a cabeça. — Não percam tempo lamentando as chances perdidas. Vocês não estavam destinados a enfrentar Gannen Harst nessa altura da caçada. Vancha, sim. Foi o destino. — Sejamos realistas — afirmei. — Agora sabemos com quem o Senhor dos Vampixiitas está viajando. Podemos espalhar a descrição de Gannen Harst e falar para nossa gente procurá-lo. E eles não terão mais como usar aquele disfarce de criado... da próxima vez estaremos prontos e saberemos a quem procurar. — Isso é verdade — concordou o Sr. Crepsley. — Além do mais, não sofremos nenhuma perda. Estamos tão fortes quanto já estávamos no começo da jornada, mais espertos e ainda temos três chances de matá-lo. — Então por que estamos nos sentindo... tão mal? — perguntou Harkat de um jeito taciturno. — O fracasso é sempre uma pílula amarga quando engolida — disse meu
instrutor. Depois disso, cuidamos dos nossos ferimentos. O braço de Harkat estava gravemente cortado, mas nenhum osso se quebrara. Nós o colocamos numa tipóia e o Sr. Crepsley disse que ele iria sarar em algumas noites. Meu polegar direito estava ficando com uma cor medonha, mas o Sr. Altão disse que ele não estava infectado e iria sarar. Estávamos nos preparando para dormir quando ouvimos gritos furiosos. Correndo pelo campo — meu instrutor, com um manto pesado, enfiou a cabeça para fora, a fim de se proteger do sol da manhã —, encontramos Vancha nas cercanias, rasgando suas roupas, com uma garrafa de conhaque vazia no chão ao seu lado, gritando para o sol. — Venha me fritar! — gritava ele em tom de desafio. — Não estou nem ligando! Faça o pior que você sabe! Veja se eu estou dando... — Vancha! — vociferou o Sr. Crepsley. — O que está fazendo? Vancha girou o corpo, pegou a garrafa e a apontou para o colega como se fosse uma faca. — Afaste-se! — disse e assobiou. — Vou matá-lo se tentar me impedir! O Sr. Crepsley parou. Ele sabia melhor do que qualquer um que não devia mexer com um vampiro bêbado, especialmente com um que tinha os poderes de Vancha. — Isso é uma estupidez, majestade. Vamos para dentro. Encontraremos outra garrafa de conhaque e o ajudaremos a beber... — ... à saúde do Senhor dos Vampixiitas! — gritou Vancha desvairadamente. — Senhor, isso é loucura. — É claro — concordou o príncipe num tom mais triste e sóbrio. — Mas esse é um mundo louco, Larten. Por eu ter poupado a vida do meu irmão... que outrora salvou a minha... nosso maior inimigo escapou e nosso povo foi derrotado. Que tipo de mundo é este no qual o mal nasce de um ato de bondade? O Sr. Crepsley não tinha resposta para isso. — Morrer não irá ajudar, Vancha — disse Harkat. — Posso lhe dizer isso. — Não irá ajudar — disse o ex-vampixiita —, mas irá punir, e eu mereço ser punido. Como posso enfrentar meus colegas príncipes e generais depois disso? Minha chance de matar o Senhor dos Vampixiitas passou. É melhor passar junto com ela do que continuar existindo e nos envergonhar a todos. — Então está planejando ficar aqui fora deixando o sol fritá-lo? — perguntei. — Isso — respondeu ele, rindo. — Você é um covarde — afirmei, zombando. Sua expressão endureceu. — Tome cuidado, Darren Shan... ainda me sinto capaz de esmagar alguns crânios antes de morrer!
— É um idiota — insisti, sem medir conseqüências. Passei pelo Sr. Crepsley e apontei de um jeito acusatório para Vancha, com a minha mão esquerda boa. — Quem lhe deu o direito de desistir? O que o faz pensar que pode abandonar a busca e se lixar para todos nós? — Do que está falando? — gaguejou o sujeito, confuso. — Não faço mais parte dessa busca. Agora o negócio é com você e Larten. — É mesmo? — Dando-lhe as costas, fui atrás de Evanna e do Sr. Altão. Encontrei-os juntos, atrás da multidão de artistas e assistentes de circo que foram atraídos pelos uivos do príncipe. — Lady Evanna. Sr. Altão. Respondam se for possível: Vancha ainda exercerá algum papel importante na busca pelo Senhor dos Vampixiitas? O Sr. Altão e Evanna se entreolharam, embaraçados. Ela hesitou, e depois falou relutante: — Ele tem poder para influenciar a busca. — Mas eu falhei — retrucou Vancha, confuso. — Uma vez — concordei. — Mas quem disse que não terá outra chance? Ninguém disse que nós só teríamos uma chance cada um. Pelo que sabemos, todas as quatro oportunidades estão destinadas a recair sobre você! Vancha piscou e sua boca se abriu lentamente. — Mesmo se as chances forem divididas igualmente — intrometeu-se o Sr. Crepsley —, ainda há três pela frente, e Darren e eu somos apenas dois. Por isso, um de nós está destinado a encarar o Senhor dos Vampixiitas duas vezes, se estivermos fadados a ter o quarto encontro. Vancha ficou mais agitado, enquanto pensava nas nossas palavras, e acabou deixando cair a garrafa e cambaleando na minha direção. Tive que segurá-lo para que não tombasse. — Fui um idiota, não? — suspirou ele. — Sim — concordei, sorrindo, e depois o levei de volta para a sombra, onde se juntou a nós para dormir até o cair da noite.
 Levantamos com o sol se pondo e nos reunimos na van do Sr. Altão. A medida que o crepúsculo se intensificava e Vancha bebia caneca atrás de caneca de café quente para curar sua ressaca, debatemos qual seria nosso próximo movimento e decidimos que seria melhor deixarmos o Circo dos Horrores. Eu até gostaria de ficar mais tempo, assim como o Sr. Crepsley, mas nosso destino estava em outra parte. Além do mais, Gannen Harst poderia voltar com um exército de vampixiitas, e não queríamos nos ver encurralados ou atrair a fúria dos nossos inimigos para o pessoal do circo. Evanna não viajaria mais conosco. A bruxa nos disse que estava voltando para sua caverna e para os sapos, a fim de se preparar para as tragédias futuras. — E haverá tragédias — disse ela, com um lampejo em seus olhos verdes e
marrons. — Se será para os vampiros ou para os vampixiitas, eu ainda não sei. Mas tudo deverá acabar com lágrimas para um dos lados, isso é certo. Não posso dizer que senti falta daquela bruxa baixa, peluda e horrenda quando ela partiu — suas previsões tenebrosas não trouxeram nada a não ser tristeza para as nossas vidas, e achei que ficaríamos bem melhor sem ela por perto. Vancha também partiria sozinho. Concordamos que ele deveria voltar para a Montanha do Vampiro e falar para os outros sobre o nosso encontro com o Senhor dos Vampixiitas. Eles precisavam ficar a par do papel de Gannen Harst. Vancha voltaria a se unir a nós mais tarde, rastreando as ondas mentais do meu instrutor. Despedimo-nos rapidamente dos nossos amigos do Circo dos Horrores. Ofídio estava triste por eu ter que partir tão cedo, mas ele sabia que a minha vida era complicada. Shanco estava ainda mais triste — seu aniversário estava se aproximando e ele esperava ganhar um presente maravilhoso. Disse para o menino-cobra que encontraria algo bacana no meio da estrada e que o mandaria para ele — embora não pudesse garantir que chegaria a tempo de pegar o seu aniversário —, e isso o deixou animado. Truska me perguntou se eu queria levar a minha roupa de pirata recémcortada. Pedi que ela a guardasse — o traje ficaria manchado e amarrotado durante as minhas viagens. Jurei que voltaria para experimentá-lo. Ela disse que seria bom eu cumprir a promessa, enquanto me dava um longo beijo de adeus, que fez com que Vancha se mordesse de ciúme. O Sr. Altão nos encontrou no limite do acampamento, quando estávamos prestes a partir. — Desculpe por não ter podido vir mais cedo — disse ele. — Tinha assuntos de trabalho a tratar. O show deve continuar. — Cuide-se bem, Hibérnio — disse o Sr. Crepsley, apertando a mão do dono do circo. Pelo menos uma vez, o Sr. Altão não fugiu ao contato físico. — Você também, Larten — respondeu o sujeito, com uma expressão pesada no rosto. Olhando em volta para todos nós, ele prosseguiu: — Tempos tenebrosos estão a caminho mas, seja qual for o resultado da sua busca, quero que saibam que sempre haverá um lar para vocês, todos vocês, aqui no Circo dos Horrores. Não posso exercer um papel ativo no que diz respeito a decidir como vai ser o futuro, mas posso oferecer refúgio. Agradecemos o amigo pela oferta e depois ficamos olhando enquanto ele se afastava e era engolido pelas sombras do seu amado acampamento circense. Encarando uns aos outros, hesitamos e ficamos relutantes quanto a partir. — Bem! — acabou dizendo Vancha. — É chegada a hora. É um longo caminho até a Montanha do Vampiro, mesmo voando. — Os vampiros não deviam voar no caminho para a fortaleza na montanha, mas as regras ficaram
menos rígidas durante a guerra para permitir uma comunicação mais rápida entre generais e príncipes. Cada um de nós apertou a mão de Vancha. Senti-me triste por ter que me separar do príncipe bronzeado que lutava contra o sol. — Anime-se — disse ele, rindo da minha expressão melancólica. — Voltarei a tempo de liderar o segundo ataque contra o Senhor dos Vampixiitas. Vocês têm a minha palavra, e Vancha March nunca deixa de... — Ele fez uma pausa. — “March” ou “Harst” — refletiu o sujeito em voz alta, e depois cuspiu na sujeira que estava aos seus pés. — Pelas tripas de Charna! Já passei todo esse tempo como Vancha March... vai ficar assim mesmo. Saudando-nos, ele se virou abruptamente e começou a correr. Logo estava no maior pique. Até que, de repente, num piscar de olhos, atingiu velocidade de vôo e o perdemos de vista. — Então ficamos nós três — murmurou o Sr. Crepsley, olhando para Harkat e para mim. — De volta ao começo, como há seis anos — afirmei. — Mas naquela época tínhamos um destino — assinalou o pequenino. — Para onde vamos... desta vez? Olhei para o Sr. Crepsley em busca de uma resposta. Ele encolheu os ombros. — Podemos decidir mais tarde. Por enquanto, vamos simplesmente caminhar. Com nossas mochilas nas costas, contemplamos longamente o Circo dos Horrores pela última vez, encaramos a fria e indesejável escuridão, e seguimos em frente, deixando-nos cercar pelas forças do destino e pelos futuros terrores da noite.

 

 

                                                                                                    Darren Shan

 

 

 

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