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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADERNOS DA CASA MORTA / Fiódor Dostoiévski
CADERNOS DA CASA MORTA / Fiódor Dostoiévski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

yle="text-align: justify;">Nas paragens longínquas da Sibéria, no meio de estepes, montes ou florestas intransitáveis, encontram-se, de onde a onde, cidades pequenas com mil ou, no máximo, dois mil habitantes, cidadezinhas de madeira, sem graça, com duas igrejas — uma na cidade, outra no cemitério —, que mais parecem uma boa aldeia dos arredores de Moscovo do que uma cidade. Por norma, são suficientemente providas de chefes de polícia, fiscais e toda a restante função pública subalterna. Em geral, na Sibéria, apesar do frio, o serviço é bem quentinho. Vive lá gente simples, nada liberal; os hábitos são velhos, sólidos, consagrados pelos séculos. Os funcionários públicos que, com toda a justiça, desempenham o papel de fidalguia siberiana, ou são de origem local, siberianos de gema, ou vieram da Rússia, atraídos pelas sobrevalorizações dos vencimentos, pelos subsídios de deslocação duplos e pelas sedutoras esperanças no futuro. Quem, de entre eles, sabe resolver o enigma da vida, fica para sempre na Sibéria com prazer. Mais tarde, colherá os frutos ricos e doces. Outros, porém, gente leviana e sem capacidade de resolver o enigma da vida, rapidamente se aborrecem na Sibéria e perguntam a si mesmos, com mágoa: por que vim cá parar? Cumprem com impaciência a sua legítima comissão de serviço, ou seja, três anos; expirado o prazo, providenciam de imediato a transferência e voltam para as suas terras, criticando a Sibéria, ironizando com ela. Não têm razão: é possível prosperar na Sibéria não só em termos de serviço, mas também de muitos outros pontos de vista. O clima é excelente, há muitos comerciantes ricos e hospitaleiros, muitos aborígenes são razoavelmente abastados. As meninas florescem como rosas e têm uma moral muitíssimo alta. A caça voa pelas ruas e esbarra, ela própria, no caçador. Bebe-se quantidades antinaturais de champanhe. O caviar é um espanto. Nalguns sítios, a semente multiplica-se por quinze na colheita... No geral, é uma terra bendita. Só é preciso saber aproveitá-la. Na Sibéria, sabem aproveitá-la.
Numa destas cidadezinhas alegres e satisfeitas consigo próprias, com uma população simpaticíssima cuja memória jamais se apagará do meu coração, encontrei Aleksandr Petróvitch Goriántchikov, colono, que nascera na Rússia fidalgo e proprietário rural, depois se tornara presidiário e deportado de segunda classe pelo assassínio da sua mulher e que, cumpridos os dez anos de trabalhos forçados a que fora condenado pela lei, vivia os últimos anos da sua vida nesta cidade, como colono, resignada e sossegadamente. Na verdade, estava adstrito a uma circunscrição dos arredores, mas morava na cidade, tendo a possibilidade de angariar algum do seu sustento, pelo menos, como precetor. Nas cidades siberianas há muitos precetores que são colonos deportados — não os rejeitam. Dão aulas, sobretudo, de língua francesa, tão necessária às carreiras, língua de que, nas terras longínquas da Sibéria, não se teria a mínima noção se não fossem estes precetores. Encontrei Aleksandr Petróvitch pela primeira vez em casa de um funcionário de carreira, emérito e hospitaleiro, de nome Ivan Ivánitch Gvózdikov, que tinha cinco filhas de várias idades, muito prometedoras. Aleksandr Petróvitch dava-lhes aulas quatro vezes por semana, a trinta copeques de prata cada lição. O aspeto físico do homem despertou o meu interesse. Era pálido e magro, nada velho ainda, teria uns trinta e cinco anos, pequeno, mirrado. Sempre muito asseado e vestido à moda europeia. Se alguém metia conversa com ele, olhava com muita fixidez e atenção, ouvia com gravidade e educação cada palavra, como que a refletir nela, como se lhe estivessem a propor um problema ou quisessem arrancar-lhe algum segredo, e, por fim, respondia de modo conciso e claro, mas pesando de tal modo cada palavra da sua resposta que o interlocutor, por qualquer razão, se sentia de repente embaraçado e acabava por ficar contente quando a conversa terminava. Nesse mesmo dia indaguei sobre ele junto de Ivan Ivánitch e fiquei a saber que Goriántchikov vivia de maneira impecável e moral e que, se assim não fosse, Ivan Ivánitch não o teria convidado para dar aulas às filhas; no entanto, era muito insociável, escondia-se das pessoas; era cultíssimo, lia muito mas falava pouco, era mesmo bastante difícil travar uma conversa com ele. Havia quem afirmasse que o homem, evidentemente, era louco, embora, no fundo, achassem que isso não era um defeito assim tão importante, havendo mesmo muitos membros eméritos da cidade que estavam prontos a acarinhar Aleksandr Petróvitch, em todos os sentidos, além de que o homem poderia até vir a ser útil para escrever solicitações, etc. Supunha-se que ele teria um parentesco respeitável na Rússia, pertencendo mesmo a famílias de alta posição, mas sabia-se que, desde que fora deportado, Goriántchikov cortara definitivamente todos os laços com os parentes — causando, em resumo, um grande prejuízo a si mesmo. Além disso, entre nós, toda a gente conhecia a sua história, sabia-se que matara a mulher logo no primeiro ano de casamento, por ciúmes, e que depois se entregara (o que lhe atenuou a sentença). Ora, crimes deste género são sempre vistos como desgraças e provocam comiseração. Mesmo assim, o esquisito do homem afastava-se com persistência de toda a gente e apenas ia ter com as pessoas para dar explicações.
De início, não lhe dediquei atenção especial; mas, sei lá porquê, a pouco e pouco começou a interessar-me. Havia nele alguma coisa de enigmático. Conversar com ele não era de todo possível. É verdade que respondia sempre às minhas perguntas e, até, como se isso fosse uma sua obrigação indispensável; mas, obtidas as respostas, eu sentia que era inoportuno continuar a puxar por ele; além disso, depois das nossas conversas, ficava-lhe sempre gravado no rosto o sofrimento e o cansaço. Lembro-me de que, num princípio de noite maravilhosa de verão, caminhávamos juntos, de volta da casa de Ivan Ivánitch. De súbito, passou-me pela cabeça convidá-lo para minha casa por uns momentos, para fumarmos um cigarrinho. É indescritível o terror que se pintou na cara dele; ficou completamente atrapalhado, começou a murmurar palavras desconexas e, de repente, lançando-me um olhar raivoso, deitou a correr na direção oposta. Confesso que me espantei. Desde então, quando se encontrava comigo, olhava para mim com uma espécie de susto. Não desisti, qualquer coisa me atraía nele; passado um mês, sem qualquer razão, resolvi passar por casa de Goriántchikov. Procedi de modo estúpido e pouco delicado, isso é evidente. Ele tinha um quarto alugado nos confins da cidade, em casa de uma velha popular1 que tinha uma filha tísica, e esta, por sua vez, uma filha ilegítima de dez anos, criança bonitinha e alegre. Quando entrei, Aleksandr Petróvitch estava a ensiná-la a ler. Ao ver-me, ficou tão confuso como se eu o tivesse apanhado a cometer um crime. Embaraçou-se, saltou da cadeira e ficou a olhar para mim com os olhos escancarados. Por fim, sentámo-nos; seguia fixamente os meus olhos, como se suspeitasse de que todos os meus olhares tinham um qualquer sentido secreto. Percebi que o homem era desconfiado até à loucura. Olhava para mim com ódio e por pouco não perguntava: «Quando é que, finalmente, te vais embora?» Comecei a falar da nossa cidadezinha, das novidades correntes; ele guardava silêncio e sorria com raiva; verifiquei que não só não conhecia as notícias mais corriqueiras e divulgadas da cidade como também não tinha qualquer interesse em conhecê-las. Falei, depois, da nossa região, das suas necessidades; ouvia-me em silêncio e olhava-me nos olhos de maneira tão estranha que acabei por ficar envergonhado de tentar conversar com ele. Contudo, quase o conquistei com livros e revistas novos — tinha-os nas mãos, acabados de levantar nos correios, e propunha-lhe emprestar-lhos, com as folhas ainda por cortar. Lançou-lhes um olhar ávido, mas logo mudou de ideias e declinou a proposta, alegando falta de tempo. Finalmente, despedi-me dele e, quando saí, senti que se me alijara do coração um peso insuportável. Sentia vergonha e achava que tinha sido extremamente estúpido incomodar uma pessoa que se tinha proposto como objetivo, precisamente, esconder-se o mais longe possível do mundo. Mas o que estava feito, feito estava. Lembro-me de que não vi em casa dele quase livros nenhuns, logo, não era verdade ele ler muito, como diziam. No entanto, por duas vezes que passei de coche, à noite, pelas janelas dele, vi que tinha luz no quarto. O que fazia ele, então, sentado sem dormir, até de madrugada? Escreveria? E, se escrevia, o quê?
Houve circunstâncias que me obrigaram a ausentar da nossa cidadezinha por cerca de três meses. Quando regressei, já no inverno, soube que Aleksandr Petróvitch morrera no outono, completamente sozinho, sem chamar uma única vez o médico. Na cidade já quase o tinham esquecido. O quarto dele estava vago. Fiz logo conhecimento com a senhoria do falecido, na intenção de deslindar junto dela: de que coisa especial se ocupava o inquilino? Escrevia alguma coisa? Por vinte copeques, trouxe-me um cesto cheio de papéis que o falecido deixara. A velha confessou que já usara dois cadernos. Era uma mulher sombria e taciturna de quem era difícil tirar alguma coisa útil. Sobre o defunto inquilino, não sabia dizer-me nada de especialmente novo. Segundo ela, quase não fazia nada e passava meses sem abrir um livro ou pegar na pena; cirandava pelo quarto noites inteiras, a magicar, às vezes falava sozinho; afeiçoara-se muito à sua neta, a Kátia, e era muito carinhoso com ela, sobretudo depois de saber que ela se chamava Kátia; que, no dia de Santa Catarina, mandava sempre dizer uma missa por alma de alguém. Não suportava visitas; saía de casa apenas para dar explicações às crianças; até para a velha olhava de soslaio, quando ela, uma vez por semana, entrava no quarto dele para o arrumar, pelo menos um pouco, e quase não lhe dirigira a palavra nos três anos que fora seu inquilino. Perguntei a Kátia se se lembrava do seu professor. Olhou para mim em silêncio, virou-se para a parede e chorou. Portanto, aquele homem fora capaz de despertar amor por si, pelo menos numa pessoa.
Levei comigo os papéis e passei o dia a examiná-los. Três quartos da papelada estavam em branco, ou eram folhas sem importância, ou tinham exercícios de caligrafia dos alunos. Havia porém um caderno, bastante volumoso, inacabado e preenchido com uma letra miudinha, talvez abandonado e esquecido pelo próprio autor. Era uma descrição, embora desconexa, dos dez anos de trabalhos forçados que Aleksandr Petróvitch cumprira. Por vezes, a descrição era interrompida por uma outra história, onde perpassavam recordações estranhas e terríveis, rabiscadas de modo irregular, convulso, como que movidas por uma qualquer coação. Reli várias vezes estes fragmentos e quase me convenci de que tinham sido escritos num estado de loucura. No entanto, pareceu-me que os apontamentos sobre os trabalhos forçados — «Cenas da Casa Morta», como ele próprio os designava algures no manuscrito — não eram inteiramente destituídos de interesse. Um mundo completamente novo, até hoje desconhecido, a estranheza de certos factos, algumas observações especiais sobre o povo perdido arrebataram-me, e li algumas coisas com curiosidade. Sou capaz, obviamente, de estar enganado. À laia de experiência, escolho, para começar, dois ou três capítulos; que o público julgue...

1 «Popular», na nossa tradução, designa um plebeu não camponês ou, mais exatamente, um «não nobre». Na Rússia de então havia os «nobres», nos quais se incluíam todos os funcionários, num ou noutro grau (havia catorze), os populares e, abaixo destes, apenas os mujiques (camponeses). (NT )

 

 

 

 

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A Casa Morta

A nossa prisão ficava no extremo do forte, mesmo junto do seu aterro. Às vezes olhava pelas fendas da paliçada para o mundo de Deus: ver-se-á alguma coisa? — e não via mais do que um pedacinho do céu e o aterro alto coberto de ervas daninhas e, pelo aterro fora, dia e noite, as sentinelas a andarem para trás e para a frente, e pensava de imediato que assim se passariam os anos, mas eu continuaria sempre, do mesmo modo, a aproximar-me da paliçada para espreitar pelas frinchas e ver o mesmo aterro, as mesmas sentinelas e o mesmo bocadinho de céu, não do céu por cima do forte, mas do outro, do céu longínquo, livre. Imaginem um terreiro grande, de duzentos passos de comprido por cento e cinquenta de largo, a toda a roda, em forma de hexágono irregular circundado por uma paliçada alta formada por postes profundamente cravados na terra, apertados uns contra os outros pelas arestas, unidos com ripas transversais, uns postes em riste de pontas aguçadas: eis a muralha do forte. Num dos lados da muralha foi construído um portão sólido, sempre fechado e guardado dia e noite por sentinelas; só se abria quando era dada a ordem de deixar sair os presos para os trabalhos. Do lado de lá do portão era o mundo luminoso, livre, onde as pessoas viviam a sua vida de gente normal. Mas, deste lado da muralha, imaginava-se esse mundo como um conto de fadas irrealizável. Deste lado era um mundo especial, sem comparação com nada; tinha as suas leis particulares, os seus trajes próprios, os seus costumes e tradições, era uma casa morta em vida, e não havia em qualquer outro lugar uma existência como esta, e as pessoas eram outras. É este o recanto peculiar que agora começo a descrever.

Quando entramos para dentro da muralha, vemos várias construções. De ambos os lados de um terreiro largo erguem-se duas, a todo o comprido, de madeiros. De um só piso. São as casernas. É aqui que vivem os presidiários, distribuídos por categorias. Ao fundo do terreiro, mais uma construção igual: é a cozinha, dividida em duas secções; mais atrás ainda, outras duas construções, que abrigam as caves, os celeiros, os barracões. O centro do terreiro é como uma parada vazia, plana, bastante grande. É aqui que formam os presidiários para as chamadas da manhã, do meio-dia e da noite, ou mesmo mais, durante o dia — dependendo da desconfiança dos guardas e da sua capacidade de fazerem uma contagem rápida. À volta, entre as construções e a paliçada, sobra ainda um espaço bastante grande. Aqui, nas traseiras dos edifícios, alguns presidiários menos sociáveis e mais sombrios gostam de passear nas horas livres de trabalho, escondidos de todos os olhares, remoendo tristezas. Quando me cruzava com eles durante os nossos passeios, gostava de lhes perscrutar as caras carrancudas, marcadas com o ferro, e adivinhar-lhes os pensamentos. Havia um deportado que tinha como passatempo preferido, nas horas livres, contar os troncos da paliçada. Eram cerca de mil e quinhentos — tinha-os contados e registados. Cada tronco correspondia a um dia; todos os dias ele contava um tronco e, assim, pelo número de troncos que restavam, calculava os dias que ainda lhe faltavam para o termo dos trabalhos forçados. Ficava sinceramente feliz quando terminava um dos lados do hexágono. Tinha ainda muitos anos à frente dele, mas na prisão há tempo para se aprender a ter paciência. Assisti ao momento em que um preso, que passara vinte anos nos trabalhos forçados e, finalmente, saía em liberdade, se despedia dos seus companheiros. Havia quem se lembrasse da entrada dele no presídio, jovem, despreocupado, sem pensar no seu crime nem no seu castigo. Quando saiu, era já um velho de cabelo branco, de cara sombria e triste. Passou em silêncio por todas as nossas seis casernas. Entrava em cada caserna, rezava diante dos ícones, depois fazia vénias profundas aos companheiros, pedindo que não lhe guardassem rancor. Lembro-me também de que uma vez, num fim de tarde, chamaram um preso, outrora mujique siberiano abastado, ao portão. Meio ano antes tinha recebido a notícia de que a sua ex-mulher voltara a casar, e ficou muito triste. Dessa vez, então, ela própria veio à prisão, deu-lhe esmola, falaram dois minutinhos, choraram ambos e despediram-se para sempre. Vi o rosto dele quando voltava para a caserna... Sim, naquele lugar era possível aprender-se a ter paciência...

Quando escurecia, faziam-nos entrar a todos nas casernas, onde nos fechavam para a noite. Custava-me sempre voltar do terreiro para a minha caserna. Era um recinto comprido, de tecto baixo, mal alumiado por velas de sebo, o ar era abafado, com um cheiro pesado, asfixiante. Não compreendo, agora, como consegui sobreviver durante dez anos dentro dela. Tinha um catre de três tábuas — tudo o que me fora reservado. Na nossa camarata acomodavam-se, em catres como este, cerca de trinta pessoas. No inverno, as portas fechavam cedo; demorava umas boas quatro horas até todos adormecerem. Até lá, era o barulho, a gritaria, os palavrões, o tinir dos grilhões, o fumo e a fuligem, as cabeças rapadas, as caras marcadas a ferro, a roupa de remendos — tudo vexame, humilhação... Sim, o homem é um bicho resistente! O homem é uma criatura que se habitua a tudo e, acho eu, essa é a melhor das suas definições.

Em todo o forte havia cerca de duzentas e cinquenta pessoas presas — um número quase constante. Chegavam uns, partiam outros que tinham cumprido a pena, outros morriam. Que género de pessoas não passou por ali! Acho que não havia província, que não havia zona da Rússia que não estivessem ali representadas. Havia também os que não eram russos, havia mesmo deportados do Cáucaso montanhês. Toda esta gente se subdividia de acordo com o nível de gravidade do seu crime e, por conseguinte, com a duração da pena. É de supor que não houvesse crime que não tivesse ali o seu representante. A base da população prisional era formada pelos deportados de direito comum. Tratava-se dos criminosos privados de todos os direitos civis, rejeitados pela sociedade, com a marca do ferro nos rostos, a marca eterna da sua exclusão. Cumpriam as suas penas de trabalhos forçados de oito a doze anos, depois eram distribuídos pelos distritos siberianos como colonos. Havia também condenados por terem infringido o direito militar, mas esses não eram privados dos direitos civis, como é habitual nos destacamentos militares correcionais da Rússia. Eram mandados para ali por prazos curtos, depois eram recambiados para os mesmos lugares, para servirem como soldados nos batalhões de guarda fronteiriça. Muitos deles regressavam quase de imediato à prisão, por terem voltado a cometer crimes graves, mas então já as penas não eram leves, podiam apanhar vinte anos. Chamava-se a esta categoria de presidiários os «de sempre». Mesmo assim, os «de sempre» não eram privados em absoluto de todos os seus direitos civis. Por fim, havia a categoria especial dos criminosos mais terríveis, preponderantemente militares, bastante numerosa. Chamava-se a «secção especial». Chegavam àquela secção criminosos de toda a Rússia. Eles próprios se consideravam perpétuos e desconheciam a duração da sua pena. Por lei, havia o direito de lhes duplicar e triplicar as normas de trabalho. Eram mantidos presos até serem instaurados na Sibéria os trabalhos forçados mais penosos. «Vós estais cá a prazo, e nós enquanto durarem os trabalhos forçados», diziam aos outros reclusos. Ouvi dizer que, mais tarde, esta categoria fora anulada. Acabaram também, no nosso forte, com a categoria de presos de direito comum, tendo sido instituído um destacamento correcional militar geral. É óbvio que, juntamente com isso, mudaram as chefias. Estou, por conseguinte, a descrever tempos antigos, coisas há muito terminadas e desaparecidas...

Tudo isso, portanto, desapareceu há muito, e vejo-o, agora, como um sonho. Lembro-me da minha entrada no presídio. Foi ao anoitecer, no mês de dezembro. Escurecia, as pessoas voltavam do trabalho; preparava-se a chamada de presença. Um sargento bigodudo abriu-me, finalmente, as portas dessa casa estranha, casa onde eu deveria passar tantos anos, suportar sensações que, se não as tivera experimentado na prática, não teria sequer a noção de como seriam. Por exemplo, não teria imaginado como podia ser tão terrível e doloroso nunca ficar sozinho, nem por um minuto, em todos os dez anos dos meus trabalhos forçados. No trabalho, a escolta sempre presente; no forte, sempre no meio dos meus duzentos companheiros, e nunca, nem uma única vez — sozinho! De resto, não era isto o pior a que teria ainda de habituar-me!

Havia lá assassinos por acaso e assassinos por profissão, bandidos e cabecilhas de bandos. Havia simples vigaristas e vagabundos que apanhavam dinheiro onde calhasse, e também gatunos. Havia alguns outros, ainda, sobre quem era difícil formar um juízo: por que razão poderiam, aparentemente, ter ido parar ali? Entretanto, cada qual tinha a sua história, brumosa e pesada como ressaca de bebedeira da véspera. No geral, as pessoas falavam pouco do seu passado, não gostavam de contar nem pensar, pelos vistos, no que lhes tinha acontecido. Conheci mesmo assassinos tão alegres e tão avessos a pensar nalguma coisa que se podia apostar: a consciência deles nunca lhes pesou. Mas havia também indivíduos sombrios, quase sempre calados. No todo, raramente alguém contava a sua vida, até porque a curiosidade não era moda, nem costume, não se considerava conveniente. A não ser que alguém, por desfastio, soltasse a língua e outro alguém o ouvisse, carrancudo e frio. Ninguém ali era capaz de surpreender os outros: «Somos gente alfabetizada!» — diziam muitas vezes, com uma estranha presunção. Lembro-me de que, uma ocasião, um bandido embriagado (às vezes era possível alguém embebedar-se) começou a contar como matara à facada um garoto de cinco anos, como primeiro o enganou, aliciando-o com um brinquedo, como o levou para um barracão vazio e o matou lá. Toda a caserna, que havia pouco ainda se ria com as suas piadas, soltou um berro — todos, até ao último homem —, e o bandido foi obrigado a calar-se; mas não tinha sido por indignação que a caserna gritara em uníssono, mas simplesmente porque não se podia falar disso, porque falar disso era considerado inconveniente. Tenho de observar, a propósito, que essa gente era de facto alfabetizada, e não no sentido figurado, mas no sentido direto da palavra. Talvez mais de metade deles soubessem ler e escrever. Em que outro lugar onde se amontoe povo russo em grande chusma seria possível um grupo de duzentas e cinquenta pessoas em que metade delas fosse alfabetizada? Cheguei a ouvir, mais tarde, que alguém já deduzira deste facto que a alfabetização leva o povo à perdição. É errado: as causas são completamente outras; no entanto, é de admitir que a alfabetização desenvolve a presunção no povo, o que, de resto, não é defeito nenhum. Todas as categorias de presidiários se distinguiam pela roupa: havia quem tivesse uma metade do casaco parda-escura e a outra metade cinzenta; e a mesma coisa acontecia com as calças: uma perna cinzenta, a outra de um escuro carregado (uma vez, no trabalho, uma garota que se tinha aproximado dos presos, uma vendedora de kalatches2, pôs-se a olhar muito fixamente para mim e, de repente, desatou às gargalhadas: «Fuu, que mal-amanhado! — gritou. — Faltou-lhe o pano cinzento, faltou-lhe também o preto!»). Havia quem tivesse o casaco de uma só cor — cinzento — e só as mangas em castanho-escuro. As cabeças também eram rapadas de modo diferente: umas eram-no só por metade, longitudinalmente, outras transversalmente.

Era possível, num primeiro olhar, reparar numa peculiaridade nitidamente comum a esta estranha família: mesmo as individualidades mais originais e marcantes, que dominavam os outros espontaneamente, faziam tudo para estarem em completa sintonia com todo o presídio. Em geral, tenho de dizer que todo este povo, excluindo alguns poucos de feitio inesgotavelmente alegre e que eram, por isso mesmo, desprezados por todos, era sombrio, invejoso, terrivelmente vaidoso, fanfarrão, susceptível e formalista em extremo. A capacidade de não se surpreender com nada fora elevada à categoria de virtude máxima. Todos eram maníacos da aparência que deviam mostrar. Mas não era raro que o ar mais arrogante mudasse rapidamente para o mais pusilânime. Havia pessoas verdadeiramente fortes; gente simples, sem requebros. Coisa estranha, porém: entre esses homens verdadeiros, fortes, alguns eram vaidosíssimos, quase doentiamente. No geral, a vaidade e a aparência vinham em primeiro lugar. A maioria estava depravada e estragada até ao último grau. Os mexericos e o diz-que-diz eram permanentes: um inferno, as trevas horríveis. Ora, contra os estatutos internos e os costumes convencionais da prisão ninguém ousava revoltar-se: toda a gente se submetia. Havia carateres notáveis que só a grande custo se submetiam, contrariados, mas acabavam por se submeter. Chegavam ao presídio alguns que, em liberdade, passaram muito das marcas, ao ponto de cometerem os seus últimos crimes como se não fosse por vontade própria, como se não soubessem por que o faziam, como que em delírio, numa embriaguez, muitas vezes pela vaidade excitada ao extremo. Pois bem, aqui eram refreados de imediato, embora alguns, antes da prisão, fossem o terror de aldeias e cidades inteiras. Olhando em volta, o novato descobria rapidamente que isto aqui era outra coisa, que viera parar a um sítio onde não podia espantar ninguém e, a pouco e pouco, resignava-se e começava a entrar no tom geral. Este tom geral formava-se, exteriormente, de uma dignidade muito peculiar de que todos os presidiários se impregnavam. Como se, realmente, ser um grilheta, um condenado fosse um título, ainda por cima honorífico. Nenhuns sinais de vergonha e de arrependimento! De resto, havia também uma aparente resignação, por assim dizer oficial, uma espécie de doutrina tranquila: «Somos gente acabada — dizia-se —, quem não sabia viver em liberdade que aguente agora as vergastadas, que prove a porrada a passar pelo meio das duas filas.» — «Não deu ouvidos ao pai e à mãe, que dê agora ouvidos ao tambor.» — «Não queria fazer bordado a ouro, que dê agora marteladas às pedras.» Dizia-se muitas vezes coisas destas, tanto em forma de sermão como à laia de ditados e provérbios, mas nunca a sério. Não passava de palavras. No fundo, era pouco provável que algum deles reconhecesse a sua culpa. Que alguém de fora tente censurar um criminoso pelo seu crime, repreendê-lo (embora, aliás, não corresponda ao espírito russo exprobrar um criminoso) — ouvirá pragas sem fim! E que mestres de praguejar são todos eles! Praguejavam esmerada, artisticamente. Entre eles, as pragas eram mesmo elevadas à categoria de ciência; a intenção era ferir não tanto com uma palavra ofensiva, mas com um significado, uma ideia, um espírito de ofensa — o que é mais esmerado, mais cáustico. As altercações permanentes desenvolviam ainda mais esta sua ciência. Toda aquela gente trabalhava constrangida, o que significava que, no fundo, era ociosa, logo depravada; mesmo quem não fosse depravado antes, depravava-se nos trabalhos forçados. Todos estavam aqui reunidos contra sua vontade, todos eram estranhos entre si.

«O Diabo gastou três pares de alpargatas para nos arrebanhar numa chusma e nos enxotar para aqui!» — diziam de si mesmos; por isso, os mexericos, intrigas e calúnias de comadre, a inveja, as rixas, a raiva estavam sempre em primeiro plano nesta vida de trevas. Regateira nenhuma seria capaz de ser tão regateira como alguns destes facínoras. Repito que também entre eles havia homens fortes, carateres acostumados toda a vida a derrubar obstáculos e a mandar, temperados, destemidos. Os outros, involuntariamente, respeitavam-nos; estes homens, por seu lado, embora fossem com frequência bastante suscetíveis no tocante à sua glória, tentavam por norma não ser um incómodo para ninguém, não entravam em altercações inúteis, portavam-se com grande dignidade e ponderação, e eram sempre obedientes às autoridades — não por princípio de obediência nem por terem consciência das suas obrigações, mas, simplesmente, como se cumprissem um contrato qualquer, tendo-se consciencializado das vantagens mútuas. De resto, também eles eram tratados com cuidado. Lembro-me de que um destes reclusos, homem destemido e resoluto, cujas propensões ferozes eram conhecidas das autoridades, devia ser castigado por uma contravenção qualquer. Era um dia estival, de folga. Um oficial superior, chefe direto da prisão, foi pessoalmente ao corpo de guarda, mesmo ao lado do nosso portão, para assistir ao castigo. Este major era um ser fatídico para os reclusos, levou-os ao ponto de o temerem até aos tremores. Era severo até à loucura, «aferroava-se» contra as pessoas, como diziam os forçados. O que lhes metia mais medo era o seu olhar penetrante, de que não era possível esconder nada. Via sem olhar. Ao entrar pelo portão do presídio, já sabia o que se passava no outro extremo. Os reclusos chamavam-lhe o «Sete-Olhos». O sistema dele era errado. Com os seus procedimentos furiosos e maus, apenas exasperava pessoas já exasperadas, e se não tivesse acima dele um comandante digno e sensato, que às vezes refreava os atos selvagens do major, os seus métodos de administração teriam causado grandes estragos. Não percebo como conseguiu levar cabalmente o seu serviço até ao fim e chegar à reserva são e salvo; aliás, foi movido um processo judicial contra ele.

O preso, quando foi chamado, empalideceu. Habitualmente, com determinação, deitava-se em silêncio para ser vergastado, suportava em silêncio o castigo e, no fim, levantava-se com agilidade, encarando o azar filosoficamente e com sangue-frio. Aliás, tratavam-no sempre com cautela. Desta vez, por qualquer razão, achava-se injustiçado. Empalideceu e, às escondidas dos guardas, conseguiu meter na manga uma faca inglesa de sapateiro bem afiada. A faca e todos os objetos cortantes eram categoricamente proibidos na prisão. As buscas eram frequentes, inesperadas e minuciosas, os castigos, cruéis; mas como é difícil encontrar qualquer coisa ao ladrão quando este decide escondê-la bem, e como as facas e as ferramentas eram uma necessidade constante na prisão, apesar das rusgas e das buscas, nunca se esgotava a sua existência. Mesmo que lhes tirassem esses objetos, os presos arranjavam imediatamente outros. Toda a população prisional se precipitou para a paliçada e todos, de corações desfalecidos, espreitavam pelas frinchas. Sabiam que, desta vez, o Petrov não queria deitar-se para as vergastadas e que seria o fim do major. Mas, no momento crucial, o nosso major sentou-se no carro e foi-se embora, tendo encarregado outro oficial de executar o castigo. «Valeu-lhe o próprio Deus!» — diziam depois os reclusos. Quanto a Petrov, suportou o castigo na maior das calmas. Desapareceu-lhe a ira com a partida do major. O recluso é obediente e submisso até certo ponto, mas há um limite que não se pode ultrapassar. A propósito: não há nada mais curioso do que estas estranhas explosões de impaciência e rebeldia. Com frequência, um homem aguenta muitos anos, resigna-se, suporta castigos crudelíssimos e, de repente, explode por uma insignificância, uma ninharia, uma coisa de nada. De certo ponto de vista, é possível considerá-lo maluco; aliás, é isso mesmo que lhe chamam.

Referi já que, ao longo dos anos, não notei nestas pessoas o mínimo sinal de arrependimento, o mais ligeiro pensamento de pesar sobre o crime cometido, e que a maioria delas considera, no seu íntimo, que tem toda a razão. É um facto. Em grande parte, as causas são, evidentemente, a vaidade, os maus exemplos, a ferocidade, a falsa vergonha. Por outro lado, quem poderá afirmar que penetrou no fundo destes corações perdidos e leu neles tudo o que escondem do mundo? Ora, durante tantos anos, era impossível que eu não tivesse notado, não tivesse apanhado, não tivesse achado nesses corações pelo menos um rasto de mágoa interior, de sofrimento. Mas não, definitivamente não. Pois é, parece que o crime não pode ser compreendido a partir dos pontos de vista preconcebidos e que a sua filosofia é um pouco mais complicada do que se pensa. Está fora de dúvida que as prisões e o sistema de trabalhos forçados não corrigem o criminoso; apenas o castigam e dão à sociedade a garantia de não haver ulteriores atentados contra a sua tranquilidade. Quanto ao criminoso, a prisão e os mais duros trabalhos forçados apenas desenvolvem nele o ódio, a ânsia de prazeres proibidos e uma terrível leviandade. Quanto ao famoso sistema da reclusão solitária, estou convicto de que dá um resultado falso, enganador e aparente. Suga os sucos vitais do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-a, intimida-a e, depois, apresenta-nos uma múmia moralmente ressequida, um meio maluco com uma amostra de reparação e arrependimento. É claro que o criminoso que se revoltou contra a sociedade odeia-a e, quase sempre, considera-se dentro da razão e considera a sociedade injusta. Além disso, já sofreu o seu castigo e, por isso, quase se considera purificado e quite com a sociedade. Julgando de tais pontos de vista, torna-se possível e quase necessário justificar o próprio criminoso. No entanto, por mais pontos de vista de todo o género que se encarem, toda a gente estará de acordo que existem crimes de tal ordem, nos termos das mais variadas legislações e desde os primórdios do mundo, que são considerados crimes incontestáveis e sê-lo-ão enquanto o homem for homem. Só na prisão ouvi relatos diretos dos atos mais terríveis e antinaturais, dos homicídios mais monstruosos, relatos esses feitos por entre risos incontidos, infantilmente alegres. Não me sai da memória, sobretudo, um parricida. Era de origem nobre, estava ao serviço público e era, para o seu pai sexagenário, uma espécie de filho pródigo. Levava uma vida desvairada, atolou-se em dívidas. O pai tentava refreá-lo, persuadi-lo; como tinha uma casa, uma granja e — suspeitava-se — dinheiro... o filho matou-o, ansioso por receber a herança. O crime só foi descoberto um mês depois. O próprio assassino apresentara na polícia uma declaração do desaparecimento do pai. Passou esse mês na mais completa depravação. Por fim, numa ausência dele, a polícia encontrou o corpo. Havia uma fossa de esgotos, tapada com tábuas, ao longo de todo o quintal. O corpo estava dentro da fossa: vestido e arranjado, decapitado, com a cabeça de cabelo branco encostada ao corpo e, debaixo da cabeça, o assassino metera uma almofada. Não confessou o crime; foi privado do título de nobreza, da graduação de funcionário público e condenado a vinte anos de trabalhos forçados e deportação. Durante todo o período em que lidei com ele, tinha um estado de ânimo maravilhoso, muito alegre. Era um homem estouvado, leviano, extremamente insensato, embora não fosse nada parvo. Nunca notei nele qualquer sinal de particular crueldade. Os reclusos desprezavam-no, mas não pelo crime dele, de que já ninguém se lembrava, e sim por ser um desalinhado, por não saber comportar-se. Nas conversas, evocava às vezes o pai. Uma ocasião, falando comigo da compleição robusta hereditária na sua família, acrescentou: «Por exemplo, o meu progenitor, até à hora da morte, nunca se queixou de qualquer doença.» Uma insensibilidade animal destas é inconcebível, é um fenómeno; há nisso, mais do que um crime, um qualquer defeito orgânico, qualquer deformação física e moral que a ciência ainda não conhece. É claro que, a princípio, eu não acreditava na sua culpabilidade. Depois, houve pessoas da cidade dele, ao corrente de todos os pormenores, que me contaram tudo. Os factos eram de tal modo claros que era impossível não acreditar.

Houve reclusos que o ouviram, uma noite, a gritar durante o sono: «Segura-o, segura! Corta-lhe a cabeça, a cabeça, a cabeça!...»

À noite, quase todos os presos falavam e deliravam durante o sono. Pragas, palavrões, gíria do crime, facas, machados — era o que se lhes escapava da boca, às vezes em estado de delírio. «Somos uma gente sofrida — diziam —, temos as entranhas destroçadas, por isso gritamos à noite.»

Os trabalhos forçados, ou trabalhos escravos, não eram uma ocupação, eram uma obrigação: o condenado cumpria a sua norma, ou as horas obrigatórias de trabalho, e voltava à prisão. Encarava o trabalho com ódio. Mas, sem qualquer coisa própria para fazer, sua, sem um trabalho a que dedicasse todo o seu tento e cabeça, o indivíduo não poderia viver na prisão. De facto, como poderia toda aquela gente, desenvolvida, com muita experiência da vida e uma enorme ânsia de viver, reunida ali à força, arrancada à força da sociedade e da vida normal, adaptar-se a semelhantes condições de uma maneira normal e correta, de sua livre vontade? A ociosidade desenvolveria nele características criminosas de que nem sequer tinha noção outrora. Sem trabalho e sem propriedade normal e legítima o homem não pode viver, corrompe-se, transforma-se num animal. Por isso, por necessidade natural e por instinto de sobrevivência, cada preso tinha o seu ofício e a sua ocupação. O longo dia de verão era quase todo preenchido com o trabalho oficial; durante a escassa noite, mal tinha tempo de dormir o suficiente. No inverno, porém, de acordo com o regulamento, o recluso tem de ser fechado na caserna mal escurece. O que pode ele então fazer durante o longo e enfadonho fim de tarde invernal? É por isso que quase todas as casernas, apesar da proibição, se transformam numa enorme oficina. Na essência, o trabalho, as diversas ocupações não estavam proibidos, o que se proibia rigorosamente era ter ferramentas dentro da prisão; ora, sem ferramentas, o trabalho era impossível. Trabalhava-se à socapa, e a chefia, ao que parece, fechava os olhos a isso. Muitos presidiários chegavam cá sem saberem fazer nada, mas aprendiam com os outros e, quando saíam em liberdade, já eram bons artífices. Havia cá sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros, talhadores, douradores. Havia um judeu, Issai Bumstein, ourives e também agiota. Todos trabalhavam para ganharem o seu copeque. As encomendas eram arranjadas na cidade. O dinheiro é liberdade cunhada, por isso, para uma pessoa privada da liberdade por completo, é dez vezes mais precioso. Basta que lhe tilintem uns cobres no bolso para se sentir já meio consolado, mesmo que não possa gastá-los. Aliás, em todo o lado se pode gastar o dinheiro, até porque o fruto proibido é sempre duas vezes mais doce. Ora, na prisão, era até possível ter bebidas. Os cachimbos eram rigorosamente proibidos, mas toda a gente fumava a sua cachimbada. O dinheiro e o tabaco salvavam do escorbuto e de outras doenças. Ora, o trabalho salvava do crime: sem trabalho, os presos devorar-se-iam uns aos outros como aranhas num frasco. Apesar disso, tanto o trabalho como o dinheiro eram proibidos. Era frequente haver buscas inesperadas à noite em que se confiscava tudo o que era proibido e, por mais bem que se escondesse o dinheiro, os revistadores acabavam às vezes por encontrá-lo. Era por isso, em parte, que não se guardava o dinheiro durante muito tempo mas se gastava logo nas bebedeiras — daí aparecerem as bebidas na prisão. Depois de cada busca, o transgressor, além de ser privado de todos os seus bens, sofria normalmente um castigo rigoroso. Mas, logo após as buscas, se recuperava de imediato o necessário, se arranjavam coisas novas, depressa voltava tudo ao mesmo. E as chefias estavam a par disso, e os reclusos não se revoltavam contra os castigos, embora essa vida se assemelhasse à de quem vivesse no monte Vesúvio.

Quem não tinha qualquer ofício fazia negócios de outro género. Métodos originais não faltavam. Havia quem ganhasse dinheiro só com a revenda, e tudo se vendia — coisas que, fora da muralha do presídio, a ninguém passaria pela cabeça não só comprar ou vender mas sequer considerar como coisas. A prisão, contudo, era muitíssimo pobre e altamente empreendedora. O trapo mais miserável tinha o seu preço e havia sempre maneira de se aproveitar para alguma coisa. Também por causa da penúria, o próprio dinheiro tinha um valor completamente diferente do que tinha na vida em liberdade. Pagava-se uns cobres por um trabalho importante e complicado. Alguns praticavam, com êxito, o negócio da usura. Recluso que desbaratasse tudo ou fosse à falência levava os seus últimos bens ao agiota e recebia dele uns cobres a juros assustadores. Se não os desempenhasse a tempo, eram vendidos sem adiamentos, implacavelmente; a usura florescia a tal ponto que eram aceites como penhores, inclusive, os bens públicos, controlados, a saber: roupa e calçado prisionais, outras coisas necessárias permanentemente a todos os presidiários. Porém, no respeitante a estes penhores, aconteciam por vezes reviravoltas, não muito inesperadas, aliás: o penhorante, mal recebia o dinheiro, ia sem mais aquelas ter com o sargento-mor, chefe imediato da prisão, denunciava o penhor dos bens públicos, que eram retirados imediatamente da posse do prestamista, mesmo sem relatório aos superiores. O curioso era que, nestes casos, nem sequer havia conflitos: o agiota devolvia as coisas num silêncio sombrio, dando ares de quem já previa que isso acontecesse. Talvez não pudesse deixar de reconhecer, no seu íntimo, que, no lugar do penhorante, procederia da mesma maneira. Por isso, mesmo que depois praguejasse um pouco, fazia-o sem qualquer raiva, só para salvar as aparências.

No geral, as pessoas roubavam-se terrivelmente umas às outras. Quase todos tinham o seu próprio baú, com cadeado, onde guardavam as coisas públicas que lhes tinham sido confiadas; era permitido. Os baús, no entanto, não ajudavam nada. Penso que é fácil imaginar-se que ladrões hábeis existiam ali. Certo preso, um homem que me era sinceramente dedicado (digo-o sem qualquer exagero) roubou-me a Bíblia, o único livro permitido na prisão; confessou-mo ele próprio no mesmo dia, não por estar arrependido, mas porque, vendo-me a procurar a Bíblia durante muito tempo, teve pena de mim. Havia mercadores de bebidas que enriqueciam rapidamente. A seu tempo, falarei deste comércio separadamente, já que é bastante curioso. Estava muita gente na prisão condenada por contrabando, por isso não era de admirar que, apesar das buscas, rusgas e vigilâncias, entrassem lá as bebidas alcoólicas. A propósito, o contrabando, pelas suas características, é um crime muito peculiar. Será possível imaginar, por exemplo, que o dinheiro e a cobiça, para alguns contrabandistas, sejam coisas secundárias, venham em segundo plano? Mas é isso que por vezes acontece. O contrabandista trabalha por paixão, por vocação. Em certo sentido, é poeta. Arrisca tudo, passa por perigos terríveis, usa de manha, de inventiva, desenvencilha-se; às vezes, até, age movido por uma qualquer inspiração. Esta paixão é tão forte como a do jogo das cartas. Conheci na prisão um recluso, fisicamente um gigante, mas tão meigo, tão pacato e submisso que era difícil imaginar como poderia ter ido parar a uma prisão. Era de tal modo complacente e acomodatício que, durante todo o seu tempo de pena, não teve um conflito com ninguém. Era da fronteira ocidental, fora condenado por contrabando e, obviamente, não pôde conter-se e pôs-se a traficar em álcool dentro da prisão. Quantas vezes foi castigado por isso e que medo ele tinha das vergastas! Além disso, o tráfico das bebidas dava-lhe uns lucros miseráveis. O vinho só enriquecia o próprio fornecedor. Pois é, o nosso esquisitão gostava da arte pela arte. Era lacrimoso como uma mulher, e muitas vezes, depois do castigo, jurava nunca mais voltar ao contrabando. Chegava a controlar a sua paixão, corajosamente, um mês inteiro, mas, por fim, não aguentava... Graças a indivíduos destes, o álcool não se esgota nas prisões.

Finalmente, havia mais uma receita que, embora não enriquecesse os reclusos, era permanente e benéfica. Era a esmola. A classe superior da nossa sociedade não faz ideia de como os comerciantes, os populares e todo o nosso povo cuidam dos «desgraçados». A esmola é quase permanente e chega quase sempre em forma de pão, saikas3 e kalatches, e muito mais raramente em dinheiro. Sem estas esmolas, em muitos lugares, os presos, sobretudo os réus ainda não condenados, que são mantidos na cadeia com muito mais severidade do que os já sentenciados, passariam muito mal. A esmola é partilhada pelos reclusos, religiosamente, em partes iguais. Se os kalatches não chegarem para todos, são partidos, às vezes em seis partes, cabendo sempre a cada preso uma fatia, infalivelmente. Lembro-me da primeira vez que recebi uma esmola em dinheiro. Aconteceu pouco tempo depois de ter chegado ao presídio. Voltava do trabalho da manhã, sozinho, escoltado por um guarda. Cruzei-me com uma mãe e uma filha, garota dos seus dez anos, linda como um anjinho. Já as tinha visto uma vez. A mãe era viúva de um soldado. O jovem soldado, seu marido, estava sob processo judicial quando morreu, na enfermaria dos presos, numa altura em que também eu lá estava, doente. A mulher e a filha tinham ido despedir-se dele e choravam desesperadamente. A miúda, ao ver-me, corou, sussurrou qualquer coisa à mãe; a mulher parou logo, procurou na trouxa, tirou um quarto de copeque e entregou-o à filha. Esta precipitou-se atrás de mim... «Toma, “desgraçado”, toma esta moedinha por amor de Cristo!» — gritava, ultrapassando-me e metendo-me o cobre na mão. Peguei na moedinha, e a miúda voltou para junto da mãe, muito contente. Guardei durante muito tempo essa moedinha.

2 Pães finos de trigo em forma de cadeado. (NT )

3 Espécie de pães de trigo, redondos ou alongados. (NT )


2

As primeiras impressões

O primeiro mês e, de um modo geral, os inícios da minha vida prisional apresentam-se-me agora na minha imaginação de uma maneira muito viva. Já os anos seguintes fulgem nas minhas recordações com muito menos nitidez. Alguns desses anos parecem mesmo ter-se esfumado, ter-se fundido uns com os outros, deixando só uma impressão geral: penosa, monótona, asfixiante.

Ora, tudo o que vivi nos primeiros dias dos meus trabalhos forçados vem-me à memória como se tivesse acontecido ontem. É muito natural, diga-se.

Lembro-me claramente de que, nos primeiros passos nessa vida, fiquei espantado por não achar nela nada de especialmente espantoso, extraordinário ou, melhor dizendo, inesperado. Parecia que tudo isso já tinha sido relanceado pela minha imaginação quando, a caminho da Sibéria, tentava adivinhar o meu destino. Não tardou, porém, que começassem a surgir diante de mim, a cada passo, um sem-fim de estranhas surpresas, dos mais monstruosos factos. E só mais tarde, depois de já ter passado bastante tempo na prisão, tomei plena consciência de todo o caráter único e inesperado de toda aquela vida, e cada vez ia ficando mais surpreendido com ela. Confesso que um tal espanto não me abandonou durante todo o longo período da minha reclusão; nunca cheguei a resignar-me com ela.

A minha primeira impressão, à chegada, e no seu todo, foi de extrema repulsa; apesar disso — coisa estranha! —, pareceu-me que viver na prisão era muito mais fácil do que tinha imaginado pelo caminho. Os presos, embora de grilhetas, andavam livremente pelo terreiro da prisão, praguejavam, cantavam, trabalhavam por conta própria, fumavam a sua cachimbada, até bebiam álcool (se bem que muito poucos), e à noite havia quem jogasse às cartas. O próprio trabalho, por exemplo, não me parecia muito pesado, não o encarava como de galés, e só muito mais tarde descobri que a dureza e a tortura deste trabalho não vinham de ser difícil e ininterrupto, mas do facto de ser forçado, obrigatório, coercivo. Um mujique em liberdade talvez trabalhe incomparavelmente mais, às vezes mesmo à noite, sobretudo no verão; mas trabalha para si mesmo, trabalha com um fim razoável, por isso é-lhe muito mais fácil labutar do que a um grilheta num trabalho coercivo e completamente inútil para ele. Passou-me uma vez pela cabeça que, se quisessem esmagar e aniquilar por completo uma pessoa, castigá-la com o mais terrível dos castigos, a ponto de o pior dos assassinos tremer antecipadamente de medo diante de tal castigo, bastaria dar ao seu trabalho um caráter completamente inútil e absurdo. Se, atualmente, o trabalho forçado não tem qualquer interesse para o recluso e lhe é enfadonho, esse trabalho, em si, não deixa de ser sensato: o preso faz tijolos, cava a terra, estuca paredes, constrói; é um trabalho com sentido e finalidade. O trabalhador presidiário, às vezes, chega mesmo a entusiasmar-se com ele, quer fazê-lo com mais habilidade, mais rapidez, melhor. Mas se o obrigarem, por exemplo, a verter água de um balde para outro, e deste para o primeiro, se o obrigarem a triturar areia, a carregar a terra de um lugar para outro e, depois, para trás — acho que, em casos desses, o recluso se enforcaria no espaço de alguns dias ou cometeria mil crimes, preferiria morrer mas fugir a semelhante humilhação, vergonha e tortura. É evidente que um tal castigo se transformaria em tortura, em vingança, e seria privado de sentido porque não alcançaria qualquer objetivo razoável. Entretanto, como uma parte desta tortura, deste absurdo e desta humilhação está presente, inevitavelmente, em qualquer trabalho coercivo, os trabalhos forçados são incomparavelmente mais duros do que qualquer trabalho livre, precisamente porque são coercivos.

Aliás, cheguei à prisão no inverno, em dezembro, e ainda não fazia ideia do trabalho estival, cinco vezes mais duro. No inverno, em geral, havia poucos trabalhos públicos no nosso forte. Os reclusos iam para o Irtich destruir lanchas velhas, trabalhavam nas oficinas, limpavam a neve amontoada pelas nevascas junto aos edifícios públicos, coziam e trituravam o alabastro, e assim por diante. O dia invernal era curto, o trabalho acabava depressa, e toda a nossa gente voltava cedo à prisão, onde não teria nada que fazer se não inventasse algum trabalhinho por conta própria. Porém, apenas uma terça parte dos reclusos tinha trabalhos próprios; os restantes mandriavam, vagueavam inutilmente por todas as casernas, praguejavam, armavam intrigas, conflitos, embebedavam-se se calhava arranjarem algum dinheirinho; à noite, perdiam às cartas a última camisa, e tudo por tédio, por ócio, por não terem nada que fazer. Mais tarde compreendi que, além da privação da liberdade, além do trabalho compulsivo, existe na vida prisional mais um sofrimento, pior ainda, talvez, do que todos os outros. É o convívio forçado. O convívio entre todos existe, é claro, também noutros sítios; só que vêm parar à prisão pessoas de tal calibre que nem todos gostariam de privar com elas, e estou certo de que todo e qualquer condenado aos trabalhos forçados sentia este sofrimento, na maior parte das vezes inconscientemente, sem dúvida.

A alimentação também me pareceu suficiente. Os reclusos garantiam que não havia comida assim nas prisões da Rússia europeia. Quanto a isso, não posso julgar: não estive lá. Além disso, era possível a muitos presos terem a sua própria comida. A carne de vaca era aqui a um tostão a libra e, no verão, a três copeques. Porém, só podiam dar-se ao luxo de alimentação própria aqueles a quem nunca faltava o dinheiro; a maioria comia as refeições prisionais. Aliás, quando os reclusos louvavam a comida da prisão tinham em mente só o pão, e davam graças por termos a sorte de o pão nos chegar a granel e não distribuído individualmente, a peso. Esta última modalidade aterrorizava-os: se fosse o sistema, uma terça parte da prisão ficaria com fome; ora, o pão coletivo chegava para todos. O nosso pão era incrivelmente saboroso e tinha fama em toda a cidade. Diziam que tal se devia aos fornos prisionais, muito bem construídos. Ora, quanto à sopa de repolho, era intragável. Era cozida num caldeirão comum, levava pouquíssimos cereais e, sobretudo nos dias de semana, era um caldo com pouca consistência. O que mais me aterrorizou foi o número de baratas que havia sempre dentro dela. Os outros presos não davam qualquer importância a isso.

Nos primeiros três dias não fui para o trabalho, como faziam com cada recém-chegado: deixavam-no descansar da viagem. No segundo dia, porém, tive de sair para o exterior, para mudar de grilhetas. As minhas não eram as regulamentares, eram de anéis, de «tilintar fino», no dito dos reclusos. Usavam-se por cima das calças. As grilhetas regulamentares, adaptadas ao trabalho, eram formadas, não por um grilhão de anéis, mas de quatro varas de ferro, de quase um dedo de grossura, ligadas por três aros. Usavam-se por baixo das calças. Ao aro do meio atava-se uma correia que se prendia ao cinto, posto por cima da camisa.

Lembro-me da minha primeira manhã na caserna. No corpo da guarda, ao lado do portão, o tambor rufou a alvorada e, passados uns dez minutos, o sargento da guarda começou a abrir as casernas. Começaram as pessoas a acordar. À luz baça da velinha de sebo, os reclusos levantavam-se dos catres, a tremerem de frio. Calados e carrancudos depois do sono, a maioria deles. Bocejavam, espreguiçavam-se, franziam as testas marcadas a ferro. Alguns persignavam-se, outros começavam já a discutir. O abafo era terrível. Mal a porta foi aberta, o ar gelado do inverno irrompeu e voou em nuvens de vapor pela caserna. Os presos amontoaram-se à volta dos baldes de água; à vez, pegavam na concha, enchiam a boca de água e, vertendo-a da boca, lavavam as mãos e a cara. A água estava preparada desde a véspera pelo calhandreiro. Em cada caserna, de acordo com o regulamento, havia um recluso, eleito por todos, para fazer a faxina na caserna. Era o calhandreiro. Estava dispensado dos trabalhos de fora. A sua tarefa consistia em manter a caserna limpa, em lavar e esfregar os catres e o chão, em despejar o calhandro noturno e em preparar dois baldes de água — para as lavagens da manhã e para se beber durante o dia. Por causa da concha, que era única, começaram logo as discussões.

— Para onde é que te estás a enfiar, testa de carpa? — resmungava um recluso alto, carrancudo, seco e moreno, com estranhas protuberâncias no crânio rapado, empurrando o outro, gordo e achaparrado, com uma cara alegre e corada. — Aguenta!

— Por que gritas? Quem aguenta, arrebenta. Desanda tu! Vejam-me só que monumento. Pois é, irmãos, mas não tem forticância nenhuma!

Este forticância produziu um certo efeito: muitos riram-se. Era isso que pretendia o gorducho alegre que, pelos vistos, tinha na caserna o papel de uma espécie de bobo voluntário. O recluso alto olhou para ele com ar de profundíssimo desprezo.

— Vaca de merda! — murmurou como de si para si. — Cevado com o pão fino da prisão! Está contente: lá para o fim da abstinência vai parir leitõezinhos.

— Mas que espécie de ave és tu? — gritou de repente o gordo, corando.

— Isso mesmo, ave!

— Mas qual?

— A tal.

— Qual tal?

— A tal e pronto.

— Mas qual?

Fitaram os olhos um no outro. O gordo esperava pela resposta de punhos cerrados, como se quisesse atirar-se ao outro no momento. Realmente, pensei que ia começar ali uma rixa. Tudo aquilo era novo para mim, assistia com curiosidade. Mais tarde, porém, fiquei a saber que todo aquele género de cenas eram inofensivas e eram encenadas, como numa comédia, para o divertimento geral; quase nunca as coisas chegavam a vias de facto. Tudo isso era bastante característico dos costumes prisionais.

O recluso alto estava calmo e majestoso. Sentia que estavam a olhar para ele e à espera de alguma coisa dele: se se ia ou não cobrir de vergonha com a sua resposta; que lhe era necessário manter a dignidade e provar que era realmente uma ave, e mostrar qual ave. Com um desprezo inexprimível, olhou de soslaio para o seu adversário, tentando, para ainda maior afronta, olhá-lo por cima do ombro, de alto para baixo, como para um bicho, e pronunciou devagar e distintamente:

— Kagan4!

Ou seja, que ele era uma ave kagan. Uma explosão de risos saudou a inventiva do preso.

— És um canalha, não és um kagan! — rugiu o gordo, levado à fúria extrema, ao sentir-se vencido em toda a linha.

Porém, mal a discussão se tornou séria, os valentões foram refreados.

— Que berraria é essa? — gritou-lhes a caserna em peso.

— É melhor engalfinharem-se do que gastarem a garganta em vão! — gritou alguém de um canto.

— Engalfinharem-se, estes? Querias! — ouviu-se em resposta. — Somos gente de ânimo, valente; sete não têm medo de um...

— São os dois umas boas peças! Um veio cá parar por uma libra de pão, o outro é uma puta de bilha de leite, roubou o leite coalhado a uma mulherzinha, por isso provou o chicote...

— Pronto! Acabou-se! Deixai-vos disso — gritou o inválido5 que vivia na caserna para manter a ordem e dormia a um canto, num catre especial.

— Água, rapazes! O Não-Válido Petróvitch acordou! Água para o Não-Válido Petróvitch, nosso querido irmão!

— Irmão... não sou nenhum irmão teu! Nem um rublo bebemos juntos e já me tratas por irmão! — resmungava o inválido, enfiando os braços nas mangas do capote...

Preparava-se a chamada, começava a amanhecer; na cozinha amontoou-se a grande multidão dos reclusos. Com os seus casacos curtos de pele e os gorros feitos de duas metades, apertavam-se ao lado do pão que um dos cozinheiros estava a cortar. Os cozinheiros eram eleitos, dois para cada cozinha. Também lhes competia a guarda da faca da cozinha, para cortar pão e carne, só uma em cada cozinha.

Por todos os cantos e às mesas acomodavam-se os reclusos de gorros, peliças curtas, cingidas, prontos para irem para o trabalho. Alguns tinham à sua frente escudelas de madeira com kvass6. Deitavam dentro migas de pão e bebericavam. O barulho, o vozear eram insuportáveis; alguns, no entanto, falavam em voz baixa nos cantos, sensatamente.

— Velhinho Antónitch, bom dia e bom proveito! — disse um jovem recluso, sentando-se ao lado de outro, desdentado e carrancudo.

— Bom dia, se não estás no gozo — replicou este, sem levantar a cabeça e esforçando-se por mastigar o pão com as gengivas desdentadas.

— Sabes, Antónitch, pensava que já tinhas morrido, palavra.

— Não, primeiro tu, depois eu...

Sentei-me ao lado deles. À minha direita conversavam dois presos com sisudez, cada qual tentando manter o seu ar importante.

— A mim ninguém me rouba — dizia um —, eu próprio tenho medo de roubar assim de repente qualquer coisa.

— A mim também ninguém me apanha à mão: queimo.

— Não queimas nada! És um grilheta como os outros, não há outro nome para nós... Ela saca-te tudo, e nem uma vénia te faz. Nestas coisas é assim, irmão, o meu copeque também me disse adeus. Ainda há pouco tempo ela cá veio. Para onde é que eu vou com ela? Comecei a pedir ao Fedka Algoz, esse que tem uma casa nos arrabaldes que comprou ao judeu Solomonka, o grande tinhoso, um que depois se enforcou...

— Conheço. Ainda há dois anos vendia aqui bebidas. A alcunha dele era o Grichka Tasca-Escura. Conheço.

— Conheces nada, é outro Tasca-Escura.

— Não é nada! Pensas que só tu é que sabes tudo! Sou capaz de te trazer tantos passadores...

— Ah, pois trazes! Olha só para ti, e olha só para mim!

— Pois olho! Já levaste tareia minha, e não me ponho a gabar: olha só para mim, olha só para mim!

— Deste-me tareia, tu? Ainda não nasceu o primeiro; e quem tentou está a dormir debaixo da terra.

— Peste de Bendéri!

— Leve-te a peste da Sibéria!

— Vai falar c’o sabre turco!...

E começaram as pragas.

— Pronto, chega! Gritões! — berraram à volta. — Não sabíeis viver em liberdade, agora engordais aqui com o pão fino...

Os adversários acalmam-se num instante. São permitidas as altercações, os «estalidos» de língua. Em parte, é um divertimento para todos. Nem sempre, porém, é permitida a rixa a sério, só em casos especiais os contendores se pegam à pancada. É que a briga é denunciada ao major, começam as inculcas, aparece o próprio major — numa palavra, será mau para todos, e é por isso que não se admitem rixas. Além disso, os próprios adversários altercam mais por divertimento, para treino do estilo. Muitas vezes criam uma ilusão para si próprios, começam com grande furor, encarniçados... parece que já se vão atirar um ao outro, mas nada disso: chegam só até certo ponto e depois vai cada qual para seu lado. Tudo isso, de início, me espantava muito. Foi de propósito que apresentei um exemplo das conversas mais vulgares da prisão. A princípio não conseguia imaginar como era possível discutir por prazer, achar divertimento nisso, encará-lo como exercício engraçado, agradável. De resto, não esqueçamos também a vaidade. O praguejador dialético gozava de respeito. Por pouco não o aplaudiam como a um ator.

Já na véspera eu tinha reparado que me olhavam de soslaio.

Apanhara uns olhares turvos. Outros reclusos, pelo contrário, andavam à minha volta, supondo que eu trouxera dinheiro. Mostravam-se obsequiosos desde o primeiro momento: começaram por me ensinar a usar as grilhetas novas; arranjaram-me — mediante pagamento, claro —, um baú com cadeado para guardar as minhas coisas prisionais e alguma roupa de minha propriedade. Logo no dia seguinte, eles próprios me roubaram o baú e pagaram com ele uma valente bebedeira. Um deles, mais tarde, tornou-se-me abnegadíssimo, embora não deixasse de me roubar quando a ocasião era boa. Fazia-o sem qualquer embaraço, quase inconscientemente, como que por obrigação, e era impossível zangar-me com ele.

A propósito, disseram-me da necessidade de ter o meu próprio chá e que não seria mau arranjar também uma chaleira; por ora, trouxeram-me uma emprestada; recomendaram-me ter cozinheiro, dizendo que, por trinta copeques mensais, ele me cozinharia tudo o que eu quisesse, no caso de eu desejar comprar os meus próprios alimentos e comer à parte... É claro que me pediram dinheiro adiantado, e cada um deles, só no primeiro dia, foi reclamá-lo três vezes.

Nos trabalhos forçados, a atitude para com os ex-fidalgos é em geral pesada e antipática.

Apesar de os antigos nobres já terem sido privados de todos os seus direitos civis e igualados por completo a todos os outros reclusos, estes nunca os reconhecem como seus iguais, o que acontece não por preconceito ou convicção, mas sincera e inconscientemente. Reconhecem-nos sinceramente como fidalgos, apesar de adorarem gozar com a nossa queda.

— Agora acabou-se, vais ver! Dantes o Piotr exibia-se em Moscovo, depois trançava cordas para o povo — ouvia-se estas e outras amabilidades do género.

Olhavam com prazer para os nossos sofrimentos, que tentávamos não lhes mostrar. Passávamos mal no trabalho, sobretudo nos primeiros tempos, porque não tínhamos tanta força como eles e não podíamos ajudá-los como era devido. Não há nada mais difícil do que ganhar a confiança do povo (especialmente de um povo como este) e merecer o seu amor.

No presídio havia várias pessoas de origem nobre. Em primeiro lugar, cinco polacos. Falarei deles separadamente, a seu tempo. Os presos detestavam os polacos, até mais do que os deportados russos de origem nobre. Os polacos (falo apenas dos presos políticos) eram bem-educados com eles, mas de um modo esmerado que se tornava ofensivo; eram extremamente insociáveis e não conseguiam esconder a sua aversão para com eles; os reclusos percebiam-no muito bem e pagavam-lhes na mesma moeda.

Precisei de quase dois anos de vida prisional para conquistar a simpatia de alguns reclusos. Para o fim, no entanto, a maioria gostava de mim e reconhecia-me como «bom tipo».

Além de mim, havia mais quatro fidalgos russos. O primeiro era uma criatura baixa e vil, um homem terrivelmente corrupto, espião e delator profissional. Ouvi falar dele ainda antes de ter chegado à prisão e, desde os primeiros dias, excluí quaisquer relações com ele. Outro era o tal parricida de que já falei nestes cadernos. O terceiro era Akim Akímitch, e pode dizer-se que nunca na vida encontrei um esquisitão como este Akim Akímitch. Ficou gravado na minha memória com nitidez. Era alto, magro, de espírito fraco, analfabeto crasso, grande arrazoador e pontual como um alemão. Os presos riam-se dele, mas alguns até tinham medo de se meter com ele por causa do seu feitio critiqueiro, exigente e rabugento. Logo de entrada, começou a tratá-los com familiaridade, discutia com eles, até brigava. Era de uma honestidade fenomenal. Mal reparava nalguma injustiça, metia-se logo, mesmo que não tivesse nada a ver com isso. Era extremamente ingénuo; por exemplo, nas altercações com os reclusos censurava-os por serem ladrões e tentava convencê-los, com toda a seriedade, a não roubarem. Tinha servido como alferes no Cáucaso. Ficámos amigos desde o primeiro dia, e contou-me o caso dele. Começara o serviço no Cáucaso como Junker7, num regimento de infantaria e, depois de cumprir o seu fadário militar durante muitos anos, foi promovido, finalmente, a oficial e enviado para uma fortificação como comandante. Um principezeco local, dos pacíficos8, pôs fogo à sua fortaleza e, depois, fez uma incursão noturna que falhou. Akim Akímitch usou de manha e fingiu não saber quem era o malfeitor. A culpa foi atribuída a tártaros guerreiros. Passado um mês, Akim Akímitch convidou o principezeco para uma visita amigável. Ele foi, sem suspeitar de nada. Akim Akímitch mandou formar o seu destacamento e, diante de todos, desmascarou e criticou o principezeco; demonstrou-lhe que era uma vergonha incendiar fortalezas. A seguir, pregou-lhe um sermão pormenorizado sobre como se devia comportar de futuro um príncipe pacífico e, para concluir, fuzilou-o, enviando sobre isso um relatório imediato aos seus superiores. Foi julgado, condenado à morte, mas comutaram-lhe a pena e deportaram-no para a Sibéria, para cumprir doze anos de trabalhos forçados de segunda categoria. Tinha a plena consciência de ter agido incorretamente, disse-me que o sabia ainda antes de fuzilar o príncipe pacífico, reconhecia que o tártaro devia ser julgado de acordo com a lei; no entanto, apesar de o saber, na verdade parecia não compreender em que era culpado:

— Por amor de Deus! Então ele não me incendiou a fortaleza? Queriam o quê? Que lhe fizesse uma vénia de agradecimento? — respondia ele aos meus argumentos.

Pois bem, embora os reclusos se rissem das esquisitices de Akim Akímitch, respeitavam-no pela sua habilidade e por ser muito cuidadoso.

Não havia ofício que Akim Akímitch não dominasse. Era carpinteiro, sapateiro, pintor, dourador, serralheiro — e aprendeu tudo isso na prisão. Era autodidata em tudo: olhava uma vez, fazia. Fazia também caixas, cestas, lampiões, brinquedos para as crianças, e vendia tudo isso na cidade. Deste modo, tinha sempre algum dinheiro, que utilizava imediatamente na compra de roupa interior, ou de uma almofada mais macia; chegou mesmo a arranjar um colchãozinho desdobrável. Estava na mesma caserna que eu e ajudou-me muito nos primeiros dias da minha reclusão.

Ao saírem para o trabalho, os reclusos formavam em duas filas defronte do corpo da guarda; à frente e atrás deles alinhavam-se os soldados da escolta com as espingardas carregadas. Apareciam o oficial de engenharia, o condutor de trabalhos e vários subalternos de engenharia, capatazes das obras. O condutor de trabalhos contava os reclusos e mandava-os, aos grupos, para os diversos trabalhos.

A mim, juntamente com outros, calhou-me uma oficina de engenharia. Era um edifício de pedra baixinho, num terreiro grande atulhado de materiais variados. Havia uma forja, uma serralharia, uma carpintaria, uma oficina de tintas, etc. Akim Akímitch cozia ali óleo de linhaça, fazia e misturava as tintas e pintava as mesas e outros móveis a imitar nogueira.

Enquanto esperava pelas grilhetas novas, conversei com Akim Akímitch sobre as minhas primeiras impressões na prisão.

— Pois é, não gostam de nobres — observou ele —, sobretudo dos presos políticos, estão prontos a devorá-los. Não admira. Primeiro, porque vocês são gente diferente, que não tem nada a ver com eles; segundo, antigamente todos eles eram ou servos da gleba, ou soldados. Por aí já pode ajuizar: será possível gostarem de vocês? Digo-lhe já, é difícil viver aqui, mas nos destacamentos prisionais da Rússia é ainda mais difícil. Há aqui gente que veio de lá e não para de louvar a nossa prisão, como se tivessem passado do inferno para o paraíso. O problema não é o trabalho. Dizem que lá, na primeira categoria de detidos, a chefia não é completamente militar, pelo menos funciona de outra maneira, não como aqui. Lá, segundo dizem, um deportado pode ter a sua casinha. Não estive lá, mas ouvi dizer. Não rapam o cabelo nem andam de uniforme; de resto, ainda bem que aqui nos dão fardas e rapam o cabelo: digam o que disserem, há mais ordem nisso e é mais agradável à vista. Só que eles não gostam. Mas também, veja só que salgalhada! Um é da escola dos filhos dos soldados, outro é tcherquesse, o terceiro é da velha crença ortodoxa, o quarto é um mujique cristão que deixou a família na terra, os filhos queridos, o quinto é judeu, o sexto é cigano, o sétimo sabe-se lá o que é, e todos têm de se habituar a viver juntos, dê lá por onde der, de encontrar um consenso, de comer da mesma gamela, de dormir no mesmo catre. Além disso, veja só que falta de liberdade: só se pode comer um bocadinho a mais às escondidas, tem de se guardar a moedinha de cobre na bota e, além da prisão, não há mais nada... Assim, mesmo sem querer, as asneiras sobem à cabeça.

Eram coisas que eu já sabia. Apetecia-me fazer-lhe perguntas, principalmente, sobre o nosso major. Akim Akímitch não fazia segredo disso e lembro-me de que fiquei com uma impressão nada agradável dele.

Entretanto, quis o destino que eu vivesse ainda dois anos sob a chefia do major. Tudo o que Akim Akímitch me contou dele era absolutamente correto, com a única diferença de que a impressão que a realidade provoca é sempre mais forte do que a de uma narração. O major era um homem terrível porque, precisamente, tinha um poder quase ilimitado sobre duzentas almas. Por si, era uma pessoa desordenada e maldosa, mais nada. Via nos reclusos os seus inimigos naturais, e era esse o seu erro principal. Na verdade, tinha até algumas capacidades, mas tudo nele, inclusive as qualidades, se manifestava de forma distorcida. Incontido, raivoso, irrompia pelas casernas, às vezes mesmo em plena noite e, se descobria que um preso dormia do lado esquerdo ou de costas, de manhã castigava-o: «Dorme do lado direito, como eu mandei.» Na prisão odiavam-no e temiam-no como à peste. A cara dele era rubra e raivosa. Toda a gente sabia, porém, que o major estava nas mãos da sua ordenança, o Fedka. Amava, acima de tudo, o seu caniche Trésor e ia enlouquecendo quando o Trésor ficou doente. Dizem que chorava como sobre o corpo do próprio filho; expulsou um veterinário e, por hábito, quase andou à pancada com ele; quando o Fedka lhe disse que havia na prisão um recluso, veterinário autodidata, que fazia tratamentos com bons resultados, mandou-o chamar de imediato:

— Ajuda-me! Cubro-te de ouro se me curares o Trésor! — gritou ao preso.

Este era um mujique siberiano, manhosão, esperto, realmente um ótimo veterinário, mas também um verdadeiro mujique.

— Olho para o Trésor — contava ele mais tarde aos reclusos, muito mais tarde, aliás, quando tudo já estava esquecido — no divã, em cima de uma almofadinha branca; vejo que é inflamação e que, se o sangrasse, o cãozinho havia de arribar, juro!... Mas pensei também cá para mim: «E se não conseguir, se o cão morrer?» «Não», digo-lhe eu, «vossa senhoria chamou-me tarde demais; se fosse ontem ou anteontem, tinha-lhe curado o cão, mas agora não posso fazer nada, não é possível...»

E assim morreu o Trésor.

Também me contaram em pormenor como, uma ocasião, quiseram matar o nosso major. Havia cá um preso, há já vários anos, que sobressaía pelo seu comportamento submisso. Todos tinham reparado, também, que ele quase nunca falava com ninguém. Era visto como uma espécie de maluquinho religioso. Era alfabetizado e, no último ano, estava sempre a ler a Bíblia, de dia e de noite. Já toda a gente dormia e levantava-se ele, à meia-noite, acendia uma vela de igreja, de cera, trepava para cima do fogão, abria o livro e lia até ao amanhecer. Uma vez, foi ter com o sargento e anunciou-lhe que não queria ir trabalhar. Foram informar o major, que se enfureceu e correu imediatamente para o presídio. O recluso atirou-se a ele imediatamente, armado com um tijolo que tinha preparado para o efeito, mas não acertou. Foi agarrado, julgado e castigado. Aconteceu tudo muito rapidamente. Três dias depois morreu no hospital. Antes da morte, disse que não guardava rancor a ninguém, que apenas quisera impor uma penitência. De resto, o homem não pertencia a qualquer seita da velha crença ortodoxa. Na prisão, recordavam-no com respeito.

Por fim, mudaram-me as grilhetas. Entretanto, apareciam na oficina, umas atrás das outras, as vendedeiras de kalatches. Algumas eram garotas muito pequenas. Até à maturidade, andavam normalmente com kalatches — as mães coziam-nos, elas vendiam-nos. Já crescidas, continuavam a vir, mas já sem kalatches — era o costume. Portanto, apareciam também algumas crescidas. Um kalatche custava um tostão, e quase todos os reclusos os compravam.

Reparei num preso, carpinteiro, já de cabelo branco, mas de faces coradas, que namoriscava, sorridente, as vendedeiras. Antes da chegada das raparigas, atara ao pescoço um lenço de paninho vermelho. Uma mulherzinha gorda e bexigosa colocou o tabuleiro no seu banco de carpinteiro. Travou-se entre eles esta conversa:

— Então, por que é que vossemecê não veio ontem? — perguntou o recluso com um sorriso fátuo.

— Irra! Eu vim, pois, mas vossemecê onde estava metido? — respondeu a mulherzinha.

— Foi porque nos chamaram, senão estaríamos sem falta no lugar... Anteontem vieram todas ter comigo.

— Quem veio?

— Veio a Mariachka, a Khavrochka, a Tchekunda, a Pechincha também...

— O que quer isto dizer? — perguntei a Akim Akímitch. — Será que?...

— Acontece — respondeu, baixando modestamente os olhos, porque era um homem muito casto.

Acontecia, sem dúvida, mas muito raramente e com enormes dificuldades. Em geral, havia mais amigos de beber do que disso, apesar de uma vida assim ser, naturalmente, dura. Era difícil conseguir um encontro com uma mulher. Tinha de se escolher a ocasião e o sítio, combinar e marcar o encontro, corromper os guardas — o que era especialmente difícil — e, com isso tudo, gastar muitíssimo dinheiro, em termos relativos, claro. Mesmo assim, mais tarde, cheguei a ser testemunha de cenas amorosas. Lembro-me de que uma vez, no verão, estávamos três reclusos num barracão na margem do Irtich, a acender um forno qualquer; os guardas da escolta eram condescendentes pessoas. Apareceram então duas «enfoladas», como lhes chamavam os presos.

— Por que demorastes tanto? Estivestes com os Zverkov, foi? — recebeu-as um dos reclusos, havia muito à espera delas.

— Demorei? Demorou mais a pega pousada em cima da estaca do que eu demorei com eles — respondeu alegremente a rapariga.

Era a rapariga mais porca do mundo. A tal a que chamavam Tchekunda. Com ela estava a Pechincha. Quanto a esta, era impossível de descrever.

— Há muito que não a vejo — continuava o galã, dirigindo-se à Pechincha. — Parece que a menina emagreceu?

— Talvez, dantes era bem gordinha, agora parece que engoli uma agulha.

— Anda pelos soldadinhos?

— Não, são as más-línguas que dizem essas patranhas de nós; e depois, por que não? Nem que perca uma costela, hei de amar a sentinela!

— Larguem a soldadesca, é melhor amarem-me a mim; tenho dinheiro...

Para completar o quadro, imaginem este galã de cabeça rapada, grilhetas, roupa às riscas e com a escolta atrás.

Despedi-me de Akim Akímitch e, como tinha de voltar à caserna, fui levado por um guarda da escolta. Já as pessoas se reuniam. Primeiro que todos, voltavam do trabalho aqueles que cumpriam uma «norma» fixa. A única maneira de fazer o preso empenhar-se no trabalho era fixar-lhe uma tarefa. Às vezes, as tarefas eram enormes e, mesmo assim, eram cumpridas duas vezes mais depressa do que o trabalho por horário, até à hora do almoço e ao bater do tambor. Cumprida a sua «norma», o recluso voltava sem problemas para dentro, ninguém o impedia.

Os presos nunca almoçam juntos, mas conforme calha, come primeiro quem voltar mais cedo; de outro modo, também não caberiam todos na cozinha. Provei a sopa de repolho mas, por falta de hábito, não pude acabá-la e preparei o chá para mim. Sentámo-nos numa ponta da mesa. Comigo estava um companheiro, de origem fidalga como eu.

Os presos entravam e saíam. De resto, havia pouca gente, ainda não tinha chegado o grosso do pessoal. Um grupo de cinco homens sentou-se à parte, à mesa grande. O cozinheiro serviu-lhes a sopa em duas escudelas e pôs em cima da mesa uma sertã de barro com peixe frito. Como festejavam qualquer coisa, comiam do seu. Para nós, olharam de soslaio. Entrou um polaco e sentou-se ao nosso lado.

— Não tenho estado em casa, mas sei tudo! — gritou um recluso alto, entrando na cozinha e passando os olhos por todos os presentes.

Teria uns cinquenta anos, era musculado e seco. Na cara, uma expressão com qualquer coisa de manhoso e, ao mesmo tempo, alegre. O mais notável nele era, sobretudo, o lábio inferior, grosso, pendente, que lhe dava à cara um ar muito cómico.

— Então, pernoitastes bem? Por que não saudais as gentes? Viva então a nossa boa gente de Kursk! — acrescentou, sentando-se ao lado dos comensais do almoço privado. — Bom proveito! Recebei então o convidado.

— Não somos de Kursk, irmão.

— Sereis de Tambov?

— Nem de Tambov. Não levas nada daqui, irmão. Vai ter com o mujique rico e pede lá.

— Hoje, irmãos, tenho na barriga Ivan, o Vagabundo e Mária, a Soluçante, mas onde vive ele, o mujique rico?

— Gázin é que é o mujique rico; vai procurá-lo.

— O nosso Gázin está na pândega, entrou em bebedeira; está a esvaziar as algibeiras.

— Tem vinte rublos no bolso, não menos — observou o outro. — O que está a dar é vender álcool, amigos.

— Não aceitais o convidado, é isso? Pois então comeremos o almoço prisional.

— Vai pedir um chá. Bem vês, os senhores tomam chá.

— Quais senhores? Aqui não há senhores, agora são como nós — pronunciou sombriamente um recluso sentado no canto. Até ao momento, não tinha aberto a boca.

— Tomaria um chazinho, mas tenho vergonha de pedir: temos o nosso orgulho — observou o recluso do beiço grosso, olhando para nós com simpatia.

— Se quiser, beba um chá — disse eu, convidando-o. — Quer?

— Se quero? Como podia não querer? — Acercou-se da nossa mesa.

— Vejam só, em casa comia a sopa com uma alpargata em vez de colher, e aqui aprendeu a beber chazinho; tem apetites pela bebida dos fidalgos — disse o recluso sombrio.

— Será que mais ninguém aqui toma chá? — perguntei-lhe, mas ele não se dignou a responder-me.

— Olha, já trazem os kalatches. Ofereça também um kalatch!

Vendiam kalatches. Um jovem recluso entrava com um cordão deles, que vendia pelas casernas — de cada dez que vendia, a doceira dava-lhe um kalatch; era o que ele queria.

— Kalatches, kalatches! — apregoava ao entrar na cozinha. — De Moscovo, quentinhos! Bem que os engolia eu, mas preciso de dinheiro. É o último: quem teve uma mãe?

Esta alegação do amor materno divertiu toda a gente, pelo que lhe compraram vários.

— Sabem, irmãos — disse o jovem —, o Gázin hoje vai pandegar até arranjar sarilhos! Juro por Deus! Agora é que se lembrou de fazer festa. Ainda aparece aí o Sete-Olhos, Deus nos guarde.

— Escondam-no. Está muito bêbado?

— E de que maneira! Raivoso, mete-se com a gente.

— Pois é, então a farra vai ser até brigar...

— De quem estão a falar? — perguntei ao polaco que estava ao meu lado.

— Do Gázin, um preso. Tem um negócio de álcool cá dentro. Quando junta dinheiro, gasta-o num instante com bebida. É fraca besta, cruel; quando está sóbrio, é sossegado, mas quando se embebeda vem-lhe tudo à superfície, atira-se às pessoas de faca em punho. Então, têm de o acalmar.

— Como?

— Juntam-se uns dez homens, atiram-se a ele e espancam-no até perder os sentidos, ou seja, deixam-no à morte. Depois deitam-no no catre e cobrem-no com o casaco.

— Mas assim podem matá-lo!

— A outro qualquer, sim; mas este não morre. É rijo como o aço, mais forte do que qualquer um aqui dentro, muito sólido. Ao outro dia acorda fresco.

— Diga-me, por favor — continuava eu a indagar o polaco —, eu estou a tomar chá, mas eles também estão a comer um almoço especial; mas olham para mim como se tivessem inveja deste chá. O que significa isso?

— Não é por causa do chá — respondeu o polaco. — Têm-lhe raiva porque é fidalgo e não se parece com eles. Muitos deles até haviam de gostar de implicar consigo. De o insultar, de o humilhar. Ainda vai passar por maus bocados cá dentro. Isto aqui é muito duro para todos nós. Para nós, é ainda mais difícil do que para os outros, em todos os sentidos. É preciso a gente armar-se de indiferença para se habituar a esta vida. Ainda há de ser muitas vezes insultado por causa do chá e das refeições à parte, apesar de eles também comerem muitas vezes por fora e de haver quem beba chá todos os dias. A eles, é permitido; ao senhor, não.

Dizendo isto, levantou-se e saiu da mesa. Alguns minutos depois, as palavras dele confirmaram-se...

4 Kagan era o título do chefe de Estado entre os povos turcos antigos; nos séculos viii a ix, entre os eslavos de leste; no século xiii, entre os mongóis. (NT )

5 Termo utilizado aqui no seu sentido mais antigo de soldado que, por idade, doença ou feridas se acha incapacitado de servir no ativo. (NT )

6 Bebida fermentada não alcoólica feita à base de pão negro. (NT )

7 No século xviii e na primeira metade do século xix, Junker era o jovem fidalgo que entrava para o exército como voluntário e se preparava para oficial. (NT )

8 «Pacíficos» — assim se chamava às populações da Tchetchniá, do Daguestão montanhoso e do Cáucaso do Noroeste que não resistiam à ocupação dos seus territórios pelas tropas russas (entre os anos de 1817 e 1864), diferentemente dos montanheses guerreiros («não pacíficos»), que lutavam pela libertação da sua terra. No entanto, acontecia muitas vezes os «pacíficos» atacarem também as tropas russas. (NT)


3

As primeiras impressões

Mal saiu M...ki (o polaco com quem eu falara), Gázin, completamente bêbado, irrompeu pela cozinha.

Um recluso embriagado, em pleno dia útil, quando todos estavam obrigados a ir trabalhar, com um chefe do presídio severo, capaz de aparecer nas casernas em qualquer momento, com um sargento que estava permanentemente dentro da prisão, com guardas, com vigilantes — inválidos —, numa palavra, com todo este regime rigoroso —, este facto baralhava toda a noção da vida prisional que começava a formar-se na minha cabeça. Ainda teria de viver bastante tempo cá dentro para, finalmente, me esclarecer sobre todos estes factos, tão enigmáticos para mim nos primeiros dias da minha reclusão.

Já referi que os presos tinham sempre o seu trabalho pessoal e que esse trabalho é uma necessidade natural na vida deles; que, além dessa necessidade, o recluso tem uma verdadeira paixão pelo dinheiro e lhe dá o mais alto valor, quase igual ao da liberdade, e que se sente muito consolado quando os cobres tilintam no seu bolso. Inversamente, fica desanimado, triste, preocupado quando não o tem, e então está pronto a roubar, a fazer seja o que for, para arranjar dinheiro. No entanto, apesar de tão precioso na prisão, o dinheiro nunca demorava muito no bolso do seu feliz proprietário. Em primeiro lugar, era difícil guardá-lo e evitar que o roubassem ou confiscassem. Se o major, nas suas buscas inesperadas, encontrasse dinheiro, confiscava-o imediatamente. Talvez o utilizasse para melhorar a alimentação dos presos; uma coisa é certa: o dinheiro ficava nas mãos dele. A maior parte das vezes, porém, o dinheiro era surripiado: não se podia confiar em ninguém. Mais tarde, foi descoberto um método para guardar o dinheiro em segurança total. Entregava-se a um velho, cristão da velha crença ortodoxa, que chegara à nossa prisão vindo de Starodúbie9... Não posso evitar dizer algumas palavras sobre ele, embora esteja a desviar-me do tema.

Era um velho de uns sessenta anos, pequeno, de cabelo branco. Impressionou-me muito logo à primeira vista. Não tinha qualquer semelhança com os outros reclusos: havia algo de tão calmo e sereno no seu olhar que, lembro-me, eu mergulhava sempre nos seus olhos claros e límpidos rodeados de rugazinhas miúdas, radiadas. Falei muitas vezes com ele e posso dizer que raramente encontrei na minha vida um ser tão bondoso e benevolente. Foi deportado por um crime muito grave. No seio da sua comunidade de cristãos da velha crença tinham começado a aparecer convertidos à crença oficial. O governo incentivava-os muito e fazia todos os esforços para uma ulterior conversão de outros discordantes. O velho, juntamente com outros fanáticos, resolveu «defender a fé», segundo a sua expressão. Tinham sido iniciadas as obras de construção de uma igreja do culto ortodoxo oficial, e os fanáticos deitaram-lhe fogo. Como um dos instigadores, o velho foi condenado a trabalhos forçados e deportado. Era um popular abastado, comerciante. Deixou em casa a mulher e os filhos, mas aceitou a deportação com firmeza porque, na sua obcecação religiosa, a considerava um «martírio pela fé». A quem convivesse com ele durante algum tempo, surgia involuntariamente a pergunta: como podia este homem resignado, meigo como uma criança, ser um amotinado? Várias vezes falei com ele de «assuntos de fé». Não cedia um cabelinho nas suas convicções, mas nunca havia ódio ou raiva nos seus argumentos. No entanto, destruíra uma igreja e não o negava. De acordo com as suas convicções, devia considerar o seu ato e o «martírio» que por ele sofria um feito glorioso. Contudo, por mais que o observasse, por mais que perscrutasse o seu rosto, nunca notei qualquer sinal de vaidade ou orgulho. Havia na nossa prisão mais representantes da velha crença, na sua maioria siberianos. Era gente muito evoluída, mujiques astutos, grandes leitores dos textos religiosos e grandes dogmáticos e, à sua maneira, carateres dialéticos fortes; gente arrogante, insolente, manhosa, extremamente intolerante. O velho não, era uma pessoa de um género completamente diferente. Apesar de grande leitor, muito maior que os correligionários, esquivava-se às discussões. Tinha um feitio muitíssimo sociável. Era alegre, ria muito — mas não com aquele riso bruto e cínico com que se riam os outros reclusos; o seu riso era claro, sereno, com muita ingenuidade infantil mas que dizia bem com os seus cabelos brancos. Sou capaz de estar enganado, mas parece-me possível compreender o caráter de uma pessoa pelo seu riso, e se, desde o primeiro encontro, o riso de uma pessoa completamente desconhecida nos agradar, diremos, sem hesitação, que essa é uma boa pessoa. O velho ganhou o respeito de toda a prisão e não se envaidecia com isso. Os reclusos tratavam-no por «avô» e nunca o ofendiam. Percebi um pouco que influência o velho podia ter sobre os seus prosélitos. Entretanto, apesar da firmeza aparente com que aguentava a prisão, havia nele uma tristeza profunda e incurável que ocultava de toda a gente. Estávamos na mesma caserna. Uma ocasião, passava talvez das duas da madrugada, acordei ao som de um choro baixinho, contido. O velho estava sentado no catre do fogão (o mesmo em que, antes dele, rezara à noite o preso que treslera e quisera matar o major) a ler as rezas do seu livro manuscrito. Chorava e, de vez em quando, ouvia-o dizer: «Meu Deus, não me abandones! Meu Deus, dá-me forças! Meus filhinhos pequenos, meus filhinhos queridos, nunca mais nos veremos!» Indescritível a tristeza que senti. Ora bem, foi a este velho que, a pouco e pouco, quase todos os reclusos começaram a entregar o seu dinheiro para que o guardasse. Na prisão, onde quase todos eram ladrões, toda a gente se convenceu de repente que o velho seria incapaz de roubar. Sabiam que ele escondia o dinheiro que lhe confiavam em qualquer parte, mas o sítio era tão secreto que ninguém conseguiu encontrá-lo. Mais tarde, revelou o segredo a mim e a alguns polacos. Num dos troncos da paliçada ficara um toco de ramo, bem encravado na madeira. Mas podia tirar-se, deixando à vista um buraco bastante grande. Era lá que o avô enfiava o dinheiro, tapando depois a cavidade com o toco: nunca ninguém conseguiu descobri-lo.

Pois bem, assim me desviei da minha narrativa. Tinha começado a falar das causas pelas quais o dinheiro não demorava muito nos bolsos dos reclusos. Além das dificuldades de o poderem guardar em segurança, sofre-se de muita angústia na prisão; ora, o recluso é, por natureza, uma criatura com tanta ânsia de liberdade e, por condição social, uma criatura tão leviana e desorientada que, naturalmente, lhe apetece de chofre «pandegar à grande», à medida de todo o seu capital, com estrondo e música, para esquecer, nem que seja por um minuto, a sua angústia. Era mesmo espantoso ver como alguns deles trabalhavam sem levantar a cabeça, às vezes vários meses seguidos, unicamente para poderem, um belo dia, desbaratar tudo o que tinham ganho, tudo até ao fim, e depois, novamente, até à pândega seguinte, labutar meses a fio. Muitos deles gostavam de arranjar roupa, obrigatoriamente à paisana: calças não regulamentares, pretas, poddiovkas, sibirkas10. Eram também muito populares as camisas de chita e os cintos com placas de cobre. Os presos ataviavam-se nos dias feriados, e o peralta passava, sem falhar, por todas as casernas a exibir-se diante de toda a gente. O contentamento do janota chegava a ter qualquer coisa de infantil: de resto, em muitos sentidos, os reclusos eram autênticas crianças. No entanto, toda essa roupa desaparecia num ápice, às vezes na mesma noite, sendo empenhada ou vendida ao desbarato. Quanto à festa, desenrolava-se aos poucos. Fazia-se coincidir, normalmente, com os dias feriados, ou com o dia do aniversário do borguista. O aniversariante, levantando-se de manhã, punha uma vela diante do ícone e rezava; depois ataviava-se e encomendava um almoço para si. Comprava-se carne de vaca, peixe, fazia-se pelméni11 siberianos; empanturrava-se como um porco, quase sempre sozinho, já que era raro convidar os camaradas para o banquete. Depois aparecia a bebida: o aniversariante embebedava-se como um cacho e, obrigatoriamente, corria as casernas, cambaleando e tropeçando, tentando mostrar a todos que estava bêbado, que estava de pândega, e assim ganhar o respeito geral. Por todo o lado, entre o povo russo, se sente uma certa simpatia pelo bêbado; na prisão, o sentimento era mesmo de respeito pelo borguista. Na pândega prisional continha-se uma espécie de aristocratismo. Animado, o recluso encomendava obrigatoriamente música. Havia na prisão um polaco, do grupo dos desertores, muito nojento, mas que sabia tocar violino, a sua única propriedade. Não exercia qualquer ofício, apenas ganhando o seu dinheiro a tocar danças alegres por encomenda dos farristas. A sua obrigação consistia em seguir o patrão do momento de caserna em caserna a arranhar o violino com toda a força. Muitas vezes, pintava-se-lhe na cara um grande tédio, uma angústia, mas, ao berro de «Toca, foste pago para isso!», era obrigado a arranhar sem fim o violino. O recluso, quando entrava em pândega, tinha a certeza absoluta de que, se exagerasse na bebida, cuidariam dele, pô-lo-iam a dormir atempadamente, escondê-lo-iam num lado qualquer se aparecessem os chefes — e tudo isso era feito de modo absolutamente desinteressado. Por seu lado, os sargentos e os inválidos mantenedores da ordem nas casernas podiam ficar tranquilos: o bêbado não poderia provocar quaisquer distúrbios. Era vigiado por toda a caserna e, se começasse a fazer barulho ou a ficar desvairado, seria metido na ordem e, até, simplesmente amarrado. Por isso, as autoridades subalternas da prisão faziam vista grossa às bebedeiras, e nem sequer se preocupavam com isso. Sabiam muito bem que, se proibissem o álcool, seria muito pior. E onde é que se arranjava o álcool?

As bebidas alcoólicas, dentro da prisão, compravam-se aos chamados «taberneiros». Eram vários e mantinham o seu comércio permanentemente e com êxito, apesar de os bêbados e os «farristas», no cômputo geral, serem poucos, já que a farra exigia dinheiro e o dinheiro era difícil de arranjar. O comércio do álcool processava-se de um modo bastante original. Um preso, por exemplo, sem ofício nem vontade de trabalhar (havia desses), queria no entanto ter dinheiro e, além disso, homem impaciente, queria enriquecer rapidamente. Se tinha algum dinheiro para se lançar, decidia-se então pelo comércio do álcool: empreendimento ousado, de grande risco. Por ele, pode pagar-se com os costados e perder de vez mercadoria e capital. O «taberneiro», porém, decide arriscar. Tem pouco dinheiro, por isso, da primeira vez, traz ele próprio a bebida para a prisão e, é claro, vende-a com um bom lucro. Repete a experiência mais e mais vezes e, se não cair nas mãos dos chefes, desenvolve as vendas rapidamente, e só então organiza um verdadeiro comércio com bases alargadas: torna-se empresário, capitalista, tem os seus agentes e ajudantes, arrisca muito menos e lucra cada vez mais. Em vez dele, são os ajudantes quem corre os riscos.

Na prisão há sempre muita gente arruinada pela pândega e pelo jogo, que esbanjou tudo até ao último copeque, gente sem ofício, miserável e esfarrapada, mas dotada, até certo ponto, de coragem e ousadia. Tais pessoas não possuem outro capital além do próprio lombo; o lombo ainda lhes pode ser útil e, então, o esbanjador arruinado resolve investir este seu último capital. Vai ter com o empresário e é recrutado para o tráfico do álcool; um «taberneiro» rico tem vários empregados destes. Algures fora da prisão existe uma pessoa — um soldado, um popular, às vezes uma rameira — que, com o dinheiro do empresário e mediante determinada recompensa, relativamente elevada, compra a bebida na taberna e guarda-a num lugarzinho secreto aonde os reclusos vão trabalhar. Previamente, o fornecedor prova quase sempre a vodka, para ver se é de boa ou má qualidade, e depois, desavergonhadamente, acrescenta água para voltar a encher o vasilhame — é pegar ou largar, já que o recluso não está em condições de ser demasiado exigente: menos mal não ter perdido todo o dinheiro e lhe ter sido fornecida a vodka, seja de que qualidade for. É com este fornecedor que vão ter os traficantes, que lhe foram indicados de antemão pelo «taberneiro», munidos de tripas de boi. Essas tripas são muito bem lavadas, depois enchidas de água para se conservarem húmidas e elásticas e, no momento adequado, poderem ser atestadas de vodka. Depois de cheias as tripas, o recluso cinge-as à volta das partes mais ocultas do seu corpo. Aqui se revela, evidentemente, toda a manha enganadora do contrabandista. Em parte, trata-se de uma questão de honra; tem de enganar não só a escolta como os guardas. E consegue aldrabá-los: um bom ladrão leva sempre a melhor sobre o guarda da escolta, às vezes um jovem recruta. É natural que, previamente, a escolta seja objeto de estudo; também são tomados em consideração o tempo e o local de trabalho. Por exemplo, se o recluso trabalha na construção de fogões e fornos de tijolo, sobe para cima de um: quem vê o que ele está lá a fazer? A escolta não vai trepar lá para cima com ele. Ao aproximar-se do forte, já leva uma moeda na mão — quinze ou vinte copeques de prata —, para o que der e vier e, junto ao portão, espera pela revista do cabo. Cada recluso que volta do trabalho é revistado e apalpado pelo cabo de guarda e só depois lhe abrem a porta. O traficante de álcool tem normalmente a esperança de que terão vergonha de o apalpar com muita minúcia em certos sítios. Às vezes, porém, um cabo espertalhão mete as mãos nesses sítios e descobre a bebida. Resta o último recurso: o contrabandista, em silêncio e às escondidas da escolta, mete nas mãos do cabo a moedinha já preparada. Às vezes esta manobra resulta e ele entra sem problemas com o álcool. Outras vezes não resulta, e então paga as favas com o seu derradeiro capital, isto é, os costados. Fazem o relatório ao major, o capital é vergastado e, com dor, a bebida é apreendida, assumindo o contrabandista toda a responsabilidade, ou seja, não trai o empresário, mas, repare-se, não o faz por repulsa da denúncia, mas unicamente porque a denúncia não lhe traria quaisquer vantagens: em qualquer caso, seria vergastado; toda a sua consolação consistiria em serem dois os vergastados. Entretanto, o traficante precisa ainda do empresário, embora por tradição e acordo prévio o passador não seja recompensado pelo empresário pelas costas açoitadas. Quanto às denúncias, no geral, elas florescem. Na prisão, o delator não sofre a mais pequena humilhação, é impensável alguém indignar-se com ele. Ninguém o põe de lado, continuam a cultivar a amizade com ele; portanto, se, na prisão, tentarmos provar que a delação é repugnante, ninguém nos compreenderá. O tal recluso de origem fidalga de que falei, corrupto e vil, com quem cortei todas as relações, tinha amizade com Fedka, a ordenança do major, e servia-lhe de espião, transmitindo o Fedka, por sua vez, todas as informações ao major. Toda a nossa gente o sabia, mas nunca passou pela cabeça de ninguém castigar, ou ao menos censurar, o canalha.

De resto, estou a desviar-me do tema. Acontece também, obviamente, que o álcool entre sem problemas; então o empresário recebe as tripas, paga-as e começa a fazer contas. As contas mostram-lhe que a mercadoria já lhe tinha saído muito cara; por isso, para manter as margens de lucro, o empresário trasfega-a mais uma vez, voltando a diluir a vodka com água, quase meio por meio, e, assim preparado, espera pelos compradores. No feriado mais próximo, às vezes até num dia de semana, o comprador aparece: é um recluso que trabalhou vários meses como um boi pela soga e acumulou algum para esbanjar num único dia de bebedeira determinado antecipadamente. O pobre trabalhador sonhou com este dia durante muito tempo e este sonho deu-lhe ânimo moral no trabalho, no meio da enfadonha vida prisional. Finalmente, desponta a oriente a aurora do dia luminoso; o dinheiro foi aforrado, não o confiscaram nem roubaram, e o recluso leva-o ao «taberneiro». Este, de início, serve-lhe uma bebida possivelmente pura, isto é, diluída apenas duas vezes; mas, à medida que a garrafa se esvazia, é logo acrescentada água ao restante. Por uma chávena de vodka paga-se cinco ou seis vezes mais do que numa taberna. Imaginem quantas chávenas dessas é preciso beber e quanto dinheiro é preciso pagar por elas para um homem se embriagar! No entanto, por causa da abstinência prolongada, o recluso fica bêbado bastante depressa e, normalmente, não para de beber até se lhe acabar o dinheiro. Então, chega a vez de toda a roupa nova: o «taberneiro» é, ao mesmo tempo, agiota. Primeiro, cai-lhe nas mãos a roupa particular recém-adquirida pelo preso, depois os farrapos velhos e, por fim, as coisas que são propriedade prisional. Tendo perdido tudo, até ao último trapo, o bêbado vai para a cama e, ao acordar no dia seguinte com as inevitáveis guinadas na cabeça, pede em vão ao «taberneiro» pelo menos um gole para matar a ressaca. Aguenta tristemente o infortúnio e, no mesmo dia, deita de novo mãos à obra, e de novo trabalha meses a fio, sem levantar a cabeça do chão, recordando o dia feliz que passou irremediavelmente e, a pouco e pouco, começando a animar-se e a esperar por outro dia igual, que está ainda longe mas que alguma vez terá de chegar.

Quanto ao «taberneiro», uma vez ganha uma soma importante, várias dezenas de rublos, prepara mais bebida, mas já não a dilui com água, porque a destina para si mesmo; chega de vender, é altura de também festejar! Começa a farra, a bebedeira, o empanzinamento, a música. Os recursos são grandes; suborna-se a chefia subalterna da prisão. A pândega, às vezes, continua por vários dias. É claro que a bebida se lhe acaba rapidamente; então, o farrista vai ter com outros «taberneiros», que já estão à espera dele, e bebe até ficar completamente falido. Por mais que os outros protejam o farrista, a coisa, às vezes, dá nas vistas e chega ao conhecimento dos chefes superiores — o major ou o oficial da guarda. Levam-no ao corpo da guarda, tiram-lhe o capital, se ainda lhe encontrarem algum e, por fim, vergastam-no. Levanta-se, volta à caserna e, passados poucos dias, recomeça a sua atividade de «taberneiro». Alguns pândegos, ricaços, obviamente, sonham também com o belo sexo. Por muito dinheiro, em vez de irem para o trabalho, esgueiram-se às vezes sorrateiramente para algum arrabalde, acompanhados pelo guarda da escolta subornado. Ali, numa qualquer casinha secreta da extrema da cidade, fazem-se grandes banquetes e esbanja-se realmente muito dinheiro. As mulheres, por dinheiro, não desdenham o grilheta; quanto ao guarda da escolta, é escolhido com segurança de antemão, com conhecimento de causa. Normalmente, os guardas da escolta são sérios candidatos a irem parar, eles próprios, à cadeia. De resto, por dinheiro tudo é possível, e estas aventuras quase nunca são descobertas. É de notar, também, que acontecem pouquíssimas vezes, porque exigem muito dinheiro; os amantes do belo sexo recorrem por isso a outros meios, absolutamente seguros.

Logo nos primeiros dias da minha vida prisional, um jovem preso, rapaz muito bonitinho, provocou-me grande curiosidade. Chamava-se Sirótkin. Era uma criatura bastante enigmática em muitos sentidos. Antes de mais, espantou-me a beleza do seu rosto; não teria mais do que vinte e três anos. Encontrava-se na secção especial, ou seja, fora condenado a prisão perpétua, sendo considerado um dos mais graves criminosos militares. Sossegado e meigo, falava pouco, ria raramente. Tinha olhos azuis, traços regulares, um rosto límpido, terno, o cabelo loiro. Nem a cabeça meio rapada lhe estragava a beleza, tão lindo era o rapaz. Não tinha ofício, mas ganhava algum dinheiro, pouco, porém com frequência. Era visivelmente preguiçoso, desleixado. Por vezes alguém o vestia bem, chegando a oferecer-lhe camisa encarnada, e só então Sirótkin ficava contente: passeava-se pelas casernas, exibia-se. Não bebia, não jogava às cartas, quase nunca se zangava com alguém. De mãos nos bolsos, passeava nas traseiras das casernas, pensativo. Em que pensava ele? Era difícil imaginar. Se, por curiosidade, o chamássemos, se lhe perguntássemos alguma coisa, respondia prontamente, com respeito, nada à maneira prisional, mas de forma breve, sem puxar conversa; olhava para nós como uma criança de dez anos. Quando arranjava dinheiro, não comprava coisas necessárias, não mandava remendar o casaco, não juntava para botas novas: comprava um kalatch ou um doce de mel e comia-o logo — parecia um garoto de sete anos. «Eh, tu, Sirótkin! — diziam-lhe às vezes os reclusos. — Seu órfão desgraçado!» Nas horas livres, vagueava normalmente pelas casernas que não a sua; quase toda a gente se ocupava nas tarefas do seu ofício, só ele de braços cruzados. Diziam-lhe alguma coisa, quase sempre no gozo (com ele e com outros como ele brincava-se muito), e ele, sem dizer palavra, dava meia-volta e ia para outra caserna; quando o gozo era demais, ficava corado. Pensei muitas vezes: por que veio parar à prisão esta criatura submissa e ingénua? Uma ocasião, estava eu no hospital, na enfermaria dos presos. Sirótkin estava na cama ao lado, também doente; uma vez, ao fim da tarde, metemos conversa; o rapaz foi-se animando a pouco e pouco e, ao acaso, contou-me como fora arrebanhado para o serviço militar, como a sua mãe chorou por ele ao despedir-se e como a recruta foi dura. Acrescentou que não podia aguentar a vida de recruta: toda a gente era severa, irada, os comandantes estavam quase sempre descontentes com ele...

— O que aconteceu, afinal? — perguntei-lhe. — Por que vieste parar à prisão? Ainda por cima à secção especial... Eh, Sirótkin, Sirótkin!

— É que, Aleksandr Petróvitch, só estive um ano no batalhão; meteram-me aqui porque matei Grigóri Petróvitch, comandante da minha companhia.

— Já ouvi falar disso, mas não consigo acreditar. Alguma vez serias capaz de matar alguém?

— Calhou, Aleksandr Petróvitch. Ficou tudo difícil demais para mim.

— E os outros recrutas não têm de passar por isso? No princípio é duro para todos, mas depois habituam-se e fazem-se bons soldados. Acho que foste mimado demais pela tua mãe, com doces e leitinho até aos dezoito anos.

— É verdade, a mãezinha gostava muito de mim. Quando me levaram como necruta, caiu doente e disseram que já não se levantou mais... Aquilo da necruta acabou por ficar terrível demais para mim. O comandante ganhou-me aversão, eram castigos por tudo e por nada... e porquê? Eu era humilde com todos, levava uma vida como deve ser, não bebia, não fazia dívidas, e é o pior de tudo, Aleksandr Petróvitch, uma pessoa contrair dívidas. À minha volta era tudo gente de coração duro, não tinha um ombro para derramar uma lágrima. Às vezes escondia-me atrás de uma esquina e chorava. Uma vez, estava eu de sentinela. Já era noite. Puseram-me de guarda ao pé da armaria. Um vento! Era outubro, escuro como breu. Sentia tanto desespero! Tirei a baioneta da espingarda, pu-la ao lado, assentei a coronha no pé; tirei a bota direita, apertei o cano contra o peito e premi o gatilho com o dedo grande do pé. Nada! Examinei a arma, limpei a caçoleta, pus pólvora nova, dei uns toques na pederneira e voltei a encostar o cano ao peito. E o que aconteceu? A pólvora ardeu, mas a arma não disparou outra vez! O que é isto?, pensei. Calcei a bota, armei a baioneta, dei uns passos, calado. Nisto, decidi outra coisa: ir-me embora, fosse para onde fosse, acabar com a necruta! Meia hora depois aparece o comandante, que andava a fazer a ronda das sentinelas. Veio diretamente para mim: «Então é assim que se faz a sentinela?» De baioneta calada, espetei-lha até ao cano. Paguei quatro mil vergastadas, e cá estou, na secção especial...

Não mentia. Porém, devia haver outras razões para o mandarem para a secção especial. Os crimes vulgares são sujeitos a penas muito menores. Diga-se, aliás, que dos seus companheiros da secção especial, Sirótkin era o único com aquele ar doce. Quanto aos outros, uns quinze, até causava estranheza olhar para eles; só duas ou três caras eram mais ou menos normais; todos os outros — orelhudos, feios, desleixados, alguns grisalhos. Se as circunstâncias mo permitirem, falarei de todo este grupo em mais pormenor. Sirótkin, esse, era o amigo especial, muitas vezes, de Gázin, esse Gázin com que comecei este capítulo, tendo mencionado que ele, bêbado, irrompera pela cozinha, facto que baralhou as minhas noções iniciais da vida prisional.

Este Gázin era uma criatura terrível. Causava em todos uma sensação torturante de medo. Sempre me pareceu que não poderia haver ninguém mais feroz e monstruoso do que ele. Em Tobolsk vi o Kámenev, famoso pelos seus crimes; vi mais tarde o Sokolov, ainda réu, ex-soldado desertor, assassino terrível. Nenhum deles, porém, me causou tanta repulsa como Gázin. Às vezes parecia-me que tinha diante dos olhos uma aranha enorme, gigantesca, do tamanho de um homem. Era tártaro, dotado de uma força terrível, o homem mais forte da prisão — estatura acima da média, a compleição de um Hércules, uma cabeça monstruosa, desproporcionada de grande; curvava-se a andar, olhava-nos de soslaio. Corriam na prisão boatos estranhos sobre ele: sabiam que era militar, mas os reclusos comentavam entre si — não sei se era verdade — que era um fugido de Nértchinsk; já fora deportado para a Sibéria por mais de uma vez, mudava de nome e, por fim, foi parar à nossa prisão, à secção especial. Contavam dele, também, que dantes gostava de matar crianças pequenas à facada, unicamente pelo prazer: levava a criança para um sítio propício, assustava-a, torturava-a e, tendo-se deliciado com o terror da pequenina vítima, matava-a devagar, com prazer. Talvez fosse tudo invenção, por causa da impressão horrorosa que Gázin causava em todos, mas a verdade é que todas essas fantasias ligavam bem com ele. Na prisão, porém, nos seus momentos de sobriedade, portava-se com sensatez. Era sossegado, nunca se zangava com ninguém e evitava discussões, mas talvez o fizesse por desprezo pelos outros, como se se considerasse superior a todos; falava pouco e era acintosamente insociável. Todos os seus movimentos eram lentos, calmos, seguros. Via-se-lhe pelos olhos que não era parvo nenhum e que era muito manhoso; entretanto, alguma coisa de altivo, de irónico e cruel lhe transparecia na cara e no sorriso. Negociava em álcool e era um dos mais abastados «taberneiros» da prisão. Duas vezes por ano, ou coisa assim, acontecia-lhe porém embebedar-se e, nessas ocasiões, manifestava-se toda a ferocidade da sua natureza. Embriagava-se gradualmente, a pouco e pouco, começando primeiro por implicar com as pessoas por meio de sarcasmos muito maldosos, bem calculados, como que preparados havia muito; por fim, já completamente bêbado, entrava em fúrias terríveis, pegava na faca, atirava-se às pessoas. Os reclusos, conhecendo a sua força fenomenal, dispersavam-se, escondiam-se; Gázin atacava quem lhe aparecesse à frente. Muito rapidamente, porém, encontraram uma maneira de o dominarem. Uns dez homens da caserna dele atiravam-se de repente a ele, todos de uma vez, e começavam a espancá-lo. É impossível imaginar alguma coisa de mais cruel do que semelhante espancamento: batiam-lhe no peito, nas costelas, no estômago, no ventre; batiam-lhe muito e demoradamente, e só paravam quando ele perdia os sentidos e ficava como morto. Não bateriam assim em qualquer outro: bater assim significava matar qualquer pessoa, menos o Gázin. Depois do espancamento, agasalhavam-no com uma peliça e deitavam-no no catre. «Vai ficar bom!» De facto, na manhã seguinte, levantava-se quase fresco e ia trabalhar, calado e carrancudo... então, sempre que o Gázin se embebedava, já toda a população prisional sabia que, para ele, o dia ia acabar numa inevitável sessão de espancamento. Ele próprio o sabia e, mesmo assim, embebedava-se. Assim se passaram as coisas durante vários anos. Por fim, começou a notar-se que Gázin começava a ceder. Queixava-se de dores, definhava a olhos vistos e ia parar cada vez com mais frequência ao hospital... «Arriou, pois!», diziam entre si os reclusos.

Gázin entrou na cozinha acompanhado por aquele polacozeco nojento do violino que os presos recrutavam para se divertirem, parou no meio da cozinha e pôs-se a estudar em silêncio e com atenção todos os presentes. Calaram-se todos. Por fim, pôs os olhos raivosos e irónicos em mim e no meu companheiro, sorriu com fatuidade, como se tivesse compreendido alguma coisa e, cambaleando muito, aproximou-se da nossa mesa.

— Permitam-me uma pergunta — começou (falava russo). — Com que rendimentos se dignam a tomar chá?

Troquei um olhar silencioso com o meu companheiro, percebendo que o melhor era calarmo-nos, não respondermos. À mais pequena objeção, Gázin entraria em fúria.

— Portanto, têm dinheiro, não é? Têm montões de dinheiro, não é? Será que vieram para a prisão para se regalarem com chazinhos? Falem, c’os diabos!...

Vendo porém que nós decidíramos ficar calados e não lhe prestar atenção, enrubesceu e tremeu de fúria. Junto dele, a um canto, estava um tabuleiro grande onde se punha todo o pão cortado para o almoço ou jantar dos presos. Era tão grande que cabia nele o pão de meia prisão; mas, no momento, estava vazio. Gázin agarrou nele com as duas mãos e levantou-o por cima das nossas cabeças. Mais um instante e rachava-nos as cabeças aos bocados. Apesar de um homicídio ou uma tentativa de homicídio lá dentro ameaçar com grandes sarilhos toda a prisão; começariam as rusgas, as buscas, seriam reforçadas as medidas de rigor e, por isso, os reclusos faziam todos os possíveis para que não se chegasse a tais extremos — apesar de tudo isso, dessa vez todos os reclusos ficaram calados, à espera. Nem uma palavra em nossa defesa! Nem um berro contra Gázin! — tal era o ódio de todos eles por nós! Agradava-lhes, pelos vistos, a nossa situação perigosa... Mas tudo acabou bem: já ele baixava sobre nós o tabuleiro quando alguém gritou do átrio:

— Gázin, roubaram-te o material!...

Atirou o tabuleiro ao chão e, como um doido, precipitou-se para fora da cozinha.

— Foi Deus quem vos salvou! — diziam entre si os reclusos. E repetiram-no depois muitas vezes.

Nunca cheguei a saber se essa história do roubo do álcool era verdadeira ou se, muito a propósito, fora inventada para nossa salvação.

À noite, já na escuridão, antes de fecharem as casernas, andava eu ao longo da paliçada e descia sobre a minha alma uma tristeza pesada, tão forte que nunca, durante toda a minha vida prisional, viria a sentir tristeza assim. É duro o primeiro dia de prisão, seja a prisão qual for... Mas lembro-me de que me angustiava acima de tudo uma ideia, que depois me perseguiria obsessivamente e que até hoje se mantém irresolúvel para mim: a desigualdade de penas por crimes iguais. Também é verdade que é impossível comparar crimes, mesmo por aproximação. Por exemplo: fulano matou uma pessoa, sicrano também; foram analisadas todas as circunstâncias dos dois casos — tanto para o primeiro como para o segundo caso, a pena foi a mesma. No entanto, veja-se que diferença há entre os dois crimes. O primeiro, por exemplo, esfaqueou uma pessoa por nada, por uma cebola: saiu à estrada, matou um mujique que por lá passava, e este tinha apenas consigo uma cebola. «Então, chefe! Mandaste-me à caça: matei um mujique e encontrei-lhe no bolso apenas uma cebola.» — «Parvo! Uma cebola é um copeque! Cem almas são cem cebolas — já faz um rublo!» (Esta é uma lenda prisional.) O segundo matou, defendendo de um tirano voluptuoso a honra da noiva, da irmã, da filha. Há quem mate porque é vagabundo, cercado por toda uma legião de polícias, defendendo com unhas e dentes a sua liberdade, a sua vida, às vezes quase a morrer de fome; outro degola criancinhas pelo prazer de matar, de sentir nas mãos o sangue quente delas, deliciando-se com o medo delas, com o último estertor do passarinho que tem sob a faca. E então? Ambos vão parar aos mesmos trabalhos forçados. É claro que as penas variam. No entanto, tais variações são relativamente pequenas; entretanto, para o mesmo género de crime, há um número incontável de diferenças. Cada caráter, cada diferença. Digamos que é impossível conciliar, esbater essa diferença, que, de certo modo, se trata de um problema irresolúvel — a quadratura do círculo, admitamos! Porém, mesmo que tal desigualdade não existisse, veja-se a diferença em consequência do castigo... Eis um homem que, na prisão, definha, se consome como uma vela; eis outro que, antes de cair na prisão, nem sabia que existia no mundo vida tão divertida, tão agradável clube de bravos companheiros. Sim, também vão para a prisão pessoas assim. Eis, por exemplo, um homem culto, de consciência desenvolvida, com moral, com coração. A dor do seu coração, mais do que quaisquer castigos, atormentá-lo-á até à morte. Censurar-se-á pelo seu crime da maneira mais implacável, mais impiedosa do que a mais severa das leis. Agora, eis ao lado dele outro homem que, no decurso de toda a pena, nem uma única vez pensará no assassínio que cometeu. Até se considera cheio de razão. Existe também quem cometa um crime premeditado só para ir para os trabalhos forçados e, com isso, se libertar da vida incomparavelmente mais dura que tem em liberdade. É um homem que, em liberdade, vivia numa humilhação extrema, nunca comia o suficiente para matar a fome e trabalhava de manhã à noite para o patrão; ora, na prisão o trabalho é menos duro do que em casa, o pão nunca falta, ainda por cima um pão fino que nunca dantes comeu; nos feriados até servem carne de vaca, há a possibilidade de alguma esmola, de se arranjar algum copeque. E a companhia? Gente manhosa, hábil, sabida; então, o homem olha para os seus companheiros com um espanto respeitoso; ainda nunca vira gente assim; vê nela a mais alta sociedade que imaginar se possa neste mundo. Será que o castigo, para estes dois indivíduos, é igualmente sensível? De resto, quem se preocupa com problemas irresolúveis? Toca o tambor, são horas de voltar à caserna.

9 Um lugar na região de Tchernígov (Ucrânia). (NT )

10 Poddiovka é um casaco comprido masculino, com pregas a partir da cintura. Sibirka é um cafetã curto com pregas. (NT )

11 Espécie de ravioli, com carne picada dentro. (NT )


4

As primeiras impressões

Começou a última chamada. Depois da chamada fechar-se-iam as casernas, cada qual com uma fechadura diferente, e os reclusos ficariam aferrolhados até ao amanhecer.

A chamada era feita pelo sargento e mais dois soldados. Os reclusos formavam no terreiro e, às vezes, vinha o oficial da guarda. Na maior parte das vezes, porém, toda esta cerimónia se fazia «em família»: verificava-se a presença dos presos nas casernas. Assim aconteceu essa noite. Os controladores enganavam-se muito na contagem, saíam e voltavam. Por fim, os pobres dos guardas lá chegaram ao número desejado e fecharam a caserna. Havia cerca de trinta homens, num aperto bastante grande de catres. Ainda era cedo para se ir para a cama. Cada qual, então, devia ocupar-se com alguma coisa.

De chefes, só ficava na caserna o inválido que já mencionei atrás. Havia também em cada caserna um responsável da parte dos reclusos, nomeado pelo próprio major, com base no bom comportamento, evidentemente. Acontecia muitas vezes que estes responsáveis reclusos também eram apanhados em asneiras graves; então eram vergastados, despromovidos e substituídos por outros. Na nossa caserna, o responsável era Akim Akímitch que, para meu grande espanto, ralhava muito com os reclusos. Estes, por norma, respondiam-lhe em tom de gozo. Já o inválido era mais esperto e não se metia em nada; se, por acaso, lhe acontecia abrir a boca, era mais pela conveniência, para ficar com a consciência de que interviera. Estava sentado em silêncio no seu catre a coser uma bota. Os reclusos quase não lhe prestavam atenção.

Neste primeiro dia da minha vida prisional cheguei a uma conclusão e, ulteriormente, vim a convencer-me de que estava certa. Ou seja: todos os que não são reclusos, sejam quem forem, desde os que estão em contacto direto com os presos — guardas das escoltas, soldados da guarda, toda a gente de algum modo ligada ao quotidiano prisional — olham para o recluso com um receio exagerado. Parece que estão à espera, preocupados, que algum deles ataque de faca em punho. O mais notável era os reclusos terem a consciência de que os outros lhes tinham medo, o que lhes dava uma espécie de fanfarronice. No entanto, para os presidiários, o melhor chefe é aquele que não lhes tem medo. Também, em geral, tirando o prazer da fanfarronice, agrada muito mais ao próprio recluso que tenham confiança nele. Com a confiança, é mesmo possível atrair a sua simpatia. Durante os meus anos de prisão aconteceu mesmo, embora raramente, que algum dos chefes entrasse na prisão sem escolta. Era admirável como isso impressionava os reclusos, no bom sentido. Um visitante assim destemido ganha o respeito deles e, mesmo que possa acontecer alguma coisa má, nunca se passa na presença do visitante. O medo ao recluso acontece por todo o lado onde há presos e, palavra de honra, desconheço a razão de tal medo. É claro que existem certos motivos para tal, a começar pelo próprio aspeto físico do recluso, bandido confirmado; além disso, qualquer um, quando lida de perto com uma prisão, sabe que toda aquela multidão de presos não se reuniu ali de livre vontade e que, apesar de todas as medidas, não se pode transformar uma pessoa viva num corpo morto: a pessoa conserva os seus sentimentos, a ânsia de viver e de vingança, as paixões e a necessidade de as satisfazer. Apesar de tudo, tenho a certeza de que não vale a pena ter medo dos reclusos. Não é tão fácil nem tão súbito um homem atirar-se de faca em punho a outro homem. Numa palavra, mesmo que haja a possibilidade de algum perigo, mesmo que aconteça às vezes qualquer coisa, isso é tão raro que se pode concluir que o perigo é insignificante. Falo, evidentemente, de presos já condenados, muitos dos quais estão até contentes por terem chegado finalmente à prisão (a tal ponto a nova vida, às vezes, é melhor para eles!) e que, portanto, se dispõem a viver calma e pacificamente; além disso, eles próprios se encarregarão de impedir que os seus companheiros realmente inquietos se desvairem muito. Todo o recluso condenado, por mais valente e descarado que seja, tem medo de tudo na prisão. Outra coisa é o réu ainda não sentenciado. Esse, de facto, é capaz de se atirar a um estranho sem motivo, por nada, unicamente porque no dia seguinte o espera o castigo corporal: se lhe for aberto um novo processo, o castigo será adiado. Aqui há um motivo e um objetivo para o atentado: «mudar o seu destino» custe o que custar e o mais depressa possível. Conheço mesmo um estranho caso psicológico deste género.

Na nossa prisão, na categoria militar, havia um soldado a quem o tribunal condenara a dois anos de prisão mas não privara dos direitos civis; era um grandecíssimo fanfarrão e um cobarde. No geral, a bazófia e a cobardia são muito raras entre os soldados russos. O nosso soldado está sempre tão ocupado que, mesmo que quisesse, não teria tempo para bazófias. Portanto, se é um fanfarrão, tal deve-se a ser mandrião e cobarde. O Dútov (era este o nome do recluso) cumpriu finalmente a sua curta pena e voltou ao batalhão. No entanto, acontece a todas as pessoas do seu género, mandadas para a prisão para se corrigirem mas que, lá dentro, ficam definitivamente estragadas, acontece pois que, muitas vezes, depois de duas ou três semanas de liberdade, voltam a ser julgadas e regressam à prisão, já não por dois ou três anos, mas para a categoria dos «de sempre», ou seja, por quinze ou vinte anos. Foi o que sucedeu ao Dútov. Três semanas depois de ser libertado, rebentou com uma fechadura para roubar; além disso, era insolente e provocava desordens. Foi entregue ao tribunal e condenado a um castigo severo. Assustado até à loucura com o castigo corporal iminente, na véspera do dia em que deveria passar pelas chibatadas atirou-se de faca em riste ao oficial da guarda que tinha entrado na cela, como o mais miserável dos cobardes. Evidentemente, ele sabia muito bem que iria, com esse ato, agravar muito mais a sentença e aumentar a pena de trabalhos forçados. A sua tática, porém, consistia precisamente em adiar por alguns dias que fossem, por algumas horas, o terrível momento do castigo! Era tão cobarde que, quando se atirou ao oficial com a faca, nem sequer o feriu, foi tudo pro forma, um pretexto para outro processo.

O minuto antes do castigo é, sem dúvida, terrível para quem vai sofrê-lo. Durante todos estes anos, calhou eu ver bastantes acusados na véspera do dia fatídico. Normalmente, encontrava-me com eles no hospital, na ala dos reclusos, quando estava doente, o que me sucedia com frequência. Os reclusos sabem, por toda a Rússia, que as pessoas mais piedosas para com eles são os médicos. Nunca tratam os presos com discriminação, o que acontece com toda a outra gente, excluindo o povo simples. O povo nunca censura o preso pelo seu crime, por mais terrível que seja e, pelo castigo que sofre e pela desgraça do criminoso, perdoa-lhe tudo. Não é por acaso que, por toda a Rússia, o povo chama ao crime desgraça e aos criminosos desgraçados. Esta é uma definição profundamente significativa. É ainda mais importante por ser feita inconscientemente, por instinto. Ora, em muitos casos, os médicos são um verdadeiro refúgio para os presos, sobretudo para os acusados, que são tratados com mais severidade do que os condenados... O acusado calcula com a maior proximidade possível o dia em que chegará o castigo terrível e baixa muitas vezes ao hospital, querendo adiar, pelo menos um pouco, o momento doloroso. Quando tem alta, sabendo que o momento fatal será quase de certeza o dia seguinte, fica nervosíssimo. Alguns tentam esconder os seus sentimentos por amor-próprio, mas aquela bravura fingida não engana os companheiros. Todos percebem o que se passa mas, por humanidade, calam-se. Conheci um preso, jovem soldado, assassino, condenado à dose completa de vergastadas. Assustou-se de tal maneira que, na véspera do castigo, resolveu beber uma infusão de rapé em vodka. A propósito: arranja-se sempre vodka para o acusado antes do castigo. É trazida às escondidas, muito antes do dia do castigo, comprada a alto preço — o acusado está pronto a prescindir do mais necessário durante meio ano para poupar o dinheiro para pouco mais de meio quartilho de vodka que bebe um quarto de hora antes do castigo. Entre os reclusos, em geral, existe a convicção de que a pessoa embriagada sente menos a dor do chicote ou da vergasta. Ora bem, desviei-me da narração. O pobre coitado, mal bebeu a infusão, caiu doente de imediato; começou a vomitar sangue e foi levado para o hospital quase sem sentidos. Os vómitos desarranjaram-lhe o peito de tal maneira que, alguns dias depois, já mostrava sintomas de verdadeira tísica, de que viria a morrer em seis meses. Os médicos que o tratavam da tísica não sabiam donde ela provinha.

Ao falar da tibieza, nada rara, dos criminosos perante o castigo físico, não posso porém deixar de acrescentar que, ao invés, alguns deles espantam o observador pela sua temeridade extraordinária. Lembro-me de vários exemplos de coragem, uma coragem que chegava a raiar a insensibilidade, e tais exemplos não são tão raros como isso. Guardo na memória, sobretudo, o meu encontro com um criminoso terrível. Num dia de verão, correu pela ala dos reclusos o rumor de que, ao fim da tarde, ia ser o castigo do famoso bandido Orlov, um desertor, e que depois do castigo seria trazido para a enfermaria. Os presos doentes, enquanto esperavam por Orlov, diziam que ele ia ser castigado cruelmente. Estavam todos bastante emocionados e, confesso, também eu esperava o aparecimento do famigerado bandido com grande curiosidade. Desde havia muito tempo que ouvia coisas incríveis sobre ele. Era um facínora como há poucos, que degolava a sangue-frio velhos e crianças, homem de enorme força de vontade e a consciência orgulhosa da sua força. Confessou muitas mortes e foi condenado a passar por entre duas filas de soldados que o zurziriam à paulada. Trouxeram-no à noite. Já estava escuro na enfermaria, acenderam as velas. Orlov vinha quase inconsciente, terrivelmente pálido, com o cabelo espesso e negro desgrenhado. As costas inchadas, sanguinolentas, púrpuro-azuladas. Os reclusos cuidaram dele durante toda a noite, mudavam-lhe a água, viravam-no de um lado para outro, davam-lhe os medicamentos, como se tratassem de um parente ou de um benfeitor. No dia seguinte voltou a si e deu logo duas voltas pela enfermaria! Fiquei espantado, tão fraco e combalido ele chegara ao hospital. Aguentara metade das pauladas a que fora condenado. O médico mandou parar a execução do castigo quando viu que, se aquilo continuasse, a morte do criminoso ficaria iminente. Além disso, Orlov era de pequena estatura e de fraca compleição, além de se encontrar esgotado pela prisão preventiva muito longa. Quem alguma vez viu os presos preventivos, talvez guarde na memória por muito tempo os seus rostos extenuados, cavilosos e pálidos, os seus olhos febris. Apesar disso tudo, Orlov recuperava depressa. Pelos vistos, a sua energia interior, espiritual, ajudava muito ao físico. De facto, era um homem bastante invulgar. Por curiosidade, travei com ele um conhecimento mais chegado e, durante uma semana inteira, tive oportunidade de o estudar. Posso dizer que nunca na vida encontrei homem mais forte e de caráter tão férreo como ele. Já tinha visto em Tobolsk uma celebridade do mesmo género, antigo cabecilha de bando. Era uma perfeita fera selvagem e quando estávamos ao pé dele, mesmo que ainda não soubéssemos a sua identidade, sentíamos por instinto que estávamos perto de uma criatura terrível. A mim, o que me aterrorizava nele era o embotamento espiritual. Nele, a carne levava a melhor sobre o espírito a um ponto tal que, num primeiro olhar, pela sua cara, percebíamos que apenas lhe restava a ânsia selvagem dos prazeres carnais, da volúpia, da lascívia. Tenho a certeza de que Kórenev (é o nome deste bandido) se iria abaixo e tremeria de medo frente ao castigo, embora fosse capaz de matar sem pestanejar. Já Orlov era exatamente o contrário. Consubstanciava, de facto, a vitória total sobre a carne. Via-se que era homem de se dominar a si mesmo ilimitadamente, que desdenhava de sofrimentos e castigos, que não tinha medo de nada neste mundo. Sentia-se nele a energia infinita, a ânsia de ação, de vingança, de alcançar as suas metas. Direi, a propósito, que também me surpreendeu a sua estranha arrogância. Tinha um modo inconcebível de olhar para tudo e todos de alto, mas nada havia nisso de fabricado, era natural nele. Acho que nenhuma autoridade no mundo poderia influenciá-lo. Encarava tudo com a maior das calmas, como se não existisse nada que pudesse surpreendê-lo. Embora notasse muito bem que os outros o olhavam com respeito, não se exibia diante deles. Não tinha nada de estúpido e era estranhamente sincero, sem ser nenhum tagarela. Respondeu às minhas perguntas frontalmente, dizendo que esperava recuperar a saúde o mais depressa possível para se pôr à disposição para as restantes pauladas do castigo e que a única coisa de que tivera medo, antes do castigo, fora o de não sobreviver a ele. «Mas agora — acrescentou piscando-me o olho — está decidido. Apanho as pauladas que faltam e, na próxima leva, mandam-me para Nértchinsk e fujo pelo caminho! Fujo, não falha! O principal é que as minhas costas se curem depressa!» Durante cinco dias esperou com ansiedade pela alta. Neste período, tinha momentos de muita alegria e de riso fácil. Tentei falar com ele das suas aventuras. Carregava um pouco o sobrolho, mas respondia sempre com franqueza. Porém, quando percebeu que eu tentava sondar-lhe a consciência e conseguir, pelo menos, algum arrependimento da parte dele, olhou para mim com desdém e altivez, como se eu fosse um garoto pequeno e parvinho com quem era impossível ter uma conversa de homens. Desenhou-se-lhe mesmo na cara uma espécie de piedade por mim. Uns instantes depois desatava às gargalhadas, rindo-se de mim, mas com ingenuidade, sem qualquer ironia; tenho a certeza de que depois, quando ficou sozinho e se lembrou das minhas palavras, se riu ainda mais. Por fim, recebeu alta, ainda sem as costas lhe terem sarado de todo; também a mim foi dada alta, calhando sairmos do hospital juntos: eu para a prisão, ele para o corpo da guarda, ao lado, onde já antes estivera detido. À despedida apertou-me a mão, o que era, da parte dele, um sinal de grande confiança. Acho que o fez porque estava muito contente consigo mesmo e com o momento que passava. No fundo, não podia deixar de desprezar-me e, decerto, olhava para mim como para uma criatura submissa, fraca, miserável e inferior a ele em todos os sentidos. Logo no dia seguinte, levaram-no para o submeterem à segunda parte do castigo...

Quando a nossa caserna foi fechada, adquiriu de repente um aspeto especial — um ambiente de verdadeira habitação, de lar. Só agora eu podia ver os reclusos, meus companheiros, em casa de corpo inteiro. De dia, o sargento, os guardas e, em geral, os chefes podem entrar na prisão a qualquer momento, por isso todos os seus habitantes se portam de modo diferente, como que inquietos, como que na espera permanente de alguma coisa, preocupados. Ora, mal a caserna se fechou, todos tomaram com calma os seus lugares, quase todos se puseram a fazer qualquer trabalho manual. A caserna, de repente, iluminou-se. Cada um tinha a sua vela e o seu castiçal, na maioria das vezes de madeira. Um pôs-se a fazer umas botas, outro a costurar uma roupa. O ar da caserna ia-se tornando cada vez mais fétido. Um grupinho de pândegos sentou-se a um canto, de cócoras, à roda de um tapete, para jogar às cartas. Em quase todas as casernas havia um recluso que tinha um tapetinho coçado, de um côvado de comprido, uma vela e cartas incrivelmente sebentas. A tudo isso se chamava o «casino». O proprietário cobrava aos jogadores uma taxa, uns quinze copeques por noite; era o negócio dele. Todos os jogos eram de azar. Cada jogador punha à sua frente um montinho de cobres — tudo o que tinha nos bolsos — e só se levantava da sua posição de cócoras depois de ter perdido tudo ou de ter «esfolado» os companheiros. O jogo acabava a altas horas da noite, às vezes continuava até ao amanhecer, mesmo até ao momento de abrirem a caserna. Na nossa camarata, tal como em todas as outras casernas da prisão, havia sempre desgraçados que perdiam tudo ao jogo ou na bebedeira, ou que eram miseráveis por natureza. Digo «por natureza» e insisto nesta expressão. Realmente, no nosso povo, por todo o lado, independentemente do ambiente ou das circunstâncias, sempre tem havido e sempre haverá certos indivíduos estranhos, pacatos e, não raro, nada preguiçosos, mas a quem foi predestinado ficarem miseráveis para todo o sempre. Sempre solteiros, sempre desleixados, sempre com um ar embrutecido e triste por qualquer coisa, sempre a obedecerem a alguém, moços de recados às ordens, normalmente, dos farristas ou dos que, subitamente, enriqueceram e se engrandeceram. Qualquer iniciativa é para eles uma desgraça e um fardo. Parece até que já nasceram com a condição de não terem qualquer iniciativa na vida e de apenas servirem, de viverem cumprindo a vontade alheia, de dançarem conforme lhes tocam; o seu destino é cumprir o que lhes mandam. Para cúmulo, não há circunstâncias, não há reviravoltas que os possam enriquecer. São sempre miseráveis. Reparei que tais indivíduos não se encontram apenas no seio do povo, mas em todas as sociedades, em todas as categorias sociais, partidos, jornais e associações. Acontecia o mesmo em cada caserna, em cada prisão, e mal se organizava um «casino», um desses miseráveis ia de imediato servir de criado. Em geral, nenhum «casino» podia passar sem um criado. Normalmente, era recrutado por todos os jogadores reunidos e para toda a noite, por uns quaisquer cinco copeques de prata, sendo a sua obrigação principal ficar toda a noite de guarda. Na maioria das vezes, gelava, durante seis ou sete horas, na escuridão do átrio, com um frio de trinta graus negativos, escutando cada batida, cada estalido, cada tinido, cada passo no terreiro. O major ou os guardas apareciam às vezes na prisão a horas bastante tardias, entravam sem barulho e apanhavam os jogadores e os artífices, as velas a mais, que podiam ver ainda de fora. Quando começava repentinamente a estrondear o cadeado da porta de fora, já era tarde para o pessoal se esconder, apagar as velas e deitar-se nos catres. Porém, como o criado de atalaia levava uma grande sova no caso dessas falhas, elas eram extremamente raras. Cinco copeques, é claro, é um pagamento ridículo, mesmo para um presídio; mas sempre me impressionou na prisão a severidade e a impiedade dos empregadores, neste e em todos os outros casos. «Foste pago, então faz o teu trabalho!» Era um argumento que não admitia quaisquer objeções. Pelo tostão pago, o empregador obtinha tudo o que podia obter e, quando podia, ainda mais, além de considerar ainda que estava a fazer um favor ao empregado. O farrista embriagado, que desbaratava o dinheiro à maluca, enganava sempre, no entanto, o seu servidor, coisa em que reparei em mais de uma prisão e em mais de um «casino».

Disse já, portanto, que na caserna quase toda a gente se sentara a trabalhar nalguma coisa; além dos jogadores, não havia mais do que cinco pessoas desocupadas, que aliás foram imediatamente dormir. O meu lugar no catre era mesmo junto à porta. No outro lado, cabeça com cabeça comigo, ficava o Akim Akímitch. Trabalhou até às dez ou onze, a colar um lampião chinês de muitas cores, trabalho que lhe fora encomendado na cidade a um preço bastante bom. Era artista a fazer lampiões, trabalhava com método, sem parar; quando acabou o trabalho, arrumou tudo com cuidado, estendeu o seu colchãozinho, rezou a Deus e deitou-se decentemente. Estendia a decência e a ordem até à pontualidade mais mesquinha; pelos vistos, considerava-se um homem supinamente inteligente, como costumam considerar-se, em geral, todas as pessoas lorpas e limitadas. Não gostei dele desde o primeiro dia, embora, lembro-me, no primeiro dia pensasse muito nele e me admirasse que um homem daqueles, em vez de singrar na vida, tivesse ido parar à prisão. Mais adiante terei ainda várias ocasiões para falar de Akim Akímitch.

Entretanto, descreverei sucintamente a composição da nossa caserna. Iria viver nela ainda muitos anos, e aquelas pessoas eram os meus futuros convivas e companheiros. É compreensível, portanto, que os perscrutasse com uma curiosidade ávida. À minha esquerda acomodava-se um grupo de montanheses caucasianos, deportados principalmente por pilhagem, com diferentes penas a cumprir. Eram dois lésguios, um tchetcheno e três tártaros do Daguestão. O tchetcheno era uma criatura sombria e carrancuda, não falava quase com ninguém e olhava à sua volta com ódio, de soslaio, com um sorriso venenoso, malévolo, sarcástico. Um dos lésguios era já velho, com um nariz comprido, fino e aquilino, um bandido empedernido, pela aparência. Mas o outro lésguio, Nurra, causou-me desde o primeiro dia uma impressão muito agradável e simpática. Nada velho ainda, de estatura mediana, compleição hercúlea, puramente loiro e de olhos azuis, nariz arrebitado, cara de finlandesa; tinha as pernas arqueadas porque passara a vida em cima de um cavalo. Todo o seu corpo estava traçado de marcas de sabres, baionetas, balas. No Cáucaso era um pacífico, mas esgueirava-se muitas vezes para junto dos montanheses guerrilheiros, sorrateiramente, e acompanhava-os em incursões contra os russos. Na prisão, todos gostavam dele. Andava sempre alegre, era simpático com todos, trabalhava sem se queixar, era calmo e sereno, embora muitas vezes olhasse com indignação para a desordem e a sordidez da vida prisional e se revoltasse até à fúria contra qualquer roubo, vigarice, bebedeira e, no geral, contra tudo o que fosse desonesto; mas não entrava em discussões, limitava-se a virar as costas com indignação. Ele próprio, durante todo o período da sua prisão, não roubou nada, não fez nada de condenável. Era extremamente religioso. Rezava as suas orações, infalivelmente; nos dias de jejum, antes das festas muçulmanas, jejuava como um fanático e passava noites inteiras a rezar. Toda a gente gostava dele e acreditava na sua honestidade. «O Nurra é um leão», diziam os reclusos; e assim lhe ficou para sempre o nome de Leão. Tinha a certeza absoluta, depois de cumprido o seu tempo, que poderia voltar para casa, para o Cáucaso, e era só com essa esperança que vivia. Parece-me que morreria se a perdesse. Foi logo no meu primeiro dia de prisão que reparei nele. Era impossível não reparar no seu rosto bondoso e simpático no meio das caras maldosas, sombrias e irónicas dos outros grilhetas. Depois de eu ter entrado, durante a primeira meia hora, Nurra, quando passava ao meu lado, dava-me palmadinhas no ombro, rindo-se bondosamente para os meus olhos. A princípio, não compreendi o que isso significava. Falava muito mal russo. Passado um tempinho voltava a aproximar-se de mim e de novo, sorrindo, dava-me uma palmada amigável no ombro. Depois, mais e mais vezes, e assim durante três dias. Significava — como adivinhei e, mais tarde, vim a saber — que tinha pena de mim, que sentia como devia ser difícil para mim tomar conhecimento com a prisão, queria mostrar-me a sua amizade, animar-me, assegurar-me a sua proteção. Ingénuo e bondoso Nurra!

Os tártaros daguestaneses eram três, todos irmãos. Dois deles eram já de certa idade, mas o terceiro, Alei, não passava dos vinte e dois e tinha um aspeto ainda mais jovem. O seu lugar nos catres era ao meu lado. O seu rosto belo, aberto, inteligente e, ao mesmo tempo, bondoso e ingénuo atraiu para ele o meu coração, à primeira vista, e fiquei contentíssimo por o destino mo ter mandado, e não a outro qualquer, como vizinho. Toda a alma se lhe exprimia no rosto bonito, mesmo belo, pode dizer-se. O seu sorriso era tão confiante, tão infantilmente ingénuo! Os seus grandes olhos negros eram tão suaves, tão ternos que eu sentia sempre um prazer especial e mesmo um alívio da minha tristeza e amargura quando olhava para ele. Digo-o sem exagero. Na sua terra, o irmão mais velho (tinha cinco irmãos mais velhos; dois deles foram parar a uma fábrica qualquer) mandou-o, uma ocasião, pegar no sabre e montar o cavalo para irem juntos numa expedição qualquer. O respeito pelos mais velhos é tão grande nas famílias montanhesas que o rapaz não só não se atreveu, como nem sequer lhe passou pela cabeça perguntar aonde iam. Por sua vez, os mais velhos nem sequer acharam necessário informá-lo disso. Iam numa expedição de pilhagem, apanhar no caminho um comerciante arménio rico e assaltá-lo. Foi isso mesmo que aconteceu: mataram à facada a escolta do arménio, mataram o arménio e roubaram a mercadoria. O caso foi descoberto: prenderam os seis, julgaram-nos, condenaram-nos, passaram-nos pelo chicote e deportaram-nos para a Sibéria, para os trabalhos forçados. As circunstâncias atenuantes apenas valeram a Alei uma redução da pena: foi condenado a quatro anos. Os irmãos adoravam-no, mais de um amor paterno do que fraterno. Era o consolo deles na prisão; normalmente sombrios e carrancudos, sorriam sempre que olhavam para ele e, quando lhe falavam (de resto, falavam muito pouco com ele, como se o considerassem ainda uma criança com quem não tinha sentido falar de coisas sérias), as suas caras severas abriam-se, e eu adivinhava que lhe estavam a falar num tom de brincadeira em quaisquer coisas quase infantis — pelo menos, trocavam olhares e sorriam com benevolência ao ouvirem as respostas de Alei. Ele próprio quase não se atrevia a encetar uma conversa com eles: a tal ponto lhes tinha respeito. É difícil imaginar como conseguiu este rapaz, em todo o tempo de reclusão, conservar a brandura de coração, aquela honestidade rigorosa, a cordialidade, a simpatia, sem se embrutecer nem depravar. Aliás, era uma natureza forte e inabalável, apesar de toda a sua meiguice aparente. Mais tarde, conheci-o bem. Era casto como uma donzela, e qualquer procedimento feio, cínico, porco ou injusto, qualquer ato de violência acendiam o fogo da indignação nos seus olhos maravilhosos que, assim, se tornavam ainda mais belos. Evitava, no entanto, conflitos e altercações, embora fosse daqueles que não se deixam ofender e sabem defender-se. Aliás, não havia motivos para se zangar com ninguém: todos gostavam dele e o acarinhavam. No início, era apenas educado comigo. A pouco e pouco, comecei a poder falar com ele; em poucos meses, Alei aprendeu a falar um russo perfeito, coisa que os irmãos não iriam conseguir nos anos todos de reclusão. Alei parecia-me um rapaz muitíssimo inteligente, modesto e delicado que já tivera tempo de refletir em muitas coisas da vida. Digo a priori: considero Alei uma criatura invulgaríssima e recordo o meu conhecimento com ele como um dos melhores da minha vida. Há carateres tão belos por natureza, tão bafejados pela graça de Deus que mesmo a ideia de que alguma vez eles possam mudar para pior nos parece impossível. Estamos sempre tranquilos por eles. Até hoje, estou tranquilo por Alei. Onde estará agora?...

Uma ocasião, bastante tempo depois da minha entrada, estava deitado no catre a pensar em qualquer coisa muito penosa. Alei, sempre laborioso e ocupado, dessa vez não tinha nada que fazer, embora ainda fosse cedo para dormir. De resto, era tempo de uma festa religiosa muçulmana e eles não trabalhavam. Alei estava deitado com as mãos atrás da nuca e também pensava em qualquer coisa. De repente, perguntou-me:

— Estás muito mal agora, não é?

Olhei para ele com curiosidade porque me pareceu estranha aquela pergunta rápida e frontal de um Alei sempre educado e escrupuloso, sempre de coração inteligente; mas, perscrutando-lhe com mais atenção a cara, vi nela tanta saudade, tanto sofrimento trazido pelas recordações que percebi de imediato que também ele se sentia muito mal, precisamente nesse momento. Disse-lhe o que pensava. Alei suspirou e sorriu tristemente. Eu gostava do sorriso dele, sempre meigo e cordial. Além disso, quando sorria, mostrava duas fieiras de dentes como pérolas, de fazerem inveja à maior beldade do mundo.

— Então, Alei, estavas a pensar em como correm agora as festas, lá no teu Daguestão? Aquilo é bom, lá?

— É — disse ele com entusiasmo, os olhos luziram-lhe. — Como é que sabes que estava a pensar nisso?

— É natural! Lá é melhor do que aqui?

— Oh! Para que é preciso perguntares?...

— Agora, lá, que flores, que paraíso!...

— Ooh, nem me fales disso. — Alei estava emocionadíssimo.

— Ouve, Alei, tens alguma irmã?

— Tenho, mas por que perguntas?

— Deve ser uma beldade, se for parecida contigo.

— Parecida comigo! É uma beleza como não há em todo o Daguestão! Ah, que beleza é a minha irmã! Nunca viste ninguém como ela! A minha mãe também era bonita.

— A tua mãe gostava de ti?

— Ah! O que estás para aí a dizer? A minha mãe de certeza que morreu de mágoa por mim. Eu era o filho preferido dela. Gostava mais de mim do que da minha irmã, do que de todos... Hoje visitou-me em sonho e chorava por mim.

Calou-se e, nessa noite, não disse mais nada. Mas, desde então, procurava sempre conversar comigo, embora, pelo respeito que por qualquer razão me votava, nunca fosse o primeiro a meter conversa. Porém, ficava contentíssimo se eu me dirigisse a ele. Perguntava-lhe coisas sobre o Cáucaso, sobre a sua vida de outrora. Os irmãos não lhe proibiam conversar comigo, até lhes agradava. Vendo que eu me afeiçoava cada vez mais a Alei, começaram a tratar-me com maior simpatia.

Alei ajudava-me no trabalho, servia-me na caserna com o que podia, via-se que tinha muito prazer em aliviar um pouco a minha situação e em agradar-me, e não havia naquele obséquio a mínima humilhação ou a procura de qualquer vantagem, mas antes um sentimento caloroso e amigável por mim que não camuflava. A propósito, Alei tinha grandes capacidades para o trabalho manual, aprendeu a costurar bastante bem, fazia botas e, mais tarde, aprendeu alguma coisa do ofício de carpinteiro. Os irmãos louvavam-no e orgulhavam-se dele.

— Ouve, Alei — disse-lhe eu uma vez —, por que não aprendes a ler e a escrever em russo? Pode ser-te muito útil mais tarde, aqui na Sibéria.

— Gostava muito. Mas quem me ensina?

— Há aqui muita gente alfabetizada. Bom, se quiseres, ensino-te eu.

— Ah, por favor, ensina! — Até se soergueu no catre e juntou as mãos numa súplica, olhando para mim.

Começámos logo na noite seguinte. Eu tinha comigo a tradução russa do Novo Testamento — livro que não era proibido na prisão. Sem abecedário, só com esse livro, Alei aprendeu a ler excelentemente em poucas semanas. Três meses depois já compreendia na perfeição a linguagem livresca. Estudava com ardor e entusiasmo.

Uma vez, lemos todo o Sermão da Montanha. Notei que ele pronunciava algumas frases com particular sentimento.

Perguntei-lhe se gostava do que acabara de ler.

Lançou-me um olhar rápido, o sangue subiu-lhe às faces.

— Ah, sim! — respondeu. — Issá12 é um santo profeta, Issá dizia palavras de Deus. Que bom!

— E do que gostas mais?

— Gosto quando ele diz: perdoa, ama e não ofendas; ama os teus inimigos. Ah, que bem ele o diz!

Virou-se para os irmãos, que escutavam a nossa conversa, e pôs-se a explicar-lhes qualquer coisa com ardor. Falaram longa e seriamente entre si, meneando as cabeças com aprovação. Depois, com sorrisos benévolos e cheios de dignidade, ou seja, puramente muçulmanos (de que gosto tanto, precisamente pela sua dignidade), dirigiram-se a mim e confirmaram que Issá era profeta de Deus e fazia grandes milagres; que fez do barro um pássaro, soprou nele e o pássaro voou... e que isso vem escrito nos livros deles. Ao dizê-lo, tinham a certeza de que me davam um grande prazer louvando Issá, e Alei estava feliz por os irmãos terem resolvido dar-me esse prazer.

A escrita também correu muito bem. Alei arranjou papel (e não permitiu que eu o comprasse com o meu dinheiro), penas, tinta, e apenas em dois meses aprendeu a escrever na perfeição, o que espantou mesmo os seus irmãos. O orgulho e o prazer deles não tinham limites. Não sabiam como agradecer-me. Nas tarefas em que calhava trabalharmos juntos ajudavam-me, ora um, ora outro, e eram felizes por poderem fazê-lo. Sem falar já do próprio Alei. Gostava tanto de mim, talvez, como dos irmãos. Nunca esquecerei o momento em que saiu em liberdade. Levou-me para as traseiras da caserna e, ali, atirou-se-me ao pescoço e chorou. Nunca antes me beijara nem chorara. «Fizeste tanto por mim, tanto — dizia —, nem o meu pai e a minha mãe poderiam fazer tanto; fizeste de mim um homem, Deus vai recompensar-te por isso, e eu nunca te esquecerei...»

Onde estará agora o meu bom, o meu querido Alei?...

Além dos caucasianos, havia nas nossas casernas um grupo de polacos que constituíam uma família à parte, quase sem comunicação com os restantes reclusos. Disse já que, por causa do seu elitismo e do seu ódio pelos presos russos, eram, por sua vez, odiados por todos. Eram indivíduos doentes, extenuados; eram seis, ao todo. Alguns eram pessoas cultas; destes falarei a seu tempo, em pormenor e em separado. Era também por intermédio deles que eu, nos últimos tempos da minha vida prisional, arranjava às vezes alguns livros. O primeiro livro que li dentro da prisão causou-me uma impressão forte, estranha, especial. Ainda terei azo de falar dessas impressões. Para mim, são curiosas ao máximo, mas tenho a certeza de que para muitos serão completamente incompreensíveis. Não se pode julgar certas coisas sem as experimentar. Digo apenas que as provações morais são muito mais penosas do que todas as físicas. Um homem do povo que vai parar à prisão acha-se entre os seus iguais ou, talvez, no meio de gente mais desenvolvida do que ele. É claro que perde muito — a terra natal, a família, tudo, mas o seu ambiente fica o mesmo. O homem culto que, por força da lei, é sujeito ao mesmo castigo que o homem simples, muitas vezes perde incomparavelmente mais. Tem de reprimir em si todas as necessidades, todos os hábitos; é obrigado a passar para um meio que lhe é escasso, tem de habituar-se a respirar outro ar... É um peixe tirado da água para a areia... E, muitas vezes, o castigo que por força da lei é igual para todos torna-se para ele um martírio dez vezes mais torturante. É verdade... mesmo quando se trata apenas dos hábitos materiais que é preciso sacrificar.

Entretanto, os polacos constituíam um grupinho íntimo muito especial. Eram seis, mantinham-se unidos. De entre todos os grilhetas da nossa caserna, gostavam apenas de um judeu, e talvez assim fosse porque, unicamente, o homem os divertia. De resto, também os outros reclusos gostavam do nosso judeu, embora toda a gente, sem exclusão, gozasse com ele. Era o único judeu da prisão, e ainda hoje não posso recordá-lo sem me rir. Sempre que olhava para ele vinha-me à memória o judeu Iánkel, do Tarass Bulba gogoliano que, dando as boas-noites para ir dormir com a sua judia numa espécie de armário, se tornava muitíssimo parecido com um frango. Issai Fomitch, o nosso judeu, era tal qual um frango depenado. Era um homem já de certa idade, dos seus cinquenta anos, baixinho e franzino, manhoso e, ao mesmo tempo, definitivamente estúpido. Era atrevido, arrogante e, simultaneamente, de uma cobardia extrema. Tinha a cara traçada de rugazinhas, com as marcas do ferro, que lhe tinham sido feitas no cadafalso, na testa e nas bochechas. Nunca cheguei a perceber como um homem daqueles pôde aguentar sessenta chicotadas. Fora condenado por homicídio. Guardava religiosamente uma receita médica que os seus amigos judeus lhe tinham arranjado logo depois do cadafalso. Era a receita de um manipulado, uma pomada com que, apenas em duas semanas, seria possível eliminar as marcas do ferro. Issai Fomitch não se atrevia a recorrer à pomada dentro da prisão e aguardava que passassem os seus doze anos de trabalhos forçados para que, ao tornar-se colono siberiano, pudesse então utilizar a receita. «De outro modo não é possível arranjar casamento — disse-me uma vez. — E eu quero mesmo é casar-me.» Éramos grandes amigos, eu e ele. Estava sempre de humor excelente. Era-lhe fácil viver na prisão: tinha o ofício de ourives, estava cheio de encomendas da cidade, onde não havia nenhum joalheiro, conseguindo assim livrar-se dos trabalhos pesados. Ao mesmo tempo, obviamente, era agiota e, a troco de juros e penhores, abastecia toda a prisão de dinheiro. Chegara antes de mim, e um dos polacos descreveu-me em pormenor a sua chegada. É uma história muitíssimo cómica que contarei mais tarde; por mais de uma vez falarei ainda de Issai Fomitch.

Os restantes inquilinos da nossa caserna eram: quatro cristãos da velha crença ortodoxa, velhos e grandes leitores, inclusive o velho dos arredores de Starodúbie; dois ou três ucranianos, gente sombria; um jovem grilheta de cara fininha e nariz afilado, dos seus vinte e três anos, que já matara oito pessoas; um grupo de falsários de moeda, um dos quais era o brincalhão da nossa caserna; e, finalmente, vários indivíduos carrancudos, de cabeças rapadas, desfigurados, taciturnos e invejosos, que olhavam de soslaio e com ódio à volta deles, notando-se-lhes a firme intenção de olharem assim, de franzirem a cara, de se calarem e de terem ódio ainda durante muitos anos — todo o tempo das suas penas. Tudo isto me passou apenas de relance à frente dos olhos nessa minha primeira e angustiante noite da minha nova vida — relanceou-me pelos olhos no meio de fumo e fuligem, de pragas e cinismo indescritível, no ar fétido, ao som de grilhetas a tilintarem, no meio de maldições e risos desavergonhados. Deitei-me no catre sem qualquer colchão, metendo debaixo da cabeça a minha roupa (ainda não tinha almofada), agasalhei-me com a peliça, mas demorei muito a adormecer, embora estivesse extenuado e todo moído das impressões monstruosas e inesperadas do primeiro dia. A minha nova vida, porém, apenas começava. Ainda tinha pela frente coisas tais que nunca eu poderia imaginá-las nem prevê-las...

12 Jesus. (NT )


5

O primeiro mês

Três dias depois da minha chegada à prisão, mandaram-me para os trabalhos. Mantém-se nítido na minha memória esse primeiro dia de trabalho, embora não tenha acontecido nada de extraordinário, pelo menos tendo em conta o caráter já extraordinário da minha situação em geral. Porém, como ainda vivia as minhas primeiras impressões, continuava a observar tudo avidamente. Passei os primeiros três dias envolto numa penosa sensação. «Eis o final da minha caminhada: estou na prisão! — repetia mentalmente para comigo a cada instante. — Eis o meu porto de abrigo para muitos e longos anos, o meu canto, onde entro com esta sensação dolorosa de desconfiança... Mas, quem sabe? Quando tiver de o abandonar, daqui a muitos anos, talvez sinta saudades dele!...», acrescentava eu, com resquícios daquela sensação malévola que, às vezes, chega até à necessidade de avivar propositadamente uma chaga, como querendo admirar a dor, como se na consciência da enormidade do infortúnio houvesse realmente algum prazer. A ideia de alguma vez vir a ter saudades deste canto espantava-me e aterrorizava-me: já nessa altura pressentia até que ponto monstruoso o homem é acomodatício. Tudo isso, porém, estava para vir e, naquela altura tudo à minha volta era hostil e assustador... enfim, nem tudo, isso é verdade, mas era essa a impressão que tinha. Aquela curiosidade selvagem com que me observavam os meus novos companheiros grilhetas, a sua severidade, reforçada por se tratar de um novato de origem fidalga que, de repente, entrou na corporação deles, severidade essa que chegava, por vezes, até ao ódio — tudo isso me extenuou de tal modo que eu próprio ansiava por ir trabalhar o mais depressa possível para, de uma vez, conhecer e experimentar toda a minha desgraça, para começar a viver como todos eles, para entrar com eles nos mesmos eixos. É claro que não me dava conta nem sequer suspeitava de muita coisa que estava mesmo debaixo do meu nariz: no meio do hostil, ainda não enxergava o positivo. Aliás, para começar, alguns rostos simpáticos e carinhosos que encontrei nesses três dias animaram-me bastante. O mais carinhoso e simpático para comigo era Akim Akímitch. Não deixei também de notar, no meio de tantas caras tenebrosas e cheias de ódio, algumas bondosas e alegres. «Por todo o lado há pessoas más e, no meio delas, pessoas boas — apressava-me a pensar, para me consolar. — Quem sabe? Talvez esta gente não seja muito pior do que a que ficou lá fora.» Era assim que pensava, e censurava-me por tal pensamento; entretanto — meu Deus! —, se soubesse naquele momento até que ponto essa ideia era verdadeira!

Por exemplo, havia lá um homem, a quem só viria a conhecer o suficiente passados muitos anos, embora estivesse ao meu lado permanentemente durante todo o período da minha prisão. Era o recluso Suchílov. Bastou-me agora falar dos grilhetas que não eram piores do que os outros para me lembrar imediatamente dele. Prestava-me alguns serviços. Além dele, tinha mais um servidor. Akim Akímitch, logo nos primeiros dias, recomendara-me um dos presos, Óssip, dizendo-me que, se eu tivesse dinheiro, por trinta copeques mensais ele cozinharia todos os dias as minhas refeições particulares, já que eu tinha tanta repugnância pela comida comum da prisão. Óssip era um dos quatro cozinheiros designados pelos próprios presos para trabalharem nas nossas duas cozinhas, embora os eleitos tivessem todo o direito de aceitarem ou não tal nomeação; e, ao aceitarem, podiam voltar atrás, nem que fosse logo no dia seguinte. Os cozinheiros estavam livres dos trabalhos forçados, e todas as suas obrigações consistiam em cozer o pão e a sopa de repolho quotidianos. Lá dentro não lhes chamavam cozinheiros, mas sopeiras (no feminino), não por desprezo, até porque para a cozinha se elegia gente esperta e, na medida do possível, honesta, mas por brincadeira inocente que não ofendia minimamente os nossos cozinheiros. Óssip era quase sempre eleito e foi sopeira durante vários anos seguidos, recusando-se a sê-lo só de vez em quando, quando o atormentava mais a angústia e, a par dela, a vontade de fazer tráfico de vodka. Era um homem de rara honestidade e doçura, embora tivesse sido condenado por contrabando. Tratava-se daquele rapaz alto e robusto, contrabandista, que já mencionei; com medo de tudo, sobretudo das vergastas, sossegado, submisso, carinhoso com toda a gente, que nunca entrou em conflito com ninguém, mas que não podia deixar de traficar vodka, apesar de toda a sua cobardia, pela mera paixão do contrabando. Juntamente com os outros cozinheiros, também vendia álcool, embora, claro, em menores quantidades do que Gázin, por exemplo, porque não se atrevia a arriscar muito. Com este Óssip, eu vivia sempre em concórdia. Quanto aos meios para ter refeições individuais, eram precisos pouquíssimos. Não me enganarei muito se disser que não gastava com a minha alimentação mais do que um rublo de prata mensal, uma vez que aproveitava o pão da ordem e, às vezes, a sopa de repolho, se estivesse com muita fome, apesar da repugnância que tinha por ela, repugnância essa que, aliás, quase desapareceu por completo com a passagem do tempo. Normalmente, comprava carne de vaca, uma libra por dia. No inverno, a carne de vaca custava lá dentro um tostão. Ia buscá-la ao mercado algum dos inválidos — havia um em cada caserna, para vigilância e manutenção da ordem, encarregando-se também, voluntariamente, em ir todos os dias ao mercado às compras para os reclusos, não cobrando por isso quase nada, uma coisa mínima. Faziam-no em prol do seu próprio sossego, de outro modo ser-lhes-ia impossível conviver com os presos. E assim traziam tabaco, chá em briquetes, carne de vaca, kalatches, etc., etc., menos álcool, evidentemente. Não lhes pediam álcool, embora às vezes lhes oferecessem um copo. Óssip preparou-me, durante vários anos, o mesmo bocado de carne frita. Como a fritava, é outra questão, mas isso também não interessava. É curioso que, durante vários anos, não troquei com Óssip mais de duas palavras. Muitas vezes tentei encetar uma conversa com ele, mas o homem era incapaz de manter uma conversa: sorria, ou respondia sim ou não, e era tudo. Causava mesmo estranheza olhar para aquele Hércules como de sete anos de idade.

Além de Óssip, outra das pessoas que me ajudava era o Suchílov. Não o chamei nem o procurei. De algum modo, foi ele quem me achou e se colou a mim; nem sequer me lembro de como e quando isso aconteceu. Começou por me lavar a roupa. Por trás das casernas havia, precisamente para o efeito, um grande fosso. Por cima desse fosso colocavam-se as tábuas e selhas prisionais onde era lavada a roupa dos reclusos. Além disso, o próprio Suchílov inventava para si milhares de obrigações diferentes com que me agradasse: punha a aquecer a minha chaleira, corria por todo o lado com missões a cumprir, procurava sempre qualquer coisa para mim, levava-me o casaco a remendar, engraxava-me as botas quatro vezes por mês; fazia tudo isso com zelo e azáfama, como se se tratasse de obrigações de enorme importância — numa palavra, ligou completamente o seu destino ao meu e encarregou-se de todos os meus problemas. Nunca dizia, por exemplo: «O senhor tem tantas e tantas camisas... o seu casaco está roto, etc.», mas dizia: «Temos agora tantas camisas... o nosso casaco está roto.» Devorava-me com os olhos e, ao que parece, achava-me o principal destino da sua vida. Não sabia ofício nenhum e, tudo leva a crer, só comigo ganhava o seu copeque. Eu pagava-lhe o que podia, ou seja, tostões, e o homem, com submissão, ficava sempre contente. Não podia viver sem servir alguém e, pelos vistos, escolhera-me, sobretudo, porque eu era mais educado e mais honesto no soldo do que os outros. Era daqueles que nunca poderiam enriquecer nem melhorar a sua situação, dos que se ofereciam para se pôr de guarda aos «casinos», ficando de atalaia noites inteiras no átrio com um frio de rachar, atentos ao mínimo som do terreiro, não se desse o caso de aparecer o major, que levavam por isso cinco copeques de prata por noite e que, em caso de azar, perdiam tudo e ainda por cima pagavam com os costados. Já falei deles. A característica de tais pessoas é a de eliminarem constantemente a sua personalidade, em todo o lado e diante de quase toda a gente, e a de, nos assuntos coletivos, nem sequer desempenharem um papel secundário, mas terciário. São assim por natureza. Suchílov era um tipo miserável, completamente submisso e humilhado, mesmo embrutecido, embora não fosse espancado nem oprimido por ninguém. Não sei porquê, sempre tive pena dele. Não podia sequer olhar para ele com outro sentimento — por que razão me fazia tanta pena, não sei dizê-lo. Também não podia ter uma conversa com ele — tal como Óssip, não sabia conversar, via-se que isso lhe era mesmo penoso e só se animava quando, para acabar a conversa, eu o mandava fazer alguma coisa, lhe pedia que fosse ou corresse a qualquer lado. Acabei por me convencer de que isso lhe dava prazer. Não era alto nem baixo, nem bonito nem feio, nem estúpido nem esperto, nem novo nem velho, um pouco bexigoso, um pouco loiro. Dele, nada se podia dizer de definitivo. Só uma coisa: ao que me parecia e pelo que podia adivinhar, Suchílov pertencia à mesma laia de pessoas que o Sirótkin, unicamente pelo seu embrutecimento e submissão. Os reclusos, às vezes, gozavam com ele, principalmente por causa da história em que ele, caminhando numa leva de condenados para a Sibéria, se trocou por uma camisa vermelha e um rublo de prata. Era pelo preço miserável por que se vendeu que os reclusos se riam dele. Trocar-se significava trocar de nome com alguém e, assim, trocar de destino. Por mais esquisito que pareça, este facto é verdadeiro e, no meu tempo, ainda se praticava com toda a pujança entre os condenados levados para a Sibéria, consagrado por lendas e regulamentado em formas precisas. Primeiro, tal coisa pareceu-me inconcebível, mas depois tive de acreditar nos factos evidentes.

Acontece do modo que aqui descrevo. Por exemplo, é escoltada para a Sibéria uma leva de presos. São de vários géneros: condenados a trabalhos forçados, para a fábrica, deportados como colonos; mas vão todos juntos. Algures pelo caminho, na região de Perm, digamos, um condenado pretende «trocar-se» com outro. Por exemplo, um tal Mikháilov, assassino ou que cometeu algum outro crime capital, acha desvantajoso ir permanecer durante muitos anos nos trabalhos forçados. É um tipo manhoso, experiente, sabe como se fazem as coisas; então procura nessa leva um simplório qualquer, embrutecido, submisso, e condenado a uma pena relativamente pequena: a uns anitos, poucos, na fábrica, ou à colonia, ou mesmo aos trabalhos forçados, mas com uma pena mais curta para cumprir. Por fim, encontra o Suchílov. Suchílov é um criado, servo da gleba, e vai deportado como colono. Já palmilhou cerca de mil e quinhentas verstás13, sem um copeque no bolso, obviamente, porque gente como Suchílov nunca tem dinheiro; cansado até à extenuação, comendo só a comida da ordem, sem um petisco, sequer de vez em quando, só com a roupa prisional, fazendo serviços a este e àquele por uns cobres miseráveis. Mikháilov mete conversa com Suchílov, chega-se a ele, torna-se até seu amigo e, às tantas, numa alta do caminho, oferece-lhe um copo. Por fim, faz-lhe a proposta: não quererá Suchílov «trocar-se»? Sou Mikháilov, diz-lhe, vou para uns trabalhos forçados que não são propriamente trabalhos forçados, mas uma «secção especial» qualquer. São trabalhos forçados, claro, mas especiais, portanto melhores. É que a secção especial, enquanto existiu, nem os chefes sabiam muito bem o que era — por exemplo, em Petersburgo, digamos. Era um recanto tão isolado, num dos confins da Sibéria, e tão pouco povoado (no meu tempo estavam lá cerca de setenta pessoas) que até era difícil encontrá-lo. Vi depois pessoas que serviam na Sibéria e a conheciam bem, mas que ouviam falar pela primeira vez da «secção especial», por mim. No Código, só constam algumas seis linhas sobre ela: «É instituída, junto da prisão tal, uma Secção Especial, para os delinquentes mais perigosos, até à abertura na Sibéria de trabalhos forçados mais duros.» Os próprios presos não conheciam esta secção: como é, perpétua ou a prazo? O prazo não era sentenciado, apenas se dizia que era até à abertura de trabalhos forçados mais duros, mais nada. Não é de admirar que nem Suchílov nem outros dessa leva o soubessem, incluindo o próprio Mikháilov que, no melhor dos casos, apenas podia ajuizar sobre a secção especial pelo crime que cometera, demasiado grave e pelo qual já fora castigado com três ou quatro mil pauladas; a partir daí, não podia ser mandado para nenhum sítio bom. Ora, o Suchílov ia deportado como colono: haveria qualquer coisa melhor? «Não queres trocar, Suchílov?» Suchílov, alma simplória, já com os copos, está cheio de gratidão por Mikháilov ser tão simpático com ele, por isso não se atreve a recusar a proposta. Além disso, já ouviu falar de que se pode trocar, que também os outros trocavam, por isso não havia nisso nada de invulgar ou nunca visto. Chegam a acordo. O desavergonhado do Mikháilov, aproveitando-se da extrema ingenuidade de Suchílov, compra-lhe o nome por uma camisa vermelha e um rublo de prata que lhe entrega imediatamente, na presença de testemunhas. No dia seguinte já a bebedeira de Suchílov passou, mas voltam a embebedá-lo, e não é correto recusar-se: o rublo de prata já foi gasto com a piela e, um pouco mais tarde, a camisa vermelha também. Se quiseres voltar atrás, tens de me devolver o dinheiro. E onde arranjaria um Suchílov tanto dinheiro? E, se não devolver, a comunidade dos presos tratará dele: essas coisas são observadas rigorosamente. Além disso, já que prometeste, cumpre — a comunidade também vai insistir nisso. Se assim não for, dão cabo da pessoa. Espancam-na, matam-na até, em qualquer caso mantê-la-ão terrivelmente acossada.

A verdade é que, se a comunidade dos presos for indulgente num caso destes, nem que seja uma vez sem exemplo, a troca de nomes, pura e simplesmente, acabará. Se se tornar possível desistir da promessa e violar o acordo depois de ter recebido o dinheiro, quem cumprirá o contrato? Numa palavra, o assunto, aqui, é coletivo, por isso a leva dos presos é muito rigorosa e unida nestes casos. Por fim, Suchílov conclui que já é impossível desistir e resolve aceitar o acordo de uma vez por todas. A decisão é anunciada a toda a leva; se for preciso, suborna-se e embebeda-se as pessoas certas. Estas, obviamente, não se importam: tanto lhes faz que seja o Mikháilov a ir para o diabo ou que seja o Suchílov; ora, a vodka já foi bebida — portanto, caluda. Logo na paragem seguinte, por exemplo, fazem a chamada: «Mikháilov!» — Suchílov responde: «Presente!»; «Suchílov!» — Mikháilov grita: «Presente!» — e seguem caminho. Ninguém sequer fala mais disso. Em Tobolsk, os deportados são selecionados por categorias. O «Suchílov» vai viver como colono, e o «Mikháilov», sob escolta reforçada, é levado para a secção especial. A seguir, já nenhum protesto é possível; de facto, como se poderia provar fosse o que fosse? Quantos anos duraria um tal processo? Que castigos não sofreria ainda o Suchílov por isso? Onde estão, afinal, as testemunhas? Negarão tudo, mesmo que as encontrem. Como resultado, Suchílov, por uma camisa vermelha e um rublo de prata, vai parar à secção especial.

Os reclusos riam-se de Suchílov — não pelo facto de se ter «trocado» (embora, em geral, tenham desprezo pelos «trocados» dos trabalhos leves para os trabalhos duros, como, aliás, por quaisquer parvalhões que sejam aldrabados), mas porque a moeda de troca foi apenas uma camisa vermelha e um rublo de prata — vendido por uma quantia miserável demais. Normalmente, a troca envolve altos preços, relativamente, é claro. Às vezes, várias dezenas de rublos. Mas Suchílov era tão submisso, tão isento de personalidade, tão insignificante na opinião de todos que até nem tinha sentido a gente rir-se dele.

Eu e o Suchílov convivemos durante vários anos. A pouco e pouco afeiçoou-se, sobremaneira, a mim; eu não podia deixar de reparar nisso, e também me habituei muito ao homem. Mas uma ocasião — nunca perdoarei tal coisa a mim mesmo — Suchílov não cumpriu qualquer pedido meu, quando, ainda por cima, tinha acabado de lhe dar dinheiro; então disse-lhe cruelmente: «Olhe, o Suchílov recebe o dinheiro mas não faz o que lhe mandam.» Suchílov não respondeu, foi tratar do meu assunto, mas andava muito triste. Passaram dois dias. Pensei: não pode ser que ele tenha ficado assim por causa das minhas palavras. Eu sabia que um recluso, Anton Vassíliev, lhe exigia com insistência o pagamento de uma dívida insignificante. Pelos vistos, pensei, o Suchílov não tem dinheiro e não tem coragem de mo pedir. No terceiro dia, disse-lhe: «Suchílov, não queria pedir-me dinheiro, para o Anton Vassíliev? Tome.» Eu estava sentado no catre, Suchílov de pé à minha frente. Parece-me que ficou muito pasmado por eu próprio lhe ter proposto o dinheiro, por me ter lembrado da sua situação difícil, quando, ainda por cima, tinha recebido muito dinheiro da minha parte, na opinião dele; portanto, nem lhe passava pela cabeça que eu lhe podia dar mais. Olhou para o dinheiro, depois para mim, deu meia-volta e saiu. Fiquei espantado. Fui atrás dele e apanhei-o atrás das casernas. Estava virado para a paliçada, apoiando nela uma mão e a cabeça. «Suchílov, o que tem?» — perguntei. Suchílov não olhava para mim e, para minha grande surpresa, vi que estava prestes a chorar: «Aleksandr Petróvitch... pensa — começou com uma voz titubeante e olhando para o lado —, pensa que eu lhe faço... as coisas... por dinheiro... mas eu... eeh!» Nisto, virou-se de novo para a paliçada, bateu mesmo com a testa contra ela... e desfez-se em choro! Pela primeira vez, vi na prisão um homem a chorar. Custou-me muito consolá-lo. Desde então, embora continuasse a servir-me e a cuidar de mim ainda com maior zelo, se tal fosse possível, eu reparava contudo, por alguns indícios quase impercetíveis, que o seu coração nunca perdoara a admoestação que lhe fizera. Entretanto, os outros riam-se dele, alfinetavam-no sempre que tinham uma boa ocasião, insultavam-no às vezes violentamente — e ele vivia em amizade com eles e nunca se ofendia. Sim, é muito difícil compreender uma pessoa, mesmo depois de se conhecer durante muitos anos.

É por isso que a prisão não podia apresentar-se-me naquele seu verdadeiro aspeto em que viria a vê-la mais tarde. Por isso disse que, mesmo observando tudo com uma atenção ávida e reforçada, não conseguia descobrir coisas que estavam mesmo à frente do meu nariz. É natural que me espantassem, em primeiro lugar, os fenómenos grandes, relevantes, mas também esses, porventura, eram percebidos por mim incorretamente, deixando na minha alma apenas uma impressão penosa, desesperadamente triste. Para tal contribuiu muito o meu encontro com A..., também um recluso, que tinha entrado para a prisão um pouco antes de mim e que me causou uma impressão particularmente dolorosa nos meus primeiros dias lá dentro. Aliás, ainda antes de entrar na prisão eu sabia que me encontraria lá com A... A impressão que me causava nesses primeiros tempos tão difíceis, envenenou-me e aumentou os meus sofrimentos espirituais. Não posso evitar falar deles.

Ele era o mais abominável exemplo da queda moral e da vileza humana, mostrando até que ponto o homem pode matar em si qualquer sentimento moral, sem resistência nem arrependimento. A... era jovem, de origem fidalga — de resto, já lhe fiz uma menção ligeira quando disse que ele denunciava ao nosso major tudo o que acontecia na prisão e que tinha amizade com Fedka, a ordenança do major. Eis, resumidamente, a sua história. Sem que tivesse terminado quaisquer estudos e tendo-se zangado com a família, assustada com a sua conduta depravada, chegou a Petersburgo e, para arranjar dinheiro, resolveu fazer uma denúncia infame, ou seja, vender o sangue de dez pessoas para satisfação imediata dos mais brutos e perversos prazeres que, juntamente com os cafés e as Ruas Mechánskie14, o atraíam a um ponto tal que, mesmo não sendo estúpido, o levaram a arriscar-se a uma coisa louca e absurda. Foi rapidamente desmascarado; com a sua denúncia, comprometera pessoas inocentes, enganara algumas outras; por tudo isso, foi condenado a dez anos e mandado para a Sibéria, para a nossa prisão. Era ainda muito jovem, mesmo em princípio de vida. Supostamente, uma mudança tão terrível do seu destino deveria afetá-lo, provocar qualquer reação na sua natureza, uma reviravolta. Mas A... aceitou o seu novo destino sem qualquer embaraço, sem o mínimo de repugnância, não se revoltou moralmente contra um tal destino, não se assustou com nada, a não ser, talvez, com a necessidade de trabalhar e de se despedir dos cafés e das três ruas Mechánskie. Considerou até que o título de grilheta lhe desatava as mãos para cometer vilezas e porcarias ainda maiores. «Um grilheta é um grilheta; então, já que é grilheta, são-lhe permitidas todas as baixezas, não há que ter vergonha.» Era esta, literalmente, a opinião que tinha. Vejo esta criatura nojenta como um fenómeno. Vivi vários anos no meio de assassinos, de depravados e de facínoras empedernidos, mas atrevo-me a afirmar que nunca na vida encontrei uma queda moral, uma depravação e uma baixeza descarada como as que vi neste indivíduo. Tínhamos lá um parricida, de origem fidalga, de que já falei; contudo, por todos os indícios e factos, estou convencido de que este parricida era muito mais nobre e humano do que A... A meu ver, durante todo o tempo da minha vida na prisão, A... tornou-se, ou já era, uma espécie de bocado de carne com dentes e estômago e um apetite insaciável pelos mais rudes e animalescos prazeres carnais; para satisfazer o mínimo e mais fantástico desses prazeres, era capaz de, com todo o sangue-frio, matar, esfaquear, numa palavra, estava pronto a tudo, desde que fosse possível apagar os vestígios. Não exagero, conheci A... muitíssimo bem. É um exemplo daquilo a que pode chegar o lado carnal do homem quando não é refreado, interiormente, por qualquer norma ou regra. Que repugnância eu sentia ao ver o seu constante sorriso irónico! Era um monstro, um quasímodo moral. Acrescente-se que era manhoso e esperto, bem-apessoado, com alguma cultura, alguns talentos. Não, antes o incêndio, a epidemia, a fome do que uma pessoa destas na sociedade! Disse já que, na prisão, a baixeza chegou a um ponto tal que a espionagem e a delação floresciam e os reclusos não se indignavam minimamente com isso. Pelo contrário, eram muito amigáveis para com A..., incomparavelmente mais do que para connosco. Ora, os favores de que gozava por parte do nosso major bêbado davam-lhe importância e peso aos olhos dos outros reclusos. A propósito, convenceu o major de que sabia pintar retratos (aos reclusos convencera-os de que era tenente da guarda real), e o major deu ordens para que o mandassem a casa dele para pintar, é claro, o retrato do próprio major. Foi então que travou amizade com a ordenança Fedka, que tinha grande influência sobre o seu amo e, por conseguinte, sobre todos e tudo na prisão. A... espiava-nos por ordem do próprio major, mas este, quando estava bêbado, bofeteava-o e chamava-lhe espião e delator. Sucedia muitas vezes que, logo depois dos bofetões, o major se sentasse na cadeira e mandasse A... continuar o retrato. O nosso major, pelos vistos, acreditava realmente que A... era um pintor maravilhoso, quase um Brullov15, de quem ouvira vagamente falar, e mesmo assim achava-se no direito de o esbofetear: embora sejas pintor, és um pintor de grilhetas e, por mais Brullov que sejas, sou teu chefe, portanto faço contigo o que me apetecer. Por esta ordem de ideias, obrigava A... a tirar-lhe as botas e a fazer-lhe os despejos dos bacios do seu quarto de dormir, e mesmo assim, durante muito tempo, não desistiu da ideia de que A... era um grande pintor. O retrato demorava tempos infinitos, já levava quase um ano de pintura. Finalmente, o major adivinhou que estava a ser aldrabado e, ao capacitar-se plenamente de que o retrato de modo nenhum estava perto do fim, mas, pelo contrário, a cada dia que passava se tornava menos parecido consigo, enraiveceu-se, espancou o pintor e, por castigo, mandou-o para os trabalhos mais duros da prisão. A..., pelos vistos, lamentava o sucedido e era-lhe difícil despedir-se dos belos dias folgados, dos bocados de petiscos da mesa do major, do seu amigo Fedka e de todos os prazeres que ambos inventavam na cozinha do patrão. Pelo menos, com a expulsão de A..., o major deixou de perseguir o recluso M...ki que A... caluniava constantemente, e eis por que o fazia: M...ki, no momento da chegada de A... à prisão, sentia-se sozinho. Vivia numa grande angústia, não tinha nada em comum com os restantes presos, olhava-os com terror e repulsa, nada lhes notava que pudesse fazê-lo conformar-se com eles e não se aproximava de ninguém. Os reclusos pagavam-lhe com o mesmo ódio. De uma maneira geral, na prisão, a situação de pessoas como M...ki é horrível. M...ki desconhecia a causa por que A... fora parar aos trabalhos forçados. A..., pelo contrário, ao descobrir com quem estava a lidar, aldrabou-o, convencendo-o de imediato que fora deportado por uma coisa absolutamente contrária às denúncias, que fora condenado quase pela mesma coisa que o próprio M...ki. Este ficou contentíssimo por ter arranjado um camarada, um amigo. Andava atrás dele, consolava-o nos primeiros dias de prisão, supondo que A... devia estar a sofrer muito; deu-lhe o seu último dinheiro, dava-lhe de comer, partilhava com ele as coisas mais necessárias. A..., como paga, ganhou-lhe um ódio imediato, precisamente porque M...ki tinha um caráter nobre e olhava para todas as infâmias com verdadeiro terror, porque não se parecia em nada com ele; resolveu então denunciar ao major tudo o que M...ki, durante as suas conversas, lhe dissera da prisão e do major. O major começou a alimentar grande ódio por M...ki e começou a oprimi-lo quanto podia; se não fosse a influência do comandante, tê-lo-ia levado à desgraça. Entretanto, A... não só não ficou embaraçado quando, mais tarde, M...ki veio a descobrir a sua vileza como até gostava de se cruzar com ele e lhe sorrir com ironia. Pelos vistos, deliciava-se com a situação. O próprio M...ki por várias vezes chamou a minha atenção para esse facto. Essa criatura ignóbil acabou por fugir na companhia de um recluso e de um soldado de escolta, mas dessa fuga falarei mais tarde. No início, também a mim bajulava muito, pensando que eu não conhecia a história dele. Repito, esse indivíduo envenenou os meus primeiros dias de prisão, tornando a minha amargura ainda maior. Aterrorizava-me a infâmia, a baixeza terrível para onde fora atirado, aonde viera parar. Pensava que naquele lugar tudo era vil e ignóbil em igual medida. Enganava-me: julgava todos pelo exemplo de A...

Nesses três dias vagueava cheio de tristeza pela prisão, deitava-me no catre; encomendei a um recluso seguro, indicado por Akim Akímitch, camisas do tecido que me fora entregue, combinando, é claro, o preço do trabalho (tantos tostões por cada camisa); arranjei, seguindo o conselho insistente de Akim Akímitch, um colchão desdobrável (de feltro forrado a linho), muito fino, como um crepe, e também uma almofada enchida com lã, que, por falta de hábito, me pareceu terrivelmente dura. Akim Akímitch atarefava-se muito a arranjar-me todas estas coisas, participando nisso pessoalmente: costurou-me um cobertor com retalhos do velho pano regulamentar que cortou das calças e dos casacos que comprei aos outros reclusos. A roupa prisional já inutilizada era deixada na posse dos reclusos: essa farrapada era vendida de imediato dentro da prisão e, por mais gasta que estivesse a peça de roupa, havia sempre a esperança de a vender por um preço qualquer. De início, tudo isso me surpreendia muito. Em geral, na minha vida, era o meu primeiro encontro com o povo. Eu próprio me tornei um homem do povo, um grilheta como eles. Os seus hábitos, noções, opiniões, costumes como que se tornaram também os meus, pelo menos na forma, por força da lei, embora não os partilhasse na essência. Estava surpreendido e confuso, como se antes não tivesse a mínima ideia de nada disso, não soubesse de nada, embora, na verdade, soubesse e tivesse ouvido falar de tudo. Mas a realidade causa uma impressão bem diferente da que é causada pelo conhecimento e pelos rumores. Podia eu, por exemplo, alguma vez imaginar que aqueles velhos farrapos também pudessem ser considerados coisas? Pois bem, agora tinha um cobertor feito de retalhos desses farrapos! Era até difícil imaginar de que espécie era o pano destinado à roupa dos reclusos. Aparentemente, parecia de facto pano, grosso, como o dos capotes dos soldados; porém, com pouco uso, transformava-se numa espécie de rede e rasgava-se de maneira revoltante. A roupa prisional, que era fornecida para uso durante apenas um ano, na verdade não aguentava, apesar de o prazo ser curto. O recluso trabalha, carrega com pesos; a roupa fica rapidamente coçada. Quanto às samarras, eram fornecidas de três em três anos e, durante esse tempo, serviam de agasalho, de cobertor e de esteira. As samarras, contudo, eram resistentes, embora não fosse raro vê-las, ao fim do terceiro ano, com remendos de simples linho. Apesar de tudo, mesmo muito gastas, eram vendidas no final do seu prazo de validade a quarenta copeques de prata. Algumas, mais bem conservadas, eram vendidas a sessenta, e mesmo a setenta copeques de prata; ora, nos trabalhos forçados, isso era muito dinheiro.

No respeitante ao dinheiro — já falei disso —, este tinha na prisão uma força terrível, era o poderio. Pode afirmar-se com toda a certeza que um recluso que tivesse ao menos algum dinheiro sofria dez vezes menos do que aquele que não tinha, embora também este último dispusesse de todas as coisas regulamentares; se dispunha, para que precisaria então de dinheiro? — assim raciocinavam os nossos chefes. Repito: se os reclusos fossem privados de toda a possibilidade de terem o seu dinheiro, enlouqueceriam ou morreriam como moscas (apesar de terem todo o necessário), ou começariam a cometer crimes indizíveis — uns, por angústia; outros, para serem executados, eliminados o mais depressa possível, ou para, de algum modo, «mudarem o destino» (termo técnico). Agora, se o recluso, tendo adquirido quase com suor e sangue o seu copeque, ou tendo-se atrevido, para o arranjar, a recorrer a manhas extraordinárias que implicam muitas vezes o roubo e a vigarice, se depois de tudo isso ele gasta o seu dinheiro tão absurdamente, com uma insensatez tão infantil, isso não prova de maneira alguma que o recluso não dá grande valor ao dinheiro, mesmo que à primeira vista não pareça. O recluso tem uma avidez pelo dinheiro até aos espasmos, até à perturbação mental, e se o esbanja como lixo quando entra em pândega, fá-lo por aquilo que considera estar um degrau mais acima do que o dinheiro. O que é então, para o recluso, superior ao dinheiro? É a liberdade, ou, pelo menos, algum sonho de liberdade. Os reclusos são grandes sonhadores. Sobre isto direi alguma coisa mais tarde, mas, já que o mencionei: alguém acreditará que eu vi deportados por vinte anos que me diziam, calmamente, frases como esta: «Espera, cumpro o meu tempo, se Deus quiser, e então...»? É que a palavra «recluso» tem o sentido de homem sem liberdade; ora, quando o recluso está a gastar o seu dinheiro, fá-lo de sua livre vontade. Apesar de todas as marcas do ferro, das grilhetas, dos odiosos troncos da paliçada que lhe tapam da vista o mundo de Deus e o cercam como a um animal na jaula, o recluso pode arranjar vodka, ou seja, um prazer rigorosamente proibido; pode ter relações com mulheres; inclusivamente, pode às vezes (nem sempre, é claro) subornar os seus chefes imediatos — os vigilantes inválidos e, até, o sargento, que fecharão os olhos às violações da lei e da disciplina; pode ainda bazofiar, tendo como alvo os chefes: o recluso adora bazofiar, ou seja, exibir-se perante os companheiros, e convencer-se também a si mesmo, nem que seja por um tempinho, que tem muito mais liberdade e poder do que parece. Numa palavra, pode pintar a manta, desvairar-se, insultar alguém até ao último limite e provar-lhe que pode tudo isso, que está tudo «nas suas mãos», convencer-se a si mesmo de coisas que, na realidade, são impensáveis para um pobretão. É por isso que nos reclusos, mesmo sóbrios, se nota uma tendência geral para a bazófia, a fanfarronice, para o engrandecimento, cómico e ingénuo, da sua personalidade, mesmo que seja tudo ilusório. Finalmente, em toda a pândega há um certo risco — o que significa que tudo isso tem uma sombra de vida, um fantasma longínquo de liberdade. E o que não se dará pela liberdade? Que milionário, se lhe apertassem o laço na garganta, não daria todos os seus milhões por uma golfada de ar?

Às vezes os chefes surpreendem-se: um recluso viveu vários anos sossegado, tinha uma conduta exemplar, por bom comportamento até o fizeram capataz, e de repente, sem mais nem menos, como que possuído pelo Diabo, desvairou-se, meteu-se na pândega, armou um escândalo, ou, até, ousou cometer um crime (faltou ao respeito aos chefes superiores, matou ou violou alguém, etc.). Olham para ele e não percebem. No entanto, se calhar, toda a causa da explosão do homem, desse de quem menos a esperavam, é uma manifestação triste, espasmódica da personalidade, uma saudade instintiva de si próprio, o desejo de manifestar a sua individualidade humilhada, desejo que surge de repente e atinge a raiva, a fúria, a perturbação mental, vai até ao ataque de nervos, às convulsões. Talvez aconteça o mesmo a uma pessoa enterrada viva no caixão e que acorda dentro dele, bate na tampa e esforça-se por rebentar com ela, embora, evidentemente, a razão pudesse convencê-la de que todos os seus esforços serão em vão. Mas o problema é precisamente este: não interessa a razão, interessam as convulsões. Tenhamos também em consideração que, num recluso, quase todas as manifestações arbitrárias da personalidade são consideradas crime; daí, naturalmente que tanto lhe faz se a manifestação é grande ou pequena. Se é estroinar — pois haja estroina; arriscar — então arrisque-se tudo, nem que seja um assassínio. Basta dar o primeiro passo: fica logo embriagado, impossível de reter! Por isso seria melhor, em todos os sentidos, não levar as coisas até este ponto. Haveria mais tranquilidade para todos.

Pois... mas como se pode fazê-lo?

13 Verstá — medida russa de comprimento, que ultrapassa o quilómetro em cerca de sessenta metros. (NT )

14 Na velha Petersburgo, havia três ruas com este nome, pejadas de tabernas, cabarés, casas de passe. (NT )

15 Karl Brullov (1799-1852), famoso pintor russo. (NT )


6

O primeiro mês

Quando cheguei à prisão, tinha algum dinheiro; comigo trazia pouco, por receio de ser roubado, mas, para o que desse e viesse, guardava alguns rublos dentro da encadernação do Evangelho, livro permitido na prisão. O livro, com o dinheiro dentro, foi-me oferecido em Tobolsk por pessoas que sofriam também a deportação, com penas que se contavam já em décadas, e que se tinham habituado a ver em cada desgraçado um irmão. Há na Sibéria pessoas, e nunca acabarão, que parecem ter como vocação cuidar fraternalmente dos «desgraçados», ser com eles piedosos e misericordiosos, como se dos próprios filhos se tratasse, e tudo de uma maneira absolutamente desinteressada, como causa sagrada. Não posso deixar de recordar um encontro que cá tive. Na cidade em que ficava a nossa prisão, havia uma senhora, Nastássia Ivánovna, viúva. É evidente que nenhum de nós, enquanto esteve preso, a pode ter conhecido pessoalmente. Parece que traçou como destino da sua vida ajudar os deportados, mas ajudava sobretudo a nós, os presidiários. Talvez tivesse acontecido na família dela uma desgraça semelhante, ou algum qualquer outro ser querido do seu coração tenha sofrido pelo mesmo crime, mas o certo é que a senhora, pelos vistos, considerava uma grande felicidade fazer por nós tudo o que podia. É claro que não podia fazer muito: era bastante pobre. Fosse como fosse, nós, na prisão, sentíamos que lá fora tínhamos uma amiga fiel. A propósito: informava-nos muitas vezes de notícias preciosas para nós. Quando saí da prisão, antes de partir para outra cidade, tive tempo de a visitar e de a conhecer pessoalmente. Vivia nos arrabaldes, em casa de um parente próximo. Não era velha nem nova, nem bonita nem feia; era mesmo difícil perceber-se se era inteligente e culta. Nela apenas transparecia a cada passo uma infinita bondade, um insuperável desejo de agradar, de aliviar o sofrimento alheio, de nos fazer, sem falta, alguma coisa que nos desse prazer. Tudo isso se lia nos seus olhos serenos e bondosos. Passei em casa dela, juntamente com um companheiro meu da prisão, todo um fim de tarde. Olhava-nos nos olhos, ria quando nós ríamos, apressava-se a concordar com tudo o que disséssemos; atarefava-se a pôr na mesa tudo com que pudesse regalar-nos. Serviu-nos chá, petiscos, alguns doces e, se tivesse milhares de rublos, creio, poderia fazer-nos ainda maiores obséquios e ajudaria a aliviar a vida dos nossos companheiros que tinham ficado na prisão. À despedida, como lembrança, ofereceu-nos cigarreiras. Eram de cartão (não sei como as terá colado), revestidas na tampa com papel colorido, o mesmo com que se fazem as capas dos pequenos manuais de aritmética para as escolas primárias (talvez ela tivesse utilizado, precisamente, alguns deles). Ambas as cigarreiras tinham, como enfeite, um debrum de papel dourado que talvez a senhora tenha comprado nalguma loja para o efeito. «Como os senhores fumam, talvez lhes sejam úteis» — disse, como que a desculpar-se pela prenda... Há quem diga (ouvi-o e li-o) que o mais sublime amor pelo próximo é, ao mesmo tempo, o maior dos egoísmos. Neste caso, porém, não vejo onde estava o egoísmo.

Embora, ao entrar na prisão, não tivesse muito dinheiro, não conseguia zangar-me a sério quando alguns reclusos, nas primeiras horas da minha vida prisional, depois de já me terem enganado uma vez, vinham pedir-me dinheiro emprestado pela segunda ou, até, pela terceira, quarta e quinta vezes. Confesso, porém: toda essa gente me desgostava muito, com as suas manhas ingénuas, vendo em mim um simplório, um parvinho, rindo-se de mim, precisamente, por eu lhes dar dinheiro pela quinta vez. Estavam sem dúvida convencidos de que eu me deixava levar pelas manhas deles; se, pelo contrário, eu lhes recusasse os empréstimos e os enxotasse, teriam incomparavelmente maior respeito por mim. Apesar de todo o meu desgosto, não era capaz de lhes recusar o dinheiro. O meu desgosto, nesses primeiros dias, acentuava-se porque eu me preocupava seriamente com o problema de como iria viver na prisão, ou melhor, em que pé iria estar com eles. Sentia e compreendia que todo aquele meio humano era para mim absolutamente novo, que estava de todo às escuras e que seria impossível andar assim às escuras tantos anos. Portanto, precisava de preparar-me. Decidi, como é evidente, que deveria agir com frontalidade, como me mandavam a consciência e o sentimento. Aliás, sabia também que isso não passava de um aforismo, que a prática que me iria surgir pela frente seria das mais inesperadas.

Por isso, apesar de todos os pequenos cuidados preparatórios ligados com a minha instalação na caserna, que já mencionei e em que me iniciou, principalmente, Akim Akímitch, e apesar de esses cuidados me divertirem um pouco, atormentava-me cada vez mais uma angústia terrível e corrosiva. «Casa morta!», dizia para mim mesmo quando, dos degraus de entrada da nossa caserna, ao crepúsculo, observava os presos que já tinham voltado do trabalho e vagueavam preguiçosamente pelo terreiro, das casernas para as cozinhas, das cozinhas para as casernas. Examinando-os, tentava perceber pelos seus rostos e movimentos que gente seria aquela, que feitio teria. Deambulavam diante de mim, carrancudos ou numa alegria exagerada (estes dois tipos são os mais divulgados e constituem quase uma característica da prisão correcional), praguejavam ou, simplesmente, conversavam, ou então passeavam solitários, como que mergulhados em pensamentos, vagarosos, alguns com um ar cansado e apático, outros (mesmo aqui!) com um ar de superioridade altiva, o chapéu à banda, com as samarras lançadas sobre os ombros, com o olhar atrevido e manhoso, casquinando risinhos provocadores. «Este é agora o meu ambiente, o meu mundo — pensava eu —, o mundo com que tenho de conviver, quer queira, quer não...» Tentava saber coisas sobre ele por Akim Akímitch, com quem gostava muito de tomar chá, para não estar sozinho. Diga-se de passagem que o chá, nesses primeiros tempos, era o meu único alimento. Akim Akímitch não se recusava a tomar chá comigo e ele próprio acendia o nosso samovar de latão, pequeno, ridículo, de fabrico caseiro, que me tinha emprestado o M...ki. Akim Akímitch, normalmente, bebia um copo (tinha copos de vidro), sorvendo-o em silêncio, cerimoniosamente; agradecia e, logo a seguir, punha-se a costurar o meu cobertor. Akim Akímitch, porém, era incapaz de me elucidar sobre o que eu queria saber, nem sequer compreendia por que me interessavam tanto os carateres dos outros reclusos, principalmente dos mais próximos de nós, e ouvia-me com um sorrisinho manhoso, que ainda conservo bem nítido na memória. «Não, pelos vistos é preciso experimentar tudo pessoalmente, em vez de me pôr a fazer perguntas», pensei.

No quarto dia, tal como da vez em que fui mudar de grilhetas, os reclusos, de manhã cedo, formavam em duas fileiras, na parada em frente do corpo da guarda, junto ao portão. Defronte deles alinhavam-se soldados com as espingardas carregadas e as baionetas caladas, por trás deles também. Ao soldado assiste o direito de disparar contra o recluso se a este passar pela cabeça fugir dele; ao mesmo tempo, é assacada ao soldado a responsabilidade pelo seu disparo, se não o fizer em caso de extrema necessidade; a mesma coisa diz respeito a um eventual motim aberto dos grilhetas. Mas será que alguém se atreve a fugir abertamente? Chegou o oficial de engenharia e o condutor dos trabalhos, e também os sargentos e os soldados de engenharia, capatazes das obras. Fizeram a chamada; uma parte dos reclusos, que trabalhavam nas alfaiatarias, dispersaram primeiro — não tinham nada a ver com os chefes da engenharia; trabalhavam para o forte, costurando para ele. A seguir, partiu um grupo para as oficinas, depois outro para os trabalhos braçais. Entre os restantes vinte reclusos, fiquei eu. Por trás do forte, no rio coberto de gelo, havia duas barcaças públicas que era preciso desmontar por já estarem inutilizadas, para se aproveitar ao menos a madeira velha. De resto, ao que parece, todo aquele velho material não tinha préstimo quase nenhum. A lenha vendia-se na cidade a um preço irrisório, havia muitíssima madeira por todo o lado. Mandavam os reclusos desmanchar os barcos para não ficarem de braços cruzados, o que os próprios compreendiam muito bem. Trabalhos destes faziam-nos eles com muita moleza, apaticamente; outra coisa acontecia quando o trabalho era útil, valioso, sobretudo se fosse possível conseguir fazê-lo à tarefa. Aí, os trabalhadores como que se animavam e, embora, no fundo, isso não lhes trouxesse quaisquer vantagens, esforçavam-se sobremaneira — fui testemunha disso — por concluírem o trabalho o mais depressa possível e da maneira mais perfeita; estava em jogo, sobretudo, o amor-próprio deles. Ora, no trabalho desse dia, feito mais pro forma do que por necessidade, era difícil conseguir que fosse fixada uma «norma», pelo que era obrigatório trabalhar até ao toque do tambor, às onze da manhã, chamando os trabalhadores para casa. O dia era tépido e nebuloso; a neve quase se derretia. Todo o nosso grupo foi para a margem do rio, com as grilhetas a tilintarem ligeiramente; estas, embora escondidas debaixo da roupa, emitiam a cada passada o seu fino e agudo som metálico. Dois ou três homens separaram-se dos outros e foram buscar as ferramentas necessárias ao armazém militar. Eu, caminhando com os outros, até me animei um pouco: apetecia-me ver e saber o mais depressa possível que género de trabalho seria aquele. O que são trabalhos forçados? Que trabalho vou eu fazer pela primeira vez na vida?

Lembro-me de tudo até ao mais ínfimo pormenor. Pelo caminho cruzou-se connosco um popular de barbicha que parou e meteu a mão no bolso. Do nosso grupo separou-se imediatamente um recluso, tirou o chapéu, recebeu a esmola — cinco copeques — e voltou prontamente para o grupo. O popular benzeu-se e seguiu o seu caminho. Os cinco copeques foram gastos essa mesma manhã em kalatches, partilhados igualmente por todos.

Entre o nosso grupo de reclusos, como de costume, uns iam sombrios e taciturnos, outros indiferentes e apáticos, outros ainda tagarelavam preguiçosamente entre si. Um preso mostrava-se supinamente contente com qualquer coisa, ia alegre, cantava, quase dançava pelo caminho, tilintando das grilhetas a cada saltinho. Era aquele mesmo baixote atarracado que, na minha primeira manhã de prisão, se zangara com outro ao pé do balde da água, quando se lavavam, porque essoutro se atrevera a afirmar que era uma ave kagan. Esse rapaz animado chamava-se Skurátov. Acabou por se lançar numa cantiga rija, de que o refrão era assim:

Casaram-me sem mim presente,

Porque eu estava no moinho.

Só faltava uma balalaica.

O seu jubiloso estado de ânimo provocou, evidentemente, a indignação imediata de alguns dos membros do grupo, sendo tomado quase como uma ofensa.

— Uiva pr’aí, uiva! — disse em tom de censura um preso que, de resto, não tinha nada a ver com isso.

— A cantiga do lobo era sempre a mesma, e agora o parvalhão de Tula aprendeu-a! — observou outro, dos sombrios, com sotaque ucraniano.

— Está bem, digamos que sou de Tula — replicou de imediato Skurátov —, mas, lá na vossa Poltava, só sabeis é engasgar-vos com as galuchkas16.

— Olha quem fala! E tu, o que comias? Sopinha de repolho, e em vez de colher uma alpargata.

— Agora parece que se alimenta de balas de canhão que o Diabo lhe dá17 — acrescentou um terceiro.

— Eu, meus irmãos, até sou um homem mimado — respondeu Skurátov com um leve suspiro, como que a arrepender-se da sua mimalhice e dirigindo-se a todos em geral e a ninguém em particular —, desde a mais tenra idade que fui educado à base de passas de ameixa e pãezinhos franciús, e os meus manos ainda hoje têm uma venda em Moscovo: vendem vento18. São uns comerciantes riquíssimos.

— E tu, que comércio tinhas?

— Ocupava-me de várias qualidades. Foi então, meus irmãos, que recebi os meus primeiros duzentos...

— Rublos? — perguntou um curioso, chegando a estremecer ao ouvir pronunciar uma quantia tão grande.

— Não, meu querido, duzentos paus, bordoadas, e não rublos. Luká, estás a ouvir, Luká?

— Para alguns sou Luká, mas, para ti, sou Luká Kuzmitch — replicou, contrariado, um pequenote magrinho de nariz afilado.

— Pronto, está bem, Luká Kuzmitch, c’os diabos.

— Para alguns sou Luká Kuzmitch, mas para ti sou tiozinho.

— Diabos te carreguem e mais o tiozinho, já nem se pode falar contigo! E eu que te queria dar uma palavrinha das boas. Pois então, meus irmãos, foi assim que calhou eu não ter vivido muito tempo em Moscovo; para finalizar, deram-me lá mais quinze chicotadas e mandaram-me embora. Então...

— E mandaram-te embora porquê? — interrompeu-o um recluso que seguia a história com atenção.

— Para não ir à quarentena, nem beber rolhas, nem falar pelos cotovelos19... Portanto, irmãos, não tive tempo de enriquecer lá muito bem em Moscovo. Mas eu queria, queria muito, muito, muito ser rico. Apetecia-me tanto ser rico que nem sei como é que o hei de dizer.

Muitos riram-se. Skurátov, pelos vistos, era uma espécie desses brincalhões, ou melhor, de bobos voluntários que pareciam encarregar-se de divertir os seus companheiros carrancudos e, em compensação, não recebiam nada por isso além de insultos, evidentemente. Pertencia a um tipo especial e notável de que talvez ainda venha a falar.

— Ainda hoje podes ser caçado em vez da marta-zibelina — observou Luká Kuzmitch. — Vejam só a roupa que ele veste, de cem rublos, não menos.

Skurátov envergava uma samarra decrépita, coçadíssima, remendadíssima por todo o lado. Passou um olhar bastante indiferente pelo outro, não destituído porém de atenção.

— Em compensação, meus irmãos, a cabeça vale muito, a cabecinha! — respondeu. — Quando me despedia de Moscovo, a minha consolação era essa mesma: que a cabecinha partiria comigo. Adeus Moscovo, obrigado pelo banho, pelo ar livre, fui lindamente chicoteado! E não olhes, meu querido, para a samarra...

— Então olho para quê? Para a tua cabeça?

— A cabeça também não é dele, foi-lhe dada como esmola — intrometeu-se de novo o Luká. — Deram-lha em Tiumen, por amor de Deus, quando passava por lá com a leva.

— Então, Skurátov, tiveste algum ofício ou quê?

— E que ofício! Era guia, guiava pedintes cegos, roubava-lhes pão seco — observou um dos carrancudos. — Esse é todo o seu ofício.

— Na verdade, tentei uma vez fazer botas — respondeu Skurátov, sem dar atenção à alfinetada. — Acabei por fazer só um par.

— E depois? Compraram-tas?

— Pois, calhou-me um que, de certeza, não tinha temor a Deus nem respeitava pai nem mãe e, por isso, Deus castigou-o: comprou-me as botas.

Todos em volta se escaqueiraram a rir.

— Depois, também trabalhei cá dentro — continuou Skurátov com todo o sangue-frio. — Para o tenente Stepan Fiódoritch Pomórtsev, punha-lhe gáspeas no calçado.

— E então, ficou satisfeito com o trabalho?

— Não, amigos, não ficou. Descompôs-me para o prazo de mil anos futuros e, ainda por cima, pregou-me uma joelhada por trás. Ficou zangado demais. Eh, estragou-me a vida, a minha vidinha de galés!

Entra um pouquinho mais tarde

O marido da Akulina...

atacou de repente, pondo-se a sapatear e a saltitar.

— Irra, que homem de fraca figura! — resmungou o ucraniano que ia ao meu lado, olhando para ele de lado e com um desprezo raivoso.

— Homem inútil! — respondeu outro, definitiva, sentenciosamente.

Quanto a mim, como tive oportunidade de ver logo nesses primeiros dias, não estava a perceber, absolutamente, por que estavam irritados com Skurátov e, no geral, por que pareciam, de algum modo, desprezar toda a gente que fosse alegre. A raiva do ucraniano e dos outros seria justificada se tivesse motivos pessoais. Mas não era isso, era uma raiva por causa da ausência de comedimento em Skurátov, por não arvorar o fingido ar de dignidade com que toda a prisão estava contaminada até ao pedantismo, em suma, era porque Skurátov, na expressão deles, era um «homem inútil». Aliás, não se zangavam com todos os alegres, nem os maltratavam como ao Skurátov e seus iguais. Dependia do que cada um permitisse de si: um homem bondoso e simplório era logo sujeito à humilhação. Fiquei até espantado com tal facto. Mas havia também, entre os divertidos, quem soubesse e gostasse de mostrar os dentes e não condescendesse com ninguém — esses davam-se ao respeito. Entre esse grupinho havia um dos tais que mostrava os dentes mas que, no fundo, era um homem alegre e simpaticíssimo — só mais tarde vim a conhecer essa faceta dele —, um rapaz grande e bem-apessoado, com uma grande verruga na bochecha e uma expressão de rosto muitíssimo cómica, um rapaz, de resto, bastante esperto. Chamavam-lhe de batedor, porque servia outrora como batedor; estava, agora, na secção especial. Ainda falarei dele.

Aliás, nem todos os «sérios» eram tão radicais como o ucraniano que se indignava com a alegria. Na prisão havia várias pessoas com pretensões à primazia, querendo passar por omniscientes, espertos, de caráter forte e inteligência vasta. Muitos deles eram de facto inteligentes e tinham caráter, conseguindo realmente o que pretendiam, ou seja, a primazia e uma influência moral considerável sobre os companheiros. Esses espertalhões, muitas vezes, eram grandes inimigos uns dos outros — cada um tinha montões de adversários. Olhavam para os outros reclusos com um ar de dignidade e, mesmo, de condescendência, não se metiam em discussões inúteis, eram bem-vistos pelos chefes, nos trabalhos forçados tinham quase o papel de contramestres, e nenhum deles implicaria com ninguém por motivo, por exemplo, de cantigas — não condescendiam com essas ninharias. Comigo, as pessoas deste género eram perfeitamente educadas, e isso durante os meus anos todos de prisão, mas pouco loquazes; pelos vistos, para arvorarem a tal dignidade. Também falarei deles com mais pormenor.

Chegámos à margem do rio. Em baixo, estava uma barcaça gelada no rio, a tal que era preciso desmanchar. Na outra banda do rio estendia-se a estepe azulada. Uma paisagem sombria e deserta. Esperava que todos se atirassem ao trabalho, mas ninguém sequer pensava nisso. Alguns acomodaram-se sobre as madeiras espalhadas pela margem; quase todos tiraram das botas as bolsas com o tabaco local, vendido em folhas no mercado a três copeques a libra, e os curtos cachimbos de salgueiro com os tubinhos de pau, de fabrico caseiro. Começaram os cachimbos a fumegar, e os soldados da escolta, ar entediado, puseram-se a guardar-nos.

— Quem se teria lembrado de mandar desmanchar esta barcaça? — disse um recluso para ninguém, como que para os seus botões. — Estão com falta de aparas ou quê?

— Quem se lembrou disso, não tem medo de nós — observou outro.

— Para onde é que se arrastarão aqueles mujiques? — perguntou o primeiro, depois de algum silêncio, sem, evidentemente, se preocupar com a possível resposta e apontando para longe, onde um magote de mujiques caminhava em fila indiana pela neve virgem. Todos viraram preguiçosamente as cabeças para esse lado e, por não terem mais nada que fazer, puseram-se a metê-los a ridículo. Um dos mujiques, o último, tinha uma maneira cómica de andar, abrindo os braços e inclinando de lado a cabeça coberta por um chapéu alto e cónico. Toda a sua figura se destacava nítida na neve branca.

— Caramba, mano Petróvitch, como vossemecê se ataviou! — observou um recluso, imitando a pronúncia dos mujiques. Era curioso que os presos olhassem para os mujiques um pouco de alto, embora metade deles fosse também de origem camponesa.

— O de trás, rapazes, anda como quem semeia nabos.

— É um pensador grave, tem muito dinheiro — observou um terceiro.

Riram-se, mas também com preguiça, como que a contragosto. Entretanto, acercou-se uma vendedeira de kalatches, mulherzinha despachada e ágil.

Os cinco copeques da esmola foram logo aplicados em kalatches e partilhados entre todos.

O jovem recluso que comerciava kalatches na prisão levou duas dezenas deles e pôs-se a regatear a sua comissão, querendo ficar com três e não com dois para ele, como era de norma. A vendedeira não cedia.

— E não me dás aquilo?

— Aquilo o quê?

— O que os ratos não comem?

— Sua peste! — guinchou a mulherzinha e riu-se.

Acabou por aparecer o capataz, um sargento de varapau na mão.

— Eh, por que estais sentados? Toca a trabalhar!

— Ivan Matvéitch, faça-nos uma norma — disse um dos «maiores», levantando-se devagar.

— Por que não pedistes na formatura? Desmanchar a barcaça, é essa a norma.

Sem pressas, levantaram-se finalmente e desceram até ao rio arrastando os pés. Logo apareceram no grupo os «organizadores», pelo menos em palavras. Verificou-se que não se podia cortar a barcaça ao deus-dará, que era preciso, na medida do possível, aproveitar as madeiras, sobretudo as traves pregadas a todo o comprimento do fundo da barcaça com pregos de madeira — um trabalho longo e enfadonho.

— A primeira coisa a fazer é desatravancar este madeiro. Vamos a isto, rapazes! — disse um, que não era «organizador» nem «maior», mas um simples operário, rapaz taciturno e quedo que se tinha mantido calado até então; dobrou-se e abarcou o tronco grosso com os braços, à espera de ajuda. Ninguém o ajudou.

— Levantá-lo? Querias! Não podes com ele, e se chamasses o teu avô urso também não podias! — resmungou alguém entredentes.

— Então não sei, amigos, como é que havemos de começar! Não sei, então... — murmurou o intrometido perplexo, largando o tronco e endireitando-se.

— Por mais que trabalhes, o trabalho não acaba... então, por que te metes?

— Não sabe contar a ração para três galinhas, e agora mete-se à cabeça... Gralha maldita!

— Não foi por mal, irmãos... — justificava-se o homem, embaraçado —, foi só porque...

— Então, ponho-vos cobertas? Ou tenho de vos salgar para o inverno? — voltou a gritar o capataz, olhando com perplexidade para a chusma de vinte cabeças que não sabia como começar o trabalho. — Toca a trabalhar! Depressa!

— Mais depressa que o possível, Ivan Matvéitch, é impossível.

— E tu fazes alguma coisa? Eh, Savéliev! Eh, Blá-Blá-Blá Petróvitch! Estou a falar contigo: por que estás pasmado a querer vender os olhos? Trabalhar!

— Mas o que posso eu fazer sozinho?

— Faça-nos uma norma, Ivan Matvéitch!

— Já disse, não há cá normas nenhumas. Desmontai a barcaça e podeis ir para casa. Rápido!

Finalmente, começaram, mas com moleza, contravontade, sem jeito. Tornava-se mesmo aflitivo ver aquela chusma de grandalhões que, aparentemente, não compreendiam de que maneira abordar o trabalho. Mal começaram a tirar a primeira trave, a mais pequena, verificou-se que se partia toda, que era «de qualidade quebradiça», como foi dito à laia de justificação ao capataz; portanto, não se podia trabalhar assim, era melhor arranjar outra maneira. Começou uma longa discussão sobre como se fazer de outra maneira e o quê. Obviamente, a pouco e pouco, foram trovejando as pragas, chegou-se quase a vias de facto... O capataz levantou outra vez a voz, brandiu o varapau, mas a trave voltou a partir-se. Chegava-se agora à conclusão de que os machados eram poucos e de que era preciso ir buscar mais algumas ferramentas. Mandaram imediatamente dois rapazes, sob escolta, buscar a ferramenta ao forte, e os outros, enquanto esperavam, sentaram-se calmamente na barcaça, tiraram os cachimbos, puseram-se a fumar.

O capataz, por fim, desistiu.

— Pois é, convosco o trabalho pode dormir descansado! Ai, rapazes, rapazes! — resmungou raivoso, abanou a mão e foi para o forte com o seu varapauzinho na mão.

Passada uma hora, chegou o condutor de trabalhos. Depois de ter ouvido calmamente os reclusos, anunciou que fixava uma norma: tirar mais quatro traves, mas de modo a que não se partissem, e também desmontar uma parte bastante grande da barcaça, podendo depois disso os trabalhadores voltar a casa. A tarefa era grande, mas, meu Deus, como todos se atiraram ao trabalho! Desapareceu a preguiça, desapareceu a obtusidade! Uns começaram a manejar os martelos, a arrancar os pregos de madeira. Outros metiam varas compridas sob as traves e alavancavam-nas a vinte mãos, soltavam ágil e habilmente as traves que, para meu espanto, saíam inteiras, nem um bocadinho estragadas. O trabalho fervia. Toda a gente se mostrava repentinamente esperta. Nem palavras a mais, nem pragas, cada qual sabia o que tinha a fazer ou a dizer, de que lado se devia pôr, que conselho dar. Meia hora antes do tambor já a norma estava cumprida e os trabalhadores foram para casa, cansados mas contentes, embora tivessem ganhado apenas meia hora. Quanto a mim, reparei numa coisa: onde quer que me metesse para ajudar, estava sempre no lugar errado, por todo o lado estorvava, era escorraçado quase com insultos.

Qualquer maltrapilho, ele próprio péssimo trabalhador e que não se atrevia a abrir a boca diante de reclusos mais capazes e espertos do que ele, se achava no direito de me gritar e de me enxotar se eu me pusesse ao lado dele, sob o pretexto de que o estava a estorvar. Por fim, um dos espertos disse-me frontal e rudemente: «Onde é que se quer meter? Fora daqui! Não se meta onde não é chamado!»

— Foram buscar o pássaro à gaiola! — secundou outro.

— É melhor pegares numa caneca — disse-me um terceiro — e ires pedir esmola para as obras novas, que aqui não és bem-vindo.

Eu era obrigado a ficar parado, o que é uma vergonha quando os outros trabalham. Mas, quando assim foi e eu me afastei para uma ponta da barcaça, de imediato me gritaram:

— Irra, grandes trabalhadores nos mandaram! O que se pode fazer com eles? Nada!

Era evidente que tudo isso era propositado, que todos se divertiam com isso. Havia que escarnecer do ex-fidalgote, e eis que todos estavam contentes por terem achado a oportunidade.

Agora é claro para mim por que razão, como disse antes, a primeira questão que se me colocou ao entrar na prisão era a de saber como devia comportar-me, em que posição ia ficar perante essas pessoas. Pressentia que viria a ter com eles, ainda, muitas colisões do mesmo género. Porém, e apesar de todas as possíveis colisões, decidi não mudar o plano que, em parte, já na altura tinha preparado; sabia que era o mais correto. Ou seja: resolvi que devia portar-me do modo mais simples e independente possível, sem manifestar grande intenção de me aproximar deles mas, também, sem os rejeitar se eles quisessem uma aproximação. Não mostrar qualquer medo das suas ameaças e do seu ódio fingindo, na medida do possível, que nem os notava. Nunca me aproximar deles em determinados aspetos e não lhes fazer a vontade no respeitante a alguns hábitos e costumes deles; por outras palavras, não procurar, por minha iniciativa, a amizade deles. Adivinhei à primeira que eles me iam desprezar por isso. No entanto, de acordo com a mentalidade deles (mais tarde viria a ter disso a confirmação), teria de observar e respeitar aos seus olhos a minha origem fidalga, isto é, devia mostrar-me mimado, requebrar-me em cerimónias, desdenhá-los, sentir-me repugnado a cada passo, mandriar. Era essa a noção que eles tinham da fidalguia. Iriam, evidentemente, censurar-me isso em voz alta, mas, no fundo, respeitar-me-iam. Este papel não me agradava: eu nunca fui um fidalgo que correspondesse às noções que eles tinham da fidalguia; em contrapartida, dei a mim próprio a palavra de honra de nunca diminuir, com cedências que lhes fizesse, a minha instrução e a minha maneira de pensar. Se, para lhes agradar e conquistar a simpatia, começasse a bajulá-los, a concordar com eles, a entrar em familiaridades, a adotar as «qualidades» deles, suporiam de imediato que o fazia por cobardia e medo, e tratar-me-iam com desprezo. A... não era exemplo — esse ia a casa do major e eram os próprios presos que tinham medo dele. Por outro lado, não me agradava ter de fechar-me diante deles numa pose de boa educação fria e inabordável, como faziam os polacos. Via muito bem que me desprezavam pelo meu desejo de trabalhar como eles e de não me mostrar mimado nem cerimonioso; e, embora tivesse a certeza de que, mais tarde, seriam obrigados a mudarem a sua opinião a meu respeito, a ideia de que, naquele momento, essa gente tivesse o direito de me desprezar por eu, supostamente, ter procurado a sua simpatia no trabalho, essa ideia entristecia-me muito.

Quando, terminados os trabalhos da tarde, cheguei à prisão, já de noite, moído, esfalfado, de novo me dominou uma angústia terrível. «Tantos milhares de dias como este tenho ainda pela frente!», pensava. «Iguais a este, sempre os mesmos!» No crepúsculo, sozinho, vagueava em silêncio pelas traseiras das casernas, ao longo da paliçada, quando, de repente, vi o nosso Bolinhas que corria ao meu encontro. O Bolinhas era o nosso cão prisional, como existem cães de bateria, de companhia ou de esquadrão. Vivia no presídio desde tempos imemoriais, não era de ninguém, ele próprio nos considerava a todos seus donos, alimentava-se com os restos da cozinha. Era um cão bastante grande, preto às manchas brancas, nada decrépito ainda, de olhos inteligentes, rabo felpudo. Nunca ninguém lhe prestava atenção, lhe fazia uma carícia. Logo no meu primeiro dia, afaguei-lhe a cabeça e dei-lhe pão à mão. Enquanto o acariciava, o Bolinhas estava muito quieto, a olhar para mim com ternura, só o rabo se lhe agitava de prazer. Como estivesse muitas horas sem me ver — a mim, o primeiro em vários anos a acariciá-lo —, corria por todo o lado à minha procura e, quando me encontrou nas traseiras das casernas, precipitou-se para mim, a ganir. Nem sei o que me deu: pus-me a beijá-lo, a abraçar-lhe a cabeça; o Bolinhas pôs-me as patas nos ombros e lambeu-me a cara. «É o amigo que o destino me manda», pensei. Depois, sempre que nesses primeiros tempos difíceis e sombrios voltava do trabalho, antes de passar por outro sítio qualquer, corria para as traseiras, com o Bolinhas a ganir e a saltar de alegria, abraçava-lhe a cabeça, beijava-lha e tornava a beijar-lha, e um sentimento, ao mesmo tempo doce e amargo, apertava-me o coração. Lembro-me de que até me dava um certo prazer pensar, como que a exibir para mim próprio o meu sofrimento, que aquele era o único ser que em todo o mundo me amava, que a mim se afeiçoara, que era meu amigo, o meu único amigo — Bolinhas, o meu cão fiel.

16 Prato ucraniano: bocados de massa cozidos em água. (NT )

17 Expressão irónica relativa a pessoas que «vendem saúde». (NT )

18 «Vender vento»: ser pedinte e vagabundo. (NT )

19 «Quarentena» era uma casa para presos, isolados por alguma razão. «Beber rolhas» significa beber diretamente da pipa, no sentido literal; acresce que a palavra «rolha» utilizada é a proveniente do alemão Spund, rolha para pipa com o vinho ainda não acabado de fermentar. (NT )


7

Novos conhecidos. Petrov

O tempo corria e, a pouco e pouco, ia-me adaptando. A cada dia que passava, cada vez menos me embaraçavam os novos fenómenos da minha vida. Já os meus olhos se acostumavam aos acontecimentos, ao ambiente, às pessoas. Resignar-me com esta vida, isso não, era impossível, mas já era tempo de reconhecê-la como um facto consumado. Ocultei no mais fundo da minha alma todas as dúvidas que ainda tinha. Já não vagueava pela prisão como uma alma penada e não mostrava a minha angústia. Já os olhares curiosos não se cravavam em mim com tanta frequência nem me seguiam com tanto descaramento intencional. Pelos vistos, os outros reclusos também já se tinham habituado à minha presença, e sentia-me contente com isso. Já andava pela prisão como por casa, tinha o meu lugar próprio nos catres e já me acostumara, julgo eu, às coisas a que dantes pensava que não me acostumaria nunca. Todas as semanas ia rapar metade da cabeça. Era aos sábados que nos chamavam à casa da guarda para isso, nas horas de lazer, um a um (quem não fosse, tinha de tratar disso pelos seus próprios meios); ali, os barbeiros dos batalhões ensaboavam-nos a cabeça de espuma gelada e rapavam-no-la implacavelmente com as lâminas rombas das suas navalhas de barba, de tal maneira que ainda hoje se me arrepia a pele só de recordar essa tortura. De resto, arranjei muito depressa uma saída: Akim Akímitch indicou-me um recluso, da categoria militar, que rapava cabeças a um copeque a unidade, fazendo disso o seu negócio. Muitos recorriam a ele para evitarem os serviços dos barbeiros oficiais, embora a população prisional nada tivesse de melindrosa. Os reclusos chamavam ao nosso companheiro-barbeiro major — não sei porquê, já que nem se pode dizer que ele tivesse semelhanças com um major. Agora, ao escrever isto, imagino com nitidez esse «major», rapaz alto, seco e taciturno, bastante aparvalhado, sempre assoberbado pelo trabalho, sempre com a sua correia de afiar em que passava de manhã à noite a navalha gasta até aos últimos limites, e era como se tivesse mergulhado de cabeça naquele ofício, considerando-o, pelos vistos, a vocação da sua vida. Realmente, vivia contentíssimo — bastava a lâmina estar boa e alguém o procurar para o serviço: o seu sabão era quentinho, a mão leve, o toque aveludado. Deliciava-se com a sua arte, orgulhava-se dela, e recebia o copeque ganho com indiferença, como se o principal fosse a arte, não o copeque. A... apanhou uma vez uma grande sova do nosso major quando, no meio das suas denúncias, se descuidou e mencionou o nosso barbeiro pelo nome de major. O chefe enraiveceu-se e ofendeu-se a sério. «Será que não sabes, seu pulha, o que é um major? — berrava com a espuma nos lábios, enquanto tratava da pele de A... — Não compreendes o que é um major? Um canalha de um grilheta daqueles e atreves-te a chamar-lhe major? Na minha cara, na minha presença!...» Só o A... era capaz de conviver com semelhante sujeito.

Desde o primeiro dia na prisão que comecei a sonhar com a liberdade. Calcular, de mil formas variadas, quando acabariam os meus anos de reclusão tornou-se o meu passatempo preferido. Nem poderia pensar noutra coisa, e tenho a certeza de que acontece o mesmo a qualquer pessoa que se veja privada da liberdade por um tempo qualquer. Não sei se os grilhetas pensavam da mesma forma que eu, mas, desde o início, o que mais me espantou foi a incrível leviandade das suas esperanças. A esperança de uma pessoa privada da liberdade é completamente diferente da esperança de uma pessoa que tenha uma vida normal. Um homem livre tem esperanças, é claro (por exemplo, na mudança do seu destino, no êxito de um qualquer empreendimento), mas vive, age; a verdadeira vida envolve-o plenamente no seu turbilhão. Tal não se passa com o recluso. Digamos que a vida dele também é uma vida, embora reclusa, corretiva; mas, seja qual for o grilheta, seja qual for a pena que cumpre, ele não pode, decididamente, por instinto, tomar a sua vida por algo de positivo, de definitivo, que faça parte de uma existência real. Qualquer recluso sente que não está em casa, que está ali como que de visita. Encara vinte anos como se fossem dois e está convencido de que, aos cinquenta e cinco anos, quando sair, será o mesmo homem rijo que é agora, aos trinta e cinco. «Ainda há muito para viver!», pensa e, teimosamente, afasta de si todas as dúvidas e todos os pensamentos desagradáveis. Mesmo os deportados sem pena fixa, da secção especial, sonhavam às vezes que chegaria de Petersburgo, inesperadamente, uma autorização: «Transferir para Nértchinsk, para as minas, e fixar a pena.» Isso sim, seria bom: primeiro, porque para chegar a Nértchinsk seria preciso caminhar quase meio ano, e caminhar numa leva de presos é muito melhor do que estar fechado numa prisão! Depois, cumprida a pena em Nértchinsk... Reparem que, às vezes, é um homem de cabelos brancos quem assim planeia!

Vi em Tobolsk pessoas acorrentadas à parede. A corrente tem cerca de uma braça de comprido; mesmo ao lado está também o catre. O homem foi acorrentado por qualquer crime terrível, fora de série, cometido já na Sibéria. Também vi, desses acorrentados, um que me pareceu de origem nobre; fizera em tempos o seu serviço em qualquer lado. Falava a cecear, muito quieto, com um sorriso doce. Mostrou-nos a sua corrente e de que maneira era preciso deitar-se comodamente no catre. Devia ser um bicho muito especial! Todos eles, em geral, são de comportamento pacato e parecem contentes; entretanto, como gostariam de cumprir o castigo o mais depressa possível! Para quê? — pergunta-se. Para sair do recinto abafado e húmido, passear pelo terreiro da prisão e... e mais nada, porque, para o exterior, nunca o deixarão sair. O presidiário sabe que os libertados da corrente nunca mais se libertarão das grilhetas, ficarão até à morte na prisão. Sabe isso e, mesmo assim, quer muito que termine o mais depressa possível o seu castigo de acorrentado. Se assim não fosse, sem esse desejo, como poderia aguentar cinco ou seis anos acorrentado sem morrer ou enlouquecer?

Eu sentia que o trabalho podia salvar-me, fortalecer a minha saúde e o meu corpo. A permanente inquietude espiritual, a irritação nervosa, o ar abafado da caserna tinham força para me destruir. «Estar mais tempo ao ar livre, cansar-me todos os dias, habituar-me a carregar com pesos grandes... e então, pelo menos, salvarei o corpo, temperá-lo-ei, sairei daqui saudável, cheio de vida, forte, rejuvenescido», pensava eu. Não me enganei: o trabalho e o movimento eram-me benéficos. Olhava aterrado para um dos meus companheiros (dos nobres): extinguia-se na prisão como uma vela. Entrou ao mesmo tempo que eu, ainda novo, bonito, cheio de vida, e saiu meio destruído, o cabelo branco, as pernas inutilizadas, com dispneia. «Não — pensava eu, olhando para ele —, quero viver e vou viver.» Mas o que eu não sofri da parte dos outros reclusos por causa do meu amor ao trabalho! Tanto que eles me amofinaram e desprezaram! No entanto, eu não dava qualquer atenção a isso, ia trabalhar com decisão — por exemplo, para queimar e triturar alabastro, que foi um dos primeiros trabalhos que conheci. Era um trabalho fácil. Os chefes da engenharia estavam prontos, na medida do possível, a facilitar o trabalho aos nobres, o que, de resto, não era indulgência nenhuma, mas apenas justiça. Seria estranho exigir que uma pessoa duas vezes mais fraca do que as outras e que nunca trabalhara na vida cumprisse a mesma norma que era dada a um verdadeiro trabalhador braçal. No entanto, nem sempre havia tais «mimos», a coisa era feita como que à socapa: o controlo era rigoroso. Era necessário, bastas vezes, cumprir tarefas difíceis e, quando isso acontecia, os nobres, obviamente, sofriam mais do que os outros. Para trabalhar com o alabastro, eram designados normalmente três ou quatro homens, velhos ou fracos e, entre eles, é claro, sempre algum dos da nossa condição; a este grupo era acrescentado um trabalhador calejado que conhecia bem esse trabalho. Normalmente, tratava-se sempre do mesmo homem, vários anos seguidos, um tal Almázov, severo, moreno, seco, já de idade, insociável e enjoado. Desprezava-nos profundamente. De resto, era de tão poucas falas que até tinha preguiça de resmungar. O barracão em que se moía e queimava o alabastro ficava também na margem deserta e escarpada do rio. No inverno, sobretudo nos dias enevoados, era um tédio olhar para o rio e para a longíngua margem oposta. Havia qualquer coisa de muito triste nessa paisagem deserta e selvagem, de rasgar o coração. E talvez tudo fosse ainda mais penoso quando por cima da infinita coberta de neve brilhava o sol; apetecia voar para qualquer lado, para aquela estepe que começava na outra banda e se estendia em direção ao Sul como uma toalha ininterrupta de mil e quinhentas verstás. Almázov, normalmente, sempre calado, com um ar severo, deitava mãos à obra; era como se tivéssemos vergonha de não o podermos ajudar muito, mas ele fazia tudo sozinho de propósito, sem nos pedir qualquer ajuda, como se quisesse fazer-nos sentir culpados para com ele e atormentados por sermos uns inúteis. Entretanto, todo o trabalho consistia em aquecer o forno para queimar o alabastro que levávamos a Almázov. No dia seguinte, quando o alabastro já estava queimado, descarregava-se do forno. Cada um de nós pegava num martelo pesado, enchia uma caixa de alabastro e começava a parti-lo. Era um trabalho agradável. O alabastro quebradiço transformava-se rapidamente em pó branco e brilhante, esmigalhava-se com facilidade. Levantávamos os martelos pesados e as suas batidas constantes até a nós pareciam divertidas. Acabávamos por ficar cansados e, ao mesmo tempo, aliviados; as faces vermelhas, o sangue a circular mais depressa. Então, até o próprio Almázov olhava para nós com alguma condescendência, como quem olha para crianças pequenas; fumando o seu cachimbo, olhava para nós, mas, quando tinha de falar, não podia evitar os resmungos. De resto, era assim com toda a gente, não deixando porém de ser um homem bondoso.

Outro trabalho que eu tinha a fazer era dar à roda do torno. A roda era grande e pesada. Fazê-la girar exigia grande esforço, sobretudo quando se fabricavam móveis para algum funcionário e o torneiro (um dos operários da engenharia) torneava alguma coisa do género de um balaústre de escada ou uma perna de mesa grande; em casos destes, era preciso meter ao torno o tronco inteiro. Um homem sozinho, quando assim era, não conseguia fazer girar a roda, e então destacavam dois homens — eu e outro dos fidalgos reclusos, o B...ki. Mantivemos esse trabalho, quando se torneava alguma coisa, vários anos seguidos. B...ki era um homem de poucas forças, mirrado, ainda jovem, com problemas de peito. Chegara à prisão dois anos antes de mim, com mais dois companheiros — um velho que, durante todo o seu tempo de prisão, rezava dia e noite (pelo que era muito respeitado pelos reclusos), tendo morrido no meu tempo; o outro era ainda muito novo, fresco, de faces coradas, forte e corajoso, que a meio do caminho para o forte, carregara às costas o seu companheiro B...ki durante umas setecentas verstás. Era só ver a amizade entre eles. B...ki tinha uma instrução excelente, um espírito nobre, um caráter magnânimo, mas irritado e estragado pela doença. Trabalhávamos juntos a dar à roda, o que até nos divertia. Para mim, esse trabalho era um ótimo exercício.

Também gostava muito de limpar a neve. Normalmente, fazia-se isso depois das nevascas, o que, no inverno, não era raro. Depois de nevar vinte e quatro horas seguidas, a camada de neve chegava até meio das janelas de algumas casas, e acontecia mesmo a neve cobrir uma casa até ao telhado. Quando parava de nevar e se abria o sol, mandavam-nos em grandes grupos, ou mesmo a totalidade dos reclusos, desobstruir da neve os edifícios públicos. Era fixada uma norma de trabalho, às vezes tão grande que não se percebia como era possível cumpri-la, era entregue uma pá a cada um e toda a gente deitava mãos à obra. A neve recente e fofa, coberta por uma película fina de gelo, apanhava-se com facilidade a grandes pazadas e espalhava-se ao largo, transformando-se ainda no ar num pó levezinho. Enterrava-se alegremente a pá na neve branca, reluzente ao sol. Quase todos os reclusos faziam este trabalho com alegria. O ar fresco do inverno e o movimento aqueciam-nos, todos ficávamos mais animados; ouviam-se as gargalhadas, as exclamações e as piadas dos homens. Começava a brincar-se a atirar bolas de neve uns aos outros, mas uns instantes depois, é claro, algum mais sensato e invejoso da alegria e dos risos gerais começava a ralhar e o entusiasmo geral terminava em pragas.

A pouco e pouco comecei a ampliar o círculo dos meus conhecimentos. Aliás, nem sequer pensava ainda em arranjar conhecidos, pois andava inquieto, sombrio, desconfiado. Tudo começou espontaneamente. Um dos primeiros a visitar-me foi o recluso Petrov. Digo visitar e insisto nesta palavra. Petrov vivia na secção especial, na caserna mais afastada da nossa. Por todos os motivos, não havia quaisquer ligações entre nós; também não havia, nem podia haver, nada em comum entre mim e ele. Entretanto, parece que Petrov achou ser sua obrigação vir à minha caserna quase todos os dias ou, nos períodos de folga, ir ter comigo quando eu costumava passear nas traseiras das casernas, o mais longe possível de todos os olhares. De início, não me agradava. Muito depressa, porém, Petrov conseguiu fazer com que as suas visitas me divertissem, embora ele não fosse homem muito sociável e loquaz. Era bastante baixo, mas robusto, ágil, remexido, com uma cara agradável, pálida, de maçãs do rosto largas, com um olhar destemido, dentes brancos e miúdos, e com a eterna pitada de tabaco moído enfiada entre a gengiva e o lábio inferior. Meter o tabaco na gengiva era costume de muitos reclusos. Parecia mais novo do que era. Teria uns quarenta anos, mas aparentava trinta. Era sempre desembaraçado a falar comigo, em pé de igualdade, com umas maneiras decentes e delicadas. Se se dava conta, por exemplo, de que eu procurava privacidade, falava comigo dois minutos e ia-se logo embora, agradecendo-me sempre a atenção, coisa que decerto nunca fazia com mais ninguém em toda a prisão. O curioso foi que este tipo de relações entre nós permaneceu assim, não só nos primeiros dias mas durante vários anos seguidos, quase nunca se tendo tornado mais íntimas, embora o homem me fosse de facto dedicado. Até hoje, não consigo perceber: o que pretendia exatamente Petrov de mim? Por que se encontrava comigo todos os dias? Embora mais tarde lhe acontecesse roubar-me, fazia-o como que sem querer; quase nunca me pedia dinheiro, donde depreendi que não me procurava por dinheiro ou por qualquer outro interesse.

Não sei também por que razão, mas parecia-me sempre que Petrov não vivia na mesma prisão que eu, mas algures muito longe, noutra casa, na cidade, visitando a prisão de passagem, para saber notícias, para me ver e para ver como vivíamos. Tinha sempre pressa, como se tivesse deixado alguém à espera nalgum sítio, ou como se tivesse deixado alguma coisa necessária por fazer. No entanto, não parecia muito azafamado. O olhar dele era um pouco estranho: atento, com um toque de descaramento e alguma ironia, mas olhava para longe, por cima do objeto, como se tentasse enxergar por trás desse objeto algum outro, mais longínquo. Esse modo de olhar dava-lhe um ar distraído. Às vezes, eu tentava perceber: a que sítio iria Petrov depois de despedir-se de mim? Onde estariam à espera dele? Mas ele encaminhava-se apressadamente algures para a caserna, ou para a cozinha, sentava-se ao pé de qualquer grupo que estivesse a conversar, ouvia com atenção, às vezes metia-se na conversa, e fazia-o com grande ardor, mas de repente parava, calava-se. No entanto, quer conversasse quer ficasse calado, via-se que estava ali apenas por acaso, de passagem, que tinha outro assunto a tratar em qualquer lado, que tinha pessoas à espera dele. O mais curioso era o facto de não trabalhar, de viver no ócio absoluto (com exclusão dos trabalhos obrigatórios, evidentemente). Não sabia ofício nenhum e quase nunca tinha dinheiro. Mas a falta de dinheiro não o entristecia muito. De que falava comigo? A sua conversa era tão esquisita como ele próprio. Por exemplo, via que eu vagueava sozinho pelas traseiras e, de repente, virava na minha direção. Andava sempre depressa, fazia viragens bruscas. Aproximava-se de mim a passo, mas parecia correr.

— Boa tarde.

— Boa tarde.

— Não incomodo?

— Não.

— Queria perguntar-lhe uma coisa sobre Napoleão. Parece que ele é parente do outro, daquele da guerra do ano doze? (Petrov terminara a escola dos filhos dos soldados e era alfabetizado.)

— É parente, sim.

— E então, que presidente é ele, o que dizem disso?

Fazia sempre as perguntas rápida e entrecortadamente, como se necessitasse de saber as coisas o mais depressa possível. Parecia andar à procura de informação sobre um assunto importante e absolutamente inadiável.

Expliquei-lhe que presidente o outro era e acrescentei que, provavelmente, em breve se tornaria imperador.

— Como é isso?

Expliquei-lhe também isso, na medida do possível. Petrov ouvia com atenção, com a cabeça inclinada para o meu lado, assimilando tudo muito bem e rapidamente.

— Humm. Queria também perguntar-lhe outra coisa, Aleksandr Petróvitch: é verdade, segundo dizem, que há macacos em que os braços lhes chegam aos calcanhares e que são da altura de um homem muito alto?

— Sim, há macacos desses.

— Mas que género de macacos são?

Expliquei-lhe o que sabia sobre isso.

— E onde vivem?

— Nas terras quentes. Na ilha de Samatra, por exemplo.

— Isso é na América, não? Dizem que, lá, as pessoas andam de cabeça para baixo.

— Não, não é verdade. Deve estar a referir-se aos antípodas.

Expliquei-lhe o que era a América e, mais ou menos, o que era isso de antípodas. Ouvia-me com tanta atenção como se se tivesse encontrado comigo só para saber o que eram os antípodas.

— Hã-hã! Oiça, no ano passado li a história da condessa de La Vallière, era o Aréfiev quem tinha o livro, emprestado pelo ajudante do campo. Então aquilo sempre é verdade, ou foi tudo inventado? O livro é de Dumas.

— É claro que foi inventado.

— Bom, então adeus. Obrigado.

E Petrov desaparecia. Na verdade, nunca falávamos doutra maneira, só dessa.

Comecei a fazer perguntas sobre o Petrov. M...ki, quando soube desse meu conhecimento, advertiu-me. Disse-me que, sobretudo nos seus primeiros tempos de prisão, muitos grilhetas lhe provocavam um verdadeiro terror, mas nenhum, nem o próprio Gázin, lhe causava uma impressão tão terrível como o Petrov.

— É o mais decidido e destemido dos reclusos — dizia-me M...ki. — É capaz de tudo, não recua perante nada se tiver um capricho qualquer. Se lhe passar pela cabeça degolá-lo, degola-o, sem mais nem menos, sem pestanejar, sem sombra de arrependimento. Quer-me até parecer que ele não é bom da cabeça.

Tal característica intrigou-me muito. M...ki, porém, não conseguia explicar-me por que tinha esse sentimento. Coisa estranha: eu viria a lidar com Petrov durante vários anos, falava com ele quase todos os dias; ele apegara-se a mim sinceramente (embora eu não soubesse minimamente porquê) e, em todos esses anos, por mais que esse homem vivesse com sensatez lá dentro e nada de terrível fizesse, eu convencia-me, de cada vez que olhava para ele e falava com ele, de que M...ki tinha razão e que Petrov talvez fosse o mais implacável e impávido dos homens, que não aceitava qualquer coerção. Porquê? Também não sei dizer.

Observo de passagem que este Petrov era o mesmo que quis matar o major, quando foi chamado à punição, tendo-se este «salvado por milagre», como diziam os reclusos, quando se foi embora um minuto antes do castigo. Aconteceu também, ainda antes da sua prisão, que um coronel lhe bateu nos treinos militares. Parece que já era hábito baterem-lhe muito, mas dessa vez Petrov não quis aceitar a pancada e, abertamente, à luz do dia, à frente de toda a formatura, matou o coronel à baioneta. De resto, não conheço em pormenor toda a biografia dele: nunca ma contou. Nele, tratava-se de explosões, é claro, de instantes em que a sua natureza se manifestava integralmente. Fosse como fosse, eram explosões muito raras. Petrov, a maior parte do tempo, era sensato, era até submisso. Escondiam-se nele paixões fortes e ardentes, mas as brasas vivas como que estavam sempre cobertas de cinzas e ardiam lentamente. Nunca notei nele a mais pequena sombra de fanfarronice ou de vaidade, como via nos outros. Raramente se envolvia em conflitos; por outro lado, não mantinha grandes amizades com ninguém, talvez apenas com Sirótkin, e só quando precisava dele. Aliás, uma vez vi-o zangado a sério. Não lhe queriam dar qualquer coisa a que tinha direito, sentiu-se prejudicado. Quem discutia com ele era um grandalhão, mau, provocador, zombeteiro e nada cobarde, de nome Vassíli Antónov, da categoria dos criminosos comuns. Havia já muito tempo que gritavam um com o outro, e eu à espera de como aquilo iria acabar, no pior dos casos à pancada, pensava eu, porque às vezes Petrov, embora raramente, praguejava e brigava como o último dos reclusos. Dessa vez, porém, foi diferente: Petrov ficou muito branco, com os lábios a tremerem-lhe, a azularem, começou a respirar com dificuldade. Levantou-se e lenta, muito lentamente, com o andar silencioso dos seus pés descalços (no verão gostava de andar descalço), aproximou-se de Antónov. Num instante, a caserna gritona e barulhenta emudeceu, podia ouvir-se uma mosca a voar. Estavam todos à espera de que acontecesse alguma coisa. Antónov levantou-se de um salto, a cara transtornada... Não aguentei e saí da caserna. Ainda antes de descer os degraus da entrada, pensava eu, ouviria o grito da pessoa esfaqueada. Mas, também dessa vez, nada aconteceu: Antónov, antes de Petrov ter chegado a ele, atirou-lhe apressada e silenciosamente o objeto do litígio. (Tratava-se de um farrapo miserável, para enfaixar os pés.) Dois minutos depois, como é óbvio, Antónov lá o insultou um bocadinho, para salvar as aparências e mostrar que não se tinha acobardado muito. Petrov nem o ouviu: as pragas do outro não lhe interessavam, ganhara o litígio. Ficou muito contente, na posse do farrapo. Um quarto de hora depois já vagueava como sempre pelo forte, com o seu ar ocioso e como que à procura de mais alguma conversa curiosa para ouvir. Parecia interessado em tudo mas, sabe-se lá porquê, notava-se-lhe a indiferença por quase tudo e só se arrastava inutilmente pela prisão. Assemelhava-se a um cavador fortalhão que despacharia depressa e habilmente o trabalho, mas a quem ainda não tinham dado nenhuma tarefa e, enquanto esperava, brincava com as criancinhas. Quanto a mim, não compreendia por que continuava Petrov lá dentro, por que não fugia! Se quisesse, não pensaria duas vezes e fugiria mesmo. A razão domina pessoas como Petrov apenas até ao momento de, subitamente, serem acometidas por um desejo forte. Então, não haverá no mundo obstáculo que se lhes oponha. Tenho a certeza de que ele conseguiria evadir-se com habilidade, aldrabando tudo e todos, de que seria capaz de se aguentar sem pão no meio da floresta ou entre os juncais do rio. Pelos vistos, ainda não se tinha lembrado disso e não o tinha desejado o bastante. Nunca detetei grande raciocinação ou grande senso comum neste homem. Pessoas destas já nascem com a ideia única que, inconscientemente, as fará mover-se de um lado para outro; passam a vida nesta correria até encontrarem a ocupação a seu gosto; então, não pouparão em prol dela a própria vida. Às vezes espantava-me com o facto de um homem que matara o seu superior se deitar submissamente para ser vergastado na prisão. Por vezes, quando o apanhavam com vodka, açoitavam-no. Como todos os grilhetas sem ofício, de vez em quando metia-se no tráfico da vodka. Entretanto, deixava, consentidamente, que o açoitassem, isto é, como se tivesse a consciência de que estava a ser castigado com justiça; se assim não fosse, não o consentiria nem que o matassem. Espantava-me também quando, apesar de toda a sua notória afeição por mim, me roubava. Tais coisas aconteciam-lhe por períodos. Foi ele quem me roubou a Bíblia que eu lhe confiara apenas para levar de um lugar para outro. A distância era só de alguns passos, mas Petrov arranjou um comprador pelo caminho, vendeu a Bíblia e logo a seguir gastou o dinheiro na bebedeira. Pelos vistos, a vontade de beber foi superior a tudo, e esse grande desejo teve de ser satisfeito. Um homem assim esfaqueia uma pessoa por vinte e cinco copeques quando tem de beber meio quartilho, embora noutra ocasião não tocasse numa pessoa que tivesse uma centena de milhares de rublos. Na mesma noite, ele próprio me informou do roubo, sem qualquer embaraço nem arrependimento, com a sua absoluta indiferença, como se se tratasse de uma aventura banal. Tentei admoestá-lo com severidade, até porque tinha muita pena de ter ficado sem a minha Bíblia. Petrov ouviu-me sem se irritar, com resignação; concordava que a Bíblia era um livro muito útil, lamentava sinceramente que eu já não a tivesse, mas não lamentava o ter-ma roubado; olhava para mim tão seguro de si que eu desisti de o descompor. Vi que ele aturava a minha indignação por considerar que era inevitável passar por isso, que era obrigatório ser admoestado por esse ato e, sendo assim — pensava ele — pois bem, que o senhor desabafe, que alivie a alma, que censure; no fundo, tudo isso lhe devia parecer uma ninharia, uma coisa de que um homem sério deveria ter vergonha de falar. Acho que, de uma maneira geral, me tomava por uma espécie de criança, por um bebé que não compreende as coisas mais simples deste mundo. Quando, por exemplo, eu começava a falar com ele de alguma coisa que não fosse dos livros ou da ciência, respondia-me, sim, mas como que por delicadeza somente, limitando-se a respostas brevíssimas. Muitas vezes, perguntava a mim mesmo: que interesse terá ele nestes conhecimentos livrescos sobre que me interroga? Nessas conversas, olhava-o de soslaio de vez em quando: não estaria a rir-se de mim? Mas não, estava sério e atento a ouvir-me, não muito, aliás, o que me causava um certo desgosto. Fazia-me perguntas claras, definidas, mas não se espantava muito com a informação recebida, ouvindo-a distraidamente... Parecia-me também que, no que a mim respeitava, tinha resolvido sem grandes reflexões que era impossível falar comigo como falava com as outras pessoas, que, além dos livros, eu não percebia nada de nada e que era incapaz de vir a perceber, e que não valia a pena, portanto, incomodar-me.

Tenho a certeza de que ele até gostava de mim, o que me pasmava. Se me achava um homem imaturo, incompleto, se sentia por mim aquela comiseração especial que um forte sente instintivamente por um fraco... isso não sei. E, embora nada disso o impedisse de me roubar, estou convencido de que, mesmo roubando-me, tinha pena de mim. «Eh! — talvez pensasse, ao furtar-me os pertences. — Que homem é este que nem sabe defender o que é seu?» Mas era precisamente por isso, julgo eu, que gostava de mim. Uma ocasião, ele próprio me disse, por acaso, que eu era «um homem de alma demasiado bondosa». «É tão simplório, tão simplório que até mete pena. Não leve a mal, Aleksandr Petróvitch — acrescentou uns momentos depois —, digo-lho do fundo do coração.»

Por vezes acontece a gente deste género manifestar-se e definir-se, inesperada, brusca e grandiosamente, nos momentos de ação forte das massas ou de rebelião e, quando é assim, pode dizer-se que entrou na atividade adequada para ela. Homens destes não têm o dom da palavra, não podendo por isso ser instigadores ou guias principais de uma causa; mas são os seus principais executores e os primeiros a começar. Fazem-no simplesmente, sem grandes alardes, mas são os primeiros a saltar por cima do obstáculo principal, sem refletirem, sem medo, de peito feito contra todos os punhais — e os outros atiram-se após eles e investem cegamente, até ao último muro onde, normalmente, perecem. Não acredito que Petrov vá acabar bem — é próprio dele tomar decisões repentinas e, se ainda não soçobrou, foi apenas porque não calhou. De resto, quem sabe? Provavelmente viverá até que o cabelo lhe embranqueça e morrerá de velhice, em paz, depois de ter vagueado sem sentido toda a vida. Contudo, dou razão a M...ki quando dizia que Petrov era o homem mais resoluto de toda a prisão.


8

Gente decidida. Lutchka

É difícil falar dos decididos — na prisão, como por todo o lado, são bastante poucos. Aparentemente, fulano é terrível; lembramo-nos do que contam a seu respeito e tentamos manter-nos o mais longe possível dele. Um instinto qualquer, no início, levava-me a afastar-me de pessoas assim. Mais tarde, vim a modificar muito o meu ponto de vista em relação, inclusivamente, aos mais temíveis assassinos. Há quem não tenha matado mas seja pior do que um condenado por seis assassínios. Havia crimes de que era difícil formar uma noção, mesmo primária, tantos eram os pormenores estranhos que os envolviam. Falo disto porque, entre o nosso povo, algumas mortes têm causas na verdade surpreendentes. Existe, por exemplo, e não é raro, o seguinte tipo de assassino: um homem quieto e inofensivo; tem uma vida amarga, mas aguenta. Digamos que é um mujique, ou um criado servo, ou um popular da cidade, ou um soldado. De repente, alguma coisa descarrilou nele; não aguentou e esfaqueou o seu inimigo e opressor. Aí, começam as coisas estranhas: por algum tempo, o homem sai das marcas. A sua primeira vítima foi o tirano, o inimigo — é crime, mas compreende-se, havia um motivo; mas depois já mata quem não é inimigo, o primeiro que lhe aparece à frente, mata por gozo, por uma palavra mais bruta, por um olhar, ou, simplesmente: «Sai da frente, não te ponhas no meu caminho, vou passar!» Parece embriagado, em delírio febril. Como se, ao ultrapassar o limite proibido, começasse a deliciar-se por já ter deixado de existir para ele algo de sagrado; como se fosse empurrado a passar de um salto por cima de qualquer legalidade, de qualquer autoridade, a deleitar-se com a mais desenfreada e ilimitada liberdade, a deleitar-se com o esmorecer do coração aterrorizado do outro, e é impossível que não sinta terror de si mesmo. Além disso, sabe que tem pela frente um castigo terrível. Talvez tudo isso se assemelhe à sensação que tem um homem no cimo de uma torre alta, atraído pelo abismo debaixo dos seus pés, a ponto de estar pronto a atirar-se de cabeça: fazê-lo já, acabar com tudo! E estas coisas acontecem às mais apagadas e submissas pessoas. Algumas, no meio de tal embriaguez, até se exibem. Quanto mais a pessoa fora humilhada antes, mais é levada agora a espevitar-se, a meter medo. Delicia-se com o medo que provoca, gosta até da repugnância que causa aos outros. Faz-se de arrojado, mas é um «arrojado» que por vezes anseia o castigo, quer ser condenado, porque se lhe torna penoso carregar com tal arrojo fingido. É curioso que, na maior parte dos casos, todo este estado de ânimo, todo este fingimento, dura apenas até ao cadafalso, depois desaparece de todo: como se fosse um qualquer período formal, imposto antecipadamente por determinadas regras. Então, de repente, o indivíduo resigna-se, esbate-se, torna-se um trapo. No cadafalso, lamuria-se — pede perdão ao povo. Vai parar à prisão: é um ranhoso, um embrutecido — até nos admiramos: «Então aquilo é que matou cinco ou seis pessoas?»

É claro que alguns não se resignam assim tão rapidamente, nem mesmo na prisão. Ainda conservam alguma bazófia, alguma pose exibicionista: não sou o que pensais, estou cá dentro por causa de seis almas. Mas acaba por se resignar. Só de vez em quando se dá ao prazer de recordar a sua vida brava e grande, a sua pândega de quando era «arrojado», única na vida, e, se depara com um simplório, adora requebrar-se, gabar-se diante dele, com um ar importante, contando-lhe as suas façanhas, ao mesmo tempo que tenta não mostrar que lhe apetece muito contá-las. «Bem vês o homem que eu era!»

Com que esmero mantém a moderação vaidosa, com que preguiça e indiferença veste, às vezes, a sua narração! Que fatuidade estudada transparece no tom e em cada palavra do narrador! Onde pode essa gente ter aprendido isso?

Num desses meus primeiros fins de tarde, tristemente deitado no catre, sem nada que fazer, ouvi uma dessas histórias e, por inexperiência, tomei o narrador por um colossal e terrível facínora, por um caráter férreo invulgar, nessa mesma altura em que, a meus olhos, o Petrov era quase digno de gozo. O tema da história era o de que ele, Luká Kuzmitch, dera cabo de um major só por puro prazer. Luká Kuzmitch era aquele recluso pequenito da nossa caserna, que já mencionei, fininho, jovem, com narigueta afiada, do grupo ucraniano. Na verdade, era russo, apenas nascera no Sul e, salvo erro, era um criado servo. Havia nele, de facto, alguma coisa de afiado, de presunçoso: «É um passarinho de nada, mas tem a garra afiada.» Só que os reclusos deslindam as pessoas por instinto. Tinham-lhe pouco respeito, lá dentro. O homem era dotado de um terrível amor-próprio. Nessa noite estava sentado no catre a costurar uma camisa. O ofício dele era o feitio de roupa. A seu lado estava um rapaz, Kobílin, lorpa e limitado, mas bondoso e meigo, corpulento e alto, seu vizinho de catre. O Lutchka zangava-se muito com ele e, de uma maneira geral, tratava-o de alto, com ironia e despotismo, coisa de que Kobílin, por ingenuidade, quase não se dava conta. Kobílin estava a tricotar uma meia de lã e a escutar com indiferença o que dizia o Lutchka. Este falava bastante alto. Queria que o ouvissem todos, embora fingisse que estava a contar alguma coisa só ao Kobílin.

— Portanto, irmão, deportaram-me por vagabundagem — começou ele, escarafunchando o pano com a agulha —, para a cidade de Tch...

— E quando foi isso? Há muito tempo? — perguntou Kobílin.

— Faz dois anos quando a ervilha amadurar. Pelo caminho passamos por K... e metem-me lá na pildra por algum tempo. Vejo que tenho companhia: uma dúzia de ucranianos, altos, fortes, robustos como touros. Mas submissos: a comida não presta, o major faz deles o que quer. Lá fico, um dia, outro dia, e vejo logo — uns cobardolas. «Por que se agacham a este parvo?», pergunto-lhes eu. «Vá, fala então tu com ele!», e riem-se. E eu calo-me... Havia lá um ucraniano bem cómico, meus amigos — acrescentou bruscamente, já não para Kobílin mas para todos em geral. — Contou-nos como foi condenado, como falou ao tribunal, e a chorar como um desalmado: que tinha deixado os filhos e a mulher em casa. Era um calmeirão gordo, já de cabelo branco. E contava: «Eu digo-lhe: não! E ele, o filho dum raio, escreve, escreve. Irra, digo cá para mim, raios que te partam! E ele sempre a escrever, a escrever, o que ele escreveu!... Nisto, passa-me uma coisa pela cabeça!» Vássia, dá-me a linha, está toda podre.

— É do bazar — disse Vássia, dando-lhe linha.

— A linha da alfaiataria é melhor. Esta, mandámos o Não Válido comprá-la... A que velhaca ele comprou isto? — continuou Lutchka, enfiando a linha na agulha contra a luz.

— À comadre dele.

— Pois, à comadre.

— E então, como acabou isso com o major? — perguntou Kobílin, completamente esquecido pelo Lutchka.

Era o que queria Lutchka. Não recomeçou, no entanto, a contar de imediato, nem sequer deu muita atenção, aparentemente, ao que lhe pedia Kobílin. Endireitou calmamente a linha entre os dedos, acomodou-se melhor na sua posição de sentado em cima das pernas cruzadas, também com muita calma, e só então começou a falar:

— Finalmente, consegui espevitar os meus ucranianos, que exigiram a presença do major. Ora, eu ainda de manhã tinha pedido uma faca ao vizinho e, para o que desse e viesse, tinha ficado com ela. O major ficou raivoso. Correu à prisão. Calma, digo eu, não vos apoquenteis, ucranianos! Mas eles já estavam com o coração caído aos pés, até tremiam. Rompeu o major por ali adentro, bêbado. «Quem? O quê? Eu aqui sou Deus e czar!» Mal ele disse: «sou Deus e czar», saltei para a frente — continuava Lutchka —, e já levava a faca na manga.

«Não, vossa senhoria — digo-lhe eu e aproximo-me devagarinho dele —, como pode ser tal coisa? Como pode ser que vossa senhoria seja aqui Deus e czar?»

«Ah-ah, com que então és tu, és tu! — berrou para mim. — És então tu o amotinado?»

«Não — digo-lhe eu, e continuo a aproximar-me —, se calhar, a própria vossa senhoria sabe muito bem que Deus omnipotente e omnipresente há só um, é único. E o nosso czar é único, posto acima de nós todos pela própria vontade de Deus. Ele é, fique sabendo vossa senhoria, o monarca. E vossa senhoria é ainda apenas major, nosso chefe por graça de sua majestade e em conformidade com os méritos de vossa senhoria.»

«O quê, o quê, o quê?!» — põe-se ele a cacarejar, nem consegue falar, sufocado. Tinha ficado pasmadíssimo.

«O quê? É assim» — digo-lhe eu. De repente fui-me a ele e espetei-lhe a naifa na barriga. Uma boa facada. Rolou pelo chão, só estrebuchou um bocado com as pernas. Larguei a faca.

«Estais a ver, ucranianos? Agora levantai-o!»

Faço agora aqui uma digressão. Infelizmente, expressões como «sou Deus e czar» e muitas outras do mesmo género eram muito usadas antigamente pelos comandantes. É de reconhecer, no entanto, que comandantes desses já há poucos, ou talvez já se tenham mesmo extinguido por completo. É de notar, também, que eram os comandantes tarimbeiros, vindos de baixo, que gostavam de empregar tais expressões. A sua subida à graduação de oficiais parece pôr de pantanas toda a essência deles, e também a cabeça. Carregaram, durante muito tempo, o fardo pesado do serviço, passando por todos os degraus da subordinação, e veem-se eles próprios, de repente, oficiais, comandantes, nobres e exageram, por falta de hábito e no primeiro arrebatamento, a noção do seu poder e da sua importância — isto tudo, obviamente, em relação apenas aos seus subordinados. Perante os superiores, continuam com o seu servilismo, já inútil de todo e, aos olhos de muitos desses superiores, mesmo repugnante. Existem mesmo alguns que se apressam a declarar — tão enternecedores! — que vieram de baixo e, embora oficiais, «não esquecem qual é o seu lugar». Ao mesmo tempo, tornam-se déspotas absolutos para com os subalternos. Hoje em dia, evidentemente, é pouco provável existirem pessoas dessas que gritem: «Sou Deus e czar.» Apesar disso, observarei que nada irrita mais os reclusos, e em geral todo o pessoal inferior, do que essas expressões saídas das bocas dos chefes. Tal autoengrandecimento descarado, tal opinião exagerada da sua impunidade criam ódio no mais submisso dos homens e fazem-no perder a derradeira paciência. Felizmente, quase todos estes fenómenos pertencem ao passado, e mesmo no passado eram rejeitados severamente pelas autoridades superiores. Conheço disso alguns exemplos.

Em geral, o subordinado irrita-se com qualquer forma de altivez sofrida por ele. Há quem pense que baste alimentar bem o recluso e mantê-lo em boas condições, cumprindo a lei, e que não é preciso mais nada. É um engano. Qualquer pessoa, seja quem for, por mais humilhante que seja a situação em que se encontre, exige respeito pela sua dignidade humana, nem que seja instintiva, inconscientemente. O recluso já sabe que é recluso, que é um repudiado, e conhece o seu lugar relativamente ao superior; mas nenhumas marcas do ferro, nenhumas grilhetas podem fazê-lo esquecer que é um ser humano. E já que é um ser humano, deve ser tratado humanamente. Meu Deus! Uma atitude humana pode humanizar mesmo a criatura em que a imagem de Deus há já muito se esbateu. Aliás, são precisamente estes «desgraçados» que devem ser tratados com ainda maior humanidade. É nisso que reside a salvação e a felicidade deles. Já encontrei na minha vida comandantes nobres e humanos. Vi a influência que exerciam nos humilhados. Bastavam algumas palavras de simpatia, e os reclusos quase renasciam moralmente. Alegravam-se como crianças e começavam a amar como crianças. Noto mais uma coisa curiosa: os próprios reclusos não gostam de ser tratados pelos chefes de modo demasiado familiar e demasiado bondoso. Quando tal acontece, o recluso, que quer respeitar o chefe, deixa de respeitá-lo. O preso gosta, por exemplo, de ver as condecorações no peito do chefe, agrada-lhe que seja bem-apessoado, bem-visto pelas altas autoridades, que seja rigoroso, imponente e justo, que mantenha sempre a sua dignidade. Destes chefes é que os reclusos gostam mais: significa que o chefe não perdeu a dignidade de chefe mas que, ao mesmo tempo, não os ofendeu; assim, estará tudo bem.

— De certeza que te deram uma boa lição por causa disso! — observou Kobílin calmamente.

— Humm. Foi uma boa lição, sim senhor. Alei, dá cá a tesoura. Por que não há casino hoje?

— Ontem gastaram tudo na bebedeira — respondeu Vássia. — Quando não, haveria com certeza.

— Quando não! Para o «quando não», mesmo em Moscovo cem rublos dão — observou Lutchka.

— Lutchka, quantas apanhaste por tudo? — voltou Kobílin a falar.

— Querido amigo, paguei cento e cinco. E digo-vos uma coisa, irmãos: iam-me matando — replicou Lutchka, dirigindo-se de novo a toda a companhia. — E a história dessas cento e cinco foi assim: levaram-me com todas as cerimónias. Antes disso, nunca tinha provado o chicote. Apinhou-se ali um mar de gente, a cidade em peso, a ver como iam castigar o bandido, o assassino. Este povo é tão estupidozinho, nem tenho palavras. O algoz despiu-me, deitou-me e toca de gritar: «Aguenta-te, olha que eu queimo!» E eu à espera... Deu-me a primeira: eu queria gritar, abri a boca, mas não saiu nada. Deu-me a segunda: acrediteis ou não, já não ouvi a contarem o dois. Quando voltei a mim, ouvi: dezassete. Depois tiraram-me quatro vezes do cavalete, descansava meia hora de cada vez: derramavam-me água por cima. Eu olhava para todos com os olhos esbugalhados e pensava: «Morro aqui mesmo...»

— Mas não morreste? — perguntou Kobílin ingenuamente.

Lutchka mediu-o com um olhar desdenhoso; ouviram-se risos.

— Estúpido como um portão!

— Não está bem do sótão — observou Lutchka, como que arrependido por ter estado a falar com um homem daqueles.

— Não tem os miolos em ordem — concluiu Vássia.

Lutchka matara seis pessoas, mas na prisão ninguém tinha medo dele, embora ele talvez desejasse muito ter fama de terrível...


9

Issai Fomitch. Banhos. A história de Baklúchin

Chegou a festa do Natal. Os reclusos esperavam-na com tanta solenidade que eu, olhando para eles, também estava à espera de alguma coisa extraordinária. Quatro dias antes do Natal, levaram-nos aos banhos. No meu tempo, sobretudo nos meus primeiros anos de forte, era raro levarem os reclusos aos banhos. Então, toda a gente andava contente, começaram os preparativos. Foi marcada uma hora depois do almoço, pelo que já não haveria mais trabalho. Na nossa caserna, o mais animado e azafamado de todos era Issai Fomitch Bumstein, recluso judeu, que já mencionei no capítulo 4 da minha narração. Gostava de gozar os banhos de vapor até ao embrutecimento, até perder os sentidos, e de cada vez que agora me acontece, recordando o passado, pensar nos nossos banhos prisionais (que vale a pena não esquecer), vem-me logo a primeiro plano o rosto do bem-aventurado e inesquecível Issai Fomitch, meu companheiro de presídio e de caserna. Meu Deus, que homem cómico ele era! Já disse alguma coisa da sua figura: uns cinquenta anos, mirrado, encarquilhado, com as marcas horríveis do ferro nas faces e na testa, magrinho, fraquinho, com o corpo branco de um pintainho. A expressão do seu rosto era de constante e inabalável autossatisfação, e até de prazer. Parecia não lamentar absolutamente nada ter ido parar aos trabalhos forçados. Como era ourives, e não havia nenhum na cidade, não lhe faltava trabalho de joalheiro para os senhores e para as autoridades da cidade. Pouco que fosse, pagavam-lhe. Não era, pois, um necessitado, lá dentro era mesmo abastado, mas ainda assim ia acumulando dinheiro e emprestava-o a juros ou sob penhor a toda a prisão. Tinha o seu próprio samovar, um bom colchão; chávenas, um serviço completo de almoço. Os judeus locais não o deixavam sem a sua proteção e amizade. Aos sábados ia sob escolta à sinagoga da cidade (o que a lei autoriza) e vivia a melhor das vidas, esperando com impaciência o fim da sua pena de doze anos para se casar. Havia nele a mais cómica salgalhada de estupidez, ingenuidade, astúcia, ousadia, simplicidade, timidez, fanfarronice e descaramento. A mim parecia estranho que os reclusos não o escarnecessem, só brincassem um pouco com ele, por divertimento. Issai Fomitch, pelos vistos, tinha o dom de servir para o divertimento geral. «Ele é único cá dentro, não façais mal ao Issai Fomitch», diziam os reclusos, e Issai Fomitch, embora compreendesse do que se tratava, orgulhava-se do papel importante que lhe tinham designado, o que divertia enormemente os presos. O momento da sua chegada ao forte foi uma comédia (foi antes do meu tempo, mas contaram-me a história). Estava-se nas horas de folga e, de repente, correu o rumor de que tinham trazido um judeu, que lhe estavam a rapar a cabeça na casa da guarda e que devia estar a entrar no forte de um momento para o outro. Nessa altura ainda nunca tinha havido qualquer judeu nesta prisão. Os reclusos esperavam-no com impaciência e, mal ele passou o portão, rodearam-no. O sargento levou-o até à caserna dos presos de direito comum e indicou-lhe um lugar nos catres. Issai Fomitch tinha nas mãos a trouxa com os objetos prisionais que lhe haviam sido entregues e, também, as suas próprias coisas. Pousou tudo, meteu-se no catre e sentou-se em cima das pernas cruzadas sem se atrever a erguer os olhos. À volta dele ouviam-se os risos e as chalaças prisionais sobre a sua origem judaica. Subitamente, furou através da multidão um jovem recluso, levando nas mãos as suas calças de verão, muito velhas, sujas e rotas, e mais as faixas regulamentares para os pés. Sentou-se ao lado de Issai Fomitch e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Pois é, caro amigo, já vai no sexto ano que estou à tua espera. Quanto dás por isto?

E colocou os farrapos diante dele.

Issai Fomitch, que, de tão intimidado que estava, entrara na caserna sem mesmo ousar levantar os olhos para aquela multidão de rostos irónicos, desfigurados e assustadores que se apertavam à volta dele, quando viu o penhor animou-se e começou a apalpar os farrapos. Chegou mesmo a examiná-los contra a luz. Toda a gente estava à espera do que sairia dali.

— Então? Acho que não me vais dar um rublo de prata, embora o valha! — continuou o penhorante, piscando o olho a Issai Fomitch.

— Um rublo de prata não, mas sete copeques pode ser.

Foram as primeiras palavras pronunciadas por Issai Fomitch na prisão. Toda a gente se escaqueirou de riso.

— Sete! Vá lá, ao menos dá sete, é de aproveitar! Vê lá se guardas bem o penhor, respondes por ele com a cabeça.

— Com três copeques de juros, faz dez copeques de dívida — continuou o prestamista numa voz entrecortada e tremente, metendo a mão no bolso à procura do dinheiro e lançando olhares assustados aos circunstantes. Acobardava-se muito mas, ao mesmo tempo, queria fazer o negócio.

— Três copeques de juros ao ano?

— Não é ao ano, é ao mês.

— És um forreta, judeu. Como te chamas?

— Issai Fomitch.

— Pois bem, Issai Fomitch, tu cá dentro vais longe! Adeus.

Issai Fomitch voltou a examinar o penhor, dobrou-o e meteu-o com cuidado no seu saco, acompanhado pelo riso ininterrupto dos presos.

De facto, toda a gente parecia gostar dele e ninguém o ofendia, embora quase todos estivessem em dívida com ele. Ele próprio era complacente como uma galinha e, vendo a simpatia geral de que era alvo, até já bazofiava, mas com um ar tão ingenuamente cómico que lhe perdoavam a bazófia com prontidão. Lutchka, que conhecera na sua vida muitos judeus, era o que mais gozava com ele, não por maldade, mas por simples divertimento, como quem brinca com um cãozinho, com um papagaio, com bichos amestrados. Issai Fomitch sabia-o muito bem, não se ofendia minimamente e replicava com piadas hábeis.

— Eh, judeu, olha que eu bato-te!

— Bates-me uma vez, eu bato-te dez — respondeu Issai Fomitch com bravura.

— Maldito tinhoso!

— Que eu seja tinhoso!

— Judio tinhoso!

— Que seja. Tinhoso mas rico, tenho dinheiro.

— Vendeste Cristo.

— Como queiras.

— Boa, Issai Fomitch, lindo rapaz! Não toqueis nele, é único aqui! — gritavam os reclusos por entre gargalhadas.

— Eh, judeu, provas o chicote, vais para a Sibéria.

— Já estou na Sibéria.

— Mandam-te ainda para mais longe.

— Como é, lá também há o pan20 Deus?

— Haver, há.

— Então está bem; quando há pan Deus e dinheiro, é bom por todo o lado.

— Boa, Issai Fomitch, bravo rapaz! — gritam à volta, e Issai Fomitch, embora perceba que estão a gozar com ele, não desanima, vê-se que os louvores lhe dão prazer; começa a cantar muito alto, num tiple fininho: «Lá-lá-lá-lá-lá!» — uma melodia ridícula e desajeitada, a única canção, sem letra, que cantava durante todo o seu tempo de prisão. Mais tarde, quando me conheceu melhor, quis convencer-me, jurando a pés juntos, de que aquela era a mesma melodia e a mesma canção que cantavam todos os seiscentos mil judeus de todas as idades quando atravessavam o mar Vermelho, e que fora prescrito a cada judeu cantar essa música nos momentos de triunfo e vitória sobre os inimigos.

Antes de cada sábado, precisamente na quinta-feira à noite, ia gente de todas as casernas, propositadamente, para ver Issai Fomitch começar a celebrar o seu sabat. Era tão ingenuamente jactancioso e vaidoso que também essa curiosidade geral lhe dava prazer. Com uma solenidade pedante e teatral, cobria com uma toalha a mesinha minúscula que tinha a um canto, abria o livro, acendia duas velas e, murmurando umas quaisquer palavras sagradas, começava a paramentar-se. Vestia uma capa multicor de lã que guardava religiosamente no seu baú. Envolvia ambos os pulsos com umas faixas e, com uma ligadura, prendia à cabeça uma caixinha de madeira, parecendo então que crescia na testa de Issai Fomitch um corno ridículo. Depois, começava a oração. Lia-a numa voz cantada, soltava gritinhos, cuspinhava, virava a cabeça, fazia uns gestos cómicos e malucos. É claro que tudo isso é previsto pelo ritual e nada tem de grotesco ou ridículo, mas a graça residia em Issai Fomitch exibir os seus ritos e se pavonear, de propósito, à nossa frente. De repente cobria a cabeça com as mãos e começava a ler aos soluços. As lamentações aumentavam, e então, extenuado e num choro que era quase um uivo, reclinava para o livro a sua cabeça coroada com a «arca»; mas depois, por entre tão lamentoso pranto, começava a rir e a murmurar qualquer coisa numa voz cantada, enternecidamente solene, enfraquecida pelo excesso de felicidade. «Olha só para o transe do homem!», diziam os reclusos. Perguntei uma vez a Issai Fomitch o que significava aquele choro e, depois, aquelas passagens súbitas e solenes para a felicidade e a beatitude. Issai Fomitch adorava essas minhas perguntas. Explicou-me imediatamente que o choro e os soluços significavam o pensamento sobre a perda de Jerusalém e que a lei mandava que, sob esse pensamento, a pessoa devia chorar o mais possível e bater com a mão no peito. Mas que, no momento mais forte do pranto, ele, Issai Fomitch, tinha de se lembrar de repente (também este de repente constava da lei), como sem querer, de que também estava escrita na lei a profecia sobre o regresso dos judeus a Jerusalém. Então, tinha de expandir-se imediatamente em alegria, em cânticos, em risos, e pronunciar as orações de modo a que a voz exprimisse a maior felicidade possível e o rosto a maior solenidade e nobreza. Essa passagem repentina e a obrigatoriedade de tal passagem agradavam muito a Issai Fomitch: via nisso um truque especial, sofisticado e era com laivos de jactância que me contava esta esmerada regra da lei. Uma vez, no auge da oração, entrou na caserna o nosso major, acompanhado pelo oficial da guarda e pelos soldados da escolta. Todos os presos se retesaram junto aos catres, só Issai Fomitch redobrou de trejeitos e se pôs a gritar ainda mais. Sabia que era permitido rezar, que não se podia interromper a oração e que, ao gritar assim diante do major, não arriscava nada. Além disso, dava-lhe gozo requebrar-se diante do major e exibir-se para nós. O major aproximou-se dele até à distância de um passo: Issai Fomitch virou-se de costas para a sua mesinha e começou, na cara do major, a leitura cantada da sua profecia solene, abanando as mãos. Como lhe estava prescrito, naquele instante, exprimir na cara a máxima felicidade e nobreza, assim fez, franzindo os olhos de modo especial, rindo e acenando com a cabeça na direção do major. O major surpreendeu-se, mas acabou por soltar uma risada, por lhe chamar parvo e por se ir embora, tendo Issai Fomitch intensificado ainda mais os seus gritos. Uma hora passada, quando Issai Fomitch jantava, perguntei-lhe: e se o major, por estupidez, se zangasse consigo?

— Qual major?

— Como? Será que não o viu?

— Não vi.

— Mas ele estava a um côvado do senhor, mesmo à frente da sua cara.

Issai Fomitch, então, tentou convencer-me, muito sério, de que não vira major nenhum, que durante as orações entrava em transe e não via nem ouvia nada do que se passava à sua volta.

Vejo como se fosse ao vivo o Issai Fomitch quando ele, aos sábados, vagueava de braços cruzados por toda a prisão, tentando a todo o custo não fazer nada, como está prescrito na lei no referente aos sábados. Que anedotas incríveis me contava de cada vez que voltava da sua sinagoga! Que notícias e boatos de Petersburgo, sem pés nem cabeça, ele me trazia, assegurando que os ouvira da boca dos judeus e que estes, por sua vez, os tinham em primeira mão, diretamente da fonte.

Aliás, já divaguei demais sobre Issai Fomitch.

Em toda a cidade, havia só duas saunas públicas. A primeira, que pertencia a um judeu, tinha compartimentos individuais, ao preço de cinquenta copeques por compartimento, e destinava-se às pessoas importantes. A outra era para o povo simples, decrépita, imunda, apertada — foi a estes banhos que levaram a nossa prisão. Estava um dia frio e ensolarado, e os reclusos iam contentes, também por saírem do forte e verem a cidade. Pelo caminho, não paravam de rir e dizer piadas. Éramos escoltados por um pelotão inteiro de soldados, de espingardas carregadas, o que impressionava os citadinos. Nos banhos, dividiram-nos em dois grupos: o segundo esperava na antecâmara fria enquanto o primeiro se lavava — tinha de ser assim, porque a sauna era muito acanhada. Mesmo assim, era difícil imaginar como podia caber lá dentro metade dos nossos reclusos. Petrov não me largava; sem qualquer pedido da minha parte, apressou-se a oferecer-me a sua ajuda e sugeriu, mesmo, lavar-me. Juntamente com Petrov, ofereceu-me os seus serviços o recluso Baklúchin, da secção especial, o mesmo que na prisão era chamado de batedor e de quem já falei algures como sendo um homem alegre e simpaticíssimo, o que é mesmo verdade. Já nos conhecíamos um pouco. Pois o Petrov ajudou-me até a despir, porque, por falta de hábito, eu estava a demorar muito a tirar a roupa, e na antecâmara estava frio, quase como na rua. A propósito: é muito difícil para um recluso despir-se se ainda não tiver prática. Em primeiro lugar, é preciso desapertar rapidamente os entreforros das grilhetas. São feitos de couro, com perto de sete polegadas de largo e são postos por cima das ceroulas e por baixo do anel de ferro que cinge o tornozelo. Um par de entreforros custa não menos do que setenta copeques de prata, e cada recluso tem de os arranjar por sua conta, porque é impossível andar sem eles. O anel das grilhetas não aperta a perna, de maneira que entre o anel e a perna há um dedo de folga; assim, o ferro raspa na perna, fricciona-a e, só num dia, um recluso sem entreforros fica cheio de feridas. Aliás, tirar os entreforros não é muito difícil. O mais difícil é tirar a roupa interior por debaixo das grilhetas. É um verdadeiro truque de magia. Para tirarmos as ceroulas, da perna esquerda, digamos, temos de, primeiro, as passar entre a perna e o anel; depois, ao libertarmos o pé, enfiamos as ceroulas no sentido contrário, através do mesmo anel; depois, com a perna esquerda já toda tirada, mete-se por trás do anel direito para baixo e no sentido contrário. A mesma história quando se veste roupa nova. A um novato até custa a perceber como isso se faz; o primeiro a ensinar-nos esta arte, em Tobolsk, foi o recluso Kórenev, antigo cabecilha de um bando que passara cinco anos acorrentado. Os reclusos calejados, porém, não têm problemas para vestirem e despirem a roupa. Dei ao Petrov alguns copeques para comprar o sabão e a bucha; é verdade que davam aos reclusos o sabão regulamentar, um bocadinho a cada um, da largura de dois copeques e da grossura da fatia de queijo que é servida como entrada à gente «média». O sabão era vendido na antecâmara, juntamente com o sbíten21, os kalatches e a água quente. Cada recluso recebia, por acordo da prisão com o dono dos banhos, apenas um alguidar de água quente; quem quisesse lavar-se melhor, podia comprar por um tostão mais um alguidar, que era passado para o compartimento dos banhos por uma janelinha. Depois de me despir, Petrov levou-me pelo braço e observou que me era muito difícil andar com as grilhetas. «Levante-as com a mão, até às panturrilhas — dizia-me, segurando-me como uma ama-seca segura a criança —, tenha cuidado, há aqui um degrau.» Eu até sentia alguma vergonha; queria explicar a Petrov que poderia ir sozinho, mas ele nunca iria acreditar. Tratava-me como a uma criança, a um menor inepto que cada qual tem a obrigação de ajudar. Petrov não era lacaio, longe disso: se eu o ofendesse, saberia tratar-me da saúde. Não lhe prometi dinheiro pelos serviços, nem ele próprio me pediu nada. O que o levaria então a cuidar de mim?

Quando abrimos a porta do compartimento de banhos, parecia que tínhamos entrado no inferno. Imaginem um recinto de doze passos por doze, em que talvez se apinhassem cem pessoas, ou pelo menos oitenta, já que os reclusos tinham sido divididos em dois grupos e nós éramos duzentos ao todo. O vapor que não deixava ver nada, a fuligem, a imundície, o aperto tal que não havia onde pôr um pé. Assustei-me e quis voltar para trás, mas Petrov animou-me. A grande custo, chegámos até aos bancos, passando por cima das cabeças de pessoas sentadas no chão, tendo de lhes pedir que se inclinassem para podermos passar. Os lugares nos bancos, porém, estavam todos ocupados. Petrov declarou-me que era preciso comprar um lugar, e entrou de imediato em negociações com um recluso que se acomodara ao lado da janela. Por um copeque, este cedeu o lugar, que Petrov pagou a pronto, tendo-se já precavido com o dinheiro cerrado no punho; o recluso meteu-se debaixo do meu lugar, sob o banco, onde estava escuro, sujo, onde a humidade pegajosa cobria tudo a uma altura de quase meia polegada. Todos os lugares debaixo dos bancos estavam também ocupados; também lá se remexia gente. Não havia em todo o chão um palmo de espaço onde não estivesse alguém sentado, vendo-se os dorsos dos reclusos que vertiam por cima deles a água dos seus alguidares. Outros estavam no meio deles, de pé e, segurando os alguidares, lavavam-se; a água suja corria dos corpos deles para as cabeças rapadas dos que estavam sentados. Na prateleira, e em todas as saliências que levavam até ela, estavam pessoas dobradas e curvadas. Mas lavavam-se pouco. O povo simples lava-se pouco com água e sabão; apenas toma banhos de vapor estupidamente quentes e depois enxagua-se com água fria — é nisso que consiste o banho russo. Na prateleira erguiam-se e baixavam-se alguns cinquenta feixes de ramos: os homens fustigavam-se até à embriaguez. A cada minuto, aumentavam o vapor. Já não estava quente, era o inferno. E toda aquela mole a gritar e a rir às gargalhadas, ao som de cem grilhetas arrastadas pelo chão... Alguns, ao tentarem passar, emaranhavam-se em grilhetas alheias, batiam nas cabeças dos sentados, caíam, praguejavam, faziam os outros cair. A sujidade escorria de todos os lados. Todos se achavam num estado de espírito ébrio, excitado; ouviam-se guinchos e gritos. Junto à janelinha por onde passavam a água para dentro, era um aperto, só pragas, ia havendo uma rixa. A água quente que entrava pela janela derramava-se nas cabeças dos sentados no chão antes de chegar ao seu lugar. De vez em quando assomava-se à janelinha ou à porta entreaberta a cara bigoduda de algum soldado a espreitar se não havia desordens. As cabeças rapadas e os corpos vermelhos do vapor escaldante pareciam ainda mais monstruosos. Nas costas escaldadas pelo vapor sobressaem normalmente com mais nitidez as cicatrizes das chicotadas e das pauladas recebidas outrora, pelo que ali todas as costas pareciam de novo em ferida. Cicatrizes terríveis! Senti arrepios só de olhar para elas. Vertiam mais água em cima das pedras encandecidas — e o vapor cobria toda a sauna de uma nuvem espessa e quentíssima; todos gritam, riem. No meio da nuvem relanceiam costas feridas, cabeças rapadas, braços e pernas tortos e, cúmulo dos cúmulos, no patamar mais alto, o mais quente, Issai Fomitch ri às gargalhadas. Este homem toma o banho de vapor até perder os sentidos, mas parece que nenhum calor consegue saciá-lo; por um copeque, recruta um homem para o fustigar com os ramos, mas este não aguenta muito tempo e depressa larga os ramos e corre a arrefecer-se com água fria. Issai Fomitch não desanima e contrata outro homem, já o terceiro; para esta ocasião, está pronto para todas as despesas e já mudou cinco vezes de banheiros. «Bravo, Issai Fomitch!» — gritam-lhe os reclusos de baixo. Issai Fomitch sente que, neste momento, é superior a todos, levou a palma a todos; rejubila e, com uma voz ríspida e maluca, grita a sua ária: lá-lá-lá-lá-lá, superando todas as vozes. Passou-me pela cabeça que, se alguma vez estivéssemos todos juntos no inferno, seria muito parecido com este lugar. Não me contive e disse ao Petrov o que acabara de pensar; este olhou à volta e não respondeu.

Quis comprar um lugar para ele no banco, ao meu lado, mas Petrov sentou-se aos meus pés e disse que lhe dava mais jeito assim. Entretanto, Baklúchin comprava-nos a água e ia-a trazendo à medida das necessidades. Petrov disse que me daria um banho completo, da cabeça aos pés, para «ficar limpinho», e convidava-me com insistência para tomar banho de vapor. Não me arrisquei a isso. Petrov ensaboou-me todo. «Agora, lavo-lhe os pezinhos», disse no fim. Já queria dizer-lhe que podia lavá-los sozinho mas, incapaz de o contrariar, entreguei-me à vontade dele. No diminutivo «pezinhos» não havia qualquer nota servil; simplesmente, Petrov não podia chamar-lhes «pés» porque, pelos vistos, os outros, as verdadeiras pessoas, tinham «pés» e eu apenas «pezinhos».

Depois de me dar banho, Petrov, com as mesmas cerimónias, isto é, apoiando-me e prevenindo-me a cada passo, como se eu fosse de porcelana, levou-me para a antecâmara e ajudou-me a vestir; só quando deu por terminado este serviço se precipitou para a sauna, para tomar o seu banho de vapor.

Quando voltámos a casa, ofereci-lhe um copo de chá. Não recusou, tomou o chá e agradeceu. Lembrei-me de o regalar com meio quartilho de vodka. Logo se encontrou também a vodka na nossa caserna. Petrov ficou contentíssimo, bebeu, grasnou de prazer e, declarando que eu o tinha animado muito, dirigiu-se apressadamente para a cozinha, como se, sem ele, não conseguissem resolver lá um qualquer problema. Para o substituir, veio ter comigo outro interlocutor, Baklúchin, o batedor, a quem eu tinha convidado, ainda na sauna, para tomar chá comigo.

Não conheço ninguém com feitio mais simpático do que este Baklúchin. A verdade é que não era homem que se deixasse ofender impunemente, chegava mesmo a entrar em conflito com os outros, não gostava que se metessem nos assuntos dele — resumindo, sabia defender-se. Mas não guardava rancor e, parece-me, toda a nossa gente gostava dele. Entrasse onde entrasse, recebiam-no com agrado. Era conhecido, mesmo na cidade, como o tipo mais engraçado do mundo, o homem que nunca perdia a alegria. Era um rapaz alto, dos seus trinta anos, um ar garboso na cara ingénua e bastante bonita, com uma verruga na bochecha. Às vezes fazia caretas tão cómicas, imitando toda a gente, que ninguém conseguia conter o riso. Era também da categoria dos brincalhões, mas não dava trela aos nossos resmungões, inimigos do riso, por isso ninguém se atrevia a censurá-lo com o ferrete de «homem vazio e inútil». Ardoroso, cheio de vida. Travámos conhecimento logo nos meus primeiros dias, tendo-me ele dito que andara na escola dos filhos dos soldados, que servira depois como batedor, tendo mesmo sido destacado e favorecido por algumas personalidades, com o que não deixava de orgulhar-se. Desde logo, começou a bombardear-me com perguntas sobre Petersburgo. Até lia livros. Quando apareceu para tomar chá, logo à entrada fez rir toda a caserna ao contar como o tenente Ch..., nessa manhã, tinha afrontado o major; depois sentou-se ao meu lado e disse-me, todo contente, que ia haver realmente teatro, ao que parecia. Nas quadras festivas organizava-se um teatro na prisão. Os que queriam ser atores ofereciam-se, ia-se fabricando o cenário a pouco e pouco. Alguns citadinos já tinham prometido dar os trajes para os atores, mesmo para os papéis femininos; havia, inclusive, a esperança de arranjar, por intermédio de uma ordenança, um fardamento de oficial com agulhetas. O único receio era de que o major proibisse o teatro, como fizera no ano anterior. No outro ano, porém, sucedera que o major estava mal-humorado: tinha perdido muito dinheiro ao jogo e, além disso, havia desordens na prisão; então, proibiu o teatro por raiva, mas talvez fosse mais benevolente este ano. Numa palavra, Baklúchin andava entusiasmado. Via-se que era um dos principais impulsionadores do teatro; jurei logo ali a mim mesmo que iria assistir ao espetáculo. Agradava-me aquela alegria ingénua de Baklúchin por causa do teatro. Palavra puxa palavra, a conversa compôs-se. Disse-me, a propósito, que nem sempre servira em Petersburgo, que cometera lá uma infração qualquer e fora transferido para a cidade de R..., como sargento, para um batalhão de guarnição.

— Foi de lá que me deportaram para aqui — observou Baklúchin.

— Qual foi a razão? — perguntei.

— A razão? Qual acha que foi a razão, Aleksandr Petróvitch? Foi apaixonar-me!

— Não se manda ninguém para a prisão por causa disso — objetei, rindo.

— Mas também é verdade — acrescentou Baklúchin — que no meio dessa história matei a tiro um alemão lá do sítio. Mas será que um alemão vale tanto que, por ele, seja deportada uma pessoa?

— Mas como foi? Conte lá, é curioso.

— Uma história muito cómica, Aleksandr Petróvitch.

— Ainda melhor. Conte.

— Acha? Então está bem, oiça...

Ouvi então a história de um assassínio que, embora nada tivesse de cómica, era bastante curiosa...

— Tudo se passou então assim — começou Baklúchin. — Mandaram-me para R... e vi logo que a cidade era boa, grande, só que tinha muitos alemães. E eu, ainda jovem, tido em boa conta pelos chefes, lá passava o tempo da melhor maneira, todo contente. Catrapiscava o olho às alemãs. Então, fiquei caído por uma alemã, a Luísa. Ela e a tia eram engomadeiras, tratavam da roupa mais fina. A tia era velha, uma pavoa, e as duas viviam na abastança. Primeiro, comecei por me passear debaixo das janelas, depois travei amizade verdadeira com as senhoras. A Luísa falava bem russo, tinha apenas uns erres um pouco guturais, e era tão querida, nunca tinha encontrado rapariga como ela. Comecei por tentar... mas disse-me ela: «Não, Sacha, nem penses nisso, porque eu quero guardar toda a minha inocência para ser uma esposa digna de ti», e fazia-me carinhos, ria-se... e o riso dela era tão sonoro... e tão asseadinha, nunca dantes tinha visto ninguém como ela. Foi ela própria quem me convenceu a casar. Como podia recusar? Pensava já em apresentar a solicitação para o casamento ao tenente-coronel... De repente, a Luísa deixou de aparecer aos encontros: uma vez, duas vezes, três... Mandei-lhe uma carta, não me respondeu. O que se estará a passar?, pensei eu. Ou seja, se andasse a enganar-me, usaria de manhas, responderia às cartas, iria aos encontros. Mas a Luísa nem sequer soube mentir, cortou e acabou-se. É a tia, pensei. Mas eu não me atrevia a ir falar com a tia: embora ela estivesse ao corrente do namoro, fazíamos tudo às escondidas. Eu andava como um doido e resolvi escrever-lhe a última carta: «Se não apareceres, eu próprio vou ter com a tua tia.» Assustou-se e apareceu. A chorar: que um alemão, Schulz, parente afastado delas, relojoeiro rico e já de idade, mostrara desejo de se casar com ela; «para me fazer feliz», dizia ela, «e para ele próprio não ficar sem esposa na velhice; além disso gosta de mim e já há muito que tem essa intenção, só que nunca se tinha declarado. Pois é, Sacha, ele é rico, o que é uma grande felicidade para mim; será que queres privar-me da minha felicidade?». E chorava, abraçada a mim. Eh, pensei eu, o que ela diz é razoável! Que sentido tem casar-se com um soldado, ou mesmo com um sargento? «Adeus, Luísa», disse-lhe eu, «fica com Deus; não posso privar-te da tua felicidade. E como é ele? É bem-apessoado?» «Não», disse ela, «é velho, tem um nariz comprido...» Até se riu. Eu fui-me embora, a pensar: o destino assim não quis! Na manhã seguinte passei pela loja dele, a Luísa tinha-me dito o nome da rua. Olhei pelo vidro: lá estava um alemão sentado às voltas com um relógio, dos seus quarenta e cinco anos, nariz de águia, os olhos esbugalhados, de casaca e colarinho alto, enfim, um alemão imponente. Até cuspi, já me apetecia partir-lhe a montra... mas, pensei, para quê? O que se perdeu, perdido está! Ao anoitecer voltei para a caserna, deitei-me e, de repente — nem vai acreditar, Aleksandr Petróvitch —, chorei...

Assim se passou um dia, outro dia, um terceiro... sem eu voltar a ver a Luísa. Entretanto, ouvi de uma comadre (uma velha, também lavadeira, que a Luísa visitava às vezes) que o alemão sabia do nosso amor e que tinha sido por isso que tivera tanta pressa em pedi-la em casamento; de outro modo, ainda esperaria mais dois anos; e que tinha obrigado a Luísa a jurar-lhe que não me veria mais; e que por ora não lhes dava nada, à tia e à Luísa, porque ainda não sabia se mudaria de ideias, ainda não decidira em definitivo se se casaria. Essa senhora disse-me também que a Luísa e a tia estavam convidadas para, no dia seguinte, irem tomar café de manhã a casa do alemão, onde estaria também mais um parente dele, ex-comerciante que caíra na miséria e era guarda numa cave qualquer. Quando soube que, nesse domingo, talvez se decidisse tudo, fiquei tão furioso que deixei de me controlar. Durante todo esse dia e no dia seguinte não pensava noutra coisa. Apetecia-me dar cabo desse alemão.

Nesse domingo de manhã ainda não pensara no que iria fazer, mas à hora do fim da missa, mais ou menos, levantei-me, vesti-me, pus o capote e fui direito a casa do alemão. Pensava apanhá-los lá a todos. Por que fui a casa do alemão, o que queria lá fazer, isso eu próprio não sei, mas, para o que desse e viesse, meti a pistola no bolso. Eu tinha essa arma, que não prestava para nada, com um gatilho de modelo antigo, e lembro-me de disparar com ela quando era miúdo. Na altura, porém, já nem dava para atirar. Pelo sim pelo não, meti-lhe uma bala no carregador: se lhes desse para me expulsarem, ou para me insultarem, pensava eu, saco da pistola e assusto-os. Cheguei. Na oficina não estava ninguém, estavam todos na sala do fundo. Além deles, não se via ninguém pela casa, nenhuma criadagem. Aliás, o homem só tinha uma criada, uma alemã, que fazia também de cozinheira. Atravessei a loja e vi que a porta que dava para dentro estava fechada; mas era uma porta velha, que fechava só com gancho. O coração batia-me; parei, pus-me à escuta: falavam em alemão. Dei um pontapé na porta, abriu-se à primeira. Vi uma mesa posta. Sobre a mesa, fervia uma cafeteira num fogareiro a álcool. Bolachas, um jarro de vodka, arenque, chouriço e, numa bandeja, uma garrafa de um vinho qualquer. Luísa e a tia, ambas muito ataviadas, estavam sentadas no divã. Em frente delas, numa cadeira, o alemão, armado em noivo, penteadinho, de casaca e colarinhos espetados assim para a frente. Ao lado, noutra cadeira, sentava-se outro alemão, já velho, gordo, de cabelos brancos, muito calado. Quando entrei, Luísa empalideceu. A tia deu um salto, mas sentou-se logo; o alemão carregou o sobrolho. Muito zangado, levantou-se e foi ao meu encontro:

«O que deseja o senhor?»

A princípio fiquei confuso, mas depois enraiveci-me.

«O que desejo? Tens uma visita, recebe-a, serve-lhe vodka. Vim fazer-te uma visita.»

O alemão pensou um pouco e disse:

«Sente-se.»

Sentei-me.

«Vá lá, então, dá-me vodka.»

«Aqui está a vodka; beba, por favor.»

«Não — disse-lhe eu —, dá-me vodka, mas da boa.» É que eu estava a ficar cada vez mais furioso.

«Esta vodka é boa.»

Fiquei ressentido por ele ter o ar de quem me achava inferior. Ainda por cima, a Luísa estava a olhar. Bebi um copo e disse:

«Mas por que estás a ser tão mal-educado comigo, hã, alemão de uma figa? Sê amigável comigo. Vim cá como amigo.»

«Não posso ser seu amigo: o senhor é um simples soldado.»

Aí, perdi as estribeiras.

«Seu espantalho, salsicheiro! Sabias que, agora, posso fazer de ti o que quiser? Queres que te mate a tiro?»

Saquei a pistola, pus-me à frente dele e encostei-lhe o cano à cabeça. Os outros, meio mortos de medo, nem se atreviam a piar; o velho, esse, tremia como uma folha, calado, todo branco.

O alemão espantou-se, depois caiu em si.

«Não lhe tenho medo — disse —, e peço-lhe, como homem de bem, que se deixe dessas brincadeiras, porque não tenho medo nenhum de si.»

«Oh, mentes — disse eu —, tens medo, tens!»

E tinha, porque estava ali sentado e nem se atrevia a mexer a cabeça.

«Não — disse ele —, o senhor não se atreve a fazê-lo.»

«E por que não me atreveria?»

«Porque isso lhe está rigorosamente proibido e seria castigado com severidade.»

Raios que partissem o parvo do alemão! Se ele não me tivesse exaltado tanto, ainda hoje era vivo. Aconteceu tudo por causa dessa discussão.

«Com que então, achas que eu não me atrevo?»

«N-não!»

«Ai não, não me atrevo?»

«Não, o senhor não se atreverá absolutamente a fazer uma coisa dessas comigo...»

«Então, toma, salsichão gordo!» Disparei e ele rolou da cadeira. Os outros gritaram.

Meti a pistola no bolso e fugi. Quando ia a entrar no forte, deitei a pistola para o meio de umas urtigas ao lado do portão.

Fui para o meu catre, deitei-me, e pensei: não tarda, estão aí a prender-me. Mas passou uma hora, duas — e nada. Mais para o anoitecer dominou-me uma tal angústia que saí: queria ver Luísa sem falta. Passei ao lado da relojoaria: estava lá uma chusma de gente e a polícia. Fui ter com a tal comadre e disse-lhe: chama-me a Luísa! Esperei um bocadinho e lá veio a Luísa a correr. Atirou-se-me ao pescoço a chorar: «É tudo culpa minha, porque dei ouvidos à minha tia.» Disse-me também que a tia, depois do sucedido, voltou para casa e ficou com tanto medo que adoeceu. Não abriu a boca e, não só não disse nada a ninguém, como proibiu a Luísa de o fazer, tal o medo dela; que fizessem como bem entendessem, disse ela. «Ninguém nos viu — disse Luísa. — Ele tinha mandado embora a criada porque tinha medo dela. A criada seria capaz de lhe arrancar os olhos se soubesse que o amo queria casar-se. Dos oficiais e aprendizes da relojoaria também não havia ninguém: tinha-os mandado sair a todos. Foi ele próprio quem fez o café e preparou os petiscos. Quanto ao parente, já antes era calado, toda a vida dele. Quando aconteceu aquilo não disse nada, pegou no chapéu e foi o primeiro a ir-se embora. Esse, de certeza absoluta, também vai ficar calado.» Era verdade. Durante duas semanas ninguém me foi prender, ninguém suspeitou de mim. Durante essas duas semanas, Aleksandr Petróvitch, pode não acreditar, mas experimentei toda a felicidade do mundo. Estava todos os dias com a minha Luísa. E como ela se afeiçoou a mim! Chorava: «Vou atrás de ti para onde te mandarem, abandono tudo por ti!» E já queria pôr termo à minha vida, tanto ela me quebrou e tanta pena me dava. Pois, mas passadas duas semanas fui preso. O velho e a tia combinaram entre si e denunciaram-me...

— Mas, espere lá — interrompi-o eu —, por isso podiam condená-lo a dez ou doze anos, ou mesmo à pena máxima, mas está na secção especial. Como é isso possível?

— É que aconteceu mais uma coisa — disse Baklúchin. — Quando compareci em tribunal, o meu capitão resolveu insultar-me com palavras obscenas. Não aguentei e disse-lhe: «Por que praguejas? Não vês que estás diante do espelho da justiça22, canalha?» Isso mudou tudo: passaram a encarar o julgamento de outra maneira e condenaram-me por tudo junto: quatro mil vergastadas e secção especial. Ao castigarem-me, castigaram também o capitão: foi despromovido e mandado para o Cáucaso como soldado raso. Até logo, Aleksandr Petróvitch. Vá ao nosso espetáculo.

20 Senhor em polaco. (NT )

21 Antiga bebida quente com mel e especiarias. (NT )

22 Trata-se de um emblema da justiça: um prisma triangular de vidro, coroado pela águia bicéfala, com os decretos de Pedro, o Grande, colados nas suas faces. Era obrigatório nos tribunais e noutras repartições públicas. (NT )


10

A festa de Natal

Chegou finalmente o Natal. Já na véspera de Natal quase não iam reclusos para os trabalhos. Apenas os reclusos das alfaiatarias e oficinas trabalhavam. Os restantes, embora fossem mandados para um ou outro trabalho, depressa voltavam à prisão e, depois do almoço, já ninguém saiu. Já de manhã, a maioria dos que tinham saído fizera-o para tratar dos seus assuntos pessoais, e não para trabalhar: uns, para organizar o tráfico da vodka, para encomendar ainda mais; outros, para verem os compadres e as comadres conhecidos, ou para cobrarem dívidas de trabalhos que já tinham feito havia muito; outros ainda, como Baklúchin e os participantes do espetáculo, para se encontrarem com determinadas pessoas, principalmente entre a criadagem dos oficiais, a fim de arranjarem os trajes necessários. Alguns andavam com um ar muito atarefado e preocupado apenas porque os outros também assim andavam e, embora não tivessem hipótese de arranjar dinheiro em lado nenhum, nunca perdiam a esperança de lhes cair algum do céu. Em resumo, parecia que toda a gente esperava do dia seguinte uma mudança extraordinária. Ao fim da tarde, os inválidos, que tinham ido fazer compras ao mercado por encomenda dos reclusos, voltaram com todo o género de comida: carne de vaca, leitões, até gansos. Muitos reclusos, mesmo os mais modestos e poupados, que, copeque a copeque, acumularam ao longo do ano uns dinheirinhos, achavam-se na obrigação de puxarem pelos cordões à bolsa num dia como este, para quebrarem o jejum de maneira decente. O dia seguinte ia ser de verdadeira festa, uma festa de que ninguém podia privar os presos, reconhecido como tal pela lei. Nesse dia, o recluso não podia ser mandado trabalhar. Dias assim, eram só três no ano.

Por fim, quantas recordações não surgiriam na memória destes rejeitados durante a celebração do grande dia! Os dias das grandes festas ficam marcados com muita nitidez na memória do homem simples, desde a infância. São dias em que se descansa dos trabalhos duros, dias em que a família se reúne. Tais dias, na prisão, deviam ser recordados com sofrimento e angústia. O respeito pela data solene revestia-se mesmo, entre os reclusos, de um caráter formal e solene: poucos deles se metiam em pândegas, todos andavam muito sérios e como que ocupados, embora muitos não tivessem ocupação nenhuma. Mesmo os folgazões e os ociosos, porém, tentavam manter um ar sério e importante... Como que estavam proibidos os risos. De uma maneira geral, como que pairava nesta quadra um estado de espírito impregnado de escrúpulos e de uma intolerância irritada para quem violasse o tom geral, mesmo sem querer: era logo refreado com berros e insultos; por respeito da própria festa, não deixavam de meter na ordem o infrator. Este estado de ânimo dos reclusos era admirável, até enternecedor. Além da reverência inata para com o grande dia, o recluso sentia inconscientemente que, observando esta festa, como que ficava ligado a todo o mundo, que por um momento deixava de ser um rejeitado, um homem completamente perdido, que era na prisão o mesmo que entre os homens. O recluso sentia-o, o que era notório e compreensível.

Akim Akímitch também se preparava com todo o zelo para a festa. Não tinha recordações familiares, porque crescera como órfão numa casa alheia e, aos quinze anos, já labutava num serviço duro; nem guardava da sua vida memória de alegrias especiais, porque a tinha toda regulamentada e monótona, temendo afastar-se, um cabelo que fosse, das obrigações que lhe eram impostas. Nem era muito religioso, porque a boa conduta, ao que parecia, devorara todos os seus restantes talentos e particularidades, todos os seus desejos e paixões, bons e maus. Assim, preparava-se para o dia solene sem azáfama, sem emoção, sem ser assediado por recordações tristes e de todo inúteis, antes com um decoro sereno e metódico, quanto bastasse para cumprir o ritual obrigatório prescrito de uma vez por todas. No geral, não gostava de pensar muito. Ao que parecia, o significado de um facto não tinha qualquer importância para a sua cabeça, só lhe interessava cumprir as regras, uma vez prescritas, com uma meticulosidade religiosa. Se amanhã lhe mandassem fazer a coisa absolutamente contrária da que fez hoje, fá-la-ia com a mesma submissão e o mesmo zelo. Uma vez na vida, apenas uma, tentou agir de acordo com o seu próprio critério — e foi parar aos trabalhos forçados. Aprendeu bem a lição. Embora não lhe estivesse destinado consciencializar, uma só vez que fosse, em que consistia precisamente a sua culpa, deduzira da sua aventura, em compensação, uma regra salutar: não raciocinar nunca e em circunstâncias nenhumas, porque raciocinar «não era com ele», como diziam entre si os reclusos quando se lhe referiam. Cegamente fiel ao ritual, olhava, inclusive, para o seu leitão festivo — que recheara de papas e assara (porque também sabia cozinhar) — com um respeito preconceituoso, como se não fosse um leitão vulgar, sempre possível de comprar e assar, mas um leitão especial, de festa. Talvez se tenha habituado já na infância a ver, neste dia, o leitão na mesa, e tenha interiorizado de uma vez por todas que o leitão era imprescindível para este dia; tenho a certeza de que, se não comprasse o leitão natalício pelo menos uma vez na vida, sofreria de remorsos por causa do dever não cumprido. Antes da festa, andava de casaco e de calças velhos, embora decorosamente cerzidos, mas gastos até ao fio. Quanto ao casaco e às calças novos que lhe tinham sido entregues quatro meses antes, e ele metera no baú sem nunca mais lhes tocar, tinham sido guardados com a ideia agradável de os estrear solenemente no dia de Natal. Foi o que fez. Ainda de noite, tirou do baú as calças e o casaco novos, examinou-os, limpou-os, soprou neles e, a seguir, experimentou-os. O conjunto ficava-lhe perfeitamente bem: o casaco, muito catita, abotoava de baixo para cima, a gola alta empurrava-lhe o queixo; o casaco apertado na cintura dava-lhe até um ar vagamente militar, fazendo Akim Akímitch sorrir de prazer e menear-se com galhardia diante do espelho minúsculo que, num minuto livre, ele tinha enfeitado com uma orla dourada. Apenas um colchete junto à gola parecia não estar no lugar certo. Quando tal descobriu, Akim Akímitch corrigiu logo o erro: pregou o colchete noutro lugar, voltou a experimentar a fardeta e, agora sim, estava tudo perfeito. Então, voltou a dobrar a roupa cuidadosamente e, com o espírito descansado, arrumou-a até ao dia seguinte no baú. A sua cabeça estava rapada satisfatoriamente; porém, ao examiná-la com mais atenção ao espelho, reparou que não se apresentava totalmente lisa: era só um poucochinho, mas viu que lhe despontavam uns minúsculos rebentos de cabelo; foi imediatamente ao «major» rapar o cabelo, para ficar decente e de acordo com o regulamento. Mesmo sabendo que ninguém lhe iria examinar o crânio no dia de Natal, Akim Akímitch quis rapá-lo para ficar de consciência limpa, para cumprir todas as suas obrigações num dia tão solene. A sua veneração pelos botõezinhos dourados, pelo galão, pela botoeira imprimira-se-lhe na mente e no coração de forma indelével ainda na infância, como uma obrigação incontestável, como a imagem da beleza máxima possível de ser atingida por um homem decente. Depois de cumprir tudo o que tinha a cumprir, Akim Akímitch, como responsável pela caserna, mandou buscar feno e controlou rigorosamente o processo de espalhamento do feno pelo chão. A mesma coisa estava a acontecer nas outras casernas. Não sei porquê, mas na véspera de Natal espalhava-se sempre feno nas casernas. Depois de findos todos os seus labores, Akim Akímitch rezou a Deus, estendeu-se no catre e adormeceu de imediato, com um sono despreocupado de criança, para poder acordar de manhã o mais cedo possível. Do mesmo modo procederam, aliás, todos os reclusos. Em todas as casernas as pessoas se deitaram mais cedo do que o costume: ninguém fez os habituais trabalhos noturnos e, quanto ao «casino», nem pensar. Toda a gente tinha o pensamento na manhã seguinte.

Finalmente, a manhã chegou. Cedo, ainda antes do amanhecer, mal tocou à alvorada, abriram as casernas, e o sargento da guarda, que entrou para contar os reclusos, desejou-lhes um feliz Natal. Retribuíram-lhe as boas-festas com carinho e simpatia. Dizendo apressadamente a oração matinal, Akim Akímitch e outros presos correram para a cozinha, onde tinham os seus gansos e leitões, para ver se tinham sido bem preparados, se estavam a ser bem assados, onde os tinham metido, etc. Através da escuridão, pelas janelinhas pequenas tapadas de neve e gelo, via-se da nossa caserna que, em ambas as cozinhas, já ardia o fogo em todos os seis fogões, acesos ainda antes do amanhecer. Pelo terreiro escuro já andavam os reclusos com as samarras vestidas, ou então lançadas sobre os ombros — toda a gente ia para a cozinha. Alguns, aliás muito poucos, já tinham falado com os «taberneiros». Eram os mais impacientes. No geral, porém, toda a gente se portava com decência, com calma e, sobretudo, alardeava um ar inusitadamente importante. Não se ouviam as pragas nem as discussões habituais. Todos compreendiam que era um grande dia, uma grande festa. Houve quem fosse às outras casernas dar as boas-festas aos companheiros, pairava no ar uma espécie de amizade. Observo aqui, de passagem, que os reclusos quase não faziam amizades — já não falo da amizade geral, o que era impossível —, mas da amizade particular, entre dois reclusos, por exemplo. Quase não existia a amizade na nossa prisão, o que é uma característica curiosa: em liberdade, não é assim. Em geral, os presos tratavam-se uns aos outros de forma seca, insensível, com exceção de alguns casos muito raros; uma vez adotado e estabelecido, o tom era formal. Também saí da caserna. Começava a despontar a manhã, as estrelas iam-se apagando, levantava-se da terra um fino vapor gelado. Das chaminés da cozinha saíam rolos de fumo. Alguns dos reclusos que encontrei pelo caminho, com uma sincera boa vontade e com carinho, desejaram-me um feliz Natal. Eu agradecia-lhes e retribuí-lhes os votos. Entre os que assim me saudavam havia quem tivesse passado um mês inteiro sem me dirigir a palavra.

A dois passos da cozinha, apanhou-me um recluso da caserna militar, com a samarra lançada sobre os ombros. Já a meio do terreiro me tinha reconhecido e gritado: «Aleksandr Petróvitch! Aleksandr Petróvitch!» O sujeito corria, apressado, para a cozinha. Parei e fiquei à espera dele. Era um rapaz novo, de cara redonda, uma expressão de olhos serena, muito insociável com toda a gente; a mim, até àquele momento, nunca me dirigira ainda a palavra nem me prestara qualquer atenção; eu nem sabia sequer como se chamava o rapaz. Aproximou-se de mim, a resfolegar, parou à minha frente, a olhar para mim com um sorriso embotado mas ao mesmo tempo feliz.

— O que quer? — perguntei com algum espanto ao vê-lo diante de mim, sorridente, olhando-me com os olhos arregalados, mas sem começar a conversa.

— Mas, se é festa... — murmurou e, percebendo que não havia mais nada para dizer, deixou-me e precipitou-se para a cozinha.

Devo dizer, a propósito, que depois deste episódio, e até à minha libertação, nunca mais nos aproximámos um do outro nem falámos.

Na cozinha, era uma azáfama e um aperto ao lado dos fogões incandescentes. Cada um controlava o que era dele; «as sopeiras» começavam também a fazer o almoço prisional, marcado nesse dia para mais cedo. Embora alguns já estivessem com apetite, ninguém começava a comer nada — respeitava-se a boa educação entre presos, e esperava-se pelo padre; só depois quebrariam o jejum. Entretanto, ainda não amanhecera quando se ouviram de trás do portão os gritos do cabo: «Cozinheiros!» Estes chamamentos foram-se repetindo quase de minuto a minuto e iriam continuar por mais duas horas. Os cozinheiros eram chamados para receberem a esmola que era trazida de todos os cantos da cidade em quantidades enormes: kalatches, pães, bolos de requeijão, panquecas, bolachas, crepes, etc. Acho que não havia dona de casa, tanto dos comerciantes como dos populares da cidade, que não mandasse o seu pão para alegrar a grande festa dos «desgraçados». Havia esmolas ricas: pão de leite, de farinha puríssima, em grande quantidade. Havia esmolas muito pobres: um kalatch e duas panquecas negras untadas com um pouco de natas azedas — era uma dádiva de pobre para pobre, partilhando quem dava aquilo que tinha. Tudo era aceite com a mesma gratidão, sem discriminação das dádivas e dos doadores. Os reclusos que iam receber as esmolas tiravam os chapéus, faziam vénias, davam as boas-festas e levavam as prendas para a cozinha. Quando se acumularam os montões de pão, foram chamados os responsáveis das casernas que fizeram a partilha, por caserna e por igual. Não houve discussões nem altercações, porque tudo foi feito com honestidade. A parte que a nós calhou foi distribuída dentro da caserna — Akim Akímitch e outro recluso encarregarram-se da partilha por mão própria. Não houve a mínima desconfiança nem sombra de inveja; toda a gente ficou contente, não passou pela cabeça de ninguém que alguma esmola tivesse sido escondida ou distribuída injustamente. Depois de ter organizado as suas coisas na cozinha, Akim Akímitch começou a vestir-se com todo o decoro e solenidade, sem deixar um colchete por fechar; já vestido, passou então, a sério, às orações. Rezou por muito tempo. Já outros reclusos rezavam também, na sua maioria os mais velhos. Os jovens não rezavam muito: mesmo em dias de festa, quando muito persignavam-se de manhã, ao levantarem-se. Depois da reza, Akim Akímitch aproximou-se de mim e, com certa solenidade, deu-me as boas-festas. Convidei-o imediatamente para tomar chá comigo, e ele convidou-me para comer leitão com ele. Um tempinho depois chegou Petrov, também para as boas-festas. Parecia vir já de grão na asa e, embora pressuroso e resfolegante, não disse grande coisa, limitou-se a ficar um bocadinho parado à minha frente, numa expetativa qualquer, tendo logo zarpado para a cozinha. Entretanto, na caserna dos militares, preparavam-se para receber o padre. Esta caserna estava organizada de modo especial: aqui, os catres estendiam-se ao longo das paredes e não no meio do recinto como em todas as outras, sendo portanto o único espaço coberto da prisão que não estava atulhado ao centro. Pelos vistos, a caserna fora assim organizada para que, em caso de necessidade, houvesse onde reunir todos os reclusos. No centro tinham colocado uma mesinha coberta com uma toalha limpa e, nela, um ícone e uma lamparina acesa. Por fim, chegou o padre com a cruz e a água benta. Depois de rezar e cantar diante do ícone, postou-se de frente para os reclusos e todos, com sincera devoção, se aproximavam da cruz e a beijavam. A seguir, o padre passou por todas as casernas e aspergiu-as de água benta. Na cozinha, louvou o nosso pão prisional, famoso pelo seu sabor na própria cidade, e os reclusos quiseram logo oferecer-lhe dois pães acabados de cozer — os pães ser-lhe-iam de facto mandados por um dos inválidos. Despediram-se da cruz com a mesma devoção com que a tinham recebido. Logo depois entraram na prisão o comandante e o major. Cá dentro, gostava-se do comandante e respeitava-se até. Passou por todas as casernas, acompanhado pelo major, deu as boas-festas a todos, entrou nas cozinhas e provou a sopa de repolho. Estava magnífica: por ser festa, tinham-lhe acrescentado uma libra de carne por recluso. Além da sopa, as papas de painço tinham sido cozidas com bastante manteiga. Depois de acompanhar o comandante até à saída, o major deu ordem para se dar início ao almoço. Os presos tentavam não atrair a atenção dele. Não gostavam do seu olhar raivoso por cima dos óculos; mesmo agora, espreitava à esquerda e à direita, tentando detetar desordens, descobrir culpados.

Sentaram-se para almoçar. O leitão de Akim Akímitch estava magnificamente assado. Ora bem, o que eu não sei explicar é o seguinte: uns cinco minutos depois da partida do major, já a prisão estava cheia de bêbados, quando, cinco minutos antes, estava tudo completamente sóbrio, ou quase. Apareceram as caras avermelhadas e radiosas, apareceram as balalaicas. O polaquito, com o seu violino, já andava atrás de um farrista, contratado para todo o dia, e tocava-lhe danças alegres. As conversas iam-se tornando mais bulhentas e ébrias. O almoço, porém, decorreu sem grandes desordens. Muitos dos velhos e dos sisudos foram imediatamente bater uma sesta, entre eles Akim Akímitch que, pelos vistos, considerava que no dia da grande festa era absolutamente necessário dormir depois do almoço. O velhote de Starodúbie, o tal que era cristão da velha crença, dormitou um pouco e trepou para o catre do fogão; lá em cima, abriu o seu livro e rezou até alta noite, quase ininterruptamente. Era-lhe penoso assistir ao «opróbrio», como chamava à pândega geral dos reclusos. Todos os tcherquesses se sentaram à soleira a olhar com curiosidade e alguma repugnância para o povo bêbado. Encontrei o Nurra: «Iaman, iaman23! — disse, abanando a cabeça numa indignação piedosa. — Uui, iaman! Alá ficará zangado!» Issai Fomitch, teimosa e altivamente, acendeu no seu cantinho uma vela e pôs-se a trabalhar, mostrando assim que não dava qualquer valor a essa festa. Aqui e ali, pelos cantos, eram organizados «casinos». Não havia medo dos inválidos mas, para o caso de aparecer o sargento (que, de resto, tentava não reparar em nada), tinham sido postos vigilantes à coca. Durante o dia, o oficial da guarda espreitou por três vezes para as casernas. Porém, os bêbados escondiam-se e os «casinos» desmontavam-se, como por encanto, e o oficial, por sua vez, decidiu não reparar nas pequenas desordens. Num dia como este, um homem bêbado era considerado um desordeiro inofensivo. A pouco e pouco, os homens começaram a exaltar-se. Começavam já as discussões. Mesmo assim, os sóbrios estavam em maioria e havia quem pudesse cuidar dos ébrios. Quanto aos pândegos, bebiam exageradamente. Gázin rejubilava. Passeava com uns ares de autossatisfação ao lado do seu lugar nos catres, sob o qual tinha a vodka que trouxera, atrevidamente, do esconderijo na neve, algures nas traseiras das casernas, e soltava umas risadinhas manhosas ao olhar para os compradores que iam ter com ele. Ele próprio estava sóbrio, não tocara numa gota. Tencionava fazer a sua farra no fim da festa, depois de ter sacado todo o dinheiro aos reclusos. Ouvia-se cantigas nas casernas. Mas a bebedeira já se transformara em desvario e não tardaria nada que as cantigas se transformassem em lágrimas. Muitos andavam com as suas balalaicas, as samarras lançadas sobre os ombros, dedilhando as cordas com galhardia. Na secção especial formou-se mesmo um coro de oito vozes. Cantavam lindamente, acompanhados por balalaicas e violas. As cantigas puramente tradicionais eram poucas. Lembro-me apenas de uma, cantada com todo o garbo:

Moça nova, que bem estava

Na festa que deram ontem.

Aqui, ouvi uma versão nova desta cantiga que não conhecia. No final, eram acrescentados alguns versos:

Eu, moça, tenho uma casa

Muito bem arrumadinha:

Água de lavar colheres

Despejei-a na sopinha,

Dos umbrais raspei, raspei

E com isso fiz pastéis.

Cantavam-se sobretudo as cantigas ditas prisionais, todas elas, aliás, bem conhecidas. Uma era humorística, descrevendo como um homem, em liberdade, se divertia e vivia como um senhor, e como era depois de ter ido parar à prisão. Dantes vertia «o chimpenhe no blamanjé», e agora

Couve em água é o acepipe

Que me dá mais apetite.

Outra muito conhecida:

Dantes tinha um capital,

Vida alegre, pança cheia,

Mas perdi meu capital

E vim parar à cadeia...

e assim por diante. Em vez de «capital», diziam «copital», de kopit24. Também se cantavam canções tristes. Uma era puramente prisional e, parece-me, também conhecida:

Acende-se a luz do céu,

Toca o tambor a alvorada,

O guarda abre os portões,

O escrivão faz a chamada.

Aqui atrás das paredes

Ninguém vê como vivemos,

Deus criador está connosco,

Nós aqui não nos perdemos...

Cantava-se outra ainda mais triste, com uma melodia muito bela; devia ser da autoria de algum deportado — a letra era melosa e bastante analfabeta. Lembro-me de alguns versos:

Meus olhos não verão mais essa terra

Em que nasci;

Condenado sem culpa ao sofrimento

Perpétuo aqui.

Grita o mocho no telhado e pelos bosques

Ecoará,

Vai doer meu coração, triste e amargo —

Não estarei lá.

Esta canção era muito cantada, mas a solo, nunca em coro. Alguém saía à soleira da porta da caserna nas horas de folga, sentava-se, apoiava a cabeça na mão e, pensativo, atacava-a em voz de tiple. Era de rasgar a alma. Tínhamos vozes bastante boas.

Entretanto, caía o crepúsculo. A tristeza, a nostalgia transpareciam pesarosamente no meio da embriaguez e da pândega. Alguém, que uma hora atrás era todo risos, chorava agora desalmadamente, bêbado como um cacho. Outros já iam na segunda briga. Outros ainda, brancos como a neve, mal se aguentando nas pernas, vagueavam pelas casernas, à procura de conflitos. Os que não tinham mau beber, procuravam em vão amigos a quem abrissem a alma, sobre quem derramassem a sua amargura bêbada. Toda esta pobre gente queria festejar, beber da alegria da grande festa — mas... oh, Deus!, que penoso e triste era este dia para quase todos. Cada um o terminou como se uma esperança o tivesse iludido. Petrov veio ter comigo ainda mais duas vezes. Bebera pouco, estava quase sóbrio, mas, até ao último momento, era como se estivesse à espera de alguma coisa que tinha forçosamente de acontecer — alguma coisa extraordinária, festiva, jubilosa. Não falava disso, mas lia-se-lhe nos olhos. Corria sem cansaço de uma caserna para outra. Mas nada acontecia, nada de diferente ele encontrava, além da bebedeira, das pragas bêbadas sem sentido, das cabeças intoxicadas de vodka. Sirótkin também corria as casernas com a sua camisa vermelha nova, bonitinho, lavadinho, à espera também de alguma coisa, serena e ingenuamente. A pouco e pouco tudo se ia tornando insuportável e nojento nas casernas. Havia, é claro, muita coisa cómica, mas eu só sentia tristeza, e pena deles todos, e sentia-me sufocar de angústia no meio deles. Eis dois reclusos que discutem quem deve oferecer vodka a quem. Vê-se que já discutem há muito e, por isso, já tinham tido tempo de se zangar. É um, mais do que o outro, que guarda um rancor antigo. Queixa-se e, de língua entaramelada, tenta provar que, outrora, o companheiro foi injusto com ele: a venda de uma samarra qualquer, um dinheiro qualquer escondido no ano passado, por alturas do Entrudo. E não só, há mais qualquer coisa... O acusador é um rapaz alto e musculado, nada parvo, pacato mas, quando bêbado, com a mania de fazer amizades e desabafar. Parece ralhar e reclamar para, depois, fazer ainda melhor as pazes com o adversário. O outro é atarracado, forte, baixo, a cara redonda, manhoso, esperto. Talvez tenha bebido mais do que o companheiro, mas está apenas toldado. Tem um caráter forte e fama de rico, mas, por qualquer razão, acha que lhe é mais vantajoso não irritar o seu expansivo amigo; leva-o ao «taberneiro»; o outro afirma que o atarracado tem obrigação de lhe oferecer vodka, «se és homem honesto».

O «taberneiro», com um certo respeito pelo atarracado e um toque de desprezo pelo seu amigo expansivo porque este bebe por conta do outro, tira a vodka e enche uma chávena.

— Não, Stiopka, tu é que deves pagar — diz o expansivo, vendo que já tinha levado a melhor —, porque a dívida é tua.

— Contigo, fica sabendo, não vou ganhar calos na língua! — responde Stiopka.

— Não, Stiopka, mentes — insiste o primeiro, tomando a chávena das mãos do «taberneiro» —, porque me estás a dever dinheiro; não tens vergonha na cara, e os teus olhos nem são teus, são emprestados! És um velhaco, Stiopka, ouviste? És um velhaco chapado!

— Para quê tantas lamúrias? Até já verteste a vodka! Estão a oferecer-te honestamente, então bebe! — grita o «taberneiro» ao expansivo. — Não tenho a noite toda!

— Já bebo, não me grites! Feliz Natal, Stepan Doroféitch! — Com a chávena na mão, educadamente, fazendo uma vénia ligeira, assim se dirigia ao atarracado Stiopka, o mesmo a quem chamara de velhaco meio minuto antes. — Cem anos de boa saúde para ti, e o que já viveste não conta! — Bebeu, tossicou de prazer, limpou os lábios. — Dantes, amigos, eu aguentava muita vodka — observou muito sério, muito solene, dirigindo-se a todos em geral e a ninguém em particular —, mas agora acho que já começo a envelhecer. Obrigado, Stepan Doroféitch.

— Não há de quê.

— Mas digo-te mais uma vez, Stiopka: além de seres um grande velhaco comigo, digo-te que...

— E eu digo-te o seguinte, seu ventas de bêbado — interrompe-o Stiopka, já de paciência perdida. — Ouve bem, toma tento em cada palavrinha: aí está o mundo, partido em dois, uma metade é tua, outra é minha. Então, desinfesta, não te atravesses mais no meu caminho. Estou farto de ti.

— Não queres então pagar o que deves, é?

— O que é que eu te devo, seu bêbado?

— Eh, no outro mundo tu próprio me vais querer pagar, mas não aceito! O nosso dinheirinho é fruto do trabalho, do suor, dos calos! Os meus cinco copeques vão-te sair caro no outro mundo.

— Vai prò diabo!

— Vê lá como falas!

— Desinça daqui!

— Canalha!

— Grilheta de merda!

E de novo as pragas, pior do que antes do copo oferecido.

Agora, eis dois amigos, sentados nos catres: um é alto, corpulento, carnudo, um verdadeiro magarefe. A cara muito vermelha, porque está quase a chorar de enternecido. O outro é um magricela mirrado, de nariz comprido a pingar e olhinhos de porco postos no chão. É um homem delicado e culto; lá fora tinha sido escrivão e trata com certa altivez o amigo, o que, no fundo, desgosta muito este último. Passaram o dia a beber juntos.

— O tipo atreveu-se comigo! — grita o amigo carnudo, abanando com força a cabeça do amigo. «Atreveu-se» quer dizer que lhe deu uma sova. O amigo carnudo, ex-sargento, tem uma inveja secreta do seu amigo mirrado, por isso exibem em frente um do outro um estilo esmerado de fala.

— E eu digo-te que também não tens razão... — começa o escrivão dogmaticamente, sem levantar os olhos para ele, teimoso, um ar de importância.

— Atreveu-se comigo, estás a ouvir? — interrompe o amigo, abanando ainda mais o outro. — Agora só tu é que me restas, único em todo o mundo, estás a ouvir? Por isso só te conto a ti: ele atreveu-se comigo!...

— E eu digo-te mais uma vez: essa justificação rançosa, meu querido amigo, constitui apenas uma vergonha para a tua cara! — objeta o escrivão numa vozinha fina e educada. — É melhor que concordes, querido amigo: é tudo embriaguez proveniente da tua própria inconstância...

O amigo carnudo afasta-se para trás, olha estupidamente com os seus olhos ébrios para o escrivãozinho presunçoso e, de chofre, inesperadamente, assenta com toda a força o seu punho enorme na cara pequena do escrivão. Assim acaba a amizade de um dia inteiro. O querido amigo cai sem sentidos para debaixo do catre...

Entra na nossa caserna um recluso da secção especial: é um rapaz infinitamente bondoso e alegre, nada parvo, irónico mas inofensivo e, aparentemente, simplório até mais não. É esse mesmo que, no meu primeiro dia de prisão, durante o almoço na cozinha, procurava onde haveria um mujique rico, afirmou que tinha «ambição» e bebeu chá comigo. Tem cerca de quarenta anos, lábio invulgarmente grosso e nariz grande e carnudo, cravejado de pontos negros. Traz uma balalaica que dedilha descuidadamente. Atrás dele, como um cãozinho, anda um recluso pequenino de cabeça grande — o homem, até ao momento, era quase um desconhecido para mim. De resto, ninguém lhe dava qualquer atenção. Era um esquisito, desconfiado, sempre calado e sisudo; trabalhava na alfaiataria e, pelos vistos, tentava viver isolado e não se meter com ninguém. Mas agora, bêbado, cola-se como uma lapa a Varlámov. Segue-o numa grande emoção, abana as mãos, dá punhadas nas paredes e nos catres, e está quase a chorar. Varlámov parece nem reparar nele, como se o homem não existisse. É curioso que, antes, estes dois homens nem sequer se tinham aproximado um do outro — não têm nada em comum, nem no feitio nem nas ocupações. Além disso, pertencem a categorias diferentes e vivem em casernas diferentes. O recluso pequenino chama-se Búlkin.

Varlámov, ao ver-me, esboçou um sorriso. Eu estava sentado no meu catre ao lado do fogão. Parou à minha frente, a certa distância, pôs-se a matutar em qualquer coisa, cambaleou e, aproximando-se de mim num passo incerto, inclinou todo o corpo com galhardia, tocando ao de leve as cordas, e pronunciou em recitativo, batendo o ritmo com a bota:

A cara branca e oval,

A cantar como o chapim,

Ai linda!

É maravilhosa seda

Do teu vestido o cetim,

Tão linda.

Pelos vistos, foi esta cantiga que fez o Búlkin perder as estribeiras; agitou os braços e, dirigindo-se a todos, gritou:

— Ele mente, amigos, está sempre a mentir! Não diz nada que seja verdade, só patranhas!

— Ao meu velhinho Aleksandr Petróvitch! — disse Varlámov, espreitando-me com manha para os olhos e como se quisesse chegar-se a dar-me beijos. Estava muito bêbado. A expressão «ao velhinho tal...», o mesmo que «os meus respeitos por fulano tal...», é utilizada pelo povo em toda a Sibéria, mesmo quando é dirigida a um homem de vinte anos. A palavra «velhinho» tem um sentido de honra, de respeito, até de alguma lisonja.

— Então, Varlámov, como passa?

— Cada dia passo um dia. Quem está feliz com a festa, fica bêbado logo de manhã e, nesse particular, peço desculpa! — Varlámov falava numa voz um pouco cantante.

— Está a mentir, está sempre a mentir! — gritou Búlkin, batendo desesperadamente com a mão no catre. Parecia, contudo, que Varlámov tinha jurado não lhe prestar qualquer atenção, e era extremamente cómico o facto de Búlkin se ter agarrado a Varlámov logo desde manhã sem qualquer razão a não ser esta de que Varlámov «estava sempre a mentir», como pensava Búlkin, sabe-se lá porquê. Arrastava-se atrás dele como uma sombra, agarrava-se-lhe a cada palavra, magoava-se batendo com os punhos nas paredes e nos catres, sofria pela convicção de que Varlámov «estava sempre a mentir»! Se tivesse cabelo, de certeza que o arrancaria de aflição. Parecia ter assumido a responsabilidade de carregar nos seus ombros toda a conduta de Varlámov, que todos os defeitos de Varlámov lhe pesavam na consciência. A graça consistia em que Varlámov nem olhava para ele.

— Mente, mente, mente! Não diz coisa com coisa! — gritava Búlkin.

— E tu que tens com isso? — acicatavam-no os reclusos, a rir-se.

— Digo-lhe uma coisa, Aleksandr Petróvitch: eu era um rapaz bem bonito, e as raparigas andavam doidas por mim — começou sem mais nem menos o Varlámov.

— Mentira! Está outra vez a mentir! — interrompeu-o Búlkin aos guinchos.

Os reclusos riem-se.

— E eu todo pimpão diante delas: camisinha vermelha, calça de veludo, deitado ao comprido como o conde Garrafão, isto é, bêbado como um sueco, resumindo e concluindo: faça o obséquio!

— Mentira! — afirma Búlkin resolutamente.

— Naqueles tempos eu tinha casa de pedra de dois pisos, que me tinha deixado o meu falecido pai. Pois bem, em dois anos desbaratei dois pisos, fiquei só com o portão sem paliçada. Paciência, o dinheiro é como os pombos: ora vêm, ora vão.

— Mentira! — afirma Búlkin ainda com mais convicção.

— Então, há já algum tempo que eu mandei aos meus parentes um recado todo lacrimoso: a ver se me mandavam algum dinheirinho. Diziam eles que eu fazia tudo contra a vontade dos meus pais. Que lhes faltava ao respeito! Já lá vão sete anos que mandei a carta.

— E não há resposta? — perguntei, rindo.

— Pois não — respondeu, rindo-se também e aproximando cada vez mais o nariz da minha cara. — Eu tenho cá uma namorada, Aleksandr Petróvitch...

— A sério? Uma namorada?

— Há pouco, diz-me o Onúfriev: «A minha é bexigosa, sem graça nenhuma, mas tem muitos vestidos; ao passo que a tua é bonita, mas é uma miserável, anda por aí a mendigar.»

— Será verdade?

— É mesmo, é pedinte! — respondeu e desatou num riso silencioso; toda a caserna se riu também. De facto, toda a caserna sabia que ele namorava uma pedinte e que, durante meio ano, lhe dera apenas dez copeques.

— Muito bem, e depois? — disse eu, querendo ver-me livre dele.

Ficou calado por um pedaço, olhou para mim, enternecido, e disse:

— Não se dignará o senhor, por ocasião disto tudo, de me pagar meio quartilho? É que, Aleksandr Petróvitch, ainda hoje não bebi nada além de chazinho — acrescentou, ternurento, aceitando o meu dinheiro —, e empanturrei-me tanto de chá que já comecei a resfolegar e a ouvir um barulho na minha barriga como numa garrafa...

No momento em que Varlámov pegava no dinheiro que eu lhe dava, o desarranjo moral de Búlkin atingiu, pelos vistos, o último limite. Gesticulava desesperadamente, quase chorava.

— Gente de Deus! — gritou, frenético, dirigindo-se a toda a caserna. — Olhai para ele! Sempre a mentir! Tudo o que ele diga é mentira!

— Mas o que te importa isso? — gritam-lhe os reclusos, admirados com a sua fúria. — Que tipo maluco!

— Não o deixarei mentir! — grita Búlkin com os olhos a faiscar, dando murros violentos nos catres. — Não quero que ele minta!

Risada geral. Varlámov pega no dinheiro, despede-se de mim com vénias e requebros, vai já a sair rapidamente da caserna. Para ir ver o «taberneiro», obviamente. Nisto, parece ter reparado pela primeira vez na presença de Búlkin.

— Vamos, então! — diz-lhe, parando à porta, como se efetivamente precisasse do outro para qualquer coisa. — Meu cabeça de pau! — acrescenta num tom de desprezo, deixando passar o entristecido Búlkin e voltando a dedilhar a balalaica...

Mas para que descrevo eu esta inferneira? Este dia sufocante está finalmente a acabar. Os reclusos adormecem penosamente nos catres. Mais do que nas outras noites, falam e deliram no sono. Nalguns cantos mantêm-se ainda abertos os «casinos». Acabava a festa por que tanto se esperou. Amanhã, outra vez os trabalhos...

23 Mal, mal (em tártaro). (NT )

24 O verbo kopit, que significa, em russo, acumular. (NT )


11

O espetáculo

No terceiro dia após a festa, à noite, subiu à cena o primeiro espetáculo do nosso teatro. Por trás dele estava com certeza muito trabalho, mas os atores tinham-se encarregado de tudo e nós nem sabíamos em que pé estavam as coisas nem o que, concretamente, se estava a passar; não sabíamos também qual seria o espetáculo. Nesses três dias, os atores, quando iam para os trabalhos, tentavam arranjar os trajes, quantos mais melhor. Baklúchin, quando se encontrava comigo, não parava de estalar os dedos de contente. Parece que também o nosso major se lembrou de se portar razoavelmente. Aliás, não fazíamos a mínima ideia se ele estava a par do teatro ou não. E, se estava a par, autorizara-o formalmente, ou então limitava-se a calar-se, a não impedir a iniciativa dos reclusos, exigindo apenas garantias, é claro, de que tudo se passaria dentro da ordem. Acho que ele sabia, era impossível que não soubesse, mas não queria intrometer-se porque compreendia que uma proibição poderia dar maus resultados: os reclusos ficariam desvairados, entrariam na bebedeira — era melhor que tivessem alguma coisa com que se ocupar. Quero acreditar que o major raciocinava assim porque este raciocínio é o mais natural, o mais correto e sensato. Pode até colocar-se a questão de outra maneira: se, por altura das festas, os reclusos não tivessem o teatro ou outra atividade qualquer, as próprias autoridades deveriam inventá-la. No entanto, como o nosso major se regia por uma mentalidade completamente oposta à da restante humanidade, é muito possível que eu esteja a pecar contra a verdade ao supor que ele sabia do teatro e o permitira. Um homem como o major tinha sempre a necessidade de esmagar alguém, de o privar de alguma coisa, de algum direito, numa palavra, de tomar, fosse onde fosse, medidas repressivas. Neste aspeto, era famoso em toda a cidade. O que lhe importava que, devido a tais repressões, pudessem acontecer desordens na prisão? Contra as desordens existem as punições (assim raciocinam indivíduos como o nosso major), e para com os canalhas dos reclusos devem ser usadas a severidade e a exigência de cumprirem a lei formalmente — é tudo quanto é preciso! Estes executores ineptos da lei não compreendem absolutamente, nem têm capacidade para virem a compreender, que, sem um sentido, sem a perceção do seu espírito, o cumprimento formal da lei leva diretamente à desordem, ao motim — de resto, nunca foi outro o resultado de tal procedimento. «A lei reza assim e assado, que mais quereis?» — dizem eles e ficam sinceramente admirados quando lhes exigem, além do cumprimento das leis, o senso comum e um espírito razoável. Este último requisito, sobretudo, parece a muitos deles um luxo excessivo e revoltante.

Fosse como fosse, o sargento não impedia a atividade dos reclusos, e isso era quanto bastava. Posso afirmar que o teatro e a gratidão por ele ter sido autorizado eram a causa direta de não ter acontecido na prisão qualquer desordem grave durante o Natal, nem qualquer rixa mais séria, nem qualquer roubo. Eu próprio fui testemunha de que os reclusos metiam na ordem os seus companheiros que passavam das marcas nas pândegas ou nas discussões, bastando-lhes alegar que os chefes poderiam proibir o teatro. O sargento obrigou os reclusos a darem-lhe a palavra de honra de que tudo se passaria com calma e se manteria dentro dos eixos. Deram-lhe a palavra com prazer e cumpriram-na religiosamente; também era lisonjeiro para eles que acreditassem na sua palavra. De resto, é preciso dizer que não era nada do outro mundo os chefes autorizarem o teatro. Antes do espetáculo, não se ocupava espaço permanente: o teatro era montado e desmontado num quarto de hora. O espetáculo duraria apenas hora e meia, mas se os chefes dessem ordens para cessar o espetáculo, seriam cumpridas num instante. Os trajes não incomodavam, estavam escondidos nos baús dos reclusos. Antes de falar, porém, do cenário, dos trajes e do próprio teatro, falarei do anúncio do espetáculo, ou seja, do suposto conteúdo deste.

Na verdade, não havia um verdadeiro cartaz do espetáculo. Para a segunda e terceira representações, apareceu um anúncio, sim, escrito por Baklúchin, já que alguns senhores oficiais e outros espectadores fidalgos se tinham dignado honrar o nosso teatro com a sua presença logo na estreia. Ou seja, dos senhores, estava sempre presente o oficial da guarda e, numa representação, apareceu mesmo o próprio oficial de dia da guarda prisional. Também foi ver um espetáculo o oficial de engenharia. Então, era para esses espectadores o anúncio. Supunha-se que a fama do teatro prisional ribombaria por todo o forte e até pela cidade, uma vez que era uma cidade sem teatro. Dizia-se que apenas uma vez fora lá feito um espetáculo amador. Os reclusos, como crianças, rejubilavam com o mais pequeno êxito, envaideciam-se. Pensavam e diziam entre si: «Quem sabe? Talvez chegue aos ouvidos das autoridades superiores e elas apareçam e vejam o que valem os reclusos. Não é um espetáculo qualquer de soldados, com espantalhos, barcos a navegarem, ursos e cabras a andarem nas patas traseiras. Aqui temos atores, verdadeiros atores, que representam comédias feitas por senhores; nem na cidade há um teatro assim. Uma vez, ao que dizem, foi feito um espetáculo em casa do general Abróssimov, e parece que querem fazer mais um. Pois bem, se calhar só nos trajes é que eles nos levam a melhor, porque, quanto à conversa, ainda vamos ver quem é melhor! Pode chegar aos ouvidos do governador e... quem sabe?... talvez ele próprio queira cá aparecer. Porque na cidade não há teatro...» Enfim, a fantasia dos reclusos, sobretudo depois do primeiro êxito, atingiu o grau máximo na altura das festas, imaginando já que teriam prémios e reduções de penas, embora seja verdade, também, que logo de imediato começaram a meter a ridículo, benevolamente, as suas próprias fantasias. Em resumo, eram crianças, verdadeiras crianças, algumas já com quarenta anos. Ora bem, apesar da ausência de anúncio, eu já conhecia, em linhas gerais, o conteúdo do futuro espetáculo. A primeira peça era: Filatka e Mirochka, os Rivais25. Baklúchin ainda uma semana antes se me gabara de que o papel de Filatka, que ele próprio representaria, seria feito de tal modo que nem em São Petersburgo se tinha alguma vez visto papel tão bem feito. Andava pelas casernas, gabava-se desavergonhadamente e, ao mesmo tempo, com muita ingenuidade; às vezes fazia um gesto qualquer «teatral», ou seja, do seu papel — e toda a gente desatava às gargalhadas, quer a cena tivesse piada ou não. De resto, é de confessar que também nesta situação os reclusos sabiam manter a sua dignidade: quem se entusiasmava com as palhaçadas de Baklúchin e com as conversas sobre o futuro espetáculo eram os mais jovens, uns moncosos sem autodomínio, ou então os mais prestigiados, com uma autoridade inabalável tal que já não tinham medo de exprimir frontalmente as suas sensações, fossem elas quais fossem, mesmo que tivessem o mais ingénuo dos carateres (isto é, o mais indecente, pelas noções prisionais). Os restantes ouviam os rumores e as conversas em silêncio e, embora não objetassem nem censurassem, esforçavam-se por reagir com indiferença e, até, com certa altivez. Só no último momento, quase no próprio dia da estreia, começaram todos a perguntar: o que será? Como se estarão a portar os nossos? E o major? Irão conseguir ou irão, como há dois anos, falhar? Baklúchin assegurava-me de que todos os papéis estavam distribuídos magnificamente, com cada ator «no seu lugar». E que haveria, inclusive, um pano de cena. Que o papel da noiva de Filatka o faria o Sirótkin. — O senhor verá que artista ele é vestido com roupas de mulher! — dizia-me Baklúchin, franzindo os olhos e estalando a língua. A senhora benfeitora vai aparecer de vestido com falbalá, romeira e um guarda-sol na mão, e o senhor benfeitor com sobrecasaca de oficial com agulhetas e uma bengala. A outra peça era um drama: Kedril, o Glutão. Fiquei intrigado com o título; porém, por mais que indagasse, não consegui saber nada de antemão. Apenas me disseram que não fora tirada de um livro, mas de um manuscrito; que tinham pedido a peça a um sargento na reserva que morava nos arrabaldes; o sargento, pelos vistos, participara outrora nesta peça, levada à cena pelos soldados. Nas nossas cidades das províncias longínquas existem, de facto, estas peças teatrais que, aparentemente, são desconhecidas de toda a gente e que talvez nunca tenham sido publicadas, mas que aparecem espontaneamente sabe-se lá donde e constituem um atributo indispensável de qualquer teatro popular de determinadas zonas da Rússia. A propósito: mencionei o teatro «popular». Seria ótimo se algum dos nossos investigadores se dedicasse a estudos novos e mais minuciosos do teatro popular, que existe realmente e, se calhar, não é tão insignificante como isso. Não acredito que tudo o que vi no nosso teatro prisional tenha sido inventado pelos nossos reclusos. Há por trás uma continuidade de tradições, de métodos e de noções estabelecidos desde os tempos antigos, que se transmitem de geração em geração, guardando-se assim na memória coletiva. Há que procurá-los no meio dos soldados, dos operários fabris, nas cidades industriais ou, mesmo, nalgumas cidadezinhas pobres e desconhecidas, no meio dos artífices populares. Guardam-se também nas aldeias e nos centros provinciais, entre os criados da gleba das grandes casas senhoriais. Penso mesmo que muitas peças antigas foram divulgadas em manuscritos graças, precisamente, aos criados dos proprietários rurais. Os antigos latifundiários e os fidalgos moscovitas mantinham os seus próprios teatros domésticos com atores que eram servos da gleba. Foi nesses teatros que nasceu a nossa arte dramática popular, com as suas características próprias. Quanto a Kedril, o Glutão, por mais que eu quisesse, não consegui saber nada antecipadamente sobre esta peça, a não ser que apareceriam em palco os espíritos do mal que levariam Kedril para o inferno. Mas o que significava «Kedril», e porquê, afinal, Kedril e não Kirill? Trata-se de um acontecimento russo ou estrangeiro? — não houve meio de o deslindar. Para o final, anunciava-se uma «pantomima com música». É claro que tudo isso era muitíssimo curioso. Os atores eram uns quinze — todos rapazes ágeis e garbosos. Azafamavam-se às escondidas, faziam os ensaios, às vezes nas traseiras, tudo em segredo. Enfim, queriam surpreender-nos com algo de extraordinário e inesperado.

Nos dias de semana, as casernas fechavam cedo, mal caía o crepúsculo. Pois bem, pelas festas natalícias, foi aberta uma exceção: não eram fechadas até altas horas da noite. Esta vantagem foi concedida precisamente por causa do teatro. Durante uma semana, todos os dias, ao fim da tarde, era mandado o pedido ao oficial da guarda: «permitir o teatro e que não se feche a prisão pelo maior período de tempo possível», acrescentando que na véspera também houvera teatro e que as portas não se tinham fechado, não tendo acontecido quaisquer desacatos por causa disso. O oficial da guarda raciocinava assim: «De facto, ontem não houve desordens, e como eles próprios me dão a sua palavra de que não acontecerá nada de especial, quer dizer que também hoje serão eles próprios que tratarão da manutenção da ordem, o que é mais seguro. Além disso, se se proibir o teatro, é possível (quem sabe?, são grilhetas!) que façam só porcaria, de propósito, por raiva, e arranjem sarilhos aos guardas.» E, finalmente, mais uma coisa: estar de guarda é enfadonho e, ao fim e ao cabo, vai haver teatro, e não é um teatro qualquer de soldados, mas dos reclusos, e os reclusos são gente curiosa, será divertido ver o espetáculo deles. É que o oficial da guarda tem sempre o direito de assistir a um espetáculo.

Digamos que chega um oficial de serviço: «Onde está o oficial da guarda?» — «Foi à caserna fazer a chamada dos reclusos e, depois, fechar as portas» — a resposta é direta, a justificação é boa. Deste modo, os oficiais da guarda permitiam o teatro em todos os dias festivos e não fechavam as casernas até tarde, à noite. Os reclusos sabiam de antemão que a guarda não lhes poria obstáculos e estavam descansados.

Passava das seis quando Petrov me veio buscar, e fomos juntos assistir ao espetáculo. Da nossa caserna foram quase todos, menos o cristão da velha igreja, de Tchernígov, e os polacos. Os polacos tinham decidido ir ao teatro apenas no último dia, 4 de Janeiro e, mesmo assim, só depois de lhes darem todas as garantias de que o espetáculo era bom, engraçado e seguro. A atitude desdenhosa dos polacos em nada irritava os reclusos, pelo que, no dia 4 de Janeiro, foram recebidos educadamente. Até os deixaram passar para os melhores lugares. Quanto aos tcherquesses, e sobretudo quanto a Issai Fomitch, o nosso teatro era para eles um verdadeiro prazer. Issai Fomitch contribuía com três copeques de cada vez e, no último dia, com o deleite estampado na cara, deixou no prato dez copeques. Os atores tinham decidido cobrar entrada aos espectadores de acordo com a boa vontade destes, para as despesas do teatro e para revigorarem as forças. Petrov garantiu-me que me deixariam sentar num dos lugares da frente, por mais cheio que estivesse o teatro, porque, como eu era mais rico, daria provavelmente mais; além disso, eu perceberia mais de teatro do que os outros todos. Foi isso mesmo que aconteceu. Mas deixem que eu descreva, antes de mais, a sala e o aspeto do teatro.

A caserna militar, onde fora organizado o teatro, tinha cerca de quinze passos de comprido. Do terreiro passava-se para a soleira, depois para o átrio e, finalmente, para a caserna. Esta era comprida, como já disse, e tinha uma particularidade: os catres estavam dispostos ao longo das paredes, ficando, portanto, o centro livre. Metade da sala, a partir da porta de entrada, destinava-se aos espectadores; a outra metade, contígua à caserna vizinha, era para o palco. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com o pano de cena. Estendia-se a toda a largura da caserna, que media uns dez passos. O pano era de um luxo que, efetivamente, impressionava. Além disso, todo pintado a óleo: árvores, pavilhões, lagos, estrelas. Era de retalhos de linho, velho e novo, cada preso deu o que pôde: velhas faixas para os pés, camisas velhas, cosidas umas às outras, formavam uma grande tela; a parte para que já não havia tecido era, simplesmente, de papel, também mendigado folha a folha em vários escritórios. Os nossos pintores, entre os quais se destacou também o «Brullov», ou seja, A..., fizeram as pinturas e os desenhos. O efeito era espantoso. Um luxo assim deu alegria mesmo aos reclusos mais sombrios e escrupulosos que, chegada a hora do espetáculo, se revelaram sem exceção, tal como os outros, verdadeiras crianças grandes, fogosas e impacientes. Toda a gente estava contente, se felicitava. As luzes tinham sido preparadas com velas de sebo, cortadas em bocados pequenos. À frente do pano estavam dois bancos corridos trazidos da cozinha e, ainda mais perto, quatro cadeiras trazidas da sala dos sargentos. As cadeiras estavam ali para o que desse e viesse, isto é, para o caso de aparecerem oficiais superiores. Os bancos eram para os sargentos, escrivães e condutores de trabalhos da engenharia, e também para outros chefes sem graduação de oficialato, se se lembrassem de passar pelo teatro. Foi o que aconteceu: não faltaram visitantes de fora no nosso teatro em toda a duração das festas; havia noites em que vinham mais, havia outras em que vinham menos, mas no último dia não ficou vago qualquer lugar nos bancos. Por fim, atrás dos bancos, amontoavam-se os reclusos, de pé por respeito aos visitantes, desbarretados, vestindo casacos ou samarras, apesar do ar abafado da sala. É claro que havia muito pouco espaço para eles. Além de se apertarem uns em cima dos outros, sobretudo nas filas de trás, ocupavam todos os catres, os bastidores, tendo alguns ido mesmo para as traseiras do teatro, para outra caserna, donde assistiam ao espetáculo. O aperto na primeira metade da caserna era impressionante, talvez o mesmo a que assistira havia pouco nos banhos. A porta do átrio estava aberta; no átrio, onde faziam vinte graus negativos, também se apertavam reclusos. Deixaram-nos imediatamente passar à frente, a mim e ao Petrov, quase até aos bancos, onde se via muito melhor do que nas últimas filas. De certo modo, viam em mim um apreciador, um conhecedor que já assistira a teatros a sério; tinham também reparado que, durante todo este tempo, Baklúchin se aconselhara comigo e me tratara com respeito — então, para mim, agora, eram honras e lugar. Digamos que é verdade, que o recluso é vaidoso e muito leviano — sim, é tudo isso, mas fingidamente. Os reclusos bem podiam gozar comigo por verem que eu era uma fraca ajuda no trabalho para eles. Almázov bem podia olhar para nós, fidalgos, com desprezo, envaidecido perante nós pela sua habilidade na queima do alabastro. Aliás, a todos os maus-tratos e gozos misturava-se outra coisa: outrora éramos fidalgos, pertencíamos à mesma classe que os seus antigos senhores, de quem não podiam guardar boas recordações. Sim, mas agora, no teatro, davam-me passagem. Reconheciam que, nisso, eu percebia mais, sabia mais do que eles. Os que mais antipáticos eram para comigo (sei bem que era verdade) desejavam agora que eu louvasse o teatro deles e, sem qualquer auto-humilhação, deixaram-me passar para os melhores lugares. Recordo agora as minhas impressões desses momentos. Pareceu-me na altura — lembro-me — que na avaliação justa que faziam das suas poucas capacidades não havia qualquer humilhação, antes o sentimento da dignidade. A característica suprema e mais pronunciada do nosso povo é o sentimento de justiça, a ânsia de justiça. Não existe nele a pretensão jactanciosa de ser o primeiro em tudo, custe o que custar, valha o homem isso ou não. Basta raspar a casca exterior, artificial e olhar o cerne de mais perto, com atenção e sem ideias preconcebidas, e então poderemos ver no povo coisas que nem sequer imaginávamos. Os nossos sábios não têm muito para ensinar ao povo. Posso, mesmo, afirmar: eles próprios, pelo contrário, têm muito a aprender com ele.

Petrov disse-me ingenuamente, quando ainda nos preparávamos para ir ao teatro, que me deixariam passar à frente porque eu daria mais dinheiro. Não havia preço estabelecido: cada um dava o que podia ou queria. Quase todos puseram alguma coisa no prato, nem que fosse um tostão, quando começaram a recolher o dinheiro. Ora, mesmo que, em parte, me deixassem passar para as primeiras filas também pelo dinheiro, quanta dignidade havia nisso! «És mais rico do que eu, então vai para a frente; embora aqui sejamos todos iguais, tu tens mais para oferecer... portanto, um espectador como tu é melhor para os atores; vais pois para a frente, porque estamos cá todos não pelo dinheiro, mas pelo respeito, portanto, nós próprios temos de distribuir os lugares.» Quanto orgulho, verdadeiro e nobre, havia nessa atitude! Não era o respeito pelo dinheiro, mas por si próprios. Em geral, não havia na prisão qualquer respeito pelo dinheiro, sobretudo se olharmos para os reclusos no seu conjunto, como uma comunidade. Não me lembro de nenhum que se humilhasse a sério por dinheiro, mesmo que tentasse apreciá-los um a um. Havia entre eles pedinchões que, inclusivamente, me pediam também a mim. Mas nessa pedinchice havia mais diabrura e trapaça do que qualquer coisa séria; havia, antes de mais, humorismo e ingenuidade. Não sei se me faço entender... Mas ia-me esquecendo do teatro. Voltemos ao que interessa.

Antes de o pano subir, a sala apresentava um quadro estranho e animado. Em primeiro lugar, era a chusma dos espectadores, apertada, espalmada de todos os lados, à espera com paciência, com deleite nos olhos, que a função começasse. Nas filas de trás, as pessoas comprimiam-se cada vez mais. Muitos tinham trazido toros de madeira que encostavam às paredes e, subindo para cima deles, apoiavam-se com ambas as mãos nos ombros de quem estava à frente e assim ficavam duas horas seguidas, contentes por terem arranjado lugar. Outros equilibravam-se com os pés metidos na saliência inferior do fogão e assim se deixaram ficar durante todo o espetáculo, apoiando-se também nas pessoas que estavam à frente. Assim acontecia nas últimas filas, junto à parede. De lado, subindo para os catres, por cima dos músicos, também havia uma multidão. Eram considerados lugares bons. Cinco pessoas treparam para cima do fogão e, deitadas, olhavam para baixo: estes sim, regalavam-se verdadeiramente. Sobre os peitoris das janelas, ao longo da outra parede, também se apertavam muitos dos que tinham chegado atrasados ou que não tinham arranjado lugar melhor. Todos se comportavam bem e com decência. Todos se queriam mostrar sob a sua melhor faceta diante dos senhores visitantes. Em todas as caras se exprimia a mais ingénua expetativa. Todas as caras estavam vermelhas e suadas do calor abafado. Que estranho reflexo de alegria infantil, de puro e delicado prazer irradiava das frontes e faces marcadas a ferro, dos olhares havia pouco sombrios e que às vezes brilhavam com um fogo assustador! Todos estavam sem chapéus, e aos da direita, virados para mim, via-lhes as metades rapadas das cabeças. Finalmente, pressente-se no palco uma azáfama, uns movimentos. Vai subir o pano. A orquestra começa a tocar...

Esta orquestra merece ser descrita. De lado, nos catres, tinham-se instalado oito músicos: dois violinos (um da prisão, o outro emprestado por alguém do forte, mas o músico era nosso), três balalaicas — todas de fabrico artesanal —, duas violas e, em vez do contrabaixo, um pandeiro. Os violinos só guinchavam e rangiam, as violas não prestavam; em compensação, as balalaicas deram um mimo sem precedentes. O virtuosismo dos dedos dedilhando as cordas equiparava-se a puro malabarismo. Tocavam melodias de dança. Nos momentos mais animados os tocadores das balalaicas batiam com os nós dos dedos nas caixas dos instrumentos; a tonalidade, o gosto, a maneira de tocar, de manejar o instrumento, de interpretar a música — tudo isso era original, típico da prisão. Um dos guitarristas também dominava o seu instrumento na perfeição. Era o ex-fidalgo que matara o pai. Quanto ao pandeiro, o músico fazia magia: girava-o, passava-lhe o polegar pela pele, dava-lhe umas pancadinhas rápidas, sonoras e regulares, e era como se este som forte e distinto se dispersasse num sem-fim de pequenos sons rangentes e farfalhantes. Por fim, duas concertinas. Palavra de honra, até esse momento eu não fazia ideia do que era possível conseguir com os tão simples instrumentos populares; a sintonia, a afinação e, sobretudo, o espírito, a compreensão e a transmissão da própria essência da melodia eram surpreendentes. Foi a primeira vez que compreendi perfeitamente em que consistiam a vitalidade e a pujança das músicas de dança russas. Finalmente, subiu o pano. Toda a gente se remexeu, todos mudaram o apoio de um pé para o outro, os de trás puseram-se em bicos de pés; alguém caiu do seu toro de madeira; todas as bocas abertas, todos os olhos fixos, o silêncio era absoluto... O espetáculo começou.

Ao meu lado estava Alei, com os seus irmãos e todos os outros tcherquesses. Todos se apaixonaram à primeira vista pelo teatro e, até ao fim, não falharam uma representação. Todos os muçulmanos, tártaros e outros, como tive ocasião de ver por mais de uma vez, são grandes amadores de todo o género de espetáculos. Ao lado deles acomodou-se também Issai Fomitch que, mal subiu o pano, parecia ter-se metamorfoseado, todo ele, em ouvidos, olhos e na mais ingénua e ávida esperança de milagres e prazeres. Até dava pena só de pensar que lhe pudessem gorar as expetativas. O rosto simpático de Alei irradiava uma alegria tão bela e infantil que, confesso, dava-me um prazer enorme olhar para ele e, a cada cena cómica e bem-sucedida de um ator, quando se ouvia o riso geral, virava-me para ver o rosto de Alei, era mais forte do que eu. Mas Alei nem me via: não estava para mim virado! Muito perto de mim, à esquerda, estava um recluso de certa idade, de seu natural carrancudo, descontente e resmugão. Também reparou em Alei e, por várias vezes, com um sorriso nos lábios, voltava-se para ele: de tal modo o rapaz era querido! Este velho recluso tratava-o sempre por «Alei Semiónitch», não sei porquê. Começou Filatka e Mirochka. Filatka (Baklúchin) era de facto magnífico. Baklúchin criara o papel com uma nitidez espantosa. Via-se que refletira em cada frase, em cada gesto. A tudo sabia dar um sentido, a cada frase insignificante, a cada gesto, tudo sabia pôr em correspondência absoluta com o caráter do seu papel. Acrescente-se a este esforço, a este aprofundamento, uma alegria natural e contagiosa, uma simplicidade espontânea; se o leitor visse Baklúchin a trabalhar, decerto estaria de acordo comigo em que ele é um verdadeiro ator nato, que tem grande talento. Assisti várias vezes ao Filatka e Mirochka nos teatros de Moscovo e Petersburgo e digo com toda a convicção: os atores das capitais fizeram, ambos, um Filatka pior do que fez Baklúchin. Comparados com ele, eram paysans, e não verdadeiros mujiques. Esforçavam-se demais para darem o mujique. Além do mais, Baklúchin era estimulado pela rivalidade: toda a gente sabia que, na segunda peça, o papel de Kedril seria feito pelo recluso Potséikin, ator que, não se sabe porquê, era considerado por todos melhor do que Baklúchin; este facto fazia sofrer o nosso Baklúchin como uma criança. Nos últimos dias vinha ter comigo muitas vezes para desabafar. Duas horas antes do espetáculo, tremia de febre. Quando os espectadores riam e lhe gritavam: «Boa, Baklúchin! Bravo, Baklúchin!», a cara reluzia-lhe de felicidade e uma verdadeira inspiração brilhava-lhe nos olhos. A cena do beijo entre ele e Mirochka, em que Filatka grita antes do beijo: «Limpa a boca!», e também limpa a sua, resultou numa comicidade extrema. Todo o público rebentou em gargalhadas. O mais curioso para mim, no entanto, era o público: um público de peito aberto. Entregava-se incondicionalmente ao seu prazer. Cada vez se ouviam mais os gritos de aplauso e animação. Eis um homem que dá um empurrão ao vizinho do lado e lhe comunica animadamente as suas impressões, sem se preocupar, nem sequer ver, quem é essa pessoa; outro, numa das cenas cómicas, vira-se para a multidão, todo entusiasmado, passa rapidamente os olhos por todos, como que a convidá-los a rir-se, abana a mão e volta a concentrar-se avidamente no palco. Um terceiro, simplesmente, estala a língua e os dedos, não consegue estar quieto no seu lugar; mas como não tem a possibilidade de se movimentar, vai mudando de pé de apoio. Já para o fim da peça, a boa disposição geral chegou ao rubro. Não exagero. Imaginem a prisão, os presos, as grilhetas, a privação da liberdade, os longos e tristes anos pela frente, uma vida monótona como chuva num dia de outono sombrio — e, de repente, foi dado libertar-se a todos esses oprimidos e encarcerados, foi-lhes dado, por uma hora pequenina, divertir-se, esquecerem o seu pesadelo, organizarem um verdadeiro teatro e, ainda por cima, de que maneira! Para orgulho dos reclusos e admiração de toda a cidade — vejam todos o que valem os nossos presos! Tudo se mostrava interessante aos seus olhos: por exemplo, os trajes. Era curiosíssimo ver um tal Vanka Otpéti, ou Netsvetáev, ou Baklúchin, por exemplo, vestidos de uma maneira completamente diferente da que eram vistos todos os dias durante muitos anos. «E que ele é um preso, é o mesmo preso de sempre, tilintam-lhe as grilhetas, mas agora aparece de sobrecasaca, de chapéu de coco, de capa — como um homem livre! Pôs bigode e cabelo postiços. Olhem para ele a tirar um lencinho vermelho do bolso, a abanar-se, a representar um senhor, e é tal qual um senhor!» É de arromba, um entusiasmo geral. O «senhor benfeitor» aparece de farda de ajudante de campo, embora muito velho, de dragonas, de boné com penacho — e causa um efeito enorme. Havia dois pretendentes a este papel e — não sei se acreditam — zangaram-se os dois como duas criancinhas: ambos ansiavam por vestir farda de oficial com dragonas! Os outros atores apartaram os brigões e, por votação, foi atribuído o papel a Netsvetáev, não porque fosse mais bonito e garboso do que o outro, logo mais próximo do verdadeiro senhor, mas porque os convenceu de que entraria em palco com uma bengala, manejando-a, riscando o chão com ela, como faz um verdadeiro senhor janota, o que Otpéti seria incapaz de representar por nunca ter visto os verdadeiros senhores. Realmente, quando Netsvetáev apareceu perante o público com a sua senhora, não fez outra coisa senão riscar rapidamente o chão com uma bengala fina de junco, que arranjara não se sabia onde, vendo nisso o sinal supremo do grande aristocratismo, da extrema classe e elegância. Talvez outrora, ainda gaiato de pé descalço, filho de servos, lhe tenha calhado ver um senhor todo bem-vestido com uma bengala e tenha admirado a habilidade que ele tinha a manejá-la; talvez, desde então, essa impressão se lhe tenha gravado indelevelmente na alma, para sempre, e agora, aos trinta anos de idade, recordou aquilo, para a admiração e o encanto de toda a prisão. Netsvetáev de tal modo mergulhou naquele manejo de bengala que nem olhava para ninguém, os seus olhos não se erguiam, apenas seguiam os volteios da ponta da sua bengala. A «senhora benfeitora», no seu género, era também notável: apareceu num vestido de musselina velho e coçado que mais parecia um farrapo, os braços e o pescoço nus, o rosto estucado com uma camada terrível de branco e carmim, com uma touca de dormir de paninho, atada no queixo por uma fita, com o guarda-sol numa mão e o leque de papel pintado na outra com que se abanava sem parar. Uma explosão de gargalhadas recebeu a senhora; ela própria não se aguentou e, por várias vezes, desatava também a rir. Fazia o papel da senhora o recluso Ivanov. Sirótkin, disfarçado de rapariga, estava lindo, lindo. Também as estrofes foram um êxito. Em resumo, a peça agradou plenamente a todo o público, do princípio ao fim. Não houve críticas, nem podia haver.

Voltaram a tocar a abertura: «Oh, lindo átrio da minha casa!» — e de novo subiu o pano. É Kedril, o Glutão. O personagem Kedril tem qualquer coisa de Dom João; pelo menos, no final apresentado, os diabos levam o amo e o criado para o inferno. Este Kedril, o Glutão tinha um ato mas, pelos vistos, apenas davam um fragmento: o início e o fim tinham-se perdido. A peça prescindia do nexo, do sentido. A ação passa-se na Rússia, numa estalagem. O estalajadeiro acompanha a um quarto um senhor de capote e chapéu de coco estragado. Atrás dele vem o seu criado Kedril com uma mala e um frango embrulhado em papel azul. Kedril veste samarra e boné de lacaio. É glutão. Faz o papel Potséikin, rival de Baklúchin. O papel do amo coube ao mesmo Ivanov que em Filatka e Mirochka fizera o papel de «senhora benfeitora». O estalajadeiro, Netsvetáev, avisa de que no quarto há diabos e desaparece. O amo, sombrio e preocupado, murmura que há muito sabe disso e dá ordens a Kedril para arrumar as coisas e preparar o jantar. Kedril é cobarde e glutão. Ao ouvir falar dos diabos, empalidece e treme como uma folha ao vento. Gostaria de fugir, mas tem medo do amo. Além disso, tem fome. É voluptuoso, estúpido, manhoso à sua maneira, cobarde, a cada passo aldraba o amo e, ao mesmo tempo, teme-o. É um tipo admirável de criado, realmente muito bem encarnado, em que, vaga e longinquamente, transparecem as características de Leporello. Potséikin tem um incontestável talento e, a meu ver, é ainda melhor ator do que Baklúchin. Quando no dia seguinte me encontrei com Baklúchin, é evidente que não lhe exprimi a minha opinião: não queria dar-lhe esse desgosto. O recluso que fez o papel de amo também actuou muito bem. Dizia uns disparates terríveis, sem pés nem cabeça, mas a dicção era correta, clara, os gestos correspondiam. Enquanto Kedril se atarefa com as malas, o amo anda pensativo pelo palco e anuncia em voz alta que essa noite marcará o fim das suas viagens. Kedril escuta com curiosidade, faz caretas, diz apartes e, com cada palavra, faz rir o público. Não tem pena do amo, mas ouviu falar de diabos; gostaria de saber do que se trata e, então, põe-se a fazer perguntas. Finalmente, o amo explica-lhe que, em tempos, numa situação difícil, ele pedira ajuda ao Inferno e que os diabos lhe valeram. Mas chegara o dia combinado e, talvez hoje mesmo, eles viriam buscar a sua alma. Kedril fica com muito medo. Mas o amo não perde o sangue-frio e manda-lhe preparar o jantar. Ouvindo falar de jantar, Kedril anima-se, tira o frango, tira a bebida e, volta e meia, arranca um bocado do frango e come. O público ri. Range a porta, o vento faz bater as portadas; Kedril treme e, apressada, quase inconscientemente, mete na boca um grande bocado de frango que não consegue engolir. Outra vez risos na sala. «Isso está pronto?», grita o amo, andando pelo palco. «Espere, meu senhor... já lho... preparo», diz Kedril, que se senta à mesa e começa, na maior das calmas, a regalar-se com o jantar do amo. Ao público, pelos vistos, agrada a desenvoltura e a astúcia do criado, e o facto de o amo estar a ser aldrabado. É de confessar que, de facto, Potséikin merecia todos os louvores que lhe faziam. Foi excelente a dizer a fala «espere, meu senhor, já lho preparo». Sentado à mesa, come com avidez e estremece a cada passada do amo, com medo de que ele descubra as suas diabruras; mal o amo se vira, Kedril esconde-se debaixo da mesa, levando consigo o frango. Por fim, satisfeita a primeira fome, já é tempo de pensar no amo. «Kedril, demoras muito?», grita o amo. «Está pronto», responde logo Kedril, lembrando-se de que não deixara quase nada para o amo: no prato está apenas uma coxa de frango. O amo, sombrio e preocupado, nem repara, senta-se à mesa, e Kedril, com o guardanapo no braço, põe-se atrás da sua cadeira. Cada palavra, cada gesto, cada trejeito de Kedril quando, virando-se para o público, aponta com a cabeça para o simplório do amo, são recebidos com risos desenfreados. Ora, mal o amo começa a comer, aparecem os diabos. Aqui, já é impossível perceber-se seja o que for; até porque não é normal a maneira como os diabos aparecem: nos bastidores laterais abre-se uma porta e surge uma figura de branco, com um lampião de vela em vez de cabeça; a outra avantesma também tem por cabeça um lampião e, nas mãos, uma gadanha. Porquê os lampiões, porquê a gadanha, por que vêm de branco os diabos? Ninguém pode explicá-lo. De resto, ninguém pensa nisso. Pelos vistos, tem de ser assim. O amo, com bastante coragem, vira-se para os diabos e grita-lhes que está pronto, que podem levá-lo. Quanto ao Kedril, acobarda-se como uma lebre — mete-se debaixo da mesa mas, apesar do susto, não se esquece de levar a garrafa. Os diabos desaparecem por um instante; Kedril sai de debaixo da mesa; porém, mal o amo volta ao frango, irrompem três diabos de uma vez no quarto, agarram o amo por trás e levam-no para o inferno. «Kedril! Salva-me!», grita o amo. Mas o Kedril não está para isso. Desta vez, leva para debaixo da mesa a garrafa, o prato e também o pão. Agora está sozinho, não há diabos nem amo. Kedril sai de debaixo da mesa, olha à volta, um sorriso ilumina-lhe a cara. Aperta os olhos manhosos, senta-se no lugar do amo e, acenando com a cabeça para o público, diz num meio sussurro:

— Agora estou sozinho... sem amo!...

Todos riem por ele estar sem amo; mas ele acrescenta na mesma voz, dirigindo-se confidencialmente ao público e piscando o olho com uma alegria cada vez maior:

— É que os diabos levaram-me o amo!...

O entusiasmo dos espectadores não tem limites! Afora o amo ter sido levado pelos diabos, a coisa foi dita com tanta pirraça, com uma careta tão irónica e triunfal que, na verdade, era impossível não aplaudir. A felicidade de Kedril, porém, não dura muito. Mal tem tempo de pegar na garrafa, de encher o copo e de o levar à boca, voltam de repente os diabos, aproximam-se dele por trás, em bicos de pés, e agarram-no. Kedril grita a plenos pulmões; por cobardia, não se atreve a virar a cabeça. Também não pode defender-se: tem nas mãos a garrafa e o copo, que é incapaz de largar. Com a boca escancarada de terror, fica meio minuto espantado, esbugalhando os olhos para o público, com uma expressão de susto tão engraçada que, francamente, se poderia pintar-lhe o retrato. Finalmente, levam-no para fora; a garrafa vai com ele; bate com os pés e grita, grita. Chegam-nos os seus gritos dos bastidores. O pano cai, todos riem, se entusiasmam... A orquestra ataca a «Kamárinskaia».

Os músicos começam baixinho, quase imperceptivelmente, mas a melodia vai subindo de tom, o ritmo torna-se cada vez mais célere, rufam com galhardia os dedos nas caixas das balalaicas... É a «Kamárinskaia» em toda a sua pujança e, palavra de honra, seria bom que, por acaso, o próprio Glinka a ouvisse na nossa prisão. Começa a pantomima com música. A «Kamárinskaia» não para durante toda a pantomima. O cenário é o interior de uma isbá. No palco está o moleiro e a sua mulher. O moleiro, num canto, conserta um arreio, a mulher, no outro canto, fia linho. A mulher é Sirótkin, o moleiro é Netsvetáev.

Direi de passagem que o cenário é muito pobre. Nesta peça e nas anteriores, o espectador preenche-o mais com a sua imaginação do que o vê com os olhos. Em vez de pano de fundo, estende-se um tapete, ou um xairel; dos lados estão uns biombos imprestáveis. O lado esquerdo não fora tapado com nada, pelo que se veem os catres. Mas os espectadores não são exigentes e estão prontos a complementar a realidade com a imaginação, até porque todos têm grande jeito para isso: «Dizem-te que é um jardim, toma-o por jardim; dizem-te que é um quarto, pois que seja um quarto; uma isbá — seja isbá; não importa, não são cá precisas cerimónias.» O Sirótkin, trajado de jovem campónia, é muito querido. Entre os espectadores ouvem-se, a meia-voz, alguns elogios. O moleiro acaba o trabalho, pega no chapéu, no chicote, aproxima-se da mulher e explica-lhe com gestos que tem de ir, mas que, se a mulher, na sua ausência, receber alguém, então... e o moleiro aponta o dedo para o chicote. A mulher ouve e acena com a cabeça. Aquele chicote, pelos vistos, é seu velho conhecido: a mulherzinha farta-se de enganar o marido. Mal ele sai pela porta, a mulher brande-lhe o punho às costas. Depois, batem à porta; a porta abre-se, aparece um vizinho, também moleiro, mujique de cafetã e barba. Traz-lhe um presente nas mãos, um lenço vermelho. A mulherzinha ri; mas quando o vizinho quer abraçá-la, voltam a bater à porta. Que fazer? Esconde-o apressadamente debaixo da mesa e volta ao seu fuso. Entra outro admirador: é um escrivão de uniforme militar. Até ao momento, a pantomima vem decorrendo impecável, com os gestos corretíssimos. Admiráveis, estes atores improvisados! Passava-me involuntariamente pela cabeça: quantas forças e quanto talento se perde em vão na nossa Rússia por entre a escravidão e a vida de desgraça! Entretanto, o recluso que fazia de escrivão era um que, pelos vistos, participara outrora num teatro de província e achava que os nossos atores não sabiam representar nem estar no palco como é devido. Ei-lo então que se põe a andar como, segundo dizem, andavam antigamente no palco os heróis clássicos: dá um passo largo e, sem avançar com o outro pé, para de repente, lança para trás todo o corpo, com a cabeça bem empinada e, olhando orgulhosamente em volta... dá outra passada. Se esta forma de andar já era ridícula nos heróis clássicos, no escrivão militar de uma cena cómica resultava ainda mais ridículo. Mas o nosso público pensava que, pelos vistos, tinha de ser mesmo assim, e aceitou os passos compridos do escrivão esgrouviado como um facto consumado, sem qualquer crítica. Ainda o escrivão não tivera tempo de chegar ao meio do palco e já se ouvia mais um bater à porta; a dona de casa voltou a alarmar-se. Onde podia meter o escrivão? Na arca, que graças a Deus estava aberta. O escrivão enfia-se na arca, a dona de casa fecha a tampa. Desta vez o visitante é especial, também um apaixonado, mas especial. É um brâmane, e vestido como tal. O papel de brâmane é feito, na perfeição, pelo recluso Kóchkin. Tem mesmo figura de brâmane. Explica gestualmente toda a grandeza do seu amor. Ergue as mãos para o céu, aperta-as contra o peito, no coração; também ele, mal tem tempo de se enlanguescer de amor, e já batem de novo à porta com força. Agora, fica claro que é o dono da casa. A mulher assustada perde a cabeça, o brâmane corre como um maluco pelo quarto e suplica que o escondam. Toda afobada, a mulherzinha esconde-o por trás do armário e, esquecendo-se de abrir a porta, atira-se ao seu trabalho e fia, fia sem querer ouvir as pancadas do marido na porta, tão assustada que torce o fio sem o ter nos dedos e gira o fuso sem o ter levantado do chão. Sirótkin representou muito bem este susto. O dono da casa arromba a porta e, com o chicote em punho, acerca-se da mulher. Viu tudo e mostra-lhe abertamente com três dedos levantados que ela tem três homens escondidos. Depois, procura-os. Primeiro, encontra o vizinho e expulsa-o aos socos do quarto. O escrivão acobardou-se, quis fugir dali e, levantando a tampa da arca com a cabeça, fez-se apanhar. O dono da casa escorraçou-o a chicote e, desta vez, o escrivão fugiu aos saltinhos de um modo pouco clássico. Faltava o brâmane. O dono da casa procura-o demoradamente e, por fim, encontra-o num canto, por trás do armário, faz-lhe uma vénia educada e tira-o de lá puxando-o pela barba. O brâmane tenta defender-se, grita: «Maldito, maldito!» (únicas palavras ditas na pantomima), mas o marido não se impressiona e dá-lhe uma sova. A mulher, ao ver que chegara a sua vez, larga a fiada e o fuso, e corre pelo quarto; o assento cai ao chão, os reclusos riem. Alei, sem olhar para mim, puxa-me pelo braço e grita: «Olha, o brâmane, o brâmane!», e quase não se aguenta nas pernas de tanto riso. Cai o pano. Começa outro quadro.

Não vale a pena descrever aqui todos os quadros. Eram ainda mais dois ou três. Tudo cenas cómicas e ingenuamente alegres. Mesmo não sendo da autoria dos reclusos, sem dúvida que estes introduziram neles a sua própria fantasia. Quase todos os atores improvisavam, pelo que, nas noites seguintes, o mesmo ator fazia o mesmo papel com algumas variações. A última pantomima, de cariz fantástico, terminava com um bailado. Decorre um funeral. O brâmane e a sua numerosa criadagem tentam ressuscitar o morto com palavras mágicas, mas nada resulta. Por fim, alguém grita: «É o pôr do Sol!» O morto ressuscita e todos começam a dançar de alegria. O brâmane dança com o morto e fá-lo de forma muito original, à maneira dos brâmanes. Assim acaba o espetáculo, por hoje, até à próxima noite. Todos os nossos saem alegres, contentes, louvam os atores e agradecem ao sargento. Não se ouve a mais pequena discussão. Toda a gente está inusitadamente alegre, mesmo feliz, e adormece com um humor diferente, quase tranquilo... e que razão tão forte o motivou? Nada disto é fantasia minha. É a verdade das verdades. Deixaram esta pobre gente viver um pouco à sua maneira, divertir-se de forma humana normal, viver uma horinha fora das regras prisionais — e as pessoas mudaram moralmente, nem que fosse apenas por uns minutos... Já vai alta a noite. Estremeço e acordo: o velho ainda reza em cima do fogão, irá rezar até ao alvorecer. Alei dorme serenamente a meu lado. Lembro-me de que ainda ao adormecer ele se ria, falando com os irmãos sobre o teatro, e olho com prazer para o seu rosto calmo e infantil: a pouco e pouco recordo tudo: o último dia, as festas, o último mês... levanto a cabeça, assustado, e passo o olhar pelos meus companheiros a dormirem à luz baça e tremente da pequena vela prisional. Olho para os seus rostos pálidos, para as suas camas miseráveis, para toda esta pobreza extrema... olho... e tento convencer-me de que tudo isto não é a continuação de um pesadelo monstruoso, mas a realidade. E é mesmo a realidade: ouve-se um gemido, alguém lança pesadamente um braço para o lado, tinem grilhetas. Há outro que estremece no sono e começa a falar; o avô em cima do fogão reza por todos os «cristãos ortodoxos», ouvindo-se a sua voz monótona e cantante: «Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, sê misericordioso connosco...»

«Não vou cá ficar para todo o sempre, são só alguns anos!» — penso e volto a pousar a cabeça na almofada.

25Vaudeville popular de P. Grigóriev. A partir de 1831, foi encenado várias vezes em Petersburgo. (NT )


SEGUNDA PARTE


1

O hospital

Pouco tempo depois das festas adoeci e fui para o nosso hospital militar. Ficava a meia verstá do forte. Era um prédio comprido, de piso térreo, pintado de amarelo. No verão, quando o submetiam a obras, gastavam nele grandes quantidades de ocra. No vasto terreiro do hospital estavam dispostas construções de serviço, as casas dos chefes hospitalares e outras. No edifício principal havia só as enfermarias. Eram muitas, mas só duas delas eram prisionais, e estavam sempre cheias, sobretudo no verão, pelo que muitas vezes era preciso juntar as camas. As nossas duas enfermarias enchiam-se de todo o género de «desgraçados». Não só os presidiários mas também os réus militares que estavam nas cadeias do exército, os condenados, os ainda não condenados, e os de trânsito; iam lá parar também os da companhia correcional — um estabelecimento estranho para onde mandavam os soldadinhos transgressores e inseguros dos batalhões de reeducação e donde, passados dois ou mais anos, eles saíam transformados em canalhas tais que era difícil encontrar semelhantes em qualquer outra parte. Os reclusos doentes, normalmente, avisavam da sua doença o sargento, logo de manhã. Eram inscritos de imediato no livro e, com esse livro, enviados sob escolta para o posto médico do batalhão. Ali, o doutor examinava previamente todos os doentes dos destacamentos militares do forte e, se achasse alguém na verdade doente, mandava-o internar no hospital. Registaram o meu nome no livro e, quando todos os nossos já tinham ido para os trabalhos da tarde, passava da uma, fui para o hospital. O recluso doente costumava levar consigo dinheiro e pão, quanto podia, porque no dia de entrada não podia contar com as refeições do hospital; levava também um cachimbo minúsculo e um saquinho com tabaco, uma pederneira e um fuzil. Estes últimos objetos eram muito bem escondidos nas botas. Entrei no terreiro do hospital com certa curiosidade, pois esta era uma faceta nova da minha vida prisional.

O dia era tépido, sombrio e triste — um daqueles dias em que estabelecimentos como os hospitais tomam um aspeto ainda mais prosaico, tristonho e azedo. Entrei com o escolta na sala de receção, onde havia duas banheiras de cobre e onde já se encontravam à espera dois doentes, dois réus ainda não julgados, também com um guarda de escolta. Entrou um auxiliar médico, lançou-nos um olhar autoritário e preguiçoso e, ainda com maior preguiça, foi informar da nossa chegada o médico de serviço. Este apareceu sem demora; examinou-nos, tratou-nos com muito carinho e entregou-nos as fichas clínicas, onde já estavam inscritos os nossos nomes — o futuro preenchimento da ficha, com a descrição e evolução da doença, as prescrições de medicamentos, as doses, etc., estariam a cargo do médico interno que geria as enfermarias. Já tinha ouvido dizer que os reclusos gostavam muito dos seus médicos. «São uns pais para nós!» — era a resposta que davam às minhas perguntas quando eu me preparava para ir para o hospital. Entretanto, mudámos de roupa — tiraram-nos a roupa prisional e deram-nos a hospitalar, e ainda meias compridas, pantufas, barretes e roupões de pano grosso de cor parda, forrados a linho. Ora bem, o roupão estava sujíssimo, mas só lhe vim a dar o devido valor na enfermaria. Depois levaram-nos para as enfermarias dos presos, que se encontravam no fim do corredor muito comprido, limpo, de teto alto. O asseio exterior era bastante satisfatório por todo o lado; à primeira vista, tudo brilhava de limpo. De resto, podia ser impressão minha, uma vez que vinha da nossa prisão. Os dois réus entraram na enfermaria da esquerda, a minha era a da direita. À porta, fechada com uma tranca de ferro, estava um sentinela de espingarda e, ao lado dele, o que o renderia em caso de necessidade. O furriel (da guarda hospitalar) mandou que me deixassem passar e fui parar a uma sala comprida e estreita, com camas ao longo de ambas as paredes — eram vinte e duas; entre elas, três ou quatro estavam ainda desocupadas. As camas eram de madeira, pintadas de verde, muito familiares a toda a gente na Rússia: são aquelas camas que, por uma predestinação qualquer, não podem existir sem percevejos. Instalei-me ao canto, do lado onde havia janelas.

Como já disse, estavam lá também outros reclusos da nossa prisão. Alguns deles já me conheciam ou, pelo menos, já me tinham visto antes. Os outros pacientes, a maioria, eram réus à espera de julgamento ou presos da companhia militar correcional. Não havia muitos doentes graves, dos que não se levantam das camas. A maioria deles tinham doenças menos graves ou eram convalescentes, e estavam sentados nas camas ou andavam para trás e para a frente na enfermaria, visto que o espaço entre as duas fiadas de camas dava perfeitamente para passear. O cheiro da enfermaria era hospitalar, sufocante. O ar estava empestado de uma mistura de emanações pestilentas e do cheiro a medicamentos, que nem a lenha a arder no fogão, a um canto e quase sempre aceso, remediava. A minha cama tinha uma coberta às riscas. Tirei-a. Sob a coberta havia um cobertor de pano forrado a linho e roupa de cama grossa, de limpeza duvidosa. Ao lado estava uma mesinha de cabeceira, com uma caneca e uma chávena de estanho em cima. Tudo isso estava coberto, pelo decoro, com uma toalha pequena. Na parte de baixo da mesinha costumavam os doentes guardar, entre outras coisas, uma bilha de kvass e uma chaleira que arranjassem, embora, entre os doentes, houvesse poucos que tomassem chá. Os cachimbos e o tabaco, que quase toda a gente tinha, incluindo os tísicos, eram escondidos debaixo do colchão. O doutor e os outros chefes quase nunca faziam lá vistoria e, se acaso apanhavam alguém com cachimbo, faziam vista grossa. De resto, os doentes eram quase sempre muito prudentes e iam fumar para junto do fogão. Apenas de noite se fumava na cama, mas de noite ninguém passava pelas enfermarias, a não ser, raras vezes, o oficial, chefe da guarda hospitalar.

Até então, nunca tinha estado internado num hospital; por isso, tudo à minha volta era novo para mim. Reparei que suscitava alguma curiosidade. Já tinham ouvido falar de mim e observavam-me sem quaisquer cerimónias, até com um toque de superioridade, como se olha nas escolas para um aluno novo ou nas instituições oficiais para um requerente. À minha direita estava um réu, escrivão, filho ilegítimo de um capitão na reserva. Estava a ser julgado por falsificação de moeda e mantinha-se internado havia quase um ano, sem ter qualquer doença, ao que parece, mas garantindo aos doutores que tinha aneurisma. Conseguiu os seus objetivos: evitou os trabalhos forçados e o castigo corporal, sendo mandado, transcorrido mais um ano, para a cidade de T..., para que pudesse ser mantido junto de algum hospital. Era um homem robusto e atarracado, dos seus vinte e oito anos, grande trapaceiro e grande conhecedor das leis, nada parvo, extremamente desembaraçado e presumido, quase doentiamente vaidoso e que se tinha convencido a si mesmo, muito a sério, de que era o mais honesto e verdadeiro homem do mundo e que estava preso sem culpa nenhuma; ficou-lhe para sempre essa convicção. Foi o primeiro a meter conversa comigo; começou por me sondar com curiosidade e falou-me depois, com bastante pormenor, das regras formais do hospital. A primeira coisa que me declarou, evidentemente, foi que era filho de capitão. Tinha grande vontade de passar por fidalgo ou, pelo menos, por originário «dos nobres». A seguir veio ter comigo um paciente da companhia correcional que começou por me assegurar que tinha conhecido muitos fidalgos deportados, enumerando-os pelo nome e patronímico. Era um soldado já de cabelo branco e via-se-lhe pela cara que estava a mentir. Chamava-se Tchekunov. Tentava ganhar a minha confiança, pelos vistos, suspeitando de que eu tinha dinheiro. Ao reparar no meu embrulho com chá e açúcar, ofereceu-me de imediato os seus serviços: arranjar uma chaleira e fazer-me chá. Ora, o M...ki já tinha prometido mandar-me da nossa prisão uma chaleira por algum dos reclusos que andasse em trabalhos no hospital. Tchekunov, porém, fez tudo. Arranjou um pote de ferro, arranjou mesmo uma chávena, pôs água a ferver, preparou o chá, enfim, serviu-me com grande aplicação, o que provocou de imediato algumas piadas cáusticas por parte de um dos doentes, por sinal tísico. Estava deitado na cama frontal à minha, chamava-se Ustiántsev e era um dos soldados sob processo, o mesmo que, por medo do castigo corporal, bebera uma infusão forte de tabaco em vodka, o que lhe provocara a tísica; já tinha falado dele antes. Até então tinha-o visto estendido na cama, calado, respirando com dificuldade, examinando-me com um ar muito atento e sério e seguindo com indignação o que fazia Tchekunov. A sua extrema seriedade biliosa dava um toque de comicidade à sua indignação. Por fim, não aguentou:

— Olha para este servo! Arranjou um amo! — pronunciou pausadamente e com uma voz sufocada de fraqueza. Estava nas últimas.

Tchekunov virou-se para ele com indignação:

— Quem é servo aqui? — perguntou, olhando com desprezo para Ustiántsev.

— Tu és servo! — respondeu este num tom tão convencido como se tivesse o pleno direito de admoestar Tchekunov, e como se tivesse sido encarregado, até, de o fazer.

— Eu sou servo?

— Tu, claro. Estais a ouvir, boa gente? Não acredita! Ainda fica espantado!

— E o que tens a ver com isso? Não vês que o senhor está sozinho, sem ajuda nenhuma? Não está habituado a viver sem criado, isso é evidente. Por que é que não se pode servi-lo, seu palhaço de focinho felpudo?

— Quem é focinho felpudo?

— Tu!

— Eu?!

— Tu, sim!

— E tu, achas-te um bonitão? Tens cara de ovo de gralha... se eu tenho focinho felpudo.

— E não tens? Deus já te condenou à morte, era melhor ficares quieto! Mas não, mete-se em tudo! Por que te metes?

— Porquê, porquê... Não, é que eu faço vénias à bota, não as faço à alpargata. O meu pai não fazia vénias a ninguém e a mim ensinou-me a também não as fazer. Eu... eu...

Queria muito continuar, mas impediu-lho um ataque terrível de tosse, que durou uns cinco minutos, cuspindo sangue. O suor frio da extenuação cobriu-lhe rapidamente a testa estreitinha. Mas falaria mais, se não fosse a tosse: via-se-lhe pelos olhos a vontade que tinha de discutir; assim, limitava-se a abanar a mão, exausto... Tchekunov acabou por se esquecer dele.

Senti que a raiva do tísico era mais dirigida contra mim do que contra o Tchekunov. O desejo de Tchekunov de ser serviçal e de ganhar o seu copeque com isso não levaria ninguém a zangar-se assim com ele nem a olhá-lo com tanto desprezo. Toda a gente percebia que o fazia simplesmente por dinheiro. Neste particular, o povo não tem grandes escrúpulos e sabe distinguir do que se trata. De quem Ustiántsev não gostou foi de mim, não gostou do meu chá nem que eu me comportasse, mesmo de grilhetas, como um senhor que não pode passar sem criados; de resto, eu não tinha convidado ninguém nem queria ter criados nenhuns. Na verdade, sempre quis fazer tudo sozinho e até me esforçava por não parecer a ninguém um mandrião mimado, um senhor. Já que falo do assunto agora, direi que havia nisso, em parte, um ponto de amor-próprio. No entanto — e, francamente, não compreendo por que acontecia sempre assim — nunca conseguia recusar os serventes de todo o género que se me impunham e que, por fim, me dominavam por completo, sendo eles, na realidade, os meus senhores e eu o criado deles; pela aparência, resultava espontaneamente que eu era um amo e não sabia viver sem criados. Como é evidente, tal circunstância dava-me um grande desgosto. Ustiántsev, porém, era tísico e irritadiço. Os restantes pacientes mantinham para comigo um ar indiferente, com um toque de altivez. Lembro-me de que todos estavam preocupados com uma circunstância especial: pelas conversas que ouvi, fiquei a saber que, na mesma noite, trariam um condenado que, neste preciso momento, estava a ser punido com as vergastas. Os presos esperavam por ele com certa curiosidade. Diziam, aliás, que o castigo era leve — apenas quinhentas vergastadas.

A pouco e pouco, ia observando tudo à minha volta. Descobri que os doentes verdadeiros que aqui se encontravam sofriam principalmente de doenças dos olhos e do escorbuto — doenças típicas locais. Havia vários destes na nossa enfermaria. Entre os outros doentes verdadeiros, havia quem sofresse das febres, de problemas de peito e de pele. Aqui, diferentemente das outras enfermarias, não havia separação por doenças, inclusive venéreas. Falo de «doentes verdadeiros» porque há quem esteja cá por nada, apenas para «descansar». Os doutores aceitavam-nos de boa vontade, por compaixão, sobretudo quando havia muitas camas vagas. As condições nos estabelecimentos prisionais pareciam tão más, em comparação com as hospitalares, que muitos presos se deixavam internar com prazer, apesar do ar abafado das enfermarias fechadas. Existiam mesmo os grandes amantes da vida hospitalar, sendo eles, antes de mais, os da companhia correcional. Eu observava com curiosidade os meus novos companheiros, mas — lembro-me — houve um doente, já moribundo, que me provocou uma curiosidade muito especial: era da nossa prisão, também tísico, em último grau, deitado a duas camas de Ustiántsev, portanto, também quase à minha frente. Chamava-se Mikháilov e eu vira-o na prisão ainda duas semanas antes. Havia muito que estava doente e se deveria tratar; no entanto, aguentou-se com uma paciência persistente e inútil de todo, e só por alturas do Natal foi para o hospital, para morrer, com uma tísica terrível — parecia que o fogo o consumira — e só cá durou três semanas. Impressionava-me, agora, o seu rosto assustadoramente alterado — um dos primeiros rostos a atrair a minha atenção no presídio, uma cara que, não sei porquê, me saltou logo aos olhos. Na cama ao lado da dele estava um soldado da companhia correcional, já velho, abominavelmente desleixado... Aliás, não posso pôr-me aqui a enumerar todos os doentes. Lembrei-me deste velho unicamente porque, nesse dia, também me causou uma certa impressão e, num instante, me deu uma noção bastante completa de algumas particularidades da enfermaria dos presos. Este velho, lembro-me, tinha uma constipação fortíssima. Não parava de espirrar e, durante uma semana inteira, espirrava mesmo no sono, às salvas de cinco ou seis espirros de cada vez, acompanhando-as sempre com as palavras: «Meu Deus, por que me mandas este castigo!» Naquele momento estava sentado na cama e, avidamente, enchia o nariz de rapé que tirava de um embrulho de papel, para se assoar mais eficazmente com os espirros. Espirrava para um lenço de algodão, propriedade sua, aos quadradinhos sem cor porque fora cem vezes lavado; para o espirro, o seu nariz franzia-se de modo muito peculiar, formando inúmeras ruguinhas minúsculas, fazendo com que se exibissem os restos dos dentes velhos e enegrecidos juntamente com umas gengivas vermelhas e babosas. Depois de espirrar, desdobrava o seu lenço, observava com atenção o escarro abundante e, de imediato, limpava o lenço com o seu roupão pardo do hospital — o escarro passava para o roupão, o lenço ficava apenas húmido. Fez isto durante toda a semana. Esta maneira mesquinha e sovina de poupar o seu lenço particular em detrimento do roupão público não provocava qualquer protesto da parte dos outros doentes, embora algum deles ainda viesse a vestir, depois do velho, aquele mesmo roupão. É que o nosso povo simples, estranhamente, é pouco enjoadiço. Quanto a mim, estremeci de repugnância ao vê-lo fazer isso e comecei, involuntariamente, a examinar com nojo e curiosidade o roupão que acabara de vestir. Mais uma vez, notei nele o cheiro forte que já me tinha chamado a atenção; já tivera tempo de se aquecer no meu corpo e cheirava cada vez mais a medicamentos, a emplastros e, ao que parecia, a uma supuração qualquer, o que não era de estranhar, já que, desde tempos imemoriais, não era tirado dos sucessivos ombros dos doentes. Talvez tenham limpado ao menos uma vez o forro de linho do roupão, mas não tenho a certeza. No presente momento, este forro está impregnado de todos os possíveis e impossíveis sucos, águas de végeto, pus, líquidos de emplastros, etc. Além disso, chegavam muitas vezes às enfermarias dos presos homens com as costas em sangue, depois do castigo com as vergastas; tratavam-nos com soluções medicamentosas, por isso o roupão, vestido diretamente por cima da camisa molhada, sujava-se e ficava assim, acabando inevitavelmente por se estragar. Durante todos os meus anos de prisão, quando ia parar ao hospital (o que acontecia com frequência), vestia o roupão, de cada vez, com grande desconfiança. Desagradavam-me sobretudo os piolhos que viviam nos interstícios destes roupões, grandes e admiravelmente gordos. Os presos executavam-nos com prazer e, quando sob a grossa e rude unha do preso estalava o bicho executado, era possível julgar pela própria cara do caçador da satisfação que experimentava. Também não gostavam dos percevejos e, às vezes, punham-se a exterminá-los nalgum fim de tarde invernal, longo e enfadonho. Embora na enfermaria, excetuando o cheiro pesado, tudo fosse, exteriormente, mais ou menos limpo, estava longe de haver o correspondente asseio interior, ou dos forros, por assim dizer. Os doentes estavam habituados a isso e até achavam que devia ser assim, além de que as disposições regulamentares não davam azo a que houvesse grande asseio. Mas das regras falarei mais tarde...

Mal o Tchekunov tinha acabado de me servir o chá (feito, a propósito, com a água da enfermaria, que era trazida de uma vez para todo o dia e que, no nosso ar, se estragava demasiado depressa), abriu-se a porta com algum barulho, e foi introduzido, sob escolta reforçada, o soldadinho acabado de vergastar. Foi a primeira vez que vi um castigado. Futuramente, haveriam de trazê-los muitas vezes, alguns em braços — os que tinham apanhado um castigo demasiado duro — e isso era sempre uma diversão para os doentes. Recebiam o castigado com uma expressão de rosto muito séria e com uma severidade um tanto fingida. Aliás, a receção dependia, em parte, da gravidade do crime cometido e da correspondente dureza do castigo. Quem fosse mais cruelmente vergastado e tivesse maior reputação de grande criminoso, gozava de maior respeito e maior atenção do que um recruta desertor, como este que nos trouxeram neste dia. Porém, em nenhum dos casos se mostrava qualquer compaixão ou se faziam quaisquer observações irritantes. Ajudava-se o desgraçado em silêncio e cuidava-se dele, sobretudo se a ajuda fosse imprescindível. Os auxiliares médicos já sabiam que o castigado ficava em mãos hábeis e experientes. A ajuda consistia, normalmente, em aplicar um lençol ou uma camisa molhados em água fria nas costas martirizadas e mudá-los com frequência, sobretudo se o castigado tinha ficado sem forças para tratar de si; além disto, o tratamento consistia também na extração hábil das lascas que muitas vezes se cravavam nas costas quando os paus se partiam por baterem com mais força nelas. Esta última operação, normalmente, é muito desagradável para o paciente, mas, no geral, sempre me surpreendeu muito a extraordinária firmeza com que os castigados suportam a dor. Vi muitos deles, às vezes castigados com uma crueldade excessiva, que quase não gemiam! Só o rosto se transfigurava e empalidecia: os olhos ardentes, o olhar inquieto mas distraído, os lábios trementes, que o coitado morde, propositadamente, quase até ao sangue. O soldadinho que chegou era um rapaz de vinte e três anos, de sólida e musculada compleição, cara bonita, alto, esbelto, pele morena. As suas costas tinham sofrido grandes estragos. O corpo estava desnudo até à cintura; sobre os ombros tinham-lhe lançado um lençol molhado que o fazia tremer como se tivesse terçãs; andou cerca de uma hora e meia pela enfermaria, para trás e para a frente. Espreitei-lhe para a cara: parecia não pensar em nada, tinha um olhar estranho, enlouquecido, fugidio — pelos vistos custava-lhe fixá-lo em qualquer coisa. Pareceu-me que parou o olhar no meu chá. O chá estava quente, o vapor erguia-se da chávena, e o pobre batia os dentes de frio. Convidei-o a tomar chá. Virou-se brusca e silenciosamente para mim, pegou na chávena, engoliu o líquido, sem açúcar; fazia tudo isto muito depressa e tentava não olhar para mim de maneira alguma. Esvaziada a chávena, pousou-a em silêncio e, sem sequer me acenar com a cabeça, recomeçou a andar pelo quarto. Não estava para palavras nem acenos! Quanto aos outros, a princípio evitavam, não sei porquê, falar com o recruta castigado; pelo contrário, tendo-o ajudado nos primeiros momentos, pareciam esforçar-se por não lhe dar mais atenção, pretendendo talvez deixá-lo no máximo sossego e não o incomodar com atenções e «compaixões»; o recruta, ao que parecia, estava perfeitamente satisfeito com isso.

Entretanto, escurecia, acenderam a lâmpada noturna. Alguns dos presos, aliás muito poucos, tinham os seus próprios castiçais. Por último, já depois da visita da noite do doutor, entrou o sargento da guarda, contou os doentes e a enfermaria foi fechada, depois de terem trazido o balde dos despejos noturno... Fiquei a saber, com espanto, que esse balde ficaria lá toda a noite, apesar de a retrete se encontrar muito perto, no corredor, a dois passos da porta. Mas eram essas as regras estabelecidas. De dia ainda deixavam um preso sair da enfermaria, não mais do que por um minuto, aliás, mas de noite era categoricamente proibido. As enfermarias dos presos eram diferentes das enfermarias normais, e considerava-se que o preso, mesmo durante a doença, estava a cumprir castigo. Não sei quem foi o primeiro a estabelecer tais regras, sei apenas que não havia nelas qualquer ordem ou sentido e que nunca a inútil essência das formalidades se manifestara de modo tão relevante do que neste caso, por exemplo. Tais regras não provinham, evidentemente, dos médicos, considerados uns pais para nós e muito respeitados. Cada qual recebia deles um carinho, uma palavra bondosa; ora, o preso, rejeitado por todos, dava um alto valor a estas coisas, até porque se apercebia da sinceridade desse carinho e dessa palavra bondosa. E a tanto não eram obrigados: ninguém censuraria os médicos se tratassem os presos de outro modo, mais bruto e desumano. A bondade deles era, pois, um puro humanismo. Os médicos entendiam, é claro, que qualquer doente, fosse recluso ou não, precisava do mesmo ar fresco que um doente da mais alta condição. Os doentes de outras enfermarias, os convalescentes, por exemplo, podiam circular livremente pelos corredores, fazer exercício, respirar um ar menos empestado do que as emanações sufocantes das enfermarias. Agora, é terrível, é abominável para mim imaginar até que ponto o ar da nossa enfermaria, já de si imundo por causa do calor excessivo e do amontoado de pessoas com doenças que exigiam retrete, se devia empestar durante a noite quando se enchia o balde. Se há pouco eu disse que o preso, mesmo doente, continuava a cumprir a sua pena, não supunha, nem suponho, evidentemente, que tais regras foram estabelecidas para, tão-só, fazerem parte do castigo. Tal suposição, da minha parte, seria uma calúnia absurda. Não faz sentido castigar os doentes. Apesar disso, é evidente que existia uma qualquer severa necessidade que obrigava os chefes a tomarem esta medida tão nociva pelas suas consequências. Mas, que necessidade era essa? Pois, o mais revoltante é que não é possível explicar a necessidade de tal medida por qualquer outro motivo; e, além desta, de muitas outras medidas a tal ponto incompreensíveis que é impossível não só explicar como imaginar qualquer explicação. O que justifica esta crueldade inútil? Que um preso, fingindo uma doença, enganará os doutores, entrará para o hospital, irá de noite à retrete e, a coberto da escuridão, fugirá? Não vale a pena, é quase impossível equacionar o absurdo deste raciocínio. Fugirá para onde? Fugirá como? Vestido com quê? Se de dia deixam sair um a um, por que não de noite? À porta está uma sentinela armada, a retrete é a dois passos da sentinela e, mesmo assim, o doente é acompanhado à retrete pela sentinela-ajudante, que não tira os olhos dele. Na retrete só há uma janela, de caixilhos duplos — apropriada para o inverno — e com grades de ferro. Debaixo da janela, no pátio, anda sempre ao longo das enfermarias outra sentinela. Para o preso sair pela janela, teria de rebentar com as caixilharias duplas e com as grades. Quem o deixaria fazê-lo? Digamos que mata a sentinela-ajudante, de maneira a que esta não tenha tempo sequer de emitir um som. Aceite-se este absurdo; porém, é sempre necessário derrubar a janela e as grades. Repare-se que, muito perto, mesmo ao lado da sentinela, dormem os guardas da enfermaria e, a dez passos deles, junto a outra enfermaria de presos, está outra sentinela com a espingarda carregada, outra sentinela-ajudante e outros guardas. E para onde se pode fugir, no inverno, de meias, de pantufas, de roupão e de barrete hospitalares? Sendo assim, havendo por conseguinte tão poucos perigos de evasão (na verdade, não há nenhum), para quê este agravamento da situação dos doentes, se calhar nas últimas horas e nos últimos dias das suas vidas, doentes para quem o ar puro é ainda mais importante do que para as pessoas saudáveis? Para quê? Nunca consegui percebê-lo...

Ora, já que foi feita a pergunta «para quê?», já que comecei a falar disso, não deixarei de recordar, agora, mais uma coisa incompreensível que, durante muitos anos, esteve diante dos meus olhos na forma de enigma absoluto para que não arranjei solução. É-me necessário dizer duas palavras sobre isso antes de continuar a minha narração. Falo das grilhetas, de que nenhuma doença pode libertar o preso condenado. Até os tísicos morriam, na minha presença, com as grilhetas. Toda a gente se habituara de tal maneira a elas que se haviam tornado uma coisa estabelecida e irrevogável. Era pouco provável, até, que alguém refletisse sobre isso, porque nem a um doutor passou sequer pela cabeça, alguma vez em todos aqueles anos, solicitar junto dos chefes que se tirassem as grilhetas a um doente grave, sobretudo tísico. Digamos que as grilhetas em si não são um fardo muito pesado. Pesam, normalmente, entre oito e doze libras. Carregar com dez libras não é difícil para um homem adulto. Disseram-me, contudo, que ao fim de uns anos de grilhetas as pernas começam, supostamente, a secar. Não sei se é verdade, mas acho que pode haver algumas probabilidades de que tal aconteça. Um peso, nem que seja pequeno — neste caso de dez libras — preso à perna para sempre, aumenta de modo anormal o peso do membro e, passado muito tempo, é capaz de ter efeitos nocivos. Digamos que é um peso suportável, mas para uma pessoa com saúde. E para um doente? Suponhamos também que um doente ligeiro não sofre muito com isso. Mas o que se passará com os doentes graves, com os tísicos que, já sem isso, têm as pernas e os braços ressequidos e para quem já se torna pesada uma palha? A sério, se a administração hospitalar conseguisse um abrandamento desta medida pelo menos para os tísicos, seria um verdadeiro e grande benefício. Opinará alguém, digamos, que o preso é facínora e não merece benefícios. Mas qual a necessidade de agravar o castigo daquele a quem o dedo de Deus já apontou? Também é inconcebível que tal seja feito só por castigo. O tísico, até por decisão do tribunal, fica isento do castigo corporal. Por conseguinte, se isso não faz parte do castigo, tem de haver na medida uma razão qualquer, enigmática mas importante, com vista a prevenir alguma coisa. Mas o quê? É impossível percebê-lo. É que não pode ser o receio de um tísico fugir. A quem passaria isso pela cabeça, tendo sobretudo em conta a fase terminal da doença? Ora, fingir tísica, enganar os doutores com vista à evasão, não é, pura e simplesmente, possível. Não com esta doença: a simulação seria descoberta ao primeiro olhar. Portanto: agrilhoam uma pessoa só para que ela não fuja, ou para lhe dificultar a fuga? Nada disso. As grilhetas têm o significado de opróbrio, de vergonha, de fardo, físico e moral. Pelo menos, é este o pressuposto. Porque uma fuga não pode ser impedida assim, nunca, nem por ninguém. O mais inepto e desajeitado dos reclusos poderia serrá-las rapidamente e sem grande esforço, ou partir o rebite com uma pedra. As grilhetas de pernas não são nenhum meio preventivo. Se assim é, se o condenado carrega com elas apenas por castigo, volto a perguntar: há necessidade de castigar um moribundo?

Agora que isto escrevo vem-me nitidamente à memória um tísico moribundo, aquele Mikháilov que estava na cama fronteira à minha, perto de Ustiántsev, e que morreu, salvo erro, no quarto dia após a minha chegada à enfermaria. Talvez eu esteja, agora, a falar de tísicos reproduzindo involuntariamente as impressões e reflexões que tive naquela altura, motivadas pela sua morte. Aliás, eu conhecia muito pouco esse Mikháilov. Era um homem ainda muito jovem, de uns vinte e cinco anos, não mais, alto, magro, de aparência muito decente. Estava na secção especial; era estranhamente taciturno, sempre triste, de uma tristeza mansa e serena. Parecia murchar na prisão. Pelo menos, assim viriam a dizer dele, mais tarde, os reclusos, em quem deixou boa memória. Lembro-me apenas de que tinha uns olhos maravilhosos e, palavra de honra, não sei por que tenho uma memória tão nítida dele. Faleceu cerca das três da tarde, num dia claro e frio. Lembro-me: o sol entrava com os seus raios fortes e oblíquos através das janelas verdes e um pouco geladas da nossa enfermaria. Jorravam em torrente sobre o desgraçado. Morreu inconsciente, com dificuldade, agonizou durante várias horas. Já de manhã os seus olhos tinham deixado de reconhecer as pessoas que se chegavam a ele. Queriam aliviar-lhe de algum modo o sofrimento, achavam-no tão mal! Respirava a custo, com rouquidão; o peito levantava-se-lhe muito, por falta de ar. Atirou fora o cobertor, toda a roupa e, por fim, quis arrancar do corpo a camisa: até a camisa lhe parecia pesada. Ajudaram-no a tirar a camisa. Era medonho olhar para aquele corpo tão comprido, com os braços e as pernas ressequidos até ao osso, o ventre cavado, o peito arqueado, as costelas salientes como num esqueleto. Ficou-lhe no corpo apenas uma cruz de madeira, uma relíquia num saquinho e as grilhetas, donde poderia agora tirar facilmente a perna seca. Meia hora antes da sua morte toda a enfermaria ficou mais quieta, falava-se quase em sussurro. Quem andava, tentava fazê-lo sem barulho. Conversava-se pouco, só de coisas outras, apenas de vez em quando alguém lançava um olhar ao moribundo, cada vez mais rouquejante. Por fim, uma mão errante e incerta apalpou no seu peito a relíquia e quis arrancá-la, como se também fosse pesada para ele, o incomodasse, lhe oprimisse o peito. Tiraram-lhe também o saquinho da relíquia. Dez minutos depois morreu. Bateram na porta, informaram o guarda. Entrou o guarda, olhou com indiferença para o morto e foi buscar o auxiliar médico. Este, um rapaz jovem e bondoso, preocupado um tanto excessivamente com o seu aspeto físico, por sinal bastante bonito, não tardou a chegar. Num passo alvoroçado e, no meio do silêncio da enfermaria, ruidoso, aproximou-se do defunto e, com ar desembaraçado, como que inventado de propósito para casos destes, tomou-lhe o pulso, apalpou-lho, abanou a mão e saiu. De imediato, comunicaram a notícia ao oficial da guarda: o falecido era criminoso importante, da secção especial — até para certificar a sua morte era necessário algum cerimonial. Enquanto esperavam os guardas, um dos doentes exprimiu em voz baixa a ideia de que não seria mau fechar os olhos ao morto. Um outro ouviu-o com atenção, acercou-se em silêncio do defunto e fechou-lhe os olhos. Reparando na cruz em cima da almofada, pegou nela, examinou-a e voltou a pendurá-la ao pescoço de Mikháilov — fê-lo e persignou-se. Entretanto, o corpo morto começava a ficar rígido, tremia-lhe um raio em cima, a boca estava meio aberta, brilhavam duas filas de dentes brancos, jovens por trás dos lábios finos, colados às gengivas. Finalmente, entrou o sargento da guarda, de sabre e capacete, e atrás dele dois guardas. Aproximou-se, em passo cada vez mais lento, lançando olhares perplexos aos presos silenciosos que, de todos os lados, o seguiam com olhos severos. A um passo do morto parou, como que petrificado. Parecia intimidado. O cadáver completamente nu, só de grilhetas, deixara-o pasmado; de repente, desprendeu o capacete, tirou-o, o que não tinha obrigação de fazer, e persignou-se num gesto largo. Era um homem severo, de cabelo branco, com muitos anos de serviço militar em cima. Lembro-me de que ao lado estava Tchekunov, também um velho encanecido, que não parava de olhar, num silêncio perscrutante, para a cara do sargento, frontalmente, estudando com estranha atenção cada gesto dele. Os seus olhos cruzaram-se e, bruscamente, o lábio inferior de Tchekunov começou a tremer. Torceu os lábios, mostrou os dentes e, muito depressa, como que sem querer, disse ao sargento:

— Também tinha uma mãe! — e afastou-se.

Lembro-me de que aquelas palavras me trespassaram... Por que as disse? Como lhe passaram pela cabeça?... Mas já levantam o corpo, juntamente com o colchão; no meio do silêncio geral, a palha crepitou, as grilhetas bateram ruidosamente no chão... Apanharam-nas. Levaram o corpo. Subitamente, toda a gente desatou a falar em voz alta. Ouvia-se a voz do sargento no corredor a mandar alguém buscar o ferreiro. Era preciso tirar as grilhetas ao morto...

Mas desviei-me do assunto principal.


2

Continuação

Os médicos visitavam as enfermarias de manhã; depois das dez apareciam todos juntos, mas uma hora e meia antes vinha ver-nos o nosso médico interno. Na altura era um doutor jovem, bom especialista, carinhoso, simpático, de quem os presos gostavam muito, apenas vendo nele um defeito: «brando demais». De facto, era taciturno, parecia envergonhar-se diante de nós, quase corava, alterava as dietas ao primeiro pedido dos doentes e parecia até que estava pronto a receitar-lhes o que eles pedissem. Era um querido. Deve dizer-se que, na Rússia, é mesmo verdade haver muitíssimos médicos que gozam do amor e do respeito do povo simples. Sei que as minhas palavras parecerão um paradoxo, tendo sobretudo em conta a desconfiança geral do povo simples da Rússia para com a medicina e os medicamentos estrangeiros. É verdade: um homem simples que sofra de uma doença grave e prolongada prefere ir durante vários anos à curandeira ou tratar-se com remédios caseiros tradicionais (remédios que, de resto, não devem ser menosprezados) a ir ao médico ou a ficar internado num hospital. Além do mais, entra aqui uma circunstância importantíssima que nada tem a ver com a medicina: a desconfiança geral do povo por tudo o que tem a marca do administrativo, do formal; além desta circunstância, o povo intimida-se e está de pé atrás contra os hospitais com todo o género de medos, de fábulas, muitas vezes absurdas, outras vezes com um certo fundamento. O que mais assusta o povo, porém, são as regras alemãs do hospital, é a gente estranha à sua volta enquanto dura a doença, são os rigores com a comida, as histórias sobre a severidade dos médicos e dos auxiliares médicos, sobre cadáveres cortados e estripados, etc. Além disso, raciocina o povo, quem trata lá dos doentes são os senhores, porque os médicos são senhores. No entanto, quando o conhecimento dos médicos se lhe torna mais próximo, na maioria dos casos (com poucas exceções), todos estes medos desaparecem rapidamente, o que, na minha opinião, só honra os nossos médicos, sobretudo os jovens. A maioria sabe ganhar o respeito e até o amor do povo simples. Escrevo do que vi e experimentei muitas vezes e em diversos lugares, e não tenho razões para pensar que noutros sítios a situação seja diferente. É claro que nalguns recantos os médicos aceitam subornos, aproveitam-se dos bens dos seus hospitais, quase não dão atenção aos doentes, antes descuram por completo a medicina. Ainda existem fenómenos destes, mas falo agora da maioria dos médicos, ou antes, daquele espírito, daquela tendência que, nos nossos dias, existe na medicina. Ora, os tais renegados, os lobos no meio do rebanho de ovelhas, seja o que for que apresentem como justificação, por exemplo, o ambiente que os oprime, nunca terão razão, sobretudo se perderam também o humanismo. É que a humanidade, o carinho, a comiseração fraterna para com o doente são, por vezes, mais importantes do que todos os medicamentos juntos. Já é tempo de deixarmos de alegar o ambiente social que, supostamente, nos oprime. Digamos que sim, que é verdade que tal ambiente nos prejudica muito, mas não é decisivo, e muitas vezes um malandro esperto e experiente encobre e justifica habilmente com esse ambiente não só as suas fraquezas mas, muitas vezes, a sua vileza, especialmente se sabe falar ou escrever com eloquência. Aliás, estou a desviar-me outra vez do tema; queria apenas dizer que o povo simples é mais desconfiado e hostil em relação à administração médica do que propriamente aos doutores. Ao conhecê-los na prática, depressa perde muitos dos seus preconceitos. Acresce que o ambiente dos nossos estabelecimentos médicos não tem correspondido em muitos sentidos, até hoje, ao espírito do povo, e continua a ser até aos nossos dias, pelas suas regras, hostil aos hábitos do homem simples e incapaz de ganhar a confiança e o respeito plenos do povo. Pelo menos, assim me parece, em consequência de algumas observações minhas.

O nosso médico interno parava habitualmente à cabeceira da cama de cada doente, examinava-o a sério e com muito cuidado, fazia-lhe perguntas e receitava-lhe os medicamentos e fixava as dietas. Às vezes descobria que o paciente não sofria de qualquer doença, mas como o preso descansava dos trabalhos num colchão, e não em tábuas nuas, e num quarto quentinho, finalmente, e não no corpo da guarda húmido onde se apertam as chusmas de acusados pálidos e mirrados (os acusados, por toda a Rússia, são pálidos e mirrados — sinal de que as condições em que os mantêm e o seu estado de espírito são quase sempre piores do que os dos condenados), então o nosso interno diagnosticava-lhes calmamente uma febris catarhalis26 qualquer e deixava-os internados mais uma semana. Entre nós, toda a gente se ria com esta febris catarhalis. Sabiam muito bem que era uma fórmula, uma convenção entre o doutor e o paciente, destinada a determinar uma doença fingida: a «maleita de reserva», como traduziam esta expressão os próprios presos. Às vezes o paciente abusava da compaixão do médico e deixava-se ficar acamado até ser expulso à força. Era digno de ver, nestes momentos, o nosso interno: parecia ter medo, ter vergonha de dizer frontalmente ao paciente que tinha de pedir alta o mais depressa possível, embora estivesse no seu pleno direito de, simplesmente e sem mais conversas, sem lhe suplicar nada, lhe impor a alta, escrevendo na sua ficha: sanat est27. Começava por insinuar-lho, depois como que lho pedia: «Não será tempo? É que estás quase bom, e na enfermaria há gente a mais», etc., etc., até que o paciente começava a ter vergonha e pedia, ele próprio, a alta. O médico-chefe, embora fosse humano e honesto (os doentes também gostavam muito dele), era incomparavelmente mais severo e decidido do que o interno, tendo mesmo ocasiões em que se mostrava muito rigoroso — por isso os presos lhe tinham um respeito especial. Aparecia acompanhado por todos os médicos do hospital, depois do interno, também examinava todos um a um, demorando mais tempo com os doentes graves; sabia sempre dizer-lhes uma palavra boa, até cordial, e, no cômputo geral, causava boa impressão. Nunca rejeitava os pacientes que tinham entrado com «maleitas de reserva», nunca os mandava para trás; mas, quando o paciente teimava em ficar, dava-lhe alta, pura e simplesmente: «Pois bem, meu amigo, já ficaste deitado o bastante, já descansaste, agora vai-te embora, já chega.» Normalmente, teimavam com ele os que tinham preguiça de trabalhar, sobretudo no verão, época de muitos labores, ou os presos à espera de castigo corporal. Lembro-me de que foi aplicada a um desses uma medida severa, quase cruel, para o persuadir a pedir alta. Tinha chegado com um problema de olhos: muito vermelhos, queixava-se de dores fortes, de picadas. Começaram por tratá-lo com pó de cantárida, com sanguessugas, a aspergir-lhe os olhos com um líquido mordaz, etc., mas o problema não passava, os olhos não limpavam. Aos poucos, os médicos viram que a doença era fingida: a inflamação mantinha-se pequena, não piorava nem melhorava, sempre na mesma, o caso era suspeito. Todos os presos sabiam que o homem simulava a doença e enganava os médicos, embora ele nunca o confessasse. Era jovem, bastante bonito, mas causava uma impressão desagradável nas pessoas: fechado, desconfiado, carrancudo, não falava com ninguém, olhava de soslaio, escondia-se de todos, como que suspeitava de toda a gente. Lembro-me de que alguns presos até o consideravam capaz de perpetrar qualquer coisa má. Era soldado, condenado por um grande roubo; fora descoberto e condenado a mil pauladas e à companhia correcional. Para adiarem o castigo do espancamento, os acusados, como já disse, ousam coisas terríveis: há quem espete a faca no chefe ou no próprio companheiro de calabouço para ser julgado de novo e o castigo ficar adiado por dois meses — e atinge assim o seu objetivo. Não se importa que, dois meses depois, seja castigado com duas ou três vezes maior crueldade; o que importa é adiar o momento do castigo, nem que seja por uns dias, e depois logo se vê — a tal ponto ficam abatidos estes desgraçados. Entre nós já se cochichava que era preciso ter cuidado com ele: não fosse esfaquear alguém durante a noite. Aliás, era só conversa, ninguém tomava precauções com ele, nem mesmo os que tinham as camas perto da dele. De resto, o que se via, de noite, era que o rapaz esfregava os olhos com a cal do estuque e com mais qualquer coisa, para que de manhã estivessem outra vez vermelhos. Por fim, o médico-chefe ameaçou-o de lhe aplicar a závoloka. Quando uma doença de olhos persiste e já todos os métodos medicinais foram experimentados sem resultado, os doutores costumam recorrer a um outro método, forte e doloroso: põem ao doente a závoloka, como se faz com os cavalos. O coitado, mesmo assim, não desistiu. Era de um caráter teimoso ou, então, demasiado cobarde: é que a závoloka também era uma tortura, embora não tanto como as pauladas. Repuxam a pele do pescoço do doente, na parte de trás, tanto quanto a mão pode agarrar, depois furam a pele repuxada com uma faca, fazendo uma ferida larga e comprida ao través da nuca, e passam nela um nastro de linho, da largura de um dedo; depois, todos os dias, a uma hora certa, puxam o nastro dentro da ferida, avivando-a, para que supure e não sare. O pobre suportou esta tortura terrível durante vários dias e só depois concordou que lhe dessem alta. Os olhos, num dia, ficaram-lhe completamente limpos e, assim, foi metido no presídio militar para ser levado, no dia seguinte, ao castigo das mil pauladas.

É claro que o momento que antecede o castigo é de tal modo penoso que talvez esteja a ser injusto quando chamo a este medo fraqueza e cobardia. Deve ser dificílimo as pessoas aceitarem um castigo duplo ou triplo apenas para o adiarem. Por outro lado, também já mencionei aqueles que pediam que lhes dessem alta o mais depressa possível, com as costas ainda em ferida da primeira série de pauladas ou vergastadas, para se submeterem à seguinte e saírem definitivamente da prisão punitiva, onde as condições são incomparavelmente piores para todos do que nos trabalhos forçados. Porém, tirando evidentemente os temperamentos diferentes, a ousadia e o destemor de algumas pessoas são condicionados, em grande medida, pelo hábito enraizado ao espancamento e aos castigos. O homem já muitas vezes vergastado como que fortalece o espírito e as costas, e começa a encarar o castigo filosoficamente, quase como um pequeno incómodo, deixando de ter medo dele. Isto é quase regra. Um dos nossos reclusos da secção especial, um calmuque batizado com o nome de Aleksandr, rapaz estranho, maroto, destemido e, ao mesmo tempo, muito bondoso, contou-me, brincando e rindo, como aguentara as suas quatro mil pauladas e jurou-me, muito a sério, que se não estivesse habituado desde a mais tenra infância ao chicote, lá na sua horda calmuque, e que lhe deixara cicatrizes nas costas para toda a vida, nunca teria aguentado essas quatro mil. Parecia, pois, abençoar uma tal educação a chicote. «Desde que me recordo — contava-me ele num fim de tarde, sentado no meu catre, à luz das velas —, batiam-me por tudo e por nada, durante quinze anos a fio, várias vezes ao dia; só não me batia quem era preguiçoso; portanto, acabei por me habituar.» Desconheço como teria ido parar à tropa, embora ele mo tivesse talvez contado, só sei que andara sempre fugido, era um vagabundo. Lembro-me apenas da história de como se atemorizou terrivelmente quando fora condenado a quatro mil pelo assassínio do seu chefe. «Sabia que me iam castigar com rigor, que talvez não saísse vivo dessas pauladas e, embora estivesse habituado ao chicote, quatro mil bordoadas não eram brincadeira nenhuma! Além disso, todos os chefes estavam furiosos. Estava certo de que aquilo me iria custar caro, que não aguentaria: não me poupariam. Primeiro, decidi batizar-me. Pensei: a ver se me perdoam... e, embora os nossos me dissessem que não resultaria, tentei: podia ser que tivessem pena de um cristão. Batizaram-me, deram-me o nome de Aleksandr. Mas as pauladas mantiveram-se, nem um milhar me perdoaram, até fiquei ressentido. Pensei: esperai-lhe pela volta, ainda vos hei de aldrabar. E o que acha, Aleksandr Petróvitch? Pois consegui! Eu sabia muito bem fingir de morto, ou antes, de moribundo, como se estivesse quase a entregar a alma ao Criador. Puseram-me entre as duas filas, pancada de um lado e do outro: primeiro milhar, aquilo queima, eu grito; segundo milhar: estou arrumado, penso, é o meu fim, toldou-se-me a cabeça, fraquejaram-me as pernas. Então, atirei-me de borco para o chão: os olhos mortos, a cara azul, não respiro, a boca a espumar. Acercou-se o médico: vai morrer, diz. Levaram-me para o hospital e, lá, ressuscitei num instante. Então, levaram-me para o castigo mais duas vezes ainda, raivosos, raivosíssimos comigo; mas aldrabei-os mais duas vezes: fiz o terceiro milhar e caí como morto; no quarto milhar, cada paulada já era como uma facada no coração, valia por três, tal era a raiva com que me batiam! Estavam encarniçados comigo. Custou-me mais o último milhar do que os três primeiros e, se não me fingisse morto já quase no fim (faltavam umas duzentas pauladas), acabavam comigo; mas defendi-me: deixei-me cair outra vez como morto, e eles acreditaram; e como não podiam acreditar se o próprio médico acreditou? Pois bem, lá acabaram com as duzentas que faltavam, com toda a força, talvez pior do que se levasse duas mil normais... mas não, não conseguiram acabar comigo. E porquê? Porque, desde pequenino, cresci debaixo de chicote. É por isso que ainda hoje estou vivo. Oh, tanto que me bateram na vida, tanto!» — disse, como que a refletir tristemente, tentando lembrar-se da enormidade das vezes que lhe tinham batido. «Não — acrescentou, depois de um curto silêncio —, é impossível contar quantas vezes me bateram, não têm conta!» Olhou para mim e riu-se, mas com um riso tão benevolente que eu lhe sorri. «Sabe uma coisa, Aleksandr Petróvitch? Até agora, sempre que sonho à noite, é sempre com alguém a bater-me: é que nem tenho outros sonhos.» De facto, o homem gritava muitas vezes durante o sono, a plenos pulmões, os outros reclusos tinham de o acordar aos empurrões: «Por que gritas, seu diabo?» Mas era saudável, de pequena estatura, ágil e alegre nos seus quarenta e cinco anos, dava-se bem com toda a gente apesar de ser ladrão, levando muitas sovas por causa disso. Mas quem não roubava na nossa prisão?

Quero acrescentar só uma coisa: sempre admirei a incrível falta de rancor com que todos esses homens falavam de quem lhes tinha batido e da forma como tinham sido castigados. Não havia nas narrativas deles, tantas vezes, a mínima sombra de rancor ou ódio, quando a mim, só de os ouvir, palpitava com força o coração. E eles? Cantam e riem como crianças. Quanto a M...ki, falou-me do seu castigo de outra maneira — não era fidalgo, tinham-lhe sentenciado quinhentas pauladas. Como eu tinha sabido disso da boca dos outros presos, perguntei-lhe se era verdade e como se tinha passado a coisa. Foi breve na resposta, como se aquilo lhe doesse no íntimo, evitando olhar para mim, com o rosto corado; quando olhou para mim, meio minuto depois, vi que lhe luzia nos olhos o fogo do ódio, que os lábios lhe tremiam de indignação. Senti que M...ki nunca mais poderia rasgar essa página do seu passado. Quase todos os nossos reclusos, porém, viam a coisa com outros olhos (admito que haja exclusões a esta regra). Não é possível, pensava eu às vezes, que todos se considerem completamente culpados e passíveis de castigo, sobretudo quando não fizeram mal aos seus iguais, mas a algum superior. A maioria deles, na verdade, não se culpava de nada. Como já disse, não notei quaisquer remorsos, mesmo nos casos em que o crime fora contra alguém da mesma condição social. Sem falar, já, dos crimes contra os chefes. Quanto a este último caso, parece que a maneira de encarar o assunto era, por assim dizer, prática, ou melhor, havia a perceção do assunto como facto consumado. Alegava-se o destino, a irrefutabilidade do facto, não em resultado de grandes reflexões, mas inconscientemente, como uma espécie de fé. Por exemplo, o preso, embora tenha sempre a tendência para se sentir com razão ao ter cometido crimes contra os superiores, até porque a própria questão não faz sentido para ele, tem no entanto a consciência prática de que os chefes veem o seu crime com olhos bem diferentes e que, por conseguinte, terá de ser castigado para, assim, ficarem quites. É uma luta mútua. Além disso, o criminoso sabe — não tem dúvidas disso — que será ilibado pelo juízo do seu ambiente natural, isto é, pelas pessoas do seu povo, que nunca o condenarão totalmente e, na maioria dos casos, justificarão mesmo os seus atos, já que não foram lesados os seus iguais, os seus irmãos, a gente da sua condição. Tem a consciência tranquila, e é na consciência que reside a sua força, e nela que está o mais importante. Como que sente esse apoio, por isso não alimenta o ódio e toma o que lhe acontece como um facto inevitável a que não deu início e a que, por isso, não porá fim, uma vez que a situação irá persistir ainda durante muito tempo no meio desta luta passiva mas obstinada. Que soldado tem ódio pessoal por um turco quando combate contra ele, mesmo que o turco o mate à baioneta, ao sabre, a tiro? Aliás, nem todas as histórias eram relatadas com tanto sangue-frio e indiferença. Por exemplo, contava-se a do tenente Jerebiátnikov com um toque de indignação. Tomei conhecimento deste tenente Jerebiátnikov logo nos primeiros dias do meu internamento no hospital, pelo que contavam os presos, obviamente. Mais tarde cheguei a vê-lo, estava ele de guarda. Era um homem de cerca de trinta anos, alto, gordo, de bochechas coradas e cheias, dentes brancos, risadas retumbantes à Nozdriov28. Via-se-lhe pela cara que era, como ninguém, pouco propenso à reflexão. Gostava até à paixão de açoitar e moer à paulada quando lhe calhava ser executor do castigo. Posso acrescentar que já nessa altura eu considerava o tenente Jerebiátnikov um monstro, e os outros presos eram da mesma opinião. Além dele, havia outros executores, é claro — antigamente, sem dúvida, nesses velhos tempos tão recentes cuja «lenda está fresca mas em que é difícil acreditar»29 — que gostavam de cumprir a sua tarefa com zelo e aplicação. Na maioria das vezes, porém, faziam-no ingenuamente e sem grande entusiasmo. Ora, o tenente Jerebiátnikov era uma espécie de gastrónomo esmerado na arte de espancar. Amava até à paixão a sua arte, a sua arte pela arte. Deliciava-se com ela e, como um patrício do Império Romano desgastado e embotado pelos prazeres, inventava esmeros vários, truques antinaturais, para animar e excitar um pouco a sua alma envolta em banhas. Eis um preso a ser levado para o castigo, o tenente Jerebiátnikov é o executor — basta-lhe olhar para as filas compridas de homens, armados de paus grossos, para ficar inspirado. Cheio de satisfação, passa ao longo das filas e volta a dizer que cada qual execute a sua tarefa com brio, senão... Os soldadinhos já sabiam o que significava aquele senão. Eis que trazem o criminoso e, se este não conhece ainda Jerebiátnikov nem as suas tinetas, o tenente pode pregar-lhe uma das suas partidas, como a que contarei a seguir (uma das suas centenas de truques, é claro, uma vez que o tenente era inesgotável de invenções). Qualquer preso, no momento em que o despem e lhe atam as mãos às culatras das espingardas com que depois os sargentos o puxarão ao longo da «rua verde»30, de acordo com o costume geral, qualquer preso, repito, começa sempre neste momento a suplicar ao executor, numa voz lamuriante e lacrimosa, que não o castigue com demasiada severidade. O desgraçado grita: «Vossa senhoria, tenha piedade, seja para mim um pai misericordioso, rezarei por si toda a vida, tenha compaixão!» É disso mesmo que Jerebiátnikov está à espera. Diz aos sargentos para aguardarem e, também com um ar sensibilizado, começa a conversar com o preso:

— Mas, meu amigo — diz ele —, o que posso eu fazer por ti? Não sou eu quem castiga, é a lei!

— Está tudo nas suas mãos, vossa senhoria, tenha misericórdia!

— Achas que não tenho pena de ti? Achas que me agrada ver como te vão bater? Também sou um ser humano! Sou ou não sou um ser humano?

— É, vossa senhoria, claro que é; os senhores são os nossos pais e nós os filhos. Seja um pai piedoso! — grita o preso, começando a nascer dentro dele a esperança.

— Mas, meu amigo, pensa por ti, tens cabeça para pensar: também sei que, por humanismo, tenho de te olhar, a ti pecador, com misericórdia e condescendência...

— Está a falar verdade, vossa senhoria, a verdade verdadeira!

— Sim, olhar-te com misericórdia, por maior que seja o teu pecado. Mas não se trata de mim, é a lei! Pensa por ti! É que eu sirvo Deus e a Pátria e cometo um grande pecado se afrouxar o rigor da lei; pensa nisso!

— Vossa senhoria!

— Pois... está bem! Faço-o, só a ti! Sei que é pecado, mas está bem... Por esta vez condescendo, vou castigar-te com brandura. Mas o que acontecerá se, com isso, te prejudicar? Agora serei piedoso, serei brando no castigo, mas vais pensar que, na próxima oportunidade, também terão pena de ti e cometerás mais um crime... Estás a ver como é? É que, depois, terei na alma...

— Vossa senhoria! Nunca! E hei de impedi-lo ao amigo e ao inimigo! Como perante o trono celeste do Senhor...

— Está bem, está bem! Mas juras-me que te vais portar bem no futuro?

— Que Deus me castigue, que no outro mundo...

— Não jures, que é pecado. Basta-me a tua palavra. Dás-me a tua palavra?

— Vossa senhoria!!!

— Então, ouve: só condescendo às tuas lágrimas órfãs; és órfão?

— Sou, vossa senhoria, sou sozinho no mundo, não tenho pai nem mãe...

— Então, só pelas tuas lágrimas órfãs. Mas, nota bem, é pela última vez... Levai-o — acrescenta numa voz tão piedosa que o preso já não sabe com que orações poderá rezar a Deus por homem tão misericordioso. Mas, eis que arranca a terrível procissão, que rufa o tambor, que se levantam os primeiros paus... «Dá-lhe! — grita Jerebiátnikov a plenos pulmões. — Que isso queime! Mais força! A ferver, que isso ferva! Mais, mais, mais! Com força! Dá-lhe, ao orfãozinho, toca a desancar este malandro! Força, força!» E os soldados batem com toda a força, os olhos do pobre coitado faíscam, começa a gritar, e Jerebiátnikov corre atrás dele ao longo das filas e desfaz-se em riso, com as mãos nas ancas de tanto rir, dobra-se de riso, acaba por meter pena, coitado. Está feliz, acha engraçadíssimo, só de vez em quando interrompe o seu riso grosso, saudável, ribombante, para gritar: «Dá-lhe, dá-lhe mais! Queima-o, a este malandro, queima o órfão!...»

Inventava também outras variações: o preso é levado para o castigo, começa a implorar. Desta feita, Jerebiátnikov não entra em farsas, faz o papel de homem sincero:

— Bem vês, meu querido — diz ao preso —, que tenho de te castigar a sério e, além disso, mereces. Mas posso fazer uma coisa por ti: não te prendo às culatras. Vais sozinho, mas de outra maneira: corres quanto puderes entre as filas! Embora apanhes na mesma com todos os paus, será muito mais rápido. Queres experimentar?

O preso ouve a proposta com perplexidade e desconfiança, fica pensativo. «Talvez — pensa —, talvez seja verdade, talvez seja mais fácil; corro o mais que puder e sofrerei muito menos tempo; e, se calhar, nem todas as pauladas me acertam.»

— Está bem, vossa senhoria, estou de acordo.

— Eu também estou de acordo. Então, vai! E vós não fiqueis para aí a papar moscas! — grita aos soldados, sabendo de antemão, aliás, que nenhum pau falhará as costas culpadas; o soldado que não acertar sabe muito bem o que o espera. O preso lança-se então em corrida pela «rua verde», mas, evidentemente, não passa mais do que quinze soldados: os paus, céleres como um rufar de tambor, caem-lhe de uma vez em cima das costas, e o desgraçado cai com um grito, como se fosse atingido por uma bala. «Não, vossa senhoria, é melhor fazer como manda a lei» — diz, levantando-se lentamente do chão, pálido e assustado. Jerebiátnikov, que sabia muito bem da consequência do truque, desfaz-se em riso. É impossível descrever todos os seus divertimentos e dar relação de tudo o que contavam dele os reclusos.

Falava-se de maneira um pouco diferente, noutro tom e noutro espírito, de um tal tenente Smekálov que, antes do nosso major, ocupava o cargo de comandante-adjunto na nossa prisão. Embora contassem as histórias de Jerebiátnikov com indiferença, sem grande raiva, não admiravam as suas façanhas, não as louvavam, tinham repulsa pelo homem. Olhavam-no até de alto a baixo, com desprezo. Ora, do tenente Smekálov lembravam-se com alegria e prazer. É que esse não era um apaixonado dos espancamentos, não tinha nada de Jerebiátnikov. No entanto, estava sempre pronto a bater, mas as suas pancadas eram recordadas na nossa prisão com uma espécie de amor — de tal modo este homem sabia agradar aos reclusos! E como? De que modo mereceu tal popularidade? É verdade, sim, que a nossa população prisional, tal como todo o povo russo, se calhar, está pronta a esquecer os piores sofrimentos ao ouvir uma palavra de carinho; apresento-o como facto adquirido, sem o analisar, desta vez, dos diversos pontos de vista. Não era difícil agradar a esta gente e ganhar popularidade entre ela. No entanto, o tenente Smekálov adquirira uma popularidade especial — de tal maneira que se lembrava quase com enternecimento dos castigos aplicados por ele. «Melhor do que um pai» — chegavam a dizer os reclusos, suspirando até, ao compararem o seu antigo chefe, Smekálov, com o atual, o major. «Homem de coração aberto!» Era um homem simples, mesmo bondoso, à sua maneira. Porém, pode acontecer que um chefe seja não só bondoso, mas até magnânimo, e se passe o quê? — que ninguém goste dele, que alguns até se riam dele. Com Smekálov sucedia isto: sabia fazer com que todos os reclusos o considerassem seu próximo, o que é uma grande arte, ou melhor, um talento inato de que nem os seus próprios possuidores têm consciência. Coisa estranha: entre as pessoas deste género existem algumas que são mesmo más e, no entanto, ganham grande popularidade. É que elas não sentem repulsa pelo povo dependente — é nisso, no meu entender, que reside a causa! Ninguém vê numa pessoa dessas o fidalgote mandrião, não se lhe sente o cheiro a fidalguia, mas antes o cheiro peculiar a povo simples, um cheiro que lhe é inato, e — oh, Deus! — que sensível é o povo a este cheiro! O que não dará por ele! Está pronto a trocar o mais misericordioso dos homens pelo mais severo, apenas porque lhe parece sentir, neste, o cheiro a zé-povinho. E se este homem com cheiro a povo for, de facto, benevolente, nem que seja à sua maneira? Então, não há preço que o pague! O tenente Smekálov, como já disse, às vezes castigava cruelmente, mas ninguém lhe guardava rancor, e mais: recordava-se com agrado, por entre risos, os seus truques, que pertenciam já a um passado longínquo. De resto, não usava de muitos truques: faltava-lhe a fantasia artística. Na verdade, tinha apenas um truque, o único que utilizou na prisão durante quase um ano; mas, talvez por ser único, parecesse tão querido aos reclusos. Havia muita ingenuidade em tudo aquilo. Trazem o recluso, para as vergastadas, por exemplo. O próprio Smekálov assiste ao castigo, com sorrisos, com piadas, com perguntas ao culpado sobre as coisas mais estranhas ao caso — pessoais, de família, sobre a vida na prisão — e fá-lo sem qualquer intenção, desinteressadamente, apenas porque quer realmente saber essas coisas. Trazem as vergastas e uma cadeira para Smekálov; senta-se, acende o cachimbo — tinha um cachimbo muito comprido. O preso começa a implorar... «Não, amigo, deita-te, estás a falar de quê?...» — diz Smekálov. O recluso suspira e deita-se. «Então, amigo, sabes de cor a oração tal?» — «Claro que sei, vossa senhoria, somos cristãos, aprendemo-la em crianças.» — «Então, di-la.» E o recluso já sabe o que deve recitar e sabe de antemão o que vai acontecer durante a recitação, porque o truque já se repetira algumas trinta vezes com outros reclusos. O próprio Smekálov também sabe que o castigado sabe; sabe também que os soldados, que aguardam com as vergastas levantadas por cima da vítima deitada, há muito estão ao corrente da brincadeira; mesmo assim, volta a repetir tudo — de tal modo gostara, de uma vez por todas, da sua brincadeira, talvez por ser ele próprio o autor, ou seja, por vaidade literária. O recluso começa a recitar, os homens com as vergastas em punho aguardam, Smekálov até se soergue, levanta a mão, deixa de chupar no cachimbo, espera pela palavra certa. No final do primeiro verso, o recluso chega à palavra «céu». É o que Smekálov espera. «Para! — grita o tenente afogueado e, num gesto de inspiração, dirige-se ao homem com a vergasta levantada e berra: — Dá-lhe tu, que mando eu!»

E desata às gargalhadas. Os soldados à volta também se riem: ri-se o homem que bate, quase se ri o castigado, embora a vergasta já assobie no ar para, dentro de um breve instante, cair no seu corpo culpado como uma lâmina. E Smekálov está contente por ter inventado tudo de maneira tão bonita — e, a propósito, rimada. Depois do castigo, Smekálov vai-se embora, absolutamente satisfeito consigo próprio, e o castigado também fica quase satisfeito consigo e com Smekálov e, imagine-se, meia hora depois já conta na caserna como, também desta feita, a brincadeira se repetira pela trigésima primeira vez. «Numa palavra, homem de coração aberto! Um brincalhão!»

Às vezes, as recordações sobre o bondosíssimo tenente tinham eflúvios de um certo manilovismo31:

— Às vezes, meus irmãos — conta um recluso, e toda a cara lhe sorri de recordações —, vou a passar e está ele sentado à janela, de roupão, a tomar chá, a fumar o cachimbo. Tiro-lhe o chapéu.

— Aonde vais, Aksiónov?

— Vou trabalhar, Mikhaíl Vassílitch, tenho de ir para a oficina... — E ele ri-se... Um homem de bom coração, uma boa alma!

— Nunca mais há de haver outro como ele! — acrescenta um dos ouvintes.

26 Literalmente, febre catarral (lat.). (NT )

27 Está curado (lat.). (NT )

28 Personagem do livro Almas Mortas, de Nikolai Gógol (1809-1852). (NT )

29 Da comédia A Desgraça de Ser Inteligente, de Aleksandr Griboiédov (1795-1829). (NT )

30 O preso irá passar por entre duas filas de soldados, postos frente a frente, e será nesta «rua» que o espancarão de um lado e do outro. (NT )

31 De um personagem de Almas Mortas, de Gógol, o delicodoce Manílov. (NT )


3

Continuação32

No fundo, comecei a falar dos castigos e, também, dos diversos executores destas interessantes obrigações, apenas porque, como fui internado no hospital, tive a primeira noção, ao vivo, destas coisas. Até então, só as sabia pela boca dos outros. Traziam para as nossas duas enfermarias todos os presos submetidos ao castigo de todos os batalhões, secções prisionais e outros destacamentos militares da nossa cidade e arredores. Nesses primeiros tempos em que eu observava com avidez tudo o que se fazia à minha volta, todo aquele sistema de vida estranho para mim e toda aquela gente castigada e em vésperas do castigo causavam-me, naturalmente, uma fortíssima impressão. Andava emocionado, confuso e assustado. Lembro-me de ter começado, com rapidez e impaciência, a procurar todos os pormenores desses fenómenos novos para mim, a ouvir as conversas e os relatos dos reclusos sobre o tema, a fazer-lhes perguntas, a buscar respostas. Queria saber, necessariamente, todas as gradações das sentenças e das aplicações dos castigos, os pontos de vista dos presos sobre tudo isso; tentava imaginar o estado psicológico das pessoas sujeitas ao castigo corporal. Disse já que, antes do castigo, poucos mantêm o sangue-frio, inclusive os que já tinham sido vergastados muitas vezes. Em tal momento, em geral, o condenado fica possuído por um medo agudo, puramente físico, involuntário e incontrolável, que oprime toda a essência moral da pessoa. Mais tarde, no decurso de toda a minha vida prisional, eu olhava já automaticamente e com muita atenção para os presos que, depois de serem internados no hospital para lhes curarem as costas após a primeira metade do castigo, recebiam alta para, logo no dia seguinte, sofrerem a outra metade. Esta separação do castigo em duas metades é decidida pelo médico presente na aplicação do castigo. Se o número de pauladas for tão grande que o condenado não o possa suportar numa só sessão, o castigo é dividido por duas sessões, ou mesmo três, consoante o que decidir o doutor durante o castigo, ou seja, se considerar que o castigado pode continuar a passar entre as filas ou, pelo contrário, corre perigo de vida ao fazê-lo. Normalmente, podem aguentar-se de uma só vez quinhentas, mil e, até, mil e quinhentas pauladas; mas, se tiverem sido sentenciadas duas mil ou três mil, a execução é dividida em duas ou três partes. Os que, depois das costas tratadas, saíam do hospital para receberem a segunda metade, nas vésperas e no dia da alta estavam habitualmente sombrios, carrancudos, calados. Notava-se neles um certo entorpecimento da mente, uma distração fora do natural. É um momento em que o preso não quer conversa; curiosamente, os outros presos também não falam com ele, sobretudo daquilo que o espera. Nem uma palavra a mais, nem tentativas para o consolar — tenta-se não lhe prestar qualquer atenção. Assim é melhor para o condenado, evidentemente. Existem exceções à regra, como o caso, por exemplo, daquele Orlov de que já falei. Depois da primeira metade do castigo, o seu único desgosto era que as costas lhe saravam muito devagar e não podia ter alta para receber o resto do castigo, partir com a respetiva leva para o lugar de deportação e fugir pelo caminho. Esse homem, porém, era movido pelo entusiasmo que punha no seu objetivo e por sabe-se lá que outras ideias. Era, do seu natural, um homem de grandes paixões e tinha uma incrível capacidade de sobrevivência. Embora tentasse reprimir as suas sensações, notava-se-lhe um estado de grande euforia e excitação. Tudo isto apesar de, antes da primeira fase do castigo, pensar que não o deixariam sair de lá vivo. Chegavam aos seus ouvidos vários rumores sobre as intenções das autoridades, ainda quando estava a correr o seu processo judicial — nessa altura, preparava-se para a morte. Porém, ao sobreviver à primeira metade do castigo, animou-se. Quando chegou ao hospital depois do espancamento, estava quase à morte, nunca na vida eu vira feridas como aquelas; mas, porque saía vivo daquela primeira sessão, vinha com a alegria no coração, com a esperança de continuar vivo, de os rumores serem falsos, e já sonhava, depois de tanto tempo atrás das grades, com o grande caminho, a fuga, a liberdade, os campos e as florestas... Dois dias depois de ter tido alta, foi morrer ao mesmo hospital, à mesma cama, não tendo aguentado a segunda metade do castigo. De resto, já falei disto.

Entretanto, os mesmos presos que tinham dias e noites tão penosos antes do castigo, suportavam a sua aplicação com coragem, inclusive os mais fracos. Raramente eu ouvia os gemidos deles, mesmo na primeira noite de internamento, mesmo dos que tinham sido espancados de forma extremamente cruel; no geral, o povo sabe suportar a dor. Fiz muitas perguntas sobre a dor. Queria compreender claramente qual era a dimensão dessa dor, com que seria possível compará-la. Para falar com franqueza, nem sequer entendo por que o queria saber. Recordo apenas que não era por vã curiosidade. Repito: eu andava emocionado e abalado. Mas, fosse a quem fosse que fizesse as minhas perguntas, nunca conseguia uma resposta satisfatória. Aquilo queima como o fogo — era tudo quanto conseguia saber, era a única resposta que me davam. Naqueles meus primeiros dias, tendo já feito um conhecimento mais chegado com M...ki, também o interroguei. «Dói muito — respondeu-me ele —, é a mesma sensação do fogo a queimar-nos; parece que as costas estão a ser assadas em lume vivo.» Em resumo, todos empregavam as mesmas palavras. Aliás, lembro-me de que, por essa ocasião, observei uma coisa estranha (não insisto que tenha sido uma observação certa, embora a unanimidade da opinião dos presos a apoie muito): o castigo mais grave de todos é o das vergastadas em grandes quantidades. À primeira vista, tal parece impossível e absurdo. Porém, é verdade: quinhentas vergastadas, ou mesmo quatrocentas, bastam para poder matar um homem; mais de quinhentas significam morte certa. Nem o homem mais forte e resistente sobreviverá a mil vergastadas de uma só vez. Entretanto, é possível resistir a quinhentas pauladas sem qualquer perigo de vida. Mesmo um homem pouco robusto as poderá aguentar. Quanto a um homem medianamente forte e saudável, nem com duas mil pauladas é possível levá-lo à morte. Todos os reclusos diziam que as vergastas eram piores do que os paus. «As vergastas são mais cortantes — diziam —, o sofrimento é maior.» É verdade. As vergastadas sentem-se mais, irritam mais os nervos, são mais vivas, desequilibram mais. Não sei como é agora, mas ainda num passado recente havia gentlemen para quem a possibilidade de vergastarem as suas vítimas dava um prazer que nos traz à memória o marquês de Sade e a marquesa de Branvilliers33. Acho que há nesta sensação algo que afaga com doçura e dor ao mesmo tempo o coração destes indivíduos. Há pessoas que, como tigres, têm a avidez do sangue, anseiam por lambê-lo. Quem experimentou uma vez tal poder, tal domínio ilimitado sobre o corpo, sobre o sangue e sobre o espírito de um ser humano, criado como ele próprio por Deus, seu irmão pela lei de Cristo; quem experimentou o poder e a absoluta possibilidade de ofender com a pior das humilhações outra criatura que traz em si a imagem de Deus — tal indivíduo deixa de ser senhor das suas sensações. A tirania é um hábito; como tal, tem capacidade de evoluir e evolui, acabando por se tornar uma doença. Afirmo que o melhor dos homens pode ficar bruto e cretino até ao estado animalesco por força do hábito. O sangue e o poder embriagam: desenvolve-se a rigidez, a degradação; os fenómenos mais anormais tornam-se acessíveis e, por fim, doces à mente. O homem e o cidadão perecem no tirano para sempre, e o regresso à dignidade humana, ao arrependimento, ao renascimento tornam-se quase impossíveis para ele. Além disso, o exemplo, a própria possibilidade do arbítrio são contagiosos para toda a sociedade: um tal poder é sedutor. A sociedade que se mostre indiferente a este fenómeno é contaminada nos seus alicerces. Numa palavra, o direito de castigo corporal que uma pessoa tem sobre outra é uma das chagas da sociedade, e é, nela, um dos mais fortes meios de extermínio de qualquer germe, de qualquer tentativa de civismo, é a base certa da sua inevitável corrupção.

O carrasco é desprezado na sociedade, mas o carrasco-cavalheiro não o é. Só há pouco tempo se exprime a opinião contrária, mas apenas em livros, de modo abstrato, e mesmo aqueles que a exprimem ainda não conseguiram apagar por completo em si mesmos tal necessidade de poder. Qualquer proprietário de fábrica, qualquer patrão tem de sentir o prazer excitante de que o seu assalariado depende dele e só dele, às vezes com toda a sua família. Não haja dúvidas de que é assim, e uma geração não se desfaz do pé para a mão daquilo que faz parte dela hereditariamente; não é tão cedo que o homem rejeita o que lhe está no sangue, o que bebeu, por assim dizer, com o leite materno. Viragens assim tão rápidas não existem. Tomar consciência da culpa e do pecado hereditário é ainda pouco, muito pouco — é necessário erradicá-los de modo definitivo. O que não se faz rapidamente.

Mencionei o carrasco. Os traços de carrasco estão presentes, na sua forma embrionária, em quase todos os homens modernos. Mas as características animalescas não se desenvolvem de modo igual em todos. Porém, se tais características, em determinada pessoa, superarem no seu desenvolvimento todas as outras, tal pessoa torna-se sem dúvida terrível, monstruosa. Existem carrascos de dois géneros: voluntários uns, e forçados, por obrigação, outros. O carrasco voluntário, evidentemente, é mais baixo em todos os sentidos do que o carrasco forçado que, porém, tanto repugna ao povo — até ao terror, até ao nojo, até ao medo, instintivo e quase místico. Porquê, então, um tal medo quase supersticioso relativamente a um carrasco e uma indiferença, uma quase aprovação, relativamente a outro? Há exemplos muito estranhos: conheci pessoas que até eram bondosas e honestas, que até mereciam o respeito da sociedade, mas que não podiam admitir que o castigado não gritasse, não pedisse misericórdia. Para elas, os castigados tinham, obrigatoriamente, de gritar e implorar perdão. É uma coisa convencional, considerada decorosa e necessária. Uma vez, houve uma vítima que não quis gritar, e o executor, um conhecido meu, que noutros aspetos podia passar por homem quase bondoso, sentiu-o como uma afronta pessoal. Embora, de início, a sua intenção até fosse a de castigar com mais brandura, quando não ouviu os habituais «vossa senhoria, nosso pai, tenha piedade, rezarei por si toda a minha vida», etc., enfureceu-se e determinou cinquenta vergastadas a mais, para conseguir os gritos — e conseguiu. «Não se pode admitir, é desobediência» — disse-me com toda a seriedade. Quanto ao carrasco verdadeiro, um subordinado que é obrigado a sê-lo, já se sabe: é um preso condenado à deportação, mas que não é deportado para servir de carrasco; primeiro, faz a sua aprendizagem com outro carrasco, depois fica para todo o sempre adstrito à prisão, onde é mantido separado dos outros, num quarto individual, tendo até o seu modo de vida próprio, mas andando quase sempre sob escolta. É claro que um homem vivo não é uma máquina — o carrasco bate por obrigação mas, às vezes, também se excita; embora bata com um certo prazer, quase nunca tem ódio pessoal pela sua vítima. A habilidade da vergastada, a arte, o desejo de se exibir perante os companheiros e o público excitam o seu amor-próprio. Esforça-se pela arte. Além disso, sabe muito bem que é rejeitado por todos, que o recebe e acompanha por todo o lado o medo supersticioso dos outros; assim, é difícil pensar que tal facto não exerça influência nele, não reforce a sua ferocidade e as suas tendências animalescas. Até as crianças sabem que o carrasco «renegou pai e mãe». Coisa estranha: todos os carrascos que vi na minha vida eram pessoas evoluídas, sensatas, de grande intelecto; e dotadas de grande amor-próprio, até de orgulho. Se tal orgulho se desenvolveu neles como resposta ao desprezo geral a que eram votados, ou se foi incentivado pela consciência do medo que incutia às suas vítimas, sentindo o poder que ganhavam sobre elas — isso não sei. Talvez a própria teatralidade e pompa do ambiente em que aparecem perante o público no cadafalso contribuam para desenvolver neles uma certa altivez. Lembro-me de que, durante algum tempo, quis o acaso que eu me encontrasse muitas vezes e observasse de perto um carrasco. Era um homem de estatura média, musculado, magro, dos seus quarenta anos, com uma cara bastante agradável e inteligente, o cabelo encaracolado. Tinha sempre um ar muito imponente e calmo, uma conduta educada, as suas respostas eram breves, razoáveis, mesmo ternas, às vezes, mas de uma ternura de certo modo altiva, como se estivesse sempre a orgulhar-se de alguma coisa diante de mim. Os oficiais da guarda metiam muitas vezes conversa com ele na minha presença, e juro que o faziam com um certo respeito. Ele tinha consciência disso e, diante dos chefes, reforçava o seu tom educado, seco, cheio de dignidade pessoal. Quanto mais carinhoso era o chefe para com ele, tanto mais inacessível parecia o carrasco e, embora nunca saísse do seu tom delicado, tenho a certeza de que nesses momentos se considerava incomensuravelmente superior ao chefe com quem conversava — estava-lhe escrito na cara. Às vezes, por um qualquer dia quente de verão, mandavam-no, sob escolta, com uma vara comprida na mão, matar cães vadios na cidade. Na cidadezinha havia muitíssimos cães desamparados que procriavam com uma rapidez extraordinária. No período das férias de verão tornavam-se perigosos, e as autoridades ordenavam então que o carrasco tratasse do seu extermínio. Contudo, nem sequer esta obrigação humilhante, de modo algum, o humilhava. Era só ver com que dignidade ele andava pelas ruas, na companhia do exausto soldado de escolta, assustando com o seu aparecimento as mulheres e as crianças, e com que altivez e calma olhava para todos os passantes. De resto, os carrascos levam uma vida folgada. Têm dinheiro, comem bem, bebem. O dinheiro chega-lhes por via dos subornos. O condenado por crime comum, antes de passar pelo castigo corporal, oferece sempre qualquer prenda ao carrasco, nem que seja a última coisa que tenha. A alguns, aos ricos, os carrascos exigem dinheiro, determinando o preço em conformidade com os supostos recursos do preso, chegando a levar-lhes trinta ou mais rublos. Com os condenados muito ricos, regateiam o mais que podem. O carrasco não pode atenuar muito o castigo — pagaria por isso com as suas próprias costas. Contudo, por um certo suborno, promete à vítima que não a magoará muito. Os condenados quase sempre concordam com a sua proposta, de outro modo zurzi-los-á barbaramente, tendo todo o poder para fazê-lo. Acontece às vezes que o carrasco impõe um tributo considerável a um sentenciado muito pobre; então, os familiares deste regateiam, imploram, mas, se não o satisfizerem, será uma desgraça. Nestes casos, ajuda-o muito o medo supersticioso que incute nas pessoas. Que coisas fantásticas não se contam dos carrascos! Os próprios reclusos me garantiam que os carrascos, se quisessem, podiam matar de um só golpe. Porém, terá acontecido isso alguma vez? Pois bem, tudo é possível. Apenas sei que eles o afirmavam com muita convicção. O próprio carrasco dizia o mesmo — que era capaz de fazê-lo. Dizia-se também que o carrasco podia bater com todo o ímpeto nas costas do condenado, mas de maneira a não ficar depois a mais pequena cicatriz e a quase não provocar dor. De resto, existem muitíssimas histórias conhecidas sobre estes truques e esmeros. Entretanto, mesmo que o carrasco tivesse recebido um suborno para aliviar o castigo, daria o primeiro golpe com toda a força — tinha-se transformado num costume entre eles. Os golpes seguintes eram mais brandos, sobretudo se o suborno tivesse sido pago previamente. Em qualquer caso, porém, o primeiro golpe era dele. Não sei, francamente, por que é assim. Será para habituar a vítima, desde o princípio, aos golpes que vão seguir-se, calculando que, depois de um golpe muito duro, os seguintes já não parecerão tão dolorosos? Ou será, talvez, o desejo de ostentação para com a vítima, para lhe meter medo, para a aturdir logo à primeira, para que perceba com quem está a lidar, numa palavra, para se exibir? Em qualquer caso, o carrasco, antes do castigo, sente-se excitado, sente a sua força, tem consciência do seu poder. Naquele momento, é ator, o público admira-o e teme-o; e, é claro, é com prazer que grita à vítima antes de assestar o primeiro golpe: «Aguenta, este queima!» — palavras costumeiras e fatais nesta situação. É difícil imaginar até que ponto a natureza humana se pode desfigurar.

Nos meus primeiros dias de hospital fartei-me de ouvir histórias destas da boca dos presos. Era muito aborrecido para nós todos estarmos ali deitados. Os dias pareciam-se tanto uns com os outros! De manhã, a visita dos doutores e, depois, o almoço, ainda nos distraíam. A comida, então, no meio daquela chateza, era obviamente uma grande distração. As doses eram diferentes, consoante as doenças. A alguns davam apenas uma sopa de uns quaisquer cereais; a outros, só papas líquidas; a outros ainda, papas de sêmola, de que muitos gostavam. Os presos que estavam muito tempo acamados tornavam-se mimados, apreciadores de guloseimas. Aos convalescentes e aos que se encontravam já quase de boa saúde davam um pedaço de carne de vaca cozida, de «touro», como diziam os nossos. O melhor prato era o que serviam aos pacientes com escorbuto — carne de vaca com cebola, rábano azedo, etc., e às vezes um pouquinho de vodka. O pão, também de acordo com a doença, ou era negro ou era semibranco, bastante bem cozido. Este tom oficial e este esmero na prescrição dos pratos apenas faziam rir os doentes. Evidentemente, havia doenças em que a pessoa não podia comer nada. Entretanto, os pacientes que tinham apetite comiam tudo o que queriam. Trocavam os pratos entre si, e o prato convencionado para uma doença ia calhar a outra. Havia doentes a quem fora prescrita uma dose fraca mas compravam a carne de vaca ou o «prato do escorbuto», bebiam o kvass e a cerveja hospitalares, comprando-os a quem tinham sido prescritos. Alguns chegavam a comer duas doses. As doses tinham o seu preço: o prato da carne de vaca era bastante caro, cinco copeques. Se na nossa enfermaria não houvesse a quem comprar, mandava-se o guarda à outra enfermaria dos presos, ou mesmo às enfermarias dos soldados ou dos «livres», como se dizia entre nós. Encontrava-se sempre quem quisesse vender. Ficava só com pão, mas ganhava algum. A pobreza era geral, claro, mas quem tivesse uns dinheirinhos mandava os guardas ao mercado buscar kalatches, guloseimas, etc. Os nossos guardas faziam-nos estes recados de maneira totalmente desinteressada. O tempo depois do almoço era o mais enfadonho; alguns, por não terem mais nada que fazer, dormiam; outros tagarelavam, outros discutiam, outros contavam histórias. Quando não chegavam doentes novos, tornava-se tudo ainda mais enfadonho. A chegada de um novo produzia sempre alguns efeitos, sobretudo se ninguém o conhecesse. Observavam-no, tentavam saber quem era, donde viera e por que crime. Os internados interessavam-se sobretudo pelos presos em trânsito, que tinham sempre alguma coisa para contar — com exceção dos seus assuntos particulares; sobre isso, se a pessoa não falava de moto próprio, nunca se sondava, apenas se lhe perguntava: «Donde vêm? Com quem? Como é o caminho? Para onde vão?», etc. Havia presos que, ao ouvirem um novo relato, se lembravam de alguma coisa sua: do trânsito dos deportados, das levas, dos executores, dos chefes das levas. Os castigados também apareciam nesta parte do dia, mas mais para a noite. Causavam sempre uma impressão bastante forte, como de resto já referi — mas não era todos os dias que os traziam, reinando na enfermaria, nos dias em que eles não apareciam, uma espécie de moleza, como se todos estivessem fartos das caras uns dos outros; começavam, até, as altercações. Havia um certo contentamento, inclusive, quando traziam os malucos, para verificação da loucura. A manha de fingir a loucura para fugir do castigo era uma das muitas a que recorriam os condenados. Alguns eram rapidamente desmascarados, ou melhor, eles próprios decidiam mudar de política: o preso, depois de ter feito as suas palhaçadas durante dois ou três dias, ficava de repente sensato, acalmava-se e então, sombriamente, pedia alta. Nem os outros presos nem os doutores o censuravam ou envergonhavam lembrando-lhe os seus truques recentes; tinha alta, despediam-se dele em silêncio e, três dias depois, o preso reaparecia já castigado. Estes casos, em geral, eram raros. Ora, os verdadeiros loucos trazidos para verificação constituíam um verdadeiro castigo para a enfermaria. No início, os presos recebiam alguns deles — eufóricos, cheios de animação, gritando, cantando, dançando — quase com entusiasmo. «Ena, até tem piada!» — diziam, olhando para as partes gagas do doente. Quanto a mim, era-me penoso ver aqueles desgraçados. Nunca pude olhar com sangue-frio para os malucos.

Aliás, as intermináveis facécias e a conduta irrequieta do maluco, recebido no início com risos, tornavam-se rapidamente um aborrecimento e, em dois ou três dias, faziam perder a paciência a toda a gente. Um louco ficou connosco três semanas e só nos apetecia, a todos, fugir da enfermaria. Nem de propósito, apareceu nessa altura mais um. Esse causou-me uma impressão especial. Era já no terceiro ano do cumprimento da minha pena. No primeiro ano, ou melhor, nos primeiros meses da minha vida prisional, na primavera, eu ia com um grupo de reclusos para o trabalho, a duas verstás do forte, para uma fábrica de tijolos, como servente de pedreiro. Era preciso reparar os fornos para os futuros trabalhos estivais. Nessa manhã, M...ki e B... apresentaram-me ao capataz, o sargento Ostrozski, que vivia junto à fábrica. Era polaco, dos seus sessenta anos, alto e magro, de aparência decente e até majestosa. Desde havia muito que estava de serviço na Sibéria e, embora fosse de origem humilde, ex-soldado dos anos trinta, M...ki e B... gostavam dele e tinham-lhe respeito. Lia muito a Bíblia católica. Conversei com ele — o velho falava com carinho, com inteligência, contava as coisas de uma maneira engraçada, tinha um olhar honesto e bondoso. Desde então, estive dois anos sem o ver, apenas ouvi dizer que estava sob processo judicial; um belo dia, levaram-no para a nossa enfermaria como maluco. Entrou aos guinchos, às gargalhadas, desatou a dançar com uns gestos extremamente indecentes. Os presos ficaram entusiasmados, mas eu senti grande tristeza... Passaram três dias e já não sabíamos onde nos esconder dele. Discutia, brigava, guinchava, cantava, mesmo à noite, fazia a cada instante coisas tão abomináveis que toda a gente ficava enojada. Não tinha medo de ninguém. Punham-lhe a camisa de forças, mas ficava ainda pior, embora sem a camisa armasse conflitos e entrasse em rixas com toda a gente. Durante essas três semanas, várias vezes, toda a enfermaria pediu ao médico-chefe que transferisse aquela bela prenda para a outra enfermaria prisional. Assim foi, mas, transcorridos dois dias, os outros também começaram a pedir que o tirassem de lá e o metessem outra vez na nossa. Como nos calharam dois loucos de uma vez, ambos inquietos e brigões, as duas enfermarias passavam a vida a trocar de malucos. Mas a situação não melhorava. Todos suspirámos de alívio quando, finalmente, os dois foram levados para qualquer outro lado...

Lembro-me de mais um louco estranho. Uma vez, no verão, chegou um acusado, rapaz aparentemente saudável e muito desajeitado, de cerca de quarenta e cinco anos, com a cara desfigurada pela varíola, uns olhinhos vermelhos balofos e um ar extremamente sombrio. Deram-lhe a cama ao meu lado. Era muito sossegado, não falava com ninguém, sempre sentado, como se estivesse a matutar sempre em qualquer coisa. O dia começava a escurecer quando ele se dirigiu a mim. Sem preliminares, mas com ar de quem me revelava um grande segredo, começou por me contar que, nos dias próximos, deveria receber duas mil pauladas, mas que tal não ia acontecer porque a filha do coronel G... estava a interceder por ele. Olhei para ele com perplexidade e observei-lhe que, na minha opinião, num caso desses a filha do coronel não poderia fazer nada. Eu ainda não estava a compreender a situação, uma vez que o homem não fora internado na qualidade de louco, mas de doente normal. Perguntei-lhe que doença era a dele. Respondeu-me que não sabia porque o tinham internado, uma vez que estava de perfeita saúde a filha do coronel estava apaixonada por ele; que havia duas semanas que ela passava de coche em frente da prisão militar e, numa dessas passagens, como ele espreitasse pela janela gradeada, ela vira-o e apaixonara-se por ele. Desde então, sob vários pretextos, fora três vezes à prisão: da primeira vez fora com o pai, a pretexto de ver o irmão, que era lá oficial da guarda; da segunda vez fora com a mãe, distribuir esmolas, e quando passou por ele sussurrou-lhe que o amava e que o salvaria. Era curioso ouvir com que finos pormenores o homem me contava todo esse absurdo, criado, obviamente, pela sua cabeça desarranjada. Acreditava religiosamente que se livraria do castigo. Falava calma e positivamente do amor apaixonado da menina e, apesar do absurdo geral da narração, era espantoso ouvir semelhante história romântica de uma menina apaixonada por um homem de quase cinquenta anos, de cara tristonha, esquisita e feia. O que o medo do castigo fez naquela alma tímida! Se calhar, viu mesmo alguém pela janela, e a loucura que amadurecia nele por causa do medo, crescendo a cada hora que passava, encontrou de repente a sua forma. Aquele pobre soldado, que talvez nunca tenha pensado em meninas durante toda a sua vida, inventou de súbito todo um romance, agarrando-se instintivamente àquela palha. Ouvi-o em silêncio e contei aos outros presos. Porém, quando os outros começaram a mostrar curiosidade junto dele, calou-se pudicamente. No dia seguinte, o doutor sondou-o demoradamente e, como o paciente lhe dissesse que não se queixava de nada, o que correspondia aos resultados do exame, foi-lhe dada alta. Ficámos a saber que lhe escreveram na ficha sanat só depois de os doutores terem saído da enfermaria, pelo que já não foi possível que nós os informássemos do que se passava. De resto, nós próprios não percebíamos bem o que se passava. No entanto, a causa de todo aquele imbróglio fora um erro dos chefes, que o tinham mandado para o hospital sem especificarem porquê. Foi um descuido. Ou, talvez, os próprios chefes apenas desconfiassem da sua loucura, sem terem qualquer certeza, sendo levados a agir por causa de rumores vagos e pretendendo que lhe fosse feito o diagnóstico. Fosse como fosse, o desgraçado foi levado, passados dois dias, ao castigo. Pelos vistos, a coisa foi tão inesperada para ele que ficou extremamente abalado; não queria acreditar que ia ser castigado até ao último momento e, quando o arrastaram para o meio das filas, pôs-se a gritar: «Socorro!» Dessa vez, colocaram-no noutra enfermaria do hospital, pois não havia camas vagas na nossa. Perguntei por ele e fiquei a saber que, durante os oito dias de internamento, o homem não dissera uma única palavra, se mostrava embaraçado e muito triste... Depois, quando as costas dele sararam, mandaram-no para qualquer lado. Pelo menos, não ouvi dizer mais nada desse preso...

Quanto aos tratamentos e à medicação, em geral, pelo que consegui observar, os doentes ligeiros quase não davam atenção às prescrições, não tomando os medicamentos; mas os doentes graves e, no geral, os que estavam mesmo doentes, faziam questão de tratar-se, tomavam pontualmente os seus xaropes e pós; porém, preferiam sempre os métodos externos: ventosas, sanguessugas, emplastros e sangrias, de que o nosso homem do povo gosta tanto, eram sempre bem-vindos e aceites com prazer. Pareceu-me curiosa uma circunstância estranha. As mesmas pessoas que suportavam com tanto estoicismo as vergastadas e as pauladas, não raro se queixavam, se estorciam e gemiam quando lhes aplicavam umas simples ventosas. Se se tornavam sensíveis e mimados no hospital, ou se faziam teatro — isso não sei. Na verdade, as nossas ventosas eram um pouco diferentes. O auxiliar médico, ainda em tempos imemoriais, perdera ou estragara a máquina com que se faziam as escarificações na pele, ou talvez a máquina se tivesse estragado por si; o certo é que tinha de fazer os cortes necessários com uma lanceta. Para cada ventosa, são feitas cerca de doze escarificações. Com o escarificador, isso não dói nada — doze lâminas fazem os cortes num instante, de uma só vez, e não se sente nada. Outra coisa é lancetar à mão. A lanceta corta lentamente, sente-se a dor; ora, se para cada dez ventosas, por exemplo, são necessários cento e vinte cortes, imagine-se como tudo junto deve ser doloroso. Passei por isso, mas, embora doesse e fosse desagradável, não o era ao ponto de não me conter e me pôr a gemer. Era mesmo ridículo ver, às vezes, um grandalhão a estorcer-se e a lamuriar-se. No geral, a situação era comparável à de um homem que, firme e calmo nas coisas sérias, se torna hipocondríaco e caprichoso em casa quando não tem nada que fazer: não come o que lhe põem à frente, ralha, nada lhe agrada, todos o aborrecem, todos lhe parecem mal-educados, todos o atormentam — em resumo, sofre de fartura, como às vezes se diz destes senhores, fenómeno que, aliás, existe também entre o povo simples e, na nossa prisão, dado o convívio de tanta gente, até com bastante frequência. Às vezes, na enfermaria, os próprios pacientes gozavam com este género de paridinho, havia mesmo quem o insultasse; então, aquele calava-se, como se apenas estivesse à espera de que o insultassem para se calar. O Ustiántsev, sobretudo, não gostava disso e nunca deixava passar a oportunidade de insultar o paridinho. De resto, esse não deixava passar qualquer oportunidade de discutir com alguém. Para ele, a disputa era um prazer, uma necessidade, sem dúvida por causa da sua doença, mas também, em parte, por ser cretino. Às vezes punha-se, primeiro, a olhar, muito sério e fixamente, e, depois, começava numa voz calma e convencida a fazer o seu sermão. Metia-se em tudo e com todos, como se fosse ali o encarregado de velar pela ordem e pela moral de todos.

— Tudo lhe diz respeito — diziam às vezes os presos, e riam-se. De resto, poupavam-no e evitavam discutir com ele, só se riam.

— Ena, tanta coisa que ele disse! Não caberá em três carroças.

— Tanta coisa, sim, e depois? — ripostava Ustiántsev. — A um parvo não é de se lhe tirar o chapéu, toda a gente sabe. Por que berra ele tanto por causa de uma lanceta? Gostou da carne, roa os ossos, quer dizer, que aguente.

— E que tens tu a ver com isso?

— Não, irmãos — intrometeu-se outro preso —, isso das ventosas não é nada, já experimentei; o pior é quando te puxam muito tempo a orelha.

Todos se riram.

— Puxaram-te a orelha?

— Achas que não? Pois claro que puxaram.

— Então é por isso que és orelhudo.

Esse preso, Chápkin, tinha de facto umas orelhas compridas, espetadas para os lados. Era um vagabundo, ainda jovem, rapaz sisudo e calmo, que falava sempre num tom sério mas com um sentido de humor assolapado, o que dava um toque muito cómico às suas histórias.

— Por que raio devo eu pensar que te puxaram as orelhas? Por que me devia passar pela cabeça semelhante coisa, seu cabeça de pau? — voltou a intrometer-se Ustiántsev, dirigindo-se com indignação a Chápkin, embora este não tivesse falado para ele, mas para todos em geral; Chápkin nem sequer olhou para ele.

— Mas quem te puxou a orelha? — perguntou alguém.

— Quem havia de ser? Já se sabe, foi o comissário da polícia. Aconteceu, meus amigos, que eu fiz um pouco de vagabundagem. Chegámos, então, à cidade de K..., éramos dois, eu e mais o Efim, sem apelido, também vagabundo. Pelo caminho, tínhamos surripiado umas coisinhas a um mujique da aldeia de Tólmino. Há uma aldeia assim, Tólmino. Pois bem, chegámos à cidade e pusemo-nos a estudar onde podíamos tirar algum proveito, também ali, e depois fugir. No campo é tudo liberdade, mas a cidade mete medo, isso toda a gente sabe. Então, primeiro entrámos numa taberna. Olhámos em volta. Acerca-se de nós um tipo, um maltrapilho, com buracos nos cotovelos, vestido à alemã. Falámos.

— Então? — perguntou ele. — Com vossa licença, os senhores têm papéis?

— Não — dissemos nós —, não temos.

— Pois. Nem eu. Estão aqui mais dois bons amigos — disse ele —, no mesmo serviço que nós. Então, andámos um bocado na pândega e ainda não arranjámos mais dinheiro. Não nos podem oferecer um quartilho?

— Com grande prazer — dissemos. Bebemos, eles indicaram-nos um negociozito, de acordo com o nosso ofício. Havia lá uma casa, às portas da cidade, onde vivia um popular rico; era uma casa bem recheada de bens, decidimos visitá-la de noite. Só que fomos apanhados lá dentro, os cinco, na mesma noite. Levaram-nos para a esquadra, depois ao próprio comissário. «Vou interrogá-los — disse ele — pessoalmente.» Tinha aparecido de cachimbo nos dentes, atrás dele traziam uma chávena de chá... Era um grandalhão, de suíças. Sentou-se. Trouxeram os outros três, também vagabundos. O vagabundo, meus irmãos, é um homem engraçadíssimo: nunca se lembra de nada, podes fazer o que quiseres com ele, esqueceu-se de tudo. O comissário atira-se diretamente a mim: «Quem és?» A voz dele ribomba, como saída de uma pipa. E eu, é claro, que sou como os outros, disse-lhe: não me lembro de nada, vossa senhoria, esqueci-me.

«Espera — disse ele —, já falo contigo, a tua cara não me é estranha» e esbugalhou os olhos para mim. Eu, por mim, nunca o tinha visto antes. Perguntou então a outro: «Quem és?»

«Sou o Sete-Pés, vossa senhoria.»

«É assim que te chamas, Sete-Pés?»

«É, vossa senhoria.»

«Está bem, és o Sete-Pés, e tu?», pergunta ao terceiro.

«Eu atrás dele, vossa senhoria.»

«Mas como te chamas?»

«Chamo-me assim mesmo: Atrás-Dele, vossa senhoria.»

«Mas quem te pôs esse nome, meu canalha?»

«Foi gente de bem, vossa senhoria. Há sempre gente de bem neste mundo, vossa senhoria.»

«E quem é essa gente de bem?»

«Esqueci-me, vossa senhoria, peço desculpa.»

«Esqueceste-te de todos?»

«De todos, vossa senhoria.»

«Mas também tiveste pai e mãe, não tiveste?... Lembras-te ao menos deles?»

«É de supor que tive, vossa senhoria, mas também não me lembro bem; é possível que tivesse, vossa senhoria.»

«E então, onde tens vivido até agora?»

«Na floresta, vossa senhoria.»

«Sempre na floresta?»

«Sempre.»

«E no inverno?»

«Não vi o inverno, vossa senhoria.»

«E tu, como te chamas?»

«Meio-Machado, vossa senhoria.»

«E tu?»

«Afia-o-Bem, vossa senhoria.»

«E tu?»

«Afia-o-Também, vossa senhoria.»

«Ninguém se lembra de nada?»

«De nada, vossa senhoria.»

O comissário ri-se, os outros olham para ele e sorriem. Com polícias nunca se sabe; às vezes, por azar, pode levar-se um soco. É gente robusta, anafada.

«Levai-os para a prisão — disse o comissário —, trato deles depois; tu ficas — disse para mim. — Anda cá, senta-te aqui!» E o que vejo: a mesa, o papel, a pena. Penso: «O que estará ele a tramar?» «Senta-te — diz-me ele —, pega na pena e escreve!» e agarra-me pela orelha e põe-se a puxar. Olho para ele como o diabo para o padre. Digo-lhe: «Não sei escrever, vossa senhoria.»

«Escreve!!»

«Tenha piedade, vossa senhoria!»

«Escreve como souberes!» e não para de me puxar a orelha; de repente, torceu-ma! Aí, amigos, acreditai que seria melhor levar trezentas chibatadas: até me saíram faíscas pelos olhos, de tanto que me doeu!

— O homem estava doido ou quê?

— Não, não estava. É que, na cidade de T..., pouco tempo antes, um escrivão tinha roubado o dinheiro público e fugido com ele. Também tinha as orelhas espetadas e passaram essa informação por todo o lado. Por alguns sinais particulares, eu era parecido com ele, por isso o comissário me pôs à prova: se sabia escrever e como escrevia.

— Irra, que coisa! E doía?

— Já te disse que doía.

Risada geral.

— E então, escreveste?

— Escrevi o quê? Comecei a arrastar a pena pelo papel, rabisquei, rabisquei, e ele lá me largou. Deu-me uma dúzia de estaladas e deixou-me ir... para a prisão, é claro.

— Mas... sabes escrever?

— Dantes sabia, mas quando começaram a escrever à pena, desaprendi...

Era com estas histórias, ou melhor, com estas tagarelices, que passávamos os nossos enfadonhos dias. Meu Deus, que tédio! Os dias eram longos, abafados, todos iguais. Se houvesse ao menos algum livro! Quanto ao hospital, eu ia lá parar muitas vezes, sobretudo no princípio, às vezes por doença, às vezes só para descansar, para me afastar um pouco da prisão. Era duro viver na prisão, mais do que no hospital — moralmente, era mais difícil. Raiva, hostilidade, conflitos, inveja, embirrações connosco, os fidalgos, caras zangadas, ameaçadoras! No hospital toda a gente estava mais em pé de igualdade, a vida era mais amigável. As horas mais tristes eram as do fim da tarde, com as velas já acesas, e as do princípio da noite. Deitávamo-nos cedo. A lâmpada noturna, baça, ardia ao longe, junto à porta, como um ponto brilhante, e a nossa ponta da enfermaria já estava na semiobscuridade. O ar ia-se tornando fétido e abafado. Havia quem não conseguisse adormecer, se levantasse e se sentasse na cama uma hora e meia, com a cabeça embarretada caída, a matutar nalguma coisa. Eu olhava para ele e tentava adivinhar os seus pensamentos, também para matar o tempo. Ou começava a sonhar, a recordar o passado; vinham-me à imaginação quadros amplos e nítidos; lembrava-me de pormenores de que, noutras alturas, nunca me lembraria e nunca sentiria como então. Ou interrogava o futuro: como será quando sair da prisão? Para onde irei? Quando? Alguma vez voltarei à minha terra natal? Pensava, pensava... e despontava-me uma esperança na alma... Às vezes, simplesmente, punha-me a contar: um dois, três... para adormecer entre os números. Por vezes contava até três mil e não adormecia. Alguém a dar voltas na cama. Ustiántsev a tossir... uma tosse podre, tísica... depois a gemer debilmente e a murmurar: «Meu Deus, sou um pecador!» Era estranho ouvir aquela voz doentia, quebrada e lamuriante no meio do silêncio geral. A um canto, dois que também não dormiam e conversavam. Um contava a sua vida de outrora, o seu passado longínquo, a sua vagabundagem, falava dos filhos, da mulher, de como era a vida. Sentia-se pelo seu sussurrar: o que contava não voltaria mais e, também, que o próprio narrador era um rejeitado; o outro ouvia. Era um sussurro baixinho, monótono, como água que marulha ao longe... Lembro-me agora de uma história que ouvi numa longa noite de inverno. A princípio, pareceu-me um pesadelo febril, como se eu estivesse com temperatura alta, a delirar...

32 Tudo o que escrevo aqui sobre os castigos e as execuções acontecia nos meus tempos. Ouvi dizer que agora isso mudou ou está a mudar. (Nota do Autor)

33 Uma criminosa francesa que envenenou o pai, os dois irmãos e mais parentes para receber a herança. Foi executada em 1676. (NT )


4

O marido de Akulka. Uma narração

Ia alta a noite, passava das onze. Adormeci, mas de repente acordei. A luz baça e pequenina da longínqua lâmpada noturna alumiava frouxamente a enfermaria... Já quase toda a gente adormecera, mesmo Ustiántsev, e ouvia-se no silêncio a sua respiração difícil e o rouquejar do escarro na sua garganta. Ao longe, no átrio do hospital, soaram de repente os passos rudes dos soldados que vinham render a guarda. Uma culatra de espingarda bateu no chão. Abriu-se a enfermaria; o cabo, num passo cuidadoso, contou os doentes. Um minuto depois, a porta era fechada à chave, a sentinela era substituída, a guarda ia-se embora — e voltou a cair o silêncio. Só então reparei que, não longe de mim, dois homens não dormiam e pareciam cochichar. Acontecia assim nas enfermarias: às vezes, há doentes que estão dias e meses a fio acamados lado a lado e não trocam uma palavra entre si; de repente, nas horas noturnas propícias às confidências, lançam-se numa conversa cochichada em que um conta ao outro todo o seu passado.

Pelos vistos, já estavam a falar havia muito. Não apanhei o princípio da conversa, e também não conseguia ouvir tudo depois; mas, a pouco e pouco, comecei a perceber. Não tinha sono: como poderia deixar de ouvir?... Um deles falava com ardor, meio estendido na cama, soerguendo a cabeça e esticando o pescoço na direção do companheiro. Estava visivelmente exaltado, excitado — tinha ânsia de contar. O seu ouvinte estava sentado na sua cama, sombrio e numa completa indiferença, de pernas estendidas; de vez em quando mugia qualquer coisa, como resposta ou em sinal de aprovação ao narrador, mas parecia fazê-lo mais por conveniência; a cada minuto, enchia o nariz de rapé que tirava do corno. Era o soldado Tcherévin, da companhia correcional, homem dos seus cinquenta anos, um pedante carrancudo, maçador frio e estúpido, cheio de amor-próprio. O narrador, Chichkov, era um homem ainda novo, de cerca de trinta anos, criminoso de direito comum, que trabalhava na alfaiataria. Até ao momento, eu não lhe tinha prestado muita atenção; mesmo depois, no resto da minha vida prisional, ele também não me viria a interessar muito. Era um homem vazio e estabanado. Ora se calava, muito carrancudo, grosseiro, sem falar semanas a fio; ora se metia bruscamente nalguma história, todo mexericos, a esquentar-se por tudo e por nada, a correr de uma caserna para a outra, espalhando boatos, caluniando pessoas, de estribeiras perdidas. Sovavam-no, ele voltava a calar-se. Era um rapaz acobardado, fracote. Todos o tratavam com um certo desdém. Era baixinho, magro, de olhos inquietos, às vezes parados num embotamento pensativo. Quando contava alguma coisa, começava com ardor, até abanava as mãos — de repente, interrompia a história, mudava de assunto, começava a entusiasmar-se com os novos pormenores e esquecia-se do que começara a contar. Ralhava muito com os outros e, quando o fazia, acusava sempre alguém de ter uma qualquer culpa em relação a ele, falando com emoção, quase com lágrimas... Tocava balalaica razoavelmente e gostava de a tanger; nas festas, até dançava, e bem, mas era preciso obrigá-lo... De resto, era fácil obrigá-lo a fazer fosse o que fosse... Mas não por ser muito obediente: é que gostava de conviver e cultivar o obséquio.

Demorei a perceber em que consistia a sua história. A princípio pensei que ele, como de costume, se desviava do assunto. Talvez se desse conta de que Tcherévin não mostrava interesse quase nenhum pela sua história, mas tentava convencer-se de que o outro era todo ouvidos, e é possível que se sentisse muito magoado se se apercebesse do contrário.

— ... Às vezes, vai ao mercado — continuava Chichkov —, e lá todos o cumprimentam, lhe fazem vénias... Um ricaço, palavras para quê?

— Fazia comércio, dizes tu?

— Pois, comércio. Entre os nossos populares, já se sabe, é tudo uma pobreza. Uns descamisados. As mulheres carregam com a água do rio pela ladeira acima, até ao alto da colina, para regarem as hortas; esfalfam-se, mas chega o outono e nem repolho arranjam que dê para a sopinha. Miséria. O homem, esse, tinha um campo grande no baldio, tinha três jornaleiros a lavrarem-lhe a terra, e também um colmeal; vendia o mel e o gado e, portanto, era muito respeitado na nossa terra. Era já velho, de uns setenta anos, pesado dos ossos, grande, o cabelo todo branco. Vai de peliça de raposa para o mercado e toda a gente o venera. «Bom dia, paizinho Ankudim Trofímitch!» — «Bom dia para ti também.» Quer dizer, ele não despreza ninguém. «Longos anos de vida, Ankudim Trofímitch!» — «E tu, como estás?» — pergunta. «A nossa vidinha vai de mal a pior. E vossa mercê como passa?» — «Cá vamos, para mal dos nossos pecados, também deitamos fuligem para os céus.» — «Longos anos de vida, Ankudim Trofímitch!» Não despreza ninguém e, quando fala, cada palavra dele vale ouro. Era letrado, alfabetizado, lia livros religiosos. Costumava mandar a sua velha sentar-se em frente dele: «Ouve, mulher, e tenta perceber!» — e começava a explicar-lhe. Ora, a velha não era tão velha como isso, ele ia já no segundo casamento, para ter filhos, já que a primeira mulher não lhos dera. Da segunda, Mária Stepánovna, tinha dois filhos varões ainda menores; o mais novo, Vássia, nascera quando o velho tinha sessenta anos; a filha Akulka, a mais velha de todos, tinha dezoito anos.

— Essa é que foi a tua mulher, ou quê?

— Espera. Aqui, o primeiro a fazer porcaria foi o Filka Morózov. Ouve, diz Filka a Ankudim, divide já o capital: passa para cá os quatrocentos rublos todos, não sou nenhum jornaleiro teu. Não quero negociar contigo nem casar-me com a tua Akulka. Agora, quero estroinar. Morreram os meus pais, então vou gastar o dinheiro todo na bebedeira e, depois, tropa: troco com um recruta, por dinheiro, e daqui a dez anos volto cá como marechal de campo. Então, Ankudim Trofímitch acertou contas com ele; é que o pai de Filka tinha o comércio com o velho, o capital era dos dois. «És um homem perdido», diz o velho. E o outro: «Isso é o que vamos ver, se sou perdido ou não; mas contigo, ó barba branca, a gente até tem de tomar o leite em dedal. Queres fazer render cada tostãozinho, não deitas fora porcaria nenhuma, a ver se dá para engrossares as papas. Quanto a mim, estou-me nas tintas. Poupamos, poupamos, e depois? Compramos um cordel. E eu tenho caráter! Em qualquer caso, não pego na tua Akulka; não precisei disso para dormir com ela...»

«Como te atreves a insultar um pai honesto e uma filha honrada?! — espanta-se o Ankudim. — Quando é que dormiste com ela, meu banhas de víbora, meu sangue de peixe?», e todo ele tremia. O próprio Filka mo contou.

«E não é só comigo que ela não se vai casar — diz ele —, vou fazer com que a vossa Akulka não case com ninguém, com que ninguém pegue nela, nem o Mikita Grigóritch, porque ela agora está desonrada. Já no outono andávamos juntos. Agora, nem que me deem cem lagostins, não a aceito. Tenta, dá-me mil rublos: verás que não a aceito...»

Que pândega ele fez, meu irmão! Foi um estrondo na cidade, parecia que a terra gemia. Com aquele dinheiro todo, juntou companheiros e andou na estroina três meses seguidos, derreteu tudo. Dizia: «Quando der cabo do dinheiro todo, vendo a casa, vendo tudo, e estoiro tudo, depois vou para a tropa como substituto de um recruta, ou vou para vagabundo!» Andava bêbado de manhã à noite, sempre com uma parelha atrelada, com guizos. E como as raparigas gostavam dele! E que bem tocava bandurra!

— Quer dizer que teve um caso com a Akulka antes disso?

— Espera, espera. Naquela altura também enterrei o meu pai, e fiquei com a minha mãezinha, que fazia doces de mel, trabalhava para Ankudim Trofímitch; era assim que ganhávamos o nosso pão. Vivíamos mal. Também tínhamos alguma terra para lá da floresta, é verdade, mas depois da morte do meu pai perdemos tudo, porque eu também me meti na estroinice, meu amigo. Tirava o dinheiro à minha mãe ao murro...

— Se era a murro, está mal. Grande pecado.

— Andava bêbado de manhã à noite, meu irmão. A nossa casa não era má, estava um bocado podre mas era nossa, mas era uma isbá em que não havia nada, nadinha. Passávamos fome às semanas inteiras, às vezes nem tínhamos pão. A minha mãe serrazinava-me o juízo, mas eu estava-me nas tintas!... Naquela altura andava sempre atrás do Filka Morózov. De manhã à noite, lá andava eu atrás dele. Dizia-me ele: «Toca guitarra e dança, que eu fico deitado a atirar-te dinheiro, porque não há homem mais rico do que eu.» O que ele não fazia! Só não comprava coisas roubadas: «Não sou ladrão — dizia —, sou um homem honesto.» Uma ocasião disse: «Vamos sujar o portão de Akulka com breu34, porque não quero que a Akulka se case com o Mikita Grigóritch. Isso é que eu não aceito.» Já antes o velho queria casar a filha com Mikita Grigóritch. O Mikita também já não era novo, viúvo, usava óculos, fazia também o seu comércio. Quando chegaram até ele esses boatos sobre a Akulka, recusou-se a casar. Disse a Ankudim Trofímitch: «Para mim, seria uma grande desonra. Além disso, na minha idade já não quero casar-me.» Pois bem, sujámos o portão da Akulka. Por causa disso, foi açoitada cruelmente lá em casa... Mária Stepánovna gritou-lhe: «Mato-te!» E o velho: «Nos tempos antigos, dos patriarcas honestos, cortá-la-ia aos bocados, mas agora tudo no mundo são trevas e podridão.» Na rua toda, os vizinhos ouviam a Akulka a chorar: chicoteavam-na de manhã à noite. O Filka gritava por todo o mercado: «Há uma rapariga linda, a Akulka, boa companheira de pândega. Andas toda ataviada, Akulka, toda de branco, diz lá a quem amas! Mostrei-lhes como sou, não se vão esquecer de mim.» Por esses dias, encontrei uma vez a Akulka na rua, ia ela com uns baldes de água, e gritei-lhe: «Bom dia, Akulina Ankudímovna! Andas muito bem ataviada! Onde é que arranjaste isso? Diz lá: com quem vives?» Eu disse aquilo e ela olhou para mim com uns olhos muito grandes: estava magra como um palito. Olhou, mas a mãe pensou que ela se estava a rir para mim e gritou-lhe do quintal: «O que estás para aí a arreganhar os dentes, sua desavergonhada?» — e logo nesse dia desancaram-na outra vez. Às vezes batia-lhe uma hora inteirinha: «Vou-lhe bater até à morte porque já não é minha filha.»

— Quer dizer que era uma depravada.

— Espera, ouve mais um bocado, tiozinho. Andávamos assim na farra, o Filka e eu, e então chega uma vez a minha mãe ao pé de mim, estava eu deitado. «Que estás a fazer deitado, seu velhaco? Seu bandido...» Descompôs-me de todas as maneiras e feitios. «Casa-te, casa-te com a Akulka. Agora, já se darão por felizes se a casarem até contigo; só em dinheiro darão alguns trezentos rublos.» E eu: «Mas ela agora está desonrada, toda a gente sabe.» E ela: «És parvo. O casamento tapa tudo, e ainda é melhor que ela seja culpada para contigo toda a vida. E com o dinheiro deles poderíamos melhorar as nossas coisas. Já falei com a Mária Stepánovna: ouviu tudo e está de acordo.» E eu: «Vinte rublos em cima da mesa e é para já, caso-me.» Então, acredites ou não, até ao dia do casamento andei bêbado como um cacho. Ainda por cima, o Filka Morózov ameaçava-me: «Parto-te as costelas todas, maridinho da Akulka, e se quiser vou dormir todas as noites com a tua mulher.» E eu: «Estás a mentir, carne de cão!» Então, envergonhou-me à frente da rua inteira. Corri para casa: «Não me caso se não me derem imediatamente mais cinquenta rublos!»

— Mas é verdade que eles ta davam em casamento?

— A mim? Por que não? Éramos gente honesta. O meu pai só para o fim da vida é que ficou arruinado, por causa do incêndio, mas antes éramos mais ricos do que eles. Ankudim Trofímitch dizia: «Sois uns maltrapilhos.» E eu: «Pois é, mas não faz mal, porque o portão cagado de breu é o vosso.» E ele: «Por que nos achincalhas? Primeiro tens de provar que ela foi desonrada; além disso, não se pode tapar as bocas. É pegar ou largar, é contigo. Mas devolves o dinheiro que já te dei.» Então decidimos, eu e o Filka: mandar ao velho o Mítri Bíkov para lhe dizer que eu o ia cobrir de vergonha, de imediato, aos olhos de todo o mundo. Até ao dia do casamento, andei sempre bêbado, meu irmão. Só fiquei sóbrio antes de ir à igreja. Quando nos levaram para casa depois do casamento, mandaram-nos sentar, e Mitrofan Stepánitch, o tio, disse então: «Embora não seja honrado, é sólido, e está feito e resolvido.» O velho Ankudim também estava bêbado e chorou: ali sentado, as lágrimas a correrem-lhe pelas barbas abaixo. E eu, meu amigo, fiz isto: meti o chicote no bolso, já antes do casamento o tinha preparado, e resolvi para mim mesmo: agora é que vou mostrar à Akulka, agora é que ela vai ver o que é casar-se desonrada, agora é que toda a gente vai ficar a saber que não me casei como um parvo...

— Fizeste bem! Para ela sentir depois...

— Não, tiozinho, espera e cala-te. Na nossa terra, depois da igreja levam os noivos imediatamente para o quarto, enquanto os outros festejam. Pois bem, deixaram-nos no quarto, a mim e à Akulka. Ela estava sentada, branca como um lençol. O cabelo dela também era claro como o linho. E os olhos grandes. Andava sempre calada, não se ouvia uma palavra da boca dela, parecia muda. Esquisita, a rapariga. E então, irmão, o que é que achas? Preparei o chicote e pu-lo ao lado da cama... mas ela, meu irmão, saiu-me virgem, juro por Deus.

— Não me digas!

— Pois, era uma rapariga honrada de família honrada. Porquê, meu irmão, por que sofreu tanto por nada? Por que a cobriu o Filka Morózov de vergonha diante de todo o mundo?

— Pois.

— Então pus-me de joelhos à frente dela, ao lado da cama, juntei as mãos: «Akulina Ankudímovna, mãezinha, perdoa-me, a mim, um parvo, por te ter tomado por uma dessas. Perdoa-me, sou um canalha!» E ela, sentada na cama, a olhar para mim, pôs-me as mãos nos ombros, ria-se mas corriam-lhe as lágrimas; ria-se e chorava... Então, saí do quarto para onde estavam os convidados: «Se encontrar agora o Filka Morózov, acabo-lhe com a vida!» Os velhos, esses, já não sabiam a que santo rezar. A mãe caiu aos pés de Akulka a uivar. E o velho: «Se soubéssemos, filha nossa adorada, não seria este marido que te arranjaríamos.» Quando, no primeiro domingo, eu e ela fomos juntos à igreja — eu, com gorro de ovelha, cafetã de pano fino e calças de veludo; ela, de peliça nova de lebre, lenço de seda —, eu ia digno dela, e ela digna de mim... E era assim que andávamos! Toda a gente nos admirava: porque eu, já se sabe como eu sou, mas a Akulínuchka, embora não fosse a beleza em pessoa, também não era das piores...

— Ainda bem.

— Então, ouve. Depois da boda, no dia seguinte, mesmo bêbado, fugi dos convidados, deitei a correr pela rua: «Deem-me cá o malandro do Filka Morózov... deem-me cá esse canalha!» Fui para o mercado, gritei a mesma coisa. Estava tão bêbado que, ao pé da porta dos Vlássov, três homens apanharam-me e levaram-me à força para casa. Falava-se disso por toda a cidade. As raparigas no mercado: «Sabeis, raparigas? A Akulka, afinal, era honrada.» Então, uma ocasião, o Filka propôs-me na presença de todos: «Vende-me a mulher e já podes beber quanto quiseres. Temos cá o soldado Iachka, que se casou para isso mesmo: não dormia com a mulher, mas durante três anos não parou de beber.» Disse-lhe eu: «És um canalha!» E ele: «E tu um parvo. Casaram-te bêbado. O que podias tu perceber disso?» Fui para casa a gritar: «Casaram-me bêbado!» A minha mãe agarrou-se a mim. «A ti, mãezinha, taparam-te os ouvidos com dinheiro. Traz cá a Akulka!» E comecei a bater-lhe. Desanquei-a durante duas horas, meu amigo, até eu próprio cair de cansaço; durante três semanas, a Akulka não se levantou da cama.

— Pois claro — observou Tcherévin fleumaticamente —, se não lhes batermos... Será que a apanhaste com o amante?

— Não, apanhar não apanhei — respondeu Chichkov após uma pausa e como que contrafeito. — Mas fiquei muito ressentido, as pessoas fartavam-se de gozar comigo, e era o Filka quem as incitava. Dizia ele: «A tua mulher é um modelo digno de se admirar.» Uma vez convidou-nos, éramos um rancho de rapazes, para sua casa: «Este aqui — disse ele — tem uma esposa que é uma alma misericordiosa, generosa, delicada, boa em tudo. Ena, que vida ele tem agora! Mas não te lembras como lhe sujaste, tu próprio, o portão?» Eu estava borracho, ele agarrou-me então pelos cabelos e dobrou-me a cabeça para baixo: «Dança, maridinho da Akulka, eu agarro-te assim pelo cabelo e tu danças para mim, diverte-me!» Gritei-lhe: «És um canalha!» E ele: «Vou a tua casa com a rapaziada e açoito a tua Akulka na tua presença quanto me apetecer.» Então, acredites ou não, passei um mês metido em casa com medo de sair: ele vai aparecer aqui, pensava eu, e vai cobrir tudo de desonra. Foi por isso mesmo que lhe comecei a bater, a ela...

— Mas porquê? Pode-se atar as mãos, mas a língua não. Também não está bem feito bater muito. Castiga-se, dá-se uma lição, mas depois dá-se carinho. É para isso que se tem a mulher.

Chichkov ficou algum tempo calado.

— Estava ressentido — recomeçou a falar —, e também ganhei esse hábito. Às vezes batia-lhe de manhã à noite: porque se levantava mal, porque andava sem jeito... Se não lhe batesse, aborrecia-me. Às vezes estava ela sentada à janela, a olhar, a chorar... estava sempre a chorar, e eu tinha pena dela, mas batia-lhe na mesma. A minha mãe serrazinava-me o juízo: «És um canalha, carne de um grilheta!» Eu gritava: «Eu mato-a, e que ninguém se atreva a dizer nada, porque me casaram com aldrabice.» A princípio, o velho Ankudim ainda queria defendê-la. Vinha e dizia para mim: «Tu não és grande peça, ainda um dia te trato da saúde!» Depois, desistiu. A Mária Stepánovna, essa, resignou-se por completo. Ainda foi ter comigo uma vez, a suplicar com lágrimas: «Vim pedir-te uma coisa, Ivan Semiónitch; não é grande o assunto, mas é grande o pedido. Deixa-nos ver a luz, paizinho — e fez-me uma vénia —, perdoa-lhe! Pessoas más caluniaram a nossa filha: sabes bem que a tomaste honrada...» Fez-me umas vénias até ao chão. E eu, todo bazófias: «Nem quero ouvir-vos! Faço o que me apetecer convosco, porque não posso conter-me. E o Filka Morózov é meu companheiro, é o meu melhor amigo...»

— Quer dizer que voltaram a andar na farra juntos?

— Não! Nem podia andar. Estava sempre bêbado até mais não poder. Derreteu tudo o que tinha e vendeu-se como substituto de um recruta, o filho mais velho de um homem lá da terra. Na nossa terra há o costume de o substituto, até ao dia em que é entregue à tropa, ser tratado como um senhor em casa do substituído e toda a gente tem de lhe cair aos pés. Recebe o dinheiro todo no último dia, mas até lá vive em casa do patrão. Há alguns que chegam a viver lá meio ano, e as coisas que eles não fazem aos donos da casa, Deus do céu! Vão recrutar-me em lugar do vosso filho, portanto, sou vosso benfeitor, tendes de me respeitar todos, senão recuso-me. Então, o Filka, em casa desse popular, pôs tudo de pantanas: dormia com a filha dele, puxava o dono da casa pelas barbas todos os dias depois do almoço, fazia o que lhe apetecia. Todos os dias lhe aqueciam a sauna, o vapor tinha de ser feito com vodka, as mulheres deviam levá-lo em braços para a sauna. Voltava para casa depois de uma pândega: «Não quero entrar pelo portão, desmontai a cerca!» Então, desmontavam a cerca e ele passava. Finalmente, chegou o dia, desembriagaram-no, levaram-no para o entregarem à tropa. Amontoou-se muitíssimo povo na rua: levam o Filka Morózov para a recruta! Ele fazia vénias para todos os lados. Nessa hora, a Akulka voltava da horta; o Filka viu-a, mesmo junto ao nosso portão. Gritou-lhe: «Espera!», saltou da carroça e fez-lhe uma vénia até ao chão: «Minha alminha, minha linda, amei-te todos estes dois anos, e agora levam-me com música para a tropa. Perdoa-me, filha honrada de pai honrado, porque sou um canalha, sou culpado perante ti!» E voltou a fazer-lhe uma vénia até ao chão. Akulka, primeiro, parou como que assustada, depois fez-lhe também uma vénia e disse: «Perdoa-me também, bom homem, não te guardo rancor nenhum.» Corri atrás dela para a isbá: «O que lhe disseste, minha carne de cão?» E ela, não sei se vais acreditar, olhou para mim e disse: «Agora gosto dele mais do que tudo no mundo!»

— Irra!...

— Durante todo esse dia não lhe disse uma única palavra... só à noite: «Akulka! Vou-te matar», disse. Não dormi de noite, saí para o átrio para beber kvass, e nisto começou a despontar a manhã. Entrei na isbá. «Akulka, prepara-te, vamos ao baldio.» De resto, já antes eu pensava irmos ao nosso campo, a mãezinha sabia disso, e até me disse: «Assim está bem: é tempo da colheita e, ao que dizem, o jornaleiro está lá deitado cheio de dores de barriga já vai no terceiro dia.» Atrelei a carroça, calado. À saída da nossa cidade é logo uma floresta de quinze verstás de comprido, depois é que é o nosso campo. Tínhamos passado umas três verstás de floresta e eu parei o cavalo: «Sai, Akulina, chegou a tua hora.» Ela olhou para mim, assustou-se, não disse nada. «Estou farto de ti, reza as tuas orações», disse-lhe eu. Agarrei-a pelos cabelos: tinha umas tranças grossas, compridas, enrolei-as ao meu braço, apertei-a por trás entre os meus joelhos, tirei a faca, puxei-lhe a cabeça para trás e dei-lhe uma facada no pescoço... Ela gritou, o sangue espichou, larguei a faca, abracei-a pela frente e fiquei ali no chão com ela, a gritar, a chorar; eu a gritar e ela também, toda a tremer, a estrebuchar nos meus braços, e o sangue a sair, a sair... Fiquei com medo, larguei-a, deixei o cavalo e deitei a correr até minha casa, entrei pelas traseiras, meti-me na sauna: tínhamos uma já velha e sem serventia. Meti-me debaixo do catre. Fiquei lá até à noite.

— E a Akulka?

— Ela também se tinha levantado e caminhado aos baldões na direção de casa. Encontraram-na depois a cem passos desse lugar.

— Então não chegaste a matá-la.

— Pois... — Chichkov ficou um minuto calado.

— Eu sei que há uma veia assim — observou Tcherévin —, se não for cortada de uma vez, à primeira, a pessoa fica a estrebuchar e, por mais sangue que saia, não morre.

— Mas ela morreu. Encontraram-na à noite, já morta. Deram o alarme, procuraram-me e encontraram-me na sauna... Já vai no quarto ano que estou cá — acrescentou, depois de mais de um minuto de silêncio.

— Humm... É claro, se não lhes arriarmos, nada de bom acontece! — observou Tcherévin sentenciosamente e com sangue-frio, voltando a servir-se do corno. Pôs-se a cheirar o rapé, demorada e pausadamente. — Por outro lado, rapaz — continuou —, tu, afinal, és muito parvo. Eu, uma vez, também apanhei a minha mulher com o amante. Então, chamei-a ao barracão, dobrei uma rédea. Só lhe disse: «A quem és tu fiel? A quem és fiel?» Bati-lhe com a rédea, acho que a desanquei durante hora e meia, e ela: «Vou lavar-te os pés e beber essa água!» Chamava-se Ovdótia.

34 Um costume bárbaro: sujava-se com breu o portão da casa de uma rapariga a fim de a cobrir de opróbrio, mostrando publicamente que ela perdera a inocência sem ser casada. (NT )


5

O período estival

Princípios de abril, já está próxima a Semana Santa. A pouco e pouco, começam os trabalhos estivais. O sol é mais quente e brilhante a cada dia que passa, o ar cheira a primavera e excita o organismo. Também o homem agrilhoado se emociona com os dias maravilhosos, que também nele fazem nascer os desejos, as aspirações, a nostalgia. Parece que a nostalgia da liberdade se torna ainda mais forte sob os raios cálidos do sol do que num sombrio dia invernoso ou outonal — nota-se esse estado de espírito em todos os reclusos. Por um lado, estão contentes com os dias claros; por outro, cresce neles uma certa impaciência, um certo ímpeto. É verdade: reparei que, na primavera, as desavenças na prisão se tornavam mais frequentes. Ouvia-se mais algazarras, mais gritos, havia mais altercações, rebentavam mais escândalos; ao mesmo tempo, nos trabalhos, reparava às vezes em alguém com o olhar pensativo e persistente perdido ao longe, fixo no horizonte azul, algures na outra margem do Irtich, onde começa e se espalha como uma toalha infinda, por mil e quinhentas verstás, a livre estepe quirguize; ou surpreendia o suspiro fundo de alguém, um suspiro com o peito todo, como se quisesse sorver aquele ar longínquo e livre, e aliviar com ele a alma oprimida e agrilhoada. «Eeh!», dizia finalmente o sonhador, como que a sacudir bruscamente da alma os sonhos e os pensamentos. Depois, impaciente e sombrio, agarrava na enxada ou nos tijolos que era preciso levar de um sítio para outro. Um minuto depois já se esquecera da sensação momentânea que o invadira e começava a rir ou a praguejar, consoante o seu feitio; ou, de repente, com um zelo invulgar, desaquado à necessidade, atirava-se ao trabalho para cumprir a norma, caso tivesse sido fixada, e trabalhava sem poupar forças, como se quisesse matar em si, com o trabalho duro, qualquer coisa que o atormentava por dentro. Estão nos trabalhos pessoas robustas, quase todas na flor da idade e no auge das forças... Como as grilhetas são pesadas nesta época! Não poetizo nada, estou seguro da minha observação. Com o calor, com o brilho do sol, quando sentimos com toda a nossa alma e todo o nosso ser a natureza a renascer a toda a volta com uma força infinita, a prisão fechada, a escolta e a liberdade dos outros dão-nos uma sensação muito dolorosa; além disso, é neste tempo primaveril que começa pela Sibéria e por toda a Rússia a vagabundagem: fogem os desgraçados das prisões siberianas e escondem-se nas florestas. Depois do buraco abafado, dos tribunais, das grilhetas e dos paus, vagueiam em liberdade por onde lhes apetece, por onde lhes dá mais jeito; comem e bebem o que conseguem arranjar, o que Deus envia, e à noite adormecem em paz, no meio de uma floresta ou de um campo, sem as grandes preocupações, sem as angústias prisionais, como pássaros dos bosques, só às estrelas celestes desejando as boas-noites, sob o olhar de Deus. Ninguém nega que, às vezes, esta é uma vida difícil, que a fome é muita, que é extenuante «servir às ordens do general Cuco Bravo»35. Às vezes, durante um dia inteiro, nem um bocadinho de pão; é obrigatório esconder-se de todos; é preciso roubar e pilhar, às vezes matar. Dizem na Sibéria dos colonos deportados: «O colono é como um gaiato — onde põe o olho, pega.» Este ditado aplica-se inteiramente, ou ainda com mais propriedade, ao vagabundo. O vagabundo raramente não é bandido e quase sempre é ladrão, mais por necessidade do que por vocação, evidentemente. Há vagabundos empedernidos. Há quem fuja das terras onde vive como colono já depois de ter cumprido a pena. Até parece que vive lá satisfeito e não lhe falta nada, mas não! — está sempre em ânsias de ir para qualquer lado, há sempre qualquer coisa algures que não para de o atrair. A vida nas florestas, pobre e terrível, mas livre e cheia de aventura, tem um atrativo qualquer, um misterioso encanto para quem a tenha já experimentado: de repente, um homem até então modesto, sensato, que já tinha prometido tornar-se um bom trabalhador sedentário, um proprietário da sua terra prático e esperto — mete-se ao caminho. Há quem se tenha casado, tenha filhos, viva há já cinco anos no mesmo sítio e, um belo dia, inesperadamente, desaparece, deixando estupefactos a mulher, os filhos e o distrito em que está recenseado. Na nossa prisão, mostraram-me um desses fugitivos. Nunca cometera crimes especialmente graves, pelo menos não constava nada dele nesse particular, e no entanto sempre andou em fuga, toda a sua vida. Passou pelas zonas raianas do Sul da Rússia, para lá do Danúbio, pelas estepes quirguizes, pela Sibéria Oriental e pelo Cáucaso — andou por todo o lado. Quem sabe?, talvez noutras circunstâncias se tivesse tornado um Robinson Crusoé, um viajante apaixonado. Tudo isto, aliás, mo contaram os outros, já que ele próprio pouco falava dentro da prisão, apenas o necessário. Era um mujique pequenino, de cerca de cinquenta anos, muito sossegado, com cara de lorpa, parada até à idiotice. No verão, gostava de se sentar ao sol e cantarolava sempre uma cantiga qualquer, tão baixinho que a cinco passos não se ouvia. Os traços do seu rosto pareciam de pau; comia pouco e esse pouco era principalmente pão; nunca o vi comprar um kalatch, uma garrafinha de vodka; era pouco provável que alguma vez tenha tido dinheiro ou, se teve, que o soubesse contar. Tinha uma atitude de calma absoluta em relação a tudo. Às vezes dava de comer, à mão, aos cãezinhos da prisão — na prisão ninguém dava de comer aos cães. A propósito: no geral, o homem russo não gosta de dar de comer aos cães. Diziam que, outrora, o mujique de que falo esteve casado, e mesmo duas vezes; diziam que tinha filhos... Não faço a mínima ideia por que fora parar à prisão. Os nossos estavam sempre à espera que, também daqui, ele fugisse; mas não — ou porque ainda não tivesse chegado a hora, ou porque já não tivesse idade para fugas, deixava-se viver nas calmas na prisão, numa atitude como que contemplativa em relação a todo aquele estranho ambiente. De resto, com ele não se podia ter a certeza de nada, apesar de, aparentemente, não ter razões para fugir nem tirar quaisquer vantagens disso. Seja como for, a vida do vagabundo, de uma maneira geral, é paradisíaca em comparação com a vida prisional. E compreende-se muito bem que não haja nem possa haver qualquer comparação: embora seja uma vida dura, é-o em liberdade. É por isso que qualquer recluso da Rússia, seja onde for, se torna inquieto na primavera, aos primeiros raios carinhosos do sol. Embora nem todos se atrevam a fugir. Pode afirmar-se com certeza que se decide pela fuga — tão difícil e arriscada ela é — uma em cada cem pessoas; porém, as restantes noventa e nove podem, pelo menos, sonhar um pouco com a fuga, como a executar e para onde ir; é um desejo, uma fantasia que lhes alivia a alma. Outros há que podem, ao menos, recordar as suas fugas passadas... Estou a falar, para já, de condenados. Entretanto, ousam a fuga muitas mais vezes os acusados ainda sem condenação. Os condenados a determinada pena fogem, principalmente, no início da reclusão. Quando o preso já leva cumpridos dois ou três anos de trabalhos forçados, começa a dar valor a esses anos e, a pouco e pouco, admite que será melhor concluir de forma legal a sua pena e ir viver depois como colono do que correr um risco tão grande e sujeitar-se a um castigo tão duro em caso de falhanço. É que o falhanço é muito provável. Apenas um em cada dez consegue mudar o seu destino. Entre os condenados, quem arrisca mais a fuga são os reclusos que cumprem penas muito grandes. Quinze ou vinte anos parecem-lhes uma infinidade, pelo que sonham sempre com a mudança de destino, nem que já tenham passado dez anos na prisão. Por fim, as marcas do ferro também podem dissuadir de empreender a fuga. Mudar o destino é o termo técnico. Assim se exprime o recluso nos interrogatórios quando é apanhado depois da fuga: que queria mudar o seu destino. Esta expressão um tanto livresca corresponde perfeitamente ao assunto em questão. Não se pode dizer que o fugitivo tencione libertar-se definitivamente — sabe que isso é quase impossível —, mas tem em vista ir parar a outra instituição, ou a um colonato, ou ser julgado de novo, por algum outro crime, cometido já na vagabundagem; em resumo, quer ir para qualquer lado menos para a prisão anterior, de que já está farto. Todos estes fugitivos, se não encontrarem durante o verão algum lugarzinho raro, ocasional, onde possam passar o inverno (por exemplo, se não calhar encontrarem um encobridor de fugitivos, que tiram bom proveito desta atividade); se não arranjarem, às vezes com recurso ao assassínio, um passaporte, com que podem viver em todo o lado — então, quase todos os que não foram apanhados dirigem-se em chusmas às cidades e aos fortes, como vagabundos, e deixam-se meter nas prisões para o inverno, com a esperança, evidentemente, de voltarem a fugir no verão.

Também eu sentia o efeito da primavera. Lembro-me de espreitar, às vezes, pelas frinchas da paliçada, ficando muito tempo com a cabeça ali encostada, olhando sem me cansar para a erva que verdejava no aterro do forte, para o céu distante que se ia tornando cada vez mais azul. A inquietação e a angústia cresciam em mim a cada dia que passava, a prisão era-me cada vez mais odiosa. O ódio que os reclusos me tinham, pela minha condição de fidalgo, era insuportável para mim, envenenava-me a vida nos meus primeiros anos de prisão. Nesses primeiros anos, eu ia muitas vezes parar ao hospital, sem ter qualquer doença, unicamente para não estar dentro do presídio, para me libertar daquele ódio obstinado, intransigente e geral. «Os fidalgotes têm narizes de ferro, crivaram-nos de bicadas!», diziam para nós os reclusos; e que inveja eu tinha, por vezes, da gente simples que entrava para a prisão! Essa gente tornava-se, de imediato, companheira de todos. Por isso a primavera, o fantasma da liberdade, a alegria reinante na natureza se repercutiam em mim em irritação e tristeza. No fim da Quaresma, na sua sexta semana, salvo erro, chegou a minha vez de me preparar para a confissão e a comunhão. Toda a prisão, desde a primeira semana, fora dividida pelo sargento em sete turnos, de acordo com o número de semanas. Cada turno tinha, assim, cerca de trinta presos. Gostei muito da semana da comunhão. Estávamos dispensados dos trabalhos. Íamos à igreja, que ficava perto do forte, duas ou três vezes por dia. Havia muito que eu não ia à igreja. Os ofícios quaresmais, que me eram tão familiares desde a infância, em casa de meus pais, as orações solenes, as reverências até ao chão — tudo isso despertava na minha alma o passado, tão remoto, as recordações dos meus verdes anos, e lembro-me de que me sentia muito bem quando, de manhã, nos levavam sob escolta armada pela terra gelada durante a noite, até à casa de Deus. A escolta, aliás, não entrava na igreja. Lá dentro, ficávamos num grupo apertado junto à porta, nos últimos lugares, pelo que apenas se ouvia a voz forte do diácono e, por cima das cabeças da grande multidão, se entrevia a casula preta e a careca do pope. Recordava então como, ainda na infância, eu olhava para o povo simples que se apertava junto das portas da igreja e abria alas servilmente para deixar passar um oficial de dragonas espessas, um senhor gordo ou uma senhora aperaltada mas muitíssimo piedosa, que iam infalivelmente para os primeiros lugares e estavam sempre prontos a disputar-se pelo melhor lugar. Lá, junto àquela porta, como me parecia nesse tempo longínquo, rezava-se de maneira diferente da nossa, com mais resignação, com mais zelo e com uma plena consciência da sua humildade.

Agora era a minha vez de ocupar os últimos lugares e, pior ainda: estávamos ali agrilhoados, marcados a ferro, toda a gente se apartava de nós, como se nos tivessem medo. De cada vez que lá íamos nos davam a esmola e lembro-me de que isso, de certo modo, era agradável para mim, dava-me uma sensação delicada e muito especial de prazer. «Assim seja!», pensava eu. Os reclusos rezavam com grande aplicação, e cada um levava, todos os dias, o seu miserável copeque para comprar uma vela, ou para meter na caixa das esmolas. O recluso, ao dar a sua esmola, talvez pensasse, ou sentisse: «Também sou um ser humano, perante Deus somos todos iguais...» Comungávamos durante a missa da manhã. Quando o padre, com o cálix nas mãos, pronunciava as palavras: «... mas aceita-me como um salteador» — quase todos se prostravam no chão, tilintando com as grilhetas, tomando pelos vistos essas palavras, literalmente, à sua conta.

Chegou enfim a Páscoa. As autoridades deram a cada um de nós um ovo e uma fatia de pão de leite e trigo. A cidade voltou a inundar a prisão de esmolas. Mais uma vez chegou o padre com a cruz, depois os chefes; mais uma vez houve sopa gorda de repolho, mais uma vez as bebedeiras e as farras... tudo como pelo Natal, com a diferença de nos podermos passear desta vez pelo terreiro e de nos aquecermos ao sol. O ambiente era mais luminoso, mais aberto do que no inverno e, mesmo assim, mais tristonho. O longo, interminável dia de quase verão era ainda mais insuportável na quadra das festas. Fora dela, ao menos, parecia mais curto por causa do trabalho.

Os trabalhos estivais eram, de facto, mais duros do que os invernais. Trabalhava-se, principalmente, nas obras de engenharia. Os reclusos construíam, cavavam a terra, punham tijolos; outros faziam trabalhos de serralharia, de carpintaria, ou eram trolhas nas reparações dos edifícios públicos. Outros, ainda, fabricavam os tijolos na fábrica. Este último trabalho era considerado, entre nós, o mais duro. A tijolaria ficava a três ou quatro verstás do forte. No verão, todos os dias, às seis da manhã, ia para lá uma equipa de cinquenta homens fazer tijolos. Eram escolhidos para este trabalho os não qualificados, os que não sabiam ofício nenhum. Levavam pão, porque o lugar era tão longe que não valia a pena ir almoçar ao presídio, fazendo uma caminhada de mais de oito verstás; comiam o almoço já de noite, quando chegavam à prisão. Era fixada uma tarefa dia a dia, mas tão grande que a jornada de trabalho ocupava o dia inteiro. Primeiro, era preciso cavar, extrair a argila, transportá-la; depois, acarretar a água, misturá-la com a argila, amassá-la com os pés num buraco; por fim, fazer com essa pasta uma quantidade enorme de tijolos — duas centenas, ou mesmo duas centenas e meia. Fui para a fábrica apenas duas vezes. Os homens voltavam para a prisão já de noite, extenuados, e não paravam de rezingar com os outros por lhes ter calhado o trabalho mais duro. Era uma espécie de consolação para eles. Apesar disso, alguns iam para a tijolaria com um certo agrado. Em primeiro lugar, porque a fábrica era fora das portas da cidade, num lugar aberto, livre, na margem do Irtich. Era um prazer olhar em volta: nada que se comparasse com o rigor formal do forte! Podia-se fumar à vontade, podia-se mesmo descansar um pouco deitado. Quanto a mim, continuava a trabalhar na oficina, ou, então, no alabastro, ou, ainda, como servente nas obras, a carregar tijolos. Neste último trabalho, calhou-me uma vez ter de acarretar tijolos desde a margem do Irtich até uma caserna em construção a setenta braças do forte, tendo de subir o aterro — fiz esse trabalho durante dois meses seguidos. Até me agradava, embora a corda com que prendia os tijolos me aleijasse nos ombros. Estava contente, sobretudo, porque aquele trabalho me desenvolvia a força física. A princípio carregava apenas oito tijolos de cada vez, sendo que cada tijolo pesava doze libras. Mas depois cheguei aos doze e, mesmo, aos quinze tijolos, o que me deixava muito contente. Nos trabalhos forçados, a força física não é menos necessária do que a moral para se poder suportar todos os incómodos materiais desta vida maldita.

É que, depois da prisão, eu pensava viver ainda...

De resto, não era só porque ganhava força física que eu gostava de carregar tijolos, mas também porque trabalhava na margem do Irtich. Falo tanto desta margem porque era o único sítio donde se nos abria diante dos olhos este mundo de Deus, um horizonte puro e claro, as estepes desertas e livres que me causavam uma estranha impressão com o seu ar abandonado. Só na margem do rio era possível virar as costas ao forte e não o ver. Todos os nossos outros locais de trabalho eram dentro do forte ou encostados a ele. Ganhei ódio a esse forte desde os primeiros dias, sobretudo a algumas das suas construções. A casa do nosso major pintava-se-me como um lugar abominável, maldito e, quando lhe passava ao lado, olhava-a com aversão. Ora, na margem era possível esquecer o forte: olhava para aqueles espaços desertos e infinitos como o prisioneiro olha das grades da sua cela. Ali, tudo me era querido: o sol cálido e brilhante num céu azul sem fundo, a canção longínqua dos quirguizes que me chegava da sua margem. Perscrutava demoradamente a outra margem e, por fim, lá distinguia uma iurta36; ao lado dela erguia-se o fumo, uma mulher quirguize atarefava-se com os seus dois carneiros. Tudo pobrezinho e selvagem, mas livre. Distinguia uma ave no azul transparente e seguia o seu voo infindável e obstinado: ei-la a esvoaçar sobre a água, a desaparecer no azul do céu, a reaparecer como um pontinho quase invisível... Mesmo uma humilde e mirrada flor que encontrei no princípio da primavera numa racha da margem pedregosa me atraiu dolorosamente a atenção. Era insuportável a angústia de todo aquele meu primeiro ano, fazendo de mim um homem irritadiço, amargo. Por causa de tal angústia não reparei em muitas coisas à minha volta durante esse primeiro ano. Fechava os olhos e não queria ver. Não distinguia, no meio dos reclusos maldosos, cheios de ódio, as almas boas, capazes de pensar e de sentir, apesar da sua abominável casca exterior. No meio das palavras cáusticas eu não detetava, tantas vezes, a palavrinha de carinho e simpatia, ainda mais preciosa porque era dita desinteressadamente e, muitas vezes, do fundo de um coração que talvez tivesse sofrido ainda mais do que o meu. Mas, para quê arengar tanto sobre isto? A minha maior satisfação era voltar a casa morto de cansaço: é que adormecia logo! Porque dormir na caserna, durante o verão, era uma tortura, pior que no inverno. O anoitecer e os princípios de noite eram, de resto, muito bonitos. O sol, que durante todo o dia não abandonara o terreiro prisional, partia finalmente. Refrescava, depois caía a noite das estepes, relativamente fria. Os reclusos, enquanto não chegava a hora de as casernas fecharem, passeavam às chusmas pelo terreiro. A maioria, porém, aglomerava-se na cozinha. Ali, levantava-se sempre um qualquer problema premente da vida prisional, discutia-se sempre sobre várias coisas, às vezes sobre algum boato, normalmente absurdo, mas que excitava a atenção dessas pessoas rejeitadas pelo mundo. Por exemplo, uma vez correu a notícia de que o nosso major ia ser despedido. Os reclusos são confiantes como crianças e, embora soubessem que a notícia era disparatada e trazida por um mentiroso encartado e homem desassisado, o recluso Kvássov, um homem em quem ninguém acreditava havia muito e que não proferia nada mais do que patranhas — mesmo assim todas as pessoas se agarravam à notícia, falavam, discutiam, congratulavam-se com isso, acabavam por se zangar consigo mesmas, envergonhadas por terem acreditado num Kvássov.

— Quem é que o pode pôr daqui para fora? — gritava um. — Ele sabe ateimar, esse pescoço gordo!

— Mas também ele tem superiores! — replicava outro, rapaz fogoso e nada parvo, que já vira muita coisa na vida mas era incrivelmente amigo de discutir.

— Um corvo não arranca o olho a outro! — observava um terceiro, homem já de cabelo branco, sombriamente, como que para os seus botões, enquanto comia a sopa a um canto.

— Pois é, deixa estar que os superiores já cá vêm pedir-te a opinião: substituí-lo ou não? — acrescentava com indiferença um quarto, dedilhando suavemente a balalaica.

— E por que não me hão de pedir a opinião? — respondia o outro, furioso. — Se ma pedirem a mim, vós todos também tendes de a dar, desgraçados, tendes de falar todos se eles começarem a perguntar. É que aqui todos gostam muito de gritar, mas, quando chega a hora da verdade, recuam.

— O que é que achas? — dizia o da balalaica. — Isto aqui são trabalhos forçados.

— Há dias — continuava o outro, exaltado, sem ouvir os outros —, sobrou alguma farinha. Juntaram os restos, uma coisa de nada, e mandaram um rapaz vendê-los. Mas não pôde, a coisa chegou aos ouvidos do major, um tipo da venda denunciou-o. Tiraram-nos a farinha: por motivo de poupança. Achas justo?

— E depois? A quem vais apresentar queixa?

— A quem? Ao próprio inspetor, já que ele vem aí.

— Que inspetor?

— É verdade, irmãos, vem aí o inspetor — disse um rapaz novo, ágil, alfabetizado, ex-escrivão, o tal que até já lera A Duquesa de La Vallière, ou qualquer coisa do género. Andava sempre bem-disposto, muito brincalhão, mas gozava do respeito de todos porque era homem experiente e perito em certas coisas. Sem prestar atenção à curiosidade que despertara a notícia da visita do inspetor, aproveitara para ir ter com a «sopeira», isto é, o cozinheiro, e para lhe pedir fígado. Os nossos cozinheiros faziam muito comércio desse género. Compravam com o seu dinheiro um grande bocado de fígado, por exemplo, fritavam-no e vendiam-no em doses pequenas aos reclusos.

— Um tostão dele ou dois? — perguntava a «sopeira».

— Corta dois, para todos ficarem com inveja de mim! — respondeu o recluso. — É um general, meus amigos, um general de Petersburgo, anda a inspecionar toda a Sibéria. É verdade. Falaram disso em casa do comandante.

A notícia causou grande emoção. Durante meia hora não pararam as especulações: quem seria ele, precisamente?, que género de general?, que cargo ocupava? E seria superior aos generais locais? Os reclusos adoram falar de cargos, de chefes, de quem é superior a quem, quem pode dobrar a cerviz a quem. Chega a haver altercações por causa dos generais, chega-se quase a vias de facto. À primeira vista, que interesse podem ter nisso? No entanto, é através do conhecimento pormenorizado do tema dos generais e dos chefes em geral que se mede no recluso o grau de sabedoria, esperteza e antiga importância, pré-prisional, na sociedade. No geral, o debate sobre as chefias superiores é considerado na prisão o mais elegante e importante de todos.

— Quer dizer, meus amigos, que é verdade: vão substituir o major — observou Kvássov, homenzinho pequeno, de cara vermelha, um exaltado sem juízo nenhum. Foi ele o primeiro a espalhar a notícia do major.

— Vai suborná-los! — replicou entrecortadamente o recluso sombrio dos cabelos brancos, que já tinha acabado de comer a sopa.

— Também é possível — disse outro. — Só o dinheiro que ele já roubou! Antes de vir para aqui, comandava um batalhão. Ainda não há muito se quis casar com a filha do arcipreste.

— Mas como não se casou, não lha deram, é porque é pobre. Que noivo é ele? Não tem mais do que o que traz no corpo. Na Páscoa, perdeu tudo ao jogo. Foi o Fedka quem disse.

— Pois: a poupar, a poupar, para logo desbaratar.

— Eh, amigo, casado fui eu. E só vos digo que, para um pobre, casar é muito mau: casamo-nos, mas a noite sai curta! — observou Skurátov, metendo-se na conversa.

— Pois, pois, tens muito a ver com isso — replicou o ex-escrivão. — E a ti, Kvássov, digo-te já que és um grande parvalhão. Achas que o major alguma vez poderia subornar um general desse calibre e que um general desses vinha de propósito de Petersburgo só para inspecionar o major? Sempre me saíste muito estúpido, rapaz, que te digo eu.

— Porquê? Só porque é general já não aceita um suborno? — disse um cético do meio da multidão.

— Claro que não aceita e, se aceitar, só em grande.

— Claro que é em grande, de acordo com a categoria.

— O general aceita sempre — opinou Kvássov com convicção.

— Ai é? Já o subornaste? — meteu-se Baklúchin, acabado de entrar. — Nem sequer viste uma única vez um general na tua vida.

— Vi, sim senhor.

— Mentira.

— Mentiroso és tu.

— Rapazes, se ele viu um general, que diga aqui já, diante de todos, que general é que ele viu! Vá lá, diz, porque eu conheço-os a todos.

— Vi o general Sibert — respondeu Kvássov, indeciso.

— Sibert? Não existe general com esse nome. Acho que ele olhou para ti de raspão, esse teu Sibert, quando era ainda tenente-coronel, e tu, com o susto, pensaste que era general.

— Não, ouvi-me — gritou Skurátov —, porque sou um homem casado. É verdade que houve um general Sibert, em Moscovo, de origem alemã, mas russo. Todos os anos, pela Assunção, confessava-se a um padre russo, e estava sempre a beber água, tal qual um pato. Bebia todos os dias quarenta copos de água do rio Moscovo. Diziam que fazia o tratamento de uma doença qualquer com água; contou-me o camareiro dele.

— Não lhe nasceram carpas na pança, de tanta água? — perguntou o recluso da balalaica.

— Deixai-vos disso! Está aqui a discutir-se uma coisa importante, e vós... Que inspetor será esse, irmãos? — perguntou, preocupado, um preso militar, ex-hussardo, o velho Martínov.

— Tanta mentirola! — observou um dos céticos. — Onde é que vão desencantá-lo e onde é que o metem? Tudo balelas.

— Balelas, não! — cortou Kulikov, dogmático, até então calado majestosamente. Era um homem com autoridade, de cerca de cinquenta anos, com uma cara solene e maneiras majestosas, um ar de desdém. E com a consciência disso, e orgulhando-se disso. Era de sangue cigano, veterinário, na cidade ganhava bom dinheiro a tratar os cavalos, na prisão comerciava com vodka. Era esperto, já vira muito na vida. Falava como se estivesse a fazer um grande favor aos outros.

— É verdade, irmãos — continuou tranquilamente. — Ainda na semana passada ouvi falar disso: vem aí um general, dos mais importantes, vai fazer vistorias por toda a Sibéria. Já se sabe, vão suborná-lo, como é costume, mas não o nosso Sete-Olhos: esse nem ousará aproximar-se dele. Há generais e generais, meus irmãos. Há generais de toda a espécie. Em qualquer caso, o nosso major, digo-vos eu, não salta do lugar. De certeza. Nós não contamos e, entre os chefes, ninguém vai denunciar um dos seus. O inspetor chega, dá uma espreitadela à prisão e vai-se embora; depois faz um relatório a dizer que está tudo bem.

— Uma coisa é certa, irmãos: o major já se acobardou, desde manhã que está bêbado.

— E disse o Fedka que à noite vai repetir.

— Cão preto não fica branco com lavagem nenhuma. Não é a primeira vez que o homem está bêbado.

— Não, como pode ser que o general não faça nada? Não, chega das palhaçadas deles! — comentavam entre si os reclusos, emocionados.

A notícia sobre o inspetor propagou-se num instante pela prisão. Havia homens que andavam pelo terreiro a partilhar a nova. Outros guardavam um silêncio deliberado e, com isso, pretendiam pelos vistos dar-se ares de importância. Outros ainda, mantinham-se indiferentes. Nas soleiras das casernas sentavam-se reclusos com as suas balalaicas. Alguns continuavam a tagarelar. Havia quem ensaiasse uma cantiga, mas, no geral, toda a gente estava muito excitada nessa noite.

Depois das nove, fazia-se a chamada, os reclusos eram mandados para dentro, fechavam-se as portas das casernas. As noites eram curtas, acordavam-nos pelas quatro da madrugada mas, entretanto, ninguém tinha conseguido adormecer antes das onze: não paravam a azáfama, as conversas e, às vezes, como no inverno, os «casinos». À noite, o calor e o sufoco eram insuportáveis. Embora soprasse da janela, com o postigo levantado, o friozinho noturno, os reclusos passavam a noite às voltas na cama, como num delírio. As pulgas eram às miríades. Também as temos no inverno, em quantidades mais do que suficientes, mas a partir da primavera propagam-se em tamanhas quantidades que eu, embora já tivesse ouvido falar disso antes, não queria acreditar. Quanto mais nos aproximávamos do verão, mais impiedosas elas se tornavam. Também é verdade que nos habituamos às pulgas, sei-o por experiência; contudo, não deixam de ser torturantes. Atormentam a tal ponto a pessoa que esta parece prostrada de febres na cama, a delirar e não a dormir. Por fim, quando está quase a amanhecer, é que as pulgas se aquietam e, chegada a friagem matinal, a gente adormece de verdade e com prazer — mas logo soam as pancadas impiedosas do tambor tocando a alvorada junto ao portão. Pragas e maldições, toda a gente a agasalhar-se nas samarras, as pancadas altas e ritmadas do tambor, como que a exigirem ser contadas, e, no meio do sono, fura-nos a cabeça a ideia insuportável de que será assim também no dia seguinte, e no outro, e no outro, durante anos e anos, até à libertação. Mas, para quando essa libertação, onde está ela? No entanto, é preciso acordar, começa a azáfama, o aperto quotidiano... Os homens vestem-se à pressa, é preciso ir para o trabalho. Também era verdade, aliás, que se podia ainda dormir uma sesta ao meio-dia.

Aquilo do inspetor era verdade. Com a passagem dos dias, iam-se confirmando os rumores e, por fim, já todos sabíamos de certeza certa que ia chegar de Petersburgo um general importante para inspecionar toda a Sibéria, ou que, aliás, já tinha chegado, já estava em Tobolsk. Todos os dias chegavam à prisão novos rumores. Vinham notícias também da cidade: dizia-se que, lá, era um pânico, uma azáfama, toda a gente a querer pôr tudo com o melhor aspeto possível. Dizia-se que as autoridades preparavam receções, bailes e festas. Os reclusos eram mandados em grandes equipas aplainar as ruas do forte, terraplanar lombas e montículos, pintar cercas e marcos, estucar; numa palavra, tentava-se remendar rapidamente tudo o que estava mais à vista. A nossa gente interiorizara muito bem a situação e falava entre si com um ardor e uma ousadia cada vez maiores. A fantasia dos reclusos assumia proporções gigantescas. Preparavam-se até para fazer uma reclamação quando o general perguntasse se estavam contentes. Entretanto, discutiam e zangavam-se uns com os outros. O major andava nervoso. Vinha mais vezes à prisão, gritava com mais furor e atirava-se mais aos presos, levava-os mais ao corpo da guarda e cuidava mais do asseio e da ordem. Por essa ocasião, como de propósito, aconteceu na prisão uma pequena história que, de resto, em nada impressionou o major, como era de supor, mas, pelo contrário, lhe deu um certo prazer. Aconteceu que um recluso, durante uma rixa, espetou uma sovela de sapateiro no peito de outro, pertinho do coração.

Chamava-se Lómov o preso que cometera a ação; chamava-se Gavrilka o ferido, e era um dos vagabundos empedernidos. Não me lembro se tinha mais algum nome — para nós, sempre foi o Gavrilka.

Lómov pertencia a uma família de mujiques ricos do distrito de K... Viviam todos juntos: o velho pai, três filhos e o tio. Constava por toda a província que tinham um capital de trezentos mil rublos. Trabalhavam a terra, curtiam o couro, faziam comércio, mas, sobretudo, dedicavam-se à usura, escondiam vagabundos fugitivos, eram recetadores de coisas roubadas e faziam outros negócios menos limpos. Os camponeses de meio distrito eram seus devedores, caídos na escravidão. Tinham fama de mujiques espertos e manhosos, mas acabaram por se tornar arrogantes, sobretudo depois de uma personalidade importante lá da terra se ter hospedado em casa deles aquando das suas viagens e, tendo conhecido pessoalmente o velho, ter simpatizado com ele e admirado a sua esperteza e habilidade para os negócios. Meteu-se-lhes então na cabeça, aos Lómov, que podiam fazer impunemente o que quisessem, metendo-se em coisas cada vez mais arriscadas nos seus negócios ilegais. Toda a gente andava indignada e os amaldiçoava, o que não os impedia de ficarem cada vez mais soberbos. Por fim, tropeçaram e caíram na perdição, não por causa dos seus crimes secretos, mas por uma coisa que não cometeram. Tinham uma granja grande a duas verstás da aldeia. Naquele ano, nos finais do verão, viviam na granja seis jornaleiros quirguizes, escravizados desde havia muito pelos Lómov. Uma noite, todos os seis quirguizes foram esfaquedos até à morte. Começou a instrução do processo, que durou bastante tempo. Durante as investigações, foram descobertas muitas coisas feias. Os Lómov foram acusados do sêxtuplo homicídio dos jornaleiros. Contaram os Lómov, e toda a prisão o sabia: suspeitaram deles porque deviam bastante dinheiro aos jornaleiros e, como eram avarentos e forretas apesar da sua grande fortuna, pensaram que os tinham matado para não terem de lhes pagar a dívida. Durante a instrução do processo e o julgamento, toda a sua fortuna foi por água abaixo. O velho morreu. Os filhos foram deportados. Um dos filhos, juntamente com o tio, foram parar ao nosso forte, sentenciados com uma pena de doze anos. Na verdade, não eram culpados das mortes dos quirguizes. Mais tarde, apareceu na nossa prisão o tal Gavrilka, conhecido malandro e vagabundo, rapaz ágil e alegre, que declarou ter sido ele próprio quem perpetrara aquela carnificina. Não o ouvi a confessá-lo, mas toda a prisão estava absolutamente convencida de que os quirguizes tinham sido mortos por ele. Gavrilka conhecera os Lómov ainda nos seus tempos de vagabundagem. Fora metido na prisão, com uma pena leve, como vagabundo e soldado desertor. Os quirguizes foram mortos por ele e por mais três vagabundos, com a esperança de pilharem depois a granja.

Na nossa prisão ninguém gostava dos Lómov, não sei porquê. O sobrinho era bom rapaz, esperto e acomodatício; mas o tio, o que espetara a sovela no Gavrilka, era um mujique estúpido e desatinado. Já tinha tido questões com muita gente e fora várias vezes espancado. Ora, de Gavrilka toda a gente gostava, pelo seu feitio alegre e bondoso. Os Lómov, embora soubessem que o criminoso era ele e que tinham sido acusados por causa dele, nunca perseguiam o Gavrilka, mas também nunca tinham travado qualquer amizade com ele; de resto, Gavrilka não lhes prestava qualquer atenção. De repente, o tio Lómov e Gavrilka zangaram-se por causa de uma rapariga qualquer, aliás abominável. Gavrilka começou por se gabar dos favores dela; o mujique ficou com ciúmes e, por um belo meio-dia, espetou-lhe a sovela.

Os Lómov, embora arruinados durante o processo judicial, viviam na prisão como ricos. Pelos vistos, tinham algum dinheiro de lado. Possuíam o seu samovar, tomavam chá. O nosso major sabia-o e odiava infinitamente ambos os Lómov. Implicava com eles abertamente e, de uma maneira geral, procurava sempre oportunidades para os tramar. Os Lómov explicavam isso invocando a intenção de o major lhes querer extorquir dinheiro. Mas não lho davam.

Sem dúvida, se Lómov tivesse espetado a sovela um pouco mais fundo, mataria Gavrilka. Felizmente, pouco mais foi do que um arranhão. O caso foi relatado ao major. Lembro-me de o ter visto chegar, ofegante e visivelmente satisfeito. Tratou o Gavrilka com um carinho surpreendente, como seu filho querido.

— Então, meu caro, consegues chegar a pé ao hospital? Ou é melhor atrelar o cavalo? Atrelai, já! — gritou afobadamente ao sargento.

— Mas eu não tenho nada, vossa senhoria. Picou-me um bocadinho, mais nada, vossa senhoria.

— Não sabes, meu caro, não sabes... O lugar é perigoso; tudo depende do lugar; espetou-ta mesmo debaixo do coração, o bandido! Quanto a ti — rugiu, dirigindo-se a Lómov —, vais ver como é!... Levai-o para o corpo da guarda!

De facto, conseguiu tramá-lo. Lómov foi julgado e, embora o ferimento não passasse de uma picada ligeira, a intenção era evidente. Acrescentaram-lhe mais uns anos à pena e sentenciaram-lhe mil pauladas. O major ficou satisfeito...

Finalmente, chegou o inspetor.

No segundo dia da sua chegada, compareceu na nossa prisão. Era um dia feriado. Uns dias antes já tudo tinha sido lavado, esfregado, limpo. Os reclusos foram rapados de novo. A roupa deles estava limpa e brilhava de branca. De acordo com o regulamento, no verão todos os reclusos vestiam casacos e calças brancos. Nas costas de cada um havia um círculo preto, de quatro polegadas de diâmetro. Durante uma hora, ensinaram aos reclusos como deviam responder caso a alta personalidade os cumprimentasse. Fizeram-se ensaios. O major azafamava-se como um doido. Uma hora antes da aparição do general já todos estavam de pé nos seus lugares, como ídolos, na posição de sentido. Por fim, à uma da tarde, o general chegou. Era um general importante, tão importante que, ao que parecia, os corações de todos os chefes, por toda a Sibéria Ocidental, deviam estremecer com a sua chegada. Entrou com um ar severo e majestoso; atrás dele, uma grande comitiva de chefes locais e, também, de vários generais e coronéis. Havia um senhor à paisana, de casaca e sapatos, alto e bonito, vindo também de Petersburgo, com um ar muito desprendido e independente. O general, muito delicado com ele, dirigia-lhe muito a palavra. Este facto provocou grande interesse nos reclusos: um civil, mas tão respeitado por um general daquele calibre! Mais tarde vieram a saber o seu nome e o que fazia, mas antes disso deu azo a muita conversa. O nosso major, de fardamento apertado, a gola cor de laranja, os olhos vermelhos, injetados de sangue, a cara rubra cheia de pontos negros, não causou, ao que parece, boa impressão ao general. Por respeito especial pela alta personalidade em visita, o major estava sem óculos. De lado, na posição de sentido, esperava com todo o seu ser o momento em que precisassem dele e ele voasse como um raio para cumprir os desejos de sua excelência. Mas não precisaram dele. O general, em silêncio, passou pelas casernas, por uma cozinha, parece que provou a sopa de repolho! Apontaram-lhe para mim: tal e tal, é de origem fidalga.

— Hã-hã! — disse o general. — E então, como está ele a portar-se?

— Por enquanto, satisfatoriamente, excelência — responderam-lhe.

O general acenou com a cabeça e, dois minutos depois, saía da prisão. Os reclusos, obviamente, estavam deslumbrados e perplexos, mas tinham estranhado. Não puderam sequer, evidentemente, pensar em apresentar queixa do major. De resto, o major já tinha disso toda a certeza, antecipadamente.

35 O cuco, ave que simboliza a liberdade, está na origem da metáfora consubstanciada nesta expressão popular. (NT )

36 Tenda cónica dos povos nómadas da região. (NT )


6

Os animais prisionais

A compra do Baio, que aconteceu pouco tempo depois no nosso forte, divertiu muito mais os reclusos do que a visita da alta personalidade. Pelo regulamento, no presídio devia haver sempre um cavalo, para trazer água e levar excrementos e outras imundícies. Para tratar dele, era destacado um recluso, que fazia também de carroceiro, sob escolta, evidentemente. Havia muito trabalho, de manhã e à noite, para o nosso cavalo. Havia muito que o Baio servia na prisão. Era um bom cavalinho, mas já velhote e gasto. Uma bela manhã, na véspera do São Pedro, o Baio, depois de ter trazido a pipa de água, caiu e morreu em poucos minutos. Rodearam-no, lamentaram-no, discutiu-se muito. Os nossos antigos soldados de cavalaria, os ciganos, os veterinários e outros peritos manifestaram, nesse momento, grandes conhecimentos no tocante a cavalos, até altercaram entre si, mas não ressuscitaram o Baio. Ali estava ele deitado, morto, com a barriga inchada, que toda a gente se achava na obrigação de tocar com um dedo; relataram ao major o que, por vontade de Deus, tinha acontecido, e o major tomou a decisão de ser imediatamente adquirido por compra um novo cavalo. No próprio dia de São Pedro, depois da missa, quando toda a nossa gente estava reunida na prisão, começaram a ser trazidos para o forte cavalos para venda. Os próprios reclusos, evidentemente, foram encarregados da compra. Tínhamos alguns verdadeiros conhecedores; também era difícil aldrabar duzentos e cinquenta homens que, outrora, não faziam outra coisa senão aldrabar o próximo. Vieram quirguizes, açambarcadores, ciganos, populares da cidade. Os reclusos esperavam com impaciência o aparecimento de cada novo cavalo. Estavam alegres como crianças. O mais lisonjeiro era que, como se fossem pessoas livres, como se fosse do seu próprio bolso, compravam um cavalo para eles e tinham todo o direito de o comprar. Três cavalos foram trazidos e levados de volta, a escolha recaiu no quarto. Os açambarcadores, ao entrarem, olhavam em volta com algum espanto e alguma timidez e, de vez em quando, até voltavam a cabeça para os guardas que os acompanhavam. Uma chusma de mais de duas centenas de homens de cabeças rapadas e com as marcas do ferro, de grilhetas, e em casa, no seu ninho prisional, cuja soleira ninguém ultrapassava, impunha uma espécie de respeito. Entretanto, os nossos esmeravam-se em todo o género de perícias no exame de cada cavalo. Não havia para onde não espreitassem, nada que não apalpassem, ainda por cima com um ar tão sério e preocupado como se disso dependesse o bem-estar de toda a prisão. Os tcherquesses até saltavam para o lombo do cavalo; os olhos deles ardiam, tagarelavam muito depressa no seu idioma incompreensível, arreganhando os dentes brancos e acenando com as suas caras morenas de narizes aquilinos. Alguns dos russos agarravam-se com toda a atenção à conversa deles, como se quisessem saltar-lhes para dentro dos olhos. Não compreendiam as palavras, então queriam ao menos adivinhar pela expressão dos olhos qual seria a decisão deles: o cavalo serve ou não presta? Para um observador estranho, tal atenção espasmódica pareceria esquisita. Aparentemente, o que tinha aquilo para preocupar tanto um preso, quiçá dos mais humildes e embrutecidos que não se atrevia a abrir a boca mesmo perante o seu irmão recluso? Era como se comprasse realmente o cavalo para si, como se lhe fizesse de facto diferença o cavalinho escolhido. Além dos tcherquesses, destacavam-se os ciganos e os ex-açambarcadores: cediam-lhes a primazia e a primeira palavra. Aconteceu, então, uma espécie de debate nobre, especialmente entre duas pessoas — o recluso Kulikov, cigano, ladrão de cavalos e açambarcador; e um recluso que era veterinário autodidata, um manhoso mujique siberiano que tinha entrado havia pouco para a prisão mas que já tinha conseguido tirar ao Kulikov toda a sua clientela veterinária na cidade. Acontece que os nossos veterinários autodidatas prisionais eram tidos em alto apreço em toda a cidade, não só entre os populares ou comerciantes, mas até entre os funcionários de cargos superiores, que não hesitavam em ir ao forte quando os seus cavalos adoeciam, embora houvesse vários verdadeiros veterinários na cidade. Antes de ter chegado à prisão o Iólkin, o tal mujique siberiano, Kulikov não tinha rivais e arranjara uma ampla clientela na cidade a quem, obviamente, cobrava honorários. Fazia muitas aldrabices e sabia muito menos do que pretendia. Pelos lucros que sacava, era um aristocrata entre os nossos. Pela sua experiência, esperteza, audácia e ousadia, gozava de prestígio entre os reclusos, desde havia muito. Davam-lhe ouvidos e obedeciam-lhe. Ele era, porém, de poucas falas: como se fizesse um grande favor ao mundo quando falava, e só nos casos mais importantes. Era um autêntico exibicionista, mas possuía também muita energia real, nada fingida. Era já de certa idade, mas ainda bonito e muito inteligente. A nós, os fidalgos, tratava com uma delicadeza esmerada e, ao mesmo tempo, com uma grande dignidade. Acho que, se fosse convenientemente vestido e levado, disfarçado de conde, a algum clube da capital, não se embaraçaria, jogaria o seu whist, conversaria com naturalidade, pouco mas significativamente, e durante todo o serão ninguém descobriria que era um vagabundo e não um conde. Falo a sério: a tal ponto o homem era inteligente, perspicaz e de raciocínio rápido. Além disso, tinha excelentes maneiras, umas maneiras elegantes. Pelos vistos, já vira de tudo na vida. Aliás, um manto de trevas encobria o seu passado. Estava na secção especial. No entanto, quando chegou o Iólkin, que era mujique mas o mais manhoso dos mujiques, dos seus cinquenta anos, de uma família praticante da velha crença ortodoxa, a fama veterinária de Kulikov eclipsou-se. Em dois meses, ficou quase sem clientela na cidade. Chegava a curar cavalos de que Kulikov já desistira, e com facilidade. Fazia o mesmo com cavalos de que até os veterinários da cidade tinham desistido. Este mujique, juntamente com outros, cumpria pena pelo fabrico de moeda falsa. Naquela idade respeitável, tivera o azar de se meter num negócio desses. Contava-nos, gozando consigo próprio, que de três moedas verdadeiras de ouro tinham conseguido fabricar apenas uma falsa. Kulikov, de certo modo, sentia-se insultado com os êxitos veterinários do rival, e mesmo a sua glória entre os reclusos começava a declinar. Mantinha uma amante nos arrabaldes, andava de poddiovka de veludo, anel de prata no dedo, brinco na orelha, orlas nas botas, e de repente, por falta de rendimentos, foi obrigado a tornar-se «taberneiro»; por tudo isso, toda a gente estava à espera de que, durante a compra do cavalo, os adversários se pegassem. Esperava-se com curiosidade. Cada qual tomara o seu partido. Os mais ativos de ambos os partidos já começavam a irritar-se e a trocar pragas. O próprio Iólkin já franzia a cara manhosa no mais sarcástico dos sorrisos. Mas resultou uma coisa bem diferente. Kulikov nem pensou em discutir, procedendo, mesmo assim, como um mestre: começou por ceder, por ouvir com respeito as opiniões críticas do seu adversário, mas, tendo-o apanhado em falso numa palavra, observou-lhe modesta mas insistentemente que estava errado e, antes de Iólkin ter tempo de cair em si e se justificar, provou que o erro consistia em tal e tal coisa. Numa palavra, Iólkin foi derrubado com grande habilidade e inesperadamente, e, embora tivesse razão no essencial, o partido de Kulikov ficou muito contente.

— Não, rapazes, este não é fácil de ser levado, sabe defender-se! — diziam alguns.

— O Iólkin é mais sabido! — replicavam os outros, mas com uma certa transigência. De repente, ambos os partidos começaram a mostrar-se muito transigentes um com o outro.

— Talvez não; simplesmente, tem a mão mais certa. Mas, com os animais, o Kulikov também não falha.

— Não falha, lá isso não!

— Não falha...

Finalmente, escolheram e compraram o novo Baio. Era um cavalinho mesmo querido, jovem, bonito, forte, com um ar muito simpático e alegre. Impecável, também, em todos os outros aspetos. Começaram a regatear: o vendedor pedia trinta rublos, os nossos davam vinte e cinco. Iam regateando, demorada e acaloradamente, o vendedor ia cedendo, baixando o preço. De súbito, aquele regateio pareceu ridículo aos próprios reclusos.

— Vais pagar do teu bolso ou quê? Para que regateias?

— Estás a poupar o dinheiro público? — gritavam outros.

— Mas, amigos, seja como for, é o dinheiro comum...

— Dinheiro comum! Não, somos tão parvos que se vê logo que ninguém nos semeou, nascemos mesmo sem isso...

Por fim, o negócio foi ajustado por vinte e oito rublos. Relatório enviado ao major, compra aprovada. Como é da praxe, trouxeram o pão e o sal, e o novo Baio, com todas as honras, entrou na prisão. Parece que, na ocasião, não houve recluso que não lhe afagasse o pescoço ou o focinho. No mesmo dia atrelaram o Baio para que fosse à água, e toda a gente olhava com curiosidade para o cavalinho a puxar a carroça com a pipa. O nosso aguadeiro Roman olhava para o cavalo com vaidade. Era um mujique de cinquenta anos, de caráter taciturno e imponente. Aliás, todos os cocheiros russos são deste feitio, como se fosse grande verdade que o contacto permanente com os cavalos transmite ao homem uma imponência e uma importância especiais. Roman era sossegado, meigo para toda a gente, de poucas falas, cheirava o rapé do corno e era, desde tempos imemoriais, quem tratava dos Baios da prisão. Com o recém-adquirido, já era o terceiro com este nome. Entre nós, toda a gente tinha a convicção de que, para a prisão, era conveniente um cavalo de cor baia, que isso era mais próprio da casa. Roman reiterava tal convicção. Nunca se compraria, por exemplo, um malhado. O cargo de aguadeiro pertencia vitaliciamente a Roman, de acordo com uma qualquer regra tácita, e a ninguém passaria pela cabeça coartar-lhe esse direito. Quando morreu o Baio anterior, ninguém, incluindo o major, pensou sequer em acusar disso o Roman: morrera por vontade de Deus, e Roman era um bom carroceiro. Muito depressa o Baio se tornou o favorito da prisão. Embora os reclusos fossem gente severa, iam muitas vezes acariciá-lo. Todos os dias o Roman, ao voltar do rio, fechava o portão que o sargento lhe abrira, e o Baio, já no terreiro, ficava parado à espera dele, a olhá-lo de soslaio. «Vai sozinho!» — gritava-lhe Roman, e o Baio punha-se de imediato em marcha, puxava a carroça até à cozinha e parava de novo, à espera das «sopeiras» e dos calhandreiros com os baldes para encherem de água. «Baio lindo, Baio esperto! — gritavam-lhe. — Trouxe a água sozinho!... Obedece.»

— É verdade: um bicho, mas compreende as coisas como gente!

— Boa, Baio!

O Baio sacudia a cabeça e bufava, como se realmente percebesse e tivesse apreciado os louvores. Então, alguém lhe trazia sempre um bocado de pão com sal. O Baio comia e voltava a acenar com a cabeça, como que a dizer: «Conheço-te, sim senhor! Eu sou um cavalinho lindo e tu és boa pessoa!»

Também eu gostava de oferecer pão ao Baio. Era agradável olhar-lhe para o focinho bonito e sentir na palma da mão os seus beiços suaves e quentes a apanharem rapidamente a guloseima.

Em geral, os nossos reclusos, se lhes fosse permitido, poderiam tratar de animais e gostariam deles, criariam na prisão, de boa vontade, todo o género de animais e aves domésticos. Que outra coisa poderia suavizar e enobrecer melhor o caráter severo e feroz dos presos do que esta ocupação? Mas não era possível, o regulamento não o permitia.

Apesar disso, durante os meus anos de prisão, vi aparecerem lá dentro, por acaso, vários animais. Além dos Baios, tivemos cães, gansos, o bode Vasska, e, durante algum tempo, uma águia.

Na qualidade de cão prisional permanente vivia lá, como já disse, o Bolinhas, inteligente e bondoso, com quem eu fizera uma amizade duradoura. Mas, como entre o povo, de uma maneira geral, o cão é considerado um bicho imundo, a que não vale a pena prestar atenção, ao Bolinhas não prestavam também qualquer atenção. Vivia pois sozinho, dormia no terreiro, comia os restos da cozinha, não sendo digno do interesse de ninguém; no entanto, conhecia toda a gente e considerava todos os habitantes da prisão como seus donos. Quando os reclusos voltavam dos trabalhos, o Bolinhas, ao ouvir no corpo da guarda: «Chamar o cabo!», corria para o portão, ao encontro de cada grupo, dava ao rabo e olhava nos olhos, com meiguice, cada um que entrava, à espera de, pelo menos, algum carinho. Porém, durante muitos anos, não recebeu carinhos de ninguém além de mim. Era por isso que gostava mais de mim do que de qualquer outro. Não me lembro de que maneira apareceu na prisão mais um cão, ou antes, uma cadela, a Belka. Quanto ao terceiro, o Kultiapka, arranjei-o eu próprio, levei-o do trabalho, ainda cachorro. A Belka era uma criatura estranha. Fora atropelada por uma carroça e ficara com o lombo côncavo; por isso, quando corria, parecia de longe que eram dois animais brancos unidos que corriam. Além disso, era tinhosa e os olhos supuravam-lhe sempre; o rabo era meio pelado e andava sempre metido entre as pernas. Ofendida pelo destino, resolvera, pelos vistos, resignar-se. Nunca ladrava nem rosnava a ninguém, parecia que não tinha essa coragem. Vivia nas traseiras das casernas, na esperança de arranjar lá comida; quando via algum recluso, ainda a vários passos, deitava-se de costas em sinal de submissão: «Faz de mim o que quiseres; não vês que eu não vou resistir?» E cada recluso, quando ela se virava de costas, se achava na obrigação de lhe dar um pontapé. «Irra, diabo da cadela!» — diziam eles. Mas a Belka nem sequer se atrevia a ganir, só quando lhe doía demais uivava um pouquinho numa voz abafada e lastimosa. Do mesmo modo, deitava-se de costas também perante o Bolinhas, ou outro cão qualquer quando saía do recinto prisional. Virava-se e ficava quieta quando algum cão grande, de orelhas caídas, se atirava a ela, ladrando e rosnando. Os cães gostam de ver a submissão dos seus semelhantes. O atacante, por mais feroz que fosse, aquietava-se imediatamente, parava, pensativo, de focinho por cima da cadela deitada com as patas para o ar e começava, lentamente e com grande curiosidade, a cheirar-lhe todas as partes do corpo. O que pensaria nesses momentos, a tremer de medo, a Belka? «E se este bandido me ferrar os dentes?» — talvez fosse isto que lhe passasse pela cabeça. O cão, porém, depois de a cheirar conscienciosamente, largava-a, não achando nela nada de especial. A Belka levantava-se de um pulo e corria, a coxear, atrás da comitiva de cães que acompanhava uma qualquer cadela Jutchka. E, embora soubesse que nunca conseguiria travar conhecimento íntimo com a Jutchka, arrastar-se atrás dela à distância era uma consolação na sua vida desgraçada. Na honra, nem sequer pensaria. Perdida toda a esperança de uma carreira futura, a Belka vivia apenas para comer e tinha plena consciência disso. Tentei, uma vez, acariciá-la — foi uma coisa tão nova e inesperada para ela que se coseu toda contra o chão e, de enternecimento, começou a gemer e a ganir muito alto. Tinha tanta pena dela que, depois disso, a acariciei muitas vezes. Em resultado, a cadela não podia ver-me sem que ganisse. Via-me ao longe e gania, lacrimosa e doentiamente. Por fim, foi estraçalhada pelos cães no aterro do forte.

O Kultiapka tinha um feitio bem diferente. Não sei por que motivo, cachorrinho ainda cego, o levei da oficina para a prisão. Dava-me prazer alimentá-lo e educá-lo. O Bolinhas tomou o cachorro, de imediato, sob a sua proteção e dormia ao lado dele. Quando o Kultiapka cresceu um pouco, o Bolinhas deixava-o morder-lhe as orelhas e repuxar-lhe a pele, e brincava com ele como brincam, normalmente, os cães adultos com os cachorros. O mais curioso era que o Kultiapka quase não crescia para cima, mas só ao comprido e para os lados. Tinha um pelo felpudo, cinzento-claro; uma orelha crescia-lhe para baixo, outra para cima. Era de feitio ardoroso e entusiasmado, como qualquer cachorro que, com a alegria de ver o dono, gane, grita, esforça-se por lhe lamber a cara e não pode conter os seus sentimentos: «O principal é o entusiasmo, as conveniências não interessam!» Onde quer que eu andasse, bastava gritar-lhe: «Kultiapka!», para o cachorro surgir de trás de um canto qualquer como se nascesse da terra, correr ao meu encontro, aos ganidos, às cambalhotas, rolando como uma bola pelo caminho. Afeiçoei-me muito a esse pequeno monstro. Aparentemente, o destino preparava-lhe uma vida abastada, só de alegrias. Porém, um belo dia, o recluso Neustróev, que tinha os ofícios de sapateiro de senhoras e curtidor de peles, reparou no Kultiapka com uma atenção muito especial. Viu no cachorro algo que lhe despertou o interesse. Chamou o Kultiapka, apalpou-o todo e rebolou-o, carinhosamente, pelo chão. O cachorro, sem desconfiar de nada, gania de prazer. No dia seguinte desapareceu. Procurei-o durante muito tempo, mas em vão. Só duas semanas depois se esclareceu tudo: Neustróev gostara muito da pele do Kultiapka. Esfolou-o, curtiu-lhe a pele e forrou com ela as meias-botas de veludo encomendadas pela esposa de um funcionário do tribunal. Uma vez acabadas, mostrou-me as botinas. A pele tinha um aspeto excelente. Coitado do Kultiapka!

Na nossa prisão, muita gente fazia curtimenta de peles e, com frequência, levava lá para dentro cães com pele bonita que, logo a seguir, desapareciam. Eram cães roubados mas, alguns, até comprados. Lembro-me de que, uma ocasião, nas traseiras das cozinhas, vi dois reclusos a discutirem: preparavam alguma. Um deles segurava à corda um cão grande, magnífico, pelos vistos de raça valiosa. Algum canalha de lacaio o terá roubado ao amo e vendido aos nossos sapateiros por trinta copeques de prata. Os reclusos preparavam-se para enforcar o animal. Tudo simples: esfolavam o cão e atiravam a carcaça para o fosso grande e fundo que ficava no canto mais longínquo do forte e que, no verão, durante os calores, fedia horrivelmente. De vez em quando, limpavam-no. O pobre cão parecia perceber o que o esperava. Olhava perscrutadoramente para nós, um de cada vez, e só de vez em quando se atrevia a abanar o seu rabo felpudo, como se tentasse comover-nos com esse sinal de confiança. Saí dali o mais depressa que pude, e eles, como é evidente, levaram a cabo a sua intenção.

Os gansos também apareceram na prisão como que por acaso. Não sei quem os começou a criar e a quem pertenciam, mas durante algum tempo divertiram muito os reclusos e até ficaram conhecidos na cidade. Saíram da casca já dentro da prisão e, pintainhos, eram mantidos na cozinha. Quando a ninhada deitou um pouco de corpo, habituou-se a ir com os presos para o trabalho. Mal começava a tocar o tambor e os presos a dirigirem-se para a saída, os nossos gansos corriam, aos gritos, atrás deles, de asas abertas, saltando uns atrás dos outros para fora da cancela, indo formar obrigatoriamente no primeiro flanco, à espera de que acabasse a distribuição dos trabalhos. Juntavam-se sempre ao maior grupo e, nos trabalhos, pastavam ao lado dos homens. Quando os reclusos voltavam para casa no final do dia de trabalho, os gansos também. Começou a dizer-se nas imediações do forte que os gansos iam trabalhar com os reclusos: «Olha, os presos com os seus gansos. Como raio é que os treinaram?» Às vezes até davam esmola: «Pegai, para os gansos!» Porém, apesar de toda a abnegação dos pobres gansos, foram todos mortos no final de um período de jejum e abstinência.

Quanto ao nosso bode Vasska, nunca o teriam matado se não tivesse sucedido uma situação muito especial. Também não sei qual a origem do bicho, nem quem o levara; o certo é que, de repente, apareceu na prisão um cabrito pequenino, branquinho, uma lindeza. Em poucos dias, toda a nossa gente se afeiçoou a ele, e o cabrito tornou-se um divertimento comum, uma alegria. Foi também encontrado um pretexto para o manter lá dentro: era preciso haver um bode na cavalariça37. No entanto, no princípio, nem sequer vivia na cavalariça mas na cozinha e, depois, onde lhe apetecia. Era uma criatura graciosa e traquinas. Dava pelo nome, vinha quando o chamavam, saltava por cima dos bancos, das mesas, brincava às marradas com os presos, nunca estava triste, era sempre engraçado. Uma vez, num fim de tarde, já ele era um senhor bicho de chifres razoáveis, o lezguino Babai, sentado à soleira da porta da caserna no meio de outros reclusos, quis brincar às marradas com ele. Já estavam a bater com as testas um no outro havia bastante tempo — era aquele o divertimento preferido de Babai —, quando, de repente, o Vasska saltou para o degrau superior da entrada e, mal Babai virou dele a cabeça, ergueu-se nas patas traseiras, encostou ao peito os cascos dianteiros e, com toda a força, bateu a Babai na nuca, pelo que este rolou para o chão, para grande entusiasmo de todos os presentes e, em primeiro lugar, do próprio Babai. Numa palavra, todos adoravam Vasska. Quando cresceu o bastante, e após uma assembleia geral e muito séria, foi decidido fazer-lhe a conhecida operação, que os nossos veterinários sabiam executar na perfeição. «Se não, vai cheirar a bode» — diziam os reclusos. Depois da operação, o Vasska começou a engordar terrivelmente. É preciso dizer que também o fartavam de comida. Por fim, fez-se um excelente bode, grande, com uns chifres longuíssimos e extraordinariamente grossos. A andar, bamboleava-se. Também ganhou o hábito de ir connosco para o trabalho, divertindo os reclusos e o público que encontrávamos pelo caminho. Toda a gente conhecia Vasska, o bode prisional. Às vezes, quando o trabalho era na margem do rio, os reclusos esgalhavam uns ramos flexíveis de salgueiro, apanhavam folhas e flores no aterro e enfeitavam Vasska com tudo isso; entrançavam os ramos e as flores nos chifres do animal, cobriam-lhe o corpo de grinaldas. Vasska, assim enfeitado, voltava para a prisão, ele à frente e os reclusos atrás, exibindo-se com orgulho perante os transeuntes. Admiravam tanto o bode que alguns até já tinham tido esta ideia: «E se dourássemos os chifres do Vasska?» Mas só falaram, não cumpriram. De resto, perguntei a Akim Akímitch, o nosso melhor dourador logo a seguir a Issai Fomitch, se era realmente possível dourar os chifres de um bode. Olhou com atenção para o bode, pensou muito e respondeu que sim, que era possível, «só que o dourado não iria aguentar-se muito tempo, além de ser uma coisa inútil». Assim se gorou essa ideia. Decerto, o Vasska poderia viver assim uma vida longa na prisão, morrendo talvez de dispneia e velhice, se não fosse ter caído sob a vista do major, num dia em que, todo enfeitado, voltava para casa encabeçando o grupo de reclusos. O major, que ia de carro ligeiro, rugiu: «De quem é o bode?» Explicaram-lhe. «O quê? Um bode na prisão sem a minha autorização? Sargento!» Veio o sargento, foram-lhe dadas as seguintes ordens: matar o bode imediatamente; esfolá-lo, vender a pele no mercado, acrescentar o dinheiro da venda ao orçamento prisional; com a carne, melhorar uma sopa de repolho para os presos. Houve muito falatório na prisão, muitas lamentações, mas não ouve coragem para desobedecer. Mataram o Vasska junto ao fosso. A carne foi toda comprada por um recluso, que pagou à prisão um rublo e meio. Com esse dinheiro, compraram-se kalatches; quanto à carne, foi vendida a retalho aos presos pelo recluso que a comprara a junto, sendo feito um assado. A carne do Vasska era realmente muito saborosa.

Durante algum tempo, também viveu na nossa prisão uma águia (karaguch, uma espécie pequena de águias da estepe). Alguém a trouxera, ferida e extenuada. Foi logo rodeada por uma multidão de grilhetas; não podia voar, a asa direita arrastava-se-lhe pela terra, tinha uma pata torcida. Lembro-me de que olhava com fúria para a multidão curiosa e abria o seu bico recurvo, preparando-se para vender cara a vida. Quando se fartaram de a admirar e começaram a dispersar-se, a ave, ao pé-coxinho, batendo com a asa boa, saltitou para a ponta mais afastada do terreiro, e meteu-se a um canto, encostada aos troncos da paliçada. Ali viveu cerca de três meses, sem sair do seu canto. No início, iam vê-la muitas vezes, açulavam-lhe o cão. O Bolinhas atirava-se a ela com raiva mas, pelos vistos, tinha medo de se aproximar muito, o que divertia os reclusos. Diziam: «É uma fera. Não se deixa apanhar!» Com o tempo, o Bolinhas já conseguia ofender a águia: passou-lhe o medo, aprendeu a agarrá-la pela asa aleijada. A águia defendia-se com valentia, à bicada e a golpes de garra e, do seu canto, olhava selvagem e orgulhosamente, como um rei ferido, para os curiosos. Por fim, fartaram-se dela, abandonaram-na, esqueceram-na; no entanto, todos os dias apareciam ao lado da águia bocados de carne fresca e um caco com água. Alguém cuidava dela. De início, não queria comer, jejuou durante vários dias; por fim, começou a aceitar a comida, mas nunca das mãos ou na presença das pessoas. Eu observava-a de longe, muitas vezes. Quando não via ninguém por perto, pensando que estava sozinha, atrevia-se a sair um pouco do seu canto e coxeava ao longo da paliçada, até uma dúzia de passos do seu lugar, depois voltava, depois saía de novo, como se fizesse exercício. Mal me via, apressava-se para o seu poiso, a saltitar numa pata, e, erguendo a cabeça, abrindo o bico e eriçando as penas, preparava-se para o combate. Nunca consegui abrandá-la com carinhos nenhuns: picava-me e debatia-se, não aceitava a minha carne de vaca e, quando estava ao lado dela, não parava de me olhar com fixidez, a raiva nos olhos. Esperava a morte, solitária e furiosa, sem confiança, sem resignação. Por fim, os reclusos, de repente, voltaram a lembrar-se dela e, embora não a tivessem tratado nem se tivessem preocupado com ela durante os dois meses anteriores, começaram a ter pena da ave. Diziam que era preciso levá-la para fora da prisão.

— Se morrer, que morra em liberdade — diziam alguns.

— É verdade, é uma ave livre, nunca se há de habituar à prisão — apoiavam outros.

— Não é como nós — acrescentou alguém.

— Irra, que disparate: é um pássaro, nós somos gente.

— A águia, irmãos, é a rainha das florestas... — começou o Skurátov, mas dessa vez ninguém quis ouvi-lo.

Uma ocasião, depois do almoço, já o tambor dera o sinal de regressar ao trabalho, pegaram na águia, apertando-lhe o bico com a mão porque ela se defendia furiosamente, e levaram-na da prisão. Chegaram ao aterro. Os doze homens do grupo estavam cheios de curiosidade: para onde iria a águia? Coisa estranha: pareciam contentes, como se fossem eles próprios a quem deixavam sair em liberdade.

— Irra, carne de cão: estamos a fazer-lhe bem e ela continua a bicar! — dizia o recluso que a segurava, olhando quase com amor para a ave maldosa.

— Deixa-a ir, Mikitka!

— Quer dizer, não se deixa enganar. Tem de ser a liberdade, mas a verdadeira!

Atiraram a águia do aterro para a estepe. Era no fim do outono, num dia frio e escuro. O vento assobiava pela estepe nua e restolhava nos tufos amarelos e ressequidos de erva. A águia correu em frente e, batendo as asas, mesmo a aleijada, parecia ter pressa de se afastar de nós o mais possível. Os reclusos olhavam com curiosidade para a sua cabecita no meio da erva.

— Vejam só! — disse um deles, pensativo.

— Nem olha para trás! — acrescentou outro. — Nem uma única vez; corre e corre...

— Pensavas que ela voltaria cá, para agradecer? — replicou um terceiro.

— É claro, a liberdade, sentiu a liberdade.

— Pois é, a liberdade.

— Já não se vê...

— O que estais a fazer aí parados? Toca a andar! — gritaram os guardas da escolta, e todos se arrastaram, em silêncio, para o trabalho.

37 Superstição popular: o bruxo doméstico, domovói, só tem respeito pelo bode e pelo cão; por isso, era bom ter sempre um bode no quintal ou na cavalariça para proteger os animais das forças do mal (S. Maksímov, «Diabos, forças sobrenaturais e poder divino», Biblioteca do Fantástico Russo, em 20 volumes, vol. II, Moscovo, Ed. Soviétskaia Rossia, 1990). (NT )


7

A reclamação

Antes de passar a este capítulo, o editor dos cadernos do defunto Aleksandr Petróvitch Goriántchikov considera sua obrigação informar os leitores da circunstância que se segue.

No primeiro capítulo dos Cadernos da Casa Morta foram ditas algumas palavras sobre um parricida, de origem fidalga. O seu caso foi mencionado, a propósito, como exemplo da insensibilidade com que os reclusos falam, muitas vezes, dos crimes que cometeram. Foi dito também que o assassino não confessara o crime perante o tribunal, mas que, de acordo com os relatos das pessoas que estavam a par dos pormenores do caso, os factos apresentavam-se de tal modo claros que era impossível duvidar da autoria do crime. Tais pessoas contaram ao autor dos Cadernos que o criminoso tinha um comportamento de completa depravação e, cheio de dívidas por todo o lado, resolvera matar o pai só para receber a herança. De resto, toda a cidade onde o parricida estava em serviço contava a história da mesma maneira; deste último facto, tem o editor informação fidedigna. Finalmente, diz-se nos Cadernos que, na prisão, o assassino mantinha sempre um excelente estado de ânimo, muito alegre, que era um homem estouvado, leviano, insensato, embora nada estúpido, e que o autor dos ditos Cadernos nunca vira nele uma crueldade assim muito especial. O autor acrescenta ainda: «Obviamente, eu não acreditava nesse crime.»

Há alguns dias, o editor dos Cadernos da Casa Morta recebeu da Sibéria a informação de que o criminoso, afinal, tinha razão e que penara dez anos nos trabalhos forçados sem ser culpado; que a sua inocência fora provada oficialmente pelo tribunal; que os verdadeiros assassinos tinham sido encontrados e tinham confessado o crime; e que o desgraçado já fora posto em liberdade. O editor não pode duvidar da veracidade desta notícia...

Nada mais há a acrescentar. Não vale a pena arengar sobre o caráter profundamente trágico desta história, sobre uma vida jovem perdida por causa de uma falsa acusação tão terrível. O facto é demasiado claro, demasiado impressionante.

Pensamos também que, uma vez que tal facto foi possível, esta mesma possibilidade acrescenta mais uma característica, bastante relevante, ao quadro completo da Casa Morta.

Agora, continuemos.

Disse já que, por fim, me adaptei à vida da prisão. Mas foi um processo muito difícil e torturante, demasiado lento. Afinal, precisei de quase um ano para me acostumar, e esse foi o ano mais difícil da minha vida. Precisamente por isso, gravou-se-me integralmente na memória. Parece que recordo cada hora desse ano. Disse também que nenhum dos reclusos seria capaz de se habituar a essa vida. Lembro-me de que, nesse primeiro ano, pensava muitas vezes: «Como pode ser? Por que estão todos tão tranquilos?» Esta questão interessava-me muito. Já mencionei que os reclusos não viviam ali como em casa, mas como numa estalagem passageira durante uma viagem. As pessoas metidas lá dentro para toda a vida, mesmo essas, azafamavam-se e andavam ansiosas, sonhando cada uma delas com algo quase irrealizável. Tal inquietude constante que, embora se manifestasse em silêncio, era bem visível; tal esperança ardente e impaciente, que às vezes se exprimia involuntariamente, tão infundada que parecia um delírio e — o que mais me impressionava — se alojava nas mentes mais práticas — tudo isso conferia um ambiente muito invulgar àquele sítio, e talvez fossem essas as particularidades mais características dele. Sentia-se, quase à primeira vista, que nada daquilo existia fora da prisão. Ali todos eram sonhadores, via-se logo, e isso era sentido dolorosamente porque o caráter sonhador dava à maioria dos presos um ar sombrio, pouco são. Na sua maioria, os presos eram taciturnos e raivosos até ao ódio, escondendo a todo o custo as suas esperanças. A ingenuidade e a franqueza eram desprezadas. Quanto mais irrealizáveis eram os sonhos e quanto mais o próprio sonhador o sentia, com tanta maior persistência e pudor os guardava no seu íntimo; mas, desistir deles, isso não podia. Talvez sentissem uma espécie de vergonha por terem esses sonhos. O caráter russo tem uma faceta muito positiva e sensata, há nele muita autoironia... Talvez essas pessoas, por causa do constante descontentamento consigo mesmas, fossem tão impacientes nas suas relações quotidianas, fossem tão intolerantes e tão sarcásticas. E se, por exemplo, algum deles, dos mais ingénuos e impacientes, não se contivesse e exprimisse em voz alta aquilo que os outros calavam no fundo das suas almas — as esperanças e os sonhos —, refreavam-no de imediato de forma grosseira, interrompiam-no, ridicularizavam-no; quer parecer-me, porém, que os zombadores mais cruéis eram precisamente aqueles que, se calhar, iam ainda mais longe do que ele nos seus sonhos. Disse já que os ingénuos e simplórios eram olhados como parvalhões ordinários e eram desprezados. Cada qual se queria tão sombrio e orgulhoso que desprezava quem fosse bom e sem soberba. Sem contar os tagarelas ingénuos, todos os outros, ou seja, os taciturnos, dividiam-se em bondosos e maldosos, sorumbáticos e alegres. Os sorumbáticos e maldosos estavam em maioria; e se, entre eles, houvesse alguns loquazes por natureza, eram obrigatoriamente uns bisbilhoteiros inquietos e invejosos. Metiam-se em todos os assuntos alheios, embora nunca abrissem a sua própria alma, nunca revelassem os seus segredos. Isso não estava na moda, não se usava. Os bondosos — muito poucos — eram sossegados, guardavam em silêncio as suas esperanças e, evidentemente, tinham propensão para acreditar nelas mais do que os sorumbáticos. Aliás, desconfio que também existiam na prisão pessoas absolutamente desesperadas. Por exemplo, o velho de Starodúbie que seguia a velha crença; em qualquer caso, havia poucas pessoas deste género. O velho, aparentemente, era tranquilo (já falei dele), mas, por certos indícios, o seu estado de alma era terrível. No entanto, tinha o seu remédio, a sua salvação: a oração e a ideia de martírio. O recluso que treslia a Bíblia e enlouquecera, e se atirara de tijolo em punho ao major, também era, pelos vistos, um dos desesperados, um daqueles a quem a última esperança abandonou, um louco que inventou para si mesmo uma saída — um martírio voluntário, quase artificial. Declarou que se tinha atirado ao major sem qualquer raiva, desejando apenas passar pelo martírio. Que processo psicológico não se terá desenrolado na sua alma! Sem nenhum objetivo e sem aspirar a ele ninguém pode viver. Ao perder o objetivo e a esperança, o homem pode transformar-se num monstro... O objetivo de toda a nossa gente era sair da prisão, ter liberdade.

Porém, será possível fazer-se o que estou a tentar fazer agora: dividir os habitantes de uma prisão em categorias? A realidade é infinitamente mais variada do que todas as conclusões do pensamento abstrato, por mais sofisticadas que sejam, e não suporta classificações forçadas e generalizadas. Também nós tínhamos a nossa vida individual, por mais humilde que fosse; não vivíamos só a vida oficial, mas também uma vida interior, só nossa.

Como já mencionei, no início do cumprimento da minha pena eu não sabia penetrar a fundo nesta vida interior, por isso todas as manifestações exteriores me atormentavam com uma angústia insuportável. Acontecia-me até, às vezes, quase odiar essas pessoas, tão sofredoras como eu mesmo. Chegava a invejá-las e a revoltar-me contra o destino. Invejava-as porque, fosse como fosse, estavam entre os seus, em comunidade, compreendiam-se umas às outras, embora, tal como eu, estivessem aborrecidas e fartas daquela comunidade forçada, sob a ameaça do chicote e do pau, e cada qual, no fundo, estivesse com a cabeça em qualquer outro lado. Repito que essa inveja, que me dominava nos momentos de rancor, tinha os seus fundamentos. Efetivamente, não têm razão os que dizem que o fidalgo, por ser culto, etc., sofre de uma maneira perfeitamente idêntica à de qualquer mujique nas nossas prisões e demais lugares de trabalho forçado. Ouvi falar e li sobre esta suposição nos últimos tempos, por isso sei o que digo. Pelos vistos, esta ideia seria, na sua base, humanista. Somos todos pessoas, somos todos seres humanos. Parece-me, no entanto, uma ideia demasiado abstrata. Não são tomadas em consideração muitas circunstâncias práticas que só é possível compreender conhecendo a realidade. Não o digo porque julgue que o fidalgo e o homem culto tenham os sentimentos mais refinados, sejam mais sensíveis, mais desenvolvidos. É difícil definir-se a alma e atribuir-se grau de desenvolvimento a este ou àquele níveis determinados. Mesmo o grau de educação não pode constituir medida para este caso. Estou pronto a ser o primeiro a testemunhar que no mais inculto e oprimido meio, entre estes sofredores, encontrei traços do mais requintado desenvolvimento espiritual. Na prisão, pode acontecer conhecer-se um homem durante vários anos e pensar-se que é uma fera e não um ser humano, e desprezá-lo por isso. Subitamente, surge o momento em que a sua alma se abre, num impulso involuntário, e vê-se nela tanta riqueza, tanto sentimento, tanta cordialidade e compreensão clara do sofrimento, próprio e alheio, que ficamos de boca aberta e, num primeiro momento, é difícil acreditarmos nos nossos olhos. Pode também acontecer o contrário: a cultura combina-se com uma barbárie e um cinismo tão grandes que enojam e, por mais bondosos que sejamos e por mais ideias feitas que tenhamos, não encontramos no nosso coração desculpas nem justificações.

Não falo também da mudança dos hábitos, do modo de vida, da alimentação, etc., o que, para um homem de estrato social superior, é, indubitavelmente, mais difícil do que para o mujique que, não raro, em liberdade passava fome e, na prisão, pelo menos come com fartura. Não vou discutir sobre estas coisas. Digamos que, para uma pessoa com certa força de vontade, tudo isso não é mais grave do que outros desconfortos, embora, no fundo, a mudança de hábitos não seja brincadeira nenhuma. De qualquer maneira, existem desconfortos perante os quais tudo isso se torna insignificante, tão depressa nos habituamos à imundície e a uma alimentação fraca e porca. O mais mimado fidalgote, o mais sensível senhorito, depois de um dia de trabalho em que sua em bica, comerá o pão negro e uma sopa em que nadam baratas. Não é muito fácil a gente habituar-se a estas coisas, como se canta nas estrofes prisionais humorísticas sobre o ex-folgazão que foi parar à prisão:

Couve em água é o acepipe

Que me dá mais apetite.

Não; o mais importante é o facto de qualquer homem simples, acabado de chegar à prisão, se tornar igual aos outros todos passadas duas horas, se sentir em casa, e mesmo dono de casa igual em direitos na comunidade prisional. É compreendido por todos e, por sua vez, ele compreende todos; fica reconhecido por todos, todos o consideram dos seus. Ora, outra coisa se passa com o nobre, o senhor. Por mais justo, bondoso e inteligente que seja, será odiado e desprezado durante anos por todos, por toda a massa de reclusos; não o compreenderão e, sobretudo, não acreditarão nele. Nunca será o amigo e o companheiro e, embora, com o correr dos anos, consiga que deixem de ofendê-lo, continuará a ser um estranho e terá sempre a consciência torturante da sua alienação e solidão. Muitas vezes, não é por mal que o rejeitam, mas inconscientemente. «Não é dos nossos, e acabou-se» — é assim que eles sentem. Nada há de mais terrível do que viver num ambiente alheio. Um mujique transferido de Taganrog para o porto de Petropávlovsk38 encontrará lá, num instante, um mujique russo igual a ele, entender-se-á logo com ele e, duas horas depois, viverão pacificamente juntos numa casa ou numa cabana. Outra coisa acontece com os nobres. Estão separados do povo simples por um abismo profundíssimo, o que só fica completamente claro quando o nobre, de repente, por força das circunstâncias exteriores, perde os seus direitos de facto e se torna vilão. De outro modo, mesmo que um fidalgo esteja durante anos em contacto com o povo, todos os dias — por exemplo, de forma administrativa, ou, mesmo, em convivência amigável, como benfeitor — nunca conhecerá a essência desse povo. Tratar-se-á apenas de uma ilusão de óptica, nada mais. Sei muito bem que todos, absolutamente todos, ao lerem as minhas observações dirão que estou a exagerar. Tenho, porém, a certeza do que digo. Não foram os livros que me convenceram, nem o raciocínio especulativo, mas tive bastante tempo para verificar, na realidade, as minhas convicções. Talvez, no futuro, toda a gente saiba até que ponto a minha tese corresponde à realidade...

Os acontecimentos, como de propósito, iam confirmando, desde a primeira hora, as minhas suposições e afetavam-me nervosa, doentiamente. Nesse meu primeiro verão, eu vagueava pelo presídio quase sempre sozinho. Disse já que o meu estado de ânimo era tal que nem sequer tinha capacidade para avaliar e distinguir os reclusos que poderiam gostar de mim e que, de facto, mais tarde gostaram de mim, embora nunca tivessem chegado a pôr-se em pé de igualdade comigo. Tinha também companheiros fidalgos, mas tal camaradagem não libertava a minha alma de todo aquele fardo. Aos meus olhos, tudo era insuportável, mas não podia fugir disso. Eis, então, que sucedeu um desses casos que, logo no princípio, me mostraram plenamente o estado de estranheza em que me encontrava e a diferença da minha situação lá dentro. Uma vez, nesse verão, pelos princípios de agosto, num dia de semana quente e ensolarado, pouco depois do meio-dia, quando, como de costume, as pessoas descansavam antes dos trabalhos da tarde, toda a prisão se levantou de uma vez e começou a formar no terreiro. Até ao último minuto, eu não sabia de nada do que se estava a passar. Nessa altura andava de tal maneira ensimesmado que quase não reparava no que acontecia à minha volta. Entretanto, havia já três dias que a prisão se agitava subterraneamente. Talvez tal agitação tivesse começado ainda antes, como viria a perceber mais tarde ao lembrar-me de algumas conversas entre os reclusos e, ao mesmo tempo, do estado de espírito exageradamente rabugento, soturno e mesmo raivoso que grassava nesses últimos dias. Atribuía-o ao trabalho duro, aos dias longos e enfadonhos do verão, aos sonhos com florestas e vida livre, às noites curtas, em que era difícil dormir o suficiente. Era possível que se tivesse juntado aquilo tudo para produzir a explosão, mas o pretexto de tal explosão foi a comida. Havia já alguns dias que as pessoas se queixavam em voz alta e havia indignação nas casernas, mas era sobretudo à hora do almoço e do jantar que os presos se mostravam descontentes com as «sopeiras», tentando mesmo substituir um cozinheiro; chegaram a fazê-lo, mas logo expulsaram o novo e readmitiram o antigo. Em resumo, toda a gente mostrava um estado de ânimo inquieto.

— O trabalho é duro, mas para comer só nos dão badana — resmungava alguém.

— Se não gostas, encomenda blamangé 39 — replicava outro.

— Meus amigos, gosto muito de sopa de repolho com badana, porque é saborosa — dizia um terceiro.

— E darem-te sempre badana, só badana, também é saboroso?

— É verdade, estamos agora nos dias gordos — dizia um quarto —, na fábrica matamo-nos a trabalhar, é natural que depois haja fome. E a badana alimenta alguma coisa?

— E quando não é badana, são miúdos.

— Pois, também esses miúdos. Mas só badana e miúdos, mais nada. Que comida é essa? Onde está a justiça?

— Pois, fraca ração.

— Enche ele o bolso, de certeza.

— Isso não tem nada a ver contigo.

— Então tem a ver com quem? A barriga é minha. Fazíamos uma reclamação todos juntos, isso é que era.

— Uma reclamação?

— Claro.

— Vê-se logo que tens levado poucas chibatadas por causa dessas reclamações. Burro como uma estátua!

— É verdade — resmungava outro, até então calado —, é fácil de fazer, mas de nenhum proveito. O que vais tu reclamar, hã, meu focinho com nuca?

— Reclamar. Se toda a gente estiver de acordo, reclamo o mesmo que todos. Porque isto é uma miséria. Há os que têm a sua própria comida, mas o resto vai tudo corrido a lavadura da prisão.

— Irra, olhos de inveja! Cresce-lhe a água na boca quando vê a comida dos outros.

— Não cobiçar o bocado alheio; levanta-te e caminha, arranja a tua comidinha.

— Arranja!... Contigo bem posso regatear até ter cabelos brancos. Se queres ficar de braços cruzados, queres dizer que és rico, não?

— Rico é o Erochka, que tem gato e cão, mosquito e moscão.

— É verdade, amigos, de que estamos à espera? Vamos acabar com estas palhaçadas. Estão-nos a roubar. Por que não havemos de agir?

— Porquê?! Queres que to mastiguem e to metam na boca mastigado? Porque isto é uma prisão, só por isso!

— Quer dizer: então que Deus ponha o povo a ralhar e os chefes a petiscar.

— Isso mesmo. Foi assim que o Sete-Olhos engordou. Comprou dois cavalos.

— E também é amante dos copos.

— Há dias pegou-se com o veterinário, quando estavam os dois a jogar às cartas.

— Jogaram toda a noite. O trunfo do nosso major era punhos. Foi o Fedka quem disse.

— É por isso que a sopa é de miúdos.

— Eh, parvalhões! Reclamações não são para nós.

— Se formos todos juntos, a ver se ele não se vai explicar. E nada de recuarmos.

— Explicar!? Dá-te é um soco no focinho, e está explicado.

— E ainda por cima nos mandam a tribunal...

Enfim, toda a gente revoltada. Nessa altura, a nossa alimentação era de facto muito pobre. E, também, uma coisa puxava a outra, porque por trás de tudo estava a angústia geral, o tormento secreto e permanente dos presos. O grilheta é resmungão e revoltado por natureza, mas é raro unir-se, é raro haver levantamentos de todos ou de um grande grupo. A causa é a discordância permanente entre uns e outros: por isso havia mais pragas do que ações. No entanto, desta vez a rebeldia não acabou em nada. Os presos começaram a juntar-se em grupos, a falar pelas casernas, a lembrar com raiva como era a gerência do nosso major; queriam saber tudo, todos os segredos, em pormenor. Havia quem se emocionasse sobremaneira. Em qualquer incidente destes, aparecem logo os chefes, os cabecilhas. Os cabecilhas, nestes casos, ou seja, em casos de reclamações, são em geral gente notável, e não só na prisão, mas em quaisquer associações, equipas, etc. São de um tipo especial, do mesmo género por todo o lado. É gente fogosa, com ânsia de justiça e uma certeza muito ingénua e honesta de que a justiça é possível, inevitável, indubitável e, sobretudo, imediata. Não são mais estúpidos do que os outros, até há entre eles alguns bastante inteligentes, mas são demasiado ardorosos para poderem ser frios e calculistas manhosos. Em todos estes casos, se aparecem pessoas que sabem dirigir habilmente as massas e ganhar as causas, elas são de um tipo bem diferente dos cabecilhas populares e dos seus guias naturais; este tipo é extremamente raro entre nós. Mas esses, de que falo agora, os incitadores de reivindicações e cabecilhas, perdem quase sempre e povoam, depois, por castigo, as prisões correcionais. Perdem porque são febris, mas também é por isso mesmo que têm influência sobre as massas, que os seguem de boa vontade. O seu ardor e indignação honestos influenciam toda a gente, acabando por se juntar a ele mesmo os mais indecisos. A convicção cega do êxito, própria deles, seduz inclusivamente os céticos mais empedernidos, apesar de, às vezes, tal convicção ter fundamentos tão instáveis, tão infantis que admiramos o facto de as pessoas os terem seguido. O mais importante é que são eles os primeiros a avançar, e sem qualquer medo. Como touros baixando os cornos, atiram-se para a frente, muitas vezes sem preparação, sem prudência, sem aquele jesuitismo prático com que, tantas vezes, o mais vil e mais porco indivíduo ganha o seu caso, consegue o seu objetivo e sai ileso dos sarilhos. Aqueles cabecilhas, porém, partem sempre os cornos. Na vida quotidiana são pessoas biliosas, resmungonas, irritadiças e intolerantes. Na maioria dos casos, são pessoas muito limitadas, o que, aliás, constitui a força delas. O mais desagradável nelas é que, em vez de perseguirem um objetivo direto, se metem por caminhos secundários e são atraídas por ninharias, em vez de se dedicarem ao que é essencial. É isso que as leva à perdição. Mas as massas compreendem — e aí está mais uma força dessas pessoas... A propósito, é necessário dizer em que consistia a reclamação. [...]

Na nossa prisão havia vários homens que cumpriam pena por virtude de reclamação. No caso presente, excitavam-se mais do que todos os outros. Sobretudo um deles, Martínov, antigo hussardo, homem fogoso, inquieto e desconfiado, porém honesto e verdadeiro. O outro era Vassíli Antónov, que possuía a particularidade de se irritar com sangue-frio; o seu olhar era descarado, o sorriso arrogante e sarcástico; homem evoluído e, também, honesto. De resto, não podem enumerar-se todos, eram muitos. A propósito, o Petrov não parava de correr de um lado para outro, escutando as conversas em todos os grupos; falava pouco, mas andava visivelmente emocionado e, quando todos se preparavam para a formatura, foi o primeiro a sair da caserna.

O sargento chegou de imediato, assustado. Os presos, alinhadas as fileiras, pediram-lhe educadamente que dissesse ao major que a prisão desejava falar com ele e fazer-lhe um pedido relativamente a determinados assuntos. Atrás do sargento, saíram também todos os inválidos e puseram-se em frente dos reclusos em formatura. O pedido apresentado ao sargento era tão extraordinário que o aterrorizou. Mas não se atrevia a não apresentar relação dele ao major. Em primeiro lugar, como os grilhetas pareciam já sublevados, podia acontecer alguma coisa ainda pior. A nossa chefia, em geral, era toda bastante cobarde em relação aos presos. Em segundo lugar, mesmo que não acontecesse nada, desistindo todos e dispersando-se, o sargento tinha igualmente a obrigação de informar de tudo os seus superiores. Pálido e a tremer de medo, foi rapidamente a casa do major, sem tentar sequer interrogar e persuadir os reclusos. Bem via que não falariam com ele.

Sem saber o que se passava, alinhei também na formatura. Fiquei ao corrente de todos os pormenores apenas mais tarde. Pensava que era alguma chamada, mas, como não visse os guardas que faziam normalmente a contagem dos presos, fiquei surpreendido e pus-me a olhar em volta. As caras denotavam emoção e irritação. Algumas estavam pálidas. No geral, todos se mostravam preocupados, mas calavam-se, à espera da conversa iminente com o major. Reparei que muitos olhavam para mim com grande espanto, virando-me depois a cara em silêncio. Pelos vistos, achavam esquisito que eu me tivesse posto na fila com eles: não deviam acreditar que eu pudesse alinhar na reclamação. Breve, porém, recomeçaram a olhar para mim, interrogativamente.

— O que estás a fazer aqui? — perguntou-me em voz alta e grosseira o Vassíli Antónov, que se encontrava bastante afastado de mim; até então sempre me tratara por «senhor» e com modos educados.

Olhei para ele, perplexo, tentando perceber ainda o que significava tudo aquilo e pressentindo já que estava a acontecer algo de extraordinário.

— Pois, por que estás aqui? Vai para a caserna — disse um jovem, ex-soldado, com quem até ao momento eu não tinha travado conhecimento, um rapaz bondoso e sossegado. — Não tens nada a ver com isto.

— Mas é uma formatura — respondi —, pensei que era uma chamada.

— O tipo mete-se onde não é chamado — gritou alguém.

— Nariz de ferro — chamou-me outro.

— Estes caçadores de moscas! — disse um terceiro, com um desprezo indescritível. Este novo epíteto provocou uma risada geral.

— Fazem-lhe um favor se o meterem na cozinha — acrescentou mais alguém.

— Para esses, o paraíso é em toda a parte. Estão na prisão mas comem kalatches e compram leitões. Comes do teu, para que te metes nisto?

— Este não é o seu lugar — disse Kulikov, aproximando-se de mim; pegou-me na mão e fez-me sair da fila.

Estava pálido, os seus olhos negros brilhavam, mordia o lábio inferior. Não conseguia manter o sangue-frio enquanto esperava pelo major. A propósito, agradava-me muito olhar para Kulikov em todos os casos deste género, ou seja, quando ele precisava de mostrar o seu caráter. Exibia-se muito, mas também fazia o que era necessário. Acho que, até para a sua própria execução, iria com ostentação e elegância. Naquele momento, em que todos me tratavam por tu e me insultavam, redobrara propositadamente de delicadeza para comigo, mas, ao mesmo tempo, as suas palavras eram ainda mais insistentes, mesmo altivas e perentórias.

— Estamos aqui a tratar dos nossos problemas, Aleksandr Petróvitch, o senhor não tem nada que fazer aqui. Vá para qualquer lado, espere... A sua gente está na cozinha, vá para lá.

— Vai prò diabo!

Através da janela meio aberta da cozinha, entrevi realmente os polacos; de resto, pareceu-me que, além deles, havia lá muita gente. Perplexo, fui para a cozinha. A formatura lançou-me às costas risos, pragas, insultos.

— Não gosta!... Ui, ui, ui!... apanhai-o!...

Nunca fora tão insultado na prisão e, dessa vez, senti-me pessimamente. Porque o momento era especial. No átrio da cozinha encontrei T...ki, dos fidalgos, um jovem firme e magnânimo, embora sem grande cultura; era grande amigo de B...ki. Os grilhetas em geral destacavam-no de entre os outros nobres e até simpatizavam com ele. Era robusto e corajoso, o que transparecia, de certo modo, em cada gesto dele.

— O que anda a fazer, Goriántchikov? Venha cá! — gritou-me.

— Afinal, o que se passa?

— Vão apresentar uma reivindicação. Será que não sabe? É claro que não vão conseguir nada: quem dará crédito a reclusos? Vão procurar os instigadores e, se estivermos com eles, seremos os primeiros a ser acusados de revolta. Lembre-se por que estamos aqui. Eles serão simplesmente açoitados, nós iríamos de novo a tribunal. O major tem-nos um ódio de morte e ficaria contente se arranjasse maneira de nos tramar. Acharia nisso uma justificação para as sujeiras que faz.

— E os grilhetas todos, em peso, também vão trair-nos — acrescentou M...ki, quando entrávamos para a cozinha.

— Pode ter a certeza, não nos poupam! — secundou T...ki.

Na cozinha, além dos fidalgos, havia muita outra gente, cerca de trinta pessoas. Todos ficaram ali porque não queriam alinhar na reivindicação — alguns por cobardia, outros porque estavam convencidos da inutilidade de qualquer luta lá dentro. Também lá estava o Akim Akímitch, inimigo natural e empedernido de tudo o que fosse reclamações e outras coisas susceptíveis de estorvarem o bom andamento do serviço e a boa conduta. Esperava em silêncio e com toda a calma o final da história, sem se preocupar minimamente com o desenlace; pelo contrário, tinha a certeza absoluta da vitória da ordem e da vontade das autoridades. Também lá estava Issai Fomitch, cheio de perplexidade, cabisbaixo, a escutar ávida e cobardemente as nossas conversas. Muitíssimo nervoso. Também lá estavam os polaquitos de origem modesta, que se tinham juntado aos nobres. Havia alguns russos medricas, pessoas sempre caladas e embrutecidas. Não tinham ousado pôr-se ao lado dos outros e esperavam tristemente pelo desfecho da contestação. Estavam na cozinha, também, uns reclusos sombrios e sempre severos, mas nada cobardes. Não tinham saído a terreiro porque consideravam, com convicção teimosa e desdém, que aquilo era um disparate e não daria mais nada a não ser sarilhos. Pareceu-me, porém, que não se sentiam muito à vontade nem tinham um ar muito seguro. Embora compreendessem que tinham toda a razão relativamente à reclamação, o que viria a confirmar-se mais tarde, sentiam-se uma espécie de renegados que tinham abandonado o barco da comunidade, uns traidores dos camaradas no confronto com o major. Também ali estava o Iólkin, o mujique siberiano manhoso condenado por falsificação de moeda e que tinha roubado a clientela veterinária a Kulilkov. O velhote seguidor da velha crença da antiga igreja de Starodúbie também estava na cozinha. Os cozinheiros todos, talvez por estarem convencidos de que faziam parte da administração, acharam inconveniente sublevar-se contra ela, e ali estavam também.

— No entanto — dirigi-me, indeciso, a M...ki —, com exceção destes, o levantamento foi quase geral.

— O que nos importa isso? — resmungou B...

— Arriscaríamos cem vezes mais do que eles, se nos tivéssemos pronunciado; e para quê? Je haïs ces brigands40. O senhor acha que eles vão conseguir alguma coisa com a sua reclamação? Para que se quer meter num disparate desses?

— Aquilo não vai dar nada — observou um dos grilhetas, um velho teimoso e exaltado. Almázov, que também ali estava, apressou-se a apoiá-lo.

— Vai apenas servir para vergastar meia centena deles, mais nada.

— Chegou o major! — gritou alguém, e todos se precipitaram avidamente para as janelas.

O major irrompeu no terreiro todo raivoso, numa autêntica fúria, rubro, de óculos. Aproximou-se da formatura, em silêncio mas com decisão. Em casos destes, ele era realmente destemido e não perdia o ânimo. Além disso, estava quase sempre embriagado. Até o seu boné ensebado com cinta cor de laranja e as sujas dragonas prateadas tinham naquele momento um aspeto sinistro. Atrás dele vinha o escrivão Diátlov, personagem extremamente importante na nossa prisão, que, no fundo, era quem mandava em tudo e exercia mesmo grande influência sobre o major; era um indivíduo astuto, que não dava ponto sem nó, mas não era má pessoa. Os reclusos estavam satisfeitos com ele. Atrás deste vinha o nosso sargento que, pelos vistos, já tinha levado uma ensaboadela dos diabos e estava à espera de outra dez vezes mais grave; atrás do sargento, uma escolta de três ou quatro guardas, não mais. Os reclusos, que se tinham já desbarretado desde que tinham mandado chamar o major, endireitaram-se à uma; cada um assentou no chão um pé, depois o outro, e a formatura quedou-se imóvel, aguardando a primeira palavra, ou melhor, o primeiro berro do chefe superior.

Não se fez esperar; à segunda palavra, já o major gritava a plenos pulmões: estava furiosíssimo. Víamos das janelas que ele corria ao longo das filas, se atirava a um e a outro, interrogava. Como estávamos longe, não ouvíamos as suas perguntas nem as respostas dos reclusos. Mas ouvíamos os seus gritos histéricos:

— Rebeldes!... Vergasta!... Incitadores! Tu és o incitador! Tu! — atirou-se a alguém.

A resposta não a ouvimos. Mas vimos que, um minuto depois, o recluso em causa saía da formatura e ia para o corpo da guarda. Um minuto depois, o segundo, depois o terceiro.

— Mando-vos a todos a tribunal! Ides ver! Quem está na cozinha? — guinchou, ao ver-nos às janelas abertas. — Enxotai-os todos para cá! Já!

O escrivão Diátlov foi buscar-nos à cozinha. Informaram-no de que nós não apresentávamos reivindicação nenhuma.

— Ah, ah, não apresentam! — disse, baixando o tom e, pelos vistos, satisfeito com isso. — Mesmo assim, todos cá para fora.

Saímos. Eu sentia que a situação era um tanto vergonhosa para nós. Os outros também iam cabisbaixos.

— Ah, ah, o Prokófiev! O Iólkin, o Almázov também... Vinde, ponde-vos todos aí — dizia-nos o major, muito depressa, mas num tom brando, lançando-nos olhares carinhosos. — O M...ki também? Muito bem, toca a fazer a lista. Diátlov! Faz imediatamente uma lista de todos os que estão satisfeitos, e uma lista, separada, de todos os que estão descontentes, até ao último, e depois dás-me o papel. Mando-vos a tribunal a todos! Ides ver como é, seus malandros!

O papel surtiu efeito.

— Satisfeitos! — gritou de repente, soturna, uma voz do grupo dos descontentes, mas sem grande convicção.

— Ah, ah, satisfeitos! Quem está satisfeito? Quem está satisfeito que saia.

— Satisfeitos, satisfeitos! — ouviram-se mais vozes.

— Satisfeitos! Quer então dizer que foram incitados? Quer dizer que houve agitadores, cabecilhas? Pior para eles!...

— Meu Deus, o que é isto? — ouviu-se uma voz.

— Quem disse isso, quem foi? — rugiu o major, avançando na direção da voz. — Foste tu, Rastorgúev, foste tu que gritaste? Para o corpo da guarda, já!

Pastorgúev, um jovem alto e balofo, saiu da formatura e dirigiu-se lentamente para o corpo da guarda. Não tinha sido ele quem gritara, mas, como foi apontado, não contestou.

— Estragados com fartura! — gritava-lhes às costas o major. — Focinho de porco, gordalhufo! Apanho-vos a todos. Os satisfeitos saiam da formatura!

— Satisfeitos, vossa senhoria! — ouviram-se dezenas de vozes soturnas; outros, teimosamente, mantinham-se calados. Era isso que o major queria. Pelos vistos, convinha-lhe resolver tudo o mais depressa possível e, de certa maneira, pacificamente.

— Ah, ah, agora já estão todos satisfeitos! — disse apressadamente. — Eu já estava a ver... eu já sabia. É obra dos agitadores. Há agitadores entre eles, pois claro! — continuava, dirigindo-se a Diátlov. — É preciso investigar isto melhor, mas agora... são horas de irem trabalhar. Tambor!

Marcou presença, pessoalmente, na distribuição dos trabalhos. Os reclusos, silenciosa e tristemente, saíam para os trabalhos, com a consolação, pelo menos, de desaparecerem dali o mais depressa possível. A seguir, o major foi para o corpo da guarda e deu ordens relativamente aos «agitadores», aliás sem crueldade em excesso. Até despachava as coisas rapidamente. Disseram, mais tarde, que um dos reclusos pediu desculpa e foi imediatamente perdoado. Via-se que o major não estava seguro e que talvez se tivesse mesmo acobardado um pouco. É que uma reclamação maciça, seja como for, é sempre uma situação incómoda e, embora a queixa dos reclusos não pudesse, em última análise, ser considerada uma reclamação, porque não fora apresentada aos chefes superiores mas diretamente ao major, havia nela motivos de inquietação. Preocupava-o, sobretudo, o facto de se terem sublevado todos. Convinha abafar o caso, custasse o que custasse. Depressa deixaram sair do corpo da guarda os «agitadores». Logo no dia seguinte, a comida melhorou, o que, aliás, não se manteve por muito tempo. O major, nos dias que se seguiram à rebelião, visitava muito a prisão e não parava de encontrar mais alterações à ordem. O nosso sargento andava preocupado e embaraçado, como se nunca mais se recompusesse da surpresa. Quanto aos reclusos, custou-lhes a acalmar: andavam calados, nervosos, perplexos. Alguns desanimaram. Outros, quando se abordava o caso, resmungavam, mas sem muitas palavras. Muitos, em voz alta e raivosa, ironizavam consigo próprios, como se quisessem castigar-se pela reclamação.

— Toma, engole! — dizia um.

— Cá se fazem, cá se pagam! — acrescentava outro.

— Onde é que alguma vez se viu o rato a passar a perna ao gato? — observava um terceiro.

— A nossa gente só se deixa convencer à moca. Ainda bem que não nos vergastou a todos.

— E tu, para a próxima, pensa mais e fala menos, é mais seguro! — observou outro raivosamente.

— Estás a querer dar-me uma lição, professor?

— E dou.

— Quem és tu para falar assim?

— Por enquanto sou homem para ti. E tu, quem és?

— És um bocado de cão, é isso que tu és.

— Olha quem fala!

— Basta! Caluda! Chega de gritaria! — interromperam-nos os outros de todos os lados...

Nesse mesmo dia da reclamação, ao fim da tarde, encontrei-me nas traseiras da caserna com Petrov, que já andava à minha procura. Aproximou-se de mim e murmurou qualquer coisa, duas ou três exclamações indefinidas, mas logo se calou, distraído, e pôs-se a andar ao meu lado. O caso ainda me apertava dolorosamente o coração e pareceu-me que Petrov me poderia esclarecer algumas coisas.

— Diga-me, Petrov — perguntei —, a vossa gente não ficou zangada connosco?

— Quem é que se zanga? — disse, como se voltasse a si da distração.

— Os reclusos... não estão aborrecidos com os fidalgos?

— Por que havíamos de estar zangados?

— Porque... não nos juntámos a vós na reivindicação.

— E para que precisavam disso os senhores? — perguntou Petrov, parecendo tentar compreender-me. — Os senhores têm as suas próprias refeições.

— Ah, por amor de Deus! Entre os vossos também há quem faça refeições próprias, mas pronunciaram-se. Nós também devíamos tê-lo feito... por camaradagem.

— Mas... que camarada é o senhor para nós? — perguntou ele, surpreendido.

Olhei para ele; o homem não me compreendia, e estava a ser sincero, não percebia aonde eu queria chegar. Em compensação, nesse instante, eu compreendia-o perfeitamente. Pela primeira vez, uma ideia que, havia muito, despontara em mim e me perseguia tornou-se-me definitivamente clara e, de súbito, compreendi. Compreendi que nunca me aceitariam na sua comunidade, nem que eu fosse o mais perigoso dos assassinos, condenado a pena perpétua e à secção especial. Gravou-se-me na memória, sobretudo, o ar de Petrov nesse momento. Na sua pergunta: «Mas que camarada é o senhor para nós?» soava uma ingenuidade e uma perplexidade muito sinceras. Pensei: não haverá nas suas palavras alguma ironia, ou raiva, ou sarcasmo? Nada disso: simplesmente, não és nosso camarada. Vai pelo teu caminho, nós seguiremos o nosso; tens a tua vida, nós temos a nossa.

É verdade: pensava que, depois da reivindicação, nos fariam a vida negra. Mas não: nem uma censura nem nada parecido, a raiva deles para connosco não aumentou. Alfinetavam-nos um pouco, como dantes, e mais nada. Aliás, também não estavam aborrecidos com os reclusos da sua condição que não quiseram alinhar com eles e ficaram na cozinha, nem com aqueles que foram os primeiros a gritar que estavam satisfeitos. Ninguém sequer recordou isso. Foi um facto que nunca cheguei a compreender.

38 Encontram-se a grandíssima distância estas duas cidades: Taganrog na costa do mar Negro, Petropávlovsk na costa da península da Kamchatka, no Extremo Oriente. (NT )

39 Deturpação popular do francês blanc-manger (manjar-branco, carne de galinha desfiada misturada com arroz, leite e açúcar). (NT )

40 Odeio estes bandidos (fr.). (NT )


8

Os camaradas

É claro que me sentia mais atraído pela minha gente, ou seja, pelos «fidalgos», sobretudo nos primeiros tempos. Porém, entre os três ex-fidalgos russos que estavam na nossa prisão naquele tempo (Akim Akímitch, o espião A... e o alegado parricida), apenas falava com Akim Akímitch. Confesso que, mesmo a esse, ia vê-lo por desespero, passe a palavra, nos momentos de aborrecimento mais insuportável e quando não me era possível falar com mais ninguém. Já no capítulo anterior tentei classificar os presidiários, mas agora, ao lembrar-me de Akim Akímitch, penso que é possível acrescentar mais uma categoria. Na verdade, tal categoria era constituída por ele sozinho. Trata-se da categoria dos grilhetas completamente indiferentes. Na verdade, aqueles para quem era absolutamente indiferente onde viver — em liberdade ou nos trabalhos forçados, tais pessoas não existiam nem podiam existir entre nós, constituindo Akim Akímitch, pelos vistos, a exceção à regra. Instalara-se na prisão, até, como se planeasse passar nela o resto da vida: todos os seus pertences — o colchão, as almofadas, a tralha doméstica — eram sólidos e estáveis, para durarem. Não se notava nada de passageiro, de provisório, na sua maneira de estar. É certo que ainda lhe faltavam muitos anos de prisão, mas também era pouco provável que alguma vez tivesse ponderado a hipótese da sua saída em liberdade. Ora, se se resignou com a realidade, não foi por decisão do coração, mas tão-só por subordinação, o que para ele, de resto, era a mesma coisa. Era um homem bondoso e até me ajudou, no início, com muitos conselhos e alguns favores; mas confesso que, sobretudo nos primeiros dias, ele me contaminava com um aborrecimento insuportável que piorava ainda mais o meu estado de ânimo tristíssimo. Entretanto, era por angústia que metia conversa com ele. Havia momentos em que me apetecia ouvir pelo menos uma palavra viva, nem que fosse biliosa, ou impaciente, ou raivosa: pelo menos, indignar-nos-íamos juntos com o nosso destino; mas ele calava-se, colava os seus lampiões ou contava que revista de tropas tinha acontecido no ano tal, e quem era o comandante da divisão, e que nome e patronímico tinha, e se ficara contente ou não com a revista, e que tinham sido mudados os sinais dos soldados das linhas avançadas, etc. Contava as suas coisas numa voz tão monótona e imperturbável como água a gotejar lentamente. Quase não se animava quando me contava que, pela sua participação na campanha tal e tal, no Cáucaso, merecera a condecoração de Santa Ana. Nesses momentos, apenas a voz se lhe tornava solene e importante; baixava-a um pouco quando pronunciava «Santa Ana», dando-lhe um certo tom enigmático, e depois ficava solenemente calado uns três minutos... Naquele primeiro ano, eu tinha momentos estúpidos, e sempre repentinos, em que sentia quase ódio por Akim Akímitch, sabe-se lá porquê, e, em silêncio, amaldiçoava o destino por me ter colocado ao lado dele nos catres. Uma hora depois já me censurava por isso. Porém, só no primeiro ano; depois, acabei por me resignar completamente ao Akim Akímitch e tinha vergonha dos meus estúpidos pensamentos passados. De resto, eu e ele nunca tivemos conflitos abertos, lembro-me bem.

Além desses três russos, passaram pela prisão, durante os meus anos de pena, mais oito senhores. Com alguns deles travei uma amizade bastante íntima e tive muito agrado em conhecê-los, mas nem a todos. Os melhores de entre eles eram doentios, exclusivistas e extremamente intolerantes. Com dois, deixei de falar, pura e simplesmente. Entre eles, só três eram pessoas cultas: B...ki, M...ki e o velho Z...ki, antigo professor de matemática, homem bondoso mas muito esquisito e que, apesar da sua instrução, parecia ser bastante limitado. Muito diferentes eram M...ki e B...ki. O meu relacionamento com M...ki foi muito bom desde o início: nunca me zangava com ele, respeitava-o e, no entanto, nunca cheguei a afeiçoar-me a ele. Era um homem profundamente desconfiado e exasperado, mas com grande domínio de si. Aliás, era esta característica que não me agradava nele: sentia-se que nunca abriria a ninguém a sua alma. De resto, até posso estar enganado. Era de uma natureza forte e nobilíssima. A sua habilidade extraordinária, quase jesuítica, e a sua prudência nas relações com as outras pessoas denotavam o seu ceticismo profundo e secreto. Entretanto, em virtude dessa mesma ambiguidade, era uma alma que sofria: o ceticismo misturado com uma fé profunda e inabalável e com as esperanças que tinha. No entanto, apesar de toda a sua esperteza na prática quotidiana, era um adversário irreconciliável de B...ki e de T...ki, amigo deste. B...ki era um homem doente, com propensão para a tísica, irritadiço e nervoso, mas, no fundo, muito bom e, até, magnânimo. A irritação levava-o, muitas vezes, à intolerância e aos caprichos. Não aguentei o caráter de B...ki e, mais tarde, deixei de ser amigo dele, continuando, porém, a simpatizar com ele; entretanto, com M...ki não me zanguei, mas nunca gostei dele. Quando cortei com B...ki, tive também de findar a minha amizade com T...ki, o jovem que pus no capítulo anterior a contar-me sobre a reivindicação dos reclusos. Fiquei com muita pena. T...ki, embora pouco culto, era bom, corajoso, um excelente moço. O problema era gostar de B...ki e o respeitar, quase o venerar, considerando por isso seus inimigos todos os que discordassem de B...ki. Também acabou por romper com M...ki, igualmente por causa de B...ki, embora tivesse resistido muito. Aliás, todos eles me pareciam moralmente enfermos, biliosos, irritadiços, desconfiados. É compreensível: sofriam muito, muito mais do que nós. Estavam longe da sua pátria. Alguns deles cumpriam penas pesadas, de dez ou doze anos, mas o mais grave era que tinham ideias preconcebidas em relação às pessoas que os rodeavam, viam nos grilhetas só o lado animalesco e não podiam, nem queriam, procurar neles o lado positivo, humano, o que, aliás, também era compreensível: eram assim por força das circunstâncias, por vontade do destino. De certeza que, na prisão, se sentiam sufocados pela saudade. Com os tcherquesses, com os tártaros, com Issai Fomitch eram simpáticos e carinhosos; evitavam porém, com repulsa, todos os outros grilhetas. Destes, só o velho da antiga igreja de Starodúbie ganhara o seu pleno respeito. O curioso, aliás, foi que, durante todos os meus anos de prisão, nenhum recluso implicou com eles por causa da sua origem, da sua fé, das suas convicções, o que o nosso povo não costuma poupar aos estrangeiros, sobretudo aos alemães, embora não com muita frequência, ao que parece. Aliás, quanto aos alemães, o povo apenas se ri deles — o alemão, para o nosso povo simples, representa uma criatura profundamente cómica. Com os polacos, os grilhetas portavam-se até com respeito, muito mais do que connosco, os fidalgos russos, e não tocavam neles. Coisa em que eles se recusavam a reparar e em que não queriam refletir. Falei de T...ki. Foi ele quem, aquando da transferência da leva do seu primeiro local de deportação para o nosso forte, carregou durante quase todo o caminho com B...ki, quando este, fraco de saúde e de compleição, perdeu de todo as forças. O primeiro local de deportação deles foi a cidade de U...gorsk. Ali, segundo eles, estavam bem, isto é, muito melhor do que na nossa prisão. Porém, como começassem a trocar correspondência — uma correspondência, de resto, perfeitamente inocente — com deportados de outra cidade, as autoridades acharam por bem transferi-los para o nosso forte, para mais perto do olhar vigilante dos chefes. O terceiro camarada deles era Z...ki. Antes de chegarem todos estes polacos, M...ki estava sozinho na prisão. Imagino como fora angustiante para ele o seu primeiro ano de cumprimento da pena!

Z...ki era o velho que estava sempre a rezar e de que já falei. Todos os nossos prisioneiros políticos eram jovens, muito jovens, só Z...ki já passava dos cinquenta. Era um homem indubitavelmente honesto, mas um tanto estranho. Os seus camaradas B...ki e T...ki não gostavam dele, nem sequer falavam com ele, diziam que o homem era um teimoso e um desatinado. Não sei até que ponto tinham razão. Na prisão, como em qualquer outro lugar onde não é por sua livre vontade, mas à força, que as pessoas ficam juntas, é muito mais fácil, penso eu, entrar-se em conflito e alimentar ódios do que em liberdade. Aliás, Z...ki era de facto um homem bastante limitado e, talvez, desagradável. Os seus restantes camaradas também se davam mal com ele. Quanto a mim, nunca me zangava com ele, mas também não entrava em grandes amizades. Na sua matéria, a matemática, era um bom especialista, ao que parece. Lembro-me de que, durante muito tempo, tentou explicar-me, no seu russo macarrónico, um sistema astronómico inventado por ele. Ouvi dizer que o publicara, outrora, mas fora ridicularizado no mundo científico. Quer parecer-me que não regulava muito bem da cabeça. Rezava dias a fio, de joelhos, com o que ganhou o respeito geral dos grilhetas, que guardou até à hora da morte. Morreu na sequência de uma doença grave, no nosso hospital, na minha presença. Aliás, ganhara o respeito dos reclusos desde a primeira hora, depois de um caso com o nosso major. Quando em trânsito desde U...gorsk até ao nosso forte, não rapavam as cabeças nem faziam a barba aos reclusos, portanto, quando se apresentaram ao nosso major, este ficou furioso com tal violação do regulamento, de que eles não tinham, obviamente, culpa nenhuma.

— Olhem para o aspeto deles! — rugiu. — Como vagabundos, como bandidos!

Z...ki, que nesse tempo percebia mal o russo, pensou que se lhes perguntava quem eram: vagabundos ou bandidos? Por isso respondeu:

— Não somos vagabundos, mas criminosos políticos.

— O quêêê? Estás a querer ser grosseiro comigo? É isso? — rugiu o major. — Levai-o para o corpo da guarda! Cem vergastadas, imediatamente!

Castigaram o velho. Deitou-se sem discutir, cravou os dentes no braço e aguentou a punição sem o mínimo grito ou gemido, sem se mexer. Entretanto, B...ki e T...ki já tinham entrado na prisão, onde M...ki os esperava ao portão e se precipitou ao encontro deles, embora não os conhecesse. Emocionados, contaram-lhe o que acontecera a Z...ki. Lembro-me de como M...ki me contou a história: «Estava fora de mim, andava-me a cabeça à roda, tremia como se tivesse sezões. Esperei por Z...ki ao pé do portão, tinha de passar por lá quando saísse do corpo da guarda onde estavam a castigá-lo. De repente, abriu-se a cancela. Z...ki, sem olhar para ninguém, com o rosto branco e os lábios lívidos e trementes, passou ao lado dos grilhetas reunidos no terreiro e que já sabiam que tinha sido açoitado um fidalgo, entrou na caserna, foi direito ao seu lugar, ajoelhou-se e começou a rezar. Os reclusos estavam impressionados e, mesmo, comovidos. Quando vi o velho, já de cabelo branco, que deixara a mulher e os filhos na pátria, quando o vi de joelhos, castigado vergonhosamente, a rezar, corri para as traseiras das casernas e, durante duas horas, fiquei ali como um louco, frenético...» Os reclusos, desde então, começaram a respeitar muito o Z...ki e a tratá-lo sempre com educação. Gostaram, principalmente, de ele não ter gritado na sessão de açoitamento.

É preciso, no entanto, dizer toda a verdade: por este exemplo não se pode julgar sobre o trato que as autoridades davam aos deportados de origem nobre, fossem quem fossem tais deportados — russos ou polacos. Este caso mostra apenas que podia calhar-nos um homem cruel e, é claro, se se tratasse de um comandante superior num lugar recôndito, o destino do deportado, caso o tal comandante lhe ganhasse ódio, seria péssimo. No entanto, é de admitir que as autoridades superiores na Sibéria, das quais depende a atitude de todos os outros comandantes, são muito prudentes em relação aos fidalgos deportados e, às vezes, tentam atenuar a situação destes comparativamente aos restantes grilhetas, os do povo. As causas de tal atitude são claras: em primeiro lugar, os chefes superiores também são fidalgos; em segundo lugar, já tem havido casos em que os fidalgos não se deitaram pacificamente para serem açoitados, mas se atiraram aos executores, acontecendo coisas terríveis; em terceiro lugar, o mais importante, parece-me: há muito tempo, trinta e cinco anos atrás, chegou à Sibéria, de uma só vez, um grande número de deportados nobres, e foram esses deportados que, durante três décadas, granjearam uma reputação tal, por toda a Sibéria, que as autoridades, por um velho hábito hereditário, olhavam no meu tempo para os criminosos fidalgos de determinada categorias de modo diferente do que olhavam para todos os outros deportados. Na peugada dos chefes superiores, habituaram-se a vê-los assim também os chefes subalternos, imitando essa atitude e sujeitando-se a ela. No entanto, muitos desses chefes subalternos, os mais broncos, censuravam mentalmente as ordens dos superiores e ficariam muito contentes se lhes permitissem fazer as coisas à sua maneira. Simplesmente, nem sempre lhes permitiam tais coisas. Tenho todas as razões para pensar assim, e são elas as que se seguem. A segunda categoria de trabalhos forçados, a que eu pertencia e era composta por reclusos dos fortes sob comando militar, era incomparavelmente mais dura do que as outras duas categorias — a terceira (fabril) e a primeira (das minas). Era mais dura não só para os fidalgos, mas para todos os reclusos, precisamente porque a organização e o comando desta categoria eram exclusivamente militares, muito semelhantes aos das companhias militares correcionais na Rússia. Os chefes militares são mais rigorosos, as ordens mais severas, os reclusos andam sempre com grilhetas, sempre com escolta, são sempre fechados nas casernas, o que não existe, com tanto rigor, nas outras duas categorias. Assim, pelo menos, diziam muitos dos nossos reclusos, e entre eles havia pessoas experientes. Todos eles gostariam muito de ir para a primeira categoria, que pela lei era considerada a mais dura, e muitas vezes sonhavam com isso. Ora, das companhias correcionais, toda a gente que passou por elas falava com terror e assegurava que em toda a Rússia não havia nada mais terrível do que os fortes onde elas existiam e que, em comparação com elas, a Sibéria era um paraíso. Portanto, se em condições tão severas como as da nossa prisão, com a chefia militar controlada pelo próprio general-governador e tendo em conta, além disso, alguns casos de personalidades oficiais de fora que, por maldade ou excesso de zelo, denunciavam secretamente às instâncias superiores que tais e tais comandantes desleais eram demasiado indulgentes para com os criminosos de determinada categoria — portanto, dizia eu, se num lugar como este viam os presos de origem fidalga com outros olhos, tal significa que na primeira e na terceira categoria os fidalgos tinham ainda mais privilégios. Em resumo, pelo lugar onde cumpri a minha pena, acho que posso formar uma opinião, neste aspeto, sobre toda a Sibéria. Todos os rumores e todas as conversas que chegavam aos meus ouvidos, neste particular, pela boca dos reclusos da primeira e da terceira categorias, confirmavam esta minha conclusão. De facto, os chefes da nossa prisão tratavam-nos, aos fidalgos, com mais atenção e cuidado. Relativamente ao trabalho e ao mantimento, não gozávamos de quaisquer vantagens: os mesmos trabalhos, as mesmas grilhetas, as mesmas casernas fechadas à chave, numa palavra, as mesmas condições para todos. Também, seria impossível atenuar alguma coisa. Sei que nesta cidade, naquela época tão recente e tão remota, havia tantos delatores, tantas intrigas, tantas pessoas a fazerem a cama umas às outras, que os chefes, naturalmente, tinham medo das denúncias. E, nessa época, o que poderia ser mais temível do que uma denúncia sobre pretensas vantagens dadas a determinada categoria? Portanto, todos tinham receios, e nós vivíamos nas mesmas condições que os restantes grilhetas; no entanto, relativamente aos castigos corporais, encontrávamo-nos, de certo modo, numa situação privilegiada. Na verdade, açoitar-nos-iam sem problemas se o merecêssemos, ou seja, se cometêssemos qualquer infração à ordem. Exigia-o o dever de serviço e da igualdade perante o castigo corporal. Só que não nos açoitariam por nada, sem motivo, ao passo que era habitual tratar desse modo os reclusos simples, sobretudo por parte de certos comandantes subalternos que gostavam de aplicar medidas coercivas a qualquer pretexto. Sabíamos, por exemplo, que o comandante do nosso forte, quando foi informado do caso do velho Z...ki, ficou muito indignado e fez uma repreensão ao major para que, de futuro, não ultrapassasse os limites. Assim me contava toda a gente. Todos os nossos sabiam, também, que o próprio general-governador, que confiava no nosso major e até gostava dele como homem cumpridor e com certas capacidades, ao tomar conhecimento da história, fez-lhe também uma admoestação. E o nosso major teve isso em consideração. Por exemplo, por mais que lhe apetecesse tramar M...ki, a quem ganhara ódio graças às calúnias de A..., não podia mandar vergastá-lo, embora não desistisse de procurar um pretexto, o perseguisse e implicasse com ele. Do que se passou com Z...ki, toda a cidade veio a saber muito depressa, e a opinião geral era contra o major; muitas pessoas o censuraram, algumas de modo bastante desagradável. Lembro-me agora do meu primeiro encontro com o major. Ainda em trânsito, em Tobolsk, assustaram-nos, a mim e a mais um deportado fidalgo, com os relatos sobre o mau feitio do homem. Os mais velhos deportados fidalgos, que já levavam vinte e cinco anos de deportação e que nos receberam com grande simpatia, não nos abandonando durante todo o tempo em que estivemos no campo de trânsito, preveniram-nos contra o nosso futuro chefe e prometeram fazer todos os possíveis, através dos seus conhecidos, para nos defenderem das suas perseguições. De facto, três filhas do general-governador, vindas da Rússia de visita ao pai, receberam cartas deles e, pelos vistos, falaram com o pai a nosso favor. Mas o que podia fazer o general-governador? Limitou-se a dizer ao major que não exagerasse. Passava das duas da tarde quando eu e o meu camarada chegámos à cidade, tendo-nos os guardas da escolta levado de imediato ao nosso senhor todo-poderoso. Ficámos no átrio à espera dele. Entretanto, já tinham ido chamar o sargento. Chegou o sargento, e também o major. A sua cara rubra, raivosa e cheia de pontos negros causou-nos uma impressão bastante desagradável: como se uma aranha maldosa viesse ao encontro da pobre mosca que caíra na sua teia.

— Como te chamas? — perguntou ao meu camarada. Falava muito depressa, brusca e entrecortadamente e, pelos vistos, queria impressionar-nos.

O meu camarada respondeu.

— E tu?

Respondi.

— Sargento! Leva-os imediatamente ao corpo da guarda, que lhes rapem a cabeça à civil, só metade, amanhã que lhes ponham outras grilhetas. Que capotes são esses? Onde os receberam? — perguntou de chofre, ao reparar nos capotes cinzentos com círculos amarelos nas costas que nos tinham fornecido em Tobolsk. — Isso é farda nova, não? Tem de ser um fardamento novo... ainda em fase de projeto... em Petersburgo... — dizia ele, mandando-nos rodar sobre nós próprios. — Não trazem nada com eles? — perguntou bruscamente ao guarda nacional que nos escoltava.

— Saiba vossa senhoria que têm a roupa pessoal — respondeu o guarda, esticando-se todo e estremecendo. Todos conheciam o major, a todos assustava.

— Expropriar-lhes tudo. Deixar-lhes só a roupa interior, só roupa branca, mas retirar tudo o que for de cor. Vender tudo em leilão. Registar o dinheiro no espólio. Recluso não tem propriedade — disse, olhando para nós com severidade. — Faço votos de que vos porteis bem! Que eu não oiça nada de vós! Senão... cas-ti-go cor-po-ral! Ao mínimo descarrilamento: vergasta!...

Por falta de hábito, aquela receção deixou-me quase doente toda a tarde. Essa impressão agravou-se com as coisas que, logo a seguir, vi dentro da prisão; de resto, já falei sobre a minha entrada na prisão.

Mencionei já que, no trabalho, não nos davam nem se atreviam a dar-nos quaisquer vantagens sobre os outros. Só uma vez tentaram fazê-lo: eu e o B...ki trabalhámos durante três meses no escritório de engenharia como escrivães. Mas isso foi feito como que em segredo, pelos chefes da engenharia. Ou seja, os outros chefes também estavam ao corrente, mas fingiam que não sabiam de nada. Aconteceu nos tempos do chefe G... O tenente-coronel G... apareceu, como caído do céu, e ficou pouco tempo — não mais do que meio ano, salvo erro, ou ainda menos — e voltou para a Rússia, tendo causado uma incrível impressão em todos os reclusos. Não era só gostarem dele — adoravam-no, se fosse possível utilizar ali esta palavra. Como o conseguiu, não sei, mas conquistou toda a gente à primeira vista. «É nosso pai! Mais do que nosso pai!» — diziam dele os reclusos, volta e meia, durante todo o tempo em que ele comandou os trabalhos de engenharia. Parece que era um pândego terrível. Baixote, com um olhar atrevido, seguro de si. Ao mesmo tempo, porém, carinhoso com os reclusos, quase até aos mimos, parecendo de facto gostar deles como um pai. Não sei dizer por que seria tão afetuoso com os reclusos, só sei que, ao passar por um, não lhe faltava com uma palavra alegre e carinhosa, não deixava de trocar piadas com ele e, o principal: nada havia de autoritário nisso, nada que indiciasse desigualdade ou paternalismo. Era nosso igual, camarada em todos os sentidos. Entretanto, apesar desse seu democratismo instintivo, os reclusos jamais se permitiram qualquer falta de respeito ou familiaridade para com ele. Pelo contrário. O rosto do preso irradiava, os olhos brilhavam-lhe de prazer quando viam o tenente-coronel; tirava o chapéu e olhava com um sorriso para o seu chefe que se aproximava. E, se este falava com o recluso, então era uma festa. É incrível como podem existir pessoas tão populares. O tenente-coronel tinha um ar de galhardia, um andar garboso e firme. «Uma águia!» — diziam dele os reclusos. Evidentemente, não podia suavizar-lhes a vida: apenas mandava nos trabalhos de engenharia que, como aconteceria sob a alçada de qualquer outro chefe, seguiam o seu curso normal, estabelecido de uma vez por todas. Apenas, quando encontrava nas obras uma equipa de reclusos que já tinham acabado o trabalho, não os obrigava a ficar e deixava-os ir embora antes do sinal do tambor. Os reclusos apreciavam aquela confiança que o chefe tinha neles, aquela ausência de mesquinhez e de irritação, aquele tom nada insultuoso no trato. Acho que, se ele perdesse mil rublos no caminho, o pior dos nossos ladrões que os achasse devolver-lhos-ia. Sim, tenho a certeza disso. Com que emoção os nossos reclusos souberam que o seu chefe-águia se zangara de morte com o odiado major! Aconteceu logo no primeiro mês da sua estada. O nosso major fora, outrora, colega dele. Depois de tanto tempo sem se verem, iam para a pândega juntos, como amigos. De repente, romperam a amizade. Zangaram-se, e G... tornou-se inimigo mortal do major. Ouvi dizer que, nesse dia, até se engalfinharam, o que acho muito possível: o nosso major andava muito à pancada. Quando os reclusos souberam disso, a sua alegria foi infinita. «Alguma vez o Sete-Olhos podia conviver com ele? Ele é uma águia, e o outro...» A palavra que se seguia é imprópria para letra de imprensa. Tinham grande curiosidade em saber quem levara a melhor na briga. Se esse boato da rixa se revelasse infundado (o mais provável), seria, de certeza, um grande desgosto para os nossos reclusos. Entretanto, garantiam: «O nosso chefe levou a melhor, de certeza, é pequeno mas valente; o outro, para fugir dele, meteu-se debaixo da cama.» Mas G... foi-se embora e os reclusos voltaram à tristeza. O certo era que os nossos chefes da engenharia foram todos bons: no meu tempo de pena, passaram por lá três ou quatro; mas os reclusos diziam que «nunca haverá nenhum como ele, era uma autêntica água e protegia-nos». Foi esse G... que gostou muito de nós, fidalgos, e que acabou por nos pôr na secretaria, a mim e ao B...ki. Quando se foi embora, o arranjo manteve-se, organizado de outra maneira ainda melhor. Entre os engenheiros havia alguns (sobretudo um deles) que simpatizavam muito connosco. Lá íamos todos os dias, copiávamos papéis — a nossa letra até começou a aperfeiçoar-se —, quando, de repente, chegou de cima a ordem urgente: recambiar-nos para os trabalhos anteriores — alguém nos denunciara! Aliás, para nós não foi mau: começávamos a aborrecer-nos com aquele trabalho de secretaria. Depois, durante quase dois anos, andámos juntos no mesmo trabalho, a maior parte das vezes nas oficinas. Conversávamos, falávamos das nossas esperanças e convicções. B...ki era uma excelente pessoa, só que às vezes tinha ideias esquisitas, coisas só dele. Há uma categoria de pessoas, muito inteligentes, aliás, que concebem ideias completamente paradoxais. Entretanto, sofrem tanto por elas, pagam por elas um preço tão alto que se lhes torna impossível e demasiado doloroso desistir delas. B...ki ouvia com amargura cada objeção minha e respondia-me causticamente. De resto, até talvez tivesse mais razão do que eu em muitas coisas, mas acabámos por separar-nos, o que para mim foi muito doloroso: tínhamos passado juntos por muitas vicissitudes.

Entretanto, M...ki, com a passagem dos anos, ia-se tornando mais triste e soturno. Dominava-o a angústia. Antes, nos primeiros tempos da minha reclusão, era mais sociável, abria mais a alma. Quando cheguei à prisão, M...ki já ia no seu terceiro ano. De início, interessava-se muito pelos acontecimentos que tinha havido no mundo nesses dois últimos anos e de que não tinha informação nenhuma, fechado que estava na prisão; interrogava-me, ouvia-me, emocionava-se. Para o fim, porém, tudo isso começou a concentrar-se-lhe no íntimo, a pesar-lhe no coração. As brasas cobriam-se de cinzas. A exacerbação das coisas crescia nele cada vez mais. Je haïs ces brigands — repetia muitas vezes, olhando com ódio para os reclusos que eu já tivera tempo de conhecer melhor, e todos os meus argumentos a seu favor eram inúteis para ele. Nem atentava nas minhas palavras, concordando comigo distraidamente, mas no dia seguinte voltava à carga: Je haïs ces brigands. A propósito: falávamos muitas vezes em francês e, por causa disso, um capataz, o soldado de engenharia Draníchnikov, sabia-se lá por que razão, alcunhara-nos de «fercheles»41. M...ki só se animava quando recordava a mãe. Dizia: «Está velha e doente, gosta mais de mim do que de tudo no mundo, e eu nem sequer sei se ainda é viva. Para ela, já foi demais saber que me passaram pelos paus no meio das fileiras...» M...ki não era fidalgo e, antes da deportação, sofrera um castigo corporal. Ao lembrar-se disso cerrava os dentes e olhava para o lado. Nos últimos tempos começou a isolar-se cada vez mais, a andar sozinho. Uma manhã, passava das onze, chamaram-no ao comandante. O comandante saiu ao seu encontro com um sorriso alegre.

— Então, M...ki, com que sonhaste esta noite?

«Estremeci — diria depois M...ki —, apertou-se-me o coração.»

— Sonhei que tinha recebido uma carta da minha mãe — respondeu.

— Melhor, melhor! — disse o comandante. — Estás livre! A tua mãe fez uma solicitação... o pedido dela foi aceite. Aqui está a carta dela, e aqui está a ordem de soltura. Sais imediatamente da prisão.

Voltou à caserna pálido, ainda não caíra em si da surpresa. Agarrava-nos nas mãos com as dele, frias, trementes. Muitos reclusos davam-lhe os parabéns e estavam contentes por ele.

Ficou a viver na nossa cidade como colono deportado. Depressa foi colocado no serviço. Nos primeiros tempos ia muitas vezes visitar-nos ao forte, levando-nos notícias frescas, sempre que as havia. Mostrava grande interesse por tudo, sobretudo pelos acontecimentos políticos.

Dos restantes quatro fidalgos, ou seja, além de mim, de M...ki, de T...ki, de B...ki e de Z...ki, dois eram ainda muito jovens e estavam a cumprir penas curtas; pouco cultos, mas honestos, simples e sinceros. O terceiro, A...cukowski, era um simplório desinteressante; quanto ao quarto, B...m, homem já de certa idade, causava-nos a todos uma péssima impressão. Não sei como pôde ir parar à nossa categoria de prisioneiros — de resto, ele próprio o negava. Era uma alma rude, pequeno-burguesa, com hábitos e noções de pequeno mercador que enriquecera enganando os clientes copeque a copeque. Não tinha qualquer instrução nem quaisquer interesses para além do seu ofício. Era pintor de paredes, mas um pintor extraordinário, magnífico. Depressa as autoridades descobriram os seus talentos, e toda a cidade começou a chamar B...m para que pintasse paredes e tetos. Em dois anos, pintou quase todos os apartamentos de habitação social do Estado. Os ocupantes dos apartamentos pagavam-lhe do seu próprio bolso, e B...m vivia na abastança. O melhor, no meio disso tudo, foi que começaram a mandar outros camaradas trabalhar com ele. Dos três que o acompanhavam sempre, dois aprenderam o ofício com ele, e o outro, T...zewski, começou a pintar nada pior do que B...m. O nosso major, que também ocupava uma casa do Estado, mandou igualmente B...m pintar-lhe as paredes e os tetos. Aí, B...m esmerou-se; ficou um brinco, nem a casa do general-governador se lhe comparava. A casa era de madeira, de um piso, bastante decrépita e muito gasta por fora, mas por dentro ficou um palácio, o major estava encantado... Esfregava as mãos e dizia que, «agora sim», se casaria sem falta: «Com um apartamento destes é impossível continuar solteiro» — acrescentava com toda a seriedade. Estava cada vez mais satisfeito com B...m e, por arrastamento, com os que trabalhavam com ele. O trabalho em sua casa durou um mês inteiro. Durante esse mês, o major mudou completamente de opinião sobre os nossos nobres e começou a conceder-nos a sua proteção. A um ponto tal que, um belo dia, mandou que lhe levassem Z...ki a casa.

— Z...ki! — disse o major —, insultei-te. Mandei-te vergastar injustamente, eu sei. Estou arrependido. Compreendes? Eu, eu estou arrependido!

Z...ki disse que compreendia.

— Estás a compreender que eu, eu, teu chefe, te chamei para te pedir desculpa? Estás a senti-lo? Quem és tu comparado comigo? Um verme! Menos do que um verme: és um recluso! E eu sou major por vontade de Deus42. Major! Compreendes?

Z...ki disse que, também isso, ele compreendia.

— Pois bem, agora estou a fazer as pazes contigo. Mas será que o sentes, que o sentes em toda a plenitude?

Foi o próprio Z...ki quem me contou toda esta cena. Portanto, até mesmo nesse homem bêbado, insensato e desatinado havia um certo sentimento humano. Tendo em consideração as suas noções da vida e o baixo nível do seu desenvolvimento, é mesmo possível atribuir a este ato uma espécie de magnanimidade. De resto, o seu estado de embriaguez deve ter contribuído em muito para aquele seu procedimento.

O sonho do major não se realizou: não se casou, embora a decisão tivesse sido praticamente tomada quando acabaram de arranjar o seu apartamento. Em vez de casamento, foi parar ao tribunal e foi-lhe mandado que apresentasse o seu pedido de passagem à reserva. Nesse processo, lembraram-lhe também todos os seus pecados antigos. Se não me engano, ele fora antigamente chefe da administração da cidade... Aquilo foi para ele um golpe inesperado. Na prisão, a notícia foi recebida com um júbilo enorme. Foi uma festa! O major, dizem, chorava como uma velha campónia, banhava-se em lágrimas. Mas, que remédio. Foi para a reserva, vendeu a sua parelha, depois o resto dos bens — caiu na miséria. Encontrávamo-lo depois na rua, de sobrecasaca paisana coçada, de boné com penacho. Olhava para os reclusos com raiva. Mas, mal ficou sem farda, perdeu todo o efeito que causava dantes. De farda, era ameaçador, era Deus. De sobrecasaca, era uma nulidade, parecia um lacaio. É impressionante o que a farda pode ser para algumas pessoas.

41 Deturpação popular da palavra alemã Feldscher, utilizada em russo para designar o auxiliar médico. (NT )

42 Expressão literal que, aliás, no meu tempo, era utilizada não só pelo nosso major, mas também por muitos chefes subalternos, sobretudo pelos que provinham de cargos subordinados. (Nota do Autor )


9

A fuga

Pouco tempo depois da substituição do major, aconteceram mudanças radicais na nossa prisão. Foram liquidados os trabalhos forçados e, em vez deles, instituída uma companhia correcional do departamento militar, com organização baseada nas outras companhias correcionais da Rússia. Significava isso que deixavam de trazer para a nossa prisão os reclusos deportados da segunda categoria. A prisão começou a encher-se com presos apenas do departamento militar, isto é, com pessoas que não estavam privadas dos seus direitos civis, soldados como outros quaisquer, só que castigados, que cumpriam penas leves (até seis anos) e, quando saíam da prisão, voltavam para os seus batalhões na qualidade de soldados rasos como antes. Porém, os reincidentes condenados que voltavam à prisão apanhavam, como outrora, penas de vinte anos. De resto, já antes tínhamos uma secção de reclusos da categoria militar, mas só estavam misturados connosco por não haver outro sítio para eles. Na nova modalidade, toda a prisão se tornara de categoria militar. É evidente que os antigos grilhetas civis, privados de direitos, marcados a ferro e com o cabelo rapado só numa metade da cabeça continuaram na prisão até ao final das suas penas; civis novos é que já não entravam, e os antigos terminavam de cumprir as respetivas penas e iam-se embora; portanto, no prazo de uns dez anos, não ficaria nenhum dos chamados grilhetas. A secção especial ainda se manteria aberta, e seriam para lá mandados os condenados por crimes graves do departamento militar até à abertura na Sibéria de um campo de trabalhos forçados mais duros. Assim, pode dizer-se que a nossa vida continuava como dantes: o mesmo mantimento, os mesmos trabalhos e quase o mesmo regulamento — só mudara a chefia e tornara-se mais complexa. Foi nomeado um oficial superior, comandante de companhia, e mais quatro oficiais subalternos, que estavam sempre de serviço, rotativo, dentro da prisão. Desapareceram os veteranos inválidos; em vez deles foram recrutados doze sargentos e um quartel-mestre. Os reclusos foram divididos em grupos de dez, foram designados «cabos» entre os próprios reclusos (só de nome, é claro), e Akim Akímitch, evidentemente, tornou-se logo cabo. Toda esta nova organização, com todos os seus cargos e reclusos, ficou, como antes, sob a chefia soberana do comandante. Foi só isso que aconteceu. Naturalmente, a princípio os reclusos estavam muito preocupados, discutiam, especulavam e estudavam os novos chefes; mas quando viram que, no fundo, ficara tudo na mesma, acalmaram-se, e a nossa vida retomou o seu curso rotineiro. A única coisa digna de nota foi que nos libertáramos do major — com isso, todos suspiraram de alívio e se animaram. Já não andavam com aquele seu ar assustado, cada qual sabia agora que, em caso de necessidade, poderia esclarecer as coisas com o chefe e que só por engano poderia ser punido um inocente em vez do culpado. Até a vodka continuava a traficar-se do mesmo modo, pelo mesmo sistema de antes, apesar de os inválidos terem sido substituídos pelos sargentos. Esses sargentos, na sua maioria, eram pessoas decentes e espertas que compreendiam bem a sua situação, embora alguns, nos primeiros tempos, quisessem alardear poder tratar os reclusos como soldados — por falta de experiência, evidentemente. Porém, depressa perceberam como se passavam as coisas. Aos que demoravam a perceber, foram os próprios reclusos quem lhes explicou a essência da questão. Aconteciam alguns casos bastante rudes: por exemplo, aliciavam e embebedavam um sargento, e depois, confidencialmente, faziam-lhe ver que bebera com eles, portanto... Por fim, os sargentos começaram a olhar para aquilo tudo com indiferença, ou melhor, a não olhar quando os reclusos traficavam balões de vodka. Mais ainda: tal como os antigos inválidos, os sargentos é que faziam as compras aos reclusos no mercado — kalatches, carne de vaca, etc. —, ou seja, tudo o que podiam introduzir na prisão sem qualquer risco. Para que foram feitas todas essas mudanças, para que instalaram a companhia correcional — isso não sei. Aconteceu já nos últimos anos da minha pena, tive de viver dois anos sob o novo regime...

Terei de escrever sobre toda essa vida, sobre todos os meus anos de prisão? Não me parece. Se anotasse tudo por ordem, tudo o que me aconteceu, tudo o que vi e experimentei nesses anos, seria possível escrever três ou quatro vezes mais capítulos do que os que foram escritos, mas tal descrição tornar-se-ia, naturalmente, demasiado monótona. Todas as aventuras teriam o mesmo tom, sobretudo se o leitor, pelos capítulos anteriores, já tivesse podido formar uma noção própria mais ou menos pertinente da vida de um prisioneiro da segunda categoria. O que eu queria era apresentar toda a nossa prisão e tudo o que vivi durante esses anos num quadro nítido e concreto. Não sei se consegui o meu intento, nem sou eu quem poderá julgá-lo. Tenho, porém, a certeza de que posso acabar aqui a minha narração. Além disso, as minhas recordações amarguram-me muito. Nem sequer sou capaz de me lembrar de tudo. Os anos que ainda me faltavam como que se me enevoaram na memória. Muitas circunstâncias — tenho a certeza disso — foram esquecidas completamente. Lembro-me de que todos esses anos, tão semelhantes uns aos outros, passavam mole e tristemente. Lembro-me de que todos esses longos e enfadonhos dias eram tão monótonos como as gotas de água a pingarem do telhado depois da chuva. Lembro-me de que apenas o desejo de renovação, de renascimento para uma nova vida me dava forças para ter paciência e não perder as esperanças. Acabei por encontrar em mim essas forças: esperava, contava os dias um a um e, apesar de ainda me faltarem mil dias, ia-os descontando com prazer, despedindo-me deles, sepultando-os e ficando feliz com o despontar de mais um dia, feliz porque já não me faltavam mil mas novecentos e noventa e nove. Lembro-me de que, durante todo esse tempo, apesar de estar com centenas de companheiros, me sentia muito solitário e acabei por me afeiçoar a essa solidão. Espiritualmente solitário, revia toda a minha vida passada, recordava tudo até ao último pormenor, analisava o meu passado, julgava-me a mim mesmo, severa e implacavelmente, e às vezes até abençoava o destino por me ter mandado tal solidão, sem a qual não seria possível esse julgamento de mim próprio nem a revisitação severa da minha antiga vida. Então, com que esperanças palpitou o meu coração! Pensava, decidia e jurava a mim mesmo que não mais haveria na minha vida os erros e as quedas que me tinham acontecido no passado. Delineei para mim todo um programa de futuro e decidi segui-lo com firmeza. Renasceu em mim a fé cega de que o cumpriria, de que seria capaz de o cumprir... Esperava, clamava pela liberdade; ansiava por experimentar as minhas forças na luta nova. De vez em quando dominava-me uma impaciência convulsa... Mas dói-me recordar agora o meu estado de ânimo daquele tempo. É claro que tudo o que escrevi é apenas um problema meu, pessoal... Escrevi-o, porém, porque me parece que qualquer um o compreenderá, porque a mesma coisa acontecerá a qualquer um que vá parar a uma prisão na flor da idade para cumprir uma pena de muitos anos...

Ora bem, não vale a pena insistir no assunto!... O melhor é eu contar mais alguma coisa, para que a narrativa não acabe com demasiada brusquidão.

Passou-me pela cabeça que alguém poderá perguntar: será que era impossível fugir da prisão correcional, será que, durante todos esses anos, ninguém se evadiu? Escrevi atrás que um recluso, depois de dois ou três anos de prisão, começa já a dar grande valor a esses anos e, involuntariamente, chega à conclusão de que o melhor será cumprir o restante da pena sem sarilhos, sem arriscar, e depois sair da prisão para o colonato de um modo legal. Tal cálculo, porém, só cabe na cabeça de um recluso condenado a uma pena relativamente ligeira. O condenado a uma pena muito pesada, no entanto, talvez estivesse disposto a arriscar... Porém, na nossa prisão, tal problema não se colocava. Talvez porque o medo fosse muito, ou a vigilância demasiado rigorosa, militar, ou o relevo da nossa localização (estepe aberta) não fosse propício para a fuga — é difícil dizer. Acho que todos estes factores tinham a sua influência. De facto, era complicado fugir do nosso forte. Entretanto, aconteceu na minha presença um caso de evasão: dois reclusos arriscaram a fuga, e eram dois dos criminosos mais importantes...

Depois de ter sido substituído o nosso major, A... (aquele que espiava para ele) ficou completamente sozinho, sem proteção. Era ainda muito jovem, mas o seu caráter ia-se fortalecendo e estabilizando com a passagem do tempo. No geral, era um homem atrevido, resoluto e, até, muito esperto. Se o deixassem sair em liberdade continuaria a espiar e a fazer todo o género de negociatas obscuras, mas já não se deixaria apanhar de modo tão estúpido e imprudente como dantes, em que pagou com a deportação pela sua estupidez. Praticava também, na nossa prisão, a falsificação de passaportes. Ouvi isso entre os nossos reclusos, pelo que não posso afirmá-lo com toda a certeza. Diziam que fazia coisas desse género quando ainda frequentava a cozinha do major e que, obviamente, teria sacado os lucros possíveis deste negócio. Numa palavra, era capaz de arriscar tudo para «mudar o seu destino». Tive oportunidade de conhecer um pouco a sua alma: o cinismo do homem chegava até a um descaramento revoltante, até ao escárnio frio, e provocava uma repulsa insuperável. Admito mesmo que, se lhe apetecesse muito beber meio quartilho de vodka e se fosse possível arranjá-la só degolando uma pessoa, ele degolá-la-ia sem hesitar se fosse possível fazê-lo à socapa e sem que ninguém soubesse. Na prisão, aprendeu a ser calculista... Foi este homem que atraiu a atenção do recluso Kulikov, da secção especial.

Falei já de Kulikov. Já não era muito jovem, mas ainda temperamental, com grande capacidade de sobrevivência, forte e com outras capacidades extraordinárias e variadas. Tinha forças para viver e queria ainda viver; pessoas assim querem viver até à mais profunda velhice. Então, se eu me espantasse pelo facto de ninguém empreender a fuga, espantar-me-ia em primeiro lugar o Kulikov não o tentar. No entanto, Kulikov arriscou. Não sei quem influenciou mais a quem — se A... a Kulikov, se Kulikov a A...; valiam-se um ao outro e, para uma tal aventura, eram pessoas que combinavam bem. Travaram amizade. Parece-me que Kulikov contava com que A... forjasse os passaportes. A... era de origem nobre, saído da boa sociedade, o que prometia algumas variações nas futuras aventuras, bastava chegar à Rússia. Ninguém sabia de que modo chegaram a acordo nem qual seria o grau das suas esperanças; mas, decerto, tais esperanças ultrapassariam a rotina normal da vagabundagem fugitiva siberiana. Kulikov era ator por natureza, podia escolher e representar os mais variados papéis da vida. Para pessoas assim, a prisão é opressora. Portanto, combinaram a fuga.

Porém, era impossível fugir sem a conivência de um soldado da escolta. Era necessário convencer algum a fugir com eles. Num dos batalhões do nosso forte havia um polaco, homem enérgico e, talvez, digno de melhor destino, já de certa idade, sério e valente. Na sua juventude, mal começou o seu serviço na Sibéria, fugiu por ter grandes saudades da pátria. Foi apanhado, castigado e metido por dois anos nas companhias correcionais. Quando o devolveram ao exército como soldado, ganhou juízo e começou a servir zelosamente. Distinguiu-se e foi promovido a cabo. Era um homem vaidoso, convencido e que dava um alto valor a si próprio. E tinha mesmo aquele ar da pessoa que se tem em alto apreço. Encontrei-o várias vezes, quando ele fazia parte da nossa escolta. Também os nossos polacos me falavam dele. Creio que a sua antiga saudade se transformara em ódio, um ódio oculto, silencioso, permanente. Era um homem capaz de ousar tudo, e Kulikov não se enganou ao escolhê-lo. Chamava-se Koller. Combinaram tudo, marcaram o dia. Era já no tempo quente, em junho. O clima, nesta cidade, é bastante regular: o tempo, no verão, é invariavelmente quente, coisa muito conveniente para o vagabundo. Era óbvio que não podiam fugir diretamente do forte: a cidade ficava numa colina, aberta de todos os lados. A toda a volta, num espaço bastante amplo, não havia floresta. Era preciso mudar de roupa, vestir-se à civil e, para tal, alcançar de imediato um arrabalde onde Kulikov, desde havia muito, tinha um covil. Não sei se os seus amigalhaços do arrabalde estavam a par do segredo deles. É de supor que sim, embora mais tarde, durante o processo, isso não tivesse ficado muito claro. Naquele ano, num dos recantos do arrabalde, iniciava a sua carreira uma rapariga jovem e bastante bonita, de alcunha Vanka-Tanka, que prometia muito e, em certo sentido, realizaria posteriormente o que se esperava dela. Tinha mais uma alcunha: a Fogueira. Parece que também estava metida nesta história. Kulikov andara já a esbanjar dinheiro com ela todo o último ano. Os nossos valentões saíram de manhã para a chamada e arranjaram maneira, habilmente, de serem mandados com o recluso Chílkin, pedreiro e estucador, estucar as casernas vazias do batalhão; os soldados dessas casernas havia muito que tinham ido para os acampamentos. A... e Kulikov foram com Chílkin como serventes. Koller arranjou as coisas de maneira a escoltá-los. Pelo regulamento, três reclusos deveriam ser escoltados por dois soldados: a Koller, como militar veterano e cabo, deram facilmente um jovem recruta, para ser instruído. Portanto, vemos desde já que os nossos fugitivos tinham grande influência em Koller e que este acreditava neles, arriscando segui-los depois de tantos anos de serviço militar, ainda por cima, nos últimos anos, bem-sucedido.

Era perto das seis da manhã quando chegaram às casernas. Não estava lá mais ninguém. Depois de trabalharem uma hora, Kulikov e A... disseram a Chílkin que iam à oficina para, primeiro, se encontrarem com alguém e, segundo, para buscarem uma ferramenta qualquer que faltava. Com Chílkin, precisavam de ser espertos, ou seja, o mais naturais possível. Chílkin era moscovita, popular de condição, pedreiro e mestre construtor de fogões, manhoso, astuto, inteligente, de poucas falas. De aspeto físico, era fraco e mirrado. Nascera para andar toda a vida de colete e roupão, à maneira moscovita, mas o destino decidira de outro modo e, depois de ínvios caminhos, viu-se metido na prisão, para sempre, na secção especial, ou seja, na categoria dos mais perigosos criminosos militares. Não sei como forjara tal carreira; nunca se notava nele grande descontentamento, era por natureza sossegado, sem excessos; só às vezes se embebedava como um sapateiro, mas mesmo nisso se portava bem. Não estava, evidentemente, a par do que se preparava, mas estava atento, com o olhar penetrante. Kulikov insinuara-lhe sem dúvida que iam buscar vodka, supostamente guardada na oficina já desde a véspera. Chílkin ficou convencido e deixou-os ir sem suspeitar de nada, ficando a sós com o jovem recruta; entretanto, Kulikov, A... e Koller dirigiram-se para o arrabalde.

Passou meia hora, ninguém voltava, e Chílkin, alarmado, começou a ter dúvidas. Era um homem com uma dura experiência da vida. Começou a lembrar-se: Kulikov estava num estado de ânimo esquisito, A... cochichou com ele duas vezes, Kulikov piscou-lhe olho duas vezes... Chílkin reparara nisso, já se lembrava. Koller também parecia um pouco estranho: pelo menos, antes de sair com eles, pôs-se a dar instruções ao recruta sobre a maneira de proceder na ausência dele, o que não era de todo natural nem próprio de Koller. Numa palavra, quanto mais Chílkin esforçava a memória, tantas mais suspeitas tinha. Entretanto, o tempo passava, eles não voltavam, a preocupação de Chílkin atingia os limites extremos. Percebia muito bem o que arriscava neste caso: as suspeitas dos chefes poderiam recair sobre ele. Poderiam pensar que os deixara ir sabendo de tudo, por acordo mútuo; e, se demorasse muito a comunicar o desaparecimento de A... e Kulikov, essas suspeitas seriam ainda mais prováveis. Não podia perder tempo. Nisso, lembrou-se de que, ultimamente, Kulikov e A... andavam muito amigos, cochichavam muito um com o outro, passeavam muitas vezes juntos nas traseiras das casernas, longe de todos os olhares. Recordou que já nessa altura desconfiara deles... Olhou perscrutadoramente para o soldado que ficara como sua escolta; o rapaz bocejava, apoiando-se na espingarda, e limpava o nariz com o ar mais inocente deste mundo; então, Chílkin, sem se dignar transmitir-lhe os seus pensamentos, disse-lhe simplesmente que o seguisse para a oficina de engenharia. Na oficina, era preciso perguntar se os homens tinham passado por lá. Verificou-se que ninguém ali os vira. Todas as dúvidas de Chílkin se dissiparam: «Se fossem simplesmente beber e pandegar para o arrabalde, o que Kulikov às vezes fazia... Mas não, não podia ser isso. Nesse caso avisavam-me, não valia a pena escondê-lo.» Assim pensava Chílkin. Largou o trabalho e foi direito à prisão.

Eram já quase nove horas quando se apresentou ao sargento-ajudante e lhe declarou o que acontecera. Este assustou-se e nem queria acreditar. É claro que Chílkin lhe comunicara tudo isso apenas como suposição e suspeita. O sargento-ajudante correu diretamente ao major. O major, ao comandante. Um quarto de hora depois estavam a ser tomadas todas as medidas necessárias. Foi feito um relatório ao próprio general-governador. Os criminosos eram importantes e esse facto poderia dar azo a uma grave repreensão de Petersburgo. Fosse correto ou não, o certo é que A... estava incorporado nos criminosos políticos; quanto a Kulikov, era da «secção especial», ou seja, um arquicriminoso, ainda por cima militar. Ainda nunca acontecera qualquer evasão da «secção especial». Foi evocado, a propósito, o regulamento: cada recluso da secção especial deve ser acompanhado para o trabalho no exterior por dois guardas de escolta ou, ao menos, por um. Tal regra não fora cumprida. Poderia resultar daí toda uma história desagradável. Foram mandados estafetas para todas as circunscrições e para todas as vilas circunvizinhas com a notícia da fuga e a descrição dos fugitivos. Começou a caça ao homem: mandaram os cossacos em sua perseguição. Escreveram também para os distritos e para as províncias vizinhas... Numa palavra, o pânico era grande.

Entretanto, na nossa prisão, as emoções eram de outro género. Os reclusos, à medida que chegavam dos trabalhos, ficavam ao corrente do sucedido. A notícia já se propagara por todo o lado e por todos. Toda a gente recebia a notícia com uma alegria enorme e profunda. A todos tremia o coração... Além de o caso interromper a monotonia da vida prisional e «mexer no formigueiro», a fuga, uma fuga dessas, ecoava de modo familiar em todas as almas e tocava fundo em cordas havia muito esquecidas; uma espécie de esperança, de coragem, de possibilidade de mudar o destino despertar em todos os corações. «Se esses fugiram... então por que não...?» E cada um se animava com este pensamento e olhava com desafio para os outros. Pelo menos, todos mostravam um repentino orgulho e olhavam de alto para os sargentos. Os chefes, é claro, correram de imediato para a prisão. Chegou também o próprio comandante. Os nossos faiscavam, olhavam com orgulho, com garbo e, até, com um certo desprezo e uma imponência taciturna e severa, como quem diz: «Nós é que sabemos fazer as coisas.» É claro que a nossa gente previra a visita dos chefes todos. Previra também as inevitáveis rusgas e buscas e, de antemão, escondera tudo bem escondido. Sabe-se que os chefes, nestes casos, são bons a tomar medidas tardias. Foi o que aconteceu: houve uma grande azáfama, revolveram tudo, mexeram em tudo — e não encontraram nada, naturalmente. Os reclusos foram mandados para os trabalhos da tarde sob escolta reforçada. No princípio da noite, os guardas entravam na prisão a cada minuto e, contra o costume, faziam mais uma chamada e enganavam-se na contagem duas vezes mais do que o habitual. Como resultado, novo afobamento: enxotaram toda a gente para o terreiro e fizeram uma nova chamada. Depois, mais uma nas casernas... Em resumo, muito trabalho.

Entretanto, os reclusos sentiam-se muito bem. Tinham todos um ar muito independente e, como é hábito nestes casos, portaram-se com muita decência durante toda essa tarde. «Para que não possam repreender-nos por nada.» Era óbvio que os chefes pensassem: «Não estarão dentro da prisão os cúmplices dos fugitivos?» — e mandaram espiar e escutar os reclusos. Mas estes apenas se riam. «Nestes casos não se deixam cúmplices atrás!» «Estas coisas fazem-se à socapa, só assim!» «O Kulikov e o A... seriam homens para não apagarem as pistas todas? Aquilo foi feito com mão de mestre, não há pista por onde se pegar. Esses rapazes já passaram por muito, são capazes também de passar até pelas portas fechadas.» Em suma, a fama de Kulikov e A... cresceu, toda a gente se orgulhava deles. Sentia-se que a façanha dos fugitivos ficaria na memória das gerações futuras de reclusos, que sobreviveria à existência da própria prisão.

— São mestres! — diziam uns.

— Pensavam eles que daqui ninguém foge. Fugiram, sim!... — acrescentavam outros.

— Pois fugiram! — replicava um, olhando à volta com um ar autoritário. — Mas quem fugiu?... Achas que são da tua laia?

Noutra ocasião, o recluso a quem eram dirigidas estas palavras ripostaria e defenderia a sua honra. Mas dessa vez calou-se modestamente. «É claro, nem todos são como Kulikov e A..., temos de dar provas primeiro...»

— É verdade, irmãos, que vida é a nossa aqui? — assim interrompeu o silêncio outro recluso, sentado modestamente junto à janela da cozinha; falava numa voz um pouco cantante, cheia de um sentimento lânguido, com uma certa autossatisfação, apoiando a face na palma da mão. — O que somos nós aqui? Vivemos e não somos pessoas, morremos e não somos defuntos. Eh-eh!

— A pena a cumprir não é um sapato. Não é só tirá-la do pé. «Eh-eh!» o quê?

— Mas bem estais a ver que o Kulikov... — intrometeu-se um dos fogosos, rapazinho jovem e bisonho.

— O Kulikov! — replicou de imediato o outro, olhando de soslaio e com desdém para o jovem moncoso. — O Kulikov!...

Queria dizer: será que há muitos Kulikov?

— O A... também é esperto, irmãos, e bem esperto.

— Então não é? Esse levará de vencida o próprio Kulikov. É um artista!

— Já estarão longe, a esta hora? Era isso que eu queria saber, irmãos...

A seguir, começaram as especulações: teriam ido para longe? Para que lados? Para onde seria melhor eles irem? Que distrito fica mais perto daqui? Havia pessoas que conheciam a zona. Ouviam-nas com curiosidade. Falaram dos habitantes das aldeias vizinhas e chegaram à conclusão de que era gente que não convinha, que morava muito perto da cidade e não lhes facilitaria a vida, antes os apanhariam e os entregariam.

— Aqui, irmãos, o mujique é bravo! Ui, ui, que mujique!

— Mujique danado!

— Siberiano, orelhas azedas. Cais-lhe nas mãos, mata.

— Mas olha que os nossos também...

— É claro, ainda vamos ver quem leva a melhor. Os nossos também não são fáceis.

— Se formos vivos, veremos.

— O que achas? Que os apanham?

— Acho que nunca mais os apanham! — respondeu outro, dos fogosos, batendo com o punho na mesa.

— Humm. Nesse particular, tudo depende do destino.

— Sabeis o que eu penso, irmãos? — disse Skurátov. — Se eu fosse vagabundo, nunca me apanhavam.

— Tu?

Todos riram, alguns deram mostras de nem quererem ouvir. Mas Skurátov já não se calava.

— Nunca na vida me apanhavam! — continuou energicamente. — Penso nisso muitas vezes e até me admiro: nem que me enfiasse numa racha, nunca me deixaria apanhar.

— Pois não! Se calhar, quando tivesses fome, não ias buscar pão ao mujique, pois não?

Risos gerais.

— Pão? É o ias!

— Bazófias! Esqueces-te de que tu e o tio Vássia estão cá dentro porque mataram a morte bovina43.

Os risos aumentaram. O olhar dos sisudos tornou-se ainda mais indignado.

— Estás a mentir! — gritou Skurátov. — Foi o Mikitka quem inventou essa patranha, e não foi sobre mim, mas sobre o Vasska, depois meteram-me no mesmo saco. Sou moscovita e temperado na vagabundagem desde pequeno. Ainda o sacristão andava a ensinar-me a ler, puxava-me a orelha e mandava-me repetir: «Meu Deus, sê misericordioso comigo, por Tua grande bondade...» E eu: «Levaram-me à polícia por Tua grande bondade...» Foi assim que comecei desde pequenino.

Todos desataram de novo a rir-se. Era o que Skurátov queria. Não podia passar sem palhaçadas. Mas depressa deixaram de lhe prestar atenção e voltaram às conversas sérias. Quem opinava, principalmente, eram os velhos e os conhecedores do assunto. Aos mais jovens e aos mais sossegados bastava-lhes o contentamento que sentiam, e apuravam o ouvido para as conversas dos outros; acumulou-se uma grande multidão na cozinha; os sargentos, evidentemente, não estavam presentes — à frente deles, não se falaria bem assim. Entre os mais contentes, reparei num tártaro, Mametka, pequenino, de maçãs do rosto salientes, uma figura muitíssimo cómica. Quase não falava russo nem percebia o que diziam os outros, mas também assomava a cabeça do meio da multidão, e ouvia, ouvia com prazer.

— O que é, Mametka, iakchi44 — dirigiu-se-lhe Skurátov, vendo-se rejeitado por todos.

— Iakchi, ui-ui, iakchi! — murmurou o Mametka, todo animado, acenando a Skurátov com a cabeça engraçada. — Iakchi!

— Não os apanham? Iok45?

— Iok, iok! — e Mametka pôs-se a tagarelar, gesticulando energicamente.

— Quer dizer, minha mentir, tua não perceber, é isso?

— É isso, iakchi! — confirmou Mametka, acenando com a cabeça.

— Então, iakchi!

E Skurátov, dando-lhe uma pancada no chapéu e enfiando-lhe até aos olhos, saiu da cozinha todo contente, deixando Mametka um pouco baralhado.

Durante uma semana continuou o rigor reforçado na prisão e, nos arredores da cidade, as perseguições e as buscas. Não sei como, mas os reclusos recebiam rápida e fidedignamente toda a informação sobre as manobras das autoridades fora da prisão. Nos primeiros dias, todas as notícias eram a favor dos fugitivos: não havia qualquer pista, tinham desaparecido mesmo e pronto. Os nossos só se riam. O destino dos fugitivos não os assustava. «Não os encontram, não vão apanhá-los!» — diziam com ares vaidosos.

— Não há nada!

— Adeus, queridos, até mais ver!

Sabiam também que haviam sido mobilizados para as buscas todos os camponeses das aldeias vizinhas, que tinham debaixo de olho todos os lugares suspeitos, florestas e barrancos.

— É inútil — riam-se os reclusos —, os rapazes têm alguém e estão em casa dele.

— Têm, pois, disso não há dúvida! — diziam outros. — Não são parvos, tinham tudo preparado de antemão.

Foram ainda mais longe nas suas conjeturas: que os reclusos talvez estivessem ainda escondidos no arrabalde, nalguma cave, aguardando até passar o «alarme» e lhes crescer o cabelo. Deixam-se lá ficar meio ano, ou um ano, e depois vão-se embora nas calmas...

Numa palavra, o estado de ânimo geral era quase romântico. De repente, oito dias depois da fuga, espalhou-se o rumor de que fora encontrada uma pista. Tal rumor absurdo, como é óbvio, foi rejeitado com desprezo. Porém, nessa mesma noite, o rumor confirmou-se. Os reclusos começaram a preocupar-se. No dia seguinte, de manhã, já se falava na cidade de que os fugitivos tinham sido apanhados, que estavam já a ser levados para o forte. Depois do almoço, souberam mais pormenores: tinham sido capturados a setenta verstás da prisão, na aldeia tal. Por fim, chegou a notícia certa. O sargento-ajudante, de volta da casa do major, anunciou que os homens seriam levados diretamente para o corpo da guarda ao fim da tarde. Já era impossível duvidar. É difícil descrever a impressão causada aos reclusos pela notícia. Primeiro irritaram-se, depois desanimaram. A seguir, começou a despontar alguma ironia, um certo gozo. Por fim começaram a rir-se abertamente, já não dos perseguidores, mas dos capturados — primeiro só alguns, depois quase todos, com exceção das pessoas sérias e firmes, de pensamento independente e a quem era impossível influenciar com gozos. Olhavam com desdém para a chusma leviana e calavam-se.

Enfim, na mesma medida com que antes exaltavam Kulikov e A..., humilhavam-nos na hora da desgraça, e até se deleitavam a humilhá-los. Era como se os capturados tivessem humilhado toda a gente. Contava-se, com desdém, que tinham tanta fome que não aguentaram e foram à aldeia com a intenção de pedirem pão aos mujiques. Aquilo era o último grau de humilhação para um vagabundo fugitivo. Porém, tais histórias não eram verdadeiras. O que na realidade aconteceu foi que tinham seguido com êxito a pista dos fugitivos: estavam escondidos na floresta, e a floresta foi cercada por todos os lados. Os fugitivos não tinham salvação, entregaram-se. Para eles, não havia mais nada a fazer.

Ora, quando ao fim da tarde os guardas-civis os trouxeram, de pés e mãos atados, toda a prisão correu à paliçada para ver o que fariam com eles. Naturalmente, não se viu nada além das carruagens do major e do comandante junto ao corpo da guarda. Os fugitivos foram metidos numa cela isolada, agrilhoados, e, logo no dia seguinte, foram entregues ao tribunal. Todos aqueles gozos e desprezo por parte dos reclusos cessaram de imediato: tinham sido inteirados dos pormenores e ficado a saber que os fugitivos não tinham outra saída senão entregar-se. Todos, sem exceção, com a dor na alma, começaram então a seguir o processo judicial.

— Vão apanhar mil pauladas — diziam alguns.

— Qual mil! — replicavam outros. — Vão espancá-los até à morte. Talvez o A... apanhe mil pauladas, sim, mas ao outro matam-no, porque é da secção especial.

Não acertaram. A... foi condenado a apenas quinhentas: tomaram em consideração o seu anterior comportamento satisfatório e a inexistência de antecedentes. Kulikov apanhou, se não me engano, mil e quinhentas. Foi um castigo bastante misericordioso. Os dois, como homens atinados que eram, não injuriaram ninguém em tribunal, falaram com clareza e exatidão, depondo que tinham fugido diretamente sem passarem por qualquer lado. De quem eu tinha mais pena era do Koller: perdeu tudo, até às últimas esperanças, e foi castigado com mais dureza do que os outros — duas mil pauladas, parece, e foi enviado para outro lugar como preso. A... foi castigado suavemente, com piedade, valeram-lhe os doutores. Mas fanfarronava e dizia em voz alta no hospital que, a partir daí, estava pronto para tudo, correria todos os riscos. Kulikov, como sempre, portava-se decentemente e, quando regressou à prisão, tinha o ar de quem jamais se ausentara dela. Porém, os reclusos já o viam com outros olhos: apesar de Kulikov, sempre e por todo o lado, saber manter a sua dignidade, os reclusos, no fundo das suas almas, deixaram de ter-lhe tanto respeito e começaram a tratá-lo com mais familiaridade. Resumindo, depois da fuga, a glória de Kulikov perdeu o brilho. O êxito significa muito para as pessoas...

43 Ou seja, mataram um mujique ou uma campónia, suspeitando de que estes lhe deitaram um bruxedo pelo ar para matar o gado. Tínhamos um assassino destes na prisão. (Nota do Autor)

44 Está bem (tártaro). (NT )

45 Não (tártaro). (NT )


10

A saída em liberdade

Tudo o que contarei a seguir aconteceu já no último ano de cumprimento da minha pena. Esse último ano ficou gravado na minha memória com quase tanta nitidez como o primeiro, sobretudo os seus últimos dias. Não vale a pena recordar os pormenores. Lembro-me apenas de que, durante esse ano, apesar de toda a minha impaciência em terminar a pena o mais depressa possível, a minha vida era mais fácil do que em todos os outros anos que passara ali dentro. Em primeiro lugar, já tinha muitos amigos entre os reclusos, que tinham chegado, definitivamente, à conclusão de que eu não era má pessoa. Muitos deles eram leais para comigo e gostavam de mim sinceramente. O batedor quase chorou quando se despedia de mim e do meu camarada na hora da nossa libertação; e quando, depois de soltos, vivemos ainda um mês na cidade, numa casa do Estado, o batedor visitava-nos quase todos os dias, só para nos ver. Havia, contudo, alguns indivíduos severos e antipáticos até ao fim, a quem, ao que parece, custava muito trocar uma palavra comigo — só Deus sabe porquê. Parecia haver uma divisória entre nós.

Nos últimos tempos, de uma maneira geral, tinha mais privilégios do que em toda a minha vida prisional passada. Na cidade descobri, entre os militares, alguns conhecidos meus e, até, antigos colegas da escola. Reatei relações com eles. Graças a essas pessoas, podia ter mais dinheiro comigo, escrever para a terra e, mesmo, ler alguns livros. Havia já muitos anos que eu não lia nada, e é difícil descrever a impressão estranha e fascinante que me causou a primeira publicação que li na prisão. Lembro-me de que comecei a lê-la ao fim da tarde, quando fecharam a caserna, e não parei de ler até de madrugada. Era um número de uma revista. Parecia-me uma coisa do outro mundo: toda a minha vida passada se abriu perante mim, nítida e deslumbrante, e eu tentava descobrir, pelo que lia, até que ponto me distanciara, ficara atrasado dessa vida, quanta coisa tinha sido vivida sem mim, o que emocionava no momento as pessoas dessa vida, que problemas tinham. Agarrava-me às palavras, lia nas entrelinhas, tentava achar um sentido secreto, alusões ao passado; procurava vestígios daquilo que outrora, no meu tempo, emocionava as pessoas; e era triste para mim compreender que, na realidade, eu era alheio à vida atual, estava desligado dela. Tinha de habituar-me ao novo, de conhecer a nova geração. Com um ardor especial, atirava-me ao artigo assinado por algum conhecido ou amigo meu dos outros tempos... Mas já apareciam também nomes novos, que me apressava a conhecer com avidez, sentindo desgosto por ter tão poucos livros, por ser tão difícil arranjá-los. Dantes, no tempo daquele nosso major, era perigoso ter livros na prisão. Em caso de busca, haveria os inevitáveis interrogatórios: «Donde vieram os livros? Onde os arranjaste? Tens, portanto, contactos?...» E o que poderia eu responder a tais perguntas? Por isso, vivendo sem livros, mergulhava involuntariamente em mim mesmo, fazia-me perguntas e tentava responder a elas, torturava-me às vezes por causa de tais perguntas... É difícil explicar tudo isso!...

Entrei na prisão no inverno, por isso devia sair em liberdade também no inverno, na mesma data em que entrei. Com que impaciência esperava pelo inverno, com que prazer via, no fim do verão, as folhas a murcharem nas árvores e as ervas amarelarem na estepe. Já passara o verão, começava a uivar o vento outonal; eis a primeira neve, que cai em flocos leves... Por fim, chegou o inverno tão esperado! Ao pressentimento da liberdade, o meu coração batia às vezes com tanta força! Porém, começava também a acontecer-me uma coisa estranha: quanto mais tempo passava e mais se aproximava o fim do tempo, mais paciente ia ficando. Nos últimos dias até me espantei comigo mesmo e me censurei: raios, estava a ficar absolutamente frio e indiferente. Muitos dos reclusos que encontrava no terreiro nas horas livres punham-se a falar comigo, a dar-me os parabéns:

— Já não falta muito, paizinho Aleksandr Petróvitch, para sair em liberdade. Vai deixar-nos sozinhos, órfãos.

— E para si, Martínov, ainda falta muito?

— Oh, para mim! Pois falta... sim, senhor! Ainda vou amargar por cá mais sete anos...

E suspirava, parava, olhava distraidamente, como que a espreitar para o futuro... Sim, muita gente dava-me os parabéns, com alegria e sinceridade. Pareceu-me que toda a gente começara a ser mais simpática comigo. K...cinski, dos fidalgos polacos, homem sossegado e meigo, também gostava de andar pelo terreiro nas horas livres. Depois das noites abafadas e insalubres nas casernas, tentava conservar a saúde com o ar livre e os passeios. Disse-me uma vez com um sorriso, ao encontrar-se comigo durante um passeio: «Espero com impaciência a sua libertação. Quando o senhor sair daqui, eu também terei a certeza de que me faltará apenas um ano até à minha liberdade.»

Quero observar de passagem que, em consequência do hábito de sonhar e do esquecimento da vida livre, na prisão a liberdade parece mais livre do que é na realidade. O recluso sobrestima a liberdade real, e isso, no presidiário, é coisa natural. A ordenança maltrapilha, mas livre, de um oficial é vista na prisão quase como um rei, como um ideal de homem livre em comparação com os reclusos, porque não lhe rapam a cabeça, anda sem grilhetas e sem escolta.

Na véspera do último dia, ao crepúsculo, percorri ao longo da paliçada toda a nossa prisão, pela última vez. Quantos milhares de vezes eu fiz o mesmo percurso durante tantos anos! Aqui, nas traseiras das casernas, vagueava no primeiro ano da minha reclusão, solitário, desfeito. Lembro-me de como, nesses tempos, contava os milhares de dias que ainda me faltavam. Meu Deus, há quanto tempo isso foi! Aqui, neste cantinho, viveu cativa a nossa águia; ali encontrava-me muitas vezes com o Petrov. Esse, também não me largava na véspera da minha saída. Vinha a correr ter comigo e, como se adivinhasse os meus pensamentos, punha-se a andar em silêncio ao meu lado, como que espantado com alguma coisa. Despedi-me mentalmente das paredes de troncos enegrecidos das nossas casernas. Que impressionantes, feias e antipáticas elas me pareciam outrora, nos primeiros tempos. Também, decerto, envelheceram desde então, mas para mim não era notório. E quanta vida jovem não foi sepultada inutilmente dentro dessas paredes, quantas forças incríveis não se perderam em vão! Porque é preciso dizer tudo até ao fim: este povo prisioneiro era extraordinário. Era talvez a parte mais forte, mais talentosa de todo o nosso povo. Mas pereceram em vão forças gigantescas, de uma maneira anormal, ilegítima, irrecuperável. Por culpa de quem?

Isso mesmo, por culpa de quem?

Na manhã seguinte, muito cedo, ainda antes da saída para os trabalhos, quando o dia mal despontava, passei por todas as casernas para me despedir de todos. Foram-me estendidas com simpatia muitas mãos calosas e fortes. Alguns apertavam-me a mão com força, com muita amizade, mas não foram muitos. Compreendiam muitíssimo bem que, dentro de instantes, eu me tornaria outra pessoa, bem diferente deles. Sabiam que eu tinha conhecidos na cidade, que iria de imediato ter com os senhores e me sentaria ao lado deles como igual entre iguais. Compreendiam e despediam-se de mim com simpatia e carinho, mas não como seu camarada, longe disso: despediam-se de um senhor. Alguns viravam-me a cara e, severos, não respondiam às minhas palavras de despedida. Alguns outros até me olharam com ódio.

Tocou o tambor, todos partiram para os trabalhos, só eu fiquei. Suchílov, nessa manhã, fora dos primeiros a levantar-se e a atarefar-se muito para ter tempo de preparar-me o chá. Pobre Suchílov! Chorou quando lhe ofereci os meus farrapos prisionais, as minhas camisas, as minhas proteções de couro para as grilhetas e algum dinheiro. «Não é disso, não é disso que eu preciso! — dizia, contendo a grande custo o tremor dos lábios. — O que me custa muito é perdê-lo a si, Aleksandr Petróvitch. Com quem vou ficar quando o senhor sair?» Despedi-me, pela última vez, também de Akim Akímitch.

— Também não lhe falta muito! — disse-lhe eu.

— Falta, ainda me falta muito — murmurou, apertando a minha mão entre as suas. Atirei-me ao pescoço dele, beijámo-nos.

Dez minutos depois da saída dos reclusos, saímos também nós, eu e o meu camarada com quem entrara na prisão — para não mais voltar. Era preciso ir à forja, para tirar as grilhetas. A escolta armada já não nos acompanhava, íamos com o sargento. Foram reclusos que nos tiraram as grilhetas, na oficina. Esperei enquanto tratavam do meu camarada, depois foi a minha vez de me aproximar da bigorna. Os ferreiros voltaram-me de costas para eles, levantaram-me a perna por trás, puseram o meu pé sobre a bigorna... Atarefavam-se, queriam fazer tudo com habilidade, o melhor possível.

— Vira primeiro o rebite, o rebite!... — mandava o mestre. — Agora põe-no assim, isso, assim mesmo... Bate agora com o martelo...

As grilhetas caíram. Levantei-as do chão... Queria pegar nelas, vê-las pela última vez. Como se me pasmasse a ideia de que, ainda um instante atrás, as tinha nos meus pés.

— Vá com Deus, vá com Deus! — diziam os reclusos com vozes entrecortadas, ásperas mas como que satisfeitas com alguma coisa.

Sim, com Deus! Liberdade, vida nova, renascer dos mortos... Que belo momento!

 

 

                                                                  Fiódor Dostoiévski

 

 

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