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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADFAEL 16 / A Confissão do Irmão Haluin
CADFAEL 16 / A Confissão do Irmão Haluin

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Depois de um Outono ameno, o mês de Dezembro do ano da graça de 1142 traz consigo um cobertor de neve, silencioso e sufocante.

Como resultado, a hospedaria da abadia beneditina de São Pedro e São Paulo fica danificada, e os irmãos têm de reparar o telhado antes que o perigo se agrave.

O gelo traiçoeiro quase é fatal para o irmão Haluin. Ele escorrega do telhado e dá uma queda terrível sofrendo ferimentos tão graves que, à beira da morte, faz a sua confissão ao abade e ao irmão

Cadfael. Desta confissão emerge uma espantosa história de pecados que quer Deus quer os homens terão dificuldade em perdoar.

Mas Haluin não morre. Quando recupera, parte numa viagem de expiação, com Cadfael como seu único companheiro. Uma viagem difícil que conduz a algumas descobertas chocantes.

E a um assassínio...

Mais uma vez, caberá ao Irmão Cadfael (o frade detective) e aos seus dotes de observação e dedução desvendar o enigma.

 

 

 

 

 

 

O rigor do Inverno chegou cedo, nesse ano de 1142. Depois de um Outono prolongado de dias amenos, húmidos e elegíacos, Dezembro surgiu com céus de chumbo e dias breves, escuros, que se vergavam sobre as cumeeiras e ali ficavam como mãos opressoras sobre o coração. Ao meio dia, mal havia luz suficiente no scriptorum do mosteiro para formar letras, e as cores não podiam ser utilizadas com segurança, uma vez que o crepúsculo implacável e extemporâneo lhes tirava toda a luminosidade.

O sábio do tempo tinha previsto fortes nevões e estes chegaram a meio do mês, não com ventos e tempestades, mas numa queda silenciosa, ofuscante, que continuou durante vários dias e várias noites, nivelando todas as ondulações, cobrindo todas as cores do mundo de branco, enterrando os borregos nas colinas e os casebres nos vales, sufocando todos os sons, trepando todos os muros, transformando os telhados em cordilheiras de montanhas brancas intransitáveis, e o ar entre a terra e o céu num redemoinho opaco, rodopiante, de flocos do tamanho de lírios. Quando a neve parou finalmente de cair, e as pesadas grinaldas de nuvens se levantaram, Foregate estava meio soterrado, transformado praticamente num único piso branco, pelo que mal havia sombras excepto nos locais em que os edifícios altos do mosteiro se elevavam acima da brancura imaculada e a misteriosa luz reflectida fazia dia mesmo da noite, quando apenas uma semana antes a escuridão ameaçadora tinha transformado o dia em noite.

Essas neves de Dezembro que cobriram a maior parte do ocidente fizeram mais do que arruinar a vida dos camponeses, levar a fome às aldeias isoladas, enterrar alguns pastores com os seus rebanhos e obrigar todos a uma imobilidade forçada; elas alteraram os destinos da guerra, zombaram das preocupações dos príncipes e fizeram a história sair do seu curso no novo ano de 1143.

Elas também provocaram um estranho ciclo de acontecimentos no mosteiro de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury.

Nos cinco anos em que o Rei Stephen e a sua prima, a Imperatriz Maud, lutaram pelo trono de Inglaterra, a sorte tinha oscilado muitas vezes entre eles como um pêndulo, apresentando alternadamente a taça da vitória a cada um de uma forma errática, retirando-a outra vez sem que a mesma tivesse sido provada e oferecendo-a, com um gesto tentador, ao rival. Agora, sob o disfarce branco do Inverno, ela decidiu tornar a situação novamente confusa e salvar a imperatriz das mãos do rei como se por milagre, no preciso momento em que o punho deste parecia fechar-se com firmeza sobre a sua prisioneira, pondo triunfantemente termo à guerra. Estavam de volta ao início da luta de cinco anos, e era preciso fazer tudo de novo. Mas isso foi em Oxford, longe das neves intransitáveis, e demoraria algum tempo até que as notícias chegassem a Shrewsbury.

O que estava a acontecer no mosteiro de São Pedro e São Paulo não era, em comparação, mais do que um pequeno aborrecimento ou, pelo menos, assim parecia a princípio. Um emissário do bispo, alojado num dos aposentos superiores da hospedaria, e já irritado e pouco satisfeito com o facto de ser obrigado a ficar ali detido até as estradas serem novamente transitáveis, foi desagradavelmente acordado durante a noite pela queda súbita de uma torrente de água gelada em cima da cabeça e certificou-se de que todos os que se encontravam ao alcance da sua poderosa voz o ouvissem sem demora. O Irmão Denis, o hospitaleiro, apressou-se a apaziguá-lo e a mudá-lo para uma cama seca noutro local mas, ao fim de uma hora, tornou-se claro que, embora a primeira chuvada torrencial tivesse abrandado em pouco tempo, continuava a cair um pingo ininterrupto ao qual, quase de imediato se juntaram mais alguns, formando um círculo com vários metros de diâmetro. O enorme peso da neve no telhado sul da hospedaria tinha aberto caminho através do chumbo e filtrava-se por entre as telhas de lousa tendo talvez obrigado algumas delas a ceder. Bolsas de neve tinham sentido o calor relativo no interior e, com a malícia muda das coisas inanimadas, tinham decidido baptizar o emissário do bispo. E a infiltração estava a tornar-se rapidamente pior.

Nessa manhã, houve uma reunião urgente do cabido para discutir o que devia e podia ser feito. Com um tempo daqueles, deveria certamente, se possível, ser evitado qualquer trabalho arriscado e desagradável no telhado, mas, por outro lado, se as reparações fossem adiadas até ao degelo, eles teriam uma inundação e os danos, nessa altura ainda limitados, poderiam agravar-se bastante.

Havia vários irmãos que tinham trabalhado na construção de adições ao enclave, celeiro, estábulo e despensa, e o Irmão Conradin, que ainda estava na casa dos 50 e era robusto como um touro, tinha sido um dos primeiros oblatos infantis e trabalhara, na sua juventude, sob os monges de Seez, trazidos pelo conde fundador para supervisionar a construção do seu mosteiro. No que dizia respeito à estrutura, os conselhos do Irmão Conradin tinham grande peso e ele, depois de ter observado a extensão da infiltração na hospedaria, afirmou com firmeza que não podiam esperar, caso contrário talvez tivessem que substituir metade da vertente sul do telhado. Eles tinham madeira, tinham ardósia, tinham chumbo. Aquela vertente sul ficava por cima do canal de escoamento de águas desviado da calha de água do moinho, actualmente congelado, mas não seria muito difícil erguer um andaime. É verdade que seria muito frio trabalhar lá em cima, deslocando primeiro a montanha de neve, para aliviar o peso deformador, e substituindo depois as telhas partidas ou deformadas e reparando o chumbo. Mas se trabalhassem durante períodos curtos e lhes fosse permitido ter uma fogueira na sala de aquecimento durante todo o dia enquanto o trabalho durasse, a reparação poderia ser efectuada.

O Abade Radulfus escutou, acenou a enorme cabeça para manifestar a sua rápida compreensão e decisão habituais e disse:

- Muito bem, mãos à obra.

Assim que o longo nevão cessou e os céus clarearam, os rijos habitantes de Foregate saíram de casa, bem agasalhados e armados de pás, vassouras e ancinhos de cabos compridos, e começaram a desimpedir o caminho até à estrada e, em conjunto, cavaram uma passagem até à ponte e à cidade onde sem dúvida que os robustos burgueses no interior das muralhas enfrentavam o mesmo inimigo sazonal. O gelo ainda persistia e, dia após dia, desgastava misteriosamente as orlas superficiais de cada montão de neve, aliviando a carga de um modo incrivelmente lento. Quando algumas das estradas principais ficaram novamente transitáveis e alguns viajantes, irresponsáveis ou não tendo qualquer outra opção, começaram a percorrê-las laboriosamente, o Irmão Conradin já tinha o andaime montado e as escadas seguras à vertente do telhado, tendo todos eles, à vez, ocupado o seu lugar no frio intenso, deslocando cuidadosamente a grande quantidade de neve para chegarem ao chumbo fracturado e às telhas de lousa partidas. Ao longo do canal de escoamento congelado formou-se uma moraina de colinas de neve rugosas e desordenadas, e um irmão incauto que não tinha ouvido o grito de aviso vindo de cima, ou não lhe prestara atenção, ficou, durante algum tempo, soterrado por uma pequena avalanche, e teve que ser desenterrado rapidamente e levado para a sala de aquecimento para descongelar.

Nessa altura, o caminho entre a cidade e Foregate já estava aberto e, embora com dificuldade e lentidão, já era possível levar notícias a Winchester e até mesmo a Shrewsbury a tempo de as mesmas chegarem à guarnição do castelo e ao xerife do condado alguns dias antes do Natal.

Hugh Beringar desceu apressadamente da cidade para as partilhar com o Abade Radulfus. Num país debilitado por cinco anos de uma incerta guerra civil, competia ao estado e à igreja trabalhar juntos, e quando o xerife e o abade pensavam de forma idêntica, eles conseguiam garantir uma existência relativamente calma e ordenada para o seu povo e defender-se dos piores excessos dos tempos. Hugh era partidário do Rei Stephen e geria o condado em seu nome com bastante lealdade, mas sentia uma boa vontade ainda maior para com o povo que ali vivia. Ele alegrar-se-ia com um triunfo do seu rei e, durante aquele Outono e Inverno, certamente que estivera à espera que o mesmo se desse, mas a sua principal preocupação era entregar ao seu senhor um condado relativamente próspero, feliz e intacto quando a última batalha terminasse.

Assim que deixou os aposentos do abade, foi à procura do Irmão Cadfael e encontrou o amigo a mexer uma panela que borbulhava em cima da braseira, na sua oficina junto do herbário. As inevitáveis tosses e constipações de Inverno, bem como as mãos e os calcanhares com frieiras, mantinham-no ocupado a reabastecer o armário dos medicamentos da enfermaria e, graças à indispensável braseira, era mais agradável trabalhar na sua oficina de carpintaria do que nos recantos do scriptorium. Hugh apareceu subitamente ao lado dele com uma rajada de ar frio e uma onda do que era, para ele, uma excitação perceptível, embora os seus sinais exteriores pudessem ter passado despercebidos a quem não o conhecesse tão bem como Cadfael. Só a exasperação decidida dos seus movimentos e a brusquidão do seu cumprimento fizeram com que Cadfael deixasse de mexer a panela e olhasse atentamente para o rosto do jovem xerife, para o brilho penetrante dos seus olhos pretos e para o pequeno latejo da sua face.

- Está tudo destruído! - disse Hugh. - Tem que ser tudo feito de novo! - Fosse o que fosse que ele quisesse dizer, e Cadfael não se deu ao trabalho de perguntar pois seguramente que seria informado em breve, era difícil dizer se a exasperação e a frustração não eram excedidas por um alívio divertido patente na voz e no rosto de Hugh. Ele precipitou-se para o banco que estava encostado à parede de madeira e deixou pender as mãos entre os joelhos, num resto de resignação impotente.

- Chegou um mensageiro do sul esta manhã - disse ele, erguendo os olhos para o rosto atento do amigo. - Ela desapareceu! Escapou da armadilha e fugiu para Wallingford, para junto do irmão. O rei perdeu o seu troféu. Mesmo quando a tinha na mão, deixou-a escapar por entre os dedos. Pergunto a mim próprio, pergunto a mim próprio - disse Hugh, abrindo muito os olhos quando um novo pensamento lhe veio à mente. - Se, afinal, ele não olhou para o lado e a deixou fugir! Seria o tipo de coisa que ele faria. Deus bem sabe que ele a queria muito, mas pode ter-se assustado quando começou a pensar no que faria com ela quando a tivesse. Essa é uma pergunta que eu gostaria de lhe fazer, mas nunca farei! - concluiu ele com um sorriso oblíquo.

- Estás a querer dizer - perguntou Cadfael, cautelosamente, olhando para ele através da braseira - que, afinal, a imperatriz fugiu de Oxford? Cercada pelo exército do rei e já sem víveres no castelo, segundo as últimas notícias que tivemos? E como é que ela conseguiu fazê-lo? A seguir vais-me dizer que lhe nasceram asas e que voou para Wallingford por cima das linhas do rei! Mesmo que conseguisse sair do castelo sem ser vista, ela não ia conseguir atravessar as valas do cerco a pé.

- Ah, mas fê-lo, Cadfael! Ela fez as duas coisas! Saiu do castelo sem ser vista e atravessou pelo menos uma parte das linhas de Stephen. Tanto quanto eles conseguem imaginar, ela deve ter sido descida por uma corda lançada da parte de trás da torre em direcção ao rio, ela juntamente com dois ou três dos seus homens. Não podem ter sido mais. Eles cobriram-se todos de branco para serem invisíveis na neve. Na verdade, parece que estava a nevar nessa altura, e assim conseguiram esconder-se melhor. Atravessaram o rio por cima do gelo e percorreram a pé as cerca de seis milhas até Abingdon, pois foi ali que arranjaram cavalos que os levaram até Wallingford. Verdade seja dita, Cadfael, ela é uma mulher rara. Segundo consta, é impossível viver com ela quando as coisas lhe correm de feição, mas eu compreendo como é possível um homem segui-la quando a vida lhe corre mal.

- Então ela está outra vez com FitzCount - disse Cadfael deitando o ar fora, espantado. Há cerca de um mês parecia certo que a imperatriz e o seu aliado mais fiel e dedicado estavam irremediavelmente separados e que talvez nunca mais se voltassem a encontrar neste mundo.

Desde Setembro que a dama estivera sob um cerco apertado no castelo de Oxford, com os exércitos do rei à sua volta e a cidade nas mãos dele, e ele limitara-se a ficar à espera que a desgastada guarnição no interior do castelo morresse à fome. E agora, numa ousada tentativa, numa noite de neve ela libertara-se das correntes que a prendiam e ficara livre para recuperar as forças e voltar a lutar em igualdade de circunstâncias. Certamente que nunca houvera um rei com tanto jeito como Stephen para transformar uma vitória em derrota. Mas esta era uma qualidade que ambos partilhavam, talvez lhes estivesse no sangue, pois também a imperatriz, quando estivera gloriosamente instalada em Westminster, a poucos dias da coroação, se tinha comportado de uma forma tão arrogante e dura para com os obstinados burgueses da sua capital, que eles se tinham erguido em fúria e a tinham expulsado. Parecia que, assim que qualquer deles se aproximava da coroa, a fortuna assustava-se com a perspectiva de estar ao serviço de qualquer deles e roubava apressadamente o troféu.

- Então, afinal de contas - disse Cadfael mais placidamente, levantando a panela borbulhante e colocando-a na grelha ao lado da braseira, deixando-a a ferver lentamente em paz _? pelo menos Stephen livrou-se do seu problema. Ele já não precisa de se preocupar com o que há-de fazer com ela.

- É verdade - concordou Hugh ironicamente -, ele nunca teria tido coragem para a acorrentar, como ela lhe fez quando ele foi seu prisioneiro depois de Lincoln, e ela demonstrou que, para a segurar, será necessário algo mais do que muros de pedra. Eu imagino que, durante todos estes meses, ele tenha andado a fugir a esta questão, não vendo para além do momento em que a obrigaria a render-se. Ele libertou-se de todos os problemas que teriam apenas começado no dia em que a fez prisioneira. Seria melhor, talvez, que ele conseguisse destruir as esperanças dela de modo a forçá-la a voltar para a Normandia. Mas nós já conhecemos muito bem a dama - reconheceu ele num tom pesaroso. - Ela nunca desiste.

- E como é que o Rei Stephen reagiu à sua perda? - perguntou Cadfael, com curiosidade.

- Como eu já esperava que fizesse - disse Hugh, com um afecto resignado. - Assim que a dama saiu de lá, o Castelo de Oxford rendeu-se a ele. Sem ela, ele perdera o interesse no resto dos ratos esfomeados no seu interior. A maior parte dos homens gostaria de vingar a sua raiva na guarnição. Uma vez, como muito bem te deves lembrar, ele deixou-se convencer a exercer essa vingança aqui em Shrewsbury, algo que, Deus sabe, é contra a sua natureza. Nunca mais! O mais provável é que tenha sido a recordação de Shrewsbury que manteve Oxford seguro. Ele deixou-os marchar para o exterior intactos, com a condição de que dispersassem para as suas casas. Deixou o castelo com uma boa guarnição e bem fornecido, e partiu para Winchester com o seu irmão bispo, para celebrar o Natal. E mandou chamar todos os seus xerifes do centro do país para o passarem lá com ele. Há muito tempo que não vem para estas bandas; sem dúvida que está ansioso por nos voltar a ver e por se certificar de que todas as suas defesas estão seguras.

- Agora? - perguntou Cadfael, surpreendido. - Para Winchester? Nunca farão a viagem a tempo.

- Faremos, sim. Temos quatro dias e, de acordo com o emissário, o degelo está bastante avançado mais a sul, e as estradas estão desimpedidas. Eu parto amanhã.

- E vais deixar a Aline e o teu filho a celebrar o Natal sem ti! E o Giles acabou de fazer três anos! - O filho de Hugh tinha nascido no Natal, tendo feito a sua entrada no mundo no mais severo dos Invernos, no meio de geada, neve e vendavais. Cadfael era o padrinho e o seu mais dedicado admirador.

- Ah, Stephen não nos vai reter durante muito tempo - disse Hugh num tom confiante. - Ele precisa que estejamos onde nos colocou, para tomarmos conta dos impostos dos seus condados. Se tudo correr bem, estarei de volta a casa antes do fim do ano. Mas a Aline ficaria muito satisfeita se a fosses visitar algumas vezes enquanto eu estiver ausente. O Abade certamente que te dará autorização para te ausentares de vez em quando, e aquele vosso rapaz alto - Winfrid, não é? - está a ficar suficientemente habilidoso com salvas e medicamentos para poder ficar sozinho durante uma hora ou duas.

- Terei muito gosto em tomar conta do teu rebanho - disse Cadfael entusiasticamente - enquanto te pavoneias pela corte. Mas, mesmo assim, eles vão ter saudades tuas. Que reviravolta esta! Ao fim de cinco anos, nenhum dos lados ganhou alguma coisa. E, com a chegada do novo ano, sem dúvida que irá começar tudo de novo. Todo aquele esforço e desperdício, e nada mudou.

- Oh, sim, houve uma coisa que mudou, segundo consta - disse Hugh com uma pequena gargalhada. - Há um novo contendor em cena, Cadfael. Geoffrey só conseguiu enviar pouco mais do que meia dúzia de cavaleiros para ajudar a mulher, mas enviou-lhe algo de que, ao que parece, se pode separar mais facilmente. É isso ou, como pode muito bem ser verdade, ele avaliou Stephen suficientemente bem para saber quanto pode arriscar com segurança. Ele enviou o filho, que estava ao cuidado do seu tio Robert, para ver se os ingleses o apoiariam a ele e não à sua mãe. Henrique Plantageneta, com nove anos... ou terão dito dez? Não mais do que isso! Robert levou-o para Wallingford, para junto dela. Neste momento, eu imagino que o rapaz deve ter sido levado para Bristol ou Gloucester, para um lugar seguro. Mas que faria Stephen com ele, se lhe deitasse a mão? O mais provável seria metê-lo num barco à sua própria custa e enviá-lo, bem guardado, de volta a França.

- O que me estás a dizer? - Os olhos de Cadfael estavam muito abertos de espanto e curiosidade. - Com que então há uma estrela nova no horizonte, é isso? E a começar muito jovem! Parece que uma pessoa, pelo menos, tem garantido um Natal abençoado, tendo obtido a liberdade e com o filho de novo nos seus braços. A chegada deste dar-lhe-á ânimo, sem qualquer sombra de dúvida. Mas duvido que ele faça muito mais pela causa dela.

- Ainda não! - disse Hugh com uma cautela profética.

- Vamos esperar para ver como é o temperamento dele. Com a coragem da mãe e a perspicácia do pai, daqui a alguns anos ele poderá causar bastantes problemas ao rei. É melhor utilizarmos melhor o tempo que temos e certificarmo-nos de que o rapaz regressa a Anjou e fica por lá e, sobretudo, que leva a sua mãe com ele. Quem me dera - disse Hugh num tom veemente, com um suspiro - que o filho de Stephen prometesse mais, pois não teríamos receio do talento que o rebento da imperatriz pudesse manifestar. - Ele afastou quaisquer dúvidas com uma sacudidela impaciente dos ombros magros. - Bem, vou-me embora, preparar-me para a viagem. Partimos ao nascer do Sol.

Cadfael levantou a panela que estava a arrefecer, colocou-a no chão de terra e acompanhou o amigo através do silêncio murado do herbário, onde todos os seus pequenos canteiros alinhados dormiam, quentes, sob uma camada espessa de neve, enquanto a geada caía. Assim que chegaram ao trilho que seguia ao longo dos lagos gelados, conseguiram ver, à distância, para além da superfície vidrada e dos jardins do lado norte, o longo declive do telhado da hospedaria sobre o canal de escoamento, a jaula escura de madeira de andaimes e escadas, e as duas figuras agasalhadas a trabalhar nas telhas descobertas.

- Vejo que também estão com problemas - disse Hugh.

- Quem é que consegue escapar-lhes, no Inverno? Foi o peso da neve que deslocou as telhas, partiu algumas e encontrou forma de encharcar o capelão do bispo na sua cama. Se esperássemos até ao degelo, teríamos uma inundação, e danos muito maiores para reparar.

- E o vosso mestre construtor acha que consegue consertar as coisas, quer haja geada quer não. - Hugh tinha reconhecido a figura musculosa a meio da escada comprida, transportando um balde cheio de telhas que poucos dos seus jovens trabalhadores conseguiriam carregar. - Um trabalho duro lá em cima - disse Hugh, olhando para a plataforma mais elevada do andaime, com uma grande pilha de telhas em cima, e para as duas figuras diminutas que se moviam com uma enorme cautela em cima do telhado exposto.

- Nós fazêmo-lo por períodos curtos e, quando descemos, há uma lareira na sala de aquecimento. Embora nós, os mais velhos, estejamos dispensados dos trabalhos, a maior parte, com excepção dos doentes e enfermos, faz o seu turno. É justo, mas duvido que isso agrade a Conradin. Irrita-o ter jovens temerários lá em cima; ele preferia trabalhar apenas com aqueles que conhece bem, embora eu deva dizer que os vigia com muita atenção. Se vê alguém empalidecer por estar a uma altura tão grande, depressa o coloca de novo em terra firme. Nem todos podemos ter cabeça para alturas.

- Já estiveste lá em cima? - perguntou Hugh, curioso.

- Fiz o meu turno ontem, enquanto ainda havia luz do dia. Os dias curtos não ajudam nada mas, dentro de uma semana, o trabalho deve estar terminado.

Hugh semicerrou os olhos quando os raios de sol ofuscantes se reflectiram, por breves instantes, na brancura cristalina.

- Quem são aqueles dois que estão lá em cima agora? Aquele é o Irmão Urien? O moreno? Quem é o outro?

- É o Irmão Haluin. - A figura magra e activa estava praticamente escondida pela saliência do andaime, mas Cadfael tinha visto os dois subir as escadas há cerca de uma hora.

- O quê, o melhor iluminador do Anselmo? Como é que permitem que um artista seja tão maltratado? Com este frio, fica com as mãos estragadas. Depois de ter andado a agarrar em telhas, é pouco provável que consiga pegar num pincel fino durante uma ou duas semanas.

- O Anselmo quis dispensá-lo - admitiu Cadfael -, mas o Haluin nem quis ouvir falar nisso. Ninguém lhe levaria a mal essa mercê, sabendo como o seu trabalho é valioso mas, se houver uma camisa de cilício disponível algures, o Haluin pede-a e usa-a. Aquele rapaz é um eterno penitente, só Deus sabe por que pecados imaginados, pois eu nunca o vi infringir uma única regra desde que entrou como noviço, e uma vez que ele não tinha mais de dezoito anos quando fez os primeiros votos, duvido que tenha tido tempo para fazer muito mal ao mundo até essa altura. Mas alguns, por natureza, nascem para fazerem penitência. Talvez assim aligeirem o fardo para alguns de nós que aceitam confortavelmente o facto de que somos humanos e não anjos. Se o que transbordar da penitência e da devoção do Haluin fizer desaparecer alguns dos meus defeitos, que isso reverta a seu favor. E eu não me vou queixar.

Estava demasiado frio para ficarem muito tempo na neve espessa a observar as actividades cautelosas que decorriam no telhado da hospedaria. Prosseguiram o seu caminho através dos jardins, rodeando os lagos congelados onde o Irmão Simeon tinha feito alguns buracos com um machado para deixar entrar ar para os peixes lá em baixo, e atravessando, por uma estreita ponte de tábuas coberta por uma fina e traiçoeira camada de gelo, o canal de água do moinho que alimentava os lagos. Mais perto agora, os espigões dos andaimes projectavam-se da parede sul da hospedaria por cima do canal de escoamento das águas, e os que estavam a trabalhar no telhado estavam fora do campo de visão.

- Ele esteve comigo no meio das ervas quando era noviço, há muito tempo - disse Cadfael enquanto atravessavam os canteiros cobertos de neve do jardim superior e emergiam no enorme pátio. - O Haluin, quero eu dizer. Foi pouco depois de ter terminado o meu noviciado. Já tinha mais de quarenta anos quando entrei, e ele acabara de fazer os dezoito. Mandaram-no para junto de mim porque ele era letrado e sabia muito latim e, ao fim de três ou quatro anos, eu ainda estava a aprender. Ele vem de uma família com terras e, se não tivesse escolhido o hábito, teria herdado um bom feudo. Foi um primo dele que ficou com ele. O rapaz tinha sido colocado na casa de um nobre, conforme é hábito fazer-se, e era escrivão da propriedade do seu senhor feudal mas, como todos os homens que estão aqui dentro sabem, não se pode questionar a vocação. Ela vem quando quer, e não é possível dizer-lhe não.

- Teria sido mais simples colocar o rapaz logo no scriptorium, se ele já sabia tanto - disse Hugh, prático. - Eu já vi algum do seu trabalho, seria um desperdício pô-lo a fazer qualquer outro trabalho.

- Ah, mas a consciência dele obrigou-o a passar por todas as etapas da aprendizagem comum antes de assentar. Tive-o comigo três anos no meio das ervas, depois cumpriu mais dois anos no hospital de Saint Giles entre os doentes e aleijados, outros dois nos jardins de Gaye e a ajudar a tomar conta dos borregos em Rhydycroesau, antes de começar a fazer o que achámos que fazia melhor. Ainda agora, como viste, não admite quaisquer privilégios só porque tem uma mão delicada com os pincéis e as penas. Se os outros têm que se arrastar arriscadamente sobre um telhado cheio de neve, ele também tem que o fazer. Esse é um bom defeito - admitiu Cadfael -, mas ele leva-o a extremos, e a Ordem não gosta de extremos.

Atravessaram o pátio em direcção à portaria, onde o cavalo de Hugh estava amarrado, o cavalo alto, cinzento e magro que era sempre a sua montada preferida e poderia transportar duas ou três vezes o peso leve do seu dono.

- Não vai nevar mais esta noite - disse Cadfael, observando o céu velado e cheirando a brisa suave e lânguida -, nem nos próximos dias, suponho. Também não vai haver uma geada forte. Desejo-te uma viagem tolerável para sul.

- Partimos ao nascer do Sol. E estaremos de volta, se Deus quiser, no Ano Novo. - Hugh pegou nas rédeas e subiu para o selim alto. - Espero que o degelo aguarde até o vosso telhado ser novamente impermeável! E não te esqueças de que a Aline vai estar à tua espera.

Saiu pelo portão, com um eco agudo dos cascos a ressoar das pedras, e uma única faísca cintilante que brilhou e desapareceu antes de a ferradura deixar o solo gelado. Cadfael deu meia volta e dirigiu-se à enfermaria para verificar o armário de medicamentos do Irmão Edmund. Mais uma hora e começaria a escurecer, nestes dias mais curtos do ano. O Irmão Urien e o Irmão Haluin seriam o último par a trabalhar no telhado nesse dia.

Nunca ninguém soube exactamente como é que aconteceu. O Irmão Urien, que obedecera à ordem de descer do Irmão Conradin assim que foi chamado, deu o que achava que era a justificação mais provável, mas até mesmo ele admitiu que não podia haver certezas. Conradin, habituado a ser obedecido e concluindo sensatamente que ninguém, na posse das suas faculdades mentais ia querer ficar ao frio agreste um único momento mais do que o necessário, tinha simplesmente gritado a sua ordem e voltado as costas para tirar as últimas telhas partidas do dia do caminho dos trabalhadores que iam descer. O Irmão Urien dirigiu-se, agradecido, às tábuas do andaime e desceu cuidadosamente as compridas escadas até ao chão, satisfeito por ter parado de trabalhar. Ele era forte e trabalhador e não tinha quaisquer conhecimentos especiais a não ser uma grande experiência prática, e o que fazia ficava bem feito, mas não via qualquer necessidade de fazer mais do que lhe era pedido. Recuou alguns metros para olhar o que já tinha sido feito e viu que o Irmão Haluin, em vez de descer a curta escada que estava encostada à vertente do telhado do seu lado, subia mais alguns degraus e se inclinava para limpar mais um bocado de neve e aumentar a extensão das telhas não cobertas. Parecia que tivera motivo para desconfiar que os estragos eram maiores naquele lado e quisera varrer a neve que ali havia para retirar o seu peso e evitar danos maiores.

O monte de neve arredondado deslocou-se, deslizou em grandes dobras sobre si próprio e caiu, em parte sobre a extremidade das tábuas e da pilha de telhas que ali estavam à espera, e em parte sobre a beira do telhado e seguidamente a pique para o chão lá em baixo. Não houvera intenção de provocar uma avalanche daquelas, mas a massa congelada desprendeu-se das telhas íngremes e caiu num bloco sólido, estilhaçando-se ao bater nos andaimes. Haluin tinha-se inclinado demasiado. A escada deslizou com a neve que a tinha ajudado a manter-se estável, e ele caiu antes dela, mais do que juntamente com ela, bateu de passagem na extremidade das tábuas e estatelou-se sem um grito no canal congelado lá em baixo. A escada e a neve caíram em cima das tábuas e fizeram-nas ir pelos ares atrás dele, numa enorme chuva de pesadas telhas de orlas aguçadas que lhe cortaram a carne.

O Irmão Conradin, atarefado quase por baixo dos andaimes, tinha saltado para o lado mesmo a tempo, salpicado e meio-cego por um momento pela queda de neve soprada pelo vento. O Irmão Urien, recuando, suspendeu o acto de gritar ao seu companheiro para que parasse de trabalhar, pois já estava bastante escuro e soltou, em vez disso, um grito de aviso demasiado tardio para o salvar e deu um salto em frente, tendo ficado meio soterrado pela orla da queda. Sacudindo a neve, chegaram os dois ao mesmo tempo ao pé do Irmão Haluin.

Foi o Irmão Urien que foi apressadamente e num silêncio pesaroso à procura de Cadfael, enquanto Conradin corria na outra direcção, para o pátio, e mandava o primeiro irmão que encontrou chamar o Irmão Edmund, o enfermeiro. Cadfael estava na sua oficina, a colocar turfa na braseira para a apagar por essa noite, quando Urien irrompeu pela porta dentro, um homem moreno e triste portador de más notícias.

- Irmão, vem depressa! O Irmão Haluin caiu do telhado! Cadfael, não menos parco em palavras, deu meia volta, assentou o último bocado de turfa e tirou um cobertor de lã da prateleira.

- Está morto? - A queda devia ser de, pelo menos, treze metros, com obstáculos de madeira no caminho e gelo firme em baixo, mas se ele, por acaso, tivesse caído na neve espessa tornada ainda mais espessa pela limpeza do telhado, então, talvez tivesse sorte.

- Ele ainda respira. Mas durante quanto tempo? Conradin foi buscar mais ajuda; o Edmund já sabe.

- Vamos! - disse Cadfael, saindo para o exterior e correndo para a pequena ponte por cima do canal. Depois, mudou de ideias e correu ao longo do caminho estreito entre os lagos do mosteiro e saltou por cima do canal situado na extremidade, para poder chegar mais depressa ao local onde Haluin estava. Vindo do pátio, o brilho de dois archotes avançou em direcção a eles, com o Irmão Edmund com alguns ajudantes e uma maca atrás do Irmão Conradin.

O Irmão Haluin, enterrado até aos joelhos debaixo das pesadas telhas, com sangue a manchar o gelo debaixo da sua cabeça, estava imóvel no meio do tumulto que provocara.

 

Quaisquer que fossem os riscos de o mover, deixá-Lo onde estava por mais um momento do que era necessário seria consentir e ajudar a morte que já estava a tentar agarrá-lo. Numa pressa muda e determinada, retiraram as tábuas caídas e desenterraram, com as mãos, as telhas aguçadas que esmagavam e lhe dilaceravam os pés e os tornozelos, transformando-os numa polpa de sangue e ossos. Ele estava muito longe deles e não sentiu nada do que lhe fizeram quando o levantaram da cama gelada do canal de escoamento o suficiente para colocarem as lingas debaixo dele e o erguerem para cima da maca. Num cortejo pesaroso, transportaram-no ao longo dos jardins escuros até à enfermaria, onde o Irmão Edmund lhe tinha preparado uma cama numa pequena cela separada dos velhos e enfermos que passavam ali o resto dos seus dias.

- Ele pode não sobreviver - disse Edmund olhando para o rosto pálido e ausente.

Cadfael era da mesma opinião. O mesmo se passava com todos eles. Mas ele ainda respirava, mesmo que fosse apenas um gemido rouco que denunciava lesões na cabeça que talvez não pudessem ser reparadas; e eles começaram a trabalhar nele como em alguém que podia e iria viver, mesmo tendo praticamente a certeza virtual de que isso não iria acontecer. Com um cuidado infinito, despiram-lhe as roupas geladas e rodearam-no de cobertores embrulhados em pedras aquecidas, enquanto Cadfael o examinava suavemente à procura de ossos partidos e lhe ligava o braço esquerdo que rangia quando lhe mexia e, mesmo assim, não houve o menor sinal de vida no seu rosto imóvel. Ele apalpou cuidadosamente a cabeça de Haluin antes de limpar e fazer o curativo à ferida que sangrava, mas não conseguia determinar se o crânio estava fracturado. A respiração azeda, ressonante, indicava que estava, mas ele não podia ter a certeza. Quanto aos pés e tornozelos desfeitos, Cadfael trabalhou neles durante muito tempo depois de terem coberto o Irmão Haluin com cobertores aquecidos para ele não morrer de frio, e o seu corpo foi colocado ao comprido e protegido de todas as formas possíveis do choque e da dor do movimento, para o caso de recuperar os sentidos. O que ninguém acreditava que fosse acontecer, a não ser que tivesse um vestígio secreto, obstinado, de fé, que os levou a esforçarem-se por alimentar até mesmo a centelha cada vez mais fraca.

- Ele nunca mais vai voltar a andar - disse o Irmão Edmundo, estremecendo ao ver os pés desfeitos que Cadfael lavava cuidadosamente.

- Sem ajuda, nunca - acrescentou Cadfael num tom sombrio. - Nunca em cima destes. - Mas, apesar disso, ele continuou pacientemente a tentar juntar, o melhor que conseguia, os restos destroçados.

O Irmão Haluin tinha tido pés compridos, estreitos e elegantes, em harmonia com o seu corpo magro. Os cortes profundos e cruéis provocados pelas telhas tinham penetrado, nalguns locais, até ao osso, lascando-o por vezes. Demorou algum tempo a retirar os fragmentos ensanguentados e a ligar cada um dos pés, restituindo-lhes, pelo menos, a forma humana e a envolvê-los num berço de feltro, bem almofadado, de modo a que se mantivessem imóveis e a que, quando sarassem, fossem o mais parecidos possível com o que tinham sido outrora. Se, obviamente, houvesse cura possível.

E, durante todo esse tempo, o Irmão Haluin ressonava dolorosamente, sem dar conta de tudo que lhe estava a ser feito, profundamente mergulhado sob as luzes e as sombras do mundo, até a sua respiração se tornar gradualmente num mero murmúrio que não era mais do que uma folha solitária a estremecer numa brisa que era quase imperceptível, e eles pensaram que ele tinha morrido. Mas, por mais tenuamente que tremesse, a folha continuava a mover-se.

- Se ele voltar a si, até mesmo por um momento, chamem-me imediatamente - disse o Abade Radulfus, após o que os deixou na sua vigília.

O Irmão Edmund tinha ido dormir um pouco. Cadfael partilhou a vigília nocturna com o Irmão Rhun, o mais recente e o mais jovem dos monges do coro. Um de cada lado da cama, vigiaram continuamente o sono ininterrupto para além do sono de um corpo ungido, abençoado e preparado para a morte.

Tinham-se passado muitos anos desde que Haluin tinha saído da alçada de Cadfael e passado a fazer trabalho manual em Gaye. Cadfael voltou a examinar atentamente os traços de cujos pormenores anteriores quase se esquecera, e viu que eles eram ao mesmo tempo diferentes e enternecedoramente familiares. Não sendo um homem grande, o Irmão Haluin era de altura um pouco acima da média, com ossos compridos, finos e elegantes, e hoje em dia tinha mais músculo e carne do que quando entrara no mosteiro, um rapaz que não tinha crescido totalmente e a entrar na idade adulta. Actualmente, com trinta e cinco ou trinta e seis anos, ele mal completara dezoito na altura e tinha a suavidade e o viço da mocidade. O seu rosto era de um oval comprido, com as maçãs do rosto e o queixo fortes e bem definidos, as sobrancelhas finas, arqueadas, quase pretas, uns tons mais escuros que a juba de cabelo castanho que tinha sacrificado à tonsura. O rosto deitado na almofada, virado para ele, estava branco como a cal, as covas das faces e as órbitas fundas dos olhos eram azuis como sombras na neve e, enquanto o observava, o mesmo azul-lívido estava a formar-se à volta dos seus lábios contraídos. Durante a madrugada, hora a que a vida atinge o seu estado mais frágil, ele morreria ou melhoraria.

No outro lado da cama, o Irmão Rhun estava ajoelhado, atento, não mais intimidado pela morte de outra pessoa do que ficaria um dia com a sua própria morte. Mesmo na obscuridade deste pequeno quarto de pedra, a beleza radiosa de Rhun, com o rosto macio da juventude, a coroa de cabelo louro e olhos verdes-azulados difundia um brilho suave. Só alguém com a certeza virginal de Rhun seria capaz de se sentar serenamente junto de um leito de morte com tanta bondade e afecto ardentes e, ao mesmo tempo, sem qualquer vestígio de piedade. Cadfael tinha conhecido outros seres que chegaram ao mosteiro com algo semelhante a essa fé encantada, mas que depois a viram gradualmente ameaçada, apagada e corroída com a erosão dos anos, devido ao simples fardo de serem humanos. Isso nunca aconteceria ao Irmão Rhun. Santa Winifred, que lhe tinha concedido a perfeição física que lhe faltava, não permitiria que esse dom fosse desfigurado por qualquer mutilação do seu espírito.

A noite passou lentamente, sem qualquer alteração perceptível na imobilidade impiedosa do Irmão Haluin. Foi perto do raiar da aurora que Rhun disse finalmente, em voz baixa: - Olha, ele está a mexer-se!

Um ligeiro estremecimento perpassou-lhe o rosto lívido, as sobrancelhas escuras uniram-se, as pálpebras contraíram-se com a primeira consciência distante da dor, e os lábios alongaram-se num breve esgar de tensão e alarme. Eles esperaram durante o que lhes pareceu muito tempo, sem poderem fazer mais nada a não ser limpar a testa molhada e o fio de cuspo que escorria do canto da boca distorcida.

Com a primeira luz pouco perceptível antes do nascer do Sol, reflectida na neve, o Irmão Haluin abriu os olhos pretos como ónix nas órbitas azuis e moveu os lábios para emitir um fio de voz tão fino que Rhun teve que baixar o seu ouvido jovem e apurado para o interpretar.

- Confissão... - disse o murmúrio vindo do limiar entre a vida e a morte e, durante algum tempo, foi tudo o que se ouviu.

- Vai chamar o Pai Abade - disse Cadfael.

Rhun saiu rápida e silenciosamente. Haluin foi recuperando os sentidos e, com a crescente claridade e a focagem mais nítida dos seus olhos, soube onde estava e quem estava sentado a seu lado, e apelou, com um objectivo, para a vida e para a inteligência que lhe restavam. Cadfael viu a aceleração da dor na brancura tensa da boca e do queixo e tentou deitar umas gotas do preparado de papoilas entre os lábios do seu doente, mas Haluin manteve-os bem cerrados e virou a cabeça para o lado. Não queria nada que entorpecesse ou dificultasse os seus sentidos, ainda não, não antes de ter deitado para fora o que tinha para dizer.

- O Pai Abade já vem - disse Cadfael, próximo da almofada. - Espera, para falares só uma vez.

O Abade Radulfus já estava à porta, inclinado sob o lintel baixo. Sentou-se no banco que Rhun tinha vagado e inclinou-se sobre o homem ferido. Rhun tinha ficado lá fora, pronto para fazer algum recado se fosse necessário, e tinha fechado a porta. Cadfael levantou-se para também se retirar e, subitamente, faíscas de ansiedade amarelas fulgiram nos olhos ocos de Haluin, e uma breve convulsão percorreu-lhe o corpo provocando um gemido de dor, como se quisesse levantar uma mão para impedir que Cadfael se fosse embora, mas não conseguiu fazê-lo. O abade inclinou-se para se aproximar mais dele, de modo a que ele não só o ouvisse, como também o pudesse ver.

- Eu estou aqui, meu filho. Estou pronto a ouvir-te. O que te perturba?

Haluin inspirou e reteve o ar para poder ter voz para falar.

- Eu tenho pecados... - disse ele - que nunca contei a ninguém. - As palavras vieram devagar e com grande dificuldade, mas muito claramente. - Um contra Cadfael... Há muito tempo... nunca confessei.

O abade levantou os olhos para Cadfael, que estava no outro lado da cama.

- Fica! Ele quer que fiques. - E para Haluin, tocando-lhe na mão mole que estava demasiado fraca para ser erguida: - Fala como puderes, nós ouviremos. Poupa as palavras, nós podemos ler nas entrelinhas.

- Os meus votos - disse a voz fina, muito distante. - Impuros... não por devoção... Desespero!

- Muitos entraram pelas razões erradas - disse o abade - e ficaram pelas razões certas. Certamente que durante os quatro anos da minha abadia não encontrei qualquer falta no teu verdadeiro serviço. A esse respeito não tens nada a temer. Deus pode ter tido as suas próprias razões para te ter trazido para o mosteiro.

- Eu servi De Clary em Hales - disse a voz fina. - Ou melhor, a sua dama... nessa altura ele estava na Terra Santa. A filha dele... - houve um longo silêncio enquanto ele, paciente e esforçadamente, renovava a sua persistência em contar mais e pior. - Eu amava-a... e era amado. Mas a mãe... as minhas pretensões não foram bem aceites. O que nos foi proibido, nós tomámo-lo...

Outro silêncio, desta vez mais longo. Os olhos azuis, encovados, baixaram-se por um momento sobre os olhos ardentes.

- Deitámo-nos juntos - disse ele, claramente. - Esse pecado eu confessei, mas nunca disse o nome dela. A dama expulsou-me. Desesperado, vim para aqui... pelo menos já não faria mais mal. Mas o pior ainda estava para vir!

O abade fechou a mão com firmeza sobre a mão insensível ao lado de Haluin, para o segurar melhor, pois o rosto em cima da almofada tinha-se afundado numa máscara de gesso e um longo arrepio atravessou-lhe o corpo despedaçado e deixou-o tenso e frio ao toque.

- Descansa! - disse Radulfus, perto do ouvido do sofredor.

- Tem calma! Deus ouve, mesmo quando não se diz nada. Pareceu a Cadfael, que o observava, que a mão de Haluin reagira, ainda que muito debilmente. Ele trouxe a bebida de vinho e ervas com que humedecera a boca do doente enquanto este estivera sem sentidos. Deitou algumas gotas entre os lábios entreabertos e, pela primeira vez, a oferta foi aceite, e a garganta magra fez um esforço para engolir. A sua altura ainda não tinha chegado. O que quer que ele tivesse mais a desabafar, ainda havia tempo para isso. Deram-lhe pequenos goles de vinho e observaram os seus traços adquirir coerência, embora o seu rosto estivesse pálido e frágil. Desta vez, quando voltou para junto deles, fê-lo muito tenuemente e com os olhos ainda fechados.

- Pai? - perguntou a voz remota num tom receoso.

- Estou aqui. Não te vou deixar.

- A mãe dela veio... só então eu soube que Bertrade esperava um filho! A dama estava aterrorizada com medo da ira do seu senhor quando ele voltasse para casa. Nessa altura, eu servia ao pé do Irmão Cadfael, eu tinha aprendido... conhecia as ervas... roubei e dei-lhe... hissope, flor-de-lis... Cadfael conhece melhor uso para elas!

Sim, muitíssimo melhor! Mas o que poderia ajudar um peito muito congestionado e uma terrível tosse, em pequenas doses, ou combater a icterícia que tornavam um homem amarelo, também podia pôr termo a uma gravidez, numa utilização obscena, odiosa para a igreja e até mesmo perigosa para a mulher que deveria, supostamente, ajudar. Por medo de um pai irado, medo da vergonha aos olhos do mundo, medo das perspectivas de casamento arruinadas e das hostilidades familiares inflamadas. Teria a mãe da rapariga suplicado ou tê-la-ia ele convencido? Anos de remorso e autopunição não tinham exorcizado o horror que ainda lhe apertava a carne e contorcia o rosto.

- Elas morreram - disse ele, num tom duro e cheio de dor.

- O meu amor e a criança, as duas. A mãe dela enviou-me a mensagem: “mortas e enterradas”. Uma febre, foi o que disseram. Mortas por uma febre... nada mais a recear. O meu pecado, o meu mais terrível pecado... Deus sabe que eu me arrependo!

- Onde existe verdadeira penitência - disse o Abade Radulfus -, Deus certamente o sabe. Bem, este desgosto já foi contado. Já terminaste ou há mais para contar?

- Já terminei - disse o Irmão Haluin. - Excepto para pedir perdão. Peço perdão a Deus... e a Cadfael, por ter abusado da sua confiança e da sua arte. E à dama de Hales, pelo grande sofrimento que lhe causei. - Agora que tinha desabafado, ele tinha um controlo melhor sobre a sua voz e palavras, a tensão incapacitante desaparecera-lhe da língua, e a sua fala, embora fosse fraca, era lúcida e resignada. - Quero morrer purificado e perdoado - disse ele.

- O Irmão Cadfael falará por si próprio - disse o abade. - Em nome de Deus, falarei eu, pois ele me concede essa graça.

- Eu perdoo - disse Cadfael, escolhendo as palavras com mais cuidado do que o habitual - qualquer ofensa que tenha sido cometida contra o meu ofício sob uma grande pressão mental. E quanto ao facto de os meios e os conhecimentos ali estarem para te tentar e eu não me encontrar lá para te dissuadir, eu considero-me tão culpado como tu. Desejo-te paz.

O que o Abade Radulfus teve a dizer em nome de Deus demorou mais tempo. Se o tivessem ouvido, pensou Cadfael, alguns irmãos teriam ficado admirados e manifestariam incredulidade ao descobrirem que a formidável austeridade do abade podia também conter uma enorme ternura comedida. Uma consciência aliviada e uma morte limpa eram o que Haluin desejava. Era demasiado tarde para exigir penitência a um moribundo, e o conforto num leito de morte não pode ter preço, só pode ser dado livremente.

- Um coração despedaçado e arrependido - disse Radulfus - é o único sacrifício que te é exigido, e não serás desprezado.

- E deu-lhe a absolvição total e a bênção solene, e saiu do quarto do doente, fazendo sinal a Cadfael para que fosse com ele. No rosto de Haluin, a tranquilidade da gratidão tinha sido novamente substituída pela indiferença da exaustão, e o fogo morreu nos seus olhos apagados e semicerrados entre o desmaio e o sono.

No quarto exterior, Rhun estava pacientemente à espera, um pouco afastado para evitar escutar, mesmo involuntariamente, qualquer palavra da confissão.

- Vai sentar-te ao pé dele - disse o abade. - Agora ele vai conseguir dormir, não terá maus sonhos. Se houver alguma alteração no seu estado, vai chamar o Irmão Edmund. E se o Irmão Cadfael for necessário, manda chamá-lo aos meus aposentos.

Na sala apainelada dos aposentos do abade, eles sentaram-se juntos, as únicas duas pessoas que alguma vez teriam conhecimento do crime de que Haluin se culpava a si próprio, ou que teriam o direito de conversar em privado sobre a sua confissão.

- Eu só estou aqui há quatro anos - disse Radulfus directamente - e não sei nada sobre as circunstâncias em que Haluin veio para cá. Parece que uma das suas primeiras tarefas aqui foi ajudar-te com as ervas, e foi aí que adquiriu o conhecimento que tão mal utilizou. É certo que a bebida que preparou podia matar? Ou a morte poderia ter sido realmente causada pela febre?

- Se a mãe da rapariga lha deu, ela não se pode ter enganado - disse Cadfael com tristeza. - Sim, eu sei que o hissope pode matar. Foi uma tolice mantê-lo entre as minhas provisões, há outras ervas que podiam tomar o seu lugar. Mas, em pequenas doses, tanto a erva como as raízes, secas e feitas em pó, são excelentes para a diarreia e são úteis, juntamente com marroio-branco, contra problemas de peito, embora a espécie com flores azuis seja mais suave e melhor para isso. Eu sei que as mulheres o utilizam para tentar abortar, em grandes doses que são purgas violentas. Não admira que, por vezes, a pobre da rapariga morra.

- E isso aconteceu certamente durante o seu noviciado, pois, se a criança era dele, conforme supõe, ele não podia estar aqui há muito tempo. Não passava certamente de um rapaz.

- Mal teria dezoito anos, e a rapariga certamente que não tinha mais do que isso. Existe uma atenuante, que é o facto - disse Cadfael com firmeza - de eles viverem na mesma casa, vendo-se todos os dias e sendo de linhagem semelhante, pois ele é oriundo de uma boa família, e de estarem tão abertos ao amor como a maioria das crianças. De facto - disse Cadfael, entusiasmando-se -, pergunto a mim próprio por que é que as suas pretensões foram simplesmente rejeitadas. Ele era filho único, teria herdado um bom feudo se não tivesse feito votos. E recordo-me de que ele era um jovem muito simpático, letrado e dotado. Muitos cavaleiros teriam gostado muito de o ter como genro.

- Talvez o pai da rapariga já tivesse outros planos para ela - disse Radulfus. - Ele pode tê-la prometido a outra pessoa quando ela ainda era criança. E a mãe, se tinha tanto medo do marido, não se arriscaria a consentir num casamento na sua ausência.

- Mas não havia necessidade de ela ter rejeitado o rapaz. Se lhe tivesse dado esperança, certamente que ele teria esperado e não tinha tentado obrigá-la, antecipando o casamento. Embora eu talvez esteja a ser injusto para com ele - compadeceu-se Cadfael. - Não foi a maquinação, suponho, que o levou à cama da rapariga, mas sim um afecto demasiado impulsivo. Haluin nunca seria capaz de ser calculista.

- Bem, para melhor ou pior - disse Radulfus com um suspiro cansado -, aconteceu e não pode ser desfeito. Ele não foi o primeiro e não será o último jovem a cometer esse erro, nem ela foi a primeira nem a última criança a sofrer as consequências. Pelo menos, ela manteve o seu bom nome. É fácil compreender o motivo por que ele receava fazer confidências, mesmo sob o segredo da confissão. Mas tudo aconteceu há muito tempo, dezoito anos, a idade que ele tinha nessa altura. Vamos, pelo menos, garantir-lhe um final tranquilo.

Era opinião geral que um final tranquilo era o melhor que se poderia esperar para o Irmão Haluin, e que as orações por ele não deveriam pressupor qualquer outro desfecho, sobretudo porque, após o seu breve regresso à consciência, recaíra numa inconsciência ainda mais profunda e, durante sete dias, enquanto a festa da Natividade decorreu, permaneceu inconsciente às idas e vindas dos irmãos à volta da sua cama, não comeu nada, não emitiu qualquer som a não ser o da sua respiração, que mal era perceptível. No entanto, essa respiração, embora ténue, era regular e, muitas vezes, quando lhe eram colocadas nos lábios gotas de vinho, estas eram aceites, e a garganta movia-se por si própria, engolindo docilmente, embora nem a testa larga e fria nem os olhos fechados revelassem, através do mínimo estremecimento ou contracção, ter consciência do que o seu corpo fazia.

- É como se o seu corpo aqui estivesse - disse o Irmão Edmund, reflectindo sobriamente - e o espírito tivesse ido para outro local enquanto a casa é novamente mobilada e limpa, à espera de ser outra vez habitada.

Uma analogia bíblica apropriada, pensou Cadfael, pois certamente que Haluin tinha expulsado os demónios que o habitavam, e a casa que eles tinham vagado poderia muito bem ficar vazia durante algum tempo, sobretudo se, afinal, esse inesperado e improvável acto de cura viesse a ocorrer. Porque por mais que esta prolongada ausência se parecesse com a morte, o Irmão Haluin não iria morrer. Então, é melhor vigiá-lo bem, pensou Cadfael, levando a parábola ao seu final adequado, e certificar-nos de que sete demónios piores do que o primeiro não conseguem pôr um pé na porta enquanto ele estiver ausente. E as orações por Haluin prosseguiram com perseverante fervor durante as festividades do Natal e da abertura solene no Ano Novo.

Nessa altura, o degelo estava a começar e, mesmo assim, era um degelo lento, desgastando lentamente, todos os dias, pouco a pouco, as vastas quantidades de neve do enorme nevão. O trabalho no telhado terminou sem mais percalços, os andaimes foram retirados e a hospedaria ficou de novo à prova do tempo inclemente. Tudo o que restava da grande comoção era esta testemunha imóvel e silenciosa na sua cama isolada na enfermaria, recusando-se a viver ou a morrer.

Depois, na noite da Epifania, o Irmão Haluin abriu os olhos, inspirou longa e lentamente como qualquer outro homem a acordar com a maior tranquilidade e percorreu a cela estreita com um olhar de espanto, até pousar os olhos no Irmão Cadfael, calado e atento no banco ao seu lado.

- Tenho sede - disse Haluin num tom confiante, como uma criança, e deixou-se ficar passivamente sobre o braço de Cadfael para beber.

Eles estavam mais ou menos à espera que mergulhasse novamente na inconsciência, mas ele permaneceu lânguido mas consciente durante todo esse dia e, à noite, o seu sono era um sono natural, pouco profundo mas tranquilo. Depois disso, virou o rosto para a vida e não voltou a olhar por cima do ombro. Uma vez erguido da semelhança da morte, regressou ao território da dor, e a marca desta estava na sua testa franzida e nos lábios cerrados, mas suportou-a sem um queixume. O braço partido tinha-se soldado enquanto estivera deitado sem ter a noção dos seus ferimentos e provocava-lhe apenas as dores irritantes dos ferimentos em vias de sarar, e pareceu, tanto a Cadfael como a Edmund, depois de o vigiarem atentamente durante um ou dois dias, que o que quer que tivesse ficado fora do lugar no interior da sua cabeça tinha sarado ao mesmo tempo que as feridas exteriores, tratado pela imobilidade e pelo repouso. Ele recordava-se do telhado gelado, recordava-se da sua queda e, uma vez, quando se encontrava a sós com Cadfael, mostrou que se lembrava muito claramente da sua confissão, porque, depois de ter pensado em silêncio durante muito tempo, disse:

- Portei-me muito mal para contigo, há muito tempo, agora tu tomas conta de mim e tratas-me, e eu não reparei o meu erro.

- Não pedi que o fizesses - disse Cadfael serenamente e começou a desembrulhar os envoltórios de um pé estropiado, para renovar as ligaduras que substituía constantemente dia e noite.

- Mas eu preciso de pagar o que devo. De outro modo, como é que hei-de ficar limpo?

- Tu fizeste uma confissão total - disse Cadfael, sensatamente -, recebeste a absolvição do próprio abade, não deves pedir mais.

- Mas eu não fiz qualquer penitência. A absolvição obtida tão facilmente faz com que ainda seja devedor - disse Haluin, pesadamente.

Cadfael tinha deixado nu o pé esquerdo, o mais desfigurado dos dois. Os cortes e as feridas superficiais tinham sarado, mas o que acontecera ao labirinto de pequenos ossos no seu interior nunca poderia ser reparado, eles tinham-se fundido numa massa informe, retorcida e cheia de cicatrizes, descolorida em tons vermelho-escuros e roxos. No entanto, a pele rasgada tinha-se juntado e coberto tudo.

- Se tens quaisquer dívidas - disse Cadfael, bruscamente -, elas prometem ser pagas em dor até ao dia da tua morte. Vês isto? Nunca mais vais conseguir colocá-lo com firmeza no chão. Duvido que consigas voltar a andar.

- Sim - disse Haluin, olhando para o céu invernoso através da fenda estreita da janela. - Sim, eu vou andar. Eu vou andar. Se Deus permitir, eu hei-de andar pelos meus próprios pés, embora talvez tenha de pedir muletas emprestadas para os ajudar a carregar comigo. E se o Pai Abade me der autorização, quando tiver aprendido a utilizar os adereços que me restam, irei eu próprio a Hales pedir perdão a Adelais de Clary e passar uma noite de vigília junto do túmulo de Bertrade.

Interiormente, Cadfael duvidou que quer os mortos quer os vivos se sentissem grandemente reconfortados com a expiação de Haluin, ou se, ao fim de dezoito anos, ainda se recordavam dele. Mas se aquela piedosa intenção desse ao rapaz coragem e determinação para viver, trabalhar e ser de novo produtivo, por que haveria ele de o desencorajar? Por isso, a única coisa que disse foi:

- Bem, primeiro vamos reparar tudo o que pode ser reparado e fazer-te recuperar algum do sangue perdido, pois, assim como estás, não vais ter autorização para ir a lado nenhum. - E olhando para o pé direito que, pelo menos, tinha alguma semelhança com um pé humano e cujo tornozelo estava perceptível e intacto, acrescentou pensativamente: - Talvez façamos uma espécie de botas de feltro grossas para ti, bem acolchoadas por dentro. Talvez venhas a conseguir pôr um pé no chão, embora precises das muletas. Ainda não... ainda não, demorará semanas, mais provavelmente meses. Mas vamos tirar-te as medidas, e veremos o que conseguimos arranjar entre nós.

Ao reflectir sobre o assunto, Cadfael pensou que seria sensato avisar o Abade Radulfus sobre a expiação que o Irmão Haluin tinha em mente, e fê-lo depois do cabido, na privacidade da sala de abade.

- Depois de ter tirado o peso do coração - disse simplesmente Cadfael -, se a sua sorte tivesse sido morrer, ele teria morrido satisfeito. Mas ele vai viver. A sua mente está clara, a sua força de vontade é forte e o corpo, embora esteja fraco, é bastante resistente, e agora que vê uma vida à sua frente, não se contenta em livrar-se dos seus pecados através de uma absolvição sem penitência. Se ele fosse uma pessoa mais frívola e se fosse possível convencê-lo a esquecer esta decisão quando ficasse bom, pela minha parte eu não o censuraria, ficaria até satisfeito. Mas a penitência sem expiação nunca será suficiente para Haluin. Eu vou detê-lo o mais tempo que puder, mas pode acreditar que voltaremos a ouvir falar nesta expiação assim que ele se sentir capaz de a levar a cabo.

- Não posso recusar um desejo tão apropriado - disse o abade, sensatamente -, mas posso proibi-lo até ele se encontrar suficientemente bem para o realizar. Se lhe vai trazer paz de espírito, não tenho o direito de o impedir. Poderá significar uma forma de consolo tardio para a dama cuja filha teve uma morte tão terrível. Eu não conheço - disse Radulfus, reflectindo ponderadamente sobre a peregrinação proposta - o feudo de Hales, embora já tenha ouvido o nome de De Clary. Sabes onde fica?

- Perto da orla leste do condado, Pai, deve ficar a cerca de vinte cinco milhas de Shrewsbury.

- E esse senhor que estava ausente na Terra Santa, se a sua dama tinha tanto medo dele, não lhe deve ter dito nada sobre a verdadeira causa da morte da filha. Já se passaram muitos anos mas, se ele ainda for vivo, esta visita não deve ser efectuada. Seria muito mau para o Irmão Haluin salvar a sua própria alma causando maiores problemas à dama de Hales, fazendo-a correr perigo. Quaisquer que tivessem sido os seus erros, ela já pagou por eles.

- Tanto quanto eu saiba - admitiu Cadfael -, podem ter morrido ambos há muito tempo. Eu vi o local uma vez, no regresso de Lichfield, numa incumbência do Abade Heribert, mas não sei nada sobre a casa de De Clary.

- Hugh Beringar há-de saber - disse o abade num tom confiante. - Ele sabe tudo sobre toda a nobreza do condado. Quando regressar de Winchester podemos perguntar-lhe. Não há pressa. Mesmo que Haluin tenha que fazer a sua expiação, neste momento, não está em condições de a fazer. Ainda não se levantou da cama.

 

Ugh e o seu acompanhante chegaram a casa quatro dias depois da Epifania. Nessa altura, já grande parte da neve tinha desaparecido, o tempo estava cinzento, os dias pequenos e sombrios, com as noites suspensas à beira da geada, pelo que o degelo prosseguiu gradualmente e não houve inundações. Depois de uma queda de neve tão grande, um degelo rápido faria com que uma enorme massa de água descesse o rio, escoando-se de todos os cursos de água, e o Severn teria alimentado o Meole Brooke e inundado a parte mais baixa dos campos, mesmo que o enclave em si escapasse à inundação. Este ano, eles tinham sido poupados e Hugh, descalçando as botas e tirando o capote já em sua casa, situada ao lado da igreja de Santa Maria, com a mulher a trazer-lhe os sapatos forrados de pele e o filho agarrado ao cinturão a pedir que admirasse devidamente o seu novo cavaleiro de madeira pintada, pôde relatar uma viagem fácil para a época do ano, e uma recepção satisfatória da corte à sua administração.

- Embora eu duvide que estas tréguas de Natal durem muito - disse ele a Cadfael mais tarde, depois de ter dado todas as notícias de Winchester ao abade. - Ele engoliu o fracasso de Oxford com bastante galhardia mas, mesmo assim, está desejoso de vingança e, seja ou não Inverno, não vai ficar parado durante muito tempo. Ele quer Wareham de volta, mas este está bem fornecido e com uma guarnição até às ameias, e o Stephen nunca teve paciência para um cerco. Ele gostaria de ter um forte mais a oeste, para levar a guerra para o país do Robert. Não há forma de saber o que é que vai tentar primeiro. Mas ele não me quer a mim nem aos meus homens lá no sul, está demasiado desconfiado do conde de Chester para me manter longe do meu condado durante muito tempo. Graças a Deus, porque eu sou da mesma opinião - disse Hugh, jovialmente.

- E como tens passado? Fiquei bastante aborrecido quando soube que o vosso melhor iluminista deu uma queda que quase o matou. O Pai Abade contou-me. É verdade que ele está a recuperar bem?

- Melhor do que qualquer de nós estava à espera - disse Cadfael -, e até mesmo ele próprio, porque certamente que desejou limpar a alma em preparação para a morte. Mas já está fora de perigo e dentro de alguns dias vai-se levantar da cama. Mas os seus pés ficaram estropiados para toda a vida, as telhas cortaram-nos aos bocados. O Irmão Luke está a fazer umas muletas à sua medida. Hugh - disse Cadfael directamente -, o que é que sabes sobre os De Clarys, que são senhores do feudo de Hales? Houve um deles que foi cruzado há quase vinte anos. Eu nunca o conheci, foi depois do meu tempo no oriente. Ele ainda é vivo?

- Bertrand de Clary - disse Hugh, prontamente, olhando, com curiosidade, para o amigo. - O que há com ele? Já morreu há anos, julgo que dez ou mais. O filho tem agora o título. Não tenho quaisquer relações com eles. Hales é o único feudo que detêm neste condado, o caput e a maior parte das suas terras ficam em Staffordshire. Porquê, por que é que te lembraste de De Clary?

- Porque o Haluin o fez. Esteve ao serviço dele antes de tomar o hábito. Parece achar que tem ainda uma dívida nessa direcção. Esta dívida veio-lhe à mente quando fez o que supôs ser a sua confissão à beira da morte. Algo em que ele pensa que errou, e ainda tem isso na consciência.

Isso era tudo o que ele podia dizer, até mesmo a Hugh, uma vez que o confessionário era sagrado e, se nada mais fosse dito, Hugh não faria mais perguntas, embora pudesse especular sobre o que não tinha sido dito.

- Está decidido a fazer a viagem para esclarecer tudo, quando estiver suficientemente bem. Eu estava a pensar... Se a viúva de Bertrand também já não pertencer ao mundo dos vivos, o Haluin deve sabê-lo imediatamente e esquecer o assunto.

Hugh estava a olhar para o amigo com enorme interesse e um sorriso tolerante.

- E tu queres que ele não tenha nada com que se preocupar, de ordem física ou mental, a não ser ficar bom o mais depressa possível. Não te posso ajudar, Cadfael. A viúva ainda está viva.

Ela está lá, em Hales, pagou os impostos na última festa de São Miguel. O filho casou-se com uma mulher de Staffordshire e tem um filho para lhe suceder e, segundo consta, a mãe dele não é o tipo de pessoa que partilhe a casa de outra mulher sem interferir. Hales é a sua casa preferida, ela vive lá por decisão própria e deixa o filho governar a casa dele enquanto ela governa a sua. Sem dúvida que essa situação agrada a ambas. Eu nem sequer estaria tão bem informado - disse ele, como explicação - se nós não tivéssemos percorrido algumas milhas do caminho de Winchester na companhia de um grupo de homens de De Clary que dispersavam do cerco de Oxford. Não cheguei a vê-lo a ele, ainda estava na corte quando partimos. Ele já deve estar a caminho de casa, a não ser que Stephen o detenha lá, para o lance seguinte que tem em mente.

Cadfael recebeu a notícia filosoficamente, mas sem prazer. Então, ela ainda era viva, a mulher que tinha tentado ajudar a filha a fazer um aborto, e a única coisa que fizera fora ajudá-la a morrer. Não era a primeira nem seria a última a ter uma morte assim. Mas como seria o desespero e a sensação de culpa da mãe na altura, e que recordações amargas ainda devia ter por baixo das cinzas de dezoito anos? Certamente que era melhor deixar que elas continuassem enterradas. Mas a consciência de Haluin, que se torturava a si própria, e a sua alma faminta de salvação também tinham os seus direitos. E, afinal de contas, na altura, ele tinha apenas dezoito anos! A mulher que lhe tinha proibido aspirar ao afecto da filha devia ter o dobro da sua idade. Ela devia, pensou Cadfael quase com indignação, ter tido a sabedoria para ver o que começava a acontecer entre os dois e tomado medidas para os separar a tempo.

- Alguma vez pensaste, Hugh, que talvez fosse melhor deixar as coisas como estão - perguntou Cadfael, num tom triste -, em vez de permitir que algo pior se desencadeie? Ah, bem! Ele ainda nem sequer experimentou as muletas. Quem sabe que mudanças as próximas semanas trarão.

Levantaram o Irmão Haluin da cama em meados de Janeiro, encontraram um canto para ele perto da lareira da enfermaria, uma vez que não conseguia mover-se livremente como os outros para combater o frio, e trataram-lhe o corpo, dorido por ter estado deitado durante tanto tempo, com óleos e massagens para pôr os tendões a funcionar outra vez. Para que pudesse ocupar as mãos e a mente, levaram-lhe as suas tintas e uma pequena secretária para trabalhar, e deram-lhe uma página simples para adornar, até os dedos recuperarem a sua destreza e firmeza. Os pés destroçados tinham sarado e tinham-se fundido, deformados, e não havia ainda qualquer possibilidade de tentar pôr-se de pé em cima deles, mas Cadfael deixou-o experimentar as muletas que o Irmão Luke tinha feito para ele, com apoio de ambos os lados, para se habituar ao seu peso e equilíbrio, bem como aos apoios moldados e almofadados debaixo das axilas. Se nenhum dos pés conseguisse voltar a apoiá-lo, as muletas também não teriam qualquer utilidade, mas tanto Cadfael como Edmund eram da opinião de que havia esperança de que, com o tempo, o pé direito voltasse a ser utilizado e, com algum engenho no fabrico do calçado do inválido, até mesmo o esquerdo poderia eventualmente dar alguma ajuda.

Foi com esse objectivo que Cadfael, no final do mês, foi visitar o jovem Philip Corviser, filho do prefeito, e reflectiram os dois sobre o problema, tendo produzido um par de botas tão diferentes uma da outra como eram os pés para os quais tinham sido concebidas, mas adaptadas o mais possível de modo a proporcionarem um bom apoio. Eram de feltro espesso com sola de cabedal, subidas bem acima dos tornozelos e bem apertadas com tiras de couro para proteger a carne danificada e fazer pleno uso das tíbias, que estavam intactas. Philip ficou satisfeito com o seu trabalho, mas mostrou-se cauteloso quanto aos elogios antes de as botas terem sido experimentadas e provarem que não provocavam qualquer dor e que eram quentes no tempo invernoso.

O Irmão Haluin aceitou com gratidão e humildade tudo o que foi feito por si e continuou esforçadamente a revigorar os olhos e a mão com os seus vermelhos, azuis e o ouro delicadamente aplicado. Mas, assim que tinha algumas horas de lazer, erguia-se precariamente do seu banco do canto com os ombros apoiados nas muletas, de modo a poder estender os braços para se apoiar na parede ou no banco se perdesse o equilíbrio. Os tendões demoraram algum tempo a recuperar a sua firmeza nas pernas debilitadas mas, no início de Fevereiro, conseguia pôr o pé com firmeza no chão e até mesmo manter-se de pé por alguns instantes sem qualquer outro apoio e, a partir dessa altura, começou a usar afincadamente as muletas e a manejá-las perfeitamente. Passou a ser de novo visto, cumpridor e pontual, na sua poltrona no capítulo e no coro, em todos os ofícios divinos. No final de Fevereiro, até já conseguia colocar o dedo paralisado da bota esquerda no chão, para o ajudar a manter-se com firmeza e segurança nas muletas, embora nunca mais fosse possível a esse pé suportar o peso do seu corpo, por mais leve que este fosse.

Ele teve sorte numa coisa, no facto de o Inverno, depois daquela primeira queda de neve ter derretido e desaparecido, não ter sido rigoroso. Houve algumas geadas, mas nenhuma delas durou muito e, depois de Janeiro, os borrifos de neve foram esporádicos e ligeiros e não permaneceram muito tempo no solo. Quando conseguiu equilibrar-se e se habituou ao seu novo andar, conseguiu exercitar a sua técnica não só no interior como no exterior, e tornou-se perito, apenas temendo as pedras do pátio quando estas estavam cobertas de gelo.

No início de Março, com os dias a crescer e os primeiros sinais cautelosos e relutantes de Primavera no ar, o Irmão Haluin pôs-se de pé no cabido, depois de tratados todos os assuntos urgentes do dia e, humilde mas resolutamente, fez um pedido que apenas o Abade Radulfus e o Irmão Cadfael compreenderam totalmente.

- Pai - disse ele, com os olhos escuros firmemente fixos no rosto do abade -, vós sabeis que, durante a minha doença, manifestei o desejo de fazer uma determinada peregrinação se, pela graça de Deus, me restabelecesse. Foi-me manifestada uma enorme misericórdia e, se me der autorização, desejo agora registar o meu voto no céu. Peço a sua autorização e as orações dos meus irmãos para cumprir o que prometi e regressar em paz.

Radulfus olhou para o suplicante em silêncio durante muito tempo sem que o seu rosto revelasse aprovação nem censura, embora a fixidez do seu olhar fizesse com que o sangue subisse às faces encovadas de Haluin.

- Vem falar comigo depois do cabido - disse então o abade - e eu escutarei o que pretendes e ajuizarei se já estás em condições de o levar a cabo.

Na sala do abade, Haluin repetiu o seu pedido com toda a franqueza, dirigindo-se a homens perante os quais o seu espírito estava desarmado e que o compreendiam. Cadfael sabia por que motivo ele tinha sido chamado a estar presente. Duas razões eram, de facto, claras: ele era a única outra testemunha da confissão de Haluin e podia, por conseguinte, participar na deliberação; e podia pronunciar-se sobre a aptidão física de Haluin para empreender uma viagem daquelas. Ainda não tinha adivinhado uma terceira razão, mas não se sentia totalmente tranquilo enquanto escutava.

- Eu não devo nem quero impedir-te - disse o abade - de fazeres aquilo que é necessário para a saúde da tua alma. Mas penso que este pedido é demasiado prematuro. Não podes ter recuperado já as tuas forças. E, independentemente de estas últimas semanas terem sido boas, ainda não estamos na Primavera. Podemos ainda ter mau tempo. Pensa em como estiveste próximo da morte tão recentemente e evita enfrentar grandes provações antes de estares suficientemente forte para as suportares.

- Pai - disse Haluin com veemência -, é precisamente porque estive próximo da morte que não devo demorar mais. E se a morte tentar agarrar-me de novo antes de eu conseguir expiar o meu pecado? Eu vi como ela pode deitar a mão a uma pessoa num instante, num pestanejar de olhos. Eu tive o meu aviso. Tenho de lhe prestar atenção. Se eu morrer enquanto estiver a fazer a penitência que me compete, considerarei a morte adequada. Mas se morresse sem ter feito qualquer reparação, recairia sobre mim um opróbrio interminável. Pai - disse ele, ardendo como um fogo remexido -, eu amava-a verdadeiramente, amava-a como se fôssemos casados, tê-la-ia amado toda a vida. E destruí-a. Ocultei os meus pecados durante demasiado tempo, agora que os confessei desejo completar a expiação.

- E já pensaste nas milhas que tens de percorrer para ir e voltar? De qualquer modo, vais a cavalo?

Haluin abanou vigorosamente a cabeça.

- Pai, eu já jurei e vou repetir o juramento no altar, ir a pé até ao local em que ela está enterrada, e voltar a pé... com estes pés que me fizeram descer à terra e me obrigaram a enfrentar a verdade dos meus pecados inconfessados. Eu consigo ir, eu sei que os aleijados inocentes conseguem andar. Por que é que eu, que tenho tantas culpas, não hei-de passar pelas mesmas provações? Eu consigo suportá-las. O Irmão Cadfael sabe isso!

O Irmão Cadfael não ficou muito satisfeito por ter sido chamado para testemunhar e estava pouco interessado em dizer algo que contribuísse para a realização deste empreendimento obsessivo, mas também não conseguia ver uma genuína paz de espírito para este ser atormentado até a expiação ter terminado.

- Eu sei que ele tem a força de vontade e a coragem - disse ele. - Se ele está suficientemente forte, é outra questão. E se tem o direito de forçar o seu corpo até à morte para purificar a alma é algo sobre o qual não vou emitir uma opinião.

Radulfus reflectiu durante alguns minutos num silêncio sombrio, olhando para o peticionário com uma fixidez que o teria feito mexer-se desconfortavelmente na cadeira e baixar o olhar se tivesse havido algo de falso ou fingido no seu objectivo. Mas os olhos grandes, sérios, de Haluin sustentaram vigorosamente o olhar.

- Bem, eu reconheço o teu desejo de expiação, por mais tardio que ele seja - disse finalmente o abade. - E compreendo também que a demora não foi para teu bem. Vai, então, faz a tentativa. Mas não permitirei que vás sozinho. Tem que haver alguém contigo para o caso de fraquejares e, se isso acontecer, tens que lhe permitir que tome as medidas que ele considerar necessárias para a tua segurança. Se suportares bem a viagem, ele não fará nada que impeça o teu sacrifício mas, se ficares pelo caminho, então, ele é meu representante, e deves obedecer-lhe como me obedeces.

- Pai - disse Haluin num protesto ansioso -, o meu pecado é meu e só meu, a minha confissão está selada e é sagrada. Como é que posso permitir que outro homem se aproxime tanto, sem eu próprio quebrar o selo? Seria uma violação fazer com que ele interrogasse e questionasse esta minha expiação.

- Terás um companheiro que não te interrogará nem questionará - disse o abade - uma vez que ele já sabe, porque tu próprio lhe contaste. O Irmão Cadfael irá contigo. A sua companhia e as suas orações só podem trazer-te consolação e benefícios. As tuas confidências e a memória da dama não estarão em perigo, e ele está bem habilitado a tomar conta de ti ao longo do caminho. - E, voltando-se para Cadfael, disse: - Aceitas esta incumbência? Penso que ele não está suficientemente bem para ir sozinho.

Não havia muita possibilidade de escolha, pensou Cadfael, mas a ordem também não lhe desagradava muito. Existia ainda, algures no fundo dele, um pouco do vagus que tinha vagueado pelo mundo, do País de Gales a Jerusalém e de volta à Normandia durante quarenta anos, antes de se entregar à estabilidade no interior do mosteiro, e uma expedição aprovada, até mesmo ordenada pela autoridade, seria recebida como sendo abençoada, e não evitada como uma tentação.

- Se assim o deseja, Pai - disse ele. - Fá-lo-ei.

- Esta viagem vai demorar vários dias. Suponho que o Irmão Winfrid será suficientemente competente para ministrar o que for necessário, com Edmund a orientá-lo?

- Durante alguns dias - concordou Cadfael - eles aguen-tar-se-ão bastante bem. Enchi o armário da enfermaria ontem, e na oficina há uma boa quantidade de todos os medicamentos que são geralmente necessários no Inverno. Se alguma coisa inesperada acontecer, o Irmão Oswin pode vir de Saint Giles para ajudar durante algum tempo.

- Óptimo! Por conseguinte, filho Haluin, podes preparar-te para a viagem e partir quando estiveres pronto, amanhã, se quiseres. Mas se as forças te falharem, deves submeter-te ao Irmão Cadfael e cumprir as suas ordens tão fielmente como sempre cumpriste as minhas dentro destas paredes.

- Pai - disse Haluin fervorosamente -, fá-lo-ei.

No altar da Santa Winifred, o Irmão Haluin registou o seu voto solene nessa mesma noite depois das Vésperas, de modo a não ter outra saída, com o rosto pálido e uma veemência que indicaram a Cadfael que estava presente a pedido do próprio Haluin, que, no fundo do seu coração, este implacável penitente conhecia e temia o esforço e a dor que estava a impor a si próprio e abraçava-os com uma paixão e resolução que Cadfael preferiria que tivesse sido dedicada a um empreendimento mais prático e frutuoso. Pois, quem iria beneficiar com esta viagem, mesmo que ela decorresse com êxito, senão o próprio penitente, que recuperaria, pelo menos parcialmente, o respeito por si próprio? Certamente que não seria a pobre rapariga que não cometera nenhum pecado maior do que arriscar-se demasiado por amor e que há muito que estava certamente em estado de graça. Nem a mãe, que há muito devia ter esquecido esse sonho mau e que, ao fim de muitos anos, tinha de se confrontar novamente com ele. E Cadfael não pensava que a principal função de um homem neste mundo fosse salvar a sua própria alma.

Há outras almas doentes, tal como corpos doentes, a precisarem de ser empurradas na direcção da saúde.

Mas as necessidades de Haluin não eram as suas necessidades. Os amargos anos durante os quais Haluin se culpara silenciosamente a si próprio certamente que exigiam um remédio.

- Sobre estas relíquias sagradas - disse o Irmão Haluin, com a palma da mão sobre a tapeçaria que cobria o relicário -, eu registo o meu voto de penitência: que não descansarei até ter ido a pé ao túmulo onde jaz Bertrade de Clary e aí ter passado uma noite em oração pela sua alma e ter regressado de novo a pé até aqui, ao meu local de serviço. E, se falhar, que eu viva rejeitado e morra sem ser perdoado.

Puseram-se a caminho depois das Matinas, na quarta manhã de Março. Saíram pelo portão e seguiram na direcção de Saint Giles e ao longo da estrada para leste. O dia estava nublado e calmo, o ar era fresco mas não muito frio. Cadfael viu mentalmente o caminho à sua frente e achou que não era demasiado intimidatório. Iriam deixar as colinas ocidentais atrás de si e, a cada milha em direcção a leste, os campos à sua volta iriam dando tranquilamente lugar a planícies verdes. A estrada estava seca, pois não chovera recentemente, e a cobertura de nuvens por cima deles era alta e pálida e não constituía qualquer ameaça; de ambos os lados do caminho havia uma orla larga de erva como só se via nas estradas do rei, o que tornava fácil a caminhada até mesmo para um aleijado. A primeira ou a segunda milha poderia decorrer sem dor mas, depois disso, o esforço constante começaria a fazer-se sentir. Ele teria que ser o juiz de quando mandar parar, pois Haluin provavelmente cerraria os dentes e prosseguiria até cair. Algures sob Wrekin encontrariam um refúgio hospitaleiro para a noite, pois entre os habitantes das cabanas havia rendeiros do mosteiro e qualquer deles lhes daria, de bom grado, um lugar junto da lareira para descansarem a meio do dia. Eles levavam comida na sacola que Cadfael transportava.

Num estado de espírito promissor e enérgico da manhã, com a energia e a impaciência de Haluin no auge, avançaram rapidamente e descansaram muito agradavelmente ao meio-dia com o padre da paróquia de Attingham. Mas de tarde.

O passo abrandou um pouco e o esforço começou a afectar os ombros de Haluin, doridos devido ao peso constante e à tensão repetida interminavelmente, e o frio, à medida que a noite se aproximava, entorpecia-lhe as mãos agarradas às muletas, apesar de elas estarem embrulhadas num tecido de lã. Cadfael decidiu parar assim que a luz começou a desvanecer no crepúsculo sem vento de Março, cinzento e sem distâncias, e virou para a aldeia de Uppington para pedir uma cama na casa senhorial onde pudessem passar a noite.

Haluin tinha estado compreensivelmente silencioso ao longo da estrada, necessitando de todo o fôlego e toda a sua determinação para o esforço da caminhada. À noite, depois de comer e de se pôr à vontade, ficou a olhar para Cadfael em silêncio durante algum tempo.

- Irmão - disse ele finalmente -, fico muito grato por teres vindo comigo nesta viagem. Só contigo é que eu conseguiria falar abertamente desta dor antiga, e, antes de voltarmos a ver Shrewsbury, posso precisar muito de falar nisso. O pior de mim já tu conheces, e nunca direi uma palavra a desculpar-me. Mas em dezoito anos, nunca, até agora, disse o nome dela em voz alta, e pronunciá-lo agora é como ter comida depois de se estar a morrer de fome.

- Fala ou fica calado, como quiseres - disse Cadfael -, e eu escutarei ou serei surdo, de acordo com os teus desejos. Mas esta noite tens de descansar, pois já percorremos um bom terço do caminho e amanhã, aviso-te desde já, terás dores que nem imaginas, por teres feito um esforço tão grande durante tanto tempo.

- Estou cansado - admitiu Haluin, com um sorriso repentino e singularmente comovente, tão breve quanto doce. - Pensas, então, que não conseguiremos chegar a Hales amanhã?

- Nem penses nisso! Não, iremos até ao cónego Augustiniano de Wombridge e passaremos lá outra noite. E será muito bom teres ido tão longe em tão pouco tempo, por isso não te queixes por demorares mais um dia.

- Como achares melhor - disse Haluin num tom submisso, deitando-se para dormir com a simplicidade confiante de uma criança satisfeita e protegida pelas suas orações.

O dia seguinte foi menos generoso, pois houve uma chuva fina esporádica que por vezes picava, e um vento mais frio vindo de nordeste, do qual a massa comprida, verde e alcantilada do Wrekin não lhes forneceu qualquer abrigo à medida que a estrada o contornava para norte. Mas chegaram à paróquia antes do crepúsculo, embora, nessa altura, os lábios de Haluin estivessem bem cerrados numa expressão de determinação, e a pele estivesse muito esticada e lívida por cima das maçãs do rosto devido à exaustão, e Cadfael ficou satisfeito quando conseguiu levá-lo para junto do calor e começou a trabalhar, com mãos oleadas, nos tendões dos seus braços e ombros, bem como nas coxas que tinham carregado tão corajosamente com ele durante todo o dia.

E no terceiro dia, no início da tarde, eles chegaram ao feudo de Hales.

A casa senhorial ficava situada um pouco afastada da aldeia e da igreja, e era feita de madeira sobre uma galeria subterrânea de pedra, em campos planos, bem drenados, com suaves colinas de bosques ao fundo. No interior da sua cerca de madeira, o estábulo, o celeiro e a casa do forno estendiam-se, bem cuidados e limpos, ao longo da paliçada. O Irmão Haluin deixou-se ficar junto do portão aberto e olhou para o local onde servira com um rosto fixo e imóvel; só os seus olhos estavam vivos e cheios de dor.

- Durante quatro anos - disse ele - mantive os anais do feudo aqui. Bertrand de Clary era o suserano do meu pai, fui enviado para cá ainda não tinha catorze anos, para ser pajem da sua dama. Acreditas que eu nunca vi o homem, ele já estava na Terra Santa antes de eu vir para cá. Esta é apenas uma das suas casas senhoriais, a única nesta zona, mas o filho dele já estava instalado na sua própria casa e governava a senhoria a partir de Staffordshire. Ele sempre gostou mais de Hales, e deixou o filho com a sua senhoria e instalou-se aqui, e foi para aqui que eu vim. Teria sido melhor para ela se eu nunca tivesse entrado nesta casa. Muito melhor para Bertrade!

- É demasiado tarde - disse Cadfael, suavemente - para reparar o que foi mal feito nessa altura. O dia de hoje é para fazer o que juraste fazer agora e não é demasiado tarde para isso. Talvez te sintas mais à vontade com ela se eu esperar cá fora.

- Não - disse Haluin. - Vem comigo! Preciso do teu testemunho, eu sei que este será justo.

Um jovem com cabelo de estopa saiu do estábulo com uma forquilha na mão a fumegar suavemente no ar frio. Ao ver dois hábitos beneditinos pretos ao portão, virou-se e dirigiu-se tranquila e amavelmente a eles.

- Se querem uma cama e uma refeição, Irmãos, entrem, o vosso hábito é sempre bem-vindo aqui. Podem dormir no sótão, e dar-vos-ão de comer na cozinha, se não se importam de ir até lá.

- Recordo-me - disse Haluin, com os olhos ainda fixos num passado distante - que a tua senhora sempre foi hospitaleira para com os viajantes. Mas esta noite não vou precisar de uma cama. Tenho uma mensagem para a dama Adelais de Clary, se ela me conceder audiência. Tudo o que peço são alguns minutos do seu tempo.

O rapaz encolheu os ombros, olhando para eles com olhos cinzentos saxónicos indecifráveis e fez-lhes sinal para que se dirigissem aos degraus de pedra que conduziam à porta da casa.

- Entre e pergunte pela sua aia, Gerta, ela irá ver se a senhora vos recebe. - E ele ficou a observá-los enquanto atravessavam o pátio, antes de voltar para o seu trabalho com os cavalos.

Quando passaram a enorme porta, um criado estava a subir as escadas da cozinha para o salão. Ele perguntou-lhes o que queriam e, quando lhe disseram, mandou um criado da cozinha dizer à aia da dama, a qual apareceu eventualmente à porta da casa para ver quem eram os hóspedes monásticos. Era uma mulher com cerca de quarenta anos, muito activa e bem arranjada, vestida com simplicidade e com um rosto pouco atraente, pois estava marcado pela varíola. Mas não havia qualquer dúvida de que exercia as suas funções com grande segurança. Ela olhou-os com um ar arrogante e escutou o pedido de Haluin, feito com humildade, sem um sorriso de compreensão, sem pressa de abrir a porta de que claramente se sentia guardiã privilegiada.

- Vêm da abadia de Shrewsbury? E numa incumbência do abade, suponho?

- Numa incumbência que o abade aprovou - disse Haluin.

- Não é a mesma coisa - disse Gerta, secamente. - Por que outros motivos a não ser assuntos da abadia seria um monge de Shrewsbury enviado até cá? Se esta é uma questão pessoal, a minha senhora deve ser informada de quem deseja falar com ela.

- Diga-lhe - disse Haluin pacientemente, encostando-se às muletas e baixando os olhos do rosto pouco hospitaleiro da mulher - que o Irmão Haluin, um monge beneditino da abadia de Shrewsbury, suplica humildemente a sua excelência que o receba.

O nome não significou nada para ela. Era óbvio que não estivera ao serviço de Adelais de Clary ou, certamente, que não fora sua confidente, nem sequer suficientemente íntima para adivinhar as suas preocupações, dezoito anos antes. Alguma outra mulher, talvez de idade mais próxima da sua dama, tinha cumprido essa função íntima na altura. Criadas íntimas em quem as suas senhoras confiavam e que, por sua vez, lhes eram fielmente leais, eram portadoras de uma grande quantidade de segredos, muitas vezes até à morte. Deverá haver algures, pensou Cadfael, observando-a em silêncio, uma mulher que teria ficado tensa e aberto muito os olhos ao ouvir aquele nome, mesmo que não tivesse reconhecido de imediato o rosto mudado e desgastado pelo tempo.

- Vou perguntar - disse a mulher, ainda com um toque de condescendência, após o que se afastou atravessando o salão até chegar a uma porta com uma cortina de cabedal no outro extremo. Decorreram alguns minutos até ela reaparecer, correndo as cortinas, e, sem se dar ao trabalho de se aproximar deles, chamou da ombreira da porta: - A minha senhora diz que podem vir.

A sala em que entraram era pequena e escura, pois as portadas das janelas estavam fechadas como protecção contra o tempo, e as tapeçarias que cobriam as paredes eram antigas e de cores escuras. Não havia lareira, mas numa soleira de pedra colocada perto do canto mais abrigado havia uma braseira de carvão, e entre esta e a única janela que deixava entrar a luz estava uma mulher sentada num banco almofadado, junto de um pequeno bastidor. À luz proveniente da janela, ela era uma figura alta, erecta, de roupas escuras, e, na penumbra, o brilho da braseira colocava laivos de cobre no seu rosto. Ela deixara a agulha enfiada no tecido esticado. As suas mãos agarravam com força os braços elevados da cadeirinha, e os seus olhos estavam fixos na porta que o Irmão Haluin atravessou dolorosamente com as muletas, com o pé útil, dorido da utilização, a fazê-lo franzir a testa a cada passo, e o dedo grande bloqueado do seu pé esquerdo mal tocando o chão, a dar uma pequena ajuda ao seu equilíbrio. O facto de se inclinar constantemente sobre as muletas tinha-lhe curvado os ombros e dobrado as suas costas direitas. Tendo ouvido o seu nome, seguramente que ela tinha esperado ver alguém mais próximo do jovem atraente e cheio de vida que expulsara de sua casa há todos aqueles anos. O que iria ela pensar deste homem destroçado?

Ele mal tinha entrado na sala quando ela se pôs abruptamente de pé, rígida como uma lança. Por cima das suas cabeças ela dirigiu-se primeiro à aia, que tinha entrado atrás deles.

- Deixa-nos! - disse Adelais de Clary. E para Haluin, enquanto a cortina de cabedal que separava a sala do salão balouçava: - O que é isto? O que é que te fizeram?

 

Ela devia, calculou Cadfael, habituando-se ao jogo de luz e sombra no interior da sala, ter cerca de dez anos mais do que ele, mas parecia mais nova. O cabelo escuro que estava enroscado em pesadas tranças de ambos os lados da cabeça não tinha praticamente cabelos brancos, e os ossos finos e altivos do seu rosto tinham mantido a sua imorredoira elegância, embora a pele que os cobria estivesse agora um pouco enrugada e sem vida, e o seu corpo tinha-se tornado anguloso e magro à medida que a seiva da juventude tinha secado. As suas mãos, embora ainda fossem elegantes, denunciavam-na com nós dos dedos inchados e veias marcadas com rugas, e havia uma flacidez na pele pálida da garganta e do pulso onde outrora houvera o brilho arredondado da juventude. Mas, apesar de tudo isso, no rosto oval, nos lábios longos e resolutos e nos olhos grandes, nas suas órbitas fundas, Cadfael viu as cinzas de uma grande beleza. Não, cinzas não, brasas, ainda a arder e pelo menos tão quentes como o carvão que ardia no centro da braseira.

- Aproxima-te! - disse ela. E quando Haluin se colocou de pé à sua frente com a luz a incidir no rosto, uma luz pálida e fria da janela, corada pelo lume: - És mesmo tu! - disse ela. - Estava na dúvida. O que é que te aconteceu?

A voz dela era baixa, cheia e autoritária, mas a sugestão inicial de desânimo e preocupação tinha desaparecido. Olhou para ele sem compaixão nem frieza, mas sim com uma espécie de indiferença desinteressada, uma curiosidade pouco profunda.

- A culpa é toda minha - disse Haluin. - Não vos preocupeis! Tenho aquilo que mereço. Dei uma grande queda mas, pela graça de Deus, estou vivo, quando nesta altura julgava que estaria morto. E tal como aliviei a minha alma perante Deus e ao meu confessor pelos pecados antigos, venho pedir-vos o vosso perdão.

- Isso era necessário? - disse ela, espantada. - Ao fim de tantos anos, e vindo de tão longe?

- Sim, era necessário. Preciso muito de vos ouvir dizer que me perdoais o mal que fiz e o sofrimento que vos causei. Não poderei ter descanso até a página estar limpa de todas as manchas.

- E tu contaste tudo o que aconteceu antigamente - disse Adelais com algum azedume -, tudo o que era secreto e vergonhoso? Ao teu confessor! E a quantos mais? A este bom irmão que te acompanha? A todos os membros do cabido? Será que não podias suportar continuar a ser um pecador inconfesso em vez de denunciar o nome da minha filha ao mundo, e com ela há tanto tempo na sepultura? Eu teria preferido ir em pecado para o purgatório!

- Eu também! - exclamou Haluin, confrangido. - Mas não, isso não aconteceu. O Irmão Cadfael faz-me companhia porque é o único que sabe, com excepção do Abade Radulfus, que ouviu a minha confissão. Pela nossa boca, ninguém irá saber. O Irmão Cadfael também foi grandemente lesado pelo que fiz, ele tinha o direito de conceder ou recusar o seu perdão. Foi do seu stock e depois de ter colhido os seus ensinamentos que eu roubei os medicamentos que vos dei.

Ela lançou um olhar longo e firme a Cadfael e o seu rosto, que agora se via claramente, estava concentrado e imóvel.

- Bem - disse ela, recorrendo novamente à indiferença -, já se passou há muito tempo. Quem se iria recordar agora? E eu ainda não estou à beira da morte. O que sei eu! Eu própria irei precisar de um padre um dia, nessa altura poderia responder-te melhor. Bem, para pôr termo ao assunto... Tens o que pedes! Eu perdoo-te. Não vou fazer-te sofrer mais do que já sofres. Regressa em paz ao teu mosteiro. Eu perdoo-te, tal como espero ser perdoada.

As palavras foram ditas sem paixão; a breve explosão de ira já desaparecera. Absolvê-lo não representou qualquer esforço, ela pareceu fazê-lo sem qualquer emoção, e com tão pouco sentimento como daria comida a um pedinte. Era possível pedir adequadamente esmola a damas da nobreza, e dar era uma forma de generosidade, o cumprimento de um rito de senhoria. Mas o que ela deu com ligeireza foi para Haluin uma bênção de alívio. A tensão desapareceu dos seus ombros inclinados e das mãos rigidamente fechadas. Ele inclinou a cabeça com humildade perante ela e murmurou os seus agradecimentos numa voz baixa e vacilante, como um homem momentaneamente ofuscado.

- Minha senhora, a vossa misericórdia tira um peso de cima de mim, e estou-vos grato de todo o coração.

- Volta para a vida que escolheste e para as tarefas que assumiste - disse ela, voltando a sentar-se, embora não tivesse ainda pegado na agulha. - Não penses mais no que aconteceu há muito tempo. Dizes que a vida te foi poupada. Utiliza-a o melhor que puderes, e eu farei o mesmo com respeito à minha.

Era uma forma de o mandar retirar-se, e Haluin aceitou-a como tal. Fez uma grande vénia, deu cuidadosamente meia volta sobre as muletas, e Cadfael estendeu a mão para o manter firme nesse movimento. Ela nem sequer os mandara sentar, possivelmente demasiado abalada com uma visita tão repentina e surpreendente, mas, quando eles estavam a chegar à porta, disse subitamente:

- Fiquem, se quiserem, para descansar e comer na minha casa. Os meus criados dar-vos-ão tudo o que necessitarem.

- Agradeço-vos - disse Haluin -, mas a autorização para nos ausentarmos exige que regressemos assim que a minha peregrinação aqui estiver terminada.

- Que Deus apresse o vosso regresso a casa, então - disse Adelais de Clary, e, com uma mão firme, pegou novamente na agulha.

A igreja ficava a uma curta distância da casa senhorial, no local em que os dois trilhos se cruzavam, e o amontoado dos lotes das casas estava próximo do muro do cemitério.

- O túmulo está no interior - disse Haluin, quando passaram o portão. - Nunca foi aberto enquanto eu aqui estive, mas o pai de Bertrand está enterrado aqui, e certamente que deve ter sido aberto para Bertrade. Ela morreu aqui. Desculpa, Cadfael, ter recusado a hospitalidade também para ti, não pensei a tempo. Não precisarei de uma cama esta noite.

- Não disseste nada disso à dama - observou Cadfael.

- Não. Nem sei bem porquê. Quando voltei a vê-la, o meu coração sentiu-se apreensivo ao pensar que talvez tenha feito mal em recordar-lhe essa dor antiga, que o mero facto de me ver representava para ela um insulto. No entanto, perdoou-me. Isso faz-me sentir melhor, e certamente que não parece ter-lhe feito mal. Mas podias ter dormido bem esta noite. Não há necessidade de ficarmos os dois de vigília.

- Eu estou melhor equipado para passar uma noite de joelhos do que tu - disse Cadfael. - E não tenho a certeza de que a recepção ali teria sido muito calorosa. Ela queria que nos fôssemos embora. Não, está tudo muito bem assim. O mais provável é que ela pense que já estamos a caminho de casa, fora da sua terra e da sua vida.

Haluin fez uma pausa por um segundo com a mão no pesado anel de ferro da porta da igreja, com o rosto na sombra. A porta abriu-se, com um rangido, e ele agarrou nas muletas para descer os dois degraus largos, pouco altos, que iam dar à nave. No interior da igreja estava escuro e frio. Cadfael esperou um momento nos degraus até os seus olhos se terem habituado à alteração da luz, mas Haluin percorreu imediatamente a nave em direcção ao altar. Nada tinha mudado muito em dezoito anos e nada tinha sido esquecido. Até mesmo as orlas das lajes do chão lhe eram familiares. Ele virou na direcção da parede da direita, com as muletas a ecoarem pela igreja, e Cadfael, quando o seguiu, encontrou-o de pé ao lado da tampa de um túmulo encaixado entre dois pilares. A imagem esculpida ali deitada tinha uma cota de malha grosseira, uma perna cruzada sobre a outra e uma mão sobre o cabo de uma espada. Outro cruzado, certamente o pai de Bertrand, que, por sua vez, o seguira até à Terra Santa. Este, calculou Cadfael, podia bem ter estado com o exército de Roberto da Normandia no meu tempo, na tomada de Jerusalém. Era óbvio que os homens De Clary se orgulhavam da sua guerra no Oriente.

Um homem apareceu vindo da sacristia e, ao ver os dois inconfundíveis hábitos beneditinos, virou-se para se dirigir amavelmente a eles. Um homem de meia idade, com uma batina preta desbotada, avançou para eles com uma expressão ligeiramente inquiridora e um sorriso de boas-vindas. Haluin ouviu os seus passos suaves e deu meia volta, satisfeito por cumprimentar um vizinho de que se recordava, mas recuou imediatamente ao ver um desconhecido.

- Bom dia, Irmãos! Deus esteja convosco! - disse o padre de Hales. - Para viajantes com o vosso hábito, a minha casa está sempre aberta, o mesmo acontecendo com esta casa de Deus. Vieram de longe?

- De Shrewsbury - disse Haluin, recuperando da surpresa.

- Perdoe-me, padre, se fiquei surpreendido. Estava à espera de ver o padre Wulfnoth. Foi, de facto, uma tolice da minha parte, pois há muitos anos que não vinha cá, e ele estava a ficar com a cabeça branca quando o conheci, mas, para mim, na minha juventude, parecia que ele estaria aqui para sempre. Agora, mal me atrevo a perguntar!

- O padre Wulfnoth partiu para o seu eterno descanso - disse o padre. - Deve fazer agora sete anos. Eu vim para cá há dez anos, depois de ele ter ficado de cama com uma apoplexia e tomei conta dele durante três anos até ele morrer. Na altura, eu era padre há pouco tempo, aprendi muito com Wulfnoth, a sua mente era clara e viva, ainda que o corpo lhe falhasse. - O seu amável rosto redondo manifestava curiosidade e compreensão.

- Então conhece esta igreja e esta casa senhorial? Nasceu em Hales?

- Não, não. Mas durante alguns anos servi a dama Adelais na casa senhorial. Antes de tomar o hábito em Shrewsbury conheci bem a igreja e a aldeia. Agora - disse Haluin, ansiosamente, vendo como estava a ser observado atentamente e sentindo necessidade de justificar o seu regresso - preciso muito de dar graças por ter escapado vivo de um acidente que poderia ter provocado a minha morte e tive a ideia de me libertar, enquanto tenho essa possibilidade, do peso de todas as dívidas que tenho na consciência. Das quais há uma que me traz a este túmulo. Havia uma dama da família De Clary que eu venerava e que morreu prematuramente. Gostaria de passar a noite aqui, no local onde ela foi enterrada, a rezar por ela. Foi muito antes do seu tempo, faz agora dezoito anos. Não se importa que eu passe a noite aqui dentro?

- Quanto a isso, pode estar à-vontade - disse o padre, cordialmente. - Eu posso acender-lhe um fogaréu, isso ajudá-lo-á um pouco a proteger-se do frio. Mas certamente, Irmão, que está enganado. É verdade que o que diz coloca tudo isso antes do meu tempo, mas o padre Wulfnoth contou-me muita coisa a respeito da igreja e da casa senhorial; ele passou toda a vida ao serviço dos senhores de Hales. Foram eles que o ajudaram nos seus estudos e o colocaram aqui como padre. Não foi ninguém sepultado neste túmulo desde que o velho senhor morreu, este que está esculpido aqui na pedra. E isso foi há mais de trinta anos, é o seu neto que agora governa. Uma dama da família, diz-me? E morreu jovem?

- Uma parente - disse Haluin em voz baixa, abalado, baixando os olhos para a pedra que há trinta anos não era levantada. - Ela morreu aqui em Hales, eu pensava que devia ter sido enterrada aqui. - Ele não ia dizer o nome dela, nem contar mais do que o necessário sobre si próprio e sobre o que o movia, nem mesmo a este homem generoso. Cadfael manteve-se afastado deles, a observar, e ficou calado.

- E foi há dezoito anos apenas? Então, pode ter a certeza, Irmão, de que ela não está aqui. Se conheceu o padre Wulfnoth, sabe que pode confiar no que ele me disse. E eu sei que ele esteve lúcido até ao dia em que morreu.

- Eu acredito - disse Haluin, tremendo com o frio da decepção. - Ele não estaria enganado. Então... então, ela não está aqui!

- Mas esta não é a casa principal da senhora De Clary - fez notar o padre num tom suave. - Pois essa é Elford, em Staffordshire. O senhor actual, Audemar, levou o pai para lá para ser sepultado, a família tem um jazigo grande lá. Se houve alguns parentes próximos que morreram nestes últimos anos, é lá que eles estão. Sem dúvida que a dama de que fala também foi levada para lá para ser sepultada junto dos seus familiares.

Haluin agarrou-se ansiosamente à esperança.

- Sim... sim, pode muito bem ser, deve ter sido. Então, eu hei-de encontrá-la.

- Não duvido - disse o padre. - Mas é muito longe para ir a pé. - Ele tinha pressentido uma urgência que muito provavelmente não daria ouvidos à razão, mas fez o possível por moderá-la. - Se pretende ir agora, aconselho-o a ir a cavalo, ou a esperar pelos dias maiores e por melhor tempo. Pelo menos, venha a minha casa comer e passar a noite.

Mas Haluin não o faria, o Irmão Cadfael viu isso claramente. Não enquanto houvesse ainda uma hora ou mais de luz do dia nas janelas, e ele ainda tivesse forças para caminhar mais uma milha. Declinou o convite com um agradecimento ligeiramente culpado e despediu-se do bom homem que ficou a observá-los, intrigado, até terem subido os degraus até ao pórtico e fecharem a porta atrás deles.

- Não! - disse Cadfael com firmeza assim que saíram do cemitério e enquanto percorriam o trilho no meio das casas da aldeia para chegarem à estrada. - Tu não podes fazer isso!

- Não só posso, como tenho de o fazer! - respondeu o Irmão Haluin com igual determinação. - Por que é que não o hei-de fazer?

- Porque, em primeiro lugar, não sabes qual é a distância até Elford. A mesma que percorremos para vir até aqui, mais metade. E tu sabes perfeitamente o esforço que já fizeste. E, em segundo lugar, porque tiveste autorização para fazer esta viagem na suposição de que a mesma terminaria aqui, e que nós dois regressaríamos a partir daqui. E é isso que devemos fazer. Não, não abanes a cabeça, tu sabes muito bem que o Pai Abade nunca previu mais do que isso, e nunca te teria dado autorização para mais. Devemos voltar para trás agora.

- Como é que posso fazer isso? - A voz de Haluin era implacavelmente razoável, até mesmo tranquila. Para ele, o seu caminho era perfeitamente claro, e ele foi paciente na sua discordância. - Se voltar para trás, serei condenado. Ainda não fiz o que jurei fazer, eu regressaria condenado por mim próprio e um ser desprezível. O Pai Abade não gostaria que isso acontecesse, embora nem ele nem eu estivéssemos a contar com uma penitência tão longa. Ele deu-me autorização para levar a cabo o que jurei fazer. Se ele estivesse aqui para eu lhe perguntar, dir-me-ia que continuasse. Eu disse que não descansaria até ir a pé ao túmulo onde Bertrade está sepultada e ter passado ali uma noite em oração e vigília, e eu não fiz isso.

- A culpa não foi tua - disse Cadfael, energicamente.

- Isso desculpa-me? É justo que eu duplique o caminho. Se não o fizer, digo-te, viverei condenado e morrerei sem ser perdoado. Jurei sobre as relíquias de Santa Winifred, que tem sido tão boa para todos nós. Como é que posso voltar para trás? Prefiro morrer na estrada, a tentar ao menos cumprir fielmente a minha promessa, a abandonar a minha fé e honra e voltar para trás coberto de vergonha.

E quem estava a falar, interrogou-se Cadfael, o monge cumpridor ou o filho de uma boa casa normanda, oriundo de uma linha pelo menos tão antiga como a do rei Guilherme quando este tomou a coroa de Inglaterra, e sem a irregularidade da ilegitimidade. Sem dúvida que o orgulho é um pecado indigno de um irmão beneditino, um pecado que não é tão facilmente abandonado como os privilégios e o título de nobreza.

Haluin também tinha compreendido a fugaz implicação da arrogância e corou ao reconhecê-la, mas não recuou. Parou subitamente, oscilando sobre as muletas e levantou apressadamente uma mão para pegar no pulso de Cadfael.

- Não ralhes comigo! Bem, eu sei que podes fazê-lo, e o teu rosto mostra-me que o mereço, mas não me condenes. Não posso fazer outra coisa. Oh, Cadfael, eu conheço bem todos os argumentos que podes usar, com toda a justeza, contra mim, eu próprio já pensei neles, continuo a pensar neles, mas continuo a sentir-me obrigado. Obrigado pelos votos que não quero nem ousarei quebrar. Se o meu abade me considerar rebelde e desobediente, se o meu abade me expulsar, eu teria de suportar isso. Mas voltar atrás no que jurei a Bertrade, isso não suportarei.

O sangue que lhe subiu às faces pálidas ficava-lhe bem, tirando-lhe o ar emaciado provocado pela doença, retirando-lhe mesmo alguns anos. Ele estava imóvel, direito, esticando as costas inclinadas para cima no meio das muletas. Nenhuma persuasão iria demovê-lo. Era melhor aceitar a situação.

- Mas tu, Cadfael - disse ele apertando o pulso que segurava -, não fizeste qualquer juramento, não és obrigado a cumpri-lo. Não há necessidade de ires mais longe, fizeste tudo o que se esperava de ti. Volta para trás agora e fala por mim ao abade.

- Meu filho - disse Cadfael entre a compaixão e a exasperação -, eu estou tão preso como tu, e tu devias saber isso. As minhas ordens são para te acompanhar, para o caso de fraquejares, e tomar conta de ti, se o fizeres. Tu tens um assunto teu a tratar, eu cumpro as ordens do abade. Se não puder levar-te comigo, não posso voltar para trás.

- Mas o teu trabalho - protestou Haluin, desanimado mas resoluto. - O meu pode esperar, mas eles vão sentir a tua falta. Como é que eles podem passar tanto tempo sem ti?

- O melhor que conseguirem. Ninguém é imprescindível - disse Cadfael com firmeza. - E ainda bem, uma vez que a vida de todos nós tem um fim. Não, não digas mais nada. Tu já tomaste uma decisão, eu também. Para onde fores, eu vou. E uma vez que temos apenas uma hora de luz, e imagino que não queiras dormir aqui em Hales, é melhor avançarmos tranquilamente e procurarmos abrigo no caminho.

Adelais de Clary levantou-se de manhã e foi à missa, como era seu hábito regular. Era meticulosa nas suas práticas religiosas e na dádiva de esmolas, mantendo um hábito antigo da casa do seu marido. E se a sua caridade parecia por vezes um pouco fria e distante, pelo menos era constante e fiável. O padre da paróquia ia ter com ela sempre que tinha um caso especial que precisava de ajuda.

Depois do serviço religioso, ele acompanhou-a até ao portão, zeloso no cumprimento dos seus deveres.

- Ontem tive a visita de dois monges beneditinos - disse ele, enquanto ela se cobria bem com a capa, para se proteger do vento fresco de Março. - Dois irmãos de Shrewsbury.

- Teve? - disse Adelais. - Que queriam eles de si?

- Um deles era aleijado e andava de muletas. Disse que estivera outrora ao seu serviço, antes de tomar o hábito. Lembrava-se do padre Wulfnoth. Eu pensava que eles tinham vindo fazer-vos uma visita de cortesia. Não o fizeram?

Ela não respondeu a essa pergunta, limitando-se a comentar distraidamente, olhando para a distância como se não estivesse totalmente concentrada no que estava a dizer.

- Recordo-me de haver tido uma vez um escrivão que entrou para o mosteiro de Shrewsbury. Que veio ele fazer aqui à igreja?

- Ele disse que a morte o tinha poupado e que queria pagar todas as suas dívidas, para estar melhor preparado. Encontrei-os ao lado do túmulo do pai do vosso senhor. Eles estavam convencidos de que uma mulher da vossa casa tinha sido sepultada ali há dezoito anos. O aleijado tinha a intenção de passar a noite de vigília a rezar por ela.

- Um erro estranho - disse Adelais com o mesmo desinteresse tolerante. - Sem dúvida que o desenganou?

- Disse-lhe que esse não era o caso. Eu não estava cá, claro, mas sabia pelo padre Wulfnoth que há muitos anos que o túmulo não era aberto e que o que o jovem irmão supunha não podia ser verdade. Disse-lhe que todos os membros da vossa casa estão agora sepultados em Elford, que é a casa senhorial principal.

- Essa seria uma viagem longa e difícil, para um homem coxo, a pé - disse Adelais com compaixão fácil. - Espero que ele não tencione prosseguir a viagem até tão longe.

- Eu penso, minha senhora, que ele o fará. Porque eles recusaram-se a descansar, a comer comigo e a passar a noite aqui, e voltaram a partir imediatamente. Sim, tenho a certeza de que eles viraram para leste quando chegaram à estrada. Uma viagem longa e difícil, de facto, mas ele queria fazê-la.

A relação dele com a sua benfeitora era confortável e fácil, e não hesitou em perguntar directamente:

- Eles vão encontrar a dama que procuram em Elford?

- É possível - disse Adelais, caminhando calma e serenamente ao lado dele. - Dezoito anos é muito tempo, e eu posso ler a mente dele. Na altura, eu era mais nova, tinha mais pessoas em casa. Eram primos, alguns deixados sem fortuna. O meu senhor tratava todos os seus familiares como um pai. Na sua ausência e como sua regente, eu fazia a mesma coisa.

Tinham chegado ao portão do cemitério e ficaram ali parados. A manhã era suave e verde, mas muito calma, e a cobertura de nuvens pairava, pesada e baixa, acima deles.

- Se não chover - disse o padre - ainda vai haver mais neve. - E ele prosseguiu inconsequentemente: - Dezoito anos! É possível que esse monge, durante o tempo em que esteve convosco, se tivesse sentido atraído por uma dessas jovens primas, como acontece com os jovens, e que a morte prematura dela lhe tivesse causado uma dor maior do que ele ousou dizer-vos.

- É possível que sim - disse Adelais num tom distante, aconchegando mais a capa para se proteger de lanças infinitamente finas de chuva com saraiva que pairavam no ar calmo e lhe picavam o rosto. - Bom dia, padre!

- Eu vou rezar - disse o padre - para que a peregrinação ao túmulo dela traga consolação e benefício para ele vivo, bem como para a dama morta.

- Faça isso, padre - disse Adelais, sem voltar a cabeça. - E não deixe de acrescentar uma oração por mim e por todas as mulheres da minha casa, para que o tempo seja generoso para connosco quando o nosso dia chegar.

Cadfael estava acordado no palheiro de um guarda-florestal na floresta real de Chenet, a escutar a respiração pausada do seu companheiro, demasiado constante e demasiado tensa para significar que ele dormia. Era a segunda noite desde que tinham partido de Hales. Tinham passado a primeira na casa de um pequeno rendeiro solitário e da sua mulher, a cerca de uma milha do povoado de Hamlet, e o dia entre as duas noites tinha sido longo; este segundo abrigo na orla da floresta chegou com muita amabilidade e gratidão. Tinham-se deitado no palheiro porque Haluin, cuja insistência os fizera continuar a andar até tão tarde na noite, estava próximo da exaustão. O sono, reparou Cadfael, sobreveio-lhe rápida e tranquilamente, uma bênção reparadora para uma alma tão perturbada e torturada quando desperta. Há muitas formas de Deus aliviar o fardo. Haluin acordava todas as manhãs revigorado e decidido.

Ainda não era dia, faltava talvez uma hora para o amanhecer. Não se ouvia qualquer movimento, qualquer sussurro do feno oriundo do canto de Haluin, mas Cadfael sabia que ele já estava acordado, e a imobilidade era boa, pois significava que, independentemente do lugar para onde a mente desperta pudesse ter vagueado, ele continuava a sentir a languidez do bem-estar do corpo.

- Cadfael? - disse uma voz baixa, longínqua, saída da escuridão. - Estás acordado?

- Estou - respondeu ele também em voz baixa.

- Tu nunca me perguntaste nada. Sobre o que eu fiz. Sobre ela...

- Não há necessidade - disse Cadfael. - O que quiseres contar-me será ouvido sem quaisquer perguntas.

- Até agora - disse Haluin - nunca tive liberdade para falar dela. E agora só a ti, sabes. - Fez-se silêncio. Ele pronunciava as palavras lenta e esforçadamente, como fazem os tímidos e solitários. Após algum tempo, prosseguiu em voz baixa: - Ela não era bela como a mãe. Não tinha aquela radiosidade sombria, mas sim algo mais bondoso. Não havia nada de sombrio ou secreto nela, tudo era franco e iluminado pelo sol, como uma flor. Ela não tinha medo de nada... não nessa altura. Confiava em toda a gente. Nunca tinha sido traída... não até essa altura. Só o foi uma vez e morreu por causa disso.

Outro silêncio mais longo e desta vez o feno moveu-se um pouco, como um suspiro. Depois ele perguntou, quase com timidez:

- Cadfael, tu passaste metade da tua vida no mundo... alguma vez amaste uma mulher?

- Sim - respondeu Cadfael -, amei.

- Então, sabes o que se passou connosco. Porque nós amámo-nos, eu e ela. Dói, sobretudo - disse o Irmão Haluin, olhando para trás com uma dor resignada e pensativa - quando se é jovem. Não existe um lugar onde nos possamos esconder da dor, não há escudo que nos possa proteger. Vê-la todos os dias... e, sabes, ela sentia o mesmo que eu...

Mesmo que, durante todos aqueles anos, ele tivesse tentado esquecer e tivesse concentrado as mãos, a mente e o espírito no serviço a que voluntariamente se propusera, com extrema dedicação, não esquecera nada, estava tudo dentro dele, prestes a despertar a cada instante, como um fogo dormente quando se abre uma porta. Agora, pelo menos, ele podia escapar para o ar livre, para o mundo dos outros homens, onde poderia tocar o sofrimento de outros homens e receber e dar compaixão. Não era necessário que Cadfael falasse, bastava o simples reconhecimento da camaradagem e a garantia de um ouvido atento.

Haluin adormeceu com uma última palavra nos lábios, murmurada de uma forma quase inaudível depois de silêncios cada vez mais longos. Podia ter sido o nome dela, Bertrade, ou podia ter sido “sepultada”. Não importava! O que importava era que ele a tinha pronunciado ao adormecer, e agora, após todo o enorme esforço despendido ao longo do caminho, dormiria novamente, talvez até muito depois de o nascer do dia. Ainda bem! Mais um dia passado nesta peregrinação poderia atormentar o seu espírito impaciente, mas sem dúvida que seria benéfico para o seu corpo duramente castigado.

Cadfael levantou-se muito silenciosamente e deixou o seu companheiro a dormir profundamente, praticamente prisioneiro no palheiro, uma vez que iria precisar de ajuda para se pôr de pé e descer a escada. Com o alçapão aberto, seria possível ouvi-lo quando se mexesse, mas, pelo aspecto do seu corpo descontraído e do rosto magro liberto de tensões, ele iria seguramente dormir durante algum tempo.

Cadfael saiu para a manhã límpida e clara, cheirou o ar calmo da floresta ainda meio adormecida, redolente com os odores remanescentes do Inverno. Da pequena cabana do guarda-florestal no meio das árvores, era possível ver o trilho cinzento desimpedido em relances irregulares entre os troncos velhos, pois a vegetação era suficientemente cerrada para manter o terreno livre de vegetação rasteira. Um carrinho de mão rodava ao longo da estrada, carregado de aparas dos galhos caídos no Outono, e o voo chilreante dos pássaros incomodados acompanhavam-no num bruxuleio de ramos adejantes e folhas a pairar. O guarda-florestal já estava ocupado com as suas tarefas matinais, a vaca seguia-o, com o seu passo pesado, para ser mungida, e o cão andava às voltas em redor dos seus calcanhares. Um dia seco, um céu nublado mas com nuvens altas, uma boa luz. Um belo dia para a estrada. Ao cair da noite, eles poderiam estar em Chenet, e a casa senhorial, situada nas terras do rei, recebê-los-ia. No dia seguinte seguiriam para Lichfield, e aí, por mais veementemente que Haluin insistisse para que percorressem as poucas milhas que faltavam para Elford, Cadfael estava decidido que fariam uma paragem para terem uma longa noite de descanso. Depois de uma boa noite de sono em Lichfield, Haluin estaria em melhores condições de suportar a vigília da noite seguinte em memória de Bertrade, que jurara fazer, e de enfrentar o início da viagem de regresso, durante a qual, Deus seja louvado, não haveria necessidade de se apressarem, e não haveria motivo para ele se impelir a si próprio para os limites da resistência.

Os sons chegavam abafados e suaves ao longo da terra batida do trilho, mas Cadfael sentiu a vibração dos cascos e não o seu impacte. Cavalos oriundos de oeste, dois cavalos, pois a sua andadura estremecia em contraponto, aproximando-se a um trote veloz, frescos de uma noite de descanso e prontos para o dia. Viajantes que talvez se dirigissem a Lichfield, depois de terem passado a noite na casa senhorial de Stretton, dois quilómetros atrás. Cadfael ficou a vê-los passar.

Eram dois homens com arreios pardos, casacos de cabedal, à vontade na sela, e a forma como se sentavam e lidavam com as suas montadas era tão semelhante que ou tinham aprendido juntos a montar na infância, ou um tinha ensinado o outro. E, de facto, um deles tinha o dobro do volume do outro e era claramente uma geração mais velho e, embora estivessem demasiado longe e fossem vistos demasiado de relance para ser possível distinguir-lhes os traços, toda a sua forma indicava que estavam ligados por laços de família. Dois palafreneiros privilegiados de uma casa nobre, cada um deles com um assento de mulher atrás de si. Mulheres envoltas em capas de viagem quentes são todas muito parecidas, mas, no entanto, Cadfael ficou a olhar atentamente para a primeira e manteve os seus olhos fixos nela até os cavalos e os seus cavaleiros terem desaparecido ao longo da estrada, e o suave tamborilar dos cascos se ter desvanecido na distância.

Ela ainda se encontrava no interior das suas pálpebras quando ele voltou para o palheiro, procurando, apreensivo, na sua memória, insistindo, ao mesmo tempo que considerava essa possibilidade um disparate, que já a tinha visto antes e, além disso, que sabia muito bem onde, se o quisesse admitir.

Mas, quer fosse verdade ou não, e o que quer que isso augurava se o fosse, ele não podia fazer nada a esse respeito. Atirou o pensamento para o fundo da mente e entrou no palheiro, para aguardar o momento em que Haluin acordasse e precisasse dele.

Atravessaram arvoredos até chegarem a uma expansão de campos planos, ainda um pouco esbranquiçados e cinzentos no ar frio, mas férteis e bem cultivados, uma pequena ilha rica num condado que ainda se encontrava bastante negligenciado depois da dura pacificação a que fora sujeito cinquenta anos antes. Perante eles estavam as curvas elegantes do rio Tame, o telhado íngreme de um moinho e, para além da água, o agrupamento das casas de Elford.

Eles tinham passado uma noite descansada na generosa e amável hospitalidade dos clérigos de Lichfield, tinham recebido instruções completas a respeito da melhor estrada para Elford e, à primeira luz do amanhecer, tinham iniciado as últimas quatro milhas desta viagem de penitência. E aqui, à sua frente, estava o objectivo da peregrinação de Haluin, quase ao seu alcance, com apenas uma expansão de campos tranquilos e uma ponte de madeira entre ele e a absolvição. Um local afortunado, próspero quando muitos estavam empobrecidos, possuindo, não um, mas dois moinhos à beira da água, pois eles podiam vislumbrar um segundo moinho rio acima, com um amplo prado e um solo rico onde se viam campos aráveis. Um local que podia bem prometer bênção e paz de espírito depois do esforço e da dor.

Seguiram em frente ao longo do trilho estreito, e os telhados de Elford erguiam-se agora perante eles, rodeados de árvores e arbustos ainda sem folhas e escuros nesta vista distante, ainda não tão adiantados no florescimento que mostrassem o primeiro leve e esquivo fumo de verde. Atravessaram a ponte cujas tábuas irregulares obrigaram Haluin a ter muito cuidado com onde colocava as muletas, e chegaram ao trilho que passava por entre as casas. Uma aldeia limpa, com as donas de casa e os agricultores alegres e confiantemente ocupados com as suas tarefas diárias, atentos à presença de estranhos, mas amáveis e hospitaleiros para com o hábito beneditino. Eles trocaram saudações ao longo do caminho, e Haluin, alegre e aliviado por ter terminado a sua viagem com êxito, começou a corar e a ficar animado de satisfação por lhe ter sido oferecido este augúrio espontâneo de aceitação e libertação.

Tinham visto a torre baixa da igreja antes de atravessar a ponte, pelo que não houve necessidade de perguntar como poderiam lá chegar. A igreja tinha sido construída após a chegada dos normandos, e era um edifício robusto de pedra cinzenta, com um cemitério espaçoso muito bem cercado de modo a servir de santuário em caso de necessidade e cheio de belas árvores antigas. Passaram sob o pórtico de arco redondo e entraram na escuridão fresca e ressoante de todas as igrejas construídas de pedra, cheirando vagamente a pó, velas de cera e com um forte e tranquilizador odor a lar, o local escolhido para viver.

Haluin tinha parado no silêncio ladrilhado da nave para se orientar. Aqui não havia uma capela da Virgem para alojar um túmulo do patrono entre os altares, os senhores de Elford deviam estar de lado, encaixados nas pedras das paredes que tinham erguido. A luz vermelha da lamparina do altar mostrou-lhes onde estava o túmulo: uma laje grande preenchia um nicho na parede da direita. Um De Clary morto, talvez o primeiro que tinha vindo para Inglaterra com o rei Guilherme e sido mais tarde recompensado, aparecia como uma figura adormecida em relevo na pedra. Haluin tinha avançado em direcção a ele mas, após o primeiro passo, parou e deu um passo atrás, pois havia uma mulher de joelhos ao lado do túmulo.

Eles viram-na apenas como uma figura vaga pois, nesta luz obscura, a capa que ela usava era cinzenta-escura como a pedra e eles souberam que era uma mulher e não um homem porque o capuz da capa estava puxado para trás, descobrindo uma touca de linho branco e, sobre esta, um véu de gaze. Estavam prestes a retirar-se para o pátio para a deixar terminar as orações em paz, mas ela tinha ouvido o barulho das muletas no chão de ladrilhos e voltou a cabeça para eles. Num único movimento gracioso e abrupto, ela pôs-se de pé e, quando se dirigiu a eles, penetrou na luz oriunda de uma janela e mostrou-lhes o rosto altivo, maduro e belo de Adelais de Clary.

 

- Vocês? - disse ela, fitando-os e voltando o olhar espantado de um rosto para o outro, parecendo procurar alguma lógica nesta visita inesperada. A sua voz era neutra, não os recebendo cordialmente, nem os repelindo. - Não pensei que fosse voltar a vê-los tão cedo. Há mais alguma coisa que me queiras perguntar, Haluin, e foi por isso que me seguiste até aqui? Só tens de perguntar. Eu já disse que te perdoo.

- Minha senhora - disse Haluin, abalado e a tremer com a aparição da sua antiga patroa neste local inesperado -, nós não vos seguimos. Na realidade, nunca pensei que vos ia encontrar aqui. Estou-vos grato pela vossa clemência, e por nada no mundo voltaria a incomodar-vos. Eu vim cá apenas para cumprir uma promessa. Tinha pensado passar uma noite em oração em Hales, julgando, minha senhora, que a vossa filha estava lá sepultada. Mas soubemos pelo padre que esse não é caso. Ela está aqui em Elford, no túmulo dos seus avós. Por isso, continuei até cá. E a única coisa que vos peço é a vossa autorização para fazer a minha vigília aqui esta noite, em cumprimento do que jurei. Seguidamente, ir-nos-emos embora e nunca mais vos incomodaremos.

- Eu não vou negar - disse ela, num tom mais suave - que ficarei satisfeita quando te fores embora. Não existe qualquer má vontade! Mas gostaria muito de ligar e esconder a ferida que voltaste a abrir, até ela sarar. O teu rosto é uma doença que a faz abrir e sangrar de novo. Achas que eu teria montado o cavalo e vindo até aqui tão depressa se não me tivesses feito recordar essa dor antiga?

- Eu penso, minha senhora - disse Haluin numa voz baixa e trémula -, que, tal como eu espero fazê-lo, ireis descobrir que, com esta expiação, a ferida ficou limpa de todos os rancores.

Rezo para que, desta vez, a vossa ferida sare suave e totalmente.

- E para ti? - disse ela, secamente, afastando-se um pouco dele com um movimento de mão que proibia qualquer resposta.

- Doce e totalmente! Pedes muito a Deus, e ainda mais a mim.

- Na luz oblíqua oriunda da janela, o rosto dela era veemente e triste. - Tu aprendeste a falar como um monge - disse ela.

- Bem, passou-se muito tempo! A tua voz costumava ser mais ligeira, tal como o teu andar. Uma coisa pelo menos eu admito, a tua vinda aqui tem um preço muito elevado. Desta vez, não me negues a graça de te oferecer descanso e uma refeição. Tenho uma casa aqui, dentro dos limites do domínio do meu filho. Se tens que castigar a tua carne sobre estas pedras toda a noite, pelo menos, entra e descansa até às Vésperas.

- Então, posso ter a minha noite de oração? - perguntou Haluin, ansioso.

- Por que não? Não acabaste de me ver a suplicar a Deus pela mesma causa? - disse ela. - Vejo-te destroçado. Não quero que te sintas rejeitado. Sim, faz a tua vigília de penitência, mas vem comer a minha casa primeiro. Enviarei os meus palafreneiros para vos vir buscar - disse ela - quando tiveres terminado as tuas devoções aqui.

Ela estava quase junto da porta, não prestando atenção aos agradecimentos hesitantes de Haluin e não lhe dando qualquer oportunidade de recusar a sua hospitalidade, quando parou subitamente e deu meia volta, virando-se para eles.

- Mas não digas uma única palavra - disse ela ansiosamente - a ninguém sobre o teu objectivo aqui. O nome e a reputação da minha filha estão bastante seguros sob a pedra, deixa-os ficar sossegados. Não quero que ninguém seja obrigado a recordar, como eu fui. Deixa que isto fique apenas entre nós e este bom irmão que te faz companhia.

- Minha senhora - disse Haluin, devotamente -, não será dita uma só palavra a ninguém, com excepção de nós três, nem agora nem em qualquer outra altura, nem aqui nem em qualquer outro lugar.

- Fico descansada - disse ela, e, um momento depois tinha saído, fechando a porta suavemente atrás de si.

Haluin não conseguia ajoelhar-se sem algo firme à sua frente a que se agarrar e sem o braço de Cadfael à sua volta para o ajudar a baixar-se, partilhando o peso com o único pé útil do seu companheiro. Lado a lado, disseram as suas orações ao altar e Cadfael ficou a ver Haluin ajoelhar-se, seguindo com preocupação as linhas de cansaço do rosto do homem mais novo. Ele tinha sobrevivido a árdua viagem a pé, mas não sem um elevado custo. A noite de joelhos sobre as pedras seria fria, dolorosa e longa, mas Haluin insistiria no último extremo de autopunição. E, depois disso, o longo caminho de regresso. Seria bom que a dama conseguisse persuadi-lo a ficar, pelo menos, uma segunda noite, por mais não fosse como um gesto de concessão e amabilidade para com ela, agora que se tinham, de certo modo, reconciliado com o passado comum que os atormentava. Pois era certamente possível que fosse verdade que a visita súbita de Haluin tivesse motivado a sua própria peregrinação, levando-a a dirigir-se apressadamente para ali, a fim de se confrontar com o papel que ela própria desempenhara naquela velha tragédia. Passando a um trote rápido pela cabana do guarda-florestal perto de Chenet, com apenas uma criada e dois palafreneiros no seu séquito e despertando uma faísca fugidia na memória de Cadfael. Podia bem ser verdade. Ou será que essa semente podia dar fruto tão cedo? A implicação da pressa estava lá. Cadfael viu de novo os dois cavalos com carga dupla a passar no início da manhã, avançando firmemente e com uma finalidade. Com pressa de pagar uma dívida de afecto e remorso meio esquecida? Ou de chegar antes de outra pessoa, para estar pronta e armada para a receber? Ela queria que eles ficassem satisfeitos e se fossem embora, mas isso era bastante natural. Eles tinham invadido a sua paz e tinham colocado um espelho antigo e manchado à frente do seu belo rosto.

- Ajuda-me a levantar! - disse Haluin, erguendo os braços como uma criança, para ser erguido; e essa foi a primeira vez que ele pediu ajuda, antes, ela tinha-lhe sido sempre oferecida e ele aceitara-a com humildade e resignação, mais do que de gratidão. - Tu não disseste uma única palavra - disse ele, subitamente admirado, quando se viravam na direcção da porta da igreja.

- Eu não tinha nada para dizer - disse Cadfael. - Mas ouvi muitas palavras. E até mesmo os silêncios entre elas eram significativos.

O palafreneiro de Adelais de Clary estava à espera deles no pátio, tal como ela prometera, indolentemente inclinado e com um ombro apoiado na ombreira da porta, como se estivesse à espera há já algum tempo, mas com uma paciência imovível. A sua aparição confirmou tudo o que o Irmão Cadfael discorrera mentalmente a partir dos poucos relances que tivera dos cavaleiros por entre as árvores. Este era o mais novo dos dois, um homem musculoso com talvez trinta anos, encorpado, de pescoço taurino, inconfundivelmente de molde normando. Talvez a terceira ou quarta geração de um progenitor que tinha vindo para Inglaterra como homem de armas do primeiro De Clary. O forte tronco original ainda prevalecia, embora o casamento com mulheres inglesas tivesse transformado o cabelo louro num castanho-claro e moderando um pouco os ossos grosseiros do seu rosto. Ainda usava o cabelo cortado numa boina rente, ao modo dos normandos, e o queixo forte bem barbeado, e ainda tinha os olhos vivos, claros e impenetráveis do norte. Quando eles se aproximaram, endireitou-se num salto, mais à vontade em movimento do que em repouso.

- A minha senhora enviou-me para vos mostrar o caminho.

A sua voz era inexpressiva e seca e, sem esperar por resposta, saiu do cemitério à frente deles, num passo que Haluin teve dificuldade em acompanhar. O palafreneiro olhou para trás e esperou e, depois disso, diminuiu a velocidade, embora fosse óbvio que andar devagar o irritava. Não disse nada por iniciativa própria e respondeu a perguntas ou a simples conversa de circunstância com cordialidade, mas com poucas palavras. Sim, Elford era uma bela propriedade, com uma boa terra e um bom senhor. A gestão competente que Audemar fazia do seu domínio foi reconhecida com indiferença; o compromisso de fidelidade deste jovem era com Adelais e não com o seu filho. Sim, o seu pai também estava ao serviço dela, tal como o pai dele estivera antes dele. Embora pudesse sentir alguma curiosidade a respeito destes hóspedes monásticos, não a manifestou. Os olhos cinzento-claros ocultavam todos os pensamentos, ou talvez sugerissem a total ausência de pensamento.

Ele conduziu-os através de um caminho arrelvado até ao portão do recinto da casa senhorial, que era murado e espaçoso. A casa de Audemar de Clary situava-se mesmo ao centro, com o piso habitável bem elevado acima de uma cripta de pedra e, a julgar pelas janelas pequenas no topo, havia pelo menos mais dois aposentos por cima do solar. E o pátio amplo, em redor do qual havia outros quartos habitáveis, bem como as habituais e necessárias cavalariças, a armaria, casa do forno e a casa da fermentação, os armazéns e as oficinas, estava febrilmente ocupado com as actividades de uma atarefada casa de grandes dimensões.

O palafreneiro conduziu-os a um pequeno aposento de madeira debaixo da parede de cortina.

- A minha senhora mandou preparar este aposento para vós. Utilizem-no como se fosse vosso, e o guarda do portão certificar-se-á de que podem entrar e sair à vontade, para irem à igreja.

A hospitalidade dela, tal como eles descobriram, era meticulosa mas distante e impessoal. Ela tinha providenciado água para se lavarem, catres confortáveis para descansarem, enviara-lhes comida da sua própria mesa, e tinha mandado dizer que pedissem tudo o que precisassem ou quisessem que pudesse ter sido esquecido, mas não os recebeu pessoalmente. Talvez o perdão não fosse tão longe que a presença arrependida de Haluin lhe fosse agradável. Também não foram os criados que os serviram, mas sim os dois palafreneiros que tinham vindo com ela de Hales. Foi o mais velho dos dois que lhes trouxe carne, pão e queijo e um pouco de cerveja da despensa. Cadfael não se enganara a respeito da relação entre eles, pois este era claramente o pai do outro, um homem rijo, entroncado, de cerca de cinquenta anos, calado como o filho, de ombros mais largos e de pernas mais tortas devido ao facto de ter passado tantos anos a cavalo como em pé. Tinha os mesmos olhos frios, desconfiados, o mesmo audacioso maxilar forte e barbeado, mas este estava queimado com um bronzeado duradouro que Cadfael reconheceu do seu próprio passado como tendo a sua origem muito longe de Inglaterra. O seu senhor tinha sido um cruzado. Este homem certamente que estivera com ele na Terra Santa e obtivera lá o seu tom acobreado, sob o sol violento de que ele tão bem se recordava.

O palafreneiro mais velho apareceu mais tarde com uma mensagem, não para Haluin mas sim para Cadfael. Haluin tinha adormecido no seu catre, e a entrada do homem, leve e suave como um gato apesar de todo o seu volume, não perturbou o seu descanso, e Cadfael sentiu-se grato por isso. Ele tinha à sua frente uma noite longa e inquieta. Fez sinal ao palafreneiro para que esperasse e saiu com ele para o pátio, fechando a porta suavemente atrás de si.

- Deixá-lo dormir. Ele vai precisar de estar bem acordado mais tarde.

- A minha senhora contou-nos como ele tenciona passar a noite - disse o palafreneiro. - Ela está a chamá-lo a si, se não se importa de me acompanhar agora. Deixem o outro irmão dormir, disse ela, pois ele esteve mortalmente doente. Ele é muito corajoso, caso contrário nunca teria vindo tão longe com aqueles pés. Por aqui, Irmão!

A habitação da viúva tinha sido construída a um canto da muralha, protegida dos ventos e, embora fosse pequena, era suficientemente grande para as visitas ocasionais que ela decidia fazer à corte do seu filho. Consistia num salão e num aposento estreitos, e numa cozinha construída de encontro à muralha. O palafreneiro atravessou o salão com um ar de autoridade natural, como alguém que detinha privilégios ali, e apresentou-se perante a sua senhora de um modo muito semelhante ao adoptado por um filho ou irmão, confiante e digno de confiança. Adelais de Clary era bem servida, mas sem subserviência.

- Aqui está o Irmão Cadfael de Shrewsbury, minha senhora. O outro está a dormir.

Adelais estava sentada junto de uma roca carregada de lã azul-escura, fazendo girar o fuso com a mão esquerda mas, quando eles entraram, parou de o rodar e colocou-o cuidadosamente de encontro ao pé da roca para evitar que o novelo se desfizesse.

- Óptimo! É o que ele precisa. Deixa-nos agora, Lothair, o nosso hóspede saberá encontrar o caminho de volta. O meu filho já está em casa?

- Ainda não. Eu estarei atento à sua chegada.

- Ele tem Roscelin com ele - disse ela - e os cães. Quando estiverem todos em casa, no canil e no estábulo, podes ir descansar, que bem o mereces.

Ele limitou-se a acenar a cabeça para indicar que compreendera e foi-se embora, taciturno e pouco efusivo como sempre, mas, no entanto, havia na troca de palavras entre eles um tom de invulnerável segurança, firme como uma pedra arraigada. Adelais ficou calada até a porta do aposento se ter fechado atrás do seu criado. Ela estava a observar Cadfael com uma atenção silenciosa e um leve esboço de sorriso.

- Sim - disse ela, como se ele tivesse falado. – É mais do que um criado. Esteve com o meu marido durante todos os anos que ele combateu na Palestina. Mais de uma vez; ele prestou a Bertrand o pequeno serviço de o manter vivo. E um compromisso de fidelidade diferente, não o de um criado. Tão leal como alguma vez um senhor foi para com o seu suserano. Eu herdei o que pertencia ao meu senhor antes de mim. Ele chama-se Lothair. O filho dele é o Luc. Nascido e criado no mesmo molde. Deve ter reparado na parecença, é difícil não notar.

- Reparei, sim - retorquiu Cadfael. - E soube onde é que Lothair obteve a sua pele cor de cobre.

- Sabia? - Tendo-se dado ao trabalho de olhar para ele pela primeira vez, ela estava agora a estudá-lo com um interesse mais intenso.

- Eu próprio passei alguns anos no Oriente, antes dele. Se ele viver o tempo suficiente, o seu castanho irá desaparecer como aconteceu ao meu, mas leva muito tempo.

- Ah! Então, não foi entregue aos monges em criança. Eu bem achei que não tinha o ar desses inocentes virgens - disse Adelais.

- Eu entrei no mosteiro de minha livre vontade - disse Cadfael -, quando chegou a altura.

- Ele também o fez... de sua livre vontade, embora eu ache que não tenha sido na altura certa. - Ela moveu-se na cadeira e suspirou. - Mandei chamá-lo para lhe perguntar se têm tudo de que necessitam... se os meus homens estão a tomar bem conta de vós.

- Muito bem. E pela vossa amabilidade e pela deles estamos extremamente gratos.

- E também para lhe perguntar sobre ele... sobre Haluin. Eu vi como ele está mal. Alguma vez vai melhorar?

- Ele nunca vai conseguir andar como antes - disse Cadfael. - Mas, à medida que os seus tendões ganharem força, irá melhorar. Julguei que ele estivesse a morrer, todos nós pensámos isso, mas está vivo e ainda irá encontrar muitas coisas boas na vida... quando conseguir ter paz de espírito.

- E ele ficará em paz depois desta noite? É disto que precisa?

- Penso que sim, que ficará em paz.

- Então, isto tem a minha bênção. E depois vai levá-lo de volta para Shrewsbury? Posso arranjar-lhes cavalos - disse ela - para o regresso. Lothair pode ir buscá-los para os levar para Hales quando regressarmos.

- Ele vai certamente recusar essa amabilidade - disse Cadfael. - Ele prometeu completar esta penitência a pé.

Ela acenou a cabeça em sinal de compreensão.

- Eu vou perguntar-lhe, mesmo assim. Bem... é tudo, Irmão. Se ele não quiser, não posso fazer mais nada. Sim, há uma coisa que eu posso fazer! Irei às Vésperas esta noite, falarei com o padre e certificar-me-ei de que ninguém... ninguém... porá em causa ou perturbará a sua vigília. Com certeza que compreende que ninguém deve saber nada, excepto nós, que conhecemos demasiado bem a situação. Diga-lhe isso. O que resta é entre ele e Deus.

O dono da casa estava a passar o portão no momento em que Cadfael voltava para o aposento onde Haluin dormia. O som de arreios, cascos e vozes entraram à frente da cavalgada, um som vivaz que fez sair de casa cavalariços e criados, como abelhas de um cortiço perturbado, para assistir à chegada do seu senhor. E ali vinha ele, Audemar de Clary, num cavalo castanho alto, um homem grande em traje de montar escuro, simples como o de um trabalhador, não ostentando qualquer ornamento e não tendo necessidade de o fazer para indicar que era o detentor da autoridade aqui. Ele montava de cabeça descoberta, o capuz da capa curta estava atirado para trás sobre os ombros, e o cabelo ondulado era tão escuro como o da mãe, mas os vigorosos ossos do seu rosto, o nariz de cana alta, as maçãs do rosto proeminentes e a testa altiva que tinham sido certamente herdados do seu pai cruzado.

Ele ainda não devia, pensou Cadfael, ter quarenta anos. O vigor dos seus movimentos ao desmontar, a energia dos seus passos no chão e os gestos das suas mãos ao descalçar as luvas eram todos jovens. Mas os traços vigorosos do seu rosto e a autoridade que era manifesta em todo ele, a eficiência da sua gestão aqui e o pronto e competente serviço que esperava receber e, de facto, obtinha, faziam-no parecer mais velho em dominância do que era em anos. Ele tinha sido o senhor feudal, recordou-se Cadfael, durante a longa ausência do pai, começando cedo, provavelmente antes dos vinte anos, e o domínio De Clary era extenso e disperso por vários locais. Ele aprendera bem o seu ofício. Não era um homem que se pudesse contrariar levianamente, mas ali ninguém o temia. Os criados aproximavam-se dele alegremente e falavam-lhe com à-vontade. A sua ira, quando justificada, poderia ser devastadora, até mesmo perigosa, mas seria justa.

Ao seu lado vinha montado um jovem, pajem ou escudeiro, de dezassete ou dezoito anos, de rosto fresco e corado do ar frio e do exercício, e, a seguir a eles, vinham dois homens do canil, a pé com os cães pela trela depois da corrida. Audemar entregou as rédeas ao cavalariço que veio a correr para ele e ficou a bater com as botas no chão enquanto tirava a capa e a colocava nas mãos do jovem. A breve azáfama terminou ao fim de poucos minutos, com os cavalos a atravessar o pátio a caminho do estábulo e os cães a serem levados para o canil. O jovem palafreneiro Luc saiu do estábulo e foi falar com Audemar, aparentemente para transmitir uma mensagem de Adelais, pois Audemar olhou uma vez para o alojamento da dama, acenou a cabeça em sinal de compreensão e dirigiu-se com passos largos para a porta dela. Os seus olhos recaíram sobre Cadfael, que dera discretamente um passo ao lado para sair do seu caminho e, por um instante, ele fez uma pausa como se fosse parar para falar com ele, mas depois mudou de ideias e seguiu o seu caminho, desaparecendo no vão da porta fundo.

A julgar pela hora a que ela, os palafreneiros e a aia tinham passado por ele na floresta, supôs Cadfael que Adelais tinha chegado a Elford no mesmo dia, dois dias antes. Eles não teriam tido necessidade de parar para passar a noite entre Chenet e Elford, a distância era fácil de percorrer a cavalo. Por conseguinte, ela já devia ter visto o filho e falado com ele. O que ela tinha para lhe comunicar agora, assim que ele regressou de montar, podia muito bem ter a ver com as notícias desse dia na casa senhorial de Elford. E o que haveria de novo senão a chegada dos dois monges de Shrewsbury e o seu motivo para ali estarem, um motivo que ela interpretaria à sua vontade para ele? Porque ele estava aqui em Elford quando a irmã morreu em resultado de uma febre, como toda a gente supôs - será que o seu irmão também? - em Hales. Isso devia ter sido a única coisa que ele soubera, uma morte simples, triste, tal como pode acontecer em qualquer família, até mesmo a alguém na flor da juventude. Não, aquela mulher forte e decidida nunca contaria o segredo ao filho. A uma aia de confiança, uma confidente, talvez. Ela deveria ter necessidade de alguém assim, que talvez já tivesse morrido. Mas ao jovem filho, não, nunca.

E, se isso fosse verdade, não admira que Adelais estivesse a tomar todas as precauções para facilitar o caminho de Haluin para a expiação e para se livrar dele o mais depressa possível, precavendo-se de todas as perguntas, até mesmo do padre, oferecendo cavalos para apressar a sua partida e fazendo os dois peregrinos jurar que não iriam revelar nada do passado a nenhum outro ser humano, nem dizer uma só palavra sobre o significado da sua missão, nem mencionar o nome de Bertrade.

Há uma coisa, pelo menos, que eu começo a compreender, pensou Cadfael. Para onde quer que nos voltemos, há Adelais entre nós e todos os outros. Ela aloja-nos, dá-nos de comer e são os seus criados mais fiéis que nos servem, e nenhum da casa do filho. O nome e a reputação da minha filha estão suficientemente seguros no túmulo, dissera ela, deixá-los jazer calmamente lá. Não admira que ela tivesse montado apressadamente para chegar primeiro a Elford e estar pronta para os receber.

E, amanhã de manhã, se Haluin estiver suficientemente bem para partir, ir-nos-emos embora, pensou ele, e ela pode ficar tranquila. Se for necessário, poderemos encontrar outro local de paragem a uma ou duas milhas daqui, mas, custe o que custar, deixaremos estas paredes, e ela não precisará de pensar mais em Haluin nem de voltar a vê-lo.

O jovem escudeiro tinha ficado a ver o seu senhor atravessar o pátio em direcção à porta da dama, com a capa de Audemar atirada sobre o ombro; a sua cabeça nua era quase da cor do linho contra o tecido escuro. Ele ainda tinha a graciosidade enérgica e angular da juventude. Dentro de um ou dois anos, o seu corpo magro atingiria uma masculinidade sólida e elegante, com todos os movimentos sob um suave controlo, mas, por enquanto, mantinha a insegurança vulnerável de um rapaz. Procurou Audemar com uma expressão de surpresa e especulação, fitou Cadfael com uma curiosidade franca e virou-se lentamente em direcção à residência de Audemar.

Este devia ser o Roscelin a que Adelais se tinha referido, pensou Cadfael, ao vê-lo ir-se embora. Pela figura e pela cor da pele, não era um filho da casa, mas também não era um criado. Sem dúvida um jovem da família de um dos rendeiros de Audemar enviado para junto do seu suserano para aprender a manejar as armas e adquirir os conhecimentos e a prática de uma pequena corte, como preparação para o mundo mais amplo. Fidalgotes aprendizes deste tipo proliferavam em todas as grandes baronias, pelo que o domínio De Clary poderia muito bem ser o patrono de um ou dois deles.

O fim de tarde tinha-se tornado frio, e estava a levantar-se um vento frio e cortante, acompanhado de chuva que picava como agulhas finas. A hora das Vésperas não estava muito distante. Cadfael saiu do frio e encontrou o Irmão Haluin acordado e à espera, silencioso e tenso, da hora da sua realização.

Era evidente que Adelais tinha dado bem as suas ordens. Ninguém interferiu na sua privacidade, ninguém fez perguntas ou manifestou curiosidade. O jovem palafreneiro trouxe-lhes comida antes das Vésperas e, no fim do serviço religioso, ficaram sozinhos para fazer a vigília à vontade. Era pouco provável que alguém da casa se tivesse interrogado a respeito deles, pois estavam acostumados a visitas de todos os géneros, e as devoções de dois beneditinos itinerantes não surpreenderam ninguém. Não era nada de espantar que monges da abadia de São Pedro decidissem passar a noite a rezar numa igreja de São Pedro, e ninguém tinha nada a ver com isso.

O Irmão Haluin realizou o seu intento e cumpriu a sua promessa. Não quis nada que tornasse a pedra mais macia, nem outra capa para o proteger do frio da noite, nada que diminuísse a severidade da penitência. Cadfael ajudou-o a ajoelhar-se, ao alcance do apoio sólido do túmulo, de modo a que, se se sentisse tonto ou prestes a desmaiar, pelo menos poderia agarrar-se a ele para amortecer a queda. As muletas foram colocadas ao fundo do túmulo. Não permitiu que ninguém fizesse mais nada por ele. Mas Cadfael ajoelhou-se com ele, recolhido na sombra para o deixar a sós como a sua falecida Bertrade e um Deus que sem dúvida o ouvia com compaixão.

Foi uma noite longa e fria. A lamparina do altar era um ponto brilhante na escuridão, vermelho como o fogo, ainda que não desse calor. O silêncio prosseguiu hora após hora, e o arquejo gradual da respiração de Haluin e o murmúrio constante do movimento dos seus lábios eram como uma ondulação infinitesimal a vibrar através dele, sendo sentidos no sangue e nas entranhas, mais do que audíveis através do ouvido. De algures no seu interior ele extraiu uma fonte inesgotável de palavras dedicadas à sua falecida Bertrade. A sua tensão e paixão mantiveram-no erecto e esquecido da dor, embora a dor se tivesse apoderado dele antes da meia-noite e nunca o tivesse abandonado até ao momento em que o seu enlevo e a sua provação terminaram simultaneamente, ao raiar do dia.

Quando finalmente abriu os olhos para a luz de uma manhã gélida e desentrelaçou laboriosamente as mãos frias, já se ouviam, vindos do exterior, os sons da actividade habitual do início da manhã. Regressando de um lugar muito longínquo, dentro de si, Haluin olhou, ofuscado, para o dia que acordava. Tentou mover-se e agarrar a orla do túmulo, mas os seus dedos estavam tão dormentes que não sentiam nada, e os braços tão doridos que não conseguiram ajudá-lo a levantar-se. Cadfael pôs um braço à volta dele para o erguer, mas Haluin não conseguia endireitar os joelhos doridos para colocar o pé no chão e ficou pendurado, como um peso morto, no braço que o rodeava. E, subitamente, ouviram-se passos leves e outro braço, jovem e forte, abraçou o corpo pelo outro lado, uma cabeça loura inclinou-se para os ombros de Haluin e os dois homens endireitaram-no e seguraram-no enquanto o sangue voltava a fluir dolorosamente para as pernas dormentes.

- Por amor de Deus, homem - disse o jovem Roscelin num tom impaciente -, por que é que tens de tratar de ti próprio com tanta dureza quando já tens provações suficientes para qualquer homem são de espírito suportar?

Haluin ficou demasiado sobressaltado e a sua mente ainda se encontrava demasiado longe, para ser capaz de compreender o que fora dito, quanto mais responder. E embora Cadfael, interiormente, considerasse a reacção do jovem perfeitamente sensata, em voz alta disse, num tom prático:

- Segura-o bem enquanto eu apanho as muletas. E Deus te abençoe por teres aparecido numa altura tão conveniente. Não te zangues com ele, estás a perder tempo. Ele fez uma promessa.

- Uma promessa tola! - disse o rapaz com a certeza arrogante da sua idade. - Quem é que beneficia com isto? - Apesar de toda a sua desaprovação, segurou Haluin afectuosamente e com firmeza, e olhou de lado para ele com uma expressão tão ansiosa como exasperada.

- Ele - disse Cadfael, colocando as muletas debaixo das axilas de Haluin e começando a tentar imprimir novamente vida às mãos frias, que não conseguiam ainda agarrar as hastes. - É difícil de acreditar, mas podes ter a certeza. Pronto, agora podes deixá-lo apoiar-se nas muletas, mas segura-o bem. Está tudo bem para ti, com a tua idade, consegues dormir bem, sem nada de que te possas arrepender nem nada de que tenhas que pedir perdão. Como é que chegaste mesmo na hora certa? - perguntou ele, olhando para o jovem com um novo interesse e, por conseguinte, mais de perto. - Mandaram-te cá?

Pois este rapaz parecia um instrumento pouco provável para Adelais utilizar para acompanhar os seus hóspedes na entrada e saída de Elford - demasiado jovem, demasiado directo, demasiado inocente.

- Não - respondeu Roscelin num tom seco, acrescentando seguidamente num tom mais cortês: - Senti curiosidade.

- Bem, isso é humano - admitiu Cadfael, reconhecendo o seu próprio pecado inveterado.

- E, esta manhã, Audemar não teve logo trabalho para mim, ele está ocupado com o seu administrador. Não será melhor levar este seu irmão de volta aos seus aposentos, onde está mais quente? Como vamos fazer isso? Eu posso ir buscar um cavalo para ele se conseguirmos pô-lo em cima dele.

Haluin tinha regressado do seu lugar distante e deu consigo a ser discutido e tratado como se não tivesse mente própria, e sem saber bem onde se encontrava. Endireitou-se instintivamente, reagindo contra a indignidade.

- Não - disse ele. - Agradeço-vos, mas já consigo andar. Não abusarei mais da vossa hospitalidade. - E flectiu as mãos, agarrou nas hastes das muletas e deu os primeiros passos cautelosos para se afastar do túmulo.

Eles seguiram-no de perto, um de cada lado para o caso de ele vacilar, com Roscelin a subir primeiro os degraus e a passar a ombreira da porta para evitar um possível tropeção, e Cadfael atrás dele para o segurar se ele caísse para trás. Mas Haluin tinha chamado em seu auxílio uma força de vontade reavivada e fortalecida pelo facto de ter conseguido fazer aquilo a que se propusera, e estava decidido a conseguir andar sozinho, por mais que isso lhe custasse. E não havia pressa. Quando sentisse necessidade, podia descansar sobre as muletas para recuperar o fôlego, e Haluin fê-lo três vezes antes de chegarem ao pátio de Audemar, já cheio de gente atarefada com a padaria, as estrebarias e o poço. Cadfael reflectiu que a inteligência e a sensibilidade de Roscelin se manifestavam bem no facto de, a cada pausa, ele esperar sem fazer qualquer comentário nem manifestar impaciência, e evitar oferecer ajuda até esta lhe ser pedida. Assim, Haluin regressou aos aposentos situados no pátio de Audemar tal como queria, pelos seus próprios pés deformados, e pôde sentir que merecera o conforto da sua cama. Roscelin seguiu-os até ao interior, ainda curioso, sem pressa de ir à procura de quaisquer tarefas que estivessem à sua espera.

- É tudo, então? - perguntou ele, observando Haluin a esticar, com alívio, os membros ainda dormentes e a puxar o cobertor para cima deles. - Então para onde vão quando nos deixarem? E quando? Não vão partir hoje?

- Vamos regressar a Shrewsbury - disse Cadfael. - Se é hoje, isso eu duvido. Seria sensato ter um dia de descanso. - Pela calma exausta do rosto de Haluin e pelo olhar tranquilo virado para o seu interior, ele não demoraria muito a mergulhar no melhor e mais merecido sono desde que fizera a sua confissão.

- Eu vi-te chegar com Audemar ontem - disse Cadfael, estudando o rosto do jovem à sua frente. - A dama mencionou o teu nome. És familiar dos De Clary?

O rapaz abanou a cabeça.

- Não. O meu pai é rendeiro e vassalo dele, eles sempre foram bons amigos e existe uma ligação por casamento, há já algum tempo. Não, eu fui enviado para servir Audemar, por ordem do meu pai.

- Mas não de acordo com os teus desejos - disse Cadfael, interpretando o tom mais do que as palavras.

- Não! Muito contra a minha vontade! - disse Roscelin abruptamente, olhando, com um ar zangado, para as tábuas do soalho entre as suas botas.

- No entanto, ele parece ser um bom senhor - sugeriu Cadfael, brandamente -, e melhor do que a maior parte.

- Ele é bastante bom - admitiu o rapaz. - Não tenho qualquer queixa dele. Mas não gostei que o meu pai me tivesse mandado para aqui para se ver livre de mim lá em casa, essa é a verdade.

- Então, por que é que - interrogou-se Cadfael, sentindo curiosidade mas sem perguntar directamente - ... um pai havia de querer ver-se livre de ti? - Pois aqui estava, sem qualquer dúvida, o retrato de um filho apresentável, honesto, bem formado, bem comportado e decididamente atraente com o seu cabelo louro e rosto macio, um filho que qualquer pai gostaria de exibir perante os seus pares. Até mesmo quando taciturno o seu rosto era agradável, mas certamente que era verdade que ele não tinha o ar de alguém que se sentia feliz no seu serviço.

- Ele tem os seus motivos - disse Roscelin num tom de tristeza. - Eu diria que bons motivos, eu sei isso. Mas não estou em tão maus termos com ele que possa recusar-lhe a obediência que lhe é devida. Por isso estou aqui e sou obrigado a ficar a não ser que o senhor e o pai me autorizem a ir-me embora. Mas eu não sou tão idiota que não admita que podia estar em lugares muito piores. Por isso, o melhor é aprender o mais possível enquanto aqui estiver.

Parecia que a sua mente se tinha voltado para uma outra questão mais grave, pois ficou silencioso durante alguns momentos, a olhar para os dedos entrelaçados com o sobrolho franzido e erguendo a vista apenas para fitar atentamente Cadfael e pousando demoradamente os olhos no hábito negro e na tonsura.

- Irmão - disse ele abruptamente -, tenho estado a pensar na vida monástica. Alguns homens entraram para ela, não é verdade, porque o que o que eles mais queriam lhes era impossível... proibido! Isso é verdade? Ela pode proporcionar uma vida satisfatória se... se a vida que um homem deseja estiver fora do seu alcance?

- Pode - disse a voz do Irmão Haluin, saída, suave e tranquila, de um sonho acordado agora muito próximo do sono. - Sim, pode!

- Eu não recomendaria que alguém entrasse para ela como segunda escolha - disse Cadfael com firmeza. No entanto fora isso o que Haluin fizera, há muito tempo, e ele falou agora como se estivesse a registar uma revelação, a abertura dos seus olhos interiores no momento em que eles estavam pesados e a fechar-se de sono.

- O tempo poderá ser longo e o preço elevado - disse Haluin com suave certeza -, mas no fim não seria uma segunda escolha.

Ele inspirou profundamente, após o que soltou um longo suspiro, virando a cabeça para o outro lado na almofada. Estavam ambos a olhá-lo com tanta atenção, duvidando e interrogando-se, que nenhum deles deu pela aproximação de passos rápidos no exterior e deram meia volta, surpreendidos, quando a porta se abriu e Lothair entrou com um cesto de comida e um jarro de cerveja para os hóspedes. Quando viu Roscelin sentado descontraidamente no catre de Cadfael e aparentemente de boas relações com os Irmãos, o rosto desgastado do palafreneiro contraiu-se perceptível, quase ominosamente, e, por um momento, uma faísca mais profunda brilhou e desapareceu de novo nos seus olhos claros.

- Que estás a fazer aqui? - perguntou ele com a brusquidão de um igual e a autoridade intransigente de alguém mais velho. - O jovem Roger anda à tua procura, e o meu senhor quer-te ao serviço assim que tiver quebrado o jejum. É melhor ires e depressa.

Não se poderá dizer que Roscelin tenha manifestado qualquer sinal de abalo com esta notícia, nem ressentimento pela forma como ela fora transmitida; pelo contrário, a segurança do homem pareceu diverti-lo. Mas ele levantou-se de imediato e, com um aceno de cabeça e uma palavra de despedida, foi-se embora obedientemente, mas sem pressa. Lothair ficou à porta de olhos semicerrados a vê-lo partir e só entrou no quarto com a sua carga depois de o rapaz ter chegado aos degraus do solar.

O nosso cão de guarda, pensou Cadfael, recebera ordens para afastar todos os que se aproximassem demasiado de nós, mas não imaginara que teria que fazer o mesmo com o jovem Roscelin. Será que havia uma razão para que esse contacto em particular lhe provocasse consternação? Pois aquela foi a primeira faísca que eu vi emanar do seu aço!

 

A própria Adelais fez uma visita de cortesia aos seus hóspedes monásticos depois da missa, com perguntas solícitas sobre a sua saúde e bem-estar. Era possível, reflectiu Cadfael, que Lothair lhe tivesse relatado a inconveniente e indesejável incursão do jovem Roscelin numa reserva que ela queria claramente manter privada. Ela apareceu à porta do pequeno aposento com o missal na mão, sozinha, tendo enviado a aia para a sua casa de viúva. Haluin estava acordado e, deitando apressadamente a mão às muletas, fez menção de se levantar do catre como reconhecimento respeitoso da sua chegada, mas ela fez-lhe sinal com a mão para que voltasse a deitar-se.

- Não, deixa-te ficar quieto! Não é necessária qualquer cerimónia entre nós. Como é que te sentes, agora que a tua promessa foi cumprida? Espero que tenhas sentido a graça divina e que possas regressar para o teu mosteiro em paz. Desejo-te essa misericórdia. Uma viagem fácil e uma chegada em segurança.

E, acima de tudo, pensou Cadfael, uma partida breve. E não admira. Isso é também o que eu quero, e o que Haluin deve querer. Pôr ponto final neste assunto, de uma forma limpa, sem que mais ninguém sofresse, com perdão mútuo, referido uma vez e, depois disso, o silêncio.

- Tu descansaste pouco - disse ela - e tens uma viagem longa de regresso a Shrewsbury. A minha cozinha fornecer-vos-á comida para as primeiras etapas do caminho. Mas eu acho que também devias aceitar cavalos. Eu já o disse ao Irmão Cadfael. Os estábulos daqui podem dispensar montadas e eu mandarei buscá-las quando regressar a Hales. Não devias tentar fazer todo o caminho de regresso a pé.

- Pela oferta, e por toda a vossa amabilidade, ficamos gratos - disse Haluin num protesto imediato e apressado. – Mas não posso aceitar. Propus-me ir e vir a pé, e tenho que cumprir a minha promessa. Constitui um compromisso de fé eu não estar tão completamente aleijado que serei totalmente inútil daqui em diante, quer para Deus, quer para os homens. Certamente que não desejais que eu regresse a casa coberto de vergonha e perjúrio.

Ela abanou a cabeça com aparente resignação perante a obstinação dele.

- O teu companheiro avisou-me que, quando falasse nisso, irias recusar, mas eu tinha esperança de que visses a razão. Certamente que também te comprometeste a regressar para as tuas tarefas na abadia o mais depressa possível. Isso não tem qualquer peso? Se insistires em ir a pé, só poderás partir amanhã, depois de uma noite tão dura em cima das pedras.

Para Haluin, as palavras soaram, sem dúvida, como uma manifestação genuína de solicitude, um convite para que ele ficasse até ter descansado completamente. Para Cadfael, pareceu uma forma subtil de os mandar embora.

- Nunca pensei que ia ser fácil - disse Haluin - levar a cabo o que prometi. Nem deveria ser. Toda a virtude, se é que há nisso qualquer virtude, consiste em suportar dificuldades e completar a penitência. Eu posso fazê-lo e fá-lo-ei. Tendes razão, tenho o dever para com o meu abade e os meus irmãos de voltar para as minhas tarefas o mais depressa que puder. Temos que partir hoje. Ainda restam algumas horas de luz, não devemos desperdiçá-las.

Para dizer a verdade, ela pareceu surpreendida com uma tão pronta anuência ao que ela pretendia, mesmo que não tivesse expressado esse desejo. Ela insistiu, embora sem veemência, na necessidade de descanso, mas cedeu docilmente perante a teimosa insistência de Haluin. As coisas tinham corrido tal como ela queria, no último momento podia dar-se ao luxo de ter uma breve convulsão de pena e compaixão.

- Será como desejares - disse ela. - Muito bem, Luc trar-vos-á comida e bebida antes de partirem e encherá a vossa sacola. Quanto a mim, despeço-me com toda a boa vontade. Agora e no futuro, desejo-te sorte.

Quando ela se foi embora, Haluin ficou em silêncio durante algum tempo, estremecendo um pouco com a repercussão da sensação de ter chegado ao fim. Tudo acontecera tal como ele esperara e, no entanto, sentia-se abalado.

- Eu tornei as coisas desnecessariamente difíceis para ti - disse ele num tom pesaroso. - Deves estar tão cansado como eu, e eu obriguei-te a partir assim, sem teres dormido. Ela queria que nos fôssemos embora e, pela minha parte, desejo ansiosamente ir-me embora. Quanto mais depressa nos separarmos, melhor será para todos nós.

- Fizeste bem - disse Cadfael. - Quando sairmos daqui, não precisamos de ir muito longe, em todo caso, não estás em condições de o fazer. Mas o que precisamos de fazer é sair daqui.

Deixaram os portões da casa senhorial de Audemar de Clary a meio da tarde, sob um céu pesado com nuvens cinzentas, e viraram para oeste ao longo do trilho que atravessava a aldeia de Elford, com um vento frio, insidioso, a bater-lhes nos rostos. Estava terminado. Desse ponto em diante, a cada passo que dessem, estavam a voltar para a normalidade e segurança, para as horas monásticas e para a abençoada rotina diária de trabalho, culto e oração.

Da estrada, Cadfael olhou uma vez para trás e viu os dois palafreneiros de pé junto do portão a ver os hóspedes partir. Duas figuras sólidas, robustas, taciturnas e inescrutáveis, a seguir a retirada dos intrusos com olhos nortenhos claros e ferozes. A certificarem-se, pensou Cadfael, de que o desassossego que trouxemos à dama parte connosco e não deixa qualquer sombra atrás de si.

Não voltaram a olhar para trás. O que era agora necessário era colocar pelo menos uma milha segura, alienante, entre eles e a casa da viúva de Elford, e, depois disso, podiam começar a procurar um abrigo para passar a noite, pois era óbvio que Haluin estava desfigurado e cinzento de exaustão e não iria longe sem correr o perigo de desfalecer. O seu rosto estava decidido a suportar o sofrimento, e ele avançava firme mas pesadamente nas suas muletas, com os olhos dilatados e escuros nas órbitas fundas. Era duvidoso que sentisse a paz que devia ter encontrado no túmulo de Bertrade, mas talvez não fosse Bertrade quem assombrava os seus pensamentos.

- Nunca mais a verei - disse Haluin, para Deus, para si próprio e para o crepúsculo que caía, mais do que para Cadfael. E foi difícil dizer se as palavras foram ditas com alívio ou com pena, como se tivesse deixado qualquer coisa inacabada.

A primeira neve de um Março caprichoso desabou subitamente sobre eles, caindo do céu cada vez mais baixo quando estavam a cerca de duas milhas de Elford. O ar estava à beira do gelo, não foi uma queda forte ou prolongada mas, enquanto durou, era espessa e ofuscante, picando-lhes os rostos e confundindo o trilho à sua frente. O crepúsculo prematuro fechou-se sobre eles quase abruptamente, envolvendo-os numa escuridão sombria da qual saíam nuvens de flocos brancos que rodopiavam à volta deles de um modo desnorteante, cobrindo, como um véu, todos os marcos existentes num troço de caminho descampado, varrido pelo vento e sem árvores.

Haluin tinha começado a tropeçar, perturbado pelos flocos que lhe invadiam os olhos e incapaz de libertar uma mão para juntar as dobras do capuz para se proteger da agressão. Por duas vezes colocou uma muleta ao lado do trilho e quase caiu. Cadfael parou e deixou-se ficar perto dele, de costas para o vento, para proporcionar ao companheiro algum tempo para respirar e abrigo durante alguns minutos, enquanto tentava ver onde estavam e o que conseguia recordar-se dos campos em redor, da viagem anterior. Qualquer casa, por mais miserável que fosse, seria bem-vinda até esta borrasca ter terminado. Algures aqui, calculou ele, tinha havido um trilho lateral que seguia para norte e que conduzia ao que parecia ser um aglomerado de casas pequenas e à paliçada comprida da cerca de uma casa senhorial, o único sinal de ocupação que se conseguia ver da estrada.

A sua memória estava correcta. Seguindo cautelosamente à frente, com Haluin a segui-lo muito de perto, chegou a um conjunto isolado de arbustos e árvores baixas que se lembrava claramente de ter visto nesta planície pouco arborizada e, um pouco mais adiante, abria-se o trilho. Houve mesmo uma centelha bruxuleante de um archote, vista intermitentemente através da queda de neve rodopiante, para os manter no caminho em direcção à habitação distante. Quando o dono da casa mostrava uma luz a viajantes surpreendidos pela noite era sinal de que havia uma calorosa recepção à sua espera.

Levaram mais tempo a chegar ao povoado do que Cadfael contara, uma vez que Haluin estava a vacilar bastante, e era necessário caminhar muito devagar e voltar constantemente atrás para o manter perto de si. Aqui e ali uma árvore solitária surgia subitamente da brancura rodopiante à esquerda ou à direita, desaparecendo de novo tão abruptamente como surgira. Os flocos de neve tinham-se tornado maiores, os sinais de gelo estavam a desaparecer, e a neve não persistiria no chão para além da manhã. No alto, as nuvens eram fragmentadas e desfeitas por um vento de intensidade crescente, e deixavam ver as estrelas dispersas.

A centelha do archote tinha desaparecido, escondida por trás da cerca da casa senhorial. Um pilar de portão de madeira sólida surgiu na escuridão, com uma paliçada alta à esquerda e o portão largo aberto à direita, e subitamente, do outro lado de um pátio largo, voltou a ver-se o archote colocado num suporte que se projectava sob o beiral, para iluminar as escadas que iam ter à porta da casa. A habitual incrustação de edifícios de serviço orlava a paliçada. Cadfael deu um grito antes de entrar, e um homem saiu de uma porta do estábulo para a neve que caía, gritando para outros enquanto se aproximava. Ao cimo dos degraus, a porta da casa abriu-se sobre o clarão de uma agradável lareira.

Cadfael conduziu Haluin pelo braço, aos tropeções, através do portão aberto, e outro braço voluntário segurou-o à volta do corpo do outro lado, içando-o vigorosamente para o abrigo relativo no interior da paliçada. Uma voz gritou através da queda de neve:

- Irmãos, escolheram uma má noite para andar na estrada. Agora, força, os vossos problemas chegaram ao fim. Nós nunca fechamos os nossos portões ao vosso hábito.

Havia outros a aproximar-se para levar os viajantes dentro, um jovem que saiu apressadamente da galeria subterrânea com um capuz de serapilheira por sobre a cabeça e ombros, e um ancião de barba e roupão que emergiu da casa e desceu até meio das escadas para ir ter com eles. Haluin foi içado, mais do que conduzido pelos íngremes degraus acima, onde o dono da casa surgiu, vindo do seu solar, para conhecer os inesperados visitantes.

Um homem claro, magro, de ossos compridos, com uma barba curta cor palha aparada e uma espessa touca de cabelo da mesma cor. Próximo dos quarenta anos, pensou Cadfael, com um rosto corado, franco, em que brilhavam os olhos saxónicos azuis quase espantosamente cintilantes, sinceros e preocupados.

- Entrem, entrem, Irmãos! Ainda bem que nos encontraram! Aqui, traga-o para aqui, para perto do fogo. - Ele vira imediatamente os hábitos beneditinos, os flocos de neve alojados nas dobras e agora sacudidos, a silvar, para o fogo da lareira central da sala, os pés aleijados do visitante mais novo, a exaustão exangue do seu rosto. - Edgytha, manda preparar camas nos aposentos da ponta e diz a Edwin que aqueça mais vinho.

A sua voz era forte, solícita e afectuosa. Sem pressa aparente, os criados corriam de um lado para o outro a fazer os seus benevolentes recados, e ele próprio instalou Haluin num banco de encontro à parede, num local em que o calor do fogo podia alcançá-lo.

- Este seu jovem irmão está em muito mau estado - disse o anfitrião a Cadfael - para percorrer estradas tão longe de casa. Não há ninguém da vossa ordem por aqui, com excepção das freiras de Farewell, um convento fundado recentemente pelo bispo. De que casa são?

- Da de Shrewsbury - disse Cadfael, encostando as muletas de Haluin ao banco, para que ele pudesse pegar nelas, se quisesse. Haluin recostou-se de olhos fechados, com a face cinzenta a ganhar um pouco de cor com o calor e o bem-estar.

- De tão longe? Se o vosso abade tinha assuntos a tratar noutro condado, ele não podia ter dado essa incumbência a um homem robusto?

- Esta incumbência era do próprio Haluin - disse Cadfael. - Ninguém mais a podia ter cumprido. Agora está terminada, e estamos a caminho de casa; e chegaremos lá em diversas etapas. Sempre com a ajuda de pessoas hospitaleiras como o senhor. Posso perguntar-lhe que local é este? Conheço muito mal estes lados.

- Eu chamo-me Cenred Vivers. O meu nome vem desta casa senhorial. Este irmão chama-se Haluin, foi o que disse? E o irmão?

- Chamo-me Cadfael. Nasci galês e fui criado na fronteira, com um pé de cada lado. Sou monge em Shrewsbury há mais de vinte anos. A minha missão nesta viagem é simplesmente fazer companhia a Haluin e certificar-me de que ele chega em segurança ao seu destino e regressa em segurança.

- Não é tarefa fácil - concordou Cenred em voz baixa, lançando um olhar pesaroso aos pés deformados de Haluin - no estado em que ele está. Mas se a tarefa está cumprida e só falta o caminho de regresso a casa, sem dúvida que o farão. Como é que ele se magoou?

- Caiu de um telhado. Tivemos de fazer reparações nos dias rigorosos antes do Natal. Foram as telhas que caíram atrás dele que lhe cortaram os pés aos pedaços. Mas conseguimos mantê-lo vivo.

Falavam dele em voz baixa, um pouco afastados, embora ele estivesse deitado tão calma e tranquilamente como se tivesse adormecido, de olhos fechados, com as longas pestanas escuras a lançar sombras sobre as faces encovadas. O salão esvaziara-se à sua volta, toda a actividade se deslocara para outro lugar, e tinha a ver com almofadas, cobertores e as tarefas hospitaleiras da cozinha.

- Estão a ser lentos com o vinho - disse Cenred - e devem estar ambos a precisar de algo quente dentro de vós. Se me desculpar, Irmão, vou apressar as coisas na despensa.

E ele saiu, e, à sua passagem, a lufada de vento fez estremecer as pálpebras de Haluin. Ao fim de um momento, abriu os olhos e olhou, aturdido, lentamente à sua volta, observando a quente obscuridade do salão de tecto alto, o brilho do fogo, os cortinados pesados que separavam duas alcovas retiradas dos olhos do público, a porta entreaberta do solar de que Cenred tinha emergido. Do seu interior, via-se o brilho pálido e regular da luz das velas.

- Estive a sonhar? - perguntou Haluin, olhando em volta. - Como é que chegámos aqui? Que lugar é este?

- Não tenhas receio - disse Cadfael -, chegaste cá pelo teu próprio pé, só foi preciso um braço para te ajudar a subir os degraus até à casa. A casa senhorial chama-se Vivers, e o senhor é Cenred. Caímos em boas mãos.

Haluin respirou profundamente.

- Eu não sou tão forte como pensava que era - disse ele com tristeza.

- Não importa, agora podes descansar. Deixámos Elford para trás.

Estavam ambos a falar em voz baixa, um pouco intimidados pelo silêncio que os envolvia, mesmo no centro desta populosa casa. Quando pararam ambos de falar, a quietude parecia quase expectante. E, no silêncio, a porta entreaberta do solar abriu-se completamente à luz dourada das velas no seu interior, e uma mulher surgiu na ombreira da porta. Por um instante, ela ficou nitidamente recortada como uma sombra contra a luz suave do interior, uma figura magra, erecta, madura e nobre nos seus movimentos, certamente a dama da casa e mulher de Cenred. No momento seguinte, ela tinha entrado no salão com dois ou três passos leves e rápidos, e a luz do archote mais próximo incidiu sobre o seu rosto na sombra e na figura que avançava em direcção a eles, fazendo surgir a forma vaga de uma pessoa muito diferente. Tudo nela se alterou. Não era uma castelã com mais de trinta anos, mas sim uma rapariga de rosto fresco, arredondado, com, no máximo, dezassete ou dezoito anos, metade do seu rosto oval consistia em dois olhos enormes admirados e na testa larga e alta por cima deles, branca e macia como uma pérola.

Haluin emitiu um som estranho e suave na garganta, algo entre uma exclamação e um suspiro, agarrou nas muletas e pôs-se de pé, olhando para esta súbita e resplandecente aparição enquanto ela, deparando-se abruptamente com a intromissão de desconhecidos, recuou apressadamente, olhando para ele. Por um momento ficaram ali, em silêncio e imóveis, depois a rapariga deu meia volta e voltou a entrar no solar, fechando a porta quase furtivamente atrás de si.

As mãos de Haluin afrouxaram a pressão sobre as muletas e ficaram a balouçar, inertes, as muletas deslizaram e caíram debaixo dele, e ele tombou gradualmente para a frente, dobrado sobre si mesmo, e ficou deitado, inconsciente, no chão.

Levaram-no para uma cama preparada para ele numa alcova sossegada, retirada do salão, e deitaram-no lá, ainda sob um desmaio profundo.

- É simples exaustão - disse Cadfael, para tranquilizar a ansiedade solícita de Cenred. - Eu sabia que ele estava a esforçar-se demasiado, mas tudo isso terminou. A partir de agora, podemos levar as coisas com calma. Deixá-lo dormir esta noite e ele estará bem. Vê, ele está a voltar a si. Está a abrir os olhos.

Haluin mexeu-se, as pestanas estremeceram antes de se abrirem no escuro sobre olhos vivamente conscientes no seu interior, os quais se ergueram para um círculo de rostos vagos, preocupados. Ele tinha consciência de onde estava e sabia o que lhe tinha acontecido antes de ter sido transportado para ali, pois as primeiras palavras que disse foram um humilde pedido de desculpas por os ter incomodado e um agradecimento pelos seus cuidados.

- A culpa foi minha - disse ele. - Foi presunçoso da minha parte esforçar-me demasiado. Mas agora está tudo bem comigo. Está tudo bem.

Uma vez que era óbvio que aquilo de que mais necessitava era de descanso, deixaram-nos instalar-se no seu pequeno aposento, embora a noite lhes tivesse trazido algumas visitas. O administrador barbado trouxe-lhes vinho quente com especiarias e enviou-lhes a velha Edgytha, que lhes levou água para lavar as mãos, comida e uma lamparina, e lhes perguntou que mais precisavam para estarem confortáveis.

Era uma mulher alta, magra e activa, talvez com sessenta anos, com o à-vontade e o ar de autoridade habitual em criados que foram, durante muitos anos, confidentes do senhor ou da dama e alcançaram um grau de confiança que acarreta consigo um privilégio reconhecido. As criadas jovens tinham-lhe respeito, embora não tivessem exactamente medo dela, e o seu elegante vestido preto, a toca branca e as chaves a tilintar à sua cintura testemunhavam o seu estatuto.

Mais tarde, nessa noite, ela apareceu outra vez, a acompanhar uma dama forte e simpática, de voz suave e afável, que veio perguntar amavelmente se os irmãos reverendos tinham tudo o que necessitavam para passar a noite, e se o que perdera os sentidos tinha recuperado confortavelmente do seu desmaio. A mulher de Cenred era bonita e rosada, de cabelo e olhos castanhos, e muito diferente da jovem alta, magra e vulnerável que saíra do solar e que recuara, surpreendida com a inesperada aparição de desconhecidos.

- E o senhor Cenred e sua dama têm filhos? - perguntou Cadfael depois de a sua anfitriã se ter ido embora.

Edgytha era discreta, possessivamente protectora em relação à sua família e a tudo o que lhe pertencia mas, após um momento de hesitação, ela respondeu bastante delicadamente:

- Eles têm um filho, um filho crescido. - E ela acrescentou, reconsiderando inesperadamente a sua relutância em satisfazer a curiosidade importuna: - Ele encontra-se ausente, ao serviço do suserano do meu senhor Cenred.

Havia um curioso laivo de reserva, até mesmo de reprovação, na sua voz, embora ela nunca o tivesse admitido. Isso quase distraiu a mente de Cadfael das suas próprias preocupações, mas ele insistiu delicadamente:

- E não tem filhas? Houve uma jovem que entrou por um momento no salão enquanto estávamos à espera. Ela não é filha da casa?

Ela lançou-lhe um olhar longo, firme e perscrutante, com as sobrancelhas erguidas e os lábios cerrados, censurando claramente um tal interesse em mulheres jovens, vindo de um monástico. Mas os hóspedes da casa devem ser tratados com inquebrantável cortesia, mesmo quando não a merecem.

- Essa dama é irmã de Lorde Cenred - disse ela. - O velho Lorde Edric, o seu pai, casou-se pela segunda vez já em idade avançada. Com a diferença de idades, ela é para ele mais uma filha do que uma irmã. Duvido que voltem a vê-la. Ela não desejaria perturbar o descanso de homens com o vosso hábito. Ela foi bem educada - concluiu Edgytha com evidente orgulho pessoal no produto da sua própria devoção, e um aviso claro de que monges de preto chegados por acaso à casa deveriam manter os olhos baixos na presença de uma jovem virgem.

- Se ela esteve a seu cargo - disse Cadfael, amavelmente -, não duvido que honre a sua educação. Também tomou conta do filho de Cenred?

- A minha dama não sonharia sequer em confiar o seu pintainho a outra pessoa. - A velha animou-se com terno fervor ao pensar nas crianças de que fora ama. - Nunca ninguém tomou conta de bebés melhores - disse ela -, e amo-os a ambos como se fossem meus filhos.

Quando ela se foi embora, Haluin ficou calado durante algum tempo, mas os seus olhos estavam abertos e claros, e as linhas do seu rosto atentas e vigilantes.

- Houve realmente uma rapariga a entrar aqui? - disse ele, finalmente, franzindo a testa com o esforço de se recordar do momento em que a sua mente se tornara nebulosa e incerta. - Tenho estado aqui deitado a tentar recordar-me por que é que fiquei tão sobressaltado. Lembro-me das muletas a cair, mas muito pouco para além disso. Entrar num ambiente quente fez a minha cabeça andar à roda.

- Sim - disse Cadfael -, houve uma rapariga. Ao que parece, é meia-irmã de Cenred, mas cerca de vinte anos mais nova. Se achavas que ela tinha sido um sonho, não, não foi sonho nenhum. Entrou no salão vinda do solar, sem saber que aqui estávamos e não gostou do nosso aspecto, pelo que voltou apressadamente para trás e fechou a porta atrás de si. Recordas-te disso?

Não, ele não se recordava, ou apenas se lembrava como uma visão isolada que surge num sonho e desaparece outra vez assim que a vemos. Ele franziu a testa a tentar ansiosamente recuperá-la e abanou a cabeça como se estivesse a desanuviar os olhos nublados pelo cansaço.

- Não... nada é claro. Lembro-me da porta a abrir-se. Se dizes que ela entrou, eu acredito... mas não me recordo de nada, nem sequer do rosto... Amanhã, talvez...

- Se aquele seu dragão dedicado tiver alguma coisa a ver com isso - disse Cadfael -, não voltaremos a vê-la. Penso que a Edgytha não tem uma opinião muito boa dos monges. Bem, estás pronto para dormir? Posso apagar a lamparina?

Mas se Haluin não tinha uma recordação clara da filha da casa, se aquele breve relance não deixara uma imagem, primeiro uma figura escura recortada contra a luz da vela e depois iluminada pelo brilho vermelho do archote, Cadfael ficara com uma imagem muito nítida que se tornou ainda mais clara quando apagou a lamparina e se deitou no escuro ao lado do seu companheiro adormecido. E, para além da recordação, ele tinha uma sensação estranha, inquieta, de que ela tinha um significado especial para ele se, ao menos, ele conseguisse descobrir exactamente qual. O motivo dessa sensação era para ele um mistério. Acordado no escuro, invocou os traços do seu rosto, os movimentos do seu corpo quando ela entrou na luz, e não conseguiu encontrar nada que devesse ser significativo para ele, nenhuma parecença com qualquer mulher que tivesse visto antes, excepto na medida em que todas as mulheres são irmãs. No entanto, a sensação de fugidia familiaridade a respeito dela persistia.

Uma rapariga alta, embora não tão alta como dava a impressão de ser, pois a sua magreza contribuía para essa imagem, mas com uma altura acima da média para uma rapariga em vias de se tornar mulher. A sua postura era erecta e graciosa, mas ainda com a agilidade tentativa e vulnerável de uma criança, a brusquidão de um carneiro ou fauno, atento a todos os sons e movimentos. Sobressaltada, ela afastara-se rapidamente deles e, no entanto, tinha fechado a porta com uma suavidade contida, para não os sobressaltar. E quanto ao seu rosto - ela não era bela, excepto na medida em que a juventude, a inocência e a elegância são sempre belas. Tinha um rosto oval, que se afunilava desde a testa larga e dos olhos grandes e bem afastados até ao queixo redondo e firme. A cabeça estava descoberta, com o cabelo puxado para trás e entrançado, o que acentuava ainda mais a testa branca alta e os olhos enormes sob as suas sobrancelhas escuras e pestanas compridas. Os olhos consumiam metade do rosto. Não eram de um castanho-puro, pensou Cadfael, pois, apesar de serem escuros, tinham uma claridade, uma profundidade e uma resplandecência que eram perceptíveis até mesmo quando vista apenas de relance. Eram mais cor de avelã-escura com laivos de verde, e tão límpidos e profundos que parecia possível uma pessoa mergulhar neles e afundar-se. Olhos totalmente francos e vulneráveis e completamente intrépidos. Os animais jovens, selvagens e corajosos dos bosques que ainda não foram perseguidos ou feridos podem ter um olhar assim. E as linhas puras e finas das maçãs do rosto de que Cadfael se recordava, elegantes e fortes, eram, depois dos olhos, a sua principal característica distintiva.

E em tudo aquilo, claramente definido no olho da mente, o que seria que o estava a perturbar, a penetrá-lo com a memória fugidia de uma outra mulher? Ele deu consigo a invocar, um a um, os rostos de mulheres que tinha conhecido, metade da população de uma vida longa e variada, para o caso de um qualquer molde de traços, porte da cabeça ou gesto de mão lhe fizesse lembrar algo que tivesse significado para ele. Mas não havia qualquer semelhança, nem qualquer eco. A irmã de Cenred permanecia única e à parte, perseguindo-o apenas porque tinha aparecido e desaparecido num momento, e, provavelmente, ele nunca mais voltaria a vê-la.

Mesmo assim, a última visão fugidia no interior das suas pálpebras, quando adormeceu, foi do rosto espantado dela.

De manhã, o ar tinha perdido a sua ferroada gélida e a maior parte da neve que caíra já tinha derretido e desaparecido, deixando os seus cordões esfarrapados ao longo da base de todos os muros e debaixo dos troncos de todas as árvores. Cadfael olhou para fora da porta do salão e sentiu-se inclinado a desejar que a neve continuasse a cair para impedir Haluin de insister em fazer-se de novo imediatamente à estrada. Afinal, não havia necessidade de se ter preocupado, pois, assim que a casa senhorial ficou a pé e ocupada com as suas tarefas quotidianas, o administrador de Cenred veio à procura deles, com o pedido de que fossem ter com o seu senhor ao solar assim que quebrassem o jejum, pois ele tinha algo a pedir-lhes.

Cenred estava sozinho quando eles entraram, com as muletas de Haluin a provocarem um som oco nas tábuas do chão. A sala era iluminada por duas janelas fundas e estreitas nas quais estavam encaixados bancos almofadados, e mobilada com belas arcas ao longo de uma parede, uma mesa lavrada e uma principesca cadeira para uso do dono da casa. Era evidente que a dama Emma geria uma casa bem ordenada, pois os cortinados e as almofadas eram de um fino bordado, e a armação de tapeçaria que estava a um canto, com a sua teia de cores vivas meio terminada, mostrava que era tudo fabricado em casa.

- Espero que tenham dormido bem, Irmãos - disse Cenred, levantando-se para os cumprimentar. - Já recuperou da indisposição de ontem à noite? Se houver alguma coisa que a minha casa não vos ofereceu, só têm que pedir. Utilizem-na como se fosse vossa. E espero que consintam em ficar mais um ou dois dias antes de prosseguirem viagem.

Cadfael partilhou a esperança, mas teve receio de que Haluin despertasse a sua consciência demasiado ansiosa e levantasse objecções. Mas ele não teve tempo de fazer mais nada a não ser abrir a boca, porque Cenred prosseguiu imediatamente:

- Porque eu tenho algo a pedir-vos... Algum de vós é um padre ordenado?

 

- Sim - disse Haluin, após um momento de silêncio. - Eu sou padre. Estudei para as ordens menores assim que entrei para o mosteiro, e tornei-me padre quando fiz trinta anos. Os que entram jovens e já são letrados são encorajados a fazê-lo. Como padre, o que devo fazer para o servir?

- Eu quero que celebre um casamento - disse Cenred. Desta vez, o silêncio foi mais longo, e a sua concentração nele mais desconfiada e pensativa. Pois se estava previsto um casamento naquela casa, certamente que já teriam falado com um padre, alguém que conhecesse as circunstâncias e as partes, não um beneditino surgido por acaso, surpreendido por uma queda de neve. Cenred viu as suas dúvidas reflectidas no rosto atento de Haluin.

- Sei o que dirão. Que esta deve ser seguramente uma questão para o padre da minha paróquia. Não há igreja aqui em Vivers, embora tencione construir e dotar uma em breve. E acontece que a nossa igreja paroquial mais próxima está neste momento sem padre, até o bispo decidir nomear alguém, pois é ele que atribui o benefício. Eu tencionava mandar chamar um primo da nossa casa que já foi ordenado mas, se estiverem dispostos a celebrar o casamento, podemos poupar-lhe uma viagem no meio do Inverno. Prometo-vos que não há nada de ilícito nesta questão e, se ela foi decidida um tanto apressadamente, existem razões válidas para isso. Sentem-se aqui comigo, pelo menos, que eu vos direi tudo o que precisam de saber, e então farão o vosso juízo.

Com a veemência impulsiva e generosa que parecia natural nele, deu alguns passos em frente para apoiar Haluin pelo antebraço enquanto este se baixava para se sentar no banco almofadado situado de encontro à parede almofadada. Cadfael sentou-se ao lado do amigo, contentando-se em observar e escutar, uma vez que não era padre, e aqui ele não teria uma decisão difícil a tomar e, por causa de Haluin, sentia-se grato pela demora.

- O meu pai já era velho - disse Cenred, indo directo ao assunto - quando se casou pela segunda vez com uma mulher trinta anos mais nova do que ele. Quando a minha irmã Helisende nasceu, eu já estava casado e tinha um filho com um ano. As duas crianças, o rapaz e a rapariga, cresceram juntos nesta casa como irmãos e foram sempre muito amigos. E nós, os mais velhos, ficámos muito satisfeitos por eles terem a companhia um do outro. Grande parte da culpa foi minha. Não reparei quando eles começaram a ser mais do que companheiros de folguedos. Nunca pensei que a camaradagem e o afecto infantis podiam, ao fim de alguns anos, transformar-se em algo muito mais perigoso. Eu não fecho os olhos aos factos, Irmãos, depois de os ter visto e de ter sido forçado a vê-los. Aqueles dois foram deixados a brincar sozinhos durante demasiado tempo e com demasiado carinho. Eles deslizaram para um afecto desmedido, mesmo debaixo do meu próprio nariz, e eu estive cego até ser quase demasiado tarde. Eles amam-se de uma forma e com uma intensidade que é anátema entre dois familiares tão próximos. Graças a Deus que eles não cometeram nenhum pecado da carne, ainda não. Eu espero ter acordado a tempo. Deus sabe que desejo tudo o que há de melhor para ambos, quero que eles sejam felizes, mas que felicidade pode existir num amor que é uma abominação? É muito melhor separá-los agora e confiar no tempo para lhes atenuar a dor. Eu mandei o meu filho fazer a sua aprendizagem das armas com o meu suserano, que é um bom amigo e conhece o motivo e a necessidade. E embora se sinta magoado por ter sido banido deste modo, o meu filho jurou não regressar antes de eu lhe dar autorização. Agi correctamente?

- Eu penso - disse Haluin lentamente - que não podia ter feito outra coisa. Mas é uma pena que o afecto deles tenha ido tão longe sem ser controlado.

- Pois é. Mas quando duas crianças crescem juntas desde bebés como irmãos, isso em si é suficientemente comum para afastar todos os pensamentos de afecto que conduza a um casamento. Às vezes, pergunto a mim próprio quanto é que a Edgytha viu o que eu não vi. Ela fez-lhes sempre todas as vontades. Mas nunca, nunca me disse nada a mim nem à minha mulher e, quer tenha feito bem ou não, eu tenho de continuar.

- Diga-me uma coisa - disse Cadfael, falando pela primeira vez -, o seu filho não se chama Roscelin?

Os olhos de Cenred voltaram-se, brilhantes, para o rosto de Cadfael, numa expressão de espanto.

- Chama, sim. Mas como é que sabe?

- E o seu suserano é Audemar de Clary. Nós viemos directamente de Elford, conversámos com o seu filho lá, ele apoiou o Irmão Haluin com o seu braço forte, quando este precisou.

- Falaram com ele! E o que disse o meu filho em Elford? O que disse ele de mim? - Ele estava atento e pronto para ouvir palavras amargas de queixa e alienação, e para engolir a dor, se necessário.

- Muito pouco, e certamente nada que o senhor não pudesse ouvir com uma mente tranquila. Nem uma palavra sobre a sua irmã. Ele mencionou que tinha saído de casa porque o seu pai assim o desejou e que não podia recusar a obediência que lhe é devida. Só conversámos com ele durante alguns minutos, por puro acaso. Mas eu não vi nada que não seja motivo de satisfação e orgulho para si. Pense só que ele está apenas a cerca de três milhas de distância, mas mantém a sua palavra. Só há uma coisa que me lembro de ele dizer - prosseguiu Cadfael, com o propósito súbito de sondar o terreno -, que talvez, como pai, tenha o direito de saber. Ele perguntou-nos muito solenemente se a nossa ordem poderia proporcionar uma vida meritória para um homem... se a vida que ele mais desejasse lhe fosse proibida.

- Não - exclamou Cenred num vigoroso protesto. - Isso não! Eu não permitiria, por nada neste mundo, que ele voltasse as costas às armas e à fama para se esconder num mosteiro. Ele não é feito para isso! Um jovem tão promissor! Irmão, isso só vem confirmar a justeza do que vos estou a pedir. O que tem que ser feito não pode ser adiado. Uma vez feito, ele irá aceitar a situação. Enquanto a perda não for final, ele continuará a ter esperança e a perseguir o impossível. É por isso que eu quero que ela esteja casada, casada e fora desta casa, antes de Roscelin voltar a entrar nela..

- Eu compreendo muito bem os seus motivos - disse Haluin, abrindo muito os seus olhos encovados -, mas não seria correcto fazer deles as razões para um casamento se a dama não estiver de acordo. Por mais difícil que seja o seu dilema, não pode sacrificar um para preservar o outro.

- Está enganado - disse Cenred sem veemência. - Eu amo a minha jovem irmã, já falei com ela aberta e claramente. Ela sabe, ela reconhece a enormidade do que os ameaça a ambos, a impossibilidade de esse amor alguma vez dar frutos. Ela quer esse terrível nó desfeito tanto quanto eu. Ela quer uma carreira honrosa para Roscelin porque o ama e, em vez de ver essa carreira manchada por causa dela, concorda em procurar refúgio no casamento com outro homem. Esta não foi uma rendição forçada. E também não foi uma escolha leviana. Eu fiz o melhor que consegui fazer por ela, é um casamento que agradaria a qualquer família. Jean de Perronet é um jovem bem dotado, com uma boa posição e uma boa herança. Helisende já o conhece e gosta dele, se bem não possa amá-lo ainda. Isso poderá vir mais tarde, pois ele sente uma grande atracção por ela. Ela concordou plenamente com o casamento. E De Perronet tem uma vantagem inestimável - acrescentou ele num tom sombrio -, a sua casa fica distante. Ele levá-la-á para Buckingham, para longe da vista de Roscelin. Longe da vista, eu não diria longe do coração mas, pelo menos, os traços de um rosto recordado podem desvanecer-se gradualmente ao longo dos anos, à medida que até mesmo as feridas mais profundas forem sarando.

Ele tornou-se eloquente devido à sua própria inquietação e angústia, um homem bom preocupado com os melhores interesses de toda a sua família. Ele não reparara, como acontecera com Cadfael, na palidez cada vez mais acentuada do rosto magro de Haluin, na linha cerrada e dolorosa dos seus lábios, ou na forma como as mãos unidas agarravam a aba do hábito até se verem os ossos brancos através da carne. As palavras que Cenred não escolhera deliberadamente para magoar ou comover tinham a sua própria força inspirada para reabrir a ferida antiga que ele viera tão longe para tentar sarar. Os traços de um rosto recordado, seguramente um tanto obscurecidos ao fim de dezoito anos, tinham readquirido vida para ele. E as feridas que nunca cessaram de se inflamar no interior não podem sarar antes de serem de novo abertas e limpas, se necessário através do fogo.

- E não precisam de se preocupar, que eu também não me preocupo - disse Cenred - com a possibilidade de ela não ser tratada com carinho e grande consideração por De Perronet. Ele pediu a mão dela há dois anos e, embora ela na altura não o quisesse nem a qualquer outro pretendente, ele esperou.

- A sua dama está de acordo? - perguntou Cadfael.

- Conversámos os três sobre o assunto. E estamos todos de acordo. Vai celebrar o casamento? Eu consideraria o facto de um padre aparecer à minha porta na véspera da chegada do noivo sem ter sido chamado uma espécie de bênção ao que nós pretendemos - disse Cenred com simplicidade. - Fique até amanhã, Irmão, padre, e case-os.

Haluin separou lentamente as mãos contorcidas e inspirou como um homem a acordar em dor. Ele disse em voz baixa:

- Eu fico. E casá-los-ei.

- Espero ter agido bem - disse Haluin quando estavam de volta aos seus próprios aposentos. Mas não parecia que ele estivesse a pedir uma confirmação da sua decisão, mas sim a colocá-la bem perante os seus próprios olhos como uma responsabilidade a que não tinha qualquer intenção de se esquivar nem de partilhar. - Eu conheço perfeitamente bem - disse ele -, os perigos da proximidade, e o caso deles é mais desesperado do que o meu alguma vez foi. Cadfael, eu dou por mim a ouvir os ecos que julguei terem morrido há muito tempo. Tudo tem uma finalidade. Não há nada que não tenha uma finalidade. E se a minha queda se deu apenas para eu poder tomar consciência de como já tinha caído tanto, e para ser obrigado a tentar erguer-me de novo? E se eu renasci de novo aleijado para me ver forçado a efectuar as viagens do corpo e do espírito que temi quando era novo e são? E se Deus me meteu na cabeça a ideia de fazer a peregrinação para me tornar um milagre de outra alma necessitada? Será que fomos trazidos a este local?

- Conduzidos, acho eu - disse Cadfael num tom prático, lembrando-se da neve que os cegava e da pequena faísca do archote a chamá-los no escuro.

- É verdade, chegar na véspera da chegada do noivo demonstrou um bom sentido de oportunidade. A única coisa que eu posso fazer é assumir o fardo - disse Haluin - e esperar ser conduzido no caminho certo. Estes segundos casamentos na velhice, Cadfael, são responsáveis por lamentáveis embrulhadas. Como é que dois bebés que brincam juntos no chão sabem que são tia e sobrinho e, por conseguinte, fruto proibido? É uma pena o amor ser desperdiçado sem qualquer finalidade.

- Eu não tenho tanta certeza - disse Cadfael - de que o amor seja alguma vez desperdiçado sem qualquer finalidade. Bem, pelo menos agora podes ficar sossegado a descansar durante um dia ou mais, o que te fará muito bem. Isso, de qualquer modo, vem numa boa altura.

E essa era claramente a melhor utilização que Haluin poderia fazer da sua paragem no caminho de regresso, uma vez que já se testara a si próprio até muito perto do seu limite de resistência. Cadfael deixou-o em paz e foi dar uma volta, à luz do dia, pela casa senhorial de Vivers. Estava um dia nublado com um vento intermitente, o ar estava livre de gelo e havia aguaceiros ocasionais, mas nenhum deles durava muito tempo.

Ele percorreu a largura do enclave até ao portão, para ver toda a extensão da casa. Havia janelas no tecto íngreme por cima do solar, provavelmente haveria dois quartos retirados. Haluin e o seu companheiro tinham sido alojados atenciosamente no piso normalmente habitado. Sem dúvida que, nesse momento, um dos aposentos superiores estava a ser preparado para o noivo esperado. A azáfama quotidiana no pátio parecia decorrer sem pressas nem confusão; as coisas estavam bem ordenadas aqui.

Para além da paliçada, a paisagem suave, ondulante, estendia-se ao longo de campos, bosques e colinas esparsamente arborizadas, todos os verdes estavam ainda descolorados e secos de Inverno, mas os ramos pretos mostravam aqui e ali os primeiros nódulos dos botões da Primavera. Ténues folhos de neve orlavam todos os locais côncavos e abrigados, mas o brilho do sol estava a atravessar as nuvens baixas e, ao meio-dia, todos os restos da queda de neve da noite anterior teriam desaparecido.

Cadfael espreitou os estábulos e as cavalariças e viu que estavam bem fornecidos e briosamente tratados por criados sempre dispostos a mostrá-los a um visitante interessado. No canil, numa baia separada, estava uma cadela deitada em cima de palha limpa com seis cachorrinhos à sua volta, talvez com cinco semanas. Ele não resistiu a entrar no compartimento escuro para pegar num dos cachorrinhos, e a cadela foi complacente e acolheu bem a admiração da sua ninhada. O calor macio do pequeno corpo nos seus braços tinha um cheiro semelhante a pão fresco. Ele estava a baixar-se para colocar o cachorrinho de novo no meio dos seus irmãos quando ouviu, atrás de si, uma voz calma e clara:

- O Irmão é o padre que me vai casar?

E ali estava ela na ombreira da porta, de novo uma forma sombria contra a luz, tão serena, tão segura, que poderia ser facilmente tomada por uma mulher madura e majestosa de trinta anos, embora a voz fresca e leve pertencesse à sua idade.

A rapariga Helisende Vivers ainda não estava ataviada para receber o seu noivo e vestia um vestido simples de dona de casa, de lã azul-escura, e trazia na mão um balde suavemente fumegante de carne e farinha para os cães.

- O Irmão é o padre que me vai casar?

- Não - disse Cadfael, deixando a cadela e a sua irrequieta ninhada e pondo-se lentamente de pé. - É o Irmão Haluin. Eu nunca estudei para poder tomar ordens. Conheço-me bem a mim próprio.

- Então, é o homem aleijado - disse ela com uma compaixão distante. - Lamento muito que ele sofra tais agruras. Espero que o tenham tornado confortável, aqui na nossa casa. O Irmão sabe do meu casamento... que Jean chega cá hoje?

- O seu irmão disse-nos - disse Cadfael, observando os traços do seu rosto oval a emergir suavemente da sombra, com todas as linhas melancólicas e cândidas a testemunharem a sua juventude. - Mas há coisas que ele não nos pôde contar - disse ele, observando-a atentamente - a não ser por ter ouvido dizer. Só a Helisende nos pode dizer se este casamento tem o seu consentimento, dado de livre vontade ou não.

O breve silêncio dela sugeriu, mais do que hesitação, uma observação atenta do homem que levantara a questão. Os seus olhos grandes, intrepidamente honestos, acariciavam e penetravam, sem medo de ser também penetrados. Se o considerasse tão estranho às suas necessidades e problemas que fosse inaceitável, ela teria posto termo ao encontro logo ali, delicadamente, mas sem satisfazer o que teria sido, então, mera curiosidade da parte dele. Mas ela não o fez.

- Se, depois de crescidos, fazemos alguma coisa de livre vontade - disse ela -, então, sim, eu faço isto de livre vontade. Há regras que têm de ser observadas. Partilhamos o mundo com outras pessoas que têm direitos e necessidades e estamos todos vinculados. Pode dizer ao Irmão Haluin... suponho que devia chamar-lhe padre Haluin... que não precisa de estar preocupado comigo. Eu sei o que estou a fazer. Ninguém me está a obrigar.

- Eu dir-lhe-ei - disse Cadfael. - Mas penso que o faz pelos outros e não por si própria.

- Então, diga-lhe que eu decido... livremente... fazê-lo pelos outros.

- E a respeito de Jean de Perronet? - disse Cadfael. Por um instante, os seus lábios, firmes e cheios, tremeram.

Essa era a única coisa que ainda perturbava a sua compostura resoluta, o facto de não estar a ser justa para com o homem que ia ser seu marido. Cenred certamente que não o teria informado que ele estava a obter apenas um triste resíduo, depois de o coração ter desaparecido. E ela também não lho podia dizer. O segredo pertencia apenas à família. A única esperança para este desafortunado par era que o amor viesse com o tempo, um tipo de amor, melhor, talvez, do que muitos casamentos alguma vez atingem, mas, mesmo assim, longe do ideal.

- Vou tentar - disse ela com firmeza - dar-lhe tudo o que ele pede, tudo o que ele quer e de que está à espera. Ele merece o melhor e vai ter o melhor que eu conseguir dar-lhe.

Não havia necessidade de lhe dizer que talvez não fosse suficiente, ela já o sabia e sentia-se inquieta quanto à dimensão do logro a que não conseguia escapar. Talvez até fosse possível que o que já fora dito na obscuridade do canil tivesse reaberto um profundo abismo de dúvida que ela quase conseguira vedar. Era melhor deixar as coisas tal como estavam, uma vez que não havia possibilidade de tornar mais leve o fardo que ela carregava.

- Bem, rezarei para que seja abençoada em tudo o que fizer - disse Cadfael, afastando-se para sair do caminho dela. A cadela tinha-se afastado dos seus cachorrinhos e estava a cheirar o balde, abanando a cauda numa expressão de esfomeada expectativa. A rotina diária prossegue através de nascimentos, casamentos, mortes e festivais. Quando olhou para trás, da ombreira da porta, a rapariga Helisende estava inclinada a encher o comedouro da cadela, com a pesada trança de cabelo escuro a balouçar no meio da ninhada. Ela não ergueu a vista, mas, apesar disso, ele teve a sensação de que ela teve a profunda e vulnerável percepção da sua presença, até ele dar meia volta e se afastar suavemente.

- Vai ter saudades da sua filha de leite - perguntou Cadfael quando Edgytha foi servir-lhes comida e bebida ao meio-dia. - Ou vai com ela para o sul quando ela se casar?

A mulher idosa hesitou, taciturna por natureza mas necessitando visivelmente de aliviar um coração que não estava absolutamente nada reconciliado com a ideia de perder a sua menina. Dentro das dobras rígidas da touca, as suas faces murchas tremeram.

- O que ia eu fazer, com a minha idade, num local estranho? Sou demasiado velha para servir de muito agora, por isso ficarei aqui. Pelo menos, sei como são as coisas por cá e toda a gente me conhece. Que respeito obteria eu numa casa estranha? Mas ela irá, eu sei. Ela irá, suponho, tal como deve ir. E o jovem é bastante bom... se o meu cordeiro não tivesse outro nos seus olhos e no seu coração.

- E colocado tão fora do seu alcance - recordou-lhe Haluin, suavemente, mas o seu próprio rosto estava pálido e, quando ela se virou para olhar para ele em silêncio durante um longo momento, ele desviou os olhos e virou a cabeça.

Os olhos dela eram de um azul-pálido, desmaiado. Outrora, sombreados por pestanas que agora eram finas e escassas, eles talvez se assemelhassem mais à cor de pervincas.

- Então, o meu senhor contou-vos - disse ela. - E o que todos dizem. E se não puder ser evitado, ela podia sair-se pior. Eu sei! Eu vim para cá ao serviço da mãe dela, há todos aqueles anos, e aquele também não foi um casamento de amor, com ela tão jovem e ele quase com o triplo da idade dela. Ele era um homem bom e generoso, mas velho, velho! Ela precisava muito, pobre senhora, de alguém da sua própria casa, alguém que conhecesse bem e em quem pudesse confiar. Pelo menos, eles vão casar a minha menina com um rapaz novo.

Cadfael fez a pergunta que há algum tempo estava a preocupar-lhe a mente, pois não fora dita uma única palavra sobre o assunto:

- A mãe de Helisende morreu?

- Não, não morreu. Mas tomou o véu em Polesworth há cerca de oito anos, depois de o velho senhor ter morrido. Entrou para a vossa ordem, é uma freira beneditina. Teve sempre uma inclinação por esta ordem e, quando o marido morreu e começaram a falar nela e a negociar, como sucede com as damas viúvas, e a insistir para que se voltasse a casar, preferiu abandonar o mundo. É uma forma de fuga - disse Edgytha, cerrando carrancudamente os lábios.

- E deixou a filha sem mãe? - perguntou Haluin, num tom que exprimia mais censura do que tencionara.

- Ela deixou a filha muito bem entregue! Deixou-a com a dama Emma e comigo! - Edgytha enfureceu-se lentamente por um momento e reprimiu o breve fogo no interior das pestanas baixas. - Aquela criança teve três mães, e todas elas afectuosas. A minha senhora Emma nunca conseguiu ser dura para com qualquer coisa pequena. Demasiado branda, na realidade, aqueles dois faziam o que queriam dela. Mas a minha verdadeira dama era dada à solidão e à melancolia e, perante a possibilidade de um novo casamento, não, ela recusou-se e preferiu tomar o véu a voltar a casar-se.

- Helisende nunca pensou em procurar esse refúgio? - perguntou Cadfael.

- Ela não, Deus não permita que alguma vez o faça! A minha menina nunca pensou nisso. Para os que o fazem de livre vontade pode ser a felicidade mas, para os que são pressionados a fazê-lo, deve ser o inferno na terra! Perdoem-me a expressão, Irmãos! Os Irmãos conhecem melhor a vossa própria vocação, e sem dúvida que tomaram o hábito pelas melhores razões, mas Helisende... Não, eu não gostaria disso para ela. Se tem que haver uma segunda escolha, é muito melhor que seja este rapaz Perronet. - Ela começou a recolher as bandejas e os pratos que eles tinham esvaziado e pegou no jarro para voltar a encher as canecas. - Ouvi dizer que tinham estado em Elford e que viram o Roscelin lá. É verdade?

- É, sim - disse Cadfael -, saímos de Elford ontem. Tivemos, por acaso, uma breve conversa com o jovem, mas só esta manhã é que soubemos que ele era oriundo da casa senhorial de Vivers.

- E como estava ele? - perguntou ela, ansiosamente. - Está bem? Estava com o espírito em baixo? Há um mês ou mais que não o vejo, e sei como ele aceitou mal ser enviado para longe da sua própria casa como um pajem que tivesse cometido uma ofensa, quando ele não fez nada de mal, nem pensou nada de mal. É o melhor rapaz que se pode imaginar! O que disse ele?

- De qualquer modo, ele estava de excelente saúde - disse Cadfael, cautelosamente - e muito bem disposto, tendo em consideração tudo o resto. É verdade que se queixou de ter sido banido e estava pouco satisfeito de estar onde estava. Naturalmente que falou pouco a respeito das circunstâncias, uma vez que éramos visitantes ocasionais que não conhecia, mas não creio que ele tivesse dito mais a qualquer pessoa que estivesse de algum modo relacionada com o assunto. Mas ele disse que tinha dado a sua palavra de que cumpriria as ordens do pai e que aguardaria que lhe fosse dada autorização para voltar para casa.

- Mas ele não sabe - disse ela, entre a ira e a impotência - o que está a ser planeado aqui. Ele só terá autorização para voltar assim que Helisende tiver saído da casa e partido para sul, a caminho da casa senhorial daquele jovem. E que regresso a casa será para o pobre rapaz! É uma vergonha fazer as coisas nas suas costas!

- Eles acham que é melhor assim - disse Haluin, pálido e comovido. - Até mesmo no melhor interesse dele, pensam eles. E este problema é difícil até mesmo para eles. Se estão errados em esconder este casamento dele até estar consumado, certamente que poderão ser perdoados.

- Há os que - disse Edgytha num tom lúgubre - nunca o serão. - Ela pegou na bandeja de madeira e as chaves que trazia à cintura tilintaram ligeiramente enquanto se dirigia à porta. - Gostaria que isto tivesse sido feito com honestidade. Gostaria que ele fosse informado. Quer pudesse tê-la quer não, ele tinha o direito de saber e de lhe dar a sua bênção ou de condenar o casamento. Como é que o contactaram, para saberem metade do seu nome e não o nome todo?

- Foi a dama que referiu o seu nome - disse Cadfael - quando De Clary chegou a casa, depois de um passeio a cavalo, o jovem estava com ele. Roscelin, chamou-lhe ela. Foi mais tarde que falámos com ele. Ele viu que o meu amigo estava dorido depois de ter passado a noite de joelhos e veio oferecer-lhe o braço para ele se apoiar.

- É exactamente o que ele faria! - disse ela, num tom mais caloroso. - A alguém que visse em dificuldades. A dama, disse? A dama de Audemar?

- Não, a nossa incumbência não era junto dele, nós nunca vimos a sua mulher nem os filhos. Não, foi a mãe dele, Adelais de Clary.

Os pratos balouçaram momentaneamente na bandeja de Edgytha. Ela equilibrou-a com cuidado numa mão e estendeu a outra para a fechadura da porta. - Ela está lá? Lá em Elford?

- Está. Ou estava, quando nos viemos embora, ontem, e com a neve a cair tão pouco tempo depois, seguramente que ainda está.

- Ela raramente o visita - disse Edgytha, encolhendo os ombros. - Ela e a mulher do irmão não se dão muito bem. O que também não é muito invulgar. Suponho que estão melhor longe uma da outra. - Ela abriu a porta habilmente com um cotovelo e rodou a enorme bandeja de modo a que esta passasse de lado pela porta. - Ouviram os cavalos lá fora? Deve ser Jean de Perronet e o seu grupo a chegar.

Certamente que não havia nada de clandestino ou secreto na chegada de Jean de Perronet, embora também não houvesse nada de cerimonioso ou ostentoso. Ele chegou com um criado pessoal, dois cavalariços, dois cavalos para a noiva e para a sua aia, e burros de carga para a bagagem. Todo o séquito era prático e eficiente, e o próprio De Perronet tinha uma aparência muito simples, sem floreios no traje nem nos modos, embora Cadfael reparasse, com apreço, na qualidade dos seus cavalos e dos arreios. Este jovem sabia onde gastar o seu dinheiro e onde poupar.

Haluin e Cadfael saíram juntos para ver os hóspedes desmontar e descarregar a bagagem. O ar da tarde estava a clarear, anunciando a geada nocturna, mas havia nuvens varridas pelo vento na camada de ar superior, e era possível que houvesse pequenas rajadas de neve a meio da noite. Os viajantes ficariam muito satisfeitos por estarem sob um bom tecto, protegidos do vento gélido.

De Perronet desmontou do seu cavalo ruano em frente da porta do solar, e Cenred desceu os degraus para ir ao seu encontro, abraçando-o e conduzindo-o pela mão até à porta, onde a dama Emma aguardava para lhe dar as boas-vindas com idêntico calor. Helisende, reparou Cadfael, não apareceu. Ao jantar, na mesa alta, ela não teria outra opção a não ser estar presente, mas, nesta altura, era apropriado que as honras da casa fossem feitas pelo seu irmão e pela mulher deste, os guardiães da sua pessoa e decisores do seu casamento. O anfitrião, a anfitriã e o hóspede desapareceram no interior do grande salão. Os criados de Cenred e os cavalariços de De Perronet descarregaram a bagagem e colocaram os cavalos no estábulo, tendo-o feito com tanta eficiência que, ao fim de alguns minutos, o pátio estava vazio.

Então, aquele era o noivo! Cadfael ficou a reflectir sobre o que vira e, até agora, não conseguia encontrar qualquer falta, excepto no facto de ser, como Edgytha dissera, uma segunda escolha. E uma segunda escolha era tudo o que aquele rapaz teria. Um jovem, de talvez vinte cinco ou vinte seis anos, que, pelo seu porte, já estava habituado à autoridade e à responsabilidade, e era bem capaz de lidar com elas. Os seus homens, pelo menos estes favoritos, sentiam-se à-vontade com ele. Conhecia as suas obrigações, tal como eles conheciam as deles, e havia um ar de responsabilidade mútua entre eles. Além disso, era um jovem bem-parecido, alto e elegante, com um rosto franco e amável, e, pelo seu aspecto, estava extremamente feliz na véspera do seu casamento. Cenred tinha conseguido o melhor partido possível para a sua jovem irmã, e o seu melhor prometia vir a ser muito bom. Era uma pena não poder ter sido o que o coração dela desejava. - Mas que outra coisa poderia ele ter feito? - disse Haluin, manifestando, em poucas palavras, a profundidade do seu próprio desalento e das suas dúvidas.

 

No fim da tarde, Cenred mandou o seu administrador perguntar aos dois irmãos beneditinos se se sentiam capazes de jantar com a sua família no salão, ou se o padre Haluin preferia continuar a descansar e ser servido nos seus aposentos. Haluin, que se tinha recolhido numa meditação sombria, introspectiva, preferiria certamente ter permanecido isolado, mas achou que seria descortês da sua parte ausentar-se por mais tempo, e fez um esforço para emergir do seu silêncio ansioso e comparecer na mesa alta. Devido à sua função como padre que os iria casar, tinha-lhe sido dado um lugar próximo do casal de noivos. Cadfael, sentado um pouco à parte, tinha-os todos dentro do seu campo de visão. E lá em baixo, no centro do salão, sob o brilho dos archotes, todos os membros da casa estavam reunidos de acordo com o seu estatuto social.

Ocorreu a Cadfael, ao observar o rosto grave de Haluin, que esta seria a primeira vez que o seu amigo tinha sido chamado a servir de intermediário de Deus. Era verdade que hoje em dia, mais do que no passado, os irmãos jovens eram encorajados a aspirar às ordens, mas muitos seriam, como sucedia com Haluin, padres sem tarefas pastorais que, ao longo de uma longa vida, nunca celebrariam baptizados, casamentos ou funerais, nunca ordenariam outros que os seguissem nos mesmos trilhos resguardados. É uma terrível responsabilidade - pensou Cadfael, que nunca aspirara à ordenação - ter a graça de Deus confiada às mãos de um homem, ter o privilégio e o fardo de desempenhar um papel na vida de outras pessoas, prometer-lhes a salvação no baptismo, unir as suas vidas no matrimónio, deter a chave do purgatório na hora da partida. Se eu interferi, pensou ele com devoção, e Deus sabe que o fiz, quando foi necessário e não havia um homem melhor para o fazer, pelo menos interferi apenas como um pecador como os outros, percorrendo a mesma estrada, e não como emissário do céu, baixando-se para elevar. Agora, Haluin enfrenta esta mesma exigência terrível, e não admira que tenha medo.

Ele olhou ao longo da série de rostos que Haluin, estando tão próximo deles, só conseguia ver como perfis sobrepostos, cada um deles vislumbrado por um breve momento à medida que a ondulação do movimento fluía ao longo da mesa alta, e enganosamente iluminado pelo brilho cada vez mais fraco dos archotes. O rosto largo, franco de Cenred, de traços rudes, um pouco franzido e tenso, mas resolutamente jovial, a sua mulher a presidir à mesa com decidida afabilidade e um sorriso um tanto ansioso, De Perronet, em feliz inocência, resplandecente com o prazer óbvio de ter Helisende sentada a seu lado e praticamente sua. E a rapariga, pálida e calada e resolutamente afável ao seu lado, fazendo o possível por corresponder à alegria dele, uma vez que ele não tinha qualquer culpa desta dor, e ela tinha consciência de que ele merecia melhor. Ao vê-los juntos, não havia qualquer dúvida quanto ao afecto do homem, e se ele reparara na ausência de um fulgor idêntico nela, talvez aceitasse isso como a base comum do início de qualquer casamento e estivesse disposto a ser paciente até o botão florir.

Esta era a primeira vez que Haluin via a rapariga desde que ela, ao surpreendê-lo no salão, o fizera pôr-se de pé e seguidamente cair ao chão, meio aturdido como ele já estava com o vento cortante e a neve ofuscante. E essa rígida figura no seu melhor, dourada pela luz dos archotes, podia bem ser uma desconhecida que ele nunca vira antes. Quando o acaso lhe deu uma visão clara do seu perfil, ele olhou para ela com um sentimento de dúvida e perplexidade, sobrecarregado com um sentido de responsabilidade que, para ele, era novo e, ao mesmo tempo, pesado.

Já era tarde quando as mulheres se retiraram da mesa alta, deixando os homens a beber o seu vinho, embora eles não fossem ficar sentados no salão durante muito mais tempo. Haluin olhou em volta para cruzar o seu olhar com o de Cadfael, concordando de imediato que era altura de deixarem o anfitrião e o hóspede juntos, e Haluin estava já a pegar nas muletas e a preparar-se para o esforço de se levantar quando Emma entrou outra vez no salão, vinda do solar, com um passo agitado e um rosto ansioso, seguida por uma criada jovem.

- Cenred, aconteceu uma coisa estranha! A Edgytha saiu e ainda não voltou, e agora está a começar outra vez a nevar, e onde é que iria tão tarde, numa noite destas? Mandei chamá-la para me ajudar a deitar, como sempre, e ela não está em parte nenhuma, e agora Madlyn diz-me que ela saiu há horas, assim que começou a anoitecer.

Cenred foi lento a deslocar a mente do seu dever de hospitalidade para com o seu hóspede para um problema doméstico, aparentemente pequeno, seguramente um assunto para ser resolvido por mulheres e não por ele.

- Mas certamente que a Edgytha pode sair de casa, se quiser - disse ele, num tom bem-humorado -, e voltar exactamente quando decidir. Ela é uma mulher livre, sabe o que quer, e é uma pessoa responsável. O facto de não estar em casa uma vez quando é precisa não tem muita importância. Por que é que nos havemos de preocupar com isso?

- Mas quando é que ela fez uma coisa destas sem dizer nada? Nunca! E agora está outra vez a chover e, se o que Madlyn diz for verdade, ela já saiu há quatro horas ou mais. E se lhe aconteceu alguma coisa? Ela não ficaria fora de casa tanto tempo por sua livre vontade. E tu sabes como eu gosto dela. Não gostaria, por nada deste mundo, que lhe acontecesse alguma coisa de mal.

- Eu também não - disse Cenred, calorosamente -, nem a nenhum dos meus empregados. Se ela se perdeu, vamos à procura dela. Mas não há necessidade de ficarmos aflitos antes de sabermos se houve algum acidente. Vamos lá, rapariga, fala, o que é que sabes sobre o assunto? Dizes que ela saiu há algumas horas?

- Foi, sim, sir! - Madlyn deu alguns passos em frente, de olhos abertos de excitação. - Foi depois de estar tudo pronto. Eu vinha da leitaria e vi-a vir da cozinha com a capa vestida, e disse-lhe que esta ia ser provavelmente uma noite atarefada e que iam dar pela falta dela, e ela disse que estaria de volta antes de a chamarem. Nunca pensei que demorasse tanto.

- E não lhe perguntaste aonde ia? - perguntou Cenred.

- Perguntei - disse a rapariga -, embora houvesse poucas probabilidades de ela dizer muito sobre os seus assuntos, e eu já devia saber que ela ia dar uma resposta azeda, se é que ia responder. Mas o que disse não fez sentido. Ela disse que ia à procura de um gato - disse Madlyn com inocência e perplexidade - para colocar no meio dos pombos.

Embora não significassem nada para ela, as palavras tinham significado para Cenred e para a sua mulher, que claramente a ouviam pela primeira vez. O olhar sobressaltado de Emma voou para o rosto do marido, que se pôs abruptamente de pé. Cadfael leu o olhar que trocaram entre si como se ouvisse as palavras a soar aos seus ouvidos. Ele tinha recebido deixas suficientes para fazer facilmente a leitura. Edgytha tinha sido ama de ambos, fizera-lhes sempre as vontades, amava-os como se fossem seus, sente-se indignada com a sua separação, independentemente do que a igreja e os laços de sangue pudessem dizer, e muito mais ainda com este casamento que torna a separação definitiva. Ela foi pedir ajuda para evitar o que deplora, mesmo neste último momento. Ela foi dizer a Roscelin o que estava a ser feito nas suas costas. Ela foi a Elford.

Nada disso poderia ser dito em voz alta em frente de Jean de Perronet, que estava agora de pé ao lado de Cenred, a olhar de rosto em rosto, intrigado e solidário com um problema doméstico que não tinha nada a ver com ele. Uma criada velha que desaparecera ao fim da tarde, com a noite a aproximar-se e a neve a cair, exigia pelo menos uma busca simbólica. Ele fez a sugestão ingenuamente, preenchendo um silêncio que a qualquer momento poderia levá-lo a analisar com mais atenção o que estava a acontecer ali.

- Se ela já saiu há tanto tempo, não devíamos ir à sua procura? Os caminhos nem sempre são seguros à noite, e para uma mulher que se aventura sozinha...

A sugestão foi extremamente oportuna, e Cenred aceitou-a com gratidão.

- É o que vamos fazer. Vou enviar um grupo pelo caminho mais provável. Se ela tencionava fazer uma visita na aldeia, pode ser que se tenha apenas atrasado por causa da neve. Mas não te deves preocupar com isto, Jean. Não gostaria que a tua estada fosse ensombrada. Deixa esta questão aos meus homens, temos gente suficiente na casa. E podes ter a certeza de que ela não pode estar longe, encontrá-la-emos rapidamente e trá-la-emos em segurança para casa.

- Terei todo o gosto em ir consigo - ofereceu-se De Perronet.

- Não, não, não o permitirei. Todas as coisas aqui devem prosseguir conforme planeámos e nada deve estragar a ocasião.

Utiliza a minha casa como se fosse tua e dorme com uma mente tranquila, porque amanhã este pequeno incidente estará resolvido. Não foi difícil persuadir o prestimoso hóspede a abandonar a sua generosa intenção, que talvez tivesse sido manifestada apenas como um gesto de cortesia. Os problemas domésticos de um homem só a ele pertencem, e é melhor deixar que seja ele a resolvê-los. É delicado oferecer ajuda, mas é sensato ceder airosamente. Cenred sabia muito bem onde Edgytha decidira ir, não havia qualquer dúvida sobre que estrada tomar para ir à sua procura. Além disso, havia realmente motivo para preocupação, pois em quatro horas ela podia ter ido e vindo, mesmo com neve. Cenred deixou a mesa do jantar com um ar decidido, dando ordens aos homens do seu séquito para que se reunissem junto da porta do salão. Desejou enfaticamente uma boa noite a De Perronet, o que foi docilmente aceite como uma exclusão desta reunião familiar, e deu ordens enérgicas aos criados que escolheu para integrarem o grupo de busca, seis jovens vigorosos, juntamente com o seu administrador.

- Que devemos fazer? - perguntou o Irmão Haluin a meia voz, de pé, ao lado de Cadfael, ambos um pouco afastados.

- Tu - disse Cadfael - tens de ir para a cama, como um homem sensato, e dormir, se puderes. E uma ou duas orações não farão mal nenhum. Eu vou com eles.

- Ao longo da estrada mais próxima para Elford - disse Haluin, pesadamente.

- Para encontrar um gato para colocar no meio dos pombos. Sim, onde mais? Mas tu ficas aqui. Não há nada que possas fazer ou dizer, se for necessário dizer alguma coisa que eu não seja capaz de fazer.

A porta do salão abriu-se, o grupo desceu os degraus para o pátio, dois deles com archotes na mão. Cadfael, que seguia em último lugar, olhou para uma noite brilhante, gélida. O chão estava coberto de flocos pequenos, afiados como agulhas, que caíam de um céu quase límpido, estrelado e demasiado frio para uma queda de neve forte. Da ombreira da porta, olhou para trás e viu as mulheres da casa, as de posição elevada bem como as criadas, todas unidas na mesma intranquilidade a um canto do salão, seguindo com os olhos os homens que partiam, as criadas muito juntas, Emma com o seu rosto liso e suave enrugado de preocupação e puxando com nervosismo os seus dedos gordos.

E Helisende, de pé a um passo de distância, a única que não procurava consolação nas suas iguais. Estava suficientemente recuada de um dos candelabros de parede para que o archote mostrasse todo o seu rosto, sem sombras exageradas. Tudo o que Emma tinha relatado ao marido, tudo o que Madlyn contara, seguramente que agora Helisende já sabia. Sabia que Edgytha tinha saído, sabia qual tinha sido o motivo. Ela estava a olhar, de olhos bem abertos, para um futuro que já não conseguia prever, em que os resultados do trabalho desta noite se ocultavam em perplexidade e desalento e, possivelmente, catástrofe. Ela tinha-se preparado para um sacrifício voluntário, mas não se encontrava preparada para o que quer que a ameaçava agora. O seu rosto parecia tão imóvel e composto como sempre, no entanto tinha perdido toda a sua calma e certeza, a sua decisão tinha-se transformado em impotência e a sua resignação em desespero. Ela tinha chegado a um campo de batalha que acreditava que conseguiria defender, independentemente do preço que tivesse que pagar, e agora o chão tremera e abrira-se sob os seus pés, e ela já não controlava o seu próprio destino. A imagem da sua elegância despedaçada, desarmada e vulnerável, foi o último relance que Cadfael levou consigo para a escuridão e para o frio.

Cenred puxou a capa de modo a cobrir o rosto para se proteger do vento e saiu pelo portão da casa senhorial seguindo um caminho que Cadfael desconhecia. Com Haluin, ele virara da estrada distante, dirigindo-se directamente para o brilho da luz dos archotes da casa senhorial, mas o trilho que agora tomaram descrevia uma curva e ia dar a uma estrada muito mais próxima de Elford, cortando provavelmente pelo menos meia milha do caminho. A noite tinha a sua própria luz tre-mulante, oriunda em parte das estrelas, e em parte da fina camada de neve, pelo que puderam avançar rapidamente, espalhados ao longo de uma linha cujo centro era o trilho. Estavam aqui em campo aberto, no início despido de árvores, depois com um cordão de árvores e arbustos. Não se ouvia nada a não ser o som dos seus próprios passos e da respiração, e o suave gemido do vento no meio dos arbustos. Cenred mandou-os parar duas vezes para terem silêncio e chamou em voz alta para a noite, mas não obteve qualquer resposta.

Cadfael calculou que, para uma pessoa que conhecesse bem este caminho, a distância até Elford seria de aproximadamente duas milhas. Há muito tempo que Edgytha poderia estar de volta a Vivers e, pelo que ela dissera à criada Madlyn, tencionava regressar muito a tempo de estar à disposição da sua patroa depois do jantar. E numa noite tão clara e com pouco mais do que um polvilho de neve, ela também não se podia ter afastado de um caminho conhecido. Começou a parecer-lhe óbvio que algo tinha acontecido para impedir a sua missão ou o seu regresso em segurança. Não os rigores da natureza ou o capricho do acaso, mas sim a mão do homem. E, numa noite assim, era pouco provável que os bandidos que atacavam os viajantes, mesmo que eles existissem neste campo aberto, andassem por aí, uma vez que as suas vítimas não estariam exactamente ansiosas por se aventurar a sair de casa numa noite tão gelada. Não, se alguém tivesse intervido para impedir Edgytha de alcançar o seu objectivo, isso fora feito deliberadamente. Havia, talvez, uma possibilidade melhor, a de ela ter chegado até Roscelin com a notícia e de este a ter persuadido a não regressar e a permanecer em segurança em Elford, deixando o resto a seu cargo. Mas Cadfael não tinha a certeza de acreditar nessa possibilidade. Se isso tivesse acontecido, Roscelin já teria entrado, indignado, no salão de Vivers, antes sequer de terem dado pela falta de Edgytha.

Cadfael tinha-se colocado ao lado de Cenred, avançando apressadamente no centro da fila de caçadores, e um sombrio olhar de soslaio saudou-o e reconheceu-o, sem grande surpresa.

- Não havia necessidade, Irmão - disse Cenred, secamente. - Nós somos suficientes para o trabalho.

- Um homem mais não fará mal nenhum - disse Cadfael. Não fazia mal, mas possivelmente também não era bem-vindo. Era melhor que este assunto fosse mantido estritamente privado e restrito à casa de Vivers. No entanto, pareceu que Cenred não ficou grandemente perturbado pela presença de um monge beneditino no meio do grupo de busca. Estava preocupado em encontrar Edgytha, de preferência antes de ela chegar a Elford, e, caso não o conseguisse, a tempo de anular qualquer mal que ela tivesse desencadeado. Talvez ele estivesse à espera de encontrar o filho algures ao longo do caminho, vindo apressadamente para impedir o casamento que iria destruir as suas últimas esperanças vãs. Mas eles tinham percorrido mais de uma milha, e a noite continuava vazia à sua volta.

Estavam a deslocar-se através de um bosque esparso, aberto, sobre erva irregular, em tufos, em que a neve congelada era demasiado fina para esmagar as folhas das ervas, e poderiam ter passado pelo pequeno montículo ao lado do caminho do lado direito se não fosse o chão escuro que era visível através da cobertura de renda branca, mais escuro que o castanho-des-corado da turfa de Inverno. Cenred passou por ele, mas estancou imediatamente quando Cadfael parou, e ficou a olhar para onde ele estava a olhar.

- Depressa, tragam um archote para aqui!

A luz amarela delineava claramente a forma de um corpo humano estendido no chão, com a cabeça afastada do caminho, esbranquiçada como uma crosta de neve. Cadfael baixou-se e limpou o véu cristalino de um rosto voltado para cima, de olhos abertos e contorcido numa expressão de medo espantado, e uma cabeça de cabelos brancos da qual o capuz tinha caído para trás quando ela caíra. Estava deitada de costas mas inclinada sobre o lado direito, com os braços esticados para a frente como se tentasse proteger-se de um golpe. Através da filigrana branca via-se a sua capa preta. Sobre o seio, uma pequena mancha sujava o véu, no local onde o sangue, num pequeno fio, tinha derretido os flocos de neve ao mesmo tempo que eles caíam. Pelo modo como estava caída, não era possível dizer de imediato se ela ia a caminho de Elford ou de casa quando fora atacada, mas pareceu a Cadfael que, no último momento, ela ouvira alguém a aproximar-se furtivamente por detrás e dera meia volta, com as mãos erguidas para proteger a cabeça. O punhal que o seu atacante tencionara introduzir entre as costelas, por trás, tinha falhado o golpe e mergulhara no seu peito. Estava morta e fria, e o gelo confundia todas as conjecturas sobre a hora a que devia ter morrido.

- Deus do céu! - disse Cenred num murmúrio. - Isto é algo que nunca imaginei vir a ver! O que quer que ela tencionasse fazer, porquê isto?

- Os lobos caçam até mesmo no gelo - disse o administrador pesadamente. - Embora ninguém sabe que riquezas poderão eles encontrar aqui! E vejam só, não levaram nada, nem sequer a capa dela. Os bandoleiros tê-la-iam despido.

Cenred abanou a cabeça.

- Não há gente dessa por estas partes, juro. Não, esta é uma questão totalmente diferente. Gostaria de saber em que direcção ela ia quando foi atacada.

- Quando a deslocarmos - disse Cadfael -, é possível que descubramos. E agora? Já não podemos fazer nada por ela. Quem quer que tenha manejado a faca sabia o que estava a fazer e não precisou de um segundo golpe. E as pegadas que tenha deixado para trás dificilmente serão visíveis no chão, mesmo nos locais em que a neve não as cobriu.

- Temos de a levar para casa - disse Cenred num tom sombrio. - E será uma ocasião muito triste para a minha mulher e para a minha irmã. Elas gostavam muito da velha. Ao longo de todos estes anos, desde que a minha jovem madrasta a trouxe para a nossa casa, ela foi sempre leal e digna de toda a confiança. Isto terá de ser vingado! Vamos mandar alguém saber se ela chegou a Elford e o que sabem dela lá, e se eles ouviram falar da existência de assaltantes por estes caminhos, talvez fugidos de outras regiões. Embora seja difícil de acreditar, Audemar governa as suas terras com uma mão firme.

- Quer que vamos buscar uma padiola, meu senhor? - perguntou o administrador. - Ela não pesa muito, podíamos levá-la à vez dentro da capa.

- Não, não há necessidade de fazer outra viagem. Mas tu, Edred, leva Jehan contigo e vai até Elford, e vê se descobres o que sabem sobre ela lá, se alguém a viu e falou com ela. Não, leva dois homens contigo. Não quero que corras perigo na estrada, se houver bandoleiros por aí.

O administrador acatou as ordens e levou um archote para o iluminar durante o resto do caminho. A pequena chama resinosa foi definhando ao longo do trilho em direcção a Elford e desapareceu gradualmente na noite. Os que ficaram, dirigiram-se ao corpo e ergueram-no para o lado para desabotoar e estender no chão a capa que ela tinha vestida. Assim que a levantaram, uma coisa pelo menos ficou clara.

- Há neve debaixo dela - disse Cadfael. A sua forma mirrada estava escura e húmida nos locais em que tinha havido contacto suficiente para o calor do corpo derreter os flocos de neve, mas em redor da orla em que as dobras da sua roupa só tinham pousado ao de leve, havia ainda uma borda de renda. - Foi depois de ter começado a nevar que ela caiu. Ela estava a caminho de casa.

Ela era leve e mole nas mãos deles. O frio do seu corpo era causado pelo gelo e não pela morte. Embrulharam-na bem na capa e ataram-na com dois ou três cintos e com o cordão de cintura de Cadfael, para os criados que a transportavam terem onde agarrar, e foi assim que estes a carregaram ao longo da cerca de uma milha de regresso a Vivers.

Os membros da casa ainda estavam acordados, incapazes de descansar antes de saberem o que estava a acontecer. Uma das criadas viu a triste procissão a entrar no portão e correu, a chorar, a dizer a Emma. Quando o corpo de Edgytha chegou ao salão, já todas as criadas estavam outra vez reunidas, muito juntas, para se consolarem umas às outras. Emma assumiu o controlo, com mais determinação do que se poderia esperar de uma pessoa suave e frágil, e pôs as raparigas a trabalhar com uma rapidez que as impedia de chorar, preparando uma mesa desmontável num dos aposentos pequenos para fazer um esquife, compondo os membros em desordem, aquecendo água, trazendo lençóis perfumados das arcas do átrio para drapejar e cobrir a morta. As cerimónias fúnebres são tão úteis para os vivos como para os mortos, ocupando-lhes as mãos e as mentes e consolando-os das coisas deixadas por fazer ou mal feitas durante a vida. Ao fim de pouco tempo, o murmúrio de vozes baixas oriundo do aposento onde estava a morta tinha-se suavizado e deixado de ser de angústia e desalento, tendo-se transformado num cântico suave e elegíaco, quase calmante.

Emma saiu para o salão, onde o marido e os seus homens estavam a aquecer os pés gelados na lareira e a esfregar as mãos entorpecidas.

- Cenred, como é isto possível? Quem poderia ter feito uma coisa destas?

Ninguém tentou responder, nem ela estava à espera de uma resposta. - Onde é que a encontraram?

A isso o marido respondeu, esfregando, com um ar cansado, a testa franzida. - A mais de meio caminho para Elford, pela estrada curta, estendida ao lado do trilho. E não estava lá há muito tempo, pois havia neve debaixo dela. Foi no caminho de regresso que alguém a atacou.

- Achas - perguntou Emma em voz baixa - que ela foi a Elford?

- Por aquele caminho, a que outro lugar poderia ela ter ido? Mandei Edred lá, para tentar saber se ela lá foi e com quem falou. Devem estar de volta daqui a mais ou menos uma hora, mas só Deus sabe se terão notícias.

Estavam ambos a rodear delicadamente o cerne da questão, evitando mencionar o nome de Roscelin ou qualquer palavra sobre o motivo que teria levado Edgytha a sair de casa sozinha numa noite invernosa. É verdade que, nessa altura, a notícia já tinha chegado até mesmo ao canil e à estrebaria, e todos os membros da casa de Vivers estavam reunidos, os criados de dentro de casa juntos num grupo ansioso a um canto do salão, e os de fora a olhar por cima do ombro, incapazes de se dedicar às suas tarefas habituais ou ao seu descanso normal até que acontecesse algo ali dentro que os fizesse dispersar. Era pouco provável que o seu senhor tivesse falado a algum deles do amor ilícito de Roscelin, mas era possível que muitos tivessem detectado as correntes subterrâneas que arrastavam Helisende para aquele casamento apressado. Em frente de todo este clã teria de ser observada alguma reserva no discurso.

E, para complicar ainda mais as coisas, apareceu Jean de Perronet, oriundo do aposento superior para onde se tinha retirado por cortesia, mas não para dormir, pois ainda vestia o traje com que jantara. E também o Irmão Haluin, ansioso e calado, vindo da sua cama. Todos os que se encontravam sob o tecto de Vivers nessa noite tinham sido gradual e quase furtivamente atraídos para o salão.

Não, todos não. Cadfael olhou em volta dos presentes e deu pela falta de um rosto. Quando todos os outros se reuniam, Helisende ausentava-se.

Pela expressão do seu rosto, De Perronet tinha estado a pensar seriamente desde que acedera ao desejo do seu anfitrião e permitiria que o grupo de busca saísse para a noite sem ele. Ele entrou no salão com um rosto composto e grave, não revelando nada do que lhe ia na mente, demorou algum tempo a olhar em volta do círculo silencioso e triste e, por último, olhou mais longamente para Cenred, que estava de pé, com as botas a fumegar nas cinzas da lareira e que, de cabeça baixa, olhava fixamente para as brasas do fogo.

- Creio - disse De Perronet lentamente - que as coisas não acabaram bem. Encontraram a vossa criada?

- Encontrámo-la - respondeu Cenred.

- Maltratada? Morta? Está a dizer-me que a encontraram morta?

- E não de frio! Apunhalada - disse Cenred, bruscamente - e deixada à beira do caminho. E não vimos nem ouvimos sinal de outra pessoa ao longo do caminho, embora isso tenha acontecido há pouco tempo, depois de a neve ter começado a cair.

- Ela está connosco há dezoito anos - disse Emma contorcendo as mãos com tristeza debaixo do peito. - Pobre alma, pobre alma, acabar assim... atacada por um bandido e deixada a morrer ao frio. Era a última coisa que eu gostaria que acontecesse.

- Lamento muito - disse De Perronet - que uma coisa destas tivesse acontecido e numa altura destas. Poderá haver alguma ligação entre a ocasião que me trouxe aqui e a morte desta mulher?

- Não! - exclamaram o marido e a mulher ao mesmo tempo, preferindo resistir ao pensamento que já se formava nas suas mentes, a mentir para enganar o hóspede. - Não - disse Cenred mais suavemente - Penso que não há, espero que não haja. De todas as possibilidades, essa é a mais infeliz, no entanto, certamente, que não é mais do que uma possibilidade.

- Possibilidades infelizes como essas existem - admitiu De Perronet, com evidente reserva. - E elas não deixam de estragar festas, até mesmo casamentos. Não quer adiar este?

- Não, por que é que havia de o fazer? É o nosso pesar, não o teu. Mas é um homicídio, e tenho de mandar comunicar ao xerife e iniciar uma caçada ao assassino. Que eu saiba, ela não tem quaisquer familiares vivos, por isso compete-nos sepultá-la. Faremos o que for preciso. Mas não há necessidade de ensombrar a tua vida.

- Receio que já tenha ensombrado - disse De Perronet - a de Helisende. Esta mulher, creio eu, foi ama dela e era-lhe muito cara.

- Mais um motivo para a levares para longe daqui, para uma casa nova e uma vida nova. - Ele olhou em volta à procura dela pela primeira vez, admirado por não a ver ali entre as mulheres, mas aliviado por não estar ali a complicar uma questão já suficientemente perturbadora. Se ela tivesse, de facto, sido capaz de adormecer, tanto melhor, deixá-la dormir sem saber nada até à manhã seguinte. As criadas estavam a regressar do aposento onde tinham estado a preparar o corpo de Edgytha. Não havia mais nada que elas pudessem fazer, e a sua presença inquieta, muda e receosa em grupos, tornava-se opressiva. Cenred fez uma tentativa para se libertar delas.

- Emma, manda as mulheres para a cama. Não há mais nada a fazer aqui, e não há necessidade de ficarem à espera. E vocês, meus amigos, vão dormir. Já foi feito tudo o que pode ser feito até Edred voltar de Elford, não há necessidade de ficarem todos à espera dele. - E para De Perronet, ele disse: - Eu mandei-o, juntamente com dois homens meus, informar o meu suserano sobre esta morte. Um homicídio ocorrido nestas partes cabe dentro da sua jurisdição, este será um problema tanto dele como meu. Anda, Jean, se não te importas, vamos retirar-nos para o solar e deixar o salão para os que vão dormir.

Sem dúvida, pensou Cadfael, observando as linhas mortificadas do rosto de Cenred, que este se sentiria mais feliz se De Perronet recusasse qualquer envolvimento e se mantivesse afastado, mas agora não haveria qualquer possibilidade de isso acontecer. E por mais que ele evadisse a verdade sobre o motivo por que o seu administrador tinha ido a Elford, só o nome daquele lugar tinha assumido agora um significado a que não era possível escapar. E este não era um homem que gostasse de mentir nem que o fizesse com gosto ou habilidade.

As mulheres tinham acatado imediatamente as suas ordens e dispersado, temerosas, para os seus aposentos, ainda a murmurar. Os criados apagaram os archotes, deixando apenas dois junto da porta grande para iluminar a entrada, e alimentaram e abafaram o fogo da lareira para que o mesmo ardesse lentamente durante a noite. De Perronet seguiu o seu anfitrião até à porta do solar, e ali Cenred virou-se e fez sinal a Cadfael para que os acompanhasse.

- O Irmão esteve presente e pode testemunhar sobre o modo como a encontrámos. Foi o irmão que mostrou que a neve tinha começado a cair antes de ela ter sido atacada. Importa-se de esperar connosco, para ver o que o meu administrador diz quando regressar?

Não foi dito nada sobre se o Irmão Haluin deveria considerar que o convite se aplicava também a ele, mas o seu olhar cruzou-se com o de Cadfael, que não recomendava esse passo, antes o dissuadia, mas ele decidiu ignorá-lo. Já tinham ocorrido acontecimentos suficientes para perturbar a sua mente, se ele ia unir duas pessoas cujo casamento iminente era, pelo menos, suspeito de ter provocado uma morte. Ele precisava de saber o que estava por detrás daquelas deambulações nocturnas e voltar atrás com o seu compromisso, se visse que havia motivo para tal. Cerrou os lábios e seguiu-os até ao solar, as suas muletas eram pesadas e lentas no chão de junco e fizeram um eco surdo quando pisou as tábuas no interior do solar. Sentou-se num banco situado no canto mais escuro, um ouvinte discreto, enquanto Cenred se sentava à mesa com um ar cansado e colocava os cotovelos sobre o tampo, apoiando a cabeça nas mãos musculosas.

- Os seus homens vêm a pé? - perguntou De Perronet.

- Vêm.

- Então, talvez tenhamos uma longa espera até eles cá chegarem. Tinha mais algum grupo noutras estradas?

Cenred respondeu secamente não, e não acrescentou mais nada à laia de explicação ou desculpa. Há menos de um quarto de hora, pensou Cadfael, observando-o, ele teria respondido evasivamente ou deixado a pergunta sem resposta. Agora, deixara de se preocupar com a discrição. Um homicídio traz à superfície muitas questões não menos dolorosas, permanecendo, ao mesmo tempo, à espreita no escuro.

De Perronet fechou a boca e cerrou os dentes, decidido a não fazer mais perguntas, e preparou-se para ficar pacientemente à espera. A noite tinha-se cerrado sobre a mansão senhorial de Vivers numa imobilidade silenciosa, ominosa e opressiva. Era pouco provável que alguém estivesse a dormir no salão mas, se algum deles se movia, fazia-o furtivamente e, se alguém falava, era em murmúrios.

No entanto, a espera não foi tão longa como De Perronet profetizara. O silêncio foi subitamente perturbado pelo ruído surdo de cascos a galope na terra gelada do pátio, por uma voz jovem furiosa a gritar peremptoriamente, exigindo ser servida, pela corrida frenética de cavalariços no exterior e pelo movimento apressado de todos os membros do séquito despertos no interior. Pés correram às cegas no escuro, tropeçando e farfalhando nos juncos, sílex e aço. cuspiram faíscas demasiado breves e apressadas para fazerem fogo, o primeiro archote foi mergulhado no lume abafado e levado apressadamente para atear outros. Antes de os que estavam no solar terem saído para o salão, um punho bateu na porta exterior e uma voz irada exigiu ser admitida.

Reconhecendo a voz, dois ou três homens correram para destrancar a porta e cambalearam quando a porta pesada foi atirada contra a parede, e à luz dos archotes cada vez mais viva irrompeu a figura de Roscelin, de cabeça descoberta, com o cabelo louro revolto devido à velocidade com que viajara, e olhos azuis em chamas. O frio da noite entrou com ele, e todos os archotes esmoreceram e deitaram fumo, ao mesmo tempo que Cenred, emergindo abruptamente do solar, ficou imobilizado no limiar do salão pelo olhar flamejante do filho.

- O que é isto que Edred me contou? - perguntou Roscelin. - O que é que o pai fez nas minhas costas?

 

Desta vez, a autoridade paterna foi apanhada em desvantagem, e Cenred teve perfeitamente consciência disso. Ele também não possuía uma reputação de tirano em que se pudesse apoiar, mas fez o possível por recuperar a iniciativa perdida.

- O que é que estás a fazer aqui? - perguntou ele num tom severo. - Eu mandei-te chamar? O teu senhor mandou-te embora? Algum de nós te libertou do teu compromisso?

- Não - disse Roscelin, rutilante. - Ninguém me deu autorização e eu não pedi autorização a ninguém. E quanto ao meu compromisso, o pai libertou-me dele quando me traiu. Não fui eu que faltei à palavra. E quanto aos meus deveres para com Audemar de Clary, retomá-los-ei se tiver que o fazer e aceitarei tudo o que o seu desagrado me impuser, mas só depois de o pai me dizer abertamente o que tencionava fazer nas minhas costas. Eu escutei-o, reconheci a sua autoridade, obedeci-lhe. Será que não me devia nada em troca? Nem sequer honestidade?

Um outro pai podia tê-lo agredido por tal insolência, mas Cenred não teve essa opção. Emma estava a puxar-lhe ansiosamente pela manga, preocupada com os seus dois homens. De Perronet, atento e sério, apareceu a seu lado, olhando para o rapaz irado que os enfrentava, e já se apercebera da inevitável ameaça aos seus próprios planos. Que outra coisa poderia ter trazido este jovem a correr velozmente através da noite? E, de acordo com todos os sinais, ele tinha vindo pela estrada mais curta, perigosa no escuro, senão não tinha chegado tão cedo. Nada do que acontecera nessa noite tinha ocorrido por acidente ou por acaso. O casamento de Helisende Vivers tinha provocado esta espiral de assassínio, busca e perseguição e ainda não se sabia que mais iria acontecer.

- Eu não fiz nada - disse Cenred - de que me deva envergonhar e nada de que deva prestar-te contas. Tu sabes bem qual deve ser o teu papel, concordaste com ele, portanto, agora, não te queixes. Eu sou o senhor da minha própria casa, tenho direitos e deveres para com a minha família. Cumpri-los-ei como achar que o devo fazer. E para o melhor!

- Sem a cortesia de me dizer uma única palavra! - chamejou Roscelin, ardendo como um fogo atiçado. - Não, eu tive que saber por Edred, depois de os danos já se terem feito sentir, depois de uma morte cuja culpa lhe pode ser atribuída. Isso foi para o melhor? Ou atreve-se a dizer-me que a Edgytha morreu por qualquer outro motivo, às mãos de um desconhecido? Isso já seria suficientemente mau, mesmo que não fosse pior que isso. Mas de quem foram os planos que a fizeram sair para a noite? Atreve-se a dizer-me que ela ia fazer outra coisa? Edred diz que ela ia a caminho de Elford quando alguém a atacou. Eu estou aqui para evitar o resto.

- O seu filho está a referir-se, suponho - disse De Perronet, em voz alta e num tom frio -, ao casamento organizado entre a dama Helisende e eu. Sobre essa questão, penso que também tenho uma palavra a dizer.

Os enormes olhos azuis de Roscelin deslocaram-se do rosto do pai para o do hóspede, e o encontro deixou-o silencioso durante um longo momento. Cadfael lembrou-se que não eram dois desconhecidos. As duas famílias conheciam-se, talvez até fossem familiares distantes e, dois anos antes, De Perronet pedira formalmente a mão de Helisende. Não havia animosidade pessoal no olhar de Roscelin, era mais uma raiva perplexa e frustrada contra as circunstâncias do que contra este pretendente preferido, de quem ele não podia nem devia ser rival.

- O senhor é o noivo? - perguntou ele, secamente.

- Sou, e mantenho a minha pretensão. E o que tem a dizer contra isso?

Animosidade ou não, eles tinham começado a encrespar-se como galos de combate, mas Cenred colocou uma mão no braço de De Perronet para o reprimir e, com um gesto, fez o filho recuar.

- Esperem, esperem! Isto já foi demasiado longe para ser mantido secreto. Diz-me uma coisa, meu rapaz, ouviste falar deste casamento, tal como ficaste a saber da morte de Edgytha apenas através de Edred?

- De que outra forma poderia ser? - perguntou Roscelin. - Ele apareceu, ofegante, com as notícias e despertou toda a casa, Audemar e tudo. Duvido que ele quisesse que eu ouvisse quando falou sobre o casamento, mas ouvi, e estou aqui para descobrir por mim próprio aquilo que nunca quis que eu questionasse. E veremos se tudo tem estado a ser feito pelo melhor.

- Então, não viste a Edgytha? Ela não chegou a falar contigo?

- Como é que ela podia fazê-lo se estava morta a cerca de uma milha de Elford? - perguntou Roscelin num tom de impaciência.

- Ela morreu depois de a neve ter começado a cair. Tinha saído há horas, teve tempo suficiente para ter chegado a Elford e iniciar o caminho de regresso. Ela estivera algures, certamente que estava de regresso de algum sítio. Que outro lugar podia ser?

- Então, o pai pensou que ela tinha, de facto, chegado a Elford - disse Roscelin, lentamente. - Eu só ouvi dizer que ela tinha morrido, pensei que estivesse a caminho. A caminho de Elford, para falar comigo! Era isso o que estava a pensar? Que ela me ia avisar do que estava a ser feito aqui na minha ausência?

O silêncio de Cenred e o rosto infeliz de Emma foram resposta suficiente.

- Não - disse ele, lentamente. - Eu não a vi. Nem, tanto quanto eu saiba, ninguém da casa de Audemar a viu. Não sei com quem é que ela foi falar. Certamente que não foi comigo.

- Mas podia ter sido - disse Cenred.

- Não foi. Ela não foi falar comigo. No entanto - disse Roscelin, implacavelmente -, aqui estou eu como se ela tivesse ido, depois de o ouvir da boca de outra pessoa. Deus sabe que sinto muito a morte da Edgytha, mas que mais há a fazer a não ser sepultá-la com todo o respeito e depois disso, se pudermos, encontrar e sepultar o seu assassino? Mas não é demasiado tarde para reconsiderar o que deveria ter lugar aqui amanhã, não é demasiado tarde para o alterar.

- Muito me admira - disse Cenred, num tom duro - que não me acuses directamente desta morte.

Ao ser confrontado com uma ideia tão monstruosa, Roscelin ficou paralisado e, com o choque, ficou de boca aberta e com as mãos abertas caídas, a balouçar como as de uma criança. Era óbvio que essa ideia nunca lhe passara pela cabeça. Começou a balbuciar um desmentido furioso, semiarticulado, mas abandonou-o a metade para se virar de novo para De Perronet.

- Mas o senhor... o senhor tinha motivo suficiente para querer impedi-la, se soubesse que ela me ia avisar. O senhor tinha uma boa razão para a silenciar, para que a voz dela não se levantasse contra o seu casamento, como eu agora levanto a minha. Foi o senhor que a matou no caminho?

- Isso é um disparate! - disse De Perronet com desdém.

- Toda a gente sabe que eu estive aqui, à vista de toda a gente, durante toda a noite.

- Pode ter estado, mas tem homens que podem estar habituados a fazer o trabalho por si.

- Todos eles podem ser afiançados pelos membros da casa do seu pai. Além disso, já lhe foi dito que esta mulher não foi morta à ida mas sim no regresso. Qual seria a minha finalidade? E agora, gostaria de perguntar a ambos, pai e filho - acrescentou ele secamente -, que interesse tem este rapaz no casamento da sua familiar próxima, que o leva a atrever-se a desafiar os interesses do irmão ou do marido dela?

Agora, pensou Cadfael, já está tudo praticamente posto às claras, embora ninguém o vá dizer abertamente. Pois De Perronet é suficientemente perspicaz para ter compreendido a paixão especial e proibida deste rapaz. E agora depende de Roscelin se vai ser possível salvaguardar uma face decente a respeito de toda esta questão. O que é pedir muito a um jovem dilacerado como ele está, indignado com o que considera uma traição. Agora veremos a sua coragem.

Roscelin tinha empalidecido e o seu rosto adquirira uma brancura fixa de aço, com os belos ossos das maçãs do rosto e do queixo bem delineados à luz dos archotes. Antes de Cenred ter arranjado fôlego para afirmar a sua dominância, o seu filho já o tinha feito por ele.

- O meu interesse é o de um familiar tão próximo como um irmão que deseja a felicidade de Helisende mais do que tudo no mundo. Nunca discuti o direito do meu pai, nem duvido de que ele deseje a sua felicidade tanto como eu. Mas quando ouvi falar num casamento planeado apressadamente e na minha ausência, como podia eu ficar tranquilo? Não vou ficar quieto a vê-la ser empurrada para um casamento que possa não ser do seu agrado. Não vou permitir que seja forçada ou persuadida contra a sua vontade.

- Isso não aconteceu - protestou Cenred, acaloradamente.

- Ela não está a ser forçada, consentiu de bom grado.

- Então, por que é que eu fui mantido na ignorância? Até o facto ser consumado? Como é que posso acreditar no que o vosso procedimento nega? - deu meia-volta para enfrentar De Perronet, com o rosto pálido esforçadamente controlado. - Meu senhor, não tenho nada contra si. Eu nem sequer sabia quem ia ser o marido. Mas deve compreender que é difícil acreditar que tudo tenha sido feito honestamente, quando não foi feito abertamente.

- Agora já foi tudo revelado - disse De Perronet, secamente.

- O que o impede de o ouvir dos lábios da própria dama? Isso satisfá-lo-á?

O rosto branco de Roscelin fechou-se ainda mais dolorosamente e, por um momento, lutou visivelmente contra o medo da rejeição e perda inevitáveis. Mas não tinha outra opção a não ser concordar.

- Se ela me disser que foi decisão sua, então, ficarei calado.

- Ele não disse que, daí em diante, ficaria tranquilo. Cenred virou-se para a mulher que, durante todo esse tempo, ficara, leal, ao lado do marido, ao mesmo tempo que os seus olhos perturbados nunca deixaram o rosto atormentado do filho.

- Vai chamar Helisende. Ela falará por si própria.

No pesado e incómodo silêncio que se seguiu à saída de Emma, não era claro para Cadfael se algum membro daquela perturbada família tinha achado estranho, tal como ele achara, que Helisende não tivesse há muito descido, para descobrir por si própria o significado daquelas movimentações nocturnas. Ele não conseguia tirar da cabeça a última vez que a vira, de pé, sozinha, no meio de tanta gente, subitamente perdida e confusa numa estrada que ela acreditara que poderia percorrer até ao fim com resoluta dignidade. Numa situação tão tristemente alterada, ela tinha-se desorientado. Era de admirar, contudo, que não tivesse, em defesa da sua própria dignidade, descido com o resto das pessoas para descobrir o melhor ou o pior quando o grupo de busca regressasse. Será que ela sabia até que Edgy-tha tinha morrido?

Cenred tinha avançado para o salão meio iluminado, abandonando a reclusão do solar, uma vez que já não havia qualquer privacidade por detrás de uma porta fechada. Uma mulher da sua casa tinha sido morta. O casamento de uma dama da família era uma ocasião de conflito e morte. Já não havia qualquer possibilidade de distinção entre senhor e homem ou senhora e criada. Todos aguardavam com igual inquietação. Todos, excepto Helisende, que se tinha ausentado.

O Irmão Haluin tinha recuado para as sombras e sentava-se, calado e imóvel, num banco encostado à parede, rigidamente debruçado entre as muletas que segurava de encontro aos seus lados. Os seus olhos escuros encovados percorriam atentamente os rostos, lendo-os e interrogando-se. Se sentia algum cansaço, não dava quaisquer mostras disso. Cadfael gostaria de o enviar para a cama, mas havia em todos eles uma compulsão tão forte, que ninguém ia sair dali. Só uma pessoa tinha resistido à atracção. Só uma fugira.

- O que detém as mulheres? - impacientou-se Cenred, à medida que os momentos se arrastavam. - É preciso tanto tempo para vestir um vestido?

Mas longos minutos se passaram até Emma reaparecer à porta, com o rosto redondo, suave, cheio de consternação e desalento, e as mãos juntas a mexer, agitadas, no cinto. Atrás dela, com os olhos muito abertos, desconfiados, espreitava a criada Madlyn. Mas não havia sinal de Helisende.

- Ela desapareceu! - disse Emma, demasiado abalada e perplexa para dizer muito. - Ela não está deitada, não está no quarto, não a encontrei em parte nenhuma da casa. A capa dela desapareceu. Jehan foi ao estábulo. O cavalo e os arreios dela desapareceram com ela. Enquanto estiveste ausente, selou o cavalo e foi-se embora em segredo, sozinha.

Desta vez ficaram todos em silêncio, o irmão, o noivo, o amante frustrado e todos os outros. Enquanto maquinavam, agonizavam e discutiam sobre o seu destino, ela agira e fugira de todos eles. Sim, até mesmo Roscelin, pois agora ele sentia-se ferido e espantado, tão completamente perdido como todos os outros. Cenred assumiu uma postura rígida e olhou de testa franzida para o filho, e De Perronet deu meia volta e lançou-lhe um olhar de desconfiança, mas era óbvio que Roscelin não tinha nada a ver com esta fuga em pânico. Até mesmo antes da morte de Edgytha, pensou Cadfael, a sua missão secreta e o facto de ela não regressar tinham estilhaçado toda a segurança que Helisende tão esforçadamente reunira. Sim, De Perronet era um homem bom e um partido honroso, e ela tinha-se comprometido com ele a fim de se retirar do caminho de Roscelin e de se libertar a si própria e a ele de uma situação insuportável. Mas se esse sacrifício acarretasse apenas ira, perigo e conflito, até mesmo morte, então tudo se alterara. Helisende recuara da beira do abismo e libertara-se.

- Ela fugiu! - disse Cenred, exalando ruidosamente, aceitando a situação sem a questionar. - Como é que ela conseguiu fugir sem que ninguém a visse? E quando é que terá partido? Onde estavam as suas criadas? Será que não havia um cavalariço no estábulo para lhe perguntar onde ia ou, pelo menos, para nos avisar? - Ele passou uma mão impotente pelo rosto e lançou um olhar severo ao filho. - E para onde fugiria ela a não ser para junto de ti?

Estava dito, não era possível retirar as palavras.

- Será que a escondeste algures em segredo e vieste para cá com a tua indignação falsa para disfarçar o teu pecado?

- Não posso acreditar no que estou a ouvir! - disse Roscelin, indignado. - Não a vi, nem recebi qualquer mensagem dela, nem lhe enviei nenhuma, e o pai sabe isso. Eu vim de Elford há pouco tempo pelo mesmo caminho que os seus homens tomaram para ir até lá e, se ela estivesse nesse trilho, ter-nos-íamos encontrado. Acha que eu a deixaria ir a algum lado sozinha à noite, quer fosse para Elford, quer fosse de volta para cá? Se nos tivéssemos encontrado, estaríamos juntos agora... onde quer que fosse.

- Há um caminho mais seguro pela estrada - disse De Perronet. - Mais longo, mas igualmente rápido a cavalo, e mais seguro. Se ela foi, de facto, para Elford, pode ter ido por esse caminho. Certamente que não se arriscaria a ir pelo mesmo caminho que os seus homens tinham tomado.

A sua voz era seca e fria e o rosto intimidativo, mas ele era um homem prático e tencionava não perder energia nem paixão nos afectos equivocados de um rapaz inexperiente. Estes não ameaçavam a sua posição. O casamento que desejava tinha sido combinado e aceite, e não havia necessidade de desistir dele, nem ele o faria. O que importava agora era encontrar a rapariga sã e salva.

- É possível que o tenha feito - concordou Cenred, encorajado. - O mais provável é que o tenha feito. Se chegar a Elford, estará em segurança. Mas vamos mandar alguém atrás dela pela estrada e não deixar nada ao acaso.

- Eu vou voltar por esse caminho - propôs Roscelin, ansiosamente, e, num salto, estava a dirigir-se para a porta do salão, quando De Perronet o deteve, puxando-lhe pela manga.

- Não, tu não! Eu desconfio que, se se encontrassem, não voltaríamos a ver qualquer de vós. Deixemos Cenred ir à procura da irmã e tenho a certeza de que, quando todo este tumulto terminar, ela voltará para dizer o que lhe vai na mente. E quando ela o fizer, meu rapaz, é melhor que aceites o que ela disser e que mantenhas a língua dentro dos dentes.

Roscelin não gostou que lhe tocassem, nem de ser chamado “rapaz” por um homem cuja altura e capacidade ele conseguia igualar, embora não o igualasse em idade e segurança. Libertou o braço e impediu mais afrontas com um ar carregado.

- Se Helisende for encontrada sã e salva, se a deixarem em paz para dizer o que lhe vai na mente, não na sua, meu senhor, nem na do meu pai, nem na de qualquer outro homem, seja ele padre, rei ou qualquer outra coisa, eu fico satisfeito. E, em primeiro lugar - disse ele, voltando-se para o pai com uma expressão que mediava entre o desafio e a súplica -, encontre-a, deixe-me vê-la bem de saúde e tratada com gentileza. Que mais importa agora?

- Eu próprio irei - disse Cenred com renovada autoridade e voltando a passos largos para o solar, para ir buscar a capa que tinha despido.

Mas ninguém iria sair de Vivers nessa noite. Mal Cenred acabara de calçar de novo as botas e, nas cavalariças, os cavalariços tinham acabado de pegar nas selas e nos arreios, quando se ouviu a azáfama de meia dúzia de cavaleiros a entrar no átrio, o toque de chamada e resposta ao portão, o tilintar de arreios e o som surdo de cascos no chão gelado.

Todos os que estavam no interior se apressaram a abrir a porta para ver quem poderia ser, a uma hora tão avançada da noite. Edred e os seus companheiros tinham ido a pé e contava-se que regressassem a pé, e ali estava um grupo bem montado a chegar. Os archotes saíram para a escuridão, Cenred saiu, seguido de perto por Roscelin e De Perronet e vários criados.

No pátio, os archotes tremulantes chamejavam, diminuíam e chamejavam de novo sobre o rosto de ossos fortes e do corpo massivo de Audemar de Clary enquanto ele descia da sela e atirava as rédeas a um cavalariço que surgira a correr. Atrás dele vinha Edred, o administrador, e os cavalariços que tinham sido enviados a Elford, montados agora em cavalos de De Clary, juntamente com três homens de Audemar.

Cenred desceu apressadamente os degraus para os receber.

- Meu senhor - disse ele, dirigindo-se, num tom formal, ao seu amigo e suserano. - Não estava à espera de vos ver esta noite, mas vindes em boa altura e sois muito bem-vindo. Deus sabe que provavelmente vos vamos causar problemas, como Edred vos deve ter dito... Um homicídio dentro da vossa jurisdição é difícil de acreditar, mas assim é.

- Foi o que ouvi dizer - disse Audemar. - Vamos para dentro e conta-me a história toda. Não se pode fazer nada antes da manhã. - Ao entrar na sala, os seus olhos recaíram sobre Roscelin, e ele registou o seu rosto sério e nada arrependido e disse num tom tolerante: - Tu aqui, rapaz? Pelo menos disso eu estava à espera. - Era óbvio que a razão mais profunda do degredo de Roscelin não era segredo para Audemar, e ele sentia uma certa pena pelo rapaz que o levava a compreender a sua loucura. Quando passou por ele, bateu-lhe com força no ombro e arrastou-o com ele para o solar. Roscelin resistiu ao ímpeto, agarrando com força na manga do seu senhor.

- Meu senhor, há mais a dizer. Senhor - apelou ele com veemência para o pai -, diga-lhe! Se ela partiu com destino a Elford, onde poderá estar agora? Meu senhor, Helisende desapareceu, saiu a cavalo sozinha, o meu pai acredita que deve ter ido para Elford... por minha causa! Mas eu vim pelo caminho pior e não a vi. Será que ela chegou lá em segurança? Tire-me desta ansiedade... ela foi pela estrada principal? Ela está em segurança em Elford?

- Não está, não! - Surpreendido com esta nova preocupação, Audemar lançou um olhar penetrante ao filho, depois ao pai e novamente ao filho, tendo bem a noção das tensões que os afligiam. - Acabámos de chegar pela estrada principal e não vimos sinal dela nem de qualquer outra mulher. Numa estrada ou noutra, um de nós ter-se-ia encontrado com ela. Vamos! - disse ele, pondo o braço livre à volta de Cenred e levando-o consigo. - Vamos entrar e juntar tudo o que sabemos para o utilizarmos com bom senso amanhã à luz do dia. Minha senhora, deve ir descansar, tudo o que podia ser feito antes de amanhecer já foi feito e, a partir de agora, assumirei a responsabilidade. Não há necessidade de passar a noite em vigília.

Não existia qualquer dúvida sobre quem mandava ali. Às suas palavras, Emma apertou as mãos num gesto de gratidão, lançou um olhar afectuoso ao marido e ao filho e afastou-se docilmente para descansar o melhor que conseguiria antes do nascer do dia. Do interior do solar, Audemar olhou uma vez em volta, um olhar abrangente bastante amável, mas cuja autoridade era inconfundível e que dispensava a presença de todos os outros. Os seus olhos recaíram sobre os dois beneditinos que aguardavam discretamente na orla da cena, reconheceu-os com um aceno de cabeça de reverência pelo seu hábito e sorriu.

- Boa noite, Irmãos - disse Audemar, encerrando a porta com firmeza atrás de si e fechando-se no interior do solar com os perturbados membros da casa de Vivers e com o aspirante a seu familiar.

 

- Ele tem razão! - disse o Irmão Haluin, estendido na cama, no crepúsculo, antes do amanhecer, acordado e agora liberto do seu longo silêncio na orla do caos de outros homens. - Boa noite, Irmãos, e adeus! Não vai haver casamento. Não pode haver casamento, agora não existe noiva. E mesmo que ela voltasse, este casamento não pode prosseguir como se não tivesse acontecido nada que lançasse tantas dúvidas sobre ele. Quando aceitei o fardo, porque mesmo então era um fardo um tanto pesado, não havia qualquer motivo para pôr em causa a possibilidade de aquela ser a melhor decisão, por mais penosa que fosse. Agora existem razões para a questionar.

- Eu penso - disse Cadfael, escutando a voz baixa, deliberada, à medida que Haluin apalpava o seu caminho em direcção a uma resolução - que não tens pena de ter sido libertado da tua promessa.

- Não, não tenho pena. Tenho muita pena, Deus sabe-o, de uma mulher ter morrido, pena de estas crianças serem infelizes sem que haja remédio para isso. Mas agora eu não seria responsável perante Deus por unir a rapariga a qualquer homem a não ser que recupere a certeza que perdi. Ainda bem que ela se foi embora, e rezo que para um refúgio seguro. E a única coisa que temos agora a fazer - disse o Irmão Haluin - é irmo-nos embora. Já não temos nenhum papel a desempenhar aqui. De Clary disse-nos isso claramente. E Cenred ficará satisfeito por nos ver pelas costas.

- E tu tens uma promessa a completar, sem mais motivos para demoras. É verdade! - disse Cadfael, dividido entre o alívio e a pena.

- Já demorei demasiado tempo. É altura de reconhecer como as minhas penas são pequenas - disse Haluin, inflexivelmente - e como é grande o papel que escolhi. Fiz a escolha por causa de mim próprio, agora com a vida que me resta agirei por um motivo mais meritório.

Esta viagem, por conseguinte, pensou Cadfael, não foi em vão. Pela primeira vez desde a sua fuga do mundo, doente de culpa e perda, ele aventurara-se de novo no mundo e encontrara-o cheio de dor, na qual a sua própria dor tinha caído e se perdera, como uma gota de chuva no mar. Durante todos aqueles anos ele tinha sido, exteriormente, cumpridor dos seus deveres, obedecendo a todas as regras da Ordem e, interiormente, agonizara na solidão. A sua verdadeira vocação tinha início naquele momento. Uma vez esclarecido, Haluin podia muito bem ser feito do mesmo material que os santos. Quanto a mim, eu sou um homem incorrigível.

Intimamente, ele não queria sair de Vivers sem que nada tivesse sido resolvido. Tudo o que Haluin dissera era verdade. A noiva tinha desaparecido, não podia haver casamento, eles não tinham desculpa para permanecerem ali por mais tempo e Cenred já não precisava deles. Na verdade, ele ficaria muito satisfeito de os ver partir. Mas Cadfael não estava satisfeito por se ir embora, voltando as costas a um assassinato por vingar, com a justiça a não cumprir a sua função, um erro que talvez nunca fosse corrigido.

Era também verdade que Audemar de Clary era o suserano ali, um homem de força e determinação, e competia-lhe lidar com os crimes ocorridos dentro da sua jurisdição. Não havia nada que Cadfael lhe pudesse dizer que Cenred não lhe tivesse já dito.

E, afinal de contas, o que sabia Cadfael, de facto, sobre o assunto? Que Edgytha estivera ausente várias horas antes de morrer, uma vez que já havia neve no chão quando ela caiu. Que ela devia estar de regresso a Vivers, tal como tencionara. Que tivera bastante tempo para ir até Elford. Que não tinha sido roubada. O assassino tinha-a simplesmente morto e abandonado, não agindo como os salteadores. Se não o tinha feito para a impedir de avisar Roscelin - pois isso seria credível apenas na viagem de ida -, então para a calar, por outro motivo, antes de ela conseguir regressar a Vivers. No entanto, que ligação havia entre Elford e Vivers excepto o facto de o jovem Roscelin ter sido banido para lá, para servir Audemar? Que outro segredo existiria cuja revelação se temia excepto o do casamento planeado?

Mas Edgytha não chegara a ver Roscelin, não falara com ele, nem tinha ido ter com Audemar nem com alguém da sua casa. Por conseguinte, se ela tivesse ido a Elford, por que é que ninguém a vira? E se ela não tivesse ido a Elford, onde é que tinha ido?

Por isso, se não fosse o que ele, juntamente com o seu anfitrião e anfitriã, tinha suposto desde o início, o que era o gato que Edgytha tinha ido procurar, para colocar no meio dos pombos de Cenred?

E com toda a probabilidade, ele nunca conheceria as respostas a estas perguntas, nem saberia que destino aguardava a rapariga perdida e o rapaz infeliz, bem como os pais deste, angustiados e dilacerados pela preocupação com eles. Era uma pena! Mas não havia nada a fazer, eles já não podiam invadir a família despedaçada de Cenred e abusar da sua incómoda hospitalidade. Assim que a casa começasse a acordar, eles deviam despedir-se e partir para Shrewsbury. Ninguém sentiria a sua falta. E era altura de voltarem para casa.

O dia amanheceu cinzento, sob um céu ligeiramente nublado mas com nuvens altas e não ameaçando mais quedas de neve. Só alguns fios e traços de branco permaneciam ao longo das bases das paredes e debaixo das árvores e dos arbustos e a geada estava a ceder. Não seria um mau dia para viajantes.

Muito cedo, a casa estava acordada e activa. Os criados de Cenred despertaram do seu breve sono, de olhos turvos e sombrios, conscientes de que não teriam descanso durante o resto do dia. O que quer que tivesse sido decidido na conferência solene que tivera lugar no solar durante a noite, quaisquer que fossem os possíveis locais de asilo que tivessem sido sugeridos como abrigos seguros para Helisende, era certo que Audemar teria patrulhas a percorrer todas as estradas e a fazer perguntas em todas as cabanas, para o caso de alguém, algures, ter visto Edgytha ou falado com ela, ou ter reparado numa figura furtiva e solitária à espreita no caminho que ela tomara. Eles já estavam a reunir-se no pátio, a selar os cavalos, a apertar arreios e a aguardar estoicamente as suas ordens, quando Cadfael e Haluin, calçados e vestidos para a estrada, compareceram perante Cenred.

Quando se aproximaram, ele estava a conversar com o seu administrador no meio da actividade do salão e virou-se cortesmente para eles, mas com um olhar inexpressivo como se, com estas preocupações mais graves, se tivesse esquecido de alguma vez os ter visto. A recordação veio-lhe de imediato à mente, mas não lhe provocou qualquer prazer, apenas um gesto de contrição hospitaleira.

- Irmãos, peço-vos desculpa, tenho-vos negligenciado. Não permitam que os nossos problemas vos perturbem. Utilizem a minha casa como se fosse vossa.

- Meu senhor - disse Haluin -, agradecemos-lhe toda a sua amabilidade, mas temos de partir. Eu já não lhe posso ser útil. Já não há pressa, uma vez que já não há segredos. E nós temos os nossos deveres à espera em casa. Viemos aqui para nos despedirmos.

Cenred era demasiado honesto para fingir qualquer relutância em se separar deles e não levantou qualquer objecção.

- Protelei o vosso regresso para meu próprio benefício - disse ele num tom pesaroso - e não serviu de nada. Desculpem ter-vos arrastado para esta questão tão deplorável. Acreditem, pelo menos, que a minha intenção era boa. Têm o meu consentimento para partir. Desejo-vos uma viagem tranquila.

- E a si, meu senhor, desejamos que encontre a dama em segurança e que Deus vos oriente em todas as perplexidades - disse Haluin.

Cenred não ofereceu cavalos para a primeira etapa da viagem, como Adelais tinha feito para todo o percurso. Ele precisava de todos os cavalos que tinha à sua disposição. Mas ficou a observar as duas figuras de hábito, o saudável e o aleijado, a descer lentamente os degraus que se seguiam à porta do salão, a mão de Cadfael junto do cotovelo de Haluin, pronta para o apoiar se fosse necessário, as mãos de Haluin, já calosas de agarrar as hastes das muletas, tensas e cautelosas a cada passo. No pátio, eles atravessaram a azáfama dos preparativos e aproximaram-se do portão. Cenred tirou os olhos deles, aliviado por se ter visto livre de uma complicação e, com um ar decidido, ainda que fatigado, voltou o rosto para os restantes.

Roscelin, impaciente com a demora, estava junto do portão com as rédeas na mão, deslocando, inquieto, o peso de um pé para o outro e aguardando impacientemente que o pai ou Audemar desse ordens para montar. Ele lançou um olhar preocupado aos dois monges enquanto estes se aproximavam e, depois, mais animado, deu-lhes os bons-dias e até sorriu através da máscara cinzenta distorcida da sua própria ansiedade.

- Vão partir para Shrewsbury? É uma boa decisão. Espero que façam boa viagem.

- E tu, que a tua busca tenha um final feliz - disse Cadfael.

- Feliz para mim? - disse o rapaz, com o rosto novamente ensombrado. - Não estou à espera disso.

- Se a encontrares sã e salva e solteira até ela decidir casar-se, isso será uma felicidade razoável. Duvido que possas pedir muito mais. Por enquanto - disse Cadfael, cautelosamente - aceita o que cada dia tiver de bom e sê grato por isso, e quem sabe que mais poderá ser acrescentado?

- Está a falar de impossibilidades - disse Roscelin, implacavelmente. - Mas sei que me deseja bem, e aceito o que diz como tal, como é sua intenção.

- Onde irão primeiro procurar Helisende? - perguntou o Irmão Haluin.

- Alguns de nós irão de novo a Elford, para se certificarem de que, afinal de contas, ela não conseguiu passar por nós e ir até lá. E a todas as casas senhoriais próximas, para saber se alguém a viu ou a Edgytha. Ela não pode ter ido longe. - Ele sofrera sinceramente e ficara zangado por causa de Edgytha, mas o “ela” que expulsava todos os outros da sua mente era Helisende.

Deixaram-no impaciente e angustiado, mais inquieto do que o cavalo que se mexia e batia com as patas no chão, desejoso de partir. Quando olharam para trás, do exterior do portão, já ele tinha o pé no estribo e, atrás dele, os restantes caçadores estavam a pegar nas rédeas para montar. Voltariam primeiro a Elford, para o caso de Helisende se ter escapado por entre os seus dedos, evitando os cavaleiros em ambos os caminhos e chegando em segurança ao seu refúgio. Cadfael e Haluin tomariam a direcção oposta para oeste. Para chegarem às luzes da casa senhorial, eles tinham virado um pouco a norte da estrada. Não voltaram pelo mesmo caminho e viraram imediatamente para oeste, por um trilho que seguia ao longo da cerca da casa senhorial. Quando chegaram ao limite do enclave, ouviram os caçadores de Audemar partir e viraram-se para os ver sair do portão, alongando-se num longo fio multicolor que se foi desvanecendo em direcção a leste e desapareceu entre as árvores da primeira cintura e arvoredo.

- E este é o fim da história? - perguntou Haluin, subitamente pesaroso. - E nunca ficaremos a saber como tudo vai terminar! Pobre rapaz, com o seu amor sem esperança. Toda a sua consolação neste mundo deve ser vê-la feliz, se é que será alguma vez possível ela ser feliz sem ele. Eu sei - disse o Irmão Haluin, com uma compaixão que não estava manchada por qualquer autocomiseração que ainda subsistisse - o que eles estão a sofrer.

Mas parecia que, de facto, para eles, aquele incidente estava encerrado, e não fazia qualquer sentido olhar para trás. Voltaram os rostos para oeste e prosseguiram com firmeza ao longo deste caminho ainda não testado, com o sol-nascente atrás deles a projectar as suas sombras alongadas na erva húmida.

- Por este caminho - disse Cadfael, orientando-se pensativamente quando pararam a meio do dia para comer a sua refeição de pão, queijo e uma fatia de toucinho fumado no abrigo de um outeiro coberto de arbustos - acho que não vamos passar por Lichfield. Calculo que já estejamos a passar a norte. Não tem importância, encontraremos uma cama algures antes do anoitecer.

Entretanto, o dia estava límpido e seco, e os campos por que passavam eram agradáveis, se bem que esparsamente povoados, possibilitando-lhes menos encontros com seres humanos do que acontecera na estrada que atravessava directamente Lichfield. Tendo dormido tão pouco, não iam muito depressa, mas avançavam perseverantemente e aceitavam o descanso que lhes era oferecido ao longo do caminho, sempre que uma cabana solitária proporcionava a hospitalidade de um banco junto da lareira e alguns minutos de conversa.

Com a aproximação da noite, levantou-se um vento suave, avisando-os de que eram horas de procurar abrigo. Estavam numa zona que ainda sofria com a severa utilização a que estivera sujeita cinquenta anos atrás. O povo destas partes não vira com bons olhos a chegada dos Normandos e tinha pago o preço da sua obstinação. Aqui e ali, viam-se restos de propriedades desertas a desfazer-se em erva e amoreiras silvestres, bem como ruínas de moinhos a apodrecer suavemente dentro do seu próprio riacho coberto de vegetação. Os povoados eram poucos e distantes uns dos outros. Cadfael começou a perscrutar a paisagem à procura de indícios de um tecto habitado.

Um homem de idade que apanhava lenha no meio de árvores velhas endireitou as costas curvadas para retribuir as suas saudações e espreitou com curiosidade para eles de dentro do seu capuz de serapilheira.

- Daqui a menos de meia milha, Irmãos, verão à direita a cerca de um convento. Ainda está em construção, ainda é quase todo de madeira, mas a igreja e o claustro são de pedra, de certeza que os conseguem ver. Só há duas ou três casas no povoado, mas as irmãs recebem viajantes. Certamente que arranjam uma cama lá. - E acrescentou, olhando para os seus hábitos negros: - Elas pertencem à vossa ordem, é um convento beneditino.

- Eu não sabia que havia um convento beneditino por estes lados - disse Cadfael. - Como se chama ele?

- Tem o mesmo nome do povoado, que se chama Farewell. Só tem três anos. Foi o bispo De Clinton que o fundou. Serão bem recebidos lá.

Eles agradeceram-lhe e deixaram-no a atar e a pegar o seu enorme feixe de lenha, e viram-no partir para casa na direcção oposta, enquanto prosseguiam, animados, em direcção a oeste.

- Lembro-me - disse Haluin - de ter ouvido qualquer coisa sobre este local, ou, pelo menos, sobre os planos do bispo para fundar um novo convento aqui, perto da sua catedral. Mas só ouvi o nome Farewell quando... lembras-te?... Cenred falou nele na noite em que chegámos a Vivers. A única casa beneditina existente nesta zona, disse ele, quando perguntou de onde nós éramos. Temos sorte, ainda bem que viemos por este caminho.

Nesta altura, com o crepúsculo a fechar-se sobre eles, ele começava a ficar cansado, apesar do ritmo calmo que tinham estabelecido. Ficaram ambos satisfeitos quando o caminho os levou até um pequeno relvado verde ladeado por três ou quatro cabanas, e viram, para além destas, a longa cerca clara da nova abadia e o tecto da igreja acima dela. O caminho conduziu-os a uma modesta casa de porteiro, de madeira. Tanto o sólido portão como o gradeamento estavam fechados mas, quando puxaram o sino, uma sucessão de ecos voou na distância para o interior e, ao fim de alguns minutos, viu-se luz e ouviram-se passos leves a saltitar em direcção a eles, oriundos de dentro da cerca.

O gradeamento abriu-se e revelou um rosto redondo, rosado e jovem, que lhes sorria. Grandes olhos azuis examinaram os seus hábitos e tonsuras e reconheceram neles membros da mesma Ordem.

- Boa noite, Irmãos - disse uma voz aguda, juvenil, alegremente afectada. - É bastante tarde para andarem na estrada. Podemos oferecer-lhes um tecto e descanso?

- Era o que vínhamos pedir - respondeu Cadfael, entusiasticamente. - Podem alojar-nos por esta noite?

- E durante mais tempo, se necessitarem - disse ela num tom alegre. - Homens da Ordem serão sempre bem-vindos aqui. Nós ficamos um pouco escondidas e ainda não somos muito conhecidas e, com a casa ainda em construção, oferecemos menos conforto, diria eu, do que algumas casas mais antigas, mas temos espaço para hóspedes como os Irmãos. Espere um pouco até eu destrancar a porta.

Ela já estava a fazê-lo, eles ouviram o ferrolho recuar e o trinco da cancela erguer-se, e, depois, a porta abriu-se num exuberante gesto de boas-vindas, e a porteira fez-lhes sinal para que entrassem.

Ela não podia, pensou Cadfael, ter mais de dezassete anos, e era nova no seu noviçado, uma daquelas filhas supérfulas da pequena nobreza pouco endinheirada, para as quais sobrava pouco dinheiro para o dote, e com poucas perspectivas de um casamento vantajoso. Era baixa e suavemente arredondada, não muito atraente mas fresca e saudável como pão fresco, e reluzia abençoadamente de entusiasmo com a sua nova vida e, ao que tudo indicava, sem saudades do mundo que abandonara. A satisfação de ocupar um cargo de confiança favorecia-a, o mesmo sucedendo à touca branca e ao hábito preto que emoldurava o seu rosto alegre e franco.

- Vieram de longe? - perguntou ela, olhando com preocupação para o passo esforçado de Haluin.

- De Vivers - disse Haluin, tranquilizando-a rapidamente. - Não é longe e viemos devagar.

- E ainda vão para muito longe?

- Para Shrewsbury - disse Cadfael -, onde pertencemos à abadia de São Pedro e São Paulo.

- Fica muito distante - disse ela, sacudindo a cabeça. - Devem estar a precisar de descansar. Importam-se de esperar aqui na guarita enquanto digo à Irmã Ursula que tem hóspedes? A Irmã Ursula é a nossa hospitaleira. O senhor bispo pediu que viessem duas irmãs mais velhas e experientes de Polesworth passar uma temporada connosco, para instruir as noviças. Somos todas muito novas, e há tanto a aprender, para além de todo o trabalho que temos de fazer no edifício e no jardim. E eles enviaram-nos a Irmã Ursula e a Irmã Benedicta. Sentem-se e aqueçam-se durante alguns minutos, eu já volto. - E foi-se embora com o seu passo leve, dançante, tão alegre na sua vocação para o claustro como qualquer das suas irmãs seculares poderia estar perante um casamento iminente mais mundano. - Ela é verdadeiramente feliz - disse o Irmão Haluin, admirado e satisfeito. - Não, neste caso, não é uma segunda escolha. Eu acabei por descobrir isso, mas ela sabe-o desde o início. Se isto é obra das irmãs de Polesworth, elas devem ser mulheres de sabedoria e graça.

A Irmã Ursula, a hospitaleira, era uma mulher alta e magra com cerca de cinquenta anos e um rosto vincado e experiente, ao mesmo tempo sereno, resignado, e até mesmo ligeiramente divertido, como se tivesse visto e passado a aceitar todas as extravagâncias do comportamento humano, e nada agora seria capaz de a surpreender ou desconcertar. Se a outra instrutora emprestada for como esta, pensou Cadfael, então, estas raparigas inexperientes de Farewell tiveram sorte.

- São muito bem-vindos - disse a Irmã Ursula entrando energicamente na guarita seguida da jovem porteira sorridente. - A abadessa terá muito gosto em recebê-los amanhã de manhã, mas aquilo de que mais devem estar a precisar agora é de comida, descanso e uma cama, sobretudo porque ainda têm uma viagem muito longa à vossa frente. Venham comigo, há um aposento preparado para visitantes ocasionais e os nossos próprios irmãos são extremamente bem-vindos.

Ela conduziu-os para o exterior da guarita até um pátio exterior estreito de onde se via a igreja à sua frente, um modesto edifício de pedra em que eram evidentes os sinais do trabalho em curso, com pedra de cantaria e madeira, cordas e andaimes empilhados de encontro à parede, indicando que nada ali estava terminado. Mas em apenas três anos elas tinham construído a igreja e toda a estrutura do convento, com excepção da zona sul, em que apenas o piso inferior que alojava o refeitório estava completo.

- O bispo forneceu-nos a mão-de-obra e uma dotação generosa - disse a Irmã Ursula -, mas a construção ainda vai demorar alguns anos. Entretanto, vivemos com simplicidade. Não nos falta nada do que é necessário e não desejamos nada que esteja para além das nossas necessidades. Suponho que, quando todas estas casas de madeira forem substituídas por construções de pedra, o meu trabalho aqui estará terminado e voltarei para Polesworth, onde há muitos anos fiz os meus votos, mas não sei se não preferiria ficar aqui, se puder escolher. Quando se cria uma coisa desde o seu nascimento, sentimos por ela o mesmo que se tivesse nascido do nosso próprio corpo.

A cerca do enclave acabaria, sem dúvida, por ser substituída por um muro de pedra, e as construções de madeira que a orlavam, a enfermaria, os edifícios domésticos, a hospedaria e os armazéns, seriam reconstruídos gradualmente um a um. Mas a rápida visão do claustro que tinham tido de passagem mostrara que as ervas do pátio já tinham sido cortadas e que uma bacia de pedra pouco funda continha água para atrair os pássaros.

- No próximo ano - disse a Irmã Ursula -, já teremos flores. A Irmã Benedicta, a nossa melhor jardineira em Polesworth, veio para cá comigo, o pátio é o seu domínio. As coisas crescem para ela, os passarinhos vêm comer-lhe à mão. Eu nunca tive esse dom.

- E a vossa abadessa também veio de Polesworth? - perguntou Cadfael.

- Não, o Bispo De Clinton trouxe a Madre Patrice de Con-ventry. Nós duas teremos de regressar à nossa própria casa quando já não formos necessárias aqui, a não ser que, como eu já disse, nos deixem ficar cá o resto da vida. Precisaríamos da autorização do bispo, mas, quem sabe, ele talvez a conceda.

Para além do claustro, abria-se um pequeno pátio privado, com a hospedaria a um extremo, perto da cerca clara. O pequeno quarto que aguardava os primeiros viajantes era escuro e cheio do calor e da fragrância da madeira, mobilado com simplicidade com duas camas e uma mesa pequena, um crucifixo na parede e um pequeno oratório debaixo dele.

- Utilizem-no como se fosse vosso - disse a Irmã Ursula, alegremente. - Eu vou mandar trazer o jantar. Chegaram demasiado tarde para as Vésperas, mas, se quiserem juntar-se a nós para as Completas, irão ouvir o sino. Se quiserem, podem utilizar a nossa igreja para rezar. Ainda é nova mas, quanto mais boas almas receber sob o seu tecto, melhor. E agora, se tiverem tudo o que precisam, deixo-vos a descansar.

No abençoado silêncio virginal desta abadia nova de Farewell, o Irmão Haluin adormeceu profundamente assim que voltaram das Completas e dormiu profundamente durante toda a noite, até depois do nascer de um dia suave e límpido, livre de geada. Quando acordou, já Cadfael estava a pé, a preparar-se para rezar o ofício divino matinal e fazer as suas orações privadas na igreja.

- O sino já tocou para as Matinas? - perguntou Haluin, levantando-se apressadamente.

- Não, e, a julgar pela luz do dia, ainda falta cerca de meia hora. Se quisermos, poderemos ter a igreja só para nós durante algum tempo.

- Essa é uma boa ideia - disse Haluin, saindo com ele de bom grado para o pequeno pátio e atravessando-o até à porta sul que ia dar ao claustro. A erva do pátio estava húmida e verde, a palidez branqueada do Inverno tinha desaparecido da noite para o dia. A tímida névoa de botões de flor que mal se via alguns dias antes tinha agora uma cor evidente, tendo-se transformado num suave véu verde. Só seriam necessários alguns dias amenos e um pouco de sol para que fosse subitamente Primavera. Na água límpida e pouco funda da bacia de pedra, pequenos pássaros trinavam e sacudiam-se, conscientes da alteração. O Irmão Haluin aproximou-se da pequena igreja de Farewell através de testemunhos de esperança. Certamente que esta primeira igreja seria aumentada e substituída mais tarde, quando as necessidades imediatas de construção fossem satisfeitas, a sua dotação assegurada e o seu prestígio estabelecido. No entanto, este primeiro edifício, embora fosse pequeno e simples, seria sempre recordado com afecto, e a sua substituição seria lamentada por aquelas que, tal como a Irmã Ursula e a Irmã Benedicta, tinham assistido ao seu nascimento e nele tinham servido.

Celebraram o ofício divino juntos na tranquilidade obscura da pedra, ajoelhados perante o pequeno pavio da lamparina do altar, e depois rezaram as suas orações privadas em silêncio. Por cima deles, a luz tornou-se mais suave e clara, o primeiro raio velado do sol-nascente atravessou a cerca do enclave e tocou nas pedras superiores do muro a leste, tornando-o cor-de-rosa-pálido, e o Irmão Haluin ainda estava ajoelhado, com as muletas caídas a seu lado.

Cadfael foi o primeiro a levantar-se. Já não devia faltar muito para as Matinas, e a presença de dois homens no seu service religioso matinal poderia ser uma inconveniente distracção para irmãs jovens, mesmo que eles fossem monges da mesma Ordem. Ele atravessou a porta sul e ficou a olhar para o pátio, à espera que Haluin precisasse da sua ajuda para se levantar.

De pé, ao lado da bacia de pedra ao centro, estava uma irmã muito magra, direita e composta, a dar comida aos pássaros. Desfazia o pão em migalhas em cima da orla larga da bacia e colocava os pedaços na palma da mão estendida, e à sua volta as asas das aves agitavam-se e vibravam intrepidamente. O hábito preto acentuava a sua elegância, e o seu porte possuía uma graciosidade juvenil que trespassou, penetrante, a memória de Cadfael. A pose da cabeça sobre o pescoço comprido e os ombros direitos, a cintura estreita e elegante, a mão comprida a dar comida aos pássaros, certamente que ele já as tinha visto antes, noutro local, sob uma outra luz enganadora. Agora, ela estava ao ar livre, banhada pela suave luz da manhã, e ele não podia acreditar que estivesse enganado.

Helisende estava aqui em Farewell, Helisende num hábito de freira. A noiva tinha fugido ao seu insuportável dilema e tomado o véu em vez de casar com alguém que não fosse o seu infeliz amante Roscelin. É verdade que ainda não podia ter feito os votos, mas as outras irmãs poderiam ter decidido dar-lhe a protecção imediata do hábito, antes mesmo de ela ter dado início ao seu noviciado.

Ela tinha um ouvido apurado, ou talvez estivesse à espera de ouvir passos leves na zona ocidental do claustro, onde ficava o dormitório das irmãs. Pois ela tinha claramente ouvido o som de alguém a aproximar-se daquela direcção e virou-se, sorridente, para o recém-chegado. O movimento em si, pausado e tranquilo, lançou dúvidas sobre a juventude que ele vira nela um momento antes e mostrou-lhe um rosto que lhe era totalmente desconhecido.

Não era uma jovem inexperiente, mas sim uma mulher serena e madura. A revelação que tivera lugar no salão de Vivers descreveu um círculo completo, da ilusão para a realidade, da rapariga para a mulher, tal como na altura tinha girado para trás, da mulher para a rapariga. Não era Helisende, nem sequer era muito parecida com Helisende, excepto na testa alta de marfim, na suave e melancólica forma oval do rosto e nos belos olhos cândidos e vulneráveis. Na figura e no porte, sim, eram iguais. Se ela se virasse novamente de costas, ter-se ia tornado outra vez a imagem da filha.

Pois quem mais poderia aquela mulher ser senão a mãe-viúva, que preferira tomar o véu em Polesworth a ver-se forçada a efectuar um segundo casamento. Quem mais a não ser a Irmã Benedicta, enviada para aqui para o novo convento do bispo para ajudar a estabelecer uma tradição segura e um exemplo abençoado para as irmãs jovens de Farewell? A Irmã Benedicta que encantava as flores e as fazia crescer, e a quem os pássaros vinham comer à mão? Ainda que o resto da casa de Vivers não o soubesse, Helisende devia ter tido conhecimento de que ela se tinha mudado. Helisende soubera onde procurar refúgio quando dele necessitara. Para onde iria ela a não ser para junto da mãe?

Ele estivera tão intensamente concentrado na mulher no pátio que não ouvira nada vindo do interior da igreja, até se aperceber do ruído das muletas nas pedras e deu meia volta, quase com um sentimento de culpa, para regressar aos seus deveres. Haluin tinha conseguido pôr-se de pé sem ajuda e surgiu agora ao lado de Cadfael, olhando com prazer para o pátio, onde a luz enevoada do sol e a sombra húmida se misturavam.

Os seus olhos recaíram sobre a freira, e parou abruptamente, oscilando sobre as muletas. Cadfael viu os olhos escuros ficarem fixos e muito abertos, o seu olhar parado a adquirir a incandescente imobilidade de uma visão ou de um transe, e os lábios sensíveis a mover-se quase sem emitirem um som, formando as lentas sílabas de um nome. Quase sem som, mas não completamente, porque Cadfael ouviu-o.

Num tom de espanto, de alegria e dor, e todos estes sentimentos em extremos, com um ser possuído por um êxtase religioso:

- Bertrade! - murmurou o Irmão Haluin.

 

Não havia qualquer engano no nome, nem qualquer dúvida sobre a certeza absoluta com que fora pronunciado. Se, por um momento, Cadfael sentiu uma saudável e sensata incredulidade, no momento seguinte abandonou-a, e ela foi imediatamente varrida por uma enorme torrente de esclarecimento. Em Haluin não havia absolutamente dúvida nenhuma. Ele soube o que viu, deu-lhe o seu nome verdadeiro, inesquecível, e ficou ali perdido de espanto, tremendo com a intensidade do que acabara de tomar conhecimento. Bertrade!

O primeiro relance que tivera da filha dela tinha-o atingido no coração, a cópia vista na semiobscuridade de encontro à luz era muito semelhante ao original. Mas assim que Helisende tinha avançado à luz do archote, a semelhança tinha-se desvanecido, e a visão dissolvera-se. Aquela era uma rapariga que ele não conhecia. Agora ela aparecera outra vez e virara para ele o rosto que recordava com saudade, e não havia mais dúvidas.

Então, ela não tinha morrido. Cadfael tentou compreender, em silêncio, o que sabia. O túmulo que Haluin procurara era uma ilusão. Ela não morrera da poção que lhe roubara a criança, ela tinha sobrevivido a esse perigo e a essa dor, para se casar com um marido idoso, vassalo e amigo da família da mãe, e para lhe dar uma filha que era a imagem dela própria na constituição e no porte. E ela tinha feito o possível por ser uma esposa e uma mãe fiel até à morte do seu velho senhor, mas, depois da morte deste, voltara as costas ao mundo e seguira o seu primeiro amante até ao claustro, escolhendo a mesma Ordem, tomando para si própria o nome do fundador, ligando-se de uma vez por todas à mesma disciplina para a qual Haluin fora impelido.

Então, por que é que, argumentou um diabinho persistente na mente de Cadfael, por que é que tu... tu, não, Haluin!... viste no rosto da rapariga de Vivers algo inexplicavelmente familiar? Quem se estava a esconder de ti nas profundas cavernas da memória, recusando-se a ser reconhecido? Tu nunca tinhas visto a rapariga antes, nunca na vida tinhas posto os olhos na sua mãe. Quem te olhou do fundo dos olhos de Helisende e depois colocou um véu entre eles, não foi Bertrade de Clary.

Tudo isto lhe fervilhou na mente no instante da revelação, no breve momento antes de a própria Helisende emergir das sombras da zona ocidental e entrar no pátio para ir ter com a mãe. Ela não vestira o hábito, usava o mesmo vestido que tinha usado na noite anterior à mesa do irmão. Estava pálida e grave, mas tinha a calma do convento à sua volta, aqui estava segura de todas as compulsões, tinha tempo para pensar e para se aconselhar.

As duas mulheres encontraram-se, e as bainhas das suas saias descreveram dois trilhos mais escuros no verde-prateado da erva húmida. Viraram-se as duas lentamente para a porta por onde Helisende tinha saído, prontas para entrar e ir ter com o resto da irmandade para as Matinas. Elas iam-se embora, desapareceriam e nada seria respondido, nada ficaria resolvido, nada se tornaria claro! E Haluin continuava a oscilar em cima das muletas, imóvel e mudo. Ele ia perdê-la outra vez, ela já estava praticamente perdida. As duas mulheres quase tinham chegado à parede ocidental, as cordas da perda estavam esticadas quase ao ponto de se partirem.

- Bertrade! - exclamou Haluin, num enorme grito de terror e desespero.

O grito alcançou-as, ecoando surpreendentemente de todas as paredes e fê-las dar meia volta e olhar com uma expressão de alarme e espanto para a porta da igreja. Haluin libertou-se do seu aturdimento com um enorme arquejo e avançou destemidamente para o pátio, com as muletas a ferir a erva macia.

Quando viram um homem desconhecido a dirigir-se apressadamente a elas, as mulheres recuaram instintivamente mas, quando olharam uma segunda vez para o seu hábito e viram como ele era aleijado, estancaram a sua fuga por pura compaixão para permitir que ele se aproximasse e deram até alguns passos impulsivos para ir ao seu encontro. Por um momento, não houve nesse movimento mais do que isso, a pena de um homem aleijado.

Ele tivera demasiada pressa de chegar ao pé delas e vacilou e, por um momento, desequilibrou-se, prestes a cair, mas a rapariga, rápida na sua compaixão, deu um salto em frente para o apoiar nos seus braços. O peso dele a cair nos braços dela fê-los rodar, depois recuperaram o equilíbrio com as faces quase coladas uma à outra, e Cadfael, espantado, ofuscado de assombro, observou os dois rostos lado a lado, durante um longo momento.

Assim, agora ele tinha finalmente a sua resposta. Agora, ele sabia tudo o que havia a saber, tudo excepto o tipo de fúria e azedume que podia levar um ser humano a fazer uma coisa tão vil e cruel a outro. E até mesmo essa resposta não seria difícil de encontrar.

Foi nesse momento de total esclarecimento que Bertrade de Clary, olhando ansiosamente para o rosto do desconhecido, soube que ele não era um estranho e chamou-o pelo nome:

- Haluin!

Não houve mais nada, não, nessa altura, apenas o encontro dos olhos, o reconhecimento mútuo e a compreensão de ambas as partes dos erros e sofrimentos do passado, nunca totalmente compreendidos antes, amargos e terríveis por um momento, depois apagados por uma grande torrente de gratidão e alegria. Porque, no momento em que os três ficaram calados e imóveis, a olhar uns para os outros, todos eles ouviram o pequeno sino das Matinas a tocar no dormitório e souberam que as irmãs iriam descer as escadas em fila para entrarem, em procissão, na igreja.

Não houve mais nada, não nessa altura. As mulheres recuaram, lançando longos olhares de espanto, e deram meia volta para responder à chamada e ir ter com as irmãs. E Cadfael avançou para o pátio para pegar no braço do Irmão Haluin e para o conduzir suavemente, como uma criança sonâmbula, de regresso à hospedaria.

- Ela não morreu - disse Haluin, rigidamente erecto à beira da cama. Disse-o muitas vezes, registando o milagre numa repetição mais próxima duma litania do que de uma oração: - Ela não morreu! Era falso, falso, falso! Ela não morreu!

Cadfael não proferiu uma única palavra. Ainda não era altura de falar sobre tudo o que estava por detrás desta revelação.

De momento, a mente chocada de Haluin não conseguia ver nada para além daquele facto, da alegria de saber que aquela cuja morte, ocorrida por culpa sua, ele chorara durante tanto tempo, estava viva, de boa saúde e num refúgio seguro, e da perplexidade e da mágoa de terem permitido que ele a chorasse durante tanto tempo.

- Tenho de falar com ela - disse Haluin. - Não me posso ir embora sem ter conversado com ela.

- Não irás - garantiu-lhe Cadfael.

Agora era inevitável, era necessário que tudo ficasse esclarecido. Eles tinham-se encontrado, tinham-se visto, agora ninguém conseguiria desfazer isso, o cofre selado tinha-se aberto, os segredos saltavam para fora dele, agora já ninguém conseguia fechar outra vez a tampa.

- Não podemos partir hoje - disse Haluin.

- Não vamos partir. Espera aqui pacientemente - disse Cadfael. - Vou tentar pedir uma audiência à abadessa.

A abadessa de Farewell, trazida de Coventry pelo Bispo De Clinton para dirigir o seu novo convento, era uma mulher anafada, com talvez cerca de quarenta e cinco anos, um rosto cheio, avermelhado, e olhos castanhos astutos que pesavam e mediam tudo com um só olhar e julgavam com segurança. Ela estava sentada muito direita num banco sem almofadas, numa pequena sala espartana, e, quando Cadfael entrou, fechou o livro que tinha à sua frente.

- Teremos muito gosto, Irmão, em prestar-lhe os nossos serviços. A Ursula disse-me que é da abadia de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury. Tencionava convidá-lo, bem como ao seu companheiro, para jantar comigo, e faço agora esse convite. Mas ouvi dizer que tinha solicitado este encontro, antecipando qualquer gesto meu. Suponho que deve ter um motivo. Sente-se, Irmão, e diga-me que mais tem a pedir-me.

Cadfael sentou-se ao lado dela, debatendo mentalmente se lhe devia contar muito ou pouco. Ela era uma mulher bastante capaz, não só de preencher por si própria quaisquer lacunas, mas também, supôs ele, uma mulher de escrupulosa discrição que guardaria para si o que quer que lesse nas entrelinhas.

- Eu venho, Reverenda Madre, pedir-lhe que autorize um encontro, em privado, entre o meu Irmão Haluin e a Irmã Benedicta.

Ele viu as sobrancelhas dela erguerem-se, mas os pequenos olhos vivos por baixo delas permaneceram imperturbáveis e argutos.

- Quando eram jovens - disse ele - conheceram-se bem. Ele estava ao serviço da mãe dela e, estando tão próximos numa casa e sendo da mesma idade, um rapaz e uma rapariga juntos, apaixonaram-se. Mas as pretensões de Haluin não foram nada do agrado da mãe dela, e esta empenhou-se em separá-los. Haluin foi despedido e proibido de contactar com a rapariga, que foi persuadida a efectuar um casamento mais do agrado da família. Sem dúvida que conhece a história dela desde então. Haluin entrou para a nossa casa, obviamente pela razão errada. Não é bom uma pessoa voltar-se para a vida espiritual por desespero, mas muitos têm-no feito, como eu e a Irmã sabemos, e tornaram-se membros fiéis e honrosos das suas casas. Foi o que aconteceu com Haluin. E, não duvido, também com Bertrade de Clary.

Ele reparou no brilho dos olhos dela ao ouvir aquele nome. Havia muito pouco que ela não soubesse sobre o seu rebanho, mas, se sabia mais do que ele dissera a respeito desta mulher, não mostrou qualquer sinal nem fez qualquer comentário, aceitando tudo tal como ele contara.

- Parece-me - disse ela - que a história que me conta corre o risco de ser repetida noutra geração. As circunstâncias não são exactamente as mesmas, mas o fim poderá muito bem ser idêntico. Acho que devemos reflectir sobre como se deverá lidar com ela.

- Eu tenho isso em mente - disse Cadfael. - E como lidou com ela até agora? Desde que a rapariga veio a correr até si durante a noite? Porque há dois dias que toda a casa de Vivers percorre as estradas à procura dela.

- Eu creio que não - disse a abadessa. - Porque ontem eu mandei informar o irmão que ela está aqui em segurança e que lhe pede que a deixe em paz durante algum tempo para poder pensar e rezar. Penso que, dadas as circunstâncias, ele respeitará o seu desejo.

- Circunstâncias que ela lhe contou - disse Cadfael com convicção - na totalidade. Isto é, tanto quanto ela saiba.

- Contou. - Então, a Irmã tem conhecimento da morte de uma mulher e do casamento combinado para Helisende. E também sabe qual é o motivo desse casamento?

- Sei que ela tem um grau de parentesco demasiado próximo do jovem. Sim, ela disse-me. Mais, imagino, do que conta ao seu confessor. Não precisa de recear por Helisende, desde que aqui esteja, ela está a salvo de ser importunada e tem a companhia e o conforto da sua mãe.

- Ela não poderia estar em melhor lugar - disse Cadfael, fervorosamente. - Então, no que diz respeito a estes dois que mais nos preocupam agora, devo dizer-lhe que foi dito a Haluin que Bertrade tinha morrido, e ele acreditou nisso durante todos estes anos, e, além disso, considerava-se culpado pela morte dela. Esta manhã, pela graça de Deus, ele viu-a à sua frente viva e de boa saúde. Eles não trocaram quaisquer palavras a não ser os seus nomes. Mas eu penso que seria melhor que trocassem, se o autorizar. Eles servirão melhor nas suas distintas vocações se tiverem paz de espírito. Além disso, têm o direito de saber que o outro se sente bem e está feliz.

- E acha que - disse a abadessa com determinação - eles se sentirão felizes? Depois... tal como antes?

- Mais e melhor do que antes - disse ele num tom de certeza. - Posso falar pelo homem, e julgo que a abadessa deve conhecer a mulher igualmente bem. Se se separarem assim, sem trocarem uma palavra, sentir-se-ão atormentados até ao fim dos seus dias.

- Eu não gostaria de responder a Deus por isso - disse a abadessa, com um breve sorriso triste. - Bem, eles terão a sua hora e farão as pazes. Não pode fazer mal, e é possível que seja muito benéfico. Tencionam ficar cá mais alguns dias?

- O dia de hoje, pelo menos - disse Cadfael. - Pois tenho mais um pedido a fazer-lhe. Vou deixar o Irmão Haluin a seu cargo. Há uma coisa que tenho de fazer antes de voltar para casa. Não aqui! Empresta-me um cavalo das suas cavalariças?

Ela ficou a estudá-lo durante algum tempo e pareceu ter ficado veladamente satisfeita com o que viu, pois finalmente disse:

- Com uma condição.

- Qual é?

- Que, quando chegar a altura e quando os problemas acabarem, me conte a outra metade da história.

O Irmão Cadfael conduziu o seu cavalo emprestado para o pátio das cavalariças e montou sem pressa. O bispo tinha tido por bem proporcionar cavalariças adequadas para as suas próprias visitas, bem como dois robustos cavalos para remontas, para o caso de algum dos seus enviados passar por ali e utilizar a hospitalidade da abadia. Tendo-lhe sido dado liberdade para escolher, Cadfael escolhera naturalmente o de melhor aspecto e o mais jovem, um cavalo baio sólido e activo. A viagem que ele tinha em mente não era muito longa, mas, já agora, por que razão não havia de retirar dela o maior prazer possível durante o caminho? Haveria muito pouco prazer no final dela.

O Sol já ia alto quando passou o portão, um sol pálido a tornar-se mais brilhante e mais límpido à medida que o ar do dia aquecia em direcção à Primavera palpável. A neve fatal que caíra em Vivers seria a última neve do Inverno, completando, de uma forma apropriada, a peregrinação de Haluin, tál como a primeira queda de neve a iniciara.

A gaze verde de filigrana de botões de flores ao longo dos ramos dos arbustos e das árvores tinha explodido na tenra plumagem de folhas jovens. A erva húmida cintilava e, ao ser atingida pelo sol, exalava um vapor leve e fragrante. Tanta beleza e, atrás dele, enquanto cavalgava, ficava uma grande clemência, uma libertação justa e uma renovação da esperança. E, à sua frente, havia uma alma solitária que poderia ser salva ou perder-se.

Ele não tomou a estrada para Vivers. Não era ali que tinha uma questão urgente a resolver, embora pudesse bem regressar por aquele caminho. Parou uma vez para olhar para trás, e a longa linha da cerca da abadia desaparecera nas dobras da terra e, com ela, o povoado. Haluin estaria à espera, interrogando-se, à procura do caminho através de um sonho confuso, cheio de perguntas para as quais não podia ter resposta, dividido entre a crença e a incredulidade, entre a alegria receosa e a angústia rememorada, até a abadessa o mandar chamar para o encontro que finalmente tornaria tudo claro.

Cadfael seguiu lentamente até encontrar alguém a quem pudesse pedir orientações. Uma mulher que conduzia carneiros e borregos para o pasto na orla da aldeia parou de bom grado para lhe indicar a estrada mais directa. Ele não precisava de passar perto de Vivers, e ainda bem, pois não tinha a mínima vontade de se encontrar já com Cenred ou com os seus homens. Naquele momento, não tinha nada para lhes dizer e, na realidade, não era ele que devia contar o que teria de ser finalmente contado.

Uma vez no caminho que a sua informadora tinha indicado, cavalgou rápida e Resolutamente até desmontar junto do portão da casa senhorial de Elford.

Foi a jovem porteira qUe bateu suavemente à porta e quebrou a solidão angustiada do irmão Haluin, algumas horas mais tarde nessa manhã depois de o Sol ter perdido o seu véu, e a erva do pátio ter começado a secar. Ele olhou em volta quando ela entrou, à espera de ver Cadfael, e fitou-a com os olhos ainda bem abertos e cheios de espanto.

- A Madre Abadessa enviou-me - disse a rapariga, com uma suavidade resoluta, uma vez que ele quase parecia incapaz de compreender - para o chamar à sua sala. Se vier comigo, mostro-lhe o caminho.

Ele estendeu a mão obedientemente para as muletas.

- O Irmão Cadfael saiu e não voltou - disse ele lentamente, olhando à sua volta como um homem a despertar do sono. - Esta convocatória é tanbém para ele? Não devo esperar por ele?

- Não há necessidade - disse ela. - O Irmão Cadfael já falou com a Madre patrice e disse-lhe que tinha uma tarefa a cumprir agora. O irmão vai esperar o seu regresso aqui com calma. Vem?

Haluin pôs-se de pé e seguiu-a através do pátio traseiro até aos aposentos da abadessa, confiante como uma criança, embora metade da sua mente estivesse ausente. A pequena porteira acertou os seus passos ligeiros com o andar esforçado dele, conduzindo-o com agradável suavidade até à porta da sala, e virando-se para ele no limiar com um sorriso alegre, encorajador:

- Entre, é esperado.

Ela segurou a porta aberta para ele entrar, uma vez que ele precisava de ambas as mãos para as suas muletas. Ele atravessou o limiar a coXear, entrou na sala pouco iluminada que cheirava a madeira e parou perto da entrada para fazer uma vénia à Madre Superiora, mas ficou imóvel e trémulo enquanto os seus olhos se habituavam à luz suave. Porque a mulher que estava de pé à sua espera, imóvel e a sorrir maravilhosamente no centro da sala, com as mãos estendidas para o ajudar a aproximar-se, não era a abadessa mas sim Bertrade de Clary.

 

O cavalariço que atravessou calmamente o pátio para saudar o visitante e lhe perguntar o que pretendia não era Lothair nem Luc, mas sim um jovem magro que ainda não tinha vinte anos, com uma enorme cabeleira escura. Atrás dele, o pátio parecia esvaziado da sua habitual actividade, com apenas alguns criados a levar a cabo as suas tarefas de uma forma casual, como se todo o constrangimento tivesse abrandado. Pelos vistos, o dono da casa e a maior parte dos seus homens ainda estavam ausentes, à procura de quaisquer palavras que conduzissem ao assassino de Edgytha.

- Se veio à procura do senhor Audemar de Clary - disse o rapaz, imediatamente - está com pouca sorte. Ele ainda está em Vivers, por causa da mulher que foi morta há algumas noites. Mas o seu administrador está cá, se pretender alojamento é melhor falar com ele.

- Obrigado - disse Cadfael, entregando-lhe as rédeas -, mas não vim falar com Audemar de Clary. A minha missão é com a mãe dele. Eu sei onde são os seus aposentos de viúva. Se tomar conta do meu cavalo, vou perguntar à aia dela se a dama tem a bondade de me receber.

- Como quiser. O Irmão já cá esteve antes - disse o rapaz, semicerrando os olhos numa expressão de curiosidade a respeito deste visitante vagamente familiar. - Há apenas alguns dias, com outro monge de preto, aquele que andava de muletas e muito aleijado.

- É verdade - disse Cadfael. - E, nessa altura, falei com a dama, e ela não deverá ter-me esquecido, nem ao Irmão aleijado. Se ela me recusar uma audiência agora, deixá-la-ei em paz... mas penso que não vai recusar.

- Então, tente - concordou o cavalariço em tom de indiferença. - Ela ainda cá está com a criada, e sei que está em casa. Nos últimos dias, não tem saído de casa.

- Ela tinha dois palafreneiros consigo - disse Cadfael -, pai e filho. Nós travámos conhecimento com eles quando estivemos cá, eles tinham vindo de Shropshire com ela. Eu gostaria de conversar com eles depois, se não tiverem ido para Vivers com os homens do senhor Audemar.

- Oh, esses homens! Não, eles são homens dela e não dele. Mas também não estão cá. Partiram ontem muito cedo, numa incumbência dela. Para onde? Como é que eu havia de saber para onde? De regresso a Hales, provavelmente. É onde a velha dama vive a maior parte do tempo.

Gostaria de saber, pensou Cadfael, voltando-se para a habitação de Adelais situada no canto da muralha do enclave, gostaria realmente de saber como reagiria Adelais de Clary se soubesse que os cavalariços do seu filho se referiam a ela como “a velha dama”. Sem dúvida que, aos olhos daquele rapaz jovem, ela parecia velha como as colinas, mas ela acalentava e conservava o que fora uma grande beleza, e nada nem ninguém podia denegrir essa excelência. Por algum motivo, ela tinha escolhido para criada íntima alguém pouco atraente e com o rosto marcado pela varíola, e se rodeava de rostos feios e vulgares que faziam com que o seu próprio rosto brilhasse mais.

À porta da residência de Adelais, ele pediu uma audiência, e a mulher, Gerta, tratou-o com arrogância, protegendo a privacidade da sua ama e mostrando-se segura das suas funções. Ele não mandara dizer qualquer nome e, quando ela o viu, estancou, nada satisfeita por ver um dos beneditinos de Shrewsbury de volta tão depressa e tão inexplicavelmente.

- A minha dama não deseja receber visitas. Qual é o assunto sobre o qual precisa de a incomodar? Se necessita de alojamento e comida, o administrador do meu senhor Audemar tratará disso.

- O meu assunto - disse Cadfael - é só com a dama Adelais, e não diz respeito a mais ninguém. Diga-lhe que o Irmão Cadfael está outra vez cá, que ele veio da abadia de Farewell e que deseja falar com ela. Eu acredito que ela evite receber visitas. Mas julgo que não se vai recusar a falar comigo.

Ela não era tão ousada que se atrevesse a assumir a responsabilidade de lhe negar o pedido, embora se tivesse afastado com uma sacudidela da cabeça, e gostaria muito de trazer de volta uma resposta negativa. Pela expressão azeda do seu rosto, era óbvio que esse prazer lhe fora negado.

- A minha senhora manda-o entrar - disse, friamente, abrindo a porta para ele passar e entrar no aposento. E sem dúvida que ela estava à espera de ficar a ouvir o que se iria passar, mas os seus privilégios não iam tão longe.

- Deixa-nos - disse a voz de Adelais de Clary, da sombra profunda sob uma janela com as portadas fechadas. - E fecha a porta.

Desta vez, ela não tinha, aparentemente, as mãos ocupadas com tarefas femininas, não fingia estar a bordar nem a fiar, estava meramente sentada na semiescuridão, imóvel, com as mãos abertas sobre os braços da cadeira, agarrando as cabeças de leão esculpidas em que os mesmos terminavam. Não se moveu quando Cadfael entrou, não ficou surpreendida nem perturbada. Os seus olhos fundos fixaram-se nele com espanto e, pensou ele, sem arrependimento. Foi quase como se ela tivesse estado à sua espera.

- Onde deixou Haluin? - perguntou ela.

- Na abadia de Farewell - disse Cadfael.

Ela ficou em silêncio por um momento, olhando-o com um rosto imóvel e olhos brilhantes, com uma intensidade que ele sentiu com uma vibração no ar, antes mesmo de os seus olhos se habituarem à obscuridade, e ele observou os traços dela a surgirem gradualmente da escuridão, a escuridão em que ela decidira encarcerar-se. Depois, ela disse com uma determinação dura:

- Não voltarei a vê-lo.

- Não, não vai voltar a vê-lo. Quando isto terminar, voltamos para casa.

- Mas o Irmão - disse ela -, sim, durante todo este tempo eu sempre pensei que voltaria. Mais cedo ou mais tarde, havia de voltar. Ainda bem, talvez! Agora as coisas estão para além do meu controlo. Bem, diga o que veio dizer. Eu prefiro ficar calada.

- Isso não pode fazer - disse Cadfael. - É a sua história.

- Então, seja o meu cronista. Conte-a! Faça-me recordar! Deixe-me ouvir como irá soar aos ouvidos do meu confessor, se algum padre voltar a ouvir a minha confissão. - Ela estendeu subitamente uma mão comprida, fazendo-lhe imperiosamente sinal para que se sentasse, mas ele ficou de pé onde a conseguia ver mais claramente, e ela não se mexeu para evitar os olhos dele, nem fez quaisquer concessões à fixidez do seu olhar. O seu rosto belo e orgulhoso estava composto e mudo, não admitindo nada, não negando nada. Só os olhos escuros a arder nas suas órbitas fundas eram eloquentes e, mesmo assim, usavam uma linguagem que ele não conseguia traduzir totalmente.

- A senhora sabe muito bem o que fez, há muitos anos - disse Cadfael. - Impôs um castigo terrível a Haluin por ter ousado amar a sua filha e a ter engravidado. Perseguiu-o até ao convento para onde a sua inimizade o impelira... demasiado cedo, mas os jovens desesperam depressa. Obrigou-o a fornecer-lhe os meios para um aborto e mandou-lhe dizer depois que os mesmos tinham matado a mãe e a criança. Durante todos esses anos, fê-lo sentir essa terrível culpa, que foi o seu tormento ao longo da vida. Disse alguma coisa?

- Não - disse ela. - Continue! Mal começou.

- É verdade, mal comecei. Aquela poção de hissope e flor de lúcio que obteve dele nunca foi utilizada. A sua finalidade era apenas envenená-lo, não fez mal a mais ninguém. O que fez com ela? Deitou-a fora? Não, muito antes de lhe ter pedido as ervas, assim que o expulsou da sua casa, suponho, tinha levado Bertrade daqui para Elford e tinha-a casado com Edric Vivers. Deve ter sido isso, certamente que isso foi feito a tempo de dar à criança que ela esperava, quando nascesse, um pai credível, ainda que pouco provável. Sem dúvida que o velho ficou orgulhoso de ainda ser suficientemente potente para gerar um filho. Por que é que alguém havia de questionar a data do nascimento, uma vez que a senhora trabalhou tão depressa?

Ela não se tinha mexido nem pestanejado, os seus olhos nunca abandonaram o seu rosto, não admitindo nada, não negando nada.

- Nunca teve receio - perguntou ele - de que alguém no convento soubesse que Bertrade de Clary era mulher de Edric Vivers e que não estava bem segura na sua sepultura? Que ela tinha dado uma filha ao marido idoso? Bastava apenas um viajante ocasional que gostasse de mexericos.

- Esse risco não existia - disse ela simplesmente. - Que contacto houve alguma vez entre Shrewsbury e Hales? Nenhum, até ele dar a queda e conceber a sua peregrinação. Era ainda muito menos provável que houvesse contactos com casas senhoriais de outro condado. Não havia qualquer risco.

- Bem, prossigamos. Viva, levou-a para longe daqui e deu-a a um marido. Viva, a criança nasceu. Pelo menos, teve essa misericórdia para com a rapariga... por que é que não teve nenhuma para com ele? Porquê um ódio tão amargo e vingativo que a fez conceber uma vingança tão terrível? Não pelos erros da sua filha, não. Por que é que ele não havia de ser um partido adequado para ela? Vinha de uma boa família, seria herdeiro de uma bela casa senhorial, se não tivesse tomado o hábito. O que é que tinha contra ele? A senhora era uma mulher bonita, habituada à admiração e a homenagens. O seu senhor estava na Palestina. E lembro-me bem quando Haluin veio ter comigo, com dezoito anos, ainda sem tonsura. Vi-o como a senhora o vira durante alguns anos, na sua solidão celibatária... ele era donairoso...

Ele deixou-se ficar por ali, pois os lábios longos e resolutos dela tinham-se finalmente separado numa afirmação deliberada. Ela ouvira-o sem vacilar, não fazendo qualquer esforço para o fazer calar, nem proferindo qualquer acusação. Agora, ela respondeu.

- Demasiado donairoso! - disse ela. - Eu não estava habituada a ser rejeitada, nem sequer sabia cortejar. E ele era demasiado inocente para me compreender. Como as crianças assim ofendem sem ofensa! Por isso, se eu não o podia ter - disse ela, secamente -, ela também não. Nenhuma mulher o teria, e ela muito menos.

Estava dito, e ela manteve o que dissera, sem acrescentar nada como atenuante; depois de ter falado, ficou a reflectir sobre o assunto, vendo de novo, como se tudo se tivesse passado com outra mulher, o que já não sentia com a mesma intensidade, o desejo e a raiva.

- Há mais - disse Cadfael -, muito mais. Há a questão da sua mulher Edgytha. Edgytha era a confidente de confiança de que precisava, a que conhecia a verdade. Foi ela que foi enviada para Vivers com Bertrade. Totalmente leal e dedicada a si, ela guardou o seu segredo e foi cúmplice da sua vingança durante todos estes anos. E a senhora confiava que ela o guardasse para sempre. Por isso, tudo corria a seu favor, até Roscelin e Helisende crescerem e passarem a amar-se, não como companheiros de brincadeiras mas como homem e mulher. Sabendo mas esquecendo que o mundo consideraria esse amor um amor envenenado, culpado e proibido pela igreja. Quando o segredo se tornou numa barreira entre eles, onde não devia haver qualquer barreira, quando Roscelin foi banido para Elford, e o casamento com De Perronet ameaçava uma separação definitiva, então, Edgytha já não conseguiu suportar a situação. Ela veio a correr para aqui durante a noite... não para falar com Roscelin, mas sim para falar consigo! Para lhe suplicar que contasse finalmente a verdade, ou que lhe desse autorização para ela a contar por si.

- Gostava de saber - disse Adelais -, como é que ela sabia que eu estava ao seu alcance.

- Ela sabia porque eu lhe disse. Inadvertidamente, fi-la sair no meio da noite para lhe suplicar que levantasse as sombras que recaíam sobre duas crianças inocentes. Foi por um mero acaso que mencionei que tínhamos falado consigo aqui em Elford. Eu fi-la vir a correr para si e para a morte, do mesmo modo que foi Haluin quem fez com que a senhora viesse para cá, com pressa de impedir que ele fizesse uma descoberta perigosa. Nós, que só lhe desejámos felicidades, fomos os instrumentos da sua ruína. Agora, é melhor pensar no que lhe resta que ainda possa ser salvo.

- Continue! - disse ela num tom ríspido. - Ainda não terminou.

- Não, ainda não. Então, Edgytha veio suplicar-lhe que agisse correctamente. E a senhora recusou! Mandou-a voltar para Vivers, desesperada. E já sabe o que lhe aconteceu no caminho.

Ela não negou. O seu rosto estava sombrio e rígido, mas os olhos nunca vacilaram.

- Será que ela ia dizer a verdade, mesmo contra a sua proibição? Nunca saberemos a resposta. Mas alguém que lhe era igualmente leal ouviu o suficiente para compreender a ameaça que recairia sobre si se ela o fizesse. Alguém teve medo dela, seguiu-a e silenciou-a. Oh, não foi a senhora! A senhora teve outras ferramentas para usar. Mas disse alguma coisa aos ouvidos deles?

- Não! - disse Adelais. - Isso eu não fiz! Anão ser que o meu rosto falasse por mim. E, se o fez, mentiu. Eu nunca lhe teria feito mal.

- Eu acredito em si. Mas qual deles a seguiu? O pai e o filho são iguais, não teriam qualquer dúvida em morrer por si, e sem dúvida que um deles matou por si. E eles foram-se embora daqui. Voltaram para Hales? Não, duvido, não é suficientemente longe. A que distância fica a casa senhorial mais longínqua do seu filho?

- Não os vai encontrar - disse Adelais segura de si. - Quanto ao que fez, o que eu poderia ter evitado, não sei, nem nunca vou querer saber. Calei-lhes a boca quando eles quiseram falar. Porquê? Essa culpa, tal como tudo o resto, é só minha, não cederei qualquer parte dela. Sim, mandei-os para longe. Eles não vão pagar a minha dívida por mim. Sepultar a Edgytha com respeito é fraca expiação. A confissão, a penitência e até mesmo a absolvição não podem devolver uma vida.

- Há uma reparação que ainda pode ser feita - disse Cadfael. - Além disso, acho que, durante todos estes anos, também teve que pagar um preço, tal como sucedeu com Haluin. Não se esqueça de que eu vi o seu rosto quando ele apareceu com o seu corpo arruinado à sua frente. Eu ouvi a sua voz quando exclamou: “Que é que te fizeram?” Tudo o que lhe fez, fez também a si própria e, uma vez feito, não pôde ser desfeito. Agora pode libertar-se, se assim decidir.

- Continue! - disse Adelais, embora soubesse bastante bem o que aí vinha. Ele reconheceu-o pela compostura que ela tinha assumido durante toda a conversa. Certamente que ela estivera à espera na sala mal iluminada que o dedo de Deus apontasse.

- Helisende não é filha de Edric mas sim de Haluin. Não existe uma única gota de sangue Vivers nas suas veias. Não há nada que a impeça de se casar com Roscelin, se quiser. Quem sabe se aqueles dois fazem bem em se casar? Mas, pelo menos, a sombra do afecto incestuoso pode e deve ser levantada de cima deles. A verdade tem que vir a lume, uma vez que já veio em Farewell. Haluin e Bertrade estão lá juntos, fazendo as pazes, dando paz um ao outro, e Helisende, a filha deles, está com eles, e a verdade já saiu da sua sepultura.

Ela sabia, soubera desde a morte da velha, que as coisas tinham finalmente chegado a esse ponto e se, até aí, desviara deliberadamente os olhos e se recusara a reconhecê-lo, não poderia continuar a fazê-lo. Ela também não era o tipo de mulher que, uma vez decidida, delegasse uma tarefa difícil noutras pessoas, nem que fizesse as coisas pela metade, quer para bem, quer para mal.

Ele não a pressionaria. Recuou para lhe dar espaço e tempo e deixou-se ficar afastado a observar a sua imobilidade disciplinada e medindo mentalmente o peso de dezoito anos de silêncio de amor e ódio implacavelmente contidos. As primeiras palavras que ouvira dela, mesmo neste extremo, tinham sido sobre Haluin, e ele ainda conseguia ouvir a vibração de dor na sua voz quando ela exclamou: “O que é que te fizeram?”

Adelais levantou-se abruptamente da cadeira e, com passos longos, decididos, foi até à janela e abriu as portadas para deixar entrar o ar, a luz e o frio. Ficou durante algum tempo a olhar para o pátio silencioso, para o céu pálido, pontilhado de pequenas nuvens e para a gaze verde que velava os ramos das árvores por detrás da muralha do enclave. Quando se voltou de novo para ele, ele viu o seu rosto à luz e viu, como numa visão dupla, tanto a beleza imorredoira como a poeira que o tempo tinha lançado sobre ela, as linhas tensas da sua garganta comprida tornadas flácidas, o cinzento das cinzas no cabelo preto enrolado, as rugas que se tinham reunido à volta da boca e dos olhos, a rede de veias finas a manchar as faces que outrora eram brancas como marfim. E ela era forte, não perderia facilmente o seu apego ao mundo e recusar-se-ia a sair dele com suavidade. Ela iria viver muito tempo e revoltar-se-ia contra o ataque implacável da velhice até que a morte a derrotasse e, ao mesmo tempo, a libertasse. Pela própria natureza de Adelais, a sua penitência estava assegurada.

- Não! - disse ela num tom de autoridade abrupta e imperiosa, como se ele tivesse feito uma sugestão com a qual estivesse em total desacordo. - Não, eu não quero um advogado, nenhum homem me libertará de qualquer parte do que é meu. O que tem que ser dito agora, di-lo-ei eu. Mais ninguém! Se alguma vez seria dito se o Irmão nunca cá não tivesse vindo, com a sua mão no cotovelo do Haluin e os seus olhos calmos que eu nunca consegui ler, não sei. O Irmão sabe? Mas isso agora não interessa. O que falta fazer, fá-lo-ei eu.

- Ordene-me que me vá embora - disse Cadfael -, que eu irei. A senhora não precisa de mim.

- Como advogado, não. Como testemunha, talvez! Porque é que há-de perder o final? Sim! - disse ela, com os olhos a brilhar. - Irá a cavalo comigo e assistirá ao final. Devo-lhe uma realização, tal como devo uma morte a Deus.

Ele foi a cavalo com ela, tal como ela decretara. Por que não? Ele tinha de voltar para Farewell, e a estrada que passava por Vivers era tão boa como qualquer outra. E quando ela decidia fazer algo, não podia haver demoras nem recusas.

Ela montou o cavalo com botas e esporas como um homem, ela que nos últimos anos se contentara em sentar-se decorosamente na sela para senhoras atrás do palafreneiro, como competia a uma dama da sua idade e dignidade. Ela montou com a segurança de um homem, erecta e à vontade na sela, com as rédeas em baixo. E cavalgou rápida mas perseverantemente, avançando sobre as suas perdas tão vigorosamente como fazia em relação aos ganhos.

Cadfael, cavalgando a seu lado, não conseguia deixar de perguntar a si próprio se ela ainda se sentiria tentada a ocultar alguma parte da verdade, para ocultar a última traição. Mas a tranquilidade do seu rosto negava essa possibilidade. Não haveria qualquer evasão, nem súplica, nem desculpa. Ela tinha feito o que tinha feito, e era isso o que ia contar. E só Deus saberia se estava arrependida.

 

Chegaram ao portão de Vivers uma hora depois do meio-dia. O portão estava aberto e o tumulto tinha desaparecido, no pátio não havia mais do que as actividades normais. Era evidente que o mensageiro da abadessa tinha sido recebido e que tinham acreditado nele e, quer de bom grado ou com relutância, Cenred acedera ao desejo de Helisende de ficar sozinha no seu santuário. Abandonada uma busca, os homens de Audemar estariam livres para perseguir um assassino. Que eles nunca encontrariam! Na noite e na neve, quem poderia encontrar-se ao relento para testemunhar a facada desfechada no bosque, ou atribuir um nome ou um rosto ao assassino? Mesmo que tivesse havido uma testemunha, quem nestas partes, para além dos membros da casa de Audemar, reconheceria um palafreneiro de Hales distante?

O administrador de Cenred estava a atravessar o pátio quando Adelais chegou e, ao reconhecer a mãe do suserano do seu senhor, apressou-se a ir ajudá-la a desmontar mas, antes de ele chegar ao pé dela, já ela tinha descido da sela. Ela endireitou a saia de xadrez e olhou em volta, à procura de um empregado do filho. Cadfael tinha visto por si próprio que os caçadores não tinham regressado a Elford, nem estavam à vista aqui. Por um minuto, ela franziu a testa, impaciente com a possibilidade de ter que esperar e conter por mais tempo tudo o que tinha a dizer. Uma vez decidida, desagradava-lhe ter de aguardar. Ela olhou para além da profunda vénia do administrador na direcção ao salão.

- O seu senhor está lá dentro?

- Está sim, minha senhora. Tenha a bondade de entrar.

- E o meu filho?

- Ele também, minha senhora. Regressou há apenas alguns minutos, os seus homens ainda estão fora com os nossos, fazendo perguntas em todas as casas num raio de várias milhas.

- Uma perda de tempo! - disse ela, mais para si própria do que para ele, e cerrou os lábios sobre o motivo. - Ainda bem! Estão os dois aqui. Não, não precisa de lhes dizer que cheguei. Eu própria o farei. Quanto ao Irmão Cadfael, desta vez ele veio a acompanhar-me, não como hóspede.

Até àquele momento, era duvidoso que o administrador tivesse sequer olhado para o segundo cavaleiro, mas agora ele fê-lo, especulando, supôs Cadfael, sobre o que trouxera um visitante beneditino de volta tão cedo, particularmente sem o seu companheiro. Mas não houve tempo para perguntar. Adelais já se dirigia vigorosamente para os degraus que conduziam ao salão, e Cadfael seguiu-a obedientemente, como se fosse, de facto, o seu capelão doméstico, deixando o administrador a olhar para ambos com uma expressão de dúvida e espanto.

No salão, a refeição do meio-dia já tinha terminado, e os criados estavam ocupados a levantar as mesas e a empilhá-las a um lado. Adelais passou por eles sem uma palavra nem um olhar, direita à porta coberta por uma cortina que separava o aposento interior. Vindo de dentro, abafado pelos cortinados, ouvia-se o murmúrio de vozes, e os tons baixos de Cenred distinguiam-se da voz mais leve e mais jovem de Jean de Perronet. O pretendente ainda não se tinha ido embora, tencionando aguardar esforçada se não pacientemente. Ainda bem, reflectiu Cadfael. Ele tinha o direito de conhecer a enorme dimensão do obstáculo que se colocava agora no seu caminho. Era justo. De Perronet não tinha feito nada de desonroso, tinha o direito de ser tratado com cortesia.

Adelais afastou a cortina e abriu a porta. Estavam todos lá, conferenciando em voz baixa sobre uma situação que os deixara frustrados e impotentes, presos à inacção, uma vez que até mesmo o gesto de tentar encontrar o assassino de Edgytha estava, nesta altura, condenado ao fracasso. Se qualquer homem da região soubesse alguma coisa, certamente que já se saberia. E se Audemar pensasse sequer em contar os criados da mãe e erguer um dedo de desconfiança contra os que faltavam, ela colocar-se-ia, imovível, entre ele e eles. Onde quer que Lothair e Luc pudessem estar agora, por mais perplexos e castigados se sentissem com a repulsa dela pelo que eles tinham feito erradamente por si, ela não iria permitir que lhes fosse debitado o preço da dívida que considerava sua.

Ao som da porta a abrir-se, todos eles viraram rapidamente a cabeça para ver quem entrara, pois a entrada dela fora demasiado abrupta e confiante para ser um dos criados. Ela olhou em volta do círculo de rostos surpreendidos, Audemar e Cenred à mesa com vinho à sua frente, Emma um pouco afastada, sentada ao bastidor mas sem prestar qualquer atenção ao trabalho e aguardando, com nervos tensos, que os acontecimentos se desenrolassem de uma forma mais confortável e que a vida retomasse o seu curso normal. E o desconhecido - Cadfael viu que Adelais nunca tinha posto a vista em cima de Jean de Perronet. O seu olhar demorou-se um pouco nele, observando e identificando o noivo. Por um instante, os seus lábios compridos contorceram-se ligeiramente num sorriso amargo, antes de os seus olhos pousarem em Roscelin.

Sozinho a um canto, de onde podia observar todos os outros, o rapaz estava sentado como se contemplasse uma batalha iminente, e encontrava-se preparado e armado, rígido e erecto no banco encostado à parede coberta por uma tapeçaria, de cabeça erguida e lábios cerrados. Ao que parecia, tinha aceite, muito contra a sua vontade, o desejo de Helisende de ser deixada em paz em Farewell, mas não perdoara a nenhum daqueles conspiradores que tinham planeado casá-la em segredo, roubando-lhe até mesmo a esperança perversa que o sustentava. O seu ressentimento contra os pais estendia-se, por contágio, a De Perronet, até mesmo a Audemar de Clary, para cuja casa ele fora banido para fazer desaparecer o obstáculo aos seus planos. Como poderia ele ter a certeza de que Audemar não participara em mais nada a não ser no exílio? Um rosto franco por natureza, alegre e bem disposto estava agora fechado e olhava para eles com uma expressão de desconfiança e inimizade. Adelais olhou para ele durante mais tempo do que para qualquer dos outros. Outro jovem demasiado donairoso para o seu próprio bem, atraindo o amor infeliz como a flor atrai a abelha.

O momento de surpresa terminou. Cenred pôs-se de pé com uma pressa hospitaleira e avançou com a mão estendida para pegar na mão da visitante e a conduzir a um lugar à mesa.

- Minha senhora, bem-vinda à minha casa! Sinto-me muito honrado!

E Audemar, menos satisfeito, de testa semifranzida:

- Minha senhora, o que a traz aqui? E sozinha! – Agradava-lhe mais que a mãe, com uma personalidade tão forte, se exilasse na distante casa senhorial de Hales e mantivesse ali a sua própria corte. Ao vê-los assim frente a frente, Cadfael viu que havia uma forte parecença entre os dois. Sem dúvida que existia afecto entre eles mas, depois de o filho se ter tornado adulto, seria difícil viverem juntos na mesma casa. - Não havia necessidade - disse Audemar - de vir até cá, não pode fazer nada que não tenha já sido feito.

Adelais permitira que a mão atenciosa de Cenred a conduzisse para o centro da sala mas, uma vez ali, resistiu a qualquer outro movimento e ficou de pé para que a vissem claramente, libertando a mão com um gesto autoritário.

- Sim - disse ela -, há necessidade. - E, mais uma vez, olhou longamente em redor dos rostos que a observavam. - E não vim sozinha. O Irmão Cadfael é o meu acompanhante. Ele veio da abadia de Farewell e regressará para lá quando nos deixar. - O seu olhar deslocou-se de um jovem para o outro, do noivo preferido para o apaixonado frustrado, ambos a olhá-la com desconfiança, conscientes de revelações iminentes, mas incapazes de adivinhar o que poderia seguir-se.

- Ainda bem - disse Adelais - que vos encontro reunidos, pois assim direi apenas uma vez o que tenho a dizer.

Nunca seria problema para ela, pensou Cadfael, observando-a, prender a atenção de todos os que a rodeavam, onde quer que ela fosse. Tornava-se de imediato o ponto focal em todas as salas em que entrava, a personalidade dominante em todas as reuniões. Agora estavam todos em silêncio, à espera das suas palavras.

- Pelo que ouvi, Cenred - disse ela -, tencionavas, há dois dias, casar a tua irmã, a tua meio-irmã, deveria eu dizer, com este jovem. O que é razoável, concordariam a igreja e o mundo, uma vez que ela se afeiçoara demasiado ao teu filho Roscelin, e ele a ela, e esse casamento afastaria também, da tua casa e do teu herdeiro, as sombras de uma ligação pecaminosa. Perdoa-me por falar sem rodeios, é demasiado tarde para o fazer de outra forma. Tu não tens culpa, sabendo apenas o que sabes.

- Que mais havia a saber? - perguntou Cenred, intrigado. - É bom que se fale sem rodeios. Eles são familiares próximos, como muito bem sabe! A senhora não teria tomado as mesmas medidas para afastar esse mal da sua neta, tal como eu tencionei fazer em relação à minha irmã? Sinto-me tão responsável por ela como pelo meu próprio filho, e ela é-me igualmente querida. Ela é sua neta. Lembro-me muito bem do segundo casamento do meu pai. Recordo-me do dia em que trouxe a noiva para cá, e do orgulho do meu pai na criança que ela lhe deu. Uma vez que há muito que ele morreu, eu devo a Helisende os cuidados de um pai, tanto como os de um irmão. Certamente que procurei protegê-la como ao meu filho. Continuo a desejar fazê-lo. Esta é apenas uma pequena demora no caminho. O senhor de De Perronet não retirou a sua pretensão, nem eu retirei a minha autorização.

Audemar tinha-se levantado da cadeira e estava a olhar para a mãe com a testa franzida e um rosto inexpressivo.

- Que mais há a dizer? - disse ele num tom calmo e, embora falasse em voz baixa e serena, nesta dúvida havia desagrado, e uma mulher de vontade menos implacável talvez a considerasse ameaçadora. Ela olhou-o nos olhos e ficou impassível.

- O seguinte: que tu te incomodaste desnecessariamente. Não existe qualquer barreira, Cenred, entre o teu filho e Helisende, a não ser a barreira que tu concebeste. Não existe qualquer perigo de incesto se eles se casassem e dormissem juntos esta noite. Helisende não é tua irmã, Cenred, ela não é filha do teu pai. Não existe qualquer gota de sangue Vivers nas suas veias.

- Mas isso é um disparate - protestou Cenred, sacudindo a cabeça ao ouvir uma afirmação tão incrível. - Toda esta casa a conhece desde que nasceu. O que diz é impossível. Por que é que conta uma história dessas, quando toda a minha gente pode testemunhar que ela nasceu da mulher legítima do meu pai, na sua cama nupcial, aqui nesta casa. - E concebida na minha - disse Adelais. - Não é de admirar que nenhum de vocês tenha contado os dias, eu não perdi tempo. A minha filha já estava à espera de um filho quando a trouxe para cá para se casar.

Puseram-se todos de pé, todos excepto Emma, que se encolheu, chocada, por detrás do seu bastidor, abalada pelas exclamações de ira e incredulidade que chocavam à sua volta como ventos contrários. Cenred ficara sem respiração, mas De Perronet clamava que aquilo era falso e que a dama estava louca, e Roscelin tinha-se levantado para o enfrentar, cintilante, meio incoerente, voltando-se do seu rival para Adelais, suplicando, exigindo que ela confirmasse que era verdade. Até que Audemar bateu com força com o punho na mesa e ergueu uma voz imperiosa para exigir silêncio. E, durante todo esse tempo, Adelais estava de pé, imóvel como uma estátua, ignorando o redemoinho de gritos à sua volta.

E, depois, fez-se silêncio, sem quaisquer exclamações, sem um único som, mal se ouvindo a respiração, enquanto eles olhavam longa e atentamente para ela, como se a verdade ou a falsidade do que ela dissera pudesse ser lida no seu rosto se a fitassem sem pestanejar durante tempo suficiente.

- A senhora sabe bem o que está a dizer? - perguntou Audemar, com uma voz baixa e controlada.

- Perfeitamente bem, meu filho! Sei o que estou a dizer, sei que é verdade. Eu sei o que fiz, sei que foi mal feito. Não preciso que o digam, eu própria o digo. Mas fi-lo, e nem eu nem vocês podem desfazer o que foi feito. Sim, enganei o senhor feudal Edric, sim, obriguei a minha filha a casar-se com ele, sim, coloquei um bastardo nesta casa. Ou, se preferirem, tomei medidas para proteger o bom nome e os bens da minha filha e garantir-lhe um estatuto honroso, tal como Cenred deseja fazer em relação à sua irmã. Será que Edric alguma vez se arrependeu no negócio? Acho que não. Será que ele se sentiu feliz com a sua suposta filha? Certamente que sim. Durante todos estes anos, deixei as coisas como estavam, mas, agora, Deus decidiu de outro modo, e não o lamento.

- Se isso for verdade - disse Cenred, respirando fundo. - A Edgytha sabia. Ela veio para cá com Bertrade, se estiver a dizer a verdade, tão tarde, então, ela devia ter sabido.

- Ela sabia - disse Adelais. - E lamento o dia em que lhe disse que não quando ela me suplicou que dissesse a verdade mais cedo, e lamento ainda mais que ela não possa estar hoje aqui para ser minha testemunha. Mas aqui está alguém que o pode fazer. O Irmão Cadfael veio da abadia de Farewell onde Helisende se encontra agora, e a sua mãe está lá com ela. E, por um estranho acaso - disse ela -, o pai também está. Já não me é possível esconder da verdade. Eu declaro-a contra a minha própria vontade.

- Ao que parece, escondeu-a durante bastante tempo, minha senhora - disse Audemar num tom sombrio.

- Escondi, sim, e não faço desta revelação uma virtude, quando ela já saiu da sua sepultura.

Houve um silêncio breve e profundo antes de Cenred perguntar lentamente:

- Diz que ele está lá agora... o pai dela? Em Farewell, com as duas?

- Eu só sei isso - disse ela - porque mo disseram. O Irmão Cadfael responder-vos-á.

- Eu vi-os lá, aos três - disse Cadfael. - É verdade.

- Então, quem é ele? - perguntou Audemar. - Quem é o pai dela?

Adelais retomou a sua história, sem nunca baixar os olhos.

- Ele foi escrivão na minha casa, era de boas famílias, apenas um ano mais novo do que a minha filha. Ele queria ser aceite como pretendente à sua mão. Recusei-o. Eles... tomaram medidas para me obrigar a aceitá-lo. Não, eu talvez esteja a julgá-los mal, o que eles fizeram pode não ter sido premeditado, mas sim feito num gesto de desespero, porque ela estava tão perdida de amor como ele. Despedi-o e trouxe-a para aqui apressadamente, para um casamento que Lorde Edric tinha proposto cerca de um ano antes. E eu menti e disse ao seu amado que ela tinha morrido. Menti-lhe, dizendo que Bertrade e a criança tinham morrido quando tentávamos libertá-la do seu fardo. Só agora é que ele soube que tinha uma filha.

- Então - quis Cenred saber -, como é que ele a encontrou agora, e ainda por cima num lugar tão pouco provável? Toda esta história surge de um modo tão estranho, vinda do nada, que eu não consigo acreditar.

- É bom que se habitue a ela - disse ela - porque nem o senhor nem eu conseguimos fugir à verdade nem alterá-la. Ele encontrou-a através da misericórdia de Deus. Que mais precisa de saber?

Cenred virou-se para Cadfael num gesto de apelo irritado.

- Irmão, uma vez que foi hóspede nesta casa, diga-me o que sabe sobre este assunto. Ao fim de tantos anos, esta é, de facto, uma história verdadeira? E como é que os três se encontraram agora, no fim de tudo?

- A história é verdadeira - disse Cadfael. - E é verdade que eles se encontraram, nesta altura já devem ter conversado. Ele encontrou-as porque, acreditando que a sua amada estava morta e tendo estado perto da sua própria morte alguns meses antes e tendo sido poupado, voltou os seus pensamentos para a mortalidade e decidiu que, uma vez que nunca voltaria a vê-la neste mundo, deveria fazer uma peregrinação à sua sepultura e rezar pela sua paz no outro. E, não a tendo encontrado em Hales, onde supôs que ela estivesse, veio até cá, meu senhor, à sua casa senhorial de Elford, onde a vossa família está sepultada. Agora, no caminho de regresso a casa, pela graça de Deus, a noite passada solicitámos alojamento na abadia de Farewell. Aí, a dama que era sua irmã está actualmente a servir de instrutora das noviças do novo convento do bispo. E foi para lá que Helisende fugiu, à procura de um refúgio de uma tensão demasiado dolorosa. E, assim, estão todos finalmente sob um mesmo tecto.

Após um momento de silêncio, Audemar disse suavemente:

- “A noite passada nós solicitámos alojamento na abadia de Farewell”. Já quase disse o suficiente, mas acrescente mais uma coisa... o nome dele!

- Ele entrou para o mosteiro há muito tempo. É um irmão meu da abadia de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury. O senhor já o viu, é o mesmo irmão que chegou comigo a Elford, percorrendo todo o caminho de muletas. Monge e padre, meu senhor Cenred, a quem pediu que casasse Helisende com o homem que tinha escolhido para ela. O nome dele é Haluin.

Agora tinham todos começado, espantados, a acreditar naquilo cujas implicações não conseguiam ainda compreender totalmente. Com olhares vidrados, foram-se apercebendo lentamente do que tudo isto deveria significar para eles. Para Roscelin, estremecendo e brilhando como um archote recentemente aceso, foi a súbita leveza estonteante e a libertação da culpa e da dor, o ar do dia passou a ser intoxicante como o vinho, e o mundo expandiu-se numa nova luz de esperança e alegria que lhe ofuscava os olhos e emudecia a língua. Para De Perronet, foi o desafio pungente de se ver confrontado com um forte rival quando não esperara qualquer conflito, e o endurecimento instintivo do seu orgulho e determinação de lutar pelo prémio ameaçado com todas as suas forças. Para Cenred, foi o desmoronar de todas as suas recordações familiares, de um pai que agora parecia diminuído, até mesmo senil, pela sua afectuosa aceitação de um logro, de uma irmã abruptamente transformada numa desconhecida, uma intrusa sem direitos na sua casa. Para Emma, calada e receosa no seu canto, o pesar de uma ofensa contra o seu senhor e a perda de alguém que quase considerava sua própria filha.

- Então, ela não é minha irmã - disse Cenred, lentamente, mais para si próprio do que para qualquer outra pessoa, repetindo rapidamente a frase para todos eles com uma ira súbita: - Ela não é minha irmã!

- Não - disse Adelais. - Mas até agora ela acreditava que era. A culpa não é dela, nunca a deves culpar.

- Ela não é da minha família. Não lhe devo nada, nem dote, nem terras. Ela não pode exigir nada de mim. - Falou com amargura e não num tom vingativo, lamentando o corte absurdo de um afecto forte.

- Nada. Mas ela é da minha família - disse Adelais. - As terras que a mãe herdou como viúva foram para Poleswoth quando ela tomou o véu, mas Helisende é minha neta e minha herdeira. As terras que eu possuo por direito próprio irão para ela. Não será pobre. - Ela olhou para De Perronet enquanto falava e sorriu, mas foi um sorriso irónico. Não havia necessidade de fazer com que o caminho dos amantes fosse demasiado fácil tornando a rapariga menos lucrativa e, por conseguinte, menos atraente aos olhos do rival.

- Minha senhora, está a interpretar-me mal - disse Cenred com uma fúria muda. - Esta casa tem sido a casa dela, e ela deverá continuar a considerá-la a sua casa. Para onde há-de ela ir? Fomos nós que ficámos subitamente mutilados, como membros amputados. O pai e a mãe estão ambos em conventos, e que orientação, que cuidados recebeu ela alguma vez de si? Quer seja ou não da família, o seu lugar é aqui em Vivers.

- Mas agora não há nada que o impeça - exclamou Roscelin num tom triunfante. - Posso abordá-la, posso pedir a sua mão, agora já não existe qualquer barreira. Não fizemos mal nenhum, não existe nenhuma sombra sobre nós, nenhuma proibição entre nós. Eu vou buscá-la e trazê-la para casa. Ela virá, virá com toda a satisfação! Eu sabia - exultou ele, com os olhos azuis a brilhar de alegria. - Eu sabia que nunca houve mal nenhum em nos amarmos, nunca, nunca! Foi o senhor que me convenceu que eu tinha pecado. Deixe-me ir buscá-la, meu senhor!

Ao ouvir estas palavras, De Perronet inflamou-se e, com um silvo que parecia um fósforo a acender-se, deu dois rápidos passos em frente para confrontar o rapaz.

- Está a saltar demasiado depressa e demasiado longe, meu amigo!

Os seus direitos não são melhores do que os meus. Não desisto da minha pretensão, insisto nela, esforçar-me-ei com todas as forças por obtê-la.

- E poderá fazê-lo - exultou Roscelin, demasiado embriagado de alívio para não ser generoso ou para se sentir ofendido. - E acho que todos os homens têm o direito de dizer o que quiserem, mas agora em termos de igualdade, o senhor, eu e quem mais quiser, e veremos o que Helisende responde. - Mas ele sabia qual seria a resposta dela, e sua certeza era, em si, uma ofensa, embora não tivesse essa intenção, e De Perronet já tinha a sua mão no punhal e palavras mais acaloradas a subir-lhe pela garganta quando Audemar bateu na mesa e os fez calar.

- Façam pouco barulho! Eu sou o suserano aqui ou não sou? E a rapariga tem família, pois ela é minha sobrinha. Se alguém aqui tem direitos sobre ela e um dever para com ela... alguém que há muito não os cedeu a outro homem!... sou eu, e eu digo que, se Cenred quiser, eu coloco-a aqui sob a sua tutela, com todos os direitos que ele exerceu sobre ela como membro da sua família durante todos estes anos. E a respeito do seu casamento, tanto ele como eu teremos em consideração o que for melhor para ela, mas nunca contra a sua vontade. Mas, por agora, deixemo-la em paz! Ela pediu algum tempo de tranquilidade e tê-lo-á. Quando estiver pronta para regressar, irei buscá-la.

- Satisfeito - disse Cenred, respirando fundo. - Estou satisfeito! Não poderia pedir melhor.

- E Irmão... - Audemar virou-se para Cadfael. O assunto estava agora inteiramente nas suas mãos, ele possuía autoridade sobre todas estas questões, e o que ele ordenava seria feito. O seu objectivo era provocar o menor dano possível, tal como o da sua mãe fora a destruição definitiva. - Irmão, se voltar para Farewell, conte-lhes o que eu disse. O que está feito está feito, tudo o que há por fazer será feito à luz do dia, abertamente. Roscelin - ordenou ele secamente, virando-se para o rapaz inquieto, cintilante com a alegria da libertação -, manda preparar os cavalos, vamos voltar para Elford. Ainda estás ao meu serviço até eu decidir dispensar-te, e ainda não me esqueci de que te ausentaste sem autorização. Não vamos ter mais motivos de desagrado.

Mas a sua voz era seca, e nem as palavras nem a sua expressão lançaram a menor sombra sobre a alegria exultante de Roscelin.

Este inclinou o joelho numa ligeira vénia e saiu alegremente da sala para cumprir as ordens do seu senhor.

Por último, Audemar olhou longamente para Adelais, que se encontrava de pé, com os olhos postos com firmeza no rosto dele, à espera do seu juízo.

- Senhora, vai voltar para Elford comigo. Já fez o que veio fazer aqui.

No entanto, foi Cadfael que montou primeiro. Já ninguém precisava dele ali, e a curiosidade natural que ele pudesse sentir a respeito dos ajustamentos familiares que ainda tinham de ser feitos e que talvez fossem menos facilmente efectuados do que ordenados, teria de ser contida para sempre, pois era pouco provável que voltasse a passar por ali. Solicitou o seu cavalo sem pressa e montou, e estava a dirigir-se ao portão quando Roscelin se afastou dos cavalariços que estavam a selar os cavalos de Audemar e veio a correr até junto do seu estribo.

- Irmão Cadfael... - ele ficou sem palavras por um momento, pois o seu espanto e felicidade estavam para além das palavras, sacudiu a cabeça e riu-se da sua própria incoerência. - Diga-lhe! Diga-lhe que estamos livres, não precisamos de mudar, agora ninguém nos pode denegrir...

- Meu filho - disse Cadfael, alegremente -, por esta altura ela já sabe tanto como tu.

- E diga-lhe que em breve, muito em breve, eu irei buscá-la. Oh, sim, eu sei - disse ele num tom confiante, vendo as sobrancelhas erguidas de Cadfael -, é a mim que ele vai enviar. Eu conheço-o. Ele prefere enviar um familiar que conhece e em quem confia, um homem seu, com terras que fazem fronteira com a sua, a enviar um senhor de terras distantes. E o meu pai já não se interporá entre nós. Por que é que ele haveria de o fazer, quando isso resolve tudo? Que é que se alterou, a não ser o que precisava de ser alterado?

E havia algo de verdadeiro naquelas palavras, reflectiu Cadfael, olhando da sela para o rosto jovem e ardente. O que se alterara fora a substituição da falsidade pela verdade e, por mais difícil que a assimilação pudesse ser, seria certamente para melhor. A verdade pode ser cara mas, no fim, nunca fica aquém do valor do preço pago.

- E diga-lhe - disse Roscelin, ansiosamente - ... ao irmão aleijado... o pai dela... - A sua voz ficou suspensa na palavra com admiração e reverência. - Diga-lhe que estou contente, diga que tenho uma dívida para com ele que nunca poderá ser paga. E diga-lhe que ele não precisa de se preocupar com a felicidade dela, porque vou dedicar-lhe toda a minha vida.

 

Aproximadamente ao mesmo tempo que Cadfael desmontava no pátio de Farewell, Adelais de Clary estava sentada com o seu filho no aposento privado deste em Elford. Tinha havido um longo e pesado silêncio entre eles. A tarde estava a chegar ao fim, começava a escurecer, e ele não mandara pedir velas.

- Há uma questão - disse ele finalmente, saindo da sua imobilidade - que ainda não foi referida. Foi consigo, minha senhora, que a velha veio falar. E a senhora mandou-a de volta com uma resposta seca. Para a morte! Foram ordens suas?

Ela respondeu, sem emoção:

- Não!

- Não lhe vou perguntar o que sabe sobre isso. Para quê? Ela está morta. Mas não gosto da forma como trata das coisas e não quero ter nada a ver com ela. Amanhã, minha senhora, vai regressar a Hales. Pode ficar com Hales para seu eremitério. Mas não volte nunca a esta casa, pois não será admitida. As portas de todas as minhas senhorias, com excepção de Hales, estão, daqui em diante, fechadas para si.

Ela disse num tom de indiferença:

- Como quiseres, a mim tanto me faz. Só preciso de um pouco de espaço, e posso não precisar dele por muito tempo. Hales serve muito bem.

- Então, minha senhora, parta quando quiser. Será acompanhada em segurança na estrada, uma vez que - disse ele com um significado azedo - se separou dos seus próprios palafreneiros. E uma liteira, se preferir esconder o rosto. Não se poderá dizer que viaja indefesa, como uma velha sozinha de noite.

Adelais levantou-se do seu banco e saiu do aposento sem dizer uma palavra.

No salão, os criados tinham começado a acender os primeiros archotes e a colocá-los nos seus castiçais, mas em todos os cantos

e nas traves do tecto alto enegrecidas pelo fumo, a escuridão aglomerava-se e colava-se, como teias de aranha de sombra.

Roscelin estava de pé junto do lume da lareira central pavimentada de lajes, remexendo-o com o calcanhar da sua bota para o reatear depois de ter sido abafado durante o dia. Ainda trazia a capa de Audemar no braço, com o capuz a balouçar de uma mão. A luz das chamas reanimadas douravam-lhe o rosto inclinado, de faces lisas, com ossos elegantes e uma pele clara como a de uma rapariga, e, nos seus lábios sonhadores, o mais suave e atraente dos sorrisos testemunhava a sua profunda felicidade. O cabelo louro balouçava de encontro ao seu rosto e separava-se acima da nuca suave, a beleza mais reveladora dos jovens. Por um momento, ela deixou-se ficar na sombra a observá-lo, sem que ele reparasse nela, pelo prazer e pela dor de sentir novamente a atracção irresistível, a felicidade insuportável e a angústia de ver a beleza e a juventude passar e partir. Era uma recordação demasiado vívida e doce de coisas há muito acabadas e que durante anos julgara esquecidas, mas que, tal como a fénix, voltaram a arder com uma nova vida quando uma porta se abrira e a confrontara com a ruína do ente amado que o tempo tinha deixado.

Ela passou por ele silenciosamente, para que ele não a ouvisse e voltasse para ela os olhos azuis demasiado radiantes, demasiado exultantes. Os olhos escuros que ela recordava, profunda e delicadamente colocados por baixo de sobrancelhas pretas arqueadas, nunca tinham tido aquela expressão, não por ela. Sempre obedientes, sempre cautelosos, muitas vezes baixos na sua presença.

Adelais saiu para o frio da noite e dirigiu-se aos seus próprios aposentos. Bem, estava tudo terminado. O fogo era agora cinzas. Ela nunca mais o voltaria a ver.

- Sim, eu vi-a - disse o Irmão Haluin. - Sim, falei com ela. Toquei-lhe na mão, é uma carne quente, carne de mulher, não é uma ilusão. A porteira levou-me à sua presença sem que eu estivesse preparado, não conseguia falar nem mover-me. Há tanto tempo que ela estava morta para mim. Até mesmo quando a vi de relance no pátio, no meio dos pássaros... Depois disso, quando te foste embora, não tinha a certeza de não ter sonhado. Mas tocar-lhe, ouvi-la chamar o meu nome... E ela ficou contente.

“O caso dela não foi igual ao meu, embora, Deus sabe que não penso que o seu fardo tenha sido mais leve. Mas ela sabia que eu estava vivo, ela sabia onde eu estava e o que eu era, e não sentia qualquer culpa, não tinha feito mal nenhum a não ser amar-me. E ela conseguiu falar. E as palavras que ela me disse, Cadfael! “Aqui está alguém”, disse ela, “que já te abraçou por um bom motivo. Agora, por um bom motivo, abraça-a. Ela é tua filha.” Consegues imaginar um milagre assim? E disse-o, entregando-me a filha pela mão. Helisende, a minha filha... não morreu! Viva, jovem, generosa e fresca como uma flor. E eu pensava que a tinha destruído, que tinha destruído as duas! A minha filha beijou-me de sua doce e livre vontade. Mesmo que fosse só por pena... deve ter sido pena, como é que ela podia amar alguém que não conhecia? mas, mesmo que tivesse sido apenas por pena, foi uma dádiva mais valiosa do que o ouro.

“E ela vai ser feliz. Pode amar quem quiser e casar com quem ama. Chamou-me “pai” uma vez, mas eu penso que queria referir-se à minha condição de padre, pois foi assim que ela me conheceu. Mesmo assim, foi bom ouvi-la chamar-me assim, e será doce recordar.

“A hora que nós três passámos juntos compensa os dezoito anos, embora pouco tivéssemos dito. O coração não conseguia suportar mais. Bertrade já voltou para as suas tarefas. E eu devo voltar para as minhas, em breve... muito em breve... amanhã...

Cadfael tinha ficado silencioso durante o longo, vacilante e eloquente monólogo de revelação do seu amigo, quebrado por longas pausas durante as quais Haluin caíra de novo num transe de assombro. Não houve uma só palavra sobre a acção abominável que, leviana e cruelmente, tinha sido praticada contra ele e que tinha sido varrida da sua mente sem um único pensamento de atribuição de culpa ou de perdão, pela alegria de a mesma ter sido desfeita. E esse foi o último e mais irónico juízo a respeito de Adelais de Clary.

- Vamos às Vésperas? - disse Cadfael. - O sino já tocou, nesta altura já devem estar todas nos seus lugares, podemos entrar sem que reparem em nós.

Do canto escuro da igreja que tinham escolhido, Cadfael observou os rostos jovens e francos das irmãs e demorou o seu olhar na Irmã Benedicta, que fora outrora Bertrade de Clary. Ao seu lado, a voz baixa e feliz de Haluin entoava respostas e orações, mas o que Cadfael estava a ouvir na sua mente era a mesma voz a falar dolorosa, lenta e hesitantemente, na escuridão do celeiro do guarda-florestal, antes do amanhecer. Ali no seu oratório, serena, realizada e feliz, estava a mulher que ele tentara descrever. “Ela não era bela como a mãe. Não tinha aquela radiosidade sombria, mas sim algo mais bondoso. Não havia nada de sombrio ou secreto nela, tudo era franco e iluminado pelo sol como uma flor. Ela não tinha medo de nada - não nessa altura. Confiava em toda a gente. Nunca tinha sido traída - não até essa altura. Só o foi uma vez e morreu por causa disso.”

Mas não, ela não tinha morrido. E certamente que neste momento, devota e obediente, não havia nada de sombrio ou secreto nela. O rosto oval irradiava serenidade enquanto ela celebrava com alegria a misericórdia de Deus, ao fim de tantos anos. Sem lamentar nada; a sua felicidade não tinha qualquer mácula. A vocação que assumira sem ser abençoada e em que se esforçara contra a sua natureza, talvez, durante todos aqueles anos, seguramente que só agora tinha atingido a sua verdadeira plenitude, na revelação da graça. Ela não voltaria atrás, nem sequer por aquele primeiro amor. Não havia necessidade. O amor tem estações. O amor deles tinha passado para além das tempestades da Primavera e do calor do Verão para a calma dourada dos primeiros dias de Outono, antes de as folhas terem começado a cair. Bertrade de Clary tinha o mesmo ar do Irmão Haluin, segura e invulnerável na paz de espírito. Daí em diante, a presença era desnecessária e a paixão irrelevante. Tinham-se aliviado da tensão do passado e ambos tinham trabalho a fazer no futuro, e fá-lo-iam com mais empenho e dedicação por saberem, cada um deles, que o outro vivia e trabalhava no mesmo parreiral.

De manhã, depois das Matinas e feitas as despedidas, iniciaram a longa viagem de regresso a casa.

As irmãs estavam no capítulo quando Cadfael e Haluin pegaram na sacola e nas muletas e saíram da hospedaria, mas a rapariga Helisende foi com eles até ao portão. Pareceu a Cadfael que todos aqueles rostos à sua volta se tinham libertado de todas as sombras e de todas as dúvidas, que todos eles tinham agora um brilho de espanto, admirados com o bem que sobre eles recaíra. Agora era possível ver mais claramente como o pai e a filha eram parecidos, pois muitas das marcas dos anos tinham desaparecido do rosto de Haluin.

Quando se despediram, Helisende, ardente mas tímida, abraçou-o em silêncio. Independentemente da forma como tinham passado o dia anterior, quaisquer que tivessem sido as confidências que tivessem trocado, ela não podia conhecê-lo tão rapidamente por si própria, apenas através dos olhos da sua mãe, mas sabia que ele era meigo e que tinha um aspecto e modos agradáveis, e que a erupção dele na sua vida a libertara de um pesadelo de culpa e perda, e seria desse modo que ela se recordaria e pensaria sempre nele, com um prazer e uma gratidão não muito distantes do amor. O que era ganho suficiente, mesmo se ele nunca mais voltasse a vê-la.

- Deus o conserve, pai - disse Helisende.

Foi a primeira e a última vez que ela lhe deu esse título não como padre mas como homem, mas foi uma dádiva que lhe iria durar uma vida inteira.

Passaram a noite em Hargedon, onde os cónegos de Hampton tinham uma granja, numa zona que estava a ser lentamente recuperada da destruição que se seguira à ocupação normanda. Só agora, ao fim de sessenta anos, a terra arável estava a ser ressuscitada da vegetação rasteira, e havia alguns povoados a ser construídos em cruzamentos de caminhos ou em locais em que um rio fornecia água para um moinho. A segurança relativa proporcionada pelos cónegos, pelo administrador e pelos criados tinha levado outros a instalar-se na região, e agora viam-se filhos mais novos empreendedores a talhar cabanas dos bosques negligenciados. Mas ainda era um território esparsamente povoado, plano, solitário e, à luz do entardecer, melancólico. No entanto, a cada passo esforçado dado para oeste através da planície sombria, a vivacidade do Irmão Haluin aumentava, o seu passo acelerava e o seu rosto ficava mais corado de ansiedade.

Da janela estreita, sem portadas, do celeiro, olhou para oeste, para a noite estrelada. Mais próximo de Shrewsbury, onde as colinas começavam a elevar os seus velos em direcção às montanhas do País de Gales, a terra e o céu estavam harmoniosamente equilibrados, mas aqui a abóbada celeste parecia imensa, e a terra dos homens oprimida e sombria. O brilho das estrelas e o espaço negro entre elas denunciavam um toque de gelo no ar, mas prometiam um belo dia para o dia seguinte.

- E nunca sentes - perguntou Cadfael em voz baixa - vontade de olhar por cima do ombro?

- Não - disse Haluin, tranquilamente. - Não há necessidade. Atrás de mim está tudo bem. Está tudo muito bem. Não há nada para eu fazer ali, tudo o que tenho para fazer está no local para onde eu vou. Agora somos irmã e irmão. Não pedimos mais nada, não desejamos mais nada. Agora posso levar um coração inteiro para Deus. Sinto-me muito feliz por Ele me ter feito desanimar, para depois me erguer, renovado para O servir.

Houve um longo silêncio tranquilo enquanto ele continuava a olhar para a noite límpida com uma espécie de fome vívida no rosto.

- Quando partimos para Hales, deixei uma folha a meio - disse ele, pensativamente. - Pensei que não demoraria muito a estar de volta para a terminar. Espero que o Anselm não a tenha dado a outro. Era um N maiúsculo para “Nunc Dimittis”, a que ainda faltavam metade das cores.

- Ela estará à tua espera - garantiu-lhe Cadfael.

- O Aelfric é bom, mas não sabe o que eu quero, pode exagerar no ouro. - A sua voz era suave, prática e jovem.

- Tem calma, não te preocupes - disse Cadfael. - Tem paciência durante mais três dias, que terás o pincel e a pena novamente na mão para retomares o teu trabalho. E eu tenho de voltar para as minhas ervas, pois nesta altura os armários dos medicamentos já devem estar praticamente vazios. Deita-te, rapaz, e descansa. Amanhã há mais milhas à tua espera.

Um vento suave de oeste soprou através da janela aberta e Haluin levantou a cabeça e cheirou o ar como um cavalo de raça a farejar a sua cavalariça.

- Que bom que é - disse ele - estar a caminho de casa!

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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