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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADERNOS DE LANZAROTE Diário II / José Saramago
CADERNOS DE LANZAROTE Diário II / José Saramago

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

3 de Janeiro de 1994

Zeferino Coelho regressou hoje a Lisboa. Enquanto cá esteve leu tudo quanto tenho escrito nos últimos tem­pos: estes Cadernos, o capítulo do Ensaio, as notas para as Tentações. Propôs-me levar já os Cadernos, para pu­blicar em Abril um primeiro volume. O trabalho que tive para contrariar-lhe a ideia não precisou de ser gran­de, mas obrigou-me a pensar sobre o que quero fazer, ou melhor, sobre a ordem por que haverão de sair es­tes livros, por enquanto ainda só promessas deles. Con­cluí que devo lançar-me de vez ao Ensaio e não ir buscar desculpas cómodas ao tempo que as Tentações e os Cadernos vão continuar a tomar-me. Nestas duas semanas pouco poderei adiantar (primeiro vem o José Manuel Mendes, depois aparecerá o João Mário Grilo com a equipa de filmagem), mas, passadas elas, terei de voltar ao trabalho, desviar os olhos deste céu, deste mar, destas montanhas. Contra o meu desejo, duramente. (Há dias saiu-me «brutalmente»... Enfim, palavras.)

 

Há que reconhecer, no entanto, que as circunstâncias não me têm ajudado nada a instituir e manter a disci­plina sem a qual escrever um romance se toma na mais penosa de todas as tarefas. Agora, por exemplo, chega­ram-me de Itália, de Massimo Rizzante, colaborador da revista L' Atelier du Roman, de Paris, as perguntas da entrevista que lhes prometi. Não se afastam do habitual (a questão do romance histórico, a questão das perso­nagens, a questão do narrador...), mas são nada menos que dezasseis, e todas a exigir resposta desenvolvida: aliás, muito simpaticamente, informam-me de que tenho quinze páginas da revista à minha disposição... Teria preferido que me pedissem concisão, síntese, poucas e claras palavras. Apetece-me mandar-lhes trinta páginas de vingativas respostas.

 

4 de Janeiro

Escreve-me António de Macedo, em nome da sua produtora de filmes, a Cinequanon, para saber se estou interessado em escrever o argumento de um audiovisual (tem-me custado a perceber exactamente o que haja de efectiva novidade por trás desta palavra da moda: se é audio, é para ouvir, se é visual, é para ver: mas não é isso o que já antes era, quando lhe chamávamos sim­plesmente documentário?) sobre os vinte anos do 25 de Abril. O projecto vem da Alemanha e, segundo as pa­lavras de António de Macedo, «é vontade expressa do co-produtor alemão [está também metida nisto a rede de TV francesa AR TÉ, a mesma que co-organiza o coló­quio de Paris, em Maio] que o texto seja escrito por um escritor português de renome, e foram eles mesmo que sugeriram o nome de José Saramago»... Tirando o «re­nome», o que isto quer dizer é que não me deixam respirar. Aceito? Não aceito?

 

Piedade!... Ao fim do dia telefonaram-me de Cuba: a UNEAC convida-me a participar na Feira do Livro de La Habana, já em Fevereiro... (Muito tenho abusado das reticências nestes últimos dias, eu que protesto contra estes e semelhantes arrebiques da sinalética gramatical.) Repito as perguntas de antes: aceito? não aceito? A mi­nha vontade é dizer-lhes que não, que não posso, mas aquela gente precisa tanto de ajuda que me interrogo se não será meu dever ir até lá.

 

5 de Janeiro

De Niterói escreve-me Katia da Matta Pinheiro, que está preparando a sua dissertação de mestrado em His­tória na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Diz­-me que escolheu para objecto de pesquisa o Memorial do Convento, desenvolvendo a hipótese, palavras suas, de que este romance encerra possibilidades como obra historiográfica. Conta-me das resistências que encontrou por parte dos professores de Literatura e de História, uns porque se estaria reduzindo a dimensão da obra de arte que é o romance, os outros porque se trata de uma fic­ção, e, como tal, não se identifica com a Historiografia. Argumentam estes (continuo a usar as próprias palavras de Katia) que o romance, enquanto obra ficcional, não mantém compromissos com o «real», nem teria «credi­bilidade» científica para tanto. Finalmente, uma historia­dora, quando da defesa preliminar do projecto, pôs em dúvida que a sociedade portuguesa do século XVIII es­teja efectivamente retratada no livro. Apesar de tantas e tão severas reservas, o projecto acabou por ser aprova­do como «promissor». Katia faz-me perguntas a que irei responder o melhor que possa.

Os professores têm razão, o autor do Memorial não escreveu um livro de História e não tem nada a certeza de que a sociedade portuguesa do tempo fosse, realmen­te, como a retratou, embora, até ao dia em que estamos, e já onze anos completos são passados, nenhum histo­riador tivesse apontado ao livro graves erros de facto ou de interpretação. Resta saber se é aí que se encontra o problema, se não estaria antes na necessidade de averi­guar que parte de ficção entra, visível ou subterrânea, na substância já de si compósita do que chamamos His­tória, e também, questão não menos sedutora, que sinais profundos a História, corno tal, vai deixando, a cada passo, na Literatura em geral e na ficção em particular. No presente estado de coisas, está claro que Katia ou­sou de mais, mas não é menos patente a timidez destes professores, assustados com a ameaça de ver apagada a fronteira que, na opinião deles, separa e sempre há-de separar a História e a Literatura. Começo a pensar que seria interessante incluir a História nos estudos de Li­teratura Comparada, para que depois pudesse escrever­-se uma História Literária da História... A ver o que dali SaIrIa...

 

A viagem a Cuba, nesta altura, complicar-me-ia a vida. Não tive mais remédio que avisar a UNEAC de que não poderei ir. Com pena, com muita pena. E não posso evitar pensar que esta talvez fosse a última opor­tunidade de tomar à Cuba socialista que respeito e ad­mIro.

 

6 de Janeiro

Pela segunda vez o impossível aconteceu. (A primei­ra foi quando Artur Albarran me telefonou para Paris.) Se chega a acontecer terceira, não sei o que sucederá à velha ordem do mundo. Foi o caso que na revista Cam­bio 16 desta semana apareceu um artigo assinado por Mário Ventura, desses que é costume escreverem-se por esta época sobre os desejos e votos para o ano que entra. Ou já entrou. Em dado passo pergunta-se o arti­culista se será neste ano de 1994 que a literatura por­tuguesa se verá contemplada com o Nobel, o que, evidentemente, não é novidade (refiro-me à pergunta), porque todos os anos alguém aparece a fazê-la, sem resultado que se veja. O insólito da história consiste em apresentar-se o artigo ilustrado com uma fotografia mi­nha, ainda por cima adornada com uma legenda que me associa ao suspiradíssimo prémio. Como se explica o inaudito acontecimento? Excluída terminantemente, por todas as razões conhecidas e por conhecer, a possibili­dade de que a inclusão da fotografia tenha sido da ini­ciativa do autor do artigo, fica apenas, com todos os visos de plausibilidade, a hipótese de que ela tenha sido colocada ali pela redacção da revista em Madrid, uma vez que a edição portuguesa de Cambio 16 é impressa em Espanha. José Manuel Mendes, que aqui veio para fazer-me uma entrevista, diz que o sucedido prova a existência de Deus. Para o articulista, provará com cer­teza a existência do Diabo...

 

7 de Janeiro

Reminiscências histórico-melancólicas. Durante sé­culos, como se tivessem sido testemunhas presenciais do milagre, os Portugueses acreditaram piamente que Cristo apareceu a D. Afonso Henriques antes da batalha de Ourique, garantindo-lhe não só ajuda imediata como protecção para o futuro, tanto para ele como para os seus descendentes. Os cronistas dizem que éramos pouquíssimos em comparação com a multidão dos mouros, afirmação que depois ganhou raízes, porque, no geral das guerras posteriores, até aos nossos dias, sempre foi ponto de honra nosso sermos menos que os adversários. A nossa força e a nossa coragem não ne­cessitam portanto de melhor demonstração. Quanto à ba­talha de Ourique, tirando-lhe o Cristo, terá sido igual às outras: uns morreram, outros não. Parece que o san­gue derramado foi muito, o que não admira. Se me perguntam como é que vejo o formidando e teológico combate, acho que foi uma lástima ter Cristo apareci­do somente ao nosso primeiro rei. É que podia ter apa­recido igualmente aos infiéis mouros, persuadindo-os à boa paz do seu erro e trazendo-os à verdadeira fé, en­tão ainda na pujança do seu primeiro milénio. Conver­tidos ao cristianismo, os antigos sequazes de Mafoma passariam a engrossar as nossas hostes e a colaborar na multiplicação dos Portugueses, graças ao que não teríamos começado uma pátria com essa lamúria pie­gas de sermos poucos. Já sei que os patriotas acodem sempre a rectificar: «Poucos, sim, mas bons.» E eu digo, suspirando: «Que bom seria se pudéssemos ser melho­res...»

 

8 de Janeiro

Chegaram-me ecos do desastre que terá sido a par­ticipação de Zita Seabra no programa de Manuela Moura Guedes. Entristece-me verificar como afinal va­lia tão pouco, intelectual e eticamente falando, alguém a quem os acasos e as necessidades políticas colocaram em funções e confiaram missões de responsabilidade dentro e fora do Partido. Que Zita Seabra se tenha de­sempenhado delas, nesse tempo, com coragem e digni­dade, não pode servir para disfarçar nem desculpar o seu comportamento actual. Zita Seabra é hoje o exemplo perfeito e acabado do videirinho, palavra suja que significa, segundo os dicionários e a opinião da gente hon­rada, «aquele que para chegar aos fins não olha aos meios nem hesita em humilhar-se e cometer baixezas». Ouço, leio, e chego a urna conclusão: esta mulher vai acabar mal.

 

9 de Janeiro

Assim são as coisas. Gabei-me aqui de não ter gas­to muito tempo a dissuadir o Zeferino Coelho da sua vontade de levar os Cadernos para os publicar já, e afinal o José Manuel Mendes levou ainda menos a con­vencer-me do contrário. Usou de um argumento para o qual não encontrei resposta: que as minhas dúvidas e hesitações quanto à oportunidade da publicação não se­riam aclaradas nem resolvidas pelo tempo, uma vez que o livro continuaria a ser, nesse e em todos os futuros, aquilo que é hoje: um comentário sem preconceitos so­bre casos e gente, o discorrer de alguém que quer dei­tar a mão ao tempo que passa, como se dissesse: «Não vás tão depressa, deixa um sinal de ti.» Compreendi que a relutância provinha só de um temor não confessado a enfrentar-me com reacções suscitadas por referências feitas nestas páginas a pessoas e procedimentos. Na verdade, ainda tenho muito que aprender com os escri­tores de barba dura, a quem nada faz recuar, como Vergílio Ferreira...

 

10 de Janeiro

De Jerusalém telefona-me a minha tradutora, Miriam Tivon, para me dar notícias do Evangelho (excelentes), mas sobretudo para informar-me de que um fotógrafo de Israel (dos melhores, segundo Miriam) quer convidar-me a escrever algo sobre fotografias suas, e de tudo, ima­gens e palavras, fazer depois um livro. Se lembrar que já tenho um compromisso com Amo Hammacher, o amigo holandês que aqui passará todo o mês de Feve­reiro a fazer fotografias para um livro seu e meu sobre Lanzarote, começarei a desconfiar que os fotógrafos deste mundo andam, sinistramente, a passar palavra uns aos outros...

 

11 de Janeiro

José Manuel Mendes partiu hoje, levando umas cinco ou seis horas de gravações. Não lhe invejo a sor­te, ter de desenredar de um discurso sempre digressivo e não raro caótico umas quantas ideias mais ou menos aproveitáveis que por lá se encontrem. Os entrevistadores implacáveis não são os que nos encostam à parede, seriam antes aqueles que reproduzissem tintim por tintim as incoerências, as contradições, as ambigui­dades de um falar cujas defesas formais e cujas reser­vas mentais se vão desmoronando à medida que a fadiga avança. O que vai valer, neste caso, é a amizade do José Manuel Mendes, dispostos, ela e ele, a endireitar um conceito torcido ou aplainar uma oração empenada.

 

Chegou carta de Jorge Amado. O Instituto de Letras da Universidade da Bahia organiza em Maio um encon­tro de tradutores e um seminário de ensino e aprendi­zagem de tradução para que serão convidados os mais importantes tradutores do português a outras línguas e uns quantos escritores ditos de renome (outra vez a pa­lavra), entre os quais se espera que venham a estar presentes García Márquez e este português de Lanzarote. Pilar e eu lemos a carta ao mesmo tempo, e quando chegámos ao fim ela perguntou-me: «Que viagens temos em Maio?» Ainda que não pareça decididamente explí­cito, foi uma maneira de dizer sim...

 

12 de Janeiro

Conversa com João Mário Grilo e Clara Ferreira Alves sobre o documentário - formato «Artes e Le­tras» - que Isabel Colaço teve a ideia de produzir. Haverá a inevitável entrevista, entrarão planos de Timan­faya, aparentemente nenhuma surpresa, porém, enquan­to ouvia o João Mário, ia-me maravilhando perante um discurso em que as palavras, no próprio momento da sua enunciação, e sem nada perderem da sua específica au­tonomia, se me propunham ao mesmo tempo como tra­dução de imagens, não porque as descrevessem, mas porque as «convocavam». Creio começar a perceber melhor como funciona a cabeça dos realizadores de cinema: eles sabem que o real não é uno, que se compõe de infinitos fragmentos, que nos olha com o olho mil vezes facetado da mosca, e então procedem segundo re­gras que parecem ter muito de aleatório, escolhendo, al­ternando, justapondo, constantemente oscilando entre a exigência de uma razão organizadora e a fascinação do caos.

 

Há dias de sorte. Tive hoje - 12 de Janeiro - a grata satisfação de receber do Gabinete das Relações Culturais Internacionais da Secretaria de Estado da Cul­tura um fax que se fazia acompanhar de uma carta da Fundación EI Libro, de Buenos Aires, datada de 13 de Setembro do ano passado, em que me convidam a par­ticipar na Feira do Livro que em Março ali se irá reali­zar. Deixo pois aqui, por muito merecido, um caloroso e entusiástico louvor ao dito Gabinete das Relações por ter levado apenas quatro meses a fazer-me chegar às mãos a carta dos argentinos. Não sonha o Gabinete que a Fundación El Libro, perplexa por não receber respos­ta minha, conseguiu, pelos seus próprios meios, desen­cantar-me aqui, motivo por que a Secretaria de Estado da Cultura pode continuar o interrompido sono, uma vez que o assunto foi resolvido sem ela.

 

13 de Janeiro

Diz o Gabinete das Relações Culturais Internacionais da Secretaria de Estado da Cultura que não teve culpa. Diz que o convite lhe foi comunicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros em 2 de Novembro e que imediatamente o transmitiu ao Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, «entidade vocacionada para as questões relacionadas com as feiras de livro e os con­tactos com escritores». Trata-se obviamente de uma vocação falhada, uma vez que o dito Instituto não deu um passo para comunicar comigo, e, pelos vistos, foi o próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros que veio a insistir, em 6 de Janeiro, por uma resposta, tomando finalmente o Gabinete das Relações a iniciativa de me enviar directamente cópia da carta da Fundación El Libro. Obrigado, Gabinete, obrigado. Ainda assim, ficará por averiguar (mas isso já seria enigma para um Poirot) como é que uma carta enviada em 13 de Setembro à Embaixada de Portugal em Buenos Aires (como me informou a Fundación) só em 2 de Novembro é que fez mover as engrenagens do Ministério dos Negócios Es­trangeiros...

 

17 de Janeiro

Durante quatro dias a casa esteve transformada num pequeno estúdio de cinema, com cabos eléctricos esten­didos pelo chão, focos que encandeavam, objectivas hipnotizantes, tripés, placas reflectoras, afinações de som e de imagem, medições da luz, mudanças de móveis e de roupas, deslocações de quadros, «silence, on tourne». No meio de tudo, obediente, dócil como um actor pou­co seguro do seu talento, eu respondendo às perguntas de Clara, eu escutando as recomendações de João Má­rio, eu esforçando-me por parecer inteligente na palavra, no gesto, na expressão. Foram-se embora hoje, levaram para Lisboa não sei quantas horas de gravações – só os tempos de entrevista, somados, dão mais de sete horas -, e eu ponho-me a imaginar o resultado de todo este trabalho. Terá valido a pena? Não que eu duvide da sensibilidade e do saber do João Mário Grilo, o que me pergunto é se terei feito bem em abrir, não tanto as portas da casa, que essas sempre estarão abertas para a gente honesta, mas as da minha vida, que até agora mal tinha deixado entreabrir...

 

18 de Janeiro

Uma entrevista que dei a Antena 3 Rádio, de Espa­nha, apareceu citada no Público, há dias. O tema era Lisboa Capital Cultural Europeia. Por razões muito se­melhantes às que me levaram em tempos a questionar a moda das Casas de Cultura, que, começando por apre­sentar-se como estimulantes de ambientes culturalmen­te abatidos, acabaram, com raríssimas excepções, por tornar-se solipsistas e autofágicas, manifestei naquela entrevista o meu desacordo de fundo: as «capitais cul­turais» - operação política que visa efeitos mediáticos e pouco mais - não só não mostram a situação cultu­ral efectiva de uma cidade e de um país, como, pelo contrário, a disfarçam com falsos brilhos, uma delgada capa de pintura que não tardará a estalar para pôr à vista a cinzenta realidade quotidiana. Farejando um escânda­lo, ainda que de tão pouca monta, o Público deu a sua ajuda, pondo na notícia um título com tanto de verda­de quanto de engano: José Saramago contra Lisboa Capital Cultural. Assim se desinforma o mundo e de­sorientam os leitores... Evidentemente, Vítor Constâncio e Jorge Sampaio não terão gostado nada das declarações do desmancha-prazeres, mas o tempo e os factos hão­-de vir a demonstrar-lhes que uma coisa é terem eles de fazer o que estão fazendo, por dever de ofício, e outra coisa seria acreditarem na sua própria e necessária cam­panha publicitária. Entretanto, graças à entrevista que dei a Juan Arias e que saiu em El País do dia 15, a pátria já terá algo mais com que entreter-se: aí digo que é difícil que possa haver uma cultura viva num país mor­to, como é o caso de Portugal, aí pergunto para que serve um país que depende, para viver, de tudo e de todos... A estas horas, já os patriotarrecas do costume devem andar por lá a rosnar contra o indigno e o ingra­to. Ou então, nada: tanto quanto a tristeza de que fala­va o Camões, também a beata satisfação de si próprio, essa em que anda a rebolar-se meia população, pode ser vil e apagada.

 

Proposta para um debate: de um ponto de vista cul­tural sério, sem confundir alhos com bugalhos, que projecção efectiva tem Lisboa no País de que é capi­tal?

 

19 de Janeiro

Uma carta vinda do Porto. Ao contrário do que em geral faço, não mencionarei nomes, quer de quem a escreveu quer das pessoas mencionadas nela. Não é a primeira vez que me aparece alguém a sugerir-me que escreva um romance sobre histórias que o meu corres­pondente, por uma razão ou outra, considera merecedo­ras de serem passadas ao papel. São episódios de antigas famílias aristocráticas (certamente por influência do Memorial e da subsequente .reputação de «romancista histórico» que me criaram), são casos de vidas mais ou menos exemplares, mais ou menos aventurosas, e hou­ve até um católico furioso que me desafiou a escrever uma vida de Lenine com a mesma negra tinta, dizia ele, com que tinha escrito a vida de Jesus...

Esta carta também vem pedir-me que escreva um livro. A diferença, em relação a outras, percebi-a eu subitamente quando, ao terminar a leitura, me senti como se tivesse a irrecusável obrigação de o escrever, como se algum dia houvesse assumido esse compromis­so e a carta estivesse a pedir-me contas da falta de cumprimento da minha palavra. A história é, simplesmente, a de um homem que já morreu. Dele dizem-me que era «magro, alegre, cínico, feroz, poeta», que quem o co­nheceu não o esquecerá nunca. Que a sua vida foi bela. Dizem-me também: «Alguém teria de contar isto. Você saberia, que acha? Como se faz um livro? Como se recria um personagem? Existe? Inventa-se? Ou pega-se em pequenos nadas de outras gentes e faz-se nascer um príncipe?» E mais: «Assim, esta vida ficaria a boiar no tempo, como a sua Jangada de Pedra, um outro Cristo evangelizador caseiro, sem as empolgantes subidas aos céus do catecismo.» E sugere: que se eu me decidisse a escrever o livro, se ele fosse um êxito, se ganhasse dinheiro, poderia dar alguma coisa à família necessita­da...

Termina dizendo: «Esta minha ideia é louca, mas não tenho outra - grande - de lembrar e homenagear o meu Amigo. Não sei escrever, não tenho dinheiro, não sei esculpir nem pintar a dor e o vácuo.»

Li a carta com um nó na garganta e quase não acre­ditava no que lia. Como é que se pode esperar tanto de uma pessoa, esta, ainda por cima com a inconfessada esperança de ser atendido? Claro que não farei esse livro (e como o faria eu?), mas sei que vou viver por uns tempos com o remorso absurdo de não o ter escri­to e de ser a causa inocente de uma decepção sem re­médio. Inocente porque estou sem culpa, mas então porquê esta impressão angustiosa de ter faltado a um dever?

 

Tomei algumas notas para a conferência que farei em Segóvia, no mês de Março. Terá o título Leituras e Realidades e disso mesmo constará, das «leituras da realidade», sejam elas as da Literatura, da Arte ou da História. Levarei para mostrar uma aguarela de Dürer, lerei a crónica que sobre ela escrevi em tempos, e direi em conclusão: «A aguarela de Dürer tenta responder à pergunta que a realidade lhe fez: "Que sou eu?" O tex­to tenta responder à pergunta da aguarela: "Que sou eu?", e, por sua vez, interroga-se a si próprio: "Que sou eu?" E tudo, como os rios vão ao mar, vai ter à per­gunta do homem, a mesma, a de sempre: "Eu, que sou?"» Ora, o acaso tinha querido que eu estivesse a ouvir, enquanto escrevia, o conjunto dos Estudos de Chopin, de que gosto muitíssimo e a que volto regular­mente. Parei uns minutos para dar atenção a um deles, e de súbito pensei que se alguém naquele momento me perguntasse com que peça musical é que me identifico mais, responderia sem hesitar: «Com o Estudo Opus 25, n. o 12, em Dó menor de Chopin, aí está o meu retra­to...» Reconheço que a pretensão é insuportável, mas não chega ao escândalo que teria sido responder: «Com a Paixão segundo S. Mateus, de Bach, nem mais nem menos»...

 

20 de Janeiro

Os cães já não ladram aos automóveis. Passaram a ladrar a quem anda a pé.

 

Micha Bar-Am é o nome do fotógrafo de Israel de quem me falou Miriam Tivon há uma semana. Traba­lha para a Magnum desde 1967, foi durante vinte e dois anos fotógrafo do New York Times, foi ou é ainda Con­servador de Fotografia do Museu de Arte Moderna de Tel-Aviv - e está a organizar uma exposição retrospec­tiva, além de um álbum para que pede a minha colabo­ração, o que ele chama «reflexões textuais» sobre imagens... Telefonou-me hoje para me dizer que está disposto a vir a Lanzarote para conversar, mostrar-me o seu trabalho - e tentar convencer-me. Confesso que este tipo de exercício literário não me desagrada, à parte que não seria a primeira vez: o mais recente caso foi o livro de Carlos Pinto Coelho, o mais remoto, que me lembre, já leva vinte e cinco anos em cima, no jornal A Capital. E as legendas da Viagem a Portugal, no fundo, não são outra coisa. Disse-lhe que viesse.

 

21 de Janeiro

Carmélia só traz boas notícias. Agora informou-nos de que o Teatro de Münster resolveu dar mais quatro récitas de Divara, acrescidas ao prolongamento da tem­porada que antes já tinha sido decidido. E que os bilhe­tes para todas elas, postos à venda num dia às 2 da tarde, estavam esgotados às 6... Que se sucedem as ca­sas cheias, que é a primeira vez (talvez não, mas assim lhe apetece dizer) que o Teatro ganha dinheiro com um espectáculo deste tipo. De entusiasmo, Carmélia mal podia falar. E eu, melancolicamente satisfeito, pensava em Portugal...

 

Julgava eu que a ingenuidade era apanágio dos igno­rantes, que, por saberem pouco, iam sem malícia pela vida, crédulos diante de todos os contos-do-vigário, e sempre inocentes como no seu primeiro dia. Verdade se diga, no entanto, que nestes tempos últimos comecei a suspeitar que as coisas não eram bem assim, tantos têm sido os competentes professores que vi darem o dito por não dito, tentando ajustar apressadamente opiniões no­vas aos factos de sempre, depois de terem andado a convencer-nos, durante anos e anos, de que um facto, por mais sólido e incontrolável que se propusesse, não poderia resistir a qualquer opinião que simplesmente o negasse. A história da denominada «construção euro­peia», por exemplo, é riquíssima destes e outros seme­lhantes equívocos. Porém, o que nunca esperei foi vir a ler alguma vez declarações como as que Claudio Magris faz em El País de ontem. Perguntado sobre a situação balcânica, o meu amigo Magris, depois de exprimir o seu desconcerto perante o que ele chama «a febril e delirante exigência de identidade em que vive­mos, da busca de raízes, do estabelecimento de frontei­ras», remata: «Todos críamos que era muito fácil superar rapidamente a História, mas a crise será longa. Neces­sitamos mais humildade, necessitamos saber que o peso da História é muito mais intenso do que pensávamos.» Leio e custa-me acreditar no que leio. Tanta inteligên­cia, tanto estudo, tanto saber, tanta erudição, para isto?

Terei de responder a Claudio Magris que nem todos criam que fosse fácil superar rapidamente a História? E que alguns, humildes de seu natural, mas com os pés bem assentes no chão concreto da realidade, pelo con­trário pensavam e pensam que a História não é superá­vel, que o homem não pode existir fora da História que faz e da História que é. Será que é preciso, afinal, sa­ber muito menos para compreender um pouco mais?

 

22 de Janeiro

Três num pé só: chegou o Evangelho em hebreu, chegou uma carta de um judeu de Israel que o lera em castelhano, chegou Micha Bar-Am. Ainda há dois dias lhe tinha dito que viesse, e já cá está. Conta-me que esteve em Lanzarote há 35 anos e que mal reconhece a ilha, e eu sugeri-lhe que volte a Timanfaya, onde o tem­po deve ter passado bem mais devagar. Trouxe, para me mostrar, duas caixas de fotografias acerca das quais pre­tende convencer-me a escrever três ou quatro páginas para o álbum que vai publicar por ocasião da exposição retrospectiva que está a organizar no Museu de Arte Moderna de Tel-Aviv. As fotografias são realmente boas. Custou-me a entender por que faz ele tanta ques­tão de que eu participe no livro, não obstante a abun­dância de explicações que deu, sendo a principal a impressão que lhe teria causado a leitura do primeiro capítulo do Evangelho, aquele mesmo que um crítico da terrinha diz não ter nada que ver com o que vem de­pois. Mais ou menos comprometi-me a escrever. Não podendo fazer um texto que abrangesse toda a diversi­dade temática da colecção (há paisagens, cenas de guer­ra, multidões, rostos), pedi-lhe que me enviasse uma série delas onde tivessem maior relevo e presença as mãos. Talvez a partir daí consiga escrever qualquer coisa suficientemente interessante. Não falámos de di­nheiros: nem ele os propôs nem eu os exigi. Dos dois, sou eu, sem dúvida nenhuma, em questões de negó­cios, o pior. Enquanto o ouvia, ia pensando: «Este ho­mem fez toda esta viagem. Como é que vou pedir-lhe dinheiro?»

 

23 de Janeiro

David Hurovitz se chama o israelita que me escre­veu. Envia-me um livro seu, publicado em castelhano por uma editora de Tel-Aviv, e, pela informação biográ­fica nele incluída, fico a saber que nasceu na Argentina, em 1924, e vive desde 1951 em Israel. Ainda na Argen­tina, estudou durante três anos num seminário hebreu. Depois mudou de rumo, formou-se como técnico mecâ­nico, e mais wde como engenheiro. Em Israel licenciou­-se em Matemática e Educação na Universidade de Tel-Aviv, onde também cursou História do Povo Judeu. Na carta, igualmente escrita em castelhano, diz: «Supon­go que es lícito apreciar a una persona sin conocerla personalmente. Ese es el caso de mi sentimiento a su persona, después de haber leído su libro El Evangelio según Jesucristo. Me ha encantado la forma en que usted encara el problema de la personalidad histórica de Jesucristo, las ideas filosóficas que pregonó y la doctrina teológica que se descubre en las páginas deI libro. Re­vela usted un profundo conocimiento de la "Ley" judai­ca y deI espiritu de este pueblo, que así debía haber sido en tiempos de Jesús, como así también de las doctrinas cristianas que se desarrollaran desde entonces. Bajo la influencia espiritual de su libro, fuí automaticamente empujado a escribirle.»

Creio que teria sido capaz de resistir à complacente tentação de transcrever tão desmedidos louvores se o livro que David Hurovitz me enviou não fosse o que é: Mataron los judios a Jesús?.. se chama. Ainda não o li, mas a conclusão, se não for a que segue, deveria sê­-lo: «Como poderiam saber os judeus que estavam matando alguém que tempos mais tarde umas quantas pessoas afirmariam ser, simultaneamente, Deus e filho de Deus?» Permitiria Deus, se existisse, que em seu no­me se criassem estas confusões e estes conflitos, estes ódios absurdos, estas vinganças dementes, estes rios de sangue derramado? Pergunto. Não apareceria ele por aí, com um sorriso triste, a dizer à gente: «Olhem que não vale a pena. A morte é certa e eu depois não posso fazer nada por vocês.»

 

24 de Janeiro

Micha Bar-Am voltou hoje para fazer-me algumas fotografias e conversar um pouco mais sobre o projec­tado álbum. Em certa altura, sem que eu esperasse, per­guntou-me quanto quero cobrar pelo que irei escrever. Respondi-lhe que não é meu costume pôr preços nos trabalhos que faço e que preferiria fiar-me dele para pagar-me, no conjunto do orçamento geral da obra, o que lhe parecesse justo. Evidentemente, sou o que sem­pre tenho sido: um homem de negócios duríssimo...

 

25 de Janeiro

Quando estive com Pilar em Santiago de Compos­tela, por ocasião do Congresso do PEN Club, em Se­tembro passado, Carmen Balcells, que também lá se encontrava, disse-me que me ia escrever uma carta. Já antes, aqui há uns dois anos, e também em Santiago, me tinha dito o mesmo. A carta chegou ontem, via fax, essa maravilha tecnológica que faz aparecer as palavras diante dos nossos olhos como se estivessem nascendo naquele mesmo instante, uma após outra. A carta, que, francamente, já não esperava, recorda como eu, há uns dez anos, lhe escrevi a propor-lhe que me representasse, e como ela, ocupada com mudanças e céptica (isto digo eu) quanto às probabilidades de o desconhecido autor vir a ser alguém no mundo das letras e, sobretudo, das edições, deixou sem resposta a petição. Depois come­çou-se a falar de mim, e ela a sentir «a terrível impres­são de ter perdido um cliente extraordinário» (palavras suas). Como igualmente são palavras suas as que passo a transcrever e que constituem o remate da carta: «Este verano que tuve el placer de compartir contigo y tu mu­jer momentos encantadores, me senti muy desgraciada y he querido que lo sepas. Los días de octubre pasado me decía: "No has escrito a Saramago y abora le darán el Nobel". Yo te escribo abora que aún es tiempo de expresarte mi pena, por lo que me siento castigada con toda culpa de mi parte. Te pongo esta misiva en el correo y ya podré llenarte de flores cuando te den el Nobel, pues me sentiré en parte redimida de mi culpa por el propio castigo que me inflige reconocerlo.»

É uma bela carta, bem sentida e bem escrita. Res­ponderei a Carmen que no mundo há desgraças bem piores, que de erros, equívocos e enganos se faz tam­bém a vida, e que se depois de tudo isto nos encontra­mos com uma amizade nos braços para cuidar, não perdemos nada, nem ela, nem eu.

 

26 de Janeiro

Escrevi, para um jornal sueco, um artigo a propósito do aniversário (mais um...) do «caso» Rushdie. Chamei­-lhe «Heresia, um direito humano» e é, simplesmente, um exercício de razão e de bom senso. Digo que no pe­cado e na heresia se exprimem uma vontade de rebelião, portanto uma vontade de libertação, seja qual for o grau de consciência que a defina. Que ao longo da história da Igreja, as heresias, manifestadas pela negação ou recusa voluntária de uma ou mais afirmações de fé, não fizeram senão escolher, de um conjunto autoritário e coercitivo de supostas verdades, o que acharam de mais adequado, simultaneamente, à fé e à razão. Que não de­vemos esquecer a facilidade e o à-vontade com que os mais encamiçados defensores de heterodoxias ideológi­cas e políticas se conciliam, em nome de interesses prá­ticos comuns, que não de Deus, com os aparelhos institucionais e as manipulações «espirituais» das diver­sas Igrejas do mundo, que pretendem manter e aumen­tar, pela condenação das heresias antigas e modernas e pelo castigo dos pecados de sempre, o seu poder sobre uma humanidade absurda mais disposta a pagar mul­tiplicadas as suas pretensas ofensas a Deus do que a reconsiderar as culpas e os crimes de que, contra si mes­ma, é responsável.

 

27 de Janeiro

Hans Küng é aquele teólogo holandês que em 1979 perdeu a docência da secção eclesiástica da Universidade Civil de Tübingen, na Alemanha, por ter posto em ques­tão a infalibilidade papal. Há poucos dias esteve em Barcelona onde apresentou a declaração do Parlamento das Religiões, que no ano passado reuniu 6500 pessoas em Chicago, incluindo representantes da Igreja Católi­ca. Essa declaração assenta em dois princípios que, se­gundo afirmou, são aceites por todas as religiões: o primeiro, que todo o homem deve ser humanamente tra­tado; o segundo, que não devemos fazer aos outros o que não quisermos que nos façam a nós. Calando ago­ra a curiosidade de saber se efectivamente as religiões, qualquer delas, sempre aceitaram estes princípios bási­cos de urna convivência racional entre os homens, obser­vo que o magno ajuntamento de teólogos e gente similar não fez mais do que produzir duas verdades elementa­res. Para a primeira, Marx e Engels, em A Sagrada Família, já tinham encontrado urna fórmula próxima da perfeição: «Se o homem é formado pelas circunstâncias, então será preciso formar as circunstâncias humana­mente»; quanto à segunda, nunca ouvi dizer na minha família que a avó Josefa, que a repetia tantas vezes, a tivesse aprendido de Confúcio... Não refere a notícia se na reunião de Chicago esteve representada a grande tribu mundial dos ateus, cépticos e descrentes. O mais certo é que não. Apesar da falta que lá fizeram. Quanto a mim, discretíssimo membro daquela tribu, estou de acor­do com Hans Küng quando ele afirma que «não haverá paz no mundo se antes não houver paz entre as reli­giões», o que equivale a dizer que as religiões foram no passado e continuam a ser no presente um obstáculo à união dos homens. E também estou de acordo com ele quando proclama a necessidade da criação de um novo código ético mundial, «imprescindível», palavra sua, para a sobrevivência do mundo. Aí mesmo é que eu tenho querido chegar quando digo que estamos todos precisados de uma boa Carta dos Deveres Humanos.

 

29 de Janeiro

Chegaram as provas dos Cadernos. Tenho diante de mim, desde Abril, o ano que passou, releio os comen­tários que fiz ao correr dos dias, os desabafos, algumas queixas, não poucas indignações, umas quantas alegrias, e vejo regressarem todas as dúvidas que me fizeram hesitar sobre o interesse e a oportunidade da publicação. Não temo as vaidades ofendidas ou os legítimos melin­dres das pessoas aludidas (é dos livros que quem vai à guerra, dá e leva), mas temo, isso sim, que este registo de ideias domésticas, de sentimentos quotidianos, de cir­cunstâncias médias e pequenas, não ganhe em importân­cia ao diário de um colegial, no tempo que os colegiais escreviam diários. Eu próprio me pergunto por que me terá dado para este exercício um tanto complacente. Ou talvez não o seja, talvez eu acredite que assim retenho o tempo, que o faço passar mais devagar só porque vou descrevendo algo do que nele acontece. Veremos o que resultará daqui. Em dois meses o livro sairá, então sa­berei melhor o que hei-de pensar quando começar a saber o que pensaram os outros.

 

Amo Hammacher chegou a Lanzarote. Temos uma ideia para um livro sobre a ilha, ele com as fotografias, eu com o texto. Conversámos e percebemos logo que estávamos de acordo: nem eu interferirei no seu traba­lho, nem ele interferirá no meu.

 

30 de Janeiro

Fomos almoçar a EI Golfo. Um dia magnífico, com uma luz ao mesmo tempo viva e suave, por muito contra­ditório que pareça. Quando me ia sentar à mesa aproximou-se uma mulher que me perguntou se eu era quem sou. Respondi-lhe que sim, que era quem ela parecia pen­sar que eu fosse, e então apresentou-se: jornalista da re­vista Stern. Que os colegas de EI País lhe tinham dado o meu telefone e se podia dar-lhe uma entrevista. «O se­nhor, agora, é muito conhecido», disse ela. Tenho de con­fessar que não apreciei o advérbio: está um homem há setenta anos no mundo, e só agora é que o conhecem?..

 

31 de Janeiro

Chega-me de Madrid um convite para participar no que é chamado «Convivência en Sarajevo», um encontro sobre a situação da ex-Jugoslávia e da Europa em ge­ral: os nacionalismos, o racismo, a xenofobia, a panó­plia completa das inquietações mais recentes. No total, entre espanhóis, sérvios, bósnios e croatas, são uns trinta os escritores convidados. Além deles haverá também quatro «personalidades europeias»: Bernard Henry-Lévy, Günter Grass, Claudio Magris e o sujeito a quem a jor­nalista alemã pediu a entrevista. Ninguém me conven­cerá de que isto seja verdade. Personalidade europeia, eu? Com o trabalho que já me dá ser escritor, e as dú­vidas de que o seja suficientemente? Enfim, a juntar às curiosidades insatisfeitas com que tenho vivido, apare­ce-me agora mais esta: quando, como e porquê se pas­sa de pessoa a personalidade?

 

2 de Fevereiro

Não me lembro de ter lido alguma vez acerca dos motivos profundos que nos levam a amar a uma cidade mais do que a outras e não raro contra outras. Sem fa­lar dos casos de amor à primeira vista (assim foi Siena, mal nela entrei), que em geral não resistem à acção con­junta do tempo e da repetição, creio que o amor por uma cidade se faz de coisa ínfimas, de razões obscuras, uma rua, uma fonte, uma sombra. No interior da gran­de cidade de todos está a cidade pequena em que real­mente vivemos.

Habitamos fisicamente um espaço, mas, sentimental­mente, habitamos uma memória. Quando precisei de descrever o último ano da vida de Ricardo Reis, tive de voltar atrás cinquenta anos na minha vida para imagi­nar, a partir das minhas recordações daquele tempo, a Lisboa que teria sido a de Fernando Pessoa, sabendo de antemão que em pouquíssimo poderiam coincidir duas ideias de cidade tão diferentes; a do adolescente que eu fui, fechado na sua condição social e na sua timidez, e a do poeta lúcido e genial que frequentava, como seu direito de natureza, as regiões mais altas do espírito. A minha Lisboa foi sempre uma Lisboa de bairros po­bres, quando muito remediados, e se as circunstâncias me levaram, mais tarde, a viver noutros ambientes, a memória mais grata e mais ciosamente defendida foi sempre a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e muito sentir, ainda rural nos costumes e na ideia que fazia do mundo. Hoje, aqui tão longe, apercebo-me de que a imagem da Lisboa do presente se vai distanciando aos poucos de mim, vai-se tomando memória de uma memória, e pre­vejo, embora saiba que nunca serei nela um estranho, que chegará um dia em que percorrerei as suas ruas com a curiosidade perplexa de um viajante a quem tivessem descrito uma cidade que deveria reconhecer logo, e que se encontra, não precisamente com uma cidade diferen­te, mas com a impressão de estar perante um enigma que terá de resolver se não quiser tomar a partir de alma triste e mãos vazias. Farei então o mesmo que o per­plexo viajante: procurarei pacientemente até reencontrar o espírito da cidade, esse que se oculta na sombra ver­de dos jardins, na cor desmaiada de uma fachada que o tempo castigou, na fresca e penumbrosa entrada de um pátio, o espírito que flutua desde sempre nas águas do Tejo e nas suas marés, que fala nos gritos das gaivotas e no rouco mugido dos barcos que partem. Subirei aos pontos altos para olhar os montes da outra margem, e também, do lado de cá, o declive suave dos telhados vermelhos em direcção ao rio, a súbita irrupção dos mármores brancos das igrejas, enquanto do casario e das ruas invisíveis cresce o surdo e imperioso rumor da vida.

Lisboa, já sabemos, transformou-se nos últimos tem­pos. Decadente, abandonada até dias bem recentes, ter­ramoto lento, como chegaram a chamar-lhe, levanta aos poucos a cabeça, sai lentamente da indiferença e do marasmo. Em nome da modernização ou da moderni­dade, põem-se muros de betão em cima das suas velhas pedras, perturbam-se os perfis das colinas, transtornam­-se panoramas e perspectivas. Provavelmente não se po­dia evitar, ou não quiseram evitá-lo. Mas o espírito de Lisboa sobrevive - e mesmo não sabendo nós o que espírito seja, é ele que torna eternas as cidades.

 

3 de Fevereiro

Autran Dourado afirma que o Acordo Ortográfico é contrário aos interesses brasileiros. A notícia não é cla­ra quanto à natureza desses contrariados interesses, mas um dos argumentos esgrimidos por Autran, certamente dos de maior peso, a julgar pelo espaço que ocupa na informação, é o seguinte: «Temos que aceitar que a lÍn­gua que falamos e escrevemos se vem distanciando velozmente da lusitana. Não é a ortografia que separa linguisticamente os dois países. São as diferenças se­mânticas e sintácticas. Há frases de escritores portu­gueses que eu não entendo, cujo sentido não consigo alcançar.»

Quem não entende o argumento sou eu. Se não se pretende nem se pretendeu nunca, que eu saiba, abolir, em benefício de qualquer dos dois países, as «diferen­ças semânticas e sintácticas» que obviamente separam o português de um lado do português do outro - por que se indigna tanto Autran Dourado? Como e em que circunstâncias unificar a ortografia significaria redução ou eliminação dessas diferenças? Ou dar-se-á o caso de que na cabeça de Autran ande a germinar a «revolucionária» ideia de virem a produzir-se na ortografia brasileira tan­tas e tão velozes mudanças quanto as que estão à vista na sintaxe e na semântica, transformando-se então o português do Brasil, decididamente, noutra língua? Como quer que seja, é já alarmante que Autran Doura­do diga (louve-se-Ihe no entanto a sinceridade) que há frases de escritores portugueses cujo sentido ele não consegue alcançar... Aí chegámos? Compreende melhor Autran Dourado o inglês, por exemplo? E se não com­preende, que faz? Vem para os jornais protestar que não percebeu, ou vai humildemente estudar o que lhe falta? Realizou-se em Luanda, há poucos dias, uma Mesa­ -Redonda Afro-Luso-Brasileira sobre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Não pude estar pre­sente, mas enviei, a pedido do embaixador do Brasil em Angola, aquilo a que é costume chamar uma men­sagem, esta: «Há alguns anos, em Maputo, declarei que as fronteiras da minha liberdade começavam em Ango­la e Moçambique. Não tenho a certeza de que repetiria hoje essas palavras, pelo menos do modo peremptório como as disse então. O que, sim, sei é que o futuro do Português como língua de comunicação e de cul­tura está radicalmente ligado às fronteiras dos mundos africano e brasileiro. Nenhum de nós é proprietário ex­clusivo da língua portuguesa, mas todos podemos fa­zer por ela o que ela faz por nós: construí-la todos os dias.»

Agora acrescento: não destruí-la. Sem querer estar para aqui a gabar-me, não será esta uma maneira mais sensata de ver as coisas?

 

4 de Fevereiro

Ainda não estou recomposto da surpresa. A revista mexicana Plural, que é dirigida por Jaime Labastida e tem como chefe de redacção Saúl Ybargoyen, um bom amigo desde que nos encontrámos em La Habana há já uns anos, propõe-se dedicar um número ao meu traba­lho. Querem textos meus, inéditos ou não, conto, ensaio ou excertos de romances, trabalhos críticos ou ensaísticos sobre os meus livros, uma entrevista, num total de páginas que pode chegar às 250, para seleccionar depois. Como a revista não publica fotografias, a parte gráfica ficaria a cargo de um desenhador ou gravador português. Tudo isto parece bonito de mais para ser verdadeiro: um número completo de uma revista como Plural dedica­do a tão novel autor é coisa que nunca me passaria pela cabeça. Pedi a Pilar que se encarregasse ela das diligên­cias que da nossa parte tiverem de ser feitas: atar os fios, pôr as pessoas em comunicação umas com outras, numa palavra, ajudar. Dou mulher por mim, talvez por achar, sem o querer confessar demasiado, que ela tratará melhor dos meus interesses do que eu próprio o faria... Claro que o conveniente seria dizer que o pudor, que os escrúpulos, e sem dúvida não estavam eles de todo ausentes quando passei o encargo a Pilar, mas manda a sinceridade reconhecer que provavelmente te­rão prevalecido as razões práticas e a eficácia.

 

5 de Fevereiro

Enfadei-me há tempos, e do enfado aqui deixei re­gisto, por causa do título que o Público deu à notícia em que reproduziu as declarações que fiz a uma esta­ção de rádio espanhola, transformando em oposição a Lisboa Capital Cultural Europeia o que era, e é, uma posição crítica de princípio quanto à própria concepção das capitais culturais. Agora, transcrevendo parte de uma entrevista que dei a EI País e que ali se publicou com o título «Mi Lisboa ya no existe», o jornal italiano la Repubblica não encontrou nada melhor que pôr-lhe à cabeça «Adio Lisbona, città morta»... Quando um dia destes escrevi que a pior partida que se poderia pregar a um entrevistado seria reproduzir com fidelidade abso­luta tudo quanto ele tivesse dito, não pensei nestas ha­bilidades jornalísticas, que nem subtis são, graças às quais se vai tomar geral o que era particular, ou se dra­matiza o que era simples, ou se promete lebre ao leitor para depois lhe servir gato.

Diga-se, no entanto, que há ocasiões em que mudan­ças como estas são bem-vindas. Um artigo sobre a in­tolerância e o racismo, apelando à intervenção, não apenas literária, mas também cívica, dos escritores, que com o infelicíssimo título (um autêntico nariz-de-cera) de «É Preciso Destruir Cartago» enviei a L' Unità, apa­receu à luz do dia sob o amparo de palavras felizmente mais explícitas e contundentes: «Scrittori non disertate. razzismo minaccia il mondo». O que havia sido uma banalíssima citação clássica tomou-se em injunção e

grito de alanne, precisamente o que o artigo tinha que­rido ser e fora abafado pelo título original.

 

7 de Fevereiro

Harrie Lemmens, o meu tradutor holandês, envia-me críticas saídas em jornais de Amesterdão, elogiosas to­das, uma delas traduzida em parte por Ana Maria, sua mulher, e que remata desta maneira: «Talvez este evan­gelho desencantado esteja menos animado dum espírito comunista e muito mais duma anarquia radical e deses­perada. Como mensageiro das piores notícias, apesar do tom hilariante e irónico dominante, acaba por deixar um sabor amargo na boca.» O crítico tem razão: há deses­pero no Evangelho, o desespero de quem vê a explica­ção do universo entregue, ainda hoje, para consumo popular, aos dogmas absurdos e às crenças irracionais de todas as Igrejas.

Amo Hammacher, que jantou connosco, leu as críticas e felicitou-me no seu jeito pessoalíssimo, um misto de voz que parece desprovida de afecto e uns olhos que se derretem de uma ternura quase infantil. Na carta que acompanhava as críticas, Harrie sur­preende-se com a minha paciência para falar com jor­nalistas, andar de hotel em hotel, etc., etc. Vou dizer-lhe que são os ossos do ofício, que todos os têm, até este, em que parece que tudo são festas e satisfações, quan­do o que muitas vezes apetece é pôr um letreiro na porta: «Não estou para ninguém.» Assim é a vida: aca­bamos por entejar o que começámos por aceitar como necessário.

 

Mãos amigas fizeram-me chegar... Dantes usava-se muito esta expressão, sobretudo em cartas dirigidas aos jornais, quando alguém que se sentia visado por alusões em geral desfavoráveis pretendia varrer publicamente a sua testada. Fazia-se assim crer que havia por aí umas boas almas cuja maior preocupação, pelos vistos, era in­formar (fazer chegar às mãos) o que a outras, apesar de únicas ou principais interessadas, houvesse passado despercebido. O que sucedia, em muitos casos, era não querer a pessoa visada que se soubesse que ela própria é que dera com a notícia caluniosa ou menoscabante, prova­velmente por considerar indigno da sua importância to­mar directo conhecimento das coisas inferiores do mundo.

Não foi este o caso. As mãos amigas são reais e ver­dadeiras, são as de Iva e Manuel Freire, graças a quem, cá nesta Lanzarote onde vivo, pude ler um artigo de Ân­gela Caires publicado num jornal - O Fiel Inimigo de cuja existência não tinha dado fé. O artigo chama­se «Um rapaz chamado Saramago» e é dos mais diver­tidos textos em que alguma vez pus os olhos. Não resisto à tentação, com a devida vénia, de trazê-lo aqui:

«Costumo receber uns livros de capa amarela, habi­tados por personagens de nomes esdrúxulos, que têm em comum o facto se serem assinados por um rapaz cha­mado Saramago. Na dúvida se haveria de sacrificar-lhes o meu tempo, face a um antigo volume que levantei do chão, perguntei a um editor meu amigo se tal livro se­ria merecedor de atenção. Que não, garantiu. Aduzindo argumento demolidor: a sua editora recusara-se a publi­cá-lo. Com sobejas razões: o escrevente, que usa e abusa de vírgulas, raramente sabe onde colocá-las. Pontos pa­rágrafos, então, nem vê-los. Daria um trabalho dos dia­bos transformar aquela massa informe de texto em prosa escorreita. Por esta razão, lá foi o original parar a uma editora de comunistas, onde, aliás, o sujeito se acoita, politicamente falando.

«Os camaradas fizeram o primeiro frete, dando à es­tampa um volume com o nome arrevesado de Levantado­ do Chão que, segundo creio, passou completamente despercebido. Para não falar do flop total de outra ten­tativa, Memorial do Convento, de que seguramente nin­guém guarda memória. Os editores, certos de que esta aventura lhes apontaria a falência, nem investiram mui­to no produto: não gastaram uns tostões a ilustrar as capas, produzindo-as em cartão liso de cor desmaiada.

«O candidato a escritor poderia ter ficado por aqui, Mas a prova de que o autor não tem o menor sentido de humildade é que reincidiu. Raro é o ano em que não põe cá fora mais volumes de capa amarela, sempre com títulos desenxabidos e enganadores.

«Nunca mais me vi livre dele. Por um aniversário, veio-me parar às mãos, camuflada em fitas e celofane, uma Jangada de Pedra, que mais não era do que uma narrativa alucinada da experiência vivida por um cão com pavores de tremores de terra. Num Natal couberam­-me sete exemplares da História do Cerco de Lisboa, que não é história de um cerco nem de Lisboa, mas, sim, de um revisor às voltas com uma esquisita sinalefa tida por deleatur. Para não falar do dia em que ofereci a um sobrinho com pendor para as belas artes um Manual de Pintura e Caligrafia que nada tinha a ver com pincéis nem caneta. A última afronta, qualquer coisa como O Evangelho segundo Jesus Cristo, é a prova concreta da sua total falha de recursos criativos. Nem plagiar a Bíblia o sujeito sabe. E, mesmo depois dos conselhos do dr. Sousa Lara ("homem, vá para ca­sa, leia, estude"), continua a escrever. Continua. Conti­nua.

«Como ninguém lhe compra livros, acho que vêm todos parar à minha estante, por via de amigos e fami­liares que adoram pregar-me partidas - não sei por que é que a editora insiste em publicar as suas mal arruma­das prosas, arruinando-se certamente. Coisas de comunistas.

«Além do mais, como escritor, o homem é um pe­rigo. Imagine-se que os seus textos vão parar às esco­las. Lá se vai o denodado esforço de Couto dos Santos, de Roberto Carneiro, de Deus Pinheiro, e de outros in­trépidos ministros da Educação, para as criancinhas aprenderem o bom português da dra. Edite Estrela.

«Aterrador, não é? O pior é que a criatura, ainda por cima, se ri de nós. Não sei porquê. Nunca lhe deram o Prémio Nobel. Vive exilado numa ilha do fim do mun­do. Casado com uma espanhola. Como se isto não bas­tasse, há um montão de anos que está desempregado. Por causa daquele seu mau feitio, a teimosia própria de quem não enxerga de que lado sopra o poder, nunca será funcionário do dr. Santana Lopes nem presidente da Câmara de Cascais. Bem feita.»

Em tudo Ângela Caires sabe do que fala. Até sabe que a Bertrand recusou publicar o Levantado do Chão... Regalámo-nos de riso aqui. As gargalhadas de Carmélia e de Pilar deviam ter-se ouvido em Fuerteventura. Es­pero que não tenham faltado em Portugal, de mistura com alguns sorrisos tão amarelos como as capas dos meus livros...

 

8 de Fevereiro

Pensei na História e vi-a cheia de homenzinhos mi­núsculos como formigas, uns que não cabem nas portas que fizeram, outros que arrancaram à pedreira o már­more com que Miguel Ângelo fez o seu David, outros que a esta hora estão contemplando a estátua e dizem: «Talvez ainda não tenhamos começado a crescer.»

 

Abordar um texto poético, qualquer que seja o grau de profundidade ou amplitude da leitura, pressupõe, e ouso dizer que pressuporá sempre, uma certa incomo­didade de espírito, como se uma consciência paralela observasse com ironia a inanidade relativa de um traba­lho de desocultação que, estando obrigado a organizar, no complexo sistema capilar do poema, um itinerário contínuo e uma univocidade coerente, ao mesmo tem­po se obriga a abandonar as mil e uma probabilidades oferecidas pelos outros itinerários, apesar de estar cien­te de antemão de que só depois de os ter percorrido a todos, a esses e àquele que escolheu, é que acederia ao significado último do texto, podendo suceder que a lei­tura alegadamente totalizadora assim obtida viesse só a servir para acrescentar à rede sanguínea do poema uma ramificação nova, e impor portanto a necessidade de uma nova leitura. Todos carpimos a sorte de Sísifo, con­denado a empurrar pela montanha acima uma sempiter­na pedra que sempiternamente rolará para o vale, mas talvez que o pior castigo do desafortunado homem seja o de saber que não virá a tocar nem a uma só das pe­dras ao redor, inúmeras, que esperam o esforço que as arrancaria à imobilidade.

Não perguntamos ao sonhador por que está sonhando, não requeremos do pensador as razões do seu pensar, mas de um e de outro quereríamos conhecer aonde os levaram, ou levaram eles, o pensamento e o sonho, aquela peque­na constelação de brevidades a que costumamos chamar conclusões. Porém, ao poeta - sonho e pensamento reu­nidos -, ao poeta não se lhe há-de exigir que nos ve­nha explicar os motivos, desvendar os caminhos e assinalar os propósitos. O poeta, à medida que avança, apaga os rastos que foi deixando, cria atrás de si, entre os dois horizontes, um deserto, razão por que o leitor terá de traçar e abrir, no terreno assim alisado, uma rota sua, pessoal, que no entanto jamais coincidirá, jamais se justaporá à do poeta, única e finalmente indevassável. Por sua vez, o poeta, tendo varrido os sinais que durante um momento marcaram não só o carreiro por onde veio mas também as hesitações, as pausas, as medições da altura do Sol, não saberia dizer-nos por que caminho chegou aonde agora se encontra, parado no meio do poema ou já no fim dele. Nem o leitor pode repetir o percurso do poeta, nem o poeta poderá reconstituir o percurso do poema: o leitor interrogará o poema feito, o poeta não pode senão renunciar a saber como o fez.

 

9 de Fevereiro

Diante da casa foram ontem plantados dois marme­leiros com nome de gente: um que se chama Victor Erice, o outro Antonio López. Assim se cumpriu o que estava prometido. Agora só teremos de esperar que as árvores cresçam e frutifiquem. Duvido, no entanto, que, neste clima, cheguem a atingir alguma vez a força irradiante do Sol de membrillo.

 

Alfonso de la Serna, diplomata espanhol aposentado, escreve-me de vez em quando a propósito das leituras que vai fazendo dos meus livros, e sempre do seu amor a Portugal, nascido quando esteve colocado na Embai­xada de Espanha em Lisboa, entre 1949 e 1955. Com a carta que hoje recebi envia-me fotocópias de três ar­tigos que publicou no jornal ABC, em 1988, 1989 e 1992, com os seguintes títulos: «Entre-Douro-e-Minho», «Caminho de Portugal» e «Saudade do Chiado». São textos, como ele diz, assim se antecipando ao que crê ser o meu juízo, próprios da «retórica nacionalista portu­guesa». Justifica-se deste modo: «Los espafioles, como decía Machado, de la Castilla empobrecida y vencida, "desprecian cuanto ignoran", y yo creo que una buena parte de los sentimientos de muchos espafioles hacia Portugal - inc1uyendo a los espanoles que viajan aI "país vizinho" y hasta aquellos que se dicen "ami­gos" - procede de la más absoluta ignorancia de lo que ha sido, y por tanto es, Portugal. Así que, aún a riesgo de bordear la literatura retórica, yo he querido siempre contar a mis ignorantes y queridos compatriotas quê es lo que ha hecho Portugal en el mundo. Y en todo caso he querido dar testimonio de que algunos espanoles nos interesamos hondamente por ese pequeno-grande, que­rido, admirable país que tenemos aI lado, aI lado izquier­do: el lado deI corazón.»

Porém, o motivo principal desta carta foi a entrevista que dei a El País, essa amarga conversa que deixou os meus não menos queridos compatriotas totalmente in­diferentes, a julgar pelo nulo eco que teve. Alfonso de la Sema pede-me que não abandone de todo Lisboa, «porque hombres como Ud.», diz ele, «son los que han dado una parte de su alma a Lisboa». E acrescenta: «Siga Ud. escribiendo sobre Lisboa, o quizás hablando a Lisboa, desde sus escritos, pero no se aleje demasia­do, en su "jangada" canaria, deI país, quizás hoy irri­tante para Ud., pero siempre adorable, que es Portugal.»

Alfonso de la Sema é um homem de direita a quem não dá sombra falar tão lhanamente ao homem de es­querda que ele sabe que sou. Pesa muito esta certeza no gosto que sempre me dão as suas cartas.

 

10 de Fevereiro

Temos diante do portão o contentor em que vieram os livros e os móveis de Lisboa. São mais de 150 caixas e volumes de todos os tamanhos. O que mais avulta são os livros e as estantes para eles. A casa está a voltar a casa.

Quem tiver acompanhado com alguma atenção o que venho escrevendo desde Manual de Pintura e Caligra­fia saberá que os meus objectivos, como ficcionista, e também (vá lá!) como poeta, e também (pois seja!) como autor teatral, apontam para uma definição final que pode ser resumida, creio, em apenas quatro palavras: meditação sobre o erro. A fórmula corrente - medita­ção sobre a verdade - é, sem dúvida, filosoficamente mais nobre, mas sendo o erro constante companheiro dos homens, penso que sobre ele, muito mais que sobre a verdade, nos convirá reflectir. Ora, sendo a História, por excelência, o território da dúvida, e a mentira o campo da mais arriscada batalha do homem consigo mesmo, o que propus na História do Cerco de Lisboa, por exemplo, foi uma confrontação directa entre indiví­duo e História, um conflito em que uma pessoa comum, forçada pelas circunstâncias a interrogar tanto as falsida­des como as alternativas da História, se encontra frente a frente com as suas próprias mentiras, quer as que co­mete para com os outros quer as que organiza consigo mesmo. Ao procurar uma alternativa, lúdica neste caso, para uma certa lição da História, confronta-se com a ne­cessidade, já não apenas lúdica, mas vital, de reconhecer­-se a si mesmo como alternativa possível ao que antes havia sido, isto é, passar a ser outro mantendo-se idênti­co. Ora, se não me engano, tanto serve isto para o indi­víduo como para a História, caso em que, contrariando profecias e fantasias, a História, não só não teria chega­do ao fim, como nem sequer teria ainda começado...

 

12 de Fevereiro

Dois dias de esforço arrasador. Por toda a parte cai­xas e caixotes donde saem de vez em quando objectos esquecidos que aparecem aos nossos olhos com um ar de novidade total, como se, durante a viagem entre Lis­boa e Lanzarote, alguém lá da pátria, querendo sur­preender-nos com uns últimos presentes, se tivesse entretido a esconder na carga memórias, gestos, a can­tiga do adeus, um murmúrio que dissesse: «Não nos es­queceremos de ti, agora não vás tu esquecer-te de nós.»Esta noite, com a ajuda de Maria e Javier, uma parte da nova arrumação da casa ficou terminada. Pilar está exausta, mas feliz. A mim doem-me todos os músculos. Penso: «Uma vida inteira para chegar aqui.» Mas cá estou, como naquele dia em que, transportado de alegria, pus o pé no alto da Montafta Blanca.

 

O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha recta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente em função de um resultado final, portanto conhecido, é imaginar o destino como uma flecha apontada directamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o desti­no hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a deci­dir-se. Tanto assim que antes de converter Rimbaud em traficante de armas e marfim em África, o obrigou a ser poeta em Paris.

 

15 de Fevereiro

Histórias da aviação. Primeira história. Aeroporto de Madrid. O avião só sai daqui a três horas. Procuro um sítio tranquilo para ler, sem crianças que à vista pare­cem sossegadíssimas e daí a nada entram em transe tur­bulento, sem adolescentes que, como as crianças, não são muito de fiar, pois passam repentinamente do ensimesmamento mais profundo a comportamentos de estádio de futebol. Sou um senhor respeitável que ou­viu demasiado ruído na sua vida e gosta do silêncio e da palavra medida. Está ali um casal de idade, com o ar inconfundível de quem não se fala desde a noite de núpcias. Sento-me de costas para eles e suspiro de bem­-estar. Ingenuidade minha. Passados dois minutos tenho diante de mim o cavalheiro idoso (continuo a não acei­tar que tenha a idade dos senhores de idade) que me pergunta se vou para Buenos Aires. Que não, respondi, vou para Roma. Depois quis saber se eu era argentino, e eu disse que era português, nada lisonjeado pelo equí­voco: se me confundem com um argentino é porque não têm nenhuma ideia do que seja o castelhano falado por um português, o que, por sua vez, significará que não têm ideia do que o português seja. Neste caso não era bem assim: o senhor de idade, que era paraguaio, conhe­cia o Brasil... Seguiu-se uma conversa com vocação de interminável, loquaz da parte dele, lacónica da minha parte, que começou pela prometedora informação de que o casal regressava ao seu país depois de viajar du­rante três meses pela Europa. A ver os palácios, a conhecer os restaurantes e os hotéis, disse o compatriota de Roa Bastos. Logo a seguir falou do desenvolvimen­to da América Latina, com a ajuda dos Estados Unidos, precisou, ao que respondi, secamente, que, a ser assim, não estava mal que os Estados Unidos, depois de terem roubado tanto, devolvessem finalmente alguma coisa. Dito isto, dei ostensivas mostras de sono e o senhor de idade teve de retirar-se, anunciando pro forma que ia dar uma volta. Volta que mal chegou a começar porque se apercebeu de que a mulher se encontrava em animada conversa com uma dominicana que havia estado na Áustria e que tinha uma filha de dois anos que pedia colo no intervalo das arrebatadas correrias a que se entregava.

A dominicana, que viera acompanhada de um austríaco que logo desapareceu (ela teve o escrúpulo de dizer que o tinha acabado de conhecer), falou também de palácios, em particular o da infeliz Sissi... Com ex­cepção dos adolescentes, tudo me tinha acontecido. Carreguei a bagagem para uma espécie de corredor por onde ninguém passava e ali me deixei ficar o resto do tempo que ainda faltava, a meditar nas virtudes do si­lêncio e das palavras bem empregadas.

Segunda história da aviação. Na cadeira à minha frente senta-se uma italiana, aí entre rapariga e jeune femme. (Afinal, tantas palavras no dicionário, e faltam­-nos as que exprimiriam, com precisão, as diversas e diferentes idades que vão da adolescência à velhice.) Mal acabou de sentar-se deslocou bruscamente o espal­dar da cadeira todo para trás, sinal, para mim, de insen­sibilidade e má educação: sem pretender dar lições de boas maneiras a ninguém, acho que se deve começar por descair um pouco o encosto do assento e, só depois, em um ou dois movimentos, pô-lo na posição mais alon­gada, se é isso que se pretende. Ponho-me a ler os jor­nais, esqueço-me da italiana, até que de súbito me apercebo de uma alteração na ocupação do espaço... Ao lado da italiana sentara-se um espanhol que tinha mu­dado de lugar, questão de travar conhecimento, e a con­versa, sem passar ainda de generalidades, já estava lançada. São tácticas conhecidas. Mas eis senão quan­do já não era um espanhol, mas dois, já não eram dois, mas três, já não eram três, mas quatro, todos cercando a italiana (ouço que a tratam por Bárbara, que ela tra­balha na televisão), e o espectáculo toma-se rapidamente deprimente, com aqueles galos tontos a proferir frases de segundo sentido, frenéticos, bebendo uísque e fuman­do nervosamente, de cabeça perdida. A italiana ria-se, respondia à letra, quero pensar que estaria a divertir-se à custa daqueles quatro machos idiotas que me faziam ter vergonha de ser homem. À chegada saíram juntos do avião, falando de irem a um bar. Com qual deles terá ido ela para a cama, se foi? Qual deles se gabará dis­so? Ou vão gabar-se todos, tendo combinado que não se desmentirão uns aos outros?

 

Regresso a um tema recorrente. Todas as caracterís­ticas da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvi­das. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elemen­tos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconhe­ço e confirmo (estruturas barrocas, oratória circular, si­metria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o carácter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões «mínimas» de certa música contemporânea...

 

16 de Fevereiro

Em Roma, de passagem para Nápoles. Fui à Bompiani para falar com Laura Revelli, a responsável das relações públicas, com quem desde o primeiro dia criámos uma excelente amizade. Disseram-me que ela iria estar num hotel da Via Veneta a custodiar um es­critor norte-americano que ali vai dar uma entrevista. Como ainda era cedo, dei uma volta pelas imediações da Piazza di Spagna, e inevitavelmente fui à Igreja de Santa Maria deI Popolo, a ver os Caravaggios, sobretu­do a inexaurível Conversão de S. Paulo. Quando che­guei ao hotel, Laura ainda não tinha chegado. Apareceu esbaforida, vinha da Bompiani, onde lhe haviam dito que eu a procurara. E agora ali estava, simples e afectuosa como é. Não pudemos conversar mais do que uns cinco minutos, a jornalista e o fotógrafo esperavam que o norte-americano descesse. Então pude experimentar a estranhíssima impressão de estar a viver do outro lado momentos meus anteriores: também a mim tem aconte­cido estar num quarto de hotel, descer para uma entre­vista e encontrar um jornalista e um fotógrafo. Mas agora podia observar o alheamento destes, a indiferen­ça, como quem está ali para cumprir uma obrigação aborrecida, trabalho de rotina, um escritor, no fim de contas, não merece mais.

 

Nápoles, inauguração da Galáxia Gutenberg, um Salão do Livro que aspira a competir um dia com o de Turim. Mais simples, estruturalmente muito mais modes­to. A cerimónia de abertura foi caótica. Reencontrei o beau parleur que é Stefano Rolando, o presidente do júri do Prémio União Latina. Alguém me disse que o surpreendeu a mudar a posição dos lugares na mesa, de maneira a ficar mais perto do Sindaco de Nápoles, que presidia... A vítima foi o embaixador Nunes Barata, ati­rado quase para a ponta da mesa pela vaidade do ita­liano... Depois fomos jantar a uma «risto-pub», uma coisa chamada Bounty com motivos náuticos a enfeitar. Uma aluna de Maria Luisa Cusati cantou fados e can­ções napolitanas. Dos fados não rezará nenhuma histó­ria, o fantasma de Amália Rodrigues andava por ali. Mas as canções napolitanas eram belíssimas, sobretudo uma delas, chamada mais ou menos Tuorna Maggio. De repente, e como vai sendo costume, passei de cem por ecento de animação a zero. E quando caio no zero, o me­lhor é retirar-me. Antes, porém, manifestei à directora da Biblioteca Nacional, Maria Leonor Machado de Sou­sa, a minha estranheza pelo silêncio de três anos com que foi acolhida a minha oferta à Biblioteca de umas quantas cartas e provas tipográficas revistas de José Rodrigues Miguéis. Ficou perplexa, julgava que o assun­to estava resolvido. Enfim, parece que vai ser desta vez.

 

17 de Fevereiro

Manhã cedo dou uma entrevista a Il Mattino. Um jornalista simpático e inteligente. E, coisa rara, informa­do. Pensei no episódio do hotel da Via Veneto e tentei adivinhar que expressão teria ele na cara quando vinha para se encontrar comigo. Nápoles está fria, gelada, a chuva é tal qual a de Santiago de Compostela. Assisti, como se estivesse numa câmara frigorífica, a uma mesa­-redonda sobre a Biblioteca Nacional. Estava também o Nuno Júdice, tão transido de frio como eu. Teve depois a coragem de ir a Pompeia. Estiveram no jantar Luciana, Eduardo Lourenço e Helena Marques.

 

18 de Fevereiro

De manhã, à RAI Uno, com Maria Luisa Cusati, para gravar uma entrevista que só será apresentada em Abril, que é quando começa o programa. Para não variar, chamar-se-á A Biblioteca Ideal. Terminada a gravação, corrida à Galáxia para chegar a tempo à mesa-redonda que ia reunir os escritores portugueses. Helena Marques falou das mulheres escritoras, Nuno Júdice e eu do que fazemos e fizemos. Eduardo Lou­renço faz de conta que nunca escreveu uma linha e comenta generosamente as obras dos outros. Quando à noite nos despedimos, depois do jantar oferecido pelo embaixador Nunes Barata, disse o Eduardo: «Então até amanhã.» Respondi-lhe que não, que partia cedíssimo, supunha que ele sabia, e ele fez um «Ah» desconsola­do, uma expressão de tristeza que reflectiu a minha. Antes tinha-me dito umas palavras bonitas que me toca­ram cá dentro: que eu era o irmão mais velho que ele não teve.

 

o impossível continua a acontecer. No romance Jazz de Toni Morrison há um personagem que mata a mu­lher a quem amava. Por amá-la demasiado, explicou. Parece absurdo, mas os romancistas são assim, já não sabem que mais inventar para captar a fatigada atenção dos leitores. Estas coisas, na vida, não acontecem. Acontecem outras. Agora, em França, um rapaz de vinte e poucos anos perguntou à namorada, mais nova do que ele, se era capaz, para provar o seu amor, de matar uma pessoa. Ela respondeu que sim. Passava-se isto num café. Numa mesa perto estava outro rapaz, este de uns dezoito anos. Os namorados meteram conversa com ele, daí a pouco era como se fossem amigos desde sempre. Ela, por sinais que até um cego entenderia, começou a seduzir o mocinho. Saíram juntos. Em certa altura, ela disse ao namorado: «Não venhas connosco. Nós vamos ao jardim.» O de dezoito anos adivinhou aventura fácil e foi com a rapariga. Num recanto escuso ela tirou uma pistola do saco de mão e matou o rapaz. Toni Morrison não sabe nada da vida. O impossível acontece sempre, sobretudo se é horrível.

 

19 de Fevereiro

Terceira história da aviação. De Madrid a Lanzarote tive de aturar a vizinhança de vinte franceses, entre mas­culinos e femininos, as mais grosseiras criaturas que Deus teve o mau gosto de deitar ao mundo. As garga­lhadas, os dichotes, as manifestações de desprezo por tudo quando viam, ouviam e provavam, desde a língua castelhana à comida, desde as hospedeiras de bordo aos aviões, davam vontade de vomitar-lhes na cara. Estive a ponto de fazer de Quixote lusitano, mas eles eram muitos e brutos, elas ferocíssimas. Faziam-me em tiras e a Espanha não me agradeceria a valentia. Contentei­-me portanto com olhá-los repreensivamente, sem resultado, como um gato pode olhar um tigre. Quando o avião aterrou em Lanzarote fui o primeiro a sair, rogan­do aos céus que não me façam encontrar outra vez es­tes bárbaros enquanto por aqui andarem.

 

Depois de três dias de ausência venho encontrar a casa transformada. Mais do que transformada, transfigu­rada. Pilar trabalhou como só ela é capaz, com a alma toda. Ajudaram-na a mãe, Maria e Javier, Carrnélia, e até os mais novos da família, Luis e Juan José, além de dois colegas deste, Oscar e Raul. O meu escritório luzia, as madeiras envemizadas, os livros arrumados (não exacta­mente como os arrumaria eu, mas que importa?), os qua­dros nos lugares que lhes havia destinado, dispostos os tapetes no chão. Mozart tocava quando entrei e Pepe fez­-me um acolhimento grandioso. Quantas maneiras have­rá de ser feliz? Começo a crer que as conheço a todas.

 

20 de Fevereiro

       Passámos a tarde no vale de Guinate, entre monta­nhas verdes. No céu azul, como uma aparição benévo­la, a Lua diurna boiava em silêncio. Comemos costele­tas de borrego e entrecosto, batatas em molho de amên­doa. Dormi ao sol.

 

21 de Fevereiro

María, que hoje partiu para Granada, a continuar durante dois meses os seus estudos de História de Arte, perguntou-me se eu sabia que aplicação à arquitectura podiam ter os termos «sístole» e «diástole». Que tinha lido ou ouvido uma referência (não recordo agora pre­cisamente) e que não conseguia encontrar qualquer es­pécie de analogia com as arquiconhecidas expansão e contracção cardíacas. Não tive outra resposta para lhe dar que acompanhá-la na ignorância e na perplexidade. Mas, como de perplexidades e ignorâncias é que a cu­riosidade se alimenta, pus-me a consultar dicionários e enciclopédias, para logo chegar à conclusão de que a sístole e a diástole eram, de facto, movimentos exclusi­vos do coração, que nem figuradamente tinham cabi­mento na arquitectura. Lembrei-me então de uma venerável relíquia que aí tenho, o Dictionnaire Général des Lettres, des Beaux-Arts et des Sciences Morales et Politiques, em dois volumes, editado em 1862 em Pa­ris (pertenceu à biblioteca de Raimundo Silva, como é fácil comprovar na página 27 da História do Cerco de Lisboa...) e fui arrancá-lo ao sono profundo em que dormia. Talvez naquele tempo, pensava eu, ou em ou­tros mais antigos de que o dicionário ainda desse notí­cia, a arquitectura fosse feita tanto com o coração que quem uma coisa dissesse, a outra estaria dizendo. Pe­nas perdidas: a diástole, informava o Dictionnaire, é um termo de Gramática, aliás tão extensamente aplicado que não é possível transcrever para aqui a definição comple­ta, o mesmo acontecendo com a sístole, esta enriquecida com exemplos tirados de Virgílio e Horácio. Desanima­do, percebi que a arquitectura me fechava as portas na cara. Foi então que reparei que logo a seguir a systole vinha uma palavra que parecia pertencer à família. Systyle se chamava e rezava assim: «(Du grec syn, avec, et stylos, colonne), c.-a-d. à colonnes serrées, se dit, en Architecture, d'un édifice dont les colonnes sont distan­tes les unes des autres de deu x diametres ou quatre modules.» Aceleraram-se as minhas próprias sístole e diástole, e fui ver se diastole tinha um vizinho igual­mente generoso. Tinha e chamava-se, semelhantemente, diastyle, por estas palavras descrito: «Entre-colonnement de trois diametres, le plus large qui put, chez les Anciens, porter une architrave de pierre ou de marbre.» Levantei-me agradecido ao Dictionnaire e fui dar parte da minha descoberta a Maria: uma vez mais a lei (lin­guística) do menor esforço tinha feito triunfar umas palavras sobre outras. Agora só me falta saber se María vai ter a coragem de dizer ao professor que está enga­nado quando ele lhe disser que a sístole e a diástole são reconhecíveis na colunata da Praça de São Pedro, em Roma...

 

22 de Fevereiro

Alguém teve um dia a ideia de chamar-me «escri­tor de Lisboa» e esse qualificativo transformou-se em moeda corrente no pecúnio informativo dos jornalistas apressados. Na verdade, não tenho escrito acerca de Lisboa, mas sim de algumas «pequenas Lisboas» que são os bairros, que são as ruas, que são as casas, que são as pessoas, microcosmos na cidade-universo que não precisam conhecê-la toda para serem, eles pró­prios, virtualmente infinitos. Em Ricardo Reis não foi de Lisboa que falei, mas de umas poucas ruas dela e de um certo itinerário que, se não me engano, comporta e exprime um sentimento de inifinitude. Quanto ao Cerco, até o leitor mais desatento observará que a Lisboa de hoje é a Lisboa do século XII, no sentido de que o autor desse livro não pretendeu exprimir uma visão em exten­são, mas sim, se a tanto pôde chegar, algo a que cha­maria um pressentimento de profundidade. Sim, o tempo como profundidade, o tempo como a terceira dimensão da realidade em duas dimensões em que vivemos.

 

23 de Fevereiro

Levaram Deus a todos os lugares da terra e fizeram­-no dizer: «Não adoreis essa pedra, essa árvore, essa fonte, essa águia, essa luz, essa montanha, que todos eles são falsos deuses. Eu sou o único e verdadeiro Deus.» Deus, coitado dele, estava caindo em flagrante pecado de orgulho.

 

Deus não precisa do homem para nada, excepto para ser Deus.

 

Cada homem que morre é uma morte de Deus. E quando o último homem morrer, Deus não ressusci­tará.

 

Os homens, a Deus, perdoam-lhe tudo, e quanto menos o compreendem mais lhe perdoam.

 

Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá um sentido a esse silêncio.

 

Deus: um todo arrancado ao nada por quem é pouco mais que nada.

 

24 de Fevereiro

O desbarato mais absurdo não é o dos bens de con­sumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela História, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas. De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miuçalhas tives­se sabido aproveitar-se. A fraqueza alimenta a força para que a força esmague a fraqueza.

 

Parece haver em mim como uma balança interior, um padrão aferidor que me tem permitido vigiar, de uma maneira a que chamaria intuitiva, a «economia» dos por­menores narrativos. Em princípio, o «eu lógico» não recusa nenhuma possibilidade, mas o «eu intuitivo» re­ge-se por umas leis próprias que o outro aprendeu a res­peitar, mesmo quando tem relutância em obedecer-lhes. Evidentemente, não há aqui nenhuma ciência, salvo se este aspecto tão particular do meu trabalho se nutre de uma outra espécie de ciência, involuntária, infusa, inlo­calizável, que, mero prático que sou, me limito a seguir, como quem se vai apercebendo da mudança das estações sem nada saber de equinócios e solstícios.

 

25 de Fevereiro

Domenico Corradini, professor na Universidade de Pisa, que traduziu para italiano O Ano de 1993, convi­dou-me há tempos a fazer parte de um grupo de quatro pessoas que orientariam a escolha e a publicação de pequenos textos numa colecção que recebeu o nome de «La sapienza dei miti». Era talo seu empenho que não tive alma de dizer-lhe que sou pouco entendido na ma­téria e que portanto seria de utilidade escassíssima para os fins em vista. Caí por isso das nuvens quando há poucas semanas, tendo recebido os dois primeiros vo­lumes da colecção, verifiquei que sou apresentado como director dela, tendo como colaboradores Luigi Alfieri e Claudio Bonvecchio, além do próprio Corradini. Posto que seria indelicado protestar contra o «abuso», limitei­-me a agradecer a generosidade, ao mesmo tempo que compreendia que as minhas responsabilidades haviam crescido, embora tendo presente uma lição de todos os dias: a de que nem sempre os directores são os que dirigem... De todo o modo, já não poderia contentar-me com um papel de simples corpo presente, disfarçando a minha incompetência singular na pluralidade do grupo. Pus-me a rever mentalmente os autores portugueses com probabilidades de cabida na dita colecção, e acabei por fixar-me em Teixeira de Pascoaes, apesar de não mor­rer de gosto por ele. Comecei por pensar no Regresso ao Paraíso, mas era demasiado longo, no Marânus, mas era demasiado local, e, de hipótese em hipótese, fui dar a Jesus e Pão O mito estava ali, se não se preferir di­zer que estavam ali os mitos todos. Desconfio, porém, que a verdadeira razão por que propus esta obra de Pascoaes para a «minha» colecção se encontra em três versos definitivamente subversivos que explodem no in­terior do poema: «As Ninfas beijarão os anjos do Se­nhor. / Maria há-de chamar a V énus sua irmã / E o tronco duma cruz hei-de vê-lo em flor!» O que Lara não faria se o Pascoaes lhe tivesse caído nas mãos... Feliz­mente que em 1903, quando o poema foi publicado, não havia Secretaria de Estado da Cultura...

 

26 de Fevereiro

Autran Dourado não gostou do meu comentário. Chama-me polemista de segunda classe, o que é fazer­-me grande favor, uma vez que sendo de segunda não me faltará assim tanto para ser de primeira, se a tal pro­moção vier a aspirar. E como acha que lhe chamei igno­rante (o que duas vezes não é verdade: nem ele o é, nem eu lho chamei), equilibra um insulto imaginário com outro real: diz que sou burro, esquecido de que, até prova em contrário, pertencemos ambos à mesma es­pécie. Assim vão sendo as polémicas no mundo da lín­gua ainda portuguesa. Ou já brasileira? Autran Dourado disse o que lhe apeteceu, e deve estar satisfeito. Só lhe faltou responder às perguntas simples que lhe tinha fei­to, a saber:

«Se não se pretende nem se pretendeu nunca, que eu saiba, abolir, em benefício de qualquer dos dois países, as "diferenças semânticas e sintácticas" que obviamente separam o português de um lado do português do ou­tro - por que se indigna tanto? Como e em que cir­cunstâncias unificar a ortografia significará redução ou eliminação dessas diferenças?»

A isto é que Autran Dourado devia ter atendido. Se agora decidir responder, do que duvido, não me respon­da a mim, que nunca tive paciência nem gosto para dis­cussões de burros. Responda antes a si mesmo, que as dúvidas tem-nas ele, e não eu. Dá muito que pensar a facilidade com que os denominados intelectuais e artistas resvalam para o caceteirismo quando se dão conta de que lhes faltam razões. E surpreende-se a gente, e escandaliza­-se, e deita as mãos à cabeça (a que estado chegou o mundo!), quando lemos num jornal a notícia de que por causa de uma insignificância um sujeito espetou a faca na barriga doutro sujeito. Literalmente falando, os escritores não se esfaqueiam uns aos outros, mas é só literalmente.

 

27 de Fevereiro

Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mes­mo tempo revela os traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o romancista.

 

Ah, a memória! Há três anos, quando a amizade de Javier Pérez Royo, então reitor da Universidade de Se­vilha, me tomou ali doutor «honoris causa», pretendi ci­tar, no meu discurso de agradecimento, certas palavras um dia lidas e que assim rezavam: «Somos contos de contos contando contos, nada.» Puxando pela memória, encontrei que eram de Quevedo, mas, chegado o mo­mento de lhe escrever o nome, entraram-me as dúvidas e, com muito trabalho, fui verificar: não, não eram de Quevedo. Voltei à memória, e ela, bastante menos se­gura, propôs-me outro nome: o de Léon Felipe. Mal reposto ainda da canseira que a busca quevediana me causara, acolhi a sugestão com alívio, pois a obra do autor de EI payaso de las bofetadas comparada com a do autor dos Suenos, é brevíssima. Tão breve que bas­taram poucos minutos para apurar que as misteriosas palavras não tinham saído da pena dele. A memória tornara a enganar-me. Deixei portanto de fiar-me dela e pus-me a perguntar a amigos e conhecidos, tanto por­tugueses como espanhóis, se algum saberia dar-me fé de quem fosse um escritor que, pelos vistos, parecia não ter deixado outro sinal da sua passagem por este mundo. Um desses amigos sugeriu-me que visse no Shakespeare e eu fui, obediente e alvoroçado, procurar no Macbeth, que aí, segundo ele, se devia encontrar a minha pepita de ouro. Pois não, não senhor, não estava no Macbeth, não estava no Hamlet, o Shakespeare, por muito genial que tivesse sido, não conseguira chegar a tanto. Perdi­do no meio da biblioteca universal, sem guia nem ro­teiro, sem índice nem catálogo, não tive mais remédio que rematar desta maneira coxa o meu discurso no Paraninfo da Universidade de Sevilha: «Alguém (quem? a memória não mo diz) escreveu um dia: "Somos contos de contos contando contos, nada." Sete palavras melan­cólicas e cépticas que definem o ser humano e resumem a história da Humanidade. Mas, se é certo que não pas­samos de contos ambulantes, contos feitos de contos, e que vamos pelo mundo contando o conto que somos e os contos que aprendemos, igualmente me parece claro que nunca poderemos vir a ser mais do que isto, estes seres feitos de palavras, herdeiros de palavras e que vão deixando, ao longo do tempo e dos tempos, um testamen­to de palavras, o que têm e o que são.» A assistência, simpática, aplaudiu, e eu desci da tribuna saboreando o mel do grau que me haviam atribuído e amargando a triaga duma pergunta para que não tinha encontrado res­posta. E assim ficámos, ela e eu, estes três anos, até hoje.

Estava aqui a classificar e a arrumar alguns dos milhentos papéis vindos de Lisboa, quando me sai ao caminho um livro grosso que reunia fotocópias de no­tícias e artigos publicados. quando das Belles Étrangeres, aquela viagem de vinte escritores portugueses a França, em que, segundo opinião mais ou menos unânime, não nos portámos mal, honrámos a pátria e falámos francês... «Passaram seis anos, que vou fazer com isto?», pergun­tei-me. Decidi arrancar o que me dissesse directamente respeito e largar de mão o resto, pensando que os meus colegas e companheiros nessa viagem decerto já tinham feito o mesmo. Ora, entre os salvados, que encontrei eu? Uma entrevista dada a Antoine de Gaudemar, do Libération, e de que, de todo, não me recordava. Pus­-me a lê-la, e de repente salta-me aos olhos a misteriosa frase, tantas vezes procurada e nunca achada. Citara-a eu, sim, eu, não como a memória a tinha conservado, mas evidentemente a mesma: «Somos contos contando contos, nada», e em francês, sem graça nenhuma e sem minha culpa: «Nous sommes des contes contant des contes - le néant»... O nome do autor, escrito com to­das as letras, estava também ali: Ricardo Reis.

Tanto eu procurara lá por fora, e afinal tinha em casa o que buscava. Tempo perdido? Memória fraca? Talvez não. Apesar de todo o respeito que devo a Ricardo Reis, ouso afirmar que o verso que a memória me tinha ofe­recido - «Somos contos de contos contando contos, nada» - diz mais e diz melhor o que Reis quis dizer. Agora só tenho de esperar que a memória de alguém, sucessivamente esquecendo e recordando, por sua vez acrescente ao que eu acrescentei a palavra que ainda falta. O testamento das palavras é infinito.

 

28 de Fevereiro

Helena Carvalhão Buescu telefonou de Lisboa para me dizer que In Nomine Dei ganhou o Grande Prémio de Teatro da APE. Foi por unanimidade, acrescentou, e o júri era composto por Carlos A vilez, Maria Eugénia Vasques e Maria Helena Serôdio. Evidentemente, a peça não é má, e se lhe deram o prémio é porque entende­ram que o merecia, mas talvez o não tivesse se andas­se mais gente a escrever para o teatro em Portugal. Encomendassem as companhias peças (pudessem encomendá-las) e a situação seria diferente. Valha o meu teatro o que valer, In Nomine Dei não existiria se de Münster não mo tivessem pedido.

Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem res­ponsabilidade talvez não mereçamos existir.

 

1 de Março

O presidente Mário Soares esteve hoje em Lanzarote. Quando há um ano Pilar e eu fomos a Belém para lhe comunicar que nos mudávamos para as Canárias, disse­mos-lhe: «Se alguma vez tiver de viajar para aqueles lados...» A resposta, simpática: «Lá irei.» Naquela altura pensei que se tratasse de uma promessa política, como tantas outras fadada para o cesto roto dos esquecimentos logo à nascença, mas enganei-me. Mário Soares apro­veitou um convite para vir a um encontro de juristas em Tenerife e deu um salto à nossa ilha. Acompanhou-o Maria Barroso, a quem, acaso por efeito da sua conver­são ao catolicismo, dei comigo a tratar familiarmente por Maria de Jesus: já no jantar da embaixada em Roma me tinha escapado, uma ou duas vezes, o confiado trata­mento, mas disfarcei o lapso protocolar passando ime­diatamente ao «Dra. Maria Barroso» de sempre. O mais certo, porém, é a conversão não ter tido nada que ver para o caso (a ironia sem maldade é deste momento em que escrevo), e ser o meu «Maria de Jesus», simples­mente, a retribuição natural e equilibrada do seu amis­toso «Zé»...

Com eles vieram Manuel Alegre (que queria saber, por conta própria e alheia, por que tinha eu decidido viver em Lanzarote: o que viu deu-lhe a resposta), Maryvonne Campinos (o encontro em Tenerife homena­geara Jorge Campinos), o embaixador Leonardo Matias, a Estrela Serrano, o Alfredo Duarte Costa. Levámo-los a Timanfaya e à Fundação César Manrique porque não havia tempo para mais: Javier foi um magnífico cice­rone, com as datas e os factos na ponta da língua. Al­moçaram depois em nossa casa, com alguns problemas de logística causados por dois convivas não previstos, mas tudo acabou por se resolver. Falou-se da Lisboa Capital Cultural (repeti e aclarei as minhas críticas), de Europa inevitavelmente (tive a melancólica satisfação de ouvir dizer a Mário Soares que partilha hoje de algumas das minhas reservas, antigas e recentes, sobre a União Europeia: «Que será de Portugal quando acabarem os subsídios?», foi sua a pergunta, não minha). Aproveitei a ocasião e permiti-me substituir a pergunta por outras, mais inquietantes: «Para que serve então um país que depende de tudo e de todos? Como pode um povo vi­ver sem uma ideia de futuro que lhe seja própria? Quem manda realmente em Portugal?» Não tive respostas, mas também não contava com elas. A sombra veio e passou, a conversa transferiu-se para temas menos encruzilhados. Passadas estas horas, ainda me custa a acreditar que Mário Soares tenha cá estado em casa. Que voltas teve o mundo de dar, que voltas tivemos de dar nós, ele e eu, para que isto fosse possível.

 

2 de Março

Não chegou a ser mais uma história da aviação: no aeroporto de Madrid dois brasileiros só me perguntaram se eu era Saramago. Não tenho outro remédio, foi o que me apeteceu responder-lhes, mas seria, além de mal­-educado, desagradecido. Ficámos a conversar uns mi­nutos e eles recordaram-me uma entrevista que dei hátrês anos a Jô Soares, umas declarações minhas, pessi­mistas, sobre a Europa. Curioso: não é a primeira vez que noto que a União Europeia preocupa os latino-ame­ricanos, talvez por quererem saber o que os espera quan­do a lógica do mercado e o apetite imperial dos Esta­dos Unidos os obrigarem a aceitar no seu continente uma planificação económica em comparação com a qual, como já escrevi algumas vezes, a planificação soviética não passou de um experimento de maus aprendizes.

 

3 de Março

O olho esquerdo, o que foi operado à catarata, está perfeito, o outro, o do descolamento da retina, não acusa mazela nova, Mâncio dos Santos «dixit». Pareceu-me, no entanto, que ele não teria ficado nada surpreendido, nem eu, percebo agora, teria por que surpreender-me, se no olho direito me tivesse aparecido, como aconteceu há um ano ao seu vizinho do lado, um primeiriço sinal de catarata. Já devia saber que em olhos não há que fiar. Pelo menos desde O Evangelho segundo Jesus Cristo, aquela famosa ilusão de óptica que me fez ver o que não existia: umas quantas palavras portuguesa no meio duma confusão de jornais espanhóis e doutras partes...

Boas notícias na editora: Cadernos de Lanzarote sai­rá no princípio de Abril e, nestes meses próximos, reeditar-se-á, finalmente, a História do Cerco de Lisboa, que parece ter nascido em má hora, porquanto levou cinco anos a esgotar os cinquenta mil exemplares da pri­meira edição. Também vai ser reeditado o Memorial... Zeferino conta-me a história daquele editor português que em Frankfurt lhe explicou por que é um perigo editar-me. Como amostra de raciocínio tortuoso será difícil encontrar melhor: considerando que os meus li­vros se vendem muito, a Caminho tomou-se dependente de mim para toda a vida, à mercê dos meus caprichos. Um dia destes dá-me a veneta, entro como vendaval pela porta dentro da editora e imponho a minha lei, condições leoninas que os pobre directores, aterroriza­dos com a ameaça de perder-me, terão de resignar-se a aceitar, esmagados pela pata de um escritor de sucesso, para usar a linguagem grata ao impagável Cavaco Silva. Realmente, não compreendo como é que tal ideia, tão simples, tão eficaz, nunca me tinha passado pela cabeça. Para rematar, diga-se que este editor tem um pai que também é editor, mas, pelos vistos, herdou pou­co do progenitor. Refiro-me à sensibilidade, evidentemente.

 

4 de Março

Em Braga, duas horas de conversa com alunos da Escola Secundária Carlos Amarante. Fizeram «leituras» de umas quantas crónicas de Deste Mundo e do Outro, apresentaram ingénuas teatralizações de outras. O que mais me surpreendeu foi a serenidade e a generosidade com que estes rapazes e raparigas se enfrentaram com textos literários formalmente bastante simples sem dú­vida, mas urdidos de subtilezas de um outro tempo, de um mundo de ideias e de valores que já soam anacro­nicamente nos modos e conteúdos de comunicação ac­tuais. No fim ofereceram-me uma pena de prata (os símbolos permanecem, apesar de tudo) e um livro (fo­lhas soltas acondicionadas numa caixa) que reúne o con­junto dos trabalhos, ilustrações incluídas, sem faltar um retrato meu, copiado de uma fotografia do tempo em que ainda usava patilhas...

 

Jantar com Manuel Vázquez Montalbán, que veio também à Feira do Livro e que amanhã lançará o seu Galíndez.

 

5 de Março

Na abertura da Feira, a propósito do tema de In Nomine Dei, falei de tolerância e intolerância, do mal que vivemos uns com os outros e do pouco que faze­mos para viver melhor. Usei as palavras mais simples (descubro todos os dias a eficácia da simplicidade) e creio ter alcançado bastante fundo o entendimento e o coração de quem lá estava.

 

À noite cantou Paco Ibafíez. A sua voz está reduzi­da a um fio ténue, mas nunca foi tão expressiva, tão capaz de delicadas modulações, a ponto de poder-se per­guntar se existirão, em todas as escalas conhecidas, notas capazes de reproduzir na pauta o que da garganta lhe vai saindo. A Montalbán e a mim dedicou-nos Paco, com sorridente manha, a canção que fez sobre o poema de Rubén Dario Juventud, divino lesara, ya te vas para no volver, e a Pilar a de um poema de Lorca, CanGÍón de jinete, cuja interpretação deixou o público sem res­piração. Sem respiração tinha eu ficado quando, entran­do um pouco atrasado no auditório, mas antes ainda de começar o recital, fui recebido com as palmas das mil pessoas presentes. Mário Soares, que também veio à inauguração da Feira, foi magnânimo: «Isto é para si.»

 

6 de Março

Na passagem pelo Porto, caminho da estação de Campanhã, vi estas palavras pintadas numa parede: «Po­der Nacional Branco», adornadas com uma cruz no in­terior de um círculo. Pergunto-me contra quem estaráeste «Poder Nacional Bruto»: contra os operários cabo­-verdianos, ou contra os capitalistas japoneses?

 

7 de Março

Entro num táxi para ir à editora e o motorista per­gunta-me (outra vez) se eu sou quem ele julga. Respon­do-lhe que sim, longe de adivinhar o que estava para acontecer. Apresentou-se o homem: «Sou o Manuel Campestre, da Azinhaga.» Julgando pela idade que apa­rentava, poderia muito bem ter sido um dos meus com­panheiros de jogos infantis e descobertas adolescentes, mas os Campestres, embora não pertencendo à linhagem exclusiva dos grandes e médios proprietários, estavam, pelo seu estatuto de rendeiros habituais, bastante acima do nível social em que penava o geral da minha famí­lia, tanto do lado paterno como do lado materno. Eu ouvia falar de um tal José Campestre aos meus avós e aos meus tios, mas creio que nunca o cheguei a ver, só me ficou na lembrança o tom com que se referiam a ele, um misto de respeito e temor para que nunca encontrei explicação. Não era agora altura para averiguações des­tas, o dever e o gosto mandavam que me interessasse pela vida de um patrício que tanto parecia saber da minha. Lamentava-se ele de não ter ali um livro meu para que lho autografasse e eu disse que isso se resol­veria quando chegássemos à editora. Depois, perante a risonha curiosidade de Pilar, passámos à evocação dos velhos tempos, e, ao cabo de umas quantas memórias comuns, ainda que não coincidentemente vividas, Ma­nuel Campestre contou um episódio de quando era pe­queno, no qual havia sido parte e vítima o meu avô João Saramago, pai do meu pai. Foi o caso que este miste­rioso avô (misterioso, digo eu, porque se contam pelos dedos as vezes que falei com ele) era guarda de uma grande propriedade, pelo que, sempre que havia algo para defender da cobiça dos furtivos, tinha de pernoitar numa cabana no meio do campo (costume e necessida­de dos guardas todos, como foi também, por exemplo, o meu tio Francisco Dinis). Ora, esse meu avô, por pre­guiça de levantar-se a meio da noite para verter águas, como então se dizia, usava, para satisfazer as urgências nocturnas da fisiologia, uma cana comprida que atraves­sava o enramado da cabana e por ela, aliviado, fazia escorrer para fora a mijada. Tinha costela de inventor este João Saramago... De que houve então de lembrar­-se o malvado Manuel Campestre quando deu pela habilidade do velho? Tapou o orifício de saída da im­provisada conduta e o resultado foi ter-se mijado todo o João Saramago quando a cana começou a devolver à origem o que já não lhe cabia dentro... Os rapazes são uma peste, nem o diabo quis nada com eles. Este levou uma sova do pai, a quem o ofendido e molhado patriar­ca se foi queixar, e nós, aqui, sessenta anos mais tarde, dentro de um táxi em Lisboa, rimos a bom rir com esta antiga e saborosa história, de um tempo mítico que a distância, milagrosamente, parecia ter tomado inocente. Quando chegámos à editora, ofereci ao Manuel Campes­tre dois livros, e ele, por sua vez, não quis que eu lhe pagasse a corrida. Despedimo-nos com um abraço fortís­simo, como se durante toda a vida tivéssemos sido unha e carne.

 

Katia Lytting, a cantora sueca que em Milão inter­pretou pela primeira vez a personagem de Blimunda, tem um pai, e esse pai, do mais bem-parecido que se pode imaginar apesar da idade, casou-se, recentemente, pela terceira ou quarta vez. Do matrimónio (dizem-me que a mulher é uma juvenilíssima norueguesa) nasceu entretanto um rebento, uma menina. Ora, acabo agora mesmo de saber que à criança foi dado o nome de Blimunda e que, na cerimónia do baptizado, Katia can­tou uma ária da ópera... Blimundas, neste mundo, além da do Memorial, já são duas: a filha de Katia também se chama assim. E eu, que só tenho uma filha, que Blimunda não é, mas Violante, vejo com assombro co­mo me vai aumentando a descendência...

 

Jantar de festa com Manuel Vázquez Montalbán. Não me lembro de ter visto alguma vez Manolo tão feliz. Os brindes foram muitos, todos virados para o lado esquerdo, o do coração e o da política. A certa altura veio à baila o 25 de Abril e então os portugue­ses dividiram-se em optimistas e pessimistas, uns dizen­do que tínhamos tido o que merecíamos, outros que foi pena não merecermos mais... As festas, em geral, e esta não podia ser excepção, põem-me melancólico, mas no regresso dei por mim a dizer a Pilar: «Se eu tivesse morrido aos 63 anos, antes de te conhecer, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora.»

 

8 de Março

Parecia que não ia acontecer nada hoje, e vi A Lis­ta de Schindler de Spielberg. Depois de tantos e tantos filmes sobre o holocausto, imaginava eu que já não haveria mais nada para dizer. Em três horas de imagens arrasadoras, Spielberg fez voltar tudo ao princípio: o homem é um animal feroz, o único que verdadeiramente merece esse nome. Amanhã há mais.

 

9 de Março

Segóvia. Por Ángel Augier, poeta cubano, soube que Eliseo Diego morreu. Quando a fama e o reconhecimen­to público, com o Prêmio Juan Rulfo, lhe foram bater, enfim, à modesta porta, morreu. A vida é capaz de par­tidas ignóbeis.

 

Conferência de Arrabal - uma insuportável exibi­ção de cabotinismo que chegou à abjecção: mas o pú­blico, quase todo de jovens, enchia a sala - sobre aquilo que ele denominou «a explosão da razão». Con­fesso que o teria compreendido melhor se ele tivesse tido a franqueza de apresentar-se como um exemplo perfeito e acabado dessa mesma explosão... Amanhã será a vez de Fernando Sánchez Dragó, que, pelo que dele sei, «místico» e anti-racionalista, deverá navegar nas mesmas ou semelhantes águas. Ao jantar esteve Maria Kodama.

 

10 de Março

De manhã, visita à casa onde durante treze anos vi­veu Antonio Machado, professor de Francês. Está na Calle de los Desamparados e era naquele tempo uma pensão para hóspedes de poucos teres, como convinha a um poeta pobre. Emoção como a que vim experimen­tar aqui, só me lembro da que me abalou quando en­trei pela primeira vez na casa de Teixeira de Pascoaes. O mesmo arrepio, a mesma irreprimível vontade de chorar. Claro que o bom senso tentava explicar-me que, tantos anos passados, o mais certo era não serem os móveis já os mesmos, que Machado não reconheceria a paisagem que hoje se vê da estreita janela do que foi o seu quarto, mas a emoção, indiferente a razões, varria tudo e fazia de mim um desamparado mais, entre os que deram o nome à rua. Imaginando-a pelo que os meus olhos hoje vêem, esta habitação teria servido de cela exemplar a um frade de uma ordem rigorosa: aqui, o corpo, já que não podia beneficiar-se de confortos, não teve mais remédio, para sobreviver, que abrir as portas ao espírito.

Acabada a visita, descemos todos (Eduardo Louren­ço e Annie, Nuno Júdice, Zeferino Coelho, Maria Kodama e nós) pelo caminho que tem o nome doutro poeta, até à igreja que foi dos Templários, frente ao convento fechado onde se encontra o túmulo de San Juan de la Cruz, é ele o poeta, e à capela onde o santo costumava recolher-se para orar e contemplar. Por este mesmo caminho descia pois Juan de Yepes, assim o diz I o letreiro da rua, mas o soalho do quarto de Antonio Machado estava muito mais perto do chão verdadeiro que ele pisou do que estão este empedrado e este asfalto do pó natural e da lama que pisaram os pés de Juan de la Cruz. Antonio Machado não precisou que o chamassem, San Juan de la Cruz não pôde chegar aon­de o esperávamos.

 

Conferência à tarde. Chamei-lhe Leituras e reali­dades. O que quis dizer foi que, não podendo saber o que é, realmente, a realidade, o que vamos fazendo são meras «leituras» dela, «leituras de leituras», infini­tamente. Arte e Literatura são «leituras». Depois da con­ferência houve uma mesa-redonda, com o Eduardo Lourenço, o José Cardoso Pires, o Nuno Júdice e o Zeferino Coelho. Portou-se bem em campo a selecção portuguesa.

 

11 de Março

Em Madrid, no Círculo de Bellas Artes, juntam-se quarenta pessoas para ouvir o que umas poucas de ou­tras têm para dizer da situação na ex-Jugoslávia, ou, com mais precisão, em Sarajevo. Identifico mais es­critores oriundos daquelas paragens, mas percebo que são quase todos bósnios. A sala, deserta, assusta. Uma cidade com três milhões de habitantes não deu mais do que isto. Os discursos são longos, arrastados. Dá von­tade de perguntar: «Sarajevo ainda existe?» Num inter­valo Pilar diz-me que a organização admite a hipótese de ir repetir o encontro em Sarajevo. Repetir isto? Para quê? Para sermos corridos à pedrada?

 

Chegou Yvette Biro. Falámos da possível adapta­ção da Jangada de Pedra ao cinema. No fim da con­versa, o possível já começava a tornar-se provável. Onde está, onde se meteu aquela minha apregoada vontade de não permitir adaptações? Não cedi ao di­nheiro, porque nem sequer dele se falou. A que cedi então? Ao entusiasmo, à paixão com que esta mulher fala do livro, à inteligência com que o entendeu, à sensibilidade que a conduz, em três palavras, ao essen­cial. Claro que a todo o tempo poderei dizer que mu­dei de ideias, mas pergunto-me se terei coragem para desiludir esta confiança.

 

12 de Março

As águas mornas acabaram por ferver. A culpa foi minha, ao anunciar que, não tendo, sobre a situação da ex-Jugoslávia, informações suficientes para poder falar dela com conhecimento de causa, leria algumas páginas de reflexão sobre o problema do racismo e as obriga­ções morais e cívicas dos escritores (era de escritores o encontro) neste momento da Europa e do mundo. Caíram-me todos em cima como matilha, que não senhor, que eu tinha era de optar, dizer ali, e já, se estava pelos sérvios ou pelos bósnios. Está claro que estes abencer­ragens de um esquerdismo irresponsável me conhe­ciam mal: fazerem-me uma exigência nestes termos, esta ou outra qualquer, equivalia a encontrarem-me como me encontraram: duro como uma pedra. Trocá­mos palavras azedas e quando o colóquio terminou não me eximi a dizer-lhes o que pensava de semelhantes métodos. Desculparam-se com grandes manifestações de respeito e admiração, mas o mal estava feito. Os processos de intenção continuam, qualquer pretexto serve.

 

14 de Março

A Múrcia, via Lisboa, chegam-me notícias de Ale­manha e Itália. Está contratado, assinado e confirmado que Divara será apresentada no Festival de Ferrara do ano que vem, por alturas da Páscoa. Com duas outras óperas insignificantes: Fidelio e A Flauta Mágica... E temos boas razões para crer que Blimunda, com uma encenação diferente, será vista e ouvida pelo público de Estugarda na próxima temporada... Não penso vir a tor­nar-me italiano ou alemão, mas a evidência de certos factos obriga-me a concluir, por minha conta e à minha custa, que muitas e sentidas razões tinha aquele que disse, pela primeira vez, que ninguém é profeta na sua terra.

 

Leitor de Pessoa, autor de Ricardo Reis foi o títu­lo, propositadamente ambíguo, da conferência que dei na Universidade. Não creio estar a iludir-me se disser que consegui interessar os assistentes, quase todos eles es­tudantes. Com o exagero já observado noutras ocasiões, fui apresentado por uma jovem professora, Sagrario Ruiz, a mesma que, em Vigo, quando da homenagem a Torrente Ballester, me convidou a vir aqui. Antes do almoço (quem quiser comer bem, vá a Múrcia), leva­ram-me a uma concorridíssima rueda de prensa, onde me encontrei com uma inusitada abundância de micro­fones, gravadores e câmaras de televisão, como se vir este escritor português à cidade tivesse sido considera­do acontecimento importante...

 

15 de Março

Repetida em Albacete a conferência de Múrcia. Saiu ainda melhor, como notou, risonho, com fingido zelo, Victorino Polo, professor da Universidade de Múrcia, que dali veio expressamente para estar connosco. Tan­to naquela cidade como nesta tivemos o privilégio de conhecer gente amável e simpática, disponível para a amizade desde o primeiro momento.

 

Tínhamos comido bem em Múrcia, mas Albacete em nada lhe ficou atrás.

 

17 de Março

Em Lisboa, antes da assembleia geral da Sociedade Portuguesa de Autores, o Fernando Lopes diz-me que a estação de televisão franco-alemã AR TÉ tinha acabado de comprar o documentário do João Mário Grilo. Tam­bém esta é uma excelente notícia, para todos, a come­çar pela produtora, a Isabel Colaço, que tinha recebido da RTP um subsídio de cinco mil contos apenas, gasto já até ao último tostão.

 

21 de Março

Miguel García-Posada, um dos melhores críticos literários espanhóis actuais, escreve sobre livros e com­putadores num artigo interessante: Más alIá deI libra electrónico. Falando dos escritores que se negam a empregar o computador e da relação entre palavra e pensamento que deve presidir à escrita artística ou re­flexiva, observa: «É uma realidade que a velocidade da palavra electrónica conspira contra essa relação e bom­bardeia a fértil solidão da página em branco. O com­putador alimenta insidiosos inimigos: a visualização do ecrã e a supressão das emendas criam a ilusão do texto perfeito, um texto que se vê mais do que se lê. Impura ilusão: confrontado com a realidade da impres­são, o escrito manifesta lacunas e insuficiências: de or­dem sintáctica, de desvertebração formal.» E mais adiante: «O escritor que prescinda da fria, dolorosa, re­visão à mão dos seus originais está condenado sem remédio à mediocridade. A palavra criadora precisa do silêncio, da reflexão, do alto amor que na palavra se consuma, e isso só o dá o papel ou só através dele se alcança. »

Leio e vejo-me dividido entre o reconhecimento das evidências que García-Posada lucidamente expõe e uma certa ideia de que talvez as coisas não sejam só assim. Em primeiro lugar porque deveríamos entender o ecrã como o que de facto é: a mais branca de todas as pá­ginas, pronta para recuperar a sua brancura original sem­pre que a vontade (ou a inabilidade...) do escrevente o determine; em segundo lugar, porque, dócil a todas as emendas, é também o lugar sobre o qual mais activa­mente se pode exercer a reflexão, uma espécie de in­cruento campo de batalha donde as palavras feridas, consideradas inválidas para a ocasião, vão sendo suces­sivamente retiradas para darem lugar a reforços frescos.

A paciência do computador é infinita, a do papel tem os seus limites, seja pela dimensão, seja pela resistên­cia física do suporte. Pessoalmente, confesso que me custa algum trabalho recordar como compus (O verbo é intencional) tantos milhares de páginas na máquina de escrever, tendo de elaborar primeiro uma frase, um pen­samento, para depois o passar ao papel, e logo com­preender que ia ser necessário corrigi-lo, penosamente, batendo uma e muitas vezes a letra x (que para pouco mais servia), ou escrevendo entre as linhas, à espera do momento, também ele inevitável, em que, retirada a folha da máquina, novas emendas urgissem. Diga-se, no entanto, que não sou pessoa para fiar-me de computadores. Não sei onde se encontram as palavras (a disquete é um objecto tosco, sem personali­dade, o menos parecido que há com um livro), por isso, mal termino uma página, imprimo-a. Já emendei muito no ecrã, tomarei a emendar no papel. Afinal, sou um escritor à antiga. García-Posada tem razão: viva o pa­pel!

 

22 de Março

Por Jorge Amado, sempre atentíssimo aos amigos, soube que fui admitido como membro da Academia Universal das Culturas, de Paris, de parceria com Emesto Sabato e alguns outros para mim desconhecidos. E porque a «felicidade», tal como se costuma dizer da «desgraça», quando vem, nunca vem só, chegou-me também hoje, da Fondation Adelphi, a grata notícia de que a minha já quase esquecida gabardina, depois de mil aventuras e perdições arrancada à burocracia dos cami­nhos-de-ferro belgas, está finalmente a caminho de Lanzarote...

 

23 de Março

Há dias escreveu-me Jean Daniel, director do Nouvel Observateur, a convidar-me a participar num número especial da revista, no qual uns quantos escritores (diz ele que os principais do nosso tempo...) irão descrever como foi (vai ser) o seu dia 29 de Abril. A primeira ideia deste género teve-a, ao que parece, Máximo Gorki, em Agosto de 1934, propondo a publicação de um li­vro colectivo sobre o tema Um Dia do Mundo, com o fim de mostrar (traduzo da carta) «a obra artística da História num dia qualquer». Respondi que sim porque realmente não pude resistir à tentação (se a carne é fra­ca, o espírito é mais fraco ainda) de figurar, ao menos uma vez, e graças à liberalidade de Jean Daniel, entre os principais do tempo... Tenho porém algumas suspei­tas sobre a inteira verdade dos futuros relatos. Dirão os escritores convidados o que de facto lhes vai acontecer nesse dia? Não decidirão fazer dele, cientemente, um dia especial, repleto de actos interessantes e ideias interes­santíssimas? Se eu aqui fosse passar o dia à praia, teria a honestidade de confessar simplesmente: «Estive na praia, tomei banho, almocei, dormi ao sol, li um roman­ce policial»? Diz Jean Daniel que no livro organizado por Gorki colaboraram, entre outros, Stefan Zweig, Bertolt Brecht, H. G. Wells, André Gide e Romain Rolland. Pois muito gostaria eu de saber como descreve­ram estas ilustres personagens o seu dia 27 de Setembro de 1935, que foi então o escolhido. Talvez entre as ver­dades que lá se encontrem (não duvido de que as haja) seja hoje possível reconhecer, com a joeira de sessenta anos passados, o que apenas se deveu à fantasia, se não à vaidade, dos escritores a quem foi concedida a facili­dade de acreditar ser o seu dia um dia do mundo. Um dia do mundo... Espero que o Nouvel Observateur não cometa a imprudência de retomar o título no número que irá comemorar o seu 30º aniversário: nos tempos que vivemos, «um dia do mundo» teria de ser, nem mais nem menos, a descrição do inferno...

 

26 de Março

Em Buenos Aires, para a Feira do Livro. Viagem esgotante, horas que parecem não ter fim. Em Madrid foi preciso esperar que aparecesse (e apareceu, por sor­te) uma mala que se tinha deixado ficar em Lanzarote. Depois, absurdos problemas por causa dos bilhetes, pas­sados em nome de duas criaturas inexistentes: Mrs. Saramaguo e Mrs. Saramaguo, provavelmente casadas com doi irmãos de urna família Saramaguo, onde quer que ela esteja... Com a pressa - só recebemos os bi­lhetes praticamente em cima da hora da partida - não tínhamos reparado no disparate. Em Lanzarote não nos haviam posto dificuldades (sendo o voo nacional, não são pedidos os passaportes), mas de Madrid não sairía­mos se não fo se encontrar-se urna alma bondosa de funcionário, tão confiada que foi capaz de acreditar que não queríamos emigrar clandestinos para a Argentina com nomes falsos e sexos baralhados. Substituíram-se os bilhetes e enfim pudemos embarcar. Em viagens assim, feitas de noite, não durmo. Espero que as horas passem e assisto, resignado, ao sono dos outros. Pilar, mais ou menos, descansou. Tentei atrair ao menos a sonolência vendo O Fugitivo sem os auscultadores postos, com a vã esperança de que as imagens acabassem por hipno­tizar-me: penas perdidas foram, o sono não veio. A his­tória deste Fugitivo é conhecida: o eterno acusado inocente, o eterno polícia obstinado e, no caso, um de­senlace que só não pôde ser totalmente «happy» porque o realizador não se atreveu a ressuscitar a vítima. Har­rison Ford repete o seu papel de Indiana Jones: ninguém lhe pedia mais.

 

27 de Março

Depois de meteoricamente recebidos por uma «azafata» da Feira do Livro e largados num hotel de escasso gosto e nenhum conforto, acudiram a tomar providencialmente conta de nós os directores de Espasa Calpe - Guillermo «Willy» Schavelzon, Ricardo Ibarlucía, Alberto Díaz - que nos transferiram a mais benignas paragens. Novamente creio ter tido sorte com editores: estes parecem-me gente da melhor, simpáticos, cultos, inteligentes. Falámos de literatura, da Argentina, do mundo. Contaram-nos histórias do presidente daqui, Carlos Menem, em tudo iguaizinhas aos prodígios inte­lectuais obrados nas terras lusitanas por Cavaco Silva e Santana Lopes. Por exemplo: há tempos, Menem, falan­do num acto cultural qualquer, resolveu introduzir no discurso, que obviamente não tinha sido escrito por ele, algo da sua própria lavra, e não encontrou nada melhor do que declarar que a sua vida tinha sido influenciada de maneira profunda pela leitura dos romances de Jor­ge Luis Borges... E uma outra vez, valentemente, afir­mou que o seu livro de cabeceira era a Obra Completa de Sócrates... Se um dia destes Menem se vai deste mundo, podemos despachar para lá o nosso Santana Lopes: os argentinos não dariam pela diferença.

 

28 de Março

Entrevistas, entrevistas, entrevistas. Pablo A velluto, o encarregado das relações com a imprensa, quase não me deixou uma hora de folga. O meu comportamento é absurdo: não sei defender-me, entrego-me a cada en­trevista como se tivesse a vida em jogo. Às vezes pare­ce-me surpreender na cara dos jornalistas uma expressão de assombro. Imagino que estarão a pensar: «Por que to­mará ele isto tão a peito?»

 

O vice-presidente da Academia Argentina de Letras, Jorge Calvetti, vem dizer-me duas coisas: a primeira, que será ele o meu apresentador na conferência que darei na Feira do Livro; a segunda, perguntar-me se eu aceitaria ser membro correspondente da dita Academia... Aturdido pela surpresa (nada, desde que estou em Buenos Aires, me havia feito esperar tal coisa), ouvi­-me a responder que sim senhor, que agradecia a honra e que tudo faria para a merecer. Quando ele se foi em­bora, desabafei com Pilar: «Este mundo está louco.» E amanhã vou ter de perguntar aos amigos que Acade­mia é esta de que me comprometi a ser membro. Não que duvide da bondade dos confrades que me vão re­ceber no seu seio, claro está, mas é normal gostar de saber em que companhia vamos.

 

29 de Março

Começo a suspeitar que existe por aí uma central de informação especializada na difusão de notícias falsas contra as mais inocentes pessoas do mundo. Em quase todas as entrevistas tenho tido de esclarecer que, ao contrário da firme convicção dos entrevistadores, não deixei de ser comunista nem abandonei o Partido. Ain­da olham para mim como se fosse sua obrigação duvi­dar sempre da boa-fé de gente da minha espécie política, mas, diante da cara séria que lhes ponho, parecem fi­car convencidos. Alguns não foram capazes de disfar­çar que prefeririam que a verdade fosse a outra, mas a outros iluminaram-se-Ihes os olhos. Um destes, no fim, pediu-me licença para me abraçar...

 

Com umas quantas necessárias modificações, repeti aqui a conferência que tinha dado em Tenerife: Des­cubrir ai otro, descubrirse a si mismo. Tema demasia­do «duro» para uma ocasião como esta, mas o colóquio que se seguiu, virado quase todo para questões mais literárias, acabou por equilibrar a balança. Depois assi­nei livros. Um carinho extraordinário. Gente nova. Re­encontrei um dos «chicos» de Mollina: Manuel Lozano. Uma mulher pede-me um autógrafo e diz-me que a sua vida mudou depois de ter lido o Evangelho. Lembrei­-me logo de Menem, mas decidi acreditar... Se pudesse, teria puxado aquela pessoa à parte e ter-lhe-ia perguntado: «Mudou, como? Explique-mo.»

 

30 de Março

Numa mesa-redonda sobre O Futuro do Romance retomei a ideia (talvez merecedora de uma exploração que não está ao meu alcance) de que o romance deve­ria abrir-se, de certa maneira, à sua própria negação, deixando transfundir, para dentro do seu imenso e fati­gado corpo, como afluentes revitalizadores, revitalizados por sua vez pela miscigenação consequente, o ensaio, a filosofia, o drama, a própria ciência. Sei bem que nos tempos de hoje, de frenéticas e micrométricas especia­lizações, soará a descabelada utopia este ideal neo­-renascentista de um texto englobante e totalizador, uma «suma», enfim. Porém, como não faltam vozes a anun­ciar a iminente entrada da Europa numa nova Idade Média, o que faço não é mais que antecipar o Renas­cimento que a ela (fatalmente) terá de seguir-se.

     Jantámos na Feira: o embaixador Maimoto de      Andrade e a mulher, Irene Lawson, o vice-presidente da Academia, Jorge Calvetti (a mulher dele, à despedida, chamou-me Saramaguíssimo), Erik Orsenna, o autor de   L' Exposition Coloniale, a quem o ministro conselheiro da embaixada de França apresentou deste modo ridículo: «Efik Orsenna, prémio Goncourt.» O sorriso contra­feito de Orsenna pedia desculpa.

 

31 de Março

Entre as nove e meia da manhã e a uma hora da tarde, quatro entrevistas. Não sei que diabo de interes­se possam ter ainda declarações tantas vezes repetidas. Almoçámos com Maria Kodama e Ricardo Ibarlucía. Não me lembro já porquê, vieram à conversa as premo­nições, os pressentimentos, as superstições e outros quejandos mistérios do desconhecido, da alma e do além. Todos mais ou menos contra mim, ou a minha humilde razão contra as fantasias deles. Quando já nos havíamos cansado de não estar de acordo, o tema se­guinte - inevitavelmente - foi Jorge Luis Borges. Ricardo tentou explicar as atitudes de Borges durante a ditadura militar. Confirma que teve um momento de fraqueza, ou de boa-fé, quando acreditou que os milita­res poderiam resolver os problemas do país, mas que não tardou a compreender que tinha caído em erro e imediatamente passou de apoiante a crítico. Ricardo apresentou exemplos. Quando da guerra das Malvinas, durante uma entrevista, perguntaram a Borges o que pensava da legitimidade da reivindicação argentina, e ele respondeu: «Por que é que não as dão à Bolívia, que não tem saída para o mar?» O escândalo foi grosso, mas piorou quando, tempos depois, sarcasticamente, afirmou que os generais argentinos nunca tinham ouvido asso­biar uma bala. Respondeu-lhe um deles, furibundo, pro­testando que tinha estado em tal e tal parte, em tal e tal batalha, e Borges encerrou o assunto: «Sim senhor, o general Fulano ouviu assobiar uma bala.»

 

Fomos à Plaza de Mayo. Sabíamos o que íamos en­contrar, mas não adivinhávamos o que íamos sentir. Pa­rece simples e fácil de dizer, umas quantas mulheres idosas - as Madres de la Plaza de Mayo - andando em círculo, numa longa fila, com os seus lenços brancos na cabeça e a sua dor infinita, mas a comoção, irrepri­mível, aperta-nos a garganta, de repente as palavras fal­tam. Entram outras pessoas na fila, alguns jovens, nós entramos também. Uma destas mulheres, Laura Bona­parte, perdeu o marido e seis filhos, desaparecidos entre 1975 e 1977. Pediu-me um autógrafo para levar a um neto, disse-me quanto tinha gostado de ler o Evangelho, e por fim tirou o lenço que levava na cabeça e deu-mo como agradecimento pela leitura do livro e como recor­dação de uma «madre de la plaza de Mayo». Abraçámo­-nos a chorar. Os nomes, escritos no lenço, são: Mário, Noni, Irene, Victor, Santiago, Adrián, Jacinta. Nenhum está vivo...       ­

 

Jantar na embaixada. Gente no geral simpática, mas toda a bela tem o seu senão: alguém - um antropólogo argentino - disse a Pilar que Franco e Salazar tinham sido dois cavalheiros, e ela respondeu que sim, sem dúvida, mas que a esses dois, para ser-se inteiramente justo, havia que juntar dois outros da mesma cavalheiresca espécie: Adolfo Hitler e Benito Mussolini... O ar­gentino embatucou.

 

1 de Abril

Almoço com Adolfo Bioy Casares. Um autêntico e genuíno encontro, como vai sendo raro. Bioy Casares, que já tem oitenta anos, sofreu há tempos um acidente de que ainda não se restabeleceu, nem provavelmente virá a restabelecer-se por completo, mas o que lhe enevoa os olhos de tristeza, sabemo-lo, é a morte recente de uma filha em circunstâncias trágicas. Este homem tem uma personalidade em verdade extraordinária: dis­creta, suave, incrivelmente sedutora. Em certa altura falou-se de Octavio Paz e encontrámo-nos todos concor­des em não gostar do sujeito. Bioy sorria ao dizer que era a primeira vez que almoçava com pessoas que não se declaravam admiradoras fanáticas de Paz... Para não ficar de menos em ironia, adiantei a suspeita, se calhar com mais acerto do que parece, de que Octavio Paz, apesar de tão louvado e citado, deve ser o escritor me­nos lido do século xx.

 

5 de Abril

Mal refeito ainda da viagem de regresso, tive de decidir-me a responder, enfim, aos inquéritos do Público e do Expresso, ambos sobre o vigésimo aniversário do 25 de Abril. A Vicente Jorge Silva, que convidou «vinte personalidades representativas dos mais variados secto­res e quadrantes da vida nacional» a escolherem «os dez melhores e os dez piores acontecimentos, situações e fenómenos registados» desde a revolução, respondi brevissimamente: que o pior do 25 de Abril foi o 25 de Novembro; que o pior de ateio foi Saraiva de Carvalho; que o pior de Vasco Gonçalves foi Vasco Lourenço; que o pior do Primeiro de Maio foi o Dois de Maio; que o pior da Refonna Agrária foi António Barreto; que o pior da Descolonização foi Agora Amanhem-se; que o pior das Nacionalizações foi Salve-se Quem Puder; que o pior da Refonna do Ensino foi Não Haver Ensino; que o pior da Liberdade de Expressão foi ser Liberdade Sem Expressão; que o pior da Democracia (até agora) foi Ca­vaco Silva. E a Joaquim Vieira, que me pedira 125 pala­vras sobre as circunstâncias em que recebi «a notícia de que estava em curso o derrube do Estado Novo» e «as recordações mais marcantes do período que se seguiu, até [mais de 1975», dei-lhe rigorosamente as palavras pedi­das, que assim rezam: «Nesse mês donni algumas noites em casas de amigos não marcados pelo regime. Vários camaradas meus haviam sido presos, a minha vez podia não tardar. Passei uns dias em Madrid, mas, como a po­lícia não se "manifestou", regressei a Lisboa. Vim a sa­ber depois que a minha prisão estava marcada para o dia 29... Numa reunião na Seara (ouviam-se ainda tiros nas ruas) fui encarregado de escrever o editorial para o pri­meiro número "livre" da revista.» E rematei: «Não esque­cerei o Primeiro de Maio, nem o 26 de Setembro, nem o 11 de Março, nem a Assembleia do MF A em Tancos, nem os meses em que fui director-adjunto do Diário de Notícias. Não esquecerei o Alentejo nem a Cintura Indus­trial. Não esquecerei o que então chamámos Esperança.»

Suspeito que não terão apreciado as respostas nem o tom em que foram dadas. O caso é que inquéritos destes me irritam pela sua inutilidade. Servem para en­cher papel.

 

6 de Abril

Pelo andar da carruagem em que vamos, os correios do século XXI serão a perfeita imagem do caos. Estava eu aqui estranhando com os meus botões ter sido neces­sária a atenção carinhosa de Jorge Amado para final­mente saber que em Dezembro do ano passado me tinham admitido na tal Academia Universal das Cultu­ras, de Paris, quando o certo foi o presidente dela, Elie Wiesel, me ter escrito em 18 de Janeiro a informar-me de que eu havia sido cooptado, acrescentando, fórmula diplomática consagrada, mas gentil, que esperava que eu aceitasse juntar-me a eles. Simplesmente, essa carta nunca chegou aqui, e se vim a ter conhecimento dela foi porque a secretária-geral da Academia acabou por estra­nhar o meu silêncio e decidiu manifestar-se, enviando cópia da comunicação do presidente. Simplesmente, uma vez mais, a carta dela, posta no correio, em Paris, no dia 4 de Março, só ontem chegou às minhas mãos... Perguntar-se-á que diabo de importância encontro eu num episódio, ao parecer irrelevante, para vir a correr registá-lo aqui, e eu respondo que lhe encontro toda a importância, pela muito evidente razão de que isto é um diário e estes acontecidos estão acontecendo. Diaria­mente.

 

7 de Abril

Palavras ouvidas em Buenos Aires a Fernando Vizcaifío-Casas, escritor de muita venda e popular con­sideração em Espanha, benza-o Deus: «Buenos Aires está muito bem, parece Barcelona ou Madrid, e além disso não há cá pretos, nem índios, nem sujos.» Por aqui se demonstra que um escritor não tem que ser, forçosamente, um ser humano. Também declarou esta importante e já idosa pessoa que vinha com a esperan­ça de ser alvo do assédio sexual das «muchachas portefías», mas esta presunção sempre se pode perdoar: a obsolescência mental não escolhe profissões nem ida­des, um imbecil é um imbecil, mesmo quando escreve livros.

 

9 de Abril

Começam a aparecer reacções aos Cadernos. Numa entrevista, o José Carlos de Vasconcelos tinha querido saber se eu não achava que há um certo narcisismo no livro, e agora a Clara Ferreira Alves, no Expresso, retoma o mote quase nos mesmos termos. Pergunto-me eu de que se teriam lembrado estes excelentes amigos de interpelar-me, se eu próprio, na introdução que es­crevi, não tivesse não só mencionado, mas assumido conscientemente o risco. Muito claro o disse: «Gente maliciosa vê-lo-á [ao livro] como um exercício de narcisismo a frio, e não serei eu quem vá negar a parte de verdade que haja no sumário juízo, se o mesmo te­nho pensado algumas vezes perante outros exemplos, ilustres esses, desta forma particular de comprazimento próprio que é o diário.» E disse também: «Que os lei­tores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contem­pla na água desfará amanhã com a sua própria mão a imagem que o contempla.» Respondi à pergunta de José Carlos que «toda a escrita é narcísica» e que «a escrita de um diário, sejam quais forem as suas carac­terísticas aparentes, é narcísica por excelência.» (O títu­lo da entrevista, no JL, torceu-se todo para sair assim: «José Saramago: a escrita narcísica por excelência...») Espero que a Clara, lendo isto, o entenda e passe, dora­vante, a distribuir por igual as suas pedradas. Acatarei todas as razões objectivas que creia ter para não gostar do livro, menos essa. E, já agora, porquê a crueldade fria com que trata a pessoa e a obra de Torga? E por­

quê O mau gosto desse título - «A morte do artista» ­quando se sabe que Miguel Torga está gravissimamente doente, na fase terminal de um cancro?

 

11 de Abril

Chegaram os primeiros exemplares dos Cadernos. Tomo um, folheio-o, vou de página em página, de dia em dia, e dou por mim à procura dos defeitos que Cla­ra Ferreira Alves lhe aponta (autocomplacência, secura, falta de frescura, ainda alguns mais, não tão facilmente condensáveis na brevidade de fórmulas como estas), e o que encontro é alguém (eu próprio) que tendo vivido toda a sua vida de portas fechadas e trancadas, as abre agora, impelido, sobretudo, pela força de um descober­to amor dos outros, com a súbita ansiedade de quem sabe que já não terá muito tempo para dizer quem é. Custará isto assim tanto a perceber?

 

12 de Abril

Uma leitora brasileira, que me escreve de Minas Gerais, diz em certa altura da carta: «Não há nada mais saboroso do que o português de Portugal.» Aqui fica a opinião, à consideração de Autran Dourado...

 

13 de Abril

Isto está a tomar-se cómico. Da Antena 2 de Lisboa perguntam-me que comentário me merece o facto de os Cadernos estarem a ser objecto de uma «crítica nega­tiva», exemplificada essa negatividade com a acusação de «narcisismo» que tem vindo a ser-me feita. Respon­di que, felizmente para Rembrandt, não foram suficien­tes os muitos retratos que pintou de si mesmo para que lhe chamassem «narciso». Depois remeti a simpática entrevistadora para a introdução do livro, onde está tudo explicadinho, e esta seria a última referência que aqui faria ao recreativo caso se não me tivesse ocorri­do a ideia de ir ao dicionário saber o que teria ele para dizer-me sobre «narcisismo». Reza assim: «Amor ex­cessivo e mórbido à própria pessoa, e particularmente ao próprio físico. Em psicanálise, estado psicológico em que a líbido é dirigida ao próprio ego.» Respirei aliviado: é verdade que tenho uma certa estima pela pessoa que sou, não o nego, mas trata-se de uma esti­ma sã, normal e respeitosa, sem demasiadas confian­ças. Quanto à líbido, juro e tomarei a jurar, com a mão sobre a Constituição ou outro livro sagrado qualquer, que não é ao meu próprio ego que ela se tem dirigido em tantos anos de vida... No que respeita ao futuro, já sabemos, pela insistente lição do Borda d'Água, que Deus super omnia, mas creio que os psicanalistas te­rão de resignar-se a ganhar o seu dinheiro com outros pacientes...

 

14 de Abril

Uma estação de televisão espanhola mostrou hoje uns quantos minutos de imagens, algumas das quais, segundo o apresentador, tinham provocado acesa polé­mica em Itália, o que quase se estranha, tendo em con­ta que não faltam ali motivos de debate. Viram-se cenas da fuga de oficiais alemães de Roma, entre alas do que chamaríamos «multidão enfurecida», se esta fúria se exprimisse em algo mais que palavras que não se ou­vem, em socos à passagem, em cuspidelas. Viram-se os cadáveres de Mussolini e de Clara Petacci, no chão de mistura com outros, rodeados por uma multidão que se desforra, uns cuspindo, outros dando pontapés, outros saltando por cima, como num jogo. Mas o que desatou a polémica foi a morte de um italiano por fuzilamento, ou melhor, uma declaração feita por alguém a propósi­to, ignoro se na imprensa ou na televisão de Itália, se­gundo a qual o morto deveria ser considerado como um mártir do nacional-socialismo italiano... Tudo chega no seu tempo sempre, uma afirmação assim só estava à espera de Berlusconi...

Vi as imagens do fuzilamento. Um poste cravado no chão, atado a ele um homem novo, vestido com umas calças escuras e uma camisola interior, o cabelo corta­do rente. Dois ou três oficiais norte-americanos estão perto, um deles acende-lhe um cigarro, depois aproxi­ma-se um padre que diz não se sabe quê, enquanto o condenado, com o cigarro preso nos lábios, aspira e solta umas quantas fumaças. Uns segundos mais e afas­tam-se todos, não vemos os soldados que vão disparar, dir-se-ia que a câmara de filmar está no meio do pelo­tão de fuzilamento, de repente o corpo é sacudido pe­las balas, resvala um pouco ao longo do poste, mas não está morto, agita-se debilmente, os oficiais aproximam­-se, um deles parece levar a mão à pistola, talvez vá dar­-lhe o tiro de misericórdia, não se chegará a saber, a imagem apagou-se. Foi dito que o italiano não era sol­dado, que fora, com outros, lançado de pára-quedas atrás das linhas norte-americanas para actos de sabotagem, o que as chamadas leis da guerra parece não perdoarem. Tudo isto é horrível, mas eu não sei por que se me fixa mais na memória o ritual cénico do último cigarro do condenado à morte, como se cada um daqueles homens estivesse a representar um papel, o padre para dar a absolvição, o condenado que pede ou aceita o cigarro, a mão que o acende, provavelmente a mesma que dis­parará o último tiro. O outro lado da tragédia é muitas vezes a farsa.

 

15 de Abril

Já se sabe que não somos um povo alegre (um francês aproveitador de rimas fáceis é que inventou aquela de que «les portugais sont toujours gais»), mas a tristeza de agora, a que o Camões, para não ter de procurar novas palavras, talvez chamasse simplesmente «apagada e vil», é a de quem se vê sem horizontes, de quem vai suspeitando que a prosperidade prometida foi um logro e que as aparências dela serão pagas bem caras num futuro que não vem longe. E as alternati­vas, onde estão, em que consistem? Olhando a cara fingidamente satisfeita dos europeus, julgo não serem previsíveis, tão cedo, alternativas nacionais próprias (torno a dizer: nacionais, não nacionalistas), e que da crise profunda, crise económica, mas também crise ética, em que patinhamos, é que poderão, talvez - contentemo-nos com um talvez -, vir a nascer as necessárias ideias novas, capazes de retomar e integrar a parte melhor de algumas das antigas, principiando, sem prévia definição condicional de antiguidade ou modernidade, por recolocar o cidadão, um cidadão enfim lúcido e responsável, no lugar que hoje está ocupado pelo animal irracional que responde ao nome de consumidor.

 

16 de Abril

Quanta razão tinha a avó Josefa: mais cedo ou mais tarde, a verdade sempre acaba por vir ao de cima, é só questão de ter paciência, de dar tempo ao tempo, por fim hão-de cair os disfarces, dissipar-se as névoas, se­para-se o que havia estado confundido, o certo sobre­põe-se ao falso, o azeite à água. Julgávamos nós saber, mais ou menos, graças aos esforços dos comentadores da política internacional, com os sovietólogos e krem­linólogos à cabeça, por que se tinha vindo abaixo a União Soviética, embora sempre mantivéssemos a sus­peita de que à análise estaria faltando alguma coisa, quiçá mesmo o mais iluminador. Desta vez, a verdade não teve de esperar nem sequer um século. Irritado com o facto de ter-lhe sido atribuído pela revista de Barce­lona Ajoblanco o prémio «Jeta» (o significado mais di­recto da palavra é focinho), Mário Vargas Llosa, entre outras agudezas espirituais da mesma estirpe, atribui a desfeita aos «nostálgicos deI comunismo que no perdonan el impacto de mi prédica liberal en el desplome deI império soviético». Se a presunção matas­se, V argas Llosa devia estar neste momento à entrada do céu a tentar convencer S. Pedra de que tinha sido ele, e não outra pessoa de igual nome, o autor de al­guns bons livros que se publicaram cá em baixo. Legi­timamente duvidoso, o santo porteiro talvez acabasse por não resistir à tentação de lhe enfiar na cabeça um da­queles chapéus de orelhas compridas com que se escarrnentavam os cábulas na escola velha...

 

17 de Abril

A pretexto do quinto centenário do Tratado de Tor­desilhas, conversa com Torrente Ballester, Miguel Ángel Bartesia de EI País e Torcato Sepúlveda. Faltou ali um historiador para pôr alguma ordem nas divagações dos entrevistados, em particular as minhas, que do Trata­do só tinha um conhecimento de cartilha, apesar das leituras a marchas forçadas a que tive de proceder nos últimos dias para não fazer má figura mais do que a conta. Serviram as leituras, ao menos, para perceber algo em que nunca havia pensado antes: graças a essa «divisão» do mundo, em muitos aspec­tos absurda, por contra-natura, evitaram-se os mil conflitos que fatalmente teriam de opor portugueses e espanhóis se andassem a «descobrir» nos mesmos terrenos. No dize-tu, direi-eu, veio à baila a «Lenda Negra» das atrocidades cometidas pelos espanhóis no Novo Mundo. Para que Miguel Angel não fosse o único a atormentar-se pelas culpas de antepassados, lembrei uma carta do Padre António Vieira a D. Afon­so VI em que se diz, preto no branco, referindo-se ao Brasil: «As injustiças e tiranias que se têm exercitado nos naturais destas terras excedem muito às que se fizeram em África. Em espaço de quarenta anos se mataram e destruíram nesta costa e sertões mais de dous milhões de índios, e mais de quinhentas povoa­ções, como grandes cidades; e disto nunca se viu cas­tigo.» Depois a conversa derivou para temas mais actuais, como seja o futuro de Espanha e Portugal no quadro duma Europa economicamente e politicamen­te integrada, que parcela da divisão europeia do tra­balho irá caber a cada um dos países, coisas assim. Dos quatro, o único que ainda foi capaz de mostrar algum resignado optimismo «Onde está a alterna­tiva?», perguntou) foi Torcato Sepúlveda. Sou capaz de entendê-lo: quem está prestes a afogar-se deita a mão a tudo o que pode para aguentar-se à superfície, mesmo à canoa esburacada que o arrastará para o fundo.

 

18 de Abril

Na Universidade de Valência, a convite do leitor de Português, Albano Rojão Saraiva. No fim da palestra, um aluno, rapaz alto, forte, tipo de atleta, que pelo as­pecto não parecia dos mais propensos a sentimentalis­mos fora de moda, aproximou-se timidamente e conseguiu dizer: «Gostei daquela sua ideia de que os livros levam uma pessoa dentro, o autor.» Agradeci-lhe ter-me compreendido.

 

19 de Abril

Em Palma de Maiorca, no intervalo entre uma con­ferência e a seguinte, almoço em Valledemossa com Perfecto Cuadrado e María, sua mulher. Foi nesta aldeia que viveram durante algum tempo Chopin e George Sand, mau sítio para curar uma tuberculose, porque, segundo diz Perfecto, a região é húmida, das mais hú­midas da ilha. Não longe há um palácio, uma casa gran­de, o que aqui se chama possessión, onde estanciou a celebérrima e choradíssima Sissi... A gente do lugar deve ter gostado da suave criatura. Já a outra, insolen­te, provocadora, de calças e charuto, diz-me María que as mulheres da aldeia se benziam à sua passagem, como se fosse a encarnação feminina do demónio.

 

20 de Abril

Confortavelmente instalado no avião que me leva a casa, leio que em Recife e Olinda os mendigos andam a comer pedaços de corpos humanos, restos de opera­ções cirúrgicas - vísceras, fetos, peitos, pernas, bra­ços -, atirados às lixeiras pelos hospitais e clínicas das duas cidades. A hospedeira de bordo vem perguntar-me se prefiro peixe ou carne. Carne, digo eu. Por muito que se esmerem a prepará-lo, não gosto do peixe congelado que geralmente é servido...

 

22 de Abril

Todo o dia a ler a tese de doutoramento de Horácio Costa, da Universidade de Yale: José Saramago: o pe­ríodo formativo. Notável, simplesmente. Pela primeira vez alguém deixa de lado a relativa facilidade de análi­se dos livros que publiquei a partir de Levantado do Chão para atrever-se a penetrar no quase indevassado pequeno bosque do que escrevi antes, não esquecendo mesmo Terra do Pecado, esse primeiro e cândido ro­mance que teria saído a público com o título A Viúva se não fosse o malogrado Manuel Rodrigues, editor da Minerva, que benevolamente me acolhera na sua casa, ter decidido que tal título não era suficientemente comercial... Lendo hoje o estudo minucioso e perspicaz de Horácio Costa, foi todo o passado que se desenhou e reergueu diante de mim. Senti-me de repente muito velho (atenção, velho de tempo, não de vida) e pensei sem nenhuma originalidade: «Quanto caminho andado.»

 

23 de Abril

Finalmente, uma livraria em Lanzarote. O livreiro, Norberto, é um homem novo, ainda que prematuramente encanecido, vindo de Zaragoza, que fala do seu traba­lho com entusiasmo. Comprámos alguns livros: Canetti, Magris, Barbara Probst Solomon. Também um ensaio de José Antonio Marina, Teoria de la inteligencia crea­dora, que tem sido muito elogiado pela crítica e já leva quatro edições desde Novembro do ano passado, quan­do se publicou. E Intención y silencio en el Quijote, de Ricardo Aguilera, livro que vem de 1971, agora reeditado. Havia também uma antologia de Eliseo Die­go, que não comprei por ter já a edição cubana da sua poesia, publicada há dez anos. Quando voltei para casa fui procurar o livro, folheá-lo, como quem reencontra um amigo depois duma longa ausência, e de repente senti que se me arrepiava o couro e o cabelo. Tinha diante dos olhos aquele breve relato que um dia, quan­do pela primeira vez o li, me havia feito pensar que teria de vir a saber tudo sobre o homem de quem Eliseo ali falava. Depois, esqueci-me... Agora, enquanto relia o texto para Pilar, senti o desejo súbito de escrever a his­tória desse homem. Quem sabe? Quem sabe? Alguns dos meus livros não nasceram de modo muito diferen­te... Deixo aqui as palavras belíssimas e estremecedoras com que Eliseo Diego falou do português Matias Peres:

«Matías Pérez, portugués, toldero de profesión, qué había en los inmensos aires que te fuiste por ellos, por­tugués, con tanta elegancia y prisa.

«En versos magníficos dijiste adiós a las muchachas de La Habana, y luego, una tarde en que era mucha la furia deI tiempo, haciéndole burla a la prudencia, y mientras en el Campo de Marte atronaba la banda mi­litar, te fuiste por el aire arriba, portugués ávido, argonauta, dejando atrás las sombrillas y los pafíuelos, más arriba aún, a la región de la soledad transparente.

«iQue lejos quedaron las minúsculas azoteas de La Habana, y seis cuerpos tuyos más alto que sus torres y sus palmas, como volabas con la furia deI viento, portugués, aquella última tarde!

«Y cuando, a la boca deI rio, habiéndote echado muy abajo aquella misma cólera deI aire, te llamaron los pes­cadores prudentes, gritándote que bajaras, que ellos te buscarian en sus botes, i.no contestaste, portugués frené­tico, echando por la frágil borda tus últimos estorbos?

«iAllá te ibas, Matías Pérez, argonauta, bacia las tris­tes y plomizas Dures, rozando primeiro las enormes alas de lo otro eterno, y luego más y más alto, mientras lo tirabas todo por la borda, en tus labias una espuma demasiado amarga!

«iAudaz, impetuoso portugués, adónde te fuiste con aquela desasida impaciencia mar adentro, dejándonos sólo esta expresión de irónico desencanto y criolla tris­teza: se fue como Matías Pérez!

«Huyendo raudo bacia una gloria transparente en demasia, bacia una gloria hecha de puros aires y de nada, por la que fue perdiéndose tu globo como una nubecilla de nieve, como una gaviota ya inrnóvil, como un punto ya él mismo transparente: se fue como Matías Pérez!»

Outro Bartolomeu de Gusmão? Um Baltasar Sete­-Sóis sem esperança de Blimunda na terra ou que, ten­do-a perdido, foi procurá-la onde já sabia que ela não poderia estar, mas mesmo assim indo por ela? Matias Peres, Matias Peres, quem és tu?

 

26 de Abril

Uma carta do Brasil traz no endereço esta charada geográfica e toponímica: Lanzarote, Ilhas Canárias, Por­tugal. Foi verdade, sim senhor, mas só entre 1448 e 1450, quando os portugueses estiveram em Lanzarote graças a um tal Maciot de Béthencourt, francês, sobri­nho de Jean de Béthencourt, que, tendo recebido deste tio, primeiro explorador sistemático do arquipélago, os direitos sobre Lanzarote, os cedeu, não sei em troca de quê, ao infante D. Henrique. Não durou muito o domí­nio: dois anos depois de termos desembarcado, fomos postos fora daqui, diz-se que pelos habitantes. A carta chegou pois atrasada quinhentos e cinquenta anos, mas ainda a tempo de vingar-me doutras cartas que recebi, de França principalmente, aquelas que traziam como di­recção Lisboa, Espanha...

 

27 de Abril

Chegaram Luciana e Rita, de seus completos apeli­dos, respectivamente, Stegagno Picchio e Desti... Pacien­tíssimas, vieram para trabalhar na preparação da «opera omnia» (vai em latim, que é a maneira que encontro de não tomar estas coisas demasiado a sério) a publicar por Bompiani. Mas não as deixarei ir-se daqui sem verem a Montafia deI Fuego, os Jameos deI Agua, os lugares selectos desta ilha que portuguesa foi (como ficou dito) e que deve o seu nome (faltava dizer) ao comerciante genovês LanceIotto Malocelli, aí pelos finais do século XIV. Em verdade vos digo que todos os passos do mun­do se cruzam e entrecruzam, os tempos vêm e vão, só os lugares permanecem. E esperam.

 

29 de Abril

Acordei a pensar: «Se não acontecer hoje nada de especial, como poderei escrever para o Nouvel Obser­vateur algo que valha a pena? Se fôssemos à praia com a Luciana e a Rita, se almoçássemos ali, se entretives­se o tempo a ler um romance policial, se assim o dia passasse, como poderia descrever depois, aos olhos do público, as horas de um escritor que, afinal, tão banal­mente as vivera?» Já tínhamos combinado que levaria de manhã Luciana e Rita a ver os vulcões de Timan­faya, mas isso era ofício de guia turístico, não de es­critor, considerando que Timanfaya é o único lugar do mundo, entre os que conheço, onde toma pleno sentido o cansado dito de que uma imagem vale mais que mil palavras. Em geral, a verdade é muito diferente, são as mil imagens, sejam elas quais forem, que precisam de uma palavra que as explique. Neste caso, porém, eu mesmo seria capaz de pôr «cem mil» no lugar de «mil», se não atiraria, simplesmente, o dicionário ao vulcão mais próximo. Fomos e voltámos, Luciana e Rita des­lumbradas, falando sem parar. Rita, que é siciliana, e portanto veemente, chegou ao extremo de jurar: «Ao pé disto, o Etna é nada.» Eu concordei, apesar de pensar que, não obstante tão radical juízo, até para descrever o Etna me faltariam palavras... (Percebo agora por que quase não há paisagens nos meus livros: tendo de es­colher entre a pedra que está ao lado e a montanha que cerra o horizonte, prefiro a pedra.)

Passaram as horas, e eu, ansioso, à espreita de uma ideia aproveitável que aparecesse, como um golfinho, à tona da consciência, para a fisgar no rápido instante em que mostrasse o dorso luzidio. Ora, ou porque flagran­temente não serviam aos fins em vista, ou porque, de tão rápidas, nem me davam tempo a fazer-lhes ponta­ria, as ideias tornavam a mergulhar na inescrutável profundidade donde tinham subido, deixando-me perdido diante da folha de papel em que me tinha prometido registar, de modo sucinto, para ulterior desenvolvimen­to, os assuntos, os episódios, as reflexões, os temas com que haveria de rechear o texto destinado ao NouvelObs. Lembrei-me então de que precisamente hoje, e talvez na hora precisa em que o lembrava, se estaria anunciando em Lisboa o lançamento de uma colecção cujo primei­ro volume é, em cento e cinquenta mil exemplares, o Memorial do Convento... Depois, por dever de modéstia, perguntei-me se deveria mencionar um facto como este, de tão ostensivo perfil comercial, mas, tendo pondera­do que os cento e cinquenta mil exemplares darão de comer à família por algum tempo, decidi proceder como o agricultor que olha a seara que tanto trabalho lhe deu e faz legítimas contas ao que lhe renderá. Na conti­nuação destes pensamentos, e tal como o agricultor que depois de contemplar a seara foi ao pomar ver se estão madurando os frutos, sentei-me a trabalhar no Ensaio sobre a Cegueira, ensaio que não é ensaio, ro­mance que talvez o não seja, uma alegoria, um conto «filosófico», se este fim de século necessita tais coisas. Passadas duas horas achei que devia parar: os cegos do relato resistiam a deixar-se guiar aonde a mim mais me convinha. Ora, quando tal sucede, sejam as persona­gens cegas ou videntes, o truque é fingir que nos esque­cemos delas, dar-lhes tempo a que se creiam livres, para no dia seguinte, desprevenidas, lhes deitarmos outra vez a mão, e assim por diante. A liberdade final da personagem faz-se de sucessivas e provisórias prisões e libertações.

Que mais poderia fazer, perguntei-me, para arredon­dar o dia? Devia uma carta de agradecimento a Horácio Costa, professor na Universidade do México, que na semana passada me enviou a sua tese de doutoramento em Literatura Portuguesa pela Universidade de Yale, com o título José Saramago: o período formativo, e pensei que a ocasião era excelente. Na verdade, sentia­-me mais inclinado a não o fazer hoje, cheguei mesmo a pensar: «Escrevo amanhã e ponho a data de 29, nin­guém o saberá», mas abafei a indigna tentação e escrevi e datei honestamente a carta. Agradeci a tese e o privilégio que ela me concedia de poder reexaminar o meu passado de escritor, como ele pareceu ganhar um novo sentido à luz dos dias e do trabalho de agora, como, enfim, pude percorrer o caminho que leva da dispersão à coerência, talvez já anunciada, já prometida, assim o quero pensar, no limiar das primeiras páginas que pu­bliquei. Finalmente, com a máxima sinceridade a que alcanço, deste modo rematei a carta a Horácio Costa: «Penso nas longas horas, no estudo longo, metódico, e ao mesmo tempo apaixonado, que está contido nestas centenas de páginas, e pergunto-me: "Mereço eu tanto?" Responderás que sim, não o merecesse eu e não terias gasto nele meses e meses da tua vida, mas apesar dis­so tomo a perguntar, duvidoso: "Mereço?"»

Assinei, dobrei e fechei a carta. Eram sete horas da tarde, até à hora de ir para a cama não haveria, certa­mente, mais nada de interessante para registar. Foi então que chegou o correio, que em Lanzarote é distribuído ao fim do dia. Trazia-me a revista Plural e nela um belo artigo de um escritor canadiano, Louis Jolicreur, recordando um nosso encontro de há anos, no México, numa ilha do lago de Pátzcuaro, em meio de uma noite escuríssima, entre sepulturas que talvez fossem pré­-colombinas e a negra respiração da água. E havia tam­bém uma carta da Argentina, de alguém que conheci hácinquenta anos e que nunca mais tomei a ver, metade emigrante, metade exilado político, que em três longas e apertadas páginas me conta a sua história, a vida sacrificada de um pobre, a vida dura de um militante de esquerda. Conta-me que foi para a Argentina no barco Highland Brigade, o mesmo em que fiz viajar Ricardo Reis quando regressou a Portugal, depois de receber a notícia da morte de Fernando Pessoa...

Leio, releio o que escreveu este homem de 73 anos, chamado José de Jesus Pina, impressiono-me como uma criança a quem estivessem recitando uma triste e dolo­rosa história, e compreendo, enfim, que, em troca do pouco que fora capaz de dar a este dia, dele tinha re­cebido o que, para poder ser, havia precisado de uma vida inteira.

 

30 de Abril

Do alto do Mirador deI Río, com o último sol tur­vado pela bruma seca aqui denominada calima, como se o céu estivesse peneirando sobre Lanzarote uma ténue cinza branca, olhamos - Luciana, Rita e eu - a ilha da Graciosa, com os seus três montes quase arrasados pela erosão, restos de vulcões antigos, o pequeno porto de pesca, a Caleta do Sebo, a secura absoluta de uma terra espremida pelo vento, calcinada por dentro e por fora. Olhamos, calados, até que Luciana diz: «Quem imaginaria que aqui colocou Tasso os seus jardins de Armida?» Colhido de surpresa, exclamei: «Como?» E Luciana: «Sim, foi aqui, nesta ilha da Graciosa, que Rinaldo se deixou prender pelos encantos de Arrnida.» Ah, os poetas! Um dia ouvem falar de uma lenda, en­contram no mapa um nome que lhes agrada, e aí está: o deserto toma-se vergel, Rinaldo navega naquela barca que demanda o minúsculo porto, enquanto Arrnida, com a última lava ardente do vulcão, prepara os seus filtros de amor.

 

4 de Maio

Em Paris. Saio de manhã do hotel, na Rue Rivoli (em tantos anos de vir aqui é a primeira vez que fico alojado na margem direita), e de súbito sinto-me como um estranho na cidade. Não apenas estrangeiro, mas estranho, sobretudo estranho. Nem mesmo quando entrei em Saint-Michel, centro habitual das minhas andanças parisienses, diminuiu este sentimento. Pareceu-me que havia demasiada gente, demasiados anúncios de actos culturais, demasiados livros... Pensei em Lanzarote, onde a gente é escassa, onde os livros só há pouco deixaram de ser raridade, onde as manifestações culturais importantes se contam ao ano pelos dedos, pergunto-me como é possível viver lá sem sentir a falta destas maravilhas (ou as de Lisboa, na proporção...), e penso que está bem assim, que de todo o modo nunca poderia ler tudo, ver tudo, que um dos meus pequenos vulcões levou mais tempo a fazer-se que o Arco do Triunfo e que o vale de Guinate não fica a dever nada aos Campos Elísios... Notre-Dame está outra vez em obras, a teia dos an­daimes dá-lhe um ar de irremediável fragilidade, de facto não me apetece entrar, creio que não seria má ideia, durante um tempo, deixar os monumentos e os museus em paz, esquecer-nos um pouco deles. Para um dia voltar a reencontrá-los com olhos desacostumados, digo eu.

À tarde, mesa-redonda no Centro Pompidou. (Tinha almoçado com Jorge Maximino, director de Arimage, a organização cultural donde me veio o convite, e ouvi dele as queixas de sempre: falta de apoios morais e materiais, indiferença de quem teria a obrigação de aju­dar, a sempiterna mesquinhez pátria...) Na mesa-redon­da estiveram Maria de Lourdes Belchior, Prado Coelho, Paul Teyssier, Gilles Germain. Paul Teyssier, simpati­camente e com uma evidente sinceridade, evocou os feitos portugueses, o que me levou a comentar que esta constante referência aos nossos gloriosos antepassados (tineta nacional que já vai encontrando seguidores lá fora) converte os Portugueses numa espécie de Gregos de agora que caíssem na fraqueza tonta de vangloriar­-se dos Homeros e Platões, dos Péricles e Demóstenes, dos Pitágoras e Epicuros... O tema da conversa era «Écrire le temps, écrire la ville», portanto falou-se de Lisboa. Em todos os tons. Chegou-se a compará-la com Paris... Um actor do Teatro de Saint-Denis, Frédéric Peyrat, leu bem urna passagem do Ano da Morte de Ricardo Reis, o que me deu a oportunidade de dizer que o mais importante numa cidade, o que a distingue ver­dadeiramente das outras, não é o que está fora, nas ruas, mas o que está dentro das casas, as pessoas e os interio­res, os modos de viver. Mais do que o momento em que somos e estamos, o que me interessa é a cidade no tem­po, o seu crescer de fungo e de cérebro.

Gilles Germain, autor de um livro, que não conhe­ço, inspirado em Pessoa, referiu, em certa altura da sua libérrima e bem-humorada intervenção, que a Avenida da Liberdade ficou interrompida no seu traçado lógico, parada a meio caminho, o que me fez recordar (mas não o disse ali, foi uma lembrança que veio e se foi) aque­le outro projecto mirabolante de D. João V de abrir uma avenida que, partindo da fachada central do convento de Mafra, iria até ao mar... Parece ser a nossa sina: deixar tudo a meio caminho, ou nem isso.

 

5 de Maio

Começa na Sorbonne o colóquio sobre a Europa, organizado por Bemard-Henry Lévy e Jérôme Clément. A ideia - «Europa: e se recomeçássemos pela cultu­ra?» - parece interessante à primeira vista. Só à primei­ra vista. A pergunta, tal como está formulada, afirma implicitamente a falência da integração da Europa como tem vindo a ser realizada, isto é, planificando a indús­tria, subordinando a economia, unificando a moeda, e sugere um outro caminho, aliás proposto explicitamen­te numa declaração assinada pelos dois organizadores: «Fazer da Europa uma terra de criação, de diálogo, no respeito do pluralismo das ideias, das religiões e das comunidades que vivem no seu território desde há mi­lénios.» Quem não estaria de acordo? Quem não que­reria inventar para o continente europeu essa mágica receita que depois até poderia ser levada ao resto do mundo, assim se inaugurando, pela via duma promoção voluntarista da cultura ao estatuto de valor universal, uma época de paz e concórdia, a segunda idade de ouro? Porém, recomeçar pela cultura, como? Neste tempo em que vivemos existem três tipos de guerras: as propria­mente ditas, as linguísticas, as culturais. Acabar com as primeiras tem sido impossível. Quanto às segundas e terceiras, será exagero dizer que nelas é que se estão jogando realmente os futuros predomínios mundiais, ou, para dizê-lo doutra maneira, a autêntica nova ordem ideológica mundial? E como dialogarão as culturas na Europa se as contradições económicas e as tensões fi­nanceiras fazem ranger o edifício europeu por todos os lados? Permito-me pensar que a Europa, do que está a precisar, em primeiro lugar, é de uma boa insurreição ética. Será capaz disso o género de intelectual actual­mente em voga? As minhas dúvidas são muitas, a es­perança escassa. Resta-me a curiosidade de saber o que irá sair daqui.

Jérôme Clément expôs com clareza apreciável os objectivos do colóquio, depois Bemard-Henry Lévy fez o discurso de abertura. Pessimista como convinha, para despertar as consciências. Mais tarde, na segunda mesa­-redonda - «Os fins do comunismo: saímos verdadei­ramente dele?» -, o polaco Bronislaw Geremek mostrou-se optimista: a política não falhou... Afirmou que o comunismo está definitivamente morto e que os comunistas ou ex-comunistas que, pela via democrática, estão a voltar ao poder, não terão outro remédio que continuar a política dos governos conservadores que foram substituir... Estranha concepção a deste antigo dirigente do Solidariedade: se, no fundo, ninguém acre­dita que o comunismo tenha morri do realmente, porquêeste desejo de vê-lo diluído em subpolíticas de gestão do mesmo e por enquanto imperante liberalismo? Ou trata-se simplesmente do temor de que o comunismo, tendo aprendido com os erros e crimes em seu nome cometidos, comece um caminho novo, cumprindo final­mente (oxalá, oxalá) a ideia elementar, a que sempre volto, expressa em A Sagrada Família: «Se o homem é formado pelas circunstâncias, então é preciso formar as circunstâncias humanamente.»?

Num intervalo, Michele Gendreau-Massaloux, reitora da Sorbonne, que há tempos publicou um ensaio sobre o Evangelho na revista L' Atelier du Roman, diz-me que esse seu texto havia picado a curiosidade de Mitterrand, a quem ela ofereceu depois o livro. Que Mitterrand o leu, ao que parece, com agrado. Não pude resistir a comentar que talvez o motivo tivesse que ver com o facto de os franceses chamarem Deus a Mitterrand...

 

6 de Maio

Mesa-redonda sobre o tema «Tem sentido a noção de identidade cultural?». Anda meio mundo a clamar que a questão da identidade cultural não vale o tempo que se gasta a discuti-la, e acabamos por chegar à con­clusão de que se passa com ela o mesmo que Buffon dizia suceder com a natureza: «Chassez le naturel, il reviendra au galop»... Quando chegou a minha vez de intervir, comecei por narrar o episódio do Carrefour des Littératures, em Estrasburgo, aquela famosa pergunta a que tive de responder: «É europeia a literatura portugue­sa?» Não poderia ter encontrado melhor introdução: a assistência divertiu-se com o relato, mostrando ao mes­mo tempo sinais evidentes de um saudável mal-estar... Desenvolvi depois umas quantas ideias sobre a noção de pertença cultural, sempre dentro dos limites do senso comum, muito menos apertados do que em geral se crê. O senso comum é o terreno donde me recuso a sair, simplesmente por ter a consciência claríssima das mi­nhas próprias limitações. Terminei dizendo que vivemos para dizer quem somos. Em francês soava bastante melhor: «On vit pour dire qui on est»... Uma banalida­de, dir-se-á. Será banal, mas nunca houve mais absolu­ta verdade.

Almocei com Prado Coelho. Conversa solta, interes­sante, de coração aberto (é pena que não se possa di­zer «de cabeça aberta...»). Mil assuntos, e outra vez, inevitável, a Europa. Eduardo preocupado. Pu-lo peran­te o que penso ser sua obrigação: se tem dúvidas, que as expresse francamente, com a mesma veemência com que até agora andou a dar recados de um optimismo quase beatífico. Que não faça como o nosso querido Eduardo Lourenço, que vem dando a pungente impres­são de não acreditar já no europeísmo que ainda se acha obrigado a defender.

 

7 de Maio

Inesperadamente, o colóquio terminou numa atmos­fera de tensão e hostilidade. Primeiro, alemães, de um lado e do outro, que não se entenderam. Helma Sanders­- Brahms, uma cineasta que trabalhou com Pasolini na Medeia, traçou um quadro negríssimo da situação cutural alemã, manifestando mesmo o temor do regresso de um qualquer tipo de fascismo. Outro alemão, Joseph Kovan, homem idoso, mas enérgico, do género «afirma­tivo», que em 1944 foi deportado para Dachau, protes­tou iradamente, apoiado por uma pequena parte do público. Mas a alemã, sem perder a serenidade, voltou à carga, acrescentando novos argumentos, chegando mesmo a dizer que na Alemanha, hoje, a palavra «au­tor» é tomada pouco a sério, quando não objecto de desconfiança e desprezo: o autor «não trabalha, não pro­duz», o que faz é questionar, perturbar, confundir as pessoas... Furioso, Kovan acusou-a de estar a defender terroristas... E quando Julia Kristeva apelou à «cultura­-revolta» como resposta ao conformismo cultural reinan­te na Europa, o mesmo Kovan, em tom mais moderado, retorquiu que preferia que a essa «cultura-revolta» se chamasse «cultura crítica». Outra observação de Kristeva, segundo a qual os jovens que não têm acesso à cultura facilmente se transformam em casseurs, me­receu a Kovan a seguinte resposta: «Partir os vidros das montras das livrarias não significa querer tirar de lá os livros para os ler...» Na minha fraca opinião, a Alema­nha é ferida que não sarará nunca. Alemanha: ferida da Europa e de si mesma.

Depois de terem falado dois escritores bósnios, de Sarajevo, Jérôme Clément e Bemard-Henry Lévy fize­ram o balanço do encontro (Clément teve a amabili­dade de citar o meu «On vit pour dire qui on est»...). O ministro dos Negócios Estrangeiros, Alain Juppé, que estava presente, ouviu impassível as directas e indirec­tas de Bemard-Henry Lévy, duríssimo na apreciação do comportamento da União Europeia em relação ao caso bósnio, acusando-a mesmo de cobardia. Juppé, hábil e inteligente, encerrou o colóquio com o discurso europeu que se pode esperar de um ministro de Negócios Estran­geiros. Negou a cobardia, mas reconheceu a impotência e a ineficácia. Terminou apelando ao diálogo entre políticos e intelectuais... A sala gostou e aplaudiu. Ber­nard-Henry Lévy cruzou ostensivamente os braços, man­teve-os assim durante alguns segundos, depois moveu devagar as mãos uma contra a outra duas ou três vezes, como se aplaudisse (a emenda era ostensivamente pior que o soneto), e tomou a cruzá-los. O ar cortava-se à faca.

 

8 de Maio

Em casa de Jorge Amado. Conversa comprida, as­suntos todos, sobretudo Brasil. Em certa altura vieram mais uma vez à baila as probabilidades de um Nobel para a língua portuguesa... Jorge diz que há quatro can­didatos: Torga, João Cabral de MeIo Neto, eu e ele próprio. Expõe as razões por que, em sua opinião, nem ele nem Torga podem esperar vir a receber o enguiça­do prémio. Depois explica por que, entre João Cabral e mim, tenho eu maiores probabilidades. Não participo. Limito-me a escutar, divertido e incapaz de acreditar que semelhante coisa venha a suceder algum dia. À despe­dida, já com um pé no elevador, e por ideia de Zélia e Pilar, firmamos um pacto risonho: se um de nós ganhar, convida o outro a estar presente...

 

9 de Maio

No aeroporto de Praga esperavam-nos Luís Macha­do, conselheiro cultural da embaixada, e a leitora de Português, Lucília Ribeiro. Levam-nos a um hotel do centro, na Václavské Námesti, que significa Praça Venceslau. Ostenta três estrelas este Julis, mas logo à vista não parecia valê-las. Não as vale, de facto. Paciên­cia. Disse-nos Luís Machado, quando entrávamos na praça, que os nossos portuenses que vão a Praga acham sempre que aquela enorme Venceslau, com o Museu Nacional lá em cima, é tal e qual a Avenida dos Alia­dos... Sugeri-lhe que propusesse ao presidente da Câma­ra Municipal do Porto a geminação das duas cidades, jáque têm tanto em comum.

 

10 de Maio

Lucília Ribeiro e o marido, Zeferino Ribeiro, levam­-nos a dar uma volta pela cidade. Em Vysehrad, um panorama magnífico sobre o Moldava. Fomos depois visitar as sinagogas. Nas paredes interiores de uma de­las estão a ser pintados nomes de judeus - setenta e sete mil, pareceu-me - mortos em campos de concen­tração. Noutra das sinagogas encontramos uma exposi­ção de desenhos e pinturas de crianças judias. Há visitantes que choram diante das imagens, algumas de uma beleza quase insuportável. Num rótulo ao lado, o nome, as datas do nascimento e da morte, quando pu­deram saber-se, o lugar onde a vida acabou: Terezín, Auschwitz... Dispersaram-se, feitos cinza e pó, os res­tos destes pequenos artistas, de alguns deles podemos ver fotografias, seriam génios à espera de crescer, crian­ças simplesmente, crianças, crianças. Descemos, calados, vamos ao cemitério judio que está ao lado. Outra vez a sufocante beleza, milhares de estelas fúnebres esculpi­das, desordenadas pelo tempo, o espaço é pequeno, perguntamo-nos onde estão os mortos de três séculos e meio, estão todos aqui, pó também eles, confundidos como num único corpo. Aqui está aquele rabi Low, morto em 1609, de quem se contam lendas: a de ter feito, com barro, um homem artificial, o Golem (lem­bro-me de ver, há quantos anos, no velho Ginásio, um filme, talvez checo, talvez alemão, chamado precisamen­te O Golem, recordo o momento tremendo em que o rabi fazia viver o Golem, ao riscar-lhe na fronte umas letras, uns sinais cabalísticos, e outra lenda, aquela que conta que a Morte, cansada de esperar o velho rabi, já quase centenário, incansavelmente entregue ao estudo dos livros da Lei, se disfarçou de rosa, e que foi a neta dele, inocente do que fazia, quem a levou ao avô, que morreu ao aspirar o perfume da flor. Não creio que a Morte tenha voltado alguma vez a disfarçar-se de rosa, foi Morte para as crianças de Auschwitz, sem respeito nem piedade. Quando saímos, já na rua, vemos que há pequenas bancas onde se vendem recordações para tu­ristas. Numa delas está o Golem. Compro o Golem, as palavras não estão à venda.

Com a Lídia Jorge, que fomos receber ao aeropor­to, visitamos a Loreta, cujo elemento central é a «Santa Casa». Explicam-me que, segundo uma tradição medie­val, quando a Virgem morreu (maneira de dizer, claro), a casa da Sagrada Família mudou-se milagrosamente para a cidade italiana de Loreto, onde julgo que ainda se encontra... Dona de mil belezas próprias, Praga não descansou enquanto não pôs aqui uma réplica do san­to tugúrio. Que de tugúrio não tem nada, tantos são os relevos, as pinturas e os estuques figurativos. Para viú­va de carpinteiro, a Virgem não estava nada mal servi­da de morada. À entrada, Lucília Ribeiro apresentou um cartão graças ao qual, prometia-nos ela, teríamos bilhe­tes mais baratos. A funcionária de serviço olhou fria­mente e disse que não era válido porque havia sido passado no tempo da República Socialista. Argumentou a desconcertada Lucília que o cartão fora revalidado em 1994, como se podia ver pelos carimbos e selos apostos.

A criatura fechou a cara, respondeu torto (Lucília não quis traduzir) e tivemos de pagar pela tabela alta.

Ao jantar, Lídia deu-nos notícias da pátria: o con­gresso «Portugal: que futuro?», os colegas de letras, a imprensa e a televisão, a desculpabilização do passado, o manso avançar das patas do fascismo. Depois o tra­balho de cada um. Falo-lhe do Ensaio, ela fala-nos do romance que está a escrever. Que se chama O Homem do Poente. Protestamos, achamos o título fraco. Lídia dá-nos razão, hesita, e depois diz-nos que tinha pensa­do num outro título - Combateremos a Sombra -, mas que o pôs de parte. Quase a maltratámos... Como é possível ter dúvidas entre os dois títulos? Suponho que a convencemos.

 

11 de Maio

Castelo de Praga, visita turística obrigatória. Calhou ser a ocasião de um render da guarda, cerimónia que nunca consegui tomar a sério, precisamente por causa do ar seriíssimo que põem os participantes, sejam eles mi­litares, ou civis. Os passes mecânicos da tropa, a reve­rência basbaque dos assistentes, exasperam-me ou dão-me vontade de rir, consoante o estado de espírito. Também pode suceder que caia numa enorme tristeza: é quando penso que aqueles bonecos de engonços (res­peito as pessoas que são, mas não os gestos que fazem) irão, talvez, num dia destes, de alma aterrada e carne despedaçada, tornar-se subitamente humanos, terrivel­mente humanos, como só se é na morte. Presidindo ao render, no alto das pilastras do grande portão, duas es­tátuas de pedra negra, gigantescas, bestiais, rematam ferozmente inimigos já derrubados. O poder, no castelo de Praga, não perdeu tempo à procura de símbolos, foi directamente às raízes da sua natureza: crueldade e morte. Mas o ridículo, louvado seja Deus, espreita em toda a parte. Desta vez iremos encontrá-lo em algumas das portas interiores do palácio, baixinhas, porque o rei Carlos IV, o omnipresente Carlos IV de Praga, era uma fraca figura, só metro e meio de alto, do que evidente­mente não tinha culpa, cada um é como é, não era na altura do rei que estava o ridículo, mas na reentrância rectangular do lintel da porta, feita de propósito para dar passagem à coroa quando o rei a levasse à cabeça... Fora do palácio, numa rua estreita a que chamam Travessa do Ouro (por causa, certamente, da tradição de aqui terem vivido alquimistas), na minúscula casa que tem o número 22, estanciou durante algum tempo Franz Kafka. Ali tenninou ele O Processo e começou, ó coincidên­cias, O Castelo...

 

Não havia bilhetes para A Flauta Mágica, quer dizer, havia-os, mas só para quando já cá não estaremos. Con­solo-me com saber que Mozart, em 1787, atravessou esta rua e entrou neste teatro para dirigir Don Giovanni.

 

12 de Maio

Visita à Feira do Livro, arrumada em três andares do Palácio da Cultura, onde, aliás, segundo me dizem, as autoridades checas mostram pouca vontade de organizar actos culturais por ser o Palácio uma herança do socia­lismo. A impressão geral é boa, apesar de os editores estrangeiros, quase todos, terem usado critérios bastan­te interesseiros na selecção das obras apresentadas, pri­vilegiando os best-sellers de colocação assegurada. A Feira é sobretudo para editores e agentes literários, na linha da de Frankfurt, o que se compreende melhor se vier a confirmar-se a informação de que os alemães es­tão decididos a investir em força nestas paragens.

 

Repetimos, com Lídia Jorge, a visita às sinago­gas. Mais tarde, quando de um ponto alto contempláva­mos o Moldava, comentei que esta não era a Praga que eu vinha à espera de encontrar, a cidade imutável que a leitura de Kafk:a me tinha feito, credulamente, imaginar. «A preto e branco», disse Lídia, definindo com precisão o que não conseguia expressar. Ao almoço, contou-nos algo que eu de todo ignorava: a pré-história daquele D. João II que não se fez. Que um dia tinha sido convocada à Comissão dos Descobrimentos pelo seu então presidente (um comandante da Marinha, antes de Graça Moura), o qual a convidou a escrever um guião cinematográfico sobre o dito rei, trabalho que seria bem pago. Modesta, Lídia respondeu que não ti­nha conhecimentos históricos bastantes para enfrentar-se com uma tarefa de tal complexidade «Deverias ter aceitado, mulher, a distância entre um não-saber e um saber não é assim tão grande», disse-lhe eu, e sugeriu o meu nome. Que foste tu dizer! O comandante desfe­riu na mesa uma enérgica palmada marinheira, e cortou: «Não estou interessado em visões marxistas da Histó­ria.» Assombrada, Lídia ainda argumentou, subtilmente, que se calhar não haveria outro remédio. Um olhar repreensivo e desconfiado castigou-lhe a ousadia, como se o herói-do-mar estivesse a pensar: «Também tu, Brutus?»

 

13 de Maio

Na universidade, com Lídia Jorge. Os alunos de Lín­gua e Cultura Portuguesa, quase todos raparigas, não são muitos (aliás, o que sempre me surpreende é que os haja), mas raramente tenho visto rostos tão atentos como estes, mesmo que depois as perguntas não viessem a diferir do que é costume nestas ocasiões. Há que dizer, no entanto, que a sessão - duas horas sem tempos mortos - principiou de maneira insólita: sem mais nem menos, um aluno quis saber se os Portugueses são supersticiosos. Estive para perguntar-lhe o motivo da pergunta, que informações ou experiências próprias jus­tificavam a curiosidade, mas preferi contar-lhe um epi­sódio autêntico, ocorrido dois dias antes, no Café-Teatro Viola, onde tínhamos assistido à entrega do Prémio de Tradução George Theiner. Havendo começado por ocupar uma mesa junto ao palco, os Portugueses acha­ram que estavam situados com excessiva evidência, sem contar que uma enorme jarra de flores (única em toda a sala) iria cortar-lhes a vista do palco. Decidi procurar outra mesa, mas, entretanto, a sala tinha-se enchido completamente. Completamente, não. Um pouco acima, a um lado, encontrava-se uma mesa livre. Levantámo­-nos com armas e bagagens e precipitámo-nos para a clareira onde ninguém quisera (nem tentava) instalar-se. Compreendemos logo porquê: a mesa tinha o número 13. Uma conclusão razoável, disse eu então ao aluno curioso, permite supor que os Checos são supersticiosos e os Portugueses não... Este começo teve o seu lado bom: distenderam-se os ânimos para o resto da conver­sa. Falou-se de literatura, e depois, sem se perceber bem como, achámo-nos a discutir, todos, éticas pessoais e colectivas, identidades nacionais e culturais. Foi claro que o assunto os preocupava, e muitíssimo.

 

À tarde, com Lucília e Zeferino Ribeiro, fomos a Lidice. O lugar da aldeia, arrasada pela tropa nazi em 10 de Junho de 1942, é hoje como um parque onde apenas se reconhecem os locais da igreja e da escola.

Esperávamos encontrar as ruínas de uma Pompeia de­vastada pelo vulcão mais terrível que se conhece - a besta humana - e o que temos diante dos olhos é um vale aprazível, coberto de erva verde, com árvores aqui e ali, um lugar para discorrer tranquilamente, falando das belezas do mundo, do bonito que está o céu. Um regato corre entre estreitas margens, de água que parece límpida, pelo menos não leva sangue. Digo a Pilar: «Lembra-me o Jordão, ao norte, no vale de Huleh» ­e é verdade, nunca vi nada tão parecido. Digo também: «Teria sido preferível que deixassem assinalado o traçado das antigas ruas.» E Pilar: «Como ruas que não levassem a parte nenhuma.» Só mais tarde saberemos a que extremos os alemães levaram, por represália, a des­truição da aldeia: casas arrasadas até aos alicerces, con­figuração do terreno modificada, todas as árvores arrancadas, profanado o cemitério, Lidice desaparecida dos mapas e da memória para sempre. As ordens de Hitler foram claras: «Fuzilar todos os homens adultos. Transportar todas as mulheres para campos de concen­tração. Entregar a famílias da SS as crianças susceptí­veis de germanização, as restantes educá-las doutra maneira...» Foram fuzilados nesse dia 173 homens. Três balas para cada um, depois um tiro na cabeça. Os mor­tos ficavam onde tinham caído. Os condenados seguin­tes eram trazidos e postos diante dos cadáveres, o pelotão dava uns passos atrás e disparava. Das 203 mu­lheres levadas para o campo de concentração, regressa­ram, no fim da guerra, 143. Das 88 crianças, muitas morreram, outras, separadas das famílias, foram disper­sas pela Alemanha, poucas se salvaram.

Há uma nova Lidice. Está um pouco adiante, numa elevação, ao lado de um grande roseiral feito com plan­tas vindas de todo o mundo. No meio levanta-se um terraço semicircular com os brasões e os nomes dos lugares que tiveram destino semelhante ao de Lidice, a saber: Oradour, França; Marzabotto, Itália; Coventry, Inglaterra; Varsóvia, Polónia; Estalinegrado, União So­viética; Dresden, Alemanha; Hiroxima, Japão; Telavag, Noruega; Bande, Bélgica; Distomi, Grécia; Kraguyevac, Jugoslávia. Pensei então e escrevo agora: a única, a autêntica irmandade é a da morte.

 

No hotel esperavam-me dois «faxes» enviados pela Caminho: um da Federação das Sociedades de Cultura e Recreio, informando-me de que me atribuíam a Me­dalha de Instrução e Arte; outro reproduzindo uma no­tícia do Independente, segundo a qual vim a Praga para me encontrar com Vaclav Havel e outros pensadores da Carta 77...

 

14 de Maio

Fomos a Terezín, a cidade que os alemães transfor­maram em gueto, a fortaleza de que fizeram campo de concentração. Cerca de 32 000 homens e mulheres pas­saram pelas celas do forte. Morreram aí mais de 2500 pessoas, milhares de outros presos tiveram o mesmo destino nos campos para onde foram transferidos. A pró­pria cidade-gueto foi campo de concentração, de judeus checos principalmente. Entre 1941 e 1945, perto de 140 000 pessoas foram deportadas para Terezín. Morre­ram aqui 34 000. Dos restantes, 83 000 vidas, incluin­do milhares de crianças, foram acabar em Auschwitz, Maidanek, Treblinka... Visitámos o cemitério judeu, construído ao lado do crematório. De 1942 a 1945, es­tes fornos reduziram a cinzas 30 000 vítimas do gueto de Terezín, da fortaleza e de um campo de concentra­ção próximo, o de Litomerice. Os pássaros cantam nas árvores, não sai fumo da chaminé, há flores pelo meio das campas: o pesadelo terminou há cinquenta anos. Mas eu não posso impedir-me de perguntar: «Voltará? Não voltará? Virão máquinas algum dia a levantar e revolver os míseros restos aqui enterrados? Apagou-se para sempre o fogo onde se quis queimar, não apenas os corpos mortos, mas a própria memória dos seus es­píritos?»

 

15 de Maio

Leitura no Café-Teatro Viola. Fiasco total. Um mo­derador inglês que parecia dormir, um público talvez capaz de interessar-se se houvesse quem o animasse. Lídia e eu lemos o que tínhamos de ler, um conto, par­te de um capítulo, como dois colegiais que vão a exa­me sem a sorte de uma assistência toda composta de parentes, amigos e aderentes. Depois de nós, um fran­cês, depois do francês um norte-americano, a mesma sombria resignação no ambiente. Deste Festival de Es­critores, de que o jornal inglês The Guardian foi sponsor, não se pode dizer que aconteceu tudo menos festival, porque não aconteceu nada. Autores vindos de quase todos os países da Europa, ocidentais e de Leste, dinheiro gasto e perdido. Seriam excelentes os objec­tivos de quem isto organizou, o resultado é que o não foi. Madalena Sampaio, do Instituto do Livro, aguentou com estoicismo, na parte que nos dizia res­peito, as queixas e desânimos por causa de culpas que não foram suas: ao longo destes dias, todos os seus esforços tinham esbarrado contra a incompetência da organização inglesa, para que definitivamente conste.

 

16 de Maio

No avião para Madrid, um jornal diz-me que no Ruanda foram atiradas pessoas para dentro de poços com pneumáticos a arder. Pessoas vivas, entenda-se. O catálogo de horrores deste campo de concentração cha­mado Mundo é inesgotável.

 

19 de Maio

Sonho. Representa-se Blimunda. O teatro é ao ar li­vre, mas não todo, há partes que parecem cobertas. Plateia empinada e irregular, acompanhando os desníveis do terreno. (Não é a primeira vez que sonho com um teatro assim.) Não tenho bilhete. Procuro um lugar que esteja desocupado. Não encontro. Subo a uma colina donde se vê mal (recordação do galinheiro do São Carlos?), há obstáculos que impedem a visão, arbustos (da leitura de Teoria da Imaginação Criadora antes de adormecer?). Não sei porquê, vou ao palco, onde já estão outras pessoas. O público mantém-se em silêncio. Depois ouvem-se alguns aplausos. Digo: «Obrigado àqueles que aplaudiram. Foram poucos, mas são bons. Quanto aos outros, fiquem sabendo que esta obra já está na História de Portugal (!) e que não a podem tirar de lá nem que se matem.» Silêncio total. Encontro-me na cobertura do palco, formada por pequenas abóbadas, como fornos de pão. A pintura é branca. Há varões de ferro salientes, do betão armado. Dobro um deles para baixo para evitar que alguém se fira nele. Imagino este ferro cravado numa barriga. Vejo garrafas de champa­nhe espalhadas no chão (por ter passado os olhos por um artigo sobre o espumoso catalão Codorniu?), algu­mas rodeadas de gelo. Deambulo pelo espaço do teatro enquanto o espectáculo prossegue lentamente. Percebo que o público está alheado, mas penso que se animará quando aparecer o anjo (da encenação de Jérôme Savary). Saio para uma espécie de varanda. Na varan­da ao lado aparecem três cantoras do coro. Uma delas reconhece-me e sorri-me. Depois retiram-se. Fico só, num espaço que se torna fechado. Uma espécie de man­gueira elástica (de ter estado regando a horta?) salta por cima do muro. Agarrando-me a ela, começo a subir. Há um portão fechado. Quando já vou a passar por cima dele, alguém o abre. Penso que do outro lado verei melhor o palco. Não sucede assim. Estou numa rua, é noite. Vem na minha direcção um homem muito curva­do (de ter pensado ontem que me inclino demasiado para comer?) que é o director do teatro. Diz-me que o espectáculo acabou muito tarde, às cinco e meia da madrugada, e que no fim havia poucos espectadores. Nada mais. Que me lembre. Salvo dois enigmas que ficarão por resolver: porquê uma das pessoas que esta­va comigo, quando buscava onde sentar-me, era Gomes Mota? Porquê a pessoa que me abriu o portão era Fran­cisco Lyon de Castro?

 

21 de Maio

Não sei se os cães têm só instinto, se é lícito desig­nar por manifestações de inteligência propriamente dita (e isto que quererá dizer?) certos seus procedimentos correntes. Do que não pode haver dúvidas é de que Pepe esteja superiormente dotado do que chamamos sensibilidade, se não no sentido humano, pelo menos naquele que nos permite dizer, por exemplo, que um aparelho de precisão está afinado para registar diferen­ças ou erros levíssimos. De um erro, precisamente, se tratou neste caso, um erro de que o cão se apercebeu ter cometido e que, no mesmo instante, emendou. A história conta-se em menos palavras do que as que já levo escritas. Estava sentado, a ler, quando ouço um conhecido raspar de unhas numa das janelas que dão para o terraço: é Pepe a pedir que lhe abram a porta. Levantei-me e fui abrir. Entrou sem me dar atenção, dis­parado como um tiro, atraído pelos cheiros de comida que vinham da cozinha, onde se preparava o almoço, quando de repente, ainda à minha vista, estacou, virou­-se para mim, olhou-me durante dois segundos, de focinho bem erguido, e só depois, devagar, continuou o seu caminho. Não aconteceu mais do que isto, mas a mim ninguém me tira da cabeça que Pepe se deu conta de que não me tinha agradecido e parou para pedir des­culpa...

 

22 de Maio

Morreu o Vítor Branco. O mal que o atacara não deixava nenhuma esperança, mas a sua resistência físi­ca, e sobretudo a sua extraordinária força moral, chega­ram a fazer-nos acreditar que seria possível, se não a cura completa, ao menos um pouco mais de vida supor­tável. Não foi assim. Tento imaginar o que teriam sido os seus últimos meses, o esforço para esconder o sofri­mento, obrigando o corpo e o espírito a cumprir as suas tarefas na editora, a que não quis renunciar nunca, sor­rindo com uns olhos já tristes (disto me lembro, não preciso da imaginação), e sempre, sempre, irradiando amizade, porém com o desespero surdo de quem sabe que não vai ter muito tempo para dá-la e recebê-la. Guardarei na memória o amigo, o camarada. Para isto serve a memória, para conservar vivos os que o mere­ceram,

a lembrança de um homem bom. Que é, no fim de todas as contas, o único que vale a pena ter sido.

 

23 de Maio

Wole Soyinka deu uma entrevista em que aponta, com toda a clareza, sem mastigar as palavras, um dos motivos por que a África se encontra, por toda a parte, a ferro, fogo e sangue. Diz ele: «Há cem anos, na Con­ferência de Berlim, os poderes coloniais que governa­vam África reuniram-se para repartir os seus interesses em Estados, em alguns sítios amontoando povos e tribus, em outros seccionando-os, como um tecelão de­mente que não prestasse nenhuma atenção ao pano, cor ou desenho da colcha que está a fazer.» E mais adian­te: «Devemos sentar-nos com um esquadro e um com­passo, e desenhar de novo as fronteiras das nações africanas. Pensámos, quando se criou a Organização para a Unidade Africana, que poderíamos evitar esta redefinição de fronteiras, mas o exemplo do Ruanda mostra-nos que não podemos fugir por mais tempo a esse repto histórico.»

Apetece dizer que se isto é claro desde sempre, ainda mais claro se tornou depois das descolonizações. Por que não houve então a coragem, ou o simples bom sen­so político, de enfrentar e resolver a situação, ameaça­dora já, antes que a máquina do neocolonialismo se pusesse em marcha? Não me refiro, evidentemente, aos políticos actualmente em função nas antigas potências colonialistas, que esses, precisamente, com maior ou menor evidência (e agora a decisiva participação da potência imperial por excelência, os Estados Unidos), o que fazem é lubrificar as engrenagens que, pouco a pouco, irão recuperando o domínio da África. Falo, sim, dos políticos africanos (aqueles que não sejam cúmpli­ces ou serventuários das «potências brancas»), que ti­nham o dever ético e histórico de ir à raiz dos males, refazendo, com os seus povos, o mapa cultural de África que o colonialismo destroçou, temo bem que sem remé­dio já.

Em certa altura da entrevista, Soyinka recorda como todo o mundo se preocupou com a sorte dos gorilas do Ruanda... E diz: «Do que estamos falando é de um ex­termínio humano. Falar de uma espécie ameaçada, hoje, é falar dos tutsis do Ruanda.» Terrível. Tinha-me esque­cido (ou simplesmente não sabia, a gente não está cons­tantemente a ir ao atlas ver onde estão os países com gorilas...), tinha-me esquecido de que aqueles soberbos animais vivem nas terras do Ruanda. A imagem da fê­mea assassinada, no filme, correu mundo, como correm mundo, agora, as imagens da carnificina que ali se per­petra. E então? Que concluir daqui? Nada de especial. Que talvez venham a salvar-se alguns gorilas...

 

24 de Maio

Pedi há tempos a Roberto Fernández Retamar que me informasse sobre aquele famoso Matias Peres que, um dia, segundo contou Eliseo Diego, se sumiu nos ares de La Habana para sempre, voando num balão que ele próprio tinha construído. Queria saber o como e o quan­do de tão apetecível história, mas agora vem Retamar dizer-me que não sabe nada de concreto, que provavel­mente não passará de uma lenda sem fundamento real. Recuso-me a acreditar. O modo como Eliseo relata o episódio não sugere tratar-se de mero capricho poético, de desenfadado aproveitamento de uma historieta nasci­da sem pai nem mãe, e sobretudo sem protagonista, a idealização, porventura, de um Matias Peres qualquer, português ou não, desaparecido menos heroicamente. O explícito pormenor da nacionalidade, quando em La Habana não abundariam certamente portugueses, é o que me faz pensar que este homem existiu. Roberto prome­teu que iria averiguar. Vamos a ver. Quem sabe se não irei eu a Cuba descobrir o mistério de Matias Peres? Ou se não terei de inventá-lo dos pés à cabeça?

 

25 de Maio

Sem saber que palavras o conduziram a estas, sem conhecer as outras que proferiu depois, umas expondo os dados prévios do pensamento, outras apresentando as conclusões, leio algo que disse Miguel Torga ao agra­decer o Prémio da Crítica: «Logicamente, eu devia ter ficado a cavar na minha terra; esse era o meu destino.» À primeira vista, parece que Torga quis reunir numa mesma irremovível fatalidade a lógica e o destino. Po­rém, o que ele quis dizer, imagino, é que, tendo em conta o fim-do-mundo onde nasceu (as serranias de Trás-os- Montes) e a dura vida dos seus primeiros anos (uma família pobre), dever-se-ia esperar que dali saís­se, logicamente, um cavador, nunca um poeta, ou, quan­do muito, no caso de a vocação apertar, alguém que, intelectualmente, se ficaria pelas quadras de pé-quebra­do para reforço de galanteios e animação de récitas e ro­marias. Sabemos, contudo, que nem sempre as coisas se passaram assim: a vida lá encontrava maneira de partir os dentes à lógica, e o destino, duvidoso nos rumos, mais do que se crê, não raro acabou por levar aos ma­res do Sul quem do Norte julgava não poder sair. Hou­ve mesmo um tempo em que parecia que ninguém nascera nas cidades grandes, éramos todos da província.

O sentido das palavras de Torga, ou muito eu me engano, tem mais que se lhe diga. Equivalem ao discur­so de qualquer velhice lúcida - «Cheguei até aqui, fiz o que podia, lástima não ter sabido ir mais além, agora já é tarde» -, mas representam principalmente a cons­ciência dorida de que nada dura, quiçá algo mais a obra que a vida, mas tão pouco, e que, no fundo, tanto monta à felicidade, própria e alheia, ter sido capaz de escre­ver A Criação do Mundo, como, de olhos no chão, ter ficado a cavar as terras do mesmo mundo, sem outro desejo e outra necessidade que ver crescer a seara, moer o trigo e comer o pão.

 

26 de Maio

Conferência de Luis Landero na Fundação César Manrique, em Tahiche. De escritor a escritor, interes­sava-me muito saber o que pensava dos seus livros, como os imagina e realiza, como se houve depois com o êxito instantâneo de Juegos de la edad tardia, seu primeiro romance. Mas, logo de entrada, ele avisou que não ia falar de literatura, menos ainda daquela que faz. O público mostrou-se desconcertado, mas animou­-se a seguir, quando Landero disse que iria explicar como tinha chegado a ser escritor. Afinal, o que fez foi contar a sua vida, deixando a quem o ouvia o trabalho de encontrar o caminho que vai da vida à obra. Não creio que o tenham conseguido: conhece-se o ponto de partida, conhece-se o ponto de chegada, mas nada do que está entre eles. Luis Landero divertiu-nos com saborosas histórias, mais ou menos reais, mais ou menos inventadas. Uma delas - a chegada da coca-cola à aldeia - parecia tirada de um filme de Berlanga. Quando o camião parou na praça para a distribui­cão grátis, promocional, da bebida, estava o padre dan­do aula de catecismo a uns quantos garotos. Usando da sua autoridade de mentor de almas, impôs às ansio­sas crianças a obrigação de se confessarem antes de cederem ao novo pecado de gula que invadia Espa­nha. Puseram-se os rapazes em bicha no confessionário, aos poucos o padre foi despachando a matula. «Eu era o último», conta Luis Landero ao auditório suspenso, «e quando a confissão acabou e corri à praça, o camião já se havia ido embora.» Não é impossível que alguém na assistência, sabedor dos complicados meandros da psicologia, tenha pensado que este trauma infantil foi o que fez de Luis Landero escritor... Depois da conferên­cia, quando conversávamos de copo na mão, eu disse­-lhe em tom que não admitia dúvidas: «Confessa que o camião ainda lá estava.» Ele riu e confirmou: «Assim tem mais graça», e era verdade. Como graça teve aquela outra história da sua viagem aos Estados Unidos, quando uma norte-americana se convenceu de que ele era Federico García Lorca, e com tal convicção que Lan­dera não teve mais remédio que sê-lo durante alguns dias...

 

27 de Maio

Com mais de um ano de atraso, saiu finalmente o número 9/10 da revista Espacio/Espaço Escrito, de Badajoz, que Ángel Campos Pámpano, seu director, re­solveu dedicar a Juan Goytisolo, e, generosamente, tam­bém a mim. Por ideia de Ángel Campos, cada um dos agraciados escreveu um texto de apresentação do outro, o que, com outra gente, poderia descambar numa hipó­crita e ridícula troca de galhardetes. Eis o que escrevi sobre Goytisolo:

«Foi há quase trinta anos, precisamente em Novem­bro de 1964, que Juan Goytisol0 se deu a conhecer aos leitores portugueses, em especial aqueles que só pela facilidade relativa de uma tradução podiam aceder à literatura espanhola de então. Numa colecção - a "Contemporânea" - que já levava cinquenta e nove volumes publicados, de autores portugueses e estran­geiros, aparecia, pela primeira vez, o nome de um ro­mancista espanhol, que o editor apresentava como pertencente "à notável geração realista dos 50, substan­cialmente crítica, antifascista e liquidadora de mitos", Era o livro Duelo en el paraíso, traduzido, adequada­mente, para Luto no Paraíso. Não me recordo agora, nem tenho ao meu alcance maneira de o confirmar, se mais livros de Juan Goytisolo foram depois publicados por esse ou outros editores. O que, sim, sei, é que, após a leitura de Luto no Paraíso, perdi durante muitos anos o rasto literário de Goytisolo. Quando, mais tarde, em virtude de razões que não vêm ao caso, fui levado a conhecer de perto a actualidade cultural espanhola, reen­contrei, inevitavelmente, o autor que havia perdido, o qual, entretanto, tinha vindo a construir uma obra am­pla e poderosa, caracterizada por sucessivas rupturas, tanto temáticas como estilísticas, e eticamente marcada por uma implacável revisão axiológica. Não foi peque­no nem fácil o trabalho de colocar-me mais ou menos em dia com a obra do recuperado autor: apenas posso dizer que estou perfeitamente inteirado da diversidade de níveis de percepção que tal obra em si mesma impõe e logo exige do leitor.

«Um dia, não recordo quando nem onde, coincidi com Juan Goytisolo em um desses encontros ou con­gressos, aonde, e talvez com demasiada frequência, por mal dos nossos pecados, nos deixamos levar. Alguém nos apresentou, uma dessas apresentações fugidias, for­mais, que para nada servem. A verdadeira apresentação foi por nossa própria conta que a fizemos, de cada vez que circunstâncias semelhantes voltaram a reunir-nos. Não temos conversado muito, Juan Goytisolo e eu, mas mantemos desde há alguns anos, ora falando do estrado ora ouvindo na plateia, um diálogo que só aparentemen­te se interrompe, reconhecendo-nos mutuamente, nessa peculiar conversa nossa, a par de diferenças e diver­gências acaso irresolúveis, uma comunhão de sentimen­tos e ideias dificilmente traduzível por palavras (digo a comunhão, não os sentimentos e ideias, que para esses sempre palavras se achariam), mas que eu designaria, sem nenhuma pretensão de rigor, por uma consciência muito clara, e não raro dolorosa, da responsabilidade de cada ser humano perante si próprio e perante a socie­dade, tomada esta, não como uma abstracção cómoda, mas na sua realidade concreta de conjunto de indivíduos e de pessoas. Por isto, e o muito que ficará por explicar, direi que vim a reencontrar Juan Goytisolo quando mais precisava dele, quando mais precisava de sentir-me acom­panhado, mesmo de longe, mesmo com longos interva­los, por uma voz fraterna e justa.»

 

30 de Maio

Em Madrid, na televisão espanhola, gravação de um programa a que chamam cultural, com o título Seiías de identidad, que, depois de Juan Goytisolo (é o título de um dos seus livros), o mais elementar dos escrúpulos aconselharia a não usar. O tema, benza-o Deus, já de si não prometia muito. «Escritores e Cidades» era, e os escritores que lá estávamos - Eduardo Mendoza, Alfre­do Bryce Echenique, Miguel Saenz, mais quem isto es­creve - fizemos o melhor que sabíamos, mas, mesmo contando com as artes da montagem, saímos de lá frus­trados e indignados. É impossível fazer algo de jeito quando nos sai na rifa um moderador deste calibre, Agustín-não-sei-quê, que não aprendeu nada durante o tempo em que foi correspondente da TVE em Paris e em Roma, emérito fabricante de banalidades, ou ainda pior, quando falou de Pessoa e dos seus «heterodoxos», de cidades machas e cidades fêmeas, de Lima, pobre­zinha dela, sem comunicação com o mal...

 

1 de Junho

Provavelmente deveria principiar aqui uma crónica do aborrecimento. Não é a primeira vez que me aper­cebo de que não sei estar em Madrid. Saí para tomar o pequeno-almoço, liguei para Encama Castejón, de El Urogallo - almoçaremos amanhã -, voltei a casa, pas­sei os olhos pelos jornais, encontrei Blanca Andreu na Puerta deI Sol, comprei uma recarga para a esferográfi­ca (só havia preta, e eu gosto é de azul), almocei em O Faro Finisterre (chamam-lhe agora O'Faro Finisterre para parecer inglês), fui à FNAC, comprei alguns dis­cos (Mozart, Beethoven, Franck, Fauré), voltei a casa, li, falei com Zeferino, com a SIC (querem saber que livros traduzi: mandei-os ter com Luciana, que tem a tese de Horácio Costa, onde há uma lista quase comple­ta), falei com José Luis Tafur, produtor de cinema e agora também poeta (talvez jantemos amanhã, já com Pilar), e foi tudo. Parece muito, e é nada. Esperando que o tempo passe.

 

Como pude eu falar de aborrecimento se um jornal português me traz a extraordinária notícia de rumores de golpe de Estado em Portugal? A coisa já deve ter al­guns dias, uma vez que aparece ao correr de um comen­tário de Graça Franco (aliás, de uma clareza que se agradece) sobre o Sistema Monetário Europeu, onde se diz que o Jornal do Brasil, em manchette, insistia nes­ses rumores. Também de passagem, é referida a «prisão do director do SIS», episódio sem dúvida rocambolesco que eu de todo ignorava. Chegou-se ao ponto de um jornal austríaco anunciar o regresso ao poder de Vasco Gonçalves, ainda por cima chamando-lhe «ex-ditador»...

São novidades de torno. E, contudo, não se me vai o aborrecimento. Apesar destas comédias.

 

2 de Junho

A ETA assassinou um general. Viúvo há um ano, sete filhos. A televisão mostrou uma mulher, vizinha, que resumiu tudo em quatro palavras: «Porquê? Por que fazem isto?» Para esta pergunta, ETA não tem respos­ta. Tem respostas, mas nenhuma honrada.

 

3 de Junho

O prémio Rainha Sofía de Poesia lberoamericana foi para João Cabral de MeIo Neto. Saí da reunião do júri consolado. Felicitavam-me como se tivesse sido eu o vencedor. E era: ganhara a língua portuguesa.

 

4 de Junho

Colóquio em Almada, integrado na campanha elei­toral para o Parlamento Europeu. A sala estava cheia, mas a sala era pequena e portanto a gente pouca. Os novos contavam-se pelos dedos de uma mão. Na praia devia haver muitos.

 

Feira do Livro. Volta pela feira com Carlos Carva­lhas. Encontrei pelo caminho, entretidos nas suas sessões de autógrafos, o Baptista-Bastos, a Yvette Centeno, o Orlando da Costa, o Luiz Pacheco... Mas desencontrei­-me de Mário Soares, que poucos minutos antes ainda estava a assinar Intervenções no pavilhão da APEL. Tê­-lo-iam avisado da nossa presença, que inevitavelmente teríamos de passar por ali? Já lhe chove de tantos la­dos que não valia a pena, realmente, arriscar que ama­nhã o Vasco Graça Moura viesse denunciar o «conluio» do presidente da República com a CDU: «Lá estavam eles aos abraços, depois venham dizer que é mentira!»

 

6 de Junho

Um leitor atentíssimo, do Porto, empraza-me a res­tituir a Almeida Garrett o que, distraidamente, tenho andado por aí a atribuir a Alexandre Herculano, aque­las dolorosas palavras a Portugal referidas: «A terra é pequena, e a gente que nela vive também não é grande.»Tem razão o leitor, e duas vezes a tem: em primeiro lugar, porque não foi Herculano quem as escreveu; em segundo lugar, porque nunca as poderia ter escrito. Pois não se estará mesmo a ver que uma frase assim com­posta só poderia ter saído da pena de Garrett? Logo, errei, e não uma, mas duas vezes: por confiar demasia­do numa memória que já se vai cansando e, falta mais grave ainda, por desatenção ao estilo, que, como sabe­mos, é o homem.

Na ocasião da entrega do Grande Prémio de Teatro, no Teatro D. Maria II, apresentei-me como «dramatur­go involuntário», assim pedindo escusa às pessoas do ofício pelas vezes que me intrometi na sua área de tra­balho sem ter para isso a justificação do talento. Fiz rapidamente a história dos meus atrevimentos teatrais e terminei dizendo algo em que nunca tinha pensado an­tes: que a palavra só no palco, na boca dos actores, é que se torna completa, total. Podia ter sido uma frase para cair bem, mas na verdade é o que penso.

 

A entrevista de Miguel Sousa Tavares foi o que já esperava: o meu teimoso e anacrónico comunismo, o Diário de Notícias, e se algo mais aconteceu nela, não andou muito longe disto. Não sabem falar doutra coisa. Tive de explicar, uma vez mais, o que se passou no jor­nal em 1975. Não valeu a pena: quem me detesta não ia passar a estimar-me depois de ouvir a vera relação dos factos, e a entrevista, neste particular, estava a ser feita precisamente para os que me detestam. Apesar de tudo, comportei-me como um bom rapazinho: poupei Miguel Sousa Tavares à lembrança da bofetada que o pai aplicou a um jornalista quando foi director de O Século, tal como decidi não o colocar perante a sua estúpida afirmação, há dois anos, num artigo no Público, de que o meu êxito se devia ao Partido e a Pilar... Quero fazer-lhe a justiça de pensar que será capaz de corar de vergonha se conseguir recordar-se do que es­creveu.

 

7 de Junho

Boas notícias de Itália. O Teatro Alla Scala, de Milão, encomendou a Azio Corghi uma cantata que se vai chamar A Morte de Lázaro, sobre textos do Evan­gelho, do Memorial e de In Nomine Dei. A estreia será na Semana Santa do ano que vem, ao mesmo tempo que estará a ser representado Divara no Festival de Ferrara. Pensa-se, e seria verdadeiramente fabuloso, realizar o espectáculo na Igreja de Santo Ambrósio, de Milão. Lembro-me bem, o espaço é magnífico.

 

Em Coimbra, sessão política na Faculdade de Letras, no Teatro Paulo Quintela, organizada pela Juventude Comunista. Muita gente, mais de 300 estudantes, alguns professores. Fiz um discurso inesperado, começando por analisar um anúncio da Telecel: «Com Telecel você passará de 0 a milhares de contos em um minuto.» Quer dizer, Você vai no seu carro, chama pelo seu telemóvel e em um minuto fez um negócio chorudo. Para conven­cer melhor, o anúncio exibe um enorme conta-quilóme­tros de automóvel em que os números estão substituídos por cifrões. Razão tinha Quevedo: «Poderoso cavaleiro é D. Dinheiro.» Depois falei da Europa e a cultura, da Europa e nós.

 

8 de Junho

Colóquio, desta vez literário, na Universidade de Aveiro. Sabe bem entrar num auditório e vê-lo cheio, ouvir palmas de amizade. Debateu-se muito e bem o Memorial e o Ricardo Reis. Em certa altura, durante uns segundos que me pareceram não ter fim, começou a produzir-se um «branco» na minha cabeça, as ideias a sumir-se, o corpo alagado de transpiração. Não me assustei: daí a nada estava outra vez sano, como se na­da tivesse sucedido. Hei-de perguntar a um médico o que quer isto dizer. Provavelmente ele dir-me-á que foi resultado da tensão e da fadiga, mas o que me interessa saber é que mecanismos fisiológicos le­vam a transpirar numa situação destas e com tal abun­dância.

Carlos Reis, que esteve presente, entregou-me uma tese de Mestrado de Ana Paula Amaut, apresentada à Faculdade de Letras de Coimbra, sobre o tema O narrador e o herói na (re)criação histórico-ideológica do «Memorial do Convento».

 

À noite, em Viseu, outra vez as eleições ao Parla­mento Europeu. Inventei para a sigla PCP uma outra significação: Partido dos Cidadãos Preocupados. Pedi a todos, comunistas ou não, que nos tornássemos, para bem de Portugal, em cidadãos preocupados... São liber­dades que só um escritor pode tomar.

 

9 de Junho

Colóquio em Faro, os mesmos temas. O Público in­forma que em Coimbra falei perante meia centena de pessoas... Regressei a casa exausto. Mil quilómetros de automóvel, só hoje, umas quinze horas a falar, nestes três dias.

 

10 de Junho

O Público corrigiu: não foi meia centena, foi quase meio milhar. Outro exagero.

 

14 de Junho

Depois da Feira do Livro de Lisboa, a Feira do Li­vro do Funchal. Organização modesta, critério escasso. Encontro aqui João Rui de Sousa, Ângela Almeida, Dórdio Guimarães. Também o Emesto Melo e Castro, que está cá a dar um curso. Assisto à inauguração duma exposição organizada pela Ângela Almeida sobre a vida e a obra de Natália Correia.

 

15 de Junho

Colóquio, nem pior nem melhor do que outros que tenho feito, no Teatro Baltasar Dias, entre veludos ver­melhos, com uma plateia bem composta, mas rodeado por quatro ordens de camarotes vazios. Encontros assim, num teatro como este, representam um risco sério: o de o pobre escritor se achar a falar simplesmente para as cadeiras.

 

16 de Junho

Um verso belíssimo de João Rui de Sousa: «Quem não nos deu amor não nos deu nada.»

 

Ângela Almeida tem a ideia de fazer com a minha pessoa algo no género da exposição sobre Natália Cor­reia. Torço-me mentalmente (este tipo de celebrações fazem-me logo pensar em mausoléus construídos em vida), começo por responder reticentemente, depois mostro-me mais ou menos convencido para não a desi­ludir, deixando a decisão final para mais tarde. Dir-Ihe­-ei que não, e espero que ela compreenderá. Ou será ela própria a esquecer.

 

17 de Junho

Passeio de despedida da ilha com Violante, Danilo e Tiago. As árvores, as águas e as flores da Madeira vão ficar-me nos olhos e na memória, mas ouço a sede e a secura de Lanzarote a chamarem por mim, de longe: «Não temos nada, não nos abandones.»

 

18 de Junho

Dia arrasador. Entrevista, de manhã, com Mário Santos, do jornal Público; depois, almoço na Voz do Operário para receber da Federação das Colectividades de Recreio e Cultura a medalha de «Instrução e Arte»; a seguir, na editora, fotografias com Eduardo Gageiro; logo, já em casa, conversa com uma aluna da Ohio University, RacheI Harding, e quando finalmente me estou a preparar para ir jantar com a Maria Alzira, já com as pernas trémulas e a cabeça a fumegar, telefo­na o João de Melo. Em dada altura da conversa opi­na-me que os Cadernos, tal como eu os concebi e vou redigindo, dão armas aos meus inimigos. Com a sere­nidade de quem já leva muita vida vivida, tranquilizei­-o: em primeiro lugar, os meus inimigos não precisam de armas novas, usam bastante bem as antigas; em se­gundo lugar, para os amigos é que eu escrevo, não para os inimigos. O que conta verdadeiramente - mas isso não cheguei a dizer-lhe - é a comoção de rece­ber de mãos fraternas uma medalha fabricada com o ouro da amizade e da generosidade. O resto, caro João de Melo, não chega a ser paisagem, ou só o é de lodo­sa Inveja.

 

19 de Junho

Na Rua dos Ferreiros, às sete da manhã, passeiam dois pavões, macho e fêmea. Vêm do Jardim da Estre­la, aonde regressarão quando a rua começar a animar­-se. Não imagino o que os leva a deixar as frescas pa­ragens do jardim para vir catar entre pedras sujas, como se esperassem encontrar, servidos nelas, os melhores manjares do mundo dos pavões. O macho começou a abrir a cauda, mas arrependeu-se. Teria sido para nós uma boa maneira de principiar o dia que nos vai resti­tuir a Lanzarote. Pepe, que nunca deve ter visto seme­lhantes bichos, mal podia acreditar.

 

20 de Junho

Entre o correio encontro uma nova tese, de uma suíça italiana, Clelia Gotti. O tema é La visione utó­pica della società umana in José Saramago. Passava os olhos pelas páginas, quando de repente, como por uma relacionação lógica, pensei no Sul, esse lugar das minhas utopias transibéricas, e perguntei-me: «Será o Sul de tal maneira utópico que nem no Sul se encon­tra?»

 

A filosofia de Pepe é simples, mas exigente. Tendo escolhido esta casa e esta família para viver, estabele­ceu unilateralmente os seus direitos e os seus deveres.

Nos deveres está o de ser asseado, simpático, não mais impertinente do que se espera de um cão. Nos direi­tos encontram-se naturalmente a alimentação, o bom trato, carinho tanto quanto lhe apeteça dar e receber, veterinário à cabeceira - e a convicção de ser dono dos seus donos. Isto quer dizer que Pepe não suporta que saiamos e o deixemos ficar em casa. Mal se aper­cebe de que essa é a intenção, rosna zangado, mor­disca-nos os tornozelos, fila-nos pelo sapato ou pelas calças. Depois os protestos crescem, passa a ladrar, vira o dente, embora sem maldade, a quem o queira reter. Já inventámos todo um jogo de truques para enganá-lo. Geralmente, após dar uma volta pela casa, a ver se estamos escondidos, acalma-se. Hoje as coisas não se passaram tão simplesmente. Depois do escarcéu habitual ao ver que eu saía, subiu à açoteia para con­tinuar a protestar a sua indignação, trepando ao muro que ali há para defender de quedas. Não o defendeu a ele. Ou fosse da precipitação do salto, ou por causa do vento que soprava forte, ou por acção conjunta dos dois factores, eis que o nosso Pepe cai desamparado do terraço. Foi uma queda de uns bons três metros, de que felizmente saiu intacto, sem danos maiores ou menores. Eu só soube do acidente quando voltei. Fi­quei lisonjeadíssimo, claro, o que mostra a que ponto os humanos são escassos de sensatez quando se trata dos seus cães.

 

21 de Junho

Carta da Biblioteca Nacional registando a minha doa­ção de papéis de Rodrigues Miguéis, Casais Monteiro, Aleixo Ribeiro e Massaud Moisés. Perguntam-me se quero que a consulta fique dependente de autorização minha. Não faltaria mais nada. Os documentos não são meus, ficaram à guarda da Biblioteca Nacional e portan­to pertencem a todos. Logo, a sua consulta pode e deve ser livre.

 

22 de Junho

Todos tivemos alguma vez a percepção súbita de estarmos a viver algo que já havia sido vivido antes, um lugar, um cheiro, uma palavra, o perpassar de uma som­bra, uma sequência de gestos. A impressão não se de­mora, esfuma-se no instante seguinte, mas a lembrança desse momento mantém-se, como um animal caçador à espreita de que se repita a ocasião. Os que acreditam na metempsicose dizem que são recordações de vidas an­teriores, nossas ou alheias. No segundo caso suponho que se aposta na hipótese de que as almas, não podendo ser infinitas em número, vão sucessivamente tomando posse de corpos diferentes, e, embora, em princípio, no fim de cada vida se tranque a respectiva conta-corrente, levando-se o saldo à rubrica dos ganhos e perdas gerais, não é de todo impossível que uma factura extraviada no tempo venha meter-se na contabilidade do dia em que nos encontramos... Os leitores de ficção científica estão muito habituados a estas cambalhotas temporais.

O que já deve ser muito raro é a sensação de estar a viver uma vida que não é nossa. Entendamo-nos: so­mos quem éramos, reconhecemo-nos no espelho, reco­nhecem-nos os outros, e contudo, sem saber porquê, de repente surpreendemo-nos a pensar que a vida que vi­vemos, sendo a nossa vida, não deveria sê-lo à pura luz da lógica conjunta dos factos passados. Estou a falar de mim, claro está. Quando aos 64 anos a minha vida vi­rou os pés pela cabeça (permita-se-me uma imagem tão pouco respeitadora da eminente dignidade da pessoa humana, como antes se dizia), não podia eu imaginar aonde me levaria o que então pensava ser uma simples bifurcação e afinal veio a ser estrada real (será preciso explicar aos meus virtuosos inimigos que não estou a fa­lar de êxitos literários ou sociais?). Os dias já vividos não poderiam, pela lógica, ter-me trazido a isto, e no en­tanto eis-me a viver uma vida que difere tanto daquela que me tinha acostumado a chamar minha, que de duas uma: ou esta vida estava destinada a outro, ou sou eu esse outro. Conclusão: tenho aqui um seriíssimo proble­ma ontológico para resolver.

 

23 de Junho

Num alarde de saudável humor político, só dimi­nuído por uma dedicatória demasiado enfática, com alu­sões retóricas que não mereço, os eleitos da CDU de Mafra ofereceram à Assembleia Municipal do dito lu­gar um exemplar do primeiro volume dos Cadernos de Lanzarote, recomendando expressamente (entende-se que aos eleitos da maioria) a leitura da página 24. Em mi­nha opinião, seria esforço perdido. Eles não sabem ler.

 

25 de Junho

Eis-me, aparentemente, caído em plena contradição. Na entrevista que dei a Mário Santos, hoje publicada, afirmo em dada altura que «não vivi nada que valha a pena ser contado». Mesmo ao leitor mais distraído há­-de afigurar-se bastante duvidosa a sinceridade de tais palavras, quando se sabe o uso que venho dando a es­tes cadernos, metódico e quase obsessivo inventário dos meus dias de agora, como se tudo quanto neles me acontece valesse afinal a pena. Creio que não há real­mente nenhuma contradição. Uma coisa é olhar o pas­sado à procura de algo que mais ou menos lhe tenha sobrevivido e portanto mereça ser recordado, outra é registar simplesmente o dia-a-dia, sem pensar em ordenar e hierarquizar os factos, apenas pelo gosto (ou tratar-se-á duma expressão mal disfarçada do que conhe­cemos por espírito de conservação?) de fixar, como te­nho dito, a passagem do tempo. Por outras palavras: se eu vivesse cinquenta anos mais e estivesse a ser entre­vistado por um Mário Santos também cinquenta anos mais velho, estou certo de que lhe repetiria, com a mesma sincera convicção de hoje, esquecido de quase tudo quanto nestes cadernos escrevi: «Não vivi nada que mereça a pena ser contado.»

 

28 de Junho

Fernando Sánchez Dragó, escritor soriano, como ele próprio gosta de se identificar, erudito em doutrinas místicas e teosóficas, militante a sério de tais trans­cendências, daqueles que trazem símbolos pendurados ao pescoço, esteve hoje na televisão. Aliás, aparece por lá muito, possivelmente porque é preciso de tudo para fazer um mundo. Em certa altura do debate, querendo exaltar as virtudes do silêncio total (que, segundo revelou, ele próprio pratica um dia por sema­na, com grande perplexidade do seu carteiro, que não percebe por que o atende mudo como um penedo um destinatário bem mais de costume tagarela), Sánchez Dragó contou uma história indiana, começando por anunciá-la como de grande edificação. Rezava mais ou menos assim:

«Um dia, lá nos confins da Índia, nasceu uma crian­ça parecida com todas as crianças, mas logo se viu que não o era tanto, ou era mais do que elas, porque este menino, simplesmente, não falava. Cresceu bem e com saúde, tolo não era, muito pelo contrário, pois cedo começou a brilhar em sabedoria (Sánchez Dragó não explicou em que é que consistia essa sabedoria e como é que, faltando as palavras, ela pôde manifestar-se), e ainda não chegara a homem feito já o consideravam um guru. Vinham as pessoas à lição, ele olhava-as, olha­vam-no elas, e assim foi durante toda a sua vida. Jámuito velho, com uns noventa anos, morreu. Porém (era inevitável, sabendo-se como são estas histórias), preci­samente antes de morrer, falou. Estava deitado, rodea­do de discípulos, e na sua frente, pela janela aberta, via-se ao longe um monte coberto de árvores. Então, o nosso guru, naquele instante derradeiro, soergueu-se, apontou com um braço estendido o bosque tranquilo e pronunciou uma palavra, uma só: "Fogo." O monte ar­deu.»

Atordoados por tal demonstração das espiritualidades orientais, os colegas de tertúlia de Sánchez Dragó, que eram vários, intelectuais, artistas, com alguns políticos pelo meio, ficaram, eles, quedos e silenciosos. De en­tre a assistência ouviram-se umas quantas tímidas pal­mas, como de quem não queria quebrar o encanto do maravilhoso acontecimento. A câmara mostrou a expres­são complacente de Sánchez Dragó «<Aguentem-se lácom esta», parecia ele pensar) e a conversa desviou-se para outros temas menos elevados. Não houve ali uma alma lúcida que se lembrasse de dizer que, afinal de contas, a única coisa que o tal guru tinha feito na vida havia sido queimar um inocente bosque e que, para isso, mais valera ter continuado calado...

 

29 de Junho

A alma do almirante Pinheiro de Azevedo, lá no paraíso aonde os seus diversos méritos a fizeram ascen­der, deve sentir-se, nestes dias, exultante de bélica felici­dade, como uma valquíria. Em vida, num arrebatamento patriótico que desgraçadamente não coalhou, o digno almirante, sendo embora homem-do-mar, afirmou que, se lhe dessem um batalhão, ele iria, por terra, reconquis­tar Olivença. Durante os quase vinte anos que decorre­ram sobre a histórica protestação, ninguém na terra de Brites de Almeida deu um passo para, com armas ou sem elas, mas indispensavelmente com agrimensores, ir colocar a fronteira no seu sítio. Entretidos como anda­vam agora com a Europa, os nosso govemantes, todo eles, vieram descuidando o que parecia ser o seu dever nacional, apresentando como motivo para tão suspeita indiferença o argumento, convenhamos que irrecusável, de que estando as fronteiras europeias em vias de de­saparecimento, não faria sentido armar uma questão por causa de uns quantos quilómetros quadrados de terras onde já são mais os espanhóis enterrados em duzentos anos do que o foram os portugueses em seiscentos.

Estavam as coisas neste chove-não-molha quando, talvez por mensagem astral enviada directamente pela desassossegada alma do almirante, os Amigos de Oli­vença pulsaram a corda patriótica do coração português e puseram o país em polvorosa. Não tanto, mas enfim. Andava-se a pensar, já havia mesmo o dinheiro neces­sário, em reconstruir a ponte da Ajuda, sobre o rio Guadiana, quando apareceram nos jornais declarações indignadas dos Amigos: que se acabava Portugal, que Olivença é nossa. E para não se ficarem só pelas pala­vras despacharam um autocarro carregado de sócios para lá irem afirmar a nossa soberania (não consta que de­pois tenham continuado viagem até Bruxelas). Nesta agitação, fontes do Palácio das Necessidades declararam que «Portugal não se pode envolver em nenhum projecto que reconheça a fronteira num sítio sobre o qual não há consenso». Tudo isto apesar de Cavaco Silva e Felipe González, há quatro anos, terem assinado um protocolo para a reconstrução da ponte...

Assim estamos. A alma do almirante vigia, atenta, quem sabe se pronta a encarnar em qualquer herói, dos muitos que temos, que se lembre outra vez de pedir um batalhão. Quanto aos Amigos de Olivença, eu dar-Ihes­-ia um conselho simples, mesmo não mo tendo eles pe­dido: se quiserem, realmente, ser amigos de Olivença, sejam-no da Olivenza que é e deixem em paz, na paz do irrecuperável passado, a Olivença que foi.

 

30 de Junho

A palavra ao editor. Pedi a Zeferino Coelho que me informasse dos resultados da manifestação contra o au­mento das portagens na ponte, e eis o que ele me es­creve:

«Esta questão da ponte foi das coisas mais bonitas que aconteceram por cá ultimamente. O governo, depois de ter afirmado a pés juntos que não recuava, recuou em toda a linha. O ministro Ferreira do Amaral veio à TV dizer que tinha cometido um erro, que os protestos ti­nham uma base real e que, em consequência, suspendia a cobrança da portagem no mês de Julho (só volta a cobrar em Setembro porque em Agosto, nos últimos anos, a passagem é livre); em Setembro será criado um sistema de passes, com descontos para os utentes diá­rios.

«Foi uma primeira grande vitória Uá não ouvia esta palavra há séculos).

«No meio de tudo isto alguns personagens revela­ram-se. Destaco o Vasco Graça Moura. Com uma lin­guagem desbragada, exigia repressão e intransigência. Criticou o ministro Dias Loureiro por ter aceite que os polícias só actuassem depois que a Junta das Estradas negociasse com uma comissão dos utentes da ponte. Escrevia ele que quem aceita negociar com "a canalha" (sic) sofre as consequências.»

Zeferino refere-se também à «solidariedade mani­festada pelos camionistas espanhóis aos camionistas portugueses na luta contra a portagem na ponte. Eles disseram que, se fosse caso disso, bloqueariam as fron­teiras portuguesas».

Pergunto agora eu: andará por aí a formar-se, qual efeito «perverso» da «integração europeia» fora de to­das as previsões, um «espírito comunitário» à margem dos «governos europeus» e do «governo da Europa»? Seria realmente interessante andarem a querer fazer uma Europa e sair-lhes outra...

 

1 de Julho

Na verdade, nunca imaginei que pudessem ser tantos. De José Leon Machado, estudante na Uni­versidade do Minho, chega-me um interessante traba­lho, elaborado no âmbito da cadeira de Leitura e Interpretação do Texto Literário - Conflitos de inter­pretação face ao romance de José Saramago «O Evan­gelho segundo Jesus Cristo» -, que apresenta, divididas por «radicais» e «moderadas», as opiniões produzidas pela Igreja Católica e seus militantes, tanto interna como perifericamente. Sabia já, por alguns ecos avulsos, que me haviam condenado a todas as penas do inferno, mas o que eu não imaginava era que tivessem sido tantos os juízes e tantos os carrascos. Desde o arcebispo de Braga até um padre Minhava de Trás-os-Montes, em artigos, opúsculos ou livrinhos de maior porte, pode dizer-se que foi um autêntico «fartar, vilanagem». A bibliografia apresentada, que de certeza não esgota a matéria, menciona 22 espécies, qual delas de mais prometedor título. Quanto ao seu conteúdo, variável em virulência e obstipação mental, limitar-me-ei a passar para aqui um pedacinho-de-incenso da prosa do dito padre Mi­nhava: «Por dever de ofício, tive de ler um livreco pes­tilento e blasfemo onde o enfunado autor se enterra atéàs orelhas nas escorrências que destila como falsário, aleivoso e cínico!» A escrever desta maneira, tenho por certo que o padre Minhava será meu companheiro no inferno. Em jaulas separadas, claro está, não vá ele morder-me...

 

2 de Julho

Yvette Biro telefonou de Paris para informar-me do andamento da Jangada de Pedra. Continua animada, e eu deixo-me ir na corrente. Desde o princípio confiei nesta mulher. Seja qual for o resultado dos seus intentos para passar do guião que já há ao filme que está por ha­ver, ficarei contente por ter conhecido alguém tão me­recedor de confiança. Disse-me que falou do projecto ao João César Monteiro e que ele se mostrou interessado em vir a realizar o filme. Nada de definitivo, por en­quanto, uma vez que está ocupado com outro trabalho. Por minha parte, disse a Yvette que não são mais de dois ou três os realizadores portugueses a quem confia­ria sem reservas um livro meu, e que um deles é o João César.

 

3 de Julho

Vista à distância, a humanidade é uma coisa mui­to bonita, com uma larga e suculenta história, muita literatura, muita arte, filosofias e religiões em barda, para todos os apetites, ciência que é um regalo, desen­volvimento que não se sabe aonde vai parar, enfim, o Criador tem todas as razões para estar satisfeito e or­gulhoso da imaginação de que a si mesmo se dotou. Qualquer observador imparcial reconheceria que nenhum deus de outra galáxia teria feito melhor. Porém, se a olharmos de perto, a humanidade (tu, ele, nós, vós, eles, eu) é, com perdão da grosseira palavra, uma merda. Sim, estou a pensar nos mortos do Ruanda, de Angola, da Bósnia, do Curdistão, do Sudão, do Bra­sil, de toda a parte, montanhas de mortos, mortos de fome, mortos de miséria, mortos fuzilados, degolados, queimados, estraçalhados, mortos, mortos, mortos. Quantos milhões de pessoas terão acabado assim nes­te maldito século que está prestes a acabar? (Digo maldito, e foi nele que nasci e vivo...) Por favor, al­guém que me faça estas contas, dêem-me um número que sirva para medir, só aproximadamente, bem o sei, a estupidez e a maldade humana. E, já que estão com a mão na calculadora, não se esqueçam de incluir na contagem um homem de 27 anos, de profissão joga­dor de futebol, chamado Andrés Escobar, colombiano, assassinado a tiro e a sangue-frio, na célebre cidade de Medellín, por ter metido um golo na sua própria bali­za durante um jogo do campeonato do mundo... Sem dúvida, tinha razão o Álvaro de Campos: «Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer». Sem dúvida, mas não desta maneira.

 

5 de Julho

Vi pela televisão, em directo, a queda desastrosa de uns quantos ciclistas na chegada de uma etapa da Volta à França. A imprudência de um polícia que quis fotogra­far os corredores (a máquina autofoco que utilizava não lhe permitiu perceber que um deles, fora do enquadramen­to do visor, vinha na sua direcção), foi a causa do aci­dente: houve fracturas, comoções cerebrais, ferimentos múltiplos, sangue... Acidentes há-os a todas as horas, mas assim, captados em directo, transmitidos no preciso ins­tante em que ocorrem, esses são com certeza raros. E se tomar este como exemplo, tão raros quanto estranhos. O que eu estava a olhar era verdade agora, previ o que ia acontecer, vi a queda, testemunhei o pânico, mas a bru­tal realidade não me fez saltar do sofá onde assistia e onde logo a seguir fui beneficiado com repetições da mesma gravação e de outras tomadas de ângulos diferen­tes, ora em câmara lenta ora em sequências entrecortadas de pausas, com zoam e sem zoam... A realidade do aci­dente tomara-se imediatamente em pura imagem, em exercício de movimentos, em découpage técnico... Por outras palavras: em caminho para a insensibilidade...

 

7 de Julho

Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente, é isto a velhice.

 

8 de Julho

O Ensaio saiu do atoleiro em que tinha caído há já não sei quantos meses. Pode vir a cair noutro, mas deste safou-se. Há uns poucos dias que eu tinha decidido deixar de lado dois capítulos que se haviam convertido numa daquelas armadilhas onde se pode entrar com toda a facilidade, mas donde não se sai. O novo rumo pare­cia-me animador, abria perspectivas. Em todo o caso, ainda não me sentia completamente seguro. Foi então que andando por aí, hoje, ao vento, me sucedeu algo muito semelhante ao episódio de Bolonha, quando, depois de meses sem saber o que poderia fazer com a ideia do Evangelho, nascida em Sevilha, toda a sequência do livro - enfim, quase toda - se me apre­sentou com uma claridade fulgurante. Estava na Pina­coteca, vira a pintura da primeira sala à esquerda da entrada, e foi ao entrar na segunda (OU teria sido na terceira?) que os pilares fundamentais da narrativa se me definiram com tal simplicidade que ainda hoje me pergunto como foi que não tinha visto antes o que ali me parecia óbvio. Não era nada de complicado, basta ler o livro. Neste caso - o do Ensaio - a «revelação» não foi tão completa, mas sei que vai determinar um desen­volvimento coerente da história, antes atascada e sem esperanças. Todos os motivos que vinha dando, a mim mesmo e a outros, para justificar a inacção em que me achava - viagens, correspondência, visitas -, podiam, afinal de contas, ter sido resumidos desta maneira: o caminho por onde estava a querer ir não me levaria a lado nenhum. A partir de agora, o livro, se falhar, será par inabilidade minha. Antes, nem um génio seria capaz de salvá-lo.

 

9 de Julho

Fizeram-me membro do Patronato de Honar da Fun­dação César Mamique. A este gesto simpático gostaria eu de corresponder com algum trabalho útil. Por enquan­to não vejo como.

 

12 de Julho

Quando passava de um canal de televisão a outro, saltaram-me imagens de uma corrida de San Fermín, em Pamplona, o preciso momento em que um touro baixa­va a cabeça para receber o estoque mortal. Saí imedia­tamente da praça, graças ao poder milagroso do comando à distância. Lembrei-me então de que escrevi, aqui há uns anos, acerca destas festas, três artigos que não devem ter agradado a nenhum espanhol, e menos aos navarros. Imagino que quando mos pediram de Cambio 16 estariam à espera de qualquer coisa no género de um novo Hemingway, mas os cálculos saí­ram-lhes furados: o que tiveram de publicar foi uma honesta confissão de incapacidade para perceber a fiesta. Como se demonstrará com este pequeno trecho exuma­do dos papéis velhos:

«Vai entrar o primeiro touro, ressoaram surdamente os timbales da presidência, é a hora. Todos olhamos, ansiosos, o boqueirão negro do curro. O touro entra na praça. Entra sempre, creio. Este veio em alegre corre­ria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à liberdade. Animal tonto, ingénuo, ignorante também, inocência irremediá­vel, não sabe que não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem descanso. O touro atravessa a correr a praça, olha os tendidos sem perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em dois segundos acha-se de outro lado, era uma ilusão, julgava investir contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais que uma nuvem. Em verdade, que mundo vê o touro? Estes toureiros que se vestem de todas as cores, que se cobrem de passamanarias e lantejoulas, que bri­lham na arena como cristais preciosos, como figuras de vitral, são-no assim aos olhos do touro, ou vê-os ele como sombras baças, fugidias, instáveis, que surgem do nada e se escondem no nada? Imagino que o touro vive num universo sonhado, fantasmal, coberto de cinzas, em que o sabor da erva e o cheiro dos pastos serão as úni­cas referências apaziguadoras de um mundo vago em que as árvores são como cortinas oscilantes e as nuvens no céu grandes blocos de mármore, ao mesmo tempo que a luz se vai movendo dificilmente para a noite.». E este, ainda:

       «O touro vai morrer. Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade, para merecer o títu­lo de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do matador, que renuncie à brutalidade, que saia da vida tão puro como nela entrou, tão puro como vi­veu, casto de espírito como o está do corpo, pois vir­gem irá morrer. Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um certo mo­mento, embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre vida e morte.»

Aí fica. Recordo que quando Pilar acabou de ler os artigos, só me disse: «Não podes compreender...» Tinha razão: não compreendo, não posso.

 

13 de Julho

Clinton visita oficialmente a Alemanha. Segundo os jornais, o presidente dos Estados Unidos declarou em Bana: «A Alemanha é o nosso parceiro mais significa­tivo para a construção de uma Europa segura e demo­crática.» Se sou capaz de entender o que leio, deduzo destas palavras que a administração norte-americana tem um ideia muito clara do que lhe convém que seja a Europa: um todo conduzido por um só país, uma União cuja sede real, a seu tempo, será em Berlim, ficando Bruxelas para a burocracia e Estrasburgo para o entre­tenimento verbal. Incapazes de uma relação directa e equilibrada com todos e cada um dos países que cons­tituem a Europa, os Estados Unidos vão preferir a ne­gociação a dois, entre potência e potência. Aposto dobrado contra singelo que esta Europa será diferente quando no fim do ano terminar a presidência alemã da União Europeia. Poderá não se notar à vista desarma­da, que é como nós geralmente andamos (desarmados da vista...), mas o tempo dirá se me engano.

 

14 de Julho

Não creio que tenhamos falhado. Fomos vítimas de uma ilusão que não foi só nossa, a de que Portugal fos­se capaz de arrancar-se à «tristeza vil e apagada» em que mais ou menos sempre tem vivido. Imaginámos que se­ria possível tomarmo-nos melhores do que éramos, e foi tanto maior o tamanho da decepção quanto era imensa a esperança. Ficou a democracia, dizem-nos. A democracia pode ser muito, pouco ou quase nada. Escolha cada qual o que lhe pareça corresponder melhor à situação do país...

 

De Eliseo Diego:

«La muerte es esa pequena jarra, con flores pintadas a mano, que hay en todas las casas y que uno jamás se detiene a ver.

«La muerte es ese pequeno animal que ha cruzado en el patio, y deI que nos consuela la ilusión, sentida como un soplo, de que es sólo el gato de la casa, el gato de costumbre, el gato que ha cruzado y aI que ya no volveremos a ver.

«La muerte es ese amigo que aparece en las fotogra­fías de la familia, discretamente a un lado, y aI que nadie acertá nunca a reconocer.

«La muerte, en fin, es esa mancha en el muro que una tarde hemos mirado, sin saberlo, con un poco de terror.»

 

Ontem, pelas seis da tarde, depois de trabalhar des­de o almoço numa conferência que terei de levar ao Canadá, fui-me até à Montafia Tersa, irmã fronteira e menor da Montana Blanca, de tamanho, quero dizer, porque quanto a idade devem andar ambas pela mesma, aí uns 19 milhões de anos... Não ia com o fito de subi­-la, tanto mais que o vento soprava forte e de rajada, que é a pior maneira de ser soprado quando se cami­nha. Mas, quando lá cheguei, não resisti: desde o prin­cípio do mundo que se sabe que os montes existem para serem subidos, e este, ali à espera há tanto tempo, até deixara que a erosão o cavasse e recavasse, em socalcos, em fendas, em saliências, tudo para ajudar-me na as­censão. Mal parecia voltar-lhe as costas, por isso subi. O pior, corno disse, foi o vento. Com os dois pés bem firmes no chão e o corpo inclinado para diante, a coisa não era nada complicada, mas quando urna perna se levantava para o pé avançar, se as mãos não tinham a que agarrar-se, digo que cheguei a experimentar algumas vezes a inquietante impressão de não ter peso...

Uma outra impressão, ainda mais estranha do que esta, e que já me havia tocado naquele dia em que subi a Montafía Blanca, mas em que depois não voltei a pen­sar, foi chegar a uns vinte ou trinta metros do cimo e parecer-me de repente que a pequena distância se tinha tornado infinita, intransponível, não por a subida ser mais difícil, que nem o era, corno logo se comprovou, mas porque o cume do monte, tão próximo, recortado contra o céu, se apresentava, aos meus olhos, ameaça­doramente, não corno o ponto que ia enfim alcançar, mas como um sítio de passagem, de onde teria de par­tir outra vez... Que possam nascer imaginações destas nas simples montanhas de Lanzarote, leva-me a pensar nos fantasmas que decerto assombram a mente dos al­pinistas a sério quando se aproximam da fronteira en­tre o mundo da terra e o mundo do ar.

 

16 de Julho

A uma menina que nasceu nos últimos dias da guer­ra civil de Espanha deram os pais o justo nome de Libertad. (Digo justo porque está claro que eles amavam a ambas por igual.) Depois, a menina fez-se rapariga, a rapariga mulher. Corno o fascismo não podia gostar de um nome assim, os dissabores e contrariedades foram tais e tantos que a pobre não teve outro remédio que passar a chamar-se Josefa. Quando se entrou na «tran­sição democrática», Libertad quis recuperar a sua ver­dadeira identidade. Só agora veio a consegui-lo, ao cabo de quase vinte anos de enguiços burocráticos, despacha­da de repartição em repartição, escrevendo requerimen­tos, apresentando provas, todos os dias derrotada pela indiferença ou pela má vontade de funcionários que se riam dela, todos os dias voltando à carga com estas sim­ples palavras: «Quero o meu nome.» Enfim, já lá o tem, mas a democracia foi mais lenta a restituir-lho do que o fascismo a tirar-lho.

 

19 de Julho

Em Tenerife para um curso de Verão da Universida­de de La Laguna sobre Las metáforas de! Sur, dirigido por Juan Cruz. O tema era escorregadio, como logo se viu. As metáforas começaram rapidamente a amedrontar­-se diante das realidades que emergiam e acabaram por fugir espavoridas quando tomou a palavra um senegalês, EI Hadji Amadou Ndoye, professor de Literatura Es­panhola em Dakar. Foram dez minutos de informações precisas, de números concretos, que permitiram aos assistentes tomar o pulso à situação africana actual, e senti-la verdadeiramente, sem lirismo nem metáforas. A minha participação, que fechou o debate, centrou-se em duas ideias principais: uma, a de que «o pior inimigo do Sul é ele permitir a sua própria mitificação»; outra, a de que «o Sul é a pobreza», onde quer que os pobres estejam, aí está «o Sul», qualquer que seja a cor da pele.

 

21 de Julho

Respeitosamente conservando a ortografia e a sintaxe brasileiras (é o mínimo que deve fazer quem dos brasi­leiros exige que respeitem as suas), transcrevo uma pas­sagem de uma carta de Teresa Cristina Cerdeira da Silva:

«Conto-lhe ainda, brevemente, um desses deliciosos acasos da minha primavera lisboeta. Voltando tarde e sozinha do cinema, rumo à casa do Jorge de Sena, em Belém, tomo um táxi e, como de hábito, inicio uma conversa com o chauffeur. É, como já disse, um hábito que mistura curiosidade e necessidade de segurança que me é dada por esses momentos de intercâmbio de idéias. O rapaz era moço, trinta e tal anos e eu lhe perguntava o que sentia ao ver aproximar-se o 25 de Abril depois de 20 anos da Revolução. A resposta foi céptica, mas não que se tratasse de um desses espíritos reaccionários ou alienados diante da questão. Falou-me com mágoa sobre o pai que havia sofrido horrores durante a dita­dura, tinha ficado preso anos a fio, torturado e tudo o mais, e cobrava desses vinte anos o nenhum reconheci­mento que lhe deram. Minha curiosidade multiplicou as questões até que ele me disse (imagine!) que o pai era marinheiro e foi preso em 1936 durante uma tentativa de derrubada do regime. Meu coração estava aos pulos... se me dissesse que em vez do pai era o tio, juro que acreditava que era o filho da Lídia que a ficção não ti­nha deixado envelhecer... Via Lisboa notuma pela jane­la, subíamos a Estrela para ir sair a Alcântara e eu fechava os olhos para imaginar a revolta dos barcos, o Daniel, o Adamastor e o Ricardo Reis, a rua do Ale­crim... Tudo me saía proustianamente dessa outra xíca­ra de chá. Tive imensa pena quando chegamos a Belém e me despedi dele como de uma página de história que me chegava, assim, de súbito, transmudada pelas pági­nas de um romance que me fascina cada vez mais.»

 

22 de Julho

Fernando Venâncio resolveu fazer algo como arqueo­logia literária, desenterrando da Seara Nova as críticas que, com juvenil atrevimento (então tinha só 45 anos...), ali andei publicando nos remotos anos de 1967 e 1968. Ainda hoje estou para saber o que terá levado o Rogé­rio Fernandes a convidar-me a realizar uma tarefa para a qual o pobre de mim não poderia apresentar outras credenciais que haver escrito Os Poemas Possíveis. (Lembro-me bem de ter anteposto uma assustada con­dição: não fazer crítica de livros de poesia...) Agora eis­-me perante os fantasmas de opiniões que expandi háquase trinta anos, algumas bastante ousadas para a épo­ca, como dizer que Agustina Bessa Luís «corre o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria músi­ca». Apesar da minha inexperiência, e tanto quanto sou capaz de recordar, creio não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo. Sal­vo o que escrevi sobre O Delfim do José Cardoso Pi­res: muitas vezes me tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro resposta...

 

24 de Julho

Uma coisa seria querer fazer um romance sem per­sonagens, outra pensar que seria possível fazê-lo sem gente. E esse foi o meu grande equívoco quando ima­ginei o Ensaio sobre a Cegueira. Tão grande ele foi que me custou meses de desesperante impotência. Levei demasiado tempo a perceber que os meus cegos podiam passar sem nome, mas não podiam viver sem humani­dade. Resultado: uma boa porção de páginas para o lixo.

 

26 de Julho

De Hemau, na Alemanha, escreveu-me há uma se­mana um biólogo, de 37 anos, que trabalha no ramo (é assim que se diz?) da imunologia, informando-me de que leu o Evangelho, mas que, não estando muito cer­to dos meus objectivos ao escrever esse livro, teria muito gosto em trocar comigo algumas ideias sobre Je­sus, Deus e o cristianismo... A carta tem andado por aí desde que chegou, mais ou menos à minha vista, e eu sem saber que destino dar-lhe, tendo em consideração que regressar agora àquelas profundas questões me iria tomar um tempo que nesta altura não me sobra. A si­tuação complicou-se hoje muito com a chegada simul­tânea de três cartas de Portugal.

Uma delas, em quatro páginas de formato A4 escri­tas numa caligrafia cerrada, miudinha, vem de uma se­nhora de 63 anos que vive em Oeiras, «católica, casada há 41 anos, meu marido é Arquitecto, temos 7 filhos e 14 netos», segundo me informa. A sua carta termina com as seguintes palavras: «Imagino que se não digne a responder a esta pobre creatura, aquêle que se acha mais inteligente que o próprio Deus!» Imaginou bem esta senhora, não lhe vou responder, mas não pela ino­centemente irónica razão que dá: é só porque não se pode discutir com alguém que avança para nós armado de uma fé a tal ponto beligerante, que mais parece uma couraça armada de puas e seguríssima de não ter falhas nem fendas. Entretenha-se esta senhora, se ainda tiver coragem para pôr a mão num livro meu, com o que sobre Deus escrevi no dia 23 de Fevereiro deste preci­so ano: se não perceber o que lá está, então suspeito que não percebe nada daquilo que julga crer.

A segunda carta veio do Norte, da Maia, e também a assina uma mulher. Do que extensamente escreve, re­tiro apenas este parágrafo: «Sou católica. O meu mari­do também. Foi ele que me deu O Evangelho segundo Jesus Cristo. Li-o como uma católica o deve ler: com devoção. Apresentou-me outra fotografia, que é a sua, a de homem. E eu que também sou humana permiti-me ir tirando ainda outras. Ouvi-o um dia a falar na televi­são sobre este livro e encontrei de novo um homem. E tenho pena que outros se tenham julgado Deus, e o te­nham julgado e não o tenham percebido. Porque nem entendem Deus nem os homens, e nem de um nem de outros podem usufruir.»

A terceira carta portuguesa vem do Porto, também a escreve uma mulher. Esta tem 25 anos, trabalha como secretária, estuda à noite, será «sra. dra.» no ano que vem, vai casar daqui a quatro dias, e diz palavras como estas: «Acredito em Deus (sou "protestante"), voto desde sempre no PSD e no dia 16 de Março um exame mé­dico confirmou que a minha Mãe ia morrer. O mundo virou-se de pernas para o ar e as certezas absolutas deixaram de fazer sentido. Emprestaram-me o seu Evan­gelho há um ano. Resolvi lê-lo, provavelmente porque estava zangada com Deus. [u.] A minha Mãe morreu há um mês. Continuo a acreditar em Deus e é n'Ele que eu encontro sentido para a vida. Não consigo compreen­der muita coisa. Não consigo compreender as críticas aos seus livros por parte da Igreja. Se as pessoas têm realmente fé e têm a certeza das suas convicções, en­tão porquê o medo, o pavor de ler um livro do Sara­mago? [.u] O meu desejo é que seja feliz!»

As cartas aí ficam. Entretanto, acudiu-me uma ideia: pôr estas quatro pessoas a falar umas com as outras so­bre Jesus, Deus e o cristianismo, como queria o biólogo alemão. Chamam-se estes meus correspondentes, respec­tivamente, Bernd, Maria Sofia, Ângela e Raquel Maria. Já estão apresentados, podem começar a conversar.

 

28 de Julho

Continua a escavação arqueológica. Agora foi o Público que, para a sua secção «20 anos depois», exu­mou do velho Diário de Lisboa um artigo que escrevi com o título pouco original de «Carta aberta à CIA». Sendo estes cadernos um diário, acho que tanto o po­dem ser do dia de hoje como do dia de ontem, em pri­meiro lugar porque o hoje está feito de todos os ontens, quer os próprios quer os alheios, e depois porque vinte anos não são nada e as coisas mudam muito menos do que cremos. Razões suficientes para que a estas pági­nas tenha decidido trasladar (palavra adequada, tratan­do-se de uma exumação) o corpo menos mal conservado dos meus protestos e indignações de então. Rezava as­sim o artigo:

«Tenho visto que Vossa Excelência é habilíssima em conspiração, intrigas e golpes de Estado. Tenho-a visto de longe e não desejaria sabê-la de perto. Já me basta ter lido o que Vossa Excelência fez no Chile, a mortan­dade que por lá foi e vai, verificar todos os dias que governos promove e apoia Vossa Excelência, imagine se eu havia de gostar que Vossa Excelência mandasse para aqui os seus emissários e instalasse no meio da nossa roda o seu caldeirão de truques e bruxedosL.. Ainda agora aí está o arcebispo Makários, de trastes às costas, só porque Vossa Excelência, de acordo com o governo que instalou na Grécia, entendeu que convinha acender no Mediterrâneo um novo foco de agitação (perdoe Vossa Excelência a fraca palavra), numa altura em que, se não interpreto mal, os povos da Europa andavam a perceber que mais bondade tirariam da paz do que das guerras...

«Vossa Excelência sofre de vocação fascista. Não se

ofenda, please. Em verdade, nunca dei por que Vossa Excelência tirasse de qualquer país um governo de di­reita para pôr um governo de esquerda... Vossa Exce­lência gaba-se (ou já não se gaba, sequer?) de muito estimar a democracia, mas estou em crer que padece de uma deformada visão política que a faz desejar ver o seu país cercado de fascismos por todos os lados, tal­vez para mais avultarem as qualidades democráticas, quando não republicanas, que exornam a Grande Nação Americana... Se bem entendo, Vossa Excelência, que vive ocupadíssima a instalar governos reaccionários por toda a parte e a defender os existentes, está satisfeita com o governo que tem. Que sorte a sua, poupada como a vejo ao trabalho de fazer golpes de Estado dentro de casa!

«Não cuide Vossa Excelência que eu insulto. Como me atreveria? Sou um pobre cidadão português que ain­da não ia à escola em 1926 e que viveu todo este tem­po sob o regime fascista que Vossa Excelência tanto acarinhou e protegeu. A diferença é que, enquanto Vossa Excelência defendia Salazar e Caetano, não me protegia a mim. Nada que eu lho pedisse ou desejasse, mas, se Vossa Excelência se desse a respeitar alguns dos seus avós que o merecem, teria escrúpulo em meter-se onde não é chamada ou aonde a chamam apenas aqueles que com Vossa Excelência costumam trocar serviços pouco limpos. Faço-lhe a justiça de supor que Vossa Excelên­cia, até agora, não se ocupou muito com o povo portu­guês. Não precisava. Isto, por cá, ia andando com a prata da casa, uns dominando, outros dominados, mas era um insignificante quintal europeu onde só por rico­chete aconteciam coisas. Bastava a Vossa Excelência estancar na origem as torrentes: para estas bandas tudo se resumia em águas estagnadas e numa desolação para que parecia não haver remédio.

«Nós fazíamos o que podíamos para resistir. E re­sistimos muito, se não é confiado afirmá-lo a quem tem esmagado outras resistências. Se não tivéssemos resistido, não estaria agora Vossa Excelência tão perple­xa e agitada a perguntar-se como foi possível dignificar­-se de repente um povo para quem Vossa Excelência olhava com desprezo total, e, se calhar, com alguma repugnância. Permita Vossa Excelência que lhe revele um segredo pessoal: não me pesam nada estes quaren­ta e oito anos, sinto-me fresco e activo como um jovem, mais activo e fresco do que, quando jovem mesmo, me moíam o juízo com os louvores do Estado Novo. A di­ferença (outra diferença) é que nessa altura Vossa Excelência ainda não era viva, embora já por aí hou­vesse quem lhe antecipasse as vezes... Vossa Excelên­cia (aproveito a oportunidade para lho recordar) é um simples elo de uma cadeia repressiva que tem, na sua terra, outras malhas: o Ku Klux Klan, por exemplo, e no confronto até sou capaz de preferir o Klan... Re­pare Vossa Excelência que eles usam uns capuchos ri­dículos, afantochados, coisa que já não se aguenta sem gargalhadas, ao passo que os emissários de Vossa Ex­celência são gente robusta, bem treinada, que toma ba­nho regularmente, fala línguas estrangeiras, sempre de pistola pronta e karate de ponta-e-mola... E isto ainda é o menos.

«O mais, ou o resto, está em ser Vossa Excelência

polícia de alto coturno, armado de toda a sabença téc­nica e de uma falta de escrúpulos sem limites. Vossa Excelência, quando não pode eliminar, arruína, quando não pode fazer calar, faz barulho, e sempre que lhe é possível destrói a gente honesta para a substituir por celerados. Vossa Excelência sabe que assim é e nem sequer reage aos protestos que se levantam de todo o mundo a cada seu malefício, nem desmente as acusações que justamente lhe fazem... Tão segura está Vossa Ex­celência do seu poder! É das coisas que mais me intri­ga que, sendo Vossa Excelência ré de tantos crimes, não haja no seu país um tribunal que a julgue! Ignorante como só um português tem podido ser, muitas vezes me tenho interrogado sobre quem realmente mandará no país de Vossa Excelência. A resposta que encontrei é simples e vale o que vale: no meu fraco entendimento, Vossa Excelência serve o capital dentro e fora da Amé­rica (Estados Unidos), desde que ele seja americano ou, não o sendo, esteja ao seu serviço. Nunca Vossa Exce­lência teve outra regra de conduta. OK?

«Vossa Excelência já deu fé (deu logo, pois claro!) de que temos em Portugal uma revolução. Digamos, uma revolução pequena. Tínhamos cá o fascismo que tão bem servia Vossa Excelência, até que veio o Movi­mento das Forças Armadas e deu nisto o safanão que se viu. Vossa Excelência espantou-se muito ao ver com que facilidade a coisa veio abaixo. Permita-me que lhe diga que é ingenuidade sua: o prédio parecia para du­rar algum tempo mais, mas estava todo esburacado, e tínhamos sido nós, os civis, que formigamente havíamos operado. Alguns morreram nesse trabalho, muitos sofre­ram na prisão, foram torturados. Tem Vossa Excelência sensibilidade? Boa pergunta. Que sabe Vossa Excelên­cia disso, quando é capaz de olhar esse desgraçado Chile com a satisfação complacente de quem fez obra perfei­ta e nela se revê?.. E não há, realmente, quem leve Vossa Excelência a tribunal?

«Dizia eu que fizemos aqui uma revolução. E tam­bém digo que Vossa Excelência não está nada satisfeita com o andamento das coisas. Para Vossa Excelência só serve uma democracia que sirva obedientemente os interesses do capitalismo, e lá lhe está parecendo que os portugueses, afinal, aprenderam demasiado nestes cinquenta anos de fascismo. É verdade: aprenderam precisamente a saber, de todas as maneiras, o que o fas­cismo é. Há-de ser difícil convencer-nos Vossa Excelên­cia a aceitar os fascismos que pela sua mão vêm ou querem vir. Eu até nem me iludo: Vossa Excelência tem, na minha terra, ainda muito quem a sirva nos seus desígnios: todos os fascistas que continuam a comer pão e a dar ordens, todos os que não o sendo vão de gorra com eles, alguns sem darem por tal, outros mui­to preconcebidamente. Vossa Excelência tem portanto amigos dentro da praça. Já se encontraram todos, pois não é verdade?, ora à mesa secreta das decisões, ora nas acções de rua, nas calúnias, nas intrigas, na bela cons­piração, na compra e venda dos traidores...

«Vossa Excelência talvez tente aqui a sua sorte. Já o fez tantas vezes, que uma mais não lhe faz diferença e decerto convém aos seus patrões. Mas consinta que lhe diga uma coisa. Vossa Excelência e o mundo espanta­ram-se de que esta nossa florida revolução não desse em banho de sangue, não foi? Levaria muito tempo a ex­plicar as razões disso e Vossa Excelência nem sempre é, ao menos, medianamente inteligente. Mas tome nota de que haverá mesmo um banho de sangue se Vossa Excelência se atreve a intervir na nossa vida. Estes po­bres portugueses viveram cinquenta anos de fascismo e não querem mais. Suponho que preferirão acabar com a vida lutando pelo que já têm, a voltarem ao domínio de governos como os que Vossa Excelência transporta no seu catálogo de caixeira-viajante da contra-revolução. Tenho a certeza.

«Emprazo Vossa Excelência a que nos deixe em paz. Temos aqui muito que fazer, muito que trabalhar, mui­to que sonhar. Mas não vamos dormir, isso não. Se Vossa Excelência vier, terá de matar-nos com os olhos abertos.»

Afinal, não valíamos tanto. A esses e outros senho­res do mundo bastou-lhes facilitar uma mãozinha em­baladora à nossa natural inclinação para o sono, e agora aqui estamos, vinte anos depois, meio sonâmbulos, só atentos ao tinir dos écus que ainda vão caindo das frondosas ramas europeias. De facto, dos por­tugueses nunca se esperou muito, aos portugueses nun­ca se lhes pediu nada. O despertar vai ser atroz. Ou talvez não. A gente habitua-se a tudo, até a não exis­tir.. .

 

29 de Julho

Chegaram cartas de José Montserrat Torrents, profes­sor na Universidade de Barcelona, e de sua mulher, Jessica, nome que ela escreve com e, suponho que por não gostar que lho digam à inglesa, Jéssica, como nós, em português, pronunciaríamos também. Ficámos a sa­ber que se casaram recentemente, depois das últimas cartas que recebemos deles (sempre escrevem ambos), mas estas, onde se esperaria que só houvesse lugar para as alegrias da boda, são o relato de uma catástrofe. Toda a região onde têm a sua casa de campo foi devastada pela vaga de grandes incêndios ocasionados pelo calor intensíssimo que também aqui chegou. Eis como Jessica conta o que se passou:

«Na segunda-feira, dia 4 do presente, o fogo arra­sou completamente toda a nossa comarca, além de outras zonas da Catalunha. Foi como um instante, uma tarde de pânico-luta-impotência-indignação, e nem um maldito bombeiro. Houve gente que perdeu a casa, só dois a vida, muitos o gado. Era horrível ouvir os gri­tos das vacas queimando-se. José não estava na aldeia, tinha ido caminhar pelos Pirenéus, e só regressaria no dia seguinte. Um incêndio que vinha de longe, de muito longe, mas tão veloz que os homens não podiam sequer segui-lo. Aí pelas 4 da tarde estava no campo que linda com a nossa casa. Pus o cão a salvo, mais ou menos, e as disquetes da [minha] tese e dos traba­lhos de José numa mochila, molhei toda a casa e fui­-me com os demais. Eu, uma rapariga da cidade que nunca tinha visto nada igual, ali, transportando água a baldes para apagar labaredas de 30 metros de altura. Mas os camponeses sabem muito bem que o fogo com o fogo se apaga, e assim conseguiram que não entras­se na aldeia. Foi toda uma tarde e uma noite de incer­teza, de incredulidade, de coragem inesperada e de reconciliações de vizinhos, daqueles que há vinte anos não se falam. Nenhuma das casas da aldeia se queimou, mas sim as masías dos arredores, e todas as árvores que durante tanto tempo contemplámos e amámos. A terra desapareceu e ficámos nós, no mesmo sítio, mas em outro lugar.»

Na altura, como sempre acontece nesta época do ano, a televisão mostrou os incêndios. Era verdadei­ramente assustador ver como as chamas subiam pelas árvores acima, rugindo, transformando-as em archotes, e logo, com uma velocidade incrível, passavam às ár­vores próximas, até que ficava abrasada toda a encosta de uma montanha. Este relato de Jessica, porém, toma a tragédia subitamente mais real. Ela quase não descre­ve o incêndio, só diz, como de passagem, umas quantas palavras diante das quais a memória das imagens em­palidece. Refiro-me aos «gritos das vacas queimando­-se». Como toda a gente, eu sabia que as vacas mugem, agora sei que também gritam.

 

2 de Agosto

Ángel Alonso, da Companhia de Teatro Catalanas Gags, quer representar em Espanha, em castelhano. e em catalão, In Nomine Dei. E afirma que tem a intenção de estrear já em Março do ano que vem, e dar nada mais nada menos que trinta representações. Parece, portanto, que se vai realizar aquele sonho que eu tinha: ver um dia a peça num palco de teatro, como teatro que é. Mas não a ouvirei em português... Assim é a vida, nunca se pode ter tudo.

 

3 de Agosto

Mone Hvass, minha tradutora dinamarquesa, escre­ve-me da ilha de Tyen (uma das muitas que a Dinamar­ca tem), para onde me diz ter «fugido» há dois meses, depois de entregar ao editor a tradução do Evangelho. Alugou uma casa com tecto de colmo, no meio duma floresta, e divide tranquilamente o tempo entre a penúl­tima revisão do manuscrito e o cultivo das hortaliças. Tenho de confessar que, por um momento, esta flores­ta e este colmo me fizeram inveja. Falar de florestas a quem vive no meio de pedras e cinzas, é como pergun­tar «Quer água?» a alguém que está a morrer de sede... Não que eu me queixe, note-se: tenho na memória ár­vores mais do que suficientes, belíssimas e de todos os tamanhos, agora estou a tentar dar uma ajuda à tenaci­dade de uns quantos arbustos que por aqui lutam con­tra o vento e que aprenderam a beber com lentidão a humidade nocturna que ainda lhes vem descendo do céu.

Esta carta fez-me pensar que nunca disse como che­gou Mone a ser tradutora dos meus livros, ela cuja pro­fissão era, e continua a ser (o que talvez explique melhor a alusão às hortaliças...), a de botânica. Vou contá-lo agora, em poucas palavras, porque as outras só serviriam para diminuir a singularidade do conto. Aí pelo ano de 87, estava Mone na Guiné-Bissau como cooperadora, trabalhando na área da sua especialidade. Vivia numa cabana, isolada, uma vez que os vizinhos mais próximos, um casal de portugueses, também cooperadores, moravam a uns dois quilómetros de dis­tância. Aconteceu que esses vizinhos, tendo chegado ao fim do seu tempo, iam regressar a Portugal, e como o casinhoto em que viviam era um tanto mais sólido e confortável que o de Mone, sugeriram-lhe que se mu­dasse para lá depois de partirem. Mone agradeceu, mas disse que não, preferia continuar onde estava. Ora, pas­sados alguns dias, a arruinada cabana foi-se mesmo abaixo e Mone não teve outra solução que pegar nas sementes e nos poucos haveres (é mulher de ir pela vida apenas com o que leva posto), e mudar-se. Na nova casa havia dois livros: Os Lusíadas e O Ano da Morte de Ricardo Reis. Não se pode afirmar que Mone dominas­se então o português, mas, apesar disso, corajosamente, sozinha no mato, pôs-se à leitura. Os Lusíadas fizeram­-na sofrer muito, Ricardo Reis presumo que um pouco menos, e esta talvez tenha sido a razão por que, regres­sando entretanto à Dinamarca, ela começou, depois de um tempo de aplicado estudo, a traduzir o Reis. Foi assim. De tão simples e bonita, a história parece inven­tada, e contudo apetece-me dizer que nunca houve uma verdade mais pura.

 

4 de Agosto

Temos amigos em casa, Amparo e Victor, vindos de Sevilha, Maria deI Mar, que vive em Granada. Nenhum deles conhece Lanzarote. Levámo-los hoje à povoação de Femés, que tem uma vista magnífica sobre Playa Blanca, com a ilha de Fuerteventura ao fundo. Depois fomos ao Charco de los Clicos. O Charco é uma peque­na lagoa de águas verdes no interior de uma cratera, metade da qual, em tempos passados, ruiu para o lado do mar. Aos poucos, com tempo e paciência, as ondas vieram reduzindo a seixos miúdos e areia negra as gi­gantescas massas de lava e rocha que se afundaram ali. Delas só resta um pedregulho enorme, cenográfico, des­bastado pela erosão nas suas partes mais friáveis. Faz corpo com uma plataforma ampla, ao rés da água, per­feitamente horizontal, que a maré cheia cobre. Enquan­to Pilar e os amigos se demoravam na margem da lagoa, fui-me eu ao penedo, a contemplar de perto o bater tran­quilo das ondas. Passados alguns minutos dei por que me chamavam já do caminho que sobe em direcção ao espaço onde se deixam os carros. Comecei a atravessar a praia pedregosa e, em certa altura, porque tinha de apanhar o caminho num lugar mais abaixo e eles me esperavam, resolvi correr. Tudo muito natural. A partir daqui começa um capítulo mais da história das fraque­zas humanas. Quando eu corria, vencendo o melhor que podia a torpeza da areia e os seixos escorregadios, pen­sei que eles me estariam a olhar de além, e que um deles de certeza diria: «Parece impossível como corre, com a idade que tem.» Pensá-lo e tentar correr ainda com mais ligeireza, foi tudo um. Quando cheguei junto de Pilar e dos nossos amigos, sucedeu o que esperava. Disse Victor: «Daqui por meia dúzia de anos [tem 49], oxalá eu seja capaz de correr como te vi correr agora.» Mostrei o sorriso modesto e complacente que a situa­ção pedia, como de quem não acreditava que tal prodí­gio viesse a dar-se - e calei o que devia confessar: que, sendo certo que eu não tinha começado a correr por contar com o comentário de Victor, certo era também que tinha continuado a correr apesar de o ter pensado...

 

9 de Agosto

Dias de passeio. O deslumbramento dos amigos que nos visitam e que acompanhamos a conhecer a ilha mantém vivo e atento o nosso próprio olhar, impede-nos de deslizar aos poucos para uma percepção rotineira, que resultaria de voltar aos sítios conhecidos e encontrá-los iguais. O que, pensando bem, não há grande risco de que venha a acontecer. Por exemplo, nos Jameos, pela primeira vez, vi como um jorro de luz descia de um buraco no tecto da caverna e atravessava a água límpida, iluminando o fundo, sete metros abaixo, a ponto de parecer que lhe podíamos chegar com as mãos. Lembrei­-me, nesse momento, das últimas palavras que escrevi na Viagem a Portugal: «É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.» Nunca havia ido aos Jameos deI Agua àquela hora, por isso não pudera ver a luz, aquela paciente luz que ali tomava todos os dias à espera de encontrar-me.

O mesmo vai ter de fazer Victor se quiser ver La Graciosa. Quando fomos ao Mirador deI Río, estava lá uma nuvem branca e espessa que cobria totalmente, até à altura dos nossos olhos, o braço de mar que separa as duas ilhas. De La Graciosa não se percebia o mais pe­queno sinal, estava ali e era como se não existisse. Durante alguns minutos, Victor, sentado numa pedra, olhando a indevassável brancura, ainda esperou que a nuvem se dissipasse. Desistiu por fim, a hora do encon­tro não era esta. Era inevitável que eu tivesse pensado nos meus cegos. Como eles estávamos nós, mergulha­dos num mar de leite. Em todo o caso, Victor não per­deu completamente o seu tempo. Disse-me depois que tinha visto Deus no interior da enorme nuvem, vestido de judeu rico, como no Evangelho...

Exposto ao duro sol, açoitado pelo vento, quem nós vimos hoje em Fuerteventura foi Miguel de Unamuno. Está na encosta de um monte sobre um pedestal bran­co, tendo a um lado e outro um muro simples, branco também, mal rebocado, aparentemente sem relação com o resto, mas que puseram ali para evitar que as terras superiores se desprendam. Miguel de Unamuno não se encontra à mão de semear, para chegar a ele é preciso dar à perna ou dispor de um carro de tracção às quatro rodas. Na estrada, que passa a cerca de um quilómetro, não há nenhuma indicação de que a figura ao longe represente o homem a quem Primo de Rivera confinou aqui, em 1924, por castigo de se opor, em escritos e discursos públicos, à ditadura. Não deve surpreender, portanto, se o viajante não teve a prudência de buscar informações antes, que o modesto conjunto arquitectó­nico possa ser confundido com a estátua de uma Vir­gem ou duma santa padroeira daqueles lugares.

 

10 de Agosto

Um simples comentário de passagem, uma pequena curiosidade fora de intenção, podem levar-nos a duvi­dar de algo que até então nos parecera claramente ma­nifesto e sem lugar para equívocos. Pelo tempo apenas de tornar um café estiveram cá Jorge Cruz, o director do Parque de Exposições de Braga, e Goretti, sua mu­lher, que vieram passar alguns dias de férias na ilha. Em certa altura, ele apontou para o chão, sorrindo, e pergun­tou se os ladrilhos eram os tais. (Referia-se, obviamente, ao cómico episódio da utilização de chá no escure­cimento das juntas dos meus Brunelleschi...) Confirmei, lacónico, sem mais, e mudei de conversa, como se o Jorge Cruz (pobre dele, ausente de qualquer mau pro­pósito) tivesse penetrado abusivamente na minha intimi­dade. Já antes, porém de modo vago, uma ou outra alusão de amigos a casos descritos nestes Cadernos me tinha causado o mal-estar de quem de repente se dá conta de haver dito o que deveria ter calado, umas quantas insignificâncias aparentes que, afinal, teriam acabado por tomar flagrante o que desejaria manter ocul­to. Assim como alguém que de repente a si mesmo se visse despido na praça pública... Pensei então que as auto-escavações psicológicas a que alguns autores delei­tosamente se entregam no fundo não adiantam grande coisa, porque é a própria terra removida que os vai tor­nar a esconder à nossa vista. Pelo contrário, uma só palavra, às vezes, das que não parecem valer nada, pode ser mais perigosamente reveladora. Andei o resto do dia a remoer tão pouco tranquilizadoras reflexões (deveria eu continuar a escrever estes Cadernos, afinal indiscre­tos mais do que me convinha?), até que veio outro Cruz, Juan, que, comentando à mesa do jantar o primeiro volume deste diário, iluminadoramente me disse: «Os Cadernos são como a tua sombra.» Respirei alivia­díssimo porque, no fim das contas, uma sombra é isso só, uma mancha definida por um contorno pessoal, nada mais. Quanto ao que dentro dela se encontra, o misté­rio é o mesmo que em todas as outras sombras do mundo. E então pensei: «O que os Cadernos mostram é só um contorno. O resto, o interior, é sombra, e som­bra vai continuar a ser.»

 

11 de Agosto

Faz hoje um ano que o Pepe apareceu. Demos a este cão abrigo, comida e carinho. Gostaria de saber que recordações conservará ele ainda dos seus antigos donos, aqueles a quem fugiu ou que o abandonaram. Hoje, ven­do-o trotar por aqui, ligeiro e familiar, é como se nunca tivesse conhecido outra casa. No momento em que isto escrevo, está deitado a um palmo dos meus pés, tran­quilo, agora que as visitas se foram embora. Iremos nós deixá-lo por uma semana, até ao regresso do Canadá. Então, tornará a ir acordar-me todas as manhãs: se por casualidade estou com a mão suspensa para fora da cama, dá sinal da sua presença deslizando o corpo todo por baixo dela, desde a cabeça até ao coto que lhe ser­ve de cauda; se não, usa o método mais expedito de fincar as patas na borda do colchão, ou mesmo no meu braço, se estou bastante perto. Mas o seu grande amor é Pilar.

 

12 de Agosto

Recebo a revista Fortuna (um riquíssimo nome, é caso para dizer), à qual, depois de muita instância, ti­nha enviado há tempos um artigo de quatro páginas (su­ponho que grátis, uma vez que nunca se me falou em dinheiro). Comecei por achar extravagante que me tives­sem metido o texto entre aspas, abrindo-as na primeira linha e fechando-as na última, como se de uma citação se tratasse. Resignadamente, meditei que isto de artes tipográficas já não é nada do que era, e ia pôr a revista de lado (o meu interesse pelo «dez dias na vida de Champalimaud» ou pela «lista dos mais ricos de Portu­gal» era positivamente nulo) quando me apercebi de que o artigo não terminava como eu me lembrava de tê-lo feito. Fui ver: das quatro páginas de texto tinham pu­blicado três... Pior ainda: o título, «Que voltem os Gre­gos!» chamara eu ao artigo, deixara de ter qualquer sentido, uma vez que precisamente na página omissa é que os Gregos deviam aparecer... O leitor (mas lerão Champalimaud e os mais ricos de Portugal tais coisas?) ia ficar a pensar que este escrevente, além de todos os defeitos que lhe reconhecem ou atribuem, é incapaz de acertar a letra com a tabuleta. Mandei uma carta a pro­testar contra a falta, de cuidado ou de respeito, dá o mesmo, e fico à espera das explicações.

Há dois dias, o presidente da Fundação César Man­rique, José Juan Ramirez, advogado e pessoa excelen­te, falou-me da necessidade já instante de ampliar as instalações da Fundação e da dificuldade de encontrar o arquitecto adequado. Perguntou-me se conhecia Siza Vieira, eu disse-lhe que sim. E mais: que em minha opinião seria o arquitecto capaz de realizar uma obra que fosse ao mesmo tempo inovadora e respeitadora da atmosfera e da estrutura particulares da Fundação. Ofe­reci-me para lhe escrever, prevenindo porém que a res­posta certamente iria demorar, considerando as mil ocupações do Álvaro Siza. Ora bem. Duas horas depois de ter enviado o fax a contar a história, chegou-me a resposta. Que sim, que está disposto a vir. Não pode prometer nada por enquanto, mas virá estudar o assun­to no próprio local. Ficámos todos felizes, e eu regala­do de emoção, só de imaginar que em Lanzarote talvez se venha a implantar, no sentido absoluto do termo, um trabalho de Siza Vieira. Seria uma boa maneira de co­meçar a reconquistar a ilha para Portugal...

 

13 de Agosto

Em Madrid, escala para o Canadá. Instalamo-nos por uma noite em casa de Marisa, nosso porto de abrigo permanente, ao lado da Puerta del Sol. Viemos encon­trar o prédio em alvoroço por causa dumas filmagens. Só para se fazer uma ideia, hoje à noite haverá uma violação na escada... O filme chama-se Fea, é under­ground e feito com escassos duros, segundo nos infor­ma Marisa, enquanto, na cozinha, com uma amiga canária chamada Hortense, vai preparando bocadillos para a equipa esfomeada. Este underground madrileno parece-me mais uma pura inocência. Uma das jovens actrizes sobe para cumprimentar-me. Por baixo da maquilhagem estridente é como um anjo extraviado. Provavelmente ainda se preocupa com o que a família irá pensar destas devassidões na Calle Marqués Viudo de Pontejos...

 

15 de Agosto

Edmonton, no estado canadiano de Alberta, XIV Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, que nos últimos três anos tem sido presi­dida pela Maria Alzira Seixo. Encontra-se aqui reunida, a par de uma multidão de caras desconhecidas - os congressistas passam de quinhentos -, a fina flor dos especialistas destas matérias em todo o mundo. O tema promete: «Literatura e diversidade: línguas, culturas, sociedades.» Ao princípio, havia sido também prevista a participação da escritora canadiana Margaret Atwood, mas afinal sou o único escritor presente. Tinham-me informado de que falaria amanhã, porém, o programa definitivo arrumou-me para hoje, na segunda sessão ple­nária. Li a minha conferência - Entre o narrador omnisciente e o monólogo interior: será necessário re­gressar ao autor? -, desenvolvimento de um ensaio que há tempos publiquei na revista francesa Quai Voltaire. Não me engano nem engano se disser que saiu bastante bem. Os aplausos foram generosos, mas mais importantes do que eles foram as perguntas no fim: para concordar ou para discordar, os académicos decidiram tomar a sério a exposição simples de umas quantas opiniões produzidas por um escritor em domínio habi­tualmente reservado a «técnicos». Foi durante esse perío­do de perguntas, já esgotado o primeiro efeito da sempre providencial adrenalina, que, bruscamente, me caiu em cima todo o cansaço da viagem. Lá consegui aguentar­-me. A apresentação, feita por Wladimir Krysinski, da Universidade de Montréal, que conheci em Viterbo, foi­-o em tais termos que me fizeram pensar enquanto ele ia falando: «Ah, se o que tu dizes fosse verdade!...»

 

16 de Agosto

Julgava eu (e era natural julgá-lo, a amizade pode muito) que a iniciativa do convite para vir aqui tivesse sido da Maria Alzira Seixo. Enganava-me. Foi o Organizador Geral do Congresso, Milan Dimic, da Uni­versidade de Alberta, o da ideia. Deverão portanto al­guns dos meus colegas lá na pátria (mas já sei que não o farão) calar os murmúrios e engolir as suas fáceis suspeitas e mais do que previsíveis acusações de favo­ritismo: a Maria Alzira está inocente. Cúmplice, isso sim, porque aprovou depois com alegria o convite, mas o responsável do delito é um servo-croata baixo, gordo, voz tonitruante, fino como um coral e dotado de um sentido de humor irresistível. Quem sabe, mesmo, se não terá sido esse humor que o levou a escolher-me, entre tantos escritores? Afinal, que é que eu sou? Sou só um escritor português.

 

As sessões são, no geral, sérias, está-se aqui para trabalhar, embora, pelo que vou ouvindo nos corredores, alguns congressistas da infantaria já andem a tramar excursões mais ou menos clandestinas às Montanhas Rochosas, que estão a 400 quilómetros de Edmonton. O neófito disciplinado que eu sempre serei vai tentando assimilar as lições, tirar algum proveito das comunica­ções cujas matérias mais lhe interessam, mas surpreen­de-se que, em conclave tão substancioso, sejam possíveis

episódios como o que passo a narrar. Numa sessão dedicada ao tema «Literatura e Religião», um chinês da Universidade de Xiangtan apresentou uma comunicação com o título Temas bíblicos na poesia de Pushkin. En­tre esses temas, talvez porque a China esteja longe e as ideias ocidentais cheguem lá um tanto esborratadas, o académico, de seu nome Tie-Fu Zhang, além de algu­mas outras inexactidões graves, cometeu o desastrado tropeço de mencionar um poema de Pushkin cujo assun­to é uma passagem do Corão. Há que referir que a con­ferência, escrita em inglês, tinha sido lida por um intérprete, uma vez que o conferencista, além da sua própria língua, só falava russo. O que depois se passou pode resumir-se da seguinte maneira: a) uma ucraniana, em inglês, reduziu a cacos a comunicação; b) a seguir malhou um russo, em francês; c) o intérprete, sendo só intérprete, não estava em condições de rebater os ata­ques; d) além disso, não sabia francês; e) o autor não percebia nada do que se passava e sorria beatificamente; f) o russo propôs-se repetir tudo em russo; g), finalmen­te, o moderador, que era Horácio Costa, mandou-os a todos lá para fora, que se entendessem como pudessem e deixassem prosseguir a sessão... Que prosseguiu efec­tivamente com a leitura, pelo mesmo Horácio Costa, da sua comunicação sobre Textos religiosos e narrativa contemporânea, centrada em três livros: Live from Gotha de Gore Vidal, The Satanic Verses de Salman Rushdie e o Evangelho.

 

17 de Agosto

Choveu todo o dia. Com Horácio e Manuel Ulacia fomos dar uma volta pela cidade. City Hall, a nova câmara municipal, inaugurada recentemente, é uma obra de arquitectura magnífica que me fez recordar o nosso Siza Vieira. O espaço interior, cúbico, enorme, defini­do somente por linhas rectas, produz uma impressão de repousante pureza. Do centro arranca uma larga escada­ria, de uma simplicidade enganosamente elementar. Estáali como o que é: como uma obra de arte. O tecto, altíssimo, é formado por uma pirâmide de vidro. Como será isto quando a neve estiver caindo? Daqui ao mu­seu é um salto, mas a chuva deixou-nos encharcados. Aprenderemos depois que o centro de Edmonton é como uma cidade em duplicado, com circulação e vida sub­terrânea. No subsolo encontra-se de tudo, lojas, restaurantes, cinemas, divertimentos. Vivendo Edmonton durante oito meses debaixo de neve, os habitantes, por assim dizer, hibernam... O museu, com excepção de pouquíssimas pinturas, não vale a pena.

 

Leila Perrone Moisés fez hoje a sua comunicação: Paradoxos do nacionalismo literário na América Latina. Um autêntico prazer para a inteligência. Não posso, cla­ro está, transcrever para aqui as suas 22 páginas, nem me atrevo a resumi-las. Limito-me, com a devida vénia, a deixar grata constância dos dois parágrafos finais:

«Dependendo do Outro, como todo o desejo, o de­sejo dos mais nacionalistas dos Latino-Americanos é, a miúdo, que a sua cultura seja, não só reconhecida, mas admirada pelo Primeiro Mundo. Isto afecta a própria produção da literatura latino-americana, na medida em que a recepção internacional lhe é mais favorável quan­do ela responde aos desejos de evasão, de exotismo e de folclore das culturas hegemónicas. Os escritores menos típicos «typés») não alcançam mais que um êxito de estima e atingem um público muito mais res­trito. O grande público do Primeiro Mundo quer que os Latino-Americanos sejam pitorescos, coloridos e mági­cos, tem dificuldade em vê-los como iguais não com­ ente idênticos, o que, diga-se, nos autorizam as nossas origens e a nossa história.

«Condenados ao paradoxo, os melhores escritores latino-americanos compreenderam que podiam e deviam tirar partido dele. Não tendo já curso as teorias evo­lucionistas do homem e da sociedade, a diversidade e a pluralidade podem afirmar-se sem complexos. Encon­trando-se a doxa hegemónica actualmente em crise de legitimidade e de eficácia, a para-doxa latino-americana pode construir uma instância crítica e libertadora para as próprias culturas hegemónicas. Inventada pela Europa como um mundo ao lado, a América teve sempre essa tendência, voluntária ou involuntária, de ser a paródia da Europa. Como toda a antiga colónia, a América é ne­cessária à Europa como um espelho. Que o espelho adquira uma perturbadora autonomia, tornando-se deformante, que devolva uma imagem ao mesmo tem­po familiar e estranha, é esse o risco ou a fatalidade de toda a procriação ilegítima. O desforço do filho não consiste em ruminar indefinidamente o ressentimento relativo à sua origem, mas em reivindicar a herança e gozá-la livremente, em fazê-la prosperar, acarreando para ela preciosas diferenças linguísticas e culturais.»

 

18 de Agosto

Entrei a meio da sessão, discretamente fugido a uma conferência por de mais irrespirável para a curteza do meu fôlego, e fui contemplado com a surpresa feliz de ouvir falar português. Uma jovem professora brasileira discorria sobre a influência de Baudelaire em alguns poetas brasileiros menores, assunto que, francamente, não me teria animado a ficar se não estivesse preveni­do de que Benjamim Abdala Júnior, da Universidade de S. Paulo, faria alguma referência à Jangada de Pedra na sua tese - Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada -, título que, já por si, me picava a curiosidade. Não compreendia eu bem o que poderiam fazer ali conceitos como «solidariedade», obviamente desprovido de qualquer tipo de cientificismo. A ideia de Benjamim Abdala, afinal, tornou-se-me de­pois clara, quando ele propôs «descentrar perspectivas: vamos observar as nossas culturas a partir de um ponto de vista próprio. [...] Esse descentramento solicita uma teoria literária descolonizada, com critérios próprios de valor. Em termos de literatura comparada, o mesmo im­pulso nos leva a enfatizar estudos pelos paralelos – um conceito mais amplo que o geográfico e que envolve simetrias socioculturais. Assim, os países ibéricos si­tuam-se em paralelo equivalente ao das suas ex-colónias. Ao comparatismo da necessidade que vem da circulação norte/sul, vamos promover, pois, o comparatismo da solidariedade, buscando o que existe de próprio e de comum em nossas culturas. Vemos sobretudo duas la­çadas, duas perspectivas simultâneas de aproximação: entre os países hispano-americanos é entre os países de língua oficial portuguesa».

Ia nisto muita utopia bem intencionada, muita jan­gada, muito reconforto para a desamparada alma dos portugueses, brasileiros e hispano-parlantes presentes, postos a imaginar um mundo só seu, todo em família, onde não teriam direito de entrada os males desta civi­lização que se despede, com muitas das suas babélicas línguas em decomposição e as suas exterminadoras es­tratégias culturais hegemonizantes. Do debate a seguir só havia que esperar, portanto, os conhecidos e inócuos comentários palacianos que se usam entre professores e professores, adoçando, quantas vezes, sob os resguardos de uma urbanidade formal, as mais graves diferenças de opinião.

Estávamos nisto, já mexendo-nos nas cadeiras, pre­parados para dar a tarde por concluída, quando de sú­bito toma a palavra um outro professor brasileiro, Flávio Khlote, da Universidade de Brasília. Começou por de­clarar que não tinha nada que ver com o que ali fora dito por Benjamim Abdala, porquanto não era brasilei­ro, mas sim alemão, e alemão de gerações. Como ale­mão precisamente, pertencente a uma minoria, tinha sido e continuava a ser vítima de perseguições e discrimina­ções. Protestou contra o facto de, falando-se de litera­tura brasileira, sempre se omitir a literatura escrita no Brasil em alemão, ou italiano, ou japonês, por exemplo. Citou nomes de escritores alemães e títulos de livros, todos, segundo ele, importantíssimos. Alegou que a con­ferência de Benjamim Abdala fazia parte de uma am­pla conspiração destinada a reconstituir o império colonial português, projecto já em execução, como cer­tas pessoas, aliás, lhe tinham confidenciado em Lisboa. Considerou vergonhoso que a literatura brasileira se ini­ciasse com um texto que nem era literatura nem era bra­sileiro: a Carta de Pero Vaz de Caminha. Rematou dizendo que não era para estranhar que a literatura bra­sileira fosse tão pobre, uma vez que tinha por trás uma literatura mais pobre ainda: a portuguesa.

Desconcertadas, perplexas, as pessoas presentes olha­vam umas para as outras com o ar de quem não podia acreditar no que estava a ouvir. No fim da arrasadora diatribe, Benjamim Abdala Júnior tentou argumentar com bons modos, procurando pôr as coisas nos seus lugares, mas a tréplica do furioso Khlote ultrapassou, em provocação e insolência, tudo quanto tinha sido dito antes. A esta altura, o meu coração devia estar a 120 pulsações por minuto. Pedi a palavra e desanquei sim­plesmente o fulano. Como não tenho nada de acadé­mico, dei-me toda a licença para usar as palavras que ia considerando mais adequadas, sobretudo as que tives­sem maior grau de expressividade. Deu resultado. Mal eu me calei, tremendo como poucas vezes na minha vida, com a boca resseca e amarga, Khlote desapareceu sem tugir nem mugir. E quando me retirava ainda ouvi uma das assistentes dizer que a minha resposta ia com certeza dar a volta ao Brasil...

 

19 de Agosto

Maria Alzira veio dizer-me que Steven Totosy, o secretário-geral do Congresso, lhe comunicara a decisão de publicar a minha conferência nas Actas. Normal, em princípio. Tratava-se de uma cortesia para com o con­vidado. Mas o que toma singular o propósito é irem publicá-la, não só em francês, como foi lida, mas tam­bém em português... Estamos, nós, os da ocidental praia lusitana, tão pouco acostumados a sinais de respeito, que, tontos, piegas, nos comovemos até aos esconsos mais recônditos da alma.

 

20 de Agosto

Não podendo viajar até às maravilhas naturais das Montanhas Rochosas, fomos visitar um outro prodígio mais à mão, o célebre West Edmonton Mall, anuncia­do por toda a parte, incluindo documentos do Congres­so, como o maior centro de compras e de divertimentos do mundo. De facto, tal como aconteceria com as Montanhas Rochosas, nenhuma descrição é possível. Suponho que um dia inteiro, mesmo a passo acelera­do, não seria suficiente para percorrer todo aquele emaranhado de desfiladeiros, restaurantes, vales, repu­xos, montanhas-russas, planaltos, bares, parques aquáti­cos, praias tropicais, jogos electrónicos, escadas ro­lantes, ringues de patinagem no gelo - e lojas, lojas, lojas, lojas. Milhares e milhares de pessoas de todas as idades, por seu pé ou em carrinhos eléctricos para irem mais depressa, com o olhar vago subitamente excitado por um apetite de compra, caminham pelas interminá­veis galerias como obedecendo a um irresistível tro­pismo. Só de vê-las, entra-me no corpo uma mortal tristeza. Assisto às habilidades dos golfinhos, contemplo um galeão fundeado num lago interior por cujo fundo deslizam, em calhas, submarinos amarelos, observo as evoluções dos patinadores, dou por mim a contar as crianças que saem violentamente de dentro de um tubo metálico, escorregando na água, como vomitadas, as­sombro-me com a praia, suavemente inclinada, onde a ondulação vem morrer com uma elegância absolutamen­te natural graças a um mecanismo oculto que, lá adian­te, fabrica ondas. Claro que a areia não é areia, é uma capa suave de plástico, e a atmosfera, em humidade e em calor, é absolutamente caribenha. Fora do recinto cá­lido e húmido onde se banham entusiasticamente cen­tenas de pessoas, o ar é frio como nas Montanhas Rochosas. Sou a única gravata em todo o West Edmonton Mall.

 

Terminou o Congresso. No fim do mandato, entre aplausos, Maria Alzira Seixo foi nomeada Presidente de Honra da AILC. Do seu discurso de encerramento, um balanço crítico sobre o triénio em que havia sido a máxima representante da Associação, retive, e aqui a deixo registada, uma observação que me parece agudíssima. Falando do facto corrente de as teorias oci­dentais sobre Literatura Comparada estarem a ser segui­das como letra de fé (a expressão é minha, mas foi esse o sentido das palavras) pelos académicos orientais re­cém-chegados a estes estudos, Maria Alzira deixou um aviso que fez sorrir e que espero faça pensar: «Univer­sidades de todo o mundo, cuidai de não vos unirdes de­masiado!...» E ela sabe com certeza do que fala.

 

22 de Agosto

Pela primeira vez em tanto subir e descer de avião, pudemos ver, do alto, a casa. Com a família toda au­sente, em férias, e Luis a trabalhar à hora a que chegá­mos, só tínhamos o Pepe a receber-nos. O pobre animal nem podia acreditar que estávamos ali. Saltava de um para outro, enroscava-se nos nosso braços, gemia de um modo quase humano, e diabos me levem se não eram lágrimas, das autênticas, o que víamos correr-lhe dos olhos. A este cão, com perdão da vulgaridade, só lhe falta falar. Mais tarde, conversando com Pilar, manifestei uma pena: ter vivido sem cães até agora. Na Azinhaga não faltavam, já se sabe, houve-os em casa dos meus avós, mas não eram meus, olhavam-me desconfiados quando eu lá aparecia depois de uma ausência e só passados uns dias é que começavam a tolerar-me. Além disso, estavam ali para guardar a casa e o quintal, valiam pela utilidade que tinham e só enquanto a tivessem. Não me lembro de que algum deles chegasse a velho. Pensei nos golfinhos de Edmonton, tão bem ensinados, e, em­bora não goste de ver exibições de animais amestrados, achei que alguma razão profunda terá de haver para que certos animais consigam suportar a presença humana... Perdi essa confiança à noite, vendo na televisão como um elefante, num circo, matava a patadas e golpes da tromba o domador, enquanto a música tocava e o pú­blico cria que tudo aquilo fazia parte do espectáculo. À noite, quando me deitei, extenuado por uma viagem de quase vinte e quatro horas entre voos e esperas de aeroporto, custou-me a adormecer: via os golfinhos sor­ridentes, o elefante enfurecido calcando o corpo já des­troçado do domador. Foi então que me lembrei de uma velha crónica, de 1968, Os Animais Doidos de Cólera, em que imaginei a insurreição de todos os animais e a morte do último homem devorado por formigas, pela primeira vez lutando, não contra a humanidade, mas, agora já inutilmente, para defender o que restava dela... E também me lembrei do poema 12 de O Ano de 1993, aquele que acaba assim: «Privadas dos animais domés­ticos as pessoas dedicaram-se activamente ao cultivo de flores. Destas não há que esperar mal se não for dada excessiva importância ao recente caso de uma rosa car­nívora»... Alguma coisa está definitivamente errada no ser humano. Morrerei sem saber o quê.

 

23 de Agosto

Luiz Pacheco envia-me um artigo que publicou em O Inimigo de 29 de Abril sobre o primeiro volume des­tes Cadernos. Melhor do que outros encartados críticos e observadores de olho de falcão, mostra ter compreen­dido porquê e para quem ando eu a escrever estas sin­ceridades. Ao postal e aos livros que também enviou, teve a delicadeza de juntar uma colecção de reproduções do Retábulo da Igreja de Jesus, de Setúbal. Só quem não conheça o Pacheco o julgará incapaz de atenções assim. Relendo O Teodolito, repassando os Textos Sadinos (o título é pouco feliz, o que ali está não tem nada que ver com o Sado), pensei: «Por que bulas infernais não está este homem traduzido em Espanha e outras partes?» Na verdade, andam aí uns quantos espertos a fingir de li­teratos marginais e de escritores malditos que nem che­gam aos calcanhares do Pacheco, e prosperam, e são aplaudidos - enquanto uma das mais fortes expressões que conheço de uma vida e uma obra ao lado perma­nece desconhecida fora das fronteiras.

 

31 de Agosto

Trabalhos de casa, para o mês que entra, todos eles sem escapatória possível: a conferência sobre José Donoso, o prefácio para Madrid 1940 de Francisco Umbral, uma crónica sobre Beja, um artigo acerca do Parlamento Internacional de Escritores, a versão portu­guesa da conferência de Edmonton... E virá ainda o Baptista-Bastos, para conversar e recolher material e informações destinados ao livro que a Sociedade Portu­guesa de Autores pretende publicar sobre mim... Espe­ro vir a ter algum tempo para me coçar.

 

1 de Setembro

Quanto trabalho, quanto esforço para conseguir pôr a claro as duas ou três ideias de que se alimenta a con­ferência sobre Donoso. Ainda por cima, suspeito que tomei o caminho mais cómodo, o de transferir para ele ou nele privilegiar umas quantas preocupações que já eram minhas: a igualização e fusão de passado, presen­te e futuro em uma só unidade temporal, instável, simul­taneamente deslizante em todos os sentidos; a obsessão quase maníaca de inventariar o mundo, de não deixar nada sem nome; a sensação de uma queda contínua em direcção ao vazio, como uma mise en abyme que come­çasse no limite do universo e daí fosse descendo, nível após nível, plano após plano, até um não-ser aberrante, dotado de consciência e condenado a reconstituir inter­minavelmente a sua própria queda.

O mais curioso e inquietante de tudo isto veio a ser que a circunstância acidental de ter de reflectir sobre a obra de outro escritor me levou, inesperadamente, a in­terrogar-me sobre o real valor dos livros que escrevi até hoje. E o que me deixou assustado foi ser obrigado a admitir, como simples e incontornável probabilidade, que talvez não valham muito, que até talvez valham bem pouco...

 

2 de Setembro

Na verdade, já não se sabe em quem acreditar. Que os políticos não são anjos e aos chefes de Estado lhes falta tudo para subirem aos altares, é algo que se pode observar todos os dias. Acostumámo-nos a viver com estas obviedades, a compreendê-las e desculpá-las, ao ponto de levarmos à conta da sempre alegada fraqueza humana a maior parte das infracções aos códigos éticos cometidas pela classe política, a principiar pelo código mais simples de todos, aquele que exige o respeito por si mesmo. Normalmente, e apesar da poeira levantada pelas agitações paranóicas do poder, julgamos perceber, com bastante nitidez, a linha delgada que separa dos puros demónios estas tão pouco angélicas criaturas, e com isto nos vamos contentando. Porém, que se há-de pensar diante de um caso como o de Mitterrand, posto agora no pelourinho por acusações que parecem irrefutáveis e deixam feita em cacos a sua imagem de homem? Cá de longe - e uma vez de perto, num jan­tar na embaixada francesa em Lisboa - via-o como uma grande figura política, embora adivinhando, por experiência da vida, que, se raspasse aquela brilhante superfície, algo de sombrio teria de aparecer: mas dis­to, também mo diz a experiência da vida, ninguém es­capa. O que de todo não esperava era virem dizer-me agora que François Mitterrand, entre os 18 e os 31 anos, esteve politicamente «à direita da direita», para usar a expressão de Le Monde. A história vem toda num livro - Une jeunesse française de Pierre Pean -, onde se nos explica que Mitterrand trabalhou activamente nos serviços de «informação» do regime de Vichy, «redigin­do fichas sobre o comportamento político de comunis­tas, gaulistas e nacionalistas». Que, entre 1936 e 1942, defendia, por escrito, uma «revolução nacional», muito parecida com a «revolução pendente» dos jovens falangistas espanhóis. Que, quando a França estava ocu­pada pelo exército nazi, Mitterrand proclamava que tal «revolução» era encarnada pelo Marechal Pétain, que aliás veio a condecorá-lo. Que, durante a guerra civil de Espanha, até 1940, foi activo militante de organizações com posições tradicionalistas, antiparlamentares e anti­comunistas, participando em manifestações que reclama­vam a expulsão de «metecos e estrangeiros».

Errar, todos erramos, já se sabe. Porém, diante de um princípio de vida política tão «prometedor», não parece que seja demasiado atrevimento perguntarmos o que estaria Mitterrand a fazer hoje se Hitler tivesse ga­nho a guerra. Provavelmente, seria presidente da Repú­blica Francesa...

 

5 de Setembro

Eduardo Prado Coelho pediu-me um texto para meter no suplemento que o Público vai publicar a propósito da reunião, no fim deste mês, em Lisboa, do Parlamento Internacional de Escritores. O arrazoado expedido foi este:

«Imaginemos que alguém que não é escritor nem aspira a sê-lo faz a seguinte pergunta: "Para que vai servir o Parlamento Internacional de Escritores?" E in­siste: "Para que tem servido o PEN Club Internacional (que é, por assim dizer, um parlamento mais antigo)?" Finalmente: "E os escritores, servem para quê?"

«A última pergunta, provavelmente, é a que terá res­posta mais fácil: os escritores servem para escrever. Escrevam bem ou escrevam mal, escrevam contra ou a favor, escrevam sós ou mal acompanhados - são es­critores, e basta. O tempo vindouro, como é ideia feita, joeirará a obra produzida (embora não se entenda por que bulas há-de ter sempre o futuro melhor critério que o presente e o presente sempre melhor gosto que o pas­sado, sobretudo se pensamos que todo o presente foi futuro de um passado e passado de um futuro). De es­critores, como pessoas, tenho dito, por enquanto. Mas a eles voltarei.

«As associações servem para fazer de conta que os escritores estão juntos. Não juntos por razões estéticas, ou políticas, ou ideológicas, ou editoriais. Simplesmen­te, juntos. A sua mais avançada eficácia prática seria de tipo corporativo, como suponho que sucede com os médicos e advogados. As associações de escritores, se não são correias de transmissão de poderes estabeleci­dos (por favor, falo das associações em geral, não da portuguesa em particular), vivem do que têm, e o que têm é quase nada. Delas se pode dizer que, como "or­dens", não são ricas, e como "sindicatos", não são reconhecidas. As associações não têm força para defen­der os interesses materiais dos escritores e nem sempre estão atentas à defesa dos seus direitos morais. Ou en­tão, quantas vezes, inoperantes elas e inoperantes eles no âmbito nacional, buscam modos de reaprumar a cons­ciência cívica e a responsabilidade intelectual nas or­ganizações internacionais correspondentes, diluindo assim numa agitação cosmopolita mais ou menos efec­tiva a sua incapacidade local. Não creio que seja ofen­sa dizer que no Pen Club Internacional vão desaguar muitas destas frustrações nacionais, tanto as de res­ponsabilidade própria como as que são consequência de condições externas adversas (dos efeitos de tais condições está absolvido, por falta de culpa, o PEN Club Português). Conclusão de tudo quanto ficou dito antes: não faltam associações, mas os escritores estão isolados.

«E agora chega aí o Parlamento Internacional de Escritores. (Que não teríamos em Lisboa se Lisboa não fosse, este ano, Capital Europeia da Cultura. Lá que o convite foi uma boa inspiração, não há que negar. Res­ta agora ver que outras iniciativas virá a tomar Lisboa quando o dia 31 de Dezembro puser termo ao seu febrão cultural.) Chega aí o Parlamento Internacional de Escri­tores, graças ao que nos vamos reunir, nós e os de fora. Pelo que se sabe, pretende-se "criar uma estrutura de intervenção e reflexão sobre o lugar da literatura e do pensamento num mundo ameaçado quotidianamente pela intolerância, opressão ou violência dos dogmatismos e fundamentalismos actuais", o que parece equivaler, mais ou menos, a uma ONU toda feita de intelectuais. (Aten­ção, a ironia é só aparente, eu próprio estou envolvido nisto desde o princípio.)

«Ora, se se trata realmente de uma nova ONU, é prudente começar, desde já, a pensar no grau de eficá­cia que iremos ter, pois a lição da ONU propriamente dita aí está para tirar-nos as primeiras ilusões. Qualquer um sabe que a oportunidade e a intensidade de uma mostra de autoridade da ONU (a outra) depende exclu­sivamente do querer político de uns quantos países, não de todos. Aonde eu quero chegar é simplesmente à demonstração de uma evidência: a de que o poder real­mente interventivo do Parlamento Internacional de Es­critores estará na razão directa do grau de intervenção cívica dos escritores como cidadãos: quanto mais eles intervierem, "quotidianamente", na vida social (e não apenas literária, e não apenas artística) do seu país e do mundo, mais probabilidades terá o Parlamento de fazer ouvir a sua voz e talvez ajudar a mudar os perigosos caminhos que, parece que às cegas, estamos percorrendo.

«Como um dia escrevi, o melhor parlamento não é aquele onde se fala, mas aquele onde se ouve. O Par­lamento Internacional de Escritores terá de abrir-se aos gritos de dor e de protesto do mundo, tal como está obrigado a atender, já que essa é a sua primeira vocação, às dores e protestos de quem escreve. Não é a li­teratura que está doente, é a sociedade.»

 

7 de Setembro

Confirma-se que a cantata A Morte de Lázaro de Azio Corghi, fundamentalmente composta sobre os cor­respondentes textos do Evangelho, e uma ou outra pas­sagem do Memorial, será apresentada, o ano que vem, na Igreja de Santo Ambrósio, em Milão. A data não podia ser mais bem escolhida: 14 de Abril, Sexta-Feira de Paixão... O que me pergunto é se a autoridade ecle­siástica que passou o non obstat estará bem ciente do que autorizou: a prevalência do saber simplesmente humano de Maria Madalena sobre os poderes supremos de Jesus, o absurdo de ressuscitar alguém que finalmente tornará a morrer. Se houve distracção na mesa censória, a culpa não foi do Azio nem minha. O título é claríssimo: da morte de Lázaro se trata, não da sua ressur­reição.

 

8 de Setembro

Estar sentado frente ao mar. Pensar que já não res­tam muitos anos de vida. Compreender que a felicida­de é apenas uma questão pessoal, que o mundo, esse, não será feliz nunca. Recordar o que se fez e achá-lo tão pouco. Dizer: «Se eu tivesse mais tempo...» - e en­colher os ombros com ironia porque são palavras insen­satas. Olhar a pedra vulcânica que está no meio do jardim, bruta, áspera e negra, e pensar que é um bom sítio para não pensar em mais nada. Debaixo dela, claro.

 

9 de Setembro

Apareceram por cá dois rapazes que queriam falar­-me da Bíblia. Anunciaram-se como jovens optimistas, mas não chegaram a dizer de que seita o eram. Vinham vestidinhos de igual, camisa branca com risquinhas, lacinho ao pescoço, calça cinzenta, o que há de mais incongruente em Lanzarote. Na mão, a conhecida malinha preta dos executivos. Cortei-lhes o discurso, adiantando-lhes que nesta casa éramos pouco de Bíblias. Li-lhes na cara o desconcerto, mas disfarçaram heroica­mente, como bons candidatos ao martírio. Puseram o sorriso piedoso que lhes ensinaram, de pena por esta alma perdida, e lá foram pregar a outra freguesia, esque­cendo-se de sacudir a poeira, que aqui é muita, dos negros e brilhantes sapatos. Foi só depois que me lem­brei que deveria ter-lhes oferecido o Evangelho para se distraírem da apostólica obrigação de terem de andar por aí a pregar verdades eternas e mentiras optimistas...

 

12 de Setembro

Começando por reclamar a reedição de Os Come­diantes de Graham Greene (por causa do Haiti) e de Três Tristes Tigres de Cabrera Infante (por causa de Cuba), Torcato Sepúlveda, da sua tribuna do Público, invectiva os intelectuais portugueses, em particular os escritores, acusando-os de se manterem calados perante os atropelos, erros e crimes das ditaduras de todas as cores, especialmente as que se definiram ou definem ainda pelo uso político-ideológico do vermelho. Depois de assim ter tomado distância para caberem todos no retrato, chega-se à frente e passa a um grande plano: a cara, o nome e o feitio de quem estes Cadernos escre­ve. Diz Torcato Sepúlveda: «Uma ditadura é uma di­tadura, seja ela de esquerda ou de direita. Disso deve convencer-se gente como José Saramago, que tanto cri­tica a Comunidade Europeia, às vezes com carradas de razão. Mas a independência moral exigir-lhe-ia que não poupasse igualmente os amores revolucionários da sua juventude, quando eles se transformaram em burocra­cias estalinistas abjectas. As imbecilidades diplomáticas dos EUA, que atiraram os "barbudos" da Sierra Maestra para os braços de Moscovo, não desculpam conivências com um bolchevismo "caribefío" que cala qualquer voz opositora e arrasta os cubanos, em nome de uma ideo­logia enlouquecida, para a degradação física e mental.»

Lisonjear-me-ia muito pensar que Torcato Sepúlve­da escreveu o seu artigo expressamente para mim (uma vez que não menciona qualquer outro escritor portu­guês), mas, tendo em conta o longe que vivo e o facto de o Público não se vender no aeroporto de Arrecife, sou obrigado a acreditar que o único propósito de Sepúl­veda, além de apelar à mobilização geral da intelectua­lidade portuguesa, foi enfiar-me no pescoço um letreiro com a palavra «desertor». Ora bem, a Torcato Sepúl­veda tenho de informar que, escrevendo ou de viva voz, disse sempre o que pensava dos atropelos, erros e crimes das ditaduras (castanhas, verdes ou vennelhas) e das de­mocracias (brancas, pardas ou azuis) deste mundo. Se ele não deu por isso, azar meu. Mas, uma vez que vem agora falar-me de Cuba (outras vezes foi a União So­viética, outras vezes foi o Diário de Notícias...), dir-lhe­-ei que, apesar dos crimes, dos erros e dos atropelos do que chamam «castrismo», continuarei a defender Fidel Castro contra Clinton, por muito «democrata» que pa­reça um e muito «tirano» que outro pareça. «Por causa da moral», precisamente, como me exige o mesmo Torcato Sepúlveda no princípio e no fim do seu artigo.

 

14 de Setembro

Lanzarote não é a ilha de Robinson Crusoe, se bem que ainda estejam aqui por resolver certos problemas de comunicação: por exemplo, não consigo encontrar o Público no aeroporto de Arrecife... O que me vale é o meu Sexta-Feira. Ao contrário do outro, que chegou e tratou imediatamente de acomodar-se, este vem cá todos os dias a trazer-me notícias e volta logo para ir buscar mais. O meu Sexta-Feira é o Zeferino Coelho, faltava dizer. Claro que, nesse vaivém, o pobre não pode acu­dir a tudo, por isso tem os seus ajudas, como foi agora o Teo Mesquita que, lá de Frankfurt, lhe enviou um cartão de entrada na Feira do Livro que se inaugurará no dia 5 de Outubro. E que tem o cartão, além do que se espera que tenha um cartão destes, isto é, a indica­ção de para que serve? O cartão traz uma citação. Uma citação de quê? Pois da História do Cerco de Lisboa. E que diz a citação? Isto, que parece ter sido escrito a pensar que um dia o aproveitaria a Feira de Frankfurt:

«Coitado do Costa, que não pára de falar da Produ­ção, A Produção é que se trama sempre, diz ele, sim senhor, os autores, os tradutores, os revisores, os capis­tas, mas se não fosse cá a Produçãozinha, eu sempre queria ver de que é que lhes adiantava a sapiência, uma editora é como uma equipa de futebol, muito floreado lá na frente, muito passe, muito drible, muito jogo de cabeça, mas se o guarda-redes for daqueles paralíticos ou reumáticos vai-se tudo quanto Marta fiou, adeus cam­peonato, e o Costa sintetiza, algébrico desta vez, A Pro­dução está para a editora como o guarda-redes está para a equipa. O Costa tem razão.»

Até agora, se me perguntassem o que era a glória, não saberia responder. Hoje já sei: a glória é ter um bocadinho da nossa prosa num cartão de admissão da Feira de Frankfurt...

 

15 de Setembro

Relendo ocasionalmente a conferência de Luciana Stegagno Picchio no Instituto de Cooperação Iberoame­ricana, em Madrid, em Maio do ano passado, quando da «Semana» dedicada a este autor, encontro a afirmação de que Levantado do Chão marcou uma «passagem» em toda a minha escrita, tanto em sentido temporal como estilístico e de género. Creio que de facto é assim, e eu próprio, sem esquecer a Viagem, o tenho designado por «livro de mudança», o que vem a dar mais ou menos no mesmo. Mas esta declaração de Luciana, agora refrescada pela leitura, leva-me a perguntar se os meus romances não serão, todos eles, afinal, não apenas «li­vros de passagem» como também autênticos «actos de passagem», que, implicando obviamente as respectivas personagens, talvez envolvam, mais do que pareça, o próprio autor. Não digo em todos os casos nem da mesma maneira. Por exemplo: de passagem a uma cons­ciência se trata no Manual; da passagem de uma época a outra creio estar feito muito do Memorial; em passa­gens da vida à morte e da morte à vida passa Ricardo Reis o seu tempo; passagem, em sentido total, é a Jan­gada; passagem mais do que todas radical é a que quis deixar inscrita no Cerco; finalmente, se o Evangelho não é a passagem de todas as passagens, então perca eu o nome que tenho... Do que aí fica não tiro conclusões, nem para sim, nem para não. A primeira operação in­vestigadora a cometer seria confrontar as sucessivas fa­ses da minha vida com os livros que as prepararam ou delas foram consequência - e isso quem o fará? Não eu, porque de certeza me perderia no labirinto que ine­vitavelmente estaria a emaranhar no mesmo instante em que começasse a pôr a claro as primeiras relações de causa e efeito...

 

17 de Setembro

Não faz falta que eu diga que de filósofo não te­nho nada: nota-se logo. Por essa forte razão ou outras mais débeis (é possível que os artigos de João Carlos Espada também tenham ajudado) nunca me interessei por Karl Popper. E agora que ele morreu, pergunto­-me se terei perdido algo de que precisava para en­tender o mundo em que vivo. Acho que não. As ideias de Popper chegaram-me sempre por intermédio de divulgadores, uns que eram contra, outros que estavam a favor: nunca fui por trigo limpo aos seus livros, su­pondo que da lição deles chegasse a fazer o meu pão. Suspeito (mas quem sou eu para presumir tanto?) que Karl Popper já pertencia ao passado quando ainda an­dava aí por universidades e colóquios a repetir, can­sado, mas bem pago, as virtudes do neoliberalismo. Dizem-me agora as notícias necrológicas que ele de­fendia seriamente a ideia de que o passado não deter­mina o futuro e de que o mundo está cheio de infinitas possibilidades. Parece-me isto bastante esquipático e certamente contraditório. Se o passado não determina o futuro, então o presente que somos e vivemos não pode ter sido determinado por nenhum momento ante­rior. A esta objecção talvez ele respondesse dizendo que precisamente porque o mundo contém possibilida­des infinitas é que nos veio a calhar uma delas - esta. Ao que apetece responder que se este presente é a rea­lização dessa possibilidade, é porque ele fez parte, no passado, do universo aberto de possibilidades então existente. Donde concluo eu, e daqui não penso arre­dar-me, que o passado não só determina, como não pode evitá-lo. Contrariando escandalosamente a vonta­de de Popper. Muito melhor filósofo, para meu gosto, me saiu aquele espanhol que inventou o provérbio que diz: «De aquellos polvos nacieron estes lodos.»

 

19 de Setembro

Desde a nascença do trocito de cauda que os anti­gos donos lhe deixaram, até à ponta do húmido focinho, Pepe não mede mais de três palmos. Quanto a peso, se chegar aos sete quilos, será por muita benevolência da balança. Pois este animalzito, que nasceu para derreter­-se de ternura diante de quem lhe quer bem, este canino que em Portugal levaria o depreciativo apodo de fraldiqueiro e que aqui não escapa a que lhe chamem faldera, este bichito sem estampa de gladiador foi hoje capaz de enfrentar-se com dois cães do dobro do seu tamanho e obrigá-los a bater em retirada, saindo ligei­ramente ferido da briga. Depois suportou com paciên­cia o tratamento, como quem já teve tempo de aprender que nem tudo são rosas na vida, que mesmo o pêlo mais branco pode vir um dia a ter de manchar-se de sangue. Quando acabei de curá-lo, apoiou a cabeça nos meus joelhos, semicerrando os olhos, como se quisesse dizer­-me: «Agora estou bem.»

 

20 de Setembro

Afinal, a estreia da Morte de Lázaro não será a 14 de Abril, Sexta-Feira de Paixão, mas a 12, com repeti­ção no dia seguinte. Ou era a minha primeira informa­ção que estava errada, ou foi a hierarquia que deu pela sacrílega coincidência e emendou a tempo. Será menos um pecado com que me apresentarei ao JuÍzo Final... Divara também tem as suas datas marcadas no Festival de Música de Ferrara: 7 a 9 de Abril. Duas semanas de­pois, a 25, será posto à venda o disco. Vai ser um bom mês.

 

21 de Setembro

Regressado à Bahia, escreve-me Jorge Amado a pe­dir que o represente no Parlamento Internacional de Escritores, no caso de haver conclusões, o que é pouco provável: esperemos, sim, que venham a tomar-se deci­sões capazes de transformar-se em acções. De caminho, diz-me que recebeu de Nova Iorque a informação (ca­tegórica) de que o Nobel deste ano será para Lobo Antunes. A fonte da revelação, colhida não se sabe onde, é um jornalista brasileiro que, pelos vistos, bebe do fino. Já sabemos que em Estocolmo tudo pode acon­tecer, como o demonstra a história do prémio desde que o ganhou Sully Prud'homme estando vivos Tolstoi e Zola. Bom amigo, Jorge insiste que o seu favorito é outro. Não falta muito para sabermos. Quanto a mim, de Lobo Antunes, só posso dizer isto: é verdade que não o aprecio como escritor, mas o pior de tudo é não po­der respeitá-lo como pessoa. Como não há mal que um bem não traga, ficarei eu, se se confirmar o vaticínio do jornalista, com o alívio de não ter de pensar mais no Nobel até ao fim da vida.

 

24 de Setembro

Wole Soyinka não estará presente na reunião do Parlamento de Escritores, em Lisboa. As autoridades da Nigéria acabam de retirar-lhe o passaporte em repre­sália pelas declarações que ele tinha prestado ao Tribu­nal Supremo nigeriano, denunciando a ilegalidade do governo militar, que é fruto da anulação, pelo Exérci­to, das eleições presidenciais em Junho de 1993, quan­do ganhou um social-democrata, Moshud Abiola, agora na prisão. A lista das arbitrariedades não acaba. O po­der - seja ele militar, civil ou eclesiástico - não gos­ta nada de que um escritor, mesmo laureado, exerça de cidadão. E nem é preciso que esse poder seja particularmente autoritário: de Günther Grass, por exemplo, não se pode dizer que seja persona grata na demo­cracia alemã... Escusado seria esclarecer aqui que não coloco Cuba e Nigéria em igual prato da balança, por isso é que me dói tanto ter de concluir que não há, nos factos, nenhuma diferença entre o que acontece hoje a Wole Soyinka e o que ontem aconteceu ao escritor cubano Norberto Puentes, não autorizado pelo governo a sair do país.

 

25 de Setembro

«Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão...» (Garrett, Viagens.)

No outro dia foi o Mitterrand, agora é o Bertolt Brecht. Leio aqui a notícia da publicação recente de um livro, Vida e Mentiras de Bertolt Brecht de John Fuegi, que deixa nu e a escorrer sangue o venerado autor de Mãe Coragem. Que ele não tivesse obrigação de ir de santo pela vida, muito bem, que ser comunis­ta não chegasse para o pôr a salvo de debilidades de homem e de vaidades de artista, de acordo - mas o que eu nunca esperei foi vir a ler a seu respeito coi­sas como estas: «Forreta até extremos inconcebíveis (negociava as suas percentagens nos contratos sem consideração pelos colaboradores e co-autores), vulgar anti-semita, escritor despótico e incoerente (incapaz de escrever vinte linhas seguidas, "negreiro" contumaz), apreciador da boa vida (alfaiates e tecidos de luxo para o seu "look" proletário, paródias, farras)...» (Também se denuncia que chegou a ter seis amantes ao mesmo tempo, mas isso, em minha sincera opinião, não me parece um pecado que forçosamente tenha de levar uma alma ao inferno das ideologias.) Porém, tudo aqui­lo, que já é bastante mau, quase parece perder impor­tância comparado com a informação de que Brecht, pouco tempo antes de morrer, em 1956, «planeava mu­dar-se para a Alemanha livre, a desfrutar dos imensos direitos de autor que bancos suíços lhe administravam»... Se é assim, o pior destes pés não foi serem de barro, foi cheirarem mal.

«Depois desta desgraça não me importa já nada.» (Garrett, Viagens.)

 

26 de Setembro

Aí, valentes! Acabo de tomar conhecimento de que Portugal recusou a oferta do presidente da Comissão da União Europeia, Jacques Santer, para ocupar o comis­sariado da Agricultura. Trata-se, tanto quanto posso avaliar cá de longe, de uma atitude louvavelmente coe­rente: pois se não temos agricultura, para que diabo quereríamos ser comissários dela? Segundo parece, o que Cavaco Silva desejava para Portugal era a pasta do Desenvolvimento e Cooperação Internacional, para a qual não encontro em nós sinais de uma irresistível vocação, salvo se a proposta obedeceu ao mesmo crité­rio, à mesma linha de lógica pura que levou este país sem barcos a organizar uma grande exposição interna­cional sobre o tema «Os Oceanos»...

 

28 de Setembro

Uma fotografia publicada em EI Mundo, e provavel­mente em toda a denominada imprensa internacional, mostra-me um jovem haitiano levantando acima da cabe­ça, nos dois braços, uma espingarda. Ao fundo, um tan­to desfocados, vêem-se alguns outros haitianos que não parecem muito interessados no que se passa. A legenda da fotografia diz o seguinte: «Un joven ofrece un rifle a los "marines" norteamericanos en Cabo Haitiano»... O es­tranho do caso é que não há um único «marine» à vista. Provavelmente, os «marines» estão por trás do fotógrafo, não quiseram ficar no retrato. Ora, o normal, em caso de invasões norte-americanas (qualquer delas serve), é serem os fotógrafos os primeiros a desembarcar: na sua primeira acção, os soldados americanos nunca avançam contra o inimigo, desdobram-se o mais artisticamente possível no campo das objectivas. Neste caso, não foi assim. A razão talvez a encontremos num objecto que se encontra ali no chão, aos pés do rapaz da espingarda: uma caveira, colocada lateralmente, de modo a poder observar­-se o buraco (de bala?) que tem no temporal esquerdo. Evidentemente, trata-se de uma fotografia preparada, dessas que pelos vistos continuam a não envergonhar os fotógrafos que as manipulam, nem parece que humilhem quem a elas se presta, seja por dinheiro, seja por vaida­de, ou pelo gosto sincero de ajudar aquele senhor da máquina que veio de tão longe... Desta vez, suspeito que os norte-americanos só se disporão a receber a espingar­da daí a bocado, sem fotografia, e sobretudo sem cavei­ra. O sargento terá dito: «Rapazes, aposto que isto é coisa de vudú. Mesmo no Haiti, os crânios não andam por aí aos pontapés na via pública. E esse buraco não tem nada ar de ser autêntico. Se calhar foram buscar a caveira a um cemitério desses, deram-lhe um tiro e depois vieram aqui armar o cenário. Se aceitássemos a arma agora, isso o que queria dizer era que as nossas cabeças não tarda­riam a ficar como a caveira. O vudú é assim.» Os sol­dados foram-se logo pôr atrás do fotógrafo dando graças a Deus por terem um sargento deste calibre, versado em religiões do Terceiro Mundo. Já se sabia que as fotogra­fias enganam sempre. Nesta, os enganos são a tal ponto transparentes que o leitor, embora satisfeito por tê-los decifrado todos, não pode deixar de pensar, meio triste: «Quiseram fazer de mim estúpido...»

 

Sessão inaugural do Parlamento Internacional de Escritores. Os patriotas presentes, indignados, protesta­ram contra o facto de Eduardo Lourenço ter lido o seu discurso em francês. Não me pareceu tão escandaloso assim, dada a nossa velha tineta de querer facilitar a vida de quem nos visita, falando-lhe em todas as línguas do mundo, conhecidas ou não... Mas, na verdade, há que concordar que se perdeu uma oportunidade de impor o português numa reunião em que, ainda por cima, obviamente, devia ser língua de trabalho. Com tal exem­plo, daí para diante só se falou inglês e francês. Na parte da tarde, depois de um elucidativo relatório sobre a si­tuação no Haiti, não só a actual como também a histó­rica, gastámos a maior parte do tempo a ouvir um jornalista francês, Patrick Champaigne, explicar como deveriam fazer os escritores para que a sua «imagem» passasse melhor na televisão... A atmosfera começou por tornar-se fútil, depois, com o andar da conversa, redun­dou em grotesco. Durante duas horas, os grandes pro­pósitos do Parlamento Internacional de Escritores estiveram reduzidos aos conselhos de um especialista de Imagem.. .

 

29 de Setembro

Por ter demorado na Editorial Caminho mais do que contava, cheguei com ligeiro atraso à segunda sessão do Parlamento. Mal entrei saiu-me ao caminho Graça Vas­concelos, de «Lisboa 94», avisando-me de que se pas­sava algo muito grave: o Parlamento não autorizava a entrada de jornalistas na sala da reunião, a pretexto de que Taslima Nasrin, a escritora condenada pelas autori­dades religiosas de Bangla Desh, não queria ser inco­modada pela comunicação social, porquanto, alegava-se, não desejava ser tratada como uma «estrela», mas sim trabalhar em paz com os seus colegas. Abrindo caminho por entre os jornalistas e fotógrafos que se acumu­lavam à porta, entrei na sala, mas não fui ocupar o meu lugar na mesa. Sentei-me entre o público, ao lado do José Manuel Mendes, a quem, em voz baixa, pedi que me explicasse o que se passava. Confirmou tudo. De­cidi então enviar um bilhete a Christian Salmon, se­cretário-geral do Parlamento, que fora o da decisão. Escrevi que não concordava com a exclusão dos jor­nalistas, e, portanto, de duas, uma: ou eles entravam, ou eu saía. Uma secretária levou o bilhete, que Salmon leu e pôs de lado, continuando a orientar os trabalhos, como se nada fosse. Diz-me o José Manuel: «O truque é velho. Toma conhecimento, mas não procede. Se não vais lá, fica tudo na mesma.» Custava-me a crer, mas os minutos passavam e Christian Salmon portava-se como se nada tivesse sucedido. Então, levantei-me, dei a volta à mesa, aproximei-me de Salmon por trás e perguntei-lhe discretamente se tinha lido o papel Que sim, respondeu, mas que agora não era o momento. «O mo­mento é agora mesmo», disse-lhe, «se não anuncias tu, anunciarei eu.» Voltei para o meu lugar. Salmon ex­plicou então que ia ler um bilhete que eu tinha envia­do para a mesa, embora, acrescentou, a decisão jáestivesse tomada e não teria volta atrás. Depois de ter lido o papel, Christian Salmon arredondou as suas ra­zões, insistiu que se pretendia resguardar Taslima Nasrin das curiosidades malsãs dos media, terminando por de­clarar que o Parlamento não estava disposto a ceder aos diktats da imprensa. Levantei-me e perguntei se aquilo significava que os jornalistas não eram mesmo autori­zados a assistir, e ele respondeu: «Assim é.» «Nesse caso, saio eu», declarei, e abandonei a sala. Seguiram­-me José Manuel Mendes e dois jornalistas que tinham conseguido introduzir-se a tempo na sala e haviam resistido a todas as pressões para que se retirassem, Torcato Sepúlveda e António Carvalho. Passados poucos minutos veio cá fora o escritor argentino Juan José Saer a pedir-me que regressasse, que o meu lugar era ao lado dos meus colegas. Repeti-lhe simplesmente que, ou os jornalistas entravam, ou eu ia para casa. Se­guiu-se uma boa meia hora de aturadas conversações, cujos altos e baixos vim a conhecer depois, e por fim lá saiu a autorização para os jornalistas entrarem, con­cedendo-se aos fotógrafos e operadores de câmara dez generosos minutos para captarem imagens. Entrei e fui direito ao meu lugar, a pensar na falta de senso comum de tantas pessoas obviamente inteligentes e que afinal parecem não perceber que a eficácia do Parlamento In­ternacional de Escritores dependerá, em grande parte, da ajuda que lhe for dada pelos meios de comunicação social... (Mais tarde, em conferência de imprensa, Taslima Nasrin declarou que não tinha qualquer respon­sabilidade na decisão de excluir os jornalistas e que a confusão se devera certamente ao facto de Christian Salmon falar francês e ela inglês...)

 

30 de Setembro

Maria Velho da Costa leu o seu anunciado relató­rio sobre Timor, país, gente e situação que, viu-se logo, eram novidade absoluta para muitos dos que ali se encontravam. Temi que uma certa atmosfera poéti­ca em que ela quis envolver os factos pudesse distrair a atenção dos «parlamentares» das realidades dramáti­cas vividas pelo povo timorense, mas não veio a ser assim, como se viu, mais tarde, pela aprovação de uma proposta para que o Parlamento enviasse uma delega­ção de escritores a Timor. Verdade seja que a trágica situação do povo de Timor pareceu de repente bem pouca coisa perante o relatório que veio a seguir, fei­to por uma jornalista ugandesa, Madeleine Mukabano: aí atingiu-se o horror total. Na sala, mal se podia res­pirar. Madeleine Mukabano foi testemunha presencial de muito do que narrou e, apesar disso - ou talvez por isso -, pôde descrever os acontecimentos numa voz que pareceria neutra se o ouvido não percebesse, por baixo da aparente monocordia, um choro e uma ira que já devem ter perdido a esperança de se fazerem ouvir.

 

3 de Outubro

Voando para Santiago do Chile, onde irei participar na homenagem a José Donoso. Desta vez instalaram-me na primeira classe de um Boieng 747, uma caverna caligaresca aonde se chega por uma empinada escada de caracol e que mais parece sarcófago que habitáculo de gente relativamente viva.

 

4 de Outubro

À saída do avião em Buenos Aires, no trânsito para Santiago, uma hospedeira da Ibéria pronuncia o meu nome ao despedir-se. Surpreendido, perguntei-lhe se me conhecia, e ela respondeu: «Claro, não é todos os dias que transportamos um génio.» Conclusão tão rápida quanto lógica: ou este nosso confundido tempo já não sabe o que são génios, ou eles simplesmente não viajam de avião...

 

5 de Outubro

Não encontro o que tinha imaginado. E que tinha eu imaginado? Algo assim como uma homenagem nacio­nal, embora bem saiba que as homenagens a que cha­mamos nacionais são sempre muito mais um exercício de ficção bem intencionada por parte de alguns do que a expressão de um reconhecimento de todos. Apesar disso, o que na minha memória havia permanecido da dimensão cultural (talvez idealizada pelas nossas próprias esperanças) do Chile revolucionário, levara-me, com evidente excesso de confiança, a esperar outras grandezas na homenagem a José Donoso. Afinal, a aber­tura dos actos comemorativos na Universidade de San­tiago deixou-me um sabor a pouco. Estiveram presentes umas quantas entidades oficiais, o reitor e um ministro, alguns escritores, sobretudo discípulos literários de Donoso, estudantes em número escasso, uma pequena representação do público em geral, enfim, o suficiente apenas para encher um auditório que não era grande. A atmosfera foi calorosa porque era, de certo modo, fa­miliar. Li a minha conferência - José Danoso e o in­ventário do mundo, que foi generosamente aplaudida, mesmo de maneira desproporcionada. Levo-o à conta de simples manifestação de gratidão ao estrangeiro que de tão longe tinha vindo...

 

6 de Outubro

O hotel está em frente do Palácio de la Moneda. Já não há tanques disparando, os aviões militares chilenos fizeram o seu trabalho sujo há precisamente vinte e um anos. Olho os jovens que passam na rua, pergunto-me: «Que pensarão eles do que sucedeu aqui_»

 

7 de Outubro

A assistência aos colóquios e mesas-redondas tem sido pouca. Algumas estudantes vieram conversar comi­go. Em certa altura, enquanto respondia o melhor que era capaz às perguntas que me iam fazendo, achei-me a pensar com uma espécie de angústia: «Poder-se-á mesmo falar de literatura? A literatura é coisa de que se fale?» Na mesa-redonda final (cheia a sala porque era o encerramento), em que também fui chamado a par­ticipar, consegui arranjar modo, ainda que um tanto pelos cabelos, de fazer referência à Carta aberta a Sal­vador Allende que publiquei no Diário de Notícias no «Verão quente» de 1975... Não creio ter sido ilusão minha a súbita tensão que se criou na sala, uma tensão, aliás, em que julguei notar tanto uma onda positiva como uma onda negativa. Ou eu me engano muito, ou Salvador Allende recusa-se a ser enterrado.

 

8 de Outubro

A casa de Pablo Neruda, em Isla Negra, é simples­mente um horror. Pode dizer-se, como desculpa, que tem pouco de casa e muito de museu, o que desde logo le­vantaria a questão de saber-se se é possível viver num museu. O pior é que este museu excede quantiosamente tudo quanto eu pudesse ter imaginado de acumulação de objectos absurdos, heteróclitos, disparatados, incongruen­tes, onde, ao lado de peças magníficas, se encontrassem, merecendo crédito e apresentação igual, outras de um mau gosto inenarrável, muitas vezes cómico, outras ve­zes milagrosamente recuperado no último instante por um remoto humor surrealista. O melhor de Pablo Neruda não é, de certeza, a casa que ele inventou para viver...

Animado jantar de despedida em casa de José Donoso. Pilar Donoso tem o humor sorridente e sábio da mulher que vive com um homem de talento e deci­de que o mais sensato é fazer de conta que não o toma inteiramente a sério. Se lhe perguntássemos porquê, creio que responderia mais ou menos assim: «O mais certo seria ele abusar se eu me comportasse doutra maneira...» Depois de termos comido, encontrei-me, quase sem dar por isso, num círculo de vivíssima con­versação com uns quantos escritores chilenos, precisa­mente alguns dos «discípulos» de Donoso, aqueles a quem, durante a mesa-redonda de hoje, tinha chamado seus «apóstolos». Entretido com o debate, não reparei que por duas vezes José Donoso veio tomar lugar per­to de nós e por duas vezes se retirou sem ter pronuncia­do palavra. Um pouco mais tarde alguém disse: «Subiu para repousar um pouco. As emoções destes dias arra­saram-no.» Pilar Donoso sorriu e disse: «Só quer dei­xar o campo livre ao Saramago.» Todos rimos, e eu pensei: «É natural. Um forasteiro atrai as curiosidades, supõe-se que traz histórias novas para contar, e mesmo que elas sejam as do costume, de todos os lugares, sempre as diz com um acento diferente, com outro fraseado, com outros rodeios de estilo. Isso já basta.» Quase no fim do serão, Donoso tomou a aparecer, com um ar de patriarca absoluto que, benevolamente, antes de ir dor­mir, quisesse certificar-se de que os garotos não teriam cometido demasiadas diabruras na sua ausência... Agra­decido, dei-lhe um abraço e regressei ao hotel.

 

10 de Outubro

Nunca dei por que os médicos, de modo geral e público, usassem fazer comentários desfavoráveis a res­peito de outros médicos: provavelmente, depois de uns quantos milénios de prática do segredo profissional, já trazem a deontologia na massa do sangue. Ou aprendem­-na na faculdade com as primeiras noções de fisiologia. Mas os escritores, ah, os escritores, com que gozo apon­tam eles ao desfrute do gentio a simples palha que las­tima o olho do colega, com que descaro fingem não ver nem perceber a trave que têm atravessada no próprio olho. Vergílio Ferreira, por exemplo, é um mestre nes­te tipo de execuções sumárias. Que se saiba, ninguém lhas pediu, mas ele continua a emitir sentenças de ex­clusão perpétua, sem outro código penal que o seu pró­prio e incomensurável orgulho sempre arranhado. Dizem-me que se decidiu finalmente a falar de mim na Conta-Corrente, mas não fui lá a correr ler, nem sequer devagar tenciono ir. A diferença entre nós é conhecida: eu não saberia escrever os seus livros e ele não quere­ria escrever os meus... Agora chegou-me notícia de que Agustina Bessa Luís passou a dedicar-se também a es­tas actividades conjuntas de polícia, ministério público e juiz. Declarou que eu não sou um «grande escritor», que sou apenas «produto de diversas circunstâncias»... Ser eu, ou não, um «grande escritor» não tiraria nem acrescentaria nada à glória literária e à importância so­cial de Agustina Bessa Luís, mas isso para ela é insig­nificante perante a ocasião que lhe deram de mostrar-se tão traquinas quanto lho pede a natureza. Mesmo que eu demoradamente explicasse, Bessa Luís não compreende­ria que nunca pretendi ser um «grande escritor», mas um escritor simplesmente. Bessa Luís tem os ouvidos tapa­dos para estas distinções, tão tapados como parece que esteve neste caso o seu entendimento ao deixar os leitores da entrevista dada ao Independente sem saber - porque não as mencionou - de que circunstâncias perversas sou eu mistificador produto. Muito pior ainda, se é possível, foi ter Agustina Bessa Luís calado as circunstâncias que fizeram dela a «grande escritora» que sem dúvida acredita ser...

 

Felizmente, a vida não é sempre tão feia. Tenho aqui uma carta de um rapaz de 14 anos, residente em São Jorge da Beira, que leu o Memorial e diz ter en­contrado nele um erro. Di-lo assim, literalmente: «O autor reflecte certas palavras que não se utilizam pro­priamente num livro, são consideradas linguagem cor­rente (calão). As palavras são as seguintes: "putas". Outras poderia ter utilizado: prostituta, meretriz ou ain­da rameira. O autor podia ter mais cuidado com a har­monia musical e figuras de estilo, entre outras coisas.» O autor leu, ponderou e resolveu responder como segue: «Deu-me muita alegria ver um jovem de 14 anos expri­mir tão francamente as suas opiniões. Decerto não es­tranhará que eu não esteja de acordo com elas. Se não gostou de encontrar a palavra "putas" num contexto que plenamente a justifica, então não sei o que irá pensar quando tiver de estudar Gil Vicente. Espero que os seus professores saibam explicar-lhe que a literatura não se rege por quaisquer falsas regras de moralidade voca­bular. Não se preocupe tanto com as figuras de "esti­lo" e acredite em mim quando lhe digo que a harmonia "musical" não é o que supõe.» A esta carta para o Nuno Filipe, juntei fotocópia da carta dele, e acrescentei: «Daqui por uns anos volte a lê-la. Se eu então ainda estiver vivo, diga-me o que lhe tiver parecido essa nova leitura.»

 

12 de Outubro

Diz-se em Lisboa que o Nobel está no papo de Lobo Antunes. Pelos vistos, o jornalista brasileiro, conhecido de Jorge Amado, sabia do que falava. Tam­bém me dizem que Lobo Antunes já se encontra na Suécia.

 

13 de Outubro

O Nobel foi para um escritor japonês, Kenzaburo Oe. Afinal, o jornalista estava enganado. Nelson de Matos até tinha feito declarações à rádio, ou à televi­são, não sei bem, dando como favas contadas a vitória do seu editado. O que vale é que o ridículo, pacien­tíssimo, continua a não matar. Quanto a mim, tenho de começar a pedir desculpa aos meus amigos por não ganhar o Nobel...

 

14 de Outubro

Chega-me de Paris a gratíssima notícia de que José Donoso aceitou fazer parte do júri do Prémio União Latina. Pelos vistos, o mundo está mesmo feito de presságios, vaticínios, coincidências e outros bruxe­dos: tantos anos a saber de José Donoso, sem poder chegar-lhe mais perto que as páginas dos seus livros, salvo um encontro rápido numa já distante Feira do Livro de Buenos Aires, e de repente eis que me chamam a Santiago para falar dele, e de repente eis que me dizem que o reencontrarei em Roma, com a sua barba filosófica, a sua ironia mefistofélica e a sua incurável hipocondria... Se Donoso não é do géne­ro de Carlos Fuentes, que votava por telefone (nem uma só vez tivemos o gosto de o ver nas reuniões do júri), passaremos a encontrar-nos ao menos uma vez por ano.

 

Veio a Lanzarote, para entrevistar-me, uma equipa de reportagem da TVI. Pessoal simpático, um deles, Carlos de Oliveira, já meu conhecido. Perguntas muitas: polí­tica, religião e, inevitavelmente, o Nobel. Já que o meu nome tinha andado envolvido nesta outra espécie de bingo, aproveitei a ocasião para, de uma vez para sem­re, pôr a claro o assunto, tal como o vejo: em primei­ro lugar, o dinheiro é dos suecos e eles dão-no a quem entendem; em segundo lugar, há que acabar com esta história de andar como de mão estendida a implorar a esmolinha de um Nobel; em terceiro lugar, é absurdo fazer depender o prestígio da literatura portuguesa de se ter ou não se ter o Nobel; em quarto lugar, se o che­que fosse, por exemplo, de dez mil dólares, o planeta dos escritores pouco se importaria com ele; em quinto lugar, e concluindo, deixemo-nos de hipocrisias e tenha­mos a franqueza de reconhecer que, nesta comédia, o que verdadeiramente conta é o dinheiro.

 

Naguib Mafuz foi apunhalado. Alá prossegue a sua divina tarefa...

 

18 de Outubro

Álvaro Siza esteve dois dias em Lanzarote e foi de cá rendido e deslumbrado. Mas o melhor é que a hipó­tese se vai tomar realidade: Siza encarrega-se do projecto de ampliação das instalações da Fundação César Manri­que. Creio que as pessoas daqui (embora não o confessas­sem) esperavam ver aparecer-lhes no aeroporto um senhor empertigado, preocupado com atirar-lhes à cara, por ges­tos e por palavras, a sua mundial importância, e saiu-lhes a simplicidade em pessoa. Nem podiam acreditar.

 

20 de Outubro

Em Barcelona para o lançamento da tradução de Objecto Quase. Amanhã começará o corrupio, a engre­nagem trituradora das entrevistas. Hoje, ainda tranquilos, jantámos com Josep Montserrat e Jessica, casadinhos de fresco. Quem reparou em nós no restaurante, se calhar pensou ou disse: «Ali está um bonito quadro familiar, dois senhores de idade jantando com as filhas...» Enganava-se esse observador. Como enganado esteve aquele casto eclesiástico da catedral de Milão que, vendo-me deambular por ali, mirando as artes góticas, com um braço conjugal por cima do ombro de Pilar, severamente me admoestou: «Mesmo sendo sua filha, não é próprio numa Igreja.»

 

21 de Outubro

Lançamento de Casi un objeto. Apresentação comove­dora de um Basilio Losada apoquentado por um processo lento, mas irreversível, de perda de visão. Muitos leitores, amigos em quantidade: José Agustín Goytisolo, Manuel Vázquez Montalbán, Eduardo Mendoza, Carmen Riera, Robert Saladrigas, Enrique Villas- Matas, Luisa Castro, Alex Susanna... E também, desportivamente, ali estava Mario Lacruz, de Seix-Barral, meu editor desde a primei­ra hora espanhola, que parecia não ser capaz de decidir que cara deveria mostrar na circunstância, quem sabe se duvidoso sobre o que virá a suceder quando o Ensaio sobre a Cegueira estiver pronto: continuarei em Seix­-Barral? Ir-me-ei a Alfaguara?

 

As entrevistas não são uma engrenagem trituradora, são pior: uma laminadora. E sempre, no fim ou no prin­cípio, o Nobel, o Nobel, o Nobel...

 

Com um prazer que se imagina, recebo inesperada­mente das mãos de Sotelo Blanco, da editorial Ronsel, um exemplar da tradução castelhana de In Nomine Dei. O livro está bonito, e a tradução de Basilio Losada, que já espreitei, parece-me excelente.

 

22 de Outubro

Madrid. Mal acabo de pôr o pé em Barajas, levam­-me direito a Cibeles, à Casa de América, para uma conferência de imprensa. Rosa Regás e Juan Cruz apre­sentaram, eu fiz o meu papel. Depois, no hotel, entre­vistas para os jornais, fora dele, rádio e televisão. Será assim até ao último dia, pelo menos é o que me pro­mete o programa. Pergunto a Juan Cruz se não lhe pa­rece um exagero tanto ruído por causa de um livro de contos publicado há dezasseis longos anos. Responde­-me simplesmente que não. Julgo compreender as suas editorialíssimas razões. Alfaguara quer que se saiba, urbi et orbi, que este autor é seu...

 

23 de Outubro

Casa cheia para o lançamento do livro numa das li­vrarias Crisol. Noto que me deixei arrastar desta vez por um tom de comunicação demasiado pessoal, quase ínti­mo, como se a assistência fosse composta só de amigos meus de coração, e bem se sabe como, na realidade, são poucos aqueles a quem considero como tal. A culpa deste perigoso deslizamento para o sensibilismo, deve tê-la tido provavelmente a fadiga. No fim, e apesar dos riscos, acho que valeu a pena. O silêncio, enquanto eu ia falando, quase me assustava, como se os rostos atentíssimos do público me estivessem impondo uma nova responsabilidade a que não poderia fugir. Há que dizer, ainda, que este sentimento começou a definir-se logo no princípio do encontro, graças à apresentação de Miguel García-Posada, tão inteligente quanto generosa. Esteve Fernando Morán, e conheci finalmente Alfonso de la Sema...

 

24 de Outubro

Os espanhóis chamam a isto «poder de convoca­tória»: o auditório da Casa de América estava reple­to, com todos os lugares ocupados e outra tanta gente de pé. Durante a longa entrevista que me foi feita pela escritora Ángeles Caso diante do público, conse­gui couraçar-me de auto-ironia, o bastante para não me acontecer o mesmo que ontem, aquela aflitiva sensação de estar a desfazer-me... Charo López, uma actriz excelente e uma belíssima mulher, leu de manei­ra exemplar, refreando a emoção e por isso valorizan­do-a, o conto «Desquite» de Casi un objeto. Não me iludo: a castração do porco fez passar um arrepio na as­sistência...

 

26 de Outubro

Francisco Umbral iça-me hoje até às nuvens na sua coluna do diário El Mundo. Depois de debulhar, em minha honra, uma sucessão de atributos e qualidades que, postos assim por escrito, ainda mais exagerados me parecem, escreve em certa altura que, com as minhas «fortes declarações», estou a pôr em risco, «masculi­namente», o Nobel. Creio dever entender-se que, na opinião de Umbral, se a Academia Sueca vem a tomar conhecimento do que eu ando a dizer do prémio, então é que não mo dá mesmo. Confesso que não tinha pen­sado nisso... De qualquer modo, não tem importância. O que sim tem importância é que se estivesse a escre­ver um livro e alguém da dita Academia, por hipótese absurda, me aparecesse a dizer: «Não o escreva e nós damos-lhe o prémio», tenho por absolutamente claro que não precisaria pensar para encontrar a resposta certa: «Guardem o vosso dinheiro e deixem-me acabar o que tenho para fazer.» E isto, permito-me recordá-lo a Fran­cisco Umbral, tanto poderia ser declarado «masculina­mente» como «femininamente»...

 

João Cabral de MeIo Neto recebeu hoje, aqui em Madrid, das mãos da rainha, o Prémio Reina Sofía de Poesia Iberoamericana. Disse-me que perdeu a visão central, as suas primeiras palavras foram mesmo: «Es­tou cego», e eu só pude abraçá-lo com força. Mais tar­de pensei nos meus cegos do Ensaio e achei-os insignificantes diante da realidade pungente daqueles olhos perdidos. Cego, João Cabral, o maior poeta de língua portuguesa vivo, com perdão de outros que tam­bém são grandes... O discurso de agradecimento, lido pelo embaixador do Brasil, foi muito belo, de uma se­renidade profunda, como de alguém que, por cima das tristes dores da vida, está em paz consigo mesmo.

 

29 de Outubro

Lisboa: entrega dos Prémios Stendhal. O meu pro­pósito de retirar-me do júri foi-se por água abaixo. Não posso abandonar o barco depois da aprovação que re­cebeu a proposta por mim apresentada de que, de futu­ro, passem também a ser considerados os problemas culturais, em particular os efeitos da integração econó­mica e política europeia nas diversas culturas nacionais. Uma sombra de mal-estar perpassou na reunião plená­ria do júri quando disse: «Neste momento, o sentimen­to mais espalhado na Europa, sabemo-lo todos, é um sentimento de perplexidade. Talvez essa perplexidade tenha algo que ver com uma rejeição cultural ainda à procura da sua expressão.» Para mim, é evidente que, por baixo dos discursos oficiais com obrigadas tintas de optimismo, lavra a inquietação. Pois que se inquietem, que bons motivos têm para isso.

 

30 de Outubro

Em casa. No meio da correspondência que se acumulou durante estes dias de ausência, venho encon­trar a resposta definitiva à pergunta célebre: «Onde estáDeus?» Antes de inventar-se a aviação era claríssimo que Deus habitava o céu. As nuvens aí estavam para adornar a sua glória, altas ou baixas tanto fazia, mas as mais demonstrativas, por singular que pareça, ainda eram as mais baixinhas, quando pelos intervalos delas desciam, magníficos, oblíquos jorros de luz. Não custa­va nada acreditar que, lá no alto, no espaço invisível, precisamente no ponto da imaginária intersecção dos feixes luminosos, Deus presidia. Depois começou-se a voar por cima das nuvens e logo se tomou patente que Deus não estava lá, nem havia vestígios dele em todo o infinito azul. Felizmente não tardou que alguém tives­se a genial ideia de dizer que Deus se encontrava em toda a parte e que, portanto, não valia a pena procurá­-lo. A explicação era tão boa que pôs a dormir, por muitos anos, a nossa mais do que legítima curiosidade. Até hoje. Hoje estou eu em condições de revelar que Deus, usando o pseudónimo humano de Alfredo Lopes Pimenta, vive em Riba d'Ave, num lugar chamado Monte Negro S. Mateus. Outra coisa não me atrevo a concluir de uns «versos» que por Ele me foram envia­dos (suponho que os erros de ortografia, ainda assim poucos, serão consequência da confusão linguística que forçosamente existe na cabeça de um Deus que está obrigado a conhecer todos os idiomas). Segue, ipsis verbis, isto é, tal e qual, a «poesia»:

 

Chegou-me aos meus ouvidos

que eras um grande escritor

mas segundo o que eu já li

o que tú escreves não tem sabor

 

por isso vai num instante à mercearia

e compra sal e pimenta

e passa pela drogaria

e compra melhor ferramenta

 

porque a que tens está estragada

e precisa de sêr mudada

como as fraldas ao bébé

e depois de tudo feito

aprende com o meu jeito

ó meu criado José

 

e se tú fores inteligente

e também muito coarente

ouves o galo a cantar

pois o teu fraco evangelho

não há de chegar a velho

nem muletas tem para andar

 

porque eu fiz o sol e as estréias

e também todos os planétas

e a terra pus a girar

e criei todos os animais

e muitas aves e pardais

e também a ti que me queres iliminar

 

por isso repara bem

e não digas mal de ninguém

e muito menos do teu Criador

e procura aprender comigo

pois sou o maior amigo

e o que escrevo tem sabor

 

e nunca andei na escola

nem nunca pedi esmola

e sempre tive de comer

pois não vivo na preguiça

nem me alimento de hortaliça

porque em mim está o saber

 

e agora para terminar

não me procures desafiar

como tens feito até agora

e pensa bem no teu viver

porque a mim não me farás morrer

mas tú num instante te vais embora

 

e sabes onde vais cair

se não te quiseres redimir

do teu tão mau proceder

é no tormento infernal

que te condena o tribunal

e depois é tarde para compreender

 

Agora só me falta receber, em prosa ou verso, com pseudónimo ou em nome próprio, uma carta do Diabo. Entretanto, ninguém, a partir de agora, poderá ter dúvi­das: andávamos à procura de Deus no céu e Ele, afinal, estava em Riba d'Ave.

 

31 de Outubro

Ainda a propósito de Deus: tive hoje a revelação surpreendente, luminosíssima, direi mesmo deslumbran­te, de que se é verdade que não sou «teólogo», como se afadigam a recriminar-me os que não gostaram do Evangelho, «teólogos» também não foram Marcos, Mateus, Lucas e João, autores, eles como eu, de Evan­gelhos...

 

2 de Novembro

La Laguna, em Tenerife, que eu não conhecia, e em cujo Ateneo dei hoje uma conferência, é, urbanistica­mente, uma cidade cheia de motivos de interesse. Oxa­lá possam ainda salvá-la do furacão da especulação e ganância que vem arrasando as Canárias, com a excep­ção, até agora, da minha ilha de Lanzarote. Disseram­-me que começa a surgir ali um novo sentido de res­ponsabilidade colectiva, um estado de espírito mais aten­to à defesa e ao respeito dos bens arquitectónicos do passado. Que assim seja. Por enquanto, é um prazer pas­sear pelas ruas de La Laguna. Sobretudo à noite, quan­do o trânsito desapareceu e as pessoas não se sabe onde estão. A essas horas, La Laguna é como uma cidade fantasma, uma cidade dotada de modestas mas sensíveis belezas. Misteriosa, calada, à espera dos habitantes que a mereçam.

 

Ana Hardisson, uma amiga nossa que é professora de Filosofia em La Laguna, falou-me do tema da sua tese de doutoramento, uma análise do conceito de «ser humano». Disse-me que, historicamente, o feminino não chegou a participar na formação desse conceito, que o que chamamos «ser humano» está informado, de modo praticamente exclusivo, pelo masculino. Recebo esta declaração como um choque. Nunca tal me tinha pas­sado pela cabeça, mas a evidência do facto, assim às primeiras, parece-me irrefutável: provavelmente, o «ser humano», a conclusão agora é minha, só como «herma­frodita» chegará a realizar-se, isto é, a tomar-se real e realmente completo. Como dizia o meu avô Jerónimo, a gente está sempre a aprender...

 

4 de Novembro

Com a impressão de andar a repetir passos, gestos e palavras, fui a Arrecife, à livraria - EI Puente se chama ela -, para comprar o que houvesse sobre as Canárias. Esta impressão, difusa mas molestante, perce­bia eu bem donde me vinha: vinha de ter andado por aí, tempos atrás, ingénuo e consciencioso, a comprar li­vros sobre um certo rei de Portugal, para ilustração e benefício de um mirífico projecto de série de televisão que acabou por ter o desenlace que se sabe. Claro que a situação de agora não era a mesma: escrever o livro

sobre Lanzarote (esse que terá as fotografias de Amo Hammacher) só de mim depende. Em todo o caso, en­quanto, com a ajuda de Norberto - livreiro dos pés à cabeça, dos raros que ainda sabem do seu ofício – ia examinando e apartando os livros que me pareciam úteis, sentia-me desagradavelmente contrafeito, como se eu próprio não acreditasse no que me tinha comprome­tido a fazer. Porém, são tantos os que acreditam - Amo acredita, Carmélia acredita, Pilar acredita, Zeferino acredita, Juan Cruz acredita, Ray acredita ­que não me resta outra saída que acreditar eu também e deitar mãos à obra. Um destes dias.

 

5 de Novembro

O correio traz-me duas satisfações: a antologia da poesia de João Cabral de MeIo Neto, A la medida de la mano, com introdução e tradução de Ángel Crespo, e o estudo de Luciana Stegagno Picchio para a edição italiana das Obras Completas (as minhas, se a menção publicitária não ofende a intratável virtude dos nossos tartufos nacionais...) que a Bompiani está a preparar, prevista já a publicação do primeiro volume para o prin­cípio do ano que vem.

 

6 de Novembro

Telefonou Juan Cruz: a primeira edição de Casi un objeto está esgotada. Também isto é uma satisfação.

 

7 de Novembro

Ao desfazer um atado de papéis, dos muitos que vieram de Lisboa e que, quase dois anos decorridos, ainda estão por abrir, saltou-me às mãos uma folha com algumas palavras escritas e três pequenas medalhas de alumínio coladas com fita adesiva transparente. Observo o papel, parece de caderno escolar, e a letra, redon­da, feminina, diz: «A Nossa Senhora ama-o muito Sr. José Saramago!» Com exclamação e sem assinatura. Tinha-me esquecido de todo do aviso, que recebi na época mais inflamada do Evangelho: é esta a melhor ca­ridade, a que esconde a mão e cala o nome. Trazia junto um papelito, em francês, impresso a azul, com um título que traduzo desenvoltamente: «Traga sempre consigo a "medalha miraculosa".» Por baixo e continuando no verso, em letrinha miúda, o arrazoado a seguir traduzido:

«A Medalha miraculosa deve a sua origem às Apa­rições mariais da Capela da Rue du Bac, em Paris, em 1830.

«- No sábado 27 de Novembro de 1830, a Virgem Imaculada apareceu a Santa Catarina Labouré, Irmã da Caridade e confiou-lhe a missão de fazer cunhar uma medalha cujo modelo Ela lhe revelou.

«Faz cunhar uma medalha segundo este modelo, disse a Virgem, as pessoas que a usarem com confiança recebe­rão grandes graças, sobretudo se a trouxerem ao pescoço.

«- A Medalha teve imediatamente uma difusão prodigiosa. Inúmeras graças de conversão, de protecção e de cura foram obtidas.

«Perante todos estes factos extraordinários, o Arce­bispo de Paris, Monsenhor QUELEN ordenou um inqué­rito oficial sobre a origem e os efeitos da Medalha da Rue du Bac. Eis a conclusão:

«"A rapidez extraordinária com que esta medalha se propagou, o número prodigioso de medalhas que foram cunhadas e distribuídas, os benefícios assombrosos e as Graças singulares que a confiança dos fiéis obteve, parecem verdadeiramente os sinais pelos quais o Céu quis confirmar a realidade das aparições, a verdade do relato da vidente e a difusão da medalha."»

«- Na própria Roma, em 1846, na sequência da conversão retumbante do Judeu Alphonse Ratisbonne, o Papa Gregório XVI confirmava com toda a sua autori­dade as conclusões do Arcebispo de Paris.

       «- Portanto, se ama a Virgem e tem confiança na sua poderosa intercessão: «Traga sempre consigo a Medalha para viver na Graça de Deus e gozar da protecção da Virgem Imaculada.

«- Diga cada dia a invocação da Medalha. A Vir­gem quis ser assim saudada e invocada: "ó MARIA CON­CEBIDA SEM PECADO, ROGAI POR NÓS QUE A VÓS RECORREMOS" .

       «- Propague à sua volta a Medalha; dê-a parti­cularmente aos doentes e aflitos.

       LOURDES E A MEDALHA MIRACULOSA

« A Medalha Miraculosa é universalmente conhecida.Mas não é bastante sabido que as aparições da Capela da Rue du Bac prepararam os grandes acontecimentos de Lourdes. "A Senhora da Gruta apareceu-me tal como é representada na Medalha Miraculosa" declarou Santa Bernadette que trazia consigo a medalha da Rue du Bac.

«A invocação da Medalha: HÓ MARIA CONCEBIDA SEM PECADO, ROGAI POR NÓS QUE A VÓS RECORREMOS difundida por toda a parte pela Medalha Miraculosa, suscitou o imenso movimento de fé que levou o Papa Pio IX a definir, em 1854, o dogma da Imaculada Con­cepção. Quatro anos depois, a aparição de Massabille confirmava esta definição romana duma maneira inesperada.

«* Por ocasião do centenário desta definição, em 1954, a Santa Sé fez cunhar uma medalha comemora­tiva.

No reverso dela, a imagem da Medalha Miraculosa e a imagem da gruta de Lourdes, estreitamente associa­das, sublinhavam o laço que une as duas aparições da Virgem com a definição da Imaculada Concepção.

«Tal como Lourdes é uma fonte inesgotável de Graças, a Medalha Miraculosa continua a ser o instru­mento da infatigável bondade de Nossa Senhora para todos os pecadores e infelizes da terra.

«Os Cristãos que souberem meditá-la encontrarão nela toda a doutrina da Igreja sobre o Lugar providen­cial de Maria na Redenção, em particular a sua media­ção universal.

Capela da Medalha Miraculosa 140, rue du Bac - Paris 7me com licença do Ordinário.»

 

Suponho que, a partir de agora, a Igreja Católica irá deixar de chamar-me nomes feios. De facto, não falta­ria mais, tendo eu posto assim, graciosamente, ao seu serviço, os Cadernos de Lanzarote. Quanto às medalhas, pelo sim pelo não, porque, como já dizia o Borda d'Água, Deus super omnia, ficarei com uma. As outras ficam ao dispor dos dois primeiros «pecadores e infeli­zes da terra» que mas pedirem. Que lhes aproveite, é o meu sincero voto.

 

10 de Novembro

Em Inglaterra, participando numa «embaixada» de três escritores lusófonos (não há dúvida, odeio mesmo a palavra) convidados pelo Arts Council. Estão connosco Lya Luft, do Brasil, e Lina Magaia, de Moçambique, além do meu Giovanni Pontiero. O programa começou por Northampton, com uma leitura conjunta (como irão ser todas) na Biblioteca Pública da cidade. O público não chegou para encher a pequena sala, mas Gary McKeone, o responsável do Arts Council que nos acom­panhará até ao fim, estava satisfeito: tratava-se de um ensaio, o Arts não tinha organizado nunca um acto des­tes em Northampton.

Depois do almoço demos um pequeno passeio pela cidade, que é, dizem-me, o maior centro industrial pro­dutor de calçado em Inglaterra, e fomos ter a uma praça onde havia um mercado daqueles de levante, que preci­samente começava a ser levantado. Ainda nos deu tempo para dar uma volta e verificar que isto de mercados po­pulares já não é nada do que era, tanto em Northampton, como estava à vista, quanto nas Caldas da Rainha, como se tem visto... No entanto, é sempre possível acontece­rem surpresas. Lya, que é a orgulhosa avó de um João de seis meses, decidiu comprar-lhe uma roupinha de re­cordação, umas dessas coisas a que nós chamamos «macaquinho» e os brasileiros não sei quê. No hotel, ao examinar mais detidamente a prenda, encontrou-se com uma etiqueta inesperada que dizia: Made in Portugal... Inesperada, sim, terá sido para ela, pois no que me diz respeito, quando assistia à compra lá no mercado, tinha­-me parecido reconhecer algo de familiar no padrão, no feitio, na composição das cores. Realmente, por mais que nos digam os cosmopolitas, as culturas nacionais são uma fortíssima coisa: um simples macaquinho de criança, em Northampton, era capaz de me fazer chegar, sem rótulos nem proclamações, tocantes notícias da pátria...

 

12 de Novembro

De Londres demos um salto a Oxford para passar um bocado com Miriam, uma irmã de Pilar que ali está a trabalhar e a aprender inglês. Aproveitaríamos para conhecer por fora o famoso, quase mitológico alfobre universitário, sobre o qual, aliás, desde há muitos anos não me faltavam luzes acerca dos seus interiores, se querem sabê-lo, desde que vi o Robert Taylor no edu­cativo filme que se chamava O Estudante de Oxford... (Começo a acreditar no que diz Rafael Sánchez Fedosio, que na vida não há coincidências, mas simetrias.) Bus­ca baldada foi a nossa, Miriam tinha ido de passeio a Londres, o que só confirmava a necessidade simétrica dos encontros e desencontros humanos. Felizmente ainda pude recuperar um pouco da minha antiga confiança nas coincidências, uma vez que, graças aos esforços con­juntos do acaso e do destino, conseguimos, regressados a Londres, jantar com a escorregadiça colega do Bob Taylor...

 

13 de Novembro

Outra vez em Manchester. Já não somos uma «em­baixada», agora somos um grupo de amigos. Lina Magaia fala-nos com simplicidade da sua infância, da sua terrível vida de lutadora, Lya Luft conta-nos de um mundo social em que tudo parece oferecido, do duro pagamento a que a imortal fragilidade dos senti­mentos obriga muitas vezes. Sob as palavras bruscas de Lina percebe-se a cólera, no doce falar de Lya afIora uma tristeza que pede compreensão. Como escritora, apesar dos seus 50 anos, Lina vai ainda no princípio. (As primeiras palavras que lhe ouvi foram: «Espero aprender muito consigo.» Mas que poderia eu ensinar a quem teve de enfrentar-se com o horror absoluto?) Lya é uma romancista de qualidade (o livro que veio ler - Exílio, agora publicado em inglês com o título The Red House -, pelos fragmentos de que vou tendo conhecimento, parece-me excelente). Andamos por aqui os três, com as nossas vidas, as nossas músicas, ajudando-nos mutuamente a não desafinar neste pe­queno coro lusófono (volto a dizer: quem será capaz de gostar de uma tal palavra?), e, na verdade, quando assim estamos, juntos, cordiais, comunicativos, tudo nos parece fácil. Amanhã, já se sabe, cada um em seu sítio, acordaremos para a amarga realidade dos inte­resses obscuros, das políticas nacionais egoístas, dos velhos e novos mal-entendidos, das dores e dos ressen­timentos mais ou menos legítimos que continuam a intoxicar a denominada «comunidade de língua portu­guesa» .

 

14 de Novembro

A leitura de hoje foi em Bristol, naquilo que devem ter sido, em tempos outros, uns antigos armazéns, à beira de um canal. Hoje chamam-lhe Watershed Media Centre. Mais público do que em Manchester, mas nada capaz de deslumbrar o curtido viajante que as circuns­tâncias fizeram de mim. Lya retomou o seu Anão (o tema do romance é outro, mas a sequência dos trechos escolhidos faz representar no nosso espírito esta outra estranha história, a de uma personagem que de facto não o é, uma alucinação que só existe na imaginação da narradora). O testemunho de Lina, implacável, fez arre­piar toda a gente. Eu cumpri o meu pequeno papel (leio A Jangada de Pedra, recém-publicado aqui com o título The Stone Raft). Giovanni, fino e sóbrio como sempre, ajudou-nos a todos.

 

15 de Novembro

Com Giovanni, visitámos de manhã a pequena Igre­ja de São Marcos. Ali mesmo em frente está, escura e enorme, a catedral, que vimos ontem, mas que, para meu gosto, de pouco vale em comparação com esta jóia de arquitectura sem mácula. Os visitantes devem ser raridade, um folheto descritivo dos lugares selec­tos de Bristol nem sequer de passagem a menciona. Feliz por ter companhia, o zelador conta-nos a histó­ria da igreja, fala-nos dos fundadores do hospital que ela começou por ser, e diz-nos que a igreja chegou a ser mandada arrasar por Henrique VIII, mas que o Lord Mayor de então conseguiu evitar a destruição, comprando-a. Por isso lhe chamam também Igreja do Lord Mayor... Mesmo assim, se os nichos interio­res estão vazios de estátuas foi porque o rei ainda teve tempo para as mandar retirar. Numa das duas únicas capelas laterais, construída em 1523, de abóbada sim­plesmente deslumbrante, repete-se, como elemento heráldico de decoração, um punho fechado, emblema, se bem entendi, da coroa de Aragão, donde procedia Catarina, a primeira mulher do rei, depois repudiada e trocada por Ana Bolena. (Episódios da vida real.) Na outra capela, um pequeno quadro de um vitrâl fla­mengo, tão discreto que teria passado despercebido se não fosse o escrúpulo do nosso guia, mostra o interior da cozinha duma família paupérrima. Há um homem sentado num mocho, com a roupa em farrapos, tudo ao redor é miserável e triste, mas o que verdadeira­mente surpreenderá o observador é outra coisa: do in­terior da chaminé, por cima da fogueira, pendem quatro pernas humanas, duas de adulto, duas de crian­ça: adivinha-se que os donos delas, de quem nada mais se vê, estão ali sentados, numa espécie de trapézio. Um humorista de gosto duvidoso teria razão se dis­sesse:

«São como chouriços pendurados no fumeiro», mas o que aqueles dois estão a fazer é a aquecer-se, nada mais... (Episódios da vida real.)

 

Mesa-redonda na Universidade com a presença de uns trinta alunos. A discussão foi animada. Impres­sionou-me verificar como em Bristol, tão longe, tão outro mundo, uns quantos rapazes e raparigas ingle­ses trabalham corajosamente esta estranha língua nossa que não terá muito para lhes dar, proveitos materiais escassos, alguma ocasional beleza, e apesar disso per­cebia-se nos seus rostos uma gravidade, uma atenção e um cuidado que só podiam vir-lhes do coração. Lya e Lina falaram das suas geografias próprias, uma, a dos sentimentos, outra, a dos sofrimentos. Mas a geografia humana, a este respeito, é provavelmente uma só, um vale de lágrimas com um arco-íris por cima. A dife­rença está em que chove umas vezes para um lado, outras vezes para o outro. Dos sentimentos de que Lya hoje fala, virá Lina a falar um dia, se a sua voz con­seguir aplacar alguma vez a memória obsessiva do sofrido.

 

16 de Novembro

No Arts Council, em Londres, apresentam-me de surpresa um grande bolo branco com palavras de cho­colate e erros de ortografia: «Parabens senor Saramago.»O «parabéns a você» (que sempre detestei) é cantado por doze vozes e em três versões: a luso-brasileira, a moçambicana e a inglesa... Ray-Güde, que veio ontem de Frankfurt para estar connosco (outra feliz surpresa), deve ter achado conveniente não cantar em alemão. Quando apaguei a única vela que havia no bolo, des­cobri que afinal eram setenta e duas. Tantas. Agradeci como pude, Giovanni traduziu para os ingleses (com o que o discurso ganhou em coerência), parti o bolo como me competia. Depois, como ninguém se decidia, Pilar tomou a iniciativa de distribuir as fatias. Bebemos à saúde uns dos outros. Muito mudada deve estar a Inglaterra para que um escritor português, no dia do seu aniversário, tivesse o privilégio de ver-se festejado com tal cordialidade.

 

A leitura foi na Voice Box do Royal Festival Hall, perante cerca de cem pessoas. Nada mau. No fim, fo­mos todos jantar, toda a trupe, mais o Luís de Sousa Rebelo e a Maria Dolores, a um restaurante do outro lado da rua, extravagante lugar, encafuado num enorme arco de tijolos por cima do qual passavam comboios que faziam estremecer, como um terramoto, toda a estrutu­ra. Amanhã, Vigo.

 

17 de Novembro

Leio no Faro que o arcebispo de Santiago de Com­postela concordou em restituir a Braga, após dois anos de minucioso expediente canónico, uns quantos ossos de mártires que dali haviam sido levados há oito séculos pelo célebre bispo Gelmírez, a saber, de Santa Susana, S. Silvestre e S. Cucufate. Diz o jornal, um tanto irres­peitosamente, que o bispo galego não se dedicava apenas a evangelizar infiéis: quando lhe convinha, sa­queava as terras que estavam sob o seu domínio, como era, no século XII, o caso de Braga. Daí a emigração forçada dos ossos, miraculosos, sem dúvida, porém não tanto que tivessem potência para fazer prevalecer a sua santa vontade: «Daqui não saímos, preferimos ficar em Braga.» Agora, salomonicamente, resolveu-se dividir o bem pelas aldeias: metade das ossadas continuará em Santiago, a outra metade regressa a casa. Virão os pre­ciosos ossinhos em urnas de metacrilato e prata, custodiadas, como merecem, pelo nosso eloquente e apreciado arcebispo Eurico Dias Nogueira. Dilata-se-me a alma de puríssimo gozo espiritual, e surpreendo-me mesmo a pensar se não deveria fechar, vender, abando­nar a casa de Lanzarote, não para voltar a Lisboa, que ideia, mas para me instalar em Braga, onde certamente passaria a beneficiar-me do santo influxo dos bem-aven­turados restos, ainda que, como sabemos, os milagres, quando nascem, ao contrário do Sol, não são para todos.

 

Outro jornal, Diário 16, informa-me de que, em Ja­carta, aonde foi para participar na reunião dos dezoito países membros do Conselho de Cooperação Económi­ca da Ásia e do Pacífico, o presidente dos Estados Unidos se limitou a pedir a Suharto que desse uma «maior autonomia» a Timor Leste, cientemente ignoran­do, portanto, a recusa das Nações Unidas a reconhecer a anexação do território pela Indonésia. O respeito de Clinton pelos direitos humanos é consoante, e obviamen­te nulo neste caso, quando iam ser assinados nada menos que 17 contratos entre multinacionais norte-ame­ricanas e a Indonésia, de valor equivalente a seis biliões de escudos... Direitos? Valores? Etica? Poupem-me, por favor, não me façam rir.

 

18 de Novembro

Carmen Becerra, professora da Universidade de Vigo, autora de um excelente estudo sobre Torrente Ballester, apresentou-me com os excessos costumados nestas ocasiões, e eu ataquei o meu tema: Será sábio quem se contenta com o espectáculo do mundo? Como se vê logo, continuo a malhar no pobre Ricardo Reis, que não tem nenhuma culpa da supina inépcia que o Pessoa o obrigou a escrever. O meu objectivo era falar do compromisso na literatura, melhor dizendo, do compromisso cívico e político (não necessariamente partidário) do autor com o tempo em que vive. O pú­blico, que era numeroso (mais de quatrocentas pessoas), percebeu bem aonde eu queria chegar, e não fez depois perguntas tolas, como esta, por exemplo, ouvida tantas vezes noutros lugares: «Então vossemecê agora quer fazer da literatura panfleto?» Os sinais são claros na Europa: não tarda muito que os leitores comecem a perguntar-nos: «Olhe lá, senhor escritor, o senhor, além de escrever, o que é que faz?» E não adiantará que tentemos responder-lhes, do alto da nossa suposta infalibilidade: «O meu compromisso, pessoal e exclusivo, senhor leitor, é com a escrita, é com a minha obra.» Declarações assim, aparentemente tão ascéticas, já não causam nenhum temor sagrado. O mundo ainda vai pedindo livros aos escritores, mas também espera que eles não se esqueçam de ser cidadãos de vez em quan­do. Em todo o caso, o melhor é não ter demasiadas ilu­sões: a doutrina Monroe, a tal do isolacionismo, foi inventada por escritores. Os norte-americanos limitaram­-se a copiá-la.

 

19 de Novembro

Durante uma volta que demos pela cidade velha, entrámos, Pilar e eu, numa livraria. Acompanhava-nos Marisa Real, directora do Club Faro de Vigo, que foi a entidade que me convidou a vir cá. Pilar apartava uns quantos livros que queria levar, eu mirava distraidamente as prateleiras, ansioso por ir-me dali, porque Vigo é uma cidade pequena (sem ofensa aos brios de quem lá mora) e o meu retrato saíra nos jornais. Eis senão quando ouve-se uma voz cheia, redonda, que nem parecia de português, e que dizia, com um acento de irritação mal reprimida: «Vocês já o levaram, mas ele é nosso.» Era um homem alto, grisalho, de porte atlético, rosto severo, a modos de juiz romano, ou assim mo fez ver a súbita sensação que experimentei, de ter sido apanhado em falta. Levei o caso a brincar, disse-lhe: «Olhe que ninguém me levou. Mudei foi de casa, de sítio de viver, mas continuo a ser quem era.» Curiosamente, ele quase não me olhava, como se, apesar de tudo, quisesse pou­par-me a uma acusação de traidor e renegado... Os es­panhóis presentes faziam de conta que não era nada com eles, quando muito pensariam: «Estes portugueses são tão poucos que logo protestam quando lhes falta um.» E enquanto eu sorria de modo constrangido, mas, no fundo, indecentemente deleitado, o agastado portu­guês foi-se embora, dizendo ainda: «Não se esqueçam, ele é nosso.» E agora era a toda a Espanha que parecia dirigir-se.

 

Não faltam discípulos a Clinton. Interpelado por jor­nalistas portugueses sobre a venda de armas à Indonésia, Felipe González retorquiu que não via nesses forneci­mentos nenhuma contradição com a importância que os direitos humanos têm para Espanha... Assim como se estivesse a dizer ao povo de Timor: «Vocês têm o direito de viver e eu tenho o direito de vender as armas com que vos matam.» Provavelmente, a linguagem dos políticos é a única real, e nós, os que continuamos a sonhar com uma vida de dignidade, não passamos de uns pobres idiotas...

 

21 de Novembro

Em Lisboa. Zeferino conta-me que Agustina Bessa Luís, convidada por um jornal a comentar o facto de eu a ter proposto para o Prémio União Latina, respondeu mais ou menos nestes termos: «Mostra que as diferenças ideológicas e políticas podem não ser obstáculo à convi­vência», e acrescentou: «Depois disto, começo a pensar se não deverei mudar de ideias...» Não lhe peço tanto, ape­nas que se decida um dia destes a reconhecer que há umas quantas coisas acerca das quais não tem a menor ideia...

 

No Instituto Cervantes, com Ángel Campos Pám­pano, alma e coração da revista bilingue Espaciol Espa­ço Escrito, de Badajoz, e Fernando Assis Pacheco, que deste lado ajuda a cuidá-la desde que ela nasceu. Tra­tava-se de chamar a atenção da assistência (quase toda composta por espanhóis) para a importância de uma publicação como esta. Justamente, dando o seu a seu dono, o Assis Pacheco recordou a personalidade e a obra de José Antonio Llardent, cujo amor pela literatura por­tuguesa o fez conceber o projecto e que não chegou a vê-lo realizado plenamente.

Quando a sessão acabou, aproximou-se de mim o Afonso Praça, da Visão, a perguntar-me se era mesmo verdade que Álvaro Cunhal vai publicar um romance. Na linha, dizia ele, de Até Amanhã, Camaradas. Que o Cáceres Monteiro, director da revista, julgava ter moti­vos para crer que eu estava por dentro do segredo. Res­pondi que era a primeira vez que ouvia falar de tal assunto, e o Praça observou-me desconfiado, com todo o ar de quem se recusa a acreditar. Não tive outro remé­dio que recorrer a meios de convencimento que já estão completamente fora de moda: dei a minha palavra de honra. O Praça olhou-me com uma expressão que tinha tudo de irónica piedade: afinal, eu não valia tanto que conhecesse, desde a raiz, os cometimentos literários de Álvaro Cunhal. Confesso que me senti um bocadinho vexado, como se saber desses cometimentos antes de qualquer outra pessoa fosse um direito meu que não ti­vesse sido respeitado...

 

22 de Novembro

Na Caminho, o Francisco Melo confirmou: no dia 14 de Dezembro será lançado o livro de Cunhal. Tive de jurar que não diria a ninguém. E aqui está: nem mesmo agora, nestas três semanas que faltam, posso ir deixando cair por aí uma meia palavra, um subentendido, uma insi­nuação mal disfarçada, uma piscadela de olho, um sorriso sabido: «Espero que compreendam a minha discrição...»

 

O que são as coisas. Estava no hotel, a descansar um pouco, e por desfastio liguei a televisão. Saiu-me a TVE, um programa da Euronews sobre a Bica. E não é que de repente me entrou no coração uma espécie de saudade pungente e irresistível de um bairro que conhe­ço bem, mas onde nunca vivi? O mais absurdo, porém, é que não pensei sequer em sair para ir rever, com os meus próprios olhos, aquelas ruas empinadas, aquele ascensor de brinquedo, aquelas lojinhas arcaicas, aque­las pessoas sem tempo... Que perversão é esta? Como podem as imagens tomar assim o lugar da realidade?

 

23 de Novembro

Em Lanzarote. Ontem foi a Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores para eleição de no­vos corpos gerentes. Presidi pela última vez. Fizeram­-me sócio honorário da Cooperativa. Em poucas pala­vras: fui-me abaixo, a comoção deu conta de mim. Agradeci com a voz estrangulada, aguentando mal o soluço que me apertava a garganta. Disse-lhes que esperava, no resto da minha vida, não vir a dar­-lhes nunca motivos para que se arrependessem dos aplausos com que me brindavam, e se em casos destes podiam servir penhores ou garantias, eu não tinha mais para lhes oferecer que a minha vida passada. Depois, contei a história do português de Vigo e ter­minei dizendo: «Esse homem tinha razão. Sou vos­so.» Nunca fui tão abraçado, nunca vi tantos olhos húmidos. O mundo pode ser isto? Esta espécie de coração único?

 

24 de Novembro

O cerco continua. Durante quanto tempo ainda resis­tirei? Um francês, Roger Bourdeau, que se apresenta como «amigo de longa data» do Manuel Costa e Silva, quer fazer um filme, uma curta-metragem, sobre «Des­forra», o último conto de Objecto Quase. A carta mos­tra uma sensibilidade e uma inteligência nada habituais nestas questões, muito no tom daquela que me foi escri­ta por Yvette Biro quando manifestou o seu interesse em adaptar ao cinema A Jangada de Pedra. Respondi a Roger Bourdeau que sim, que pode avançar com o pro­jecto. Conservo ainda uma última linha de defesa, guar­dada para o momento em que conheça todos os dados do assunto. Curiosamente, o que mais me atrai nesta ideia é o facto de se tratar de uma curta-metragem... Também é certo que as quatro páginas do conto não davam para mais...

 

27 de Novembro

Poder-se-ia imaginar que na Galiza, na comarca ri Xinzo de Limia, fronteira ao nosso Minho, três peqm nas aldeias - Rubiás, Santiago e Meaus -, implanta das numa reduzida franja de 3000 hectares, viveran durante cinco séculos independentes de Portugal e Es panha? De que estarão à espera os historiadores de lá, de cá, e também os romancistas, para irem instalar-se ne Couto Mixto - como lhe chamam os próprios habitan­tes - e contar-nos o que foram esses cinco séculos de uma autonomia colectiva e pessoal autêntica? Digo au­tonomia pessoal e não exagero, uma vez que cada ha­bitante do Couto Mixto podia escolher «nacionalidade»quando se casava: para tal bastava-lhe colocar um P (de Portugal) ou um G (de Galiza) - mas não o E de Es­panha - na porta da sua casa... E, como se isto fosse pouco, alguns havia ainda que pintavam na porta uma cruz, desta maneira se isentando a si mesmos de impos­tos, como se dissessem, contrariando a prudente palavra de Jesus: «Esta casa pertence a Deus, e não a César. E Deus não tem por que pagar impostos a César.» Onde estão os romancistas da Galiza? A União Europeia está a precisar de histórias destas...

 

29 de Novembro

Morreu o Fernando Lopes-Graça. Telefonaram hoje da TSF, muito cedo, para pedir-me, como depois verifi­quei no gravador, o cumprimento desse dever mediático a que se dá o nome de depoimento. Deixaram números de telefone, mas não liguei. Por pudor, acho eu. E ago­ra acabo de saber, por Carmélia, que o Graça morreu sozinho. Creio que esta última solidão me doeu mais ainda que a própria morte. Não vai faltar quem diga que o Lopes-Graça, morrendo aos 88 anos, tinha vivido já a sua vida. Como frase de consolação, talvez sirva para quem se satisfaça com o que lhe foi dado. Por mim, penso que nunca acabamos de viver a nossa vida.

 

30 de Novembro

Palavras iniciais da conferência que fui dar em Las Palmas, no Centro Insular de Cultura:

«Vivemos, nós os que habitamos nas Canárias, em sete jangadas de pedra erguidas pelo fogo e agora ancoradas no mar, se não contarmos uns quantos ilhéus que são como barcas orgulhosas que não tivessem querido recolher-se ao porto. Embora não creia no destino, pergunto-me se ao escrever a minha Jangada de Pedra, a outra, não estaria já buscando, sem o saber, a rota que sete anos depois me havia de levar a Lan­zarote.

«Porém, a "jangada de pedra" não é só o original e particular meio de transporte de que me sirvo para as grandes ocasiões: ela é também essa parte do mundo que nos leva e traz desde antes que pudéssemos chamar­-nos a nós próprios portugueses e espanhóis, a velha pe­nínsula carregada de história e de cultura que cometeu o prodígio de fazer-se inteira ao mar para levar a Europa aonde ela não parecia capaz de ir pelas suas próprias artes e indústria. E se, cinco séculos depois, um discre­to escritor português se atreveu a romper as amarras que nos prendem ao cais europeu, foi ainda para tentar per­suadir a Europa, e em primeiro lugar a portugueses e es­panhóis, de que já é tempo de olhar para o Sul, de respeitar o Sul, de pensar no Sul, de trabalhar com o Sul, e de que a possibilidade de um efectivo papel his­tórico dos povos da Península Ibérica no futuro depen­de da sua compreensão de que são, de um lado e do outro da fronteira, continentais, sim, mas também atlân­ticos e ultramarinos.» E acrescentei, rematando assim a introdução: «Talvez possam entendê-lo melhor que nin­guém estes sete "adiantados" da Ibéria que são as ilhas Canárias, estas sete jangadas caldeadas por dois fogos, o do céu e o da terra. Não falo aqui dos Açores portu­gueses, que quase só olham para os Estados Unidos, nem da Madeira, que não consegue saber para onde há­-de olhar...»

 

1 de Dezembro

Para o Jornal de Letras, a pedido de Leonor Nunes, umas quantas palavras sobre a morte do Lopes-Graça. Aqui retenho estas: «Morreu o querido Graça, o amigo do coração, o camarada fidelíssimo e leal. Tudo isso acabou. Sim, já sei, a recordação, a memória, a sauda­de, a lembrança. Essas coisas duram, de facto, mas, por­que duram, cansam. Um dia destes a evocação de Lopes-Graça só causará uma leve mágoa, que disfar­çaremos contando uma das suas mil vezes repetidas anedotas. Buscaremos então o Graça onde ele verdadei­ramente sempre esteve: nos seus livros, de uma lingua­gem puríssima que poderia servir de lição a escritores, principiando por este; nos seus discos, mas também nas salas de concerto, que não se lhe abriram tanto quanto deveriam enquanto viveu. O homem acabou, não pode­mos pedir-lhe mais nada, mas a obra aí ficou, à espera do que sejamos capazes de pedir a nós próprios. O jus­to juízo vem sempre depois, quase sempre tarde de mais. Talvez seja essa a causa do amargor de boca que sinto ao terminar estas linhas.»

 

2 de Dezembro

No Avante!, um excelente artigo de Pedro Ramos de Almeida: «O "protectorado" português na União Euro­peia.» O mote é dado, logo a abrir, por uma citação de Diogo Freitas do Amaral, notável pela franqueza. Diz ele: «A nossa independência nacional passou sempre, historicamente, pela colocação de Portugal sob a pro­tecção de um poder mais forte.» Em tão poucas pa­lavras não se poderia dizer melhor. Durante séculos esse poder foi a Inglaterra, depois, na sequência da Segun­da Guerra Mundial, passou a ser os Estados Unidos da América do Norte, agora é a União Europeia, ama­nhã será uma Alemanha ainda por enquanto mais inte­ressada em firmar as bases económicas e financeiras do seu futuro domínio sobre a Europa, do que fazer de­monstrações mediáticas de prestígio político, para inglês ver. Aqueles que ligeiramente vêm afirmando que a Ale­manha é um anão político ao mesmo tempo que um gigante económico, não tardarão muito a ver-se sur­preendidos pela rapidez com que esse anão vai crescer... No que a Portugal diz respeito, a diferença entre as si­tuações de dependência em que vivemos ao longo da história e esta de agora, está precisamente, ao contrário do que pretende Ramos de Almeida, em termos dei­xado de ser um «protectorado», uma vez que a Euro­pa, pelo menos visivelmente, não se encontra hoje dividida por conflitos de potências e portanto, como acontecia antes, partilhada em áreas de influência. A ameaça de perda de independência nacional é, consequentemente, mais forte do que nunca, não por efeito de qualquer tipo de absorção violenta, mas por um pro­cesso lento, de mesquinha e servil dissolução. Princi­piando com uma citação, Ramos de Almeida remata o seu artigo com outra: «Qualquer dia, Portugal já não é um país, mas um sítio. E ainda mais mal frequentado...»

Quem foi que escreveu este sarcástico e doloroso prog­nóstico? Um violento e apaixonado antieuropeísta? Um retrógrado ultramontano? Um comunista despeitado? Não senhor, não foi nenhum deles: o autor deste arra­nhão brutal na nossa consciência, se ainda a temos e para alguma coisa nos serve, foi um escritor português chamado Eça de Queiroz...

 

4 de Dezembro

Num artigo de Ângela Caires, publicado na Visão, sobre António Champalimaud, leio que o tio Henrique Sommer, em carta com valor testamentário dirigida às manas Albana e Maria Luísa, lhes recomendava que não se esquecessem de distribuir, pelo Natal, dois contos de réis à Sopa dos Pobres da Freguesia dos Anjos, de Lisboa. Naturalmente, o generoso Sommer (que em glória esteja) desejava que não sofresse mudança, depois do seu passamento, a beneficente prática que instituíra. Quem poderia imaginar que esta informação, escrita ao correr da pena, viria lançar uma luz nova sobre a mi­nha biografia secreta? De facto, não foram poucas as vezes, no tempo da adolescência, que ocupei um enver­gonhado lugar na fila de aspirantes à sopa e ao quarto de pão que se serviam naquele atarracado e soturno edifício fronteiro à Igreja dos Anjos... Mais ou menos por essa altura devo ter aprendido na aula de Física e Química da Escola Industrial de Afonso Domingues o princípio dos vasos comunicantes, mas só hoje é que consegui perceber, sem reservas mentais nem dúvidas formais, como se efectua a transmissão da riqueza e do bem-estar dos que estão em cima para os que estão em baixo, do conto de réis para o quarto de pão, da fartura para a falta. Por muitos que fossem os seus pecados, Henrique Sommer nunca ficaria no inferno, sempre ha­veria uma concha da sopa para o tirar de lá...

 

5 de Dezembro

Descansadamente, a um capítulo por dia, e às vezes menos, estou a reler, muitos anos depois da primeira vez, que ficara única até agora, o Doktor Faustus de Thomas Mann. Tudo nele me parece novo, só muito de longe em longe a memória reconhece no que vou len­do certas ideias, certas emoções, certas atmosferas cap­tadas antes, e ainda assim de um modo vago, como se a imagem que nesse tempo registei tivesse sido perce­bida através de uma névoa que não me deixasse ver mais do que contornos difusos, borrões, pressentimen­tos. Agora, a páginas tantas, ocorreu-me pensar que a leitura deste Doktor Faustus deveria ser firmemente desaconselhada a quem quer que se propusesse consa­grar-se ao trabalho de escrever, não, obviamente, porque não colhesse benefício dela, mas porque certamente, ao terminá-la, lhe cairiam os braços de desânimo, porque no silêncio da sua casa, com espelho ou sem ele diante de si, se perguntaria: «Vale a pena, depois disto?» Con­tra mim falo, que se o tivesse relido a tempo, provavel­mente escolheria outra vida. Agora já não há remédio, o mal está feito...

 

6 de Dezembro

Lido em Thomas Mann. Schleiermacher (1768­-1834), que foi teólogo em Halle, definia a religião como «o sentido e o gosto do infinito». Se Deus consegue entrar nisto, então, digo eu, entrará apenas como um conto breve, como um resumo para decorar, ou como um pedaço de barbante sucessivamente trançado, destrançado e tornado a trançar para fazermos de conta que somos capazes de atar o todo ao todo, imaginando­-lhe uns princípios e uns fins que possam dar algum significado a quem se encontra no meio de tudo, no meio do tempo, no meio do universo - nós, sem mais ins­trumento que a razão, sem mais recurso que fiar-se dela. A mim, a definição de Shleiermacher convém-me: to­dos cabemos lá dentro, os ateus e os nem tanto. O que já está claríssimo é que ninguém acredita menos em Deus que os teólogos...

 

Quanto eu gostaria de ter estado em Coimbra, na Semana Social Católica, para ouvir criticar ao Eduardo Lourenço este capitalismo que desgraçadamente nos governa. Quanto teria aplaudido palavras como estas: «O que há de novo no mundo contemporâneo não é o facto, nem mesmo o grau de inumanidade que a per­sistência da fome, da doença, da total exclusão de mi­lhões de homens [teria preferido que dissesse seres humanos] de um mínimo de dignidade ou até de hipó­tese de sobrevivência revela, mas o facto de que esse fenómeno coexiste com o espectáculo de uma civiliza­ção aparentemente dotada de todos os meios, de todos os poderes para a abolir.» Com uma violência que não está no seu natural (o que mostra a que ponto terá já chegado a sua exasperação), Eduardo Lourenço afastou a cortina beatífica dos optimismos finalistas e mostrou o que está por trás dela: o espectáculo monstruoso do mundo em que vivemos. Só não entendo o que quis ele dizer quando afirmou que «o capitalismo não cumpriu as promessas que fez décadas atrás». Que eu saiba, o capitalismo não fez nem faz promessas, nem então nem nunca, e essa, permito-me dizê-lo, é a sua honestidade, a única: não promete nada. Agora só falta que o Eduar­do Lourenço se decida a proclamar, alto e bom som, que é urgente regressar ao pensamento socialista, que não existe outro caminho que possa restituir-nos, de forma plena, ao menos satisfatória, um sentido humano, hu­mano autenticamente, de dignidade e de solidariedade. E que - digo eu agora - não devemos aceitar que a justa acusação e a justa denúncia dos inúmeros erros e crimes cometidos em nome do socialismo nos intimi­dem: a nossa escolha não tem por que ser feita entre so­cialismos que foram pervertidos e capitalismos perversos de origem, mas entre a humanidade que o socialismo pode ser e a inumanidade que o capitalismo sempre foi. Aquele «capitalismo de rosto humano», de que tanto se falou nas tais décadas atrás, não passava de uma más­cara hipócrita. Por sua vez, o «capitalismo de Estado», funesta prática dos países ditos do «socialismo real», foi uma caricatura trágica do ideal socialista. Mas esse ideal, apesar de tão espezinhado e escarnecido, não mor­reu, perdura, continua a resistir: talvez por ser, simples­mente, embora como tal não venha mencionado nos dicionários, um sinónimo da esperança.

 

7 de Dezembro

Da História do Cerco de Lisboa (1989): «[...] em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história so­bretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pin­céis [...].»

 

Do Doktor Faustus (1947): «Música e linguagem, segundo ele [Adrian Leverkühn], andavam juntas: na realidade, formavam uma coisa só: a linguagem era música, a música, linguagem, e, separadas, cada uma delas esforçava-se por chegar à outra, imitava-a, toma­va dela os meios de expressão, pois cada uma tentava substituir a outra sempre.»

O Eclesiastes tinha razão: «O que foi, ainda será; o que foi feito, far-se-á: não há nada de novo, debaixo do sol. Ninguém pode dizer: "Aqui está uma coisa nova", porque ela já existia nos tempos passados.»

 

Um pé na realidade, que é verdade provavelmente, outro pé na imaginação, que é mentira necessariamente.

 

8 de Dezembro

Reflexão depois da leitura do ensaio Il viaggio come metafora della conoscenza nel «Manual de Pintura e Caligrafia», de Roberto Mulinacci: Toda a viagem é imaginária porque toda a viagem é memória.

 

9 de Dezembro

De há uns dias para cá que anda a frequentar-me, de modo recorrente, obsessivo, um sonho que é, creio eu, uma variante de um outro que muitas vezes sonhei em tempos passados. Nessa época, o sonho consistia em estar folheando, passando sucessivas páginas impressas, muitas páginas, que eu sabia terem sido escritas por mim, mas que não conseguia ler, embora não houvesse dúvida de que se tratava de palavras portuguesas. A di­ferença, agora, é que as palavras são de uma língua que parece portuguesa, ou, melhor dizendo, no meu sonho tenho a certeza de que as palavras são portuguesas, todas elas, mas encontro-as deformadas, há letras que vejo estarem ali no lugar doutras, porém não consigo ver que palavra foi, por este processo, escondida no interior daquela que os olhos vêem. De tudo isto resulta um forte sentimento de inquietação, tantalizante, que roça a angústia, como alguém que, no limiar de uma porta, fizesse esforços contínuos para entrar, sem o conseguir... A análise mais óbvia deste sonho não deixaria de explicá-lo como consequência de eu estar vivendo rodea­do de castelhano por todos os lados, como uma ilha no centro de outra ilha, mas a curiosa verdade é que ne­nhuma dessas palavras enigmáticas me parece espanho­la. No caso de o sonho voltar, procurarei estar atento, a ver se percebo melhor o que tudo isto significa, mas o mais provável, depois do que aqui fica escrito (se os psicanalistas têm razão), é que o sonho não volte...

 

11 de Dezembro

Voando de Lanzarote para Madrid, em pleno céu, portanto em lugar bem mais propício a revelações que a confusa e mal-avinda terra onde se diz que tais coi­sas têm sucedido, sobreveio-me, não como ao Alberto Caeiro «um sonho como uma fotografia», mas a percep­ção de uma hipótese cosmogónica que me parece merecedora de alguma atenção. A minha proposição inicial, que me atrevo a considerar indiscutível, é de que Deus criou o universo porque se sentia só. Em todo o tempo antes, isto é, desde que a eternidade começara, tinha estado só, mas, como não se sentia só, não necessitava inventar uma coisa tão complicada como é o universo.

Com o que Deus não contara é que, mesmo perante o espectáculo magnífico das nebulosas e dos buracos negros, o tal sentimento de solidão persistisse em ator­mentá-lo. Pensou, pensou, e ao cabo de muito pensar fez a mulher, que não era à sua imagem e semelhan­ça. Logo, tendo-a feito, viu que era bom. Mais tarde, quando compreendeu que só se curaria definitivamente do mal de estar só deitando-se com ela, verificou que era ainda melhor. Até aqui tudo muito próprio e na­tural, nem era preciso ser-se Deus para chegar a esta conclusão. Passado algum tempo, e sem que seja possível saber se a previsão do acidente biológico já estava na mente divina, nasceu um menino, esse sim, à imagem e semelhança de Deus. O menino cresceu, fez­-se rapaz e homem. Ora, como a Deus não lhe passou pela cabeça a simples ideia de criar outra mulher para a dar ao jovem, o sentimento de solidão que havia apo­quentado o pai não tardou a repetir-se no filho, e aí entrou o diabo. Como era de esperar, o primeiro im­pulso de Deus foi acabar logo ali com a incestuosa espécie, mas deu-lhe de repente um cansaço, um fastio de ter de repetir a criação, porque de facto nem o uni­verso lhe parecia já tão magnífico como antes. Dir-se-áque, sendo Deus, podia fazer quantos universos qui­sesse, mas isso equivale a desconhecer a natureza profunda de Deus: logicamente, fizera este porque era o melhor dos universos possíveis, não podia fazer ou­tro porque forçosamente teria de ser menos bom que este. Além disso, o que Deus agora menos desejava era ver-se outra vez só. Contentou-se portanto com expul­sar as suas desonestas e mal-agradecidas criaturas, ju­rando a si mesmo que as não perderia de vista no futuro, nem à perversa descendência, no caso de a te­rem. E foi assim que começou tudo. Deus teve portan­to duas razões para conservar a espécie humana: em primeiro lugar, para a castigar, como merecia, mas tam­bém, ó divina fragilidade, para que ela lhe fizesse com­panhia.

 

12 de Dezembro

Em Roma. O Prémio União Latina foi para Vincenzo Consolo. Depois da primeira roda, em que, como era na­tural, cada membro do júri começou por votar no autor que havia proposto, tornou-se imediatamente claro que o escritor que se seguia na ordem de preferência era Consolo. Daí à unanimidade foi um passo.

 

13 de Dezembro

Conversa com alunos e professores, mais de uma centena de assistentes, no Centro de Estudos Brasilei­ros, na Piazza Navonna. Para não fugir à regra, falei de mais (passou de duas horas), mas acho que não aborreci ninguém. Maria Lúcia Verdi, a directora do Centro, comentava comigo no fim: «Que bom deve ser dizer exactamente o que pensa, sem outro cuidado que o respeito devido a quem ouve, mas sem que esse cuidado o faça calar.» Respondi-lhe que há um mo­mento em que compreendemos que todo o fingimento é infame.

 

Havendo Deus, há só um Deus. Dele, desse Deus único, é que teriam provindo as revelações que le­varam ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo. Ora, como essas revelações, quer no espírito quer na forma, não são iguais entre si (e deveriam sê-lo, uma vez que nasceram da mesma fonte), infere-se que Deus é histórico, que Deus é simples História. Por outras pa­lavras: quando a História precisa de um Deus, fabri­ca-o.

 

14 de Dezembro

Quando nos dirigíamos à Embaixada de Portugal, onde desta vez se faria a entrega do prêmio, Vincenzo Consolo disse-me que Leonardo Sciascia lhe falara um dia da estima em que tinha o meu trabalho: «A sua escrita e a sua personalidade», foram as palavras de Consolo. Fiquei muito feliz porque poderia esperar tudo menos que me dessem em Roma um prêmio assim, mas melancólico também porque Sciascia (a quem nunca encontrei) já cá não está para lhe agradecer o bom juízo que fazia de mim...

 

Decidi retirar-me do júri do Prêmio União Latina. Por nenhum motivo especial, apenas por cansaço, ou por compreender que cinco anos a decidir sobre méritos alheios tinham ido desaguar numa pergunta: «Com que direito?» Desejo ao escritor português que me substituirá uma satisfação igual à que recolhi do facto de ter representado Portugal num foro literário com tanto de discre­to quanto de sério.

 

19 de Dezembro

O mundo muda, mas menos do que parece. Vai para uns vinte e três ou vinte e quatro anos, não recordo agora se na Capital ou no Jornal do Fundão, publiquei uma crónica (um tanto sibilina como elas tinham de ser na época) a que chamei «Jogam as brancas e ganham». Nela estranhava (ou fingia estranhar) que nos problemas do jogo de damas, por baixo da representação das pe­dras no tabuleiro, sempre aparecessem essas palavras: jogam as brancas e ganham. Depois de uns quantos rodeios tácticos, destinados a levar mais convincentes águas ao meu moinho, e com uma inocência obviamente falsa, perguntava: por que é nunca se diz jogam as pretas e ganham, ou jogam as brancas e perdem? E rema­tava assim: «Uma frase numa página de jornal, meia dúzia de palavras insignificantes, impessoais - e vai­-se a ver, há nelas motivo de sobra para reflexão. Só me falta recomendar ao leitor que aplique o método no seu dia-a-dia: pegue nas palavras, pese-as, meça-as, veja a maneira como se ligam, o que exprimem, decifre o arzinho velhaco com que dizem uma coisa por outra ­e venha-me cá dizer se não se sente melhor depois de as ter esfolado...»

Tantos anos passados, continuo a pensar que às pa­lavras há que arrancar-lhes a pele. Não há outra manei­ra para perceber de que são feitas. A velha crónica veio-me à memória quando estava a ler num jornal da­qui a notícia de que Mario Conde ia ser ouvido pelo juiz instrutor do processo movido contra ele e outros ex­-administradores do Banco Espanhol de Crédito, ou Banesto, como é mais conhecido. Dizia o jornalista: «Frente a frente, durante dez ou vinte horas, Mario Conde e Manuel García Castellón vão protagonizar um desses episódios da nossa história democrática que fi­carão na retina de todos os espanhóis. Sem mais teste­munhas que o procurador Florentino Ortín, o advogado Mariano Gómez de Liafío e Teresa, a secretária...» A transcrição acaba aqui, o que se segue não interessa. As palavras que temos de esfolar são só estas. Observemos então os nomes: Mario é, claro está, quase por antonomásia, Mario Conde, Manuel não se satisfaria com ser García, é também Castellón, Florentino é indubita­velmente Ortín, Gómez de Liafio está lá para arredondar o sentido de Mariano. E Teresa? Teresa é simplesmen­te isso, Teresa, a secretária... Primeira conclusão: tratan­do-se de uma subalterna, de uma inferior «<Teresa, traga-me um café»), os apelidos são postos de lado porque complicariam a fluidez da comunicação... Mui­to bem. Puxemos agora um pouco mais a pele das pa­lavras, não nos preocupemos com o sangue que corre, este sadismo é dos bons. E se em vez de secretária fosse secretário, se em vez de mulher fosse homem? Teria o autor do artigo escrito, por exemplo, Alfonso, o secre­tário? Ou acrescentar-lhe-ia os apelidos todos, como a homem se deve?.. Meditemos, irmãos.

 

20 de Dezembro

Não sei se diga. Não sei se diga que vim a Paris, não sei se diga que participei pela primeira vez na assembleia da Academia Universal das Culturas e que nela botei fala crítica, tão protestativa quanto dorida­mente patriótica. Se digo, que dirão? Que não devia dizer, que deveria ter dito outra coisa, tudo menos que fui a Paris e que me receberam na Academia, aquela. Portanto não digo que infelizmente Jorge Amado não estava, mas que estavam, entre outros de que não tinha notícia anterior, Elie Wiesel, Umberto Eco, Wole Soyinka, Paul Ricoeur, Jacques Le Goff, Ismail Kadaré, Jorge Semprun. Também não digo que conheci com gosto e proveito o libanês Amin Maalouf, o tunisino Mohamed Talbi, o israelita Joseph Ciechanover, uns tantos outros de aqui e de além, de que não farei men­ção para não alongar mais o que não digo. Limitar-me­-ei a dizer umas quantas palavras daquelas que não disse:

«Quando se pede a um português uma definição breve do seu País, as explicações previsíveis, pondo de parte alguma diferença de pormenor, são, invariavel­mente, duas: a primeira, ingénua, optimista, proclamaráque jamais existiu, debaixo do Sol, outra terra tão no­tável e tão admirável gente; a segunda, pelo contrário, corrosiva e pessimista, nega essas sublimadas excelên­cias e afirma que, últimos entre os últimos no continente europeu desde há quatro séculos, nessa situação ainda hoje nos comprazemos, mesmo quando protestamos dela querer saIr.

«Procuram os optimistas encontrar em tudo razões para que os Portugueses possam vangloriar-se duma identidade, duma cultura, duma história alegadamente superiores, como se História, Cultura e Identidade, qual­quer que seja o grau de comparabilidade recíproca ad­missível, não fossem radicalmente inseparáveis, em causa e efeito, da própria relação social, conflitiva ou harmoniosa, dos seres humanos no tempo.

«Já os pessimistas, propensos, em geral, a uma per­cepção relativizadora dos factos, afirmam que a Histó­ria e a Cultura portuguesas, projectadas na época dos Descobrimentos em todas as direcções do globo, não foram, depois deles, e hoje, no limiar de integrações de todo o tipo que se anunciam arrasadoras, igualmente não parecem, essa História e essa Cultura, bastante sólidas para defender, preservar e intensificar a identidade de um povo que, com demasiada frequência, cai na simpleza de gabar-se de viver dentro das mais antigas fronteiras da Europa, como se o facto, inegável, se de­vesse exclusivamente a méritos próprios, e não, como a História ensina, aos acasos da geografia e à evidente      insignificância estratégica da região.»

Também não disse:

«Ao longo de quatro séculos vivemos o que poderia denominar-se a expressão endémica duma subalternidade estrutural, atravessada por surtos agudos de intervenção estrangeira directa, como foi o caso do pró-consulado de William Beresford, o general inglês que foi para Por­tugal em 1809, com a missão de reorganizar o exército desmantelado em consequência da primeira invasão na­poleónica, e que no país se manteve até 1820, exercendo um poder que foi, primeiro, rigoroso, depois abusivo, e finalmente ditatorial. Do mesmo nosso aliado britânico viria mais tarde, em 1890, a brutalidade e a humilhação do Ultimatum, sem dúvida um episódio menor no qua­dro mundial das disputas coloniais da época, mas que se configurou como ocasião para uma daquelas erupções de passionalidade patriótica com que, de longe em lon­ge, procura equilibrar-se vitalmente a habitual passivi­dade portuguesa. Chegou-se ao ponto de promover uma subscrição nacional para a compra de navios de guerra, a qual, sendo tão escassos os recursos do País, não deu para mais que a aquisição de um cruzador, construído em Itália, que entrou em Lisboa sete anos depois. Ti­nha razão Antero de Quental quando escreveu, no meio do mais indignado ardor das manifestações públicas, estas lúcidas e implacáveis palavras que deveriam ter­-nos servido de lição para o futuro: "O nosso maior ini­migo não é o inglês, somos nós mesmos...".»

Igualmente não disse:

       «Acabados de sair duma longa e traumatizante guerra colonial, teria sido desejável que os Portugueses tivessem podido pensar sobre si mesmos, examinando o seu passado e o seu presente, para depois, pelos cami­nhos de uma consciência criticamente nova, acertarem o passo com a Modernidade, sendo, porém, primeira condição desse ajuste novo o apuramento e desenvolvi­mento de mais amplas capacidades de auto-regeneração, e não a simples adopção, voluntária ou forçada, de modelos alheios que, no final das contas, já demasiado o sabemos, muito melhor servem a alheios interesses.

«Porém, a História tinha pressa, a História não po­dia esperar que os Portugueses parassem para pensar em si mesmos, fazendo algo parecido com um exame do seu sentido histórico, num trabalho sério de reflexão colectiva que lhes permitisse identificar claramente as causas estruturais, mas também ideológicas e psicológi­cas, da sua tendência a aceitarem ser, como por uma espécie de determinismo congénito, um parceiro menor, e de certa maneira nisso se satisfazerem, talvez porque essa subordinação lhes permite, por um lado, exercitar a paixão da lamentação e do protesto contra as constan­tes incompreensões e injustiças dos poderosos, paixão essa acrescida de um fechar-se em si mesmos a que chamam orgulho nacional, e, por outro lado, persistir em interpretações messiânicas do destino português, actua­lizando-as e adaptando-as, melhor ou pior, às novas rea­lidades exteriores.

«Bastará recordar a Mensagem de Fernando Pessoa, agora retomada por novos visionários de todas as ida­des, porventura de uma maneira menos primariamente "patriótica", dificilmente adoptável por aqueles outros, os pragmáticos, que se preocupam, sobretudo, com de­corar e repetir, como se seu fosse, o discurso europeu oficial, abandonando, .por antiquados, os sonhos pes­soanos de um império espiritual português, excepto nos casos em que tal discurso se mostre ainda ideologica­mente vantajoso para uso interno, ainda assim muito mais com o objectivo de ornamentar com citações lite­rárias a banalidade da nova retórica política do que por convicta adesão a esses retardados messianismos.»

O que vem a seguir também não foi dito: «Interessante, porém, será observar como uns e outros, os visionários e os pragmáticos, coincidem numa visão finalmente providencialista: enquanto os primeiros teimam em colocar num tempo sucessivamente adiado a Hora em que Portugal se achará a si mesmo, os outros, prosseguindo um percurso mental semelhante, colocam as suas esperanças nas benesses materiais da União Europeia, graças ao que, com mínimo esforço próprio e como por um efeito mecânico de «arrasta­mento», consequência do processo integrador geral, to­dos os problemas portugueses se acharão resolvidos, com as evidentes vantagens do dinheiro fácil, do curto prazo, das datas à vista, em lugar da infinita espera de um infinito futuro.

«Tudo considerado, creio poder dizer-se, quanto aos primeiros, que lhes é bastante indiferente o que Portu­gal venha a ser, desde que seja (mesmo apresentando­-se tão pouco nítido o ser que é possível deduzir das suas nebulosas especulações); quanto aos segundos, tão­-pouco essa questão lhes parece importante, porque, não tendo uma ideia precisa do que Portugal poderia ser, estão decididos a transformá-lo noutra coisa o mais depressa possível, e, sendo tão faltos de imaginação criadora, não serão capazes de fazer melhor que pagar, por qualquer preço, o modelo europeu prêt-à-porter, onde o corpo português terá de entrar, com jeito ou à força, consoante as exigências de cada momento, redu­zindo-o no que sobrar ou esticando-o até à completa ruptura social e cultural.»

E finalmente não disse:

       «Portugal não foi capaz, até hoje, nem parece pre­parado para o fazer, de definir e executar um projecto nacional próprio, obviamente enquadrável, sendo as coisas o que são, na União Europeia, mas não exclusi­vamente tributário dela, porquanto urna definitiva dependência económica (ressalvando o que na palavra definitivo há de demasiado categórico) não deixará de acarretar uma dependência política e cultural não menos definitiva. O que, no decorrer dos tempos, foi começa­do por incipientes interesses dinásticos, depois continua­do por razões imperiosas de estratégia militar, será inevitavelmente consolidado pela lógica de ferro dos condicionamentos políticos e culturais que resultarão duma organização planificada, não só da produção e da distribuição, mas também do consumo...

«Não parecem estas evidências perturbar excessiva­mente os governantes europeus. Menos ainda, talvez, os governantes portugueses, se tenho em conta a resposta dada por um deles - hoje festejado comissário da União Europeia -, ao serem-lhe apontados os perigos duma diminuição da soberania nacional por efeito da aplicação do Tratado de Maastricht: "Ainda no século passado, um governo português não chegou a tomar posse por a isso se ter oposto o almirante duma esqua­dra inglesa fundeada no Tejo..." E sorriu ao dizê-lo, provavelmente porque, a partir de agora, as ordens, fe­rindo ou não a legitimidade dos governos e a dignida­de dos povos, vão passar a ser dadas por um civil - e de Bruxelas.»

Realmente, não sei se diga. É que teria de dizer que vim a Paris, que vim à assembleia da Academia Uni­versal das Culturas, e isso já se sabe que não pode ser dito. Não faltaria mais.

 

22 de Dezembro

Chegou a revista mexicana Plural, aquele anuncia­do número sobre o autor dos Cadernos de Lanzarote e outras obras. Registar o facto dá-me a ocasião de agra­decer publicamente a quantos nela escreveram (do Mé­xico, de Espanha, do Uruguai, do Brasil, de Portugal), a saber, pela ordem por que aparecem publicados os textos respectivos: Adrián Huici, Saúl Ibargoyen, José Manuel Mendes, Fernando Venâncio, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Eduardo Lourenço, E. M. de Melo e Castro, Rodolfo Alonso, Ángel Crespo, Fennín Ramírez e Claudia San Román. Durante horas, ou dias, ou sema­nas, estas pessoas andaram a pensar no autor dos Ca­dernos de Lanzarote e depois escreveram sobre ele, neste caso para dizerem bem. Quanto lhes agradeço. Neste momento não encontro melhor modo de expres­sar-lhes a minha gratidão que passar para aqui os ver­sos de uma canção espanhola recentemente ouvida:

 

El amor es una barca

Con dos remos en la mar

Un remo lo mueven mis manos

Otro lo mueve el azar

 

Quem diz amor, também diria obra ou vida. Escre­ver sobre o que outro escreveu é, quase sempre, um acta de amor, e mesmo quando a tinta é, ou parece que seja, a do ódio, provavelmente, se bem procurássemos, encon­traríamos lá no fundo uma certa porção de amor que a inveja e o despeito acabaram por aniquilar. Neste Plu­ral está o meu remo - obra, vida - remando tão a direito quanto sabe e pode, e está também o remo de el azar, esse acaso feliz que trouxe à minha existência tantos e tão inteligentes, tão sensíveis amigos.

 

23 de Dezembro

Recebo três exemplares do livro de Francisco Um­bral, Madrid 1940, para o qual escrevi a introdução que passo a transcrever, tentado pela ideia de que, juntando a tiragem dele à tiragem destes Cadernos, quase atin­giremos as estrelas... Eis o que digo:

«Espanha tem mil portas, muitas mais que as do castelo do Barba-Azul, que não passavam de sete.

Mas, assim como à humanidade talvez fosse possí­vel compendiá-Ia em uma pessoa única, a partir da qual, depois, invertendo taumaturgicamente a opera­ção, voltaríamos a encontrar a multiplicidade inicial, também essas mil portas de Espanha, malha labirín­tica por excelência, poderiam ser convertidas nas sete portas simbólicas do conto de Perrault, atenuado ou não o seu horror final pelas revisitações do mito. Mil ou sete elas sejam, as portas de Espanha abrem-se, uma após outra, para o sangue, para as armas, para os tesouros, para as rosas, para o sol deslumbrante, para as lágrimas, para a sombra. Dir-se-á que destas contradições, relativamente suportáveis no quotidia­no, agónicas nas crises, se fez e faz a história de todos os povos, não apenas a de Espanha. Assim é, mas as medidas de Espanha oscilaram sempre entre o excel­so e o terrível, como um pêndulo que parecesse im­placável simplesmente por não poder escolher outro caminho.

«Este livro de Francisco Umbral, romance de um acontecido ou reinvenção literária de factos, escancara com violência, como quem desbridasse uma chaga para atingir o fundo do mal, a mais trágica porta da Espa­nha moderna: a guerra civil. Que o título da obra não nos iluda ao parecer situar-nos, temporalmente, no ano seguinte ao do termo do conflito, e, localmente, no mar­tirizado Madrid. A verdade das páginas de Umbral éoutra: a guerra não acabou, a guerra vai continuar, abrange toda a Espanha e não apenas um espaço habi­tado entre Fuencarral e Carabanchel. Os bombardeiros descansam no chão, as bandeiras recolheram a quartéis, mas a guerra prossegue, uma guerra larvar, de extermí­nio insidioso, lento, que procede as mais das vezes a ocultas, escondendo-se em câmaras abomináveis de tor­tura, por trás de portas que só se abrem para deixar entrar e sair a morte.

«Um tal ajuste de contas, frio, cruel, para ser meto­dicamente desenvolvido, necessitava um novo prota­gonista: o delator. Esses seres, feitos de abjecção, inveja e ódio, herdeiros e continuadores de um espírito in­quisidor que sempre prosperou na Península Ibérica, tinham já feito o seu trabalho sujo durante a guerra, mas agora, quando a linha da frente deixou de sepa­rar os combatentes, quando os uniformes e as insíg­nias, por serem todos do mesmo lado, o dos vencedores, deixaram de servir para distinguir os "maus" dos "bons" eis que se oferecia, de par em par, repleto de promes­sas de triunfo social e seduções de poder, o campo de acção do delator ideológico, ou simplesmente vingativo, ou ambicioso simplesmente. Que obscuras razões, porém, terão levado Francisco Umbral a escolher para desempenhar o miserável papel de delator "disposto a tudo" um aspirante ao exercício das letras, com al­gumas provas dadas em jornais da província - não sabemos. É certo que para o seu Mariano Armijo, re­gressado a Madrid depois de ter vivido a guerra "em zona nacional e tranquila", tanto se lhe dava, em prin­cípio, vir a instalar-se em jornais como em repartições, em editoriais como em esquadras de polícia - mas, tendo começado por exercitar-se em um pouco de tudo, não tardará a encontrar a sua autêntica vocação: de­nunciante pela pena. Umbral, conhecedor completo das teias mortais em que se enreda a vida, busca entender a personagem. Identifica as causas da sua perversão, enumera-lhe os desvios, expõe o itinerário das suas fragilidades (sem esquecer aquelas que, apesar de tu­do, são ainda selo de humanidade) - mas o juízo final não é por isso menos implacável: nenhum delator me­rece perdão, a nenhum será lícito conceder a graça do olvido.

«Esta história do contínuo rebaixamento de um es­pírito que atinge o último grau de baixeza ao servir-se cientemente dos demais, creio tê-la escrito Francisco Umbral como um protesto contra o esquecimento, contra o que chamamos "a curta memória dos povos". Os fac­tos estão aí, tão trágicos em si mesmos que o roman­cista quase poderia ter-se limitado a encadeá-los numa intriga linear que desse satisfação mais ou menos ló­gica às expectativas do leitor. Ora, nem a intriga é li­near, nem a linguagem - o estilo incomparável de Umbral - se contentou com ser o mero suporte de um curso narrativo. Esse ninho de escorpiões entrelaçados, mordendo-se uns aos outros, que foi a primeira Espailha franquista, encontrou em Francisco Umbral um ana­lista corajoso e frontal: que ninguém se atreva agora a dizer "não sabia", ou "sim, ouvi falar, mas são histó­rias que pertencem ao passado". Puro engano. Por muito que possa doer àqueles que ainda se obstinam em confiar que um dia se há-de humanizar a espécie a que pertencemos, Mariano Armijo é imortal. Não o esque­çamos.»

 

24 de Dezembro

Santana Lopes saiu do governo, transferiu-se para a reserva de candidatos a futuros chefes. Pergunto-me que terei eu que ver com estes novelos, se vivo em Lan­zarote? De facto, a notícia nem me aqueceu nem me arrefeceu. Sejam quais forem as suas causas, esta demis­são não muda nada. Dos políticos que continuam, den­tro do governo ou que o governo apoiam, começando por Cavaco Silva (de quem se diz que também está de malas aviadas, o que me parece história-da-carochinha), é justificado dizer que uns serão mais Santanas que Lopes e outros mais Lopes que Santanas, mas todos são Santana Lopes...

 

25 de Dezembro

Há cerca de um mês apareceu-nos aqui outro cão, uma cadela terrier de Yorkshire, de raça pura. Não sabemos donde veio, até agora não apareceram a reclamá-la, apesar de termos informado imediatamente a polícia e a associação protectora de animais. Pepe começou por recebê-la com desconfiança, perplexo diante do tamanho diminuto da intrusa, depois confun­dido pelas liberdades e descaros que ela desde logo pas­sou a permitir-se, como se a casa fosse sua. Agora começa a olhá-la com um ar que eu classificaria de re­signada benevolência, suponho que disposto a esperar que ela venha a tomar-se naquilo que ele já é: um cão sério, maduro, ciente do seu papel de guarda e protec­tor da família. Ora, disse Marga, a veterinária, que a cadelinha ainda não fez um ano, portanto Pepe terá de esperar... Ou não. Algo me diz que a cadela não ficará connosco. Mais dia menos dia aparecem-nos aí os do­nos: um bichinho destes vale cento e cinquenta contos, não é nenhum desperdício. Esse não foi o caso de Pepe, evidente produto de uma irregularidade de acasalamento. Pepe, quando nos apareceu, era um cão infeliz, abando­nado. Esta fulana não, impertinente, irresponsável, ou se perdeu, ou fugiu. E tanto se lhe dá que os donos cho­rem o dinheiro perdido e o amor transviado, o que ela quer é que lhe cocem a barriga.

 

26 de Dezembro

Dizem-me que em Nápoles há o costume, não sei se de sempre ou destes dias, de mandar vir um café e pa­gar mais do que se tomou. Por exemplo, quatro pessoas entram, sentam-se, pedem quatro cafés e dizem: «E mais três em suspenso.» Passado um bocado aparece um pobre à porta e pergunta: «Há por aí algum café em suspenso?» O empregado olha o registo dos adiantados, a verificar o saldo, e diz: «Há.» O pobre entra, bebe o café e vai-se embora, suponho que agradecendo a carida­de. A mim, parece-me isto bem. Trata-se de uma solida­riedade barata, é certo, mas se este espírito se fortalece acabaremos por ir ao restaurante e pagar dois almoços, entrar numa sapataria e pagar dois pares de sapatos, comprar um frango e deixar dois pagos, e tudo na mes­ma conformidade. Aliás, parece que não iremos ter ou­tro remédio. Como o Estado cumpre cada vez menos e cada vez pior as suas obrigações para com os cidadãos, caberá a estes tomar conta da sociedade antes que nos tornemos todos, excepto os ricos e riquíssimos, em po­bres de pedir, e portanto sem ninguém que nos pague um cafezinho.

 

27 de Dezembro

O meu último acto como presidente da Assembleia Geral da SPA (que o sou até 31 de Dezembro) deve ter sido este de enviar aos quatro principais partidos espa­nhóis (Partido Socialista Obrero Espanol, Partido Popu­lar, Izquierda Unida e Convergencia i Unió) uma carta pedindo que não seja aprovada nas Cortes uma propos­ta de emenda à Lei de Propriedade Intelectual apresen­tada pelo PP e por CiU no sentido de a comunicação de emissões de rádio e televisão em lugares públicos ser isenta do pagamento de direitos. PP e CiU pretendem, desta maneira, lançar às malvas a Convenção de Berna, de que a Espanha é signatária. Caso as Cortes espanho­las venham a aprovar a desastrosa emenda, e conside­rando quão facilmente prosperam os maus exemplos, não tardará muito que o precedente contagie Portugal, onde a Procuradoria-Geral da República continua a abundar em idêntico e aberrativo parecer. Felizmente os tribunais portugueses têm decidido até agora pelo aca­tamento da Convenção. A votação nas Cortes está marcada para hoje e já leva voto favorável do Senado. Temo bem que, graças à gula de eleitores do Partido Popular e de Convergencia i Unió (porque é disso que se trata, nada mais), os bares, cafés, restaurantes, hotéis, etc., tenham saído vencedores. Entre os votos, aliás sem­pre duvidosos, de uns quantos artistas e compositores e os da multidão daqueles que virão a lucrar com a emen­da, os partidos proponentes acharam que a escolha era óbvia, fácil e conveniente. Resta saber como se teriam comportado PSOE e Izquierda Unida. Foram lidas as cartas? Duvido. E se foram, que atenção lhes deram? Calculo que pouca... Tanto mais que eu não voto em Es­panha.

 

29 de Dezembro

A emenda não passou. Por escassa diferença de vo­tos, é certo, mas não passou. A «maioria de esquerda», a tal que existe, mas não funciona, funcionou desta vez...

 

30 de Dezembro

Tenho andado, nestes dias, a esforçar-me por dar suficiente satisfação à correspondência que recebo, sa­bendo de antemão que os resultados, como de costume, irão ficar aquém dos desejos, o mesmo que querer es­vaziar o mar com um balde... Com quase dois meses de atraso consegui responder hoje a uma carta de um lei­tor alemão que vive em Portugal. O que eu lhe escrevi importa pouco, não vale a pena passá-lo para aqui, mas a carta dele, sim, é-me gratíssimo transcrevê-la. Não tem mais erros de ortografia nem mostra mais dificuldades de expressão do que teriam e mostrariam as cartas de alguns milhões de portugueses... Reza assim:

«Cinco minutos antes lia o seu artigo na revista Merian de Alemanha. [Trata-se de um texto crítico so­bre a vida portuguesa que ali publiquei em 1993.] Posso assinar este artigo absolutamente! Oh, desculpe esquecia de apresentar-me. Chamo-me Tom Hamann, sou Alemão e vivo em Portugal um Ano e meio agora. Gosto muito o país. Porquê? Não sei. É um sentimento soo Foi por aqui primeira vez com dezasseis anos e tenho um senti­mento muito mais forte por Portugal do que por Alema­nha. Agora provo fazer uma vida aqui junto com minha mulher (ela é de Suíça). Moramos em umas tendas sobre um tereno de amigos Portugueses. Fazemos trabalhos pequenos (limpar, pintar etc.) e também negoçios peque­nos (vendemos cousas nas feiras etc.). Chega? Chega!

«O seu artigo desenha um quadro muito exacto do situaçao aqui em Portugal. Sento e penso mesma cousa. É uma pena! Conheco o Portugal agora por quize anos e o país já muda muito! Europa vai matar a identidade e o curaçao de Portugal. Dinheiro, negoçio e burrograçia não fazem a vida, mas matam os sentimentos e os sonhos. Não sei quando o senhor tem interessa para os meus sentimentos, mas tinha escrever isto. Pinto um bocadinho só para me, e porque lia o seu artigo agora vo mandar umas fotografias de os meus quadros. Quan­do o senhor gosta, tenho muito prazer! Boa sorte e ener­gia para você, e faça favor nunca fecha a boca? Obrigado.»

Eu é que agradeço, Tom Hamann. E prometo-lhe que não fecharei a boca...

 

31 de Dezembro

Escrevo entre as 12 da noite e as 12 da noite. A Pe­nínsula já entrou em 1995, aqui ainda nos restam vinte minutos de 1994 para viver. Em Canárias não fazemos as coisas por menos: necessitamos vinte e quatro bada­ladas para passar de um ano a outro. Os amigos que vieram de Portugal e de Espanha olham desconfiados os relógios, por pouco dirão que não sabem onde se encon­tram. De um deles, Javier Ryoio, sociólogo e escritor, sei eu que dormiu há dez anos no Hotel Bragança, de Lisboa, na cama que foi de Ricardo Reis. O tempo é uma tira de elástico que estica e encolhe. Estar perto ou longe, lá ou cá, só depende da vontade. Na Península já se apagaram os fogos-de-artifício. A noite de Lan­zarote é cálida, tranquila. Ninguém mais no mundo quer esta paz?

 

                                                                                José Saramago  

 

                      

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