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CAÇANDO O ANJO DA MORTE / Mariana Bettencourt
CAÇANDO O ANJO DA MORTE / Mariana Bettencourt

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAÇANDO O ANJO DA MORTE

 

Durante a epidemia de cólera de 1883, encontram-se em Alexandria duas equipas de microbiologistas: a francesa, de discípulos de Louis Pasteur, e a alemã, chefiada por Robert Koch. Embora irmanadas no objectivo comum de descobrir o agente da cólera, há entre as duas equipas uma forte rivalidade, devida, não só ao desejo de primazia no sucesso científico, mas também à animosidade entre representantes de duas grandes potências europeias que se tinham guerreado poucos anos antes.

Sobre este pano de fundo, Mariana Viana, médica com formação em microbiologia e grandes conhecimentos de História da Medicina, imagina um romance cândido, ou mesmo ingénuo, entre Gertrud Koch e Louis Thuillier. Mas este é apenas um pretexto para uma colorida e bem documentada descrição de Alexandria e dos problemas sanitários da época e, sobretudo, para relembrar o esforço duma plêiade de Homens que, nos finais do século XIX, criaram as bases da epidemiologia e da microbiologia científicas, cujos nomes ficaram indelevelmente ligados aos micróbios que descreveram e que, por vezes, pagaram com a vida o seu amor à Ciência e à Humanidade.

Que os puristas em matéria de história biografada das ciências me perdoem algumas pequenas liberdades que tomei com a exactidão dos factos, ao apropriar-me dum episódio da época mais heróica da microbiologia para o transformar num relato de amor.

Condensei num curto espaço de tempo diversas teorias fisiológicas e epidemiológicas que evoluíram ao longo do último quartel do século XIX e congreguei num mesmo momento e local várias figuras míticas das lides biomédicas. O romance entre a filha de Robert Koch e o assistente de Louis Pasteur é imaginário, mas procurei dar-lhe um mínimo de substrato. Julgo sobretudo não ter atraiçoado a memória daqueles que se dedicaram a elucidar os mistérios do sofrimento e da doença.

 

 

Menina, compra-me uns botõezinhos de jasmim?

Nessa tarde de Agosto do ano de 1883, ano que ficaria assinalado como aquele em que a cólera, surdindo da foz do Ganges onde era endémica, atingira o delta do Nilo e ameaçara difundir-se aos portos europeus e americanos, um menino escanzelado que vendia ramalhetes nos jardins em redor do palácio Montazah em Alexandria, para sustento do marabu quase centenário de quem era noviço, queixava-se ao santo ancião dos maus resultados obtidos.

- Abordei todos os casais ricos com que me cruzei, effendi - e abriu as mãos vazias, num desalento - mas, nada! Todos se escusavam, dizendo já ter gasto bom dinheiro no bazar e nesse peditório que os consulados dos países do Ocidente organizaram para recolher fundos destinados à investigação sobre a epidemia...

Acocorado sobre o seu tapete de orações, o marabu dedilhava as grossas contas de âmbar do seu rosário.

- Ah sim, a epidemia de cólera... Deus misericordioso já me concedeu a graça de sobreviver a três ou quatro. A última passou por aqui há mais de dez anos, quando foi aberto o canal de Suez. O mundo está a tornar-se pequeno, e as pragas espalham-se depressa a todos os continentes! Oxalá esses homens de ciência que os nossos governantes convidaram a vir estudar o fenómeno recebam alguma revelação!

Tal desejo místico-científico não impressionou porém o noviço, que necessitava descarregar contra quem quer que fosse o mau humor que a fome despertara nele.

- Mas, effendi, não são ridículos esses sábios infiéis que vieram a Alexandria estudar a cólera? Lutam entre si pela prioridade na descoberta de criaturas invisíveis, tal como os grandes senhores dos seus países, lá nas Europas, travam guerras por um império!

Finda a sua ladainha silenciosa, o marabu deu um sorvo lento ao copo de chá com menta que o mantinha desperto durante as suas meditações.

- Meu filho, todo o sufi reconhece que é uma empresa louvável ir além das aparências e conceder a importância devida às coisas que se poderiam tomar por insignificantes. Os senhores das nações agitam-se nos seus tronos, rivalizando na prepotência dos seus exércitos, e espalham a morte e a destruição. Esses homens de ciência rivalizam na descida às sarjetas em busca de criaturas invisíveis e poderão salvar multidões... É esse o princípio da sabedoria!

Acabrunhado, o discípulo deixou-se desabar sobre o tapete de orações.

- Se esse é o princípio da sabedoria, nem quero ouvir como será o fim, effendi!

- Nunca ninguém atinge o fim da sabedoria, meu filho, embora todos tenham o dever de caminhar sempre nessa direcção... Entretanto, para podermos continuar a nossa marcha, necessitamos comer! Vês aquela rapariguinha triste, junto à esfinge? Despacha-te! Talvez ela seja benevolente connosco!

De facto, uma rapariguinha, encostada a uma esfinge que ornava um maciço de tulipas, esforçava-se por conter as lágrimas. As vestes da jovem, embora de corte ocidental, evidenciavam modéstia de espírito e de posses materiais; o lenço que lhe retinha o chapéu sobre os cabelos ainda penteados num estilo infantil era do vulgar algodão riscadinho vendido no bazar Mancheya. E o motivo da sua aflição não era tanto a ameaça de epidemia, como o facto de esta ter agravado as quezílias dos seus pais, constantemente desavindos.

- Mais me valera ter nascido filha desse Louis Pasteur e da mulher dele que, segundo conta o doutor Roux, esperou pelo marido com orgulho quando este se demorou em redor dos tubos de ensaio no próprio dia do casamento; que o apoia apesar de ele sempre se ter negado a conseguir uma vida desafogada à custa do seu saber, e que lhe passa a limpo os relatórios das experiências - meditou, apoiando contra o flanco leonino de basalto o seu rosto inflamado pelo sol africano. Mas logo mordeu os lábios, gretados e sem pintura, arrependendo-se desta reflexão - Senhor, como posso pensar assim, eu que tenho por pai o maior sábio da Alemanha e do mundo! E quanto à minha mãe querida, apenas desejou para mim uma juventude mais farta...

- Menina, compra-me um fio de botõezinhos de jasmim? A cor das pétalas condiz lindamente com a da sua pele e o perfume espanta os demónios da tristeza que, segundo vejo, a estão a afligir!

A jovem ergueu os olhos marejados, deparando com a figura encarquilhada do noviço que exibia de entre as pregas do seu burel de asceta um açafate, do qual transbordavam grinaldas.

Apenas restavam algumas piastras na bolsinha da moça europeia, mas o rosto esfaimado do menino decidiu-a. Escolheu uma fiada de botõezinhos nacarados e, enquanto o pequeno vendedor se afastava com profusos salamaleques de agradecimento, aspirou o perfume do jasmim, revendo a sua infância.

Recordava ter enfiado um dia um colar semelhante, não certamente de jasmim, mas de florinhas campestres da sua Prússia natal. O seu pai, o bacteriologista Robert Koch, era então ainda um ignorado médico rural no povoado de Wollstein, na Silésia, região onde uma epidemia de carbúnculo empobrecia os mais abastados proprietários de gado. Na tarde recordada, Koch fora chamado a prestar assistência a um lavrador que após haver perdido todo o seu rebanho, fora ele próprio acometido por uma pneumonia fulminante. O médico havia deixado a filha, sua companheira inseparável, sentada num tronco de árvore, a boa distância do prado maldito onde tantos borregos e vitelos gordos tinham morrido, e a menina entretivera-se a examinar atentamente campainhas e margaridas com uma velha lupa, herdada de Birwend, seu bisavô paterno que já manifestava a tendência familiar, abafada pela pobreza, para a investigação. Mas a filha do sábio era também uma criança e findo o seu estudo meticuloso, fizera das flores um colar com que se engalanara. Acudia-lhe agora à memória, palavra por palavra, a discussão que se seguira ao regresso a casa, onde a mãe se atarefava na cozinha:

- Atira com esse colar, Gertrud, não te quero com ar de moça de quinta! E tu, Robert, não faças essa cara espantada por, mais uma vez, só termos batatas para a ceia! Terei eu culpa de que cada vez mais afastes os doentes com os teus modos agrestes? Já tinha sido assim em todas as aldeias onde exerceste anteriormente! E agora, quando finalmente começávamos a dar um rumo à vida, foste gastar as nossas economias a comprar ratos para as tuas experiências! A coisa de que mais arrependida estou é de te ter oferecido aquele maldito microscópio como prenda de anos... A princípio até te achava graça, mas agora é demais! Como é que se te meteu na cabeça descobrir os germes da cólera, do carbúnculo, da difteria, do tifo e da tísica! Tísicos morreremos nós, se continuas assim!

O sábio tivera um sorriso frouxo:

- Comei tu e a Gertrud... Eu estou deveras enfartado, passei toda a manhã a beber cerveja com o carniceiro da vila. Sabes bem que tanta familiaridade até nem está no meu feitio, mas preciso da estima do homem, quero que ele me forneça mais olhos de boi para os meus meios de cultura bacteriana!

A mulher fizera um molinete com o garfo, com que experimentava o grau de cozedura das batatas:

- Já estou a ver que pagaste as cervejas! E não tens vergonha de que a tua filha ande mais mal vestida do que a filha do marchante do talho? Preocupas-te mais com o bem-estar das tuas preciosas bactérias do que com o nosso!

Trémula, a pequena Gertrud depenicava folhas de salsa sobre as batatas, que esfregara desajeitadamente com um resto de manteiga. O pai mantinha-se firme nos seus propósitos:

- Emmy, estou no bom caminho! Consegui transmitir o carbúnculo introduzindo sangue do baço de reses mortas em incisões praticadas na cauda dos meus ratos. Cultivei os bastonetes do carbúnculo ao abrigo dos germes do ar, numa gota pendente entre duas lâminas de vidro. Observei como os bacilos, retirados da estafa, se transformam em esporos, e como estes se transformam de novo em bacilos, quando inoculados... Irei brevemente à Universidade de Breslau apresentar todas as etapas dos meus trabalhos. Se as minhas demonstrações forem convincentes, terei garantida a ajuda dos meus amigos, o professor de botânica Cohn e o professor de fisiologia Cohnheim, para poder prosseguir as minhas investigações com apoio oficial. Não desejo uma cátedra, não tenho a facilidade para elaborar frases brilhantes que faz a fama desse Pasteur e, habituado como estou ao trabalho solitário, faltar-me-ia tacto para lidar com assistentes. Mas ainda posso dispor dum laboratório modernamente apetrechado, no Instituto Imperial de Saúde, em plena Berlim!

- Exacto! E já estou a ver o Kaiser Guilherme em pessoa pespegar-te com uma condecoração no peito! Homem, não se vive de loas!

- Emmy, não ambiciono glórias mundanas. Aventuras sim, ambicionei nos meus tempos de estudante e de interno... Queria percorrer os mares entre arrecifes de coral, disparar contra os tigres do alto de elefantes criados por marajás, ser recebido por budas vivos nos mosteiros do Japão... Ainda quando Napoleão III declarou a guerra à Prússia, alistei-me como médico militar. Os meus doentes da aldeia de Rackwitz podiam achar-me pouco tratável, porém necessitavam dos meus serviços, esforçaram-se por persuadir as autoridades de que eu não tinha estofo para o exército, embora estivesse afeito a cavalgar no gelo e na lama para atender casos urgentes nas quintas mais remotas. Agora estou-lhes grato, pois compreendo que a busca do conhecimento sobre as causas da doença e da morte é um combate mais digno de consumir as nossas forças do que o travado no campo de batalha...

- Robert, tu sempre foste um pouco estranho! Desculpa que eu te diga, mas talvez tivesse sido melhor para ti permanecer no primeiro posto de médico que tiveste, naquele asilo de doidos em Hamburgo! Ao menos, estarias dentro do teu ambiente!

Num gesto absorto que exasperava a mulher, Koch limpou na aba do casaco os seus grossos óculos e fixou os olhos fatigados pelas infindáveis observações microscópicas, no pobre tacho de batatas, com a mesma expressão distante com que, do cais de Hamburgo, via desaparecer no horizonte pardacento do mar do Norte os navios em demanda da foz do rio da Prata, dos areais da Namíbia e dos mangues do Tanganika.

Os anos haviam passado, Koch impressionara favoravelmente o mundo académico com a proeza de realizar as primeiras fotografias de preparações microbianas e fora-lhe atribuído o tão honroso posto no Instituto Imperial de Saúde. Tivera ocasiões de conflito com a sua mulher, desesperada por ele gastar agora as batatas que restavam na despensa na confecção do meio sólido que inventara, permitindo cultivar isoladamente diversas espécies de micro-organismos. Granjeara a desconfiança dos aldeãos, alarmados pela sua reputação de nigromante. Num plano mais épico, rompera lanças com o próprio Pasteur (cujas técnicas de vacinação Koch considerava grosseiras e imprecisas, enquanto o químico francês censurava o médico alemão por este se perder em subtilezas de ciência pura, tardando em socorrer a humanidade necessitada). Gaffky e Lõffler, os assistentes de Koch, bastas razões teriam de sofrer com a irritabilidade do mestre! Gertrud sentia piedade pelas cobaias que o pai encerrara num casinhoto, onde eram bombardeadas com bacilos da tuberculose por intermédio duma mangueira proveniente do laboratório, mas estava consciente de que o pai arriscava a saúde no seu combate a tal flagelo...

Quando a cólera se declarara em Alexandria, as nações europeias haviam enviado os seus melhores homens de ciência fazer frente ao perigo, e Gertrud chorara, tanto de orgulho feliz como de aflição, ao saber que a equipa dirigida pelo pai fora escolhida em representação da Alemanha. Pasteur, já tendo sofrido um ataque de paralisia e presentemente assoberbado pelas suas investigações sobre a raiva, não poderia encabeçar a missão francesa, mas enviaria os seus seguidores mais perseverantes, guiados por Émile Roux, discípulo cuja fidelidade raiava o fanatismo...

Na véspera da partida, Gertrud correra ao laboratório, onde o pai acondicionava amorosamente o seu microscópio. A mãe precedera-a e, estacando ofegante nas escadas do edifício, Gertrud escutara a altercação:

- Emmy, pensei que aprovasses a minha ida... Nem que fosse só pelos cem mil marcos que o governo me prometeu!

- Isso! Cem mil marcos que hão-de engordar as tuas bactérias! Tanto quanto me importo, podes acabar nos limos do Nilo e ter uma pirâmide construída em tua memória!

Gertrud lançara-se:

- vou com o pai! Vai ser uma grande aventura, uma aventura como o pai sempre sonhou! - com um sorriso desarmante à intenção da mãe, acrescentara - E eu queria ver esse Egipto onde tiveram lugar tantas das histórias da Bíblia que a mãe me contou...

Koch passara os dedos ásperos pelo queixo da filha, obrigando esta a encará-lo de frente.

- No último congresso a que assisti, em Genebra, fui desafiado pelo Pasteur... Continua com os seus belos discursos do costume, sempre naquela pujança de salvador do género humano... Mas de resto muito abatido, coitado! A vida não o tem poupado a desgostos. É só pensar que já enterrou três filhas... Palavra que tive pena do franciú, apesar dos nossos diferendos! Só que o Pasteur tem outra filha e um filho para o amparar na velhice e eu não tenho outro amparo senão o teu, Gertrud. Não te posso arriscar numa viagem destas! É insensato que vás. As notícias chegadas do Cairo relatam que estão a morrer quinhentas pessoas por dia! Já vi morrer doentes de cólera, nos navios em quarentena no porto de Hamburgo, e posso dizer-te que é um espectáculo degradante. Como admitiria que te expusesses a igual situação? É verdade que há já trinta anos, o médico inglês John Snow levou a cabo inquéritos epidemiológicos, relativos a surtos localizados da doença em determinadas ruas de Londres com abastecimento de água comum. Desde então, muito se esclareceu sobre as vias de transmissão da doença e logo sobre a sua prevenção. Mas ainda se ouvem vozes discordantes. Por exemplo, o Prof. Pettenkoffer, o grande higienista que conseguiu transformar Munique numa das cidades mais saudáveis da Europa, sempre sustentou que a eclosão e difusão das epidemias de cólera depende essencialmente de determinadas características dos solos... É natural que uma doença que escassas horas após o aparecimento dos primeiros sintomas pode matar um homem vigoroso, ponha graves interrogações. Ainda se ignora o seu tempo de incubação, e é bem provável que o microrganismo causal possa ser disseminado por pessoas aparentemente saudáveis...

Gertrud escutava atentamente a exposição nosológica, mas o desespero da mãe ia crescendo.

- Homem, deixa-te de lucubrações científicas! Dizes à Gertrud que não vai, e acabou-se! Também, como fui eu arranjar uma filha dum desalmado como tu? Se o pai fosse esse Pasteur, talvez me tivesse saído mais sensata! O francês também ama a ciência, mas não faz dela um ídolo, acima das obrigações para com a família!

Koch cravara duramente os olhos no chão. Como a sua Emmy sabia humilhá-lo! Por quanto tempo mais ele a suportaria? Mas feria-o reconhecer que, neste caso, os sentimentos de revolta da sua mulher eram perfeitamente justificados... Gertrud contemplara a mãe com uma suave repreensão.

- Nenhuma das filhas do Pasteur abandonaria o pai numa situação destas! Quem lhe preparará com higiene o café da manhã? Quem lhe trará a bata passada a ferro? Segundo tenho visto nos jornais, a epidemia já se espalhou ao sul da Rússia e uma vez passado o Mediterrâneo oriental, pouco tardará que comecem a aparecer casos por toda a costa do golfo da Biscaia. A este passo, a nossa terra poderá também ser dizimada! Se devo morrer, que seja ao lado do meu pai!

Enfeitiçado, Koch pegara na filha ao colo:

- Bem, temos uma colónia influente em Alexandria... Os nossos compatriotas banqueiros e empresários poderiam desprezar a filha dum pobre sábio mas, dada a minha qualidade de enviado do nosso Governo, talvez até se esmerem em atenções por ti!

Assim, Gertrud soubera impor a sua vontade... E agora, para acalmar as lembranças que assim lhe acorriam em tropel, procurou concentrar a sua atenção no ambiente que a rodeava.

Engraxadores de sapatos e cauteleiros rivalizavam na sonoridade dos seus pregões. Vendedores de pão com cominhos faziam fumegar os seus fogareiros, abanando as brasas com folhas de plátano. Fotógrafos profissionais convidavam as elegantes de sombrinha a posarem junto aos vestígios da antiguidade. Marujos de folga faziam comentários jocosos em frente aos cartazes publicitando as estrelas da cena internacional que se exibiam no teatro de Zinzina e na ópera da Alhambra. Do meio dum grupo de condutores de caleches (tantas vezes transformadas em locais de encontros amorosos ilegítimos), que engalanavam de borlas os seus cavalos para os passeios ao longo do canal Mamoudieh, destacou-se então um homem, aparentando pouco mais de vinte e cinco anos (a julgar pelo desembaraço dos seus movimentos) embuçado num albornoz traçado sem arte sobre a túnica de listas desbotadas, e saudando profusamente a filha de Koch numa algaraviada de árabe, turco, grego, italiano e francês.

- Senhora estrangeira, mais radiosa do que as ninfas do jardim do Paraíso e mais inalcançável na tua virtude do que as gazelas do deserto! Permite que este pobre te sirva de guia nesta cidade de prodígios, e os sete profetas de Deus te cobrirão de bênçãos! Que Adão se regozije perante ti como diante da primeira mulher criada da sua carne e do seu osso! Que Noé te abrigue de todas as tempestades, como abrigou a sua esposa na arca! Que Abraão vele sobre ti, como velou sobre Sara na corte de faraó! Que Moisés te defenda, como defendeu as filhas de Jetro dos pastores midianitas! Que David arrependido afaste de ti os poderosos que pretendam causar-te mágoa, como ele causou a Betsabé! Que Jesus te sente à direita de sua mãe bendita, e que Maomé te faça alegrar-te na companhia da sua filha querida!

A jovem baixou sisudamente os olhos, para desencorajar tal homem de a importunar. Mas o espírito observador que seu pai cultivara nela fez-lhe notar algo de singular nas mãos estendidas do caçador de turistas: as mãos eram as dum homem dedicado a trabalhos insalubres, ressequidas e negras como as de qualquer humilde felá, porém as unhas apresentavam-se - mais do que as unhas da própria rapariga - aparadas, limadas e escrupulosamente limpas. Num relance, Gertrud reconheceu o doutor Louis Ferdinand Thuillier, membro da delegação francesa de combate à epidemia e que, embora sendo o assistente mais novato de Pasteur, já se tornara notado pelo entusiasmo com que acompanhara os bacteriologistas Roux e Chamberland pela Europa, no decurso duma agitada campanha de vacinação do gado contra o carbúnculo.

 

Lembra-te de Pasteur quando beberes a tua imperial!

Thuillier e Gertrud haviam-se visto pela primeira vez na primavera do ano anterior, sob a luz baça dum frio corredor no Instituto Imperial de Saúde. O mais prometedor assistente de Pasteur fora designado por este para demonstrar perante os cépticos da Escola Veterinária de Berlim a eficácia da vacina contra o carbúnculo desenvolvida em França...

Então, o jovem investigador trazia as botas enlameadas de ter calcorreado os pastos e conservava no fato um cheiro a feno molhado. De aspecto abatido, enrolava entre os dedos um cigarrito do fino tabaco das Antilhas francesas, numa tentativa de esquecer os tormentos que passara ao longo de todo o dia, dia em que morrera mais uma bezerra vacinada por sua mão. Ainda sentia pesar sobre si os olhares de escárnio dos professores da Escola Veterinária e o resfolgar daqueles rudes camponeses de Brandenburgo, que facilmente se convenceriam de que o francês lhes procurava envenenar os rebanhos. Para agravar o despeito do discípulo de Pasteur, corria o boato de que Koch conseguira uma façanha clamorosa com a descoberta do bacilo da tuberculose, a mais mortífera doença desde o início da Revolução Industrial. Recordava-se dos termos em que Pasteur, com um fulgor severo nos olhos de pálpebras opadas, lhe dera as despedidas:

- Desejo-lhe uma viagem sem sobressaltos, Thuillier. Achará os comboios alemães mais confortáveis do que os nossos; esses malandros tratam-se bem. Mas enviei as vacinas pela mala diplomática; sei lá que tropelias poderiam armar com elas os fiscais da alfândega... Conforme eu expliquei ao nosso Embaixador em Berlim, cabe-nos ganhar uma vitória histórica e decisiva. Informe-nos regularmente, a mim ou ao primeiro assistente Chamberland, dos seus avanços. Conto consigo para convencer o Koch, esse grandecíssimo... - e Pasteur havia rebuscado na rica literatura francesa uma frase que descrevesse condignamente o rival - esse grandecíssimo impertinente nos seus erros, conforme a expressão do filósofo Pascal, e que não se quer admitir tributário da nossa ciência... Isto é, que digo eu! A ciência pertence a toda a Humanidade... Mas foram os franceses que primeiro desbravaram os caminhos da microbiologia, e qualquer alemão obtuso deverá reconhecer isso!

Ora se efectivamente cabia agora a Koch uma descoberta de tal alcance, não seria fácil levá-lo a curvar-se perante o pioneirismo dos franceses... Fora neste estado de desânimo que Gertrud viera encontrar Thuillier.

- O Sr. aguarda alguma coisa?

Thuillier desculpara-se do seu mau uso da língua alemã, mas a frase que se seguiu não manifestou a mesma humildade.

- Espero ser recebido pelo vosso Director. Consta que o Dr. Koch teria descoberto o bacilo da tuberculose e meu mestre Pasteur pediu-me para verificar isso com os meus próprios olhos!

Gertrud estudara demoradamente o jovem francês, procurando decidir se este era digno de contemplar o bacilo da tuberculose que pai Koch pusera em evidência, e formara finalmente uma opinião favorável. Por seu lado, Thuillier tentava não desmentir a cortesia francesa perante aquela mocinha a quem um corpete de campónia afogava os contornos ainda infantis do peito. Embora esta não tivesse o requinte das parisienses, sempre era mais agradável de observar do que uma bezerra moribunda...

- Os trabalhos ainda não foram publicados, mas o meu pai terá todo o gosto em lhe apresentar os resultados em primeira mão, Dr. Thuillier! Sim, porque eu sou a filha do Dr. Koch - acrescentara, notando a surpresa do francês - E o Sr. é o Dr. Thuillier, não é assim? O meu pai tem-me falado muito de si, da sua persistência em provar que as vossas vacinas induzem defesas contra o carbúnculo e não apresentam qualquer perigo. Gabo o seu empenho, Dr. Thuillier! O meu pai conseguiu algumas doses das vossas vacinas, e descobriu que o lote mais atenuado, que devia matar ratinhos mas não cobaias, não matava qualquer ratinho, com excepção de algumas amostras que matavam igualmente carneiros; o lote seguinte, que devia matar cobaias mas não coelhos, matava bem frequentemente os coelhos e por vezes também os carneiros... Descobriu ainda que além do bacilo do carbúnculo manter a sua virulência, os vossos meios líquidos de cultura estão longe de poder garantir uma vacina livre de contaminações!

Thuillier começara a conversa com diplomacia, mas dificilmente conseguia agora reprimir o seu desejo de dar palmadas naquela garota.

- Acontece que as vossas raças de gado são bem mais sensíveis ao carbúnculo do que as francesas... E vocês ainda falam da vossa superioridade!

- Sem esquecer que nenhuma vaca francesa deixaria ficar mal o bom Pasteur! - rira sonoramente Gertrud, numa provocação que mais enfurecera o francês.

- Não foi só em França que tivemos sucesso! Todo o Império Austro-Húngaro se mostrou convencido... Em Budapeste, puseram à nossa disposição quaisquer instalações e equipamentos de que necessitássemos. Após a demonstração que eu fiz da eficácia da nossa vacina em Kapuvar (isto apesar das trepidações da viagem terem perturbado o depósito dos nossos caldos de cultura) um proprietário pediu-me que vacinasse os seus quinze mil carneiros! Quinze mil carneiros, imagine! Coisa que me vi bem atrapalhado para fazer, dado que a nossa vacina não poderia ser produzida localmente... Não que Pasteur quisesse conservar secreto o modo de fabrico para daí tirar lucro, mas era necessário impedir que a nossa vacina se tornasse um trunfo numa vergonhosa guerra comercial como a que tem lugar entre o Império Austro-Húngaro, o Império Russo e o vosso Reich. Em qualquer caso, fosse por gratidão ou para mais facilmente nos arrancar informações quanto à fabricação da vacina, os próprios membros do governo, entre os quais antigos inimigos da França, nos receberam com pompa, reconhecendo que a maior gala duma nação não deve estar no seu poder militar, mas nos seus homens de laboratório! Agora, resta-me convencer o seu pai... Não sei se me sobrará paciência. Os intervalos entre a administração de cada dose de vacina são prolongados e obrigam-me a este exílio que já me impacienta...

Gertrud olhara criticamente o maço de cigarros que o rapaz se entretinha a enrolar.

- É natural que se aborreça, se não tem uma maneira mais útil de ocupar o seu tempo!

O jovem francês reprimira um impropério. Pasteur, tão avesso a qualquer vício, não tolerava que os assistentes usassem tabaco em sua presença e Thuillier já se habituara às chamadas de atenção do Mestre; porém, não aceitaria comentários da parte desta miúda!

- Que mais há para fazer, nesta pocilga de cidade?

Gertrud, embora criada nos vastos horizontes dos campos junto ao Oder, não podia deixar passar tal desrespeito para com a capital da sua nação, onde o seu pai tanto ambicionara trabalhar para o engrandecimento do saber germânico.

- Berlim não é uma pocilga! É verdade que é a cidade mais densamente povoada da Europa, e que um em cada dois operários passa privações; por isso temos tantos problemas de saúde pública - admitiu, recordando-se dos números que ouvira ao Prof. Virchow, quando este discutira com Koch as causas sociais das doenças - Mas não me venha dizer que em Paris não há muita miséria escondida!

- Decerto. Mas Paris é mais harmoniosa; uma cidade à escala do Homem! Aqui, mesmo os vossos monumentos mais afamados são duma vulgaridade opressiva!

- Berlim tem tantas tradições culturais como Paris. Os nossos museus, onde estão as obras de arte antiga que os nossos arqueólogos escavaram, valem bem o vosso Louvre. Napoleão I decerto pensava assim, ele que escolheu lá a sua parte do saque, depois de nos ter derrotado na batalha de Iena!

Amuado, Thuillier chupou o seu cigarro apagado.

- O nosso imperador lá saberia, mas eu é que estou sem pachorra para ver pedras velhas. Sinto-me indisposto; a vossa comida não me cai bem, e a bebida não a torna mais tragável!

- Ah, sim! Talvez o Dr. Thuillier prefira daquelas bebidas a martelo que seu mestre Pasteur fabrica!

- Pasteur nunca fabricou disso! Cresceu a pisar as uvas dos flancos do Jura; o cheiro a mosto era das recordações mais gratas da sua infância. Apenas quis dar um suporte científico a algumas das nossas indústrias tradicionais... O que acabou fazendo, na sequência das suas discussões com aquele vosso compatriota, aquele que compôs as rações de combate para os vossos soldados, o químico Leibig, sobre o papel das leveduras na fermentação... Para levantar a nossa indústria cervejeira em decadência depois da perda da Alsácia e da Lorena, Pasteur desenvolveu uma técnica de conservar as culturas de leveduras isentas de contaminação. Dir-me-á que tal não basta para fazer uma boa cerveja; perfeito, Pasteur não tardou a aperceber-se disso! Mas lá fomos conseguindo aperfeiçoar o produto... Não assisti a essas descobertas; isto passou-se antes de eu entrar para o laboratório. Mas os meus colegas que lá estavam nessa altura asseguram-me que foi uma época muito divertida! O próprio Pasteur, habitualmente tão taciturno, trauteava por vezes as canções de taberna dos velhos soldados da sua terra, seguro de que, com a ajuda da Ciência, vingaria a Pátria!

A querela patriotico-científica tomara um carácter prazenteiro, e foi com um sorriso de cumplicidade que Gertrud propôs:

- Posso arranjar-lhe uma infusão de hortelã; era a receita das antigas germanas para acalmar o estômago dos guerreiros, depois dos festins. Não terá o bom sabor da vingança que tem a cerveja de Pasteur, mas talvez lhe faça bem...

E sem dar tempo a Thuillier para replicar, a filha de Koch escapulira-se a cumprir a promessa, voltando pouco depois com uma caçoula fumegante. Curvando-se para servir o rapaz, Gertrud roçara involuntariamente pela face deste o seu ombro de mulher goda, habituada a conter os ânimos de heróis embriagados, e Thuillier surpreendera-se a pensar que ainda mais agradável do que o calor da infusão era o suave calor do corpo da moça... No entanto, a voz pausada de Koch, surdido inoportunamente da porta do seu gabinete, não o deixara levar mais longe tais considerações.

- Não importunes o nosso hóspede, Gertrud! - e exibindo as placas fotográficas que acabava de revelar, Koch prosseguira - Observe, Dr. Thuillier! A partir de cortes dum foco caseoso, obtive imagens magníficas que, segundo espero, convencerão o seu Mestre! Vê esses bacilos filamentosos, com um comprimento entre um quarto a metade do diâmetro dum glóbulo vermelho? Assemelham-se marcadamente aos bacilos que o norueguês Hansen considerou como causadores da lepra, embora mais esguios, com extremidades mais afiladas. Repare que alguns se encontram isolados e outros em feixes, ou como que entrançados entre si. Há-os também intracelulares, englobados por células gigantes situadas em redor da lesão, células que julgo serem análogas às que se formam por reacção à presença de corpos estranhos, conforme descrito por Friedlander. Se esta fosse uma lesão antiga, dominada pelas defesas do organismo, os bacilos apenas se encontrariam no interior dessas células, e as suas propriedades tinturiais estariam alteradas. Notam-se diferenças na intensidade de coloração, visualizadas como estruturas ovaladas dispostas a intervalos regulares no interior de alguns bacilos, ainda que nos tons de cinzento da fotografia o fenómeno não seja tão evidente como nas preparações coradas. Suponho que essas estruturas possam corresponder a esporos, embora seja singular que estes se formem dentro do organismo vivo...

Escutando apenas a meias a profusa descrição morfológica que Koch lhe fazia dos seus recentes achados, Thuillier ainda espreitava a filha do sábio, divertindo-se com aquela brutidão ingénua e comentando para si que Gertrud combinava a solidez e a singeleza atribuídas às mulheres germânicas. Contudo, o seu olhar de parisiense audaz depressa encontrara o olhar suspeitoso com que Koch o fitava por cima dos finos aros de ouro dos óculos.

- Ah, Dr. Thuillier! A minha filha é a única coisa que eu amo mais do que o meu trabalho. Devo confessar que me tenho descuidado um pouco dela, desde que empreendi os meus estudos sobre o bacilo da tuberculose. Afortunadamente, a rapaziada cá do Instituto já aprendeu a respeitá-la, e a ensinar os outros a que façam o mesmo...

Thuillier concentrara-se prontamente no estudo das imagens do presumível agente da tuberculose, procurando firmar a sua voz.

- Estes documentos são certamente únicos, Dr. Koch! Se o Sr. Dr. tivesse a amabilidade de me mostrar o aspecto destes organismos nas culturas em meios sólidos... Como no nosso laboratório apenas dispomos de meios líquidos, creio que Pasteur estaria particularmente interessado em conhecer as vantagens dos novos meios que o Dr. Koch introduziu!

Lisonjeado, Koch dispusera-se a aceder ao pedido do jovem francês, e a questão morrera ali. Mas, quando após ter telegrafado para Pasteur o resultado das suas indagações, Thuillier pudera finalmente saborear o seu cigarrito com os devidos vagares, enumerara para si os singelos encantos que havia encontrado em Gertrud e Berlim já não lhe parecera uma cidade tão odiosa!

 

O laboratório e a capela

Obviamente, Thuillier não relatara a Pasteur a doce recordação que lhe deixara a filha do rival. Não se confidenciara nem mesmo a Chamberland, com o qual, na qualidade deste como primeiro assistente, tinha bem mais familiaridade. Por isso, a simpatia que desde então despontara entre os dois jovens havia permanecido secreta. E agora, naquele jardim de Alexandria, dando passos lentos à sombra dum perseá cujas folhas em forma de coração coavam a luz gloriosa do poente, Gertrud desviava os olhos para os tabuleiros de pistácios caramelados e as luzidias tigelas de refresco de alcaçuz que os últimos feirantes do bazar propunham aos transeuntes.

- Louis, estás maluco? Não convém que nos vejam juntos! Sabes melhor do que eu que o meu pai e o teu mestre encaram a ciência de modo bem diferente e, como se não bastassem ressentimentos de sábios, as memórias da guerra entre os nossos países ainda estão frescas...

- Pois! O amor é como a chama dum bico de Bunsen que quanto mais intensa, menos se pode ver! Por isso adoptei este disfarce... De resto, eu sempre fui maluco, Gertrud, e era preciso sê-lo para aceitar esta missão! Hoje coube-me ir, com uma gaiola daquelas galinhas que eu contava usar como modelo animal da fisiopatologia da cólera, recolher tecidos de cadáveres aos casebres mais imundos, àqueles bairros de lata onde nem os janízeros do quédive se atreviam a entrar! Calcula que até me quiseram roubar as galinhas, mesmo aquelas que o Roux já tinha inoculado com material infeccioso... Comparada com esta, a minha tarefa de ontem, uma digressão pelas latrinas da cidade, foi agradabilíssima! Vezes sem conta repeti para mim mesmo a frase do químico Lavoisier, que Pasteur tanto gosta de citar, e que proclama que nenhum trabalho é repugnante quando está em causa o conhecimento ao serviço da humanidade. Claro está que Pasteur, sendo filho dum curtidor de peles, não se deixaria afugentar pelos cheiros mais pestilentos e tento mostrar-me digno do meu mestre. Mas sou jovem, o mais jovem dos microbiologistas da Europa, e por isso quero cantar a vida! Quero cantá-la contigo, embora as nossas nações sejam inimigas, e quero que travemos de mãos dadas a nossa luta contra o sofrimento. Porque te amo, Gertrud, e todas as atrocidades que os nossos governantes possam cometer nunca irão alterar isso!

Embora Thuillier fosse efectivamente o mais jovem dos microbiologistas da Europa, uns dez anos o separavam de Gertrud que mal saíra da adolescência. No entanto, esta parecia a mais velha, dando o suspiro paciente duma mãe que procura acalmar o filho delirante de febre.

- Deves estar exausto. Toma um desses banhos turcos que ajudam a eliminar as toxinas e vai para o hotel, dormir um bom sono...

- Não poderia ir agora aos banhos públicos; têm um tapete pendurado à porta, indicando que está na hora reservada às mulheres. Dormir seria ajuizado, mas não quero ter juízo. O meu chefe Émile Roux e os assistentes do teu pai também se esforçaram todo o dia em prol do progresso da ciência e do alívio da humanidade. No entanto, posso apostar que estão agora no casino de San Stephano embasbacados diante duma dança do ventre. Não estou a criticar ninguém; todos atingimos o nosso limiar de saturação, mesmo sob condições normais de pressão e temperatura... Só quero dizer que também eu tenho o direito de agir como me apetece, de vez em quando! Uma patrulha de soldados ingleses havia moderado o seu passo militar para gozar a aragem marítima, cuja frescura era canalizada pelas avenidas de traçado rectilíneo herdado dos arquitectos helenísticos, e os soldados consideravam intrigados aquela conversa familiar entre a jovem europeia e o pretenso guia egípcio. Para disfarçar, Gertrud depôs na mão de Thuillier a sua última moeda, como que acedendo ao pedido dum bacshish, mas os seus dedos demoraram-se involuntariamente na palma queimada pelos banhos antisépticos com bicloreto de mercúrio.

- Louis, a situação já é suficientemente penosa, sem que a agravemos mais com as nossas fantasias. O meu pai e os teus colegas franceses conseguiram um nível razoável de colaboração científica no combate à epidemia. Não queiramos deitar isso a perder com um enredo romanesco!

- O teu pai cumpre o juramento de Hipócrates e, embora pudesse ter imenso gosto em fazer a minha autópsia, não me irá amarrar à boca dum canhão Krupp. Mestre Pasteur é arrebatado mas sensato; pode esbravejar, declarando-me indigno da pátria francesa por ter cedido aos bárbaros encantos da filha dum "huno", como os bem-pensantes da minha terra apelidam os alemães; porém, aprecia o meu trabalho e não me reservará pior sorte do que cuidar dos cães raivosos do laboratório, sorte que já me caberia como seu assistente mais jovem. E quanto à colaboração científica neste campo, talvez já não seja indispensável por muito mais tempo. A epidemia começou a recuar e, de resto, observei hoje preparações de sangue nas quais se vêem umas imagens, que talvez correspondam ao agente da cólera...

Gertrud Koch já não escutava as palavras do Dr. Thuillier. Considerava os cabelos deste, empastados pelo suor sob as faixas meio soltas do turbante, e sentia uma ânsia feminina de os pentear, com o mesmo penteado severo e quase marcial que fazia ao seu pai. As noites no laboratório haviam cercado os olhos de Thuillier de pisaduras roxas; a barba crescida tornava-lhe rude o rosto fino de intelectual. Vestido com o fato alvadio de colarinho engomado que era o traje dos europeus respeitáveis nas esplanadas de Alexandria, tomaria um aspecto de indizível desmazelo. Mas, naquelas vestes bíblicas, o membro mais jovem da equipa de Pasteur ganhava uma aura de discípulo predilecto, ufano de sujar a sua túnica com a poeira de todos os caminhos para levar ao longe a mensagem do Mestre. Havia nele uma inocência primordial; era como uma barra do melhor aço que um ferreiro estivesse remexendo na forja, hesitando ainda entre transformá-la numa espada ou num arado. Thuillier concluía:

- Proponho ir ao longo da cornija desde a mesquita de Abou elAbbas até ao forte Quaitbay, o local do antigo farol... Os minaretes formam um espectáculo magnífico contra o céu do sol-pôr e o Mediterrâneo está esplêndido, dum dourado translúcido, com laivos de verde forte...

- Posso imaginar. Os minaretes destacam-se em tons de violeta de metilo sobre a cor de fucsina do céu, e o Mediterrâneo parece um caldo de peptonas, a que se esteja misturando pó de malaquite! comentou compenetradamente Gertrud, num tom de aluna aplicada recordando-se dos produtos usados no laboratório.

- Pronto, pronto, não precisas de troçar do meu romantismo! Thuillier enterrou os punhos nas cavas da sua túnica, num gesto

de enfado que lhe desnudou um pouco o peito, deixando a descoberto uma medalhinha presa num fio. Esta representava a imagem duma Virgem das Graças abrindo os braços num gesto acolhedor enquanto esmagava a cabeça de Satanás, imagem supostamente aparecida a uma Irmã da Caridade num dispensário parisiense e cujo socorro sobrenatural tantos soldados franceses haviam implorado durante a guerra com os prussianos.

- Devias esconder isso, se queres continuar no teu papel de guia egípcio... - segredou Gertrud.

Thuillier apressou-se a ocultar a medalha sob a gola da túnica, mas fê-lo com um gesto repassado de respeito que despertou em Gertrud uma curiosidade filosófica, aliada ao gosto pelas discussões teológicas herdada de seu avô materno, ministro da Igreja Evangélica.

- Peço-te, por favor, que não te ofendas com a minha perguntaMas estou a lembrar-me dum comentário de Rudolf Virchow, o grande patologista de Berlim, cuja consideração o meu pai tanto se esforçou por ganhar... Virchow, apesar de ter dirigido os serviços de assistência sanitária ao exército prussiano, opôs-se abertamente à política belicista de Bismarck; sendo ele próprio de origem eslava e não germânica, sempre lutou para que todos os homens fossem respeitados, independentemente de considerações sociais ou étnicas. No entanto, afirmou certa vez que a França era um país primitivo, por lá ainda haver quem acreditasse em milagres. E tu, estás mesmo persuadido de que essa medalha tem algum poder especial?

Pelas alamedas, passavam dignos devotos muçulmanos ostentando o seu fez vermelho, corriam crianças coptas com uma cruzinha tatuada no pulso, atardavam-se peregrinos católicos e protestantes em escala para a Terra Santa. Thuillier sorriu, tentando organizar os seus pensamentos.

Gertrud tinha a mesma encantadora gravidade do primeiro dia em que ele a revira, pouco depois da chegada das diversas missões científicas europeias a Alexandria. Era domingo; Thuillier escoltara o seu chefe Roux que, disposto a enfrentar como francês cavalheiresco aqueles alemães de intenções suspeitas, fora discutir com Koch uma estratégia comum face à epidemia. Os rivais haviam-se encarado no larguinho sombreado de tamargueiras frente à igrejinha onde se congregavam tantos membros eminentes da comunidade alemã. Mas Thuillier pouco atendera à troca científica de galhardetes, logo atraído pela voz clara e forte duma jovem que na penumbra da capela, cantava o conhecido hino de Lutero, "O nosso Deus é uma muralha firme..." Como que a pretexto duma inspecção sanitária às vasilhas de água de rosas confeitadas vendidas por um felá andrajoso a um canto do largo, Thuillier postara-se em posição de poder estudar a cantora, logo que ela terminasse o seu louvor divino. E assim contemplara Gertrud... Como esta amadurecera! Aquela que entre a névoa pardacenta das indústrias pesadas de Berlim lhe parecera apenas uma criança travessa, tornava-se numa daquelas visões nascidas do calor das terras do Nilo, que desde sempre haviam distraído os filósofos da busca das verdades da Ciência, e os eremitas da busca das verdades da Fé. Os cabelos tocados pela luz violenta do céu egípcio brilhavam com um reflexo vivo em redor das feições brancas e harmoniosamente cheias. Considerando a compostura com que a jovem segurava a Bíblia contra o peito, Thuillier não pudera senão recordar-se da frase dos Cantares de Salomão: "bela como a lua, fulgente como o sol, temível como um exército em linha de batalha..." e esta frase dum poeta hebreu, que os místicos católicos haviam adaptado à Mãe de Deus, parecera-lhe descrever aquela luterana de raça germânica... Afortunadamente, o pai da jovem, expondo com uma autoridade calma os seus planos de trabalho, não reparara nas faces esbraseadas do moço francês, e Roux, que escutava o adversário com expressão crítica, chamara prontamente à ordem o seu subordinado: "Thuillier, aproxime-se! Esta conversa também lhe diz respeito!"... Gertrud contemplara com curiosidade o chefe da missão francesa, cujo rosto agradável de traços muito delicados,, formava um tão flagrante contraste com a expressão acerba de Koch. Só depois reparara em Thuillier que regressava de má vontade ao flanco de Roux. Os olhares dos dois jovens haviam-se encontrado e Gertrud sentira o sangue fluir com mais força fantasiando confusamente, nas suas reminiscências dos relatos bíblicos que fora talvez assim que o alegre e valoroso David, com a sua harpa e as suas pobres armas de pastor, primeiro contemplara a princesa Mical, filha de seu inimigo Saul...

Agora, Thuillier procurava instruir a sua Noiva dos Cantares na visão do mundo que Pasteur lhe transmitira.

- Nunca te levaria a mal, Gertrud! Pasteur ensina que, ao abrirmos a porta do laboratório, devemos fechar a porta da capela. Suponho que o mestre quererá dizer com isso que nem as nossas convicções mais íntimas devem interferir com a nossa busca objectiva de factos palpáveis. Mas tenho observado como o próprio Pasteur considera que os homens de ciência são como meninos pequenos, abalançando-se à descoberta do vasto mundo, porém necessitando às vezes de correr para a segurança do regaço materno, seu primeiro ponto de referência. Por isso, sem me ter a mim próprio por devoto, eu aprecio esta medalha. E estimo-a tanto mais, porque foi a própria mulher de Mestre Pasteur quem ma ofereceu. O seu filho, sargento do exército francês, trazia esta medalha quando combateu durante a retirada das tropas do general Bourbaki, e assim superou os instantes em que tudo parecia perdido. Quando eu fui escolhido para esta liça científica em que além da epidemia, teria de defrontar os teus compatriotas, a Sra. Pasteur quis que eu pudesse beneficiar da mesma protecção...

Um brilhozinho malicioso animou o olhar de Gertrud.

- E não temes que a Virgem Milagrosa te retire o seu auxílio, vendo o teu amor por esta prussiana?

- Ora! Havíamos de invocar a protecção celeste na guerra e ter remorsos de recorrer a ela no amor? Aí sim, o doutor Virchow e os outros apoiantes do Naturalismo Positivista teriam perfeita razão em considerar a religião uma coisa absurda! E isto recorda-me que te trouxe um presente...

Desembrulhando um quadrado de papel de seda, Thuillier exibiu um pequeno talismã, talhado em jaspe sanguíneo.

- Os antigos egípcios chamavam a este símbolo "a chave da vida"; veneraram-no desde os tempos pré-históricos, antes de que o faraó Narmer tivesse unificado os reinos do Delta e do Vale. Quem me vendeu esta peça, o mais refinado antiquário dos souks de Alexandria, garantiu-me que a havia encontrado no decurso de uma escavação debaixo da rua Soma, onde segundo alguns estudiosos estaria situado o túmulo de Alexandre Magno. Não te posso afirmar que esta jóia provenha ao túmulo de Alexandre, mas posso dizer-te o seguinte: quando os sábios da antiguidade procuraram desenvolver o pensamento científico, adoptaram por seu este símbolo, esculpido nas paredes da Biblioteca de Alexandria. Mais tarde, quando os santos cristãos tentaram suplantar a cultura pagã, que não havia tido em conta os excluídos da sociedade, fizeram desta "chave da vida" o seu troféu. Por isso, Gertrud, quando usares esta jóia terás a teu lado a força de todos os paladinos da Ciência e de todos os heróis da Fé! Deus, ou como queiras chamar ao poder que fez surgir a vida da matéria inerte e nos concedeu a inteligência, há-de resguardar-te daqueles que usam a inteligência para o mal e nada terás a temer, pois se com um poder militar como o de Alexandre se pode conquistar um império na Terra, com o raciocínio científico unido à caridade cristã pode-se conquistar o Universo!

E como a alameda se encontrava momentaneamente deserta, Thuillier pendurou a "chave da vida" entre as flores de jasmim que ornavam o pescoço de Gertrud, e esta ruboresceu de prazer.

- Erraste na tua vocação, Louis Ferdinand! Terias feito fortuna como mercador de relíquias!

 

As libras fazem sempre jeito!

Tal como previsto por Thuillier, o doutor Roux, de gravata de cetim, jogava nesse momento uma cerrada partida de cartas numa mesa do casino. No palco evoluía uma dançarina, fazendo ondular a sua cintura flexível entre o corpete recamado de pérolas do golfo de Omã e a vaporosa saia, com reflexos de todas as pedras raras que se extraem nas costas do Mar Vermelho. Avisadamente, Roux mantinha-se de costas para a dançarina, concentrando-se no seu leque de cartas, mas o seu oponente Paul Ehrlich, mordendo furiosamente o charuto para ocultar a sua perturbação, não conseguia desviar os olhos dos cabelos de azeviche, alongados pelo peso de discos de ouro.

- Dois ases e um rei, Dr. Ehrlich! Deve-me dez libras!

Ehrlich rosnou uma maldição em latim (pois embora nutrisse o audacioso projecto de reformular toda a ciência química, era sempre em latim que exprimia as suas emoções violentas, como o mais clássico dos alquimistas medievais) seguida dum ataque de tosse que o obrigou a pousar o charuto.

Roux, recordando-se de que era médico, fitou gravemente o adversário, enquanto este contava as moedas.

- Devia deixar de fumar, Ehrlich. Já tem problemas de saúde que lhe cheguem. Não veio ao Egipto para se restabelecer da tuberculose que inoculou a si próprio, tentando impressionar o Dr. Koch com o seu entusiasmo científico?

A voz de Ehrlich, embora abafada por um lenço, foi veemente na sua resposta.

- Claro que consegui impressionar o Koch! Foi obrigado a admitir que eu, com o método de coloração por mim desenvolvido, tinha conseguido observar os bacilos da tuberculose muito antes dele, embora os tivesse inicialmente tomado por cristais... É evidente que eu não precisava de inocular os bacilos a mim próprio para provar a minha descoberta, mas você sabe, quando a gente tem uns trinta anos, faz destas loucuras! E quanto aos charutos, estou fazendo progressos: quando trabalhava no laboratório do Prof. Cohnheim em Berlim, chegava a fumar vinte e cinco por dia...

Roux, apenas um ano mais velho do que o seu colega germânico, riu de bom grado guardando o dinheiro na carteira.

- Temos que saber mostrar o nosso valor perante os Mestres! com todo o respeito que devo a Pasteur, posso dizer que ainda não se teria descoberto o modo de manter em laboratório o micróbio da raiva, se eu não tivesse trepanado um cão para lhe injectar no cérebro tecido nervoso contaminado, tudo isto à revelia do chefe! E desculpe-me por o ter aliviado das suas libras, Ehrlich ! Talvez em compensação você tenha mais sorte no amor...

- Por falar em amor, onde estará o seu subordinado Thuillier? -quem agora falava era Georg Gaffky, assistente de Koch e que só agora conseguira desvencilhar-se do programa de trabalhos delineado pelo seu chefe - Encontrei-o há pouco a mirar-se na água daquele tanque nas traseiras do vosso laboratório, tentando colocar um turbante... Suponho que não me terá visto. Estava radiante, deve andar com alguma paixão! - e reparando só então na dançarina que agitava ao alto um véu num gesto convidativo, concluiu - Paixão forte, decerto, para o levar a perder um espectáculo destes!

Roux divertiu-se com o aspecto siderado de Gaffky que desfolhava distraidamente a magnólia com que florira a botoeira do casaco.

- E ainda são os franceses a ter fama de se deixar perder por mulheres! Não lhe acene, Gaffky, que pode arranjar sarilhos! - e subitamente grave, o médico francês explicou - Esta dançarina não é nem uma odalisca cedida pelo serralho de algum notável que queira ganhar os favores dos estrangeiros, nem uma dessas cortesãs imponentes que, graças à sua riqueza, podem dispor livremente do marido, mesmo nesta sociedade muçulmana: é uma pobre rapariga que, durante o dia, ferve as roupas dos doentes de cólera, na lavandaria do Hospital dos Padres Lazaristas. Suponho que terá aceitado oferecer a sua beleza a infiéis como nós para ganhar mais umas rodelas de pão ázimo para os irmãozinhos... Mas o irmão mais velho é um pescador da ria, que fornece os tendeiros do mercado de Anfuchi, e que intervém quando algum admirador a assedia. A julgar pela força com que esse irmão puxa por uma rede carregada, é melhor não o provocar!

Ehrlich fez sinal a um empregado para que este servisse mais vinho fresco do Mosela, que ajudaria o alemão a atenuar as recordações da pátria.

- Aqui o Gaffky, embora tenha nascido em Hanôver, deve ter polacos na família, a julgar pela consonância eslava do nome... Mas você tem razão, Roux, os alemães são mais atrevidos no amor do que os próprios franceses! Conhece certamente o Behring, aquele aluno dedicado do Dr. Koch, a quem este encarregou de aprofundar os trabalhos de Klebs e Lõffler sobre a difteria... Não fique com esse ar ciumento, Roux, já sei que pretende prosseguir o mesmo assunto!

Roux teve um riso condescendente.

- Pretendo, é certo! Mas nesta guerra, todos os aliados são bem-vindos. Se o vosso Behring estivesse disposto a trabalhar a meu lado, eu não recusaria a sua oferta! Embora eu esteja certo de que Pasteur só aceitaria recebê-lo no nosso laboratório depois de nós vos termos chutado novamente para lá das nossas antigas fronteiras...

- Pois o Behring é um medicozinho do nosso glorioso exército, muito empertigado na sua farda, sempre em sentido diante do Senhor Professor e, no entanto, é poeta! Recordo-me duma conversa que tive com ele sobre a imunidade contra a tuberculose, nomeadamente, se esta seria antes mediada por células ou por moléculas que actuam como âncoras, talvez algo neste género - com o dedo humedecido em vinho, Ehrlich desenhou sobre o feltro da mesa de jogo um esboço de fórmula química - Num momento em que o Behring se afastou para ir buscar, em defesa da sua teoria, uma cobaia na qual havia realizado duas inoculações de bacilos tuberculosos intervaladas por algumas semanas, eu reparei numa ode que ele escrevera no verso do gráfico de temperaturas dos animais de experiência... Obra cinzelada com esmero, em que comparava a filha do chefe às ondinas, as ninfas do Reno, guardiãs de tesouros! Da maneira como o Koch é pela filha, não sei como reagiria se aquilo lhe caísse nas mãos, mas a Gertrud bem merece quaisquer elogios! E você, Roux, não me diga que alguma vez dedicou versos a alguma das filhas de Pasteur...

Roux, que saboreava um conhaque da sua Aquitânia natal (após ter declarado o vinho alemão pedido por Ehrlich uma zurrapa merecedora dos estudos de Pasteur sobre os organismos formadores de ácido acético) sentiu-se invadido por uma doce nostalgia do tempo em que, recomendado pelo Prof. Ducaulx, em cujas aulas de química na Universidade de Clermont-Ferrand exercera as funções de preparador, principiara os seus trabalhos à sombra paterna de Pasteur. Sobre a mesa de trabalho deste, diversas vezes surpreendera os retratos manchados de lágrimas que o Mestre, como artista que era, traçara das suas filhas, três das quais falecidas em tenra idade... Porém, assaltado neste instante por uma suspeita súbita, Roux engasgou-se e Ehrlich viu-se obrigado a dar-lhe uma palmada entre as omoplatas.

- Está pensando o mesmo que eu, Ehrlich? - rouquejou Roux, ainda com o rosto congestionado.

Ehrlich abanou-se com uma das muitas revistas científicas cuja leitura constituía a sua ocupação preferida, entre as rodadas de Mosela.

- Um dos vossos e a filha do nosso campeão? Não acredito! Criaram-se demasiados anticorpos... A não ser que o Thuillier, como bom investigador, queira pôr à prova a sólida virtude das nossas mulheres, já tão celebrada pelos escritores romanos... A Gertrud fará jus a essa reputação, espero! Calculo como o Behring ficaria desedificado vendo a sua ondina tolerar galanteios do inimigo, quando tem tantos puros heróis germânicos prontos a servi-la! Embora o Thuillier não pareça mau rapazito: nunca deixou de me retribuir, sempre que eu lhe cedia algum dos meus charutos...

Roux atirou um murro que espalhou o baralho sobre a mesa e fez chocalhar os copos.

- Você não está no plano de focagem correcto! Isto é grave! Eu conheço o Thuillier. Qualquer tarefa em que se empenhe, cumpre-a com paixão até ao fim. Quando o Pasteur, o Chamberland e eu realizámos aquela demonstração pública em Pouilly-le-Fort, para comprovar a validade da vacinação contra o carbúnculo, era ele quem, obsessivamente, registava todos os dias os parâmetros vitais de mais de meia centena de animais vacinados e não-vacinados. Logo que iniciámos aquela campanha de vacinação do gado, que nos levou até à Europa de Leste, o pobre rapaz angustiava-se com a suspeita de que, sobrecarregados de trabalho como estávamos, pudéssemos distribuir lotes de vacina com o bacilo do carbúnculo insuficientemente inactivado, ou contaminados por outras bactérias. Cheguei a encontrá-lo adormecido no chão do nosso improvisado laboratório, abraçado a um balão de caldo de cultura cuja qualidade ele pretendia controlar, e com ratinhos brancos a passear-lhe por cima. Nunca tive um preparador com tanto empenho em aprender a dissecar o bolbo raquidiano dum coelho morto de raiva. E vocês já leram o primeiro grande trabalho no qual ele assumiu um papel de maior relevo, sobre a etiologia e a prevenção da erisipela porcina? Estou sinceramente persuadido de que poderá ser ele a descobrir o agente da cólera... Mostrou-me esta manhã uma amostra de sangue colhido dum cadáver ainda quente e em que se viam uns corpusculozinhos crenados... Mas os casos começam a rarear. A epidemia está a regredir tão misteriosamente como veio...

- Devem existir leis matemáticas que regem o comportamento das epidemias... - teorizou Ehrlich, de novo perdido no mundo das conjecturas médicas.

- Claro, claro! - impacientou-se Roux - Mas o caso é este: não devemos deixar escapar entre os dedos a oportunidade de identificar de modo definitivo o micro-organismo responsável pela cólera. Se o Thuillier estiver decidido a levar de frente as suas pesquisas e o seu amor, poderá suceder um desastre!

Gaffky (que continuara a contemplar, agora com expressão penalizada, a deslumbrante dançarina) não ouvira o início da discussão, apreendendo apenas que os franceses haviam observado certos corpúsculos, provavelmente responsáveis pela cólera - e a esta notícia o seu garbo de membro da equipa rival fizera-o resfolgar de fúria - mas que a diminuição da incidência da doença os poderia privar de comprovar as suas hipóteses - e aqui sacudira a cabeça para dissipar o torpor que o clima egípcio induzia nele, ainda esperançado de poder suplantar os adversários. Agora, como que despertando de um sonho, Gaffky apercebeu-se de que nunca tivera plena consciência da rapidez com que Gertrud se tornara mulher.

Ele e Lõffler sempre haviam cultivado em relação à filha do Dr. Koch uma solicitude de irmãos mais velhos, desde aquele dia no Instituto Imperial de Saúde em que, como jovens assistentes, haviam trocado acerca do chefe comentários pouco elogiosos. Fora pouco tempo após a nomeação de Koch para um lugar cimeiro no Instituto. Enquanto passava em revista uma fileira de frasearia repleta de reagentes e corantes, Gaffky desabafara:

- Esse novo chefe que nos foi remetido por especial decreto do Kaiser é mesmo um bicho do mato! Encerra-se no seu gabinete e nem quer saber das nossas pesquisas...

- Sim - grunhira Lõffler, que arrumava na incubadora uma caterva de meios de cultura - os favores de Sua Majestade devem ter subido à cabeça desse campónio!

- Desculpem, doutores... Estão a falar do meu pai? - Desviando os olhos da estante do material, Gaffky deparara com uma adolescente que escutava à porta do laboratório e que era todo o inverso das debutantes da boa sociedade berlinense, desde os sapatões de couro cru até às tranças armadas em estilo provinciano. Surpreendido, Lõffler deixara escorregar das mãos um balão repleto dum líquido opalescente que fora estilhaçar-se sobre os ladrilhos. Porém, habituada a tais contratempos, a mocinha arregaçara prontamente a sua volumosa saia de baeta e atarefara-se a regar os destroços com um garrafão de lixívia.

- Não fiquem assim atarantados, doutores... Acidentes destes acontecem, mesmo ao meu pai! O que tinham aqui a crescer?

- Bacilos da febre tifóide, presumivelmente - murmurara o cabisbaixo Gaffky - Ainda não havíamos completado a identificação...

- Ah, o bacilo da febre tifóide, a grande descoberta do Dr. Eberth... Já ouvi o meu pai referir-se a isso...

- Ora, do Eberth! Quem lhe fez o trabalho todo fui eu! - resmungara Gaffky com a fúria contida dos assistentes relegados para segundo plano.

Gertrud olhara-o com uma compaixão divertida.

- bom! Estou certa de que os doutores e o meu pai se apreciarão mutuamente, quando se conhecerem melhor! Hão-de ver que o meu pai ainda os encarregará de muitos trabalhos científicos...- e, com um sorriso gaiato - Talvez mais do que os doutores desejem!

 

Amor não trava progresso

A profecia de Gertrud cumprira-se. Tendo longamente posto à prova as capacidades de Gaffky e Lõffler, Koch mobilizara os seus assistentes para a investigação com uma impetuosidade que despertara na filha uma compaixão divertida por estes. Nos dias invernosos em que Gaffky e Lõffler se atrelavam à bancada do laboratório desde a alvorada até ao infindável serão, Gertrud nunca deixava de lhes levar um bom farnel que ambos, quase sem tempo para lavar as mãos com a anti-sepsia adequada, iam devorar trancados no cacifo das batas, enquanto a filha do chefe se inteirava dos seus progressos. com a boca atulhada de pão e salsicha, Gaffky descrevia os seus planos para isolar o coco tetrágeno que colonizava as cavernas pulmonares dos tuberculosos; Lõffler, lambendo dos dedos uns grumos de pastelaria, expunha as suas hipóteses a propósito das propriedades patogénicas do bacilo diftérico. Ambos se extasiavam intimamente de que Gertrud os apreciasse assim, naquele ambiente confinado, enxovalhados e cheirando a fenol. Sentiam-se compensados de todas as canseiras, ao serem contemplados como jovens heróis pelo olhar límpido da rapariga... Nos seus raros momentos de folga, fantasiavam juntar umas economias dos seus magros salários de investigadores, para ataviar Gertrud como merecia uma moça tão gentil... E propunham-lhe, lisonjeiramente:

- Deixe-nos ser-lhe agradáveis, menina Gertrud! Não queremos que nem o médico com a maior clientela da cidade, daqueles com consultório aberto em Unter dem Linden, possa levar a filha à catedral com um xaile mais elegante!

Mas Gertrud, mantendo-se em guarda contra os apetites de luxo que uma grande urbe nunca deixa de despertar numa rapariguinha de aldeia, sempre tudo recusara com a maior delicadeza... E por todas estas razões, Gaffky experimentava agora uma funda dor, pensando que talvez fosse aquele Thuillier, decerto um francesinho leviano e hipócrita, a colher a inocência desabrochada de Gertrud.

Enquanto Gaffky assim reflectia, fixando a mesa de jogo sobre a qual rolavam copos entornados, uma voz indignada ergueu-se junto a ele.

- Esse Thuillier é completamente desmiolado! Que trabalhemos todos juntos enquanto durar a epidemia, ainda admito! Mas seria necessário arriscar este entendimento já tão frágil por causa duma fedelha, boa para alegrar a tropa prussiana?

Gaffky encarou severamente aquele que assim falara: Isidore Straus, talvez o discípulo de Pasteur com mais longo currículo, tendo já realizado estudos de fisiologia com o Professor Claude Bernard, e que alguns apontavam para futuro titular da cátedra de Patologia Experimental da Faculdade de Medicina de Paris, decerto merecida com as suas teses sobre o diagnóstico comparado do mormo no homem e no animal, e a transmissão do carbúnculo da mãe ao feto. Mas Straus era da Alsácia, e as feridas deixadas pela guerra eram nele mais fáceis de reavivar do que nos outros homens de ciência ali reunidos... O culto da figura de Pasteur estava particularmente arreigado entre os alsacianos e Straus desejava ver o seu idolatrado mestre poupado a qualquer contrariedade.

- Compreendo os seus ressentimentos, Straus, mas podia ter outra educação! - objectou Gaffky, com voz fremente - A Gertrud merece o nosso respeito... Se mais não fosse, bastar-lhe-ia ser filha do Dr. Koch!

- E você podia ter outra dignidade, Gaffky! Você ainda mais, se realmente descende de polacos, um povo nobre, precisa de falar do seu chefe com essa subserviência?

Gaffky cerrara os punhos.

- Atreva-se a repetir que sou subserviente!

- Repito! E digo mais! Ainda não havia microbiologia na Alemanha, ainda não havia sequer Alemanha, apenas um amontoado de estadozinhos bárbaros que guerreavam entre si, e nós já tínhamos grandes homens de laboratório! Tínhamos o Davaine, o primeiro a suspeitar da etiologia bacteriana do carbúnculo! Tínhamos o Rayer, que confirmou o carácter contagioso do mormo! Tínhamos o Villemin, que conseguiu transmitir a tuberculose a animais de experiência por meio de tecidos purulentos retirados a doentes falecidos com um quadro clínico típico, quinze anos ou mais antes de o vosso chefe ter feito o mesmo!

Um pequeno grupo de empregados egípcios, gulosos de presenciar uma altercação entre infiéis, espreitava furtivamente desde a porta batente da copa. Edmund Nocard, o restante membro da delegação francesa, que estudaria com Pasteur o ambicioso projecto de vacinar contra a raiva todos os cães da Europa, procurou serenar os ânimos:

- Por amor de Deus, colegas... Não vão armar uma cena diante dos árabes!

Estas palavras não acalmaram a exaltação de Gaffky.

- Que vem a ser isso de "colegas"? Lembre-se de que é veterinário, Nocard! E você de que se está a rir, Ehrlich? Ao menos, dê-me razão! Você ainda consegue ser mais caridoso com os adversários do que o Lõffler, que tanto se orgulha de ter sido um cirurgião militar seu parente a assinar, por conta do estado prussiano, as primeiras convenções internacionais sobre os socorros aos feridos de guerra...

O benjamim do grupo presente, Alexandre Yersin, procurou porém pacificar a situação. Mal saído dos bancos da Faculdade, Yersin não se podia ainda considerar microbiologista, mas acalentava a esperança de figurar um dia entre os mais célebres. Já sedento dos longos périplos em busca de ciência que, mais de dez anos depois, o haviam de conduzir até à Indochina, Yersin aproveitara as suas escassas semanas de férias para vir ao Próximo Oriente, seguindo o sonho ainda nebuloso de esclarecer os hábitos do micro-organismo que viria a ser o seu troféu, o bacilo da peste.

Yersin tinha com Thuillier uma camaradagem favorecida pela pouca idade de ambos; porém, talvez por essa vizinhança de idades, sentia inconscientemente o mais jovem dos assistentes de Pasteur como um concorrente directo. Ansiava por conquistar a plena confiança de Roux, que conhecera no decurso duma autópsia no Hôtel-Dieu e com quem dentro em breve esperava trabalhar... Mas desejava evitar querelas ostensivas com a turma de Koch. Sendo suíço de nascimento, os ecos da guerra entre a França e a Prússia haviam-lhe chegado mais abafados durante a infância, quando o seu país natal acolhera as mulheres e crianças fugidas ao cerco de Estrasburgo. Tendo iniciado o seu curso médico na Universidade de Lausanne (onde, no dizer dos lentes, se falava um francês mais puro do que em Paris ou Montpellier) orgulhava-se da sua cultura francófona mas, estando na posse dum diploma da Universidade de Marburg, não desprezava o saber dos germânicos.

- Não interessa a quem caibam os louros da descoberta do agente da cólera, desde que esta seja vencida - declarou por isso desprendidamente - Contudo, um enredo amoroso não deve travar o progresso da Medicina. Mestre Pasteur, com aquela fogosidade de filho dum sargento de Napoleão I (devido à qual até abandonou as suas queridas experiências de cristalografia para combater pela Pátria) e de pai dum sargento de Napoleão III (o que o levou a distribuir faltas disciplinares pelos alunos do seu curso de química, quando estes vaiaram o Imperador) sentir-se-ia vexado com esta situação. O Dr. Koch seria presa de desânimo perante a possibilidade de perder a filha, o único afecto que alguma vez teve... Cabe-nos por isso o dever de fazer ganhar juízo ao Dr. Thuillier. - e após um pigarro embaraçado, prosseguiu para o seu auditório expectante - Estive ultimamente lendo as descrições de Avicenna relativas à peste bubónica e, no meu percurso pela obra do médico persa, encontrei algumas considerações sobre o estado patológico vulgarmente conhecido por amor. Avicenna dogmatizou que um método radical, embora moralmente questionável, de eliminar uma paixão impossível, é a companhia duma dançarina como esta... como esta Faridah, se bem me recordo do nome afixado à porta do casino. Se resultar, poderão prosseguir calmamente as vossas investigações!

Roux passou lentamente os dedos sobre os seus cabelos corredios.

- As investigações agora consistem em procurar uma maneira de fazer a coisa, sem que o irmão mais velho da nossa estrela de dança nos transforme em shish kebeb... Alguém tem uma ideia brilhante?

Levemente envergonhado, Gaffky lançou um alvitre.

- Não tenham medo de o dizer, se acharem que a minha sugestão é um atropelo à ética médica... Os meus colegas alemães e eu andamos fazendo um levantamento da patologia mais comum nesta região. A nossa equipa interessou-se pelas helmintíases das vias urinárias, por uma forma de disenteria que o Dr. Koch julga ser provocada por amibas e pela conjuntivite epidémica, descrita desde a antiguidade... Decerto que os irmãozinhos da nossa Faridah, subalimentados e sem condições de higiene adequadas, sofrem de alguma dessas condições tão frequentes entre as crianças egípcias. Os discípulos de Pasteur são conhecidos pela sua feição humanitária. Não seria esse um bom pretexto para o Thuillier ir à barraca onde mora a dançarina? Decerto que ela será bem menos sedutora no seu ambiente de miséria do que sobre o palco, mas em contrapartida, o nosso coleguinha não estará tão desconfiado...

 

Os mosquitos atacam no Delta

Amanhecera de novo sobre Alexandria e o sol, tendo dispersado os rolos de bruma que durante a noite se erguiam do lago Mareut, começava a fazer sentir o aguilhão dos seus raios.

Naquela cidade superpovoada, onde desde a antiguidade se amontoavam os casebres malsãos em torno aos formigueantes estaleiros de construção naval, a Saúde Pública mantinha-se um problema espinhoso. Nos finais do Império Romano de Ocidente, Santo Atanásio e os seus monges, votando ao desprezo a ciência que a escola médica anexa à Biblioteca de Alexandria não soubera pôr ao serviço dos pobres, haviam instituído dispensários entre os armazéns do porto comercial da cidade. Conquistada esta pelo Califa Omar, os muçulmanos que tal como os cristãos haviam inicialmente amaldiçoado o saber dos antigos, tinham-se deixado deslumbrar por aquela ciência profana que Deus, na Sua misericórdia concedera aos pagãos: a cidade mantivera-se pois na rota das novas descobertas... Rhazés e Mesué haviam certamente visitado Alexandria, antes de se dirigirem para a Escola Médica do Cairo. Maimónides passara por lá e encontrara uma comunidade judaica florescente que, embora pesadamente tributada pelos dominadores árabes, fornecia médicos que gozavam da confiança dos monarcas da dinastia fatimida. O manso sábio judeu debatera com os anciãos da sua comunidade as relações entre a ciência e a fé - isto durante os sucessivos cercos que a cidade sofrera por ocasião dos confrontos entre o emir Saladino e o rei cruzado de Jerusalém, em que choviam projécteis incendiários e cadáveres de pestíferos que as catapultas dos vários exércitos disparavam contra a orgulhosa cidade. Porque, embora desvanecidas as glórias do passado, Alexandria permaneceria sempre um local onde no meio dos piores tumultos se encontrava tempo para discorrer sobre o universo físico e o universo espiritual! No pátio do Hospital dos Padres Lazaristas, os burriqueiros levantinos que exerciam as funções de "ambulância" nos bairros pobres recompensavam os seus animais com pedaços de cana de açúcar e os almocreves depunham fardos de linhaça para pensos. Circulando entre esta multidão, uma egípcia carregava ao ombro pesadas selhas de roupa, maculada de imundícies. A egípcia equilibrava-se sobre as suas alpergatas remendadas com um porte de rainha mártir, num misto muito raramente encontrado de altivez e de resignação. Um pudico vestido de chita resguardava-lhe o colo cor de medronho e as linhas estatuárias das ancas; um lenço da mesma gaze em que eram talhadas as ligaduras apertava-lhe a cabeça que se assemelhava à dos baixos-relevos postos a descoberto pelos arqueólogos. Um padre já muito idoso, de avental amarrado sobre a batina, que regava o saibro do pátio para fazer assentar a poeira, saudou risonhamente a invulgar rapariga.

- Salaam, Faridah! Suponho que hoje haverá menos trabalho! O bom Deus tem escutado as nossas orações...

Sem outro tipo de resposta, Faridah fez um gesto de assentimento com a cabeça. O sacerdote seguiu-a com o olhar, meneando a barba esfarrapada.

- Heróica rapariga, não é verdade? Enfrentar as desgraças corporais do hospital e as desgraças morais do casino para alimentar a família, e no entanto manter sempre a mesma compostura... - comentou uma voz atrás do ombro do lazarista.

- bom dia, Dr. Roux! Lamento desiludi-lo, mas esta noite não faleceu mais nenhum doente de cólera. Em breve, o Sr. Dr. e o Dr. Thuillier não terão mais ninguém para autopsiar!

- Isso apenas poderá contrariar os alemães, reverendo! Temos o nosso trabalho bem adiantado. O Dr. Thuillier tem desenvolvido uma actividade magnífica. Que belo espírito científico! E quanta generosidade! Herdou o verdadeiro carisma de Pasteur, a ânsia de pôr o seu saber em campo, para o bem de todos quantos padecem...

O sacerdote ergueu um dedo mirrado pela velhice.

- A Ciência é como aquilo que Nosso Senhor dizia a propósito do Dia de Sábado: não deve servir para escravizar o Homem, mas sim para que o Homem tenha vida em abundância!

- Infelizmente, nem todos assim pensam - Roux procurava encaminhar a conversa, sem intenções de deixar o seu interlocutor perder-se em dissertações doutrinais - Olhe as investigações do Dr. Koch e assistentes... Fizeram um levantamento exaustivo da casuística da conjuntivite epidémica que conduz à cegueira de tantas crianças neste país; porém temo bem que o tenham feito por uma curiosidade pedante, para ornamento de algum maçudo artigo em alemão, e não por vontade de minorar os danos causados por tal doença!

O sacerdote teve um riso manso.

- Já vi que o Sr. Dr. desejaria passar para trás os seus colegas alemães... Deixe lá. As nações são como o Dia de Sábado. E tem toda a razão no que se refere aos padecimentos das crianças pobres desta terra. Os dois irmãozinhos da Faridah, para não irmos mais longe... É uma lástima!

- A Faridah tem cumprido o seu papel no combate à epidemia e devemos-lhe o nosso reconhecimento, reverendo. Creio que o Dr. Thuillier teria a maior satisfação em auxiliar essas crianças!

Na cozinha do hospital, Thuillier bebia, com um sorriso beatífico, o copo de quinino matinal que uma alentada Irmã da Caridade (animada daqueles modos simultaneamente bruscos e complacentes que as enfermeiras experientes, religiosas ou laicas, empregam com os teóricos de laboratório) lhe metera na mão. Como amante fiel a quem tudo recorda o ser amado, rememorava-se (a propósito daquele profilático amargo cuja matéria prima, a casca de quineira, fora introduzida na Europa papista pelos Jesuítas, gente que o eminente patologista Virchow sempre detestara!) das frases trocadas com a filha de Koch sobre a Ciência e a Fé. Gertrud perguntara-lhe aquilo em que ele acreditava! com a lógica dos apaixonados, rápida em saltar às conclusões, o investigador via nesta interrogação uma evidência do propósito que a jovem decerto formara de unir a sua vida à dele...

Coçou despreocupadamente as pápulas que as picadas dos mosquitos criados nos canaviais do Delta lhe haviam deixado no corpo. Apenas perguntou vagamente a si próprio se o medicamento ainda estaria válido, recordando como Pasteur havia procurado incluir na farmacopeia dos hospitais franceses do Norte de África um isómero do quinino que apresentasse maior estabilidade perante temperaturas ambientais mais elevadas, e como o Mestre esbarrara então com a inércia das autoridades sanitárias... Ainda restavam muitos pontos obscuros a esclarecer, quanto ao eventual papel do mosquito na transmissão do agente da malária, descoberto uns escassos três anos antes por Laveran, cirurgião do exército francês. A quem caberia esse novo feito? A mais um francês? Ao próprio Koch, que não deixaria de formular hipóteses a esse propósito? A algum médico militar inglês, familiarizado com a clínica da malária no Império das índias? A algum cientista da Itália, um dos países europeus mais afectados pela doença? Thuillier suspirou regaladamente, reflectindo que o mosquito não tem pátria, tal como a casca de quineira não tem religião... Foi a esta felicidade perfeita que o Dr. Roux veio arrancar o seu subordinado.

- Não se extravie em devaneios, Thuillier, agora que estamos a dois passos da vitória! Já avisei os boches de que você tem aí umas preparações para eles apreciarem. O Gaffky não se quis mostrar convencido... Mas mesmo que alguém duvide da nossa excelência no campo do rigor científico, não se poderá pôr em causa o nosso desejo de servir, que torna o nome da França conhecido e respeitado!

Por falar nisso, importa-se de fazer uma obra de caridade? Conhece a Faridah, a moça que faz a barrela dos doentes de cólera? O decano dos lazaristas confidenciou-me que ela tem dois irmãozinhos afectados de conjuntivite infecciosa. Vá ao menos falar com eles, dê-lhes esse agrado... Bem sei que o Koch e o seu bando são quem se tem debruçado sobre essa patologia, mas altivos como são esses alemães, nunca saberiam tocar a alma dessas crianças como você, Thuillier! A família da Faridah mora num abrigo de adobe perto do Porto Ocidental, entre o barracão da alfândega e um daqueles palacetes decrépitos junto ao canal que vai dar ao lago Mareut...

Thuillier revirou entre os dedos a sua medalha milagrosa, para dissimular a sua contrariedade. Pensara estudar mais pormenorizadamente as suas preparações microscópicas, cuja interpretação ainda não o havia plenamente satisfeito. Não queria porém desmentir a imagem da França como país amigo dos povos subjugados...

- Acha verdadeiramente que eu seria a pessoa mais indicada? O Dr. Roux é o clínico e eu um simples preparador, mal saído da Escola Normal Superior; os meus conhecimentos de medicina limitam-se ao que me vi obrigado a aprender quanto à patogenicidade dos micro-organismos...

Roux tacteou em busca duma explicação convincente.

- Os médicos têm sempre o espírito excessivamente ocupado... O que possam possuir a mais em ciência, perdem-no na destreza de raciocínio necessária para observar os factos e reflectir sossegadamente sobre eles, qualidades que você possui em abundância, Thuillier!

O rosto pálido do chefe da missão francesa reflectia um misto de brio pátrio e de remorso. Roux não tinha a perseverança (que alguns rotulavam de teimosia) do seu mestre Pasteur, mas possuía igual segurança de si, e sendo médico, um superior domínio da sua natural repulsa perante espectáculos de dor. Porém, era justamente a sua consciência de médico que agora lhe reprovava o estar interferindo na intimidade dum seu subordinado, e tal à custa da miséria duma família desprovida de assistência sanitária!

Era motivo de vaidade para ele haver sido o primeiro clínico que Pasteur admitira no seu estreito círculo de colaboradores e desejava conservar intactas as suas prerrogativas, tanto mais que nenhum outro médico viera ainda medir-se com Roux no conceito do Mestre. Havia Straus, é claro; mas esse, embora discípulo devotado, nunca trabalhara em tão estreito contacto com Pasteur, antes exercendo as suas funções no laboratório do Dr. Grancher, instituição que o austero Pasteur considerava dotada de demasiado conforto material para proporcionar um ambiente propício ao trabalho. Assim, Roux adquirira o privilégio exclusivo de impor as suas razões ao Mestre, e estava convicto de lhe caber esse direito, já que renunciara a uma prática clínica rendosa para seguir a via da investigação. Porém, sentia agora, perante o seu subordinado, um remorso que pesava sobre ele como o olhar do vigia dum campo de prisioneiros. Foi para aligeirar esse remorso que Roux procurou recordar a expressão infinitamente melancólica de Pasteur, tão magoado pela soberba dos alemães.

com um zelo filial, Roux revoltava-se por ver Pasteur já alquebrado por sucessivas hemorragias cerebrais enquanto o seu rival germânico se mantinha na força da vida, com largos anos de gloriosas expedições científicas em perspectiva. Esperava contudo que o bom Mestre terminasse os seus dias como um patriarca, reconfortado pela sua fé, rodeado pelo carinho da esposa e pela veneração dos colaboradores, ao passo que Koch, embora saciado de honrarias pelo Kaiser, morreria sozinho, como um animal bravio entre as fragas da sua pátria... Era verdade que o génio de Pasteur eclipsava o dos seus assistentes a ponto de estes (a começar pelo próprio Roux!) se sentirem por vezes desapossados das suas descobertas, em proveito do prestígio daquele. Todos os vizinhos da Rue d'Ulm, onde Pasteur trabalhava, já conheciam o estrondo da porta do laboratório, de cada vez que Roux abandonava as instalações quando se desentendia com o velho Mestre... Mas todo o melindre se derretia, quando os jovens doutores reconheciam no corredor do laboratório o passo arrastado de Pasteur, tão exigente mas tão humano, de aparência reservada mas compreendendo tão bem as emoções dos seus subordinados.

Afeito à doçura de tal pai espiritual, Thuillier nunca se sentiria realizado junto duma prussiana, que apenas lhe poderia dar uma ninhada de pequenos súbditos do Reich alemão e que sempre o manteria sob a pata do sogro, aquele lobo saxónio! Roux não negava alguma razão àqueles que, pelos corredores da Escola Normal Superior, murmuravam que Pasteur tratava os assistentes mais como empregados do que como verdadeiros colaboradores, incumbindo-os de lavar o material e o próprio chão do laboratório e debatendo pouco com eles os seus planos de investigação. Comentava-se ainda que os companheiros de Pasteur se afastavam dos caminhos balizados da carreira académica para abraçar um futuro de perspectivas incertas. Os investigadores alemães tinham outras garantias e locais de trabalho mais bem equipados... Talvez por isso Thuillier esperasse desempenhar alguma função no afamado Instituto que Koch dirigia, na Schumanstrasse de Berlim. Mas aí, o investigador francês seria olhado com arrogância pelo mais boçal dos contínuos! E decerto não faltaria um amor constante a Thuillier no dia em que este ocupasse o seu lugar no Instituto cuja construção Pasteur iria um dia supervisionar nos arredores de Paris, onde o jovem discípulo regressaria já com nome feito e mais viril, queimado pelo sol egípcio!

Forte destas razões, o flamante mas abnegado Roux estendeu a Thuillier o rolo de libras que, na véspera, havia ganho no jogo.

- Nunca se sabe, talvez lhe façam falta! Use-as com dignidade. Mas não se apresse. O nosso entusiasmo não nos deve impedir de sermos metódicos. Vá rever as suas preparações, e deixe-me um relatório bem estruturado... Poderá ir ver as crianças mais tarde, quando a Faridah já tiver acabado o trabalho e lhe possa fornecer algumas explicações...

 

Grande Homem sofre!

Gertrud acordou o pai com um beijo, depondo-lhe ao lado uma caçoula de água fervida para a higiene matinal. Koch adormecera após uma noite de trabalho, sentado à mesa onde estavam dispostas as suas últimas preparações microscópicas, e nem a gritaria iniciada ao romper do dia pelos macacos (cuja jaula Gaffky limpava, recolhendo os excrementos em tubos de ensaio) parecera incomodá-lo. Porém, descerrando as pálpebras, os seus olhos atentos logo encontraram a "chave da vida" pendurada ao pescoço da filha.

- Bonita jóia... Onde a conseguistes?

Nunca tendo sabido mentir ao pai, Gertrud preparou-se para enfrentar uma ríspida repreensão.

- O doutor Thuillier, da delegação francesa...

- Uma cortesia primária! - interveio Gaffky, querendo sufocar qualquer suspeita - Os franciús massacraram-me ontem a paciência, tentando convencer-me de que tinham descoberto o germe da cólera! O ar de triunfo do Roux exasperou-me... E o garoto, o Thuillier, que deve ter comprado essa lembrança para alguma corista de café-concerto que frequente em Paris, deu-a à filha do Sr. Dr. como prémio de consolação...

Indignada, Gertrud abriu a boca para contestar esta versão dos acontecimentos, mas não encontrou palavras. E se Gaffky estivesse descrevendo acertadamente os sentimentos de Thuillier?

Apercebeu-se de que, na sua ignorância das coisas do amor, nada inquirira acerca da vida passada do seu amado. Nunca lhe vira aliança, mas era natural que Thuillier não a usasse, dada a frequência com que necessitava lavar as mãos, durante o seu trabalho. Quem sabe se não teria já uma esposa parisiense que esperasse o seu regresso na Gare d'Austerlitz, com um buliçoso pimpolho nos braços? E à pergunta "Então, Louis? Foste-me fiel, nessas terras ardentes?" o deslealíssimo Thuillier responderia com um sorriso seráfico, envolvendo a mulher e o filho no mesmo abraço: "Descansa! Apenas desonrei o huno-mor, fazendo falsas promessas à filha dele... Mas tens de compreender, que diabo! Isso até fazia parte dos meus deveres patrióticos!" E, satisfeita a saudade da sua família francesa, o jovem investigador iria jactar-se da sua campanha científica no Egipto, abancado num botequim da boémia estudantil do Quartier Latin, talvez com um copo de absinto na mão e uma daquelas serventes que posavam escassamente enroupadas para os alunos de belas-artes, sentada nos joelhos: "Pois bem, malta!" remataria ele "Foi assim que eu descobri o micróbio da cólera... Um trabalho despachado. E ainda me sobrou tempo para demonstrar que essa alardeada virtude das alemãs é um mito... Caem com meia dúzia de piropos!"

Acicatada por um despeito súbito, Gertrud fungou para engolir uma lágrima de fúria. O pai, que ensaboava o rosto amarfanhado de cansaço, contemplou-a com uma expressão inquiridora e (ou pelo menos assim pareceu à atormentada rapariga) assaz dura.

- Há algum problema, Gertrud?

- Não é nada, pai... É este calor do Egipto. E desculpe se cometi alguma inconveniência aceitando o presente...

Sem se alterar, Koch endireitou o colarinho.

- Este calor amolece-nos a vontade! Eu, que ansiei por tantas viagens, estou com saudades da pátria. Esta noite sonhei com as montanhas do Harz que tanto palmilhei em menino, com os abetos negros balouçando-se ao vento carregado de neve... Se os franceses já resolveram o enigma da cólera, tanto melhor! Mas também lhes queria mostrar umas coisas...

A este modesto anúncio, Gaffky sentiu uma satisfação feroz brotar dentro dele. Decerto os franceses, que já embandeiravam em arco, seriam em breve constrangidos a admitir que haviam cometido um erro. Se ele bem conhecia Gertrud, este novo êxito do pai despertaria nela os sentimentos de pundonor e amor próprio entorpecidos pelos carinhos daquele Thuillier. E levemente desiludido consigo próprio, por haver dissipado o anterior serão a divertir-se na companhia dos rivais enquanto o chefe abria um novo capítulo na história da bacteriologia, Gaffky arriscou a pergunta:

- Então, Sr. Dr., a noite foi frutífera?

Mas, ou não querendo entoar vitória demasiado cedo ou desejando conservar para ele só, durante mais umas horas, o júbilo da descoberta, Koch respondeu evasivamente, retomando as reminiscências da sua infância:

- As noites sempre me foram propícias à observação. O meu pai tinha um espírito prático; soubera guindar-se desde simples mineiro até responsável pela indústria metalúrgica na povoação de Klausthal, onde eu nasci. No entanto, manteve em todas as circunstâncias os seus dotes de bardo popular; era um grande contador de histórias. Uma das lendas locais que faziam parte do seu repertório e que mais cativavam a minha imaginação era a das bruxas, vindas de toda a Alemanha a cavalo nas suas vassouras, que se reuniam nas montanhas sobranceiras ao nosso vale para adorar o Demónio. Sendo eu garotinho, escapei-me de casa em certa noite de Santa Walpurga, noite em que se dizia ter lugar o encontro das feiticeiras, e embrenhei-me pelos canelhos do monte Brocken. Escarranchei-me na copa do teixo mais ramalhudo da encosta, rezando os Salmos, pelo sim pelo não, decidido a verificar se ocorreria de facto um evento sobrenatural... Não vi nem as bruxas nem o Demónio, mas no céu do crepúsculo primaveril presenciei um fenómeno atmosférico notável, um jogo de luzes e sombras projectadas que me lembrou aquelas aberrações ópticas que eu já tinha observado brincando com a minha velha lupa. Quando já dia claro regressei a casa sujo de resina e com as calças rasgadas, apanhei a maior surra da minha vida! Mas na velada seguinte o meu avô, que até apreciava as minhas escapadelas, interrogou-me diante da família reunida, brandindo o seu cachimbo: "Então, Robert? Aprendeste alguma coisa com a tua façanha?" Eu esfreguei o traseiro mas fiz-me forte: "Creio que sim, avô! Aprendi que vale a pena perder uma noite para aprender a enfrentar as coisas que nos metem medo, por não as sabermos compreender..."

Gaffky esboçou um sorriso entre divertido e lisonjeiro mas os lábios de Gertrud tremiam. A jovem recordava-se duma história análoga que Thuillier lhe contara e que já fazia parte da mitologia criada em torno de Pasteur... Quando um lobo raivoso havia aterrorizado as aldeias em torno de Arbois, nas montanhas do Jura onde crescera Pasteur, este, ainda criança, perguntara ao pai por que motivo todos os que haviam sido mordidos pelo lobo morriam irremediavelmente, ainda que tratados com os maiores desvelos. O pai, veterano do exército napoleónico, com aquele fatalismo de quem vira os caminhos da Europa semeados de tantos cadáveres, declarara que o lobo era decerto possuído pelo Demónio e que, quando Deus decide que é chegada a hora de um homem entregar a alma, nada há a fazer... E Thuillier concluía entusiasticamente o seu relato: "Pasteur sempre foi crente mas nunca supersticioso, nem mesmo em criança. Tinha por artigo de fé que Deus quis que desvendássemos os mistérios da vida e da morte. E para que havia o Demónio, um ente sobrenatural, de se rebaixar a entrar no cérebro dum lobo? Um dos micro-organismos mais simples da natureza chega a tanto! A arte do Demónio consiste em tomar posse do nosso cérebro para nos conduzir a sentimentos de violência... E eu afirmo-te, Gertrud, que se é uma empresa meritória produzir uma vacina que impeça o vírus da raiva de se instalar no cérebro de quem tenha tido as carnes rasgadas pelos dentes dum animal contaminado, ainda mais belo seria conceber uma vacina que impedisse o ódio de corromper o cérebro de quem tenha sido magoado por tantas guerras nascidas da ignorância e da ambição. É a isso que eu quero dedicar a minha vida, Gertrud, e quando tiver desenvolvido uma vacina eficaz e segura, correrei a distribuí-la pelo mundo inteiro! Posso contar com a tua ajuda?" Como a voz de Thuillier era aveludada e quente, quando enunciava estes projectos grandiosos! Podia alguém que dizia coisas tão lindas ser completamente falso?

Estas meditações de Gertrud foram interrompidas pela voz do pai.

- Dr. Gaffky, serão necessários mais meios de cultura. O micróbio que estou estudando desenvolve-se bem num meio líquido preparado com leite, mas queremos obter colónias isoladas. Prepare geleia de soro sanguíneo dentro de vidros de relógio para as características da cultura serem observáveis ao microscópio. Mas não regule a chama da incubadora como se ainda estivéssemos em Berlim! Quantas vezes eu já lhe disse que se o soro for aquecido acima dos

65?C perde a transparência ao solidificar?

com ardor redobrado, Gaffky abalou para acender a estufa. Gertrud ficou imóvel face ao pai, sentindo este estudá-la demoradamente. A moça havia sabido falar em tom adulto e razoável perante Thuillier, mas agora sentia-se uma colegial imatura.

- Posso... Posso ver o que o paizinho descobriu?

- À vontade, filha... Mas deixa que seja eu a manipular as preparações a fresco. Nessas preparações coradas podes mexer sem perigo; o micróbio perde rapidamente a sua virulência quando seco, embora resista em meios líquidos de alta salinidade. Talvez isso explique a sua manutenção na natureza, em águas salobras... O que ainda não consegui explicar é a sua falta de agressividade para com as cobaias quando ingerido. Estás a ver esses organismos em forma de vírgula? Precisas de regular a intensidade da luz; são difíceis de focar dada a sua transparência e a sua mobilidade muito activa, como a dum enxame de moscardos. Quando imobilizados dispõem-se em forma de cardume. Encontrei imagens semelhantes nas fezes de todos os doentes de cólera em que as pesquisei e nas águas usadas nos bairros onde se declarou a doença. Mas ainda restam muitas questões a esclarecer antes de poder afirmar ser esse o agente da epidemia...

- O pai esclarecerá essas dúvidas. O pai é um grande homem!

- Disseste a mesma coisa quando eu descobri o bacilo da tuberculose, lembras-te? Eu encantei-me com aqueles bacilos que se deixavam impregnar pelos corantes anílicos em presença de hidróxido de potássio e resistiam à descoloração pela vesuvina...

Nunca tinha notado um fenómeno semelhante excepto com o bacilo da lepra, embora este se distinguisse por também adoptar a coloração nuclear de Weigert. Era tal a minha volúpia de saber mais que me esqueci do mundo, esqueci-me até de ti! Podia não ser a ânsia de ser útil à humanidade que me movia, mas também não era a sede de fama. Se um mensageiro imperial tivesse vindo anunciar-me que eu era aguardado para uma recepção no palácio de Postdam, eu não teria deixado as peças de autópsia dos doentes tuberculosos, os tubos de soro gelificado nos quais tinha obtido o crescimento daquilo que eu supunha ser o agente da doença, as cobaias às quais procurava inocular uns fragmentos daquelas escamas que eram as colónias dos meus bacilos, para observar o efeito... Realizei todo o trabalho sozinho; até os meus assistentes que se ocupavam de outras questões, se alarmaram por eu passar tantas horas encerrado no laboratório sem dar sinais de vida, a tal ponto que chegaram a forçar a porta... Quando lhes mostrei os meus achados, eu experimentava uma sensação comparável à dum general vitorioso; mais do que isso, pois estava no caminho para dominar uma força da Natureza... Mas quando finalmente voltei a casa, necessitado duma camisa lavada e dum pouco de ternura, a tua mãe considerando-se uma esposa abandonada tinha-me trancado a fechadura...

Claro que eu não podia chamar o Gaffky e o Lõffler para arrombar a porta de minha casa, de modo que regressei ao Instituto, debaixo daquela chuva mordente do céu de Berlim, e fui deitar-me contra uma estufa de incubação com o meu maço de apontamentos sobre a tuberculose a servir-me de travesseiro, pensando que o trapalhão do Pasteur tinha a essa hora quem lhe pusesse na mesa uma malga daquela farinha com natas que ele tanto aprecia depois dum serão de trabalho. Instantes depois chegastes tu, com os restos do teu jantar embrulhados num grosso cobertor. "O paizinho é um grande homem" afirmaste "E não se preocupe, a mãezinha está nervosa, mas isto passa-lhe".

Tu sempre me idealizaste, Gertrud, mas não sou um grande homem, porque não vos soube tornar felizes, nem à tua mãe nem a ti... A tua mãe quis-me quando eu ainda era um rapazinho extravagante com reputação de espírito forte e ela tão atilada, filha dum pregador evangélico, mas eu nunca lhe soube retribuir. É verdade que eu nunca a atraiçoei, a não ser com o meu amor por isto - e com gestos longos como uma carícia, enxugou o óleo de imersão do seu microscópio (já não aquele microscópio artesanal que a esposa lhe oferecera num distante dia de aniversário, mas o que lhe fabricara, segundo indicações expressas, o ilustre Prof. Abbe da Universidade de Iena) - Podes crer-me! Nunca a atraiçoei até hoje, nem mesmo antes do nosso matrimónio, nos bairros de estudantes de Gotinga, quando eu largava as minhas investigações sobre a histologia do sistema nervoso desejoso de me aturdir numa orgia académica como os meus colegas de famílias mais endinheiradas. Nem sequer nos cais de Hamburgo onde as moças de taberna que tentavam os marinheiros me teriam podido facilmente caçar, de tão embrutecido que eu andava pelo meu trabalho com os primeiros casos de cólera dos quais me ocupei. Mas nunca lhe tive verdadeiro amor, apercebo-me disso agora... Durante aqueles cinco meses que passei como médico militar, num dos nossos exércitos que invadiu a França, raras vezes pensei na tua mãe. Em ti, a minha pequerruchinha, ainda pensava, quando me estendia no meu beliche entre duas amputações, com receio de que a soldada que eu mandava para casa não chegasse a tempo para as tuas papas...

Mas logo em seguida, se não estivesse por perto nenhum oficial que me pudesse fazer perguntas estúpidas, sacava de baixo do catre um livrinho escrito pelo nosso inimigo Pasteur, punha-me a matutar naquelas passagens referentes às infecções das feridas operatórias que tanto inspiraram o cirurgião Lister, e tudo o mais se varria do meu espírito. "Um trabalho destes também eu fazia" dizia para mim mesmo "talvez não com tanto estilo literário, mas certamente com maior exactidão... Em combate, esse Pasteur e eu faríamos triste figura; ele já mal deve conseguir pôr uma espingarda ao ombro e eu, míope como sou, nunca dei um tiro certeiro... Mas quando esta loucura dos nossos governantes tiver amainado, havemos de nos defrontar como bravos, no nosso próprio campo de batalha..." Depois caía em mim: "Não sejas louco, Robert, lembra-te de que tens mulher e uma filha para criar e de que a tua família não se poupou a esforços para que pudesses ser médico e ganhar honestamente uma vida sem privações. Não deites tudo a perder com as tuas veleidades. Bem, é óbvio que a família desse Pasteur também teria direito a esperar que ele, como químico, conseguisse uma melhor remuneração da parte dos industriais seus patrocinadores, cujos negócios ele tantas vezes salvou da ruína. O pai, com o seu bom senso de velho soldado, muitas vezes o terá admoestado! E mesmo assim, o Pasteur conseguiu arranjar uma mulher, ainda por cima filha do reitor da Universidade de Estrasburgo, que lhe deu um filho guerreiro e uma filha que com oito anos já sabia manejar um microscópio. Mas quem sabe quantos dissabores o Pasteur e a sua esposa exemplar já terão causado um ao outro!"- e aqui, o sábio cruzou ponderosamente os braços, encarando a filha com gravidade - Vem tudo isto para te dizer, Gertrud, que o casamento é uma dura provação mesmo no mais simples dos casos, em que o homem e a mulher são da mesma raça, da mesma religião e do mesmo fundo cultural... Já percebi que te sentes atraída pelo francesinho Thuillier e compreendo isso perfeitamente. Ele é imaginativo e demasiado precipitado nas suas afirmações, como muitos da escola do Pasteur. No entanto, não lhe nego qualidades. Deixar as doçuras da vida parisiense para vir para este desterro, quando se tem a idade dele, é uma prova de carácter! Mas por isso mesmo, esse Dr. Roux teria razão em nunca dispensar um tal colaborador. E por maior que fosse a vossa paixão, a vossa vida em comum nunca daria certo... Gertrud corou violentamente.

- Paizinho, nunca demos mais do que um beijo fugidio, um beijo de irmãos, acredite! Mesmo que o nosso desejo fosse mais longe, não teríamos tido oportunidade para outra coisa...

- Eu acredito, filhinha! És tão senhora de ti como as heroínas da Bíblia de quem a tua mãe te falava e o Thuillier (a julgar pela maneira como o Roux se deve ter responsabilizado, diante dum beato como o Pasteur, pelo seu comportamento nesta cidade de perdição!) mostra-se certamente tão honesto como José do Egipto. Mas isso não altera o contexto do vosso problema. A última guerra foi cruel e outras virão...

Abafando as suas dúvidas quanto à sinceridade de Thuillier, Gertrud argumentou, numa voz que se esforçava por tornar firme:

- Mas paizinho, é justamente esse clima de ódio que o Thuillier e eu queríamos contrariar! Vamos lutar juntos por um mundo com menos sofrimento...

- Eu também quis lutar por um mundo com menos sofrimento, Gertrud! O Pasteur também quis lutar por um mundo com menos sofrimento! Mas bem feitas as contas, ambos conseguimos sacrificar aqueles que nos eram próximos mais do que qualquer negociante de armamento sacrificou a própria família!

- Não diga isso, pai! Tenho orgulho em si, tal como a filha de Pasteur tem orgulho nele...

Koch apoiou os nós dos dedos sobre o coração, talvez sentindo já, na sua emoção, os prenúncios da angina de peito que pouco a pouco o viria a vencer.

- As filhas sempre apreciam um pai que rema contra a corrente. Mas o facto é que o Pasteur, com a sua dedicação à ciência, ficou hemiplégico aos quarenta e cinco anos e eu, embora me queira mostrar rijo como um verdadeiro ostrogodo, talvez morra mais novo do que ele!

- Está-me a assustar, paizinho!

- Não te quero assustar, minha Gertrud, nem te quero roubar os teus ideais. Só quero que não tenhas uma desilusão. Lembras-te daquele sapo que eu guardava dentro dum boião de vidro, no meu laboratoriozito de médico de aldeia? Era um animal que me intrigava, pois notava nele uma aparente imunidade natural contra muitas das doenças infecciosas que mais atingem os seres humanos. A ti causava-te repugnância, contudo caçavas insectos para ele e surpreendi-te um dia a acariciar-lhe as verrugas do lombo. Suponho que estarias perguntando a ti própria se o sapo seria um príncipe encantado e se bastaria um beijo teu para quebrar o feitiço. Tu ainda és assim, uma criancinha que imagina ser suficiente um beijo seu para transformar num paraíso este mundo de brutalidade e de miséria!

Koch apertou a filha nos braços e Gertrud não pôde sufocar um soluço, pensando se os braços de Thuillier seriam mais robustos e se a segurariam com maior sofreguidão.

- Chora à vontade, filhinha... Não te quero menos por gostares desse Thuillier e compreendo que ele te queira conquistar. Uma menina como tu vale as paragens mais disputadas da Europa, desde as colinas da Boémia às praias do mar Báltico!

Gertrud conseguiu sorrir por entre as lágrimas e com um coquetismo ingénuo, enrolou uma madeixa num dos dedos:

- Se o pai fosse político ou militar, esse seria um elogio rasgado! Mas sendo quem é, não poderia antes dizer que eu valho qualquer bactéria ainda por descobrir?

O sábio tocou as faces da filha com a mesma devoção com que limpava o fino pó egípcio depositado sobre o seu material de laboratório.

- Estás muito atrevida hoje! bom, bom, concedo-te isso... Vales bem a glória de descobrir o agente da cólera. E se esse Thuillier te quer bem, pensará decerto o mesmo!

 

Gertrud bem-amada!

Deixando o laboratório da missão francesa, Thuillier embrenhou-se, ao trote lento da sua mula, pelas ruelas onde a sombra rendilhada dos mucharabiés já se alongava entre o cascalho e onde os lojistas já recolhiam os seus toldos. O impulsivo jovem soltava alguma praga ouvida aos cocheiros do Boulevard Saint-Michel sempre que alguma ondulante fila de dromedários lhe atravancava o caminho; porém desviava-se com diligência para não pisar os mendigos enroscados sobre palhaças de sorgo que se aninhavam contra os muros lazarentos para alcançar algum conforto.

Ao soar o apelo à oração duma mesquita cujo portal, uma fina ogiva ultrapassada, se destacava em granito róseo de entre os casebres, Thuillier apeou-se respeitosamente, não querendo escandalizar os fiéis. Dotado do apreço pela liberdade de pensamento que lhe havia transmitido o meio académico francês, não temia decerto o furor dos graves kaíms, os servos dos lugares de culto, que amontoavam as babuchas dos crentes à entrada da mesquita, nem as maldições que lhe poderiam rogar alguns dervixes de barbas esquálidas que lhe lançavam olhares ferozes debaixo dos seus barretes agudos. Mas nada lhe custava não ofender os pobres que necessitavam o amparo do Islão para manter a sua dignidade... E já havia notado que, se a bata que se percebia atirada sobre a garupa da mula denunciando-o como um daqueles homens de ciência ocidentais, tidos na conta de ímpios, lhe granjeava animosidades, o mesmo não acontecia com a medalhinha da Virgem das Graças oferecida pela Sra. Pasteur. Os muçulmanos podiam votar ao desprezo o homem pouco observador das coisas sagradas e no entanto ter consideração pelo crente doutra fé...

Verdadeiro filho espiritual de Pasteur, Thuillier não era decerto como tantos jovens ambiciosos que pretendem singrar na notoriedade científica e que, temerosos de escandalizar aqueles que os poderiam ajudar a ascender, adoptam segundo as circunstâncias uma religiosidade convencional ou um não menos convencional cepticismo. Era sincero nas suas certezas e nas suas dúvidas, e a familiaridade do seu mestre havia-lhe ensinado que a grandeza da França residia tanto na firmeza de convicções como na aceitação da liberdade de investigar, sem entraves dogmáticos...

Thuillier desembocou na Praça dos Cônsules, a cidadela dos estrangeiros influentes, entre instituições financeiras que arvoravam as suas placas de letras douradas, muros de legações diplomáticas por detrás dos quais espreitavam as folhas carnudas dos aloés, e fachadas enxovalhadas de cafés onde os servidores indígenas, de longos cuffiés decorativos, se atarefavam em torno das mesas às quais se abancavam rufiões de todas as proveniências. Um compatriota, filho dum armador de Toulon, chamou-o, erguendo o copo em que sacudia um par de dados, das profundezas dum boteco enfumarado pelos narguilhés, e o pobre investigador, apesar de atraído pelo cheiro do tabaco turco, escusou-se com delicadeza. Conhecendo a história das ciências em Alexandria (numa versão moralizadora que lhe fora transmitida por Pierre-Auguste Bertin, o seu professor de física e condiscípulo de Pasteur) Thuillier não pretendia decerto repetir o erro dos sábios da antiguidade que, apesar de desfrutarem da abundância daquela cidade desde sempre mercantil, evitavam o convívio dos negociantes, julgando-os seres desinteressados das coisas do espírito. Porém, incomodava-o presenciar o modo desumano como muitos estrangeiros, quer fossem representantes dos governos ocidentais ou antigos súbditos da Sublime Porta, tratavam os felás...

Mulheres das diversas nações da Europa, cujos rostos empoados não tinham sequer a poesia exótica do hené, cosmético que as antigas egípcias consideravam tão purificante para a alma como para o corpo, circulavam entre os consumidores, abastecendo-os de balões de álcool ocultos sob as suas saias tufadas. Thuillier compreendeu o desdém que os egípcios sentiam pelas mulheres ocidentais. Quanto mais louváveis eram aquelas mulheres fellahinas, com as suas faces curtidas como velho couro marcadas por tatuagens e uma desvaliosa argola passada numa asa do nariz, agachadas sobre o asfalto, atrás dos seus cestos! Foi a uma delas que Thuillier, sedento e desconfiado da água que escorria dos fontanários públicos, comprou um cartucho de tangerinas, atirando para o regaço da vendedora o seu último pará.

Um correio que, segundo a tradição alexandrina, abria caminho para uma carruagem apinhada de elementos da alta sociedade, empurrou com rudeza o jovem investigador. Da carruagem sobressaía o chapéu de ramagens duma imponente senhora, na qual Thuillier reconheceu a esposa do Cônsul do Império Alemão, senhora que, chocada com a pobreza das roupas da filha do seu mais ilustre conterrâneo, tantas vezes acompanhara Gertrud aos souks onde se amontoavam xailes da Caxemira, lenços de Beirute, rendas da Galada, estofos de Damasco e seda de Brusse, numa tentativa de a levar a vestir-se condignamente... A arguta esposa do Cônsul decerto surpreendera em Gertrud alguma atitude que a levara a suspeitar que o moço francês ousara erguer os seus desejos até ela; por isso considerou demoradamente Thuillier detrás da sua luneta de tartaruga. Em resposta, Thuillier levou os dedos à aba do chapéu num gesto estudado para não parecer nem humilde, nem insolente, e sentiu-se imensamente aliviado quando a senhora volveu o seu olhar reprovador para dois funcionários do consulado, que notara num ângulo da praça já envolto em sombras, onde um droguista vendia discretamente bolos polvilhados de haschish.

A vivacidade de Gertrud tornara-a apreciada, a despeito da sua modéstia, por muitos moços filhos de dignatários europeus e as jovens casadoiras das diversas colónias estrangeiras já teciam a esse respeito comentários pouco caridosos atrás dos seus leques. Mas aqueles moços, com as suas pistolas de cabos marchetados de madrepérola, que tentavam demonstrar uns aos outros ser homens apenas ocupando os seus dias ociosos a caçar feras no deserto, não despertavam em Thuillier sentimentos de despeito. Decerto dispunham de servas negras de Dongola para lhes engraxar as botas e de pálidas circassianas para lhes arear as armas, mas nunca dominariam Gertrud.

O amargurado Straus podia considerar Gertrud uma mulher da estirpe dos hunos, apenas disposta a entregar-se àquele que a adornasse com o saque de todo um continente, mas Thuillier estava certo de que nenhum dos rapazes que frequentavam os jantares de negócios ou os salões diplomáticos de Alexandria agradaria à sua amada. O jovem francês sorriu para si próprio, fantasiando Gertrud como uma bárbara, criada com o leite das mesmas éguas que geravam os cavalos de batalha, pronta a cortar os cabelos para com eles entrançar cordas para os arcos dos guerreiros e tendo sempre uma vasilha de hidromel pronta para estes retemperarem as forças após haverem destruído uma capital da Civilização. Mas Gertrud era a digna filha do curandeiro da horda e só se deixaria conquistar por um sábio. Todo o ciúme de Thuillier provinha de saber que nessa soturna Berlim, Gaffky sempre pudera repousar nas formas sadias de Gertrud os olhos fatigados de quantificar os bacilos da tuberculose presentes nas preparações que o seu chefe o encarregava de examinar; que com meigos pedidos de desculpas Lõffler a acomodava numa cadeira e Behring lhe lançava sobre os ombros o seu capote militar quando ambos esses assistentes demoravam Koch em redor da mesa de autópsias, procurando demonstrar como o microrganismo da difteria podia matar por intermédio duma toxina, sem se propagar pelo corpo; que ao fim de muitas tardes invernosas Ehrlich, ardendo de febre mas sem conseguir deixar nem os seus charutos, nem os compostos peçonhentos cujo efeito sobre os tecidos vivos pretendia estudar, já sentira sobre a testa a fresca mão da filha do Mestre... Mas o mundo microscópico tinha descobertas de sobra para todos, e também Thuillier deixaria o seu nome gravado na história das ciências laboratoriais. As preparações que estivera revendo pareciam confirmar as suas hipóteses.

No sangue de todos os moribundos de cólera havia encontrado aqueles corpúsculos, alguns escavados em forma de taça, outros redondos e espiculados, que lhe haviam inicialmente despertado a atenção, circulando entre glóbulos vermelhos reduzidos em número... Seria lícito supor que estava perante o agente da cólera? Dadas as suas dimensões, esses corpúsculos aproximavam-se de alguns estádios de vida dos hematozoários descobertos por Laveran... Talvez fosse aconselhável executar colorações utilizando o mesmo método deste, que recorria a uma combinação de eosina e azul de Borrei, para melhor definir a estrutura interna desses eventuais parasitas. Talvez...

 

Histórias do princípio do Mundo

Thuillier já havia sugerido a Straus (cujos conhecimentos de parasitologia médica eram bem superiores aos do próprio Roux) que efectuasse determinações de algumas das propriedades químicas do plasma no qual banhavam esses corpúsculos, talvez dos seus níveis de glucose, de ureia e de bicarbonatos, e surpreendera-o o olhar torvo que o sábio da Alsácia lhe havia então lançado... Mas notando o ar atónito do jovem perante tal reacção em face duma tarefa que devia corresponder ao seus próprios projectos de pesquisa, Straus procurara adoçar a sua expressão e, no tom dum irmão mais velho procurando trazer de volta ao redil paterno o estouvado benjamim, comentara:

- Isto dá-me saudades dos anos passados no laboratório de Claude Bernard, quando me aplicava ao estudo das alterações do meio interior... Pobre Claude, que ficou sempre combalido das entranhas depois daquele surto de cólera que assolou Paris uns cinco anos antes da guerra... Já lá está, no paraíso dos livres-pensadores, ele tão racionalista mas a quem o próprio Pasteur acusou de excesso de misticismo nas suas teorias, quando admitiu a possibilidade de ocorrerem fenómenos de fermentação na ausência de microrganismos... Na verdade, era um homem cheio de contradições. Também ele, embora tão humilde, tinha por vezes os seus assomos de impaciência, bem compreensíveis dada a frieza que sentia na sua vida íntima. Ai do sábio que se deixa enredar por uma mulher! E agora que reparo, o vidro destes balões de ensaio não é suficientemente inerte. Será necessário lavá-lo com uma solução de bicromato em ácido sulfúrico, para eliminar os grupos reactivos. Importa-se de me fazer isso, Thuillier?

Abandonando a Praça dos Cônsules por entre as bancas que os cambistas desarmavam ensacando bastos rolos de divisas e as secretárias improvisadas pelos escribas públicos ao portão das repartições, Thuillier esgueirou-se pelas vielas miseráveis que desaguavam no porto. Os altos prédios conseguiam tapar o esplendor do céu e a vasa dos regos chapinhava contra os cascos da mula. Tais vielas eram desaconselháveis a um jovem europeu, mas Thuillier era dotado do génio entre arrojado, dadivoso e brejeiro que animava aqueles meninos vadios de Paris, criados nos becos onde se eternizavam os destroços das barricadas, e aventurou-se entre as fachadas periclitantes assobiando uma toada ouvida aos acordeonistas das pontes sobre o Sena.

A proximidade do cais foi-lhe anunciada por uma combinação de cheiros a pez, especiarias e algas putrefactas, e os sons cortantes duma altercação chegaram-lhe aos ouvidos: um grupo de estivadores, de corpos nus e ossudos, apresentava as suas reclamações aos proprietários dum carregamento. Muitos dos capitalistas de Alexandria, oriundos das paragens do Mediterrâneo, haviam-se eles próprios iniciado na vida como trabalhadores das docas antes de conquistarem os seus títulos na bolsa e os seus palacetes dum gosto rococó onde coleccionavam odaliscas dos oásis... Uns e outros discutiam com uma idêntica linguagem híbrida, na qual se percebiam sotaques de sírios, libaneses, napolitanos, andaluzes e macedônios; mas os negociantes tinham por si as vergastas dos capatazes. Alguns homens maciços da Anatólia, antigos polícias dos tempos do Paxá, olhavam a cena, enfastiados. Que os marujos ingleses que rondavam o porto restabelecessem a ordem, já que se consideravam senhores do Egipto! Tentado a intervir, o ardente Thuillier teve porém o bom senso de passar de largo: já trazia delineada a sua missão para essa tarde. Perguntou o caminho do edifício da alfândega a um grumete de embarcação pesqueira, que entusiasmava os contendores com silvos agudos, e atirou-lhe em paga uma das tangerinas que comprara. Seguindo a linha de água que ia ter à desembocadura do canal, depressa reconheceu o casebre de Faridah, onde as duas últimas suratas do Alcorão (protegendo contra, respectivamente, perigos físicos e perigos espirituais) se encontravam pintadas no lintel naquela cor pastel que os egípcios afirmavam afugentar os espíritos malignos...

No umbral, apenas defendido por uma esteira de palha entrançada, Thuillier hesitou. Como iria encontrar os irmãozinhos de Faridah? Era já um facto excepcional que todos tivessem, até agora, sobrevivido à epidemia. As crianças eram particularmente susceptíveis à cólera e a morte sobrevinha frequentemente no meio de convulsões semelhantes a um ataque de epilepsia; outras apresentavam uma forma clínica enganadora, fatal em poucas horas, sem diarreia mas com o ventre distendido pelas ansas intestinais paralisadas... Ainda não era claro se a exposição prévia ao agente da doença induzia ou não uma imunidade duradoura, mas mesmo que a resposta a tal pergunta fosse afirmativa, os três pequerruchos, nascidos após o último surto da doença, não teriam ainda criado defesas. E, no entanto, embora não tivessem exposição prévia à cólera, outras mazelas, endémicas entre a população local, não lhes teriam decerto faltado!

Era verdade que, na campina egípcia, os casinhotos mais lôbregos tomavam um enquadramento de palácios feéricos, cercados de juncais de donde sobressaíam os chifres anilados dos gamos selvagens e de bosques de sicômoros onde pousavam os majestosos mochos diurnos que limpavam de murganhos os trigais. Os rapazinhos podiam gastar as suas forças fazendo girar a nora e as rapariguinhas perder a sua beleza juntando os excrementos dos bois para acender o lume, mas o céu sempre límpido, ainda não maculado pela poluição que já causava tantas doenças respiratórias em Alexandria, era como que uma continuação do invariável paninho azul das suas túnicas. A benevolência do clima permitia-lhes uma existência bem mais branda do que a dos pobres amontoados nos centros industriais da Europa. Decerto rareava a comida quando os esbirros dos pequenos tiranos locais confiscavam os gansos mais anafados e as vacas que produziam melhor leite, mas restavam sempre os bolos do mel recolhido nos penhascos que amuralhavam o deserto e algum exemplar das reputadas espécies de peixes do Nilo, consideradas um festim aristocrático desde a antiguidade, apesar da sua capacidade para albergar vermes patogénicos...

Pelo contrário, aqui em Alexandria, coexistiam as doenças da pobreza ancestral e as da miséria recente. Decerto que os irmãozinhos de Faridah não haviam sido submetidos àquelas mutilações que, escassas décadas antes, as mulheres da tribo entre a qual se recrutavam as dançarinas profissionais e que a política totalitária de Mehemet-Ali empurrara para a clandestinidade, praticavam nos meninos do povo, para que estes, tornados imperfeitos, não fossem alistados no exército do quédive. Mas, talvez justamente por isso, agora que as memórias da opressão sofrida sob os antigos dominadores haviam começado a dissipar-se, os europeus haviam ganho, na imaginação popular, a responsabilidade por todos os vexames que pesavam sobre o Egipto, sobretudo após o intenso bombardeio da zona ribeirinha da cidade, no prelúdio da ocupação inglesa. Tranquilizava algo Thuillier o supor que, de todos os estrangeiros, os franceses seriam aqueles cuja reputação menos tinha descido no conceito dos indígenas.

Os franceses haviam chegado como inimigos, sedentos de glória militar, mas a sua fácil vitória sobre os príncipes mamelucos tornara-os respeitados. Os estudiosos vindos no séquito de Napoleão, dando a conhecer ao mundo o glorioso passado do Egipto, haviam tornado possível um lucrativo comércio com os turistas. Os paxás haviam eles próprios querido intervir na política interna da França, o país irmão que havia tomado o seu partido contra os seus suseranos do império otomano. Sob o domínio de Ismail, tornara-se prática enviar coercivamente estudar para Paris os meninos mais afoitos das classes populares. Decerto, tal medida não deixara de provocar revolta entre os pais, que preferiam que o seu filho soubesse brandir a enxada no amanho dos canais de regadio, ao invés de se tornar num manga-de-alpaca, criado entre os vícios da sociedade ocidental... Desde que a França empreendera a abertura do canal de Suez, a despeito dos protestos da Inglaterra temerosa de perder a sua preponderância na rota das índias, a competição entre as duas potências tinha-se acelerado e quando, no decurso das rebeliões nacionalistas que se haviam seguido à abdicação de Ismail Paxá os ingleses haviam ocupado o Egipto, tal fora um grave revés para a França. Contudo, o facto de ser francês era ainda considerado circunstância atenuante para os pecados dum europeu... Por isso, foi sem mais dúvidas que Thuillier espreitou o interior do casebre.

A pobreza da família era atestada por uma panela de barro, que uma folha de hortaliça defendia da poeira e das moscas, e que fervia sobre um brasido aceso entre três pedras. Lá estava aquela que, desde tempos imemoriais, era a comida dos egípcios mais miseráveis: uma mistela de cebola, rabanetes e alho, a que um osso de carneiro fervido juntamente procurava acrescentar um sabor mais rico... Duas crianças, uma menina entrouxada em véus mal embainhados e um menino inteiramente nu agachado sob uma cesta, esponjavam-se no chão de terra batida. A vermelhidão que lhes debruava as pálpebras logo permitiu a Thuillier pôr a hipótese diagnóstica de conjuntivite infecciosa; caso se tratasse de tracoma, a outra doença oftalmológica prevalente na região, os sinais clínicos seriam menos exuberantes, embora com um prognóstico mais reservado a longo prazo. Um outro menino, mais avançado em anos, retocava uma estatueta recém-fabricada, pertensamente da dinastia de Sesóstris, que firmava entre os pés calejados. Vendo-lhe a cabeça cujas peladas, ocasionadas por algum daqueles fungos implicados como agentes patogénicos desde os trabalhos de Schõnlein uns quarenta anos atrás, transbordavam debaixo do gorro de pele de cabra, Thuillier recordou o magnífico cabelo de Faridah, agora amarrado e oculto sob a gaze que fora uma ligadura... Ocupado com aquele ídolo duplamente falso, o menino repetia para si próprio, numa cantilena monótona, as palavras que ia soletrando duma folha de lata pousada a seu lado e que era a cartilha da escola corânica. Curvada sobre um tosco almofariz de pedra, Faridah moía a farinha de durah enquanto, decerto para acalmar a impaciência dos mais pequenos, contava um daqueles relatos transmitidos à volta dos fogos de acampamento ao longo da rota da seda e que começavam invariavelmente por "em nome de Deus, O beneficente, O misericordioso".

- Ora numa noite em que o sábio Lahur vigiava a fervura das suas retortas, eis que surgiu diante dele uma figura com três pares de asas e um alfange negro de sangue. Lahur caiu de joelhos, rasgou o seu cafetão em sinal de luto e velou os olhos com os panos do seu turbante, pois tinha reconhecido o anjo Azrail, que leva as almas a julgamento. "É inútil chorar, Lahur" escarneceu o anjo "Tenho ordens de Deus para te levar. Que sejas o maior sábio de Lahore não te dá o direito de viver eternamente!" "Desgraçado de mim" lamentou-se então Lahur "Morrer quando ainda me restava tanto por descobrir! Se eu tivesse suspeitado que vinhas, teria selado todas as frestas do meu laboratório para te vedar o caminho!" O anjo abafou os gemidos de Lahur com as asas "Ter-te-ás tornado igual aos teus colegas infiéis? Um incrédulo não merece o nome de sábio, e é certamente incrédulo aquele que duvida do poder que Deus me deu, a mim que entro nos castelos melhor defendidos" com o seu último fôlego, Lahur tentou então uma artimanha: "Ó grande Azrail, não te escandalizes! Mas é próprio dos sábios querer verificar todas as coisas, e muito me honraria que me demonstrasses o teu poder! Vês aquela garrafa de gargalo tão fino quanto um cabelo, sobre o bordo da chaminé? Duvido que te conseguisses introduzir dentro dela!" Querendo estarrecer o sábio, o vaidoso Azrail volveu-se num fumo subtil, e penetrou dentro da garrafa. Lahur, que apesar da muita idade ainda tinha gestos rápidos, mergulhou então o gargalo da garrafa na sua fornalha, e derretendo o vidro aprisionou Azrail no interior. Depois, guardou a garrafa num nicho por trás dos seus alfarrábios, e todo satisfeito continuou o seu trabalho...

O francês já compreendia aquela miscelânea linguística usada no porto de Alexandria, e teve um riso aberto que fez coro com as gargalhadas algo ofegantes dos dois pequerruchos. Faridah largou o pilão e aconchegou mais ao pescoço a gola da sua túnica, como é próprio duma crente perante um infiel. Thuillier pousou os seus apetrechos e estendeu as mãos abertas em sinal de boa vontade.

- Salaam! Desculpe se a hora não é oportuna, Faridah... Mas o Dr. Roux soube que dois dos seus irmãozinhos estavam mal de saúde e, como a Faridah tem feito tão bom trabalho , pediu-me que os viesse visitar...

Os rigores da vida haviam ensinado Faridah a desconfiar do humanitarismo apregoado por certos estrangeiros.

- Hakim Roux é muito atencioso, mas é inútil que hakim Thuillier perca o seu tempo - murmurou, empregando o tratamento dado àqueles cientistas e filósofos itinerantes que corriam mundo procurando encontrar resposta às interrogações sobre a vida e a morte. Haja o que houver, não creio que os europeus tenham já melhores remédios do que o bálsamo de Meca misturado com ocre amarelo que um dos barbeiros do Porto Ocidental nos arranja para estes casos...

- Talvez não, de facto, mas... - Thuillier mascava uma tentativa de resposta. De facto, a quimioterapia ainda se encontrava nos seus primórdios; não estavam determinadas com exactidão as doses ideais de nitrato de prata e oxicianeto de mercúrio a empregar contra o bacilo causador da doença...

com uma compostura que era uma combinação de modéstia e desafio, Faridah não o deixou prosseguir.

- Mas, para os ocidentais poderem um dia fabricar remédios excelentes, convém que conheçam bem as causas das doenças, não é assim? E, para isso, têm de examinar muitos casos, certo? De modo que os meus irmãozinhos lhes podem ser de utilidade, estou a entender?

O jovem sábio resmungou uma asneira no mais genuíno calão usado pelos funcionários que capturavam cães raivosos para o laboratório de Pasteur; já se habituara a pior acolhimento da parte daqueles cujos tugúrios devia invadir, mas sentia que a sua capacidade de argumentação se ia esgotando.

 

Dança envolta em aromas de sândalo

Entretanto, ou fosse por ter reflectido que era devida docilidade para com estes estrangeiros algo imprevisíveis, ou por ter sentido uma nota de sinceridade no tom desabrido de Thuillier, a egípcia chamou os dois pequerruchos que se haviam acaçapado atrás da lareira.

- Aicha, Amru, cheguem aqui... Esteja à vontade, hakim. Os meus irmãos estão habituados a sofrer; vão saber comportar-se. E tu, Gamal - acrescentou, dirigindo-se ao mais velho que ainda salmodiava a cartilha - Vê se ficas calado para o hakim fazer o seu trabalho...

Amru foi o primeiro a avançar, estendendo os dedos magros para a medalhinha que percebera ao pescoço de Thuillier.

- Rezas à "Bibi Maryam"? - inquiriu, empregando o carinhoso nome árabe para a Mãe de Jesus.

Thuillier segurou a cabeça do menino entre as mãos, puxando-lhe delicadamente as pálpebras inferiores com os polegares.

- Não rezo muito. Mas tento fazer com que o meu trabalho possa ajudar os meninos como vocês a ter saúde e acho que isso deve agradar a Deus, a "Bibi Maryam" e ao vosso Profeta...

O edema dos tecidos dificultava a observação, mas o rubor intenso que orlava a córnea e a turgescência dos ângulos palpebrais deixaram poucas dúvidas a Thuillier. Um emaranhado de fios muco-purulentos atapetava o fundo de saco conjuntival. Embora piscando involuntariamente para se defender da luz que o feria, o menino deixava-se examinar sem resistência, ao contrário de qualquer criança europeia. No entanto, para a operação que consistia em recolher, com um mínimo de contaminação pela flora comensal da pele, o exsudado conjuntival onde tencionava pesquisar o agente patogénico, Thuillier requisitou o auxílio de Faridah. Depois, repetindo o procedimento na menina, pediu mais alguns dados da história clínica. A época de aparecimento dos primeiros sinais da doença correspondia à das recrudescências sazonais da doença? Quais haviam sido os sintomas predominantes, uma baixa da acuidade visual ou uma sensação de secura e corpo estranho que levava a coçar, podendo contribuir para uma superinfecção? Os dois doentinhos partilhavam as mesmas mantas que o resto da família, o que facilitaria o contágio?

Faridah respondia vagarosamente, com um bom senso que supria a sua falta de instrução. Porém, interrompendo o diálogo, Aicha soluçou, enxugando a lagrimazita turva que lhe rolava pela bochecha:

- És um hakim de verdade?

Thuillier deteve o gesto rápido com que depositava o pus recolhido numa zaragatoa sobre uma lâmina de vidro que tencionava examinar ao microscópio. Pesava-lhe naquele momento não ter os conhecimentos clínicos nem as mãos de Roux, tão hábeis nos actos médicos, mas não podia deixar perceber tais sentimentos às crianças.

- Claro que sou, Aicha! Por que perguntas? Magoei-te?

A garotinha fitou Thuillier criticamente por entre as pestanas pegajosas.

- Não é isso... Mas, nas histórias que a Faridah nos conta, um hakim é sempre muito bem pago pelos beis e paxás a troco da sua sabedoria. Dão-lhe um jardim com ervas raras, jarrões de incenso e mirra e...

- E um grande harém - concluiu, extasiado, o franzino Amru. - Estou a ver poucochinho, mas dá para perceber que não tens cara de quem é dono de um grande harém!

Thuillier quase deixou que a sua preparação microscópica se estilhaçasse no chão. Este comentário inocente trouxe-lhe à memória mil reflexões. Desde que um tribunal revolucionário havia condenado Lavoisier à guilhotina, declarando que a França não necessitava de cientistas mas sim de justiça social, os sucessivos governos franceses haviam tomado consciência de que só o progresso científico poderia dar uma base sólida ao engrandecimento da nação. No entanto, o prestígio das realizações científicas não havia sido acompanhado pelo bem-estar material daqueles que as levavam a cabo. Claude Bernard fora sepultado com honras oficiais, mas a sua morte havia sido apressada pelas condições de humidade do laboratório onde realizara os seus estudos fisiológicos. Pasteur, após se ter visto constrangido a montar um laboratório por suas mãos numa mansarda da Escola Normal Superior, pardieiro de morcegos e ratazanas, pudera falar de cátedra às autoridades do seu país exigindo a construção de vastos centros de investigação que ele, na sua linguagem floreada, comparava a airosas catedrais onde a humanidade padecente deve fortificar-se e melhorar os seus instintos. No entanto, tal um asceta que se compraz em orar num templo sumptuoso mas habita uma cela despojada, respondera a Napoleão III e à Imperatriz Eugenia, admirados da modéstia do seu viver, que em França deveria ser considerado vil o homem de ciência que empregasse o saber em seu proveito... Com a franqueza da sua juventude, Thuillier, amante da ciência mas, por isso mesmo, desejoso de conseguir uma situação que lhe permitisse dedicar-se ao seu amor sem ter de se preocupar com as exigências do dia-a-dia, resmungara por vezes nos cafés contra a incompreensão do Mestre pelas necessidades materiais dos jovens investigadores. Agora que a República estava em vias de legalizar as associações de trabalhadores, era tempo de reivindicações! Ainda na véspera, perguntara a Gertrud se, dada a superior organização dos serviços de saúde alemães, os colegas de além-Reno não tinham uma existência mais desafogada. Ocultando um sorriso, a filha de Koch respondera então que o próprio Virchow, pacifista militante e que tanto lutara perante as elites do seu país pelos direitos dos proletários, reconhecia que os operários das fábricas de canhões tinham mais regalias sociais do que os assistentes do Instituto de Patologia... Por tudo isso, Thuillier encarou agora as crianças com toda a seriedade.

- Aicha e Amru, vocês têm toda a razão: o meu harém não é grande! Mas isso não me torna menos hakim do que os das histórias. Um verdadeiro sábio deve satisfazer-se com aquilo que consegue arranjar...

Faridah deu uma palmada discreta em Amru, para o animar a subir o escadote que levava ao tecto de caniço onde as crianças tinham as suas esteiras, e ajudou Aicha a trepar após o irmão. Depois, com as mãos encolhidas numa dobra da sua túnica, fitou os olhos nas chamas que lambiam o tacho de barro.

- Mil perdões, hakim Thuillier! Os meus irmãozinhos podem mostrar-se muito inconvenientes...

- Ninguém foi mais inconveniente do que eu, Faridah. Interrompi os seus afazeres, e nem sequer a deixei terminar o seu conto...

Acocorando-se, Faridah remexeu o pobre guisado. O cheiro da cebolada tornou-se mais penetrante e o vapor que se elevava da caçoula humedeceu o rosto escuro da jovem. Arrumando a sua maleta sem desviar os olhos da egípcia, Thuillier sentiu que tinha ali ocasião de pôr em prática o que ensinara às crianças sobre a satisfação do sábio com aquilo que lhe cabe em sorte. Ao contrário dos seus colegas, não contemplava Faridah no esplendor da dança, envolta em aromas de sândalo, mas na mais prosaica labuta... Muito ocidental consideraria repugnante a refeição que a jovem confeccionava; mas Thuillier não almoçara, atarefado em examinar cortes do intestino delgado de cadáveres e perguntando a si próprio qual seria a via seguida pelo eventual parasita da cólera para transitar do tubo digestivo para o sangue, e nem o mais refinado jantar parisiense, com respectivo acompanhamento de estrelas do cancã, lhe poria tanta água na boca... Faridah enxugou a testa com a manga, num gesto que lhe acentuou os contornos firmes por baixo do vestido esgaçado, e Thuillier comprazeu-se em verificar como, embora sem artifícios, a moça mantinha os seus atractivos. E Thuillier não considerava tal contemplação como uma infidelidade para com Gertrud: era a mesma capacidade que tinha para apreciar uma mulher com uma mentalidade tão distante, que o levava a amar a filha do rival... Mas, felizmente para obviar a alguns restos de remorso que o francesinho pudesse experimentar, a própria Faridah despertou-o do seu sonho.

- Não fez mal em me interromper, hakim... Isto precisava de apurar mais um pouco... Quanto ao resto do conto, esse é triste e talvez tenha sido melhor passá-lo por alto... - mas, retomando a toada dos contadores de histórias tradicionais naqueles países do Oriente onde o relato oral é considerado uma arte, prosseguiu:

- Por longos anos, o anjo Azrail permaneceu encerrado na garrafinha do sábio Lahur e o seu furor não cessava de aumentar. Ora Deus estranhou que mais nenhuma alma Lhe fosse trazida a julgamento e observou como a terra começava a ser escassa para o sustento dos que continuavam a nascer. Deus permitiu então que se gerasse uma guerra entre o marajá de Lahore e o grão-cã de Dehli, ambos poderosos e com muitos aliados. Durante sete dias e sete noites as gentes de Lahore e as gentes de Dehli combateram rijamente sem que houvesse mortos, pois Azrail continuava prisioneiro e Lahur, que apesar da sua irreverência tinha piedade dos homens, afainava-se em tratar os feridos dos dois lados. Mas na manhã do oitavo dia, um tiro de bombarda arruinou o laboratório de Lahur, e tendo-se partido a garrafa Azrail rompeu a vingar-se. Degolou o sábio Lahur para o castigar da sua ousadia, e depois de ter ceifado muitos milhões de vidas nos campos de batalha entre Lahore e Dehli, espalhou pestilências e fomes pelo mundo inteiro, até que Deus lhe gritou que se detivesse!

- É assim que isso acaba? - a expressão bonançosa de Thuillier ensombrecera-se - Compreendo o aviso. Os meus colegas e eu esforçamo-nos por encerrar o anjo da morte dentro dos nossos tubos de ensaio, e estamos muito ufanos disso. Mas o anjo tem todas as probabilidades de ser liberto pelos ódios entre os povos e ainda há-de troçar de todos nós...

Confusa, Faridah concentrou-se em espalhar a farinha sobre uma chapa humedecida a óleo, para fabricar um gorduroso pão ázimo.

- Hakim, longe de mim querer insinuar tal coisa!

Thuillier não duvidou da veracidade da egípcia. Sim, que sabia ela dos conflitos nos quais se viam envolvidos os homens de ciência da Europa? Mas Gamal, que durante todo este tempo se mantivera silencioso e atento, procurando decidir se Thuillier era ou não um dos seus, não resistiu então a fornecer uma amostra da sua cultura islâmica. O rapazinho fitava a irmã, como que enunciando interiormente o comentário de que as raparigas pouco compreendem de assuntos tais como a ciência e a religião.

- Ora, não acredito que isso se tenha passado assim. Na última aula, o imã ensinou-me mais uma história do princípio do mundo: quando Deus fez o primeiro homem, deu-lhe gosto pelo estudo e inteligência para, com o seu trabalho, compreender os segredos de todas as coisas criadas. E Deus viu que isso era bom; tão bom, que Deus chamou os anjos (que, claro está, têm ciência infusa e não precisam de se esforçar para aprender) e lhes mandou que se prostrassem diante do primeiro homem. Até o anjo Azrail se prostrou, porque a sua obediência a Deus foi mais forte do que o seu orgulho. Só que um anjo todo feito de luz, o anjo Íblis, revoltou-se e respondeu que por maior ciência que os homens pudessem vir a ter, isso não valia que ele se prostrasse. De modo que Deus expulsou íblis do Paraíso e íblis, para se vingar, decidiu fazer com que a ciência tornasse os homens infelizes... Por isso, não se apoquente, hakim. Aconteça o que acontecer, a culpa não terá sido sua ao ofender o anjo Azrail! Esta última parte já é da minha cabeça, mas parece-me que se apesar da boa vontade dos sábios acontecem guerras e mortes, e os grandes senhores se aproveitam das descobertas para maus fins, isso é coisa de íblis, não de Deus nem dos Seus anjos!

E o menino pontuou as últimas palavras dum tamborilar na folha da cartilha. Thuillier considerou Gamal com surpresa.

- Tem um irmão filósofo, Faridah! Os meus parabéns! Faridah esboçou um sorriso pesaroso. Mesmo que tal cumprimento correspondesse à verdade, como poderia Gamal exercitar o seu gosto pela reflexão abstracta, apanhado como estava na espiral da miséria? Sobressaltada por uma voz irada, a egípcia não pôde prosseguir a sua meditação infeliz.

- Irmã! O que te quer esse filho de Shaitan desse estrangeiro?

 

Engenheiros, uma praga no Egipto

O irmão mais velho de Faridah desmentia a doce resignação atribuída ao povo egípcio. Um ódio antigo endurecia-lhe mais o rosto curtido, onde uma barba sem seiva rompia a custo entre antigos golpes de lançadas. A cabeça, que um pano já roto procurava defender contra o sol do Mediterrâneo, não tinha intenções de se curvar perante quem quer que fosse...

- Tem juízo, Harun - suplicou Faridah, correndo as mãos pelos ombros nervudos do irmão numa tenttativa de o serenar - Hakim Thuillier veio ajudar-nos...

Harun cuspiu para as brasas a raiz de gengibre que mascava para acalmar o mal-estar que vinha experimentando após a picada dum peixe-escorpião.

- Esse filho de Shaitan é um hakim Óptimo! Talvez então consiga explicar-me por que é que muito mais da nossa gente morre a urinar sangue, desde que os engenheiros vindos da Europa começaram a "ajudar-nos" dominando as águas do Nilo... Eu posso não ter estudos, mas não sou ignorante do que se passa na nossa terra!

Thuillier conhecia a doença a que o irmão de Faridah se referia, doença ocasionada por um verme cujos ovos, que lesionavam as vias urinárias, haviam sido descritos no Egipto pelo anatomista Bilharz uns trinta anos atrás. Tal condição difundira-se de modo preocupante, desde que haviam sido introduzidos no vale do Nilo os modernos sistemas de irrigação artificial. A epidemiologia das doenças parasitárias era um factor a ter em conta, no desenvolvimento dos países africanos... Mas como o europeu tardasse em formular uma resposta, Harun prosseguiu as suas afirmações demolidoras:

- Bem vejo que o hakim não sabe! Que fale sobre os prazeres do jogo e da bebida, que são assuntos para estas sumidades que nos querem impor as suas leis! com toda a sua falsa ciência do Ocidente, estes sabichões têm a alma mais suja do que um esgoto...

A propósito de esgotos, Thuillier (que, como membro mais novo do grupo de cientistas franceses, recebera a incumbência de combater as larvas de moscas em redor do vazadouro do laboratório) teria podido dizer muita coisa. Os esgotos de Paris, desde a adopção das medidas anti-sépticas popularizadas após os estudos de Pasteur sobre os germes ambientais, eram menos atrozes do que a descrição que deles fizera Victor Hugo; quanto aos esgotos de Berlim, projectados pelo próprio Virchow, estes encontravam-se na vanguarda da engenharia sanitária. Não teve porém oportunidade de exprimir o seu ponto de vista, pois Harun prosseguiu, invectivando a irmã:

- Ganhei estas        lançadas a combater junto a Khartoum para que o quédive pudesse ter escravos; hoje, os nossos jovens são levados a combater para que a rainha de Inglaterra também seja dona do Sudão, e até os negros da savana acham que era melhor sorte ser escravo de muçulmanos do que súbdito de infiéis! Porque te envileces em bailar diante desses, despida como essas rameiras embriagadas de arakish que se exibem à porta dos hotéis? Podias ao menos atar um lenço à cabeça e cobrir-te com um vestido de lentejoulas, como as que são pagas para actuar nos casamentos e nas festas de nascimento... Era mais honroso que vivesses como uma ghawazi, uma cigana do Nilo, e seguisses com as tuas castanholas os peregrinos e os guerreiros através do deserto arábico. Ao menos, contentarias os verdadeiros crentes! Estes filhos de Shaitan não mereciam sequer que actuasse para eles um daqueles rapazelhos pintados e empoados que se meneiam à volta das mesas nos bares do Porto Ocidental, quanto mais uma moça como tu! Quando deixarás de lhes prestar serviço?

- Ora! Quando tu deixares de aceitar o dinheiro que ela te entrega, irmão! - Gamal tomara furiosamente a defesa de Faridah.

Harun vibrou uma bofetada no irmãozinho, mas foi ele próprio quem gemeu de dor, segurando a mão de onde uma larga mancha roxo-acinzentada, bordeada de vermelho vivo, alastrava até ao antebraço e flectindo a custo os dedos.

-Agora, hakim!

Gamai agarrou a aba do casaco do jovem francês e puxou-o para a rua. Compreendendo quanto a sua presença se tornara indesejável, Thuillier deixou-se arrastar, montando atabalhoadamente a sua mula.

Harun persegui-los-ia decerto na direcção das docas, onde era mais fácil a um estrangeiro manter a sua orientação; prevendo isso, Gamal puxou as rédeas da mula para Sul, por entre um dédalo de ruelas de lodo negro onde apenas o lampião de algum vigia punha uma rara mancha de luz. Só muito depois encetou uma via mais larga pela qual já errava o hálito pesado dos limoeiros que cresciam nas hortas em redor da cidade. Árvores de grande porte, anteriores à época em que a moderna Alexandria começara a desenvolver-se com o comércio do algodão, erguiam-se no descampado onde o arruamento terminava abruptamente. Gamal abriu caminho para o atordoado Thuillier, arredando as grossas lianas que formavam festões entre as copas das jujubeiras, e deteve-se entre tufos de espelto, numa dobra de terreno da qual se avistava o Mamoudieh, o tramo principal da linha de canais que rodeava Alexandria, junto ao qual a sociedade elegante da cidade tinha por hábito passear.

- Daqui, acho que o hakim já consegue encontrar o seu caminho de volta. Desculpe não o acompanhar mais tempo, tenho de voltar antes que o meu irmão apronte alguma...

- Já fizeste mais do que devias, Gamal. No fim de contas, foi por minha causa que apanhaste um tabefe!

Gamai passou desdenhosamente os dedos pela bochecha.

- Grande coisa... Deus fez com que o meu irmão ficasse pior do que eu! Um dia ou dois depois de ele se ter picado, apareceu-lhe aquela vermelhidão, e agora que passou pouco mais de uma semana notam-se uns cordões duros que lhe sobem pelo braço e uns crescimentos acima do cotovelo e no sovaco...

- Uma linfangite com adenopatias regionais... - reflectiu Thuillier.

- Ou isso. O hakim é que sabe!

- Parece-me uma forma de erisipela que estudei com meu mestre Pasteur... Nós, infiéis, interessamo-nos por essa doença porque nos dava cabo dos porcos. Claro está que não vale a pena dizeres isso ao teu irmão, ele sentir-se-ia insultado!

Neste ponto, Thuillier deteve-se para reflectir. Koch pretendia já haver descrito um micróbio semelhante ao da erisipela porcina uns cinco anos antes dos franceses e deixara aos seus alunos o cuidado de desvendar se o mesmo se revelava patogénico para o ser humano. Muitas ideias respeitantes ao dito micróbio permaneciam pois no campo das hipóteses. No entanto, Thuillier decidiu aventurar-se, prosseguindo:

- Mas no Homem, esta é uma situação geralmente benigna: mais uns quinze dias, e o teu irmão deverá estar bom. É verdade que a doença pode voltar a manifestar-se mais tarde, quando o corpo se encontre enfraquecido por alguma outra condição... Também pode acontecer que o bichinho que causa esta infecção passe para o sangue, provocando febre, dores nas articulações, um rubor intenso por todo o corpo - levado na sua descrição mórbida, Thuillier ia acrescentar "e eventualmente uma endocardite crónica que pode ser fatal" mas recordando a tempo que se embrenhava por terrenos médicos que lhe eram estranhos achou desnecessário referir esse pormenor, concluindo mais animadoramente - embora mesmo nesses casos, uma pessoa previamente saudável consiga geralmente vencer a doença, quando muito ao fim de poucos meses. Diz à Faridah que ponha ao teu irmão uns pachos de água fervida e lhe faça umas fricções com óleo sulfuroso; deves achar disso à venda no mercado das drogas, já se usava nos tempos de Alexandre. Talvez assim o Harun acalme!

- Inch' Allah! E obrigado pelo conselho, hakim! - lançou ainda Gamal, sumindo-se na treva que se fechava.

 

Perto de Darwin, longe do Génesis

Os cascos da mula de Thuillier rangiam na areia fina que o vento do deserto espargira sobre a avenida ao longo do Mamoudieh. Sombras esguias de palmeiras bailavam sobre as ondulações do canal; àquela hora, o ar superaquecido ainda não se carregara das névoas que anunciavam a madrugada e as silhuetas de palácios, em que as puras linhas árabes se complicavam de arrebiques da renascença veneziana, recortavam-se contra o céu que a brisa do largo varrera das poluições. A água rumorava entre as raízes dos sicômoros que seguravam a margem; numa barca amarrada para a noite um arrais tirava uma melodia langorosa das cordas da sua durbaka; o perfume intoxicante dos hibiscos da Núbia elevava-se dos jardins.

Aquela paisagem idílica não conseguia porém ocultar as torpezas do mundo. Uma caleche, atulhada de turistas ébrios, rolou com estrondo pela avenida, seguida dos ganidos duma hiena vinda beber ao canal e que parecia troçar destes estrangeiros sem temperança. Um magote de servas berberes que se haviam atrasado, pairando na volta do mercado, debandou com clamores à Justiça divina. Tentando desfazer a má impressão deixada pelos outros ocidentais, Thuillier quis recolher as romãs que se haviam derramado dum dos cestos e posto na areia nódoas cor de sangue, e uma das mulheres pisou-lhe a mão com o pé descalço, mas duro como chifre. Os olhos de dois chacais, alertados pelo bulício, luziram por cima dum monte de desperdícios... Então o ardente jovem experimentou um profundo rancor contra os indígenas, contra os estrangeiros, contra as hienas, contra os chacais, contra a noite tépida que o envolvia dando-lhe anseios irrealizáveis, e deixou-se ficar sentado no chão, com lágrimas de rebeldia a pesar-lhe nas pálpebras.

- Ei, camarada! Achas que são horas dum cientista honesto andar na rua, entre foliões?

Thuillier procurou com o olhar a proveniência destas palavras provocadoras, pronunciadas num francês com forte sotaque eslavo. Da amurada dum veleiro de pequeno calado debruçava-se uma figura imponente, na qual Thuillier reconheceu certo zoólogo que, depois de ter calcorreado todos os laboratórios da Europa procurando demonstrar as suas doutrinas sobre a selecção natural, muito dava que falar pela sua propensão para quebrar lanças com as maiores autoridades da época em matéria de microbiologia...

- Prof. Metchnikov, quanto prazer ver o Sr. Dr.! E que alívio encontrar alguém que compreenda as dificuldades dum jovem investigador!

- Chama-me Elias! Posso ter perdido a fé judaica dos meus antepassados, mas é animador ter o nome dum profeta que pôde chamar o fogo do céu contra os impostores! E uma certa camaradagem ser-te-á mais propícia aos desabafos; noto que estás necessitado disso. Não tenho muito mais para te oferecer, senão um chá russo e um lugar para passar a noite (admitindo, claro está, que não te importas de dormir sobre o tabuado da cabine onde improvisei o meu laboratoriozito). Amarra a tua mula a esse cabrestante; mediante um bacshish generoso, qualquer dos barqueiros se ocupará dela...

Thuillier içou-se para bordo e conseguiu achar acolhedor o compartimento atravancado onde o zoólogo amontoara o seu material de trabalho. O dia já tivera o seu quinhão de aventuras, e a hospitalidade daquele reputado professor, por modesta que fosse, lisonjeava-o pela sua familiaridade.

- Deixa-me tapar o microscópio, estava entretido a observar o que se passa no sistema sanguíneo das pulgas de água quando estas ingerem esporos de leveduras patogénicas...

Thuillier contemplava intrigado os aquários repletos duma surpreendente variedade de esponjas e estrelas do mar, cujo estudo era, para ele, de utilidade inteiramente fora do âmbito da microbiologia.

- Estas são as minhas princesas, os animais multicelulares de colónias sésseis e as espécies de simetria pentarradiada. Seguisse eu a Lei judaica, deveria considerá-las impuras, já que entram na categoria dos animais que habitam a água sem possuir escamas e barbatanas. Mas prefiro as obras de Darwin ao Génesis; ensinei na Universidade de Odessa a teoria da Evolução. Estes seres atraíram-me por terem sido os primeiros dentro dos quais observei certas células que se deslocam com movimentos amebóides, e que certamente formam a base da defesa contra os micróbios. Por afecto para com eles, dei-lhes nomes bíblicos... Aquela astéride grávida, em cujas larvas transparentes pretendo visualizar o processo digestivo administrando-lhes grãos de carmim, é a minha Ester. Aquele exemplar tão gracioso mas com tanta capacidade de regeneração, aparentado com os lírios do mar, quase um fóssil vivo, é a Rahab. E àquela espécie gorgonocéfala, com tentáculos tão ramificados, chamei Jézabel, como a mulher pagã do rei Achab que tanto perseguiu o meu patrono Elias!

Acomodado sobre os cobertores que Metchnikov lhe atirara sem cerimónia, Thuillier relatou os episódios das horas precedentes. O zoólogo avivara os carvões do samovar e atarefava-se em busca duma lata de açúcar, perdida algures entre esqueletos de ouriços-do-mar e holotúrias conservadas em formol.

- Não foi desonra nenhuma teres fugido desse egípcio, tão zeloso da virtude da irmã! Também eu sei quando devo bater em retirada; desapareci de Odessa antes que os meus diferendos com as autoridades académicas levassem à investigação de todo o meu passado de ideias subversivas, valendo-me a Sibéria... Percorro o Mediterrâneo; penso instalar-me algures onde possa dedicar-me ao estudo da vida marinha, talvez na Sicília, mais sossegada do que esta Alexandria. Quando o sol destas paragens me é demasiado custoso, consolo-me pensando que podia estar padejando neve em Nova Zembla!

- Tem razão, Elias! Mas todas estas incompreensões me revoltam, a mim que tanto idealizei, nesta campanha no Egipto, promover a solidariedade entre as mais diversas raças e crenças...

Metchnikov, que vazava o chá nas taças, alçou as sobrancelhas fulvas perante tal afirmação veemente, logo retomando o seu tom didáctico, como se ocupasse novamente a sua cátedra em Odessa:

- A Ciência é a tua religião e o Universo a tua pátria, não é isso que vais dizer? Já ouvi essa em algum lado. Resta saber se esses grandes princípios são apenas uma maneira elegante de justificares os teus sentimentos politicamente incorrectos...

- Os meus quê?

- Deixa-me ensinar-te uma coisa, camarada: o que nos distingue dos outros animais é a nossa tendência para recobrir de vestes ideológicas os nossos instintos mais básicos. O ser humano consegue tornar-se mais complicado do que a química celular do seu organismo, devo reconhecê-lo apesar das minhas inclinações para o Materialismo. Por isso quis ser zoólogo em vez de médico! Agora, vamos ao teu caso concreto: tens tão fraco conceito da capacidade de observação dos teus colegas, para pensar que ainda nenhum se apercebeu do teu romance com essa alemã? Isso já é tema de risadas em todas as salas de hotel de Alexandria. Em mim, podes dizer que encontraste um aliado, se o teu amor for sincero! Caso contrário, ninguém te desprezará mais do que eu!

Thuillier sentiu um estremecimento, mescla de admiração e de temor, ao considerar Metchnikov, nitidamente mais possante do que ele próprio, do que Roux ou do que qualquer dos alemães. A barba descuidada que lhe enchia o peito parecia agitada pelo vento das solidões onde habitam os profetas. Naquele momento, Thuillier consideraria natural ver um corvo baixar do imenso céu do Oriente e pousar-se familiarmente sobre o ombro daquele zoólogo descrente, como o corvo que trouxera mantimentos a Elias no deserto... Perante o aspecto enfiado do francês, o russo largou num riso trovejante.

- Eu não tenho o génio de Elias, camarada. Compreendo os amores sem esperança. Quando me apaixonei pela primeira vez, foi por uma jovem que uma tuberculose óssea tinha confinada à cadeira de rodas. Bem sabia que ela não me podia dar felicidade, nem sequer um instante de prazer: mas ela tinha-me sabido consolar nos meus fracassos quando eu buscava a notoriedade científica, animando-me a não desistir dos meus trabalhos sempre que algum dos artigos que eu escrevia era rejeitado e, em troca, senti que me devia unir a ela e dar-lhe um mínimo de apoio durante o tempo de vida que lhe restasse... Quando a doença enfim levou a minha Ludmilla, não senti alívio por me ver liberto do meu compromisso; antes desejei também a morte, e não porque acreditasse poder reunir-me a ela numa vida futura... Emborrachei-me de ópio e fui-me deitar nu sobre um lago gelado, como se fosse no leito de amor que nunca tinha podido partilhar com ela. Mas, urso russo que eu sou, sobrevivi ao frio e à pneumonia que se seguiu. Depois conheci a minha Olga. Uma "shiksa", como dizemos em yiddish, uma rapariga à margem do povo judaico... Essa não me quis inicialmente pela minha obra científica, mas pela minha figura de místico; eu lembrava-lhe a imagem de Cristo naqueles ícones a que ela rezava em criança. Criança, de resto, a Olga ainda era muito, como aliás devia ser a tua alemã quando te enamoraste dela... Eu quis tê-la imediatamente, sem esperar que ela crescesse e se tornasse um pouco mais independente da sua família. Agora pago as consequências, aturo-lhe toda a parentela, toda uma imensa tribo de cunhados e cunhadas, mas não estou arrependido de ter seguido os meus impulsos. Não sei se serás tão constante na tua loucura quanto eu, camarada Thuillier, mas mostra ao menos alguma hombridade!

Não tenho grande motivo de apreço pelos alemães, embora reconheça que a ciência que se desenvolveu no seu país é superior à da minha terra natal. Sofri muito quando me matriculei na Universidade de Wúrtzburg, onde pretendia impressionar Virchow com os meus conhecimentos de anatomia comparada. Aí, a minha origem judaica tornou-me desprezado, embora os meus condiscípulos russos fossem talvez ainda mais assanhados contra mim do que os germânicos... Por sinal, também não tenho grande motivo de apreço por vocês, franceses. A minha infância no sul da Rússia foi ensombrada pela guerra da Crimeia... Claro que não te lembras dessa, ainda não eras nascido. Mas quanto a mim, desde menino aprendi a enfrentar a ameaça da cólera que então se manifestou. Agora estamos finalmente juntos numa guerra que vale a pena, uma guerra contra os inimigos comuns da Humanidade. Tais guerras não dispensam um toque de lirismo, mas este não deve ser tomado como um mero desporto. Se animaste a filha do Dr. Koch a lutar contra preconceitos por tua causa, serias um perfeito canalha em esquecê-la a troco da primeira mulher com que te queiram distrair. Admiro o Dr. Roux, muito invejo as tuas funções a seu lado - neste ponto Thuillier esforçou-se por não sorrir, pensando em quanto Roux, quando liberto da influência tempestuosa de Pasteur, se mostrava minucioso, exigindo que as suas experiências fossem cuidadosamente organizadas, e como encararia a ajuda daquele anárquico personagem - mas, se estivesse no teu lugar, não deixaria que brincassem com os meus sentimentos, e fizessem de mim uma criança caprichosa que abandona um brinquedo tão almejado para cobiçar outro!

- Onde pretende chegar, Elias?

- Ora, camarada, não compreendeste porque te enviaram a essa Faridah?

- Tinha um dever a cumprir! Dentro das suas funções, também a Faridah contribuiu para a luta contra a epidemia, e é pura justiça que nos sirvamos dos nossos conhecimentos para socorrer famílias necessitadas como a sua, em lugar de pensarmos que a nossa cultura europeia nos dá todos os direitos sobre elas...

- Pois. Os direitos da Pessoa humana, a exploração dos povos ditos "inferiores", a promoção das massas trabalhadoras... Guarda essa conversa para impressionar outro, que eu já escrevi muito panfleto revolucionário, quando era aluno na Universidade de Kharkov!

Thuillier pareceu perder-se na contemplação dos esforços duma estrela-do-mar que abria um bivalve.

- Reconheço que fui um ingénuo! Mas "eles" não tinham o direito de fazer isso comigo! Nem comigo, nem com a Gertrud, nem com a Faridah! E o pior é que eu estava mesmo a deixar-me tentar por aquela pobre rapariga!

Agradavelmente impressionado pela veracidade do jovem, Metchnikov serviu-lhe mais um torrão de açúcar.

- Todos os santos da cristandade foram tentados, até o teu patrono e do Pasteur, o rei São Luís dos franceses! Apesar de tão fanático (como bem o demonstrou a sua intolerância contra nós, judeus) também ele se deve ter sentido aliciado por alguma bailadeira moura, quando andava em guerra nestas paragens. Mas a sua forte rainha, que o tinha seguido para a cruzada, há-de-lhe ter perdoado. A tua Gertrud também te perdoaria todas as tuas quedas. E o Pasteur também há-de entender os teus desvarios, nem que seja por uma alemã, já que é um homem de paz. Tens muita sorte em ser seu assistente! - e, mergulhando naquela disposição filosófica que, na universidade de Kharkov, o fazia manter os seus condiscípulos acordados noites inteiras enquanto debatia com eles a existência ou a negação de Deus:

- Gostaria de um dia poder discutir com Pasteur a origem da vida... Se só a vida pode gerar vida, se se provou definitivamente como errónea a doutrina da geração espontânea, como terá surgido inicialmente a vida a partir da matéria inerte, se recuarmos sempre mais longe naquela querida teoria da Evolução que eu ensinava na Universidade de Odessa? Seria tudo explicável se as condições presentes no planeta primitivo não fossem as que actualmente se verificam, mas as observáveis em laboratório, onde já se conseguiram sintetizar compostos orgânicos? Era a esses problemas que eu gostaria de me poder dedicar, em lugar de ter de produzir, com a minha ciência, resultados imediatos, seja para proveito das instituições do regime, seja para proveito dos pobres mujiques... Interrogo-me sobre se a ciência pura nos pode conduzir à Verdade, ou se nos pode apenas ensinar factos, meros aspectos duma realidade mais ampla...

A bebida quente alegrara o ânimo de Thuillier e fizera-o ganhar confiança neste iluminado. Foi com olhar risonho que declarou, embrulhando-se no cobertor:

- Ora, Elias, eu gostava era de ter a sua pachorra! Já estou a ouvir o Pasteur, aliás tão sonhador, a insistir que a ciência não deve ser um mero ornamento do espírito, mas deve contribuir para o bem-estar do género humano... Pensei que, como revolucionário, estivesse plenamente de acordo!

Tendo dado uma última inspecção ao nível de oxigenação dos aquários, Metchnikov baixou a chama do candeeiro.

- Thuillier, és bom camarada... Mas também tu tens tendência para divagações! Sonha com o teu amor!

- Só espero não sonhar com o anjo Azrail! - murmurou Thuillier para si próprio, numa voz já envolta num bocejo.

 

O encantador de serpentes

Gertrud verteu um fio de ácido carbónico sobre a superfície da água em que pretendia ferver a bata do pai. Restavam-lhe sempre dúvidas sobre o grau ideal de acidez da água; tanto mais que esta bata já se encontrava esfiampada por múltiplas lavagens. As ombreiras de onde haviam sido descosidos os galões e a marca deixada pela braçadeira da Cruz Vermelha testemunhavam que se tratava duma relíquia dos tempos de Koch como médico militar. Remexendo a caldeira, a jovem julgou ouvir de novo a voz exasperada da mãe: "Então, Robert, ainda não foi capaz de pedir que te dessem uma bata nova, lá no Instituto? Era o mínimo que podiam fazer por ti! Enquanto não tomares uma atitude, não te torno a lavar este trapo!" E o pai, que passara a manhã preenchendo formulários requerendo para o laboratório o mais avançado modelo de balança de precisão, não respondia, considerando filosoficamente os seus sapatos remendados...

A jovem alemã interrogou-se sobre se teria sempre paciência para lavar sem protestos a bata do seu Thuillier, quando ambos fossem marido e mulher. Dada a qualidade certamente inferior das batas francesas, deveria ser mais cuidadosa ao dosear o ácido carbónico. Ao menos, o exército prussiano fornecia aos seus homens material sólido e a bata de médico militar de Koch ainda prestara anos de bons serviços após a sua desmobilização. Thuillier ainda frequentava o liceu no início da guerra e a sua bata era a dum civil. Mas, mal entrado na adolescência, estremecera decerto perante a miséria dos soldados franceses cujas fardas, confeccionadas por fabricantes desonestos, haviam sido reduzidas a farrapos pelas tempestades daquele rigoroso inverno de 1870-1871. Gertrud imaginou o filho de Pasteur, sargento da tropa comandada pelo General Bourbaki, o "exército esquecido" da última guerra, arrastando-se descalço pelos caminhos cortantes de escarcha entre Belfort e a fronteira da Suíça, com a medalhinha da Virgem das Graças, agora usada por Thuillier, bailando sobre o seu peito agitado por uma tosse seca. Como Pasteur e a sua devotada mulher haviam desafiado então, numa carroça desconjuntada, as ravinas cheias de neve, para trazer de volta o seu filho ferido!

Thuillier, sempre prolixo sobre a vida do seu mestre, guardara um silêncio reservado a respeito de si próprio. Que recordações conservaria desses anos da guerra, ele cuja personalidade se estava então a formar? Certamente passara fome, naquele inverno em que um rato se vendia a dois francos nos mercados de Paris e na província as comunicações estavam interrompidas. Quais teriam sido os sofrimentos da sua família? E como reagiriam agora os seus pais, provavelmente ainda vivos, caso ele lhes expusesse o seu amor?

Presa destas reflexões, Gertrud viu e ouviu o pai de Thuillier debulhado em lágrimas, golpeando a carta do seu filho: "Ai, mulher, o nosso Louis nunca deixará de nos dar desgostos! Não lhe bastava já para nos afligir, depois de todos os sacrifícios que passámos para lhe dar uma educação académica naqueles difíceis tempos do pós-guerra, querer ocupar-se apenas de animais de experiência, ele tão atencioso no lidar com as pessoas, que poderia ter sido médico e estar agora num belo consultório, já não digo nos Champs-Elysées, mas nalguma aldeia farta da nossa província? Bem sei que o prestígio não dá de comer, mas ao menos sentia-me algo compensado do pouco que ele ganha, pensando no bom nome que o nosso filho daria à família, trabalhando com Pasteur... E agora, até isso ele quer deitar a perder, na sua paixoneta pela filha desse Koch, uma desavergonhada duma alemã que decerto todos os assistentes do pai já lambuzaram com os bigodes sujos de cerveja!" E a mãe de Thuillier responderia com uma paciência realista, puxando o fio da sua costura: "Deixa lá! Isto até pode ser a sorte do nosso rapaz... Doido como ele é, talvez por causa deste amor atire com a porta ao bom do Pasteur, e comece a ganhar a vida decentemente..."

com um grunhido belicoso, Gertrud empunhou um varapau para virar a bata dentro da água acidificada. Se fosse capaz de abandonar Pasteur, Thuillier também seria capaz de a abandonar a ela... Devia saber conservá-lo fiel. Durante a guerra contra a Áustria, a rainha Augusta da Prússia havia visitado sem receio as enfermarias onde se amontoavam os doentes da cólera que se havia difundido após a campanha de Sadowa. Ou teria sido durante a guerra ao lado da Áustria, contra a Dinamarca? Bem, fora durante uma dessas guerras; guerras nas quais Koch não participara, visto ainda não ter concluído os seus estudos. Aliás, sob que bandeira teria servido? O seu estado natal de Hanôver ainda não havia então sido anexado para o Império Alemão... Mas, estivesse sob qual autoridade militar estivesse, pai Koch ouviria sempre o rufar do mesmo tambor, apelando à luta contra a doença e o sofrimento. E o que uma rainha faria para conquistar a lealdade do seu exército e do seu povo, não o faria uma namorada para conquistar a lealdade dum jovem de outro povo, e que podia ser chamado a servir noutro exército?

Qual seria o futuro de Thuillier? Nunca gozaria duma existência confortável, dado o seu idealismo. Ainda se, como Roux, tivesse na mão um diploma de médico, poderia sorrir-lhe uma lucrativa clínica. Assim não sendo, talvez terminasse como tantos assistentes de Pasteur, como um ignorado professor de ciências numa vilória perdida. Dentro de uns anos, quando a luz da tarde esmorecesse nas salas de aulas dum liceu algures em França, será que o seu Thuillier, esquecido de arrumar o material de trabalhos práticos que os turbulentos alunos houvessem deixado disperso, pensaria nela, encostado à ardósia?

Da rua que ladeava o muro do laboratório em cujo quintalejo Gertrud se encontrava, a melodia áspera da flauta dum encantador de serpentes elevou-se acima dos gritos dos aguadeiros que trejuravam a boa qualidade do conteúdo dos seus odres. Sempre ansioso de captar as atenções de algum estrangeiro, o encantador de serpentes deteve-se junto ao portão daquele edifício de traça ocidental; porém, tendo avistado a moça, escusou-se com uma vénia complicada. Sabia como as mulheres europeias mostravam repulsa perante os exemplares que ele exibia... Gertrud, habituada desde criança aos répteis que o pai guardava no seu laboratório de médico rural, lançou uma moeda que o encantador apanhou no voo, logo começando a traçar volutas no ar com a ponta da flauta que ia soprando, enquanto um magote de serpentes se meneava em cadência.

Embora conhecendo os artifícios usados para manter as serpentes num estado estuporoso, e sabendo que a impassividade dos répteis não correspondia assim a um qualquer prodígio divino, Gertrud não pôde deixar de recordar a profecia de Isaías: "O bebé meterá a mão no buraco da víbora e não será mordido. A bezerrinha e a cria da ursa pastarão pelos campos; o leão e o cordeiro comerão juntos, e um menino os conduzirá". E, pensou Gertrud, se vivesse hoje, o profeta certamente acrescentaria que nesse mundo paradisíaco de paz universal, mesmo os micróbios mais virulentos teriam aprendido a viver em simbiose com os humanos... Nem sempre as palavras da Escritura eram tão consoladoras. Ao serão da véspera, quando, como era seu hábito antes de adormecer, Gertrud lia alguns versículos da Bíblia aberta ao acaso, caíra sobre a passagem em que um dos Juizes de Israel trespassa de uma só lançada um dos seus oficiais e a mulher inimiga que se abraçara a este. Percorrida por um arrepio, fechara o Livro sagrado, para logo em seguida rir do seu terror infantil: Roux não tinha a santa ferocidade do herói bíblico e, no seu amor por Thuillier, ela não se comportava decerto com a indecência da idólatra cananeia que seduzira o guerreiro israelita!

Fosse como fosse, já havia notado que, certamente para a distrair do seu francesinho, todos os investigadores seus compatriotas haviam redobrado de atenções para com ela. Anteriormente, sempre que Gertrud via Gaffky ocupado em agitar um balão repleto de ágar-ágar fundido, para preparar novos meios de cultura e se oferecia para o substituir nessa tarefa monótona, o assistente de Koch apressava-se a aceitar; agora, olhando com adoração a filha do chefe, Gaffky assegurava-lhe que o tornaria mais feliz vê-la dirigir-se ao bazar das jóias em busca duma gargantilha de turquesas do Sinai com que realçar a sua beleza na próxima recepção no palácio de Ras-el-Tin. O alegre Ehrlich demonstrava-lhe ainda mais familiarmente o seu afecto, enquanto lhe descrevia as suas investigações sobre a apetência do azul de metileno para se ligar às terminações nervosas, assunto que vinha remoendo desde as suas aulas de anatomia; e Gertrud não se enfastiava de o ouvir relatar mais uma vez como ele, nos seus tempos de estudante, furtava peças de dissecção ao célebre professor Waldheyer...

Uma ou outra vez, a moça também trocara impressões com Yersin, tentando não sorrir do sotaque suíço com que este pronunciava o alemão, e o presumível futuro assistente de Roux (que dada a sua tenra idade, melhor devia compreender os sentimentos dos dois namorados) arrependera-se de ter sido ele a sugerir um plano para afastar Thuillier e Gertrud. Numa tentativa para desfazer a má impressão que esta talvez tivesse formado dele, conseguia comparar a filha de Koch àquela indómita Clara Barton, que prestara assistência às vítimas da guerra franco-prussiana... Mas o desvairado Metchnikov fora o único a aprovar incondicionalmente (para grande contrariedade de Roux) o romance que agitava a comunidade científica de Alexandria.

 

Um bolo de fava na gamela

Pensar-se-ia porém que as investigações levadas a cabo por Thuillier pouca ocasião lhe deixariam para dar azo a escândalos. Também ele, com um ardor igual ao de Koch, havia analisado exaustivamente as fezes dos doentes e as águas de consumo dos locais onde se havia declarado a epidemia. Os médicos que acompanhavam os exércitos de Alexandre já suspeitavam do papel da água e das dejecções no desencadear de epidemias, tendo conseguido que os oficiais ordenassem à tropa ferver a água de consumo e escavar fossas sanitárias. Na epidemia ocorrida em Londres, no ano de

1854, verificara-se que a mortalidade devida à cólera era de cinco a oito vezes superior nas casas cujo abastecimento de água era recolhido do Tamisa a jusante da zona de despejo das condutas de esgotos da cidade. Os microbiologistas Pouchet e Pacini, a uns vinte anos de intervalo, haviam observado formas de vibriões na diarreia aquosa dos doentes de cólera; mas ainda em 1865, quando eclodira em Paris o surto que viria a afectar Claude Bernard, permaneciam sérias dúvidas relativamente ao modo de transmissão da doença. Thuillier recordava-se do pitoresco relato que Pasteur lhe fizera de como ele próprio, acompanhado de Claude Bernard e do químico Sainte-Claire Deville, haviam subido aos sótãos do hospital Laboisière, situados acima da enfermaria dos doentes de cólera, e tinham adaptado à abertura dum dos ventiladores de exaustão do ar da enfermaria, um tubo de vidro rodeado duma mistura refrigerante, de modo a permitir a condensação de quaisquer vapores; a análise das gotículas obtidas revelara-se porém infrutífera... Nessa altura, a instâncias de Claude Bernard, havia igualmente sido colhido sangue aos doentes, mas com o propósito de a partir daí efectuar doseamentos bioquímicos e não culturas bacterianas. Os conhecimentos sobre a fisiopatologia da doença haviam assim progredido timidamente. E a terapêutica bem pouco avançara desde que, nos anos trinta do século, o terrível Broussais (cirurgião do exército napoleónico e grande rival do cirurgião Larrey, o qual, ao inverso do seu colega, fora pioneiro das técnicas anti-sépticas durante a campanha do Egipto) apressara a morte dum primeiro-ministro de França com os seus tratamentos debilitantes...

O papel da água contaminada parecia agora razoavelmente estabelecido; contudo, quão rebarbativo seria o trabalho de distinguir, entre os milhares de espécies de micro-organismos que pululavam nas águas residuais de Alexandria, quais os germes meramente saprófitas e quais os patogénicos, não falando já na identificação do microrganismo específico da cólera! A perspectiva de isolar tal micro-organismo do sangue dos doentes era pois aliciante; contudo, não apenas não se conseguia obter crescimento em meios de cultura semeados com amostras sanguíneas, como não parecia estar presente um organismo transmissível aos animais de experiência: nenhum dos animais nos quais se havia inoculado o sangue suspeito desenvolvera um quadro clínico de cólera.

Poderiam os franceses estar numa falsa pista? Thuillier procurara estabelecer um paralelo com as investigações que empreendera com Pasteur, Roux e Chamberland sobre a raiva: por vezes, erros iniciais conduziam a descobertas fortuitas, mas que se poderiam mais tarde revelar igualmente proveitosas... Assim, Pasteur havia começado por procurar o microrganismo causador da raiva na saliva de cães atingidos pela doença, e igualmente na cavidade oral duma criança falecida em consequência das mordeduras destes. (Thuillier estremecia ainda ao lembrar-se de como a baba dos cães gotejava sobre ele, enquanto procurava contê-los, ao mesmo tempo que ajudava Pasteur a introduzir uma pipeta entre os dentes dos animais. Mas orgulhava-se do efeito que a descrição desta aventura produzira em Gamal que, com os seus apetites filosóficos, mostrara curiosidade pela ciência europeia: era bem conhecido das crianças do Oriente que até o leão fugia ao ouvir o uivo dum chacal raivoso; Thuillier e os seus companheiros franceses deviam pois ser mais valentes do que leões!)

Então, pusera-se igualmente o problema de isolar, de entre a flora comensal da orofaringe, o agente causador da doença. Parecera particularmente suspeito um micróbio em forma de oito, rodeado duma cápsula transparente. No entanto, os coelhos inoculados com amostras contendo altas concentrações de tais micróbios morriam num período de 36 horas, inferior ao intervalo normal de eclosão da raiva... Seria pois a morte dos coelhos devida a uma sépsis provocada por bactérias comensais da cavidade oral, cuja virulência tivesse aumentado em razão da doença do hospedeiro? Tal fora a hipótese posta por Pasteur, e que Thuillier conseguira demonstrar, esforçando-se por deixar descrições precisas da morfologia dos diversos germes encontrados, tarefa difícil, visto que o laboratório de Pasteur não dispunha então dos corantes nem das lentes de imersão já usadas pelos seus colegas alemães, técnicas que só anos mais tarde seriam "contrabandeadas" para França pelo Dr. Straus, e observações pormenorizadas dos quadros mitológicos aos quais estes germes davam lugar. Assim se chegara à conclusão de que o micróbio da raiva era provavelmente demasiado pequeno para ser observável com a tecnologia existente que, no entanto, já permitia amplificar uma imagem mil vezes... Perante a dificuldade de pesquisar tão evasivo micróbio numa amostra como a saliva, Pasteur pusera finalmente a hipótese de cultivá-lo directamente no tecido nervoso de animais vivos; graças aos conhecimentos de Roux em matéria de cirurgia craniana, essa via parecia estar finalmente conduzindo a bons resultados... Nas presentes circunstâncias, seria bem-vinda uma inspiração semelhante! Mas que animais demonstrariam uma susceptibilidade à cólera sobreponível à que se verificava nos humanos? Quais os tecidos vivos entre os quais realizar passagens do microrganismo?

Se algo dissipava tais tormentos do espírito de Thuillier, era o facto de os irmãozinhos de Faridah estarem recuperando da sua conjuntivite: visitava-os furtivamente à hora em que Harun, impossibilitado pela erisipela porcina de se ocupar na faina da ria, apregoava postas de dourada no mercado de Anfuchi. Da primeira vez que contemplara Faridah, cujos encantos já ouvira comentar profusamente, entre risadas grosseiras, por todos os europeus de Alexandria, Gertrud não conseguira evitar franzir o narizito onde o sol africano pusera sardas: suportaria de bom humor ter por rival o micróbio da cólera, mas não uma estrela da dança do ventre... Depois, recordara-se da frase do Cântico de Salomão na qual uma jovem do Oriente descreve a sua pobreza: "Sou escura mas bela; tive de trabalhar ao soalheiro para alimentar os meus irmãos. Não me desprezes por causa da minha cor..." Adoçada pela poesia bíblica, a alemã começara a experimentar uma tímida simpatia por aquela moça em tudo tão diferente. Quando Thuillier mais tarde lhe apresentara Amru e Aicha, Gertrud logo tivera por eles a mesma compaixão indignada que sentia pelas crianças dos bairros insalubres amontoados à volta dos esmagadores edifícios oficiais de Berlim. Claro que esta boa vontade não fora muito ajudada pelo facto de os dois irmãozinhos, ainda com a sua ideia feita quanto aos luxos da vida de um hakim, imediatamente haverem perguntado ao francês se Gertrud "fazia parte do seu harém"!

Gamai, por mais crescido, tinha certamente maior malícia, mas a sua simpatia pelo amor destes dois estrangeiros era indubitável. Numa sexta-feira, tendo feito gazeta à Escola Corânica, surpreendera os namorados com o seu conhecimento dos segredos daquela mítica cidade. Gamal trabalhava duramente para certo personagem ao qual, como chefe da corporação de ladrões de túmulos e falsificadores de antiguidades, cabia o título de "sheik". O tamanho do menino tornava-o um elemento indispensável para penetrar nas apertadas fendas que davam acesso às catacumbas, esquecidas da arqueologia oficial, que se entrecruzavam sob as ruas de Alexandria. Levara os namorados a explorar uma fiada de salas tumulares greco-romano-egípcias e, na mais sumptuosa, apontara-lhes um nicho funerário, na forma duma alcova de mármore sobre a qual se entrelaçava um fresco de grinaldas.

- Aqui é que hakim Thuillier e a filha de hakim Koch estariam como Salomão e a rainha de Sabá... Embora, é claro, devessem ter cuidado com os escorpiões!

Thuillier agarrara a orelha do pequeno e fizera menção de a torcer:

- Respeitinho, meu amigo! Olha que eu não tenho o braço preso pela erisipela porcina, como tem o teu irmão!

Gamai escapulira-se atrás dum renque de colunas, ornadas de folhas de acanto e umbelas de papiro. com o desplante do menino, Gertrud fizera-se mais vermelha do que o óxido de ferro em que estavam escritos os nomes dos defuntos; Thuillier baixara os olhos, contemplando um monte de faixas funerárias e, querendo mudar de assunto, logo começara a falar dos progressos das ciências anátomo-clínicas, nomeadamente das autópsias de múmias realizadas por Virchow que liderara uma expedição ao Egipto três anos antes e agora discutia com Lepsius a genealogia dos faraós com a mesma fogosidade com que discutia com Klebs e Weigert se certas imagens microscópicas deviam ser interpretadas como produtos de degeneração dos tecidos ou como bactérias patogénicas. Gertrud porém tentara, talvez inconscientemente, reconduzir a conversa para o campo da paixão.

- Sim, o Prof. Virchow sempre teve gosto pela arqueologia... E não por luxo intelectual, já que achava que temos muito a aprender com os erros do passado. Ainda me lembro dum discurso que ele pronunciou, com o seu sotaque de eslavo da Pomerânia, frisando que os cientistas de todas as nações se deveriam irmanar e citando a propósito as grandes lições da Antiguidade: o muito que se perdera por os sábios de Alexandria e os sábios de Pérgamo não terem acedido a pôr em comum o seu saber, antes se deixando arrastar pelas rivalidades políticas e militares. Virchow também acompanhou a expedição de Schliemann à Ásia Menor, e aí escreveu um livro sobre a guerra de Tróia...

Recordando as suas letras clássicas, Thuillier concluíra prontamente:

- Ah, sim, a história de Helena, cuja beleza fez aparelhar mil galés de guerra! O poeta Homero tinha razão; o amor é das poucas coisas por que valha a pena lutar!

Neste ponto, Thuillier e Gertrud haviam-se beijado à pressa sob o olhar reprovador dum deus com cabeça de falcão e dum deus com cabeça de crocodilo que flanqueavam a porta, armados como legionários dos Césares...

Não se tinham demorado nas catacumbas, pois nenhum elemento da quadrilha de ladrões de túmulos deveria saber que Gamal havia revelado aquela fonte de rendimento. Mas após este episódio, por repetidas vezes haviam-se encontrado em terreno neutro, uma capela copta, na penumbra apenas pontuada pelas lâmpadas fumarentas que alumiavam os retábulos. O sacristão tolerava-os, desde que Thuillier se descalçasse para pisar o chão sagrado, atapetado como o duma mesquita, e Gertrud cobrisse os cabelos com um daqueles lenços estampados de emblemas de mártires que se vendiam à porta. As cristãs egípcias que varriam os degraus da ara haviam inicialmente querido expulsar o casalinho de hereges, golpeando-os com os molhos de giestas que lhes serviam de vassouras; porém os jovens tinham conseguido melhorar a qualidade do acolhimento recebido, mediante a oferta duma almotolia para alimentar as lâmpadas e dum bolo de fava depositado na gamela em que o sacerdote mendigava aos fiéis o seu parco jantar, e dispunham agora da autorização tácita do Abbu, o chefe daquela comunidade cristã, para permanecer por quanto tempo os trabalhos de Thuillier lhes deixassem disponível.

Gertrud não sentia piedade religiosa perante as imagens esguias dos Doutores da Igreja alexandrina e dos Anacoretas da tebaida, bem menos joviais do que os chefes da reforma luterana cujos retratos ela se habituara a contemplar na igreja onde o seu avô era pregador; e experimentava estranheza ao ver a sobrevivência dos cultos pagãos da fertilidade, simbolizados nos ovos de avestruz que pendiam dos candelabros, entre aquela glorificação dum cristianismo austero. No entanto, junto à lapinha na qual, segundo afiançava o sacerdote, se havia abrigado a Sagrada Família em fuga, murmurava sempre uma prece pelos refugiados de todas as guerras e perseguições... Exausto pelo seu labor científico e estonteado pelo cheiro das caçoulas de perfumes que adensava a atmosfera da capela, Thuillier acabava por vezes caindo no sono, com as faces ainda afogueadas pelo calor do bico de Bunsen encostadas ao peito forte da sua alemã. Gertrud, com remorso dos feitos bélicos dos seus compatriotas, estudava as feições adormecidas do seu francesinho, procurando alguma marca deixada pela epidemia de varíola que se difundira após o cerco de Paris. Era o mais longe que ia a sua intimidade; e, contemplando-lhe os lábios que murmuravam palavras desconexas, Gertrud percebia que o espírito de Thuillier não se encontrava ocupado com ela, mas com as pesquisas que não conseguia levar a bom termo. Desde o colo do seu pai que Gertrud já aprendera que devia partilhar com a ciência o amor dos homens que lhe eram mais queridos: e quando acariciava os ombros do seu Thuillier, doridos pelas horas que este passara curvado sobre o microscópio, era quase com aquela ternura liberta de desejo com que fazia o mesmo ao seu pai...

 

O professor Metchnicov, aquele russo maluco...

Para a maior alegria da filha e o maior desapontamento dos assistentes (que nunca teriam imaginado ver o chefe tão frouxo perante quem lhe sujava o bom nome) Koch por diversas vezes discutira com Thuillier os seus conceitos sobre a etiologia da cólera. O pai de Gertrud continuava empenhado nos seus intentos de demonstrar a responsabilidade do vibrião que obtivera em cultura. Sabia que lhe seria necessária persistência para vencer todas as vozes contrárias que se elevariam. Muitos davam crédito às opiniões de Pettenkoffer quanto ao papel da qualidade dos solos na eclosão das epidemias de cólera. Thuillier comentara que nada permitia ainda negar que esse fosse um dos factores em jogo, referindo, a esse propósito, as viagens de estudo que empreendera com Pasteur, Roux e Chamberland pelos campos da França, procurando definir o modo de transmissão do carbúnculo: tal doença não era frequente nas charnecas arenosas junto ao Golfo da Biscaia, nem nas colinas de cré da região vinhateira do champanhe, mas grassava nos campos de terra profunda em redor de Chartres, favoráveis à proliferação de minhocas que traziam de volta para a superfície os microrganismos do carbúnculo que haviam permanecido nas carcaças dos animais enterrados. E Gertrud, que espiava furtivamente a conversação, quase sentira ciúmes do velho Pasteur, vendo os olhos do seu francesinho humedecerem-se de nostalgia com a recordação das cavaqueiras do mestre à sombra dos dois campanários desiguais da catedral de Chartres...

Koch não possuía decerto a cordialidade de Pasteur, mas fora com uma condescendência que não pretendia ter qualquer carácter humilhante que criticara as preparações microscópicas apresentadas por Thuillier:

- Eu suporia que estas imagens pudessem corresponder a glóbulos vermelhos alterados pela doença... De qualquer modo, com os meios de que vocês dispõem, têm feito um trabalho razoável! Nós temos mais experiência em observar esfregaços sanguíneos corados; o Dr. Ehrlich até pensa elaborar uma classificação das células brancas do sangue, segundo as afinidades tinturiais destas...

Embora reconhecendo intimamente que Koch não faria tal afirmação sem conhecimento de causa, Thuillier protestara acaloradamente. Tinha basta experiência em observar a fresco preparações de sangue, nomeadamente do sangue de galinhas (com os característicos glóbulos vermelhos de núcleo ovalado próprios das aves) no qual muitas vezes havia observado um cocobacilo, agente duma das doenças mais aprofundadamente estudadas por Pasteur, a chamada "cólera das galinhas". Tal doença, embora sem relação de causa com a cólera humana, tinha constituído o ponto de partida para o estudo da patogenicidade duma mesma bactéria para diversos hospedeiros e para a prevenção vacinal de diversas infecções.

Gaffky, que escutara a conversação com uma agressividade reprimida, estivera engatilhando o comentário insultuoso "sangue de galinha tem você nas veias" para disparar contra o francês à primeira oportunidade. Mas o olhar de Gaffky cruzara o de Gertrud e o assistente de Koch decidira manter-se tratável, tanto mais que o chefe, encarando Thuillier como se de facto visse nele algo de prometedor, pedira a este que lhe disponibilizasse algumas das preparações de sangue, para as poder examinar com mais detalhe. O autodomínio de Gaffky fora recompensado nessa mesma tarde. Ao iniciar a autópsia do último cadáver que a sua equipa tinha à disposição, o assistente de Koch cortara-se até ao osso; e enquanto Gertrud lhe afastava os bordos da ferida para a lavar em profundidade sob um jacto de lixívia, conseguira sorrir, como se o prazer que experimentava em ver a filha do chefe prodigalizar-lhe tais cuidados superasse bem a dor e o perigo.

- Não se preocupe por mim, menina Gertrud. Não posso excluir que o pobre felá tivesse qualquer outra condição contagiosa, mas não creio que este acidente me venha a provocar a cólera. Ainda não havia feito qualquer incisão no tubo digestivo, e, nos casos anteriormente examinados, não consegui obter culturas do vibrião que o seu pai considera responsável pela doença senão a partir de amostras desse local; por isso o Dr. Koch crê que o vibrião actua a nível do intestino através duma toxina, sem se disseminar. Observei grandes quantidades do vibrião nos farrapos de epitélio descamado e nas criptas do intestino delgado, mas não detectei o microrganismo no sangue. Tão-pouco consegui obter crescimento a partir dos gânglios linfáticos hipertrofiados das cadeias lombares, nem a partir do tecido renal onde, no entanto, se nota por vezes um edema acentuado. A única excepção à regra que encontrei até agora é a nível das vias biliares; daí sim, obtive belas culturas do microrganismo, que liquefazem os meios de sangue coagulado e se espalham à superfície das fatias de batata... - e Gaffky esboçou um gesto ondulante com a mão, como que representando a progressão dos vibriões nos meios de cultura.

- Está bem, Georg, eu acredito em si! Mas fique quieto, para eu lhe poder apertar a ligadura!

Gertrud falara num tom que denotava tristeza por ver postas em dúvida as teorias do seu francesinho. E, como quem tenta consolar uma criança de fantasias sem fundamento, Gaffky acariciara-lhe os cabelos com as costas da mão enfaixada.

- Vale bem a pena um homem estar doente para ser tratado por si, menina Gertrud! Embora fosse azar adoecer, agora que a epidemia está a queimar os últimos cartuchos. Dentro em pouco, todos regressaremos aos nossos respectivos países, embora eu me atreva a dizer que para o seu pai e para mim não será por muito tempo! Tivemos mais êxito do que os franceses, é certo, mas o Dr. Koch não dispôs de tempo suficiente para demonstrar cabalmente que o seu vibrião é a causa da epidemia. Se é verdade que os animais de experiência não adoeceram com as inoculações de sangue de doentes que os franceses lhes administraram, também é certo que na sua maioria se mostram resistentes a doses altas do vibrião obtido a partir de culturas puras, a não ser que estas sejam injectadas na cavidade peritoneal. A administração através do tubo digestivo é o modo natural de infecção no homem, mas os animais não adoecem quando o vibrião lhes é dado por via oral, inclusivamente quando uma cultura lhes é introduzida directamente no estômago através duma cânula, a não ser nos casos em que se inibiu previamente a motilidade intestinal. O Dr. Koch acha possível que isto tenha algo a ver com a acidez gástrica dos animais de experiência. Aquele russo maluco, o Prof. Metchnikov, teve uma sugestão curiosa... Pôs a hipótese de que os coelhinhos de mama, com uma alimentação alcalina e ainda sem flora intestinal abundante que possa competir com o vibrião, são os mais susceptíveis, mas após o desmame não podem ser infectados...

Permanecem ainda muitos mistérios! Por isso, o seu pai confidenciou-me que iria pedir ao nosso Governo que nos enviasse a prosseguir os estudos nas regiões onde a cólera é endémica. Certamente que o Dr. Koch se refere às índias, àqueles pântanos em redor das plantações de juta onde os ingleses fundaram Calcutá. É motivo de orgulho ser assistente do Dr. Koch, mas às vezes custa! Eu, que já supunha ter façanhas de sobra para contar aos alunos do seu pai, à roda daquela cervejinha branca adoçada com xarope de framboesa que servem nas tabernas de estudantes à beira do Spree, lá vou ter de aturar mais calor e mais poeira! O Thuillier é que tem sorte; não tarda muito, estará a consolar-se das fadigas da vida de investigador, refastelado na esplanada do Café de La Paix, a mirar as suas conterrâneas enfeitadas com as últimas modas... Não lhe levo a mal; falta-lhe rijeza para suportar o trabalho de campo por estas paragens, mas, no aconchego da mãe França, talvez ainda faça alguma descoberta digna de renome...

Gertrud não repelira o afago fraterno de Gaffky, mas baixara os olhos para não deixar perceber a mágoa que tais revelações lhe estavam causando. Sentia-se mais vulnerável nas mãos destes sábios que lhe eram queridos do que os coelhinhos de mama e as cobaias, e quase lhe parecia possível que tais homens sentissem maior afecto por esses animais que os ajudavam a decifrar os mistérios da natureza do que por ela, que representava um empecilho!

O espírito da aventura, tanto tempo agrilhoado dentro da alma do seu pai, não mais poderia ser contido, como bem o demonstrava esta decisão de rumar à índia. Mãe Emmy, crendo já ter suportado tudo quanto se podia exigir duma esposa cristã, em breve manifestaria desejos de regressar a casa do avô pregador. Gertrud teria o dever de dar apoio à mãe, após os meses de angústia que lhe causara com o seu entusiasmo infantil por esta viagem... Até que um dia o pai, fatigado de correr mundo, regressasse a uma casa vazia e se deixasse seduzir por qualquer mulher mundana que afirmasse compreendê-lo. Talvez quisesse divorciar-se, agora que Virchow e os correligionários socialistas deste haviam conseguido fazer passar as leis relativas ao casamento civil! E se assim podia perder o pai, Gertrud ainda mais certamente perderia Thuillier. Agora, mesmo que o francesinho sempre tivesse sido transparente nos seus sentimentos, mesmo que não existisse, como ela chegara a temer, uma esposa que o aguardasse, seguindo com o dedo as linhas da última edição do "Figaro" referentes às notícias do Oriente e sentindo um filho do jovem sábio remexer no seu ventre, Thuillier talvez considerasse o seu romance como uma distracção imperdoável que lhe toldara o espírito, afastando-o dos luminosos caminhos da investigação científica. Embora nunca tendo aceite estereótipos, Gertrud desejou nesse momento que fosse verídico o carácter interesseiro atribuído às parisienses: talvez assim nenhuma lhe cobiçasse o pobre investigador seu amado... Thuillier não conseguiria impressionar com os seus feitos aquelas aristocratas e burguesas que se passeavam pelo Bois de Boulogne envoltas em pelicas de mil francos; nem sequer conquistaria uma rude mocetona dos subúrbios operários de paris, que lhe tivesse o caldo pronto quando ele voltasse do seu trabalho junto de Pasteur. E logo que Gaffky se afastara, a filha de Koch murmurara só para si:

- Deixa estar, Louis Ferdinand Thuillier... Se te arrependeres do teu amor por mim, mais depressa te arrependerás de me ter deixado!

 

Salvar Moisés das águas

Enquanto Gertrud assim recordava os acontecimentos do dia, as serpentes do encantador haviam recolhido mansamente ao cesto de palhinha onde o seu amo as transportava. A bata já mergulhara tempo suficiente na água acidificada e, suspirando, Gertrud empreendeu repescá-la para a esfregar contra uma tábua com um naco de sabão que mais se diria pedra.

- A filha de hakim Koch pode-me ouvir?

O encantador de serpentes havia sido substituído ao portão por Faridah, que contemplava com espanto aquela estrangeira de mangas arregaçadas. As mãos de Gertrud, tornadas muito vermelhas' pela água acidificada, eram tão grosseiras quanto as da própria Faridah, mas contrastavam com os braços duma brancura de lódão que a egípcia só julgara possível nas princesas das "Mil e Uma Noites" e que uma penugem loura tornava mais macios. Ocorreu à dançarina o pensamento que hakim Thuillier era certamente tão afortunado quanto o marido de Sherázade, se podia descansar naqueles braços!

- Uma filha de hakim não se deveria ocupar desses trabalhos. Isso é mais próprio de mulheres como eu... - comentou amigavelmente a egípcia.

- Obrigada pelo seu cuidado, Faridah. Mas eu sei o que compete à filha de um hakim!

A estrangeira falara sem arrogância, mas com extrema firmeza. Faridah pressentiu que havia iniciado mal o diálogo; no entanto, habituada a lutar pela sua subsistência, não desistiu:

- Então, saberá que a filha de um hakim não nega ajuda aos pobres; Deus mais facilmente perdoaria essa falta a qualquer outra mulher!

Pondo neste gesto toda a violência da sua irritação, Gertrud pescou a bata do pai e lançou-a numa selha de água que lhe retiraria o ácido.

- Oh, está bem! Conte lá o que pretende!

- Menina Gertrud, neste Inverno é a festa do aniversário do Profeta. O meu irmão Gamal queria arranjar dinheiro para podermos celebrar a festa como convém e o chefe dos traficantes de antiguidades prometeu dar-lhe uma recompensa farta, se o Gamal conseguisse alguma peça rara. Para isso, teria de descer até ao terceiro subterrâneo das catacumbas ocidentais da cidade, onde poucos se arriscaram até agora, já que esse nível está muitas vezes inundado. O Gamal saiu ontem de manhã para explorar as catacumbas e não voltou...

Gertrud já ouvira falar do festival a que Faridah se referia (descrito pelos ocidentais como uma inusitada mescla de demonstrações públicas de penitência e divertimentos profanos amassados de inocência pueril e de sensualidade grosseira) com que os muçulmanos de Alexandria recordavam, já passado o Verão, o nascimento de Maomé. Perguntou a si própria se Gamal preferiria antes presenciar a dança de êxtase místico dos derviches ou as contorções dos comedores de fogo. Qual das cozinhas ao ar livre que brotavam do chão da cidade, com os seus panelões de almôndegas nadando em molhos de especiarias e os seus tabuleiros de construções açucaradas, esboroadas sob o voo das moscas, seria o seu poiso habitual? Estaria ansioso por demonstrar o seu destemido ardor de verdadeiro crente entrando nas procissões devocionais em que se expunha a ser espezinhado pelos cascos dos cavalos de chefes religiosos, e quereria provar a sua qualidade de garoto ladino das ruas de Alexandria, provocando as cortesãs que passassem envoltas numa nuvem de aloés e nardo...

- E o seu irmão Harun não o foi procurar?

- O Harun já enfrentou as armas de todos os que ele considera inimigos do Egipto, desde os negros do Sudão até aos soldados da rainha Vitória, e todos os perigos do Nilo, desde Assuão até às praias líbicas, mas isso não lhe posso pedir. A única coisa de que tem medo, é dos espíritos malignos que moram nos cemitérios pagãos. O Gamal até troçava dele por isso; quis ensinar-lhe os esconjures que o santo rei Salomão, que foi também grande mago, usava para pôr os génios e demónios a seu serviço, mas o Harun não tem cabeça para decorar encantamentos. Como os sábios do Ocidente não têm medo dos espíritos, pensei que hakim Thuillier pudesse fazer a caridade de descer às catacumbas...

- Por que não lhe pediu você própria? Um hakim francês não fecharia a sua porta a uma pobre, sobretudo - ia acrescentar "sobretudo a uma pobre tão sedutora" mas mordeu os lábios. Que falta de consideração pelos sentimentos do próximo, sentir ciúmes duma desgraçada mulher, angustiada com a perda duma criança! compreendendo, Faridah teve o sorriso enigmático (embora animado por uma ternura genuína) e algo melancólico que a arte antiga popularizara entre as mulheres de tais paragens.

- Menina Gertrud, é só a si que hakim Thuillier tem amor. Decerto que a escutará mais do que a qualquer outra pessoa!

Passando as mãos por entre as grades do portão, Gertrud agarrou as mãos da egípcia, morenas como as mãos que haviam salvo Moisés das águas.

- Fez bem em vir, Faridah! Tenha confiança, vou já falar com hakim Thuillier. Corajoso e desembaraçado como ele é, não tardará em trazer o seu irmão de volta!

 

As mulheres também casam com a Ciência

As sombras haviam-se adensado no laboratório da missão francesa e foi à luz dum candeeiro de feitio europeu, embora alimentado com o óleo de palma daquelas paragens, que Thuillier se dispôs a ler as duas cartas remetidas em seu nome para o Consulado francês: uma da irmã que o perseguira com recriminações até à costa mediterrânea para o dissuadir de empreender a viagem a Alexandria, outra do próprio Pasteur, sempre ansioso de apoiar moralmente os seus assistentes...

"Irmãozinho, já não te mereço a abertura que dantes tinhas comigo? Por que não me confias os teus problemas, como fazias nos teus tempos de estudante? Bem sabes quanto me opus a que participasses nesta expedição ao Egipto, mas não me deves guardar rancor, nem tomar por pieguice de mulher os maus pressentimentos que tive a respeito da tua viagem. Tinhas outra consideração pela tua irmã, quando eras mais novo! Bem me agradecias então os doces de manteiga que eu te preparava para aqueceres os dedos e o estômago, quando saías da cama ainda noite cerrada, a conseguir um lugar na primeira fila dos ouvintes das prelecções de Pasteur. E eu sentia orgulho pelo meu irmãozinho; nunca enrugava o nariz quando me relatavas, com toda a cópia de pormenores, as experiências repugnantes em que te iniciavas!

Ainda quando foste à Europa de Leste combater o carbúnculo, não deixavas de desabafar comigo as agruras do clima daquelas paragens, a dificuldade em comunicar com gentes de outra língua, e a tua preocupação em que uma campanha de vacinação mal conduzida pudesse redundar em desastre. Mas estendias-te igualmente em elogios quanto à elegância das fidalgas do Império Austro-Húngaro que se pavoneavam sob os lustres da ópera de Budapeste, e quanto às formas generosas das vaqueiras das pastagens junto ao Danúbio. Agora fechas-te tanto! Será tudo má vontade contra mim por eu te ter querido reter, ou terás pensado encontrar alguém que melhor te escutasse do que eu, ha que sempre foste apreciador de belas mulheres?"

Alisando a carta da irmã onde deixara cair uma lágrima, Thuillier espreguiçara-se com uma lassidão carregada de saudade.

- Minha rica irmã, quanto me amimavas! Compreendeste que se devia comer mal na Escola, com mestres como o Pasteur, ansiosos de açambarcar o máximo de fundos para a compra de material científico! E atrouxavas-me com tão boas merendas, quando eu regressava de férias! Depressa voltarei para junto de ti, irmãzinha. Embora tenhas razão: encontrei outra para me escutar. A Gertrud não saberá fazer comidas gostosas como tu, apenas preparar essas pratadas farta-brutos da cozinha alemã... Mas sabe ouvir os desaires dum aprendiz de cientista, sabe sobretudo estar presente. Podes crer, irmãzinha, um fracasso chorado sobre o seu ombro é mais doce do que qualquer triunfo...

Os episódios a que a irmã se referia desfilaram no pensamento de Thuillier. A campanha de vacinação contra o carbúnculo marcara o ponto alto da contenda entre Pasteur e Koch. Embora este último tivesse conseguido apontar de modo convincente todos os pontos falíveis do método dos franceses, Pasteur gozara o reconhecimento dos criadores de rebanhos de boa parte da Europa, e na sua pátria havia recebido o cordão da Legião de Honra. Roux e Chamberland haviam igualmente sido condecorados, embora com insígnias menores. A Thuillier, como terceiro assistente, não coubera distinção, o que muito atiçara a indignação da irmã; no entanto o seu nome figurava em posição passavelmente honrosa nos trabalhos que a equipa publicara sobre a atenuação dos vírus e a transmissão da raiva. E Pasteur reconhecera o papel preponderante do seu mais jovem colaborador nas investigações sobre a erisipela porcina. A irmã teria certamente apreciado que Thuillier recebesse uma condecoração pelo seu desempenho no desenvolvimento duma vacina contra essa doença, que podia ser estudada pacatamente na campina francesa. Mas quando o seu herói lhe anunciara que ia interromper os seus estudos sobre tal assunto para ir combater a cólera a Alexandria, onde, segundo acrescentara rindo, ganharia sem dúvida um cordão da Legião de Honra com mais voltas do que o atribuído a Pasteur, a irmã deixara explodir toda a sua angústia:

- Não sejas parvo, Louis Ferdinand! O mais que podes ter é um grande enterro!

Thuillier erguera a irmã nos braços, rindo ainda mais alto, decerto para exorcizar os receios que, consciente do perigo, também ele sentia. Não desejava um grande enterro, pelo menos por enquanto: talvez um dia, quando tivesse a idade de Pasteur, e igual número de discípulos a fazer-lhe mesuras...

Sim! Porque sempre apreciara a vida e todos os pequenos deleites que a vida pode proporcionar^ prezava estes últimos ainda mais por apenas os ter podido provar à pressa, na sua existência atribulada de jovem investigador. Quando Roux, Straus e Nocard se haviam oferecido como voluntários para a expedição ao Egipto, Pasteur volvera os olhos para Thuillier, procurando sondar as intenções do discípulo pelo qual sentia um afecto mais paternal. com um repuxão nas entranhas, o jovem sustivera o olhar do Mestre. Este compreendera decerto o combate que Thuillier travava contra o terror visceral que a simples menção da cólera provocara nele, e mais o estimara por ter conseguido vencer uma tão natural hesitação. Thuillier nem pelo maior tesouro quereria que Pasteur o pudesse considerar cobarde... Mas, evidentemente, não queria morrer! E agora havia outro laço a prendê-lo à vida: o amor de Gertrud, que por se ter conservado sempre imaterial, encerrava ainda todas as suas promessas!

Foi acariciando tais pensamentos que Thuillier revirou longamente entre os dedos a carta de Pasteur, hesitando por um lado em desmanchar as agradáveis recordações da sua amada, e considerando por outro quanto o Mestre o suporia fraco, se soubesse que ia procurar conforto junto da filha do rival. Finalmente decidiu-se, abrindo o envelope com a lâmina dum bisturi já esboicelado, e correu os olhos pelas páginas cobertas com a larga caligrafia do Mestre, que tão bem combinava clareza e elegância.

"O Dr. Roux tem-me contado que, no teu afã de descobrir, não te alimentas convenientemente e andas moído de fadiga, o que o preocupa, já que os organismos subnutridos e sujeitos a tensões são os mais susceptíveis à cólera. Honra a tua pátria com o teu comportamento, mas não esqueças a tua saúde. Não perdoaria a mim próprio se te sucedesse algum mal, eu que achei por bem designar-te para essa missão por terras do Nilo, já que tão boas provas havias prestado nos campos assolados pelo carbúnculo, entre o Reno e o Danúbio.

Espero que te anime a notícia de que a vacina que desenvolvemos contra a erisipela porcina em finais do ano passado promete dar resultados satisfatórios. Lembras-te do nosso trabalho na região de Avignon, no último Outono, quando estudámos juntos essa doença pelos campos cheirando a alfazema? Nessa terra de trovadores, que é uma das jóias da nossa França, mostravas bom apetite; tragavas com gosto os cestos da fruta dourada pelo sol benfazejo da Provença com que nos presenteavam os camponeses, e à noite na estalagem não deixavas de vazar um pichel do vinho dos Papas. Mas isso não te embotava o espírito de observação nem te entibiava o ardor no trabalho. Foi graças aos teus inquéritos que primeiro pus a hipótese de que as epidemias que dizimavam a criação de coelhos e perdizes nas quintas que visitávamos pudessem ser causadas pelo mesmo germe que atacava os porcos e, quando obtivemos o dito germe em cultura, só com o teu auxílio persistente descobri como a sua virulência era aumentada por passagens sucessivas em perdizes e diminuída por passagens sucessivas em coelhos, achado que irá possibilitar agora a produção de vacinas em larga escala.

És a minha segunda juventude, tu que sentiste brotar em ti o entusiasmo pela investigação após as minhas aulas, tal como sucedeu comigo depois de assistir às aulas de Dumas, meu mestre de química. Por isso a tua vida me é preciosa, meu filho. Cuida bem de ti."

Confrontado com frases tão atenciosas, Thuillier experimentou um profundo remorso. Recordou-se duma das suas últimas visitas à casa de Pasteur em Arbois para combinar com o Mestre adoentado alguns pormenores da expedição, que se queria ajustada até ao mais ínfimo detalhe, desde o hotel onde a delegação francesa ficaria alojada até ao cozinheiro que contrataria... Fora recebido à porta pela Sra. Pasteur, mulher de sábio sem mais atavios do que o seu avental, mas cujo rosto amável, sob os cabelos já cor de estriga, tinha uma nobreza de traços em que pairava sempre uma nuvem de pesar desde as mortes da sua bebé Camille, da sua Jeanne de seis anos e da sua Cécile de doze, e desde o martírio da sua querida cidade de Estrasburgo. Percebia-se nela, mesmo no ambiente caseiro, a intrepidez que mostrara possuir, procurando o seu filho entre os refugiados e a soldadesca... Boa Sra. Pasteur, sempre pronta a acudir em defesa dos assistentes quando o Mestre, nalgum dos furores que o tomavam quando os trabalhos não lhe corriam de feição, acusava os jovens doutores de deitarem a perder o crédito do laboratório!

Pasteur ainda se conservava acamado, e vendo o jovem recém-chegado do verão parisiense muito pálido da frialdade fina do vento da montanha, a Sra. Pasteur convidara Thuillier para se aquecer junto ao fogão da sala. O discípulo não resistira a soltar um rasgo de lirismo perante a mulher do Mestre.

- Dentro em breve terei todo o sol do Egipto para me aquecer, e recordar-me-ei de que o sol do Egipto não é tão luminoso quanto a gentil Sra. Pasteur!

As feições engelhadas haviam-se distendido num sorriso.

- Meu jovem doutor, é quase tão galante como era o meu marido quando me fazia a corte! Embora ele já tivesse um cargo de professor universitário antes dos trinta anos, eu não o levava muito a sério e ria-me das suas cartas apaixonadas, que no entanto me foram encantando devagarinho... Afirmava-me que as noites que lhe haviam corrido tão ligeiras quando arquitectava as suas experiências sobre a estrutura tridimensional das moléculas orgânicas, agora se arrastavam enfadonhas por as passar a desejar a minha companhia. Mas mal me sentiu segura, bem depressa voltou para a companhia das suas provetas! Quando chegava de madrugada e me encontrava a passear em camisa pelo quarto, procurando acalmar o nosso Jean-Baptiste que chorava de frio, declarava-me que ainda me havia de conduzir à prosperidade com as suas descobertas; fitava-me com aqueles olhos fatigados mas duma cor de pedra preciosa que os tornava irresistíveis e eu perdoava-lhe as suas ausências, embora o requisitasse imediatamente para mudar as fraldas ao nosso filho!

Os sábios casam com a ciência tal como os sacerdotes casam com a Igreja. E quanto às mulheres de ciência, suponho que terão o mesmo procedimento! Também as houve no nosso país antes da Revolução, condessas e marquesas que recebiam os físicos e químicos nos seus salões, e tantas vezes se pronunciavam sobre os mistérios da Natureza com tanto conhecimento de causa quanto os seus convidados masculinos. Os salões do Antigo Regime desapareceram, e as mulheres dos períodos conturbados que se seguiram tiveram todas uma instrução igualmente escassa, fosse qual fosse a classe social a que pertencessem. Agora que o nosso país está finalmente em paz, é hora de dignificar as nossas conterrâneas, dando-lhes possibilidade de acesso a uma cultura superior. De qualquer modo, as francesas são mais afortunadas do que as alemãs, de quem apenas se espera que procriem um rancho de guerreiros...

E agora, permita-me um conselho, meu jovem doutor: endireite as costas; repare que ninguém passou mais tempo dobrado sobre a bancada do laboratório do que o meu marido, e no entanto ele mantém a espinha erguida! E levante um pouco mais a cabeça, assim! e neste ponto, a Sra. Pasteur roçara pelo queixo de Thuillier os dedos envelhecidos, num gesto maternal que perturbara mais o rapaz do que qualquer carícia de mulher que até então recebera, fazendo-o sentir-se como um pobre escudeiro a quem a dama do castelo confia uma espada lendária - Lembre-se de que vai representar a ciência do seu país, e de que estará sempre nas minhas orações, Dr. Thuillier!

 

A missão quase divina do Dr. Thuillier

Thuillier apoiou a cabeça nos punhos fechados. Ah! Como se considerara então investido duma missão quase divina! E como Pasteur, se soubesse da actual situação do seu assistente, julgaria que aquele moço que deixara Paris como verdadeiro galo gaulês, de crista airosa e olho rutilante, se convertera num pintainho tenro, que uma águia alemã esventrava regaladamente! O orgulho de "representante da ciência do seu país", para empregar a expressão da Sra. Pasteur, lutava dentro de Thuillier com o seu orgulho de indivíduo dotado de sentimentos próprios. Não tinha de se cingir aos valores do Mestre, mas a amabilidade de que Roux dera provas nada deixando transparecer dos falhanços do seu subordinado - e logo o Roux, tão inclinado a pôr objecções à viabilidade dos planos de trabalho dos seus colaboradores! - fazia com que este, por contraste, se achasse bem velhaco...

Se ao menos tivesse conseguido levantar uma ponta do véu que recobria a génese das epidemias de cólera! Nas primeiras noites passadas em Alexandria, em que não conseguia conciliar o sono por não estar ainda acostumado ao clima, mas se encontrava transbordante de confiança, Thuillier contemplava com um meio sorriso as carochas que corriam pelas paredes das modestas instalações que lhe haviam sido atribuídas, na sua condição de membro menos categorizado da equipa. Recordava o formoso edifício de portada ornada de mosaicos, onde desde Bonaparte estava instalado o Consulado de França, e revia em imaginação certo quarto que respirava através duma varanda de madeiras lavradas para o jardim onde errava a fragrância das rosas damascenas. Nesse quarto haviam repousado o general Kléber após a vitória de Heliópolis e o erudito Champollion depois de decifrar a pedra Roseta: Thuillier comprazia-se a considerar que, tendo descoberto o agente da cólera, seria decerto tido por um herói maior que Kléber e por um sábio maior que Champollion, ganhando o direito de passar uma noite nesse aprazível palacete... Talvez mesmo a sua noite de bodas com Gertrud!

Percebia agora quanto os seus sonhos haviam sido loucos! Bem pouco progredira... Mas seria o vibrião de Koch verdadeiramente específico da doença, mesmo se a sua pesquisa nas dejecções de todos os doentes fosse positiva? O zoólogo Metchnikov afirmava ter encontrado vibriões similares em amostras de água provenientes de locais onde a doença não se manifestara, vibriões esses que mudavam de forma após um longo período de permanência em caldo peptonado. Cioso das teorias do seu mestre, Gaffky argumentava que o vibrião da cólera epidémica era decerto uma espécie particular entre tantas aparentadas, e facilmente distinguível de pelo menos algumas das que com ela se poderiam confundir por os seus elementos serem dotados de um único cílio, o que lhes imprimia uma motilidade característica. No entanto, o próprio Gaffky admitia não existirem diferenças no padrão de fermentação de açúcares por parte dos diferentes microrganismos suspeitos... Quem sabe se o estudo das propriedades biológicas do soro de animais de experiência, após a descoberta duma eventual vacina, permitiria fazer uma destrinça mais fiável entre os vibriões estranhos à cólera e o agente da epidemia? Mas esse dia ainda devia estar longe... Entretanto, talvez Straus fosse a pessoa indicada para estudar as propriedades das águas a partir das quais fossem isolados os diversos vibriões. Era mais difícil contar com Nocard, que aliás se estava ocupando, conforme recomendado por Pasteur, do estudo duma peste bovina que desde o tempo das pragas bíblicas assolava periodicamente o Egipto. Seria a diferente capacidade das águas de diversos locais para manter viável o agente da doença fruto de factores intrínsecos à água ou à presença de outros microrganismos competidores?

- Meu Louis, posso interromper o teu trabalho?

Ao ouvir a voz de Gertrud, Thuillier ergueu os olhos avermelhados pela falta de sono, sentindo uma vaga revolta contra si próprio por não ter ânimo para expulsar imediatamente quem durante tantas semanas lhe ocupara o espírito, impedindo-o de se consagrar inteiramente ao seu dever.

- Não interrompes grande coisa, Gertrud. Eu tinha justamente feito uma pausa, para aclarar as ideias...

O servente egípcio que havia aberto a Gertrud a porta da missão francesa considerava atentamente as expressões dos dois jovens, curioso de comprovar como procederia aquela estrangeira que não cuidava ocultar o rosto sob a tira de linho usada pelas senhoras da boa sociedade indígena e aquele pretenso hakim que não possuía a verdadeira fé. Thuillier despediu o egípcio com uma brusquidão que não lhe estava nos hábitos: os críticos da pedagogia utilizada por Pasteur alegavam que este pretendia transformar a Escola Normal Superior num misto de convento e de caserna... E naquele momento, Thuillier experimentava a angustiada sensação de ser um monge guerreiro da era das Cruzadas, prestes a quebrar todos os seus votos! Seria bem degradante que um mouro o visse em tal situação!

- Desculpa eu não te abraçar, Gertrud, mas estou imundo! Pensei pedir à Faridah que me lavasse a bata, mas achei que a pobre rapariga já estava demasiado sobrecarregada com a barrela do hospital...

- Era só questão de me pedires a mim! Posso não ter outros atributos que a Faridah possui em abundância, mas acho que sei lavar uma bata tão bem quanto ela!

Gertrud falara em tom de amoroso orgulho, mas interrompeu-se, notando as páginas da carta coberta duma letra feminina. Por seu lado, Thuillier começara a conversa carinhosamente, mas a mistura de sentimentos contraditórios que estivera borbulhando dentro dele desencadeou uma reacção funesta.

- É da minha irmã... E nem que não fosse? Não tenho satisfações a dar-te. Eu sou um homem livre, não sou um desses meus pobres patrícios que foram expedidos para os campos de prisioneiros da tua terra, dentro de vagões de gado!

- E eu, feita parva, ainda a oferecer-me para lavar a bata a um degenerado como tu, não faltando quem me queira, entre a minha gente! Sabes uma coisa? O meu pai tinha bem razão, em dizer que a nossa vida em comum nunca daria certo!

- O teu pai! O conselheiro do vosso chanceler, o íntimo do vosso kaiser! Pois o teu pai ainda há de reconhecer que os meus achados têm valor! E tu hás de me pertencer a mim, não a qualquer um desses que andam a mando do teu pai!

Num gesto possessivo, os sujos dedos do jovem francês deixaram um vergão roxo no pulso da jovem alemã. Arquejando, Gertrud agarrou a fina pipeta com que Thuillier estivera ajustando, na sua proporção ideal, as alíquotas duma amostra de sangue distribuídas por um renque de frascos repletos de meios de cultura de diversa composição, e virou contra o rapaz a afilada ponta de vidro.

- Foi com os bacorinhos de que o Pasteur te fazia cuidar, quando estudáveis a erisipela porcina, que aprendeste essas maneiras?

Thuillier recuou perante aquele gesto de princesa bárbara que defende a sua honra.

- Cuidado, garota! Isso está contaminado!

- Contaminada está a tua alma! Eu posso ser a filha dum huno... Mas duvidas de que, se eu te visse à espera de ser fuzilado, ou a morrer a pouco e pouco de maus tratos num campo de prisioneiros, não correria logo a desafiar todas as autoridades do meu país, para te dar a liberdade? Ao passo que tu, apesar das belas teorias de fraternidade universal que te ensinou esse santonário do Pasteur (e quem é ele para criticar as ajudas que o meu pai recebe do nosso governo, ele, que agora se roja aos pés dos republicanos depois de tanto ter adulado o Império!) serias bem capaz de te rir da minha aflição, se me visses sem a protecção do meu pai, à mercê dos soldados da tua terra!

Thuillier deixou cair os braços, contemplando o peito enodoado da bata.

- Desculpa, Gertrud... Não foi com os bacorinhos que aprendi. Coitados dos bacorinhos, deitados na sua cama de palha, tinham melhor aspecto do que eu tenho agora; o Pasteur dizia-me, para me convencer a ocupar-me deles, que eu acabaria por achá-los adoráveis! Eu é que sou um animal... Mas também estás sendo injusta. Como podes pensar tais horrores? Nunca permitiria que te sucedesse algo de ruim! Estou é cansado, e já não sei o que digo. Mas queria tanto descobrir! Tenho a certeza de que o agente da cólera pode aparecer no sangue, nem que seja apenas nos raros casos em que o doente sobrevive tempo suficiente para haver ulceração do tubo digestivo... Justamente, colhi hoje sangue a um tal doente, e inoculei-o para hemocultura. Só espero que o anticoagulante que usei não inviabilize o microrganismo. vou incubar um lote à atmosfera normal e outro numa campânula da qual tiver extraído o ar com uma bomba de vácuo, já que não faço a menor ideia de quais as concentrações de oxigénio e de dióxido de carbono mais propícias ao desenvolvimento do agente da cólera...

Numa solicitude maternal, Gertrud enxugou os olhos remelosos do seu francês e compôs-lhe sobre os cabelos em desordem o barretinho coçado que o jovem investigador usava no laboratório.

- Desculpa-me tu também, Louis... Podia ter-te ferido! E realmente, fui injusta em chamar-te degenerado. Vales tanto quanto qualquer dos homens da minha raça, e se já agora eu teria vaidade em apresentar-me pelo teu braço, quanto mais quando tiveres descoberto o agente da cólera! - e como boa neta de pregador, que mesmo dominada por um amor humano não esquece as suas referências bíblicas, acrescentou - E perdoa ainda o que eu disse acerca do teu Pasteur, o bom Pastor, o santo laico de toda a França! Já tenho sorrido a pensar em vós, quando releio a história dos Apóstolos! O teu chefe Roux é uma espécie de Pedro, que se atreve a contradizer o Mestre, que discute com ele, que lhe pergunta o que receberá em paga de ter deixado tudo para o seguir, que lhe assegura a sua fidelidade mesmo que todos os demais se revelem traidores... E tu, meu Louis, és um perfeito João Evangelista, o discípulo querido!

- Não sou santo algum, minha Gertrud! Desejo-te tanto! Os santos não amam assim. Mas estou a esforçar-me por merecer-te. Se o teu pai me encontrasse mérito... Diz lá, acreditas mesmo que o vibrião isolado pelo teu pai seja o agente da cólera? O Pasteur já descreveu espécies similares há uns vinte anos, associadas à putrefacção da carne...

- Sim, e o nosso Otto Muller já no século passado descreveu umas seis espécies de vibriões não-patogénicos! Não te apoquentes tanto, meu Louis... Todos juntos, haveis de chegar a alguma conclusão....

Gertrud calou-se por instantes, deixando os seus dedos repousar sobre o ombro do seu Thuillier, sentindo-lhe a tensão do corpo alquebrado sob o tecido ralo da bata.

- Meu Louis, custa-me falar-te disto agora, mas tu próprio, se tens alguma consideração pela Faridah, não me perdoarias que eu calasse o seu pedido... - e, algo atabalhoadamente, Gertrud reproduziu a sua conversa com a egípcia.

Para disfarçar o seu mal-estar, Thuillier lutou um longo momento com o nó do cinto da bata.

- Só me faltava esta... Mas enfim, talvez me faça bem preocupar-me com outra coisa além do que com o micróbio da cólera! É claro que vou procurar o miúdo! E devia apressar-me, pois já está escurecendo... A Faridah que me perdoe, mas ainda tenho que me demorar uns instantes, para pôr as minhas culturas a incubar!

 

Vamos lá com Deus e com "Bibi Maryam"!

Era a hora aprazível em que um vapor cor de pérola afofava a linha do horizonte sem empanar ainda os tons de lazulite do céu. Os indígenas e os cidadãos adoptivos de Alexandria entravam no auge da sua actividade, refeitos das canseiras da canícula pela sesta da tarde que todos haviam praticado, os mangas de alpaca caídos de bruços sobre o mata-borrão das suas secretárias e os moços de corda esparramados sobre os fardos de algodão. Nos edifícios públicos, percebia-se já o silvo do gás de iluminação. À porta das tabernas do porto chiavam grelhas carregadas de entranhas e os velhos mareantes que haviam tentado a riqueza com os negócios ilícitos da cidade e agora se limitavam a ver a vida passar, cabeceavam sobre os seus chibuks. Na estação, fumegava o comboio da noite para o Cairo, e as vendedoras de bolos de grão discutiam às janelas das carruagens o preço da sua mercadoria. Pelas esplanadas que os turistas frequentavam, saltimbancos anões tocavam pandeiros ao som dos quais bailavam ursos e cinocéfalos amestrados.

Thuillier não deixou de notar que, embora bem menos frequentes do que há poucas semanas atrás, persistiam contrastes a este ambiente festivo. Nas casas das últimas vítimas da epidemia, ainda se elevavam as zagaritas fúnebres das mulheres da família ou o choro mais ritmado das carpideiras profissionais, que por vezes se entreviam à porta, vindas refrescar-se do seu mister. Os que aspergiam o corpo com uma infusão de ervas aromáticas e o enfaixavam para a sepultura (se o defunto fosse muçulmano, quiçá com os seus panejamentos de peregrino a Meca, se fosse cristão copta, com um sudário lavado em água do Jordão) tinham tradicionalmente direito às roupas do defunto, mas quem desejaria as roupas de alguém vitimado pela cólera? Igualmente, era tradicional a família do morto oferecer uma refeição aos amigos, mas não poderia esse costume ter contribuído para a propagação da epidemia?

Um tiro de canhão reboou sobre a enseada, assinalando a entrada dum navio - talvez o paquete de Marselha, pensou Thuillier com saudade - e convocando o piloto da barra. A regressão da epidemia fizera relaxar a atenção das autoridades que velavam pelo bloqueio marítimo e as crianças que mergulhavam em busca das moedas que os forasteiros lançavam da amurada dos navios deveriam estar fazendo outra vez uma boa safra... Thuillier enterneceu-se, pensando naqueles meninos de Alexandria que tinham avós entre soldados de todos os exércitos e entre mulheres que imploravam a todos os deuses uma bênção para os seus amores sem decência. Embora os escritores antigos houvessem repetidas vezes afirmado que os homens e mulheres de Alexandria não amavam senão o dinheiro, mudando de lealdade e de crenças ao sabor das conveniências e das modas, concordavam igualmente que Alexandria acabava tornando-se a pátria de todos quantos eram desditosos nas suas paixões, um recôncavo do Mediterrâneo onde a maré lançava os que tinham sido açoitados pelas tormentas da vida.

O travo do ar marinho despertou o apetite de Thuillier. Recordou a carta de Pasteur; as referências aos trabalhos do último Outono... Agora, Setembro aproximava-se do fim; por toda a França, desde o Languedoc até à Borgonha, as folhas das vinhas cobriam-se de tons quentes. Mas aqui no Egipto, que no entanto fora célebre, antes da conquista muçulmana, pelos bons vinhos dos seus oásis, como o Outono tinha um sabor diferente! O sol inclemente do verão tardava a retirar-se do céu...

Entre os próximos de Pasteur, Thuillier conhecera os descendentes de antigos veteranos da campanha do Egipto, de homens aguerridos que se haviam deixado deslumbrar por aquela pátria da luz e desposado mulheres nas margens do Nilo. Também Thuillier, apesar do quadro mórbido em que se desenrolara a visita, aprendera a amar o Egipto do povo simples ao qual pertencia Faridah. Por isso, com a consciência pesada, apressava o passo. Atormentava-o supor que talvez, se ele tivesse podido contribuir para o bem-estar da família de Faridah, o desaparecimento de Gamal houvera sido evitado. Mas delapidara alegremente as dez libras que Roux lhe dera, em esmolas para as obras da igreja copta que abrigara o seu amor com Gertrud... O mal, se mal houvera, estava feito, e só lhe restava agora percorrer as catacumbas, na mal-fundada esperança de encontrar o pequeno... E que sabia ele das catacumbas? Apenas o que lhe mostrara o próprio Gamal e os conhecimentos mais livrescos que lhe transmitira um certo Gaston Maspéro, um antigo aluno da Escola Normal Superior que fora expulso desta após uma desavença político-religiosa com Pasteur, então administrador da Escola...

Gaston Maspéro assumira, após a morte do egiptólogo Mariette no decurso do ano anterior, a direcção das Antiguidades Egípcias, e a sua mais dura tarefa consistia em contrariar os desígnios dos traficantes de antiguidades. Thuillier nunca lhe mencionara a sua amizade com Gamal, que dependia destes últimos, mas referira-lhe o seu interesse pelos vestígios históricos que haviam sobrevivido ao recente e desordenado desenvolvimento urbanístico de Alexandria, e Maspéro fornecera-lhe as informações que possuía quanto às catacumbas ocidentais: não seriam as mais antigas (estas estavam situadas nos bairros orientais da cidade) nem as mais ricas, cuja presumível localização era nos campos do outro lado do canal Mamoudieh, mas eram aquelas que haviam sido melhor estudadas pelos arqueólogos, antes das terraplanagens destinadas às obras de construções militares, na primeira metade do século, haverem ocultado os seus vários acessos agora só recordados pêlos salteadores... E o douto egiptólogo concluíra, desenrolando um mapa da cidade e designando vagamente o local (separado do mar por colinas calcárias esventradas pelas pedreiras das quais haviam sido extraídos os blocos para as fortificações) onde se deviam situar as referidas catacumbas: "O Pasteur é um velho caturra, espero que não te arrependas de o ter seguido... Por mim, não me posso queixar; se não tivesse sido expulso da Escola, estaria agora a ensinar História a um bando de alunos que se estão rindo para Amenófis e Tutmósis, em vez de me poder dedicar à arqueologia. Boa sorte, colega!"

Um cortejo matrimonial invadiu a rua, pondo uma nota de colorido no asfalto poeirento. Engalanado com o seu mais rico turbante e montado num cavalo cujos jaezes resplandeciam de vidrilhos, um noivo muçulmano ia buscar a sua prometida a casa dos pais: e segundo o costume, eram distribuídos bolos duma enjoativa massa açucarada aos que se quisessem associar à celebração... Entre os populares que seguiam o cortejo com curiosidade, Thuillier reconheceu Alexandre Yersin. O estudante de medicina discutia com um mocetão vestido da casaca vermelha do exército britânico, as características duma espingarda "Remington" cujo cano reluzia aos últimos raios do sol poente. Thuillier conservava-se um pouco agastado com o estudante, que apesar do espírito romântico com que encarava o Oriente quisera contrariar o amor entre os dois jovens representantes de grupos rivais...

- Por aqui, Alexandre? Andas a planear outra partida para pregar a alguém?

- Que ideia... O médico-tenente David Bruce estava-me expondo os seus projectos duma caçada aos micróbios!

- com uma espingarda?

- É um sistema perfeitamente legítimo! O Dr. Bruce tem uma teoria sobre o modo como os mamíferos selvagens africanos podem servir de reservatório a diversas espécies de parasitas do sangue, patogénicas para os humanos...

O militar teve um sorriso complacente à intenção do francês.

- Ora, reconheço que não sou o maior especialista em epidemiologia africana! Já antes da batalha de Aboukir que vários médicos da vossa marinha se interessaram pelas patologias destas regiões e essa tradição permanece viva. Nas docas de Gibraltar, travei conhecimento com um dos vossos jovens apaixonados pela microbiologia, um tal Dr. Calmette que poderia desenvolver um trabalho brilhante sobre a doença do sono, mas que os vossos oficiais enviaram para a guerra contra os piratas do golfo de Tonkin,perder tempo... Coitado, deve ser um rapaz da sua idade, Yersin; você gostaria de correr mundo com ele!

De olhos brilhantes, como que ansiosos de contemplar os céus de outras latitudes, Yersin tomara o braço de Thuillier.

- Pois como lhe estava dizendo, o Dr. Bruce desafiou-me para ir com ele apanhar antílopes nas savanas do Alto Nilo, como elemento de estudo de ecologia sanitária! Quando eu for assistente de Pasteur...

Satisfeito por ter alguém mais novo do que ele a quem poder falar em tom autoritário, Thuillier levantou o queixo.

- Vai mas é atirar aos patos nos juncais do lago Mareut, que já é façanha bastante para um miúdo como tu! Isto de ser assistente de Pasteur tem que se lhe diga! Como te sentirias a trabalhar a contrato, por um ordenado de cinquenta francos ao mês, sabendo que já há uns quinze anos, quando o Mestre e os seus assistentes de então andavam a estudar as doenças do bicho da seda por conta do nosso ministério da Agricultura, a cozinheira que lhes fazia o jantar ganhava quase outro tanto?

Yersin coçou a orelha, desconsolado.

- Lá por eu ser suíço, não me deves tomar por mercenário; mas também não gosto de me sentir explorado! Convenhamos que a vida dum investigador é dura em qualquer lado... Diga-lhe, tenente Bruce!

com um resfolgar de indisciplina, Bruce atravessou a arma sobre os ombros.

- Verdade, verdade, não foi pelos lindos olhos de Sua Graciosa Majestade que eu me alistei, mas com intenções de arranjar dinheiro para poder casar com uma rapariguinha como não havia outra em Edimburgo! O meu segundo amor é a ciência, e esperava ser estacionado em África, para pôr à prova as minhas teorias sobre as doenças deste continente... Mas aquelas bestas dos meus superiores decidiram mandar-me para a ilha de Malta. Bem, verei o que posso fazer por lá!

- Fará com certeza muito, Bruce! E permitam-me que eu me despeça, mas tenho de ir procurar um meu amiguinho árabe, que se perdeu numas catacumbas...

Vagamente intrigado, Bruce recordou-se dos seus conhecimentos de médico militar.

- Nas catacumbas? As catacumbas ocidentais? Não são aquelas cuja localização exacta se perdeu, quando Mehémet-Ali mandou atulhar as suas entradas para perto delas construir um forte, que nós agora ocupámos? Tenha cuidado... Foi ainda há escassos dias que tivemos os últimos casos de cólera entre a guarnição e é bem natural que naquele terreno calcário, as águas residuais da enfermaria tenham penetrado até às catacumbas...

Recordando-se das informações de Faridah acerca das águas estagnadas que inundavam o terceiro nível das catacumbas, Thuillier encontrou motivo para uma nova inquietação; porém, tentou argumentar:

- Bah! Tratando-se duma água tão poluída, com tantas espécies competidoras de micróbios, duvido muito que o agente da cólera encontrasse condições ideais para a sua multiplicação. Para mais, a água terá sido filtrada pela sua passagem através do solo... De qualquer modo, agradeço o conselho...

com um último aceno a Bruce e a Yersin, Thuillier retomou o caminho, já num passo de corrida. A noite descia quando alcançou um descampado no sopé das colinas, alastrado de fragmentos de louça que testemunhavam haver aquele sido um lugar frequentado na antiguidade pelos participantes em banquetes funerários. com maior facilidade do que ousara supor, reencontrou a entrada, oculta por um amontoado de blocos defeituosos abandonados nas pedreiras, por onde Gamal o conduzira na companhia de Gertrud...

Acendendo a lanterna que trouxera precavidamente, Thuillier experimentou com uma vara de cana a firmeza dos degraus soterrados por redemoinhos de areia. Arriscou-se por uma angosta câmara, dobrando os ombros sob a abóbada baixa que formava o tecto. Naquele local haviam sido massacrados cristãos durante as perseguições dos primeiros séculos... Duma parede enfumarada, destacava-se, emoldurado no ouro da sua auréola, o rosto duma jovem mártir; talvez Santa Catarina de Alexandria, uma das visões que falara a Joana d' Arc, recordou-se Thuillier, pensando vagamente que a sua vida seria mais linear se tivesse descido do céu uma santa para lhe comunicar a melhor maneira de servir a pátria e o próximo!

Gamai certamente não se demorara naquele nível, há muito despojado dos seus eventuais tesouros. Thuillier desceu pois pela escada em caracol, contornando o poço por onde eram introduzidos os sarcófagos, que dava acesso aos pisos inferiores. Deteve-se com um calafrio, sentindo um osso estalar sob o seu pé. Ali, já não existiam as imagens cristãs que embora com claras influências do folclore local, eram algo familiares a um europeu. Por uma repulsa irracional, Thuillier sentiu aumentar o seu mal-estar perante um fresco em que um sombrio personagem com cabeça de chacal estendia as mãos sobre uma múmia num gesto protector. Aferrou-se ao seu espírito científico como a um anjo da guarda: os antigos egípcios consideravam a preservação do corpo condição indispensável à imortalidade; porém, Pasteur ensinava ser mais bela a imortalidade que consistia na incorporação dos átomos do nosso corpo noutros organismos vivos, após a nossa matéria orgânica ter sido degradada pelas bactérias... Era estranho que Pasteur acarinhasse tal ideia herdada dos filósofos materialistas, ele que, afirmando-se católico, deveria dar primazia à sobrevivência da alma... Para se tranquilizar, Thuillier contemplou uma pintura mais alegre, a qual representava Osíris, deus da ressurreição e patrono dos misteres agrícolas, ensinando aos homens os segredos do fabrico da cerveja: e Thuillier surpreendeu-se a sorrir, pensando que maugrado toda a sua lógica e todo o seu catolicismo, talvez Pasteur sonhasse que depois de morto, poderia continuar a aperfeiçoar a sua "cerveja da vingança" no paraíso de Osíris!

Mais animado, Thuillier prosseguiu a sua descida, e pressentiu que tinha chegado ao piso mais profundo quando sentiu uma água espessa lambendo-lhe os pés. Um bolor verde-negro atapetava as paredes, e os esporos que pairavam no ar tornavam a respiração penosa. "O Raulin é que teria adorado este lugar" comentou Thuillier para si, pensando em Jules Raulin, um dos mais antigos assistentes de Pasteur, que dedicara parte da sua obra ao estudo dos fungos filamentosos.

Após um instante de dúvida, adiantou-se, sondando a profundidade da água, por um dos corredores que irradiavam a partir do eixo da escada. Mas o seu pé resvalou numa mancha de limos, e no esforço para impedir que a sua lanterna se apagasse, o jovem sábio caiu de chofre na água estagnada, golpeando a cabeça na base duma coluna...

Um apelo longínquo arrancou-o à semi-inconsciência em que se encontrava. Cuspinhando a água suja que lhe entrara para a boca, Thuillier recuperou a lanterna que atirara para dentro duma urna, e percorrendo a custo mais uma sequência de salas inundadas, descobriu Gamal, acaçapado num nicho, no meio da escuridão.

- Oh, hakim, Deus seja louvado! - Gamal apontou o tornozelo, onde alastrava um inchaço arroxeado - Acho que torci um pé, ao andar entre aquele entulho coberto pela água. Consegui içar-me para aqui à espera que a dor amainasse, para depois procurar uma saída mais fácil que sei que existe, mas entretanto o óleo da minha lamparina acabou... - e encafuando-se entre os braços estendidos de Thuillier, o menino suspirou - Agora, só já estava à espera do anjo Azrail!

- Em vez de dizer tolices, escarrancha-te nos meus ombros; assim, fico com os movimentos livres para pegar na lanterna, e com a tua orientação já encontro o caminho para fora daqui!

Gamai apalpou o fato encharcado de Thuillier, e à luz bruxuleante, viu-lhe as mãos cobertas de arranhões.

- O hakim também já caiu... Será que conseguimos sair juntos? Thuillier estremeceu, sentindo ainda na boca o gosto pútrido da

água, mas a sua voz inspirava confiança.

- Claro que conseguimos; um francês pode com toda a humanidade às costas, e tu és magrinho! - e levando a mão à medalhinha milagrosa que lhe dera a Sra. Pasteur - Vamos lá com Deus, e com "Bibi Maryam"!

 

Um beduíno pintado de azul e um negro de carapinha enfeitada

No dia após o salvamento de Gamal, Thuillier não tivera vagar para se preocupar consigo próprio. O acondicionamento do material de laboratório para a viagem de regresso a França ocupara-lhe a maior parte do tempo, e o resto passara-o a rever os apontamentos das suas últimas observações. Por uma espécie de pudor, nada contara a Roux da sua arriscada empresa nas catacumbas. Yersin tão-pouco fizera qualquer referência a esta, não querendo ser novamente acusado de devassar a vida alheia. Todos ignoravam assim como Thuillier se expusera, com excepção de Gertrud que aparecera ao fim da manhã e o abraçara demoradamente.

- Tenho orgulho em ti! Vigia bem a tua saúde nestes próximos dias; bebeste aquela água suja, lá nas catacumbas... A Faridah contou-me tudo. Estava francamente agradecida, coitada. Pediu a Deus que nos abençoasse a nós, aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos!

Enquanto Gertrud falava, Thuillier, sem conseguir deslindar-se do abraço, estivera mergulhando a louça do laboratório numa selha de água, na qual dissolvera cloreto de cálcio para aumentar a temperatura de ebulição. Envergonhado dos seus preparativos de partida baixara os olhos, concentrando-se na operação de regular a chama do fogareiro. O som de cachoeira que começara a erguer-se da água deu-lhe finalmente a oportunidade para mudar de conversa.

- Perdoa lá, Gertrud, mas é melhor saíres; isto pode ser perigoso. Quando eu esterilizava os nossos meios líquidos no laboratório do Pasteur, acontecia as tampas dos matrazes voarem até ao tecto! A minha pior experiência ocorreu certa vez em que eu estava a preparar urina fervida, para nela semear os germes do carbúnculo...

- Vocês ainda usam este sistema para tratar o material contaminado? O meu pai, com o Gaffky e o Lõffler a ajudar, já arranjou uma técnica de esterilização pelo vapor à pressão. Também dá lugar a acidentes, mas é mais eficaz!

- Nós também estamos a trabalhar nisso, lá em Paris. O Dr. Chamberland está a desenvolver um modelo de autoclave do mais moderno!

- Acredito! E enquanto isso, tu, meu pobre terceiro assistente, continuas a expor-te aos escaldões! Por que não me confias uma parte desse material, para eu o pôr a esterilizar juntamente com o nosso? Prometo-te fazer a coisa de modo a que ninguém se aperceba...

- Ainda me queres deixar a dever favores ao teu amigo Gaffky? Essas coisas acabam sempre por se saber. Se realmente estás com boa vontade para me ajudar, iria pedir-te algo bem mais importante...

E dirigindo-se à estufa de incubação que ainda se mantinha em funcionamento na sala contígua, Thuillier extraiu dela um dos balões nos quais inoculara o sangue do seu último doente. Olhou à luz o sobrenadante ambarino e agitando o sedimento, observou longamente a turvação resultante.

- Tem pouco tempo de incubação, e como os eventuais micro-organismos apenas se encontrariam presentes em pequeno número no inóculo inicial, ainda não se consegue detectar crescimento. Mas pareceu-me que os glóbulos vermelhos se estariam a lisar, o que não é explicável pela tonicidade do meio. Suponho que se estará a desenvolver alguma bactéria, mas com verdade científica não posso dizer qual seja; pode simplesmente tratar-se dum componente da flora comensal que tenha entrado em circulação, em consequência das ulcerações intestinais. Fazias-me o grande favor de mostrar isto ao teu pai, para ele passar a cultura a um dos seus meios sólidos?

Gertrud, que tão bem aprendera com seu pai a transportar material virulento, apressou-se a aceder a tal pedido; porém, vendo-a prestes a retirar-se, com a cultura microbiana num cestinho de arame, Thuillier não se reteve de acrescentar evasivamente:

- O Prof. Metchnikov, livre-pensador como é, escandalizou-se ao saber que nos encontrávamos naquela igrejinha, à mercê de eventuais fanáticos! Eu expliquei-lhe que após a esmola que demos, o abbu se tinha mostrado imensamente compreensivo para a nossa causa, mas o Metchnikov insistiu em oferecer-nos o seu laboratório flutuante, para estarmos mais à vontade. É um lugar curioso... Pelo menos, para quem estiver interessado pelas células migratórias observáveis no celoma dos organismos de simetria radiada! Se tiveres paciência para escutar as considerações do russo sobre as suas queridas células, talvez ele nos arranje onde ficarmos verdadeiramente a sós...

Gertrud cruzou os braços, naquele gesto de desafio manso que sempre exasperara o francesinho.

- Estou vendo. E depois, juras-me fidelidade eterna sobre um volume da "Origem das Espécies"?

Thuillier inclinou a cabeça, adotando o ar mais cândido que lhe era possível, mas Gertrud manteve-se firme.

- Não quero que por nossa causa o Prof. Metchnikov arranje a inimizade do meu pai ou do Dr. Roux. Bem lhe bastam, para o atormentar, as controvérsias à volta das suas teorias! Prescindimos da sua oferta... Já guardo as melhores recordações de ti. Só te peço que, uma vez em Paris, me escrevas a contar os progressos das tuas investigações!

- Sim, e calculo que tu me devolverás as cartas, com os meus erros de gramática alemã assinalados!

Gertrud teve um meio sorriso, e golpeou de leve a face de Thuillier com as pontas dos dedos, como a mestra paciente que repreende um aluno traquinas. Thuillier relanceou por última vez a sua furtiva amada; depois o balão onde talvez se escondesse o igualmente furtivo agente da cólera, e retomou furiosamente o seu trabalho, para acalmar a frustração que o mordia por não conseguir realizar qualquer dos seus desejos...

Logo na madrugada seguinte, o jovem investigador dirigira-se ao hospital para recolher algumas seringas e cânulas lá esquecidas. Faridah dirigira-lhe um sorriso radioso, logo dissimulado detrás do seu tosco véu. Perante as insistências do seu irmão Harun, à bela egípcia abandonara o seu lugar no casino; mas nem as ameaças a haviam demovido de continuar a ganhar o pão da família com as suas tarefas no hospital, onde assegurava agora a assistência aos doentes durante as horas mortas da noite, a troco de mais uma cesta de lentilhas... Depois do acidente de Gamal, também Amru deveria pôr-se ao trabalho, ajudando os burriqueiros. Thuillier cruzou-se no pátio com o menino, que servia a ração de forragem a um daqueles típicos jumentinhos egípcios, ao mesmo tempo dóceis e independentes.

- Belo animal; não te dará problemas. Mas ficaria ainda mais fino se lhe tirássemos essas carraças das orelhas. Queres que te ajude?

- Um hakim também entende disso?

Thuillier riu, mas era sincero na sua oferta. Já ganhara prática em desembaraçar de parasitas o espesso pêlo das cobaias que Chamberland comprava nos cais do Sena, e de lhes pincelar a pele rosada com tintura de iodo...

Deixando o hospital após as despedidas, o francês encontrou a passagem impedida por uma caravana de carregadores que, dirigidos por Gaffky, transportavam em direcção ao porto o material da missão alemã. No seu rochoso dialecto saxónio, o assistente de Koch apostrofava os carregadores sempre que alguma mala balouçava mais perigosamente, e Thuillier sentiu-se tentado a empregar aquele tom moralizador que ganhara ao contacto de Pasteur.

- Isso não são maneiras de tratar os indígenas! Se você se comporta assim com estes egípcios, nossos avós espirituais, o que fará com os párias da índia!

As palavras eram dum humanitarismo austero, mas o francês ditara a sentença repousadamente, muito aprumado na sua mula, enquanto Gaffky arquejava sob um caixote de tubos de ensaio, entre um beduíno de face sarapintada de azul e um negro de carapinha ornada com puas de porco-espinho.

- Queria vê-lo a si a calcorrear as estradas da índia! Talvez perdesse assim a mania de querer sempre dar lições aos outros! Até a Gertrud acreditou em você... Sim, aquela cultura de sangue tem crescimento, se é isso que você quer saber. O Dr. Koch vai dar-se ao trabalho de identificar a bactéria, mas duvido que seja mais do que um contaminante qualquer!

Entusiasmado por tal notícia, o assistente de Pasteur fez choutar a mula, abandonando Gaffky numa nuvem de pó...

 

A expulsão do Paraíso

Ao jantar, no hotel, Thuillier mostrou-se jovial. Straus e Nocart trocaram olhares significativos vendo-o clarear uma travessa de beringela recheada. O apetite renovado do jovem era decerto evidência de que este havia atirado ao lixo milenário de Alexandria a sua paixão funesta... Metchnikov discorria interminavelmente, perante o já sonolento Roux, sobre biologia e política, as eventuais implicações sociológicas da teoria da Evolução, apontando os erros de raciocínio daqueles que consideravam tal teoria como prova científica da validade dum capitalismo selvagem. Thuillier apenas prestava um ouvido distraído às doutrinas do seu amigo zoólogo, molhando os lábios num copo daquele vinho das uvas amadurecidas ao sol do Egipto (com um teor alcoólico superior ao dos vinhos europeus) e seguindo uma partida de bilhar que se desenrolava a um canto da sala. Maugrado as sequelas da sua hemiplegia, Pasteur era tão exímio no manejo dos tacos de bilhar como no das suas pipetas e uma das raras diversões que concedia a si próprio era desafiar colegas e subordinados para uma partida. Por uma fraqueza bem humana, o Mestre tornava-se mal-humorado quando perdia e nunca qualquer dos assistentes ousara vencê-lo, nem mesmo aquele Adrien Loir, que no entanto gozava do privilégio de ser seu sobrinho e se permitia tanta liberdade de palavra... E contemplando as poeiras que bailavam no seu copo e que a luz das serpentinas transformava numa escória de ouro, Thuillier reflectiu que se ele conseguisse impressionar Koch, talvez a melhor paga que Pasteur lhe desse seria, sem rancor, vê-lo triunfar num jogo de bilhar... E daí a consentir no seu amor...

A filha do hoteleiro, uma morena olivácea das ilhas do mar Jónico, encheu novamente os copos, e o jovem francês não resistiu a rodear-lhe a cintura fina com o braço, que no entanto depressa retirou. Não podia entreter-se com frivolidades e devia conservar-se digno da sua Gertrud. Subindo ao seu quarto, atirou distraidamente a sua roupa para cima das costas duma cadeira e aninhou-se no colchão, entre os seus livros.

Folheou aquilo a que chamava, numa provocação carinhosa, "o seu breviário": os dois volumes da obra de Pasteur referente às doenças bacterianas e parasitárias que dizimavam os bichos da seda nos terraços de amoreiras do Sul de França. Pasteur sustentava que deviam existir paralelos entre certas formas de diarreia profusa próprias desses animais e a cólera humana; insistentemente, o Mestre aconselhara pois aos seus assistentes que relessem, durante a viagem ao Egipto, os estudos dedicados à patologia do bicho da seda, para neles buscar inspiração... O mérito científico da obra era reconhecido pelo próprio Koch, que nela procurara directrizes para os seus primeiros trabalhos bacteriológicos. Sim, porque Koch, apesar dos termos menos caridosos em que muitas vezes se referia a Pasteur, não lhe negava a primazia. Da mesma forma que Pasteur, embora o seu velho coração só encontrasse agora força no ódio contra as armas alemãs, sempre afirmara que o poder dos inimigos se devia à sua aplicação da ciência!

Thuillier teria podido recitar páginas inteiras do livro, porém, para prevenir a eventualidade de algo lhe ter escapado, decidiu-se a meditar sobre ele uma vez mais. Mas o sono atraiçoou-o, não o deixando passar além da página de título, onde se alongava a floreada dedicatória que, em vésperas da última guerra, Pasteur dirigira à Imperatriz Eugenia...

Sonhou que se encontrava no Paraíso Terrestre, no sector do Éden atravessado pelo Nilo. Via-se a si próprio como o primeiro Homem, a quem Deus incumbira de dar nomes a todos os seres vivos. E ele ali estava, encruzado como um escriba, com o seu microscópio entre os joelhos, sobre o aluvião negro das margens do rio que desce dos céus, examinando amostras de todas as poças de água que a inundação deixara esparsas. Perguntava a si próprio se, entre tantos milhões de criaturas que lhe era dado observar, encontraria alguma que compreendesse os seus sentimentos... Enquanto assim ocupava o espírito, sentiu na terra fofa atrás de si os passos leves dum anjo de Deus. Teve medo porque estava nu (a Providência divina não lhe havendo ainda proporcionado uma bata) e nesse momento adquiriu consciência da sua fragilidade perante a doença e a morte.

- És tu, anjo Azrail? Não me incomodes. Deus deu-me todos estes microrganismos para classificar e isso é uma tarefa interminável! Espécies com propriedades muito diferentes podem ter um aspecto semelhante e por vezes a mesma espécie assume diversas morfologias, consoante a fase do seu ciclo de vida. E como se tal não bastasse, já verifiquei que seres que se multiplicam tão rapidamente sofrem constante evolução...

O anjo ergueu a sua espada.

- Deves seguir-me. Cometeste uma falta grave. Deus tinha-te concedido a faculdade de ganhar conhecimentos com que dominar toda a criação e tu, não contente com isso, quiseste decidir por ti próprio o que está certo e o que está errado! Doravante, tudo o que descobriste com o suor do teu rosto será usado para fabricar instrumentos de destruição e a tua companheira dará à luz na dor, sabendo que os vossos filhos hão de pegar em armas uns contra os outros. Estás expulso do Paraíso!

Thuillier cerrou os punhos, desafiando o anjo da morte.

- Vem buscar-me, Azrail!

Pareceu-lhe que a espada do anjo se abatia sobre ele - e despertou, com uma violenta dor rasgando-lhe as entranhas. Sentia o corpo viscoso de febre e vómito refluir-lhe à boca...

 

Nas mãos de Deus com cólicas

Procurando redigir um relatório conclusivo da expedição, Roux adormecera há pouco quando pancadas angustiadas soaram à sua porta. Durante os turnos da noite no Hôtel-Dieu, o médico adquirira o reflexo de passar prontamente dum sono profundo à vigília mais lúcida e logo abriu os olhos estremunhados, fitando o seu subordinado, que descalço e em camisa apertava os braços sobre o ventre.

- com sua licença, chefe... Acordei com uma cólica insuportável! A dor abrandou em seguida e pareceu-me que iria passar, mas agora voltou com mais força. Para mais, creio que estou com temperatura alta. Trabalhei tanto estes últimos dias e tive tantas hipóteses de contágio... Acha que posso ter apanhado a cólera?

Roux coçou a ponta da barba cor de labareda que deixara crescer durante a sua estada no Egipto e que dava um toque inquisitorial ao seu rosto esguio, comentando, no tom paternalista dum médico para com um leigo:

- Cólicas? Já lhe expliquei que a cólera não dá isso; provoca uma diarreia indolor... A subida de temperatura também não faz parte dos sintomas usuais. E você estava tão bem disposto, ao jantar! As suas queixas, de início tão brusco, seriam compatíveis com uma intoxicação alimentar aguda, mas o cozinheiro que o Pasteur nos aconselhou a contratar tem boas noções de higiene... O mais certo é você ter abusado deste vinho traiçoeiro do Egipto, e tido algum pesadelo. Não seja piegas, homem! Volte para a cama e conte carneiros!

- com que então, conto carneiros? Carneiros, como? Vacinados contra o carbúnculo, ou por vacinar?

Lágrimas de tormento e de fúria afloravam aos olhos de Thuillier. Repreendeu o seu superior, numa voz entrecortada que se esforçava por tornar nítida.

- Lembra-se de quando começámos os nossos trabalhos sobre os cães raivosos, você, o Chamberland e eu? O Chamberland, pelo engenho que demonstrava em manipular os vírus, querendo experimentar novos inventos para tal efeito, tinha sido escolhido pelo Pasteur. Você ofereceu-se como voluntário, mas tirará dividendos disso; já sei que pretende fazer a sua tese de doutoramento sobre o tema da raiva. Eu é que nada tinha a ganhar com o assunto e no entanto, quis participar! Antes de trepanarmos o primeiro cão raivoso (um lobo da Alsácia que três dos ajudantes do veterinário que nos fornecia os sujeitos de experiência só após muita luta tinham conseguido amarrar à mesa de operações) você e o Chamberland mostraram-me uma pistola que tinham escondida atrás das caixas de material cirúrgico, onde o Pasteur não a visse.

"Sabe como é morrer de raiva, meu rapaz?" disse-me o Chamberland, com a sua recém-conseguida autoridade de subdirector da Escola Normal "Aqui o Dr. Roux pode-lhe explicar isso em pormenor. O pior de tudo, são as semanas à espera de que a doença se manifeste, depois do contágio... Vamos desenvolver uma vacina que possa actuar se administrada precocemente após a inoculação da doença, mas calculo que ainda esteja longe o dia em que a tenhamos pronta! De modo que fizemos um pacto: se qualquer um de nós for mordido por um animal doente, ou se o cão a trepanar o obrigar a fazer um movimento em falso e a ferir-se com material contaminado, o colega dispara-lhe um tiro na cabeça para o poupar a mais sofrimentos. Agora que você já está dentro do segredo, continua a querer ter parte nisto?" Eu enfiei o avental de operador como se nunca tivesse feito outra coisa na vida: "Não haja dúvidas, doutor! Apertar o gatilho, disso qualquer um é capaz!" Recorda-se, Roux? Como pode dizer que sou piegas?

Roux amparou o corpo cambaleante de Thuillier e ajudou-o a sentar-se na cama, surpreendendo-se com a quentura malsã que pressentiu.

- Você está mesmo com um febrão! Desculpe lá, Thuillier... Nós médicos, temos por vezes um modo desastrado de dizer as coisas! Mas vou já tratar de si! - num tom que pretendia criar boa disposição, acrescentou - Deite-se aí mesmo; é claro que, como chefe da missão, tenho uma cama mais confortável do que a sua!

Estudou-lhe o branco dos olhos, procurando sinais de icterícia, e passando-lhe os dedos pelas têmporas notou-lhe o ritmo cardíaco acelerado e avaliou o grau de sudação. Descobrindo o tórax, observou que as fibras dos músculos peitorais eram percorridas por um tremor involuntário, como poderia suceder após a entrada de bactérias para a corrente sanguínea. Já inquieto, mas não querendo deixar transparecer tal sentimento, prosseguiu no mesmo modo chocarreiro - Imagine que tem a seu lado uma rapariga cá das nossas, e verá como já lhe passa esse frio que deve estar a sentir!

- O Pasteur é que falava bem, quando dizia que os melhores dentre os cirurgiões não passam duns sádicos! Sinto-me mais enregelado do que no desvão do nosso laboratório da rue d'Ulm, em pleno Inverno! Se me arranjasse um cobertor... - mas antes que Roux o pudesse enroupar mais, logo Thuillier se descobriu, com um novo ricto de dor.

- Tenho de ir outra vez às latrinas...

- Eu vou consigo. Convém que eu veja se deita sangue ou pus, como nas disenterias; bolhas de gordura, como em certas parasitoses, ou simplesmente uma aguadilha...

- Não se rale, chefe... - mas não pôde prosseguir, abafado por um vómito aquoso, e debruçou-se sobre a bacia do lavatório.

- Desculpe esta sujeira, já vomitei várias vezes antes de vir cá... A princípio tinha que fazer força, mas agora veio-me espontaneamente...

- Você precisa duma dose de tintura de ópio, para inibir os movimentos do tubo digestivo. Eu já trato disso!

Entorpecido pela medicação, Thuillier serenou um pouco. Após lhe haver examinado por repetidas vezes o diâmetro pupilar, para avaliar a progressão do efeito do preparado de ópio, Roux deixou-se adormecer, sentado à cabeceira do seu subordinado.

O ruído de alguém destrancando uma porta e vasculhando as prateleiras dum armário bastou para arrancar Thuillier ao seu sono medicamentoso. Às dores, havia sucedido uma profunda prostração aliada a uma angústia de animal que, sem a compreender, sente chegar a morte. O jovem investigador quis levantar-se, mas os seus joelhos cederam e caiu nos braços de Metchnikòv, que sentindo Roux mexer no seu cadeirão, arrastou Thuillier para fora do quarto.

- Elias, o que está fazendo?

- É você, Thuillier? Desculpe lá... Sabe onde está o frasco daquele extracto alcoólico de ópio? Sei que o Dr. Roux não mo passaria para a mão de boa vontade; isso iria contra os seus deveres de médico. Mas eu preciso de me embriagar! Depois do jantar, tive com o Koch e com o estado-maior dele uma discussão que ficará na história da ciência! Isto a propósito daquelas células cuja presença constatei nas larvas de astérides, células que se acumulam activamente nos locais onde se produziu uma lesão, e que creio comparáveis às que nos defendem das agressões microbianas. O Koch tinha a obrigação de me ter dado crédito, ele que viu os seus bacilos da tuberculose englobados por células análogas do organismo humano. Mas não se quis deixar convencer, talvez por eu não passar de um judeu russo!

- O Elias arranja cada drama! Se estivesse no meu lugar... Só então Metchnikòv reparou nas faces cavadas de Thuillier.

- É verdade, camaradinha, estás mesmo com cara de desenterrado! O que é que o camarada Elias pode fazer por ti?

Thuillier chorava agora convulsivamente.

- Não se agarre a mim dessa maneira, Elias; pode-se contaminar... Não vê que estou todo porco? Não sei se isto é cólera, mas sei que vou morrer... Não, não acorde o Roux...

- Mas ele é que te pode ajudar; eu sou zoólogo e não médico! Metchnikov abrira os braços, numa manifestação de impotência.

- Os médicos também não sabem nada! Mas não quero ficar aqui, onde posso contagiar mais gente. Leve-me ao hospital dos nossos padres... No bolso do meu casaco encontrará dinheiro para alugar uma caleche. Os cocheiros que circulam a esta hora não se recusarão a transportar-me; estão habituados a serviços pouco limpos... E a Faridah há-de arranjar-me uma esteira...

Faridah velava, acocorada sob o alpendre do hospital, ocultando a face sob o véu para não ser, àquela hora nocturna, confundida com uma mulher que se vende. Perante o espectáculo de hakim Thuillier nos braços do agigantado Metchnikov, entreabriu os lábios de surpresa mas, habituada aos trágicos acasos duma existência miserável, logo se atarefou, com gestos calmos, em torno do doente.

- Consegue fazer alguma coisa por ele?

- Hakim Thuillier está nas mãos de Deus, não nas minhas! Houve um silêncio pesado, apenas quebrado a espaços inconstantes pelos estertores de Thuillier.

Embora conhecendo todos os perigos do contágio, Faridah não temia encontrar-se em presença dum doente de cólera; estremeceu porém ao ver cravados nela os olhos claros de Metchnikov, que tinham uma ferocidade ingénua por trás dos vidros redondos dos óculos.

- Devíamos mandar alguém chamar a menina Gertrud. Ela está hospedada no Consulado alemão; qualquer dos burriqueiros do hospital sabe o caminho até lá, não lhe parece?

com um bom senso de moça pobre, posta de sobreaviso contra as iras dos grandes deste mundo, Faridah hesitou. Aquela linda estrangeira, alojada numa mansão tão imponente, não deveria suspeitar que lhe ocultavam alguma coisa. Mas não seria de temer a fúria de hakim Koch, se a filha deste sofresse algum perigo em consequência de ter sido chamada à cabeceira do seu amado doente? Compreendendo as dúvidas da egípcia, Metchnikov golpeou o peito com o punho fechado:

- À minha responsabilidade, Faridah!

 

A pomba do guerreiro

Nessa noite, desenrolava-se no Consulado alemão uma daquelas recepções, misto de requinte europeu e de extravagâncias exóticas, pelas quais o sector diplomático de Alexandria era célebre. No entanto, mau grado as instâncias da esposa do cônsul, Gertrud não se dispusera a sair do quarto onde estava hospedada. O som dos oboés e o tilintar dos cristais apenas aumentavam o seu sentimento de solidão... A porta gemeu suavemente e o alto penteado da esposa do cônsul enquadrou-se no umbral.

- Não desces, Gertrud? Muitos oficiais distintos te poderiam convidar para a próxima dança... - e estudando-lhe criticamente o arranjo dos cabelos e as pregas do vestido, a grande dama acrescentou - Tens feito progressos na tua apresentação; se agora te maquilhares como convém a uma ocidental que enfrenta o sol destas paragens, já não precisas temer que te chamem plebeia. Vem até ao meu toucador, eu própria te ajudarei a disfarçar o teu cansaço. Recebi ontem um frasco de água de Colónia que decerto apreciarás...

- Vossa Excelência é demasiado amável - Gertrud pusera-se de pé, ocultando as mãos trémulas no regaço e descendo as pálpebras para não deixar perceber o brilho das suas lágrimas. Fazendo ranger as sedas fortes do seu manto, a esposa do cônsul sentara-se, numa atitude de intimidade.

- Compreendo. Estás a pensar no teu Dr. Thuillier, que em breve voltará para junto de Pasteur e das galdérias parisienses!

Tamisada pelos reposteiros da janela entreaberta, o clarão das tochas que formavam uma alameda de honra no jardim dava um aspecto mágico ao rosto de Gertrud.

- Deixa-me olhar bem para ti... Vista nessa luz, pareces recortada dum cenário de ópera; estás digna de representar a valquíria Brunilde, declarando a seu pai, rei dos deuses, o seu amor por um simples mortal!

- Vossa Excelência está a troçar duma pobre rapariga! Mas percebo que me encontre ridícula... Tinha esperado tanto que isto não fosse só uma ilusão!

A grande dama animou Gertrud a sentar-se a seu lado e limpou as faces da filha do sábio com um lenço ricamente trabalhado.

- O meu pai era um grande industrial em Leipzig quando Pasteur, ainda no início da sua carreira científica, lá se dirigiu em busca de material para as suas pesquisas sobre o ácido racémico. Isso passou-se uns vinte anos antes da guerra, e nessa época Pasteur sentia-se bem entre nós. Duvido que, sempre enfronhado nos seus pensamentos, ele tenha alguma vez reparado em mim (e se é tão bom católico como se diz, nem tinha que reparar; ele já era então um homem casado) mas eu não parava de o espiar. Fantasias de adolescente... Mas creio que não será fantasia supor que o pai espiritual do teu Thuillier e o teu próprio pai serão suficientemente cordatos para não se oporem à vossa felicidade!

Reconhecida por tal confidência, Gertrud inclinou-se cortesmente.

- Vossa Excelência não perca mais tempo por minha causa.

Ficarei muito bem aqui...

- Como queiras, Gertrud.

Tendo encerrado a porta para não ouvir a música das valsas e das mazurkas, Gertrud procurou conforto na leitura da Bíblia de sua mãe. Os seus olhos caíram sobre uma passagem do livro de Êxodo, as recomendações para a primeira Páscoa dos hebreus em terras do Egipto: "Marcai as vossas portas com o sangue do cordeiro. Quando Deus passar para castigar os egípcios pelo mal que vos fizeram, verá esse sinal e não deixará o Anjo da Morte penetrar em vossas casas." Seria sempre preciso que o medo e os conflitos se transmitissem de geração em geração, e que Deus necessitasse continuar a enviar o Anjo da Morte para pôr termo às injustiças? Acudiu à memória de Gertrud um sermão que o Reverendo Fraatz, seu avô, envolto na pesada toga de pregador evangélico que uma brisa de Abril polvilhava de flor de pinheiro e de farrapos de neve, pronunciara certa manhã de Páscoa, frente à igreja de Klausthal: "Na Páscoa do Velho Testamento, o primogénito de faraó teve de morrer para que o povo hebreu fosse liberto da escravidão; na Páscoa do Novo Testamento, o primogénito do próprio Deus morreu para que todos os povos fossem libertos do egoísmo e do orgulho. E nós também devemos fazer a nossa parte, para nos mostrarmos reconhecidos pela nossa Fé!" As palavras do avô pregador confundiram-se com as palavras de Thuillier: "Quisera conceber uma vacina que impedisse o ódio de se instalar no cérebro daqueles que tivessem sido feridos pela ignorância e pela ambição dos seus semelhantes. Talvez dessa maneira pudesse quebrar a cadeia da violência!"

com o olhar enevoado, Gertrud contemplou a estampa que marcava a página do Livro sagrado (um pastorinho da Palestina, transportando aos ombros o cordeiro do sacrifício pascal) e orou:

- Jesus, protege o meu Louis... Ele pode ser um francesinho tonto, mas faz tudo por bem! - e murmuradas estas palavras, Gertrud resvalou num sono profundo, com a face apoiada sobre a Bíblia aberta.

Os ruídos da festa haviam-se extinguido há muito, quando Gertrud foi despertada pelo crepitar de caroços de tâmara atirados contra a janela. Erguendo-se estremunhada, a jovem espreitou com precaução por trás dos cortinados. O brasido moribundo das tochas espalhava ainda um vago fulgor, frente ao qual Gertrud julgou reconhecer o rostinho ansioso do pequeno Amru.

- Amru, que aconteceu? E como conseguiste entrar no jardim?

- Ora, julguei que fosse mais difícil! Os nossos polícias devem ter aproveitado para provar das bebidas dos infiéis e como não estão habituados, ficaram logo a ressonar. com os serventes foi a mesma coisa, até tropecei no chaukidar que estava atravessado no portão de serviço sobre a sua esteira, e ele nem deu acordo. Foi Deus que o quis, menina, eu tinha que falar consigo: hakim Thuillier está muito doente!

Deslizando através das salas já desertas, Gertrud depressa se encontrou ao lado do menino que na sua lhana fala infantil lhe relatava o sucedido.

- Não tenho a certeza se hakim Thuillier apanhou cólera, mas acho que é coisa que se pode pegar. Mas a menina Gertrud quer vir assim mesmo, não quer?

- Resta-te alguma dúvida?

Unindo o gesto à palavra, Gertrud ajudou Amru a desamarrar o jumentinho que o menino conduzira desde o pátio do hospital e içou-se para cima da alta sela árabe. Puxando a arreata, Amru guiou inicialmente Gertrud através do luxuoso bairro onde apenas se sucediam as vivendas dos estrangeiros mais conceituados, algumas duma arquitectura sobrecarregada de ornatos, oferecidas pelos antigos paxás àqueles que pretendiam subornar, outras duma sobriedade mais digna, edificadas já após o domínio britânico. Deixando para trás tal feudo protegido, penetraram num sector comercial da cidade. Estava-se na hora que precede a alvorada; no outro extremo das ruas ladeadas por escritórios de empresas, em cujos degraus dormiam os mais pobres felás, apenas se ouvia a rebentação das ondas e o som distante de alguma rixa. Gertrud sondou as sombras em redor. Contavam-se casos horripilantes sucedidos com jovens europeias que se haviam aventurado na noite de Alexandria...

- Não tem porque ter medo, menina! Esta é a minha cidade, e eu estou consigo!

Mau grado o trágico da situação, Gertrud não pôde impedir-se de sorrir, considerando o seu pretenso defensor.

- Contigo não tenho medo, Amru! Tens um nome de herói... Amru era um herói mouro, não era?

- Pois, o general que conquistou o Egipto para o santo califa Omar! A Faridah contou-me tudo acerca dele. Queria imenso ter Alexandria, mas para a conseguir foi-lhe preciso matar muito boa gente e destruir muitas belas coisas, porque a guerra é assim mesmo. Os seus homens ficaram contentes por poder roubar e tomar escravas numa cidade tão famosa, mas ele sentiu pena, como os meninos ricos acabam sentindo quando partem um brinquedo pelo qual fizeram birra. com essa tristeza dentro dele, Amru levou a sua tropa para Sul e acampou à entrada do Vale do Nilo. Na manhã seguinte, notou que um casal de pombos tinha feito o ninho sobre a sua tenda e percebeu que esse era um sinal que Deus lhe mandava para que construísse uma nova cidade onde todos pudessem viver em paz. Aí, Amru fundou o Cairo, mas essa já é outra história!

- É pena todos os grandes guerreiros não entenderem os sinais de Deus tão bem como o teu patrono! Mas agora guia-me, não temos tempo a perder!

Impaciente, Gertrud pousara a mão sobre o ombro ossudo do menino, cujo corpinho fosco e sujo, marcado pela cicatriz da circuncisão, se arrepiava ao vento da noite. Certa de que o generoso Thuillier teria apreciado esse gesto, Gertrud cobriu a nudez do pequeno egípcio com a manta que trouxera para si própria. Amru fora ensinado a não aceitar presentes de estranhos, naquela cidade onde tantas crianças eram raptadas por traficantes, mas Gertrud não era uma estranha e o menino era demasiado pobre para se permitir um movimento de orgulho; no entanto, declinou dignamente a oferta:

- Guarde a sua manta, menina! Eu estou habituado ao ar da noite!

De facto, os invernos de Alexandria podiam ser duros para os pobres, quando vagalhões barrentos varriam o pontão do antigo farol impedindo o trabalho daqueles que viviam do mar, e a Primavera por vezes não era melhor, pois soprava o khamsin carregado de areia que fustigava os casebres miseráveis. Mas Gertrud recordou os invernos da sua infância na Silésia onde zunia o vento da estepe polaca, e as noites em que ia buscar o seu pai ao Instituto, por ruas que a névoa poluída de Berlim invadia.

- Fica com ela. Eu também estou habituada!

Bem agasalhado, Amru palmoteou a garupa do jumentinho. Embrenhou-se pelos quintalejos que se espraiavam entre as escuras barracas que os políticos recentes haviam feito construir para esconder os proletários de Alexandria e entre as aldeolas sem idade do ângulo ocidental do Delta, umas e outras servidas pelo hospital dos padres lazaristas.

O primeiro arrebol da aurora prestava um tom leitoso ao vapor que se erguia dos campos alagados quando Amru ajudou Gertrud a desmontar no pátio do hospital. A moça beijou o menino que pouco habituado a tais manifestações de afecto, esfregou a bochecha, desconfiado.

- Foste tão valente em me ter ido buscar, Amru! Sê valente até ao fim. Vai chamar o meu pai e hakim Gaffky, que passaram a noite no nosso laboratório a emalar o material. Vai também chamar hakim Roux ao hotel; convém que ele esteja ao corrente do que se passa!

 

Barba em tons de ouro velho

Roux, todo salpicado pela água turva de aluvião, foi o primeiro a alcançar o hospital. Gaffky seguiu-o de perto, espicaçado pelas invectivas de Koch que, já com uma arritmia no peito, não podia competir com o seu assistente. Todos reconheciam o cheiro adocicado dos excrementos dos doentes de cólera.

A voz de Gertrud chegou-lhes aos ouvidos: "Meu francesinho orgulhoso, não tenhas vergonha de que eu te veja nesse estado! E não te preocupes por me pegar a doença. A filha dum huno não morre às primeiras!"

Koch fora sempre de maneiras longínquas mas polidas; porém não conseguiu abafar completamente debaixo do espesso bigode a pior blasfémia que aprendera nos seus tempos de médico do exército prussiano, ao ver a sua filha ajoelhada junto à esteira onde Thuillier jazia, limpando com um trapo de linhaça uns restos de vómito que maculavam os lábios do rapaz. Thuillier esforçava-se por afastar a jovem, com aquela irritabilidade sonolenta própria dos doentes de cólera. E também Roux, embora conhecido pela serenidade com que enfrentava as situações mais críticas, sentiu acorrer-lhe à memória todas as sujas interjeições que lhe haviam ensinado os seus doentes, veteranos de guerra, quando ele ainda era um simples interno no hospital militar de Val-de-Grâce, ao ver o seu compatriota assim estendido no chão, sem outro traje do que um mísero pano de esparto. Faridah havia-o despido para lhe facilitar uns elementares cuidados de higiene; apesar de muçulmana, a jovem nunca sentira relutância nos seus cuidados aos doentes do sexo masculino, pois sempre convivera com os hábitos ancestrais dos campos em redor de Alexandria, onde os felás andavam nus até bem entrada a adolescência. Sobre o peito descoberto de Thuillier, apenas a medalhinha da Senhora das Graças subia e descia ao ritmo da respiração arquejante, simultaneamente rápida e profunda, que sobrevinha quando o sangue dos doentes de cólera se tornava ácido e urémico, ganhando aqueles glóbulos vermelhos de formas bizarras que o jovem investigador confundira inicialmente com o micróbio causador da doença, e a neta do pregador evangélico via pela primeira vez, já destroçado pela doença, o corpo nu do seu amado, que ela fantasiara formoso como o do rei pastor dos Cantares de Salomão.

Roux postara-se à cabeceira de Thuillier, do lado oposto ao ocupado por Gertrud. Notou os olhos profundamente afundados nas órbitas, testemunho duma desidratação avançada. Enterrou os dedos acima do rebordo saliente da clavícula para apanhar o pulso carotídeo já filiforme, rebuscando atabalhoadamente o seu relógio no bolso do colete. Nenhum suor aflorava na testa marmoreada de Thuillier...

- Ele teve febre, menina Gertrud?

Gertrud assentou afirmativamente com a cabeça.

- É pouco comum no quadro clássico da cólera, embora ocorra em muitos tipos de disenteria que se podem confundir com ela... Roux procurava manter um raciocínio clínico.

- Seja como for, as extremidades estão frias - Koch tomara por sua vez lugar aos pés do doente. Sabia que de nada adiantava tentar afastar Gertrud: a filha herdara-lhe as qualidades e a obstinação. Palpou os músculos de Thuillier, nos quais já se percebia uma rigidez de cãibra, provocada pelo desequilíbrio do sangue em sais. Repuxou-lhe a pele, encontrando-a flácida e engelhada como a duma velha aldeã dos lodaçais do Delta, e pousou-lhe a mão sobre o ventre, procurando sentir os movimentos dos intestinos e avaliar o tamanho do globo vesical.

- Há quanto tempo não urina?

- Mais de cinco horas - Gertrud lutava para se exprimir com clareza - Não consegue conservar quaisquer líquidos no estômago...

- Que lhe tens estado a dar, filha?

- Água de cozer a farinha de durah...A Faridah diz que como as dejecções dos doentes de cólera se assemelham a isso, deve ser eficaz... Mas como temi que estivesse demasiado salgada, fui alternando com leite fervido... - e juntando o gesto à palavra, Gertrud aproximou, num esforço teimoso, uma malga de gordo leite de búfala dos lábios do rapaz, enquanto dirigia ao pai um olhar suplicando auxílio. Então, com uma brandura que lhe era inusitada, Koch segurou a cabeça de Thuillier, animando este a beber:

- Coragem, Dr. Thuillier! Não se dirá que você, que descobriu o micróbio da cólera, se deixou vencer por ele!

Koch sempre se surpreendera de como os doentes de cólera, mesmo num grau de extrema debilidade, mantinham a sua lucidez até ao estado terminal da doença. Thuillier decerto compreendera, pois os seus lábios tentaram um sorriso vitorioso, embora no seu rosto distorcido pela agonia este se transformasse no esgar sardónico característico da doença. E Roux quase sentiu ódio por estas palavras condescendentes: decerto, Koch considerava que Thuillier estava condenado, pois o alemão nunca renunciaria, perante um homem destinado a viver, à sua prioridade aliás legítima na descoberta do agente da doença!

- Já deve ter perdido uns 10% do seu peso em água - Gaffky aferrava-se a pensamentos científicos, profundamente revoltado contra os seus próprios sentimentos ao aperceber-se de que, mais do que temor por ver a sua querida Gertrud assim exposta ao contágio, experimentava ciúme por ser aquele Thuillier quem lhe merecia tal loucura - Podemos fazer uma análise rápida ao sangue, para avaliar o grau de hemoconcentração...

- Vá pentear macacos, Gaffky! Só vamos torturar mais o rapaz! - objectou Roux numa fúria impotente. Mas Roux tinha mentalidade de médico e ocorreu-lhe que o próprio Pasteur daria o seu acordo para que a patologia de Thuillier fosse estudada a fundo... Logo improvisou um garrote com a sua gravata, enquanto Gaffky passava uma agulha pela chama da lamparina de álcool que se apressara a acender. Roux extraiu apenas algumas gotas de sangue da veia já colapsada e observou desalentado a velocidade com que estas se afundavam num tubinho de soro. Gaffky hesitou na sua interpretação:

- Se o Thuillier fosse um pobre felá com anemia crónica, isto seria sinal dum caso irrecuperável... Como é um francês bem criado, com uma elevada taxa de hemoglobina, talvez não indique uma situação tão avançada. Ainda tem uma chance...

Numa derradeira esperança, Roux revirou a sua maleta de médico, tencionando administrar a Thuillier - caso este ainda tivesse forças para engolir - uma nova dose de tintura de ópio. Koch deteve-o mansamente, pousando-lhe a mão no braço.

- É contraproducente, Dr. Roux. Já verifiquei que, nos animais de experiência, a situação se agrava quando se inibe a motilidade do tubo digestivo... Quando muito, podemos experimentar um estimulante cardíaco...

Gertrud humedecia os lábios do seu amado; já não lhe podia matar a sede interior, mas tentava pelo menos minorar-lhe o desconforto... Depois, à medida que Thuillier foi deslizando para um estado obnubilado do qual não mais despertaria, limitou-se a enxotar-lhe as moscas luzidias que vinham pousar nas feições já imóveis. O ritmo respiratório tornou-se progressivamente mais irregular e, passando-lhe a mão junto às narinas, Gertrud foi a primeira a perceber que Thuillier tinha morrido. Ainda entreabertos, os olhos do jovem estavam tão secos que Roux teve dificuldade em fechá-los. Familiarizada com tais espectáculos, logo Faridah acorreu com faixas para ligar os punhos e os tornozelos do defunto...

- Eu tratarei disso, Faridah. É mais urgente preparar um banho e roupa lavada para a menina Gertrud... - e contemplando o corpo já envolto na sua esteira, Roux acrescentou - vou encaminhar o funeral do Dr. Thuillier. Deveremos cumprir todas as formalidades sanitárias que o caso requer, mas com dignidade. Apreciaria que estivesse presente um representante do nosso consulado...

O chefe da missão francesa ensaboava as mãos até aos cotovelos, menos por precaução de higiene do que num esforço inconsciente para acalmar certo furor irracional que remoía contra o seu subordinado por este se ter deixado morrer, da morte imunda dos doentes de cólera, sob o olhar de superioridade dos alemães... E decerto Koch percebeu tal intenção, sentindo-se no dever de honrar os seus adversários, pois retomando instintivamente as maneiras militares que os seus superiores no exército lhe haviam incutido a custo, declarou:

- Dr. Roux, se precisar de alguma coisa, saiba que nos tem às suas ordens, aos meus homens e a mim!

Roux contemplou-o atónito. A correcta barba de Koch podia conservar ainda os seus tons de ouro velho, enquanto que a barba que enchia o rosto de Pasteur estava já de todo embranquecida pelos pesares, aos quais viria agora juntar-se o da morte de Thuillier, cuja notícia Roux deveria telegrafar para França. Mas seria uma doce desforra para o Mestre saber que o seu discípulo tinha conseguido fazer curvar o orgulho dos rivais... Em resposta, conseguiu apenas murmurar lentamente, enquanto se enxugava à fralda da camisa:

- Vele bem pela sua filha, Dr. Koch. Ela foi excessivamente temerária nos cuidados que prestou ao Dr. Thuillier!

Koch limpou demoradamente os óculos para ocultar o tormento que lhe ia na alma - a sua vaidade de pai lutando com a sua aflição pela saúde da filha.

- Eu não esperaria menos de minha Gertrud, Dr. Roux! E não duvido que o Dr. Thuillier faria o mesmo por ela, ainda que fosse sem qualquer emoção, apenas para cumprir o seu dever!

E com um cumprimento em que os sentimentos de homem de ciência por um colega malogrado se sobrepunham à frieza marcial, o chefe da missão prussiana retirou-se enquanto Metchnikov (que, consciente da sua condição de zoólogo, se abstivera de intervir em face dos médicos, mas que agora ajudava o enfermeiro arménio a rolar para cima duma maca o corpo de Thuillier) comentava volvendo para Roux o seu olhar um pouco doido:

- Esperava essa vitória, Dr. Roux? O pobre Thuillier, graças à sua paixão, alcançou mais pelo prestígio da França do que alcançaram a estratégia de Mac Mahon, a eloquência de Gambetta ou o último modelo de metralhadora... É consolador para mim, que embora descrente, sou um filho de Israel como o apóstolo que escreveu que o conhecimento, o dom da palavra e mesmo o sacrifício da própria vida nada valem se não forem acompanhados de amor!

Koch e Gaffky afastaram-se alguns passos pelo carreiro de lama batida, entre plantações de lentilhas prateadas pela claridade forte. O chefe confiara a sua maleta a Gaffky e ia abstracto, com as mãos atrás das costas, demorando o olhar sobre um conjunto de obeliscos tombados entre quintalejos esgaravatados pelas galinhas, como os restos duma glória vã. No ar imóvel, tornado baço pelo vapor de água que subia dos campos alagados, vibravam o gemido das alavancas dos chadufs e o arfar dos barqueiros do Delta, varando algum lanchão. Considerando aquela paisagem anfíbia que se alargava sem uma ruga até se deter abruptamente na orla do areal líbio, Koch pensou em quanto ainda restava por investigar acerca dos mecanismos de difusão da doença. Águas alcalinas, providas de conteúdo orgânico e com moderada salinidade, constituiriam provavelmente um reservatório do micróbio da cólera na natureza durante os períodos entre as epidemias; certamente ocorria tal fenómeno nos vales dos grandes rios da índia... Pois bem! Mal Koch tivesse desembarcado na Alemanha após a quarentena imposta aos viajantes das regiões onde grassava a doença, a sua primeira empresa seria rogar às autoridades sanitárias da sua pátria que o mandassem de novo correr mundo. Chegaria aos terminais de caravanas nos portos do mar Vermelho; seguiria em sentido inverso o caminho dos peregrinos que acorriam às cidades santas do Islão desde a Costa do Malabar, onde Garcia de Orta documentara os primeiros casos de cólera entre navegadores europeus... Talvez subisse ao longo dos pântanos do Sindh e pelo planalto de Dehli em direcção às faldas dos Himalaias. Acompanharia o curso do Ganges até às plantações de juta do Bengala, veria as cascatas que descem desde as colinas onde se cultiva o ópio... Decerto faria discípulos no Oriente, inclusive entre os distantes súbditos do Mikado! Gaffky secundá-lo-ia pelas favelas de Calcutá; tão impetuoso assistente não deixaria de se apaixonar pela epidemiologia das regiões tropicais. Mas Gertrud não mais acompanharia o pai. Ficaria em Berlim, onde encontraria decerto um marido, talvez até um médico do Instituto, por quem sentisse estima quando a sua dor de adolescente já se tivesse atenuado com o correr dos anos...

Compreendendo que Koch, embora perdido nos seus sonhos de sábio aventureiro, pretendia aguardar a filha para a ir depor em segurança, Gaffky arriscou a pergunta:

- Visto que o Roux não parece ter ordens a dar, o Sr. Dr. manda alguma coisa?

- Mando, mando! Quero que vá a uma daquelas tendas de floristas montadas na Praça dos Cônsules e encomende uma coroa para a sepultura do Dr. Thuillier. Coisa singela, como convém a um sábio... Louros, de preferência!

E como Gaffky aparentasse alguma surpresa, Koch insistiu, num tom de voz que sem se elevar, não deixava margem para réplica:

- Sim, louros! O Dr. Thuillier foi um adversário leal, a quem eu respeito mais do que a todos os governantes do mundo reunidos. Hei-de ser um dos que ajude a levar o seu caixão ao ombro e a depô-lo em descanso, e não permitirei que se diga que a minha filha sentiu amor por um cobarde!

- Mestre, nunca se diria tal coisa...

Koch empunhou o ombro do seu subordinado, com uma braveza que este lhe desconhecia.

- Não? Quando algum médico novo no Instituto Imperial de Saúde vos confidenciasse a algum de vocês, meus assistentes da primeira hora "Sabem, doutores... Estou agradado da filha do chefe. Acham que tenho algumas hipóteses?" não mofariam da sua ingenuidade: "Se tens! A Gertrud até se rendeu a um assistentezeco do Pasteur, um garoto que não podia com uma cobaia pela pele do cachaço! Se te quiseres contentar com as sobras desse franciú, o nosso chefe ficar-te-á grato!"

Uma mulher fellahina que emergia com a sua bilha de dentro dum casebre de barro cozido ao sol olhou inquieta os infiéis, por cima da orla do seu véu. Gaffky fizera-se lívido.

- Dr., não lhe merecemos essas suspeitas! Todos nós temos consideração pela menina Gertrud!

Pouco tranquilizada pelo tom de voz dos dois estrangeiros, a mulher sumira-se por trás duma cerca de espinheiros que protegia um curral de cabras; porém uma criança de ventrezinho distendido pelos parasitas intestinais, que estivera ocupada em afugentar as aves de rapina rondando a capoeira, arregalava os olhos para os estranhos, com um calhau esquecido na mão. Largando Gaffky que estremecia de revolta por ver a sua reverência para com o pai espiritual assim posta em dúvida, Koch arrebatou o calhau da mão do menino e arremessou-o contra um milhafre, no momento em que este se precipitava sobre um pinto. Atingido, o milhafre despenhou-se num turbilhão de penas soltas e o menino bateu admirativamente as mãos, com um grito de júbilo. Gaffky ainda arquejava, esfregando o ombro magoado, mas já a irritação do Mestre se dissipara.

- Foi pena o meu Capitão, que tanto implicava com a minha falta de pontaria, não ter visto este tiro - e estendendo apologeticamente a mão, Koch acrescentou - Aceite as minhas desculpas, Gaffky! Ver a minha filha sofrer distorce-me o raciocínio! Tanto mais que eu também já fui um jovem médico, quando trabalhava na Universidade de Gotinga com aquele Professor Herde que me ensinou a servir-me do microscópio, e bem sei as coisas que se comentam nas costas dos Mestres! E você, quando ocupar o meu lugar à frente do Instituto Imperial de Saúde, também poderá dizer que sabe!

Uma onda de sangue cobriu a palidez de Gaffky. Ele, pontificar entre as instituições médicas de Berlim! E, deslumbrado por esta promessa, largou a correr em direcção à cidade, espantando uma manada de bois que retoiçava os campos de luzerna, embatendo contra um burrinho cujo cavaleiro beduíno o amaldiçoou brandindo uma lança ferrugenta, ziguezagueando por entre uma fileira de núbios que equilibravam fardos de índigo à cabeça, determinado a conseguir a coroa de louros mais magnífica de toda a longa história de Alexandria, para que o futuro marido de Gertrud pudesse ufanar-se de ter sucedido a um herói no afecto da rapariga.

 

O bom combate e a distância completa

O sol declinara detrás das gruas do porto ocidental tornando a luminosidade ambiente mais suportável aos olhos dum europeu; mas ainda o Dr. Roux, embalando contra o peito a bandeira agora cuidadosamente dobrada que cobrira o caixão de Thuillier (um incaracterístico caixão de zinco soldado, apropriado a quem morrera duma doença contagiosa) não se conseguira arredar da beira da campa. Da cidade elevava-se um marulho monótono, apenas quebrado pelos agudos gritos das gaivotas e pelo roncar das sirenes dos navios. O vento tórrido fazia rumorejar os ramos duma acácia, árvore funerária dos antigos egípcios, de espinhos acerados espreitando entre os cachos de flores. Roux pensou vagamente que não tivera tempo de se habituar à natureza do Egipto nem à passagem das estações em Alexandria - a alternância das densas névoas do Delta nos meses invernais, expulsas apenas pelos vendavais de areia ocre, e do verde luxuriante dos meses da cheia, com o seu cortejo de aves vindas do coração de África.

Tendo a imaginação povoada pelas imagens de terras sempre mais longínquas que estes pensamentos lhe sugeriam, Roux surpreendeu-se a reflectir que Pasteur, uma vez serenados os seus ânimos bonapartistas contra o governo republicano que agora regia a França, experimentaria uma legítima satisfação se os seus discípulos viessem a desempenhar um papel relevante na construção dum império cuja prosperidade se alicerçasse em princípios científicos conjugados com humanismo... Thuillier, com a sua facilidade de adaptação a ambientes exóticos, teria dado uma excelente autoridade sanitária no Império Colonial francês!

Mas agora, Thuillier estava morto. Os mistérios da vida microscópica não mais se desvendariam para ele. Não veria o triunfo sobre a raiva, nem teria parte na descoberta dos mecanismos fisiopatológicos do tétano ou no progresso da prevenção farmacológica da sífilis. Roux deveria procurar outro ajudante para poder competir com Behring no combate contra a difteria que esvaziava tantos berços. Talvez Yersin, cujo saber era já tão prometedor, viesse a ser um substituto satisfatório... Mas teria Yersin igual paciência para aceitar os repentes dos superiores? Roux sentia-se invadido duma meiguice fraterna por aquele que fora seu subordinado. Quem repreenderia agora, quando um lote de caldo albuminoso ficasse contaminado? Contra quem resmungaria impropérios, quando os instrumentos necessários para efectuar a trepanação dum animal de experiência em cujo cérebro se pretendesse inocular a raiva não estivessem aprontados até ao pormenor? E se ele assim se entristecia pela morte de Thuillier, um jovem cheio de vigor que lhe poderia fazer sombra, quanto não estaria sofrendo o paternal Pasteur, sozinho entre as suas jaulas de cães? Sem dúvida gemeria chamando o pequeno Viala (o servente de laboratório a quem o próprio Pasteur ensinara a ler) querendo chorar com ele tal perda para a ciência e para a pátria!

Pierre Bertin, o professor de física na Escola Normal que ia recomendar os futuros assistentes a Pasteur, à hora do serão em que o velho sábio repousava os olhos atrás das suas lunetas de lentes azuis enquanto a esposa lhe lia o jornal, sugeriria decerto outros nomes para substituir Thuillier; porém, Roux estava certo de que nenhum deles conquistaria igual estima por parte do Mestre!

Não, Thuillier não seria esquecido, jurou Roux para si próprio. Koch e o seu estado-maior podiam ter conseguido o primeiro triunfo na luta contra a cólera, mas caberia decerto a um francês alcançar êxito nas primeiras tentativas de vacinação contra a doença... E seria ele, Roux, talvez ajudado por Metchnikov, aquele selvagem sentimental com o qual já começara a simpatizar, a esclarecer o mecanismo da doença, as acções duma eventual toxina segregada pelo vibrião... "Devo-te isso, Thuillier... Ou talvez não, mas, ainda assim, dedicar-te-ei o meu triunfo!", declarou Roux em voz baixa, julgando ouvir de novo as palavras que Straus, com uma ternura irritada, deixara cair enquanto lançava a bandeira francesa por cima do caixão de Thuillier: "Não a merecias, malandro! Tu, que quiseste uma mulher da raça daqueles malditos que trataram como despojos de guerra tantas mulheres do teu país... Mas vá, em atenção ao teu sacrifício, estás perdoado!"

Uma vozearia infantil despertou Roux das suas meditações. Um bando de crianças seminuas, algumas cujo cabelo mais claro denunciava um longínquo antepassado grego, outras dum negro lustroso, filhas dos sudaneses que desciam o Nilo nas suas barcas de velas afiladas, perseguiam-se com um chilrear de júbilo pelas alamedas do cemitério, desafiando-se mutuamente a empinar papagaios de velho papel. Certamente, não se podiam dedicar a tal desporto nos becos abafados do seu bairro, entre os sujos prédios edificados com detritos de todas as épocas e por cima dos quais se entrecruzavam já os fios do telégrafo... O guardião (que velava a que os chacais não rondassem os túmulos dos estrangeiros, tal como faziam no cemitério egípcio esparso em redor da coluna de Pompeu, e a que as mulheres da rua não viessem vender o seu amor à sombra das lápides) repreendeu os pequenos brandindo a folha de palma com que varria a areia das áleas, mas sem convicção. Pertencia a uma tribo de nómadas que honravam os seus mortos sacrificando um camelo para os transportar nas pistas de caravanas do Além e vertendo café à cabeceira da campa; eram-lhe alheias as formas de luto dos Ocidentais... Roux sacudiu do fato a poeira fulva que a correria das crianças levantara, certo de que Thuillier não seria ofendido por tal irreverência. Certamente, o patriarca Pasteur teria uma sepultura mais solene, quiçá uma cripta monumental debaixo do seu laboratório, e não faltaria quem gostosamente oferecesse a vida para honrar a sua memória, quando os inimigos da França tentassem profanar o seu túmulo! Ninguém defenderia até à morte o túmulo de Thuillier. Mas quando o seu pobre corpo se tivesse fundido com a terra intemporal do Egipto, Thuillier seria ainda o sábio eternamente jovem na busca ansiosa duma ciência que não era de nenhum período da História tal como não pertencia a nenhum povo, um símbolo do espírito de cooperação científica ultrapassando todas as barreiras raciais, linguísticas e políticas...

O gargalhar das crianças desvaneceu-se na distância e, na calma que se seguiu, Roux ouviu um ranger de passos, acompanhado por uma voz feminina que tentava manter-se firme e que, embora embargada, conseguia tornar poéticos os sons bárbaros da língua alemã. Só então Roux se apercebeu de que não vira Gertrud no funeral. Certamente, a infantil rapariga julgara dever deixar tal ocasião àqueles homens de ciência animados de paixões violentas e que tão mal compreenderiam os seus sentimentos... Mas a veracidade do seu sofrimento era atestada pelas pálpebras tumefactas, pelo desalinho dos cabelos e pelo lábio inferior ensanguentado à força de o ter mordido para conter o choro. Vinha rezando uma página daquele mesmo livro de salmos que segurava no primeiro dia em que Thuillier a revira, agora um pouco manchado pelo suor das suas mãos: "E ainda que eu deva atravessar o vale das sombras, não sentirei temor, pois a Tua clava e o Teu cajado defendem-me..." A presença de Roux surpreendeu Gertrud que, constrangida, cravou os olhos no chão. Teria preferido ficar só com a sua mágoa e calculava que o chefe da missão francesa estivesse avaliando para si próprio se Thuillier não teria encontrado nas avenidas de Paris bastantes jovens mais elegantes e mais apetecíveis. Querendo dissipar aquela atmosfera embaraçosa, Roux indicou o livro de salmos.

- Diga também uma oraçãozinha por mim, menina Gertrud. Sentirei muito a falta dum assistente como o Dr. Thuillier!

Gertrud alisou as páginas do livro.

- Estou certa de que todos apreciavam muito o trabalho do Louis... Desculpe, queria dizer do Dr. Thuillier...

- Chame-lhe Louis à vontade. O Dr. Thuillier sentia orgulho em ter o mesmo primeiro nome que Pasteur. E hoje, Pasteur, se bem que nunca tivesse aceite para si próprio uma homenagem dos adversários da pátria francesa, também pode estar orgulhoso do modo como todos reconheceram o mérito do seu discípulo... - e Roux olhou a coroa de louros, cuja faixa ornada das cores alemãs rojava submissamente a terra do túmulo - O seu pai fez-nos uma grande honra, menina Gertrud... Devo confessar-lhe que tinha o Dr. Koch por uma máquina de produzir ciência, bem afinada mas fria; e agora estou convencido de que nem o próprio Victor Hugo teria conseguido pronunciar um discurso mais comovente... Sabe como ele chamou ao nosso compatriota? "O primeiro heróico mártir da nova luta em favor da Humanidade, cujo nome deverá ser recordado não só em França, mas também na Alemanha e por todo o Mundo!"

De respiração suspensa, Gertrud bebia as palavras do seu pai, tão afectuosamente citadas pelo Dr. Roux.

- Disse ainda que "a nação francesa tem mais um motivo de orgulho neste seu filho, que sem hesitar se embrenhou nos locais onde a doença se mostrava mais perigosa..." e que por isso lhe deve ser concedida uma coroa "como aquelas que cingem a fronte dos valentes" - mas, passando os dedos trémulos de emoção pelas bagas prateadas que luziam entre as folhas, o chefe da missão francesa concluiu - Embora em minha opinião, para o Dr. Thuillier fosse mais apropriada uma coroa de oliveira!

Uma onda de cor avivou as faces de Gertrud.

- O Louis era também um combatente, à sua maneira... - e prosseguiu, citando - "Combati o bom combate, corri a distância completa, mantive-me fiel. Doravante me está reservada a coroa da justiça..."

- São Paulo? - perguntou Roux cortesmente, recordando as suas divagações com Pasteur' sobre temas religiosos, nos intervalos do planeamento algo caótico que ambos faziam da sua luta contra as doenças infecciosas.

- Sim, da segunda carta a Timóteo... Nunca me consigo lembrar dos números do capítulo e dos versículos, como fazia o meu avô pregador sempre que citava a Bíblia...

- Salaam! hakim Roux e a filha de hakim Koch dão-me licença? estas palavras haviam sido pronunciadas na língua mesclada dos bazares cosmopolitas: Gamal, arrimado a uma tosca muleta, viera despedir-se do seu amigo estrangeiro.

- Trouxe uma coisa para dar a hakim Thuillier... - e entreabrindo o saco de esteira que sobraçava, Gamal apontou uma estatueta vidrada de azul, cuja antiguidade era comprovada pela areia entranhada nos seus relevos, explicando - É um "ushabti", um servidor mágico daqueles que os fidalgos antigos metiam nos seus túmulos, para que os ajudassem nos trabalhos do Outro Mundo...

Tal presente poderia parecer despropositado à mente prosaica de um europeu; porém Roux sentiu que era a prova duma gratidão genuína. Gamal certamente subtraíra a estatueta à ganância do mercador de antiguidades para quem labutava, e hábil em se mover nos negócios ilícitos das ruelas de Alexandria, teria conseguido vendê-la a qualquer turista menos regateiro, pelo preço do pão de longos dias, sem sofrer represálias. Acocorando-se para não falar de alto ao menino, Roux procurou argumentar, escolhendo palavras que não ferissem:

- És muito generoso, Gamal, mas não podemos aceitar o teu presente. A ti ser-te-ia útil e hakim Thuillier não precisa dum servidor mágico...

Gamai meneou a cabecita tinhosa, como que deplorando para si próprio a lentidão de raciocínio destes europeus e, com um sorriso que exprimia uma fé cinco vezes milenária afirmou:

- Mas é claro que precisa! Para lhe lavar as louças do laboratório que o bom Deus lhe há-de dar, lá no Paraíso!

Assombrado, o Dr. Roux, "o maior sábio depois de Pasteur" como lhe chamariam os seus compatriotas admirativos, não encontrou nada a responder àquele menino que apenas sabia decifrar as primeiras letras do Alcorão. Já Gertrud Koch escavava com as mãos um nicho na terra fofa e Gamal, tão hábil em ocultar tesouros como em descobri-los, prosseguiu a tarefa.

Tal dedicação merecia uma recompensa. Certamente Gamal não comera com abundância desde a última festa da Primavera em que, segundo a tradição, recebera dos vizinhos mais abastados uma posta seca de perca do Nilo e uma coxa de pato, a troco dum ovo colorido dado em penhor de boa sorte...

- Podemos oferecer-te alguma coisa, amiguinho? Gamal engoliu saliva.

- Hakim, na Rua das Duas Irmãs há uma hospedaria onde servem as maiores espetadas de cordeiro que se podem encontrar em Alexandria...

- Óptimo! Se quiseres, teremos todo o prazer em convidar-te! As pupilas do menino dilataram-se.

- E terei ainda direito a folhas de videira recheadas com arroz açafroado? E a um sorvete de damasco coberto com amêndoa picada?

- com isso, é melhor ter cuidado... A água usada para o sorvete pode estar contaminada...

- Ora, hakim, se há coisa que merece que se arrisque a vida por ela é um sorvete de damasco! E poderei levar um cesto de bolos de sésamo para os meus irmãos?

Subitamente atrapalhado, Roux apalpou os bolsos:

- Menina Gertrud, dei quase todo o meu dinheiro na colecta dos Padres Lazaristas que disseram a missa pelo Dr. Thuillier... Pode emprestar-me algum para o jantar do Gamal?

Gertrud que limpava alheadamente na borda do vestido as mãos sujas de terra, esboçou um ténue sorriso.

- Também tenho pouco, Dr. Roux! Mas se pusermos tudo em conjunto, há-de chegar!

O chamamento à oração elevou-se de todas as mesquitas da cidade e Gamal refreou a sua impaciência pelo festim que lhe era oferecido para se inclinar no pó, recriando com uma pressa contida as frases rituais. E compreendendo confusamente que, na sua dedicação à saúde pública, Thuillier servira Deus melhor do que servira qualquer dos chefes políticos da Europa, encadeou a prece muçulmana pelos defuntos que se diria uma reminiscência dos textos da antiga religião egípcia aconselhando sobre o comportamento perante o tribunal do Além: "Dois arcanjos virão ao teu encontro.

Perguntar-te-ão: "Quem é o teu Senhor?" e deverás responder: "Só Deus é o meu Senhor!"" E erguendo a mão estendida à boca e à testa num gesto de saudação, o menino concluiu: - "Salaam aleikum", hakim Thuillier. A Paz seja consigo. Deus o tenha em Sua glória!"

- "Deus o tenha em Sua glória"... - repetiu Roux pensativamente, comentando para Gertrud - Essa é a frase que se aplica a um correligionário; falando de um não-muçulmano deveria dizer-se "Deus o tenha em compaixão"...

- O povo do Egipto adoptou o nosso Louis, Dr. Roux. Pode contar isso a Pasteur!

Vinda do largo, erguera-se uma brisa repassada de frescura, como a que os antigos egípcios diziam agraciar o paraíso dos justos, fazendo restolhar as folhas da coroa de louros e cabecear as anémonas bravas (aquelas flores do Oriente que Jesus declarara mais magníficas do que as vestes do rei Salomão) crescendo sem cuidados à beira das campas pobres. Roux pegou numa mão do menino e Gertrud na outra. Não era um sentimento de protecção condescendente face a um filho duma paragem subdesenvolvida, mas antes um reconhecimento profundo por aquela criança que soubera dar valor a um amigo de ambos e que apesar da sua miséria, lhes parecia um mensageiro do Céu, anunciando a bem-aventurança aos pacíficos.

E os dois ocidentais sorriram um para o outro, deixando-se conduzir pelo menino, enquanto a luz do entardecer revestia de púrpura e ouro o túmulo de hakim Thuillier a quem Deus clemente daria no Paraíso um laboratório que seria espaçoso e arejado como um palácio de faraó e que, por mais conflitos que se sucedessem na terra, nunca seria destruído por um bombardeamento.

 

                                                                                Mariana Bettencourt  

 

                      

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