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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADEIRAS PROIBIDAS / Ignácio de Loyola Brandão
CADEIRAS PROIBIDAS / Ignácio de Loyola Brandão

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os homens não bateram, porque há muito naquela cidade, ou país, a polícia não precisava bater para entrar. Não traziam mandados judiciais, há muito os mandados tinham perdido a razão de ser. Não havia um estado de direito. Havia o estado, não o direito.
Os homens entraram, atravessaram a sala onde a família jantava, até então tranquilamente.
– Inspeção de rotina, comunicou o chefe dos homens que tinham entrado.
– Fiquem à vontade, disse o dono da casa, voltando para terminar a sopa, indiferente à súbita invasão. A indiferença significava apenas impotência.
Os homens vasculharam a sala, os quartos, o banheiro, o quarto das crianças, a cozinha, a área de serviço e o quarto da empregada. Quarto? Aqueles cubículos, senzalas que as imobiliárias fazem.
Voltaram da cozinha com uma cadeira branca de fórmica.
– Vamos levar esta cadeira. Amanhã o senhor apareça para prestar depoimento.
– Não sei como ela apareceu aí. Tínhamos vendido.
– Não queremos saber. A cadeira estava na cozinha.
“Talvez eles mesmos tenham trazido e colocado lá”, pensou o homem. Pensou, com medo que o outro percebesse o que ele estava pensando. Os pensamentos estavam proibidos
há muito, principalmente pensamentos que colocassem em dúvida, ou em cheque, as ações dos homens.
– Em que distrito?
– Noventa e oito.
– Está bem. Me dê a notificação.
– Que notificação?
– De que os senhores estiveram aqui.
– Não estivemos aqui.
– Não estiveram? Ainda estão.
– Não estamos. O senhor nunca nos viu.
– Então, que motivo terei para me apresentar amanhã no distrito?
– O senhor se apresenta como voluntário. Levando a cadeira.
– E se eu não me apresentar?
– Voltaremos.
– E então?
– Ou melhor, viremos, mas não estaremos aqui. Não sei se compreende.
– Compreendo bem. É assim: estou livre, mas não estou.
– Perfeito. Se todos fossem como o senhor, a nossa atividade seria mais fácil. Não temos encontrado entendimento. Sabe o que me disse o homem do andar de baixo?
Não tem lógica. Vocês não podem não estar, estando. Aí, eu disse: pois estou, e não estou.
– Vamos ver se entendo melhor. O senhor fez, mas não fez.
– Exatamente.
– E se eu aplicasse o mesmo critério a esta cadeira? Ela existe, mas não existe. Não existindo, não estou incorrendo em nenhuma falta grave. Existe, mas não existe uma proibição para se usar cadeiras, não é?

 


 


– O senhor quer me deixar confuso, mas não me deixa! Por isso me escolheram. Sou um homem de estudos, fui escolhido a dedo, eu era um dos melhores logísticos de
minha faculdade. Este não é um trabalho simples.
– Como funciona?
– A proibição de usar cadeiras existe. As cadeiras é que não podem existir. O sim é para nós, o não para vocês. Somos o positivo, o povo, o negativo.
– Quer dizer que não posso alegar que não estiveram aqui?
– Não, porque entre nós sabemos que estivemos. Isso é o que conta.
– Estou confuso.
– E é para ficar. Não queremos nada claro.
– Como podem agir assim?
– Não agimos.
– Acabam de agir.
– Como agimos, se nem estivemos aqui?
– Estou em frente ao quê?
– A um homem que não existe.
– O senhor é louco.
– E o senhor um rebelde. Sabe que não tem o direito de fazer mais do que duas perguntas?
– Não fiz nenhuma.
– Fez, várias.
– Fiz, mas não fiz. Fiz e não obtive resposta. Uma pergunta sem resposta não é pergunta, é uma simples frase sem sentido.
– Chega. Amanhã no distrito noventa e oito.
– E se não houver distrito noventa e oito?
A jovem que não quis atravessar a rua
Observou a jovem parada na esquina, aproximou-se, solícito.
– Vou ajudá-la a atravessar a rua!
– Não quero atravessar coisa nenhuma.
– Claro que quer. É que aqui o trânsito é infernal.
Mais de dez foram atropelados nessa esquina.
– Meu senhor! Estou esperando uma pessoa! Não quero atravessar a rua.
– Vai atravessar! Fique calma, sei como trabalhar aqui, é o meu ponto.
– Ponto?
– De ação. Cada um de nós tem um ponto. Ganhei esse, tive sorte. É um belo ponto!
– Ganhou o que de quem? Surtou?
Ele mostrou-se irritado. Estava tentando ajudar, era a sua missão e recebia a recusa, a rejeição, era mal interpretado. Bem que havia sido alertado. O ser humano
vive uma fase ruim, ninguém quer se abrir com os outros, desconfia-se de todos os gestos. Ele via que a jovem estava ansiosa para atravessar, esperava uma oportunidade,
mas os carros não davam vez, era um egoísmo só. Estacionavam para-choque com para-choque e riam de quem não conseguia passar entre eles. Outros fingiam que paravam
e, quando a pessoa colocava os pés na rua, arrancavam com os pneus cantando, divertiam-se com os sobressaltos, os sustos. Certa vez, uma velha que voltava do supermercado
atirou ao ar as compras, os ovos se quebraram. Desde então, ela costuma ficar por ali, à espreita, e joga ovos podres nas capotas dos carros, nos para-brisas. Quando
tem a sorte de encontrar janelas abertas – coisa rara, hoje, uma vez que todos temem assaltos – joga os ovos no colo das pessoas e fica antecipando o horror pelo
fedor.
– Por que você é grosseira com uma pessoa que procura fazer o bem?
– Você não quer fazer o bem! Quer encher o meu saco! Essa cidade anda cheia de loucos e não tem ninguém para nos defender.
– Louca é você, que tenta atravessar a rua, não consegue e recusa a ajuda. Finge que não quer atravessar, para não ficar me devendo um favor. Pensa que vou pedir
dinheiro. Não quero nada. Nada! Minha recompensa eu sei qual é ao fazer o bem.
– Você me conhece?
– Não!
– Sabe onde moro? Onde vou?
– Não.
– Então não pode saber se quero ou não atravessar a rua.
– Minha menina! É uma coisa tão fácil atravessar essa rua. Por que não enfrenta logo o problema?
– Odeio que me chamem de menina! Odeio. Além disso, não existe problema. Nunca foi, nunca será. Jamais atravessarei essa rua, não quero, não vou, não vou, não vou...
– Está ficando histérica. E tudo por cinco metros.
– Podia ser mil quilômetros.
– Não existem ruas com mil quilômetros de largura. Conhece alguma?
– Estou falando em sentido figurado!
“Ela não me entende e nem eu a ela”, pensou o homem, sem desanimar. Tinha sido alertado que era assim mesmo. Uma luta. Guerra a ser travada todos os dias, em todas as ruas. Humanos não compreendem humanos, nem querem entender. Qual a maneira correta de agir? Seria uma vergonha abrir o Manual na frente da jovem e consultar as regras. Ele tinha certeza de que existia um capítulo denominado “Maneiras certas para ajudar pessoas a atravessar as ruas”. Com itens precisos sobre cegos, deficientes físicos, mentais, pessoas normais, arredias, intransigentes, intolerantes, indecisas, chatas, pernósticas, petulantes, arrogantes, tímidas, insolentes, beatas. Era tão complexo o Manual, passara o mês inteiro a ler e a tentar decorar, fazia confusão, eram mais de mil páginas em papel-bíblia. A determinação era expressa: jamais consultar as normas diante dos necessitados. Indicaria insegurança, incompetência. E se corresse, por um instante, ao arbusto atrás do qual se escondia a velha que
atirava ovos? No entanto, a velha era irascível. Assim que ele entrou no arbusto, ela gritou: “Fora, fora, fora, pusilânime. Vá cumprir sua tarefa, ajudar as pessoas
a atravessar a rua. Faz dias que não cumpre o seu dever. Fora, fora!”. Com medo que ela atirasse um ovo podre fedorento, ele se afastou. Andou um pouco, escondeu-se
no umbral de uma casa de tijolos avermelhados e, de costas para que a jovem não visse, consultou o Manual. Quatro mil páginas. Custou a encontrar o parágrafo que
se referia a Relutantes. Leu uma, duas vezes para certificar-se que faria a ação correta e voltou. O Manual recomendava que poderia usar força, abusar da violência
caso o relutante recusasse. Era o que faria. A jovem ia atravessar na porrada! Disposto a agarrá-la, chegou à esquina. Não a viu. Mas ouviu.
– Olá, olá!
A jovem estava do outro lado da rua.
– Viu? Atravessei, sem precisar de você.
– Então, mentiu! Queria mesmo atravessar.
– Naquela hora, não queria. Quis depois!
– Minha intuição estava certa! Você não podia fazer isso.
– Fiz. Você é incompetente. Perdeu a sua ação de hoje.
– Maldita! Amaldiçoada sejas! Me enganou. Sabia. Sabia de tudo!
Ela riu, abriu a bolsa, exibiu triunfante um livro azul-marinho.
– Segui o meu Manual. Ele é o contrário do seu!
Corpo
O homem do furo na mão
Há doze anos tomavam café juntos e ela o acompanhava até a porta. “Você está com um fio de cabelo branco. Tinge ou tira.” Ele sorriu, apanhou a maleta e saiu para
tomar o ônibus. Faltavam doze para as oito, em três minutos estaria no ponto. O barbeiro estava abrindo, a vizinha lavava a calçada, o médico tirava o carro da garagem,
o caminhão descarregava cervejas e refrigerantes no bar. Estava no horário, podia caminhar tranquilo. Coçou a mão, descobriu uma leve mancha avermelhada de dois
centímetros de diâmetro. Quando o ônibus chegou, a mão coçou de novo. Agora ardia e ele teve a impressão de que no lugar da mancha havia uma leve depressão. Como
se tivesse apertado uma bolinha muito tempo, com a mão fechada.
Não tinha lugar sentado, cruzou a borboleta, foi até a frente, cumprimentando pessoas que não sabia o nome, mas que tomavam o elétrico na mesma hora que ele. Segurava
a maleta com a mão direita, com a esquerda apoiava-se no varão do teto. Três pontos antes do final, o ônibus superlotado, ele sentiu uma comichão violenta. Não podia
olhar, nem levantar a mão. Estava chegando, dava para esperar. Foi empurrado para a saída, despediu-se das pessoas, olhou a mão. No lugar da mancha tinha um buraco.
De dois centímetros de diâmetro. Um orifício perfeito. Como se tivesse sempre estado ali. Nascido. Passou os dedos pelas bordas, por dentro, sentindo cócegas. Assoprou
por dentro. Olhou através dele, acompanhando uma aleijada que caminhava na outra calçada. Afastava a mão dos olhos, focalizava um objeto, aproximava a mão. Ficou
algum tempo distraído. Quando chegou no escritório, o chefe quis saber o porquê do atraso.
– Foi por causa do furo na mão.
– Ah, é? Pois vai ter um furo de meio dia no salário! Está bem?
Não fazia mal, havia quinze anos ele não tinha uma falta, um minuto descontado. Foi para a mesa, perturbado com o furo. Não triste, só querendo saber o que podia
fazer com aquilo. Passou o dia disfarçando a mão entre os papéis. Não queria que os colegas vissem. Eles não tinham furo na mão. De vez em quando soprava através
do buraco, fazia barulhos estranhos com a boca. Na hora do lanche, focalizou um colega, colocando a mão sobre o olho. Na hora de bater ponto de saída, enfiou a alavanca
no buraco e empurrou. Contente, sentia-se mais que os outros. A sensação começara no meio da manhã, depois que a primeira depressão desaparecera. Tinha pensado em
ir ao médico, explicar o caso. Desistiu.
A mulher esperava na porta, tomando a fresca da tarde. Entraram, ele tomou banho e descansou dez minutos, como todos os dias. Foram até a sala, ele desligou a TV,
a mulher ficou olhando para a tela cinza, como se esperasse ainda ver a novela interrompida. Então, ele mostrou a mão e a mulher começou a chorar. Chorou e soluçou
por dez minutos. Depois perguntou:
– Dói muito?
– Não dói nada.
– Foi um acidente?
– Não, apareceu no ônibus.
– Como apareceu?
– Apareceu.
– E se a gente reclamar da companhia de ônibus?
– Ela não tem nada com isso.
A mulher foi ao banheiro. Trouxe o estojo de emergência, apanhou gaze, esparadrapo, mercuriocromo. Ele não deixou fazer a atadura.
– Não precisa, está cicatrizado!
– Não vai me andar com esse buraco por aí. O que as vizinhas vão dizer? Que não cuido de você?
– Mas eu quero que vejam. Só eu tenho esse buraco.
– É tão feio.
À noite, ele se levantou para observar o furo na mão. Deixou embaixo da torneira, a água correndo pelo meio. No dia seguinte, a mulher tentou de novo enfaixar a
mão, ele não deixou. Estava orgulhoso do furo. Foi trabalhar e no fim da tarde estava decepcionado. Ninguém no escritório tinha ligado para a mão dele. Fizera de
tudo em frente aos colegas. Assoara o nariz, passara o dia com a mão na testa. Ao voltar para casa, não encontrou a mulher na porta. Na mesa havia um bilhete: “Não
posso viver com você enquanto esse buraco existir.” A casa vazia, ele abriu a geladeira, só encontrou manteiga, comeu com pão. Foi comprar revistas, jornais, ficou
lendo, com o rádio ligado. Não ouvia o rádio, só gostava do barulho. Todas as manhãs, quando acordava, deixava o rádio ligado, ouvindo ruídos, sem estar em estação
alguma. Depois, viu televisão até cair de cansaço. Dormiu na poltrona.
Do escritório telefonou para o emprego do sogro. A mulher não tinha aparecido na casa dos pais. Na hora do almoço saiu de táxi, rodando pela casa de amigos e amigas.
E parentes. Nada. À noite, foi à igreja. Ela costumava ir. Passou na polícia e deu queixa. Comeu sanduíche num bar, ficou vendo televisão até cair de cansaço. Foi
acordado pela empregada que vinha às quintas-feiras.
– O senhor está com um buraco na mão! Vou colocar band-aid.
– Não precisa, não. Pode deixar.
– Como pode? O senhor não vai sair assim.
– Vou, não quero band-aid.
Cinco minutos depois a empregada saiu, com a bolsa, dizendo até logo, não volto mais. Ele dormiu mais um pouco. Acordou com o silêncio da casa, os cômodos na penumbra,
tudo desarrumado. Gostou da desarrumação. Fez café, jogou pó no chão, molhou tudo que pôde, derrubou lixo. Tomou banho, jogou as toalhas, molhou o chão, largou o
sabonete dentro da privada. Saiu. Pela segunda vez em doze anos saía sozinho sem ninguém para acompanhá-lo até a porta, sem a sensação de estar vigiado, de ter de
ir e voltar ao mesmo lugar, ter de justificar as coisas, o dia, os movimentos.
Chegou atrasado ao ponto. Quando subiu no ônibus, não conhecia ninguém. O cobrador se levantou.
– O senhor pode tomar outro carro, por favor?
– Outro carro, por quê?
– Ordem da Companhia, não sei de nada.
– Que coisa ridícula. Ordem da Companhia. Não vou tomar outro. Vou nesse mesmo.
– Por favor! Não arrume complicação. Desça. Os passageiros estão esperando.
Todos olhavam para ele. Sentou-se, segurando firme a maleta. Os outros passageiros começaram a descer. O cobrador foi buscar um policial. O motorista chegou, olhando
o furo na mão, bem visível, por cima da maleta.
– Por que o senhor não vai por bem?
– Pago minha passagem, tenho direito de andar no carro que quiser.
– Não tem nada. O senhor é que pensa.
O policial entrou, apanhou o homem com furo na mão pela gola, jogou-o fora, na calçada. A maleta abriu, os papéis espalharam. Ajoelhado, ele começou a catá-los.
O povo olhando. O policial disse:
– Quando mandarem o senhor tomar outro carro, o senhor toma.
Ele pensou: estão todos combinados, não é possível, é uma brincadeira da turma, comigo. Depois, se lembrou que não tinha turma, vivia só, ele e a mulher, às vezes
ela até reclamava. Os passageiros voltaram ao ônibus. Ele se levantou, ficou encostado no ponto. Minutos depois chegou outro ônibus. Só abriu a porta da frente,
alguns passageiros desceram. Bateu na porta de entrada, chutou, o cobrador colocou a cabeça para fora.
– Ei, companheiro, o que é isso? Espere chegar o outro carro.
Decidiu ir a pé. Tinha anotado os números dos ônibus, iria à companhia fazer uma reclamação. O pior é que chegaria atrasado. Quando entrou no escritório, passou
rápido pelo chefe, este não se incomodou. Foi direto para a mesa. Havia um paletó na cadeira. Ele colocou a maleta na mesa, sentou-se. Abriu a gaveta, não a encontrou
arrumada, como deixava todos os dias, no fim da tarde, os lápis selecionados por cores, os clips, borracha, papéis ordenados. Estava tudo remexido. Ouviu um “com
licença”, levantou os olhos, encontrou um homem de trinta anos, gordo.
– O que é?
– Desculpe! Essa mesa é minha.
– Sua?
– Me deram hoje de manhã.
– É minha. Onde estão as minhas coisas?
– Num pacote com o chefe.
Foi até o chefe.
– O que está acontecendo?
– Nada.
– Tem outro na minha mesa.
– A mesa é da Companhia.
– Bom, eu ocupava aquela. E agora?
– Não ocupa mais. Você não trabalha mais aqui.
– Por quê?
– Sua mão. Esse buraco é inconveniente.
A mulher tinha razão. Seria preciso colocar um band-aid para esconder o furo. Mas, se escondesse, ficaria sem ele. E gostava daquele buraco perfeito, círculo exato.
Talvez até inventasse um jogo qualquer, com bolas de gude atravessando a palma da mão. Era uma boa ideia, podia se apresentar na televisão.
– E o meu dinheiro? A indenização?
– Indenização? Você foi demitido por justa causa.
– Justa causa?
– É proibido ter buraco na mão. Não sabia?
– Nunca existiu isso nos regulamentos.
– Existe. Está no Decreto Inexistente.
– Quero ver.
– É inexistente. O senhor não pode ver.
Pensou em procurar um advogado, correr à justiça trabalhista. Não podiam fazer aquilo! Amanhã ou depois cuidaria disso. Tinha tempo. Resolveu ir ao cinema. Há vinte
e dois anos não ia ao cinema num dia de semana, à tarde. Comprou o bilhete no primeiro que encontrou. Nem olhou que filme era. Quando entregou ao porteiro, este
perguntou:
– O senhor tem certeza de que é este o filme que quer ver?
Como ele não tinha, ficou indeciso. O porteiro aproveitou.
– Está vendo? O senhor se enganou. Se quiser, a bilheteira devolve o dinheiro.
Ele se recuperou, protestou. Era esse filme mesmo, que negócio é esse, também aqui essa brincadeira?
– Por favor, meu senhor! Vá a outro cinema.
– E se quero ir neste?
– Melhor não entrar. Ou sou obrigado a chamar o gerente.
– Pode chamar.
O gerente veio, acompanhado de um segurança de cara amarrada.
– Por que não posso entrar no cinema?
– O senhor pode! Qual é o problema?
– O porteiro disse que não posso.
– Eu não disse. Só pedi ao senhor para ir a outro cinema.
– Quero este.
(Deixa ele entrar, murmurou o gerente ao porteiro.)
Ele sentou-se numa fila do meio, vazia. Atrás dele, pessoas cochicharam, se levantaram, saíram. De instante em instante, uma pessoa saía da sala. Ele não prestava
atenção, apenas achava muito barulho e movimentação. Devia ser sempre assim nas sessões da tarde. Quando a fita terminou só tinha ele na sala. Resolveu fumar um
cigarro. Na sala de espera, quatro seguranças se dirigiram a ele.
– Quer nos acompanhar?
– Onde?
– Não tem que perguntar!
Quando chegaram na calçada, os brutamontes disseram:
– Agora, vai andando quieto! Sempre em frente! Sem falar com ninguém! Sem olhar para os lados. Vai.
Ficou pela rua. Estranho, estar no meio daquela gente toda que se cruzava. Será que não estavam fazendo nada? Olhava vitrinas, livrarias, agências de viagens, via
homens de maleta preta. A maleta? Tinha deixado no escritório. Era disso que sentia falta. A maleta na mão. Mesmo quando não precisava dela, carregava. Fazia parte
dele. Agora, os braços ficavam soltos, desamparados. Sentia uma tensão, ao se ver na rua, àquela hora no meio da gente toda. Duas vezes se surpreendeu caminhando
em direção ao escritório. De repente, entendeu de vez que não precisava voltar lá. O alívio foi tão grande que começou a suar. E se assustou um pouco. Era como se
tivesse sarado de uma doença terrível, depois de ter estado à beira da morte. Ou sair de dentro da água, quando estava se afogando. Sentia-se amedrontado, uma sensação
esquisita por dentro. Culpado de estar sem o que fazer. Livre, caminhando para onde queria. Tudo por causa do buraco. Olhou as pessoas através dele. O gesto de levar
a palma da mão à frente do olho estava se tornando um tique.
Andou, descontraído. Sentindo-se mais leve a cada hora que passava. Muito tarde da noite (não precisava voltar para casa; atravessara como que flutuando as seis,
sete, oito horas; quase pegou o ônibus, lembrou-se a tempo, ficou vagando pela cidade, vendo a noite cair, o movimento diminuir, as pessoas mudarem nas ruas). Sentou-se
num banco da praça, olhando a mão. Gostava ainda mais do furo.
– O senhor quer sair desse banco?
Era um homem de farda abóbora, distintivo no peito: Fiscalização de Parques e Jardins.
– O que tem esse banco?
– Não pode sentar nele.
Ele mudou para o banco ao lado, o homem seguiu atrás.
– Nem nesse.
– Em qual então?
– Em nenhum.
– Olhe quanta gente sentada.
– Eles não têm buraco na mão.
O homem enfiou a mão embaixo da túnica, tirou um cacetete, deu uma pancada na cabeça dele. As pessoas se aproximaram, enquanto ele cambaleava.
– Socorro, disse, com a voz fraca, amparando-se num velhote. O velhote se afastou, ele caiu no chão. A cabeça latejando terrivelmente.
– Por que fez isso?
– Pedi para não sentar, o senhor teimou. Agora, saia da praça.
– Saia, saia, gritavam as pessoas em volta.
Andou, sem se incomodar com o povo, o fiscal. Passou a mão na cabeça, sangrava. Num bar, pediu um copo de água gelada, jogou na cabeça. Decidiu que não iria para
casa. Talvez passasse por uma delegacia para dar queixa, abrir um processo contra o fiscal. Embaixo de um viaduto, sentou-se. Vagabundos (seriam vagabundos?) tinham
acendido uma fogueira. Acordou, o sol nascendo, levantou-se rápido. De pé, lembrou-se que não precisava ir ao emprego, ir a lugar nenhum. Sentou-se de novo, vendo
os vagabundos (seriam vagabundos?) tomarem o que parecia café. Aproximou-se. Um deles estendeu uma lata. Quando olhou a mão do homem, viu nela um orifício de uns
dois centímetros de diâmetro que atravessava da palma às costas. Então, ele também mostrou a mão. O homem não disse nada. Ele tomou o café. Ralo, de pó catado nos
lixos dos bares, já tinha passado uma ou duas vezes pelo coador. Serviu para assentar o estômago.
O homem cuja orelha cresceu
Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro,
35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter dez centímetros.
Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam à cintura.
Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das secretárias
estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada,
iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou
as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saía pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista.
A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar
as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. Sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido.
Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às 10 da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora
da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e, quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em
cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta.
Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hóspedes fugiram para a rua. Chamaram a
polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.
Vieram açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram
os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas de casa.
Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou
filas, fez uma distribuição racional.
Quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar
a carne de orelha, chamaram outras cidades.
Vieram novos açougueiros.
E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam.
E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam.
E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: “Por que o senhor não mata o dono da orelha?”.
Os homens que contavam
Para Helen Albertin
Estava contando os dedos, para saber se tinha cinco ou seis, quando viu, no banco à sua frente, um homem contando os cabelos. Observou quietamente. Duas horas depois
percebeu que o homem parecia aborrecido, sacudindo a cabeça, desanimado.
– O que foi, perdeu a conta?
– Perdi. Viu só? Tinha chegado ao 4.657 e me confundi com dois fios brancos. Preciso começar tudo de novo.
– Tive sorte. A mim coube apenas contar os dedos.
– Mais sorte teve um amigo meu. Ele precisa contar quantas bocas tem.
– Você não acha uma bobagem essa nova lei de recenseamento total?
– Acho. Principalmente porque estou perdendo um tempo desgraçado. Sabe há quanto tempo tento contar os cabelos? Seis semanas. Outro dia, consegui terminar. Acontece
que era sexta-feira e as repartições estavam fechadas. Você sabe que elas funcionam um dia da semana, durante trinta e sete segundos? Daí, a fila diante do guichê
é fenomenal. Na última vez que estive lá, tinha oito quilômetros de extensão. E esta fila é apenas daqueles que têm de contar os cabelos. Fiquei lá, com minha mulher
levando marmitas e cobertores. Foi aí que descobri o problema. O meu cabelo estava caindo. Quer dizer que quando chegasse a minha vez diante do guichê, o número
estaria errado. Se eu fosse escolhido para verificação, estaria perdido. Saí da fila e fui fazer tratamento. Gastei muito até conseguir o preparado que me conservasse
o cabelo por algum tempo. Aí, o prazo estava esgotado. Paguei a multa. Doze salários mínimos, divididos em setenta e duas prestações na Tabela Price. Agora, estou
contando outra vez, para me apresentar no dia quinze. E você? Contou todos os dedos?
– Já. São dez nas mãos e dez nos pés. Cinco para cada mão. Cinco para cada pé. O problema é que o funcionário sempre tenta fazer com que a gente caia em contradição.
Outro dia, um primo voltou da repartição muito confuso. Quase chorando. Tinha apresentado o seu relatório de dedos, confirmado por testemunhas. O homem do guichê
verificou as testemunhas e descobriu que uma delas tinha ficha negra no serviço de proteção ao crédito. Daí, não podiam confiar em alguém condenado por mentira ao
comércio. O relatório foi invalidado. Quando o meu primo voltou, o funcionário desconfiado pediu para ele apresentar mãos e pés. Descobriu uma verruga junto ao indicador
esquerdo e perguntou:
– O que é isto?
– Uma verruga.
– Não seria um dedo deformado?
– Não! É uma verruga.
– Quem sabe é o princípio de um novo dedo?
– Não é. É uma verruga. Tenho há anos.
– Você precisa de um certificado do Dr. Schol, provando que é verruga.
– Onde consigo?
– Nas lojas do Dr. Schol. Todas têm nossos formulários.
– No entanto, você precisa ver as filas diante das lojas do Dr. Schol, uns provando que têm verrugas e não dedos, outros para certificar-se de que possuem calcanhar,
e assim por diante. Tenho a impressão de que este recenseamento vai durar uma eternidade. Eles são muito rígidos.
– Dizem que é necessário. Estão fazendo o levantamento total do país.
– Para quê?
– Não me pergunte! O melhor, hoje, é a gente saber pouco.
Saiu pela praça, onde as pessoas contavam bancos, folhas de árvores, postes, folhas de grama, flores, lâmpadas, cartazes, bancas de frutas, olhos, pernas, cabeças,
ônibus, carros amarelos, carros brancos, carros de cada cor, bolinhas de vidro, doces nas vitrinas, gritos, apitos, sussurros, assobios, murmúrios, risos, palavras,
arrotos, jornais, letras, sapatos, camisas amarelas, camisas brancas, camisas de cada cor, calças, cidades, estados, países, continentes, estrelas, planetas, galáxias,
universos.
O homem que queria eliminar a memória
Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida ou morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos
são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham. Subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar comum.
Estava na sala diante do especialista. Uma sala branca, anônima. Por que é sempre assim, deprimindo a gente logo de entrada?
O médico:
– Sim?
– Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.
– Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?
– Porque eu quero.
– Sim, mas precisa me explicar. Justificar.
– Não basta eu querer?
– Claro que não.
– Não sou dono do meu corpo?
– Em termos.
– Como em termos?
– Bem, o senhor é e não é. Há coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor, eu é que estou impedido de fazer no senhor.
– Quem impede?
– A ética, a lei.
– A sua ética manda no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E acabou!
– Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão! E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?
– Quero eliminar a memória.
– Para quê?
– Incrível! As pessoas só sabem perguntar: o quê? por quê? para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar, pura e simplesmente,
alguém que deseja eliminar a memória.
– Já que o senhor veio a mim, tenho o direito dessa informação.
– Não quero me lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!
– Não é tão simples! Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar etc.
– É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.
– Não dá para fazer, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada!
– Em lugar nenhum posso eliminar a minha memória?
– Que eu saiba, não.
– Seria muito melhor para os homens. O dia a dia. O dia de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado
fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar do que se tomou no café da manhã? E para que me lembrar do que tomei no café da
manhã?
– Se todo mundo agisse assim, acabaria a história.
– E quem quer saber de história?
– Imaginou o mundo?
– Feliz, tranquilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.
– Não é bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através do quê?
– Quem quer comprovar a existência?
– A gente precisa.
– Para quê?
O médico pensou. Não conseguiu responder. Estava totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. O médico subiu para os brancos corredores do hospital,
passou pela sala de operações. Chamou um amigo.
– Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérebro. Eliminar a memória. O que você acha?
– Muito boa ideia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.
O homem que viu o lagarto comer seu filho
Para Ligia Sanchez
Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam
num bairro tranquilo. Não havia ruídos, poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino
mais velho, de três anos e meio.
Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou
se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário.
E meio míope, ainda por cima.
Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão
de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho
repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar as portas. Ela esquecia, nunca usava o pega-ladrão.
Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos
com asas de borboletas, tão preciosos.
Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um
pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas costas do lagarto-não lagarto? Não tinha armas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária.
Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal
não existia. Pode um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças?
Olhou bem. Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era. O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário
teve um instante de ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego, à noite. Uma faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto
o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha que impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar
um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas
e apavorantes? Não sabia.
Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em sequestro ou coisas assim que lia nos jornais. Sequestro o intrigaria,
uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o
dia todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora?
Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho
tinha comido do filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou,
não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher.
Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a de um lagarto. Paralisado,
não sabia se devia tentar assustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte
demais para ele, franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas para entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras
pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades.
Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas.
Nem amanhã, por muito tempo.
O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.
A jovem que trocava as letras
Mariana telefonou para Leonardo. Angustiada:
– Perdi o b.
– Perdeu o b?
– Não consigo mais escrever o b.
– Como? Que história é essa?
– Uma coisa estranha. Faz três dias que venho notando. A princípio imaginei que fosse distração, sou uma digitadora primária, uso apenas dois dedos. Depois percebi
que, ao pressionar o b, sai um s.
– Defeito do teclado. Tão simples.
– Não é. Veio um técnico, testou. Pressionava o b e saía o b. Eu pressionava e saía o s.
– Será um problema neurológico?
– Por que haveria de ser? O computador não tem neurônios como nosso cérebro. E um neurologista, pelo que sei, cuida de neurônios.
– Achei que sim.
Ele decidiu fazer um ligeiro teste. Leonardo adorava testes, comprava revistas de palavras cruzadas apenas para fazê-los, conhecia truques. Pediu à Mariana:
– Venha à minha casa.
Em dez minutos ela estava lá, porque além de tudo tinha uma queda pelo garotão. Um gato! Ligaram o computador.
– Escreva boiota.
– O que é isso?
– Uma palavra. Boiota.
– Não escrevo o que não sei. É soiola?
– Soiola, não. Boiola. Boiola é bicha. Boiota é mentecapto.
Ela digitou. Saiu soiota na tela. Leonardo escreveu certo, boiota.
– Viu?
– Agora, escreva botrópico.
– O que é isso?
– O mesmo que laquético.
– E o que é laquético?
– Não sei.
Ela digitou sotrópico. E assim, durante algum tempo, ele foi dizendo palavras como bracajá, brévia, bródio, buço, bucaneiro, bazofiar, baronato. Ela digitava sracajá,
srécia, sródio, suço, sucaneiro, sazofiar, saronato.
– Não adianta mesmo.
– Temos de encontrar um especialista em trocar palavras. Deve ser um vírus novo, há tantos por aí, desconhecidos.
Dias depois, Mariana ligou.
– Agora piorou. Não consigo pronunciar o s.
– Também o s?
– Não o s. O s.
– Pois é isso que estou entendendo.
– Não, não está. Lembra-se? Havia uma letra que eu trocava pela outra. Quando digitava aparecia o s. Naquele tempo eu podia pronunciar aquela letra, a primeira de
soiota.
– Boiota.
– Só que agora não consigo mais pronunciar a primeira letra, aquela, a verdadeira.
– Não fala mais o b? Quando quer falar o b, fala o s?
– Isso!
Passou uma semana, Leonardo ligou para ela.
– Continua tudo igual?
– Continua.
– Ficou naquela letra?
– Ficou. Mas descobri um colega de trabalho que não consegue digitar, nem pronunciar o s. Quando quer falar ou digitar, aparece o s. Exatamente o contrário de mim.
Ele ironizou:
– O jeito é vocês se casarem, para acertar as tetras.
– Tetras?
– É. Foi o que disse. Tetras.
– E o que significa?
– As tetras do alfabeto.
– Ah, as letras. Então, você está trocando o l pelo t? Diga limão.
– Timão.
– Linha.
– Tinha.
– Viu? Agora, você precisa procurar quem faça o contrário. Quem troque o t pelo l, e assim acertam as letras.
Menos de um mês depois, se viu que cada um trocava uma letra por outra. A por h, x por d, p por r. E todos esqueceram a trivialidade dos empregos, descalabros do
governo, congestionamentos, angústias amorosas, e centenas de outras coisas que compõem o cotidiano. O que se viu, e se vê, é uma intensa busca do parceiro ideal,
aquele que troca as letras ao contrário da de cada um. Vive-se, agora, o tempo das trocas. Difícil como ser feliz.
Clima
O homem que perdeu as letras do livro
Estava deitado, lendo. À noite, antes de dormir, era o único momento disponível para leitura. Lia dez minutos e pegava no sono. Um ritual. Já tinha tentado ler mais
tempo, não conseguia. Dormia de luz acesa, o livro na mão, acordava alta madrugada, assustado.
A mulher, ao lado, via televisão. À noite, antes de dormir, era o único momento que ela tinha para ver televisão. Durante o dia, trabalhava. Voltava correndo, fazia
o jantar, cuidava dos filhos e ligava a televisão. Os dois não conversavam, diziam boa-noite, bom-dia, bom livro, bom programa, os meninos estiveram bem etc.
Uma vida comum, normal. Igual à de todo mundo. Sem grandes mudanças, tranquila, estável, renda familiar média, apartamento simpático. Não desses anunciados aos domingos
nos suplementos imobiliários, com grandes fanfarras, mas um apartamento confortável, dois quartos, sala cozinha e banheiro.
De modo que, o homem estava lendo. Então, percebeu um leve embaralhar das letras. “O sono está chegando”, pensou, “mas vou aguentar”. Tinha feito uma promessa. Resistir
um minuto a mais por dia, até que atingisse uma hora, duas.
Continuou a ler, as letras embaralharam mais ainda. As linhas pareciam entortar. Fechou os olhos um segundo. “Se eu descansar, melhoro, não estou com tanto sono.”
Abriu os olhos, continuou a leitura. Aí, as linhas entortaram como se alguém tivesse dado um empurrão violento. E as letras começaram a despencar, como leve garoa,
no colo dele. Em dois segundos a página ficou em branco.
“Estou louco, sonhando, o quê?” Virou a página. Tudo escrito, certinho. Mas no que virou, as letras despencaram. Ele acordou totalmente. “Esta não! Cada livro vagabundo
que andam vendendo. Nem imprimir direito imprimem mais. É uma tinta sem cola, a letra não gruda na página.” Como não tinha o mínimo conhecimento de impressão, imaginava
coisas. Na verdade, estava abalado. Olhou para a mulher. Ela, indiferente, seguia as opiniões dos jurados num programa de prêmios. Não tinha visto nada.
Foi virando as páginas, uma a uma. As letras formavam, agora, um amontoado preto sobre a cama. Folheou o livro, rapidamente, as letras caíram numa enxurrada. Formando
um monte considerável. “Quantas letras são necessárias para um livro.” Fez, superficialmente, um cálculo estatístico: se cada linha contivesse 50 letras e cada página
38 linhas, então um livro de 300 páginas teria cerca de 57 mil letras.
A mulher virou-se na cama e viu aquele montinho, a poeirinha negra se espalhando.
– O que é isso? Essa sujeira? Cinza de cigarro?
– Que cinza! Que nada! São as letras do meu livro que caíram.
– Ora essa. Letra caindo de livro?
– Verdade.
– E agora?
– Vou apanhá-las, reconstituir o livro.
– Não vai, não!
Ela deu um tapa, atirou tudo no chão. Buscou uma vassoura, jogou as letras sobre uma pá, enfiou num saco plástico, colocou no tubo de lixo.
Os homens cegos no hall de mármore
Para Daysi
A secretária trouxe o café do diretor-presidente às três e quinze em ponto. Ele era sistemático. E por ser assim chegara ao ponto em que estava. Nessa tarde, um
resfriado o perturbava. Assoava o nariz com frequência, o cesto estava coalhado de lenços de papel, o olho esquerdo lacrimejava. Detestava mal-estares, era difícil
raciocinar. Quando ele não raciocinava bem, estava perdendo dinheiro em algum setor da organização. Nada concreto, mas tinha a intuição de que era o seu estado de
constante alerta que o levava a progredir. Nem podia calcular onde chegaria se tudo continuasse assim. Tomou o café lentamente, adicionara limão, vitamina C era
bom para gripes e resfriados. Por um momento, no dia, permitia-se levantar os olhos dos papéis e contemplar a cidade, através da parede envidraçada. Gostava daquela
massa cerrada de edifícios, das ruas coalhadas de carros, da fumaça, das pessoas que se atropelavam. Agitação e dinamismo o estimulavam.
Sentia-se, aqui no alto, responsável por uma grande parte do trabalho desta gente toda. Quando via dois homens se encontrarem, se cumprimentarem e parar para bater
papo, ficava inquieto. Aqueles homens deviam trabalhar para alguém, portanto estavam roubando tempo. Quem sabe até trabalhavam em algo ligado ao conglomerado que
ele comandava. Se a conversa durava mais do que o seu café, mandava a segurança descer, avisar aos conversadores que circulassem, deixassem de prosa fiada.
Nessa tarde, quando levantou a xícara, teve a sensação de uma névoa tênue diante dos olhos. Deve ser o resfriado, pensou. Ficou mais preocupado. Se continuasse assim,
o fim da tarde estaria perdido para decisões importantes. Sorveu o café, assoando o nariz e esperando que a névoa diminuísse. Ao contrário, à medida que o café se
acabava, a névoa aumentava. A tal ponto que, quando a xícara se esvaziou, ele não enxergava nada, a não ser silhuetas contra a luz. Apertou o botão, a secretária
veio e se assustou com a expressão do rosto dele.
– O senhor está se sentindo mal?
– Muito mal. Não enxergo nada.
– Vou chamar o médico.
– Não. Me ajude a chegar ao ambulatório. Antes, mande todo mundo sair do corredor. Quem estiver circulando que volte à sua mesa imediatamente.
A secretária desapareceu alguns instantes. Voltou e o diretor-presidente se apoiou no braço dela. Caminharam em direção ao elevador. Súbito, ela parou:
– O que foi? Gente?
– Não. Não estou enxergando nada. Apagaram tudo.
– Você também?
– Também. Vamos os dois fazer uma consulta. Não é normal.
Ela tateou pela parede até achar o botão do elevador. Ouviram o abrir da porta, ela experimentou com a mão, para ver se o carro estava ali. Tinha medo de cair em
poços de elevador.
– Quinto, disse ao ascensorista.
– A senhora, por favor, aperte o seu botão.
– Por que eu? Aperte você, que é ascensorista. Está aqui para isso.
– Eu apertaria com prazer, se enxergasse o painel. Acontece que não vejo nada, nada mesmo!
– O senhor se sente cego? perguntou o diretor-presidente.
– Completamente. A menos que tenham apagado a luz do mundo (o ascensorista vivia fazendo graça).
– O senhor tem experiência. Se tatear o painel vai descobrir o quinto andar. Tente.
Apertou um botão, o elevador desceu. Parou, a porta se abriu. Gritaram de fora:
– O elevador está aí?
– Está.
– Segurem a porta, vamos entrar.
Seguiu-se barulho de passos.
– Não tem mais ninguém? perguntou o ascensorista.
– Como podemos saber? Não estamos enxergando! Essa companhia é uma merda. Apagou tudo, de uma vez. Vai ver estão racionando. Vivem economizando.
– Não é a companhia, disse o diretor-presidente indignado. A companhia é ótima. Vocês é que ficaram cegos.
– Cegos? Está louco? É a luz.
– Luz. Pois olhe aqui.
– Estou olhando! O que é?
– Acendi o meu isqueiro. Está enxergando?
– Não.
– Viu? Não é a companhia. Peça desculpas ou será demitido.
– O senhor está me vendo?
– Não. Estou cego também.
– Então, foda-se. O senhor não sabe quem sou.
O elevador parou, as portas se abriram.
– Aqui deve ser o quinto, disse o ascensorista.
Mas já havia gente entrando. O diretor-presidente tentava sair. Empurrou as pessoas. Reclamaram. Ele gritou: saiam da frente, sou o diretor-presidente, preciso ir
ao ambulatório.
– O ambulatório fechou. Estava cheio de gente cega. O médico ficou cego, foi embora.
– Precisamos ligar para meu oculista. Ache um telefone, disse o diretor-presidente.
Saíram tateando. Abriram portas que não sabiam para onde davam. Apalparam em busca de mesas. Gritavam para que as pessoas ajudassem, ninguém respondia. Encontravam
mesas, mas não achavam o telefone. Saíram em corredores, entraram em outras salas, em banheiros. Havia portas que não se abriam. Nervosamente, quase fora de si,
a secretária encontrou um telefone. Não dava linha. Tentou de tudo, o fone mudo. As telefonistas devem ter ido. Vai ver estão cegas. Preciso encontrar um direto.
Só os chefes têm direto. Onde estão as mesas dos chefes? Estabeleceram um plano. Tentar mesa por mesa, escritório por escritório, andar por andar.
Se eu sair desta, disse o diretor-presidente, vou contratar alguns cegos e deixá-los por aí. Se acontecer de novo, eles guiam a gente com suas bengalas. A esta altura,
já se ouviam gritos vindos do grande hall de entrada. Era um prédio imponente, com um imenso hall de mármore, onde eram dadas as grandes festas, bailes, comemorações.
– Você continua tentando que vou descer. Deve haver um jeito de sair daqui.
Guiando-se pelo murmúrio, o diretor-presidente procurou a escada. Girou, girou. Encontrou. Desceu devagar, até atingir o hall. Não era murmúrio. Mas sim como se
fosse uma enorme manifestação, todo mundo falando ao mesmo tempo. Havia gritos, choros, lamentos, xingos. Devia haver muita gente ali. Talvez todo o prédio. O diretor-presidente
não conseguia se mover. Empurrava as pessoas, irritado. “Saiam da frente!”
– Ei, velho, calma, o que há?
– Sou o diretor-presidente. Saiam da frente.
– Diretor-presidente, hein? Toma lá, velho. Você é o culpado disto.
Pescoções, cascudos.
– Como posso ser culpado? Está todo mundo cego! Até eu.
– Você? Você diz que está. Não podemos acreditar. Sempre mentiram para nós nesta empresa.
– Mentiram? Vocês sempre tiveram o melhor. É uma empresa desenvolvida. Com grandes metas.
– As metas da empresa nunca envolveram os funcionários, não é?
– Se a empresa progride, os funcionários progridem junto.
– Só vocês progridem. E agora, estamos todos cegos. Além de cegos, não podemos sair daqui.
– Por que não?
– Está tudo fechado. Os seguranças, quando sentiram a cegueira, trancaram tudo. Não se sabe agora se os guardas não encontram as portas, ou se perderam as chaves
na confusão. Tentaram arrebentar os vidros, mas são blindex triplos fumê. Quer dizer, nem quebram, nem nos veem de fora.
– Alguém há de querer entrar. Aí vai perceber a anormalidade.
– Já tentaram. Ouvimos dizer: “deve ser feriado. Voltaremos outro dia”.
– Vamos esperar, algum socorro há de vir de fora.
– Não podemos esperar que nossos problemas sejam resolvidos pelos de fora.
– Mas você não sabe que nenhum problema é resolvido apenas pelos que estão dentro?
– Temos que achar aqui entre nós uma solução.
– Como? Com este bando de cegos?
– Alguém há de enxergar. Não é possível estarmos todos cegos.
– Se alguém enxergar e a turma souber, sabe o que vai acontecer?
– Não.
– Furam o olho dele.
– Mas, mesmo que a gente ache a saída, vamos continuar cegos.
– Pode ser. Mas vamos também aprender novas maneiras de viver. Cegos e sufocados é que não podemos continuar. Me dá muita angústia pensar que estamos encerrados
dentro de um hall de mármore frio, sabendo que poderíamos estar ao ar livre, ao sol, respirando.
Aos poucos, cansados, começaram a sentar. Não havia espaço. Empurravam, se ajeitavam. Exaustos, com fome e sede. Alguns conseguiram se deitar. Tentavam se organizar.
Surgiram líderes orientando: “Mulheres primeiro, os mais velhos depois”. Brigas estouravam em cantos esparsos. Ninguém sabia se era dia ou noite. Sentiam frio e
desconforto. E esperavam.
Os homens que esperaram o foco azulado
A porteira ouve a primeira música. Abre as cortinas vermelhas e se coloca de pé, à frente da porta. Às sete horas, pontual, o casal Andreato entrega os ingressos,
cumprimentando a porteira delicadamente. O bastante para se mostrarem educados, mas suficiente para ela saber que não passa de cumprimento, sem intimidade maior.
Nos dias normais, há uma distância de tempo entre o casal Andreato e os outros espectadores. Aos domingos, não. A fila se estende. Todos ansiosos, olhando a bilheteira
que funciona lenta, com medo de errar o troco. No domingo, não há tempo para cumprimentos e sorrisos. As pessoas jogam o dinheiro, apanham os ingressos, saem apressadas
para garantir lugar. Sentam-se sempre nas mesmas poltronas. Irritam-se quando encontram alguma pessoa já sentada e olham. Para ver se é da cidade ou se se trata
de algum estranho não informado dos hábitos locais.
Os casais velhos chegam cedo. Geralmente são pessoas sozinhas, os filhos já deixaram a casa, formados ou casados. Jantam cedo, a louça a ser lavada é pouca, logo
a mulher está pronta. A vantagem é comprar rapidamente o ingresso, evitando a aglomeração que se forma minutos antes da fila começar. Estes casais chegam vestidos
corretamente, o homem de terno e gravata, a mulher em tailleur preto ou cinza, joias discretas, colar de pérolas, brincos. Constituem a maior parte da plateia. Estão
acostumados com o cinema há dezenas de anos. Não apenas com o cinema, mas com a sala, reformada de tempos em tempos. O cheiro dos perfumes, usados por elas, impregnou
o ar, de tal modo que todos se sentem seguros dentro do clima familiar e conhecido.
A sala se enche. Homens com jornal debaixo do braço; casais de namorados; noivos de braços; moços sozinhos sobem e descem em busca de moças sozinhas com lugar vago
ao lado; moças com os pais, ansiosas pelos flertes; solteironas em grupos; velhos resmungando porque a agitação é grande. Pessoas entram, pessoas sentam, pessoas
perguntam: esse lugar está vago? Pessoas vão ao banheiro, pessoas entram pelas filas batendo nos joelhos dos outros e desmanchando cabelos que custaram horas, à
tarde.
O baleiro sobe e desce. Faltam cinco minutos para o filme começar, há expectativa, os lugares tomados, muita gente vai ficar em pé. As mulheres se perguntam: terão
visto meu vestido novo? O sapato, o colar, a blusa, a saia, a bota? As meninas indagam se terão sido vistas ao lado do namorado novo, do mais bonito da cidade, o
mais elegante, e rico, e até o inteligente, o mais promissor, o político.
Agora, as pessoas olham o relógio para se certificar que se passaram cinco minutos além do horário e imaginam que a gerência talvez esteja esperando o povo se acomodar,
para começar. Outros lembram que o povo se aquieta com os acordes da Suíte Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Todos que estão em pé se precipitam, porque sabem que as
luzes se apagarão no meio da música. O gongo toca em seguida, as cortinas se abrem lentamente, as luzes em volta da tela mudam de cor e se apagam no instante exato
em que a Suíte termina e o foco azulado surge da cabine, enchendo a tela de imagens, mas a Suíte não toca, o baleiro sobe para encher a cesta, uma nova consulta
aos relógios mostra que se passaram quinze minutos, os mais velhos ficam olhando para trás, para a janela da cabine, como se o olhar de reprovação pudesse por si
levar o operador a começar a sessão.
Uns se levantam e vão perguntar à porteira, e ela se limita a responder que nada pode fazer, a sua função é recolher ingressos. Que consultem o gerente. E onde está
o gerente? O gerente está no escritório, mas o escritório é inacessível ao público, para se chegar a ele é preciso sair, dar a volta pela escada do balcão. Mas quem
sai não pode entrar de novo, a bilheteira não tem senhas para entregar. Então, como fica? Tem que esperar.
Às oito, passada meia hora, mesmo os mais jovens se entreolham: vai ver quebrou a máquina, ou não receberam o filme. Como se isso fosse piada, riem. Riem alto, porque
sabem que incomodam os velhos. Os velhos pedem silêncio, a sessão está atrasada e ainda tem baderna. Oito e dez, há insatisfação geral, assim não pode, daqui a pouco
a sessão começa com uma hora de atraso, vamos chegar tarde ao clube. Batem palmas na frente, gritam no fundo, o banheiro está repleto de fumantes.
Os radicais se levantam, dispostos a atitude extremada. Surpresa: a porteira deixou seu posto. Desapareceu, a porta está fechada. Trancada por fora. Indignação.
Vamos quebrar tudo. “Quebrar o quê?”, pergunta um homem. Quebrar portas, poltronas, o que estiver pela frente. O homem que tinha perguntado agarrou o braço do homem
que pretendia quebrar. “Me acompanhe, por favor.” Saíram por uma porta lateral, os outros nem perceberam. O pequeno hall de entrada está cheio, os corredores lotados,
as pessoas continuam a se levantar e a se empurrar. Querem sair, se comprimem, xingam, não se entendem. E não compreendem. As mulheres estão sentadas, “este é um
assunto para homens”.
Então, sem que se saiba como entraram, desconfia-se até que estavam na sala, misturados ao povo, os vigilantes da segurança começaram a gritar “Voltem aos seus lugares”.
A princípio, as pessoas não escutam, tão aturdidas estão. Os vigilantes passaram a empurrar, sem violência, mas agressivamente, com decisão, os homens de volta às
poltronas. São muitos os vigilantes e parecem dispostos a uma ação maior. De modo que os pacíficos espectadores, espantadíssimos, se atropelam, ansiosos para dizer
às suas companheiras que não conseguem saber o que está acontecendo. Aproveitam para protestar contra a violência. Afinal, esta é uma tranquila sessão de domingo
e os vigilantes deviam estar é contra o dono do cinema que não inicia a sessão. E não agredir espectadores, estes pagaram para ver o filme na hora certa.
São nove e quinze e o murmúrio cresce: não vai ter sessão, o melhor é devolver o dinheiro. Alguns ameaçam levantar, os vigilantes surgem, gritando para que sentem.
Ninguém pode transitar pelos corredores, nem ir ao banheiro. O baleiro foi convidado a se encostar num canto. Protestou, disse que estava trabalhando, não era espectador.
Não adiantou. Como é, vai começar ou não vai?
Nove e meia, hora da segunda sessão. Passam a gritar, até que um vigilante vai à frente e pede silêncio, a sessão vai começar, que todos tenham paciência, colaborem.
“Não quero mais ficar”, diz um velho, “estou com sono e vou-me embora”. “Lamento muito”, diz o vigilante. “Ninguém vai deixar os lugares. Se todos se forem, o cinema
fica vazio; e se vai fazer a sessão para quem? Sentem e aguardem, que vai iniciar”.
Dez horas e a Suíte Quebra-Nozes não toca. Isto é, começou, tocou alguns acordes, foi retirada. E às dez e meia, já com gente cochilando, as luzes foram diminuídas,
veio um murmúrio de contentamento. Mas ficou nisso, a sala na semipenumbra, as pessoas continuando a querer ir embora, sendo desaconselhadas.
Às onze, a plateia fervia quietamente de irritação. “Como é”, “não é possível”, “precisamos reclamar a alguém”, “onde está o gerente”, “o dono do cinema, o prefeito,
o chefe de polícia?”. “Olhem lá, tem mulher passando mal, o ar é viciado, sufoca”. “Vamos nos organizar, e tirar as mulheres e os velhos.” Um grupo de homens se
levantou, decidido, e se formou no meio do corredor, disposto a percorrer as filas, vendo se tudo estava bem. Três vigilantes se aproximaram. “Que sessão é esta
que não começa nunca”, indagaram os homens organizadores. “Estamos nos preparando com cuidado a fim de que vocês tenham uma bela sessão, com um bonito filme, ao
agrado de todos. Se vocês se precipitam assim, a sessão demora mais, ou pode não começar nunca. “Vão se sentar, senão temos que tomar providências desagradáveis.”
Os homens se sentaram, menos um, que gritou: “Pois que tomem providências.” Foi retirado pela porta lateral, discretamente, como alguém que vai fazer xixi.
Às onze e trinta e cinco, todos bateram os pés e de nada adiantava pedir silêncio. Tocaram a Suíte Quebra-Nozes e houve alívio geral, por pouco tempo, porque todos
entenderam que era um truque. A fim de que eles pensassem que o filme ia começar.
Passaram dez minutos e a plateia voltou a gritar, a bater pés e palmas, a assobiar.
E então, apagaram-se todas as luzes. Houve um momento de hesitação, e fósforos e isqueiros começaram a ser acesos, uma tênue iluminação dominou a sala.
As pessoas se agitaram, se levantaram, sentavam ante os gritos dos vigilantes, prometiam que nunca mais viriam ao cinema, iriam apedrejar os vidros, rasgar os cartazes,
roubar a bilheteria. Amontoaram-se todas no corredor, querendo sair, mas as portas continuavam fechadas.
A Suíte Quebra-Nozes tocou outra vez, o gongo bateu, a Suíte continuou tocando, o gongo batendo, as luzes em volta da tela mudavam de cor, só o foco azulado não
saía da cabine de projeção, enchendo a tela com as imagens tão esperadas.
Os homens que se transformavam em barbantes
Havia uma cidade, grande, desenvolvida. As pessoas que moravam lá eram saudáveis, simpáticas e alegres. Não me lembro o nome da cidade, eu tinha quinze anos quando
passei por ela, levado por meu pai. Nessa época, não me preocupava com o nome, e sim com os lugares propriamente.
Acontece que, certo dia, um habitante desta cidade saiu de casa, pela manhã, dirigindo-se ao emprego. Fez todas as coisas de praxe. Cumprimentou os vizinhos, o barbeiro
da esquina, o vendeiro, os colegas no ponto do ônibus, agradeceu ao motorista, ao ascensorista, sentou-se em sua mesa.
Nesse dia, no fim do expediente, o homem notou que seu pulso esquerdo parecia mais fino. “Bobagem. Impressão. Acho que estou cansado demais.” Foi para casa, jantou,
viu telenovela, dormiu. Na manhã seguinte, o pulso tinha se afinado mais. E suas canelas pareciam de criança. Chamou a mulher. Ela ficou tão impressionada, que o
homem se arrependeu de ter mostrado. Não havia dor, apenas fraqueza.
Partiu para o emprego. Contente, cumprimentando as pessoas e agradecendo ao motorista e ao ascensorista. No meio da tarde, porém, não conseguiu trabalhar. O pulso
estava fino e dobrava-se. Maleável, sem consistência. O homem, envergonhado, puxou a manga da camisa. O mais que pôde, para que os colegas não vissem.
Mas viram. O homem tinha o corpo transformado. A cabeça, única coisa normal, caiu sobre a mesa. O torso não era mais grosso que um lápis, suas pernas e braços, finos
como cordéis. Mas ele estava lúcido, coerente, o cérebro não tinha sido perturbado. Além do impacto, e da surpresa ante o estranho, o homem continuava o mesmo. Levado
para casa, chamaram o médico. E o médico chamou outro médico. Porque:
– Não é o primeiro. É o terceiro, nesta semana.
Os jornais noticiaram, as notícias trouxeram à luz novos casos. Pela cidade inteira acontecia aquilo: as pessoas se adelgaçavam, tornavam-se frágeis. Em pouco tempo,
outro fato surgiu, ao lado dos homens que se transformavam em barbantes. Eram os que se transformavam em vidro. Tinham que ter muito cuidado, ao andar pela rua,
ao trabalhar, porque podiam se quebrar com qualquer batida. Vez ou outra, os homens de vidro se desfaziam. Em plena rua, à vista de todos. Como o vidro blindex que
se estilhaça por inteiro.
Aquela população alegre, saudável, descontraída, começou a viver apavorada. Sem saber se, a qualquer momento, o vírus (seria vírus?) podia atacar. Mudando a pessoa
em vidro ou barbante. Muitos começaram a se mudar, indo para cidades distantes. A Secretaria de Saúde analisou o ar, a água, tudo, em busca das causas. O ar era
bom, não poluído. E as águas vinham de nascentes puras ou de poços artesianos límpidos. Pensou-se que algumas pessoas podiam estar colocando elementos venenosos
na comida ou em caixas-d’água. Investigações nada concluíram.
Até hoje, nada se sabe. A cidade parece estar se habituando com a possibilidade de eventualmente alguém se transmutar. Não causa mais surpresa quando um barbante
é levado pelo vento ou, em dias de chuva, é tragado pela enxurrada. Ou quando os vidros se liquefazem, no momento em que uma pessoa vira a esquina e dá um esbarrão
noutra. A população se acostumou. O homem se adapta às piores condições, conformando-se com os acontecimentos. Naquela cidade, tudo é frágil, a vida humana tem a
espessura de um fio. Ou é delgada como um vidro. Mas isto vai se constituindo na normalidade.
A jovem que desejava entender a utilidade
Assim que entrei na sala, ele apontou para a mesa.
– O que tem aí?
– Um copo.
– Para que serve?
– Para beber.
Ele inverteu a posição do copo. Colocou-o de boca para baixo.
– E agora? O que é?
– Continua sendo um copo. A ordem dos fatores não altera o produto.
– É o que você pensa.
– Não é o que penso. É o que é!
– Um copo? Sim? Mas olhe. Não tem boca. Não tem fundo! Portanto, é um objeto inútil.
– Ah, quer me provar que a definição das coisas depende da posição em que se encontram?
Não me respondeu. Foi até um armário, trouxe uma colher.
– O que é isto?
– Uma colher.
– Para que serve?
– Para comer.
– Mas se não houver comida, é um objeto inútil?
– Claro!
– E se é um objeto inútil, por que todas as pessoas têm em casa gavetas cheias de colheres, garfos, facas? Tem pessoas que compram faqueiros caríssimos, vários faqueiros,
de prata, aço inoxidável. Até de ouro. Por quê?
– Em certos momentos esses objetos são necessários.
Ele não estava me irritando. No fundo eu estava curiosa para ver onde ele ia chegar. Tínhamos marcado a entrevista para saber se eu era qualificada para o emprego.
A secretária tinha avisado: “Seja pontual. Não chegue nem um minuto depois, nem um segundo antes. Chegue no horário previsto.” Combinei com ela, acertamos nossos
relógios, da mesma maneira que se faz em filmes, quando um bando vai roubar um banco e a ação tem de ser cronometrada.
– Você está afirmando que parte do nosso tempo é composta por momentos inúteis. De que maneira poderíamos tornar úteis esses momentos?
– Não sei! Nunca tinha pensado nisso, estou embaraçada. Vim apenas fazer uma entrevista para obter um emprego.
– O emprego é esse! Descobrir os momentos úteis e os inúteis. Eliminar os inúteis, para dar sentido à nossa vida.
Agora, eu estava começando a ficar confusa. Que diabo de emprego seria esse? Qual a minha função, se é que eu teria a vaga. Lá fora, uma fila imensa rodeava o quarteirão,
contornava a praça. Cada um com a sua senha, onde estava marcado o horário.
– Compreendeu a sua missão?
– Ainda não.
– Assim é impossível trabalhar. Tenho um mundo de gente a atender ainda hoje. É preciso ser esperto. O que é isso?
– Uma mesa, claro.
Ele curvou-se, arrancou os pés da mesa.
– E agora?
– É uma tábua.
– O que posso fazer com ela? Pode me servir de mesa?
– Se for em um restaurante japonês, todos sentados no chão.
– Falo deste mundo ocidental em que vivemos.
– Bem, isso é apenas uma tábua. Pode ser serrada e transformada em qualquer outra coisa.
– Você está me dizendo que os objetos podem ser reciclados?
– Podem.
– Posso transformar essa tábua em um copo?
– Impossível!
– Portanto, nem tudo pode ser reciclado.
– Nem tudo.
– Portanto...
– Portanto o quê?
– Eu é que pergunto: portanto?
– Portanto não é pergunta.
– Não posso usá-la em uma indagação?
– Por que não usa outra palavra? Por enquanto, no entanto?
– Têm o mesmo significado?
– Nada tem significado algum. Nós é que damos significados às coisas. Portanto, cada coisa é aquilo que eu quero que seja.
– Acho que vai ganhar a vaga.
– Mas uma vaga tem que estar desocupada. Para ser vaga. Ser útil. Ter sentido.
– Portanto...?
O homem que dissolvia xícaras
Na manhã de terça-feira ele descobriu. Ao apanhar uma xícara de ágate, a xícara se derreteu. Aliás, na verdade, a xícara se dissolveu, desintegrou. A tinta branca
melou suas mãos, enquanto ele contemplava o fenômeno surpreso, assustado e maravilhado. Antes que a mulher viesse para a cozinha, ele limpou as mãos e ficou sentado
diante de uma nova xícara, desta vez de louça. Imaginando como teria sido contemplado com tal propriedade. Não era homem de acreditar em milagres, inspiração divina,
sinal para o escolhido. Nada disso. Procurava, isto sim, tentar estabelecer em sua cabeça os motivos puramente físicos que teriam ocasionado tal reação entre sua
mão e uma xícara. Nesta época em que as transformações são totais, também a matéria tinha sido finalmente atingida pelas mutações que ocorrem sem cessar. E era uma
coisa boa, de repente, ao café da manhã, sentir-se que não era mais um homem comum.
Agora, havia nele alguma coisa que o diferenciava dos outros. Até então, apesar de esclarecido e de ler bastante, ao menos de tentar ler um pouco mais do que o razoável,
do que a média, sentia-se esmagado por um sentimento de frustração inquietante. Era um homem igual a milhares e milhares e morreria assim, não tendo acrescentado
à vida, própria e dos outros, uma parcela mínima de bem ou de mal. Nem era caso de se medir em termos de bem ou mal. Ele sofria por não poder contribuir em nada
para fazer o mundo um pouco diferente; um pouco só bastava.
Sua vida resumia-se no escritório asséptico, montado por um decorador profissional, um homem que ele jamais vira, mas um especialista que percorrera o mundo olhando
outros escritórios e trazendo a sua experiência. A segunda parte de sua vida consistia na casa, igualmente esterilizada, móveis exatos em locais exatos, quadros
predeterminados em lugares determinados e em alturas padronizadas. Nenhuma desorganização, tudo de acordo com os catálogos. Ele falava de negócios no escritório
e de filhos em casa. Os amigos vinham e as mulheres dos amigos falavam de empregadas e os homens de futebol, negócios, carros novos, viagens à Argentina e Miami,
cotação do peso, vantagens que eles teriam em viajar agora.
Tornara-se um hábito, mais do que isso, necessidade, ele vomitar depois de cada reunião em sua casa. Assim que a porta se fechava e o último amigo ia embora, ele
corria ao banheiro, punha tudo para fora. Não pusesse, sofria uma dor de cabeça que permanecia por dias e dias. Então adquirira o costume, salutar, de enfiar o dedo
na garganta e fazer a limpeza. A mulher achava que tinham sido os uísques e comentava como ele bebia pouco e ficava tonto, como se tornara fraco. Jamais tinha ligado
as coisas: reunião, conversas, vômitos.
Depois, as coisas pioraram, ele passou a sair correndo no meio dos jantares e encontros. Ia para o banheiro e punha até bílis para fora. O tempo passou. Aí, à simples
menção de uma reunião com os amigos, o estômago se revirava. A mulher mandou um dia chamar um médico. Obrigou-o a fazer um check-up. Ela tinha visto um comercial
na televisão, os amigos no enterro e comentando como o defunto era tão novo e como podia ter evitado a morte prematura. Claro que o check-up não revelou nada, a
mulher ficou contente e o homem sofrendo com os 3 mil cruzeiros perdidos. Como revelar a verdadeira causa? Quem entenderia? Afinal, não é egoísta, brutal, frio,
cínico, tudo o que há de ruim, um homem que não consegue estar bem com seus amigos, sua família, tudo o mais? Uma vida perfeita, salário alto, dois carros, dois
celulares, uma casa de campo, uma casa de praia, o que ele quer mais?
Ele mesmo não sabia de onde tirara aquela angústia. Ficava morto de remorso ao contemplar o que tinha e não se sentir satisfeito. Chegou a entender que um dos problemas
era que estava tudo no mesmo nível. Que ele navegava num mar sem ondas, a sua vida possuía flutuadores perfeitos, por pior que fossem as vagas ele se balançava pouco.
Onde estava o erro de tudo? Talvez estivesse em tentar entender as coisas, em se situar, querer saber.
Jamais pensara em se matar, era um obstinado e um desafiador. O grande mistério estava à sua frente, era a sua existência. Se a eliminasse, não haveria desafio,
enigmas, jogo. Nem razão de ser. Contemplá-la com inquietação e angústia passou a ser muito importante.
Até que na manhã de terça-feira ele conseguiu dissolver a xícara em suas mãos. Não! Não queria entender o mistério. Ao menos tão já não queria. Nem se importava.
Que as coisas corressem e os amigos viessem. Por algum tempo, quando se sentisse nauseado, apanharia uma xícara de ágate e não se sentiria tão igualado. Mais tarde,
estudaria o rumo a seguir.
O homem que atravessava portas de vidro
Quando chegou à casa do amigo, encontrou-o atravessando o vidro da porta. Era uma casa de concreto aparente, com uma porta larga, em blindex fumê. O amigo ia e voltava,
com uma expressão de surpresa.
– Por que está fazendo isso? indagou o que chegava.
– Não sei, mas é divertido!
Ia, de cá para lá, como se não houvesse vidro, fosse apenas uma projeção, um reflexo.
– Faz tempo que descobriu que podia atravessar o vidro?
– Ontem de manhã, quando cheguei bêbado em casa. Tropecei no capacho de entrada, caí de cabeça, pensei que ia me arrebentar. No entanto, meu corpo ultrapassou o
vidro, fiquei meio para fora, meio para dentro.
– Terá sido alguma coisa especial que você bebeu?
– Chope.
– Só chope?
– E alguns genebras.
– Mais nada?
– Nada.
– Sentiu alguma coisa diferente?
– Só as reações normais. Aperto na bexiga, cabeça zonza. Posso aguentar muito chope.
– Será que o vidro da porta não presta?
(O homem que tinha chegado pensou em mil chavões: a indústria moderna que não se preocupa com o consumidor; produtos mal-acabados, material de carregação etc.)
– Como não presta? Custou dez mil pratas!
(O homem que atravessava também pensava por chavões: o que é caro, é bom.)
Os dois sentaram-se no meio-fio. Não eram inteligentes, mas tentavam pensar no que podia estar ocorrendo. Nenhuma solução, nenhuma ideia. O que tinha chegado era
um comerciante médio, o que atravessava o vidro era um dono de confeitaria que tinha enriquecido e possuía casa, dois carros, era sócio do Tênis Clube, do Rotary
e Lions, possuía cartões de crédito diversos, cheques especiais e nome limpo no serviço de proteção ao crédito da associação comercial. Então, enquanto pensava,
falaram. De loteria esportiva, imaginando o que fariam com o dinheiro, caso ganhassem.
Sentados, viam o dia passar. Não se importavam. Queriam descobrir o que estava acontecendo. Continuaram conversando de futebol e mulheres e preços dos novos carros.
Não tiveram fome, nem sede. O dia se acabou. Aí, cansado, o homem que tinha chegado exclamou:
– Acho que sei.
– Então, o que é?
– É um mistério.
– Mistério?
– Claro, é um mistério. Não vamos descobrir, nunca! Vamos nos calar. Você para de atravessar a porta. Esquece. Senão, começam a falar da gente. Como se tivéssemos
visto disco voador. A vida vira um inferno.
– Eu estava gostando, achei engraçado. Gostaria de atravessar portas para as pessoas verem.
– Você nem sabe em que mundo vai entrar. Muda tudo. Você se torna marginal, excêntrico. Esquece. Os enigmas e as coisas sem resposta só prejudicam um homem sadio,
normal, pai de família como você.
– Quer dizer que esqueço?
– Esquece. Manda trocar a porta. E não se atire pelas janelas, só de brincadeira.
– Vou esquecer, é pena! Estava começando a gostar do meu mistério.
O homem que viu os postes se dobrarem
Andando, notou que os postes estavam vergando, lentamente. Eram de concreto, altos, base grossa, um metro de diâmetro. Vergaram como se fossem de borracha, até que
as lâmpadas se espatifaram no chão. O povo começou a correr, sem saber em que direção corria. Apenas porque quando alguma coisa fora do normal acontece, o povo corre.
O homem é assim, racional. Corre, depois pergunta o porquê.
Não devia ser medo do poste cair em cima, porque eles se vergavam tão devagar, que a gente tinha tempo para decidir sair de lado e deixar o poste cair. Alguns ficavam
paralisados e recebiam o poste na cabeça. Era concreto amolecido, mas pesado. As pessoas desmaiavam ou morriam, sabe-se lá. Ficavam estendidas, de olhos abertos.
Ele se aproximou e experimentou com o dedo. O concreto cedia, o dedo se enfiava no poste. Como geleia de mocotó. O que se passa? Que força é essa que atua sobre
cimento endurecido? Enquanto as pessoas corriam e se escondiam, olhando pelas frestas de janelas e portais, ele, sozinho na avenida, examinava poste por poste. Quando
chegou ao fim da quadra, percebeu que o cimento tinha endurecido outra vez. Mas os postes continuavam no chão, tortos.
Uma das características deste homem era enfrentar as coisas. Os postes que amoleciam era algo a se descobrir. Como? Partir de onde? Da análise da atmosfera naquele
momento preciso? Qualquer coisa teria se passado com o ar, ou a luz, provocando reações inusitadas. Talvez um laboratório de física ou a faculdade de arquitetura
pudessem ajudá-lo.
Foi lá, no dia seguinte. E perguntaram:
– Mas dobrou-se, simplesmente? Como um arbusto? O cimento? Impossível.
– Impossível como? Eu vi. Os postes estão na avenida, dobrados.
Foram até a avenida. A prefeitura, excepcionalmente, tinha derrubado os postes e amontoado num canto da calçada.
– Viu só. Não era nada do que o senhor contava.
– Mas vi! Experimentei com esse dedo. Não estou louco.
– Deve ser o sol, disse um cientista. Ou a poluição, acrescentou outro. Ou raios gama, disse um jornalista.
– Que nada. Os postes amoleceram e dobraram e precisamos saber por quê.
– Por que precisamos saber?
– Acontece uma coisa dessas e ninguém quer saber o porquê?
– Saber certas coisas pode atrapalhar nossa vida. Melhor ignorá-las.
– Preciso ir embora, disse um professor. Quase seis horas, tenho de bater o meu ponto, ou perco o domingo.
Ficou só, o homem. Olhando os postes, com os pés tortos. Começava a escurecer e a prefeitura tinha instalado luzes provisórias. Parecia decoração de Natal. O homem
sentou-se no poste. Nem indignado nem surpreso com as atitudes. Era sempre assim, acomodação geral, ninguém queria nada com nada. Tinha tentado, porque as escolas
possuíam aparelhos e recursos. Mas não usavam, o governo não dava verbas, os aparelhos eram para serem mostrados em aulas teóricas.
Então, o homem sentiu o cimento amolecer. E o poste foi se dobrando, dobrando. Até envolvê-lo. Como gigantesca jiboia dando um abraço mortal. O poste apertou, até
os ossos se estalarem, estalarem. Reduzirem-se a uma pasta.
Mundo
Os homens que não receberam visitas
Os loucos esperaram o sábado inteiro. Comportados, cada um em seu lugar habitual. Uns enrolando os dedos, outros fingindo-se de Napoleão, relinchando como cavalo,
gritando como insanos, andando de boca aberta, babando, rindo à toa, revirando os olhos, falando sozinho, escrevendo no ar, desenhando no céu.
A partir de duas horas, todos esperaram. O portão foi aberto, o pátio varrido, os saguões lavados, os banheiros desinfetados. Colocaram flores de plástico nas cabeceiras
das camas. Todos trocaram roupas, alguns receberam permissão para não usar a camisa de força, as janelas foram abertas para arejar.
Cada louco colocou-se no seu lugar habitual, ali onde os parentes sadios estavam acostumados a encontrá-los. Sentados na beira da cama, deitados em baixo dela, acomodados
em bancos, ou com os bancos acomodados neles, de pé junto aos portais, encostados em colunas, ajoelhados em degraus, bebendo água da fonte, brincando no jardim,
correndo em volta do pátio.
Se os parentes sadios chegavam e não encontravam o louco fazendo as coisas de costume, sofriam grande perturbação. Ansiavam, corriam a indagar o que estava acontecendo,
alarmavam-se ante a possibilidade de estarem curados. Gritavam, arrancavam os cabelos, as mulheres desmaiavam, os homens sofriam palpitações. Às vezes, o próprio
louco ajudava a socorrer, dando calmantes, chamando os psiquiatras de plantão, dando assistência, até que a calma se restabelecesse e os parentes sadios pudessem
voltar para casa.
Neste sábado, os loucos estranharam. Os portões se abriram às onze horas. Não havia ninguém diante dele. O tempo passou, os loucos almoçaram e continuaram a esperar,
agora um pouco ansiosos. Ninguém vinha. O que estava acontecendo? À medida que o dia avançava e os parentes não chegavam, os loucos começaram a ter atitudes estranhas.
Queriam sair do sanatório, queriam telefonar para pedir notícias, andavam agitados de um lado para outro, enrolando os dedos, gingando, murmurando frases incompreensíveis,
gritando alucinados, tentando subir nas paredes, querendo se enroscar nos bocais, como se fossem lâmpadas, procurando se enfiar nos buracos do jardim, como se fossem
formigas, rastejando como cobras, zurrando como animais, sorrindo como débeis mentais, escrevendo no ar, desenhando no céu, revirando os olhos. Todos preocupados.
Faltava pouco para as seis, os portões continuavam abertos e nenhuma visita se aproximava. Ante o barulho de um carro passando na estrada, os loucos se excitavam.
A tensão era insuportável. Estariam loucos os parentes sadios?
Quando os vigilantes fecharam os portões e as sinetas tocaram para todos se recolherem ao refeitório, a tensão explodiu e eles começaram a gritar. E de sua janela,
vendo os loucos a subirem as escadas, torcendo-se naquela dor interna irremediável, o diretor sentiu. Os loucos tinham-se tornado loucos.
O homem que as meninas idolatravam
O rei, viva o nosso rei. Rei, rei, rei.
O Rei, lá de cima, olhava. Abria os braços e elas gritavam. As meninas. Que tinham vindo de todos os pontos da cidade. Pobres e ricas. Tinham deixado suas casas,
os empregos, as escolas. A cidade estava parada por causa do Rei. E ele sabia disso. Por isso sorria e abria os braços.
Viva o Rei, viva o Rei.
Mandara avisar a todos. Subira à sacada. A rua e os prédios estavam cheios. Era como um grande auditório. Havia brigas, palmas, gritos, choros, cantos, lamentos,
uivos, histerismo, desmaios. Cantavam suas músicas. Havia conjuntos, orquestras, bandas. E as pajens, bem embaixo. Na porta do prédio. Fiéis. Via suas roupas coloridas,
os cabelos compridos, ouvia os guizos das pulseiras. As pulseiras marca Rei. Via outras pajens, no meio da multidão, comprimidas, sem conseguirem furar o bloco de
gente.
Para onde olhasse, o Rei via povo. Acenavam com os lenços. Choravam. Bobagem. Pra que chorar? Vou fazer isto porque amo vocês. Amo demais.
As mãos lá embaixo erguiam as imagens. Ele = bloquinhos de gesso branco. Seu rosto nas mãos das meninas, das mães, dos homens.
Rei, rei, abençoa, abençoa aqui.
Aqui.
Não aqui.
Aqui, rei.
Eu te amo, eu te amo.
Ele ergueu as mãos, abençoou. As pajens sacudiram os guizos e o som suave encheu a rua.
Os helicópteros desciam. Jogavam redes. Não me pegam. Os homens nos prédios em frente tentam me laçar. Eu rio deles. Não se laça um Rei. Não, não vou contar para
vocês. Eu amo todo mundo. Mas ninguém me odeia. Eu me sufoco por ser tão amado.
Atirou para o ar um maço de fotos. Elas tinham o fundo prateado. O Rei se atirou também. Tudo flutuou no ar. O papel prateado brilhava ao sol. As pajens do Rei gritaram.
Estavam alucinadas. O Rei gritou: Viva as minhas fãs. Eu vivo por vocês. Amo estas pajens.
E as pajens, firmes, à frente, enquanto o Rei descia. Rápido para elas; lento, uma eternidade para ele. O Rei, quando pequeno, na aula de educação física, saltava
de cinco metros na lona. O professor mandava. Demorava muito para cair daquela altura.
Via os caminhões vermelhos furando lentamente a multidão. Mal se percebia se estavam andando. Fazia horas que os caminhões vermelhos dos bombeiros tinham aparecido
no fim da rua. Não adiantava mais. Tiravam fotografias do prédio em frente, lá debaixo, de cada teto, de todos os edifícios. Lá em cima, tentavam arrombar. Fiz meu
apartamento fortaleza. Minha porta de ferro onde nunca ninguém podia entrar.
A hora. Está chegando a hora. As pajens me esperam. Sempre me esperam, fiéis. Firmes nos auditórios, na compra dos discos, nas caravanas, nas estreias dos filmes.
Com seus uniforminhos, ganhos no quarto de amor, que a companhia de decoração montou. Especial, cheio de bossas.
As faixas. Como tinham demorado a chegar. Mas quando chegaram, vieram aos montes. As faixas e fotografias e cartazes e as imagens de gesso. Tudo erguido para o alto.
As pajens começaram a aplaudir. Som das palmas e dos guizos das pulseiras Rei. E o Rei vinha voando. Parecia que vinha do céu, tão bonito ele vinha. Agora, as fotografias
flutuavam acima dele, como uma nuvem prateada para proteger o Rei. Lindo, lindo, tudo que o Rei faz para nós é lindo, gritavam as pajens. Viva o Rei, o nosso Rei.
Não era publicidade, não era publicidade. A imprensa gritava.
Claro, ele não precisava mais de publicidade.
Foi amor, disse a velha, beijando a estatuetinha branca.
O Rei descia. Eu sempre quis voar, a vida inteira eu quis voar.
As mães choravam, alguns homens sorriam, os fotógrafos fotografavam, os laçadores guardavam os laços, o helicóptero subia, o carro de bombeiros desistia. Todos ficaram
olhando para cima.
Para ele, a descida durou horas. Para a multidão, foi um raio. Caiu no meio das pajens. As pajens se atiraram. Beijaram o corpo. E começaram a arranhar a pulseira,
o colar, o relógio, os anéis, o cinto, os botões da camisa, a botinha, as meias, a camisa rasgada em mil pedaços, a calça, a cueca.
E todo mundo quis. E todo mundo avançou. E todo mundo correu. E quando uns correram, os outros correram atrás, e a multidão inteira começou a correr. As pajens cantavam.
Viva nosso Rei.
Agora está no céu.
Os anjos estão contentes.
Nosso Rei canta para eles.
Os anjos.
Todos os anjos.
Louvem ao Rei para sempre.
Amém.
Cantavam, erguiam as faixas, mostravam os troféus. E corriam.
E ao correr pisavam o corpo do Rei, estendido na calçada. Do alto, ainda caíam as fotografias com fundo prateado.
Agora, estava escurecendo. E todos corriam pela rua, no meio dos prédios cinzentos, pisavam e repisavam o corpo do Rei. Que foi se transformando numa pasta. Cada
vez mais fina.
Uma película apenas sobre a calçada. Pisavam sobre a película e ela se desmanchava. Mais e mais. Até que se dissolveu. Ficou apenas a mancha escura na calçada. Os
sapatos pisavam a mancha, ainda úmida. E a mancha ia embora, aos poucos nos sapatos, sandálias, tênis, pés da multidão que corria para um ponto qualquer da cidade.
Lá da frente, muito à frente, vinha o canto das pajens.
O Rei está com Deus.
Deus ouve o Rei cantar.
Agora, a calçada estava limpa, a rua vazia, nas árvores havia fotografias enroscadas nos galhos. O povo, longe, corria.
Sem saber para onde.
O homem que observou a reunião
5.1 São pessoas estranhas. Reúnem-se em volta de um móvel completamente desconhecido para mim e que assim descrevo: quatro pedaços de madeira, circulares, lisos,
verticais, com a altura de mais ou menos um metro cada um, sustentando uma prancha plana, horizontal.
5.2 Essa reunião é feita numa posição invulgar, onde os corpos são auxiliados na sustentação por objetos que se amoldam a eles e que me parecem feitos de madeira
e couro.
5.3 Imagine, primeiro um homem de pé. Agora, tentem vê-lo com o corpo dobrado na altura do joelho. Além dessa dobra haverá outra, na parte baixa dupla. O homem fica
disposto como um degrau de escada.
5.4 Para não cair, porque nessa ridícula posição não há nenhum equilíbrio, o homem apoia seu corpo no dito objeto que tem uma prancha vertical, uma prancha horizontal
perpendicular ao meio, sendo que a frente desta prancha é sustentada por dois pedaços de madeira, quadrados.
5.5 As costas do homem se apoiam nesta prancha vertical, a parte dupla baixa e parte das coxas se apoia na parte horizontal e as canelas acompanham as madeiras quadradas
de sustentação.
5.6 O que me deixou assombrado foi a flexibilidade dos corpos, pois, como se sabe, é impossível ao ser humano dobrar pernas, braços e virar a cabeça em várias direções.
4.1 Observando atentamente estas pessoas em torno da mesa, pude descobrir que elas moviam a boca, emitindo sons e isto me deixou mais espantado ainda, porque os
humanos não emitem som algum, ao contrário das girafas, que são faladoras e gritadeiras.
4.2 Ao mesmo tempo que produziam sons uns para os outros, numa espécie singular de comunicação (e é sabido que a comunicação entre humanos cessou há 50 anos, por
total embotamento dos órgãos vocais), estes homens colocavam dentro da boca porções de substâncias que tinham aspecto variado. As consistências também eram diferentes.
Havia grãos brancos, soltos, grãos boiando num líquido marrom, rodelas vermelhas com pontos amarelos, pedaços do que me pareceu couro.
4.3 Com o auxílio de objetos que tenho agora em mãos, rotulados com etiqueta para o devido exame em nossos laboratórios, aqueles seres colocavam as substâncias na
boca.
4.4 Qual a necessidade daqueles objetos, se as substâncias poderiam mais facilmente serem levadas à boca utilizando-se apenas os dedos das mãos?
4.5 O primeiro objeto tem 24 cm de comprimento. Uma parte é uma lâmina de aço com um bordo cortante e outra parte é de madeira. O segundo objeto é também de aço.
Uma lâmina fina que se estende por 20 cm e de repente se abre em quatro pontas. O terceiro objeto é composto também de uma lâmina fina que numa das pontas é mais
largo e côncavo.
3.1 Estas substâncias eram colocadas em recipientes circulares, brancos, feitos de matéria rígida. Levo exemplar para exame pelos nossos cientistas.
3.2 Estes recipientes são de vários tamanhos. O que estranhei é que as substâncias eram transferidas de recipientes de cor cinza, brilhante, para estes brancos.
Por que não usavam diretamente os recipientes cinzas?
3.3 Finalmente, amostras das substâncias que as pessoas levavam à boca. Como me pareciam orgânicas e sujeitas a perecibilidade congelei todas. Qual a finalidade
destas substâncias? Por que eram colocadas na boca com tanto prazer?
O homem que espalhou o deserto
Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e ia para o quintal, cortando folhas das árvores. Havia mangueiras, abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até
mesmo jaboticabeiras. Um quintal enorme, que parecia uma chácara e onde o menino passava o dia cortando folhas. A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não andava
em más companhias. E sempre que o menino apanhava o seu caminhão de madeira (naquele tempo, ainda não havia os caminhões de plástico, felizmente) e cruzava o portão,
a mãe corria com a tesoura: tome, filhinho, venha brincar com as suas folhas. Ele voltava e cortava. As árvores levavam vantagem, porque eram imensas e o menino,
pequeno. O seu trabalho rendia pouco, apesar do dia a dia, constante, de manhã à noite.
O menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia determinado, à medida que o tempo passava, a acabar com as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele
não queria ir à escola, não queria ir ao cinema, não tinha namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas qualidades e tipos. Dormia com elas no quarto.
À noite, com uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as para as tarefas do dia seguinte. Às vezes, deixava aberta a janela, para que o luar brilhasse
nas tesouras polidas.
A mãe, muito contente, apesar do filho detestar a escola e ir mal nas letras. Todavia, era um menino comportado, não saía de casa, não andava em más companhias,
não se embriagava aos sábados como os outros meninos do quarteirão, não frequentava ruas suspeitas onde mulheres pintadas exageradamente se postavam às janelas,
chamando os incautos. Seu único prazer eram as tesouras e o corte das folhas.
Só que, agora, ele era maior e as árvores começaram a perder. Ele demorou apenas uma semana para limpar a jaboticabeira. Quinze dias para a mangueira menor e vinte
e cinco para a maior. Quarenta dias para o abacateiro que era imenso, tinha mais de cinquenta anos. E seis meses depois, quando concluiu, já a jaboticabeira tinha
novas folhas e ele precisou recomeçar.
Certa noite, regressando do quintal agora silencioso, porque o desbastamento das árvores tinha afugentado pássaros e destruído ninhos, ele concluiu que de nada adiantaria
podar as folhas. Elas se recomporiam sempre. É uma capacidade da natureza, morrer e reviver. Como o seu cérebro era diminuto, ele demorou meses para encontrar a
solução: um machado.
Numa terça-feira, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a derrubada do abacateiro. Levou dez dias, porque não estava habituado a manejar machados, as mãos
calejaram, sangraram. Adquirida a prática, limpou o quintal e descansou aliviado.
Mas insatisfeito, porque agora passava os dias a olhar aquela desolação, ele saiu de machado em punho, para os arredores da cidade. Onde encontrava árvore, capões,
matos atacava, limpava, deixava os montes de lenhas arrumadinhos para quem quisesse se servir. Os donos dos terrenos não se importavam, estavam em vias de vendê-los
para fábricas ou imobiliárias e precisavam de tudo limpo mesmo.
E o homem do machado descobriu que podia ganhar a vida com o seu instrumento. Onde quer que precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou
uma secretária para organizar uma agenda. Depois, auxiliares. Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar machados, abrigar seus operários devastadores.
Importou tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou assistentes fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa. Eles voltaram peritos de primeira linha.
E trabalhavam, derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé. Onde quer que houvesse uma folha verde, lá estava uma tesoura, um machado, um aparelho
eletrônico para arrasar.
E enquanto ele ficava milionário, o país se transformava num deserto, terra calcinada. E então, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel técnicos especializados
em tornar férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar árvores. E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do machado ensinava ao filho a sua profissão.
O homem e as pedras que gritavam
Caminhava, pensando no seu desemprego. Chutou uma pedra e a pedra gritou. O grito se confundiu aos muitos ruídos da rua, naquela hora: ônibus, apitos, músicas, buzinas,
máquinas, britadeiras, passos. De modo que o grito da pedra não foi ouvido. O homem continuou, preocupado com o desemprego e a sua idade: 40 anos.
Quando passou pela construção, sentiu uma pedra passar zunindo. Percebeu, ou pensou que percebeu, outro barulho qualquer relacionado com a pedra. Não prestou atenção,
a pedra caiu aos pés, ele chutou. Estava na esquina, quando identificou: a pedra tinha gritado. Não, não era possível. Uma alucinação devido ao desemprego, aos problemas.
Estava bastante lúcido, não delirava. No entanto, voltou. Era um homem curioso e interessado. Por ser curioso e interessado perdia os empregos, queria ir além da
superfície e os chefes não gostavam. Cada um no seu lugar, fazendo o que deve. Direitos e deveres, proclamavam. O dever de um funcionário é ater-se ao seu trabalho,
nada mais.
A pedra tinha caído junto ao tapume. Estavam construindo um prédio de 80 andares e havia placas e faixas comemorativas, um orgulho para a cidade. As pessoas que
passavam diante do prédio costumavam bater palmas e gritar de alegria. Uma característica do paulistano era essa: satisfazer-se com as grandes obras de cimento e
ferro, principalmente se fossem nas cores favoritas, o cinza e o preto, alternados com o marrom-escuro e o roxo quase negro.
Como reconhecer a pedra que havia gritado, se é que uma pedra tinha gritado? Havia muitas dessas pedras que são misturadas ao concreto grosso. Começou a pisá-las
mansamente, preocupado com a sensibilidade das pedras. As pessoas olhavam e seguiam, depois começaram a parar, vendo aquele estranho balé. Então, ele localizou.
Sob a pressão do pé, a pedra gemeu suavemente. Para se certificar, ele comprimiu mais e a pedra gritou. Verdadeiramente. Para espanto dos que olhavam.
Ele enfiou a pedra no bolso, e partiu. Ia levá-la para casa, estudá-la. Teria de caminhar, estava sem dinheiro. Na esquina da praça, viu um pedregulho negro, opaco.
Pisou nele. O pedregulho gritou. O homem se abaixou, colocou-o no bolso. Se duas gritam, outras hão de gritar também. Estava excitado, esqueceu o desemprego, esbugalhou
os olhos à procura de pedras. Foi encontrando, chutando, apanhando as que gritavam. Havia muitas. Mais do que ele pensava. Com os bolsos cheios, ameaçando arrebentar,
amontoou as pedras nas mãos. Num supermercado, pediu um saquinho. Numa loja, conseguiu uma bolsa de plástico. Eram pedras gritadoras aos montes. Demais. Pesadas.
Além disso, amontoadas umas sobre as outras, as pedras pareciam se sentir incomodadas e reclamavam. As pessoas que passavam olhavam para ele e para a bolsa e o saco
que emitiam estranhos ruídos, não identificáveis. Nem humanos, nem animais.
À medida que andava, encontrava mais pedras e menos gente. As pedras estavam em montinhos nas esquinas, nas portas dos bares, isoladas em meio à calçada, perto dos
pontos de ônibus. Menos gente, mais pedras. Até que a rua ficou deserta. Ele só via pedrinhas, pedrões, de todas as cores, tipos, formas. Pedras nas portas, janelas,
nos balcões dos cafés. O homem sentiu que suas pernas se encolhiam, estava sendo difícil andar. Tudo escurecia. Percebeu que se arrastava pela calçada.
Começou a rolar. Devia estar na ladeira que conduzia ao seu prédio. Rolava, como se fosse algo redondo fácil de rolar. A calçada era irregular, ele saltava, mudava
de direção, batia numa parede, voltava. Nenhuma angústia, apenas uma sensação desagradável de que era uma coisa inteiriça, compacta.
Até que parou de rolar, sem saber onde estava.
E sem se importar com isso, com o tempo e com o espaço, como se tivesse a eternidade à sua frente.
O homem que precisava nascer
No primeiro dia de aula, quando a professora se dirigiu a ele, perguntando o nome, sentiu a classe esperando, olho na resposta.
A língua travou.
A professora achou que era desconsideração: “O nome, menino!”.
Sob pressão, ele piorava.
Ficou mudo, aterrorizado. Ela ergueu a régua de madeira. O nome. Mas ela sabia o nome, todos sabiam, todos se conheciam. Por que teria de repetir? Se as pessoas
sabem, por que é preciso ficar dizendo? Que diferença faz?
Ele não entendia o próprio medo, o que o levava a se recolher numa casca. Não gostava disso, no fundo da casca era escuro, sem saídas. Sofria.
Parecia tão fácil. Era só dizer o nome. Na classe, alguns até se orgulhavam, diziam o nome e olhavam em torno, recebendo a admiração, como se fossem aplausos.
Então, por que aquilo se passava com ele? Qual a razão? O que o amarrava?
Ah, se a gente soubesse as coisas que estão dentro! Com quem poderia conversar sobre o assunto?
Crianças não falavam de problemas com ninguém.
Crianças não tinham problemas.
Crianças cresciam, brincavam, estudavam, obedeciam, iam à igreja, temiam a Deus, aos pais, aos professores, temiam os cachorros de rua, os trilhos dos trens (em
um dia remoto, um menino fora morto por uma locomotiva), a formicida Tatu.
O sapateiro vizinho tinha se suicidado com formicida, veneno para formigas, e a mãe o levara para ver, apontando para o morto de olhos esbugalhados: “Era um descontrolado,
irresponsável, olha no que deu”.
A régua desceu. Se não der o nome hoje, não vai ter nome. Nunca terá. Sem-nome. Assim vão te chamar.
O sem-nome sentou-se, furioso.
Não era um sem-nome.
Todos iriam ver que tinha nome, só não conseguia dizer. E por que não dizia?
Uma noite, na aula suplementar de inglês, ele se apaixonou pela moreninha de olhos puxados. Ela o incentivou. Ele queria aprender inglês para entender melhor os
diálogos dos filmes, as legendas eram ruins. Não perdia sessão, via o mesmo filme cinco vezes. No cinema, era ele e a tela. Ele e os personagens. Um dia, o filme
A Rosa Púrpura do Cairo mostrou o outro lado da realidade. Os personagens podiam sair da tela e vir até ele. Aquela gente fabulosa podia ser sua amiga.
Mas aquilo não era vida real, descobriu.
Nas aulas, a moreninha incentivava.
E ele, paralisado. Morto de desejo e amor. Querendo estar ao lado dela, pegar em suas mãos, como faziam os outros que namoravam nas ruas silenciosas. Não sabendo
como agir, não conhecendo o timing da sedução, ele demorou.
E ela se distanciou.
Ninguém é obrigado a esperar por indecisões.
Uma noite, no cinema, ele ouviu uma das amigas da moreninha dizer: “Acham que ela ia namorar o mudo? Nunca soube o que ele pensava! Ele nunca assumiu nada”.
Será que ela não sabia o que ele pensava? Não estava em seus olhos, no rosto febril, ansioso?
Ele pensou nisso. Era um mudo que falava. Paradoxo.
Assim, cresceu e viveu.
Não se pode dizer que viveu.
Existiu tentando fazer coisas em que não precisasse falar, contar de si, revelar o que tinha por dentro.
Sem saber que assim é impossível. É preciso se exprimir, convencer, dizer, dar nome às coisas. Aos sentimentos, às emoções. Dessa maneira, perdeu, sempre perdeu.
Sabendo que não tinha direito de fazer outras pessoas viverem dentro desse seu mundo particular. Feria as pessoas, dilacerava.
Ele se julgou muitas vezes um homem imaginado.
Não existia.
Era uma fantasia. Homem virtual, incapaz de trazer felicidade, dar segurança, bem-estar, entender questões do coração, da alma, da mente.
Sofre quem ama uma pedra.
Incapaz de ser, ele não era.
O coração, apesar da ânsia de viver, da inquietação, parecia oco. Não era.
Quem era ele?
Uma pedra, um homem ou nunca tinha nascido?
Ansiava por nascer, ser vivo.
Indagação
O homem que descobriu o dia da negação
Para Ilse
Pegou o táxi, deu a direção. O chofer:
– Para lá, não vou.
– Então, me leve para onde quiser.
Estava cansado de toda aquela situação e resolvido a se entregar, para ver o que ia acontecer. Tinha começado na feira, pela manhã. A mulher pediu para fazer compras,
lá foi ele. De sacola, percorrendo as barracas habituais. Algo estranho ocorreu, na primeira banca. A de tomates.
– Me dá meio quilo. Do tomate verde.
– Não, se quiser levar, leva do maduro.
– Quero do verde e bem grande.
– Só entrego do maduro, e pequeno.
Não discutiu. Achava o pessoal da feira grosseiro. Tentou a outra banca.
– Meio quilo de tomate verde.
– Não tem.
– E o que é isso aí?
– Não sei.
– Como não sabe?
– O que o senhor quer? Me amolar?
– Comprar.
– Não estou vendendo nada.
– Então, o que faz aí?
– Vendo tomates. Que pergunta!
Ele achou melhor continuar. Na próxima banca decidiu mudar de tática.
– O que o senhor está vendendo?
– O que acha que estou vendendo?
– Eu é que perguntei.
– O que é isso?
O homem exibia um tomate, grande e verde.
– Um tomate.
– Engano! Não é um tomate.
– O que é?
– Eu é que quero saber. Estava vendendo tomates. De repente, apareceu isto.
– Mas é um tomate.
– Se eu vender isto ao senhor, o senhor compra?
– Compro! Pode me dar meio quilo.
– Não posso. Se a fiscalização me pega vendendo isso, me multa.
– Mas quero comprar. De livre e espontânea vontade.
– O senhor não sabe que ninguém faz nada de livre e espontânea vontade?
– Eu faço.
– Aposto que foi sua mulher quem mandou o senhor comprar tomates.
– Foi.
– Está vendo?
Partiu, confuso. Tinha de levar tomate, ervilha, salsicha, couve, laranja, um abacaxi, dois abacates, alface e ovos.
– Isto é abacate?
– O senhor não conhece abacate?
– Não.
– Está brincando comigo?
– Estou?
– Então, vá comprar noutra barraca. Não estou para brincadeiras.
Na próxima, a mulher tinha cara simpática, sorridente. Tentou. De modo diferente. Entregou a lista a ela.
– A senhora tem tudo isto?
– O quê?
– As coisas desta lista?
– Esse é um papel em branco.
– Como em branco? Eu mesmo escrevi tomate, ervilha, salsicha, couve, laranja, um abacaxi, dois abacates, alface e ovos.
– Então, veja.
Olhou. Estava tudo lá, escrito com sua letra firme. De caneta tinteiro, pena grossa.
– A senhora não quer me vender, não é?
– Pode me dizer por que não quero? Pode me dizer para que estou aqui?
– Mas recusa me dar as coisas que quero.
– Eu? O senhor acaso pediu?
– Mostrei a lista.
– Pedir é uma coisa. Mostrar uma lista é outra. Eu também posso sair por aí mostrando lista e brigando com as pessoas.
Ela gritava e juntou gente. O dia não estava para ele, mesmo. Sentiu a cabeça quente. O melhor era voltar para casa. Foi caminhando, na esquina, um guarda segurou-o.
– Onde pensa que vai?
– Para casa.
– A saída não é por aqui.
– Desde quando os quarteirões têm entrada e saída?
– Mesmo que não tivesse, olha a placa de contramão.
– Estas placas são para veículos.
– Qual a diferença entre um veículo e um homem?
Ele se indagou se o guarda não estaria louco. Ou era mais um a brincar com ele. Não, hoje não era primeiro de abril. Ou teriam trocado o dia da mentira, do engano?
Se tinham, ninguém ficou sabendo. Culpa dele que não lia os jornais diariamente, como faziam todos na repartição. Era até demais. Ninguém trabalhava. Jornais, revistas,
livros, as velhas a tricotar, loteria esportiva e o público esperando nos guichês.
– Está vendo? O senhor não sabe me dizer a diferença.
– Que bobagem. Não tem nada igual. Nada. Tudo é diferente.
– O senhor então não sabe que a diferença está nos dentes e nas garras?
Dentes e garras. “Estou sonhando, não é possível, as pessoas dizem coisas insensatas. Ninguém está batendo bem. O melhor é voltar para casa, me encerrar no quarto,
esperar o dia passar. Vai ver é essa nuvem negra de poluição. Está afetando as pessoas.” Foi se afastando, sabendo que o guarda o vigiava, dobrou a esquina, deu
a volta. Entrou em casa com a cesta vazia, foi guardá-la na despensa. A mulher costurava, não perguntou nada. Ele também não disse nada, achou melhor. Difícil explicar
o comportamento das pessoas na feira. Seria a alta de preços que tinha deslocado os cérebros? Foi para o escritório, bateu o interruptor, a luz não acendeu. Chamou
a mulher.
– Queimou a lâmpada?
– Queimou? E como está acesa?
– Está acesa?
– O que há? Ficou cego?
Ela passou a mão em frente aos olhos dele. O homem se irritou.
– Que cego coisa nenhuma. O que há é um complô contra mim.
– O que é complô?
Sempre tinha sido muito burra. Mas ele a engravidara – se julgara responsável – e acabou se casando. O filho nasceu morto. E desde esse dia ela não saíra mais de
casa. Nem gostava quando ela saía. Sofria porque ele deixava a casa todas as manhãs, ia para o trabalho. “Arranja um emprego para trabalhar em casa”, pedia. Citava:
fazer cestas de palha, colar saquinhos de papel, remendar sacos de estopa, encadernar livros, tecer assentos de cadeira. Insistia, não deixava de pedir um só dia,
acabaria por vencer, pelo cansaço.
– O que é complô?
Se não explicasse, ela perguntaria o dia inteiro, a semana, o mês.
– É uma conspiração.
– O que é conspiração?
– As pessoas se juntam e resolvem prejudicar alguém, matar uma pessoa.
– Quem é que está fazendo isto contra você, benzinho?
– Ninguém. Eu é que acho.
– Mas por quê?
– Anda tudo muito estranho.
Súbito ela deu um grito.
– O que é isso, benzinho?
– Isso o quê?
– Olha no teu olho. Está tudo branco.
– Branco?
– Branco. Não tem a bolinha, não tem nada. Parece uma poça de leite.
Aparentemente, ele não sentia nada. Enxergava bem, não tinha dor de cabeça, nem tonturas. Coisas de vista sempre dão dor de cabeça.
– Olhou?
– Como vou olhar? Preciso de um espelho.
– Você não sabe olhar com um olho dentro do outro?
– Não. Você sabe?
– Claro que sei. Olha.
O homem, abismado. Viu e não acreditava no que ela estava fazendo.
Não acreditava no que ela estava fazendo. Um olho estava avançado, olhando para dentro do outro. Como aquela mulher burra podia fazer aquilo? Com quem aprendera?
Começou a imaginar que havia mais de uma coisa errada. Ou aquelas coisas é que estariam certas e ele errado? Todos os que estavam à sua volta concordavam. Porém,
as coisas que ele dizia e fazia não combinavam. Foi até a folhinha ver que dia era. O calendário estava em branco.
– O que foi feito da folhinha?
– Quem precisa de folhinhas?
– Eu preciso.
– Para quê?
– Para saber o dia.
– E o que ganha com isso?
– Ganhar não ganho, mas me localizo.
– O que adianta se localizar?
– Não adianta nada.
– Então, não precisa da folhinha.
– Não posso ficar sem saber em que dia estou.
– Pois vai. Não é dia nenhum. Os dias, separados, nomeados, não existem mais. Agora, todo dia é dia. Não é sensacional?
Em teoria era. O que não combinava era sua mulher dizendo essas coisas. Onde tinha achado? Não se ajustava a ela. Desistiu da folhinha, apanhou um jornal, não tinha
data. Reparou também no relógio. Não só estava parado, como o mostrador era absolutamente em branco.
– E o relógio?
– Levaram os números.
– Levaram? Que coisa esquisita. Quem havia de levar os números?
– O relojoeiro oficial.
– O que vem a ser isso?
– Um homem encarregado de levar os números dos relógios.
– Como vou ver as horas?
– Você não precisa de horas, nem dias. Nada.
– Claro que preciso. Agora, por exemplo, preciso saber da hora para ir à repartição.
– Bobo, como não existe mais hora, você pode chegar a hora que quiser. Quem vai te acusar de ter chegado cedo ou tarde? Baseado em quê?
“Não, essa mulher não é burra, não. Eu é que pensava. Nunca prestei atenção nela. Nunca prestei atenção em nada ao meu redor. Vivia para aquela repartição. Preocupado
com a hora, com preencher todos os papéis, obedecer aos regulamentos, atender ao público com eficiência, obedecer aos superiores, manter limpas as gavetas e a mesa,
o arquivo em ordem e o fichário perfeito. Claro. Que diferença faz chegar quinze minutos mais quinze minutos menos? O que importa é o que fiz para mim nestes quinze
minutos. Ou o que fiz para mim nestes anos todos? Quando a gente nasce, colocam a gente num trilho. Chega uma época em que temos de decidir: continuar no trilho
e não ter surpresas, inseguranças, angústias. Ou saltar dele, correr pelo aterro, entrar nos atalhos e descobrir os próprios caminhos. Às vezes, mais rápidos, eficazes.
O trilho não traz surpresas, sempre se sabe que haverá estações pela frente. E gente para nos conduzir e nos cuidar. Os atalhos provocam receio. Não importa em que
altura a gente se decida saltar dos trilhos. O importante é saltar fora deles, abandonando bagagens. Porque nessa bagagem estão todas as coisas que nos prendem,
nos amarram. Acho que começo a entender o dia de hoje. Eu pensava que estavam todos mentindo. Que era um dia de mentira. Ou, então, um dia em que todos diziam aquilo
que vinha à cabeça. Não. É o dia da verdade. Todos decidiram mostrar as coisas como elas são. Não sei por que razão, nem vou perder tempo em descobri-la. E é curioso
esperar o que acontece, as verdades restabelecidas. Pelo visto, hoje vai dar grande confusão. Os homens conseguirão suportá-la? Como eu não suportei?”
Agora no táxi, enquanto não sabia para onde ia meditava sobre tudo e sentiu-se contente. Com a mesma alegria de um arqueólogo que encontra sinais de civilização
numa escavação. Dispôs-se a estudar com calma e profundidade a nova situação que se apresentava.
O homem que resolveu contar apenas mentiras
Naquela manhã, acordou disposto a só contar mentiras. A não dizer uma única verdade. A ninguém. Nem à própria mulher. Assim, quando afirmou: “Vou para o trabalho”,
empregou a primeira mentira. Não ia. Tinha resolvido faltar, esquecer o escritório, a mesa, os papéis. Parar, ficar na rua.
Quando disse bom-dia para o zelador do prédio, também mentia, porque odiava o zelador, um oportunista, que não conservava o prédio, fazia fofocas entre empregadas,
pedia gorjetas, ganhava porcentagem na compra de materiais de limpeza.
Quando disse o endereço ao motorista do táxi, também mentia, não pretendia ir para aquele lugar. O chofer exigira o destino porque as pessoas vivem exigindo coisas.
E nem sempre temos vontade ou possibilidade de satisfazer. As exigências crescem e se tornam parte de nossa vida diária. Nos acostumamos com elas, nos acomodamos,
sem perceber que cada concessão é um pedaço da gente mesmo, envenenado, que a gente engole.
Quando o homem entrou no bar e pediu café, mentia, não queria café. Estava apenas fazendo um teste, enquanto observava o gesto maquinal do empregado que destacava
uma ficha e a entregava. Será que o funcionário, alguma vez, imaginou que alguém pudesse não querer café? Pedir, por pedir, não querer? Nem sequer desejar ver a
xícara fumegante?
Com a ficha na mão, saiu pela rua. Outra mentira, não queria ficar na rua. Se entrasse no escritório, seria mentira maior. Odiava o escritório, o emprego, os colegas.
De duas mentiras, preferiu a menor, ainda que, ponderando, descobrisse que, ficar com a mentira menor era igualmente fuga, mentira, porque nesse dia tinha decidido
mentir. E quando se decide uma coisa, o melhor é levá-la até o fim.
Andou. Pensando como a cidade era bonita com seus prédios batidos de sol e os vidros dando mil reflexos. Bonita com a gente que andava apressada para trabalhar e
construir alguma coisa. Bonita na tranquilidade da vida, no sossego das casas, na calma que se estampava nos rostos das gentes. Bonita no que oferecia de futuro
e de perspectivas. Bonita nos carros que andavam em fila, um atrás do outro, sempre para a frente, sempre para a frente. Bonita na fumaça negra que escapava dos
veículos e subia em espirais, milhares de fumaças reunidas, formando uma bela nuvem negra, como um negro véu, que surgia sobre a terra, empanando o céu.
Andou, sem querer andar.
Viu, sem querer ver.
Sentiu, sem querer sentir.
Cansou, sem querer cansar.
Tudo uma grande mentira neste dia. Como mentira era a vida que ele vivia, falsificada, pré-fabricada, exaurida, imposta. Suada. Que repousante era viver este dia
da mentira. Negar tudo. Reviver.
Andou até a hora de voltar para casa. Outra mentira, não queria voltar para casa, o lar, o aconchego, o refúgio, a fuga. A verdade de sua vida encerrada entre aquelas
quatro paredes, a família, o amor, o carinho, o aconchego, o lar, o refúgio, a fuga, a realidade.
Não voltar, e andar. Percorrendo ruas, entrando nos prédios, conversando com pessoas. No entanto, não tinha vontade de conversar. Sabia que precisava, mas não tinha
vontade de falar. Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática. O medo é que um dia desacostumasse e perdesse a capacidade de se comunicar. Como andava
difícil se comunicar. Ficou parado na esquina, esperando a noite passar.
Quando o dia chegou, tinha acabado o período da mentira, podia enfrentar de novo a verdade. E disse bom-dia ao porteiro, deu o endereço ao motorista do táxi, ligou
para a mulher e o patrão. Disse no emprego que estava doente. E, na verdade, estava.
A mulher que contava portas
Ela ia para o trabalho a pé, contando tudo. No primeiro dia, quando descobriu o prazer da contagem, marcou em seu caderninho 113 portas entre bares, residências,
lojas, garagens, oficinas mecânicas, escritórios de paisagistas, assessorias para o mundo da moda, lanchonetes. Percebeu que, às vezes, entre uma casa e outra existia
um corredor estreito que levava a uma vila nos fundos. Portanto, havia mais portas a contar, o número estava incompleto.
No dia seguinte, entrou nos portões, foi aos fundos, completou as estatísticas, com exceção de dois lugares que estavam trancados. Bateu, tocou a campainha. Sem
resposta. Deve ser gente que trabalha fora, devo voltar à noite. Ainda assim não conseguiu entrar. Pelo interfone, vinham perguntas ásperas:
– O que quer?
– Sabe... é difícil explicar... preciso conversar cara a cara... sabe... estou contando as portas.
– Contando portas? Qual é a tua?
– Preciso saber quantas portas existem na vila!
– Não tem mais o que fazer?
– Por favor! Por favor! Nem precisa vir aqui. Me diga quantas casas tem a vila, quantas portas dão para fora.
– Vou chamar a polícia!
– Por que polícia?
– Fica sondando para ver se pode roubar. Roubo anunciado! Essa não! Está impossível viver na cidade.
Desligaram. Graziela voltou para casa, abriu seu caderno. Nele havia de tudo. Ideias, trechos de cartas para o namorado, pétalas de flores. Como descobrir? A menos
que pedisse em alguma casa da frente que alguém a deixassse entrar. Olhando pelos fundos, contaria as portas. Nova tentativa. Inútil.
– Quer entrar em casa para quê?
– Para contar as portas da vila.
– Contar portas? O que você é? Uma fiscal? Policial? Algum departamento desconhecido do governo? Alguma coisa relacionada com impostos novos? Tem autorização, identificação,
uma carta que explique os motivos?
– Uma carta?
– Uma carta, sim! Da polícia, por exemplo. De um juiz, de alguém que responda pela sua idoneidade.
(Idoneidade? Que palavra?)
– Com uma carta poderei entrar?
– Não prometo, mas fica menos suspeito.
Graziela saiu em busca da delegacia. Semanas antes ela tivera um problema aborrecido com repartições, depois que um maluco cruzou uma rua a toda e bateu em seu carro.
Foi um tal de andar para lá e para cá levando os documentos mais estapafúrdios, que ela quase desistiu. A gerente da seguradora solicitou a licença de uso de esmaltes
de cores vivas. Diga-se de passagem que ela exibe as unhas mais alegres, agitadas, excitantes que se vê na sua repartição. A cada semana ela muda as cores, produz
tons inusitados. Existe até uma Bolsa do Esmalte, com um bolão para descobrir a cor que ela vai usar. Em sete anos de casa, jamais repetiu. Adora ver o espanto dos
colegas quando exibe as unhas, na manhã de quarta-feira. O bolão virou uma bolada, sem trocadilho. A turma usa tíquetes-refeição como dinheiro. Agora, ela promete
pintar também as unhas dos pés, e ter um celular colorido nos mesmos tons dos cintos e dos brincos.
Bem, na delegacia, ela esperou longo tempo, distraindo-se com os tipos que entravam. Não identificando quem era marginal e quem era policial. Havia estranha simbiose
na maneira de vestir, andar, nos esgares da boca, na gesticulação, na desconfiança que emanava de cada olhar, na agressividade do falar. Finalmente, a escrivã, de
belos olhos azuis, a atendeu.
– Qual é o problema, minha cara?
– Preciso de autorização para entrar numa casa.
– Uma ordem judicial? A senhora é policial?
– Senhorita.
– O termo de respeito que o Manual me determina é senhora.
– Não sou policial.
– Detetive particular?
– Também não. Meu caso é particular.
– E qual é o caso?
– Estou contando as portas da minha rua e me faltam computar duas vilas cujos portões estão trancados.
– Contando portas? É um recenseamento?
– Não, uma pesquisa particular.
– A senhora é cientista, antropóloga, socióloga, paleontóloga, arqueóloga, museóloga... É o quê?
– Nada disso. Sou funcionária de um escritório de arquitetura, desenho fachadas.
– Ah, é uma pesquisa sobre arquitetura? Por que precisa contar as portas?
– Reservo-me o direito de guardar a informação.
– Pois reservo-me o direito de não conceder autorização. Mesmo porque não existe amparo legal, você não se enquadra no 239 nem no 174 nem no 768 nem no 789 nem no
456738 nem no 563890 nem no 3425 nem no 1324 nem no 78564 nem no 8976...
– Chega, chega! Por favor, me autorize entrar numa casa e olhar pela janela dos fundos...
– Ah, pode ser o 3564789095, pode ser. Espere um pouco! Preciso ir aos arquivos. Já houve um caso, então tem precedente. Volte aqui, terei a informação, o documento.
– Quando?
– Hoje é julho de 1999. Venha no 4 de maio de 1999.
– Está brincando? Andar para trás?
– Não. Sério. Tenho que buscar nos livros.
– E vamos voltar no tempo? Como?
– Não sei. Minha agenda é assim, só tem vagas para trás. Por que as pessoas se recusam a voltar nos dias, a percorrer de novo os próprios passos?
– Não entendo... O que está dizendo?
– Nem queira entender... não conseguirá. Dependo dos livros.
– E os computadores?
– As coisas mais antigas se recusaram a ser copiadas nos computadores. A gente digitava o texto, salvava, ele deletava sozinho. Tentamos escanear as páginas, mas,
quando abríamos os arquivos, deparávamos com páginas em branco. Desse modo, só nos resta consultar os livros. Porém, os funcionários estão de tal modo acostumados
com a informatização que não sabem consultar livros. Terei de arranjar alguém inteligente, curioso e de boa vontade que faça um curso de leitura, que aprenda a virar
as páginas, que saiba ler palavras escritas à mão em lugar de letras digitadas. Só que para isso terei que arranjar verbas e os tempos são de ausência de inflação
e recessão profunda. Ou, então, a senhora consiga um patrocinador, uma empresa que arque com os custos...
Desanimada, Graziela preparou-se para ir embora. Apoiou as mãos na mesa e a escrivã reparou em suas unhas.
– O quê? Suas unhas são coloridas! Esplêndidas!
– São...
– Adoro unhas coloridas, mas minha mãe, depois meus maridos, depois meus filhos, depois a organização policial nunca me autorizaram a pintá-las. Daria tudo para
ter unhas coloridas. Qual a sensação?
– Nem queira saber! Deslumbrante, cheia de perplexidades. Conto se você me autorizar a entrar na casa.
A escrivã cerrou os belos olhos azuis e começou a pensar.
O homem que devia entregar a carta
Era sua primeira missão como office-boy. Estava com vinte anos, mas não tinha conseguido outro emprego. Apesar dos jornais garantirem que não havia crise, ele batera
o nariz em dezenas de portas e tinha enfrentado filas de doze quilômetros. O patrão pediu que ele entregasse uma carta, com protocolo. Avisou: a pessoa que receber
precisa assinar esse papelzinho. Só entregue ao destinatário, a ninguém mais. Essa carta é da maior importância.
Foi. Ao chegar, verificou o endereço: era um terreno baldio. Comparou, indagou. Não havia engano mesmo. O número correspondia ao terreno. Voltou ao patrão, contou.
O patrão:
– Eu sei que é um terreno. Mas vão construir um prédio ali.
– E o que faço?
– Você entrega a carta, como mandei.
O patrão, homem ocupado, dispensou o boy. Ele voltou ao local. Nada. Um terreno sujo, cheio de mato. O que fazer? Sentou-se, pensando que se alguém chegasse por
ali, poderia dar uma informação. No fim do dia, foi embora.
Na manhã seguinte, ao subir no elevador, encontrou o patrão.
– Como é, entregou a carta?
– Não tem prédio lá.
– Mas vão construir. Já conseguiram o financiamento da Caixa Econômica.
O boy voltou ao terreno. Naqueles e nos dias seguintes. Nas semanas e meses. O patrão, inquieto, querendo saber da carta, o boy mais inquieto ainda, já sem saber
por que não construíam logo o edifício. Um dia, viu homens carpindo o mato. No outro dia, ergueram um tapume. Em seguida, instalaram placas. Vieram tratores e máquinas.
Cavaram, cavaram, caminhões basculantes levaram a terra, chegou cimento, aço, pedras. As fundações ficaram prontas.
O boy ali, todos os dias, firme. Fazendo amizade com os operários, capatazes da obra, aprendendo como se mistura o cimento, como se processa a concretagem, acompanhando
os andares que subiam, as lajes sendo terminadas.
O prédio subiu. A esta altura o patrão, irritadíssimo com o boy, ameaçava despedi-lo.
– Que porcaria você é! Nem consegue entregar uma carta!
O boy, ferido no orgulho, plantou-se então, dia e noite, sentado num dos andaimes. Amigo de todos os operários, comia e bebia com eles, contava casos, ouvia histórias
do Nordeste, lendas da Bahia, conhecia a miséria que ia pelo interior, os dramas de fome e doença, o abandono, a seca. A parte mais demorada, lenta. Colocar portas,
janelas, armários, rebocar, passar massa corrida, pintar, instalar pias, torneiras, vasos, tacos. Então, a festa de inauguração, chope. As faixas, os corretores
ansiosos por enganar alguém com as compras maravilhosas que terminavam em pesadelo.
As pessoas começaram a se mudar. Todos os dias, o boy batia à porta do apartamento 114. O destinatário ainda não tinha se mudado. Agora, o boy já tinha feito vinte
e três anos e o patrão tinha lhe dado um prazo fatal, irreversível. Ou entregava a carta, ou era despedido.
Ele batia à porta, ninguém atendia. Até que um caminhão trouxe mudança para o 114. Mas a porta continuava fechada, muda.
Batia, e nada.
Uma tarde, abriram. Um senhor grisalho, ar sonolento. O boy, triunfante, estendeu a carta. O homem olhou o destinatário.
– Não sou eu. Nem sei quem é.
– Como? O senhor comprou o apartamento de alguém?
– Não. Comprei na planta. Não teve nenhum dono antes de mim.
– O que faço?
– Passa na portaria, fala com o zelador.
O boy passou, explicou a situação. O zelador apanhou um carimbo, bateu no envelope: DESTINATÁRIO DESCONHECIDO.
Devolveu a carta ao boy.
O homem que devia entregar a pedra
Para Beth Mendes
Quando lhe deram o pacote, pedindo para entregar, não achou pesado. Mas agora, passados dois dias, o braço direito doía. E ele precisava descançar a cada cem metros.
Colocava o pacote no chão, fazia exercícios, tentando recuperar os músculos distendidos. Ao levantar o pacote, achava-o mais pesado que antes.
Continuou andando e descansando, até o momento em que o pacote pesou terrivelmente e ele largou-o no chão. De vez. Não ia entregar, a pessoa que viesse buscar. Que
alugasse uma condução.
O que podia haver dentro? Se puxasse as fitas com cuidado poderia abrir e fechar, sem que ninguém percebesse. Não havia nenhum carimbo: confidencial. Ou secreto.
Ninguém tinha recomendado: não olhe.
Abriu. Dentro, envolto em papéis, o paralelepípedo. Desses comuns, que calçam as ruas. Nada diferente, a não ser que tinha sido bem lavado.
Não encontrou nada. Nem parecia oco, nem havia aberturas. Também não era falsificado, porque não havia sentido falsificar-se um paralelepípedo. Nem mensagens secretas
gravadas nas faces. Nada.
Embrulhou outra vez. Não devia haver pressa para entregá-lo. Lembrou-se de obrigações, do trabalho, uma conta de gás a pagar, um encontro, uma compra a fazer, o
inquérito que tinha a responder no tribunal de segurança.
Descansado, colocou o embrulho debaixo do braço. Foi com ele por toda a parte, sentindo o peso, porém mais acostumado. Só tinha medo que ele caísse, esmagando um
dedo, ou o pé. Ou batesse no joelho, rompendo.
Podia pedir a outro que fosse entregar. Mas era um homem responsável. Podia deixar o embrulho num canto qualquer. Ou mandá-lo pelo correio. Imaginava porém que,
devido ao peso, podiam querer abrir no correio.
E não enviariam como encomenda. Não considerariam legal. Aconselhariam uma transportadora. Os correios têm normas rígidas. Além de tudo, com aquele peso, registrado
para garantir, custaria muito dinheiro.
Ele era um simples escriturário, não ganhava o bastante para poder estar despachando paralelepípedos pelo correio. Havia a solução de um carrinho de mão. Emprestaria
um, entregaria a encomenda.
Nenhum dos amigos tinha carrinho de mão. Por que haveriam de ter? O melhor talvez fosse adiar a entrega para um fim de semana. Ou para as férias. Aí teria tempo,
iria devagar, descansando pelo caminho.
Levou a pedra para casa, colocou embaixo do armário. Não teve forças para colocar em cima. A mulher quis saber o que era o pacote. Só descansou quando abriu: “Você
está louco? O que vai fazer?”.
Ela ficou desconfiada. Brigaram: “Vamos jogar isso fora e se acabou”. Ele não concordou. Tinha uma responsabilidade. Cumpriria. Não era difícil assim. O único problema
era o peso.
Chamou um táxi. O motorista pediu o endereço. Ele olhou o pacote. Revirou. Não havia endereço, nome. Pensou depressa. Desceu, desanimado. E agora? Refletiu, até
encontrar.
Devia fazer um plano. Dividir a cidade em setores. Os setores em ruas. Subir por um lado ímpar, descer por outro par. Bater de porta em porta. Indagar. Alguém devia
estar esperando o paralelepípedo. Se não havia urgência, haveria de receber.
O homem que entrou no cano
Abriu a torneira e entrou pelo cano. A princípio incomodava-o a estreiteza do tubo. Depois se acostumou. E, com a água, foi seguindo. Andou quilômetros. Aqui e ali
ouvia barulhos familiares. Vez ou outra, um desvio, era uma secção que terminava em torneira.
Vários dias foi rodando, até que tudo se tornou monótono. O cano por dentro não era interessante.
No primeiro desvio, entrou. Vozes de mulher. Uma criança brincava. Ficou na torneira, à espera que abrissem. Então percebeu que as engrenagens giravam e caiu numa
pia. À sua volta era um branco imenso, uma água límpida. A cara da menina aparecia redonda e grande, a olhá-lo interessada. Ela gritou:
“Mamãe, tem um homem dentro da pia.”
Não obteve resposta. Esperou, tudo quieto. A menina se cansou, abriu o tampão e ele desceu pelo esgoto.
O homem que se endereçou
Apanhou o envelope e na sua letra cuidadosa subscritou a si mesmo: Narciso, rua treze, nº 21. Passou cola nas bordas do papel, mergulhou no envelope e fechou-se.
Horas mais tarde a empregada colocou-o no correio. Um dia depois sentiu-se na mala do carteiro. Diante de uma casa, percebeu que o funcionário tinha parado indeciso,
consultara o envelope e prosseguira. Voltou ao DCT, foi colocado numa prateleira. Dias depois, um novo carteiro procurou seu endereço. Não achou, devia ter saído
algo errado. A carta voltou à prateleira, no meio de muitas outras, amareladas, empoeiradas. Sentiu, então, com terror que a carta se extraviara. E Narciso nunca
mais encontrou a si mesmo.
Descoberta
O homem que gritou em plena tarde
Parou para espiar a vitrine. Sapatos e bolsas, pretos, amarelados, marrons, azuis. Não estava interessado em sapatos e bolsas. Olhava por olhar. Passava todos os
dias por ali, cada dia observava uma vitrine, uma loja, um balcão, um canto. Costumava também olhar para cima. Assim tinha descoberto coisas que outros não viam.
Um beiral antigo, esquecido na fachada de um prédio. Uma cornija. Uma grade, uma janela com vidros desenhados, vaso de flores, gaiola com pássaros, retrato pregado
numa veneziana, números no alto de portais, rostos atrás de vidraças, aquários. Levava esbarrões, xingos, o que faz aí parado, bestalhão, pô, nesta cidade tem de
tudo, até gente parada de boca aberta. Não ligava, falavam por falar. Para ter alguma coisa contra o que reclamar.
Enquanto admirava a vitrine, ouviu os passos. Era a primeira vez que prestava atenção no ruído dos passos. Virou-se, observando os pés do povo. Os sapatos batiam
no calçamento; uns arrastavam os pés; outros saltitavam; uns pareciam flutuar. O que o impressionava mesmo era o barulho. Não, não era o barulho, percebeu. Era o
silêncio, dentro do qual os passos sobressaíam. Silêncio espesso dentro da tarde. De tal modo que ele podia, com nitidez, distinguir cada ruído. O dos passos, o
das vozes, o dos murmúrios (mesmo das pessoas que falavam sozinhas), dos chamados, das máquinas de escrever por trás das paredes, dos apitos dos guardas, de nomes
gritados, sussurrados, chamados, de músicas que se confundiam, como se as letras fossem coisas absurdas, sem sentido algum, de motores engrenando, funcionando, buzinas,
choros, soluços, zumbidos. Seu ouvido captava e selecionava, como um aparelho estereofônico, capaz de enviar para alto-falantes diversos, sons de instrumentos diferentes.
O silêncio pareceu incômodo ao homem acostumado dentro da cidade barulhenta, irritadiça, insuportável. O seu dia a dia era constituído por um barulho só, homogêneo,
que se integrara à sua vida. Algo de que ele dependia, fazia falta ao seu organismo. Só conseguia pensar, trabalhar com eficiência, dentro daquele conjunto de ruídos
absorventes que lhe davam a certeza de que a cidade marchava, a pleno vapor, e ele era parte dela, um acréscimo. E que sem ele, e sem ele – o outro – numa escala
infinita, esta cidade iria parar, quebrando toda uma estrutura.
Então, aquele silêncio distinto, imenso vazio dentro da tarde, provocou nele primeiro um sentimento de desconforto. Em seguida, veio a insegurança, a dúvida sobre
sua situação. Estava na sua própria cidade, ou caíra de repente dentro de um pesadelo? Quando o homem duvida, o seu mundo cai em ruínas, desaparecem os pontos de
apoio, os suportes familiares e ele se balança como boneco João-teimoso.
O desconforto surgiu e ele teve vontade de gritar. Mas, se gritasse, iriam achar que ele estava louco. Loucos são eliminados dos grupos normais. Ele queria gritar.
O ar que enchia o seu corpo precisava ser expelido. Sentia-se como o pneu que suporta vinte e duas libras e está com trinta e cinco, a ponto de estourar. Os músculos
do seu peito, a carne toda, doíam, dentro da tensão. Então, gritou. Ouviu o grito com nitidez dentro do silêncio que abrigava os ruídos da tarde. Olhou assustado
para as pessoas e foi como se elas estivessem surdas. Nem se viraram. Gritou de novo, percebendo que o primeiro grito fora mais um urro, só para expulsar a massa
de ar. E gritou. E gritou de frente para uma moça de amarelo. E a moça gritou. E os dois gritaram juntos, e sorriram. Viram outros sorrindo.
Gritaram os dois; e eram três. Gritaram os quatro; e eram cinco. Gritaram todas as pessoas naquela quadra. As que passavam, as que passeavam, as que olhavam vitrines,
as que olhavam para o chão, as que entravam e saíam dos prédios. Gritavam, e o grito ecoou pela rua. Foi respondido. Gritaram na esquina. Na outra esquina. Na praça.
Gritaram dentro dos ônibus, dos carros, no interior dos cinemas e dos escritórios. Gritaram nos mictórios e nas lanchonetes, nos bancos e doçarias.
No fim da tarde, quando o sol se pôs, não havia mais ruídos, em silêncio, apenas o grito, uniforme, uníssono, unânime, solidário, de seis milhões de pessoas.
Grito sem fim, enquanto a noite descia.
O homem que telefonou para ele mesmo
Para Regina Boni
Discou o próprio número. Uma, duas vezes. “Será que não estou?” Ansioso. Duas ligações erradas. Nervoso. Ali, no escritório, era difícil conseguir linha. Mais difícil,
mantê-la. Errava, colocava o fone no gancho, levantava, tinha ligação para alguém. Mas ele dizia que não era dali, do banco, era da loja de eletrodomésticos, a pessoa
desligava, ele apanhava a linha, discava seu próprio número. Ocupado. Quatro, cinco vezes ocupado. “O que estarei fazendo?” “E eu sabia que não estava fazendo nada,
apenas tentando telefonar para mim mesmo. Consegui.”
– Alô, quem fala?
– Você mesmo.
– Eu estou?
– Não.
– Saí?
– Não.
– Então?
– Morreu.
Devia ser brincadeira de mau gosto. Não era ele mesmo atendendo ao seu próprio telefonema. Alguém em seu lugar, dando trote. Ele jamais faria uma brincadeira dessas
com os outros, imagine consigo mesmo. Desligou. Ficou à espera. Devo ter ligado errado e o sujeito quis me gozar. Enquanto esperava, olhou pela janela, homens faziam
buracos enormes, enterravam tudo que passava: ônibus, caminhões, bicicletas, motos, basculantes. Devia ser algum comando antiauto. Não sabia da existência de nenhum,
mas numa cidade como esta, diariamente surgem coisas novas, coisas velhas desaparecem, sejam prédios, autos ou pessoas. O telefone tocou.
– Você ligou para cá?
– Liguei. Disseram que eu não estava.
– Você não está mesmo.
– Como estou atendendo?
– Eu é que estou curioso de saber como você está ligando.
– É fácil! Basta discar meu próprio número.
– Não, não é fácil assim. Já tentei muito ligar para você. Nunca consegui.
– Agora conseguiu.
– Não sei como. Desculpe! Está um barulho infernal aqui embaixo do meu prédio, não consigo ouvir direito o que você diz.
– O que está acontecendo aí?
– Estão enterrando os prédios, as casas, tudo. Um comando anti-habitacional, me parece.
– Por quê? Não temos mais o direito de morar?
– Acredito que não. Mas não posso garantir nada, que estou muito confuso.
– Estamos todos confusos nesta cidade. Agora há pouco ouvi eu mesmo dizer que morri.
– Eu é quem disse.
– Você?
– Sim, mas você sabe que eu sou você?
– Sei, fui eu que te chamei. Precisava falar comigo mesmo.
– Você tem pensado muito consigo mesmo. Comigo.
– Não morri, não é mesmo?
– Vou te contar uma coisa.
– O quê?
– Não diz pra ninguém?
– E se eu disser? E daí? Diz.
– Não vai se assustar? Promete ficar calmo?
– Prometido.
– Sabe, não foi você quem morreu.
– Quem foi então?
– Fui eu.
O homem que decidiu investigar
Tinha um laranjal imenso, era um exportador de frutas. Naquele dia ele se levantou, antes das seis. A família só ia acordar duas horas mais tarde. Dispunha de duas
horas para andar pelo quintal, apanhar laranjas, fazer um café forte e ficar no pátio atijolado lendo histórias policiais. Lia até o ponto em que o detetive ia desvendar
o mistério. Fechava o livro, ficava analisando os pormenores e as pistas para descobrir o criminoso. Quando tinha certeza, abria a revista e terminava. Acertava
sempre. Antes de apanhar a revista, ou livro, ele percorria o quintal. Escolhendo laranjas. Apanhava meia dúzia. Para ir chupando e cuspindo o caroço.
Pela manhã, as folhas guardavam sereno e as frutas estavam úmidas e macias. Ele escolhia uma de uma árvore, outra de outra. Nunca duas da mesma árvore. Nesse dia
reparou que as laranjas estavam frescas e leves. Nunca tinham sido tão leves.
Começou a descascar as mexericas. Ao romper a casca, viu que os dedos se afundavam e de dentro da laranja vinha o cheiro. Forte, do sumo. Mas não havia nada. Os
gomos não existiam, havia apenas casca. Ele riu. Alguma brincadeira da turma que estivera na casa, passando o domingo. Deviam ter tirado a polpa, pacientemente,
e reconstituído a casca. Recolocando a fruta na árvore.
Abriu a segunda. Vazia. Riu e abriu a terceira. O serviço tinha sido benfeito. A turma sabia mesmo trabalhar. Apanhou outra mexerica. Fresca e macia. Olhou bem.
Perfeita. Nenhum sinal de violação, de colas. Descascou. Vazia.
E outra. Vazia.
E mais uma, duas, dez. Nada, apenas o cheiro bom e forte. Ainda calmo. Depois, menos.
Até que começou a correr. Arrancando as laranjas dos pés, arrancando as cascas. Com raiva. E as laranjas, vazias.
Era preciso iniciar a investigação.
Quem, os suspeitos?
Quais, os motivos?
Quem, seus inimigos?
Os objetivos?
Furioso, ele limpava as laranjeiras. Eram 5 mil. Diferentes qualidades. Todas grandes, doces, podadas, livres de pragas. E quando a família o encontrou, o pomar
estava coalhado. De cascas. Não havia uma só fruta vazia, nos pés. E ele tinha iniciado a investigação, interrogando laranjeiras, serrando troncos, abrindo-os, tirando
a casca, examinando veios, cortando raízes, mastigando pedaços delas, dissecando folhas.
O homem que queria informações
Saiu à rua, estranhou bastante. Para dizer a verdade, ficou completamente confuso. Existia uma palavra, aparvalhado, que seu pai costumava usar, diante de situações
absurdas. E aquela, certamente, era uma delas. “Estou aparvalhado”, disse consigo mesmo. Não disse, pensou. Isso de falar com a gente mesmo não existe, é uma frase
de retórica. Seria retórica?
Estava indeciso. Não sabia se voltava para dentro de casa, se continuava a andar em direção ao ponto de ônibus, se ficava parado na calçada. E se perguntasse a alguém
o que se passava? Sempre ouvira dizer que quando se pergunta se obtém, de volta, uma resposta. A resposta deve ser, por obrigação, uma definição exata e concreta,
ou então pode gerar uma outra pergunta. As melhores respostas são aquelas que atingem o objetivo de imediato, calando o interlocutor. Tornando-o inofensivo.
Parou um homem:
– O senhor pode me dizer o que está acontecendo?
– O senhor me conhece?
– Não.
– Então, como faz uma pergunta a alguém que não conhece?
– Só quero uma informação.
– Pensou que, se não te conheço, posso dar a informação errada?
Pronto, tinha perguntado errado. A boa pergunta traz uma boa resposta, não uma nova pergunta. Como sair desta? Ficou mais confuso. “Este é um dia em que eu não devia
ter saído de casa.”
– Por que o senhor não se apresenta?
– Me apresentar?
– Se apresente a mim. Ficamos nos conhecendo, trocamos nossos cartões de visita, marcamos um novo encontro. Iniciamos uma amizade. E aí então o senhor pode me perguntar
que responderei. Combinado?
– Está bem. Sou Paulo Neves, bancário, 27 anos, signo de Gêmeos, solteiro, sem telefone, moro com meus pais, trabalho há dez anos na mesma empresa, optei pelo Fundo
de Garantia, vejo televisão, compro Avon quando a campainha soa.
– Passar bem, meu senhor. Não quero saber de mais nada.
Tentou segurar o braço do outro, o homem deu um puxão, como se um leproso (ou seria canceroso?) tivesse tocado nele. Era um homem cheio de preconceitos quanto a
doenças. Tomava, todas as manhãs e todas as noites, uma colher de antibióticos. Para se imunizar.
“E agora? O que vou fazer? Como saber?”, pensava consigo mesmo o outro homem, aquele que tinha saído de casa e ficado confuso. Pensar consigo mesmo. Outra bobagem.
Como pensar com os outros, a não ser em telepatia? Ele era assim, raciocinava sobre cada coisa que dizia, fazia, pensava. A todo instante estava se autoanalisando,
refletindo, meditando, para se colocar no mundo. Tinham lhe ensinado a fazer isto. E no entanto vivia cada dia mais confuso.
Súbito ficou com raiva. Pulou na frente de outro passante.
– O senhor aí. Vai responder a uma pergunta minha? E já!
– O que há, meu amigo?
– Vai responder sem que eu me apresente. Sem que eu repita a você que sou Paulo Neves, bancário, 27 anos, signo de Gêmeos, solteiro, sem telefone, moro com meus
pais, trabalho há dez anos na mesma empresa, optei pelo Fundo de Garantia, vejo televisão, compro Avon quando a campainha soa.
– Está bem, respondo.
– Responde?
– Claro.
– Me diz. Tudo me parece estranho hoje. Está acontecendo alguma coisa?
– Não, está tudo normal.
Mas ele sabia que não estava. Afinal, as pessoas estavam andando sobre os pés e não sobre as mãos. Todos tinham dois braços e dois olhos. E a boca, coisa surpreendente,
estava bem abaixo do nariz. A cabeça era disposta sobre um rolo de carne circular, completamente desproporcional ao resto do corpo. Havia mulheres e homens, calçadas
e casas, carros e carroças, coisas que já tinham desaparecido. Mas não é possível que ele estivesse louco. Decidiu. Arrancou a cabeça. Jogou no meio da rua.
Ação
O homem que passou a amontoar sacos
Pela manhã, ele começou a amontoar os sacos de areia, diante de sua casa. Tinha levado anos na preparação deste momento. Começou estocando sacos vazios. Primeiro
de farinha de trigo, depois de estopa. Finalmente se contentou com sacos de cimento e cal. Era preciso frequentar padarias, pedir, comprar, rondar construções, escolher,
passar por armazéns, ficar amigo dos atacadistas de cereais, de arroz, de batata.
Tinha se tornado profundo conhecedor de sacos. O melhor tipo para açúcar refinado, a melhor malha para cebola e batata. Como devia ser a trama para o de arroz. Era
preciso examinar bem, ver se não havia fios soltos, fios que se puxavam, remendos que podiam estourar.
Os sacos vazios de cal e cimento eram um problema. Os pedreiros não tinham cuidado ao abrir. Dilaceravam a boca, inutilizavam a embalagem inteira. Ele pensou em
fazer um curso especial, para ensinar pedreiro a abrir saco, puxando-se o fio da boca, depois tirando a faixa de papel grosso. Desistiu ao ver que nenhum empreiteiro
aprovou, nem ia permitir aos empregados perder quinze minutos diários com o curso.
A princípio, para guardar os sacos, utilizou um antigo quarto de empregada. Depois, um depósito de garrafas, jornais velhos, bujões de gás, móveis quebrados que
ninguém nunca joga fora, vasos rachados, pratos desbeiçados, caixotes, arames, tapetes, livros sem capa, revistas, ferramentas, bocais de lâmpada, pedaços de fios
de luz, roupas, sapatos. Amontoou tudo na calçada para o lixeiro. E viu os vizinhos ciscando e levando um chinelo só, uma pilha gasta, latas vazias, vidros de geleia.
O depósito lotou. E também o antigo quarto do filho. Um canto da cozinha. O próprio quarto. A sala de visitas. De jantar. A garagem. Vendeu o carro, os móveis, os
quadros, conservou apenas o fogão, onde todos os dias fazia café, omelete e fritava bifes prontos de supermercado.
Quando a casa se encheu, ele alugou a do vizinho. Fez um puxado nos fundos. Um dia, verificou que tinha 82.354 sacos. Precisava ainda de 17.698. Descobriu que fabricavam
sacos plásticos, resistentes. Mas era preciso comprar, os usados nunca eram bons. Arranjou horas extras, alugava-se aos sábados e domingos para qualquer tipo de
trabalho. Era hábil com as mãos, sabia fazer coisas excelentes que agradavam as donas de casa. Homem sociável, oferecia-se aos domingos para distrair convidados
de almoços, churrascos, feijoadas. Tinha a função de não deixar a conversa cair. Fornecia temas, contava piadas. Chegou a cantar durante uma festa de crianças.
Cuidava de bebês, contava histórias, levava as pessoas ao teatro, explicava as peças, escolhia presentes de aniversário, pintava casas, consertava rádio, televisão,
colocava vidros, trocava lâmpadas, apontava lápis, regava jardins, formava hortas, comprava passagens, dava informações sobre horários de trens, ônibus, aviões,
conhecia o leite bom, o aguado, sabia fazer coalhada, inventava jogos, pulava amarelinha, uma na mula, desenhava, construía aviões e barcos dobrando papéis. Fazia,
com prazer, todas as coisas que detestava e que formavam o seu mundo.
Um dia, deu a tarefa por teminada. Naquela manhã, ao olhar-se no espelho, sentiu-se contente, rosto transformado. Viu, com alegria, que o brilho satisfeito dos olhos
tinha desaparecido, que a boca era retorcida, como se sofresse uma grande dor. Descobriu rugas profundas e olheiras. Estava na hora.
Encheu o primeiro saco de areia. Colocou diante da casa. A tarefa agora tinha mudado. Precisava apenas de areia. Os próximos anos passou procurando areia, roubando
de construções, buscando na praia. E quando terminou, tinha amontoado, em volta de sua casa, cem mil e cinquenta e dois sacos de areia.
O homem que compreendeu
Consagrou-se ao marcar trinta e sete gols num jogo. Sua média de gols por partida ficou vinte e seis, nunca menos. Não havia beques para escorá-lo, nem esquemas
para anular seu jogo rápido, bonito, eficiente. Jogava para ele, para o time e para o público. A bola, em seus pés, ninguém tirava. Ela parecia grudar na chuteira.
Atraía a bola, como um ímã. Bola rebatida, espirrada, dividida, era dele. Distribuía com perfeição, lançava com precisão. Mas só aceitava jogar com jogador inteligente.
Os outros tinham receio quando entravam em campo, ao seu lado. Seriam humilhados e xingados, se errassem. Não respondiam, abaixavam a cabeça, concordavam. E se esforçavam,
davam tudo. Então, eram jogos maravilhosos, corridos. Ele mandava e desmandava, dava a escalação, isolava jogadores, formava outros. Sempre falando pouco, apenas
olhando, o olhar firme, frio, que dizia tudo. Não dava entrevistas, tratava mal a imprensa, ria dos cronistas, dizia que eram analfabetos. Os juízes não chamavam
sua atenção. Ele fazia os juízes abaixarem a cabeça. Mas, de um modo ou de outro, era disciplinado. Quando fazia, fazia sem que vissem. Pontapés no tornozelo, paulistinhas,
bico de chuteira no joelho, socos no estômago, no fígado, nos rins. Provocava os adversários, ria deles, desprezava-os, passava a bola debaixo das pernas, dava chapéus,
lençóis, ficava girando em volta do outro com a bola presa, e o outro, bobo. Era odiado. Também o público, apesar do espetáculo que ele dava, o odiava. O fluido
dele com o público era estranho, funcionava ao contrário. Iam vê-lo, porque a cada jogo ele inventava uma coisa: um dia era um gol de traseiro, no outro, driblava
o time inteiro, deixava a bola na risca do gol, depois, jogava dez minutos numa perna só, entrava em campo de óculos escuros. Um dia telefonou para os jornais, disse
que estava numa boate, bebendo e cheio de mulheres. Fotografia, dessa vez ele se arrebenta. Deixou a boate às sete da manhã. À tarde, marcou vinte e cinco gols.
Correu mais que nos outros dias. Não se machucava. Entrava em jogadas que partiriam em cinquenta qualquer perna e saía com a bola. Oferecia a canela para os chutes.
As travas das chuteiras escorregavam pela sua pele, não entravam. Tinha os reflexos perfeitos, raciocinava seis vezes num milésimo de segundo. Até que um dia de
muito calor, após uma hora e meia de ginástica, todo o time pregou. Ele riu e saiu correndo em volta do campo. Deu cinquenta voltas. Depois, foi treinar chutes a
gol. Quando parou, o professor de educação física se aproximou. Olhando fixamente em seus olhos, o professor teve medo. E compreendeu.
O homem que liquidou
Com o revólver liquidou o pai e a mãe.
Depois os irmãos, que eram cinco. Correu de casa em casa e foi liquidando avós, tios, primos, primos em segundo grau, tios-avós, primos dos primos.
Não deixou nenhum vivo. Tivesse o seu sobrenome, ele matava.
Então, passou a liquidar qualquer tipo de parente.
Quando ele sabia que alguém era casado com uma prima distante da prima em terceiro grau de sua avó, ele ia lá e matava.
Gastou muita munição, até que um dia viu que não restava mais ninguém, parente próximo ou afastado.
Era um homem só. Absolutamente só.
A noiva que esperava a trágica notícia
A noiva entrou na igreja. Os convidados se ergueram.
Todos queriam vê-la. A maioria que estava ali não acreditava que ela estivesse se casando. Todos a consideravam solteira. Irreparável. Não porque não tivesse encontrado
partido.
Ao contrário, tivera muitos. Recusara todos.
Por que recusava? Perguntavam. Por quê?
O órgão tocava a Marcha nupcial. Ela caminhava de braços dados com o pai. Ou seria o padrasto? Não se sabia, apenas se comentava. Eles tinham chegado há anos e se
instalado na casa de paredes rubras, estilo vila italiana. Enorme. Nunca contaram nada da vida. A ninguém. Seriam casados? Ele tão mais velho do que a considerada
mãe. Carioca de olhar forte e atrevido. Irônica, unhas pintadas com cores brilhantes e o sotaque arrastado. Puxando no S sibilante.
O homem que levava a trágica notícia deixou sua casa.
Exatamente quando a noiva entrou na igreja e começou sua caminhada em direção ao altar. O homem que levava a trágica notícia sabia que não precisava esperar. Chegaria
no momento exato. Fizera o trajeto muitas vezes. Cronometrara o percurso. Como os bandidos de filmes que planejam um grande golpe. Ele tinha visto muitas vezes o
filme de Stanley Kubrick, O Grande Golpe. The killing.
Ela, com a cauda do vestido rastejando. Caminhava compassada, naquele estranho passo ritimado pela Marcha nupcial. Caminhava, conduzida pelo pai. Seria o pai? E
a mãe, de que cor pintara as unhas nesse dia?
Não se podia ver as mãos da mulher que sorria. Enigmaticamente. Todos consideravam o sorriso dessa mulher um mistério. Sua vida, uma incógnita. Sabia-se apenas que
gostava de dormir. Até tarde. Muito tarde. E que odiava barulho na casa, enquanto não despertasse.
O homem que levava a trágica notícia disparava pelas ruas.
Um pouco inseguro.
Teria calculado com precisão. O trajeto?
Algumas mulheres choravam. Discretamente. Não muito, o necessário em casamentos. A mãe, uma delas. Por que a mãe estaria chorando?
O homem que levava a trágica notícia estava parado. Num sinal.
Olhava o relógio.
O noivo desceu alguns degraus para receber, sua futura mulher, companheira para a vida e a morte. Na dor e na alegria. Ele tremia um pouco. Olhou para as mãos da
sogra. De que cor ela teria pintado? As unhas.
E seria verdade aquilo que diziam? Ela teria posado nua. Para uma revista? Ficou a imaginá-la nua. Tinha coxas grossas e nenhuma celulite. Entrara, inadvertidamente,
no quarto dela. Um dia. Ela, de combinação rosa. De cetim. Sua pele era lisa. Devia ser macia. Desejava a mãe ou a filha?
A Marcha nupcial ecoava na igreja iluminada. Decorada com flores e velas e tapetes. A noiva não desejara música moderna. Pedira Mahler, não foi possível. Por quê?
O homem que levava a trágica notícia acelerava. O carro.
Ansioso, desconfiado de si mesmo. Suponha que soubesse o mistério. Da vida da mulher que pintava as unhas, gostava de dormir, queria ter um filho e exibia um sorriso
amplo. Escancarado, prometedor. Prometedor do quê?
Um guarda mandou que ele encostasse.
Ele se desesperou.
O guarda se aproximou.
Ele explicou: Preciso levar a trágica notícia. A um casamento. Qual? Perguntou o guarda. Mais curioso do que desconfiado. Achando que o homem estava mentindo. Ele
contou.
O guarda sacudiu a cabeça.
Fora de si gritou: “Vamos logo, temos de ir. Te acompanho, abro caminho”. Tocaram pela avenida. Sem respeitar sinais. Quase atropelando pessoas descuidadas. Conduzindo
velozmente. A trágica notícia.
O noivo e a noiva subiram para o altar. Contemplaram o padre. O padre olhou para a mãe, ou aquela que se supunha fosse a mãe. A mulher fez que sim com a cabeça.
E se ele, noivo, tivesse posto? As mãos nas coxas delas. Naquele dia. A mãe repetiu o sim. Com a cabeça.
Por que teria feito sim? Dependia dela o quê? Qual o consentimento que o padre buscava? O pai não percebeu. Diziam que ele nunca percebia nada. Sua mulher era impenetrável,
ambígua.
O carro parou na porta da igreja. O homem que levava a trágica notícia entrou. Correndo pela nave.
Pisando o mesmo tapete onde minutos antes a noiva tinha passado com o pai. A mãe, vendo o homem que trazia a trágica notícia chegar apressado, compreendeu. Será
que ela o conhecia? Percebeu também que talvez pudesse. Comprar agora aquela casinha com que sonhava tanto, cercada por jardins.
O homem chegou ao noivo, cochichou. O noivo empalideceu. Desmaiou. Correram os homens e um médico (“Há um médico nesta igreja?” Havia).
O homem da trágica notícia cochichou. Ao ouvido do padre. Que empalideceu e se retirou. Para a sacristia. Irritado, surpreso, temendo a Deus, tirou os paramentos.
Mandou que apagassem luzes. E velas. Retirassem as flores e jogassem. No meio da praça. Mandou que todos se retirassem. O órgão emudecesse. Sua igreja jamais passara
por tal situação.
O homem que trouxera a trágica notícia abraçou a mãe. E por que abraçava? Quem era ela?
E olhou-a nos olhos.
E ela soube. Sorriu e cuspiu sobre o noivo.
A noiva, paralisada. Ficou. Sozinha no escuro da igreja.
Deus também tinha abandonado. O sacrário.
Vida
O homem que procurava a Máquina
Para Gilce Velasco
Não foi da noite para o dia que os alicerces surgiram e começaram a erguer as paredes. Houve preparação do terreno, medições, marcações, durante meses. Acontece
que os fatos posteriores ficaram nebulosos, criaram-se lendas e hoje todos juram que os alicerces apareceram num dia, o edifício ficou pronto no outro e a grande
máquina foi instalada no terceiro. Em seguida, passaram a contratar pessoas.
Na verdade, o início pouco interessa. Os dados relativos àquela época, essenciais à situação, são os seguintes: instalaram a grande máquina num bairro operário,
sem calçamento e esgotos, não atingido pela especulação imobiliária. Era apenas um bairro distante de uma cidade que vivia da agricultura. As hortas formavam um
cinturão em torno da cidade. Alface, couve, brócolis, almeirão, repolho, rabanete, cenoura, nabo. Hortas grandes e pequenas. Hortas nos quintais, produção doméstica,
para consumo próprio e da vizinhança. Vivia-se bem, exportando-se quase toda a produção. A cidade cheirava a verde, se é que se pode falar em cheiro verde. Todos
os fins de tarde, olhando-se em torno, via-se uma nuvem tênue de água subir, brilhante. Era o momento em que as hortas estavam sendo irrigadas e o ar se tornava
úmido e fresco, com a entrada da noite, por pior que fosse o calor.
Então, os caminhões passaram a formar filas em nossa rua, não havia sossego para o futebol e outras brincadeiras. Diziam que tais caminhões transportavam peças para
a ampliação da Máquina. A empresa calçou a rua, colocou rede de água e esgotos, iluminação e placas autorizando a passagem e estacionamento apenas de veículos a
serviço da Máquina. Furgões, peruas, camionetas chegavam continuamente, descarregando fardos, caixotes gigantescos, contêineres colossais. A sensação que eu tinha
era de que ali havia o hangar de um dirigível. Não havia outra forma de entender aquela porta com sessenta metros de altura, que se abria em várias partes, suavemente
e sem barulho.
Certo dia, dezesseis jamantas ficaram enroscadas, ao fazer uma curva apertada. Não havia espaço e a manobra dos motoristas foi de tal modo infeliz que a primeira
enfiou o motor numa casa e a traseira na outra. A segunda tentou fazer a curva no pouco espaço restante e entalou. E assim foi. Uma sucessão de manobras difíceis
de serem feitas numa via estreita, uma jamanta atrapalhando a outra. Bloqueio total, ninguém para a frente, nem para trás. Vieram técnicos da empresa, engenheiros,
agrimensores, peritos viários. Ficaram tão perplexos quanto o povo curioso.
Não havia como retirar as jamantas. Nem meio de baldear o material que traziam. Transportavam tubos gigantes, com o diâmetro da altura de um homem. Trinta e cinco
tubos, em aço inoxidável. Os técnicos começaram a mostrar nervosismo. Uma semana depois, apareceu um anúncio nos jornais, oferecendo recompensa a quem sugerisse
uma solução. As sugestões choveram. Nenhuma viável.
Derrubaram trinta casas. A Empresa da Máquina indenizou todo mundo. Pagou corretamente, não houve reclamações. Nem processos. Coisa estranha, deu o que falar. Não
era um modo normal de agir. Se a empresa agia assim para defender os interesses, devia haver coisa por trás. Como descobrir? De que adiantava ficar perguntando aos
empregados, se estes estavam satisfeitos? Bem comidos, vestidos, possuíam casas, jardins, carros, televisão em cores?
A Máquina estava transformando a cidade. Formara-se à sua volta um bairro esplêndido. Havia promessas de expansão da empresa. O prédio subiu, maciço, imponente.
Todos tinham curiosidade de saber da Máquina, vê-la, conhecer o seu funcionamento. Acontece que estranhos não entravam. Parecia uma política certa. Havia tanta curiosidade
em torno da grande Máquina, que muitos aceitaram empregos ali apenas para ver a Máquina de perto. Depois disso, deixaram de falar com os outros. Viviam o tempo inteiro
dentro do prédio. Só deixavam escapar, vez ou outra, numa conversa rápida à porta do cinema, que a máquina estava subordinada ao Ministério do Planejamento.
– Mas o que ela faz?
– Coisas incríveis.
– Que tipo de coisas?
– Olha, é difícil explicar agora. Sabe por quê? Quando entramos, passamos três meses num curso. De manhã à noite. Só aprendendo as funções da Máquina.
– Diga algumas. Uma só!
– É um dos sistemas mais complexos que conheço. E olhe lá que estudei computação nos Estados Unidos durante cinco anos. Incrível, espantoso. Um gênio ou deus, só
isso pode explicar quem construiu aquilo.
– Eu não quero saber se é incrível, ou não. O que faz?
– Tem mil funções. É preciso que você me determine as áreas. Porque o trabalho se divide em áreas. Estas, por sua vez, se subdividem em departamentos locatários.
Estes departamentos se compõem, cada um, de trinta e sete compartimentos. Uma nova divisão: compartimentos em células. Células em quarenta e cinco alvéolos. Finalmente,
dentro dos alvéolos se pode determinar os serviços específicos produzidos pela Máquina, em cem setores.
Por aí afora. Rodeavam. Estavam diferentes, vidrados na empresa, no funcionamento da Máquina. As próprias mulheres achavam os maridos esquisitos. Calados, sem outro
interesse. Eles passavam a noite ansiosos para que a manhã chegasse e um novo dia de trabalho começasse. Tomavam banho, engoliam os cafés sofregamente e partiam.
Atravessavam os portões e pareciam respirar, aliviados. Só depois do portão é que se viravam, sorriam e acenavam. Por trás daquelas grades, os homens mudavam. Agitavam-se,
entusiasmados. Como se as grades tivessem um poder qualquer, mágico ou eletrônico, de dar um choque no cérebro, ativando a pessoa.
Eu resistia.
– Vai, meu filho, dizia minha mãe. Vai trabalhar com a Máquina. Olha seu pai. Melhorou muito depois que largou aquela hortinha vagabunda que dava uma trabalheira
desgraçada. A horta que acabou com as costas dele. Até a bronquite acabou, depois que não precisou mais mexer na terra úmida, nem regar os canteiros de manhã e de
tarde. Seu pai se arranjou bem por lá, apesar da idade. É um polidor.
– Não sou polidor, coisa nenhuma. Tenho de passar uma flanela, cinco vezes ao dia, em horas certas, marcadas por um relógio, nos pés plásticos da unidade de fita
magnética.
– O que é a unidade de fita magnética, pai?
– E eu sei?
– Mas como é essa unidade onde o senhor passa o pano?
– Uma caixa, retangular, alta, de cor cinza e azulada.
– E para que seve?
– Lá dentro, meu filho, aprendi a não fazer perguntas.
– O senhor trabalha num lugar e não se interessa em conhecer, saber o que é?
– De que adianta saber?
– O senhor podia trabalhar melhor.
– Passar um pano nos pés plásticos de uma caixa besta é uma coisa muito fácil. Não exige o mínimo conhecimento de nada. Tudo o que é preciso são minhas mãos.
– Não tem curiosidade, pai?
– Passei o tempo de ter.
– E os outros?
– Não sei, não quero saber dos outros.
– A administração não gosta que se faça perguntas?
– Nunca me proibiram.
– O senhor disse que lá dentro aprendeu a não fazer perguntas.
– É que ninguém faz. Por que hei de fazer? Logo eu?
– Todo mundo trabalha lá e todo mundo concorda com tudo?
– Acaso somos infelizes?
– Sei lá!
– Você está precisando trabalhar. Entre para a empresa.
– Eu? Vou embora para São Paulo. Vou fazer universidade, arranjar emprego por lá. Aqui é que não fico.
– Cinco anos atrás, aqui era ruim, uma cidade miserável. Agora temos a Máquina. Fica aí, com a gente.
Não queria ficar. A Máquina me incomodava. Nada grave. Apenas uma questão de pele. Quando eu passava diante das grades e ouvia o ronco surdo, os passos dos operários,
sentia meus pelos se arrepiarem. Dentro das grades havia jardins, gramados, ruas asfaltadas e os empregados circulavam em pequenos jipes azuis, em motonetas ou em
uma espécie de litorina que desenvolvia grande velocidade, levando grupos de gente de um setor para outro. No entanto, eu podia passar horas olhando o prédio alto.
Aquele parecido com hangar de dirigível. O que havia lá?
E se eu entrasse para a empresa, olhasse tudo e pedisse demissão? Era o jeito. Não foi. Os psicólogos entrevistadores adivinharam, ou intuíram, ou então sabiam mesmo
de minhas intenções. Depois da prova escrita, perguntaram agressivamente:
– Por que você quer conhecer todos os setores? Nunca viu a Máquina?
– Essa aí, não.
– É igual às outras.
– Não parece, pelo tamanho dos prédios e pelo formato estranho dos caixotes que desciam.
– Bem, ela pode ser maior. De resto, não tem novidades.
Me dispensaram. Contei que tinha sido recusado, minha mãe chorou. A Máquina era o futuro, a estabilidade. Como podia? Como podia um filho ser assim, preocupar os
pais, infernizar a vida? Ia virar vagabundo? Afinal, todos os meus amigos estavam trabalhando.
Correram boatos de que ampliavam a Máquina. Logo precisariam de empregados. Agora não havia apenas gente da cidade em busca de vagas. Das cidades vizinhas tinham
sabido da Máquina, dos empregos. Surgiam multidões que se acotovelavam pelas ruas, consumiam tudo nos bares, sujavam a cidade. A maioria dormia nos jardins, beirais
de portas, sob as pontes, nas igrejas. Havia esperança de trabalho para todos e o governo federal baixara uma ordem para que a prefeitura e a política local não
expulsassem os invasores. Mas eles destruíam os jardins, escreviam nos muros, mexiam com as moças, quebravam vidraças. Como suportá-los? Melhor do que isso: por
que suportá-los?
Os trabalhos de ampliação duraram dois anos. Terminei não indo embora por causa da saúde de meu pai. Teve uma paralisia nas mãos, não podia mais passar o pano nos
pés da tal unidade. Recebeu uma boa indenização, hoje fica na janela, o tempo inteiro. Contemplando os prédios onde a Máquina e seus derivados funcionam. Também
não consegui emprego na empresa, estou na fábrica de sacos que fornece embalagens para os lanches dos empregados da Máquina.
A ampliação deu oportunidade a pedreiros, carpinteiros, vidraceiros, especialistas em acabamentos, colocadores de azulejos e pastilhas, encanadores, eletricistas,
faxineiros. Não havia na cidade tijolos suficientes, buscaram nas cerâmicas vizinhas. Que produziam sem parar. Abriram novas cerâmicas, fábricas de lajotas para
pisos, mineração de cal, usinas de asfalto, metalúrgicas moldando postes de iluminação, indústrias de vidro, fiações que forneciam tecidos para os uniformes padronizados
dos empregados da Máquina. Restaurantes, lojas, farmácias, consultórios médicos, bares, lanchonetes, padarias, supermercados, tudo floresceu à sombra de bancos,
casas de crédito, serviços de financiamento. Subitamente, percebemos que havia uma nova cidade em torno da Máquina. Uma cidade agitada, movimentada, nervosa, intranquila,
enfumaçada, barulhenta, angustiante.
A Máquina consumia pregos, parafusos, arrebites, chapas, tintas, vidros, porcas e milhares e milhares de pequenas peças. Em torno da cidade cresceram indústrias
de peças de reposição de todos os tipos, formatos e tamanhos. Estas indústrias, por sua vez, deram margem à criação de outras, menores, quase artesanais. Se uma
determinada peça tivesse mais de um elemento, havia tantas fábricas quantos fossem os elementos. Sabem como é? Aos poucos as coisas se arranjam, cada grupo se protegendo
e se defendendo. De tal modo que, em quatro ou cinco anos, quem quisesse pegar concessão, para qualquer coisa, tinha que subornar tantos empregados, alisar tantos
bolsos, que precisaria de grande financiamento somente para este tipo de atividade. Não, a vida não estava fácil.
Havia, além disso, uma clara divisão social. Os que trabalhavam com a Máquina e os que não trabalhavam. O primeiro grupo tinha status, o segundo era marginalizado.
Não trabalhar para a Máquina significava inteligência menor, incompetência, ineficiência, falta de padrinhos poderosos. A indústria da colocação empregatícia tinha
se desenvolvido, de maneira a fazer inveja às melhores sociedades. Os grandes cargos rodavam sempre entre o mesmo grupo. O domínio da cidade era estabelecido nesses
setores, enquanto os outros simplesmente não existiam. O prefeito atual, por exemplo, era um homem que trabalhava com os comandos da Máquina. O que prova sua capacidade
técnica, porque, mais do que nunca, a Máquina produz.
Descobri por acaso uma situação curiosa. Os jornais passaram a publicar anúncios para contratar mecânicos especializados em determinado tipo de conserto. Não era
um conserto fácil, porque o mesmo anúncio foi publicado seis vezes. Não sei se conseguiram ou não. Logo depois, novo prédio. Técnicos especializados nos reparos
de um setor chamado Basculante. Não se passaram seis meses, os comentários eram gerais.
– Está chegando muita gente nova na cidade. A Máquina não anda bem.
– Mandaram buscar mecânicos nos Estados Unidos.
– E na Rússia.
– Na Tailândia.
– Vem vindo um da Birmânia.
– Ontem desceu um jato com quatro executivos. Gente entendidíssima em Máquinas.
– Mas a produção? Diminuiu?
– Dizem que não. Se não consertarem logo, arrebenta tudo.
– E o construtor da Máquina?
– Tem vinte fábricas envolvidas. Nenhuma quer assumir a culpa do defeito. Uma joga para a outra.
– Ouvi contar que vão abrir a memória selada.
– O que é isso?
– Isso é a memória selada. Só os homens da Brownvery podem abrir.
– E por que não chamam eles?
– A Brownvery fechou. Não existe mais.
– E como fazer?
– Se eu soubesse estava lá consertando e ganhando dinheiro, não aqui no papo-furado.
– Estou receoso. Se essa Máquina para, o que faço com minha fábrica de pinos?
– E eu com os colchetes? E o prego circular?
– Pior sou eu. Faço o motor rotativo e me alimento em sessenta e três indústrias de autopeças. Vou eu, vai todo mundo.
E assim, o medo começou a se instalar. Difundiu-se, rápido. Camuflado, sub-reptício, insinuante. Devorador. Percebia-se, em todos os olhares, a pergunta:
– E a Máquina? Foi consertada?
Não havia resposta positiva. Consoladora. Também, não houve ninguém demitido. Nenhuma encomenda de peças foi cancelada. A Máquina continuava a devorar porcas, parafusos,
chapas, lingotes, pregos, colchetes, motores rotativos inversos, com a mesma sofreguidão. A calma voltou a se instalar, depois do breve susto. No entanto, eu percebia.
A cidade não era a mesma. A dúvida se instalara. Aquela dúvida que não tinha pairado um só instante, por anos e anos: e se a Máquina deixa de funcionar? Voltaria
a miséria, a falta de perspectiva, os carros seriam vendidos, as televisões em cores empenhadas. Todo aquele magnífico equipamento de cozinha que fazia tudo sozinho,
dando todo o tempo do mundo às donas de casa, como seria mantido, se não era mais possível pagar as contas de eletricidade?
Todas as manhãs, e todas as tardes, um telefonema corria a cidade, de ponta a ponta. As mulheres dos supervisores, os cargos máximos, telefonavam umas para as outras.
– Tudo bem, hoje?
– Tudo bem.
– Nenhum aviso para amanhã?
– Nenhum.
– Como ele chegou em casa?
– Triste, acabrunhado como sempre. Igual a ontem, igual aos bons dias.
– Ah, que bom. Que alívio.
Tornou-se um costume. E tanto tempo se passou, tantos anos prosseguiram dentro da tranquilidade, que o povo se acalmou inconscientemente. Só a tradição do telefonema
prosseguiu. Aquilo era uma espécie de farol. Algo que fica ali, girando e girando. Informando. Um aviso aos navegantes, e os próprios navegantes, acostumados naquele
trecho, evitam por si só o perigo, dispensando o farol. Mas o farol continua.
Havia uma festa anual nos jardins da empresa. Os que trabalhavam para a Máquina, ou nas indústrias ligadas a ela, eram convidados. Isto significava que noventa por
cento da população comparecia, sendo que os outros dez por cento eram penetras.
Nunca perdi uma festa. Queria a minha chance, e tive. Há dez anos tentava me aproximar do presidente da empresa. Não conseguia. Ninguém me mostrava quem era o presidente.
– Acho que foi por ali.
– Estava agora mesmo naquele grupo.
– Desceu para o Jardim das Fontes.
– Está no Pequeno Versalhes.
– Deixou o Palácio dos Arcos.
– Procure na Casa de Força.
– Está esquiando nos Grandes Lagos.
– Veja no Pavilhão dos Frangos Azuis.
– Acabou de sair daqui.
– Está no Café de Paris.
– Já olhou na Máquina Memorial?
– Foi ao banheiro. Está lá há duas horas, estão preocupados.
– Passou com o prefeito, os supervisores, os assistentes maiores, os duplos vigias, os reparadores. Entrou no grande prédio.
O grande prédio continuava o mesmo. Uma espécie de hangar de dirigível, com as portas ciclópicas que me impressionavam. Fechado. Tentei empurrar uma das portas.
Claro que não consegui. E assim foi, por anos e anos. Eu tinha desistido já. E naquele ano, depois de bancar o penetra, estava na fila dos sorvetes, quando alguém
disse:
– Vejam. O próprio presidente está distribuindo os sorvetes.
– Ele sempre foi assim. Cada ano está num setor da festa, trabalhando mais do que os outros.
– Ele devia ser o prefeito.
– O governador.
– O presidente.
Quando o presidente me entregou o sorvete, sussurei:
– Podemos falar em particular?
– Agora estou distribuindo sorvetes.
– Tenho um problema.
– Afaste-se, por favor, a fila está grande.
Afastei-me. Com o sorvete na mão, peguei a fila. Outra vez. Esperei, cheguei até ele:
– Quando acabar a distribuição, o senhor me dá um minuto?
– Dou o dia inteiro. Agora, saia.
Entrei na fila novamente.
– Me espere na entrada do Arco Triunfal.
Foi. Um homem simples que cruzava comigo na rua, quase todos os dias. Chegamos a tomar café, lado a lado, no Central.
– O que é meu rapaz?
– Eu queria conhecer a Máquina.
– Não conhece ainda?
– Não.
– É novo na cidade?
– Nasci aqui.
– E como não conhece a Máquina?
– Nunca me deixaram.
– Como? Quem foi? Mando abrir um inquérito. Não tem segredo nenhum. A ordem da empresa é livre acesso. A Máquina é um bem público.
– Podemos ir ver? Agora?
– Agora? Mas ela está parada. Hoje é feriado.
– Sei, mas gostaria de ver, assim mesmo.
– Não compensa. O bonito é vê-la em produção.
– Falar nisso, ela produz o quê?
– Como o quê?
– O que ela faz?
– Você está brincando comigo, meu rapaz?
– Tenho cara de brincar?
– Não tem, mas faz uma pergunta muito estranha. Quem é o senhor? O que pretende?
– Saber.
– Não. Há algo de errado nisso tudo.
– Só quero conhecer a Máquina. Então, não tenho o direito?
– Tem. Claro que tem. Mas é esquisito, porque todos nesta cidade conhecem a Máquina.
– Todos, nada. Conheço muita gente que espera o grande dia.
– Você pode aguardar um pouco? Vou reunir meus supervisores.
– Para quê?
– A porta da Máquina só se abre com as chaves de seis de nós, juntamente, girando trinta e sete vezes à direita, noventa e cinco à esquerda, apertando catorze alavancas
e gritando em microfones: “Linda maquininha, gostamos de você, abra esta portinha, vamos trabalhar”. Assim é, todas as manhãs.
– Se não gritarem, ela não abre?
– Não. Ela precisa saber que viemos trabalhar, porque gostamos dela. É sensível demais.
– A Máquina? O senhor está brincando. Um monstrão daqueles?
– Monstrão? Coisa delicada, onipotente, sábia. Ela regula o nosso destino. Contemplá-la é penetrar no paraíso.
– Então, vamos lá dentro?
– Preciso reunir meus homens. Me espera aqui?
Esperei. Ele se foi, e nunca mais o vi. Nem naquele dia, nem nos próximos anos. A festa foi terminando, as pessoas se retiraram, antes das seis. Fiquei ali, diante
do Arco Triunfal. Fiquei por ficar, não tinha esperança nenhuma. Ao contrário, era a certeza de que o presidente não viria. Falar nisso, seria o presidente? Um homem
falando comigo tão simplesmente. Distribuindo sorvetes? Não, pra cima de mim, não!
– Meu senhor, a festa acabou.
– Eu sei.
– E o que faz aqui?
– Já vou indo.
– Por favor, vá mesmo. Não podemos permitir que ninguém permaneça por aqui.
Eu podia saltar sobre este velho vigia, amordaçá-lo. E entrar nos prédios, em busca da Máquina. O vigia é um homem frágil, indefeso, não traz armas. Provavelmente
tem um equipamento eletrônico qualquer. Se eu ataco, o equipamento dispara algum alarme, chegam as brigadas, as milícias. Sei lá, alguma coisa deve chegar, estou
só supondo. Nunca houve qualquer tentativa contra a Máquina. Por que haveria de ter? Todos a adoram, ela trouxe emprego, felicidade, dinheiro, bem-estar. Ou não
trouxe? Ou estamos todos camuflando, fingindo? Que pensamento mais curioso: e se, na verdade, toda esta população odiasse a Máquina? Odiasse com toda a força. O
presidente, ou quem quer que seja, disse que ela sente as coisas. Sentiria então a vibração de todos os pensamentos negativos da cidade. E se destruiria por si mesma.
Ou destruiria o povo.
Bobagem. Besteira minha imaginar que a Máquina possa sentir, vibrar, se emocionar. Na verdade, ele está tão condicionado, tão subordinado, tão fechado a todo o resto,
que a Máquina passou a agir como um super ser humano. E se a Máquina não existir? Será pior para a cidade? De repente, o prédio está vazio, a empresa é fictícia,
os cargos são falsos, estamos todos representando uma comédia. Vai ver, é isso. Todas as coisas que aconteceram estão dentro da nossa imaginação. Idealizamos tudo
com força, movidos pela necessidade, pela miséria, pela ameaça de um futuro negro, pelo medo da punição se não andarmos certos. Com tal força que tudo se materializou.
Construímos esta Máquina com o nosso pensamento? Ou ela sempre existiu, sem que soubéssemos?
– Estou esperando. O senhor não vai?
– Me dê tempo!
– Que tempo, que nada. Já passam vinte segundos das seis.
– E daí?
– Ninguém pode permanecer depois das seis.
– Um minuto a mais, um minuto a menos, que diferença faz?
– A Máquina percebe.
– E o que acontece?
– Ela reclama.
– Vai, vai, você também?
Conheço este vigia. Cuidava do jardim da praça. Podava sebes de buchinho, regava, todos os fins de tarde. O jardim não existe mais, é uma enorme praça de cimento,
com alguns bancos, postes altíssimos com luz de mercúrio e estacionamento para mil carros. Não ficou uma só das setecentas árvores copadas.
– Por favor, vá embora.
– Não!
– Saia.
– Não saio.
Corri. Em que prédio ela se abrigaria? Seria realmente no hangar? Ou num desses menores. O presidente, ou o que se fingia de presidente, garantiu que ela é pequena,
mínima, delicada. Em qual? Em qual?
– Máquina. Me responde! Quero te ver.
Corria. Desesperado. Como se soubesse que era a última chance de vê-la. Gritava para as paredes e os altos muros ecoavam minha voz. O engraçado é que os prédios,
modernos, de aço, alumínio, não combinavam com os jardins e alamedas feitos à antiga. Havia árvores e espelhos de água, pontes chinesas e quiosques, caramanchões.
Um lugar onde a gente se sentia bem. E gostaria de ficar toda a vida.
– Máquina. Você está se escondendo!
Súbito, parei. Será que estou louco? Entrei na onda dos outros? Acreditando que a Máquina tenha vida e saiba que estou à sua procura. Incrível como podem condicionar
a gente. Aqui estou, esperando que ela responda. Que brinque de esconde-esconde comigo. Que começe a resfolegar, como disse o velho vigia. Estou olhando cada janela,
lendo cada flecha indicativa. Em nenhuma, uma informação que me leve a ela. A bicha, bruta, carinhosa, monstrão devorador, amiga, mãe protetora, namorada, irmã,
amante. Ela, essa coisa que se instalou em nossas vidas para não mais sair.
– Máquina. Desgraçada de Máquina. Sou eu. Se você sabe tudo, me conhece. Me odeia. Acabe comigo, Máquina, se puder.
Nada. Ou ela é algo distante, inacessível, incomum, e conhece sua posição quase imortal ou então me despreza, o verme que a desafia. Ou ela é, simplesmente, uma
Máquina, um monte de ferragens que trabalha quando ligam o botão, indiferente a tudo que se passa.
Fui agarrado no momento em que tentava ver se os alto-falantes possuíam um transmissor de TV, circuito interno, ou microfones. Eram muitos, não sei quantos. Jogaram
um saco sobre minha cabeça, amarraram, me levaram. Fui deixado numa sala. Inteira azul, com uma lâmpada de néon. Depois, apagaram a lâmpada e dormi. Acordei, estava
escuro, não havia nenhum barulho. Fiquei um longo tempo acordado, esperando. Longo ou curto? Como saber? Acenderam a luz, e nada mais. Tive fome, sede, descobri
um banheiro. O que era aquilo? Uma cela? Um quarto de hospital? Apagaram a luz. Bebi água do banheiro, mas a fome não podia matar com água. Uma noite, me retiraram
e me deixaram na grande praça do estacionamento. Fui para casa, minha mãe chorava. Consolada pelas vizinhas. No dia seguinte, voltei ao meu emprego nas embalagens.
Para saber que tinha sido despedido.
– Só porque faltei um dia?
– Um dia?
– Quanto foi?
– Um tempão, um tempão.
– Não pode ser.
– Não pode, mas foi.
Estavam me pagando direito. Me deram os papéis para o Fundo de Garantia. Só não queriam perguntas. Nesta cidade, um homem de cinquenta anos não consegue emprego
com tanta facilidade. Principalmente eu que nunca tinha trabalhado com a empresa, auxiliando a Máquina. Era uma grande desvantagem. Desconfiavam, era um crédito
negativo. A minha sorte é não ter família para sustentar, não ter casa, nem aluguel, nem crediários. Qualquer coisa me serve. Assim, aceitei a faxina de um supermercado,
onde sempre posso roubar frutas e iogurtes e ir enganando, para não ter de almoçar ou jantar. Mas o que me levou a aceitar o baixo salário foi a possibilidade de
observar os jardins e os prédios. Da janela do banheiro, posso ver os edifícios de alumínio e aço. Num deles, ela está escondida. Posso ver mais ainda. Os campos
desolados, áridos, cinzas, onde antigamente havia o cinturão de hortas de que a cidade se orgulhava.
Fico horas na janela, contemplando. Um dia, ela há de me dar um sinal e vou pular muros e grades, enfrentar vigias. Chegarei até ela. Será um encontro? Um torneio,
uma disputa?
Uma sexta-feira, pela manhã, eu passava o pano com detergente no chão plastificado, quando o homem que comprava bananas se aproximou:
– Me desculpe. Não foi o senhor que prendemos nos jardins, gritando e arrebentando os alto-falantes?
– Foi. Mas não vi quem me prendeu.
– A técnica do saco é perfeita. Nela só trabalham os caçadores de coelhos, gente que tinha experiência no campo. Mas não trabalho mais nela. Estou no setor de reparações.
– Não estava bem como ensacador?
– Precisam de gente nos reparos. A seção está se expandindo. Todos os novos contratados estão nos reparos.
– A Máquina anda ruim de novo?
– Está pererecando um pouco.
Já vi o que vai dar na cidade. Volta o clima de insegurança. O povo invadirá os supermercados, fazendo compras enormes. Vão tirar o dinheiro dos bancos e guardar
em casa, antes que os bancos fechem.
Comecei a ver no supermercado velhos amigos, com quem não falava há anos. Agora, cumprimentavam, acenavam. Chegavam.
– Como vai lá?
– Tudo bem.
– Faz o que, agora?
– Trabalho nos reparos.
– A Máquina anda dando trabalho?
– Acham que ela está velha. Já existem novos modelos. Mas uma troca, a esta altura, vai custar tanto, será tão complicado que pode arruinar a cidade. A cidade? O
país inteiro. Todo mundo encomenda serviços aqui.
– Me diz uma coisa. Que tipo de serviço?
– Todos os tipos. Todos. O que o país precisar, a Máquina realiza.
– Me conta uma coisa só que ela faça.
– Sabe quantos livros existem sobre as coisas que a Máquina faz?
– Não.
– Doze mil. Escritos por técnicos que vieram fazer cursos de especialização.
– Onde estão os livros?
– Na biblioteca da empresa.
– Não existem para comprar?
– Claro que não.
Meu superintendente apareceu, olhou severo. Não disse nada, porque é surdo-mudo. Só olha e sei que devo retornar ao serviço. Daquele dia em diante, passei a perguntar
a todo mundo que trabalhava junto à Máquina.
– Você está fazendo o quê?
– Estou nos reparos.
Comecei a ir à Porta Monumental de Saída. Indagava de um e outro, escolhidos ao acaso. Um mais bem-vestido, outro menos, um mais novo, um madurão, um velho.
– Você faz o que aí na empresa?
– Trabalho nos reparos.
A mesma resposta. Será que a minha pesquisa estava sendo conduzida de modo errado? Não podiam todos trabalhar nos reparos.
– O senhor também trabalha nos reparos?
– Claro, por quê?
– É que tem um filho meu nessa seção, precisava falar com ele.
– Só o departamento do pessoal pode informar. Não sei se o senhor sabe, mas todos os prédios agora pertencem aos Reparos. É preciso saber o setor, depois o departamento,
depois a seção mecânica, a ala, o bloco, o edifício, a sala, o tabique.
– Tudo reparos? Que estranho.
– Por quê?
– A Máquina quebrou?
– O senhor está louco? A Máquina não quebra. Não pode quebrar. Se isso acontecesse, que Deus nos livre, estaria tudo perdido. O mundo desmontaria. Esta cidade se
acabaria, o país iria à bancarrota.
– O senhor acredita que a Máquina não quebra nunca? Como pode acreditar?
– Não é simples crença. É fé. É uma força que me diz isso. Que diz a todos nós.
Não sou eu que estou louco, é a cidade, esta gente. Quem sabe a empresa não é um grande hospício, onde todos se fingem empregados da Máquina? Mas também é pretensão
minha querer ser o único normal. Posso estar louco também e esta é uma sensação desagradável. Fico flutuando, sem saber quem sou, sem me relacionar, sem me adaptar
a uma realidade. No entanto, qual a realidade desta minha cidade? Não reconheço mais nada e não aceito o que está aí. Deve haver outros como eu, procurando saber.
Como encontrá-los para me livrar desta angústia e solidão? Isto é solidão. Não entender o que se passa à sua volta. Querer, e não conseguir. Continuo indagando,
sempre que possível. Às vezes, vejo uma cara nova, tento me aproximar. São desconfiados, têm medo de perder os empregos.
Os trens, as jamantas, os caminhões, as peruas, todos os tipos de viaturas continuam chegando e partindo, carregando coisas desconhecidas para mim. Ou para todos,
não se sabe. A população continua fechada, silenciosa, hostil às perguntas. Apenas desfrutando de uma coisa que, agora ela teme, pode acabar. E por isso todos vivem
como se amanhã a Máquina não estivesse mais aqui. Gastam, compram muito, dão festas. As bebedeiras são imensas, os fins de semana são carregados de acidentes nas
ruas e estradas, todo mundo correndo com os carros. Há uma grande necessidade de se aproveitar integralmente cada momento.

 

 

                                                                  Ignácio de Loyola Brandão

 

 

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