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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADFAEL 1 / Um Beneditino Raro
CADFAEL 1 / Um Beneditino Raro

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O Irmão Cadfael nasceu de repente e inesperadamente quando estava praticamente com sessenta anos, maduro, experiente, completamente armado e tonsurado há dezessete anos. Emergiu como o protagonista necessário quando tive a ideia de criar um enredo para um “policial” a partir da história verdadeira da Abadia de Shrewsbury, no século doze, e precisei do equivalente medieval de um detetive, observador e agente da justiça, no centro da ação. Na altura não fazia ideia do que estava a lançar no mundo, nem do mentor exigente a que estava a submeter-me. Tão pouco pretendia fazer uma série de livros sobre ele; na verdade, em seguida escrevi imediatamente um romance policial moderno, e só voltei para o século doze e para Shrewsbury quando deixei de conseguir resistir à tentação de fazer outro livro sobre o cerco de Shrewsbury e o massacre da guarnição pelo rei Stephen, que aconteceu pouco depois da expedição anterior a Gales para trazer de volta as relíquias da Santa Winifred (Um Gosto Mórbido por Ossos, Publicações Europa-América) para a sua Abadia. Daí em diante, o Irmão Cadfael estava bem lançado, e não podia recuar.

Como a ação no primeiro livro se passou quase toda em Gales, e mesmo nos livros que se seguiram vagueou livremente de um lado para o outro da fronteira, tal como sempre aconteceu na história de Shrewsbury, Cadfael tinha de ser galês, e de se sentir muito à vontade na sua terra. O seu nome foi escolhido por ser tão raro que só consegui encontrá-lo uma vez na história do País de Gales, e mesmo nesse caso desaparece quase tão depressa como é dado no batismo. Santo Cadog, contemporâneo e rival de São David, um santo poderoso em Glamorgan, foi batizado com o nome de Cadfael, mas parece ter sido sempre “conhecido “familiarmente”, como diz Sir John Lloyd, como Cadog. Um nome de que o santo parece não ter precisado mais, e que, tanto quanto sei, não aparece em mais lado nenhum, parecia o nome perfeito para o meu homem. Não se pretendia qualquer implicação de santidade, embora, na verdade, quando afrontado Santo Cadog parece ter-se comportado com a ferocidade implacável da maior parte da sua espécie, pelo menos na lenda. O meu monge tinha de ser um homem de vasta experiência mundana e com um fundo inesgotável de tolerância resignada pela condição humana. O seu passado de cruzado e marinheiro, com todos os seus entusiasmos e desilusões, foi mencionado desde o início. Só mais tarde os leitores começaram a interrogar-se e a querer conhecer a sua vida passada errante, e como e por quê se tinha tornado monge.

Por motivos de continuidade, não quis recuar no tempo e escrever um livro sobre os seus dias de cruzado. Seja qual for a verdade da história, toda a sequência de romances prossegue inexoravelmente estação a estação, ano a ano, numa tensão progressiva que não quis quebrar. Mas quando tive a ocasião de lançar um olhar para trás através de um conto e desvendar a sua vocação, não desperdicei a oportunidade.

Portanto, aqui está ele, não um convertido, pois não se trata de uma conversão. Numa era de fé relativamente pouco complicada, ainda não obcecada e atormentada por conflituosos cismas, seitas e políticos, Cadfael foi sempre um crente incondicional. O que lhe acontece na estrada para Woodstock é simplesmente a aceitação de uma revelação interior de que a vida que viveu até então, ativa, móvel e muitas vezes violenta, chegou ao seu fim natural, e é confrontado com uma necessidade nova e um desafio diferente.

Na Índia, não é invulgar um homem que possuiu grande poder e riqueza despojar-se de tudo quando chega a uma certa idade - reconhecível para ele quando vem não por datas e tempos, mas por uma certeza interior -, vestir o manto amarelo de um sannyasi, e seguir sem nada a não ser uma taça de mendigo, e encontrar-se ao mesmo tempo no mundo e fora dele.

Dada a diferença de clima e tradição entre o manto cor de açafrão e o volumoso hábito preto, o solitário na vastidão do seu claustro, e a parede a fechar-se de repente e a abraçar o viajante em metade do mundo, é mais ou menos o que Cadfael faz ao entrar na Ordem de São Benedito na Abadia de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury.

Subsequentemente, de vez em quando e sempre que pensa ter bons motivos, pode infringir as regras. Nunca transgredirá contra a Ordem, e nunca a abandonará.

 

 

 

 

           UMA LUZ NA ESTRADA PARA WOODSTOCK

A corte do rei não estava com pressa para regressar a Inglaterra, naquele final de Outono de 1120, embora a luta, de certa forma descontínua naquelas últimas fases, já tivesse terminado há muito, e a paz tivesse sido selada com um casamento real. O rei Henrique tinha concluído com sucesso os seus dezesseis anos de intrigas, lutas e manipulações pacientes, astutas e implacáveis, e podia agora sentar-se muito satisfeito no seu trono, senhor não apenas da Inglaterra mas também da Normandia. Aquilo que o Conquistador (Referência a Guilherme, o Conquistador, duque da Normandia que em 1066, ao vencer a famosa batalha de Hastings contra os saxões, termina com o domínio escandinavo da ilha, bem como com a supremacia saxónica e faz do seu reino o eterno rival do reino de França N.E.) tinha insensatamente repartido em duas parcelas separadas pelos dois filhos mais velhos, o filho mais novo tinha agora reunido novamente e juntado num único reino. Não sem uma mão para retirar da luz do dia, diziam alguns, os dois irmãos, um dos quais tinha sido enfiado apressadamente numa sepultura sob a torre em Winchester, enquanto o outro era agora prisioneiro em Devizes, e não era previsível que voltasse a ser visto novamente pelo mundo exterior.

A corte podia dar-se ao luxo de desfrutar da vitória, enquanto Henrique afinava os últimos pontos fracos que ainda precisavam de ser tornados seguros.

Mas a sua frota estava já a preparar-se em Barfleur para a viagem de volta a Inglaterra, e ele estaria em casa antes do fim do mês. Entretanto, muitos dos barões e cavaleiros que tinham lutado as suas batalhas estavam a retirar com os seus contingentes e a dirigir-se para casa, e entre eles um Roger Mauduit, que tinha uma esposa jovem e bela à sua espera, certos assuntos legais em mente, e vinte e cinco homens para enviar para Inglaterra por barco, a maioria dos quais seriam pagos à chegada.

Havia um ou dois entre a miscelânea de ralé que ele tinha recrutado ali na Normandia em nome do seu senhor que valeria a pena manter ao seu serviço, juntamente com os poucos homens que eram seus serviçais, pelo menos até estar em casa em segurança. O clérigo vagabundo transformado em soldado, fosse um padre sem batina ou o que quisesse, era um excelente copista e um profundo conhecedor de Latim, e podia pôr os documentos legais na sua melhor e mais apresentável forma, a tempo das cortes em Woodstock. E o homem de armas galês, embora fosse muito rude e insubordinado, também era experiente e perito em armas, e homem de palavra, uma vez dada, e profundamente confiável em qualquer situação em terra ou mar, pois tinha uma longa prática nos dois elementos. Roger estava plenamente consciente de que não era grandemente amado, e tinha pouca fé quer no valor quer na lealdade dos seus próprios homens. Mas este galês de Gwynedd, em Antioquia e Jerusalém e só Deus sabe onde mais, tinha assimilado o código de armas e usava-o como uma segunda pele. Com ou sem amor, providenciava o serviço que lhe era pedido.

Roger fez a proposta a ambos quando os seus homens estavam a embarcar em Barfleur, no meio de um Novembro enganadoramente plácido, e num mar calmo.

- Gostava que os dois me acompanhassem para o meu senhorio de Sutton Mauduit em Northampton, quando desembarcarmos, e ficassem a meu soldo até uma certa pendência legal que tenho contra a abadia de Shrewsbury estar resolvida. O rei pretende ir a Woodstock quando chegar a Inglaterra, e estará lá para presidir ao meu caso no vigésimo terceiro dia deste mês. Ficais ao meu serviço até esse dia?

O galês disse que sim, até esse dia ou até o caso ficar resolvido. Falou com indiferença, como uma pessoa que não tem nada de importante para fazer em lado nenhum no mundo para o puxar noutra direção. Northampton era um lugar tão bom como outro qualquer. Tão bom como Woodstock. E depois de Woodstock? Porquê algum sítio em especial? Não havia qualquer luz identificável a chamá-lo para algum lado, para alguma estrada. O mundo era vasto, agradável e cheio de sabor, mas sem marcas de sinalização.

Alard, o clérigo maltrapilho, hesitou, coçou a espessa cabeleira de cabelos grisalhos, e por fim também disse que sim, mas como se algum desgosto vago o empurrasse para outra direção. Significava pagamento por mais alguns dias, não podia dar-se ao luxo de dizer que não.

- Teria ido com ele de melhor vontade - disse ele mais tarde, quando estavam ambos encostados à balaustrada, a observar a linha azul baixa da margem inglesa a erguer-se de um mar plácido - se ele tomasse uma estrada mais a oeste.

- Porquê? - perguntou Cadfael ap Meilyr ap Dafydd. - Tens parentes no ocidente?

- Tive em tempos. Já não tenho.

- Mortos?

- Fui eu que morri. - Alard levantou os ombros fortes num encolher desamparado, e sorriu. - Tinha cinquenta e sete irmãos, e agora não tenho nenhum. Começo a sentir a falta dos meus familiares, agora que passei dos quarenta. Nunca lhes dei valor enquanto era jovem. - Olhou de esguelha para o companheiro e abanou a cabeça. - Eu era um monge de Evesham, um oblatus, oferecido a Deus pelo meu pai quando tinha cinco anos. Aos quinze anos já não conseguia suportar viver a minha vida num único lugar, por isso fugi. A estabilidade é um dos votos que fazemos... contentarmo-nos com a nossa morada, e sairmos apenas quando nos ordenam. Aquilo não era para mim, não naquela altura. Eles chamam vagus ao meu tipo... mentes frívolas que têm de vaguear. Bem, Deus sabe que eu já vagueei de mais no meu tempo. Começo a recear nunca mais conseguir estar quieto.

O galês cobriu-se com a capa para se proteger do vento gelado.

- Anseias um regresso?

- Até mesmo os marinheiros têm de acabar por lançar a âncora em algum lado - disse Alard. - Eles receber-me-iam se eu voltasse, tenho consciência disso. Mas há aquilo da penitência, que paga todas as dívidas, e deixa a pessoa livre de pecado. Eles encontrariam um lugar para mim, depois de eu ter pago. Mas não sei... não sei... O vagus ainda está em mim. Estou dividido.

- Após vinte e cinco anos - disse Cadfael -, mais um ou dois meses de calma reflexão não poderão fazer mal. Copia os papéis dele e pensa no teu caso até este assunto estar resolvido.

Eram praticamente da mesma idade, embora o monge renegado parecesse dez anos mais velho, e muito estragado pelo mundo que cobiçara do interior do claustro. Nunca lhe tinham pago bem em valores ou equipamento, pois andava descalço e era magro, mas em sabedoria tinha recebido salários justos. Agora soldado, depois escrivão, e também moço de estrebaria, qualquer trabalho que lhe vinha parar às mãos, até pôr as mãos em quase tudo aquilo que um homem forte podia fazer. Disse que tinha visto a Itália para sul, até Roma, servira em tempos sob as ordens do conde da Flandres, atravessara as montanhas para a Espanha, sem se manter em sítio nenhum durante muito tempo. Os seus pés ainda eram vigorosos, mas a mente cansara-se da estrada.

- E tu? - perguntou ele, a olhar para o companheiro, que conhecera nesta última campanha, fazia já um ano. - Tu próprio és um pouco vagus, a avaliar pelos teus relatos. Todos aqueles anos em cruzada e a lutar contra corsários no Mediterrâneo, e ainda não te fartaste, e tens de atravessar novamente o mar para ser ferido na Normandia. Não tinhas nada melhor, depois de regressares a Inglaterra, a não ser alistares-te de novo nesta confusão de guerra? Não há nenhuma mulher que te desvie o pensamento da luta?

- E quanto a ti? Livre do claustro, livre dos votos!

- Não sei porquê - disse Alard, ele próprio intrigado -, mas nunca vi as coisas assim. Uma mulher aqui e ali, sim, quando estava com os calores, e havia uma mulher por perto e disposta, mas casamento e esposa... nunca me pareceu que tivesse direito a isso.

O galês fincou os pés no convés que balançava levemente e observou a costa distante a aproximar-se cada vez mais. Era um homem entroncado, robusto e musculoso, de cabelos castanhos e pele bronzeada pelos sóis do oriente e pela vida ao ar livre, bem vestido com um casaco de pele e bom tecido, e bem armado com espada e punhal. Um rosto bastante agradável, de feições fortes, com os ossos largos da sua raça - quando era novo, houvera mulheres que o tinham achado atraente.

- Tive uma moça - disse ele, pensativo - há muitos anos, antes de partir em cruzada. Mas deixei-a quando jurei pela Cruz, deixei-a por três anos e fiquei ausente durante dezessete. A verdade é que no oriente esqueci-a, e no ocidente, graças a Deus, ela tinha me esquecido. Quando voltei, investiguei. Ela tinha tido mais sorte, e casara com um homem decente e sólido que não tinha nada de vagus em si. Um comerciante e conselheiro da cidade de Shrewsbury, nada menos. Por isso aliviei o peso na consciência e voltei para o que conhecia, a vida de soldado. Sem arrependimentos - disse ele com simplicidade. - Já estava tudo acabado há muitos anos. Duvido que ainda a reconhecesse, ou ela a mim. - Houvera outros rostos de mulheres nos anos intermédios, ainda vívidos na sua memória, enquanto o dela se tinha desvanecido.

- E que farás - perguntou Alard - agora que o rei conseguiu tudo o que queria, casou o filho com Anjou e Maine, e acabou com as lutas? Vais voltar para o Oriente? Lá nunca há falta de contendas para manter um homem ocupado.

- Não - disse Cadfael, com os olhos fixos na margem que começava a mostrar a solidez da costa e as ondulações de rochedos e dunas. Pois também isso tinha acabado, há anos, e não tão bem como ele desejara em tempos. Aquela campanha dispersa na Normandia era pouco mais do que um pós-escrito, uma reflexão, um meio de preencher o-ínterim entre o que era passado e o que estava para vir, e ainda estava por desvendar. Tudo o que sabia era que devia ser algo novo e importante, uma porta a abrir-se para outra sala. - Parece que temos ambos alguns dias de descanso, tu e eu, para descobrir para onde vamos. A melhor coisa que temos a fazer é aproveitar bem o tempo.

Antes do anoitecer houve afã suficiente para os impedir de pensarem para além do momento seguinte, ou para perturbarem os pensamentos com o que era passado e o que estava para vir. O navio avançou com vento constante e favorável, e dirigiu-se para Southampton antes de a luz desaparecer, e Alard ocupou-se com a verificação do equipamento enquanto este era descarregado, enquanto Cadfael tratava do desembarque dos cavalos. Uma noite de sono em estalagens e estábulos na cidade, e seguiriam caminho ao amanhecer.

- Então o rei é esperado em Woodstock - disse Alard, a mexer-se ensonadamente na palha num sótão quente por cima dos cavalos - a tempo de presidir a um julgamento no vigésimo terceiro dia do mês. Ele faz dos seus alojamentos na floresta o centro principal de atividade do reino, fala-se mais de assuntos de Estado em Woodstock, dizem, do que em Westminster. E ele tem os seus animais selvagens lá... leões e leopardos... até camelos. Alguma vez viste camelos, Cadfael? Lá no oriente?

- Vi-os e montei neles. Lá são tão comuns como os cavalos aqui, trabalhadores e prestáveis, mas são desconfortáveis para montar e de temperamento tempestuoso. Graças a Deus que de manhã é cavalos que vamos montar. - E após um longo silêncio, mesmo antes de adormecer, na escuridão com cheiro a palha, perguntou com curiosidade: - Se alguma vez voltares, que é que queres de Evesham?

- E eu sei? - respondeu Alard ensonado, e às suas palavras seguiu-se um inesperado suspiro intenso, de novo completamente acordado. - O silêncio, talvez... ou a tranquilidade. Não ter de correr mais... ter chegado, e não ter mais necessidade de correr. O apetite muda. Agora acho que seria uma coisa maravilhosa estar sossegado.

 

A casa senhorial, que era o centro da fortuna espalhada e substancial de Roger Mauduit, situava-se um pouco a sudeste de Northampton, confortavelmente a sotavento da cumeeira de colinas arborizadas onde o rei tinha uma coutada, e os seus vastos campos estendiam-se pelas ricas planícies intermédias. A casa era de pedra, e ampla, sobre uma profunda galeria subterrânea, e com uma torre baixa que tinha dois aposentos pequenos na extremidade este, e a fileira de grandes currais, celeiros e estábulos que se estendia ao longo das muralhas exteriores era impressionante. Alguém tinha provado ser um bom criado enquanto o senhor estava fora a tratar de assuntos do rei Henrique.

Os móveis da sala de jantar não eram menos eloquentes da boa organização, e os criados e criadas da casa efetuavam os seus trabalhos com uma ativa circunspecção que revelava o ligeiro temor que sentiam por quem presidia aos seus trabalhos. Bastou um único dia a observar Lady Eadwina em ação para perceber como ela governava o galinheiro. Roger Mauduit tinha desposado uma mulher não apenas bela como também eficiente e dominadora. Era dona e senhora de tudo ali há três anos, e tudo indicava que gostava do domínio. Talvez nem gostasse de ter de abdicar do seu cargo agora, embora estivesse contente por ter o seu senhor de novo em casa.

Era uma mulher alta e graciosa, dez anos mais nova do que Roger, com uma abundância de cabelos louros e grandes olhos azuis que estavam a maior parte do tempo discretamente velados por pestanas absurdamente compridas, mas que lançavam um brilho forte e gélido de desafio quando os abria completamente. O seu sorriso era igualmente discreto e quase constante, escondendo mais do que revelava o que lhe ia no pensamento; e embora as boas-vindas ao senhor acabado de chegar não deixassem nada a desejar, e ela lhe tivesse prestado todos os tributos possíveis de cerimônia e afetação a partir do momento em que o cavalo dele passou os portões, Cadfael não pôde deixar de pensar se ela não estava, ao mesmo tempo, a avaliar cada homem que ele trazia consigo, e cada peça de material ou arreios ou armamento no equipamento, como se estivesse a fazer um inventário ciumento dos seus bens e reservas para se certificar de que nada faltava.

Tinha o filho pequeno pela mão, um rapaz com cerca de sete anos, e a criança tinha a mesma cor clara, o mesmo sorriso contido e quase supercilioso, e era tão elegante e bonito como a mãe.

A senhora recebeu Alard com um olhar rápido que desaprovava a sua aparência maltrapilha e duvidava da sua moralidade, mas que estava no entanto disposta a aceitar e a aproveitar as suas capacidades. O empregado que mantinha a propriedade a funcionar e as contas em ordem era bastante eficiente, mas não sabia Latim, e não sabia escrever uma boa missiva para o tribunal. Alard foi levado para uma pequena mesa colocada no ângulo da grande lareira, e mantido a trabalhar sem parar a copiar certos forais e cartas, e a prepará-los para apresentação.

- Este processo dele é contra a abadia de Shrewsbury - disse Alard, libertado dos seus trabalhos depois do jantar, na sala de jantar. - Recordo-me de que disseste que aquela tua moça tinha casado com um mercador daquela cidade. Shrewsbury é uma casa Beneditina, tal como a minha de Evesham. - Continuava a chamá-la sua tantos anos após tê-la abandonado; ou sua novamente, depois de o tempo ter apagado qualquer divisão que tivesse existido. - Deves saber, se vens de lá.

- Eu nasci em Trefriw, em Gwynedd - disse Cadfael -, mas cedo fiquei ao serviço de um mercador de lãs inglês, e fui para Shrewsbury com os seus criados. Catorze anos tinha eu então... em Gales catorze é maioridade, e como era hábil com o arco pequeno, e me ajeitava com a espada, suponho que valia a comida que comia. Os melhores dos meus anos seguintes foram passados em Shrewsbury, conheço-a como a palma da minha mão, abadia e tudo. O meu senhor mandou-me para lá durante mais de um ano, para aprender a escrever. Mas abandonei esse serviço quando ele morreu. Não tinha jurado fidelidade ao filho, e ele era uma pobre sombra do pai. Foi quando fui para as Cruzadas. E o mesmo fizeram muitos como eu, todos em brasa. Não direi que o que se seguiu foi tudo cinza, mas por vezes ardeu em fogo muito lento.

- É Mauduit quem tem esta terra em disputa - disse Alard -, é a Abadia que procura recuperá-la, e a coisa já se arrasta há quatro anos sem resolução, desde que o velho proprietário morreu. Do que conheço dos Beneditinos, colocaria a honestidade deles acima da do nosso Roger, devo dizer-te com franqueza. E no entanto, pela minha experiência, os seus forais parecem muito genuínos.

- Onde é essa terra por que estão a lutar? - perguntou Cadfael.

- É uma casa senhorial que dá pelo nome de Rotesley, perto de Stretton, propriedade, aldeia, benefício eclesiástico e tudo. Parece que quando o grande conde tinha acabado de morrer e a sua abadia ainda se encontrava em construção, o pai de Roger doou Rotesley à abadia. Não há disputa em relação a isso, o foral está lá para prová-lo. Mas a abadia concedeu-lhe um arrendamento vitalício, para que pudesse viver ali os derradeiros anos sem problemas, pois Roger na altura já estava casado e instalado aqui em Sutton. É onde começa a disputa. A abadia alega que ficou claramente acordado que o arrendamento cessava com a morte do velhote, que ele próprio tinha compreendido assim, e pretendia que fosse restaurada à abadia logo que deixasse de usufruir dela. Por seu lado, Roger afirma que não havia acordo algum para restituí-la incondicionalmente, e que o arrendamento foi concedido aos Mauduit, e devia ser hereditário. E até agora ateve-se a isso com unhas e dentes. Após diversas audiências, o caso foi remetido para o próprio rei. E é por isso que tu e eu, meu amigo, iremos para Woodstock com sua senhoria depois de amanhã.

- E pensas que ele tem muitas hipóteses de sucesso? Ele próprio não parece muito seguro - disse Cadfael -, a julgar pelo mau humor e pelo roer de unhas durante todo este último dia.

- Ora, o foral podia ter sido mais bem elaborado. Diz simplesmente que a aldeia é entregue em arrendamento durante a vida do velhote, mas não diz nada sobre o que acontecerá depois, fosse o que fosse que se pretendia. Pelo que ouvi, as relações entre eles eram as melhores, entre o abade Fulchered e o velho senhor, e os acordos entre eles noutras questões que constam do livro da casa senhorial estão elaborados entre homens que confiavam um no outro. As testemunhas estão todas mortas, assim como o abade Fulchered está morto. Agora é um Godefrid. Mas, tanto quanto sei, a abadia pode ter cartas que foram escritas pelos dois, e uma carta é testemunha de intenção, não menos do que um foral. Em devido tempo saberemos.

A nobreza continuava sentada à mesa de honra, sem pressa para se retirar, e Roger segurava pensativamente o seu copo de vinho, do qual já tinha bebido mais do que a sua conta. Cadfael olhou-os com interesse, vistos assim num ambiente familiar. O rapaz tinha ido para a cama, levado por uma ama idosa, mas Lady Eadwina ficou sentada do lado esquerdo do seu senhor, pronta para satisfazer os seus desejos, e manteve o copo dele bem cheio, a sorrir com o seu sorriso leve e reservado. À sua esquerda sentava-se um jovem escudeiro muito belo com uns vinte e cinco anos, respeitoso e discreto, com um sorriso que parecia o reflexo masculino do sorriso dela. A origem de ambos era secreta, a fonte do seu prazer ou divertimento, ou o que quer que os levava a sorrir assim, mantinha-se privada e ligeiramente despercebida, como os sorrisos gravados em pedra de certas estátuas muito antigas que Cadfael tinha visto na Grécia, há muito tempo. Pois apesar da sua aparência suave, amistosa e bonita, do penteado encaracolado e delicado, era um jovem grande, bem desenvolvido fisicamente, com um rosto suave mas determinado. Cadfael estudou-o com interesse, pois era claramente privilegiado naquela casa.

- Goscelin - disse Alard, à laia de explicação, seguindo o olhar do amigo. - O braço direito dela enquanto Roger esteve ausente.

“E, aparentemente, agora é o braço esquerdo”, pensou Cadfael. Pois a mão esquerda dela e a mão direita de Goscelin estavam escondidas debaixo da mesa, enquanto ela falava insinuantemente ao ouvido do marido; e se aquelas duas mãos não estavam unidas naquele momento, o julgamento de Cadfael estava muito fora de forma. Por cima e por baixo da toalha da mesa havia dois mundos diferentes.

- Que será que ela está a sussurrar ao ouvido de Roger neste momento? - disse ele, pensativamente.

Na verdade, o que a senhora estava a murmurar ao ouvido do marido era:

- Preocupais-vos inutilmente, meu senhor. Que importa que as provas dele sejam fortes se ele nunca chegar a Woodstock a tempo de as apresentar? Vós conheceis a lei: se uma das partes não aparece, a sentença é favorável à outra. Os juizes do tribunal podem permitir mais do que uma falta de comparecimento, se quiserem, mas achais que o rei Henrique permitirá? Quem não conseguir comparecer ao encontro marcado com ele será abatido no local. E vós conheceis a estrada por onde o prior Heribert tem de vir. - A sua voz era um ronronar sedoso ao ouvido dele. - E não tendes uma cabana de caça na floresta a norte de Woodstock, pela qual passa essa estrada?

A mão de Roger tinha-se retesado à volta do pé do copo de vinho. Não estava muito embriagado e escutou atentamente.

- De Shrewsbury a Woodstock será uma viagem de dois a três dias a cavalo, para um cavaleiro como o prior. Só precisais de ter um vigia na estrada a norte de vós, para dar o aviso. Os bosques são bastante densos, e sabe-se que homens sem lei caçam ali. Mesmo que ele venha de dia, o vosso papel nunca precisará ser conhecido. Escondei-o apenas durante alguns dias, será o suficiente. Depois soltai-o de noite, e quem irá jamais saber que salteadores é que o prenderam e roubaram? Nem precisais de tocar nos pergaminhos dele... ladrões considerá-los-iam inúteis. Levai o que os salteadores comuns costumam roubar, e deles será a culpa.

Roger abriu a boca firmemente fechada para dizer num resmungo duvidoso:

- Ele não vai viajar sozinho.

- Ha! Dois ou três criados da abadia... vão fugir a correr como lebres. Não tendes de vos preocupar com eles. Três homens fortes e que saibam guardar segredo serão mais do que suficientes.

Ele pensou no assunto, e começou também a pensar que era possível, e a analisar os criados, à procura das mãos certas para tal trabalho. Não o galês e o copista, os estrangeiros ali; o papel deles era o de serem observadores honestos, para o caso de serem feitas perguntas.

 

Saíram de Sutton Mauduit no vigésimo dia de Novembro, o que parecia desnecessariamente cedo, embora como Roger tinha declarado que iriam instalar-se na sua cabana de caça na floresta perto de Woodstock, o que implicava levarem reservas com eles para tornarem a casa habitável e abastece-la para um grupo para, presumivelmente, uma estada de três noites pelo menos, era talvez uma precaução sensata. Roger disse que não queria correr riscos naquele processo; queria estar instalado no local a tempo, e ter todas as suas provas em ordem.

- Mas já tem - disse Alard, ofendido no seu orgulho profissional -, pois revi tudo com ele, e o caso, embora aberto com falta de instruções específicas, é bastante simples e consistente. Mas quem sabe o que a abadia pode apresentar? Dizem que o abade não se encontra bem, e é por isso que o prior vem no seu lugar. O meu trabalho está feito.

Quando o grupo saiu e seguiu para ocidente tinha a expressão vaga no olhar, de uma pessoa ou encurralada e a desejar estar onde não podia, ou solta e cansada e a ser arrastada para casa. Ou um vagus a escapar para longe, ou um penitente a voltar a correr para casa antes de as portas se fecharem para ele. Na verdade, devia ser alguma coisa desejável e encantadora para levar um homem a olhar para ela com aquela expressão no rosto.

Três soldados e dois criados acompanhavam Roger, para além de Alard e Cadfael, cujo contrato de serviço terminaria com a sessão no tribunal, depois do que poderiam ir para onde quisessem, Cadfael montado, uma vez que possuía a sua própria montaria, Alard a pé, já que o cavalo que montava pertencia a Roger. Cadfael ficou surpreendido ao constatar que o escudeiro Goscelin também montou e veio com o grupo, muito gracioso e bem armado com espada e punhal.

- Espanta-me - disse Cadfael secamente - que a senhora não precise dele em casa para sua proteção enquanto o seu senhor está ausente.

Porém, Lady Eadwina despediu-se de todo o grupo com a maior serenidade, e do marido com expansivo afeto, apresentando o filho pequeno para ser abraçado e beijado. “Talvez”, pensou Cadfael, “esteja a cometer uma injustiça com ela, simplesmente porque me sinto gelado com aquele seu sorriso. Tanto quanto sei, pode ser a esposa mais fiel do mundo.”

Partiram cedo, e antes de Buckingham pararam no pequeno e pobre priorado de Bradwell, onde Roger decidiu pernoitar, mantendo três soldados consigo, enquanto Goscelin, com o resto do grupo, seguiu para a cabana de caça para preparar tudo para receber o senhor no dia seguinte. Estava a ficar escuro quando chegaram, e o afã de acender o fogo e archotes, e de descarregar as roupas de cama e as provisões dos cavalos de carga continuou pela noite dentro. A cabana era pequena, fortificada, bem fornecida de estábulos e gaiolas, e situava-se no meio de um bosque denso, um lugar bastante confortável depois de acenderem um bom fogo na lareira e de terem comida na mesa.

- A estrada por onde o prior de Shrewsbury virá - disse Alard, a aquecer-se à lareira depois do jantar - passa por Evesham. O mais certo é passarem a última noite aqui. - A cada milha para ocidente Cadfael vira-o inclinar-se para a frente com ansiedade crescente. - A estrada não pode ficar muito longe daqui, pois passa por esta floresta.

- Devem ser quase trinta milhas para Evesham - disse Cadfael. - Um longo dia de viagem para um grupo clerical. Será de noite quando chegarem a Woodstock. Se estás decidido a partir, fica pelo menos para receber o teu pagamento, pois vais precisar dele antes de fazeres as trinta milhas.

Foram dormir no calor da sala de jantar sem proferirem mais nenhuma palavra. Mas ele iria, Alard, quer ele próprio já soubesse quer não. Cadfael sabia disso. O amigo era um cavalo cansado com o cheiro do estábulo nas narinas; nada o pararia agora até o alcançar.

O dia já ia a meio quando Roger e a sua escolta chegaram, e não se aproximaram diretamente, como o primeiro grupo fizera, mas vindos dos bosques a norte, como se tivessem andado a divertir-se com uma pequena caçada pelo caminho, só que não tinham nem falcões nem cães de caça com eles. Estava um dia bom, claro e fresco para montar, por isso não havia motivo algum para não darem a volta pelo puro prazer do passeio - e, na verdade, pareciam vir extremamente satisfeitos! -, mas a mente de Roger andava tão preocupada e tão ansiosa com o processo judicial que qualquer distração parecia improvável. Cadfael era dado a pensar em desenvolvimentos improváveis, que, de campanhas antigas, sabia revelarem-se importantes na maior parte dos casos. Goscelin, que estava ao portão para lhes dar as boas-vindas, aparentemente não reparou na direção de que eles vinham. Daquele lado ficava a estrada de Alard para o seu descanso. Mas que significado teria para Roger Mauduit?

Naquela noite a mesa estava sumtuosa, e senhor e escudeiro beberam bem e comeram bem, e não deram qualquer sinal de preocupação, embora pudessem, pensou Cadfael, a observá-los do seu lugar mais abaixo, parecer um pouco tensos e ansiosos. Bem, a ida a cortes podia ser o motivo. O prior de Shrewsbury estava a aproximar-se cada vez mais, com todas as armas que tinha para a batalha. Mas parecia mais uma tensão exultante do que uma tensão ansiosa. Estaria já Roger a cantar vitória?

A manhã do dia vinte e dois de Novembro nasceu, e o meio-dia passou, e a inquietação e abstração de Alard cresciam a cada momento, até que, ao fim da tarde, ficou completamente possuído e deixou de conseguir resistir. Apresentou-se diante de Roger depois do jantar, quando a disposição deste poderia estar mais benevolente graças à boa comida e ao bom vinho.

- Meu senhor, amanhã o meu serviço para vós estará terminado. Não precisais mais de mim, e com a vossa boa vontade partiria agora para o lugar do meu destino. Vou a pé e preciso de provisões para o caminho. Se ficastes contente com o meu trabalho, pagai-me o que me é devido, e deixai-me ir.

Pareceu que Roger tinha sido acordado de alguma preocupação particular igualmente absorvente, e estava com pressa de voltar a ela, pois não argumentou e pagou imediatamente. Justiça lhe seja feita, nunca tinha sido de contas difíceis. No começo, regateava o negócio o melhor possível, mas depois de o acordo estar feito mantinha-o.

- Vai quando quiseres - disse ele. - Antes de partir, enche o saco na cozinha. Fizeste um bom trabalho, reconheço.

E voltou para o que quer que lhe ocupava o pensamento, e Alard foi buscar a generosa dádiva e os seus parcos pertences.

- Vou-me embora - disse ele, encontrando Cadfael à porta da sala de jantar. - Tenho de ir. - Já não havia dúvida na sua voz ou expressão. - Eles vão aceitar-me de volta, embora no lugar mais baixo. Dali não há queda possível. O abençoado Beneditino escreveu na Regra que até à terceira vez de extravio um homem pode ser recebido de novo se prometer emendar-se completamente.

Estava uma noite escura, sem lua ou estrelas, mas em momentos fugazes o vento separava a cobertura de nuvens para deixar penetrar um breve brilho de luar. O tempo tinha ficado tormentoso e agreste nos últimos dois dias, a frota do rei devia ter tido uma travessia dura desde Barfleur.

- Seria mais aconselhável - aconselhou Cadfael - esperares pela manhã, e ires à luz do dia. Aqui tens uma cama segura, e a paz do rei, por muito bem assegurada que seja, dificilmente cobrirá todas as milhas das estradas do reino.

Mas Alard recusou-se a esperar. A ansiedade tinha-se instalado nele com muita força, e um vagabundo sem um tostão que se tinha aventurado em todas as estradas da Cristandade de dia ou de noite dificilmente hesitaria nas últimas trinta milhas das suas deambulações.

- Então vou acompanhar-te até à estrada, e ver-te partir - disse Cadfael.

Havia aproximadamente uma milha de trilho através de densa floresta entre eles e a estrada que seguia de oeste-noroeste na viagem montanhosa para Evesham. A tira de estrada aberta, ladeada de ambos os lados por árvores, era pouco menos escura do que a própria floresta. O rei Henrique tinha vedado o seu parque particular em Woodstock para alojar os seus animais selvagens, mas mantinha também a sua coutada ali, com muitas milhas de extensão. Separaram-se na estrada, e Cadfael ficou a ver o amigo a afastar-se rapidamente para oeste, com os olhos fixos em frente, na sua penitência e absolvição, um homem cansado mas com o descanso assegurado.

Cadfael voltou para a cabana logo que a sombra se derreteu na noite. Não estava com pressa de entrar pois a noite, apesar de tormentosa, não estava fria, e não lhe agradava procurar a companhia de outros elementos do grupo agora que o que conhecia melhor tinha partido, e partido de uma forma tão misteriosamente extasiada. Passeou entre as árvores, voltando as costas à cama durante algum tempo.

O bater constante de ramos ao vento afogou o tumulto e a gritaria que estalou de repente atrás dele, a alguma distância no meio das árvores, até que o relincho estridente de um cavalo o despertou com um sobressalto, e o fez correr pelos arbustos para o local onde vozes confusas gritavam por socorro e arbustos partidos estalavam. O clamor parecia a alguma distância, e ele ficou espantado quando abriu caminho impetuosamente por uma mata e colidiu pesadamente com dois corpos emaranhados, separando-os e caindo estatelado em cima de um deles na erva pisada. O homem que estava por baixo dele soltou um grito assustado e zangado, e a voz era de Roger. O outro homem não tinha feito o menor som, e desviou-se muito rapidamente e com agilidade para desaparecer no meio das árvores, uma sombra alta engolida pelas sombras.

Cadfael levantou-se apressado e esticou um braço para ajudar o homem sem fôlego.

- Meu senhor, estais ferido? Em nome de Deus, que se passa aqui? - A manga que ele agarrara deslizou, quente e molhada, sob a sua mão. - Estais ferido! Segurai bem, vejamos o mal que foi feito antes de vos moverdes...

Depois ouviu-se a voz de Goscelin, invulgarmente alta e veemente de alarme, a gritar pelo seu senhor e a atirar-se de cabeça por arbustos e silvas para cair de joelhos ao lado de Roger, a lamentar-se e a praguejar.

- Meu senhor, meu senhor, que aconteceu aqui? Que bandidos eram estes, soltos nos bosques? Atreveram-se a fazer uma emboscada tão perto da estrada do rei? Estais ferido... há aqui sangue...

Roger recuperou o fôlego e sentou-se direito, a apalpar o braço esquerdo abaixo do ombro e a estremecer.

- Um arranhão. O meu braço... Deus o amaldiçoe, seja ele quem for, o tipo apontou ao meu coração. Céus, se não tivesses vindo a investir como um touro, eu podia estar morto. Tu desviaste-me da ponta do punhal dele. Graças a Deus, não houve grandes estragos, mas estou a sangrar... Ajudem-me a voltar para casa!

- Um homem já não pode andar à noite nos seus próprios bosques - resmungou Goscelin, levantando cuidadosamente o seu senhor - sem ser atacado por foras-da-lei! Ajuda aqui, tu, Cadfael, pega no outro braço de sua senhoria... Salteadores tão perto de Woodstock! Amanhã temos de formar um grupo para bater estes trilhos e tirá-los dos seus esconderijos, antes que eles matem...

- Leva-me para dentro de casa - atirou Roger -, tira-me este casaco e esta camisa e vamos estancar este ferimento. Estou vivo, é o que importa!

Entre os dois, ajudaram-no a voltar para a cabana, através de caminhos mais abertos. Enquanto prosseguiam, Cadfael apercebeu-se de que o clamor de luta furtiva tinha cessado por completo, e até o vento tinha parado, e algures na estrada, ao longe, captou o ritmo de cascos a galope, muito rápidos e leves, como se se tratasse de um cavalo sem cavaleiro numa fuga em pânico.

 

O arranhão no braço esquerdo de Roger Mauduit, logo abaixo do ombro, era comprido mas não fundo, e ia ficando mais superficial à medida que descia. O golpe que o marcara assim podia muito bem destinar-se ao coração. O forte impato de Cadfael, no momento exato em que o ataque fora lançado, tinha sido o meio de evitar o homicídio. A sombra que se tinha derretido na noite não tinha forma, nada nela a tinha tornado humana ou reconhecível. Ele tinha ouvido um grito e correra para ele, um projéctil para afastar atacado e atacante; questionado, foi tudo o que pôde dizer.

Pelo que, disse Roger, com uma ligadura no braço e a descansar e aquecido com vinho quente com açúcar, estava agradecido do fundo do coração. E, na verdade, Roger estava a comportar-se com uma fortaleza de espírito e uma calma notáveis para um homem que acabara de escapar à morte. Depois de ter demonstrado aos criados e soldados consternados que estava vivo e não muito mal, anunciado a hora a que deviam partir para Woodstock de manhã, e sido ajudado a deitar-se por Goscelin, havia até uma sugestão de complacência nele, como se um corte no braço fosse um preço baixo a pagar pela retenção bem sucedida de uma propriedade valiosa e pela derrota dos seus adversários clericais.

 

No tribunal do palácio de Woodstock, os camareiros, meirinhos e juizes do rei andavam agitadamente de um lado para o outro de uma maneira curiosa, pelo menos foi a impressão com que Cadfael ficou, à parte entre os homens do povo a observar as suas atitudes bizarras. Reuniam-se em pequenos grupos, a conversar em voz baixa e com rostos ansiosos, separavam-se para se reagruparem com outros da sua estirpe, aproximavam-se e afastavam-se dos litigantes, evitando ou iludindo todas as perguntas, trocavam documentos, corriam para a porta para espreitar para o exterior, como se esperassem um convidado de última hora. E, na verdade, havia um litigante que não tinha chegado a horas, pois não havia o menor sinal de um prior Beneditino entre as pessoas que estavam reunidas, nem chegara alguém para explicar ou justificar a sua ausência. E Roger Mauduit, apesar do braço inchado e dolorido, continuou a descontrair, com uma certeza cada vez maior a transformar-se em resplandecente complacência.

A hora marcada já tinha sido ultrapassada em alguns minutos quando quatro homens agitados, dois deles irmãos Beneditinos, entraram apressadamente, e se aproximaram do escrivão chefe.

- Senhor - disse o líder, numa voz alta e nervosa - nós viemos da abadia de Shrewsbury, como escolta do nosso prior, que vinha para cá para defender uma contenda legal. Senhor, tendes de desculpar a sua ausência, pois não é culpa dele nem nossa ele não poder comparecer. Na floresta, a umas duas milhas para norte, quando vínhamos para cá a noite passada na escuridão, fomos atacados por um bando de salteadores fora-da-lei, e eles agarraram o nosso prior e levaram-no...

A voz do homem tinha-se erguido estridentemente na sua agitação, e naquele momento já tinha a atenção de todos os homens que se encontravam na sala. Seguramente, tinha a de Cadfael. Homens fora-da-lei a cerca de duas milhas para norte de Woodstock, a fazer assaltos a noite passada, só podiam ser os mesmos que tinham atacado Roger Mauduit e por pouco não lhe tinham ceifado a vida. Um bando daquele tipo, tão perto da corte, era surpreendentemente intrigante, dificilmente poderia haver dois. O escrivão ficou ultrajado com a própria ideia.

- Apanharam-no e capturaram-no? E vocês os quatro estavam com ele? Isto poderá ser verdade? Quantos eram os que vos atacaram?

- Não conseguimos dizer ao certo. Pelo menos três... mas estavam emboscados, não tivemos oportunidade de os enfrentar. Arrancaram-no do seu cavalo e fugiram para o meio das árvores com ele. Eles conheciam os bosques e nós não. Nós fomos atrás deles, senhor, mas eles escorraçaram-nos.

Era evidente que tinham feito tudo o que estava ao seu alcance, pois dois deles tinham nódoas negras e arranhões, e todos tinham as roupas sujas e rasgadas.

- Procuramos a noite inteira, mas não encontramos qualquer vestígio, apenas apanhamos o cavalo dele uma milha mais à frente na estrada, nesta direção. Por isso imploramos aqui que a ausência do nosso prior não seja vista como falta de comparecimento, pois na verdade ele teria estado aqui na cidade na noite passada se tudo tivesse corrido como devia.

- Calado, espera! - disse o escrivão peremptoriamente. Todas as cabeças se tinham voltado para a porta da sala, onde uma grande profusão de oficiais tinha aparecido de repente, abrindo caminho pelo meio da multidão com pressa determinada e ominosa, para ocuparem o centro da sala por baixo do estrado vazio do rei. Um camareiro, idoso e autoritário, bateu com o bastão no chão e ordenou silêncio.

E ao verem o seu rosto, o silêncio caiu como uma pedra.

- Senhores, cavalheiros, todos aqueles que têm contendas aqui neste dia, e todos os outros presentes, peço-vos que dispersem, pois não haverá audiências hoje. Todos os processos que deviam ser julgados aqui serão adiados três dias, e serão ouvidos pelos juizes de Sua Majestade. Sua Graça o rei não poderá vir.

Desta vez o silêncio caiu de novo como uma cortina pesada, abafando até os pensamentos ou conjecturas.

- A corte está de luto a partir deste momento. Recebemos uma notícia de teor desolador. Sua Graça, com a maior parte da sua frota, fizeram a travessia para Inglaterra em segurança, como é sabido, mas o Blanche Nef, em que o filho e herdeiro de Sua Graça, o príncipe Guilherme, com todos os seus companheiros e muitas outras almas nobres embarcaram, fez-se ao mar mais tarde e foi apanhado em tempestades antes sequer de sair de Barfleur. O navio está perdido, esmagado contra uma rocha, afundou-se com todos os ocupantes, e nenhuma alma chegou a terra. Ide então sem barulho, e rezai pelas almas da flor deste reino.

Então aquele era o fim de um ano de triunfo de um homem, uma façanha vazia, uma vitória ruinosa, a Normandia conquistada, os inimigos derrubados, e agora tudo desfeito, destruído num rochedo obstinado, levado num mar malicioso. O seu único filho legítimo, recentemente casado em esplendor, e agora sem direito sequer a um caixão e uma sepultura, pois se alguma vez encontrassem aqueles corpos reais seria pela compaixão divina de Deus, já que o mar raramente entrega os seus troféus à costa de Barfleur. Até alguns dos seus filhos ilegítimos, que eram muitos, tinham perecido com o irmão real, e não restava ninguém a não ser a única filha legítima para herdar um império estéril.

Cadfael passeou sozinho num canto do parque do rei e pensou na tolice da vanglória mortal, que era paga com um preço tão amargo. Mas também pensou nos assuntos dos homens pouco importantes, a quem até um rei sem sorte devia justiça. Pois em alguma parte ainda estava perdido o prior de Shrewsbury, raptado por foras-da-lei na floresta, um litigante que poderia ainda estar desaparecido dali a três dias, quando o seu caso fosse novamente a julgamento, a menos que, entretanto, alguém soubesse onde procurá-lo.

Ele já tinha poucas dúvidas. Um bando de foras-da-lei à vontade tão perto de um palácio real era à partida bastante improvável, e Cadfael tinha tendência para desconfiar do improvável. Mas que houvesse dois - não, isso era impossível. E se era apenas um, então era aquele mesmo cuja emboscada ele tinha ouvido a alguma distância, e no entanto suficientemente perto, da cabana de caça de Roger Mauduit.

Provavelmente, os desafortunados irmãos de Shrewsbury andavam a bater novamente os cantos mais recônditos da floresta. Cadfael sabia melhor onde procurar. Sem dúvida que Roger estava a roer as unhas com alguma ansiedade pela demora, mas não tinha razão para supor que três dias libertariam o cativo para aparecer contra ele, nem estava a prestar muita atenção ao que o seu soldado galês andava a fazer com o seu tempo.

Cadfael foi buscar o cavalo e voltou sem pressa para a cabana de caça. Saiu ao anoitecer, depois de a refeição da noite estar terminada na cabana de Mauduit. Ninguém lhe prestava muita atenção naquele momento do dia. Tudo o que Roger precisava de fazer era manter a boca calada e controlar-se durante três dias, e a propriedade em disputa ser-lhe-ia atribuída. Afinal de contas, estava tudo maravilhosamente nas suas mãos.

Dois dos soldados e um criado tinham sido deixados na cabana de caça. Cadfael duvidava de que o homem que guardavam se encontrasse na própria casa, pois, a menos que estivesse vendado, poderia ficar com um conhecimento demasiado grande do que o rodeava, e a fábula dos salteadores iria por água abaixo. Não, seria mantido na escuridão, ou na melhor das hipóteses na penumbra, mesmo durante o dia, na palha ou no chão de esteira de uma cabana comum, alimentado adequadamente mas com simplicidade e rusticamente, como homens selvagens manteriam um prisioneiro que fossem demasiado cautelosos para matar, ou demasiado supersticiosos, até o libertarem em algum lugar remoto, despojado de tudo o que tinha de valor. Por outro lado, devia estar bem preso no interior da vedação que delimitava a propriedade, senão o risco de ser encontrado seria grande. Entre o portão e a casa havia árvores em número suficiente para obscurecer a grande propriedade de um homem importante. Algures entre os estábulos e celeiros, ou nos canis agora vazios, é que ele devia estar escondido.

Cadfael prendeu o cavalo num local escondido e afastado da cabana e encontrou um bom poleiro num grande carvalho, um lugar privilegiado de onde podia ver desde a cerca até ao pátio.

Estava com sorte. Os três que se encontravam no interior alimentaram-se calmamente antes de alimentarem o prisioneiro, preferindo esperar pela escuridão. Quando o criado emergiu da sala de jantar com um jarro e uma tigela nas mãos, Cadfael tinha os seus olhos noturno. Eles estavam bastante descontraídos com a sua tarefa, sem esperar interferência de homem algum. O criado desapareceu momentaneamente entre as árvores dentro do pátio, mas reapareceu num dos edifícios baixos escondido sob a vedação, pousou o jarro por instantes enquanto levantava uma pesada trave de madeira que mantinha a porta bem fechada, e desapareceu no interior. A porta fechou-se com um ruído surdo atrás dele, como se ele a tivesse fechado com as costas encostadas a ela, para não correr riscos mesmo com um monge idoso. Passados alguns minutos voltou a emergir de mãos vazias, recolocou a trave no lugar e voltou, a assobiar, para a cabana e para a alegria da cerveja de Mauduit.

Nem nos estábulos nem nos canis, mas num pequeno armazém de palha construído com pequenas pilhas de madeira erguidas do chão. Pelo menos, o prior teria uma prisão razoavelmente aconchegante.

Cadfael deixou a última luz desvanecer-se antes de dar o próximo passo. A vedação de madeira era forte e alta, mas mais do que uma das velhas árvores do exterior inclinava um ramo sobre ela, e não foi difícil subir a uma e deixar-se cair para a erva alta no interior. Dirigiu-se primeiro para o portão, e soltou silenciosamente a portinhola estreita. Pequenas réstias de luz de archote filtravam-se pelas fendas nas persianas da sala de jantar, mas nada mais se mexia. Cadfael pegou na pesada trave do armazém e tirou-a em silêncio do seu encaixe, abrindo a porta umas cautelosas polegadas e sussurrando pelo postigo:

- Padre...?

Ouviu um ruído rápido de feno no interior, mas não houve uma resposta imediata.

- Senhor prior, sois vós? Cuidado... estais amarrado? Uma voz hesitante e levemente receosa, disse:

- Não. - E passados instantes, com mais tranquilidade: - Meu filho, não és um daqueles homens pecadores?

- Sou um homem pecador, mas não pertenço ao grupo deles. Chiu, em silêncio agora! Tenho um cavalo aqui perto. Vim de Woodstock à vossa procura. Dai-me a vossa mão, Padre, e aproximai-vos.

Uma mão trêmula veio da escuridão com cheiro de feno para apertar convulsivamente a de Cadfael. O alto pálido de uma coroa tonsurada brilhou levemente, e uma figura pequena e arredondada avançou e saiu para a erva alta. Teve a inteligência de não perder tempo com perguntas naquele momento, e manteve-se dócil e em silêncio enquanto Cadfael voltou a colocar a trave na porta do armazém vazio, e lhe deu a mão para o conduzir devagar pela vedação para a portinhola aberta no grande portão. Só quando o portão se fechou de forma igualmente suave atrás deles é que soltaram um suspiro grande e aliviado.

Estavam no exterior, a missão estava cumprida, e o mais provável era que ninguém se apercebesse da fuga antes da manhã seguinte. Cadfael foi à frente até ao local onde tinha deixado o cavalo amarrado. À volta deles, a floresta estava serena e silenciosa.

- Montai, Padre. Eu acompanhar-vos-ei a pé. Não são mais de duas milhas até Woodstock. Estamos bastante seguros agora.

Assombrado e confuso com uma inversão tão repentina, o prior confiou e obedeceu como uma criança. Só quando já estavam na estrada silenciosa é que ele disse tristemente:

- Falhei a minha missão. Filho, que Deus te abençoe por esta bondade que está para além da minha compreensão. Pois como sabias quem eu sou, e como pudeste adivinhar onde encontrar-me? Não percebo nada do que me tem acontecido. E não sou um homem muito corajoso... Mas o meu fracasso não é culpa tua, e devo-te a minha bênção sem restrições.

- Não fracassastes, Padre - disse Cadfael simplesmente. - O caso ainda não foi julgado, e só será daqui a três dias. Todos os vossos companheiros estão a salvo em Woodstock, mas estão preocupados convosco e ainda não pararam de vos procurar. E se sabeis onde se alojaram, recomendo que vos junteis a eles agora, de noite, e fiqueis bem escondido até ao dia em que o caso for julgado. Pois se esta armadilha se destinava a impedir-vos de comparecer no tribunal do rei, pode ser feita nova tentativa. Tendes as provas a salvo? Eles não as tiraram?

- O Irmão Orderic, o meu escrivão, transportava os documentos, mas não poderia apresentar o caso no tribunal. Apenas eu estou acreditado para representar a minha abadia. Mas, meu filho, como é que o caso ainda não foi julgado? O rei é muito rígido quanto a dia e hora, toda a gente sabe. Como é que Deus e tu me salvaram da desgraça e da perda?

- Padre, o rei não pôde estar presente por uma razão demasiado amarga.

Cadfael contou-lhe toda a história, como metade dos cavaleiros jovens de Inglaterra tinham sido ceifados com um único golpe, e o rei tinha ficado sem herdeiro. O prior Heribert, chocado e consternado, começou a rezar num sussurro pesaroso pelos mortos e pelos vivos, e Cadfael caminhou ao lado do cavalo em silêncio, pois que mais havia para dizer? Exceto que o rei Henrique, mesmo naquela hora arrasadora, ordenara que continuasse a fazer-se justiça, e essa era uma virtude em qualquer monarca. Só quando chegaram à cidade adormecida é que Cadfael interrompeu as orações fervorosas do prior com uma pergunta estranha.

- Padre, algum homem da vossa escolta trazia aço? Um punhal, ou uma arma desse gênero?

- Não, não, Deus nos livre! - disse o prior, chocado. - As armas não nos servem para nada. Confiamos na paz de Deus, e depois dela na do rei.

- Foi o que me pareceu - disse Cadfael, a acenar afirmativamente. - É outro castigo, para outra ventura.

 

Pela alteração do semblante de Mauduit, Cadfael percebeu o momento do dia seguinte em que lhe chegou a notícia de que o seu prisioneiro tinha fugido. Passou o resto daquele dia com os nervos em farrapos e os ouvidos atentos a quaisquer rumores sensacionais que corressem pela cidade, e os seus olhos pesquisaram ansiosamente com pavor de avistar o prior Heribert no tribunal ou na estrada, decidido a apresentar a sua queixa aos funcionários do rei. Mas à medida que as horas passavam e continuava a não haver sinais, começou a acalmar um pouco e a ter esperança na possibilidade de um veredito milagroso. Os irmãos Beneditinos eram vistos aqui e ali, mudos e de expressões sombrias; seguramente, não podiam ter tido notícias do seu superior. Não havia nada a fazer a não ser serrar os dentes, manter a calma, esperar e ter esperança.

O segundo dia passou, e chegou o terceiro, e as esperanças de Mauduit tinham aumentado novamente, pois ainda não havia qualquer novidade. Apresentou-se diante do juiz do rei com confiança, com os forais na mão. A abadia era a litigante. Se tudo corresse bem, Roger nem sequer teria de defender o caso, pois a alegação ficava sem efeito quando o litigante não comparecia.

Foi um choque avassalador quando houve uma súbita agitação à porta, precisamente à hora marcada, e uma pessoa pequena, redonda e pouco impressionante com um hábito Beneditino, entrou na sala de audiências com uma braçada de rolos de pergaminho bem apertados ao peito, e seguido de perto pelos irmãos de mantos pretos. Também Cadfael o observava com interesse, pois era a primeira vez que o via claramente. Um homem modesto, de figura confortável e expressão amistosa, rosado e calmo. Não tão idoso como a viagem noturna tinha sugerido, talvez quarenta e cinco anos, com uma aparência de grande inocência. Mas para Roger Mauduit foi como se tivesse entrado na sala um dragão a cuspir fogo.

E quem teria esperado, daquela presença suave e até insignificante, a clareza e habilidade com que aquele homem pequeno desdobrou o seu foral original, meticulosamente idêntico ao de Roger, segundo o relato que Alard tinha feito, e que omitia qualquer menção específica do que se seguiria à morte de Arnulf Mauduit - a forma escrupulosa como referiu a omissão e os argumentos a que isso podia dar origem, e complementou com a apresentação de duas cartas que tinham sido escritas pelo próprio Arnulf Mauduit para o abade Fulchered, referindo-se em termos claros à devolução obrigatória da casa senhorial e aldeia após a sua morte, e a garantir a observância leal daquela obrigação por parte do filho.

Podia ter sido a falta de provas que levou Roger a fazer um trabalho tão fraco na refutação das provas, ou podia ter sido a consciência pesada. Fosse qual fosse a causa, a sentença foi favorável à abadia.

 

Cadfael apresentou-se perante o senhor que ia deixar sensivelmente uma hora depois da proclamação do veredito.

- Senhor, a vossa demanda está concluída, e o meu serviço com ela. Fiz o que me foi pedido, e aqui me separo de vós.

Roger tinha mergulhado numa grande má disposição e raiva, e fitou-o com uma expressão que devia tê-lo atemorizado, mas não teve o impato desejado.

- Tenho dúvidas - disse Roger, com uma raiva latente - de que tenhas respeitado a lealdade que me devias. Quem mais poderia saber... - Mordeu a língua a tempo, pois enquanto a coisa não fosse reconhecida nenhuma acusação seria feita, e nenhuma refutação necessária. Teria gostado de perguntar: Como é que soubeste? Mas pensou melhor. - Então vai, se não tens mais nada para dizer.

- Quanto a isso - disse Cadfael, intencionalmente -, nada mais precisa de ser dito. Acabou. - E aquelas palavras foram reconhecíveis como uma promessa, mas com implicações inquietantes, pois era óbvio que ele tinha alguma coisa para dizer em relação a outro assunto qualquer.

“Senhor, refleti um pouco nisto, pois eu estive até agora ao vosso serviço, e não vos desejo mal nenhum. Dos quatro homens que acompanhavam o prior Heribert no caminho para cá, nenhum deles trazia armas. Não havia espada nem punhal nem faca de qualquer espécie entre os cinco”.

Viu a compreensão das suas palavras a ser interiorizada, lentamente mas com uma força amarga. Os homens fora-da-lei não tinham passado de um conto de fadas, mas até agora Roger tinha pensado, como era natural que pensasse, que aquele golpe de punhal tinha sido uma tentativa arrojada de um criado da abadia para defender o seu prior. Ele piscou os olhos e engoliu em seco e ficou a olhar, e começou a transpirar, observando o precipício perigoso em que por pouco não tinha caído.

- Não havia lá ninguém com armas - disse Cadfael -, a não ser os homens de vossa senhoria. Tinha sido uma emboscada dupla, para o atrair para aquela floresta à noite, sem suspeitar de nada. E eram tantas milhas entre Woodstock e Sutton Mauduit no regresso como na vinda, e haveria outras noites tão escuras como aquela durante a viagem.

- Quem? - perguntou Roger num sussurro áspero. - Qual deles? Dá-me um nome!

- Não - disse Cadfael simplesmente. - Adivinhai vós. Eu já não estou ao vosso serviço e disse tudo o que pretendia dizer.

O rosto de Roger tinha ficado cinzento. Estava a ouvir de novo o plano tão sedutoramente murmurado ao seu ouvido.

- Não podes deixar-me assim! Se sabes tanto, por amor de Deus regressa comigo, leva-me em segurança para casa, pelo menos. Em ti posso confiar!

- Não - repetiu Cadfael. - Estais avisado, agora protegei-vos!

Considerou que era justo; bastava. Virou-se e afastou-se sem mais uma palavra. Foi, tal como estava, às Vésperas na igreja paroquial, por nenhuma razão melhor - pelo menos assim pensou na altura - do que a penumbra no interior da porta aberta que o atraiu quando voltou as costas ao dever cumprido, a convidá-lo ao recolhimento e reflexão, e o sino que tocava naquele momento. O pequeno prior estava lá, numa ação de graças ardente, mais uma criatura que tinha conseguido completar uma tarefa e virar uma página no livro da sua vida.

Cadfael observou o serviço, e ficou mudo e imóvel durante algum tempo depois de o padre e os fiéis terem saído. Depois de todos saírem, o silêncio ficou mais profundo que o oceano e mais sólido que a terra. Cadfael respirou e consumiu-o como um pão novo. Foi o leve toque de uma mão pequena no punho da sua espada que o despertou daquele isolamento profundo. Baixou os olhos e viu um pequeno acólito, que lhe chegava ao cotovelo, a olhá-lo muito sério com grandes olhos redondos de um azul arrebatador, intensos e desafiadores, tão solene como um mensageiro angélico.

- Senhor - disse a criança num tom profundamente reprovador, a bater no punho com um dedo infantil -, não deveriam todas as armas de guerra ser deixadas de lado aqui?

- Senhor - disse Cadfael, não menos sério, embora estivesse a sorrir -, podeis ter muita razão. - E, lentamente, tirou a espada do cinto e foi pousá-la, deitada, no primeiro degrau do altar. A arma pareceu estranhamente apropriada e em paz ali. Afinal de contas, o punho era uma cruz.

 

O prior Heribert estava a comer um jantar frugal com os seus felizes irmãos na casa do padre da paróquia quando Cadfael pediu para ser recebido por ele. O homenzinho saiu graciosamente para dar as boas-vindas a um desconhecido, e considerou-o pelo menos um conhecido, e agora de imediato, certamente um amigo.

- Tu, meu filho! E seguramente eras tu nas Vésperas? Senti que devia conhecer a tua forma. És o mais bem-vindo dos convidados aqui, e se houver alguma coisa que eu e os meus possamos fazer para te recompensar pelo que fizeste por nós, é só dizeres.

- Padre - disse Cadfael, no seu sotaque fortemente galês -ides para casa amanhã?

- Seguramente, meu filho, saímos depois da Prima. O abade Godefrid estará à espera para saber como nos saímos.

- Então, Padre, aqui estou eu num ponto de viragem da minha vida, livre do serviço de um senhor, e acabado para as armas. Levai-me convosco!

 

               O PREÇO DA LUZ

Hamo Fitzhamon de Lidyate possuía duas grandes casas senhoriais na extremidade nordeste do condado, perto da fronteira de Cheshire. Embora comesse de mais, bebesse muito e fosse um devasso ignorante, um senhorio duro e um patrão brutal, tinha chegado aos sessenta anos com uma saúde de ferro, e foi um choque salutar quando, por fim, sofreu uma ligeira apoplexia, e pela primeira vez na sua vida viu o outro mundo abrir-se à sua frente e acordou para a consciência inquietante de que talvez ele pensasse tratá-lo com mais austeridade do que este mundo tinha feito. Embora não se arrependesse de nada do que tinha feito, estava consciente de uma grande quantidade de atos no seu passado que o céu poderia encarar como grandes pecados. Começou a parecer-lhe uma precaução prudente adquirir mérito para a sua alma o mais rapidamente possível. E também de uma forma barata, pois ele era um homem ganancioso e possessivo. Um presente judicioso a alguma casa santa deveria assegurar o bem-estar da sua alma. Não havia necessidade de ir ao ponto de fazer uma doação a uma abadia, ou construir uma nova igreja que fosse sua. A abadia Beneditina de Shrewsbury podia lançar um forte ataque de orações em seu nome em troca de um presente muito mais modesto.

O pensamento de esmolas para os pobres, por muito ostensivamente que fosse entregue, não era recomendável. O que quer que fosse doado depressa seria gasto e esquecido, e uma ralé de miseráveis bênçãos de indigentes tinha muito pouco peso, para além de não lançar qualquer glória duradoura sobre a sua pessoa. Não, queria alguma coisa que continuasse a ser usada diariamente e a ser respeitada diariamente, uma lembrança permanente da sua munificência e devoção. Levou algum tempo a tomar a decisão, e quando ficou satisfeito quanto ao melhor valor que conseguiria pelo menor dispêndio possível mandou o seu homem de leis a Shrewsbury para conferenciar com o abade e o prior, e concluir com a devida cerimônia e muitas testemunhas a carta legal que concedia ao guarda do altar de Santa Maria, no interior da igreja da abadia, um dos seus rendeiros livres, a renda da propriedade para fornecer luz ao altar de Nossa Senhora durante um ano inteiro. Prometeu também, para que a sua caridade fosse bem visível, a doação de um par de candelabros de prata, que ele próprio traria e mandaria instalar no altar na próxima festa de Natal.

O abade Heribert, que depois de uma vida longa de desilusões repetidas ainda conseguia pensar o melhor de toda a gente, ficou comovido até às lágrimas com aquela generosidade penitente. O prior Robert, ele próprio um aristocrata, absteve-se, por solidariedade normanda, de pôr em dúvida o motivo de Hamo, mas não deixou de erguer as sobrancelhas. O Irmão Cadfael, que conhecia apenas a reputação pública do doador, e era suficientemente cético para suspender o julgamento até descobrir a origem daquela generosidade, não disse nada, e esperou para observar e decidir por si. Não que esperasse grande coisa; estava no mundo há cinquenta e cinco anos e aprendera a controlar todas as suas expectativas, más ou boas.

Foi com um interesse moderado e desligado que observou a chegada do grupo de Lidyate, na manhã da Véspera de Natal. Estava a ser um Natal duro e frio, naquele ano de 1135, com um gelo que queimava tudo e neve incomodativa, fina e aguçada como chicotes aliada a um vento cortante de este. O tempo tinha estado mau o ano inteiro, e a colheita fora um desastre. Nas aldeias, as pessoas passavam frio e fome, e o Irmão Oswald, o encarregado da distribuição das esmolas, preocupava-se e lamentava-se, tanto mais que as esmolas que tinha para distribuir não eram suficientes para manter todos aqueles corpos e almas juntos. O som de cascos de três bons cavalos, montados por cavaleiros ricamente protegidos do frio, e seguidos por dois cavalos de carga, fez todos os infelizes suplicantes amontoarem-se e gritarem, estendendo as mãos azuis do gelo. A única coisa que conseguiram foi uma única mão cheia de moedas praticamente sem valor, e quando lhe dificultaram o andamento FitzHamon usou o chicote com naturalidade para abrir caminho. “Os rumores”, pensou Cadfael, parando a caminho da enfermaria com os medicamentos diários para os doentes, “provavelmente não tinham feito nenhuma injustiça a FitzHamon.”

Ao desmontar no grande pátio, o cavaleiro de Lidyate revelou-se um homem grande, demasiado gordo e pesado, com cabelos, barbas e sobrancelhas espessos, todos salpicados de branco no preto anterior, e duros e eriçados como arame. Era muito possível que tivesse sido um homem muito atraente antes de a vida de excessos lhe arroxear o rosto e marcar a pele e afundar os astutos olhos pretos em papos de carne flácida. Parecia mais velho do que era na realidade, mas ainda era um homem a ter em conta.

O segundo cavalo transportava a sua esposa, num segundo selim atrás de um criado. A senhora era de estatura pequena, mesmo envolta até quase à invisibilidade nas suas lãs e peles, e vinha confortavelmente aconchegada contra as costas largas do criado, com os braços a rodearem-lhe a cintura. E ele era um mancebo bem parecido, aquele criado, um rapaz robusto com pouco mais de vinte anos, com faces redondas e coradas e olhos alegres e sinceros, pernas compridas, ombros largos, tudo o que um rapaz do campo devia ser, e atento aos seus deveres naquela ocasião, pois desmontou da sela com um salto ágil e estendeu os braços para pegar a senhora pela cintura, com tanta vontade como aquela com que ela o apertara momentos antes, e baixou-a suavemente para o chão. Mãos pequenas, enluvadas, pousaram nos ombros dele por um instante um pouco mais demorado do que seria necessário. O respeitoso apoio continuou até ela estar no chão em segurança e com os pés bem assentes; talvez alguns segundos mais. Hamo FitzHamon estava ocupado com as boas-vindas cerimoniosas do prior Robert, e com as atenções do capelão, que tinha preparado para eles os melhores aposentos da ala de hóspedes.

O terceiro cavalo também transportava duas pessoas, mas a mulher no selim não esperou que ninguém a auxiliasse a desmontar e deslizou rapidamente para o chão, apressando-se a ir ajudar a sua senhora com o grande manto exterior com que ela tinha viajado. Uma mulher jovem, calma e submissa, talvez com uns vinte e cinco anos, talvez mais velha, com roupas toscas castanho-claras e os cabelos escondidos sob uma touca grosseira. O seu rosto era magro e pálido, a pele surpreendentemente branca, e os olhos, reservados e cansados, eram de um azul pálido e claro, uma cor feroz que não se adequava nada à sua humildade e resignação.

Ao erguer as pesadas pregas dos ombros da senhora, a criada revelou-se uma cabeça mais alta do que ela, mas grosseira ao lado do pequeno pássaro brilhante que emergiu do manto. Lady FitzHamon avançou a sorrir graciosamente para o mundo em escarlate e castanho, como um pisco, e com extrema confiança. Cabelos escuros emolduravam uma cabeça pequena e bem proporcionada, faces suaves e cheias, rosadas pelo ar gelado, e grandes olhos escuros seguros do seu encanto e poder. Era impossível que tivesse mais de trinta anos, provavelmente nem tanto. FitzHamon tinha um filho crescido algures, com filhos seus, e à espera, diziam alguns com pouca paciência, da sua herança. A moça devia ser uma segunda ou terceira esposa, bastante mais jovem do que o enteado e uma verdadeira beldade. Hamo era suficientemente seguro e suficientemente importante para se manter fornecido de esposas até se fartar delas. Esta devia ter-lhe custado uma fortuna, pois não tinha o aspecto de uma familiar pobre mas bonita vendida para uma aliança lucrativa, e, pelo contrário, parecia conhecer muito bem o seu estatuto e estar decidida a que ele fosse reconhecido.

Certamente que ficaria bem a presidir à mesa de honra em Lidyate, que era provavelmente a sua principal função.

O criado atrás do qual a criada tinha vindo era um homem idoso, magro e hirsuto, com um rosto como o tronco de um carvalho nodoso. Pela paciência sardônica dos seus olhos notava-se que era um criado próximo e relativamente favorecido de FitzHamon há muitos anos, conhecia o melhor e o pior que os seus estados de espírito podiam fazer, e estava seguro da sua própria capacidade para ultrapassar as tempestades. Sem uma palavra, começou a descarregar os cavalos de carga e depois seguiu o seu senhor para a ala de hóspedes, enquanto o jovem pegava no freio do cavalo de FitzHamon e levava os animais para os estábulos.

Cadfael observou as duas mulheres a atravessar o pátio em direção à porta, a senhora ágil como uma corsa jovem, com olhos inteligentes a observar tudo o que a rodeava, a criada alta mantendo-se sempre um passo atrás, a reduzir a passada para manter a distância. Até assim, frustrada como um falcão engaiolado, tinha um porte gracioso. Quase certamente de ascendência vilã como os dois criados. Cadfael tinha grande prática a distinguir os livres dos não livres. Não que os livres tivessem uma vida fácil, muitas vezes viviam pior do que os vilãos da sua aldeia; havia imensos homens livres, este Natal, magros e esfomeados, obrigados a estender mãos implorantes no meio da multidão em volta da casa do porteiro. A liberdade, a primeira ambição de qualquer homem, ainda não podia encher as barrigas de mulheres e filhos numa estação má.

FitzHamon e o seu grupo apareceram nas Vésperas em plena glória, para supervisionar a instalação dos candelabros no altar da Capela de Nossa Senhora. Não foi difícil o abade, o prior e os irmãos admirarem bastante a doação, pois eram sem dúvida peças de grande beleza, dois caules aflautados que terminavam nos copos gêmeos de lírios em flor. Até os veios das folhas apareciam delicados e perfeitos como na planta viva. O Irmão Oswald, o encarregado da distribuição das esmolas, ele próprio um habilidoso ourives quando tinha tempo para praticar o seu ofício, ficou a olhar para os embelezamentos do altar com um rosto e mente curiosamente divididos entre arrebatamento e pena, e aventurou-se a atrasar o doador por momentos, enquanto ele estava a ser levado para jantar com o abade Heribert nos aposentos deste.

- Meu senhor, são obras verdadeiramente nobres. Eu tenho algum conhecimento de metais preciosos, e dos ourives mais notáveis desta região, mas nunca vi trabalho tão idêntico à planta como este. Aqui vê-se o olho de um homem do campo, mas a mão de um artesão da corte. Posso saber quem os fez?

O rosto estragado de FitzHamon ficou ainda mais roxo, como se uma sombra imperdoável tivesse sido lançada sobre esta hora de autocongratulação. Disse, bruscamente:

- Encomendei-os a um homem que está ao meu serviço. Não conheceríeis o nome dele... nasceu vilão, mas tinha algumas capacidades. - E dito isto, afastou-se, evitando mais perguntas, e a mulher, os criados e a criada seguiram atrás dele. Apenas o criado mais idoso, que parecia ter menos medo do seu senhor do que os outros, talvez por ter presidido tantas vezes à cerimônia de o transportar perdido de bêbado para a cama, voltou para trás por instantes para puxar a manga do Irmão Oswald, e lhe dizer num sussurro confidencial:

- Vereis que ele não gosta de falar sobre aquela pessoa. O ourives... Alard era o seu nome... fugiu apressadamente do seu serviço no Natal passado, e embora o tenham perseguido até Londres, para onde todos os indícios apontavam, nunca foi encontrado. Se fosse a vós, deixava o assunto por aqui.

E depois de ditas estas palavras trotou atrás do seu senhor, e deixou diversos rostos pensativos a olhar para ele.

- Não é homem que se separe de boa vontade de qualquer propriedade sua - refletiu o Irmão Cadfael -, metal ou homem, a não ser por um preço, e um preço muito alto.

- Tem vergonha, Irmão! - reprovou o Irmão Jerome ao seu lado. - Não se separou ele destes mesmos tesouros por pura caridade?

Cadfael absteve-se de tecer comentários sobre o lucro que FitzHamon esperava obter com a sua benevolência. Nunca valia a pena discutir com Jerome, que de qualquer maneira sabia tão bem como qualquer pessoa que os lírios de prata e a renda de uma quinta não eram uma oferenda altruísta. Mas o Irmão Oswald disse, pesarosamente:

- Quem dera que ele tivesse direcionado melhor a sua caridade. Seguramente, são coisas belas, um deleite para os olhos, mas bem vendidas proporcionariam dinheiro suficiente para comprar os meios de subsistência para os meus pobres mendigos durante o Inverno, alguns dos quais morrerão certamente por falta deles.

O Irmão Jerome ficou escandalizado.

- Ele não as deu à própria Nossa Senhora? - lamentou-se ele, indignado. - Cuidado para não cometerem o pecado daqueles apóstolos que gritaram a mesma queixa contra a mulher que trouxe o cântaro de nardo indiano e o despejou sobre os pés do Salvador. Lembrem-se de como Nosso Senhor os censurou, e lhes disse que deviam deixá-la em paz, pois ela fizera a coisa certa!

- Nosso Senhor estava a reconhecer um impulso de devoção bem intencionado - declarou o Irmão Oswald acaloradamente. - Não disse que era sensato! “Ela fez o que podia”, foi o que Ele disse. Nunca disse que com alguma reflexão poderia ter feito melhor. Que adiantaria magoar a doadora, depois da ação praticada? Óleo de nardo italiano entornado dificilmente poderia ser recuperado.

Os seus olhos pousaram com amor e compunção nos lírios de prata, com os pequenos caules de cera e chama. Pois esses perduravam, e ainda era possível desviá-los para outro uso, ou teria sido possível se o doador fosse um homem mais acessível. Afinal de contas, ele tinha o direito de dispor da sua propriedade como quisesse.

- É pecado - admoestou Jerome hipocritamente - até cobiçar para outra utilização, por muito valorosa que seja, aquilo que foi oferecido a Nossa Senhora. O próprio pensamento é pecado.

- Se Nossa Senhora pudesse dar a conhecer a Sua vontade - disse o Irmão Cadfael secamente -, talvez ficássemos a saber qual é o maior pecado, e qual é o sacrifício mais aceitável.

- Poderia algum preço ser demasiado alto para iluminar este altar sagrado? - perguntou Jerome.

Enquanto se dirigiam para o jantar no refeitório, Cadfael pensou que era uma boa pergunta. Perguntassem ao Irmão Jordan, por exemplo, o valor da luz. Jordan era velho e frágil, e estava a ficar gradualmente cego. Por enquanto ainda conseguia distinguir formas, mas como sombras num sonho, embora conhecesse tão bem os claustros e os recintos que a escuridão que se adensava não constituía um obstáculo para a sua liberdade de movimentos. Mas, tal como todos os dias o lusco-fusco se fechava nele como uma persiana, também o seu amor profundo pela luz ficava mais dedicado a cada dia que passava, ao ponto de ter abandonado outras tarefas e assumido a responsabilidade de cuidar de todas as lamparinas e velas dos dois altares, com o único objectivo de ser sempre irradiado por luz, e ainda por cima por luz sagrada. Logo que as Completas terminassem, naquela tarde, ocupar-se-ia a aparar os pavios das velas e das lamparinas, para ter as chamas firmes, sem fumo e imaculadas para as Matinas do Dia de Natal. Era duvidoso que fosse para a cama antes de as Matinas e as Laudes terminarem. Os muito idosos precisam de pouco sono, e o sono é em si uma espécie de escuridão. Mas aquilo a que Jordan dava valor era à luz, e não ao recipiente que a suportava; e aquelas velas esplêndidas de duas libras não brilhariam sobre si tão bem em castiçais simples de madeira?

Cadfael encontrava-se na sala da lareira com o resto dos irmãos, aproximadamente um quarto de hora antes das Completas, quando um irmão laico da ala de hóspedes veio à sua procura.

- A senhora pede se podeis ir falar com ela. Queixa-se de uma grande dor de cabeça, e que nunca conseguirá dormir. O Irmão Hospitalário recomendou-vos para lhe aliviar a dor.

Cadfael acompanhou-o sem comentários, mas com alguma curiosidade, pois nas Vésperas Lady FitzHamon parecia estar de saúde florescente e com um bom humor animado. E também não parecia muito diferente quando a encontrou na sala de jantar, embora ainda estivesse enrolada no manto que usara para atravessar o grande pátio para o salão e para a casa do abade, e tivesse o capuz tão enfiado na cabeça que lhe escondia o rosto. A criada silenciosa estava junto dela.

- Sois o Irmão Cadfael? Disseram-me que sois perito em plantas e medicamentos, e que podeis certamente ajudar-me. Voltei mais cedo do jantar com o senhor abade, com uma dor de cabeça enorme, e disse ao meu senhor que irei deitar-me cedo. Mas tenho um sono tão irregular, e com esta dor como conseguirei descansar? Podeis dar-me algum remédio que me alivie? Dizem que tendes uma farmácia perfeita no vosso herbário, e que é tudo feito por vós, o crescimento, a colheita, a secagem, a infusão e tudo. Deve haver lá alguma coisa capaz de aliviar a dor e provocar um sono profundo.

Bem, pensou Cadfael, não se podia culpá-la por procurar de vez em quando um meio de escapar às atenções grosseiras do velho marido por uma noite, especialmente numa noite de festa em que o mais certo seria ele beber muito. E também não competia a Cadfael questionar-se sobre se a paciente precisava realmente dos seus remédios. Um convidado podia pedir tudo o que a casa tinha disponível.

- Tenho um xarope que eu próprio faço - disse ele - e que poderá prestar-vos um bom serviço. Vou trazer-vos um frasco dele da minha oficina.

- Posso acompanhar-vos? Gostaria de ver a vossa oficina. - Ela tinha-se esquecido de parecer frágil e cansada, e a sua voz poderia ser a de uma criança curiosa. – Já estou protegida do frio e calçada - disse ela, insinuante. - Acabamos de voltar da mesa do senhor abade.

- Mas não devíeis entrar para vos protegerdes do frio, minha senhora? Embora a neve seja varrida aqui no pátio, acumula-se em alguns dos carreiros do jardim.

- Alguns minutos de ar fresco vão fazer-me bem - disse ela - antes de tentar dormir. E não pode ser longe.

Não era longe. Depois de se afastarem das luzes fracas dos edifícios tomaram consciência das estrelas, a brilhar como faúlhas de uma lareira fria, num céu limpo e preto onde se acumulavam apenas algumas nuvens a oriente. No jardim, entre as sebes entrelaçadas, parecia quase quente, como se as árvores adormecidas respirassem ar temperado assim como cortavam o vento gelado. O silêncio era profundo. O herbário estava murado, e a cabana de madeira onde Cadfael fabricava e armazenava os seus medicamentos estava abrigada do frio mais intenso. Depois de se encontrarem no interior, e de uma pequena lamparina ter sido acesa, Lady FitzHamon, esqueceu o seu papel de doente e olhou à sua volta, maravilhada e encantada, com olhos brilhantes e curiosos. A criada, submissa e imóvel, quase não mexeu a cabeça, mas os olhos foram da esquerda para a direita, e uma cor muito leve trouxe vida às suas faces. Os muitos cheiros leves e doces fizeram as suas narinas estremecer, e os seus lábios curvaram-se quase imperceptivelmente de prazer.

Curiosa como um gato, a senhora mexeu em cada saco e jarro e caixa, e espreitou para almofarizes e frascos, e fez mil perguntas de um fôlego.

- E isto é rosmaninho, estas pequenas agulhas secas? E neste grande saco... é grão? - Mergulhou as mãos até aos pulsos na abertura, e a cabana encheu-se de doçura. - Lavanda? Uma colheita tão grande de lavanda? Então, prepara perfumes para nós, mulheres?

- A lavanda tem outras propriedades boas - replicou Cadfael. Estava a encher um pequeno frasco com um xarope transparente que fazia de papoulas orientais, um legado dos seus anos de Cruzado. - É útil para todas as desordens que perturbam a cabeça e o espírito, e o seu cheiro é calmante. Dar-vos-ei uma pequena almofada cheia com essa e outras plantas, que vos ajudará a dormir. Mas este xarope vai tratar disso. Podeis tomar todo o que vos dou aqui, e não vos acontecerá mal nenhum, a não ser uma boa noite de repouso.

Ela tinha estado a brincar inquisidoramente com uma pilha de pequenos pratos de barro que se encontravam em cima da bancada de trabalho, pratos toscos em que as sementes finas retiradas das plantas de frutos podiam ser espalhadas para secar; mas voltou imediatamente para olhar com ansiedade para o modesto frasco que ele lhe estendeu.

- É suficiente? É preciso muito para me provocar sono.

- Isto - garantiu-lhe ele, pacientemente – provocaria sono a um homem forte. Mas não fará mal nem sequer a uma senhora delicada como vós.

Ela tomou o frasco na mão com um sorriso leve e matreiro de satisfação.

- Então agradeço-vos muito! Vou dar um presente... achais bem?... ao vosso encarregado das esmolas como paga. Elfgiva, traz a almofadinha. Vou respirá-la a noite inteira. Deve adoçar os meus sonhos.

Então ela chamava-se Elfgiva. Um nome nórdico. Tinha olhos de nórdica, como ele já tinha reparado, azuis como gelo, e pele pálida e fina, ainda mais fina e seca devido ao cansaço. Durante todo o tempo tinha reparado em tudo o que acontecia, imóvel, e não proferira uma única palavra. Seria mais velha ou mais nova do que a sua senhora? Era impossível adivinhar. Uma era tão exuberante, e a outra tão imóvel.

Ele apagou a lamparina e fechou a porta, e levou-as de novo para o grande pátio mesmo a tempo de se despedir delas e de não se atrasar para as Completas. Claramente, a senhora não pretendia assistir ao serviço religioso. Quanto ao senhor, estava a ser ajudado a sair dos aposentos do abade, com os dois criados a segurarem-no, um de cada lado, embora ainda não estivesse gravemente bêbado. Dirigiram-se para a ala de hóspedes sem grandes dificuldades. Sem dúvida que apenas a hora das Completas concluíra o jantar, provavelmente para considerável alívio do abade. Ele não bebia, e não podia ter muito em comum com Hamo FitzHamon. Para além, é claro, de uma profunda devoção pelo altar de Santa Maria.

A senhora e a criada já tinham desaparecido no interior da ala de hóspedes. O criado mais jovem trazia na mão livre um grande jarro, cheio, a avaliar pela forma como o segurava. A jovem esposa podia beber o remédio e agarrar a almofadinha com confiança; a bebida ainda não tinha chegado ao fim, e o seu sono seria solitário e descansado. O Irmão Cadfael foi para as Completas ligeiramente triste, e obscuramente confortado.

Só depois de o serviço terminar, e os irmãos estarem a caminho das suas celas, é que ele se lembrou de que tinha deixado o frasco de xarope de papoula destapado. Não que lhe acontecesse algum mal naquela noite gelada, mas o seu sentido de perfeição levou-o a ir remediar a omissão antes de dormir.

Os pés calçados com sandálias, agasalhados com tiras de tecido de lã para se manterem quentes e seguros nos caminhos gelados, tornaram a sua vinda bastante silenciosa, e já estava a levar uma mão ao trinco da porta, mas ainda sem lhe tocar, quando se deteve abruptamente ao ouvir um murmúrio de vozes no interior. Vozes suaves, sussurrantes e sonhadoras que faziam mais sons do que conversa, mais carícias do que palavras, embora pelo menos uma vez as palavras se tenham ouvido por um momento. Uma voz de homem, jovem, circunspecta, a dizer:

- Mas e se ele...?

E uma gargalhada suave e abafada de mulher:

- Vai dormir até de manhã, não tenhas medo! - E as suas palavras foram subitamente abafadas com beijos, e a gargalhada dela transformou-se em suspiros enormes de êxtase; a respiração do jovem era triunfalmente ofegante, mas mesmo assim, momentos depois, de novo a nota de medo que ainda o possuía:

- Mesmo assim, conhece-lo, ele pode...

E ela, tranquilizadora:

- Não na próxima hora, pelo menos... depois, vamos embora... vai ficar frio aqui...

De qualquer maneira, aquilo era verdade; havia pouco receio de eles quererem dormir ali a noite inteira, mesmo que se enrolassem os dois no banco-cama que estava encostado à parede de madeira. O Irmão Cadfael recuou muito circunspectamente do herbário, e voltou para o dormitório com pensamentos castos. Agora sabia quem tinha bebido aquele xarope, e não tinha sido a senhora. No jarro de vinho que o jovem criado tinha levado? O suficiente para um homem forte, mesmo que não tivesse já bebido demais. Entretanto, sem dúvida que o criado particular tinha ficado a deitar o seu senhor, algures longe do aposento onde a senhora se encontrava, supostamente, a curar a indisposição e a dormir o sono dos inocentes. Ah, bom, Cadfael não tinha nada a ver com o assunto, e não tinha a menor intenção de se envolver. Não se sentia particularmente disposto a censurar. Duvidava de que ela alguma vez tivesse sido consultada quanto ao seu casamento com Hamo; e com aquele rapaz atraente sempre por perto, para realçar o contraste... Uma experiência fugaz de paixão genuína, a ecoar amores antigos, intrometeu-se vivamente nos anos da sua vocação. Pelo menos sabia o que estava a perdoar. E quem poderia deixar de sentir alguma admiração pelo seu atrevimento oportunista, pela inteligência arguta que procurara o meio, pelo olhar atento que detectara o abrigo mais remoto e adequado à sua disposição?

Cadfael foi para a cama, e dormiu sem sonhos, levantando-se com o sino das Matinas, alguns minutos antes da meia-noite. A procissão dos irmãos percorreu o caminho sinuoso das escadas noturnas para a igreja, e para o brilho suave das luzes diante do altar de Santa Maria.

Reverentemente afastado algumas jardas do degrau do altar, o velho Irmão Jordan, que podia estar há muito na sua cela com os outros, estava ajoelhado e com as mãos postas e o rosto extasiado, no qual os olhos grandes e velados olhavam diretamente para a luz que ele amava. Quando o prior Robert soltou uma exclamação preocupada ao vê-lo ali nas pedras, e pousou uma mão no seu ombro, ele despertou como se estivesse a sair de um transe, e ergueu para os irmãos um olhar que era apenas luz.

- Oh, Irmãos, fui tão abençoado! Vivi um milagre... Louvado seja Deus que me concedeu essa graça! Mas tende paciência comigo, pois estou proibido de falar seja a quem for durante três dias. Daqui a três dias poderei falar...!

- Olhai, Irmãos! - gemeu Jerome de repente, a apontar. - Olhai para o altar!

Todos os homens presentes, exceto Jordan, que continuou a rezar e a sorrir serenamente, voltaram-se para observar o local que Jerome apontara. As velas altas estavam presas por pingos da sua própria cera em dois pequenos pratos de barro, como os que Cadfael usava para separar sementes. Os dois lírios de prata tinham desaparecido do lugar de honra.

 

Apesar da perda, desordem, consternação e suspeita, o prior Robert manteve estritamente a ordem do dia. Que Hamo FitzHamon dormisse na feliz ignorância até à manhã seguinte, e as Matinas e as Laudes tinham de ser celebradas condignamente. O Natal era mais importante do que todas as doações e perdas de artigos de prata. Sombriamente, presidiu aos serviços da igreja, e despachou os irmãos de volta para a cama até à Prima, para dormirem ou ficarem acordados e com medo. E também não permitiu que ninguém importunasse o velho irmão Jordam, embora, possivelmente, em particular tivesse tentado extrair algo mais satisfatório do velhote. Claramente o roubo, quer soubesse alguma coisa sobre ele quer não, não perturbou Jordan. A tudo dizia apenas: “Fui obrigado ao silêncio até à meia-noite do terceiro dia.” E quando perguntavam por quem, ele sorria seraficamente e mantinha-se em silêncio.

Foi o próprio Robert quem deu a notícia a Hamo FitzHamon, de manhã, antes da missa. O ataque de fúria, embora violento, foi de certa forma temperado pelos efeitos posteriores do xarope de papoula de Cadfael, que acalmava os picos de energia, se não da malícia. O seu criado particular, o criado mais velho, Sweyn, manteve-se longe do alcance do seu senhor, mesmo com Robert ainda presente, e a senhora também estava sentada a alguma distância, como se ainda estivesse fragilizada e, possivelmente, um pouco indisposta. Ela expressou obedientemente, e com aparente sinceridade, o ultraje que o marido tinha sofrido e fez eco da exigência deste de que o ladrão fosse procurado, e os candelabros recuperados. O prior Robert estava igualmente zeloso em relação a esse ponto. Não deviam ser poupados esforços para recuperar a oferenda principesca, disso podiam estar certos. Já se tinha certificado de várias circunstâncias que limitariam a busca. Tinha caído alguma neve depois das Completas, apenas a suficiente para deixar uma fina camada de branco no chão. Aquela camada pura ainda não tinha sido maculada por quaisquer pegadas. Bastou-lhe verificar os carreiros que partiam das duas portas da igreja para constatar que ninguém tinha saído por ali. O porteiro juraria que ninguém tinha passado pela Casa do porteiro; e um dos lados da abadia não era murado, e o ribeiro Meole estava cheio e gelado, mas a neve de ambos os lados estava virgem. Dentro do enclave, é claro, todos os carreiros estavam pisados por todo o lado; mas ninguém tinha saído do enclave desde as Completas, altura em que os candelabros ainda se encontravam no seu lugar.

- Então o miserável ainda está dentro destas paredes? - exclamou Hamo, a cintilar vingativamente. - Tanto melhor! Então o seu tesouro também está ainda aqui dentro, e mesmo que seja preciso virar tudo do avesso vamos encontrar os candelabros! Os candelabros, e o ladrão!

- Vamos procurar em todo o lado - concordou Robert -, e interrogar todos os homens. Estamos tão profundamente ofendidos como vossa senhoria com este crime blasfemo. Podeis supervisionar pessoalmente a busca, se quiserdes.

Assim, ao longo de todo aquele dia de Natal, paralelamente aos festejos solenes na igreja, o recinto foi assolado por uma busca profundamente enraivecida. Não foi difícil para os monges justificarem o seu tempo até ao minuto, pois a sua rotina era tão certa que cada irmão ilibava inevitavelmente o outro de suspeita; e aqueles que tinham deveres especiais que os levavam a afastar-se da vista dos outros, como Cadfael na sua visita ao herbário, tinham testemunhas para atestar da sua seriedade. Os irmãos laicos andavam mais livremente, mas tendiam a trabalhar em pares, pelo menos. Os criados e os poucos hóspedes protestaram a sua inocência, e se não tivessem, todos eles, outros dispostos a corroborar as suas afirmações, Hamo não poderia provar o contrário. Em relação aos dois criados, havia diversas testemunhas que declararam que Sweyn tinha voltado para a sua cama no sótão dos estábulos imediatamente depois de pôr o seu senhor na cama, e sem dúvida de mãos vazias; e Sweyn, como Cadfael reparou com interesse, jurou sem pestanejar que o jovem Madoc, que voltara uma hora depois dele, tinha no entanto ido com ele, e passara essa hora, por ordem de Sweyn, a cuidar de um dos cavalos de carga, que mostrava sinais de tosse, e que depois disso tinham estado juntos o tempo todo.

“Um vilão a proteger instintivamente a sua espécie contra o seu senhor?”, interrogou-se Cadfael. “Ou saberá Sweyn muito bem onde é que aquele jovem esteve a noite passada, ou pelo menos o que esteve a fazer, e quis protegê-lo de uma vingança pior?” Não admirava que naquela manhã Madoc parecesse ligeiramente menos alegre e corado do que era costume, embora no todo se mantivesse controlado e se abstivesse até de olhar para a senhora, enquanto o tom dela para ele era frio, cortante e distante.

Cadfael deixou-os a procurar de novo após a refeição infeliz em que transformaram o jantar, e foi para a igreja sozinho. Enquanto todos procuravam febrilmente os candelabros em todos os cantos, ele tinha-se abstido de procurar, mas agora que tinham ido para outro lado qualquer talvez encontrasse alguma pista interessante. Não ia procurar uma coisa tão óbvia como dois grandes candelabros de prata. Curvou-se junto ao altar, e subiu o degrau para observar de perto as velas a arder. Ninguém tinha prestado qualquer atenção aos recipientes modestos que tinham substituído a oferenda de Hamo, e ainda bem que, dadas as circunstâncias, a oficina de Cadfael era muito pouco visitada, se não aqueles pratos de barro poderiam ter sido reconhecidos como provenientes de lá. Ele próprio os tinha moldado e cozido como os queria. Não tinha qualquer intenção de perdoar o roubo, mas também não gostava da ideia de qualquer criatura, por muito pecadora que fosse, cair nas mãos de Hamo FitzHamon.

Algo comprido e fino, um fio de alvo ouro, estava preso e enrolado na cera na base de uma das velas. Ele soltou cuidadosamente a vela do contentor e soltou dela um cabelo comprido e claro; para se certificar de que o apanhava todo, partiu o disco de cera que o prendia, e depois levantou e virou a vela para ver se havia mais alguma coisa por baixo. Via-se um ponto oval minúsculo; com uma unha, extraiu uma única semente de lavanda. Teria ficado no prato antes daquele dia? Não lhe pareceu. Os recipientes empilhados estavam todos vazios. Não, aquela semente tinha sido trazida para ali na prega de uma manga, muito provavelmente, e caíra enquanto a vela estava a ser transferida.

A senhora tinha mergulhado as suas mãos com prazer dentro da saca de lavanda, e andara livremente pela oficina a observar tudo. Teria sido fácil tirar dois daqueles pratos sem ser vista, e embrulhá-los numa prega da sua capa. Ainda mais plausível, podia ter delegado a tarefa ao jovem Madoc, quando saíram sorrateiramente do encontro. Supondo, por exemplo, que tinham chegado ao ponto desesperado de planejar a fuga juntos, e precisavam de fundos para lhes permitir alcançar um refúgio seguro... sim, havia possibilidades. Entretanto, o grão de lavanda tinha dado outra ideia a Cadfael. E havia, evidentemente, aquele cabelo comprido e fino, pálido como linho, mas mais brilhante. O rapaz era louro. Mas tão louro?

Percorreu o jardim gelado até ao seu herbário, fechou-se em segurança na oficina e abriu a saca de lavanda, mergulhando os dois braços até aos cotovelos e vasculhando na doçura gelada e suave que se separava e deslizava como cereal. Eles estavam lá, bem no fundo, os seus dedos tatearam primeiro a forma de um, e depois de um segundo. Sentou-se para refletir sobre o que devia ser feito.

Encontrar os bens perdidos não identificava o ladrão. Poderia apresentá-los e devolvê-los imediatamente, mas FitzHamon continuaria a busca por vingança até descobrir o culpado; e Cadfael já o conhecia o suficiente para saber que podia custar a vida a alguém antes de a queixa estar satisfeita. Precisava saber mais antes de entregar qualquer homem ao seu destino trágico. No entanto, era mais sensato não ter aquelas coisas ali. Duvidava de que revistassem a sua cabana, mas tudo era possível. Enrolou os candelabros numa saca e atirou-os para o centro da sebe entrelaçada, no local onde esta era mais densa. A neve fina e congelada tinha derretido com o sol fugaz. Enfiou o braço até ao ombro, e quando o retirou os galhos voltaram ao seu lugar e taparam tudo, prendendo o embrulho em segurança. Quem quer que os tivesse escondido viria, seguramente, de noite para os ir buscar, e mostraria, por fim, um rosto humano.

Ainda bem que ele os tinha retirado, pois os homens que andavam a procurar, conduzidos por um cada vez mais irritado Hamo, chegaram à sua cabana antes das Vésperas e examinaram tudo o que se encontrava no seu interior, enquanto ele permanecia de lado para impedir que estragassem os seus medicamentos, e saíram convencidos de que aquilo que procuravam não estava ali. Na verdade, não tinham sido muito rigorosos em relação à saca de lavanda, e os candelabros talvez tivessem escapado sem serem descobertos se ele os tivesse deixado lá. Felizmente, ninguém teve a brilhante ideia de abrir a saca. Depois de todos saírem, para inspecionar toda a palha e cereais nos celeiros, Cadfael restituiu os candelabros ao seu lugar inicial. Que a isca ficasse em segurança na armadilha até o ladrão vir buscá-lo, como aconteceria seguramente, depois de aliviado do medo de que os perseguidores o encontrassem primeiro.

Nessa noite, Cadfael ficou a vigiar. Não teve dificuldade em ausentar-se do dormitório, uma vez que estavam todos na cama e a dormir. A sua cela ficava junto às escadas noturnas, e o prior dormia na outra extremidade do longo aposento, e tinha o sono pesado. E, embora o ar noturno estivesse gelado, a cabana abrigada estava pouco mais fria do que a sua cela, e ele mantinha cobertores lá para proteger alguns dos seus jarros e frascos do gelo. Pegou na sua pequena caixa com mecha e pederneira, e escondeu-se no canto atrás da porta. Podia ser uma vigília perdida; o ladrão, que tinha sobrevivido um dia, podia achar sensato deixar passar mais um dia antes de ir buscar o seu tesouro.

Mas o seu tempo não foi desperdiçado. Calculou que deviam ser aproximadamente dez horas quando ouviu uma mão a mexer levemente na porta. Duas horas antes de o sino tocar para as Matinas, quase duas horas desde que os criados se tinham retirado. Agora, até a ala de hóspedes estaria em silêncio, com todos os seus ocupantes adormecidos; a hora fora escolhida cuidadosamente. Cadfael conteve a respiração e esperou. A porta abriu-se devagar, uma sombra passou furtivamente por ele, passos leves seguiram sem se enganar até ao sítio onde a saca de lavanda estava encostada à parede. Igualmente silencioso, Cadfael voltou a fechar a porta, e encostou-se a ela. Só então acendeu uma faísca, e segurou a chama junto ao pavio da sua pequena lamparina.

Ela não pestanejou nem gritou, nem tentou passar por ele e fugir para a noite. A tentativa não teria tido sucesso, e ela tinha longa prática em aguentar o que não tinha remédio. Ficou a olhar para ele enquanto a chama se firmava e crescia, com o rosto escondido pelo capuz do manto, os candelabros possessivamente encostados ao peito.

- Elfgiva! - disse o Irmão Cadfael suavemente. E depois: - Estás aqui por ti, ou a mando da tua senhora? – Mas pareceu-lhe que já conhecia a resposta. Aquela esposa jovem e frívola nunca abandonaria o marido rico e a vida fácil, por muito tediosas e desagradáveis que fossem as atenções de Hamo, para arriscar tudo com o jovem amante vilão que não tinha um tostão de seu. Só o manteria para desfrutar dele em segredo sempre que fosse seguro. Mesmo quando o velho morresse, ela submeter-se-ia a casar por vontade de um suserano com outro homem igualmente desagradável. Não era feita do estofo das heroínas e aventureiras. Era outra espécie de mulher.

Cadfael aproximou-se e ergueu suavemente uma mão para lhe tirar o capuz da cabeça. Ela era alta, um palmo mais alta do que ele, e tão direita como um dos lírios que segurava. A rede que lhe tinha coberto os cabelos saíra com o capuz, e uma grande corrente de ouro brilhante espalhou-se à volta dela à luz fraca, emoldurando-lhe o rosto pálido e os arrebatadores olhos azuis. Cabelos de nórdica! Os dinamarqueses tinham deixado a sua semente tão para sul até Cheshire, e plantado aquela flor alta entre eles. Ela já não era simples, cansada e resignada. Àquela luz fraca mas encantadora resplandecia numa beleza austera. Era assim que os olhos do Irmão Jordan deviam tê-la visto.

- Agora percebo! - disse Cadfael. - Entraste na Capela de Nossa Senhora, e brilhaste na escuridão do nosso irmão quase cego como brilhas aqui. Tu és a aparição que o deixou maravilhado e arrebatado, e lhe pediu silêncio por três dias.

A voz que ele quase não ouvira proferir uma única palavra até àquele momento, uma voz suave, baixa e bela, disse:

- Eu não pretendi ser o que não sou. Foi ele que me confundiu. Eu não recusei o presente,

- Compreendo. Não esperavas encontrar alguém lá, ele apanhou-te tão de surpresa como o apanhaste a ele. Ele pensou que era Nossa Senhora em pessoa, a dispor como lhe convinha do que lhe tinha sido oferecido. E tu fizeste-o prometer três dias de graça. - A senhora tinha mergulhado as mãos na saca, sim, mas Elfgiva tinha levado a almofada, e um ou dois grãos tinham-se escapado pela musselina para a trair.

- Sim - disse ela, a observá-lo com olhos azuis que não pestanejavam.

- Então, no fim não tinhas nada contra o fato de ele divulgar a forma como os candelabros foram roubados. - Não era uma acusação, ele estava a seguir o seu raciocínio para a compreensão.

Mas ela disse, de imediato e com clareza:

- Eu não os roubei. Levei-os. Vou devolvê-los... ao seu proprietário.  

- Então não afirmas que te pertencem?

- Não - disse ela -, não me pertencem. Mas também não pertencem a FitzHamon.

- Estás a dizer-me - perguntou Cadfael em voz suave - que não houve roubo nenhum?

- Oh, sim - declarou Elfgiva, e a sua palidez transformou-se num brilho feroz e a sua voz vibrou de tensão. - Sim, houve um roubo, e um roubo vil e cruel, mas não aqui, não agora. O roubo deu-se há um ano, quando FitzHamon recebeu estes candelabros de Alard que os fez, seu servo como eu. Sabeis qual foi o preço prometido por ele? A libertação de Alard, e casamento comigo, o que lhe implorávamos há mais de três anos. Mesmo na servidão, teríamos casado e ficado gratos. Mas ele prometeu a liberdade! Homem livre liberta a mulher, e eu também fui prometida. Mas quando conseguiu as obras maravilhosas que queria, recusou-se a pagar o preço prometido. Riu-se! Eu vi, eu ouvi-o! Afastou Alard a pontapés como um cão. Assim, o que era seu, e ele lhe negara, Alard tomou. Fugiu! Fugiu no dia de Santo Estêvão.

- E deixou-te ficar? - perguntou Cadfael brandamente.

- Que hipótese teria de me levar? Ou sequer de se despedir de mim? Foi levado para a outra propriedade de FitzHamon e obrigado a efetuar trabalhos braçais. Quando surgiu a oportunidade, aproveitou-a e fugiu. Eu não fiquei triste! Alegrei-me! Quer viva ou morra, quer se recorde de mim ou me esqueça, é livre. Não, mas daqui a dois dias será livre. Durante um ano e um dia terá ganho a vida com o seu ofício numa vila com foral, e depois disso não poderá ser arrastado à força para a servidão, mesmo que seja encontrado.

- Não creio - disse o Irmão Cadfael - que ele se tenha esquecido de ti! Agora percebo por que é que o nosso irmão pode falar passados três dias. Então será demasiado tarde para tentar reclamar o servo fugido. E afirmas que essas coisas maravilhosas que seguras pertencem por direito a Alard, que as fez?

- Seguramente - disse ela -, uma vez que nunca foi pago por elas, continuam a pertencer-lhe.

- E hoje vais sair para lhas levar. Sim! Segundo ouvi, tiveram algum motivo para o perseguir na direção de Londres... na verdade, até Londres, embora nunca o tenham encontrado. Soubeste alguma coisa dele? Ele deu-te notícias?

O rosto pálido sorriu.

- Nem ele nem eu sabemos ler ou escrever. E em quem poderia confiar para levar um recado até o tempo estar completo, e ele estar livre? Não, nunca recebi notícias dele.

- Mas Shrewsbury também é uma vila com foral onde os não livres podem trabalhar durante um ano e um dia para alcançarem a liberdade. E as vilas sensatas encorajam a vinda de artesãos hábeis, e irão longe para escondê-los e protegê-los. Eu sei! Então, pensas que ele pode estar aqui. E que a pista para Londres era falsa. Na verdade, por que fugiria para tão longe, quando há ajuda tão perto? Mas, filha, e se não o encontrares em Shrewsbury?

- Então irei procurá-lo noutros lados até o encontrar. Eu também posso viver fugida, tenho capacidades, posso ganhar a vida até saber notícias dele. Shrewsbury precisa tanto de uma boa costureira como dos dons de um homem, e alguém no ofício da ourivesaria saberá onde encontrar um irmão tão talentoso como Alard. Vou encontrá-lo!

- E quando encontrares? Oh, criança, já pensaste no que poderá acontecer depois disso?

- Pensei em tudo - disse Elfgiva com firmeza. - Se o encontrar e ele já não me quiser, já não pensar em mim, se estiver casado e me tiver apagado do pensamento, então entregar-lhe-ei estas coisas que lhe pertencem, para ele fazer delas o que quiser, e seguirei o meu caminho e viverei a minha vida o melhor possível sem ele. E vou desejar-lhe o melhor enquanto viver.

Oh, não, não precisava de temer pois não seria facilmente esquecida, não num ano, não em muitos anos.

- E se ele ficar profundamente contente ao ver-te, e ainda te amar?

- Então - disse ela, a sorrir gravemente -, se os sentimentos dele forem iguais aos meus, fiz uma promessa a Nossa Senhora, que me emprestou a sua aparência aos olhos do velhote, de que venderemos estes candelabros onde eles possam alcançar um preço justo, e que esse dinheiro será entregue ao vosso distribuidor de esmolas para alimentar os pobres. E essa será a nossa oferenda, de Alard e minha, embora ninguém o venha a saber.

- Nossa Senhora saberá - disse Cadfael -, e eu também. Agora, como é que estás a pensar sair deste enclave e entrar em Shrewsbury? Os nossos dois portões e as portas da cidade estão fechados até de manhã.

Ela ergueu ombros eloquentes.

- As portas da igreja paroquial não estão fechadas. E mesmo que deixe pegadas, que importa isso se arranjar um esconderijo seguro no interior da cidade?

- E esperas ao frio da noite? Gelarias antes de a manhã chegar. Não, deixa-me pensar. Nós podemos fazer melhor do que isso por ti.

Os lábios dela disseram “Nós?” em silêncio, surpreendidos, mas rápidos a compreender. Não questionou as decisões dele, da mesma forma que ele não tinha questionado as suas. Ele pensou que se recordaria durante muito tempo do sorriso lento e cada vez mais profundo, do brilho de calor que lhe invadiu as faces.

- Acreditais em mim! - disse.

- Em cada palavra! Dá-me os candelabros, deixa-me embrulhá-los e volta a colocar os teus cabelos na rede e no capuz. Não temos neve fresca desde a manhã, o carreiro para a porta da igreja está bastante pisado, por isso ninguém reconhecerá as tuas pegadas entre muitas. E, moça, quando chegares à extremidade da ponte do lado da cidade há uma pequena casa à esquerda, encostada à muralha, perto das portas da cidade. Bate lá e pede abrigo para passar a noite até as portas se abrirem, e diz que foi o Irmão Cadfael que te mandou. Eles conhecem-me, tratei o filho deles quando esteve doente. Vão dar-te um canto quente e um lugar para dormir, por bondade, e não farão perguntas, mas também não responderão a perguntas de outras pessoas. E, provavelmente, saberão onde encontrar os ourives da cidade, e indicar-te-ão o caminho certo.

Ela prendeu os cabelos pálidos e brilhantes e cobriu a cabeça, envolvendo-se na capa e transformando-se de novo na criada com roupas grosseiras. Obedeceu sem perguntas a todas as palavras dele, seguiu-o em silêncio pelo grande pátio a coberto das sombras, parando quando ele parava, e assim chegaram à igreja e ele deixou-a sair pela porta da paróquia para a estrada pública, ainda faltava mais de uma hora para as Matinas. No último momento ela disse, perto do ombro dele e já junto à porta entreaberta:

- Ficarei grata para sempre. Um dia, mandar-vos-ei notícias.

- Não há necessidade de palavras - disse o Irmão Cadfael - se me enviares o sinal de que eu estarei à espera. Agora vai, depressa, não há nem uma alma a mexer-se.

Ela desapareceu, levemente e em silêncio, deslizando pela casa do porteiro da abadia como uma sombra alta, na direção da ponte e da cidade. Cadfael fechou a porta devagar e voltou pelas escadas noturnas para o dormitório, tarde de mais para dormir, mas a tempo de se levantar ao som do sino e voltar em procissão para celebrar as Matinas.

É claro que na manhã seguinte teve de enfrentar o tumulto resultante, e não podia dar-se ao luxo de o evitar pois havia demasiado em jogo. Naturalmente, Lady FitzHamon esperava que a criada estivesse à sua disposição no momento em que abriu os olhos, e soltou um grito petulante quando não viu a sombra submissa à espera para vesti-la e penteá-la. Não adiantou nada chamá-la, e as suas buscas foram infrutíferas, mas só mais de uma hora depois é que a senhora percebeu que tinha perdido para sempre a sua criada perfeita. Furiosa, arranjou-se sem auxílio, e saiu, irada, para se queixar ao marido, que se tinha levantado antes dela e estava à sua espera para que o acompanhasse à Missa. Quando ela declarou, enraivecida, que Elfgiva não estava em lado nenhum, e que devia ter fugido durante a noite, ele começou por troçar, pois por que diabo sairia uma moça sensata para um gelo de morte quando tinha calor, abrigo e comida suficiente onde estava? Depois, fez a associação inevitável, e soltou um grito de fúria.

- Desapareceu, é? E atrevo-me a jurar que os meus candelabros desapareceram com ela! Então foi ela! A ladrazinha reles! Mas ainda vou apanhá-la, e arrasto-a para cá, e ela não viverá para desfrutar dos seus lucros obtidos desonestamente...

Parecia provável que a senhora concordaria do fundo do coração com tudo o que o marido acabara de dizer; a sua boca já estava aberta para fazer eco das palavras dele quando o Irmão Cadfael, roçando a manga dela quando os agitados irmãos rodearam o par, conseguiu deixar cair alguns grãos de lavanda no seu pulso. A boca dela fechou-se abruptamente. Ela olhou para as sementes minúsculas por um instante fugaz antes de as sacudir, olhou ainda mais fugazmente para o Irmão Cadfael, fitou-o e ouviu num sussurro rápido:

- Senhora, suavemente!... a prova da inocência da criada é também prova da inocência da senhora.

Ela não era de maneira nenhuma uma mulher estúpida. Um segundo olhar rápido confirmou o que já tinha suspeitado, que havia um homem ali que tinha uma arma contra ela e que era pelo menos tão mortal como qualquer uma que pudesse usar contra Elfgiva. Era também uma mulher decidida, e depois de escolhido o caminho não perdeu tempo com amarguras. O tom em que se dirigiu ao marido foi quase tão duro como aquele em que se queixara da deserção de Elfgiva.

- Ela a vossa ladra, pois! Isso é um disparate, como devíeis saber muito bem. A moça revelou-se uma tola ingrata ao deixar-me, mas ladra nunca foi, e certamente não é desta vez. Não é possível ela ter tirado os candelabros, sabeis bastante bem quando é que eles desapareceram, e sabeis que eu não estava bem naquela noite e que fui cedo para a cama. Ela esteve comigo até muito depois de o Irmão Prior ter descoberto o roubo. Eu pedi-lhe que ficasse comigo até vós irdes para a cama. Coisa que nunca fizestes! - terminou ela causticamente. - Deveis lembrar-vos!

Provavelmente, Hamo recordava-se de muito pouco do que acontecera naquela noite; certamente, não estava em posição de contradizer o que a mulher declarara com tanta convicção. Descarregou um pouco do seu mau humor nela, mas ela não tinha medo dele a ponto de não se atrever a responder-lhe à letra. É claro que estava segura do que dizia! Ela não tinha bebido até cair de bêbada à mesa do senhor abade, ela tinha estado a curar uma grande dor de cabeça de outro tipo, e mesmo com os remédios do Irmão Cadfael só tinha conseguido adormecer depois da meia-noite, e nessa altura Elfgiva ainda estava ao seu lado. Ele que procurasse a criada fugida, evidentemente, a miserável ingrata, mas que nunca lhe chamasse ladra, pois ela não era nada disso.

E ele procurou-a, embora com menos energia agora que parecia claro que não recuperaria a sua propriedade com ela. Mandou os seus criados e metade dos servos laicos em ambas as direções para perguntar se alguém tinha visto uma moça sozinha com pressa; os homens andaram a investigar o dia inteiro, mas voltaram de mãos vazias.

O grupo de Lidyate, com menos um elemento, partiu para casa no dia seguinte. Lady FitzHamon seguia recatadamente atrás do jovem Madoc, com a face encostada aos ombros largos do rapaz; até brindou o Irmão Cadfael com o brilho de um sorriso de conspiração enquanto o grupo saía da abadia, e soltou um braço da cintura de Madoc para acenar quando chegaram à estrada. Assim, Hamo não estava presente para ouvir quando o Irmão Jordan, por fim libertado do seu voto, contou como Nossa Senhora lhe aparecera numa visão de luz, loura como um anjo, e levara consigo os candelabros que lhe pertenciam para fazer com eles o que quisesse, e como falara com ele, e o obrigara a jurar três dias de silêncio. E se houve alguns dos ouvintes que se interrogaram sobre se a mulher loura não fora um ser mais corpóreo, ninguém teve a coragem de o afirmar a Jordan, cuja visão representou conforto e consolo no desvanecer da luz.

Foi nas Matinas, à meia-noite do dia de Santo Estêvão. Entre as parcas esmolas entregues na casa do porteiro na manhã seguinte, para os mendigos, havia um pequeno cesto surpreendentemente pesado. O porteiro não conseguia recordar-se de quem o trouxera, e pensara que eram algumas oferendas de comida ou roupas velhas, como tudo o resto; mas quando foi aberto, o Irmão Oswald correu, quase incoerente de felicidade e espanto, para o abade Heribert, para lhe relatar o que parecia ser um milagre. Pois o cesto estava cheio de moedas de ouro, no valor de mais de cem marcos. Bem usado, aquele dinheiro aliviaria as piores necessidades dos seus paroquianos mais pobres, até o tempo melhorar.

- Seguramente - disse o Irmão Oswald, devotamente -, Nossa Senhora tornou a sua vontade conhecida. Não é este o sinal que esperávamos?

Certamente era para Cadfael, e mais cedo do que se atrevera a esperar. Tinha a mensagem que não necessitava de palavras. Ela encontrara-o, e fora recebida com alegria. Desde a meia-noite, Alard o ourives era um homem livre, e homem livre liberta a esposa. Presenteado com uma mulher como Elfgiva, podia dar de tão boa vontade como ela, pois o que era ouro, o que era prata, em comparação?

 

               TESTEMUNHA OCULAR

Foi sem dúvida uma desconsideração do Irmão Ambrose ter adoecido com uma forte dor de garganta apenas alguns dias antes da cobrança das rendas anuais, deixando os registros por copiar, e as novas entradas por incluir. Ninguém conhecia os arquivos da abadia tão bem como o Irmão Ambrose. Tinha sido escrivão do Irmão Matthew, o despenseiro, durante quatro anos, durante os quais tinham entrado grandes doações, um moinho novo no Tern, pastos, terrenos desbravados, casas de habitação na cidade, glebas no campo, um pesqueiro no rio, até uma ou duas igrejas, e ninguém como ele podia apontar o dedo ao inquilino em falta ou ao rendeiro, ou ao dono da casa que tinham sempre duas ou três histórias para justificar a incapacidade de pagar. E aqui estava a cobrança a apenas um dia de distância, e o Irmão Ambrose deitado na enfermaria, a grasnar como um corvo doente e sem préstimo algum.

O administrador chefe do Irmão Matthew, que fazia sempre a cobrança pessoalmente na cidade e nos subúrbios de Shrewsbury, considerou que era quase uma ofensa pessoal. Tivera de colocar como substituto um jovem escrivão laico que entrara para o serviço da abadia há menos de quatro meses. Não que tivesse encontrado alguma causa para se queixar do trabalho do jovem. Ele tinha copiado industriosamente e com apuro, e mostrado grande atenção e interesse na compreensão rápida do que copiava, abrindo os olhos respeitosamente perante o valor da lista das rendas.

Mas o mestre William Rede tinha sido incomodado e pretendia que toda a gente soubesse. Era um homem com cerca de cinquenta anos, lamuriento e amigo de discussões, que se lhe dissessem que uma coisa era branca dizia inevitavelmente que era preta, e apresentava provas documentais para apoiar a sua teoria. Foi visitar o velho amigo à enfermaria, na véspera do dia agendado para a cobrança, mas especulou-se se teria sido para o confortar ou para o censurar. O Irmão Ambrose, ainda afônico, tentou falar mas conseguiu apenas soltar um arquejo doloroso, antes de o Irmão Cadfael, que estava a ungir a garganta do paciente com banha de ganso, e tinha um xarope calmante de erva-pinheira a postos, pousar a palma da mão sobre a boca do sofredor e ordenar silêncio.

- Ora, William - disse ele, tolerante -, se não podes confortar, não se envergonhe. Esta pobre alma já está suficientemente preocupada, e sabes tão bem como eu que tens o assunto todo nas mãos. Diz-lhe isso mesmo, e esboça um sorriso, ou então sai imediatamente. - Enrolou uma tira de boa flanela galesa em volta da garganta brilhante e pegou na colher que estava no gargalo do frasco de xarope. O Irmão Ambrose abriu a boca com a resignação devota de um passarinho à espera de ser alimentado, e engoliu a dose com uma expressão de apreciação levemente surpreendida.

Mas William Rede não ia esquecer o seu desgosto tão facilmente.

- Oh, a culpa não é tua - concedeu ele de má vontade -, mas grande azar o meu, como se não tivesse bastante trabalho em mãos sem isto, com a lista das rendas tão grande, e o fardo do trabalho de escrivão cada vez maior, como acontece. E tenho problemas pessoais mais perto de casa, para ajudar, com aquele bandido do meu filho que não passa de um desordeiro e jogador. E disse-lhe mais uma vez, como já lhe disse mil vezes, que a próxima vez que vier pedir-me para lhe pagar as dívidas ou para pagar fianças para ele se livrar de confusões, virá em vão, pois irá resolver os seus problemas na prisão que é bem feito. Um homem pensaria que podia ter um pouco de paz e consolo com os seus. A única coisa que tenho é vergonha.

Depois de lançado naquele tom, podia continuar a canção indefinidamente, e o Irmão Ambrose já estava com uma expressão apologética e abjeta, como se não fosse William, mas ele, que tinha engendrado o filho insatisfatório. Cadfael não se recordava de ter jamais falado com o jovem Rede, para além de bom dia ou boa tarde, e sabia o suficiente sobre pais e filhos, e sobre as expectativas que cada um tinha do outro, para aceitar todas aquelas queixas com cautelosa reserva. Os relatos diziam certamente que o jovem era rebelde, mas aos vinte e dois anos qual das esperanças das famílias não era? Aos trinta anos estavam quase todos a trabalhar duramente, e a cuidar das suas bolsas, casas e esposas.

- O teu rapaz vai emendar-se, como a maioria dos outros - disse Cadfael descontraidamente, levando o volúvel visitante da enfermaria para o sol do grande pátio. Diante deles, à esquerda, erguia-se a grande torre oeste da igreja; à direita, o bloco comprido da ala de hóspedes, e a seguir as copas das árvores do jardim que começavam a encher-se de folhas e botões, com uma luz húmida e cor de pérola a filtrar-se sobre a alvenaria e as lajes, inundando tudo com um suave esplendor primaveril. - Quanto às rendas, sabes muito bem, velho ranzinza, que tens o teu dedo em cada linha do livro de cobranças, e o trabalho de amanhã será como dar um passeio matinal. De qualquer maneira, não podes queixar-te do jeito do teu aprendiz. Ele tem trabalhado duramente naqueles teus livros.

- Sem dúvida que Jacob mostrou aplicação - concordou o administrador cautelosamente. - Reconheço que fiquei surpreendido com o conhecimento que ele tem dos assuntos da abadia, num período de tempo tão curto. Hoje em dia, os jovens têm tendência para se interessarem pouco por aquilo que fazem... noctívagos e frívolos, a maior parte deles. Tem sido um consolo ver um deles a trabalhar com tanto zelo. Atrevo-me a dizer que nesta altura já sabe o valor devido por cada propriedade da casa. Sim, é um bom rapaz. Mas demasiado ingênuo, Cadfael, é a falha dele... demasiado afável. Números e letras em pergaminho não o confundem, mas um vigarista de falinhas mansas poderia enganá-lo. Não consegue manter-se afastado dos homens... não consegue colocar gelo no meio. Não é bom ser-se tão aberto com todos os homens.

Estavam a meio da tarde; dentro de aproximadamente uma hora seria o momento das Vésperas. O grande pátio tinha sempre um fluxo constante de atividade, mas esta hora era a altura de maior calma. Atravessaram calmamente o pátio juntos, o Irmão Cadfael para regressar à sua oficina no herbário, o administrador para se dirigir para o carreiro norte do claustro, onde o seu assistente trabalhava arduamente no escritório. Mas antes de chegarem ao ponto onde os seus caminhos se separariam, dois homens jovens emergiram do claustro a conversar descontraidamente, e aproximaram-se deles.

Jacob de Bouldon era um jovem forte e entroncado do sul do condado, com um rosto redondo e amistoso, olhos grandes e cândidos, e um sorriso pronto. Vinha com uma folha de pergaminho dobrada numa mão e uma pena atrás da orelha, e notava-se que era um escrivão ansioso e trabalhador. Talvez um pouco receptivo de mais às abordagens de qualquer homem, como o seu mestre havia dito. O fulano alto e magro, e de cabeça estreita, que vinha atentamente ao seu lado tinha uma expressão completamente diferente, batido pelas intempéries, com olhos astutos e com roupas grosseiras, escuras e gastas, com um colete de couro para se proteger da fricção de uma trouxa pesada. A parte de trás do ombro esquerdo estava mais clara e gasta de tanto carregar, e o chapéu era largo e tinha a aba descaída, para o proteger da chuva. Um vendedor ambulante, com alguns dias de negócios em Shrewsbury, nenhuma novidade na ala de hóspedes da abadia. Homens como ele andavam constantemente nas estradas, algures no condado.

O vendedor ambulante inclinou-se para o mestre William com obsequioso respeito, desejou os bons dias e dirigiu-se para o seu alojamento. Ainda era cedo para terminar o dia, seguramente, mas talvez ele tivesse feito bons negócios e tivesse voltado para se reabastecer de mercadoria. Um homem de negócios avisado mantinha algumas coisas de reserva, quando tinha um armazém seguro à mão, ao invés de carregar tudo o que tinha em todas as incursões.

O mestre William ficou a observá-lo sem grande simpatia.

- Que é que aquele fulano tinha que ver contigo, rapaz? - perguntou, desconfiado. - Parece curioso demais, com aquele seu nariz comprido. Já o vi a meter conversa com todos os criados que consegue atrair para um canto. Que queria ele no escritório?

Jacob abriu ainda mais os olhos grandes.

- Oh, ele é um homem muito honesto, senhor, tenho a certeza. Embora goste de meter o nariz em tudo, asseguro-vos, e faça imensas perguntas...

- Então tu não lhe darás respostas - declarou o administrador com firmeza.

- Não dou. Só falo de coisas gerais que não o deixarão mais sábio. Embora esteja convencido de que ele é apenas naturalmente curioso e que não tem segundas intenções. Ele gosta de cair nas boas graças de toda a gente, mas isso deve-se ao seu ofício. Um vendedor ambulante de falas grossas não venderia muitas fitas e rendas - afirmou o jovem com jovialidade, e agitou a folha de pergaminho que trazia na mão.

- Vinha perguntar-vos sobre esta terra em Recordine... há uma rasura no livro de rendas, por isso procurei o original para comparar. Deveis recordar-vos, senhor, que foi terra disputada durante algum tempo, com o herdeiro a tentar recuperá-la...

- Recordo-me, sim. Vem, vou mostrar-te o original. Mas fala o menos possível com esses viajantes, sem seres descortês - recomendou o mestre William com veemência. - Nas estradas, a par dos homens honestos, também há vigaristas. Muito bem, vai andando que eu já vou.

Observou a figura despachada enquanto esta se afastava rapidamente, de volta para o escritório.

- Como eu disse, Cadfael, ele agrada-se demasiado facilmente com todos os homens. Não é sensato procurar sempre o melhor nos homens. Mas, apesar de tudo isso - acrescentou ele, revertendo taciturnamente para o seu desgosto particular -, quem me dera que aquele meu malandro fosse mais parecido com ele. Já endividado por causa de um disparate de jogo, e ainda se deixa prender pelos sargentos por causa de uma briga de rua, e é multado, e não pode pagar a multa. E para manter o meu bom nome, ele está confiante de que eu vou ter de pagar as dívidas dele. Terei de tratar disso amanhã, de uma maneira ou de outra, depois de terminar as rondas pela cidade, pois ele só tem três dias para pagar. Se não fosse pela mãe dele... Mesmo assim, mesmo assim, desta vez devia obrigá-lo a arcar com as consequências.

Partiu atrás do escrivão, a abanar a cabeça amargamente por causa dos seus problemas. E Cadfael foi verificar que proezas de idiotice ou de gênio é que o Irmão Oswin tinha feito no herbário durante a sua ausência.

 

De manhã, quando os irmãos saíram da Prima, o Irmão Cadfael viu o administrador a sair para iniciar a sua ronda, com a grande sacola de couro presa no cinto, e a balançar em duas tiras fortes. Ao fim da tarde estaria cheia com a riqueza anual das rendas da cidade e dos subúrbios a norte do lado de fora das muralhas. Jacob estava lá para se despedir dele, a escutar atentamente as suas últimas instruções enfáticas e a suspirar quando foi deixado para completar a escrita. Warin Harefoot, o vendedor ambulante, também saiu cedo, para efetuar as suas vendas entre as donas de casa quer da cidade, quer da paróquia de Foregate. Um fulano enérgico, cheio de vênias e sorrisos profissionais, mas, a avaliar pelo seu aspecto, todos os esforços não lhe traziam mais do que um magro salário.

E Jacob voltou para a sua pena e tinteiro nos claustros, e o mestre William partiu para a sua importante missão. “E quem sabe”, pensou Cadfael, “qual deles tem razão, o jovem que vê o melhor em todos, e confia em todos, ou o velho que suspeita de todos até os ter investigado exaustivamente? O primeiro pode tropeçar numa armadilha de vez em quando, mas pelo menos desfrutará da luz do sol ao longo do caminho, entre as quedas. O outro pode nunca tropeçar, mas raramente saberá o que é a alegria. O melhor é encontrar um caminho intermediário!”

Foi uma sorte curiosa a que o sentou ao lado do Irmão Eutropius ao café da manhã, pois que é que alguém sabia sobre o Irmão Eutropius? Tinha vindo para a abadia de São Pedro e São Paulo de Shrewsbury há apenas dois meses, de uma pequena herdade da Ordem. Mas dois meses com o Irmão Oswin, e aquele jovem teria sido um livro aberto para todos os leitores, ao passo que Eutropius se escondia tão rigidamente como escondia a sua pele, e desvendava o mínimo de informações possível. Um homem taciturno, aparentemente com uns trinta anos, que se mantinha à parte e olhava com solitário descontentamento para tudo o que cruzava o seu caminho, mas nunca se queixava. Podia dever-se simplesmente ao fato de ser novo ali e tímido, e uma pessoa naturalmente não comunicativa, ou talvez fosse uma raiva interior contra a sua sorte e contra o mundo inteiro. Diziam os rumores que era um homem frustrado no amor, e que não encontrara alívio no recurso ao hábito. Mas os rumores estavam a usar a imaginação, por falta de combustível mais fidedigno.

Eutropius também trabalhava sob as ordens do Irmão Matthew, o despenseiro, e era inteligente e culto, sem ser um escrivão bom ou rápido. Talvez, quando o Irmão Ambrose ficara doente, ele tivesse gostado que lhe tivessem sido confiados os livros. Talvez estivesse ressentido por terem preferido o escrivão laico. Talvez! Até agora, com Eutropius tudo era conjectura. Um dia, alguém perfuraria aquela sua carapaça, com uma palavra sem defesas ou um movimento súbito e irresistível, e o mistério deixaria de ser um mistério, e o desconhecido deixaria de ser desconhecido.

O Irmão Cadfael era demasiado experiente para ter pressa no que dizia respeito às almas. Havia imenso espaço na eternidade.

 

À tarde, quando voltou ao pátio da granja para ir buscar algumas sementes que tinha deixado armazenadas no sótão, Cadfael encontrou Jacob, que tinha terminado a escrita e se dirigia com ares importantes e a sua própria sacola de couro para Foregate.

- Então, ele deixou uma parte para tu cobrares - disse Cadfael.

- De boa vontade teria feito mais - disse Jacob, levemente ofendido e muito digno. Parecia ter menos de vinte e cinco anos, embora fosse bem desenvolvido, com aquele rosto de querubim. - Mas ele diz que tem a certeza de que eu vou ser lento, pois não conheço as voltas nem os inquilinos, por isso só me deixou ficar com as vielas isoladas de Foregate, onde não preciso me apressar. Atrevo-me a dizer que ele tem razão, vou demorar mais tempo do que penso. Lamento vê-lo tão preocupado com o filho - disse ele, a abanar a cabeça. - Tem de resolver o problema dele com a lei, disse-me que não me preocupasse se ele viesse mais tarde hoje. Espero que corra tudo bem - disse o leal subordinado, e seguiu vigorosamente para cumprir a tarefa que lhe tinha sido confiada pelo mestre, por muito ocupado que estivesse com outras preocupações.

Cadfael levou as sementes para o jardim, dedicou-lhe cerca de uma hora de trabalho, lavou as mãos e voltou para verificar os progressos do Irmão Ambrose, que apenas conseguiu grasnar ao seu ouvido, mais audivelmente que no dia anterior:

- Eu podia levantar-me e ajudar o pobre William... é um dia difícil para ele...

Foi calado nesse momento com uma palma grande e áspera.

- Fica quieto - disse Cadfael -, como um homem sensato. Deixa-os ver como conseguem arranjar-se sem ti, e doravante dar-te-ão mais valor. E também já não era sem tempo! - Alimentou novamente o pássaro cativo e voltou para os seus trabalhos no jardim.

Nas Vésperas, o Irmão Eutropius chegou atrasado e apressado, e ocupou o seu lugar a respirar rapidamente, mas tão impenetrável como sempre. E quando saíram para ir jantar no refeitório, Jacob de Bouldon vinha a entrar o portão com a sacola das rendas ciosamente protegida com uma mão e a olhar em volta, esperançado, à procura do mestre, que ainda não tinha chegado. E vinte minutos depois, quando o jantar terminou, ainda não havia sinal dele; ao anoitecer, Warin Harefoot atravessou o pátio para a ala de hóspedes, cansado, e o saco no seu ombro parecia pouco mais leve do que quando ele saíra pela manhã.

 

Madog do Barco dos Mortos, para além do seu meio principal de subsistência, que consistia na recolha de cadáveres do Rio Severn em todas as estações, tinha uma série de ocupações sazonais que o divertiam e também lhe proporcionavam um meio de ganhar a vida. Dessas ocupações, aquela que mais lhe agradava era a pesca, e de todas as estações de pesca aquela de que mais gostava era a subida do rio, no princípio da Primavera, dos salmões adultos, jovens machos enérgicos que tinham chegado anteriormente ao estuário, e subiriam e saltariam muitos quilómetros contra a corrente antes de desovarem. Madog era perito em apanhá-los, e tirara um da água nesse mesmo dia, antes de ter remado o seu pequeno barco para o meio dos arbustos densos sob a comporta do castelo, um carreiro estreito que descia desde a cidade, e lançado um fio pequeno ao rio para apanhar o que aparecesse. Ali estava um esconderijo bom, coberto de folhas, e ele podia prender o barco na margem e dormitar até a linha o despertar com um esticão. De cima, quer das ameias do castelo, da muralha da cidade ou de janelas mais altas, não podia ser visto.

Estava a começar a ficar escuro quando foi despertado bruscamente pelo ruído de alguma coisa pesada a mergulhar na água, a montante. Imediatamente desperto, afastou-se cerca de uma jarda da margem para procurar onde tinha ouvido o ruído, mas não viu nada que justificasse o som, até um redemoinho no meio da corrente lhe mostrar uma manga castanho-escura à superfície, e depois a palidez oval de um rosto a erguer-se e a desaparecer novamente da vista. O corpo de um homem virou-se lentamente na corrente enquanto passava. Madog foi instantaneamente atrás dele, com os remos a mergulhar na água. Tirar um cadáver do rio para dentro daquele barco pequeno era uma tarefa arriscada, mas ele já a tinha praticado tantas vezes que a aperfeiçoara, equilíbrio e elevação e tudo, desde o primeiro agarrar da manga ondulante até ao momento em que o pequeno barco baloiçou como uma rolha e rodopiou como uma folha à deriva, com o homem afogado no interior e a meter água. Naquele momento já estavam praticamente a meio do rio, e havia meia dúzia de irmãos laicos a deixar o trabalho nas hortas ao longo do Gaye, do outro lado, a ajuda mais próxima à vista. Madog dirigiu-se para a margem deles e gritou antes de alcançar a margem para impedir que se fossem embora e fazê-los correr para junto do barco.

Quando chegaram junto dele já tinha tirado o homem para a margem, voltara-o de rosto para baixo na erva e segurava-o com firmeza no peito para tirar a água do interior do corpo, a apertar energicamente com mãos grandes, nodosas.

- Ele esteve no rio apenas alguns segundos, ouvi-o a cair na água. Vistes alguma coisa ali junto à comporta? - Mas eles abanaram as cabeças, preocupados e ansiosos, e espreitaram para o corpo encharcado, que naquele momento inspirou, engasgou-se e vomitou a água que tinha engolido.

- Ele está a respirar. Vai sobreviver. Mas queriam que ele se afogasse, não há dúvida. Vede!

Na nuca de cabelos fortes e grisalhos o sangue escorria lentamente, ao longo de um ferimento aberto e dentado.

Um dos criados laicos soltou uma exclamação em voz alta, e ajoelhou-se para voltar o rosto marcado e pálido para a luz.

- Mestre William! Este é o nosso administrador! Ele estava a cobrar as rendas na cidade... Vede, a sacola desapareceu do cinto! - Dois sítios gastos e dentados mostravam onde a pesada sacola gastara o couro por baixo, e a ponta inferior do forte cinto mostrava um golpe de uma faca afiada, onde as tiras tinham sido cortadas à pressa. - Roubo e homicídio!

- Um certamente, mas não o outro... ainda não - disse Madog, prático. - Ele está a respirar, ainda não está perdido. Mas o melhor é o levarmos para a cama mais próxima e mais quente, e aposto que será na vossa enfermaria. Usai esses ancinhos e essas pás que trazeis, e eu posso emprestar um casaco, se algum de vós quiser dispensar o seu...

Fizeram uma maca para levar o mestre William para a abadia, o mais rapidamente possível, sem muitas oscilações. A entrada na abadia chamou a atenção de porteiros, hóspedes e irmãos, alarmados e preocupados. O Irmão Edmund, o enfermeiro, veio a correr e indicou-lhes o caminho para uma cama ao lado da lareira na enfermaria. Jacob de Bouldon, correndo para confirmar os seus receios, soltou um grito perturbado, mas recompôs-se galantemente e correu para chamar o Irmão Cadfael. O sub-prior, uma vez informado das circunstâncias por Madog, que estava demasiado acostumado a afogados ou semiafogados para ficar excitado, enviou muito sensatamente um mensageiro a pé para a cidade para dar a notícia ao preboste e ao xerife, e a caça iniciou-se quase antes de a vítima ser despida das roupas molhadas, enrolada em cobertores e deitada na cama.

O sargento do xerife veio e ouviu o relato de Madog, franzindo o sobrolho apenas momentaneamente ao pensar que o velho aguadeiro galês poderia ser adepto de puxar homens para a água, assim como de os tirar. Mas nesse caso seria mais provável que se certificasse de que a sua vítima ia ao fundo, a menos que tivesse a certeza de que o administrador não poderia nomear nem identificar o atacante. Madog viu o momento de dúvida, e sorriu, trocista.

- Ganho a vida de maneiras melhores. Mas se precisais de confirmar, deve haver algum entre aqueles jardineiros do Gaye que me tenha visto a descer o rio e a lançar a linha debaixo das árvores, e que possa dizer-vos que nunca pus os pés em terra até trazer este para cá, e gritar-lhes para que viessem ajudar-me. Talvez não me conheçais, mas estes irmãos aqui presentes conhecem-me.

O sargento, seguramente um dos poucos suficientemente jovens para servir no castelo de Shrewsbury e ignorar a posição especial de Madog no rio, aceitou as veementes tranquilizações do Irmão Edmund e esqueceu as suas dúvidas.

- Mas lamento - concedeu Madog, apaziguado - não ter visto nem ouvido nada até ele cair na água, pois estava a cochilar. A única coisa que posso dizer é que caiu a montante do sítio onde eu me encontrava, mas não longe... diria que alguém o empurrou a coberto da comporta.

- É um sítio estreito e escuro - disse o sargento. - E uma profusão de caminhos lá em cima. E a luz a desaparecer, embora ainda se visse... Bem, talvez ele consiga dizer-vos alguma coisa quando recuperar os sentidos... pode ter visto o homem que o atacou.

O sargento sentou-se resignadamente para esperar que o mestre William se mexesse, coisa que até ao momento ele não mostrava sinais de querer fazer. Cadfael tinha limpo e ligado o ferimento, cobrindo-o com um unguento de ervas, e o administrador jazia de olhos fechados e afundados, a boca dolorosamente aberta numa respiração ruidosa. Madog reclamou o seu casaco, que tinha estado a secar junto à lareira, e vestiu-o placidamente.

- Esperemos que ninguém tenha achado que era o momento ideal para se servir do meu peixe enquanto eu estava de costas voltadas. - Tinha embrulhado o seu salmão numa braçada de erva molhada e cobrira-o com o barco voltado ao contrário. - Desejo-vos boas noites, irmãos, e espero que o vosso doente melhore... e que a sua sacola também seja recuperada, embora tenha as minhas dúvidas. À porta da enfermaria, voltou-se para dizer: - Tendes um rapaz paciente sentado nos degraus da porta, a tremer de frio, à espera de notícias. Pergunta se não pode entrar para ver o seu mestre. Eu disse-lhe que o mais provável é que o homem viva até à velhice sem nada pior do que uma cicatriz na cabeça para contar a história, e o melhor seria ele ir para a cama, pois o estado do doente ainda não se alterou. Quereis que ele entre?

Cadfael saiu com ele para enxotar quaisquer visitas prematuras. Jacob de Bouldon, pálido e ansioso, estava sentado com os braços muito apertados nos joelhos dobrados, encolhido para se proteger do frio gelado da noite. Ergueu os olhos, esperançado, quando eles se aproximaram, e abriu a boca ansiosamente para implorar. Madog deu-lhe uma palmadinha amigável no ombro ao passar e dirigiu-se para a casa do porteiro, uma figura baixa, quadrada, castanha e enrugada como o tronco de um carvalho.

- Era melhor ires também para um sítio quente - aconselhou o Irmão Cadfael, sem indelicadeza. - O mestre William vai recuperar bastante bem, mas é natural que esteja inconsciente durante mais algum tempo, não adianta morreres aqui na pedra.

- Eu não estava descansado - disse Jacob, impetuosamente. - Disse-lhe, implorei-lhe, levai-me convosco, devíeis ter alguém. Mas ele disse que era um disparate, que tinha cobrado as rendas da abadia ao longo de muitos anos, e nunca sentira a menor necessidade de um vede... Eu não poderia entrar e sentar-me ao lado dele? Não faria barulho nenhum, nunca o incomodaria... Ele não falou?

- E nem falará nas próximas horas, e mesmo então tenho dúvidas de que possa dizer-nos grande coisa. Estou aqui com ele para o caso de ser necessário, e o Irmão Edmund está de prevenção. Quanto menos pessoas perto dele, melhor.

- Vou esperar mais um pouco - disse Jacob, a tremer, e apertou ainda mais os joelhos.

Bem, se queria ficar, ficasse, mas as cãibras e o frio ensiná-lo-iam a ser mais sensato e a ter mais paciência. Cadfael voltou para a sua vigília e fechou a porta. No entanto, não era mau encontrar um rapaz cuja devoção contrariasse os maus presságios do mestre William em relação à geração mais jovem.

Antes da meia-noite, outro visitante veio informar-se do estado de saúde do paciente. O porteiro abriu a porta devagar e entrou para sussurrar que o filho do mestre William estava ali, a perguntar pelo pai e a inquirir se podia entrar para vê-lo. Como o sargento, que partira depois de parecer certo que a sua vigília seria infrutífera até à manhã seguinte, se tinha comprometido a ir tranquilizar a Sra. Rede de que o seu marido estava vivo, bem tratado, e que certamente recuperaria bem, Cadfael teria provavelmente saído para pedir ao jovem que fosse para casa e cuidasse da mãe ao invés de perder o seu tempo ali, se o jovem não se tivesse adiantado fazendo uma entrada silenciosa e determinada logo atrás do mensageiro. Um jovem alto, cabeludo, de olhos escuros, com os ombros encolhidos e rosto sombrio, mas reconhecidamente de movimentos muito leves e de voz baixa. A sua expressão não era de forma alguma terna ou solícita. Os seus olhos foram de imediato para a figura deitada na cama, agora com a testa perlada de suor e a respirar um pouco mais fácil e naturalmente. Cismou, a olhar, e sem perder tempo com perguntas ou explicações, disse num sussurro firme:

- Vou ficar. - E ficou com agressiva compostura, instalando-se no banco ao lado da cama do pai, com as duas mãos grandes e musculosas fortemente apertadas entre os joelhos.

O porteiro fitou Cadfael, ergueu os ombros e saiu em silêncio. Cadfael sentou-se do outro lado da cama e contemplou o par, pai e filho. Os dois rostos pareciam igualmente isolados e críticos, até hostis, e no entanto ali estavam eles, próximos e calmos juntos.

O jovem fez apenas duas perguntas, cada uma delas após um longo período de silêncio. A primeira, proferida quase de má vontade, foi:

- Vai ficar tudo bem com ele?

Cadfael, a observar a respiração mais solta e o leve rubor, disse simplesmente:

- Sim. Só temos de lhe dar tempo.

A segunda foi:

- Ele já falou?

- Ainda não - respondeu Cadfael.

Ora, qual das duas, perguntou a si mesmo, seria a pergunta mais vital? Havia um homem, em algum lugar, que naquele preciso momento estaria muito ansioso sobre o que William Rede poderia ter para dizer, quando falasse.

O jovem - chamava-se Edward, recordou-se Cadfael, como o Confessor - Eddi Rede ficou sentado a noite inteira numa imobilidade quase total, a cismar junto à cama do pai. A maior parte desse tempo, e certamente sempre que teve consciência de estar a ser observado, esteve de sobrolho franzido.

 

Muito antes da Prima, o sargento voltou para a sua vigília, e Jacob, muito infeliz, estava de novo a andar de um lado para o outro diante da porta, a espreitar ansiosamente para o interior sempre que ela se abria, mas não se atrevendo a entrar sem ser convidado. O sargento olhou para Eddie com dureza e firmeza, mas não disse uma única palavra para não perturbar o sono cada vez mais descansado do ferido. Já passava das sete quando, por fim, o mestre William se mexeu, abriu os olhos vagos, soltou alguns sons que ainda não eram palavras e tentou sem grande força levar uma mão à cabeça dolorida, surpreendido com a dor súbita quando se mexeu. O sargento aproximou-se mais, mas Cadfael pousou uma mão no seu braço para o deter.

- Dai-lhe tempo! Uma pancada como aquela na cabeça ter-lhe-á perturbado o entendimento. Vamos precisar de lhe dizer coisas antes de ele nos dizer alguma. - E para o paciente confuso disse tranquilamente: - Conheces-me... Cadfael. Edmund virá substituir-me logo que terminar a Prima. Estás sob os cuidados dele, na enfermaria, e o pior já passou. Não te preocupes com coisa alguma, fica deitado e deixa que outros se preocupem. Levaste uma forte pancada na cabeça, e deste um mergulho no rio, mas tudo isso já passou e graças a Deus agora estás bastante protegido.

Desta vez, a mão errante atingiu o seu objetivo. Mestre William resmungou e nos seus olhos estampou-se uma expressão de surpresa indignada, e os seus olhos aclararam e focaram-se, embora a voz soasse fraca quando se queixou, as recordações a voltarem:

- Ele veio por detrás de mim... alguém... de uma porta aberta no pátio... É a última coisa de que me lembro... - A percepção súbita abalou-o; soltou um grito aterrado e tentou levantar-se da almofada, mas desistiu devido à dor que o movimento lhe provocou. - As rendas... as rendas da abadia!

- A tua vida vale mais do que as rendas da abadia - disse Cadfael, calorosamente -, e até elas talvez possam ser recuperadas.

- O homem que vos roubou - disse o sargento, inclinando-se mais - cortou a vossa sacola com uma faca, e fugiu com ela. Mas se puderdes ajudar-nos talvez ainda possamos apanhá-lo. Onde é que ele vos atacou?

- A menos de cem passos da minha casa - lamentou-se William amargamente. - Fui lá depois de terminar, para verificar as minhas listas e despachar tudo, e... - Calou a boca sombriamente ao lembrar-se do motivo primordial. Indistintamente, tinha estado consciente durante todo aquele tempo do jovem silencioso e taciturno sentado a seu lado, e agora fixou os olhos nele até a visão aclarar. O olhar mútuo foi ardente, e veio da longa prática. - Que fazes tu aqui? - perguntou.

- Espero notícias melhores da vossa saúde para levar à minha mãe - disse Eddi sucintamente. Ergueu os olhos, desafiador, para o rosto do sargento. - Ele foi lá a casa para me lembrar todos os meus pecados, e avisar-me de que a multa que tenho de pagar daqui a dois dias é agora da minha responsabilidade, não dele, e que se não conseguir arranjar forma de a pagar pelos meus próprios meios posso ir para a cadeia, e pagar com outra moeda. Ou talvez - acrescentou, com mal humorada franqueza - tenha vindo dar-me uma reprimenda e depois pagar as minhas multas, como já fez por mais do que uma vez. Mas eu não estava com disposição para escutar, e ele não queria ser afrontado, por isso saí e fui para o campo de tiro. E, se é que interessa a alguém, ganhei metade do que devo.

- Então tiveram uma briga amarga - disse o sargento, semicerrando os olhos desconfiados. - E não muito depois disso, vós, mestre, saístes para trazer as vossas rendas para casa, e fostes atacado, roubado e atirado para a morte. E agora tu, rapaz, tens a metade do que precisas para não ir para a prisão.

Ao observar pai e filho, Cadfael sentiu que nem sequer tinha ocorrido a Eddi, até àquele momento, que poderia ser suspeito daquele ataque demasiado oportuno; e, para além do mais, que até àquele momento o mestre William ainda não tinha realizado que tal pensamento pudesse ocorrer a um homem são de espírito. Estava a ralhar com o filho por nenhum motivo pior do que o velho hábito e uma grande dor de cabeça.

- Por que é que não estás a tomar conta da tua mãe em casa? - perguntou lamuriento.

- É o que farei, agora que vos vi e ouvi com um comportamento mais característico vosso. A mãe está a ser bem cuidada, a prima Alice está com ela. Mas ela vai ficar melhor quando souber que vós continuais a ser o mesmo rabugento conflituoso, e que provavelmente ainda ides ser uma praga para nós por mais vinte anos. Vou-me embora - disse Eddi, sombriamente - quando for autorizado. Mas ele quer o vosso testemunho antes de poder deixá-lo a descansar. É melhor dizerdes o que tendes para dizer.

Mestre William submeteu-se, cansado, e franziu as sobrancelhas num esforço para recordar.

- - Eu saí de casa e percorri a passagem para Santa Maria, por cima da comporta. A porta do pátio do curtidor estava aberta, sei... tinha acabado de passar por ela... Mas nunca cheguei a ouvir um passo atrás de mim. Foi como se a parede tivesse caído em cima de mim! Não me recordo de nada depois, exceto um frio súbito, um frio mortal... Quem é que me trouxe de volta, então, pois estou aqui aconchegado?

Contaram-lhe, e ele abanou a cabeça, desconsoladamente, pois não conseguia recordar-se do grande espaço em branco nesse intervalo.

- Achais que o fulano terá estado escondido atrás da porta daquele pátio, à espera?

- Assim parece.

- E nunca o vistes, nem de relance? Nunca tivestes tempo para voltar a cabeça? Não podeis dizer-nos nada que contribua para identificá-lo? Nem sequer calcular o tamanho dele? A idade?

Nada. Simplesmente, o dia tinha escurecido mais cedo, os seus passos eram o único ruído, nenhum homem à vista entre os muros altos das hortas, pátios e armazéns que desciam até ao rio, e depois o choque da pancada e a escuridão abrupta. Começava novamente a ficar cansado, mas a sua mente estava bastante lúcida. Não conseguiriam saber mais nada por ele.

O Irmão Edmund entrou, olhou para o seu paciente e fez um sinal silencioso aos visitantes para que saíssem, para o deixarem descansar. Eddi beijou a mão pendente do pai, mas bruscamente, como se a tivesse mordido de bom grado, e saiu, pestanejando com a luz do sol no grande pátio. Com um rosto sombriamente desafiador, esperou que o sargento o dispensasse.

- Deixei-o como vos disse, fui para o campo de tiro, fiz uma aposta e tive sorte. Quereis que vos dê nomes. Posso dar-vos. E ainda me falta metade da multa, se é que isso vos interessa. Não soube de nada disto até chegar a casa, e isso foi tarde, depois de o vosso mensageiro ter estado lá. Posso ir para casa? Estou ao vosso dispor.

- Podes - concedeu o sargento, tão prontamente que se tornou evidente que o jovem não iria sem ser vigiado no caminho, ou à chegada. - E fica lá, pois vou querer mais de ti do que simples nomes. Vou ouvir os depoimentos dos irmãos laicos que ontem estiveram a trabalhar até tarde no Gaye, mas chegarei à cidade pouco depois de ti.

Os trabalhadores já estavam a reunir-se no pátio e a seguir para o seu dia de trabalho. O sargento afastou-se para procurar os seus homens, e deixou Eddi a olhá-lo, furioso, e Cadfael a observar placidamente a circunspecta torrente de pensamentos no sombrio rosto jovem. Não era um rapaz com mau aspecto, se adotasse uma expressão mais sorridente; mas talvez naquele momento tivesse alguma razão para estar mal humorado.

- Ele vai ficar um homem forte novamente? - perguntou ele de súbito, voltando os olhos pretos para Cadfael.

- Tão forte e vigoroso como sempre.

- E ides cuidar bem dele?

- Assim faremos - concordou Cadfael inocentemente -, embora ele possa ser um rabugento conflituoso e uma praga.

- Tenho a certeza de que nenhum de vós aqui tem qualquer motivo para afirmar isso - atirou o jovem com abrupta ferocidade, - A abadia tem tido um serviço leal e sólido dele ao longo de muitos anos, e deve-lhe mais agradecimentos do que ofensas. - Voltou as costas e afastou-se no grande pátio, deixando Cadfael a observá-lo com uma expressão pensativa e o simples esboço de um sorriso.

Teve o cuidado de apagar o sorriso antes de voltar para junto do mestre William, que não estava com disposição para se considerar a si próprio, aos seus problemas e aos problemas do filho sem seriedade. Estava deitado a tentar piscar os olhos e franzir a testa para acabar com a dor de cabeça, e a fulminar o descendente num tom sombrio.

- Vedes como tenho motivos de queixa, era dele que devia poder receber consolo e apoio em casa. Um rapaz selvagem, rebelde e imprestável, e insolente, foi o que me calhou...

- Pois é - concordou Cadfael, compreensivo, com o rosto impassível. - Não admira que pretendas deixá-lo pagar as suas loucuras na prisão, e ninguém poderá censurar-te por isso.

Recebeu um olhar ácido como recompensa.

- Não farei uma coisa dessas! - atirou o mestre William com dureza. - Parece-me que o rapaz não é pior do que tu ou eu na idade dele. Não tem problema nenhum que o tempo não cure.

 

Aparentemente, o desastre do mestre William tinha abalado a serenidade da abadia desde o coro até à ala de hóspedes. As perguntas eram muitas e assíduas. O jovem Jacob tinha andado de um lado para o outro no exterior da enfermaria desde o amanhecer, incapaz de se arrancar dali até mesmo para cumprir as tarefas que devia ao mestre ferido, até Cadfael se ter apiedado da sua ansiedade óbvia e ter parado para lhe dizer que não havia necessidade de tamanha perturbação, pois o pior tinha passado, e tudo ficaria bem com o mestre William.

- Tendes a certeza, irmão? Ele recuperou os sentidos? Falou? A sua mente está lúcida?

Pacientemente, Cadfael voltou a tranquilizá-lo.

- Mas tamanha vilania! Ele pôde ajudar o homem do xerife? Viu o atacante? Tem alguma noção de quem pode ter sido?

- Não, isso não. Nunca o viu, foi atacado pelas costas e não se recorda de mais nada até ter acordado esta manhã na enfermaria. Infelizmente, não foi de grande ajuda para a lei. Não era de esperar que fosse.

- Mas vai ficar bem e forte de novo?

- Como sempre foi, e não demorará muito tempo.

- Graças a Deus, Irmão! - disse Jacob, fervorosamente, e foi tratar dos seus assuntos muito mais descansado. Pois, mesmo com as rendas da cidade perdidas, ainda era preciso fazer a escrita das que restavam.

Mais surpreendente lhe pareceu ser interpelado a caminho do dormitório por Warin Harefoot, o vendedor ambulante, que lhe perguntou educadamente pela saúde do administrador. Warin não mostrou a agitação de um colega privilegiado como Jacob, mas antes a simpatia educada de um humilde hóspede da casa, e a indignação do cidadão cumpridor da lei perante um crime bem como o desejo de que a justiça perseguisse o malfeitor. Sua honra tinha conseguido dizer o nome ou descrever o atacante? Que grande pena! No entanto, esperava, ainda poderia ser feita justiça. E haveria - se algum homem tivesse a sorte de descobrir a sacola perdida com o seu tesouro -, haveria uma pequena recompensa por esse serviço? Para um homem honesto que a recuperasse, pensou Cadfael, poderia muito bem haver. Warin partiu para mais um dia de vendas em Shrewsbury, com o pesado fardo às costas. Visto de trás, por alguma razão, parecia determinado e confiante.

 

Mas, na verdade, o inquisidor mais estranho e mais perturbador não fez qualquer pergunta, e entrou em silêncio, quando Cadfael estava a fazer outra visita à enfermaria no começo da tarde, depois de se ter encontrado com algumas das suas ovelhas tresmalhadas. O Irmão Eutropius ficou imóvel e decidido aos pés da cama do administrador, a olhar para baixo com olhos ocos num rosto que parecia uma máscara de pedra. Nunca olhou para Cadfael. A única coisa que via era o homem adormecido, agora tão plácido e calmo apesar da cabeça ligada, um homem tirado do rio, tirado da sepultura. Permaneceu ali durante muito tempo, com os lábios a moverem-se numa oração inaudível. De repente estremeceu, como alguém a sair de um transe, benzeu-se e saiu tão silenciosamente como tinha entrado.

Cadfael ficou tão preocupado com os seus modos e com o rosto fechado que saiu atrás dele, não menos silenciosamente, e seguiu-o ao longe pelos claustros e para o interior da igreja.

O Irmão Eutropius estava ajoelhado diante do altar-mor, com o rosto de mármore erguido sobre mãos cerradas. Tinha as pálpebras fechadas, mas as pestanas escuras brilhavam. Um homem de trinta anos bonito e em agonia, com um corpo forte e um coração intenso e atormentado, os lábios a murmurar em silêncio mas perceptivelmente à luz do altar:

- Mea culpa... máxima mea culpa...

Cadfael teria gostado de furar a distância e o gelo que os separavam, mas não era o momento. Afastou-se em silêncio, e deixou o Irmão Eutropius com o que restava da sua solidão despedaçada, pois independentemente do que lhe tivesse acontecido, a concha estava partida e a desintegrar-se, e ele nunca mais conseguiria fechá-la à sua volta.

 

Cadfael foi para a cidade antes das Vésperas, para visitar a Sra. Rede, e levar-lhe as últimas notícias da recuperação do marido. Foi por acaso que encontrou o sargento no Pelourinho, e parou para saber se havia novidades. Tinha sido uma precaução de rotina procurar alguns dos vadios mais conhecidos de Shrewsbury e obrigá-los a relatar os seus movimentos no dia anterior, mas isso não tinha revelado nada. Os atiradores amigos de Eddi na pista de tiro junto à muralha da cidade tinham jurado de boa vontade que a história dele era verdadeira, mas, como eram todos amigos desde crianças, as declarações tinham pouco significado. A única coisa nova, e marcava o local exato do ataque sem a menor sombra de dúvida, fora a descoberta no local por cima da comporta de uma argola de couro da sacola de couro do Mestre William, que tinha sido cortada e deixada cair na pressa da fuga e devido à luz fraca sob as muralhas altas.

- Mesmo por baixo da cocheira do curtidor. As paredes têm dez pés de altura, e a passagem é estreita. Não existe um único sítio onde a viela possa ser avistada. Não há qualquer hipótese de haver uma testemunha ocular. Ele escolheu bem o seu lugar.

- Ah, mas então existe um sítio de onde um homem poderá ter visto o ataque - disse Cadfael, esclarecido. - O sótão por cima daquela cocheira e celeiro tem um alçapão mais alto do que o muro, e perto dele. E Roger Clothier deixa Rhodri Fychan dormir lá em cima... o velho galês que pede esmola na igreja de Santa Maria. Naquela altura da tarde é possível que ele já estivesse lá em cima na palha, e numa tarde boa estaria sentado junto ao alçapão. E mesmo que não tenha vindo para casa àquela hora, quem pode ter a certeza? Basta que pudesse ter estado lá...

Ele estava certo em relação ao sargento; o homem era um recém chegado, e ainda não estava familiarizado com metade do que se passava em Shrewsbury. Não conhecia Madog do Barco da Morte, não conhecia Rhodri Fychan. Este caso caíra nas mãos daquele homem por pura sorte, e talvez não tivesse sido uma má sorte.

- Deste-me uma noção - disse Cadfael - que talvez ainda nos possa aproximar mais da verdade. Não que eu deixasse o velhote correr qualquer risco, mas não há necessidade disso. Escuta, há um isco que podemos tentar, se estiveres de acordo. Se tiver sucesso, poderás apanhar o teu homem. Se falhar, não teremos perdido coisa alguma. Mas temos de fazer tudo discretamente... nenhuma proclamação pública, deixa o isco comigo. Queres tentar? Se apanharmos o nosso peixe, o mérito será teu, e custa apenas uma noite de vigia.

O sargento olhou, já a cheirar a hipótese de louvor e promoção, mas ainda cauteloso.

- Que é que tendes em mente?

- Digamos que tinhas feito isto, ali entre paredes cegas, e depois, de repente, ouvias dizer que um velhote dormia mesmo por cima todas as noites do ano, e podia ter estado lá quando atacaste. E digamos que te diziam que esse velho mendigo ainda não tinha sido interrogado... mas que será amanhã...

- Irmão - disse o sargento -, estou convosco. Estou a escutar.

Havia duas coisas a fazer, depois disso, se queriam que a armadilha funcionasse e não colocasse ninguém em perigo a não ser o culpado. Ainda não precisava de se preocupar com a autorização para estar ausente durante a noite, ou, se não conseguisse, com a saída prática mas nada correcta sem autorização. Embora tivesse confiança no abade Radulfus, que tinha, em ocasiões anteriores, mostrado confiar nele. A justiça é uma paixão respeitada, os justos respeitam-na. Entretanto, Cadfael dirigiu-se para o adro da igreja de Santa Maria e procurou o venerando mendigo que se sentava ao lado da porta ocidental, no seu lugar privilegiado e honroso.

Rhodri o Menor - pois o seu pai também tinha sido Rhodri, e um mendigo respeitado como o filho - conhecia o andar, e ergueu um rosto enrugado e marcado pelas bexigas, castanho como a terra, sorridente.

- Irmão Cadfael, bons olhos vos vejam. Quais são as notícias que trazeis?

Cadfael sentou-se ao lado dele e falou sem pressas.

- Já deves ter ouvido falar daquela má ação que foi praticada mesmo por baixo do teu quarto, ontem à tarde. Estavas lá, a noite passada?

- Não quando isso aconteceu - disse o homem idoso, coçando pensativamente a cabeça branca -, e também não consigo encontrar ninguém que estivesse lá na altura. A noite passada pedi esmola até tarde, pois esteve um dia agradável. Só fui para casa depois do final das Vésperas.

- Não importa - declarou Cadfael. - Agora escuta, amigo, pois esta noite vou pedir-te emprestado o teu ninho, e tu ficarás hospedado noutro sítio qualquer, se quiseres ajudar-me...

- A um galês - disse o homem idoso descontraidamente -, tudo o que ele quiser. Só precisais de dizer. - Mas quando ouviu o plano, abanou a cabeça com firmeza. - Há um sótão interior. No pico do Inverno mudo-me para lá, para o calor, pois está resguardado do ar gelado. Por que não havia de estar presente? Há uma porta de ligação, e espaço para vós e mais. E eu gostaria, Irmão Cadfael, gostaria muito de ser testemunha quando o assassino de William Rede for apanhado.

Inclinou-se para chocalhar a taça de esmolas para uma senhora devota que tinha estado a rezar na igreja. Negócio era negócio, e o som que fazia era a inveja dos mendigos de Shrewsbury. Abençoou a benfeitora e estendeu uma mão para deter Cadfael, que estava a levantar-se para se ir embora.

- Irmão, uma palavra que poderá ser-vos útil, quem sabe! Diz-se que um dos vossos monges estava debaixo da ponte ontem ao fim da tarde, aproximadamente no momento em que Madog tirou Will para fora da água. Diz-se que ficou debaixo da pedra durante muito tempo, como um homem que estivesse a sonhar, mas não um sonho bom. Um que conhecem muito pouco, um homem na flor da idade, sombrio, solitário...

- Ele chegou atrasado às Vésperas - disse Cadfael, recordando-se.

- Sabeis que tenho pessoas que me dão informações, sem um objetivo perverso... um homem que está sempre sentado no mesmo sítio atrai as pessoas. Disseram-me que esse irmão entrou na água, até esta lhe cobrir as sandálias, e teria ido mais longe, mas foi então que Madog do Barco dos Mortos gritou que tinha um homem afogado no barco. E o estranho monge saiu da água e fugiu do seu demônio. É o que dizem. Significa alguma coisa para vós?

- Sim - disse Cadfael lentamente. - Sim, significa muito.

 

Quando acabou de tranquilizar a pequena esposa do administrador, uma mulher cheia de energia e que fazia lembrar um passarinho, de que deveria ter o seu marido de volta dentro de um dia ou dois e completamente bom, Cadfael arrastou Eddi consigo para o pátio e contou-lhe tudo o que planeava fazer.

- E agora eu tenho de contar isto discretamente ao ouvido de algumas pessoas de que me lembre, e a quem a notícia possa provocar algum mal-estar. Mas não demasiado cedo, se não por que é que a notícia não seria transmitida ao gabinete do xerife para que os homens da lei possam atuar? Não, mais tarde, depois de escurecer, quando todos os irmãos bons estão a refletir sobre o seu dia antes de irem para a cama, eu recordar-me-ei de que há um lugar de onde a viela em questão pode ser avistada, e um homem que passa lá as noites, o ano inteiro, e pode ter coisas para contar. Amanhã de manhã cedo, vou avisá-los, vou mandar uma mensagem ao xerife e deixá-lo tratar do assunto. Quem temer uma testemunha ocular terá apenas esta noite para agir.

O jovem olhou-o com uma expressão duvidosa no rosto mas um brilho no olhar.

- Uma vez que dificilmente podereis esperar apanhar-me nessa armadilha, Irmão, calculo que tendes outro uso para a minha pessoa.

- Trata-se do teu pai. Se quiseres, poderás estar com as testemunhas no sótão interior. Mas nota bem, eu não sei, ninguém pode saber ainda se a armadilha apanhará algum homem.

- E se não apanhar - disse Eddi com um sorriso forçado -, se ninguém vier, então terei de enfrentar uma dura perseguição.

- É verdade! Mas se tiver sucesso... Ele assentiu sombriamente.

- Aconteça o que acontecer, não tenho nada a perder. Mas escutai, quero uma coisa alterada, se não anuncio a vossa armadilha antes da hora. Não serei eu que estarei no sótão interior com Rhori Fychan e o vosso sargento. Sois vós. Serei eu quem estará a dormir na palha, à espera de um criminoso. Dissestes bem, Irmão... trata-se do meu pai. Meu, não vosso!

Aquilo não fizera parte dos planos do Irmão Cadfael, mas apesar de tudo descobriu que não o surpreendia grandemente. E, a avaliar pela expressão decidida no rosto intenso do jovem e pelo tom da voz calma, percebeu que não adiantaria nada tentar demovê-lo. Mesmo assim, tentou.

- Filho, uma vez que é o teu pai, pensa melhor. Ele vai precisar de ti. Um homem que tentou matar uma vez quererá certificar-se de que desta vez cumpre o seu objetivo. Virá com uma faca, se vier. E tu, por muito bons que sejam os teus ouvidos e por muito corajoso que seja o teu coração, estarás mesmo assim em desvantagem, deitado num sono fingido...

- E os vossos sentidos são mais rápidos que os meus, e os vossos tendões mais flexíveis e fortes que os meus? - Eddi sorriu inesperadamente, e bateu-lhe no ombro com uma mão grande e ágil. - Não vos preocupeis, Irmão, estou bem preparado para quando aquele homem e eu estivermos frente-a-frente. Ide semear a vossa semente boa, e esperemos que dê frutos! Vou preparar tudo.

 

Quando um roubo e uma tentativa de homicídio estão a apenas um dia e meio de distância, e ainda são a sensação de uma comunidade inteira, não é de forma alguma difícil introduzir o objetivo e inserir nas especulações qualquer nova migalha de interesse que se possa querer propagar. Como Cadfael descobriu, quando se dedicou à sua tarefa particular na meia hora que se seguiu às Completas. Na verdade, não teve de introduzir o assunto pois ninguém falava noutra coisa. A única pequena dificuldade residia em confiar esta ideia súbita a cada homem sozinho, já que um anúncio geral teria levado imediatamente algum nativo a pronunciar a objecção óbvia, e a denunciar todo o jogo. Mas até isso colocou poucos problemas, pois seguramente o homem certo, se estivesse realmente entre os que seriam abordados, não diria uma única palavra a ninguém, e teria muito em que pensar para querer companhia ou conversa durante o resto da noite.

O jovem Jacob, saindo trôpego e a bocejar após horas de escrita afincada, interrompida apenas por refeições tomadas à pressa e uma visita ao seu mestre, agora sentado perto da lareira da enfermaria, recebeu a ideia repentina do Irmão Cadfael com os olhos muito abertos e ansiosos, e ofereceu-se até para ir ao castelo àquela hora tardia para informar o vigia, mas Cadfael considerou que os esforçados agentes da lei poderiam não gostar muito de ver o seu descanso noturno interrompido; e, de qualquer maneira, nada mudaria até à manhã seguinte.

À meia dúzia de hóspedes da ala do povo que vieram saber notícias do estado de saúde do mestre William, apresentou a sua ideia abertamente, como uma simples possibilidade, uma vez que nenhum deles era um homem de Shrewsbury, e provavelmente não saberiam praticamente nada sobre os habitantes. Warin Harefoot encontrava-se entre os seis, e fora talvez o instigador daquele gesto civilizado. Parecia, como sempre, humilde, zeloso e satisfeito com qualquer gesto, até o mais ínfimo, para que fosse feita justiça.

Restava uma figura misteriosa e perturbada. Seguramente não um assassino, nem sequer um suicida, embora todos os sinais indicassem que estivera muito perto. Não fora o grito de Madog de “Homem afogado!” talvez ele tivesse ido até ao meio da corrente e se tivesse deixado levar por ela. Era como se o próprio Deus tivesse colocado diante dele, como um raio caído do céu, a enormidade do ato que pensava cometer, e o tivesse empurrado da beira com o encadeamento do fogo do inferno. Mas aqueles que voltavam, abalados e penitentes, a encarar o mundo também necessitavam de homens e do calor da comunicação com os homens.

Antes mesmo de abrir a porta da enfermaria, para uma última visita ao paciente que se encontrava no interior, Cadfael teve uma premonição do que iria encontrar. Mestre William e o Irmão Eutropius estavam sociavelmente sentados junto à lareira, a conversar em voz baixa e atenciosa, com silêncios tão aceitáveis como o discurso, e o discurso não mais eloquente do que os silêncios. Não era possível definir o elo que os unia, mas nunca seria quebrado. Cadfael ter-se-ia retirado sem fazer barulho, mas o chiar quase imperceptível da porta chamou a atenção do Irmão Eutropius, e ele levantou-se para sair.

- Sim, Irmão, eu sei... fiquei tempo de mais. Já me vou embora.

Eram horas de se retirarem para o dormitório e para as respectivas celas, e dormir o sono dos homens que estão em paz. E Eutropius, enquanto percorria o grande pátio ao lado de Cadfael, tinha o rosto de um homem profundamente em paz. Esgotado, ainda confuso com a intensidade da revelação, mas já, seguramente, confessado e absolvido. Vazio agora, e ainda um pouco perdido, sem saber como pedir ajuda a um companheiro.

- Irmão, creio que foste tu quem entrou na igreja esta tarde. Lamento se te causei ansiedade. Tinha encarado o meu pecado de frente há muito pouco tempo. Parecia-me que o meu pecado tinha morto outro homem, um homem inocente. Irmão, há muito que sei que o desespero é um pecado mortal. Agora sei com o meu sangue, entranhas e coração.

Cadfael disse, avançando delicadamente:

- Nenhum pecado é mortal, se o arrependimento for profundo e verdadeiro. Ele vive, e tu vives. Não precisas de ver o teu caso como extremo, Irmão. Muitos homens fugiram de um desgosto para o claustro, apenas para descobrirem que o desgosto pode segui-los para lá.

- Havia uma mulher... - disse Eutropius, num tom de voz baixo, trabalhado mas calmo. - Até agora não conseguia falar sobre isto. Uma mulher que me enganou amargamente, e que no entanto eu não conseguia deixar de amar. Sem ela a minha vida parecia não ter valor. Agora conheço melhor o seu valor. Durante os anos que me restam pagarei o seu preço na totalidade, e carregarei o peso sem queixas.

Cadfael não lhe disse mais nada. Se havia um homem em toda aquela teia de culpa e inocência que conseguiria dormir profundamente e bem na sua cama nessa noite, esse homem era o Irmão Eutropius.

Quanto ao próprio Cadfael, o melhor que tinha a fazer era pedir autorização para sair, e chegar ao sótão do curtidor pelo caminho mais curto, pois estava completamente escuro, e se o isco tinha sido mordido o fim podia não estar muito longe.

 

A escada íngreme tinha sido deixada onde estava sempre encostada, contra a parede por baixo do alçapão de Rhodri. No sótão exterior a escuridão não era total, pois o quadrado do alçapão estava aberto como sempre num espaço de céu estrelado. O ar no interior estava fresco, mas agradável e fragrante devido ao monte de feno e palha secos, armazenados no Verão anterior, agora a diminuir devido às depredações do Inverno, mas ainda amplo para uma cama confortável. Eddi estava estendido do lado esquerdo, voltado para o quadrado de céu luminoso, com o braço direito caído por cima da cabeça, para o proteger enquanto se mantinha vigilante.

No sótão interior, com a porta entreaberta para deixar passar os sons, estavam sentados o Irmão Cadfael, o sargento, e Rhodri Fychan, com lanterna, pederneira e aço à mão. Tinham mais de uma hora de espera. Se ele viesse, teria a paciência fria e o autocontrole para esperar pelo meio da noite, altura em que o sono está na sua fase mais profunda.

Mas ele veio, e quando Cadfael começava a pensar que o peixe tinha recusado a isca. Deviam ser duas horas da madrugada, ou mais, quando Eddi, a vigiar atentamente por baixo do braço protetor, viu a base direita do quadrado de céu quebrada, quando o alto de uma cabeça apareceu, preta contra o azul mais escuro, mas clara para olhos já acostumados à escuridão. Manteve-se controlado e imóvel, e adaptou a respiração para o ritmo longo e impérvio do sono, enquanto a cabeça se erguia furtivamente e o intruso fazia uma pausa prolongada, com a cabeça e os ombros à vista, imóvel, à escuta. A silhueta de um homem não tem idade nem coloração, apenas uma forma. Podia ter vinte ou cinquenta anos, não havia forma de saber. Conseguia mover-se com um silêncio formidável.

Mas ficou satisfeito. Tinha ouvido o som constante da respiração, e agora, com uma velocidade surpreendente, subiu os últimos degraus da escada e entrou pelo alçapão, e o seu corpo cortou a luz. Depois imobilizou-se de novo, para se certificar de que o movimento não perturbara a pessoa que estava a dormir. Eddi estava a escutar com não menos atenção, e ouviu o sussurro infinitamente pequeno de aço a deslizar da sua bainha. Uma adaga é a mais silenciosa das armas, mas tem as suas vozes próprias. Eddi voltou-se muito ligeiramente, com todo cuidado, para libertar o braço esquerdo que estava debaixo do corpo, pronto para a luta.

A luz e sombra, uma escuridão em movimento, mais uma simples sensação do que uma coisa palpável, aproximou-se. Sentiu o calor do corpo inclinado de um homem, e a deslocação de ar das roupas, e apercebeu-se de uma mão e braço esquerdos a serem estendidos com cuidado para descobrir o local onde ele estava deitado, a pairar sem tocar. Teve tempo para sentir como o assassino se debruçou, e avaliar onde é que a sua mão direita esperava com a faca, enquanto a esquerda selecionava o sítio para atacar. Sob a aniagem que o cobria - pois mendigos não se tapam com bons cobertores de lãs - Eddi preparou-se para receber o choque.

Quando o golpe veio, viu-se mesmo um brilho de luz que indicou a ascensão da lâmina, enquanto o assassino recuava para colocar o seu peso no golpe, e descobriu metade da abençoada moldura de céu. Eddi rodou para ficar de costas e, com a mão esquerda, apanhou certeiramente pelo pulso a mão que mergulhava com o punhal. Levantou-se ferozmente da palha, obrigando a faca a afastar-se à distância de um braço, e com a mão direita procurou e encontrou a garganta do adversário. Rebolaram para fora da cama de palha e pelo chão, a lutar, e pararam contra as tábuas da parede. O atacante tinha soltado um grito abafado de surpresa antes de ser praticamente sufocado. Eddi não tinha feito qualquer som com excepção da fúria dos seus movimentos. Deixou-se ser agarrado pela mão esquerda do inimigo, enquanto estendia as duas mãos para se apossar da adaga. Com toda a sua força, atingiu o cotovelo do braço que ele tinha apoiado no chão. Um grito estrangulado respondeu-lhe, os dedos sem energia separaram-se e ele soltou a faca. Eddi sentou-se em cima de um corpo subitamente sem força e ofegante, e pousou a lâmina em cima de um rosto ainda sem nome.

No sótão interior, o sargento tinha começado a levantar-se e a estender a mão para a porta, mas Cadfael pegou-lhe no braço e deteve-o.

O sussurro febril chegou-lhes claramente, mas sussurros não têm sexo nem idade nem caráter.

- Não me faças mal... espera, escuta! - Ele estava aterrorizado, mas ainda a pensar, ainda a urdir planos. - És tu... eu conheço-te, ouvi falar sobre ti... o filho dele! Não me mates... por que haverias de matar? Não era a tua pessoa que eu esperava encontrar... nunca te desejei mal algum...

“O que podes ter ouvido sobre ele”, pensou Cadfael, atrás da porta com a mão na caixa da mecha de que poderia precisar a qualquer momento, “pode ser tão enganador como os relatos comuns são tantas vezes. É preciso procurar as diferenças e os sentidos escondidos, e nem todos os ouvidos conseguem captá-los.”

- Fica quieto - disse a voz de Eddi, perigosamente calma e razoável -, e diz o que tens para dizer onde estás. Eu consigo escutar muito bem com este brinquedo encostado à tua garganta. Por acaso disse que pretendo matar-te?

- Mas não me mates! - implorou a voz ansiosa, esbaforida e baixa. Cadfael percebeu então quem era. O sargento provavelmente não o tinha reconhecido. O mais certo era que Rhodri Fychan, ali perto e a registar tudo, nunca a tivesse ouvido, se não tê-la-ia reconhecido, pois os seus ouvidos captavam até o som mais agudo do morcego. - Eu posso fazer-te bem. Tens uma multa por pagar, e apenas um dia antes de seres preso. Ele disse-me. Que é que lhe deves? Ele não ia ajudar-te, pois não? Mas eu posso libertar-te. Escuta, não contes a ninguém o que aconteceu aqui, solta-me e guarda segredo, e metade será tua... metade das rendas da abadia. Prometo!

Seguiu-se um silêncio indefinido. Se Eddi estava tentado, não era certamente pela proposta, mas mais provavelmente para o atacar; no entanto, por muito que lhe tivesse custado, refreou a mão.

- Junta-te a mim - incentivou a voz, ganhando alento com o silêncio dele - e ninguém precisará de saber jamais. Ninguém! Disseram que era um mendigo que dormia aqui, mas afinal ele não está, e não há aqui ninguém a não ser eu e tu, para saber o que aconteceu. Mesmo que estivessem a usar-te, reflete bem, pois quem vai saber? Deixa-me apenas ir embora, e mantém a boca fechada, e ainda está tudo bem, para ti e para mim.

Após outro silêncio indefinido, a voz de Eddi disse com fria desconfiança:

- Deixo-te à solta, quando só tu é que sabes onde está escondido o roubo? Achas que sou tolo? Nunca veria a minha parte! Diz-me o lugar exato, e leva-me até ele, se não entrego-te à polícia.

Os ouvintes no outro sótão sentiram, mais do que ouviram, os sons leves de contorções e luta e impedimento, como um cavalo a resistir a um cavaleiro, e depois o colapso inesperado, a rendição abjecta.

- Pus o dinheiro na minha bolsa com os poucos marcos que tinha - reconheceu a voz amargamente - e atirei a sacola dele para o rio. O dinheiro está na minha cama, na abadia. Ninguém prestou atenção à minha chegada com o resto das rendas de Foregate, por que deveriam prestar? E dessas prestei contas com exatidão. Vem comigo, e eu vou satisfazer-te, vou pagar-te. Mais de metade, se mantiveres a boca calada e me deixares ir em liberdade...

- Vós aí dentro - gritou Eddi inesperadamente, a tremer de repugnância -, avançai, por amor de Deus, e tirai esta coisa imunda de debaixo de mim, antes que eu corte a sua garganta vil e roube o trabalho ao carrasco que vai enforcá-lo. Saí e vede o que apanhei!

E eles saíram, o sargento para cortar de imediato qualquer tentativa de fuga pelo alçapão, Cadfael para pousar a sua lanterna em segurança numa trave bem longe da palha e do feno e friccionar diligentemente com pederneira e aço até a mecha incendiar e brilhar, e o pavio se transformar numa chama minúscula. O prisioneiro de Eddi tinha proferido uma praga desesperada, e fez um esforço frenético para se libertar do peso que o prendia e fugir, mas foi espremido contra as tábuas com uma pancada, a pancada de uma mão grande e vingativa aberta sobre o seu peito.

- Ele atreve-se, ele atreve-se - estava Eddi a resmungar entredentes - a tentar comprar-me a cabeça de meu pai com dinheiro... dinheiro roubado, dinheiro da abadia! Ouvistes? Ouvistes?

O sargento debruçou-se no alçapão e assobiou para os dois homens que tinha mandado esconderem-se lá em baixo no celeiro. Ainda bem que tinham concordado com o plano. O homem ferido vivo e a recuperar bem, o dinheiro localizado e salvo - tudo redundaria em mérito seu. Agora mandava o prisioneiro amarrado e impotente com a sua escolta para o castelo, e partiria para a abadia para desenterrar o dinheiro.

A chama protegida da lanterna aumentou e emitiu uma luz amarela no sótão. Eddi levantou-se e afastou-se do seu inimigo, que se sentou lenta e sombriamente, ainda ofegante e dorido, e piscou enquanto os observava a todos com os olhos ingénuos e redondos e o rosto jovem de Jacob de Bouldon, aquele escrivão perfeito, tão rápido a saber o valor de um livro de rendas, tão ansioso para conquistar a confiança e aprovação do seu mestre, e livrá-lo de todos os fardos, especialmente do fardo de uma sacola cheia das rendas da abadia.

Agora estava esfolado e empoeirado, e a máscara alegre e animada tinha-se transformado em desespero hostil e malévolo. Com olhares vacilantes e oblíquos observou-os a todos, e viu que não tinha como escapar do círculo. Olhou mais longamente para o velhote pequeno, vivo e curvado que apareceu ao lado de Cadfael. Pois no rosto enrugado e animado a luz da lanterna mostrou dois olhos que captaram a luz reflectida embora não tivessem luz própria, olhos opacos como seixos cinzentos e tão insensíveis como eles. Jacob olhou e gemeu, e começou a praguejar lenta e viciosamente.

- Sim - disse o Irmão Cadfael -, podias ter-te poupado a um esforço tão vão. Infelizmente, fui obrigado a praticar um pouco de engano, que dificilmente teria ludibriado um homem verdadeiramente nascido em Shrewsbury. Rhodri Fychan é cego de nascença.

 

Foi de certa forma um fim correto, quando o Irmão Cadfael e o sargento chegaram à casa do porteiro da abadia, ao amanhecer, e encontraram Warin Harefoot na sala do porteiro à espera de que o sino para a Prima acordasse os residentes para ele poder entregar a sua carga, que levara para ali para a proteger durante a noite. Estava sentado num banco junto à lareira apagada, com uma mão a agarrar com firmeza a boca de uma saca tosca de aniagem.

- Não a largou a noite inteira - disse o porteiro -, nem me deixou levantar-me do outro lado, para servir de guarda.

Porém, Warin ficou bastante satisfeito, até aliviado, por poder passar a sua responsabilidade para a lei, com um monge da casa como testemunha, ao constatar que o abade e o prior ainda não estavam levantados para assistir. Ele desapertou a boca do saco orgulhosamente, e mostrou as moedas que se amontoavam no interior.

- Dissestes, Irmão, que talvez houvesse uma recompensa, se algum homem tivesse a sorte de o encontrar. Tive as minhas dúvidas sobre aquele jovem escrivão... nunca confio num rosto demasiado honesto! E se fosse ele... bem, refleti que ele teria de esconder rapidamente o que tinha roubado. E ele trazia uma sacola igual à do outro, bastante parecida, e ninguém ia achar estranho que ele estivesse a usá-la, ou que tivesse dinheiro nela, uma vez que também tinha ido fazer uma pequena ronda. E embora tivesse chegado um pouco atrasado, bem, explicou que talvez tivesse feito um trabalho mais lento do que esperara, já que era a primeira vez que cobrava as rendas. Por isso, mantive-me de olho nele, e esta noite tive a minha oportunidade, quando o vi sair sorrateiramente depois de escurecer. Estava na cama dele, cosido numa ponta do colchão de palha. E aqui está, e falai de mim ao padre abade. O negócio não está nada bom, e um pobre vendedor ambulante tem de viver...

A olhar para ele prolongadamente, surpreendido, o sargento perguntou, por fim:

- E nem por um único momento te passou pela cabeça enfiar todo o dinheiro no teu fardo, e ires-te embora com ele pela manhã?

Warin fitou-o com uma expressão tímida e desarmante.

- Bem, senhor, talvez tenha pensado nisso por um instante. Nunca fui do tipo sortudo para fazer isso, e aconteceu apenas uma vez mas fui apanhado. A sabedoria e a experiência tornaram-me honesto. Aprendi que mais vale um pequeno lucro ganho honestamente do que grandes ganhos perdidos no vento, e eu na prisão por causa do disparate. Por isso, aqui está o ouro da abadia novamente, cada tostão, e agora espero que o senhor abade trate com justiça um homem pobre e decente.

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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