No décimo nono dia de Junho, quando o eminente visitante chegou, o irmão Cadfael estava no jardim do abade, a cortar as rosas secas. Era uma tarefa que o abade Radulfus reservava ciosamente para si, pois tinha grande orgulho nas suas rosas e estimava os breves momentos que lhes podia dispensar. Mas dentro de três dias o mosteiro iria celebrar o aniversário da trasladação da Santa Winifred para o seu santuário na Igreja e os preparativos para o afluxo anual de peregrinos e benfeitores ocupavam agora todo o seu tempo e mantinham atarefados todos os que se encontravam sob as suas ordens. O irmão Cadfael, que não tinha qualquer função oficial, fora pela primeira vez autorizado a tratar das roseiras, o único que tinha o privilégio de lhe poderem ser confiadas as flores do abade, que deveriam estar imaculadas e esplendorosas para a festa da santa, tal como tudo o resto dentro do mosteiro.
Este ano não se iria realizar a cerimónia da procissão a partir de Saint Giles, no termo da cidade, tal como sucedera há dois anos, em 1141. As relíquias tinham repousado ali, enquanto os devidos preparativos eram feitos para as receber, e no grande dia, recordava Cadfael, a ameaça de chuva acabara por se concretizar, embora nem uma só gota tivesse caído sobre o relicário da santa ou sobre os seus servidores ou tivesse apagado as velas que a acompanhavam, erectas como lanças, imperturbáveis ao vento. Pequenos milagres que se verificavam por onde Winifred passava, como a lenda das flores que haviam brotado nas pegadas de Welsh Olwen. Os grandes milagres eram agora mais raros, mas Winifred conseguia manifestar o seu poder sempre que necessário. Existiam boas razões para as pessoas terem tanta fé na santa, quer no longínquo Gwytherin, local do seu sacerdócio, quer aqui em Shrewsbury. Este ano as celebrações ficariam cingidas ao mosteiro, mas ainda assim haveria espaço suficiente para os curiosos, se a santa assim o quisesse.
Os peregrinos tinham começado a chegar para os festejos, em tal número que Cadfael já não prestava qualquer atenção à ordenada multidão no grande pátio, entre a guarita do guarda do portão e a hospedaria, nem ao som dos cascos na calçada, à medida que os moços de estrebaria conduziam os cavalos para o pátio dos estábulos. O irmão Denis, o hospitaleiro, iria ter uma casa cheia para acomodar e alimentar, ainda antes do próprio dia da festa, quando as gentes da cidade e do campo, vindas de longe, chegassem para venerar a santa.
Só quando o prior Robert foi visto a virar a esquina do claustro, com o passo mais firme que a sua dignidade permitia, e a dirigir-se aos aposentos do abade é que Cadfael abandonou o prazer de podar as flores para reparar no prior e ficar a meditar sobre o facto. O longo e austero rosto de Robert parecia o de um anjo incumbido de uma missão de importância cósmica, revestido da autoridade do extraordinário ser que o enviara. A sua tonsura prateada brilhava ao sol do princípio da tarde e o fino nariz de nobre sondava em frente, respirando glória.
“Temos um visitante mais do que importante”, pensou Cadfael, seguindo interessado o percurso do prior até à porta dos aposentos do abade, não se surpreendendo muito ao ver o próprio abade sair poucos minutos depois e atravessar o pátio com Robert ao seu lado. Dois homens altos, de grande estatura, um absolutamente tranquilo, com uma nítida elegância e uma educação cuidada, o outro ossudo, firme e tenso, com uma inteligência retraída. O prior Robert suportara um tremendo golpe quando fora ultrapassado por um estranho, que viria a preencher a vaga deixada pela deposição do abade Heribert, mas não tinha ainda perdido a esperança. Ainda era novo, podia sobreviver a Radulfus e por fim ocupar o seu lugar. Cadfael rezava devotadamente para que isso demorasse muitos anos a acontecer.
Não foi preciso esperar muito para que o abade Radulfus e o seu visitante surgissem de novo no pátio, numa conversação cortês e cautelosa de dois estranhos medindo-se um ao outro no primeiro encontro. Tratava-se de um convidado de demasiada importância para ficar na hospedaria, ainda que entre a nobreza. O prior era um homem tão alto quanto Radulfus e em tudo, excepto na largura de ombros, do dobro da largura deste, cheio e corpulento, quase chegando a ser gordo, e, no entanto, tinha também um ar poderoso e musculado. À primeira vista, a sua face parecia redonda e luminosa, com bom aspecto, os lábios grossos, as bochechas grandes e um ar indulgente. Numa segunda perspectiva, os lábios adquiriam uma força extraordinária e intolerante, o queixo carnudo encerrava um maxilar determinado, e os olhos, nas suas pálpebras ligeiramente inchadas, mostravam contudo uma inteligência aguda e crítica. Tinha a cabeça descoberta e usava tonsura. De outra forma, Cadfael, que nunca o tinha visto antes, teria pensado tratar-se de um barão ou de um conde da corte real, não pelas suas roupas mas porque estas tinham uma cor sombria de carmesim-escuro e preto, tinham um esplendor senhorial, quer no que dizia respeito ao corte quer ao ornamento, uma rica e longa capa, de uma só peça, mas aberta atrás e à frente quase até à cintura, : própria para montar, a gola enfeitada a ouro, aberta no calor do Verão, ) sobre uma fina camisa de linho, e uma corrente com uma cruz de ouro rodeavam um pescoço forte e musculado. Não restavam dúvidas de que estaria sempre por perto um criado para o livrar do peso de qualquer bagagem, mesmo as luvas que provavelmente descalçara ao desmontar. O tom da sua voz, que se ouvia à distância enquanto os dois prelados entravam nos aposentos e desapareciam de vista, era baixo e calculado e, no entanto, transmitia uma sugestão de desagrado.
Passado um momento, Cadfael percebeu a possível razão para tal. Um criado atravessou o pátio conduzindo dois cavalos para os estábulos, um, sólido e castanho, muito provavelmente a sua montada, e outro, um grande e lindo cavalo preto com protecções brancas nos jarretes, ricamente enfeitado. Não seria preciso perguntar a quem pertencia. Os impressionantes arreios, a sela forrada a escarlate e o freio ornamentado completavam o cenário. Outros dois homens seguiam atrás levando os seus cavalos menos vistosos pela mão, e também um cavalo de carga, bem carregado. Tratava-se de um membro do clero que não viajava sem os confortos a que estava habituado. Mas o que muito provavelmente provocou aquele tom de voz irritado, embora controlado, foi o facto de o cavalo preto, o único que fazia justiça ao estatuto do seu cavaleiro, aliás o único capaz de carregar o seu peso, estar a coxear da pata dianteira. Qualquer que fosse a sua incumbência ou destino, o convidado do abade ver-se-á forçado a prolongar a sua estadia por mais uns dias, até que aquela lesão estivesse curada.
Cadfael acabou a sua tarefa e levou o cesto com as rosas murchas para a estufa, deixando para trás as conversas e a actividade do pátio.
As rosas tinham começado a desabrochar cedo, devido a um tempo esplêndido e morno. As chuvas da Primavera tinham dado uma boa colheita de feno, e o mês de Junho as condições ideais para a armazenar. As tosquias estavam quase terminadas e os comerciantes de lã reuniam esperançosamente os valores do seu negócio. Os peregrinos mais modestos de Santa Winifred, que vinham a pé, fariam uma viagem sem chuva e teriam um sítio quente para dormir, mesmo ao ar livre.
Obra da santa, talvez!? Cadfael acreditava firmemente que, se a jovem galesa tivesse motivos para sorrir, o sol brilharia nos caminhos.
A sementeira precoce dos dois campos de ervilha que iam desde o limite do jardim até à ribeira — Meole — já tinha sido colhida, tendo dez dias de sol desenvolvido as vagens muito depressa. O irmão Winfrid, um robusto e alto jovem de olhos azuis, estava ocupado a cavar as raízes para fertilizar o solo, enquanto a palha, colhida à foice, fora colocada no final do campo, para secar e fornecer forragem e enchimento de colchões. As mãos que seguravam a pá eram fortes e queimadas pelo sol e pareciam ser desajeitadas, mas, na realidade, eram tão hábeis e delicadas a manusear os preciosos recipientes de vidro e as quebradiças ervas secas de Cadfael quanto poderosas e eficientes com a pá e a picareta.
Dentro do murado jardim de ervas medicinais, o ambiente era quase sufocante, cheirava a especiarias e era bastante quente. As ervas daninhas cresciam mais rapidamente do que as ervas a que se sobrepunham, e havia sempre trabalho a fazer nesta estação do ano. Cadfael ajeitou o hábito e pôs-se de joelhos para trabalhar junto da terra morna, com aquela fragrância estonteante pairando à sua volta como asas invisíveis e o sol acariciando as suas costas.
Assim continuava, embora numa feliz calma que não o apressava, apreciando o contacto com as folhas, as raízes e o solo, quando, duas horas depois, Hugh Beringar surgiu à sua procura. Cadfael ouviu os passos leves e ágeis sobre a gravilha e sentou-se sobre os calcanhares, vendo o seu amigo aproximar-se. Hugh sorriu ao vê-lo sentado de joelhos.
— Faço parte das suas rezas?
— Constantemente — disse Cadfael num tom grave. — Um homem tem de se empenhar totalmente na sua causa.
Deixou cair uma mão-cheia de terra escura e quente, sacudiu as palmas das mãos e aceitou a mão que Hugh lhe estendia para o ajudar a levantar-se. O corpo franzino e o pulso delgado do xerife tinham muito mais força do que se poderia supor. Cadfael conhecia-o apenas há cinco anos, mas sentia-se mais próximo dele do que de muitos com quem tinha convivido nos seus vinte e três anos de vida monástica.
— Que está aqui a fazer? — perguntou em tom animado. — Pensei que estava para norte, nas suas terras, a armazenar o feno.
— E estive, até ontem. O feno já está armazenado, as tosquias estão feitas, e trouxe de volta a Aline e o Giles para a cidade. Cheguei mesmo a tempo de ser incumbido de apresentar os meus respeitos a um grande magnata que se encontra aqui de visita, embora não de livre vontade. Se o cavalo dele não estivesse coxo, já estaria a caminho de Chester. Por acaso não tem uma bebida para um homem cheio de sede, Cadfael? Embora não perceba — acrescentou vagamente — por que tenho a boca tão seca quando, afinal, foi só ele que falou.
Cadfael tinha na estufa um vinho especial, novo mas bom. Trouxe para fora um jarro de vinho e sentaram-se os dois no banco do muro norte do jardim, a apanhar sol numa atitude ociosa e descontraída.
— Vi o cavalo — disse Cadfael. — Ainda vai demorar uns dias até que esteja bom para fazer o caminho até Chester. Também vi o homem, se é que foi a ele que o abade mandou dar as boas-vindas. Pelo que me consta, não estavam à espera dele. Se tem pressa de chegar a Chester, precisa de um cavalo novo ou de mais paciência do que aquela que imagino que tem.
— Oh, está resignado. Radulfus vai tê-lo por cá durante uma semana ou mais. Se fosse agora para Chester, não encontraria lá o homem que quer ver, por isso não há pressa. O conde Ranulf está na fronteira galesa, defendendo outro ataque de Gwynedd. Owain vai mantê-lo ocupado durante uns tempos.
— E quem é este membro do clero a caminho de Chester? — perguntou Cadfael curiosamente. — E que lhe queria ele?
— Bem, estando um pouco frustrado... até eu lhe ter dito que não havia motivo para pressas, porque o conde está a defender as fronteiras... teve a ideia de se manter ocupado o mais possível, para não se aborrecer. Mandou chamar o xerife, pelo menos foi feita a devida reverência! Mas tinha também uma outra intenção. Queria todas as informações que eu pudesse ter sobre o paradeiro e as intenções de Owain Gwynedd, e em especial queria saber se o nosso príncipe galês é uma grande ameaça para o conde Ranulf, se o conde ficaria contente com alguma ajuda neste assunto e se estaria pronto a pagar por essa ajuda.
— No interesse do rei — deduziu Cadfael, após um momento de reflexão com uma expressão carrancuda. — Quer dizer que ele é um dos familiares do bispo Henry?
— Não, não! Stephen recorreu em tempos aos serviços do arcebispo, em vez do seu irmão de Winchester. Henry está ocupado com outros assuntos. Não, o vosso hóspede é um Gerbert, dos cónegos agostinhos de Canterbury, um homem importante do arcebispo Theobald. A sua missão é manter uma atitude cautelosa de paz e boa vontade para com o conde Ranulf, cuja lealdade... a Stephen ou a qualquer outro lado!... foi sempre muito instável, mas que pode ser assegurada... ou pelo menos Stephen pensa que pode ser assegurada!... em termos de mútuo proveito. Tu apoias-me firmemente no norte e eu ajudo-te a afastar Owain Gwynedd e os seus galeses. A união faz a força!
As espessas sobrancelhas de Cadfael arquearam-se sob a sua tonsura grisalha.
— O quê? Quando Ranulf ainda detém o castelo de Lincoln, em vez de Stephen? Sim, e outros castelos reais que detém ilegalmente? Será que Stephen fechou os olhos a esse tipo de apoio e amizade?
— Stephen não esqueceu nada. Mas está disposto a disfarçar se isso mantiver Ranulf sossegado e complacente durante uns meses. Há mais do que um possível aliado a ficar demasiado poderoso — disse Hugh. — Imagino que Stephen tenha em mente lidar com um de cada vez, e há pelo menos um que é maior ameaça do que Ranulf de Chester. A seu tempo, tratará do caso dele, mas existe outro a quem Stephen tem a reclamar mais do que uns castelos roubados, e é melhor comprar a conivência de Chester até que o problema com o Essex esteja resolvido.
— Parece seguro daquilo que o rei tem em mente — disse Cadfael calmamente.
— Tenho quase a certeza, sim. No Natal passado, eu próprio vi como ele se aborrece na corte. Uma pessoa de fora teria dificuldade em dizer qual de entre nós era o rei. Stephen pode ser um homem pacato, mas não é fácil. E corriam rumores de que o conde de Essex esteve novamente a regatear com a imperatriz enquanto ela esteve em Oxford, mas fê-lo mudar de ideias quando a questão se virou contra ela. Ele já interferiu entre os dois vezes que cheguem. Creio que já roeu a corda toda.
— E o Ranulf tem de ser apaziguado até que o problema do seu amigo conde esteja resolvido. — Com ar de dúvida, Cadfael esfregou o nariz torto e queimado pelo sol e pensou um momento em silêncio sobre o assunto. — Isso parece mais a maneira de pensar do bispo de Winchester do que a do rei Stephen — afirmou cautelosamente.
— Talvez seja. E talvez seja por isso que o rei tem usado uma das famílias de Canterbury nesta missão, e não uma de Winchester. Quem poderia suspeitar de que aquilo que vai na cabeça de Henry não seria manipulação do arcebispo Theobald? Não há ninguém ao serviço do rei ou da imperatriz que não saiba como os dois se entendem muito pouco.
Cadfael não podia negar que isso era verdade. A inimizade começara há cinco anos atrás, quando o arcebispado de Canterbury ficara vago, após a morte de William Corbeil e depois de o irmão mais novo do rei Stephen, Henry, ter confidenciado as suas pretensões ao cargo, que certamente via como sendo o seu dever. O seu desapontamento foi total quando o papa Innocent deu o cargo a Theobald de Bec. Henry tornou de tal forma claro o seu desagrado e tão óbvia a sua influência, que Innocent, fosse no verdadeiro desejo de reconhecer a sua indubitável capacidade, fosse puramente por exasperação ou malícia, lhe deu, como consolação, o legado papal em Inglaterra, tornando-o assim, na realidade, superior ao arcebispo, uma medida muito estudada para terem de se respeitar um ao outro. Cinco anos de contenção digna mas feroz serviram para impedir o fogo. Não, nenhum conde suspeito, abordado por alguém íntimo de Theobald, parecia estar por detrás desta proposta, pois não houve vestígios das desonestas manipulações de Henry of Winchester.
— Bem — assentiu Cadfael cautelosamente —, talvez seja bom que Ranulf se mostre civilizado, vendo-se a braços com os galeses de Gwynedd. Embora não esteja a ver o que Stephen lhe possa dar em troca pela ajuda.
— Nada — concordou Hugh com uma pequena gargalhada —, e Ranulf sabe tão bem disso quanto nós. Nada, a não ser a sua paciência, mas isso já é muito bom, dadas as circunstâncias. Oh!, mas quer um quer outro acabarão por perceber que, por enquanto, é melhor manterem-se quietos, sem revelarem os seus próprios interesses. Um acordo para protelar a disputa para uma altura mais conveniente é mais sensato neste momento do que a falta total de qualquer acordo, para além da necessidade de estar sempre a medir as atitudes. Ranulf pode dedicar toda a sua atenção a Owain Gwynedd, enquanto Stephen se pode dedicar à questão de Geoffrey de Mandeville, no Essex.
— E entretanto teremos de entreter o cónego Gerbert até que o cavalo esteja bom para o transportar.
— E ao seu criado e aos dois moços de estrebaria e a um dos diáconos do bispo de Clinton, enviado como guia através da diocese. Um pacato e pequeno diácono de nome Serio, que treme de medo em frente do homem. A propósito, duvido que alguma vez tenha ouvido falar da Santa Winifred... estou a referir-me a Gerbert, não a Serio... mas quererá dirigir a festa, já que agora não pode sair daqui.
— Tem cara disso — admitiu Cadfael. — E, afinal, que é que lhe disse sobre aquele pequeno assunto de Owain Gwynedd?
— Disse-lhe a verdade, ou quase toda a verdade. Que Owain mantém Ranulf tão ocupado na sua própria fronteira, que não terá tempo para arranjar sarilhos noutro lado. Não é preciso fazer quaisquer concessões para o manter sossegado, mas uma conversa amena também não fará mal nenhum.
— E não foi preciso mencionar que você tem um acordo com Owain — concordou Cadfael placidamente — para nos deixar aqui sossegados e manter o conde Chester afastado. Isso poderá não reaver nenhum dos castelos ocupados de Stephen no norte, mas pelo menos faz com que o conde não tome mais nenhum. E novidades quanto a oeste? Esta estranha acalmia nas terras de Gloucester faz-me pensar o que estará por detrás. Faz alguma ideia do que ele está a preparar?
A incoerente e constante guerra civil entre primos pelo trono de Inglaterra continuava há mais de cinco anos, com convulsões aqui e ali, a sul e a leste, por vezes chegando mais a norte, quase até Shrewsbury. A imperatriz Maud, com o seu devotado campeão e meio-irmão ilegítimo, o conde Robert de Gloucester, mantinha agora uma influência indisputável no sudoeste, com base em Brístol e Gloucester; o rei Stephen detinha o resto do país, mas com uma leve e trémula mão nas zonas mais distanciadas da sua base em Londres e dos condados a sul. Em tais condições instáveis, todos os barões e condes viam uma oportunidade para as suas ambições e tentavam assegurar para si próprios um pequeno reino, em vez de concentrarem as suas energias a apoiar o rei ou a imperatriz. O conde Ranulf de Chester sentia-se suficientemente mais poderoso do que os outros rivais para tratar de arranjar um reino enquanto havia oportunidade, e tornava-se evidente que a sua prestada lealdade ao rei Stephen ocupava um segundo lugar em relação ao estabelecimento de um reino próprio estendendo-se a norte, de Chester até Lincoln. A missão do cónego Gerbert não implicava certamente qualquer confiança na palavra do conde, embora assim prometida, mas destinava-se a mantê-lo quieto durante um tempo e no seu próprio interesse, até que o rei estivesse apto para lhe dar atenção. Pelo menos era assim que Hugh via a questão.
— Robert — afirmou Hugh — está ocupado a fortalecer as suas defesas e a tornar o sudoeste uma fortaleza. E, juntamente com a irmã, está a educar o rapaz que ela pretende que um dia seja rei. Oh!, sim, o jovem Henry continua em Brístol, mas Stephen não tem hipóteses de estender a sua guerra até tão longe e, mesmo que tivesse, não saberia o que fazer depois a Henry. E ela também não tem mais a ganhar com isso a não ser o prazer da companhia da criança, embora talvez isso já seja suficiente. No fim terão de o mandar outra vez para casa. Da próxima vez que ele voltar... talvez seja a sério e com armas. Quem sabe?
Há menos de um ano, a imperatriz tinha ido a França pedir ajuda ao marido, mas o conde Geoffrey de Anjou, quer acreditasse ou não na reclamação dela ao reino de Inglaterra, não tinha intenções de lhe enviar forças, pois ele próprio as estava a usar, com habilidade e sucesso, na conquista da Normandia, uma tarefa que lhe interessava muito mais do que as pretensões de Maud. Mandou-lhe, em vez dos cavaleiros e armas de que ela precisava, o filho de ambos, de 10 anos de idade.
Que espécie de pai, pensou Cadfael, poderia ser este conde de Anjou? Dizia-se que estava determinado a fazer a fortuna da sua casa e dos seus sucessores, que dava aos seus filhos uma boa educação e tinha, certamente com razão, toda a confiança na devoção que o conde Robert dedicava à criança colocada a seu cargo. Mas, ainda assim, mandar um rapaz tão novo para um país desfeito pela guerra civil...! Sem dúvida que conhecia Stephen, é claro, e sabia que este era incapaz de fazer mal à criança mesmo que o apanhasse ajeito. E se se desse o caso de a própria criança já ter uma vontade própria, mesmo numa idade tão precoce, e tivesse apressado a ida propositadamente?
Sim, um pai audacioso era capaz de respeitar a audácia do próprio filho. “Sem dúvida”, pensou Cadfael, “havemos de ouvir falar mais sobre este Henry Plantagenet que continua a aprender as suas lições e a esperar pelo seu tempo em Brístol.”
— Tenho de me ir embora — disse Hugh, levantando-se e esticando-se preguiçosamente ao calor do sol. — Por hoje já chega de clérigo... sem ofensa à sua companhia, mas não o incluo no grupo dos clérigos.
Nunca desejou ter um cargo com menos responsabilidades, Cadfael? Apenas o suficiente para exigir os benefícios se alguma vez viesse à luz uma das suas menos conhecidas proezas? Sempre é melhor a corte do abade que a minha, se alguma vez se colocasse a questão!
— Se alguma vez se pusesse a questão — disse Cadfael pausadamente, levantando-se também —, o que me parece é que deveria manter a boca fechada, pois o mais provável é que tivesse a ver com isso em noventa por cento dos casos. Lembra-se daquela vez em que escondeu os cavalos do estábulo do rei e depois...?
Hugh colocou o braço sobre o ombro do amigo, e riu.
— Oh!, se começamos a lembrar essas coisas, nunca mais acabamos. É melhor deixarmos para trás as dívidas antigas. Fomos sempre muito razoáveis. Venha daí, faça-me companhia até ao portão de entrada. Já devem ser horas da oração da tarde.
Sem pressas, percorreram juntos o caminho de gravilha ao longo da sebe, atravessando o jardim de ervas até ao sítio das roseiras. O irmão Winfrid vinha precisamente no cimo da encosta do campo das ervilhas, caminhando de uma forma ligeira e a passos largos com a pá ao ombro.
— Não se demore e venha visitar o seu afilhado — disse Hugh enquanto dobrava a esquina da sebe, e o movimento e o ruído vindos do pátio rodearam-nos como o som de um enxame de abelhas. — Assim que chegar à cidade, o Giles começa logo a perguntar por si.
— Irei com muito gosto. Fico com saudades dele quando vocês vão para o norte, mas no Verão está lá melhor do que aqui, fechado entre paredes. E a Aline, está bem? — Fez a pergunta com toda a serenidade, sabendo de antemão que seria dos primeiros a saber se não estivesse tudo bem.
— A desabrochar como uma rosa. Mas venha ver com os seus próprios olhos. Ela vai ficar à espera que apareça.
Dobraram a esquina para o pátio, cheio de visitantes, que continuava animado como a praça de uma cidade. Mais um cavalo era conduzido para os estábulos, o irmão Denis estava a receber o hóspede recém-chegado, coberto do pó da viagem, à porta dos seus domínios; dois ou três noviços corriam de um lado para o outro transportando lanternas, velas e bilhas com água; os visitantes, já instalados, observavam os que iam chegando através do portão, cumprimentando os amigos, relembrando velhos conhecidos e travando novas amizades, enquanto, no claustro, as crianças, umas do mosteiro, outras crianças de escola, formavam pequenos grupos, prestando toda a atenção, tagarelando como gralhas e correndo entre os peregrinos, excitadas como cães numa feira.
O facto de o irmão Jerome ter atravessado o pátio, desde o claustro até à enfermaria, teria, em circunstâncias normais, silenciado os rapazes, mas durante esta algazarra era fácil conseguir evitá-lo.
— Vai ter a casa cheia para a festa — disse Hugh, parando para olhar a divertida confusão, apreciando-a tão candidamente como as crianças.
Verificou-se um súbito movimento no grupo instalado junto do portão. O guarda dirigiu-se para a porta do seu posto e, de ambos os lados, as pessoas recuaram como para deixar passar uns cavaleiros, mas não se ouviu o som estridente do bater dos cascos sob o arco da entrada. Quem estava a entrar vinha a pé e, à medida que penetraram no pátio, ficou esclarecida a razão pela qual as pessoas se tinham afastado para os deixar entrar. Um longo e plano carro-de-mão entrou a ranger, rebocado por um camponês gordo e grisalho e empurrado por um jovem sujo e cansado da viagem, que seguia atrás. A carga que transportava estava tapada por uma cobertura de cor parda, encimada por uma trouxa de serapilheira, mas, pela forma como um puxava e o outro empurrava, parecia ser pesada e o seu contorno, o de um homem alto e forte, trouxe à mente a ideia de morte. Uma onda de silêncio espalhou-se à sua volta e, aos poucos, chegou ao local onde Hugh e Cadfael observavam imóveis. As crianças olhavam espantadas e atentas, simultaneamente receosas e inquiridoras, não querendo perder nada.
— Creio — disse Hugh num tom de voz calmo — que trazem um hóspede que precisa de uma cama num outro sítio que não na hospedaria.
O jovem ergueu as costas lentamente, ao parar de suportar o peso do carro que empurrava, e olhou à volta em busca da autoridade mais próxima. O guarda do portão dirigiu-se a ele, contornando o carro e o corpo inerte, com o ar circunspecto de quem já está acostumado a tudo e de quem se mantém imperturbável, mesmo diante da morte a intrometer-se como uma farsa moral nos preparativos de uma festa. O que disseram um ao outro foi tão silencioso e privado que ficou entre ambos, mas parecia que o recém-chegado tinha pedido alojamento para os dois e também para a sua carga. A sua atitude era reverente e cortês, como era próprio naquelas paragens, mas também demonstrava uma calma autoconfiança. Virou a cabeça e gesticulou com as mãos apontando para a igreja. Era um jovem com cerca de 26 ou 27 anos, com roupas desbotadas pelo sol e cheias de poeira da viagem. Era alto, magro e seco, de ossos e ombros largos, com um cabelo loiro emaranhado cuja cor sobressaía na sua face queimada do sol, e tinha um nariz correcto, fino e estreito. Uma face que exibia orgulho, obtido com esforço, e investida com a gravidade da sua missão. Mas, por natureza, pensou Cadfael, observando-o do local onde se encontrava no pátio, parecia ter uma expressão aberta, esperançosa e de boa índole, pronta a sorrir, e uma boca de lábios grossos pronta a confiar a qualquer convite amigável.
— É daqui, da zona de Foregate? — perguntou Hugh, olhando-o com interesse. — Não, não pode ser, pelo ar dele viajou até aqui de um sítio bastante distante.
— Mas, apesar disso — disse Cadfael, sacudindo a cabeça com ar apreensivo —, parece-me já ter visto antes esta cara, algures, não sei dizer quando. Ou se calhar faz-me lembrar alguém com quem já travei conhecimento.
— Os rapazes que conheceu no seu tempo poderiam ser de quase metade do mundo inteiro. Bem, acabará por descobrir, tudo em seu devido tempo — disse Hugh —, pois parece que o irmão Denis está a dedicar atenção ao assunto, e um dos vossos noviços entrou apressadamente no claustro à procura de mais alguém.
Esse alguém viria a ser nem mais nem menos do que o próprio prior Robert, com o irmão Jerome trotando ciosamente atrás de si. A passada larga de Robert e as pernas curtas de Jerome transformavam o que deveria ser um andamento atarefado e importante em algo vacilante e apressado, mas Jerome chegaria sempre a tempo onde quer que estivesse a acontecer alguma coisa que suscitasse a sua curiosidade, a sua censura ou santimónia.
— Os vossos estranhos hóspedes foram aceites — observou Hugh, vendo o modo como as conversações prosseguiam —, pelo menos até ver. Duvido que ele não aceitasse um homem morto.
— Conheço o homem que vinha a puxar o carro — disse Cadfael. — Vem de perto de Wrekin, já o tenho visto transportar mercadorias para o mercado. O homem e o carro devem ter sido contratados para esta entrega. Mas o outro veio de muito mais longe, de certeza. Agora gostava de saber de onde é que trouxe a sua carga, contratando ajuda pelo caminho. E se terá terminado a sua viagem aqui.
Era evidente que o prior Robert não via com bons olhos aquele aparecimento súbito, no meio de um pátio repleto de peregrinos, em busca de bons presságios e de bons momentos. Na realidade, o prior Robert nunca mostrava um ar aprovador face a tudo o que pudesse perturbar o calmo e ortodoxo curso dos acontecimentos dentro do mosteiro. Mas, sem dúvida, não via razão para recusar o que lhe estava a ser pedido com a devida deferência. Nem que fosse por agora, como Hugh afirmara, era-lhes permitido ficar. Jerome correu oficiosamente em busca de quatro irmãos ou noviços, fortes, para retirarem o corpo do carro e o transportarem em direcção ao claustro, sem dúvida, até à capela mortuária dentro da igreja.
O jovem pegou nas suas modestas posses e seguiu cansado atrás do cortejo, desaparecendo sob a arcada sul do claustro. Caminhava como quem estava cansado e com os pés doridos, mas mantinha-se direito, sem pretender fingir qualquer desgosto, embora a sua face permanecesse perfeitamente solene, mais preocupado com o que lhe ia na mente do que com o que poderiam pensar as pessoas que se encontravam à sua volta.
O irmão Denis desceu os degraus vindo da hospedaria e atravessou ligeiro o pátio após esta procissão funerária, presumivelmente para alojar amigável e decentemente os dois hóspedes vivos. Os espectadores ficaram ainda a olhar por uns momentos e depois regressaram às suas actividades interrompidas, dando novamente lugar ao barulho e movimento, primeiro leve e hesitantemente, mas em breve mais intensamente do que antes, já que agora tinham algo de novo e invulgar sobre que conversarem, passado o momento de receio.
Hugh e Cadfael atravessaram o pátio até ao portão, mantendo-se em silêncio. O carreteiro conduzia o seu carro agora leve na direcção de Foregate. Tornava-se evidente que tinha sido pago adiantadamente e que estava satisfeito com o negócio.
— Parece que o trabalho de um deles já está terminado — afirmou Hugh, observando-o a dirigir-se para o caminho. — Sem dúvida, em breve terá notícias do irmão Denis sobre o assunto, Cadfael.
O cavalo de Hugh, o grande e cinzento que sempre preferia, estava preso junto ao portão; sem grande beleza ou temperamento aparentes, mostrando um ar sério, obstinado e uma forte vontade, com um profundo desinteresse por toda a Humanidade, excepto pelo seu dono, e, ainda assim, não mais do que um respeito tolerante por um seu igual, até mesmo quanto a Hugh.
— Apareça em breve — disse Hugh colocando os pés nos estribos e segurando as rédeas — para me contar todas as novidades. Quem sabe, dentro de um dia ou dois, já saiba o nome daquela cara.
Cadfael saiu do refeitório após o jantar, num pôr do Sol rosado de uma tarde brilhante e morna, radiante de reflexos brilhantes. As leituras durante a refeição, provavelmente escolhidas pelo prior Robert em honra do cónego Gerbert, pertenciam às escrituras de Santo Agostinho, que Cadfael não apreciava tanto como deveria. Há uma certa rigidez e intransigência em relação a Agostinho, que oferece pouca compaixão em relação a todos com quem não concorda. Cadfael não podia deixar de ter as suas próprias reservas sobre qualquer santo reputado que descrevesse a Humanidade como uma massa corrupta e pecaminosa, que antecede inevitavelmente a morte, ou sobre quem visse o mundo com todas as suas imperfeições como irremediavelmente mau. Sob esta maravilhosa luz do final do dia, Cadfael olhou o mundo à sua volta, desde as rosas do jardim às pedras rústicas das paredes do claustro, e achou-o inquestionavelmente belo. Também não podia aceitar que o número dos predestinados à salvação fosse determinado à partida, limitado e imutável, como proclamara Agostinho, nem que o destino de todos os homens estivesse irremediavelmente predestinado à nascença, pois, se assim fosse, por que haveríamos de ter respeito pelos outros, por que não roubar e matar a torto e a direito e satisfazermos todos os apetites anárquicos deste mundo, já que não teríamos nada a perder com isso?
Com este espírito indisciplinado, Cadfael dirigiu-se para a enfermaria, em vez de voltar ao refeitório, onde a ferocidade e a rigidez do mundo de Agostinho certamente continuariam a fazer-se sentir. Era melhor prosseguir e verificar o conteúdo do armário dos remédios do irmão Edmund e sentar-se um pouco a conversar com os irmãos mais idosos, já demasiado fracos para poderem desempenhar grandes tarefas na rotina diária da vida monástica.
Edmund, que vivia no mosteiro desde os 4 anos de idade e era um observador meticuloso e cumpridor, tinha ido para a capela ouvir a leitura de Jerome. Regressou para a sua volta nocturna precisamente quando Cadfael estava a fechar as portas do armário dos remédios, memorizando e proferindo em silêncio os três elementos que precisavam de ser repostos.
— Então é aqui que o encontro — disse Edmund, sem se mostrar surpreendido. — Ainda bem, porque trouxe comigo alguém que precisa de um olhar atento e de uma mão firme. Estive quase para tentar eu próprio, mas os seus olhos vêem melhor que os meus.
Cadfael virou-se para ver quem poderia ser este paciente nocturno. Ali, a luz era fraca e o homem que estava atrás de Edmund mostrava-se hesitante em entrar e permanecia acabrunhado à entrada. Jovem, magro, aproximadamente da mesma altura que Edmund, que era superior à média.
— Aproxime-se da lamparina — disse Edmund — e mostre a sua mão ao irmão Cadfael. — Ê dirigindo-se a Cadfael, enquanto o jovem se aproximava em silêncio: — O nosso hóspede chegou hoje e fez uma longa viagem. Está mesmo a precisar de descansar, mas dormirá melhor se lhe tirar as farpas que tem espetadas, antes que as feridas infectem. Vamos lá, vou reavivar a luz da lamparina.
O aumento de luz mostrou plenamente a face do homem, com o seu nariz fino e proeminente, os ossos fortes dos maxilares e do queixo, com a sombra salientando a boca e as cavidades dos olhos sob a testa larga. Tinha limpo a poeira da viagem e escovado impecavelmente o cabelo louro e ondulado. Neste momento, não era possível determinar a cor dos seus olhos, pois estavam escondidos sob as grandes pálpebras enquanto estendia obedientemente o braço direito para a luz, com a palma da mão virada para cima. Era o jovem que trouxera consigo um companheiro já morto e que tinha pedido abrigo para ambos na abadia.
A mão suplicante que mostrava para ser observada era grande e forte, com dedos compridos e nodosos. As feridas tornaram-se logo evidentes. Na palma da mão, junto à base do polegar, dois ou três cortes abertos tinham sido agravados pela pressão, produzindo uma pequena ferida inflamada. Se não estava já infectada, em breve estaria se não fosse tratada.
— O seu carregador tem o carro num estado lastimoso — disse Cadfael. — Como se espetou desta maneira? Empurrando o carro para fora de um fosso? Ou empurrou mais do que ele puxou, limitando-se a segurar as correias? E o que utilizou para tirar as farpas? Uma faca que não estava limpa?
— Isso não é nada — disse o jovem. — Não queria maçar-vos com isto. Foram apenas umas pegas novas, ainda não desgastadas, que fizeram isto. E a carga era de facto pesada, ainda para mais tendo de ser puxada com correias. As farpas enterraram-se bastante, ainda lá ficaram pedaços de madeira, embora eu já tenha tirado alguns.
Havia pinças no armário dos remédios. Cadfael pesquisou cuidadosamente a ferida inflamada, fixando os olhos no seu trabalho. A sua visão era excelente e o toque das suas mãos, quando necessário, era meticuloso. As farpas de madeira grosseira tinham-se enterrado bem fundo e tinham deixado lascas. Retirou uma a uma com todo o cuidado e abriu e pressionou o local para ver se alguma tinha lá ficado. O paciente não pronunciou nem uma palavra, mantendo-se calmo e impassível, taciturno por natureza, ou talvez tímido e deslocado num local que lhe era estranho.
— Ainda lá sente alguma coisa?
— Não, apenas dor, mas já não sinto picar — afirmou o jovem experimentando a mão.
Sob a pele via-se o rasto escuro deixado pela farpa maior. Cadfael procurou no armário uma loção para limpar a ferida, consolda, aparina e vulnerária (1), coisas que mereciam bem o nome que tinham.
— Para impedir a infecção. Se a ferida amanhã ainda o incomodar, volte cá para a limpar novamente, mas creio que vai sarar depressa.
Edmund já os tinha deixado, para fazer a sua volta e ver como estavam os anciãos e tornar a encher a pequena lamparina que se mantinha sempre acesa na capela. Cadfael fechou o armário e pegou na lamparina que tinha utilizado, voltando a colocá-la no sítio habitual. A luz mostrou-lhe clara e nitidamente a face do paciente. Os olhos profundos e fixos sobre Cadfael eram com certeza, à luz do dia, de um azul-escuro mas brilhante; agora pareciam quase pretos. Aboca larga, com o seu modo obstinado, abriu-se subitamente num grande sorriso inocente.
— Agora já me lembro de si! — disse Cadfael, satisfeito e surpreendido. — Quando o vi entrar pelo portão, bem me parecia que já tinha visto esta cara. Mas não sei o seu nome! Se alguma vez soube, entretanto já me esqueci. Mas você é aquele rapaz que era empregado do velho William de Lythwood e que foi com ele em peregrinação, há já muito tempo.
— Há sete anos — disse o jovem, animado pelo facto de Cadfael se lembrar dele. — E chamo-me Elave.
— Bem, então voltou a salvo depois de ter andado por outras paragens! Não admira que tivesse o ar de alguém que atravessou meio mundo. Lembro-me da última oferta que William fez à igreja, veio cá antes de partir. Estava decidido a ir a Jerusalém, lembro-me de que na altura cheguei a desejar ir com ele. Chegou mesmo a Jerusalém?
— Chegou — disse Elave, mostrando-se ainda mais satisfeito. — Conseguimos! Tive muita sorte em trabalhar com ele, tive o melhor dos mestres. Mesmo antes de ter decidido levar-me com ele na viagem, já que não tinha filhos.
* (1) Nome botânico de plantas medicinais. (N. da T.)
— Pois não, não tinha — concordou Cadfael, recuando sete anos atrás. — Foram os sobrinhos dele que tomaram conta do negócio. Era um homem perspicaz e um bom patrono desta casa. Muitos dos nossos irmãos hão-de lembrar-se das suas ofertas...
De súbito, ficou calado. Ao recordar o passado, perdera por momentos a noção do presente. Obrigou-se a regressar à gravidade. Este rapaz tinha partido apenas com um companheiro e apenas com um companheiro regressava agora.
— Mas, diga-me — perguntou Cadfael com ar sério —, foi o corpo de William de Lythwood que trouxe para casa?
— Sim — disse Elave. — Morreu em Valognes, antes de chegarmos a Barfleur. Tinha guardado dinheiro para pagar o transporte, caso isso viesse a suceder, e regressarmos ambos a casa. Adoeceu quando caminhávamos para norte, através de França, por vezes tivemos de parar um mês ou mais até que ele conseguisse continuar. Sabia que estava para morrer, não fazia grande caso disso. E os monges foram sempre generosos connosco. Tenho boa caligrafia, sempre que podia trabalhava. Conseguimos fazer o que queríamos. — Afirmou-o simples e calmamente; tendo estado tanto tempo junto de um mestre satisfeito consigo próprio e com a sua fé, sem recear o seu fim, o rapaz tinha crescido com a mesma atitude prática e satisfeita de aceitação da vida. — Tenho mensagens dele para entregar à família. E fui encarregue de pedir aqui um local para ele.
— Aqui, dentro da abadia? — perguntou Cadfael.
— Sim. Pedi para ser ouvido amanhã no capítulo. Durante toda a vida foi um bom patrono desta casa, o abade não deixará de se lembrar disso.
— Agora temos um novo abade, mas o prior Robert lembrar-se-á, como muitos outros de nós. E o abade Radulfus dará ouvidos, não precisa recear uma recusa da sua parte. William terá testemunhas que cheguem. É pena que não tenha conseguido chegar vivo a casa.
— Olhou com respeito o jovem magricela que tinha à sua frente.
— Fez muito por ele, e deve ter feito uma viagem muito difícil, nestas últimas milhas. Mal tinha acabado de se tornar adulto quando ele o levou consigo.
— Tinha quase dezanove anos — disse Elave, sorrindo. — Dezanove e muito resistente, era forte como um cavalo. Agora tenho vinte e seis, safo-me sozinho. — Estudava Cadfael tão intensamente quanto este o estudava a ele. — Lembro-me de si, irmão. Foi o irmão que combateu, em tempos, no Oriente.
— É verdade — afirmou Cadfael, recordando com satisfação. Confrontado com este jovem viajante de locais em tempos bem conhecidos, trazendo-lhe vivas memórias, sentiu de novo as velhas saudades e também os velhos fantasmas. — Quando tiver tempo, somos capazes de ter muito para conversar. Mas agora não! Se não está exausto daviagem, tem bons motivos para estar, e amanhã teremos tempo para isso. Agora é melhor ir dormir. Tenho de ir rezar as Completas.
— Tem razão — assentiu Elave, apercebendo-se de que tinha chegado ao fim da sua missão. — Já estou muito contente por ter chegado aqui e ter cumprido o que prometi. Desejo-lhe assim as boas-noites, irmão, e obrigado.
; Cadfael ficou a vê-lo atravessar a extensão do pátio até às escadas da hospedaria, um jovem decidido e resistente, que viajara em sete anos mais do que muitos homens numa vida inteira. Mais ninguém entre aquelas paredes podia em espírito seguir os locais por onde passou, ninguém a não ser Cadfael. O velho desejo assolou-o intensamente, após compensadores anos de estabilidade e de paz.
— Já se lembra quem é? — perguntou Edmund, surgindo atrás de Cadfael. — Veio cá uma ou duas vezes a mandado do mestre, lembro-me, mas entre os dezoito e os vinte e picos anos um homem pode mudar tanto que deixamos de o reconhecer, sobretudo um homem que foi e voltou dos confins do mundo. As vezes penso, Cadfael, chego mesmo a imaginar, o que eu possa ter perdido.
— E agradece ao seu pai tê-lo oferecido a Deus — perguntou Cadfael — ou preferia que ele lhe tivesse dado a sorte dos outros homens? — Há muito tempo que eram amigos, o suficiente para permitir uma tal pergunta.
O irmão Edmund mostrou o seu sorriso calmo, passivo.
— Pelo menos você só se pode questionar a si próprio sobre a decisão que tomou. Eu pertenço a uma ordem do passado, Cadfael, já não haverá mais como eu, pelo menos sob Ranulfus, de certeza. Vamos para as Completas, rezar pela lealdade que prometemos.
O jovem Elave foi admitido no capítulo na manhã seguinte, assim que se concluíram as rotinas diárias do mosteiro.
Naquele dia, o número de presentes no capítulo era maior, devido aos clérigos que se encontravam apenas de passagem. O cónego Gerbert, com a sua missão irremediavelmente protelada por um tempo, não tinha outro remédio senão virar as suas energias frustadas para tudo o que surgia, e manteve-se sentado durante toda a sessão entre o abade Radulfus e o diácono do bispo, entregue à esperança deste formidável prelado, apoiando-se ansiosamente sobre o cotovelo. Este Serio era, como Hugh afirmara, um pequeno homem submisso, com um rosto suave, redondo e ingénuo, bem em contraste com o de Gerbert. Nos seus 40, devia ter tido uma cara menos redonda e mais alegre, com farto cabelo levemente grisalho, agora ameaçado aqui e acolá por uma incipiente careca. Sem dúvida, tinha sofrido com o excesso de peso do seu companheiro durante a viagem e tinha apenas intenção de cumprir a sua missão tão pronta e pacificamente quanto possível. O caminho até Chester devia parecer-lhe uma longa viagem, se é que tinha sido instruído para ir até tão longe.
Perante esta augusta e aumentada assembleia, Elave apareceu quando chegou a sua vez, animado e aliviado por ter conseguido o que queria, ao mesmo tempo que tentava ocultar o peso da responsabilidade que ali o levava. A sua face mostrava-se aberta e confiante, mesmo alegre. Não tinha motivos para esperar outra coisa que não a aceitação do seu pedido.
— Meu Senhor — disse Elave —, trouxe de regresso, da Terra Santa, o corpo do meu mestre, William de Lythwood, que era bem conhecido nesta cidade e que em tempos foi um grande benemérito da abadia e da igreja. Senhor, sei que não o haveis conhecido, pois começou a sua peregrinação há sete anos atrás, mas estão aqui irmãos que se lembram das suas ofertas e da sua caridade e que podem testemunhar a seu favor. Foi seu desejo ser enterrado no cemitério da abadia, e em seu nome peço, com todo o respeito, que o seu funeral seja efectuado e que o seu corpo seja enterrado entre estas paredes.
Provavelmente, tinha ensaiado várias vezes este discurso, pensou Cadfael, mantendo uma certa dúvida, pois não parecia ser um homem de palavra imediata, a menos que, talvez, confrontado com algo que valorizasse. Podia ser esse o caso, tinha-o dito com todo o coração. Tinha uma voz agradável, falava num tom agradavelmente baixo, e as viagens tinham-lhe ensinado a estar diante de todo o tipo de homens e situações.
Radulfus assentiu com a cabeça e virou-se para o prior Robert.
— Você estava cá, Robert, há sete anos, até há mais, e eu não. Conte-me o que se lembra sobre este homem. Era mercador em Shrewsbury?
— Um mercador muito respeitado — disse prontamente o prior. Tinha um grande e bem tratado rebanho no lado galês da cidade e era agente de vários outros proprietários de rebanhos mais pequenos, vendendo a lã em conjunto, obtendo assim melhores preços. Também tinha uma oficina onde fazia pergaminhos a partir das peles. Óptimos pergaminhos, com boa reputação. Comprámos-lhe pergaminhos desses, no passado. Agora quem dirige o negócio são os sobrinhos. A casa de família fica na cidade, perto da igreja de Saint Alkmund's.
— E foi patrono da nossa casa?
O irmão Benedict, o sacristão, descreveu as várias ofertas que William fizera ao longo dos anos, quer ao coro quer à paróquia de Santa Cruz.
— Era amigo chegado do abade Heribert, que faleceu aqui entre nós há três anos. — Heribert, demasiado gentil e bondoso para o gosto do bispo Henry de Winchester, então legado papal, foi destituído para dar lugar a Radulfus, e terminou os seus dias vivendo bastante satisfeito como um simples monge do coro, sem se lamentar.
— William também dava bastante aos pobres no Inverno — acrescentou o irmão Oswald, o esmoler.
— Ao que parece, William merece que o seu pedido seja satisfeito — disse o abade olhando de forma encorajadora para quem apresentara o pedido. — Compreendo que o tenha acompanhado na peregrinação. Fez muito pelo seu mestre, recomendo a sua lealdade, tenho a certeza de que a viagem lhe foi muito proveitosa, vivendo, tal como ao seu mestre, que morreu ainda peregrino. Não poderia ter tido uma morte mais abençoada. Agora pode retirar-se. Em breve voltarei a recebê-lo.
Elave fez uma grande reverência e retirou-se da sala da capela caminhando alegremente, como um homem a caminho de uma festa.
O cónego Gerbert tinha-se abstido de comentários enquanto Elave esteve presente, mas, logo que este saiu, clareou bem alto a garganta e disse com toda a gravidade:
— Meu senhor abade, é um grande privilégio ser enterrado dentro destas paredes. Não deveria ser concedido facilmente. Será que este caso se pode incluir nessa honra? Devem existir muitos homens, entre os mercadores, que gostariam de conquistar um tal local de repouso eterno. Convém que a vossa casa considere bastante, antes de admitir qualquer pessoa. Mesmo que tenha sido caridosa, poderá não o merecer.
— Nunca defendi — disse Ranulfus, imperturbável — que esse grupo ou negócio fosse mais valorizado do que os outros diante de Deus. Acabámos de ouvir uma impressionante lista das ofertas deste homem à nossa igreja, invulgar entre os seus colegas de ofício. E recorde que empreendeu e terminou a sua peregrinação a Jerusalém, um acto de devoção que testemunha bem as suas qualidades e a sua coragem.
Era característico de Serio, essa alma inofensiva e sincera, pensou Cadfael muito depois, quando a tempestade acalmara, falar na melhor das intenções mas no momento errado, utilizando desastradamente as palavras menos acertadas.
— E assim prevaleceram os bons conselhos — afirmou radiante. — Uma palavra de advertência atempada produziu esse abençoado efeito. Na verdade, um padre nunca deve silenciar as suas palavras quando ouve uma incorrecta interpretação da doutrina. As suas palavras podem reconduzir uma alma ao verdadeiro caminho.
A sua infantil satisfação desvaneceu-se a pouco e pouco perante o pesado silêncio que provocara. Olhou à sua volta sem compreender de imediato e, gradualmente, percebeu por que é que a maioria dos olhares o evitavam, fitando estudadamente ao longe ou olhando para as mãos cruzadas, enquanto o abade Radulfus o olhava firmemente, mas sem qualquer expressão, e o cónego Gerbert o atravessava com um olhar frio e penetrante. O grande sorriso desapareceu da face inocente e redonda de Serio.
— Para evitar qualquer crítica e todo e qualquer erro — aventurou-se a dizer, tentando afastar a consternação que as suas palavras haviam causado, mas obviamente falhando a sua intenção. A sua voz tornou-se cada vez mais fraca até que caiu em silêncio.
— Que doutrina — perguntou Gerbert maliciosamente — interpretou mal este homem? Que ocasião teve o seu padre de o admoestar? Está a tentar dizer que lhe ordenaram que fizesse a peregrinação, para se redimir de algum pecado mortal?
— Não, não!, não ordenaram — disse Serio timidamente. — Foi-lhe sugerido que a sua alma beneficiaria com essa absolvição.
— Absolvição de que grande ofensa? — insistiu o cónego.
— Oh!, nenhuma!, nenhuma que tivesse prejudicado alguém, nenhum acto de violência ou desonestidade. São coisas passadas — disse Serio galantemente, firmando os calcanhares numa bravura inusitada, tentando defender-se. — Foi há nove anos atrás, quando o arcebispo William de Corbeil, a sua memória seja abençoada, realizou uma missão de preces à maioria das cidades de Inglaterra. Como legado papal, estava preocupado com o bem-estar da Igreja e achou por bem utilizar as preces dos cónegos da sua própria casa em St. Osyth's. Fui enviado para auxiliar o reverendo padre que veio para a nossa diocese e estive com ele quando pregou aqui em Santa Cruz. William de Lythwood convidou-nos a seguir para jantar e mantivemos uma conversa muito interessante. Não foi nada irreverente, colocou inúmeras questões com toda a solenidade. Um homem cortês e hospitaleiro. Mas ainda que só em pensamentos... à procura de devidas instruções...
— Que está a dizer — pronunciou Gerbert em tom ameaçador —, que o homem que foi reprovado por pensamentos heréticos vem agora pedir para ser enterrado entre estas paredes?
— Oh!, não diria heréticos — balbuciou Serio apressadamente. — Pensamentos mal orientados, talvez, mas não diria heréticos. Nunca foi apresentada qualquer queixa sobre ele ao bispo. E viu-se que acabou por fazer o que lhe foi aconselhado, pois dois anos mais tarde iniciou a sua peregrinação.
— Muitos homens fazem peregrinações apenas por puro prazer — disse Gerbert em tom severo —, em vez do seu devido propósito. Alguns até para fazerem negócio, como os vendedores que não olham a meios.
O acto não é uma absolvição para os pecados, o que conta é a intenção sincera desse acto.
— Não temos qualquer razão — salientou firmemente o abade Radulfus — para concluir que a intenção de William não fosse sincera. Esses julgamentos não se encontram ao nosso alcance, deveríamos ter a humildade de reconhecer esse facto.
— Ainda assim, temos um dever a cumprir perante Deus, e não o podemos evitar. Que provas temos nós de que o homem chegou a modificar as crenças suspeitas que tinha? Não examinámos quais eram, qual a sua gravidade e se alguma vez foram arrependidamente postas de lado. Só porque existe em Inglaterra uma Igreja activa e salutar, não devemos pensar que o perigo das falsas crenças pertence apenas ao passado. Não ouviu dizer que existem pregadores libertinos em França que arrastam atrás de si os mais crédulos, insultando os seus próprios padres de corruptos e avarentos e os rituais da Igreja como sem significado? No sul, o abade de Clairvaux está cada vez mais preocupado com esses falsos profetas.
— Embora o próprio abade de Clairvaux tenha avisado — interferiu Radulfus energicamente — que a falta de um exemplo de piedade e simplicidade do sacerdócio ajuda as pessoas a virarem-se para as seitas oponentes. A Igreja também tem o dever de limar as suas imperfeições.
Cadfael prestava atenção, tal como todos os outros irmãos, com os olhos e os ouvidos bem abertos, desejando que este súbito confronto terminasse rapidamente. Radulfus não permitiria que qualquer prelado usurpasse a sua autoridade na sua própria sala, mas também não podia proibir que um enviado do arcebispo exercesse o seu direito de palavra e julgamento em assuntos de doutrina. A simples menção de Bernard de Clairvaux, o apóstolo da austeridade, bastou para lembrar a influência crescente dos cistercienses, ordem com a qual o arcebispo Theobald simpatizava. E, embora Bernard pudesse ter uma palavra a dizer sobre o popular criticismo mundano de muitos dos importantes homens da Igreja e ansiar pelo regresso da pobreza e simplicidade dos Apóstolos, no final de contas teria pouca misericórdia em relação a todos os que divergissem da restrita ortodoxia em questões de dogma. Radulfus poderia referir várias citações de Bernard, mas queria mudar de assunto enquanto ainda era possível.
— Eis aqui Serio — disse simplesmente —, que se lembra do encontro que o missionário do arcebispo teve com William. Poderá também lembrar-se de todas as referências à fé que surgiram na conversa entre eles.
Serio, pelo ar de dúvida que mostrava, mal saberia dizer se deveria estar contente ou não com esta oportunidade. Abriu a boca de forma hesitante, mas Radulfus impediu-o erguendo a mão.
— Espere! É, no mínimo, justo que o único homem que pode verdadeiramente testemunhar os pensamentos e a atitude do seu mestre antes de morrer possa estar presente para ouvir o que se diz sobre ele e dizer o que tem a dizer. Não temos o direito de excluir um homem do pedido que apresentou sem pelo menos o ouvir. Denis, poderia pedir ao jovem Elave que voltasse novamente ao conselho?
— Terei todo o prazer — disse o irmão Denis, e saiu com uma tal e evidente alegria que não seria difícil adivinhar os seus pensamentos.
Elave regressou ao capítulo com toda a inocência, esperando uma resposta formal, sem qualquer dúvida de qual seria. Os seus passos alertas e ar confiante falavam por ele. Não fazia ideia do que se iria seguir, nem quando o abade começou a falar, escolhendo as palavras moderada e cuidadosamente.
— Jovem senhor, temos aqui um certo debate relacionado com o pedido do seu mestre. Foi aqui dito que, antes de partir em peregrinação, tinha tido uma conversa séria com um padre enviado pelo arcebispo, para pregar aqui em Shrewsbury e que foi reprovado por certas crenças que mantinha, que não estavam inteiramente de acordo com a doutrina da Igreja. Chegou mesmo a ser sugerido que a peregrinação lhe tinha sido recomendada como forma de penitência. Sabe alguma coisa sobre este assunto? Pode ser que nem sequer tenha ouvido falar disso.
As sobrancelhas de Elave, espessas e acastanhadas, mais escuras que o cabelo, ergueram-se numa expressão de dúvida e surpresa, mas ainda sem inquietação.
— Sei que dedicava muitos dos seus pensamentos a alguns aspectos da fé, mas apenas isso. Desejava fazer a sua peregrinação. Estava a envelhecer mas continuava a ter energia, mais do que muitos outros mais novos. Perguntou-me se eu iria com ele, e eu fui. Que eu saiba, nunca houve qualquer disputa entre ele e o padre Elias. O padre Elias considerava-o um bom homem.
— Os bons homens que se deixam desviar para os caminhos errados produzem mais mal do que os maus, que são nossos inimigos declarados — disse o cónego Gerbert friamente. — São os inimigos de dentro que atraiçoam a fortaleza.
“Isto”, pensou Cadfael, “demonstra bem a forma de pensar da Igreja. Um turco ou um sarraceno podem vencer os cristãos numa batalha ou meter os peregrinos perdidos nas masmorras, continuando a ser tolerados e respeitados, apesar de serem amaldiçoados. Mas se um cristão dá um pequeno passo para o lado nas suas crenças é imediatamente excomungado.” Tinha visto isto suceder há vários anos, no Oriente, nas Igrejas cristãs lá sitiadas. Altamente pressionadas pelos inimigos, eram para si próprias que se viravam da forma mais selvagem. Aqui na abadia nunca tinha assistido a isto, mas poderia tornar-se tão vulgar quanto em Antioquia ou Alexandria. Porém, isso não se verificaria se Radulfus se mantivesse no seu cargo.
— O próprio padre não parece ter considerado William como um inimigo, quer de dentro quer de fora — disse o abade calmamente. — Mas o diácono Serio, aqui presente, ia contar-nos o que se lembra da conversa, e só depois disso deverá falar-nos sobre a forma de pensar do seu mestre antes de morrer, na certeza de que deve ser enterrado dentro deste recinto.
— Conte-nos! — disse Gerbert a um Serio hesitante, infeliz e assustado perante o que tinha posto em acção. — E seja conciso! Que aspectos da crença deste homem foram postos em causa?
— Havia pequenos pormenores — disse Serio de forma submissa —, tanto quanto me lembro. Em particular dois aspectos, para além das suas dúvidas em relação ao baptismo das crianças, tinha dificuldade em compreender a Santíssima Trindade...
“Quem não tem?”, pensou Cadfael. Se fosse compreensível, todos estes intérpretes do Deus caridoso ficariam sem a ocupação que têm. E todos eles negam a interpretação que outros possam ter.
— Afirmou que: se o primeiro era o Pai e o segundo o Filho, como podiam ser co-eternos e co-iguais? E, em relação ao Espírito Santo, não percebia como podia ser igual ao Pai e ao Filho ou se emanava d'Eles. Além disso, não via qualquer necessidade para um terceiro elemento, estando a criação, a salvação e todas as coisas completas no Pai e no Filho. Assim, o terceiro elemento servia apenas para satisfazer a visão daqueles que pensam em terceiros, como os trovadores e os adivinhos e todos os outros que se dedicam aos encantamentos.
— Ele disse isso acerca da Igreja? — A expressão de Gerbert era severa e dura.
— Não acerca da Igreja, não, isso acredito que nunca tenha dito. E a Santíssima Trindade é um grande mistério, muitos têm dificuldade em a entender.
— É algo que as mentes inadequadas não devem questionar, mas sim aceitar inquestionavelmente, com toda a fé. A verdade encontra-se perante eles, só têm de acreditar. Apenas os perversos e os perigosos têm a arrogância de pôr em causa aquilo que não pode ser posto em causa. Continue! disse dois aspectos. Qual é então o segundo?
Serio lançou a Radulfus um olhar quase de desculpa e outro, ainda mais rápido e desconfortável, a Elave, que desta vez o fitava de sobrancelhas erguidas e maxilares fechados, ainda sem qualquer receio ou raiva ou qualquer outra emoção, apenas ouvindo, à espera.
— Tinha a ver também com este assunto sobre o Pai e o Filho. Afirmou que, se são da mesma e única substância, já que o credo os apelida de consubstanciais, então, o aparecimento do Filho na Humanidade deve ter significado também o aparecimento do Pai, atribuindo a si próprio e tornando divino aquilo que o tinha unido com o Deus-Pai. E, portanto, quer o Pai quer o Filho conhecem o sofrimento, a morte e a ressurreição e partilham ambos da nossa redenção.
— Isso é a heresia patripassiana! — gritou Gerberd, ultrajado.
— Sabélio foi excomungado por isso e pelos seus outros erros. Noeto de Esmirna defendeu isso até à ruína. Não admira que o padre o tenha avisado da sepultura que estava a cavar para a sua própria alma.
— Seja como for — lembrou Radulfus firmemente à assembleia —, ao que parece, o homem soube ouvir os conselhos e fez a peregrinação, quanto à probidade da sua vida, nada foi apontado contra. Aquilo que temos a considerar é não aquilo sobre que especulou há sete anos ou mais mas sim o seu estado de espírito antes de morrer. Só temos aqui uma testemunha que se pode pronunciar quanto a isso. Agora oiçamos o seu servo e companheiro. — Virou-se para olhar de perto para Elave, cuja face se tornara controlada e conscienciosamente alerta, não pelo perigo mas por uma profunda ofensa.
— Fale pelo seu mestre — disse Ranulfus calmamente —, pois conheceu-o até ao fim. Qual era a sua maneira de estar na vida durante toda essa longa viagem?
— Era assíduo nas suas obrigações em qualquer parte — disse Elave
— e confessava-se sempre que era possível. Em nenhum sítio houve falta que lhe apontassem. Na Cidade Santa visitámos todos os locais mais sagrados e, no caminho de ida e volta, sempre que possível, alojámo-nos em abadias e priorados, e em todos os locais o meu mestre era aceite como sendo um homem bom e piedoso, honesto e bem considerado.
— Mas tinha renunciado às suas ideias — perguntou Gerbert — e retratado a sua heresia? Ou mantinha secretamente os seus erros iniciais?
— Alguma vez falou consigo sobre essas coisas? — perguntou o abade, interrompendo o discurso.
— Muito raramente, senhor, e eu não compreendia bem essas questões tão profundas. Não posso responder pelos pensamentos de outra pessoa, apenas pela sua conduta, que sei ter sido virtuosa. — O rosto de Elave mostrava agora uma calma contida e estudada. Não parecia ser um homem que não conseguisse entender assuntos mais profundos ou tivesse falta de interesse em os considerar.
— E, quando já se encontrava doente — perguntou Radulfus calmamente — , pediu um padre?
— Pediu, meu senhor, fez a sua confissão e recebeu a absolvição total. Morreu recebendo todos os sacramentos da Igreja. Sempre que havia um local e uma oportunidade, confessava-se ao longo do caminho, especialmente depois de se ter sentido doente pela primeira vez e termos sido forçados a ficar um mês inteiro no mosteiro de Saint Mareei, até estar preparado para continuar o caminho de regresso a casa. Aí conversou frequentemente com os monges, e todas essas questões sobre a fé e dúvidas foram compreendidas e toleradas por eles. Sei que falou abertamente sobre coisas que o perturbavam e ninguém se esquivou a debater todo o tipo de questões relacionadas com aspectos sagrados. O cónego Gerbert exibia um ar de fria suspeita.
— E onde fica esse local, esse Saint Mareei? E quando foi que lá ficaram um mês? Há pouco tempo?
— Foi na Primavera do ano passado. Saímos logo no princípio de Maio e fizemos a peregrinação a partir daí até Compostela com um grupo de Cluny, para agradecer o facto de o meu mestre ter recuperado a saúde. Ou pelo menos foi isso que na altura pensámos, mas nunca mais voltou a estar bem e, depois disso, tivemos de fazer muitas paragens. Saint Mareei é perto de Chalons, no Saône. É um mosteiro dependente da autoridade de Cluny.
Gerbert fungou ruidosamente e ergueu o seu nobre nariz quando Cluny foi mencionada. Essa grande casa tinha ajudado muito o tráfego de peregrinos e tinha prestado ajuda e apoio, protecção ao longo dos caminhos e abrigo nas suas casas a centenas de pessoas, não só em França mas, nos últimos anos, também em Inglaterra. Mas, para os dependentes mais chegados do arcebispo Theobald, era sobretudo a casa-mãe desse difícil colega, ambicioso e arrogante rival, o bispo Henry de Winchester.
— Morreu lá um dos irmãos — disse Elave, mantendo-se firme para defender a santidade e a sabedoria de Cluny — que tinha escrito sobre todos esses assuntos e ensinado quando era mais novo; era altamente reverenciado entre os outros irmãos e tinha o nome mais santificado entre eles. Não via qualquer mal em ponderar e considerar todas as questões difíceis, nem o abade, que o enviara de Cluny para lá para cuidar da sua saúde. Uma vez ouvi-o ler o Evangelho de São João e falar sobre o que tinha lido. Foi maravilhoso ouvi-lo. Isso foi pouco antes de morrer.
— É uma presunção aplicar a razão humana como uma falsa luz sobre os mistérios divinos — avisou Gerbert, mal-humorado. — A fé deve ser aceite, não discutida pela esperteza de um simples mortal. Quem era esse irmão?
— Chamava-se Pierre Abelard, um bretão. Morreu em Abril, antes de termos partido para Compostela, em Maio.
O nome nada dizia a Elave para além daquilo que tinha visto e ouvido, e lembrava-se dele desde então. Mas dizia muito a Gerbert, que, subitamente, com a rapidez com que uma chama se apaga quando o pavio termina, enrijou o corpo no lugar em que estava sentado, erguendo a cabeça e parecendo agora mais alto.
— Esse homem? Essa alma tresloucada e ingénua, não sabe que ele próprio foi duas vezes acusado de herege? Há muito tempo que os seus escritos sobre a Santíssima Trindade foram queimados, e esteve preso nessa altura. Há apenas três anos, no Concílio de Sens, ele foi novamente acusado de escrita herege, condenado à prisão perpétua e os seus escritos à destruição.
Radulfus, embora menos exclamativo, parecia estar igualmente bem informado, se não melhor.
— Uma sentença que foi rapidamente revogada — apontou secamente — e o autor autorizado a retirar-se em paz para Cluny, a pedido do abade.
Apanhado de surpresa, Gerbert foi forçado a responder sem pensar duas vezes.
— A meu ver, tal revogação nunca devia ter sido feita. Não a merecia. A sentença devia ter-se mantido.
— Foi revogada pelo Santo Padre — disse o abade calmamente —, que não comete erros. — Se rejubilava nesse momento, Cadfael não podia ter a certeza, mas o tom da sua voz, embora calmo e reverente, surtira o efeito da picada de um ferrão.
— Também a sentença! — respondeu Gerbert ainda mais inadvertidamente. — Com certeza Sua Santidade desconhecia algumas informações quando a proferiu. Sem dúvida ditou um julgamento acertado perante os factos que lhe foram apresentados.
Elave falou como se fosse para si próprio, mas suficientemente alto para ser ouvido por todos, com um brilho nos olhos e um jeito no maxilar que falavam ainda mais alto.
— No entanto, por própria definição, uma coisa não pode ser o seu oposto, por isso uma ou outra sentença tem de estar errada. Tanto pode ser a primeira como a segunda.
Quem, afinal, reflectiu Cadfael, espantado e deliciado, não conseguia entender os argumentos dos filósofos? Este rapaz tinha mantido os ouvidos bem abertos e a mente alerta durante todas as milhas de ida e volta do caminho para Jerusalém e aprendera mais do que pretendia fingir. Pelo menos tinha feito com que Gerbert ficasse vermelho de raiva e se mantivesse calado durante um momento.
Esse momento foi suficiente para o abade. A conversa estava a seguir um rumo perigoso e incontrolável. Interveio rápida e decididamente.
— O Santo Padre tem autoridade quer para prender quer para libertar, e a mesma vontade infalível com a qual pode condenar pode, com os mesmos direitos, absolver. Não existe aqui, a meu ver, nenhuma contradição. Apesar de quaisquer ideias que possa ter tido há sete anos atrás, William de Lythwood morreu em peregrinação, confessado e absolvido, em estado de graça. Não há qualquer impedimento ao seu enterro neste mosteiro e terá aquilo que pediu.
Ao atravessar o pátio depois da refeição, para regressar aos seus trabalhos no jardim de ervas medicinais, Cadfael encontrou Elave. O jovem estava a descer os degraus da hospedaria, com um andar e uma atitude animada e veemente, como uma ferramenta afiada, pronta a utilizar. Continuava alerta e pronto a mostrar a sua agressividade, após a questão do desejado local de repouso do corpo do seu mestre, com os ossos da face salientes de tensão e o nariz proeminente erguendo-se beligerantemente naquele ar do Verão.
— Parece pronto a morder em alguém — disse Cadfael, cruzando-se com ele nesse momento.
O rapaz olhou para trás durante um momento sem saber como responder, sem saber se havia mais alguém presente. Depois sorriu e aliviou um pouco a tensão.
— Não a si, de forma alguma, irmão! Não terei razão para mostrar os dentes?
— Bem, pelo menos ficou a conhecer bem o nosso abade. O seu pedido foi concedido. Mas mantenha-se calado até que o outro se tenha ido embora. Uma maneira de ter a certeza de não dizer nada que possa ser mal interpretado é ficar calado. Outra é concordar com tudo o que o prelado disser. Mas isso, duvido que consiga.
— É como abrir caminho numa emboscada de archeiros — disse Elave, relaxando. — Para um homem enclausurado, irmão, diz coisas fora do vulgar.
— Não serão assim tão fora do vulgar. O que eu considero, quando os divinos começam a falar de doutrina, é que Deus fala todas as línguas, e tudo o que Ele diz ou Lhe é dito, seja em que língua for, não precisa de intérprete. E, se for dito com devoção, não há que apresentar quaisquer desculpas. Como vai essa mão? Não está inflamada?
Elave mudou para a outra mão a caixa que transportava e mostrou a ferida quase sarada que tinha na palma da mão, embora ainda ligeiramente rosada à volta dos buracos deixados pelos picos.
— Venha ter comigo à estufa, se tiver tempo — incitou Cadfael — e deixe-me tratar novamente essa mão. Depois já não precisará de mais nada. — Deu uma olhadela à caixa que o jovem transportava debaixo do braço. — Mas se calhar tem assuntos para tratar na cidade! Tem de ir visitar a família de William.
— Amanhã terão de saber os pormenores do seu enterro — disse Elave. — Estarão com certeza presentes. Sempre se entenderam bem, nunca houve desentendimentos entre eles. Foi a mulher de Girard que se encarregou da casa para toda a família. Tenho de lá ir, dizer-lhes o que ficou combinado. Mas não há que ter pressa, aposto que quando lá chegar acabo por ficar o resto do dia e mais um bocado da noite.
Seguiram amistosamente, lado a lado, saindo do pátio e atravessando o jardim das rosas, contornando a grande sebe. Mal entraram na estufa sentiram o cheiro das ervas intensificado pelo calor do Sol, envolvendo-os numa nuvem de fragrâncias, ao longo do caminho de gravilha entre as filas de plantas que produziam aquele odor adocicado.
— É uma pena ficarmos dentro de casa num dia destes — disse Cadfael. — Sente-se aqui ao sol, eu vou buscar a loção.
De bom grado, Elave sentou-se no banco junto da parede norte, virando o rosto para o sol e pousando a caixa ao seu lado. Cadfael olhou-a com interesse, mas foi primeiro buscar a loção e untou de novo a ferida.
— Já nem vai dar por ela, está com um aspecto bastante limpo. A carne jovem cura-se depressa e de certeza que encontrou mais perigos ao atravessar o mundo do que irá encontrar aqui em Shrewsbury.
— Tapou o frasco e sentou-se ao lado do seu convidado. — Suponho que ainda nem sabem que voltou e que o parente morreu... a família, lá na cidade.
— Não, ainda não sabem. Ontem à noite mal houve tempo para velar o meu mestre e, mais a mais, com a disputa no capítulo hoje de manhã, ainda não tive hipótese de lhes falar. Conhece-os... os sobrinhos? Girard toma conta do rebanho e das vendas e recolhe a lã tosquiada dos rebanhos dos outros com quem negoceia. Jevan ocupou-se sempre do fabrico do pergaminho, já no tempo de William o fazia. Se é que assim continua, pois as coisas podem ter mudado desde que nos fomos embora.
— Vai encontrá-los vivos, a todos — disse Cadfael sossegando-o —, disso eu tenho a certeza. Não que os veja muito aqui em Foregate. As vezes aparecem nos dias de festa, mas vão à igreja em Saint Alkmund.
— Olhou para a caixa que Elave tinha pousado no banco entre os dois. — É algo que William trouxe para eles? Posso ver? Meu Deus, depois de a ter visto, não consigo tirar os olhos dela. É um belo trabalho de entalhe. E antigo, por certo.
Elave olhou para a caixa com uma apreciação crítica e uma indiferença, como se aquilo apenas significasse algo a ser entregue, algo que gostaria de entregar e de se livrar. Mas pegou-lhe imediatamente e colocou-a nas mãos de Cadfael para que a pudesse ver de perto.
— Tenho de a entregar, é o dote da rapariga. Quando ficou demasiado doente para poder prosseguir, lembrou-se dela, pois levou-a para casa logo no dia em que ela nasceu. Por isso deu-me isto para entregar a Girard, para ser usado em proveito dela quando casar. Torna-se complicado uma rapariga arranjar um marido quando não tem dote.
— Lembro-me de haver uma menina — disse Cadfael, rodando a caixa entre as mãos, encantado. — A sua beleza fascinava qualquer pessoa. Feita de uma madeira escura oriental, com cerca de trinta centímetros de comprimento por dezassete de altura e oito de profundidade, com uma tampa perfeitamente ajustada e um pequeno fecho dourado. As superfícies de lado eram lisas, de madeira polida e escura, quase negra, os cantos e a tampa de madeira, bela e pormenorizadamente entalhados com um trabalho de folhas de videira e uvas, e no centro da tampa uma placa de marfim, uma cabeça com um halo, mostrando toda a face, com grandes olhos bizantinos. Era tão antiga que os cantos estavam ligeiramente arredondados pelo uso, mas os traços do trabalho de entalhe ainda mantinham o dourado.
“Belo trabalho! — disse Cadfael, segurando-a contemplativamente. Balançou-a entre as mãos e pareceu-lhe apenas uma bela e sólida peça de madeira, sem nada lá dentro. — Nunca imaginou o que possa lá estar dentro?
Elave olhou-o, ligeiramente surpreendido, e levantou os ombros com indiferença.
— Fazia parte da bagagem e eu tinha outras coisas em que pensar. Só há meia hora atrás é que a fui buscar de entre o resto da bagagem. Não, nunca imaginei. Pensei que ele terá guardado algum dinheiro para ela. Só tenho de a entregar a Girard, conforme as instruções que recebi. Pertence à rapariga, não a mim.
— Não sabe onde ele arranjou esta caixa?
— Oh, sim, sei onde a comprou. A um pobre padre no mercado de Trípolis, mesmo antes de termos partido para Chipre e Tessalónica no caminho de regresso a casa. Havia lá cristãos fugitivos, que começavam a lá chegar vindos de Edessa e de ainda mais longe, postos fora dos seus mosteiros por invasores mameluques de Mosul. Vieram quase sem nada, tiveram de vender tudo o que tinham conseguido trazer para poderem sobreviver. William era perspicaz com os mercadores, mas tinha pena daquelas pobres almas. Diziam que naquelas paragens a vida era muito difícil e perigosa. A jornada a partir daí foi mais lenta, por terra. William queria ver a grande colecção de relíquias em Constantinopla. Mas, no caminho de regresso, começámos por vir pelo mar. Há muitos navios mercantes gregos e italianos que vão até Tessalónica, alguns até Bari e Veneza.
— Houve um tempo — meditou Cadfael em voz alta, voltando atrás nos anos — em que conheci bem esses mares. Como conseguiram arranjar alojamento no caminho, em todas essas milhas a pé?
— De vez em quando íamos acompanhados, mas na maior parte do tempo íamos só os dois. Os monges de Cluny têm asilos por toda a França e até em Itália, mesmo perto da cidade do imperador há uma casa para peregrinos. E, logo que se chega à Terra Santa, os Cavaleiros de São João dão alojamento aos peregrinos. Foi uma grande viagem — disse Elave, absorto. — Ao longo do caminho, vive-se um dia de cada vez, sem saber o dia de amanhã e esquecendo o dia anterior. Agora revejo todo esse tempo, e é maravilhoso.
— Mas nem tudo pode ter sido bom — disse Cadfael. — Seria pedir de mais. Lembre-se da chuva, do frio, da fome que terá por vezes sentido, dos assaltos, de vez em quando, e de alguns golpes dos que assaltam os viajantes - Oh, não me diga que não lhe aconteceu! E o cansaço e a doença de William ficaram, a má comida, a água salobra, as pedras do caminho. Encontrou tudo isso. Todos os homens que viajaram até tão longe pelo mundo sabem o que isso é.
— Lembro-me disso tudo — disse Elave firmemente, mas, ainda assim, continua a ser maravilhoso.
— Ainda bem! Ainda bem! — disse Cadfael, suspirando. — Meu rapaz, gostava de me sentar e conversar consigo sobre todos os momentos da viagem, quando tiver um bocado de tempo livre. Agora vá e entregue a caixa ao mestre Girard, e fica com o dever cumprido. Que vai fazer a seguir? Volta a trabalhar com eles como antes?
— Não, isso não. Era para William que eu trabalhava. Eles têm o seu próprio empregado, não quero substituí-lo e não precisam de dois. Além disso, quero mais e algo diferente. Vou pensar bem no assunto. Regressei com capacidade para mais do que quando fui e gostava de aproveitar isso. — Levantou-se e segurou firmemente a caixa debaixo do braço.
— Esqueci-me — disse Cadfael seguindo-lhe os gestos —, se é que alguma vez soube... como é que ele ficou com a criança? Não tinha filhos e, tanto quanto sei, Girard não tem nenhum, e o outro irmão nunca chegou a casar. De onde veio a rapariga? Encontrou-a e levou-a para casa?
— Assim se pode dizer. Havia uma criada, uma simples alma, que num determinado ano se deixou encantar por um pequeno vendedor na feira, e daí nasceu uma menina. William alojou as duas e Margaret cuidou da criança como se fosse sua. Quando a mãe morreu, simplesmente continuaram a tratar dela. Era uma linda menina. Mais esperta que a mãe. Foi William que lhe deu o nome de Fortunata, pois disse que tinha vindo ao mundo sem nada, nem sequer um pai, mesmo assim encontrou um lar e uma família e assim se manteria ao longo da vida. Tinha onze anos, quase doze — disse Elave — quando partimos, e era uma menina magricela e desajeitada, com os dentes grandes. Dizem que os cachorros mais bonitos se tornam os cães mais feios. Vai precisar de um dote como deve de ser para compensar aquele ar desajeitado.
Levantou-se, segurou com firmeza a caixa debaixo do braço, inclinou a cabeça loura num gesto de amigável reverência e fez-se ao caminho, apressado a cumprir os deveres que lhe tinham sido incumbidos, pensando, de alguma forma, nos sete anos que tinham passado desde que vira a família e as inevitáveis mudanças que o tempo teria produzido. O que antes era familiar pareceria agora estranho e levaria tempo a habituar-se a esse facto. Cadfael viu-o desaparecer, dobrando a esquina da sebe, indeciso entre um sentimento de empatia ou de inveja.
A casa de Girard de Lythwood, como muitas de mercadores burgueses de Shrewsbury, tinha a forma de um éle, com a frente mais curta virada directamente para a estrada e um arco de entrada desembocando num pátio seguido de um jardim. A base do éle tinha apenas um andar e constituía a loja onde Jevan, o irmão mais novo, armazenava e vendia os seus pergaminhos e as peles curtidas. A empena da parede correspondente à parte vertical do éle dava para a estrada e consistia numa pequena cave, encimada pela área destinada a habitação, com umas águas-furtadas no telhado íngreme, que providenciavam uns quartos de dormir extra. Na totalidade, o burgo não era grande, sendo o espaço algo valioso numa cidade tão apertada, construída à beira do rio. Fora desse aglomerado, nos subúrbios de Frankwell, de um lado, e de Foregate, do outro, havia espaço para a cidade crescer, mas dentro das muralhas cada palmo de terra tinha de ser bem aproveitado.
Elave parou diante da casa e assim permaneceu durante um momento, apercebendo-se da estranheza dos seus sentimentos, uma súbita sensação de ter voltado a casa, uma grande relutância em entrar e se fazer anunciar, um espanto mudo pela pequenez da casa que durante uns anos tinha sido o seu lar. Nas magníficas basílicas de Constantinopla e no profundo isolamento dos desertos, um homem habitua-se à imensidão.
Entrou devagar, através da estreita passagem para o pátio. A sua direita situavam-se os estábulos, a vacaria, um alpendre para armazenagem e o galinheiro, tal como se lembrava deles, à esquerda a porta da casa permanecia totalmente aberta, como era habitual em dias de Verão como aquele. Nesse exacto momento, uma mulher vinha a sair do jardim que se estendia para detrás da casa, segurando um cesto de roupa lavada, recém-tirada da sebe onde estivera a secar. Reparou no estranho que acabara de entrar e estugou o passo para se aproximar dele.
— Bom dia, senhor! Se procura o meu marido... — Não continuou a frase, espantada, reconhecendo mas não querendo a princípio acreditar no que via. Entre os 18 e os 25 anos, um homem não muda assim tanto que a própria família para quem trabalhava não o reconheça, por mais que tenha mudado e amadurecido durante esse tempo. Simplesmente, tinha sido apanhada desprevenida, sem uma palavra que lhe indicasse que ele se encontrava por perto.
— Dona Margaret — disse Elave —, não se lembra de mim?
A voz completara o que o semblante tinha começado. O rosto dela iluminou-se reconhecendo-o com evidente alegria.
— Meu Deus, é mesmo! Por um momento julguei ter tido uma visão e que continuava a andar pelo mundo, nalguma terra de bárbaros. Ora então, aqui o temos são e salvo, após toda essa grande viagem. Fico contente por o ver de novo, rapaz, e o Girard e o Jevan também vão ficar satisfeitos. Quem diria que iria aparecer assim de repente, vindo do nada e mesmo a tempo das festas de Santa Winifred. Venha para dentro, venha, deixe-me pousar esta roupa e trazer-lhe algo para beber, e a seguir conta-me como tem passado todo este tempo.
Libertou uma mão do cesto para o segurar calorosamente pelo braço e apressou-se a entrar, fazendo-o sentar-se num banco debaixo da janela aberta do hall, com tanta alegria que o silêncio dele passara despercebido. Era uma mulher de grande actividade, com ar asseado, cabelo castanho, 40 e tal anos, saudável e trabalhadora e também uma excelente e discreta vizinha, e a forma como mantinha a casa reflectia o próprio brilho da sua boa vontade.
— Girard está fora, a tratar da tosquia dos rebanhos, ainda demora um dia ou dois. Nem vai acreditar quando cá chegar e vir o tio William sentado à mesa como nos velhos tempos. Onde é que ele está? Veio consigo ou ainda tinha que fazer lá na abadia?
Elave inspirou fundo e disse aquilo que tinha de ser dito.
— Ele não virá, senhora.
— Não virá? — disse ela, admirada, virando-se subitamente para a porta da despensa.
— Lamento não lhe poder trazer melhores notícias. O mestre William faleceu em França, antes de embarcarmos para cá. Mas trouxe-o comigo, tal como lhe prometi que faria. O seu corpo encontra-se agora na abadia, onde será enterrado amanhã, no cemitério, junto dos patronos do mosteiro.
Ela ficou imóvel, fitando-o com o copo e o cântaro nas mãos, e durante um longo momento permaneceu em silêncio.
— Era esse o seu desejo — disse Elave. — Escolheu o que queria e teve aquilo que queria.
— Nem toda a gente vê a sua vontade cumprida — disse Margaret vagarosamente. — Então o tio William faleceu! Eu disse que ele tinha que fazer na abadia, não disse? Pois tinha, mas não o que eu supunha. E teve de o trazer sozinho pelos mares! E Girard está fora, e quem saberá onde está neste momento? Vai ficar muito desgostoso se não estiver cá para prestar as suas últimas homenagens a um grande homem. — Movimentou o corpo, saindo daquela rigidez momentânea, na sua atitude sempre prática. — Bem, você não tem culpa, fez muito por ele e tem de andar para a frente. Sente-se aqui e fique à vontade. Pelo menos já está em casa, acabada a viagem, bem pode descansar.
Trouxe-lhe cerveja e sentou-se ao lado dele, considerando objectivamente tudo o que era necessário fazer agora. Uma mulher competente, teria tudo organizado quer o marido chegasse a tempo ou não.
— Estava quase a fazer oitenta anos — disse ela —, tanto quanto me lembro. Teve uma vida boa, foi um bom chefe de família e um bom vizinho e acabou os seus dias numa missão abençoada, que tanto queria realizar, desde que o antigo padre de St. Osyth's lhe pôs essa ideia na cabeça. Lá estou eu! — disse Margaret, suspirando e abanando a cabeça —, a recordar o passado, não pode ser. Não há tempo para isso! Devia ter adivinhado logo, quando o vi entrar pelo portão, que o abade nos ia mandar chamar.
— O abade só soube esta manhã, no capítulo. Só cá está há quatro anos e nós partimos há sete. Mas agora já está tudo resolvido.
— Talvez esteja tudo tratado por lá, mas tenho de tratar para que esteja tudo pronto por cá, pois todos os vizinhos vão querer acompanhar-nos, e espero que volte connosco, depois do funeral. Por sorte o Conan está cá, vou enviá-lo a oeste para ver se encontra o Girard a tempo, embora não saibamos exactamente onde ele possa estar. Tem por lá seis rebanhos para tratar. Fique aqui sentado sossegado enquanto vou à loja chamar o Jevan e arrancar o Aldwin aos seus livros, depois conta-nos o que aconteceu ao velho mestre. Fortunata foi às compras na cidade, mas tenho a certeza de que não vai demorar.
Saiu imediatamente, decidida a ir chamar Jevan à loja, e Elave ficou mudo e sem fôlego perante a tagarelice dela, sem ter tido hipótese de mencionar o que tinha para entregar. Dentro de poucos minutos estava de regresso, trazendo atrás de si o fabricante de pergaminhos, o empregado de balcão e o pastor Conan, todos os da casa menos a rapariga adoptada. Elave conhecia-os bem a todos do tempo em que lá prestara os seus serviços e achou apenas um deles bastante modificado. Da última vez que o vira, Conan era um jovem de 20 anos, magro e esbelto, agora tinha-se desenvolvido e tinha mais carne e mais músculos, mostrando um ar robusto, rude e forte, próprio da vida ao ar livre. Aldwin tinha entrado para aquela casa ao serviço de Girard e ocupara o lugar de Elave quando William o levou consigo na peregrinação. Naquela altura um homem com mais de 40 anos, pouco letrado mas com o dom de ser rápido com os números, Aldwin, agora com quase 50 anos, não parecia ter mudado muito, a não ser o cabelo, que se tornara mais grisalho, e estava a ficar ligeiramente careca. Tivera de trabalhar arduamente para ocupar e manter o lugar de Elave e o seu rosto longo exibia agora linhas evidentes do esforço e da ansiedade. Elave tivera a sua oportunidade cedo, quando um padre viu nele um jovem promissor, e, como tal, fez todos os esforços para lhe arranjar uma boa colocação. Elave tinha desfrutado da sua superioridade quando trabalhara juntamente com Aldwin. Recordava agora como tinha de boa vontade passado os seus conhecimentos ao outro homem, bastante mais velho, não pelo verdadeiro desejo de o ajudar mas sim para impressionar e deslumbrar com a sua esperteza tanto Aldwin como aqueles que os observavam. Agora estava mais velho e mais ciente, tinha descoberto a sua pequenez perante um mundo tão grande. Sentia-se contente por Aldwin ter aquele lugar seguro, aquele tecto, sem ninguém que ameaçasse a estabilidade do seu emprego.
Jevan de Lythwood tinha feito os 40 anos havia pouco tempo, sete anos mais novo que o irmão, alto, erecto e de constituição não muito forte, com um rosto barbeado e jovial. Não tivera grande instrução na infância, mas como, desde cedo, se tinha ocupado do fabrico de pergaminhos, tinha conhecido alguns homens letrados, seus clientes, monges, escrivães e até mesmo alguns dos suseranos das casas senhoriais da zona, com alguma educação. Como era bastante rápido e esperto, decidiu-se a aprender com eles, conseguindo que o ajudassem, acabando por se tornar um letrado, a única pessoa naquela casa que sabia ler latim e mais do que umas poucas palavras em inglês. Era bom para o negócio que o vendedor de pergaminhos tivesse a noção da qualidade do seu trabalho e compreendesse o uso que o mundo letrado lhe destinava.
Todos tinham entrado apressados atrás de Margaret para se sentarem à volta da mesa, cumprimentarem o viajante e ouvirem as suas notícias. A perda de William, idoso, acabado, tendo deixado este mundo num estado de graça, o seu corpo repousando no local em que se desejava, não constituía uma tragédia, mas sim o final de uma vida inteira de satisfação. A morte de William fora melhor e mais rapidamente aceite por ele ter estado ausente durante sete anos, o vazio que deixara tinha sido suavemente preenchido e não fora agora reaberto ao lembrar a sua memória. Elave contou quanto pôde sobre a viagem de regresso, sobre as sequelas recorrentes da doença e sobre a morte, uma morte calma numa cama decente, com uma alma confessada, em Valognes, perto do porto onde deveria ter embarcado para regressar a casa.
— E o funeral será amanhã — disse Jevan. — A que horas?
— Depois da missa das dez. o próprio abade irá presidir à cerimónia. Acedeu à última vontade do meu mestre — afirmou Elave em tom de explicação — contra a opinião de um cónego de Canterbury, que se encontra de visita. Viaja com ele um dos diáconos do bispo que começou com uma conversa disparatada sobre uma discussão com um padre que se encontrava de passagem, há uns anos, e Gerbert, exacerbando as palavras dele, chamou herético a William e recusou-lhe o último desejo, mas o abade manteve-se firme e aceitou-o. Estive quase — admitiu Elave, revoltado — a ter uma corda à volta do pescoço por discutir com o homem. E é um daqueles que não aceita bem que se lhe oponham. Dificilmente poderia vencer o abade na sua própria casa, mas duvido que tivesse ficado com alguma simpatia por mim. É melhor manter a cabeça baixa enquanto ele não se for embora.
— Fez muito bem — disse Margaret calorosamente — em defender o seu mestre. Espero que isso não o tenha prejudicado.
— Oh, claro que não! Agora está tudo resolvido. Irão à missa, amanhã?
— Todos nós — disse Jevan —, e as mulheres também. E Girard, se o acharmos a tempo, mas já deve vir de regresso, deve estar agora perto da margem. Tinha intenção de regressar para as festas de Santa Winifred, mas há sempre a hipótese de se atrasar com os rebanhos junto ao rio.
Elave deixara a caixa de madeira sobre o banco debaixo da janela. Levantou-se para a trazer para a mesa. Todos olharam o seu movimento com interesse.
— Foi-me ordenado que entregasse isto nas mãos do mestre Girard. O mestre William deixa-o à sua guarda até que Fortunata se case. É o dote dela. Quando já estava muito doente, lembrou-se dela e disse que deveria ter um dote. Foi isto que ele mandou.
Jevan foi o primeiro a esticar o braço e a segurar a caixa, fascinado pela beleza do entalhe.
— Isto é um trabalho raro. Ele encontrou isto algures no Oriente? Ergueu-a, surpreendido com o seu peso. — Parece um tesouro maravilhoso. Que tem dentro?
— Isso não sei. Foi pouco antes de morrer que ma entregou e me disse o que pretendia. Só isso, e eu também não lhe fiz perguntas. Tinha muito com que me preocupar, na altura, e muito que fazer depois.
— Pois tinha — disse Margaret —, procedeu muito bem e temos de lhe agradecer, pois ele era o nosso chefe de família e um bom homem.
Fico satisfeita por ter tido junto dele um rapaz tão bom para o acompanhar e o trazer de volta a casa em segurança. — Pegou na caixa que se encontrava agora em cima da mesa, onde Jevan a tinha colocado, e passou os dedos sobre os entalhes dourados com uma admiração evidente. — Bem, se foi enviada a Girard, eu guardo-a até que ele regresse. Isto é assunto para ser tratado pelo homem da casa.
— Até a chave — disse Jevan — é uma peça de arte. Então a nossa Fortunata não foi esquecida, tal como o tio William sempre disse que não seria. E a sortuda continua nas compras e ainda não sabe da sorte que teve!
Margaret abriu um armário alto, que se encontrava num canto da sala, e colocou a caixa e a respectiva chave numa das prateleiras de cima.
— Fica aqui até o meu marido voltar para casa e depois tomar bem conta dela, até que a minha menina não tire os olhos do jovem que escolher para marido e decida casar.
Todos os olhares tinham seguido a prenda de William até ao local onde tinha sido guardada. Aldwin disse com azedume:
— Haverá muitos que a querem para mulher, se ouvirem dizer que ela possui um dote. Vai precisar muito dos seus conselhos, minha senhora.
Conan não dissera nada até aí. Nunca fora muito falador. Os seus olhos seguiram a caixa até o armário ter sido fechado, mas tudo o que tivera a dizer, dissera-o no final, quando Elave se levantou para se ir embora. O pastor levantou-se com ele.
— Então vou-me embora, vou buscar o cavalo e ver se descubro onde está o mestre. Mas, quer o encontre ou não, volto ao anoitecer.
Estavam todos a dispersar para as suas variadas ocupações quando Margaret segurou Elave pela manga, fazendo com que ficasse depois de os outros terem saído.
— Tenho a certeza de que sabe como são as coisas — disse ela em tom confidencial. — Só lhe vou dizer a si, Elave. Sempre foi esperto com as contas e bom trabalhador e, para ser honesta, Aldwin não tem comparação consigo, embora faça o que pode e faça bastante bem tudo o que lhe é pedido. Mas está a ficar velho e não tem nem casa, nem família própria e que seria dele se agora o mandássemos embora? Você é jovem, muitos mercadores gostariam de o contratar, com todo o conhecimento que tem do mundo. Não vai levar a mal...
Elave percebera muito antes o que ela queria dizer e apressou-se a interrompê-la para a sossegar.
— Não, não, nem pensar nisso! Nunca esperei ter o meu lugar de volta. Por nada deste mundo iria prejudicar Aldwin. Fico contente que ele esteja seguro para o resto da vida. Não se preocupe comigo, irei à procura de um emprego, E pode ficar descansada que não guardo qualquer rancor. Desta casa só tive coisas boas e não me esquecerei disso. Não, Aldwin tem de continuar no trabalho dele, estou perfeitamente de acordo.
— É mesmo o rapaz de que eu me lembro! — disse, profundamente aliviada. — Sabia que ia aceitar as coisas como estão. Espero que consiga um bom serviço com algum mercador viajante, um desses que atravessam os mares, isso era bom para si, depois de tudo o que já viu e fez. Mas amanhã, depois do enterro do tio William, volta e almoça connosco?
Assim prometeu, sem hesitar, satisfeito por ver aceite e compreendida a sua amizade. Para dizer a verdade, tinha pensado que poderia ficar por lá, tratando das compras e do pagamento dos salários, da pesagem e da venda das lãs e dos pequenos proveitos e despesas de um negócio bom, mas limitado. Ainda não tinha a certeza daquilo que iria fazer, podia dar-se ao luxo de procurar bem antes de se comprometer. Ao sair, encontrou-se lado a lado com Conan, que ia a caminho do estábulo, e desviou-se para deixar passar primeiro o mensageiro de Margaret.
Uma jovem com um cesto na mão tinha acabado de entrar pela estreita passagem da entrada e atravessava o pátio na sua direcção. Não era propriamente alta, mas parecia ser, dado o seu porte erecto e a sua forma de andar, com passos leves e joviais, airosa. O seu vestido cinzento liso movia-se juntamente com o andar de um corpo esbelto, e a cabeça, bem posicionada sobre o longo pescoço, estava coroada por uma trança enrolada de cabelo escuro salpicado de uns brilhantes laivos ruivos. A meio do pátio, na direcção deles, parou abruptamente, de boca e olhos abertos de espanto, e, de repente, soltou uma gargalhada, um som alegre de prazer e de espanto.
— Você! — disse num pequeno e deliciado grito. — É mesmo verdade? Não estou a sonhar?
Deteve-os naquele instante, com a surpresa daquele acolhimento, deixando Elave de boca aberta como um idiota, perante aquela rapariga desconhecida, que não só parecia conhecê-lo como tivera prazer em o ver, ficando Conan em silêncio ao seu lado, sem expressão no rosto, dirigindo o olhar atento ora para um, ora para outro.
— Não me reconhece? — perguntou a rapariga com a sua voz alegre entre gargalhadas.
Que tolo era, quem mais poderia ser, surgindo assim de cabeça destapada, vinda das compras na cidade? Mas era verdade, não a teria reconhecido. O rosto pequeno e magro tinha-se transformado num suave rosto oval cor de marfim, os dentes, em tempos demasiado grandes para a boca, eram agora perfeitos e brilhantes entre os lábios rosa que sorriam perante a sua surpresa e confusão. Todo o corpo ossudo se tinha arredondado de forma graciosa. Os longos cabelos, que antes caíam em emaranhadas madeixas sobre os ombros pontiagudos de criança, pareciam agora uma coroa, naquela trança enrolada sobre a cabeça, e os olhos, de um castanho-esverdeado, cujo olhar fixo achara desconcertante há sete anos atrás, brilhavam agora de prazer ao vê-lo, prendendo o seu olhar.
— Agora sei quem é — disse ele, atrapalhando-se com as palavras. — É que mudou muito!
— Você não — disse ela. — Talvez tenha a pele mais morena e o cabelo ainda mais louro do que era, mas tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado. Voltou assim sem avisar, e deixavam-no ir embora sem esperar para eu o ver?
— Amanhã volto — disse ele, hesitando em explicar porquê, ali no pátio, com Conan ao lado continuando a olhá-los. — A Dona Margaret conta-lhe tudo. Tinha uma mensagem para entregar...
— Se soubesse — disse Fortunata — quanto falámos de ambos e tentámos imaginar o que seria de vós naquelas paragens longínquas. Não é todos os dias que alguém se mete nessas aventuras, pensa que nunca nos lembrámos de vós?
Em todos aqueles anos nunca pensara muito sobre como estariam as pessoas que tinham deixado para trás. Naquela casa , o único que lhe tinha sido mais próximo fora William, e com ele seguira, tranquilamente, sem pensar nos outros que ali continuaram as suas vidas, muito menos numa pequena de 11 anos, de pernas compridas e delgadas, com borbulhas e um olhar desconcertante.
— Duvido — disse ele, envergonhado — de que alguma vez tenha merecido os seus pensamentos.
— Que tem o merecimento a ver com isto? — disse ela. — E ia-se agora embora e voltava amanhã? Não, isso não está certo! Venha comigo para dentro de casa outra vez, nem que seja só por uma hora. Por que terei de esperar até amanhã para me habituar à ideia de o ver novamente?
Puxou-o pela mão, fazendo-o regressar e passar de novo pela porta aberta e, embora Elave soubesse que isto não passava de uma forma aberta e amistosa de alguém que o conhecera desde a infância e que lhe desejara sorte durante a ausência, tal como faria a todos os homens de boa vontade - nada mais do que isso, ainda! —, seguiu com ela como uma criança estarrecida, encantado e sem dizer uma palavra. Tinha para lhe dizer aquilo que a deixaria perturbada durante uns momentos, depois disso não tinha mais nada para lhe dizer ou para fazer naquela casa, não havia qualquer razão para acreditar que ele alguma vez significasse para ela algo mais, ou vice-versa. Mas seguiu com ela e entraram na suave penumbra do hall.
Conan ficou a olhá-los durante um bom bocado, antes de se dirigir para os estábulos, com as sobrancelhas erguidas e muitos pensamentos em mente.
Era já de noite quando Conan regressou, sozinho. — Fui até Forton, mas ele tinha partido cedo para Nesse, pois já tinha terminado ali e não queria chegar de noite. Achei por bem voltar para trás. Não estará cá amanhã, sem saber o que se passou chegará demasiado tarde para acompanhar o enterro de William.
— Vai ficar com pena de não ter podido estar presente — disse Margaret, meneando a cabeça —, mas agora não há nada a fazer. Bem, temos nós de tratar de tudo. Se calhar tinha sido uma pena fazê-lo regressar de tão longe e perder dois dias ou mais, logo na altura da tosquia. Talvez tenha sido melhor assim.
— O tio William descansará em paz, de qualquer forma — disse Jevan, imperturbável. — Tinha jeito para o negócio, não gostava de desperdiçar tempo nem arriscar-se a que outro comerciante lhe roubasse um cliente por não estar disponível. Não há razão para nos afligirmos, amanhã estará lá todo o resto da família. Meg, se se quer levantar cedo para deixar a mesa posta, é melhor ir agora para a cama e descansar.
— Sim — disse ela suspirando e apoiando as mãos sobre a mesa para se levantar. — Deixe lá, Conan, fez o que podia. Deixei-lhe cerveja, pão e carne na cozinha, para depois de ir arrumar o pónei. Desejo a ambos uma boa noite! Jevan, depois coloca a luz lá fora e verifica se a porta está trancada?
— Claro. Até agora nunca me esqueci, pois não? Boa noite, Meg! O quarto maior era o único que se situava naquele andar principal.
Fortunata tinha um pequeno quarto em cima, separado da zona maior do sótão, onde os serventes da casa dormiam, e Jevan dormia num pequeno quarto sobre a entrada que dava para o pátio, onde guardava os seus bens mais preciosos e o seu baú de livros.
Margaret fechou a porta atrás de si. Conan tinha regressado e dirigia-se para a cozinha, mas, ao chegar à porta, olhou para trás e perguntou:
— Acabou por ficar cá muito tempo? O rapaz. Ia-se embora, quando eu saí, mas quando íamos no pátio encontrámos Fortunata e ele voltou a entrar com ela.
Jevan fitou-o com um olhar tolerante e surpreendido.
— Ficou para jantar connosco. Amanhã também irá connosco. A nossa menina ficou muito contente de o ver. — Apesar do rosto sério
. e solene mesmo quando em repouso, tinha um par de olhos negros e brilhantes que não perdiam quase nada do que se passava à sua volta
e que, naquele momento, divertidos com o que viam, pareciam perscrutar Conan a ponto de este se sentir desconfortável.
— Não tem que se preocupar — disse Jevan. — Ele não é pastor, não se atravessará no seu caminho. Vá jantar e deixe essas preocupações para o Aldwin, se é que isto merece alguma.
Era uma ideia que não tinha passado pela mente de Conan, até então, mas tinha a sua validade, tal como a outra possibilidade que realmente o preocupava. Entrou na cozinha com estas duas considerações em mente, para tomar a refeição que lhe haviam preparado, e encontrou Aldwin sentado à mesa, com um ar taciturno diante de um copo de cerveja meio vazio. — Nunca pensei — disse Conan, sentando-se e apoiando-se sobre os cotovelos no outro lado da mesa — que voltássemos a ver o rapaz outra vez. Com todos esses perigos em terra e no mar de que se ouve falar, ladrões e assaltantes em terra, tempestades, naufrágios e piratas no mar, e havia de conseguir continuar o caminho e regressar a casa são e salvo. Conseguiu mais do que o seu mestre! - Chegou a encontrar Girard? — perguntou Aldwin.
— Não, estava longe, para oeste. Já não havia tempo para ir atrás dele até mais longe, terão de enterrar o velhote sem ele. Só é pena — disse Conan candidamente — que, em vez do dele, não seja o enterro de Elave.
— Vai-se embora outra vez — disse Aldwin, desejando profundamente que assim fosse. — Agora já não quer nada connosco, não vai cá ficar.
Conan deixou escapar uma gargalhada que nada tinha de divertido.
— Vai-se embora? Esta tarde estava para se ir embora, até que pôs os olhos em Fortunata. Voltou a correr quando ela lhe pegou pela mão e o trouxe outra vez para dentro. E, pelo que vi, ela não vai ter olhos para mais ninguém enquanto ele estiver por cá.
Aldwin dirigiu-lhe um olhar precavido e descrente.
— Não me diga que pretende ganhar os encantos da rapariga? Até agora não vi sinais nenhuns.
— Gosto muito dela, sempre gostei. Mas isso de a tratarem como se fosse filha deles... afinal ela não é da família, recolheram-na por piedade. Mas, quando se trata de dinheiro, o parentesco já é outro e, se Girard não tem sobrinhos do lado dele, a Dona Margaret tem. Quer queiram quer não, um homem tem de cuidar do seu futuro.
— E agora ainda gosta mais da rapariga porque ela herdou um dote do velho William — adivinhou Aldwin, perspicaz —, e queria ver o outro rapaz fora daqui. Mas foi ele que lhe trouxe o dote!
— E como sabe que o que está lá dentro vale a pena?
— Num estojo como aquele? Viu como estava enfeitado, cheio de entalhes e marfins.
— Uma caixa não passa de uma caixa. o que interessa é o que lá tem dentro.
— Nenhum homem ia pôr coisas sem importância numa caixa daquelas. Mas quer tenha muito ou pouco valor, vale a pena a aposta. Pois eu gosto mesmo da rapariga e acho que seria uma atitude de bom senso e que não seria nenhuma vergonha — apressou-se a dizer Conan solenemente —, e se tiver posses ainda melhor. E você fazia bem — acrescentou com ar sério — em pensar no que vai fazer se esse rapaz se deixar seduzir por Fortunata e acabar por ficar cá, onde aprendeu o ofício.
Continuava a dar voz aos pensamentos que atormentavam a mente tranquila de Aldwin desde que Elave tinha aparecido. Mas este fez um esforço para pôr fim à conversa.
— Até agora não vi sinais nenhuns de que seja bem-vindo por cá.
— Pois, quer queiram quer não, foi muito bem recebido — retorquiu Conan. — E eu nem sequer disse nada a Jevan, para ele me responder que eu não tinha nada a recear nem a perder em relação a Elave, uma vez que ele não é pastor, não ameaça o meu lugar aqui. Deixe essas preocupações com o Aldwin, disse ele, se é que isto merece alguma.
Aldwin estivera preocupado toda a noite, o que era evidente pela forma como apertava as mãos uma na outra, com os nós dos dedos brancos, e pela forma como a sua boca demonstrava o mau-humor, como se tivesse algo amargo. Continuava mudo, fervilhando de receios e suspeitas, e esta pequena frase de Jevan vinha confirmar as suas preocupações.
— Por que havia ele de voltar vivo de uma viagem daquelas, onde morrem milhares? — queixou-se Conan, remoendo o assunto. — Deus sabe que não lhe desejo nenhum mal, mas gostava que tivesse ficado longe. Se tivesse lá ficado, até lhe desejava bem. Mas só se fosse louco é que não via que aqui se pode safar muito bem. Não o estou a ver voltar para trás.
— Não — concordou Aldwin com uma expressão malévola —, a menos que fosse a presa dos cães de caça.
Aldwin continuou sentado por mais um tempo depois de Conan se ter ido deitar. Por certo, quando se levantasse da mesa já o hall estaria às escuras, a porta da rua trancada e Jevan no seu quarto. Aldwin reavivou a luz da vela, para o iluminar através do hall até às escadas de madeira que davam para o sótão, antes de apagar a trémula chama.
O hall estava calmo e silencioso, sem qualquer movimento a não ser um leve ruído das portadas causado pela brisa da noite. A vela que Aldwin segurava iluminou a escuridão, o suficiente para poder ver o caminho nun local que lhe era familiar. Começara a subir a escada quando parou, hesitando por um momento, ouvindo o silêncio apaziguador, depois deu meia volta e dirigiu-se para o armário do canto.
A chave ficava sempre na fechadura, embora a porta do armário ficasse quase sempre aberta. Os maiores valores que existiam naquela casa eram guardados na arca que se encontrava no quarto de Girard. Aldwin abriu cautelosamente a longa porta, colocou a vela na prateleira ao nível do seu peito e ergueu o braço para alcançar a prateleira onde Margaret pusera a caixa de Fortunata. Quando a colocou perto da vela, tornou a hesitar. E se a chave fizesse barulho ao rodar e se, apesar de tudo, não a conseguisse abrir? Não sabia dizer o que o tinha impelido, mas a sua curiosidade sempre fora forte e constante, como se tivesse de saber tudo sobre o que se passava naquela casa, para o caso de algum pormenor poder ser usado contra si próprio. Girou a pequena chave, a qual rodou suave e silenciosamente, condizente com a fechadura que accionava e a caixa que adornava e guardava. Levantou a tampa com a mão esquerda e com a direita segurou a vela para iluminar o interior da caixa.
— Que está aí a fazer? — perguntou a voz de Jevan, aguda e irritada, no cimo das escadas.
Aldwin parou bruscamente, deixando cair pingos de cera quente na mão. Num instante, fechou a tampa da caixa e trancou-a com a chave, colocando-a apressadamente na mesma prateleira, em pânico. A porta aberta do armário evidenciava o que estivera a fazer. De onde Jevan surgia ao descer os primeiros degraus da escada, uma sombra movendo-se entre as sombras, conseguiria ver a luz, embora não a sua fonte, conseguiria ver parte do armário aberto e a silhueta de Aldwin, mas não poderia ter visto o que estivera a fazer com as mãos, a não ser talvez aquele movimento ao erguer o braço para colocar no seu sítio o tesouro violado. Aldwin apoiou-se na prateleira e virou-se segurando a vela numa mão e na outra o pequeno punhal que tirara do cinto.
— Ontem deixei ficar aqui o meu punhal, quando estive a arranjar a pega do balde. De manhã vou precisar dele.
Jevan descera a escada e avançava para Aldwin, contendo a irritação, fazendo-o desviar-se para poder fechar a porta do armário.
— Então leve-o e vá para a cama, e deixe de perturbar o silêncio da casa a uma hora destas.
Aldwin retirou-se com inusitada docilidade e boa disposição, perfeitamente aliviado por se ter saído tão bem daquele encontro, que poderia ter resultado muito mal. Não olhou para trás ao afastar-se, mas, enquanto subia a escada e alcançava o hall, a mão tremia-lhe ao segurar a vela. Mas ouviu atrás de si o pequeno, mas inconfundível som de uma chave grande a rodar e percebeu que Jevan fechara o armário. As andanças furtivas do seu empregado podiam ser toleradas ou omitidas, consideradas como maçadoras, mas inofensivas, mas não deviam ser encorajadas. Durante uns tempos, Aldwin deveria agir prudentemente com Jevan, até que o incidente fosse esquecido.
O que mais o irritava é que tinha feito aquilo tudo para nada. Não chegara a ter tempo para examinar o que estava dentro da caixa, pois, mal abrira a tampa, tivera de a fechar apressadamente, sem sequer ter tido tempo de olhar para o seu conteúdo. Não se atrevia a tentar novamente. O conteúdo da caixa de Fortunata teria de permanecer em segredo até que Girard regressasse a casa.
No vigésimo primeiro dia de Junho, após a missa a meio da manhã, William de Lythwood foi sepultado num modesto recanto do cemitério, no lado oriental da igreja da abadia, onde repousavam outros bons patronos do mosteiro. Fora cumprida a sua vontade e descansava em paz.
Entre alguns dos presentes, o irmão Cadfael pôde verificar um sério descontentamento. Conhecia Aldwin tão bem como em tempos conhecera Elave, como mensageiro ocasional do seu mestre, e, para dizer a verdade, nunca o tinha visto bem-disposto, mas naquele dia tinha um ar mais abstracto e taciturno, mantinha-se perto do pastor, de maneira conspiratória, ambos com um olhar intenso e desconfiado sobre o peregrino que regressara, de uma forma que sugeria nitidamente que este não era bem-vindo, por mais amigavelmente que o resto da casa o recebesse. E o próprio jovem parecia concentrado nos seus pensamentos, mas, apesar disso, os seus olhos viraram-se várias vezes para a jovem que modestamente permanecia um passo atrás de Dona Margaret, honestamente cortês e muito solene perante a sepultura do homem que lhe dera um nome e um lar. E um dote!
Merecia bem a pena todos os olhares que lhe eram dirigidos. Possivelmente, Elave estava a reconsiderar a sua determinação em procurar algo mais e melhor para si próprio do que poderia encontrar no seu antigo emprego. Aquela menina magricela, só dentes e ossos, tinha-se tornado uma mulher muito atraente, não demonstrando, porém, qualquer sinal de achar o jovem tão perturbante quanto ele obviamente a considerava. Dedicava-se inteiramente aos rituais do funeral do seu benfeitor e não prestava atenção a mais nada.
Antes de os presentes terem dispersado, houve uma troca de cumprimentos e condolências por parte dos clérigos à família, que se mostrou grata com esta atitude. No pátio ensolarado, os presentes começaram a dispersar, como a decência requeria, em pequenos grupos, família por família, com o abade Radulfus e o prior Robert prestando as devidas atenções a Margaret e a Jevan de Lythwood antes de estes se retirarem, com o irmão Jerome, na qualidade de capelão do prior, ocupando-se em dispensar alguns minutos aos outros membros da casa agora enlutada. Dirigiu algumas palavras à rapariga antes de se voltar para os empregados. As habituais banalidades piedosas que começou por dirigir a Conan e a Aldwin pareciam ter evoluído em palavras mais volúveis e interessantes e, simultaneamente, mais confidenciais, pois agora encontravam-se juntos três homens em vez de dois e, de vez em quando, lá estava o olhar desconfiado na direcção de Elave.
Bem, o jovem portara-se impecavelmente, do princípio ao fim, e, desde que tinha sido confrontado com o cónego Gerbert, media bem as suas palavras. Representava um pequeno isco para o irmão Jerome, posto que a simples insinuação de falta de ortodoxia, especialmente quando levantada por um prelado tão eminente, era o suficiente para andar de nariz no ar como um perdigueiro ao sentir o cheiro da caça. O próprio cónego optara por não estar presente nas obséquias de William, mas provavelmente teria um relatório completo do prior Robert, que também sabia como aproveitar a oportunidade para cultivar um grande confidente e intermediário do arcebispo.
Apesar de tudo, aquela pequena questão, que estivera quase a ameaçar tornar-se um assunto grave, já tinha passado. William vira a sua vontade realizada, Elave tinha cumprido o seu dever leal ao assegurar-se disso e Radulfus tinha satisfeito o pedido do requerente. Além disso, no dia seguinte, quando as festividades tivessem acabado, Gerbert partiria, sem a exaltada rigidez que o caracterizava, certamente sincera, possivelmente entusiasmado com as próximas visitas a França e Roma, e em Shrewsbury teriam fim as palavras medidas.
Cadfael observou a família de William de Lythwood despedir-se das pessoas que tinham presenciado o funeral e retirar-se pelo portão em direcção à cidade e dirigiu-se depois para o refeitório, com a consciência tranquila de um homem que crê ter visto um assunto importante resolvido de uma forma satisfatória.
A refeição que se seguiu ao funeral de William estava bem fornecida de cerveja, vinho e outras bebidas e correu como seria de esperar, contemplando desde as devidas solenidades e recordações piedosas às reminiscências mais sentimentais e engrandecedoras, enquanto discretas vozes iam aumentando de volume e algumas anedotas surgiam da imaginação e da memória. Como Elave tinha sido o seu companheiro durante os sete anos que estivera ausente e fora esquecido por alguns dos seus antigos vizinhos, o jovem viu-se obsequiado com a melhor cerveja da casa, a troco das histórias que tinha para contar sobre a longa viagem, sobre os locais que entretanto visitara e sobre a forma digna com que William tinha deixado este mundo.
Se não tivesse bebido consideravelmente mais do que aquilo a que estava habituado, talvez não tivesse dado respostas tão directas e abertas a perguntas dissimuladas e insinuantes. Por outro lado, considerando a sua grande e constante franqueza e dado o facto de não ter razões para pensar ter de ser cauteloso naquela companhia, acabou por revelar a sua sinceridade.
Isto verificou-se quando já quase todos se tinham ido embora e Jevan estava lá fora a conversar e a despedir-se das últimas visitas, naquilo que se tornara um ambiente caloroso entre a vizinhança. Margaret estava na cozinha com Fortunata, a arrumar as sobras da festa e a supervisionar a lavagem das travessas usadas. Elave continuara sentado à mesa com Conan e Aldwin, e, quando o trabalho da cozinha estava quase despachado, Fortunata voltou calmamente e sentou-se junto deles.
Estavam a falar sobre os festejos do dia seguinte. Fora no mínimo decente que o funeral fosse cumprido como deve ser, na véspera da trasladação de Santa Winifred, para que o dia seguinte pudesse ser festivo e auspicioso, tal como o tempo favorável que esperavam. Já não cabia a William preocupar-se com a eficácia das relíquias dos santos e a validade dos seus milagres. Apesar de tudo, aquele dia era dedicado a William e este devia ser lembrado até ao anoitecer.
— Segundo um dos irmãos — disse Aldwin, seriamente —, aquele grisalho e todo ansioso que anda sempre muito ocupado a correr atrás do prior, tratou-se de saber se acatavam o desejo do velhote. Houve alguém que se encarregou de trazer à baila aquele velho assunto com o missionário, para lhe negar a vontade.
— É grave discordar da Igreja — concordou Conan, abanando a cabeça. — Não nos cabe a nós saber mais do que os padres, pelo menos no que respeita à fé. Oiçam e dêem graças, é o meu conselho. William alguma vez conversou consigo sobre essas questões, Elave? Percorreu uma longa estrada e viajou vários anos com ele, não tentou levá-lo também para esses caminhos?
— Nunca fez segredo da sua maneira de pensar — disse Elave. Até discutia os seus pontos de vista de forma sensata, mesmo com padres, mas nenhum deles lhe atribuía grande falta na sua maneira de pensar. Para que serve a inteligência se não para ser usada?
— Isso é presunção — disse Aldwin —, homens simples como nós não têm nem a instrução nem o dom da palavra dos homens da Igreja. Tal como o rei e o xerife têm poder sobre nós nos assuntos que lhes dizem respeito, também os padres têm poder nas suas matérias. Não nos compete tratar dos assuntos que não nos cabem a nós. Conan tem razão, devemos ouvir e dar boas-graças!
— Como podemos dar as boas-graças à condenação de uma criança ao Inferno só por ter morrido antes de ser baptizada? — perguntou Elave racionalmente. — Essa era uma das questões que o preocupava. Costumava dizer que, se nem o pior dos homens podia lançar às chamas uma criança, como poderia Deus misericordioso fazer uma coisa dessas? Seria contra a sua natureza.
— E você — disse Aldwin, mostrando-se curioso e atento — concordava com ele? Também diz o mesmo?
— Sim, também digo o mesmo. Não acredito no que nos dizem, que as crianças vêm ao mundo já em pecado. Como pode isso ser verdade? Um novo ser indefeso, recém-chegado a este mundo, como pode já ter procedido mal?
— Dizem — aventurou-se a dizer Conan, cautelosamente — que até as crianças que ainda não nasceram estão manchadas com o pecado de Adão e perdidas como ele.
— E eu digo que um homem só tem de responder pelos seus actos, bons ou maus, no dia do julgamento, e só isso é que o salva ou condena.
Embora não conheça ninguém assim tão mau que mereça a condenação — disse Elave, ainda absorvido no seu raciocínio, com a intenção apenas de se expressar de forma clara e simples, sem suspeitar de qualquer perigo ou hostilidade. — Ouvi dizer que em tempos houve um padre da Igreja, em Alexandria, que defendia que no fim todos encontraríamos a salvação. Que até os anjos caídos voltariam a ser anjos e que até o demónio se arrependeria e voltaria para junto de Deus.
Apercebeu-se do desconforto e dos comentários entre a sua audiência, mas pensou apenas que a sabedoria que tinha adquirido na viagem, ainda limitada, o tinha transportado para lá da sua inocência paroquial. Mesmo Fortunata, que ouvia em silêncio a conversa dos homens, estava imóvel e de olhos abertos perante tais declarações, espantada e talvez chocada. Não proferiu palavra, mas seguiu atenta tudo o que ali foi dito, as maçãs-do-rosto ruborescendo enquanto olhava de rosto para rosto.
— Isso é uma blasfémia! — disse Aldwin num tom temeroso. — A Igreja diz-nos que só a graça de Deus nos pode salvar. Um homem não pode fazer nada pela sua própria salvação, já que nasceu em pecado.
— Não acredito nisso — disse Elave, obstinado. — Teria Deus criado uma criatura tão imperfeita que não tivesse vontade própria para escolher entre o bem e o mal? Somos nós que decidimos o nosso caminho para a salvação ou para o Inferno, e no fim todos seremos julgados pelos nossos actos. Se somos humanos, devemos traçar o nosso caminho para obter a graça e não ficarmos sentados à espera de que alguém nos venha buscar.
— Não, não, não foi isso que nos ensinaram — insistiu Conan com persistência. — Os homens estão manchados pelo pecado original e nascem inclinados para o mal. Só através da graça de Deus podem praticar o bem.
— E eu digo que podem e devem! Um homem pode evitar o pecado e agir com justiça, de sua própria vontade, e essa vontade é um dom de Deus, que deve ser utilizado. Por que haveria um homem de deixar todo o trabalho a Deus? — disse Elave, exaltada mas sensatamente.
— Nós pensamos no que fazemos diariamente com as nossas mãos, para ganhar a vida. Seria uma loucura não pensarmos também o que fazemos com as nossas almas, para merecermos a vida eterna. Merecê-la — disse Elave dando ênfase à palavra —, não esperarmos que nos seja dada sem a merecermos.
— Isso é contra o que dizem os padres da Igreja — objectou Aldwin fortemente. — Uma vez, o padre daqui deu um sermão sobre Santo Agostinho, sobre como ele escrevera que o número dos eleitos é fixo e inalterável e todos os demais estão perdidos e condenados, por isso, como pode a livre vontade e a forma de agir ajudá-los? Só a graça de Deus pode dar a salvação, tudo o resto é vão e pecado.
— Não acredito nisso — disse Elave firmemente e em voz alta.
— Se fosse assim, por que haveríamos de tentar agir com justiça? Esses mesmos padres querem que sejamos justos e exigem-nos a confissão e a penitência quando erramos. Para quê, se a lista já está feita? Não faria sentido! Não, eu não acredito nisso!
Aldwin olhava-o com uma solenidade temerosa.
— E não acredita em Santo Agostinho?
— Se ele escreveu isso, não, não acredito nele. Subitamente, fez-se um pesado silêncio, como se esta frase directa
tivesse deixado sem palavras os dois interrogadores de Elave. Aldwin, que olhava para o lado com os olhos semicerrados, desviou-se furtivamente sobre o banco, não permitindo que nem a manga da camisa se comprometesse com o contacto de tão perigoso vizinho.
— Bem — disse Conan, demasiado alto e alegremente, afastando-se da mesa, como se de repente não lhe restasse mais tempo. — Suponho que é melhor apressarmo-nos, senão nenhum de nós consegue acabar o trabalho antes da missa de amanhã. Como se costuma dizer, directamente do velório para o casamento! Esperemos que o tempo se mantenha assim. — E levantou-se, apoiando a mão sobre o extremo do banco, enquanto esticava as longas e estreitas pernas.
— O tempo vai manter-se assim — disse Aldwin confiante, recuperando da sua prudente imobilidade, inspirando profundamente. — A santa fez com que o Sol brilhasse na sua procissão, quando a trouxeram de Saint Giles para aqui, enquanto chovia nos outros sítios em volta. Amanhã não nos vai falhar. — E também ele se levantou, parecendo aliviado. Aquele convívio nocturno tinha terminado, e pelo menos dois dos intervenientes estavam satisfeitos com isso.
Elave manteve-se imóvel até os outros dois se terem retirado, despedindo-se alegre e amigavelmente, para realizarem as últimas tarefas antes de se irem deitar. A casa estava agora em silêncio. Margaret estava sentada na cozinha, conversando com a vizinha que costumava vir ajudá-la nas ocasiões especiais. Fortunata não se movera nem falara. Elave virou-se para a olhar, sem compreender a sua rigidez e a gravidade do seu rosto. O silêncio e o ar solene não pareciam fazer parte das características dela, ou talvez fizessem, mas, quando assim acontecia, eram totais e impressionantes.
— Está tão calada — disse Elave, desconfiado. — Disse alguma coisa que a tivesse ofendido? Bem sei que falámos demasiado e com demasiada presunção.
— Não — disse ela, medindo as palavras e o tom de voz —, nada me ofendeu. Nunca tinha pensado nessas coisas, foi só isso. Era muito nova, quando se foi embora, para que William me tivesse falado sobre essas questões. Ele foi muito bom para mim e fico satisfeita por ter falado dele dessa maneira. Eu teria feito o mesmo.
Mas por enquanto era só isso que tinha a dizer. Fosse o que fosse que estivesse a pensar naquele momento sobre aquelas questões, não estava ainda preparada para o divulgar, talvez amanhã já não pensasse mais naquilo que era difícil até para os filósofos e teólogos do mundo e fosse para a festa de Santa Winifred com Margaret e Jevan, satisfeita por poder assistir à música e à festa e rezar sem questionar, apenas ouvindo e dando graças.
Atravessou com ele o pátio e a entrada até à estrada, altura em que lhe estendeu a mão para se despedir, ainda num silêncio calmo e retirado.
— Vejo-a amanhã na igreja? — perguntou Elave, tardiamente receoso de a ter afastado de facto, pois ela confrontou-o com um olhar fixo, tão vago e pensativo, com aqueles olhos cor de avelã, que ele mal podia adivinhar o que lhe ia na mente nesse momento.
— Sim — disse simplesmente Fortunata. — Estarei lá. — E sorriu, breve e abstractamente, retirando a sua mão da dele e voltando-se para regressar a casa, enquanto ele regressaria, atravessando a cidade e seguindo até à ponte, ainda infeliz e na dúvida de ter falado de mais, com demasiado atrevimento, e de ter ficado mal visto aos olhos dela.
O Sol cumpriu a sua missão para com a Santa Winifred no dia da festa, tal como sucedera na primeira vez que esta viera à abadia de São Pedro e São Paulo. Os jardins estavam repletos de flores. Os peregrinos ansiosos hospedados pelo irmão Denis vestiram as suas melhores roupas, ajudando a colorir o cenário. Os burgueses de Shrewsbury surgiam vindos da cidade e os paroquianos de Holy Cross, em Foregate, iam também aparecendo, bem como os restantes habitantes das aldeias da extensa paróquia do padre Boniface. O novo padre tinha ocupado o lugar havia pouco tempo, após um longo interregno, e os seus paroquianos ainda o mediam cautelosamente, após a infeliz experiência com o anterior, o padre Ailnoth. Mas as primeiras reacções tinham sido totalmente favoráveis. Cynric, o sacristão, agia como uma espécie de intermediário da opinião de todos em Foregate. As suas considerações, raras vezes expressas por palavras, mas simples e directas para serem interpretadas pela intuição, seriam aceites sem qualquer objecção pela maior parte dos que se dirigiam a Holy Cross para rezar, e as crianças, principais mensageiras de Cynric, apesar do seu ar taciturno, já sabiam que o seu alto, ossudo e silencioso amigo aprovava e gostava do padre Boniface, Era tudo quanto lhes bastava. Aproximaram-se do novo padre franca e abertamente, confiantes nas recomendações de Cynric.
Boniface era jovem, com pouco mais de 30 anos, com um ar modesto e despretensioso, não sendo um letrado como o seu antecessor mas cumprindo alegremente os seus deveres.
A deferência que mostrava ter para com os seus vizinhos monásticos fez com que o prior Robert o aprovasse, embora com alguma condescendência, dado o berço humilde e o pobre latim do jovem. O abade Radulfus, consciente do erro desastroso em relação à anterior nomeação, decidira dedicar mais tempo a esta escolha e estudara cuidadosamente os candidatos. Foregate precisaria realmente de um teólogo versado? Artífices, pequenos mercadores, chefes de família, camponeses e diligentes servos das aldeias e das casas senhoriais sentir-se-iam melhor com alguém da sua índole, conhecedor das suas necessidades e dos seus problemas, que não os fizesse temer mas que trabalhasse com eles, lado a lado. O padre Boniface parecia ter a energia e a determinação necessárias para o fazer, suficiente força para entusiasmar os outros a seguirem-no e uma lealdade obstinada para não os largar quando estivessem cansados. Em latim ou em vernáculo, que era a linguagem que as pessoas compreendiam.
Era aquele o dia em que o clero monástico e secular se reunia para prestar honras à sua santa, por isso o capítulo tinha sido adiado até depois da missa solene, altura em que a igreja foi aberta para receber todos os peregrinos que desejavam fazer as suas preces no altar da santa, tocar no seu relicário de prata, rezar e fazer ofertas na esperança de conseguir a sua atenção e benevolência para as suas doenças, problemas e ansiedades. Durante todo o dia haveria gente a entrar e a sair da igreja, ajoelhando-se e levantando-se sob a pálida mas resplandecente luz das velas perfumadas, que o irmão Rhun fizera em honra da santa. Desde que ela tinha visitado Rhun, também ele um peregrino, com o seu secreto conselho e o tinha curado da coxeadura, tornando-o fisicamente perfeito como agora era, Rhun tornara-se seu servidor e protector, e a sua beleza reflectia e testemunhava a da santa. Todos sabiam que no seu tempo Winifred fora, como dizia a lenda, a rapariga mais bonita do mundo.
Tudo, de facto, como parecia aos olhos do irmão Cadfael, corria como devia ser para transformar aquele num dia imaculado e de grande alegria.
Dirigiu-se para o seu lugar na casa do capítulo, satisfeito com o mundo em geral, e preparou-se para se manter sentado durante um dia inteiro de trabalhos, no qual até os mais ínfimos pormenores seriam tratados com louvável atenção. Alguns dos monges conseguiam ser tão enfadonhos com os seus próprios assuntos que adormeceriam qualquer homem mais cansado que os estivesse a ouvir, mas hoje estava determinado a exercer uma virtuosa tolerância mesmo em relação aos mais lentos.
Até ao cónego Gerbert, pensou ele, observando o soberbo membro do clero entrar na casa do capítulo e apropriar-se do lugar ao lado do abade, atribuiria apenas os pensamentos mais santificados, fossem quais fossem as faltas que o visitante pudesse ali encontrar em termos de disciplina e por mais arrogante que fosse a sua atitude com o abade Radulfus. Nada poderia perturbar a tranquilidade daquele dia de Verão.
Neste admirável estado de espírito, surgiu um súbito vento desagradável, soprando as saias do hábito do prior Robert, enquanto este as segurava com ar emproado e de narinas abertas, como se alguém pudesse ver alguma obscenidade. Aquele gesto de alguém tão preocupado em preservar a sua dignidade fez estremecer os bancos onde se encontravam os monges, mais a mais porque o irmão Jerome surgira por detrás da sombra do prior. O seu rosto estreito e pálido evidenciava uma excitação meio horrorizada meio gratificada.
— Senhor abade — clamou Robert, anunciando ofensa, alto e claramente. — Tenho um assunto da maior importância para lhe apresentar. Foi o irmão Jerome que me trouxe esse assunto e devo informá-lo do que se trata. Está lá fora, à espera, um homem que apresentou uma queixa terrível contra o aprendiz de William de Lythwood, Elave. Recorda-se como pareceu ser suspeita a fé do seu mestre; agora o servente parece ter seguido as passadas do mestre. Um homem daquela casa testemunha que na noite passada, perante outros presentes, Elave expressou os seus pontos de vista, totalmente em desacordo com os ensinamentos da Igreja. O empregado de Girard de Lythwood, Aldwin, acusa Elave de abomináveis heresias e mantém-se firme na sua acusação perante esta assembleia, como é seu dever.
Estava dito e nada o podia retirar. A palavra, uma vez dita, permanece para sempre. Esta palavra provocara uma total imobilidade e um silêncio, como se um gelo mortal se tivesse instalado na casa do capítulo. Aquela paralisia perdurou por uns momentos até que os olhos se mexeram, desviando-se do semblante justamente indignado do prior, para se estenderem para lá do irmão Jerome, em direcção à porta aberta, em busca do acusador, que ainda não se mostrara mas que esperava humildemente algures no exterior, fora de vista.
O primeiro pensamento de Cadfael foi que aquilo não passava de mais umas palavras azedas do impulsivo e doentio irmão Jerome, que seriam certamente refutadas após um inquérito. Depois de examinadas, a maior parte das grandes questões de Jerome acabavam por ser assuntos sem importância. Depois tentou ler o rosto austero do cónego Gerbert, apercebendo-se de que se tratava de um assunto muito mais grave, que não seria facilmente resolvido. Ainda que o enviado do arcebispo não estivesse presente, o próprio abade Radulfus não poderia ignorar uma tal acusação. Poderia mediar os procedimentos que se seguiriam, mas não os podia evitar.
Gerbert não deixaria de aproveitar qualquer deslize, isso lia-se-lhe nos lábios e naquele olhar selvagem e predador, mas pelo menos tivera a cortesia de deixar a primeira iniciativa ao abade.
— Estou certo — disse Radulfus no tom de voz seco e deliberado que indicava o seu controlado desagrado — de que se apercebeu, Robert, que se trata de uma acusação séria e não de um gesto de animosidade pessoal? Talvez seja melhor, antes de irmos mais longe, avisar o acusador da gravidade do que disse. Se o disse por algum motivo particular, deve ser-lhe dada a oportunidade de rever a sua posição e de retirar a acusação. Os homens são falíveis e podem dizer coisas impulsivamente, das quais depois se arrependem.
— Já o avisei disso — disse firmemente o prior. — Diz que outras duas pessoas ouviram o que ele ouviu e que também podem servir de testemunhas. Não se tratou de uma simples disputa entre dois homens. Aliás, como sabe, padre, este Elave regressou há poucos dias, não tendo assim o empregado, Aldwin, grandes motivos contra ele, em tão pouco tempo.
— E trata-se do mesmo homem que trouxe de volta o corpo do seu mestre — interrompeu bruscamente o cónego Gerbert —, e já nessa altura, devo dizer, demonstrou uma certa rebeldia e uma tendência muito duvidosa. Esta acusação não deve ser tratada tão brandamente quanto tratámos as suspeitas que recaíam sobre o falecido.
— A acusação foi feita e aparentemente mantém-se — concordou Radulfus friamente. — Deve ser discutida, mas não aqui nem agora. Trata-se de um assunto exclusivo dos seniores, não dos noviços nem dos irmãos mais novos que aqui se encontram. Robert, pelo que me é dado perceber, o acusado desconhece por enquanto a acusação que lhe foi feita?
— Sim, padre, eu não lhe disse nada e certamente Aldwin também não o fez, pois veio em segredo contar ao irmão Jerome o que ouvira.
— O jovem é um hóspede nesta casa — disse o abade. — Tem o direito de saber o que dizem sobre ele e de responder livremente. E as outras duas testemunhas que o acusador referiu, quem são?
Pertencem à mesma casa e estavam presentes na mesma sala quando essas coisas foram ditas. A jovem Fortunata, filha adoptada de Girard de Lythwood, e Conan, que é o pastor.
— Encontram-se ambos ainda aqui no mosteiro — acrescentou o irmão Jerome, desejoso de ser prestável. — Assistiram à missa e ainda estão na igreja.
— Este assunto tem de ser tratado imediatamente — disse o cónego Gerbert, dura e fervorosamente. — Protelá-lo só esbateria a memória das testemunhas e daria tempo ao ofensor para considerar os seus interesses e fugir ao julgamento. Cabe-lhe a si dirigir, senhor abade, mas recomendo-lhe que o faça imediatamente, sem rodeios, enquanto ainda se encontram todos dentro dos muros deste mosteiro. Mande retirar os noviços e mande chamar as testemunhas e o acusado. Eu tratarei de dar ordens aos guardas para que o acusado não atravesse os portões.
O cónego Gerbert estava habituado a que as suas sugestões, já para não falar das suas ordens, ainda que expressas de forma indirecta, fossem imediatamente seguidas, mas na sua própria casa o abade Radulfus procedia à sua maneira.
— Lembro a esta sala — disse em seguida — que nós, enquanto membros da Ordem, temos certamente o dever de servir e defender a fé, mas todos temos também um pároco a quem responder e cada pároco deverá reportar ao seu bispo. Temos aqui connosco o representante do bispo de Clinton, a cuja diocese de Lichfield e Coventry pertencemos e perante a qual responderão o acusado, o acusador e as testemunhas. — Serio encontrava-se presente, mas até agora não dissera uma palavra. Na presença de Gerbert, ficava receoso e em silêncio. — Estou certo — disse Radulfus dando ênfase às palavras — de que, tal como eu, considerará que, embora possa haver uma justificação para um primeiro inquérito sobre a acusação feita, não podemos avançar sem referir o caso ao bispo, pois este é da sua competência. Se, após examinarmos a acusação, esta for considerada como infundada, o assunto será encerrado. Se acharmos que há necessidade de ir mais adiante, então o assunto deve ser referido ao próprio bispo, que tem o direito de designar o tribunal que achar próprio para o julgar.
— É verdade — disse Serio galantemente, deste modo encorajado a dizer aquilo que inicialmente hesitara. — O nosso bispo desejará certamente exercer o seu direito num caso como este.
“Uma decisão de Salomão”, pensou Cadfael, satisfeito com o seu abade. Roger de Clinton gostava tanto que outro qualquer membro do clero lhe usurpasse o poder na diocese quanto Radulfus gostava que tomassem as rédeas dos seus assuntos, quer se tratasse do arcebispo ou dos seus enviados. Provavelmente, o jovem Elave terá boas razões para ficar satisfeito com isto. Como tinha baixado a guarda daquela maneira e com testemunhas à volta, depois do que sucedera anteriormente?
— Não foi minha intenção, por nada deste mundo, interferir nos domínios do bispo de Clinton — disse Gerbert, irreflectidamente invejoso da boa reputação de que o bispo gozava, evidenciando no tom o seu desagrado. — Certamente tem de ser informado se este assunto tiver fundamento. Mas somos nós que nos deparamos com a necessidade de provar os factos, enquanto a memória está fresca, e que devemos registar o que descobrirmos. Não devemos perder tempo. Senhor abade, na minha opinião, devemos proceder a um inquérito imediatamente.
— Sou da mesma opinião — disse o abade secamente. — No caso de a acusação ser maliciosa, trivial ou falsa, ou simplesmente errada, não é preciso ir mais longe e poupa-se o desagrado ao bispo, para além de lhe pouparmos tempo. Creio sermos competentes para provar a diferença entre especulação inofensiva e perversão deliberada.
Cadfael pensou que isto indicava claramente a opinião do abade sobre toda aquela questão infeliz, e, embora o cónego Gerbert tivesse aberto a boca, muito provavelmente para proclamar que toda a especulação por parte de um leigo já era em si suficientemente nociva, acabara por reconsiderar e cerrara novamente os dentes, mantendo a indubitável reserva para com a atitude, o carácter e a competência do abade para o ofício. Tal como as outras pessoas, também os homens de hábito podiam arranjar antipatias logo de início, e estes dois eram um claro exemplo disso, tão distantes um do outro quanto o leste do oeste.
— Muito bem — disse Radulfus, dirigindo um longo e autoritário olhar sobre a assembleia —, vamos então avançar. Este capítulo está encerrado. Voltaremos a reunir-nos quando o tempo o permitir. Irmão Richard e irmão Anselm, queiram distribuir tarefas aos mais novos e chamar as três pessoas que aqui foram mencionadas! A jovem Fortunata, o pastor Conan e o acusado. Tragam-nos cá, sem lhes dizer nada em relação ao motivo, até estarem na nossa presença. O acusador, suponho — disse, virando-se para Jerome —, continua lá fora.
Jerome estivera todo aquele tempo atrás das saias do prior, seguro de ter agido correctamente mas pouco seguro de obter o reconhecimento do abade. Era a primeira vez que tinha sido encorajado, ou pelo menos assim via os factos, e estava visivelmente encantado.
— Sim, está lá fora, padre. Trago-o para dentro?
— Não — disse o abade —, só quando o acusado estiver aqui para o confrontar. Ele que diga o que tem a dizer à frente do homem que acusa.
Elave e Fortunata entraram juntos na casa do capítulo, de rosto aberto, curiosos e intrigados por terem sido convocados, mas completa-mente inocentes sobre tudo o que se iria seguir. O que quer que fosse que tivesse sido dito sem pensar no encontro da noite anterior, fosse o que fosse que se esperava que ela dissesse, era evidente para Cadfael que a rapariga não tinha quaisquer reservas sobre o seu companheiro. Até o facto de terem entrado juntos e de terem obviamente sido encontrados juntos quando foram convocados falava por si só. Aexpectativa estampada nos seus rostos era evidente mas inocente, e a acusação de Aldwin, quando fosse proferida, soaria como um estrondo não só para o jovem rapaz como também para a rapariga. Por certo Gerbert iria ter uma testemunha relutante, até talvez hostil, reflectiu Cadfael, consciente da sua própria simpatia. Consciente também de que o abade Radulfus tinha notado, como ele próprio notara, o significado da forma confiante como haviam entrado e o olhar interrogativo que trocavam, sorrindo, antes de fazer a reverência perante os prelados e monásticos que tinham à sua frente e de saberem o motivo de terem sido chamados.
— Mandou-nos chamar, senhor abade — disse Elave, já que ninguém quebrava o silêncio. — Aqui estamos.
“Aquele 'estamos' diz tudo”, pensou Cadfael. “Se ontem à noite ela tinha quaisquer dúvidas em relação a ele, esqueceu-as esta manhã, ou reviu-as e rejeitou-as. Isso é evidente, independentemente daquilo que for forçada a dizer mais tarde.”
— Mandei-o chamar, Elave — disse o abade deliberadamente —, para nos ajudar num determinado assunto que surgiu aqui durante a manhã. Temos só de esperar um momento, há outro homem que também foi convocado.
Entrou nesse momento, circunspecto e com algum receio perante o tribunal, mas não, pensou Cadfael, ignorando a finalidade deste. O rosto vincado, circunspecto e rosado de Conan não evidenciava surpresa, reflectia apenas um espanto nada intimidado. Fixou, respeitosamente, o olhar no abade, nunca o desviando para Elave. Sabia o que se iria passar e estava preparado para isso. Do mesmo modo com que não evidenciava ansiedade, também não exibia qualquer relutância.
— Meu Senhor, disseram-me que queriam ver Conan. Esse é o meu nome.
— Já podemos prosseguir? — perguntou o cónego Gerbert impaciente e irritado, mantendo-se rígido no seu banco.
— Sim — disse Radulfus. — Bem, Jerome, faça entrar Aldwin. Elave, mantenha-se de pé, no centro. Este homem tem algo a dizer a seu respeito que deve ser dito apenas na sua presença.
Bastou ouvir o nome para que Fortunata e Elave ficassem alarmados, antes mesmo de Aldwin aparecer e entrar com um ar resoluto e beligerante que não lhe era habitual e que, provavelmente, mantinha com esforço. O seu rosto longo mostrava uma forte determinação, a de um homem naturalmente resignado e receoso, colocado numa situação que exigia coragem. Tomou o seu lugar, mesmo ao lado de Elave, e levantou agressivamente o queixo, perante o olhar perfeitamente chocado do jovem, mas escorriam-lhe gotas de suor na testa. Afastou ligeiramente os pés para melhor se firmar sobre as pedras do chão e olhou para Elave, fixando-o sem sequer pestanejar. Elave começara a compreender o que se passava. Ajulgar pela expressão desnorteada, Fortunata ainda não compreendera. Esta recuou um ou dois passos, tentando perceber o que se passava através dos rostos dos dois homens, de boca aberta pela respiração acelerada.
— Este homem — disse o abade em tom resoluto — apresentou queixas contra si, Elave. Afirma que na noite passada, na casa do seu mestre, o senhor expressou as suas ideias sobre assuntos religiosos, que são contra os ensinamentos da Igreja e o colocam em grande risco de ser acusado de heresia. Afirma também que as testemunhas presentes podem confirmar esta acusação. Que tem a dizer? Verificou-se de facto essa conversa entre vós? Esteve presente, falou, e eles ouviram?
— Padre — disse Elave, subitamente muito pálido e calmo. — Estive naquela casa. Conversei de facto com eles. A conversa enveredou para assuntos sobre fé. Na véspera tínhamos enterrado um bom mestre, é natural que nos tivéssemos debruçado sobre a sua alma e também sobre as nossas.
— E você, de plena consciência, crê não ter dito nada que possa ter ido contra a verdadeira crença? — perguntou Radulfus calmamente.
— Tanto quanto sei e compreendo, padre, nunca o fiz.
— Você, meu caro Aldwin — ordenou o cónego Gerbert, inclinando-se para a frente no banco —, repita as acusações que apresentou ao irmão Jerome. Faça-nos saber quais foram e por que palavras as ouviu, tanto quanto se lembra delas. Sem acrescentar nem retirar nada!
— Meus senhores, logo que nos sentámos, começámos a falar sobre o mestre William, que tinha acabado de ser enterrado, e Conan perguntou se este alguma vez arrastara Elave para os mesmos caminhos que o conduziram à questão com o padre, há alguns anos atrás. Elave afirmou que William nunca fizera segredo das suas ideias e que, nas suas viagens, ninguém lhe atribuíra qualquer culpa por pensar em tais assuntos. “Para que serve a inteligência”, disse ele, “se não fizermos uso dela?” E nós dissemos que era presunção por parte de homens simples, que devíamos ouvir e dar graças a tudo o que a Igreja nos diz, pois nessa matéria os padres têm mais autoridade do que nós.
— E disse muito bem — replicou Gerbert, prontamente. — E ele, que respondeu?
— Senhor, ele perguntou como é que um homem pode dar graças perante a condenação ao Inferno de uma criança não baptizada. Nem o pior dos homens, afirmou ele, mandaria uma criança para as chamas; como poderia assim Deus, representando o bem, fazer tal coisa? Seria contra a própria natureza de Deus, disse ele.
— É discutível — disse Gerbert — que o baptismo das crianças não seja necessário e não tenha qualquer virtude. Não pode haver outra lógica. Se não precisam de ser redimidas através do baptismo, para serem poupadas à inevitável reprovação, então o sacramento é desnecessário.
— Proferiu as palavras que Aldwin lhe atribui? — perguntou Radulfus serenamente, olhando o rosto revoltado e indignado de Elave.
— Sim, padre. Não acredito que as crianças inocentes, só por não terem tido tempo de ser baptizadas antes de morrer, possam escapar às mãos de Deus. Certamente Deus está mais atento do que isso.
— Persiste num erro crasso — insistiu Gerbert. — Passa-se como eu afirmei, tal crença dispensa e desacredita o sacramento do baptismo, que é a única salvação ao pecado mortal. Se um sacramento é tomado como irrisório, estarão todos os sacramentos a ser negados. Basta isso para ser julgado.
— Senhor — interrompeu Aldwin prudentemente —, ele disse também que não via necessidade do baptismo, porque não acredita que as crianças vêm ao mundo manchadas pelo pecado. Como é que isso seria possível, disse ele, num pequeno ser acabado de nascer, incapaz de fazer qualquer bem ou mal? Não é mesmo fazer troça do baptismo? E nós respondemos que fomos ensinados e que devemos acreditar que até os recém-nascidos vêm ao mundo manchados pelo pecado de Adão e que, como ele, cometerão o mesmo pecado. Mas ele afirmou que não, que um homem é julgado apenas pelos seus actos, bons e maus, e que os seus actos o salvarão ou condenarão.
— Negar o pecado original é pôr em causa todos os sacramentos
— repetiu Gerbert, furioso.
— Não, nunca os coloquei em causa — protestou fortemente Elave.
— O que eu disse foi que uma criança recém-nascida não pode ser um pecador. Mas é claro que deve ser baptizada para ser bem-vinda ao mundo e à Igreja e para a ajudar a manter a sua inocência. Nunca disse que era inútil ou que não tivesse importância.
— Mas nega o pecado original? — pressionou Gerbert, insistentemente.
— Sim — disse Elave, após uma longa pausa. — Nego. — Tinha o rosto gelado mas o queixo firme, e os olhos ardiam com uma raiva profunda e silenciosa.
O abade Radulfus olhou-o fixamente e perguntou num tom de voz calmo e razoável:
— Qual é então o estado em que crê que as crianças vêm a este mundo? Filhos de Adão, como todos nós somos.
Elave fitou-o com um ar grave, tomado pela serenidade da voz que o questionava.
— O estado é o mesmo — disse vagarosamente — que o de Adão antes de ter pecado. Pois também antes Adão era inocente.
— Também outros já discutiram isso — disse Radulfus — e não foram inevitavelmente acusados de heresia. Muito se tem escrito sobre o assunto, de boa-fé e com todo o respeito para com a Igreja. É esta a pior acusação, Aldwin, que tem a fazer contra este homem?
— Não, padre — apressou-se a dizer Aldwin —, há mais. Ele disse que só os actos que o homem pratica o conduzirão à salvação ou à condenação, mas que até agora não conhecia nenhum homem que fosse tão mau que o fizesse acreditar na condenação eterna. E depois disse que em tempos houve um padre da Igreja, em Alexandria, que defendia que no final todos seríamos salvos, mesmo os anjos caídos e até o próprio Diabo.
Perante a situação de desconforto que se fazia sentir nas bancadas dos irmãos, o abade referiu simplesmente:
— Existiu, sim. O seu nome era Origen. Defendia que todas as coisas provêm de Deus e regressam a Deus. Segundo me lembro, foi um inimigo dele que acrescentou o Diabo neste assunto, embora reconheça que isso estivesse implícito. Parece-me que Elave apenas citou o que Origen terá escrito e em que terá acreditado. Ele próprio não disse que acreditava no mesmo? Então, Aldwin?
Perante isto, Aldwin baixou cautelosamente a cabeça e dedicou alguma atenção à possibilidade de ele próprio estar a andar sobre areias movediças.
— Não, padre, isso é verdade. Ele disse apenas que tinha havido um padre da Igreja que dizia isso. Mas nós afirmámos que isso era blasfémia, pois o que a Igreja nos ensina é que a salvação é obtida através da graça de Deus, de nenhuma outra forma, e os feitos de um homem não a determinam. Mas então ele disse logo a seguir: “Não acredito nisso!”
— Afirmou isso? — perguntou Radulfus.
— Afirmei. — O sangue de Elave fervia, a palidez do seu rosto tornara-se uma cólera quase perturbadora. Por um lado, Cadfael desesperava-se com ele, por outro exultava-se. O abade tinha dado o seu melhor para atenuar toda a dúvida, receio e malícia que tinham invadido a casa do capítulo, como uma nuvem pairando sobre o ar, dificultando a respiração, e ali estava aquela criatura teimosa enfrentando todos os desafios, lutando para se defender até dos seus amigos. Agora, que estava no meio da batalha, teria de lutar. Não voltaria com a sua palavra atrás só para salvar a pele. — Afirmei isso. E torno a afirmar. Disse que nós próprios temos o poder de traçar o nosso caminho para a salvação. Disse que temos livre vontade para escolher entre o bem e o mal, para sermos dignos ou para nos afundarmos na lama e que no fim todos teremos de responder pelos nossos actos. Disse que, se somos humanos e não animais, temos de traçar o nosso próprio caminho em direcção à graça, não apenas ficarmos de braços cruzados e esperar que nos levem para o Céu sem o termos merecido.
— É por causa dessa arrogância — gritou o cónego Gerbert, ofendido quer pelo olhar directo e voz erguida quer pelo que fora dito —, por causa desse mesmo orgulho que até os anjos caem. Quer dizer que dispensa a existência de Deus e que repudia a sua divina graça, a única forma de salvar essa sua alma insolente...
— Entendeu mal as minhas palavras — retorquiu Elave. — Eu não nego a graça divina. A graça reside naquilo que Ele nos ofereceu, na livre vontade de escolher o bem e recusar o mal e traçarmos o nosso caminho para a salvação, sim, e no poder de fazer a escolha acertada. Se nós cumprirmos o nosso dever, Deus tratará do resto.
O abade Radulfus bateu ruidosamente com o anel no braço do cadeirão e exigiu ordem na assembleia com uma autoridade inquestionável.
— A meu ver — disse enquanto se acalmavam —, não considero que seja errado um homem achar que pode e deve desejar a graça dando-lhe o seu devido uso. Mas estamos a desviar-nos do assunto que nos trouxe aqui. Oiçamos escrupulosamente tudo o que Elave é acusado de ter dito e deixemos que ele admita tudo o que admite e que negue tudo o que nega, e deixemos que estas testemunhas confirmem ou desmintam. Tem mais alguma coisa a acrescentar, Aldwin? Por esta altura Aldwin aprendera a ter cuidado com aquilo que dizia ao abade e não acrescentou nada às palavras que tinha memorizado na véspera.
— Padre, só mais uma coisa. Eu referi que tinha ouvido um pregador dizer como Santo Agostinho escreveu que o número dos eleitos já se encontra definido e não pode ser modificado e que todos os outros são recusados. E ele disse que não acreditava nisso. Não resisti a perguntar novamente; não acreditava ele sequer em Santo Agostinho? E ele tornou a dizer que não, que não acreditava.
— Eu disse — gritou Elave furioso — que não podia acreditar que a lista já estivesse definida à partida, ou então para que haveríamos de agir com justiça ou rezar a Deus ou acreditar nos padres que nos incitam a mantermo-nos afastados do pecado e nos exigem a confissão e a penitência se assim não fizermos? Para quê, se à partida estivermos condenados? E quando ele perguntou novamente se eu não acreditava sequer em Santo Agostinho, eu respondi que, se ele tinha escrito isso, então não acreditava nele. Pois nunca tive conhecimento de que ele tenha escrito tal coisa.
— Isto corresponde à verdade? — perguntou Radulfus antes que Gerbert tivesse oportunidade de falar. — Aldwin, confirma que estas foram, realmente, as palavras de Elave?
— Pode ser que sim — concordou Aldwin cautelosamente. — Sim, creio que ele disse se o santo tivesse escrito aquilo. Na altura não vi qual seria a diferença, mas os senhores julgarão isso melhor do que eu.
— E é tudo? Não tem mais nada a acrescentar?
— Não, padre, é tudo. Depois disso, deixámo-lo descansar, não queríamos saber mais nada.
— Foram sensatos — disse o cónego Gerbert secamente. — Bem, meu abade, poderemos agora ouvir se as testemunhas confirmam tudo o que aqui foi dito? Parece-me que temos suficiente matéria naquilo que ouvimos, caso estas duas pessoas também assim possam confirmar.
Conan repetiu tão voluntária e fluentemente a conversa da noite anterior que Cadfael não resistiu a pensar que havia preparado o seu discurso e ficou com ideia de que havia ali uma pequena conspiração, que se interrogava se não seria óbvio aos olhos de todos. Para o abade era com certeza, pensou ele, estudando-lhe o rosto controlado e ascético. Embora aqueles dois pudessem estar coniventes quanto aos seus fins, permanecia o facto de tais coisas terem sido ditas, e Elave, apesar de ter corrigido ou pormenorizado aqui e ali o que dissera, não as negou. Como teriam conseguido que ele falasse tão abertamente? E, ainda mais importante, como teriam conseguido que a rapariga tivesse estado presente? Pois tornava-se cada vez mais evidente que tudo dependeria do que ela teria a dizer. Quanto mais o abade Radulfus suspeitasse da malícia de Aldwin e Conan contra Elave, mais importante seria o que Fortunata teria a dizer sobre o assunto.
Ela tinha ouvido atentamente todas as palavras. Compreendendo finalmente, o rosto oval empalidecera e os olhos dilataram até revelarem uma grande ansiedade, olhando de rosto para rosto à medida que surgiam as perguntas e respostas e que a tensão aumentava na casa do capítulo. Quando o abade se virou para a olhar nos olhos, ficou tensa, cerrando nervosamente os lábios.
— Quanto a si, minha filha? Também esteve presente e ouviu o que aqui foi dito?
Ela respondeu cautelosamente:
— Não estive presente durante todo o tempo. Estava na cozinha a ajudar a minha mãe enquanto os três conversavam.
— Mas depois juntou-se a eles — disse Gerbert. — Em que fase da conversa? Ouviu-o dizer que o baptismo das crianças é inútil e desnecessário?
Perante isto, ela afirmou claramente:
— Não, meu senhor, pois ele nunca disse isso.
— Oh, se prestou tanta atenção ao teor das palavras... Ouviu-o então dizer que não acreditava que as crianças não baptizadas fossem condenadas? Por que, afinal, isso quer dizer a mesma coisa.
— Não — disse Fortunata. — Ele nunca disse o que pensava sobre esse assunto. Estava a falar das ideias do seu falecido mestre. Disse que William costumava dizer que se nem o pior dos homens lançaria uma criança às chamas, como poderia Deus fazer uma coisa dessas? Quando ele afirmou isso — disse Fortunata firmemente —, estava a contar-nos o que William costumava dizer, não o que ele próprio pensava sobre o assunto.
— Isso é verdade, mas apenas parte da verdade — gritou Aldwin —, pois no momento seguinte perguntei-lhe frontalmente: “Também acredita nisso?” E ele respondeu: “Sim, também acredito.”
— Isso é verdade, minha filha? — perguntou Gerbert, dirigindo a Fortunata um olhar gelado e ameaçador. Mas, quando ela o olhou, de olhos brilhantes, e manteve os lábios cerrados: — Parece-me que esta testemunha não tem grande vontade de nos ajudar. Deveríamos ter mantido todas as testemunhas sob juramento. Mas é melhor ouvirmos o que esta mulher tem para dizer. — Dirigiu novamente aquele olhar intenso e gelado sobre a rapariga que se mantinha em silêncio. — Jovem, sabe em que posição duvidosa se coloca a si própria se não disser a verdade? Prior, traga-lhe uma Bíblia. Deixemo-la jurar sobre as Escrituras e condenar a sua alma se mentir.
Fortunata pousou a mão sobre o livro sagrado que o prior Robert solenemente abriu à sua frente e fez o juramento numa voz tão baixa que mal se podia ouvir. Elave abrira a boca e avançara na direcção dela, em desespero perante a difamação que recaíra sobre ela, mas parou imediatamente e permaneceu mudo, cerrando os dentes de raiva, com o rosto mostrando todo o azedume que sentia.
— Agora — disse o abade com uma autoridade tão calma mas tão firme que nem Gerbert lhe tentou tirar a iniciativa — deixemos de lado as perguntas, até que nos tenha contado pelas suas próprias palavras, sem receios nem pressas, tudo o que se lembra do que se passou naquela reunião. Fale abertamente, de modo a que possamos ouvir toda a verdade.
Ela respirou fundo e contou tudo cuidadosamente, o melhor que se recordava. Por uma ou duas vezes hesitou, no desejo intenso de omitir ou tentar explicar as palavras, mas Cadfael reparou na forma como com a mão esquerda arranhava a direita, que antes colocara sobre o Evangelho, como se esta lhe ardesse e a impelisse passado aquele silêncio momentâneo.
— Com sua licença, meu abade — disse Gerbert secamente quando ela terminou —, quando tiver colocado as suas questões a esta testemunha, tenho três perguntas a fazer-lhe, que têm a ver com o âmago desta questão. Mas primeiro é a sua vez.
— Não tenho questões a colocar — disse Radulfus. — A senhora contou-nos tudo sob juramento e aceito o que disse. Pergunte o que tem a perguntar.
— Em primeiro lugar — disse Gerbert, avançando sobre o banco com as espessas e castanhas sobrancelhas erguidas num ar ameaçador —, ouviu o acusado dizer que sim, quando lhe perguntaram directamente se ele concordava com o mestre, ao negar que as crianças não baptizadas são condenadas, ouviu-o dizer que concordava?
Por um instante ela virou a cabeça para o lado, contorcendo as mãos ao lembrar-se:
— Sim, ouvi-o dizer isso.
— Isso é repudiar o sacramento do baptismo. Em segundo lugar, ouviu-o negar que todas as crianças nascem com o pecado de Adão? Ouviu-o dizer que só os actos dos homens os salvarão ou condenarão?
Com presença de espírito, disse, agora em voz alta:
— Sim, mas não estava a negar a existência da graça, a graça está no dom da escolha...
Gerbert interrompeu-a imediatamente erguendo a mão e com os olhos quase lançando chamas.
— Ele afirmou-o. Isso é quanto basta. É pretender que a graça não é necessária, que a salvação depende dos homens. Em terceiro lugar, ouviu-o dizer e repetir que não acredita no que Santo Agostinho escreveu sobre os eleitos e os condenados?
— Sim — disse ela, desta vez lenta e cautelosamente. — Se o santo escreveu isso, disse, não acredita nele. Ninguém me disse isso antes e eu não sei ler nem escrever, para além do meu nome e outras pequenas palavras. Santo Agostinho disse o que o pregador referiu sobre ele?
— Basta! — gritou Gerbert firmemente. — Esta mulher defende tudo o que foi apontado ao acusado. Cabe-nos a nós prosseguir com esta questão.
Eu considero — disse Radulfus — que devemos adiar e deliberar em privado. As testemunhas estão dispensadas. Vá para casa, minha filha, e certifique-se de ter dito a verdade e não precisa de se preocupar com o que se segue, pois a verdade só pode trazer o bem. Vão, todos vós, mas mantenham-se preparados para o caso de serem novamente chamados. E você, Elave ... — Sentou-se estudando o rosto do jovem, que se tornara pálido, resoluto e revoltado perante ele, com a boca fechada e os olhos abertos e brilhantes, ainda furioso com a situação em que Fortunata se encontrava. – é convidado desta casa. Não vi até agora qualquer razão para não acreditarmos na sua palavra. — Estava consciente da crescente desaprovação de Gerbert, mas prosseguiu em voz alta, sem admitir quaisquer protestos. — Se prometer não sair da cidade até que este assunto esteja resolvido, então entretanto é livre de sair e voltar aqui, conforme a sua vontade.
Por um breve momento, Elave desviou a atenção. Fortunata, à saída, virara-se para olhar para trás, depois desaparecera. Conan e Aldwin tinham saído apressadamente e desaparecido antes dela, desejosos de escapar enquanto o caso ainda estava a salvo nas mãos do prelado de visita, cujo nariz se mantinha erguido com todo o fervor perante aquela falta de ortodoxia. O acusador e as testemunhas tinham-se ido embora. Elave dirigiu o seu olhar obstinado mas respeitoso para o abade e disse deliberadamente:
— Meu senhor, não tenho intenção de abandonar o alojamento que aqui me foi oferecido enquanto não estiver livre e inocente. Dou-lhe a minha palavra.
— Pode retirar-se, então, até que eu peça novamente a sua presença. E agora — disse Radulfus, levantando-se — esta sessão fica adiada. Vão para os vossos trabalhos e tenham em mente que continuamos a viver um dia dedicado à lembrança de Santa Winifred e que os santos são espectadores dos nossos actos e testemunharão de acordo com eles.
— Compreendo-o perfeitamente — disse o cónego Gerbert quando se encontrava a sós com Radulfus na sala dos aposentos do abade. Reunido assim a sós com o seu par, sentou-se, relaxando, com ar cansado, todo o seu fervor desaparecendo, um homem falível e ansioso perante a sua própria fé. — Aqui, retirado do resto do mundo, embora profundamente preocupado com a região e as pessoas à sua volta, não vê o perigo das falsas crenças. E garanto-lhe que essas crenças ainda não ensombraram estas terras, e rezo para que o nosso povo seja suficientemente firme para resistir a todas essas tentações malignas. Mas acabam por surgir, meu caro abade, elas aparecem! Do Oriente, as serpentes do mal desviam-se para oeste, e temo que os viajantes do Oriente tragam as sementes do mal, talvez sem querer, para aqui se enraizarem e desenvolverem. Existem já oradores errantes e malignos na Flandres, em França, no Reno, na Lombardia, que pregam contra a Igreja Sagrada e contra os seus padres, afirmando que somos corruptos e gananciosos, que os Apóstolos viviam numa pobreza e simplicidade santificadas. Em Antuérpia, um certo Tachelm enganou e arrastou milhares de pessoas para violarem as igrejas e retirarem os seus ornamentos. Em França, no próprio Rouen, um outro semelhante anda a pregar a pobreza e a humildade e a exigir uma reforma. Viajei pelo sul nas missões do meu arcebispo e vi como o mal cresce e se espalha como um fogo ateado. Não se trata apenas de uns quantos homens de espírito doente e inofensivos. Na Provença, no Linguadoque, há zonas onde uma onda de heresia maniqueísta cresceu de tal forma que quase rivaliza com a Igreja. Admira-se que eu receie até o mais ínfimo sinal de tais atitudes?
— Não — disse Radulfus, não me surpreende. Nunca devemos baixar a nossa guarda. Mas também devemos estudar cada homem atentamente, considerando as suas palavras e os seus actos, e não apressarmo-nos a cobri-los com este manto universal de heresia. Uma vez que a palavra é dita, o orador pode tornar-se invisível e, logo, dispensável! Aqui não se trata certamente de um pregador errante, nenhum contagiador de multidões, nenhum louco ambicioso desejoso de ser seguido para seu próprio proveito. O rapaz falou de um mestre que prezava e a quem servia, e portanto tendeu em falar em sua honra, em defesa das suas dúvidas fundamentais, ainda com mais lealdade e firmeza quando os companheiros levantaram a voz contra ele. Além disso, provavelmente bebeu demasiado para ter soltado a língua daquela maneira. Pode mesmo ter dito, e repetido perante nós, mais do que verdadeiramente sente, agravando a sua causa. Deveremos proceder da mesma maneira?
— Não — disse Gerbert pesadamente. — Não desejaria isso. Compreendo perfeitamente a atitude dele. Você tem razão, não se trata de um selvagem que possa causar grande dano, é apenas um rapaz são e trabalhador, que foi muito proveitoso para o seu mestre, e não tenho dúvidas de que seja honesto e bem intencionado para com os seus semelhantes. Não vê como isso o torna ainda mais perigoso? Ouvir uma falsa doutrina por parte de alguém totalmente falso e vil não é nenhuma tentação, mas ouvir por parte de alguém respeitado e de boa reputação, falando com todo o coração, isso pode ser uma sedução fatal. É por isso que o receio.
— E por isso que um santo deste século se transforma no herege do século seguinte — respondeu secamente o abade —, e o herege deste século no santo do século seguinte. É melhor pensar com calma antes de atribuir uma destas designações a qualquer homem.
— Mas isso é negligenciar um dever que não podemos descurar — disse Gerbert, insistindo novamente. — O perigo com que nos deparamos neste momento terá de ser enfrentado aqui e agora, ou a batalha estará perdida, pois a semente terá caído e germinado.
— Pelo menos então poderemos separar o trigo do joio. E, lembrete — disse Radulfus gravemente —, onde o erro é sincero e alimentado da bondade mal orientada, os culpados podem ser curados pela razão e pela persuasão.
— Ou, à falta disso — disse Gerbert com uma resolução inflexível —, cortando-se-lhes o membro doente.
Elave atravessou os portões destemidamente e dirigiu-se para a cidade. Era óbvio que o guarda do portão ainda não tinha conhecimento do alarme lançado contra este comum mortal de entre os hóspedes da abadia, ou então já tinha sido informado da decisão do abade de que a palavra do acusado tinha sido dada e aceite e que ele era livre de sair e entrar quando quisesse, desde que não juntasse as suas bagagens e se fosse embora, pois não foi feita qualquer tentativa para o impedir de sair. O irmão que se encontrava ao portão desejou-lhe inclusivamente uns calorosos bons-dias quando Elave passou por ele.
Já do lado de fora dos portões, parou para olhar nas duas direcções ao longo da estrada, mas todas as pessoas que tinham testemunhado contra si tinham desaparecido de vista. Pôs-se apressadamente a caminho em direcção à ponte e à cidade, certo de que Fortunata, no seu desespero, teria ido directamente para casa. Ela tinha abandonado a casa do capítulo antes de ele ter dado a sua palavra de que não tinha intenção de partir sem autorização, por isso podia até pensar que ele estava prisioneiro ou até culpar-se a si própria pela situação na qual ele se encontrava. Elave vira como ela tinha, com relutância, dito a verdade, testemunhando contra ele, e naquele momento isso preocupava-o mais do que o facto de a sua liberdade e a sua vida poderem encontrar-se em perigo. Não queria acreditar nesse perigo, por isso era fácil encará-lo. Acreditava plenamente na agitação dela, e isso causava-lhe uma grande e inevitável dor. Tinha de falar com ela, para lhe assegurar que ela não lhe fizera nenhum mal, que toda esta crise acabaria por passar, que o abade era um homem razoável e que o outro, o que queria guerra, em breve se teria ido embora e deixado o julgamento ajuízes mais sãos. E que, para além de tudo isso, ele tinha compreendido a forma tão corajosa como ela se debatera em sua defesa, que lhe estava grato por isso, talvez até com esperança de que o seu coração visse nisso um significado mais profundo e mais íntimo do que a mera simpatia e apenas uma questão de justiça. Embora não devesse falar demasiado enquanto aquela onda de reprovação se mantivesse sobre ele.
Tinha chegado ao limite dos muros do mosteiro, onde o espaço à sua esquerda se estendia sobre a eira prateada e oval do moinho, e à direita da estrada as casas de Foregate eram seguidas por uma fiada de árvores que se estendia até à ponte sobre o rio Severn. E ali estava ela diante dele, inconfundível na sua figura e no seu porte, caminhando apressadamente ao longo do caminho poeirento com uma impetuosidade que sugeria mais uma fúria resoluta do que consternação e desânimo. Desatou a correr e alcançou-a sob a sombra das árvores. Ao ouvir o som das suas passadas, ela virara-se para trás e, ao vê-lo, sem dizer qualquer palavra em resposta ao ofegante “Senhora...!”, estendeu-lhe a mão e desviou-o para o bosque, onde não podiam ser vistos da estrada.
— Que se passa? Libertaram-no? Acabou-se? — Ergueu-lhe o rosto radiante, com uma alegria evidente, mas com receio de uma desilusão tão súbita quanto a exaltação que sentia.
— Não, ainda não. Ainda terá de haver mais debate antes de me ver livre de tudo isto. Mas tinha de lhe falar, para lhe agradecer o que fez por mim.
— Agradecer-me! — disse num pequeno grito incrédulo. — Por lhe ter cavado mais fundo a sepultura? Morro de vergonha só por não ter tido a coragem de mentir!
— Não, não deve pensar assim! Não me fez mal nenhum, fez tudo o que podia para me ajudar. Por que haveria de mentir? De qualquer forma, não o conseguiria fazer, não faz parte da sua maneira de ser. Nem eu seria capaz de mentir — disse Elave com convicção — nem desistir daquilo em que acredito. O que lhe vim dizer é que não deve preocupar-se comigo e nem por um momento pensar que lhe devo outra coisa a não ser gratidão e respeito. Defendeu-me como eu teria defendido um amigo.
Nem se apercebera de que lhe segurava as duas mãos, apertando-as contra o seu peito, de frente um para o outro, o ritmo dos corações sincronizados e a respiração rápida fazendo-os estremecer. O rosto dela, erguido diante do dele, estava atento e destemido, os olhos cor de avelã intensamente brilhantes.
— Se não o libertaram, como veio até aqui? Sabem que veio embora? Não virão atrás de si quando derem pela sua falta?
— Por que haveriam de o fazer? Sou livre de entrar e sair quando quiser, desde que continue como hóspede na abadia até que se realize o julgamento. — O abade aceitou a minha promessa de que não fugiria.
— Mas tem de fugir — disse ela com urgência. — Ainda bem que veio atrás de mim, enquanto ainda há tempo. Tem de partir, ir-se embora daqui para o mais longe que puder. Para Gales, seria melhor. Venha comigo, agora, rápido, vou levá-lo para a oficina de Jevan que fica a seguir a Frankwell, e vou escondê-lo lá até conseguir arranjar-lhe um cavalo.
Elave começara a abanar insistentemente a cabeça antes de ela ter terminado de dizer tudo aquilo.
— Não, não vou fugir! Dei a minha palavra ao abade, mas, mesmo que ele não ma tivesse pedido e nem eu lha tivesse dado, não fugiria. Não vou ceder perante essas superstições loucas, isso seria encorajá-los ainda mais e colocar outras almas em maior perigo do que a minha. Não acredito que isto venha a tornar-se perigoso, se eu mantiver a minha posição. Ainda não chegámos a esse ponto de loucura, em que um homem possa ser perseguido por pensar em coisas sagradas. Vai ver, a tempestade acabará por passar.
— Não — insistiu ela —, não vai ser assim tão fácil. As coisas estão a mudar, não se apercebeu disso na casa do capítulo? Pois eu sim. Estava a apressar-me para ir falar com Jevan, para ver o que se podia fazer para o livrar do perigo. Você trouxe-me algo que agora me pertence e que deve ter valor. Quero usar isso para o tirar daqui a salvo. Que melhor uso lhe poderia dar?
— Não! — disse ele em grande protesto. — Não vou ficar com isso! E não vou fugir, recuso-me a isso. E aquilo, o que quer que seja, é para si, para o seu casamento.
— O meu casamento! — disse ela em tom pensativo, muito baixo, abrindo perante ele a surpresa dos seus olhos esverdeados, como se a ideia lhe fosse totalmente nova e estranha.
— Não se preocupe comigo, no fim tudo acabará bem. Agora vou regressar — disse Elave firmemente, demasiado concentrado nas suas ideias para observar o que se estava a passar. — Não precisa de ter receio, terei cuidado com o que vou dizer e sei olhar por mim, mas não vou negar aquilo em que acredito ou dizer que acredito naquilo que não acredito. E não vou fugir. De quê? Não tenho qualquer razão para fugir.
Soltou a mão dela num gesto quase brusco, pois, afinal, esse gesto não lhe era fácil. Começara a andar entre as árvores quando olhou para trás e viu que ela não se movera. Os olhos de Fortunata fitavam-no pensativamente, quase severamente, enquanto mordia o lábio inferior.
— Há também outra razão — disse ele — para eu não me ir embora. Sozinho seria outra coisa. Mas fugir agora seria deixá-la.
— E você acha — disse Fortunata — que eu não iria atrás de si à sua procura?
Ela ouviu as várias vozes antes de entrar no hall, vozes que se levantavam não em revolta, nem em discussão, mas sim em confusão e consternação. Quer Conan quer Aldwin tinham achado por bem participar a todos, mal chegaram a casa, os acontecimentos daquela manhã, sem dúvida para minorar o que tinham feito. Não restavam dúvidas a Fortunata de que eles estavam combinados, mas, fossem quais fossem os seus motivos, não queriam aparecer diante dos outros como sórdidos informadores. Uma aparência de genuíno fervor religioso e de dever cumprido teria de transparecer sobre a malícia que estivera por detrás dos seus actos.
Encontravam-se todos ali, Margaret, Jevan, Conan e Aldwin, formando um grupo agitado, perguntas desorientadas e respostas indirectas soando ao mesmo tempo, Conan querendo parecer o inocente apanhado na luta de outrem, Aldwin discutindo em voz alta quando Fortunata entrou:
— Como é que eu podia saber? Estava preocupado por aquelas coisas terem sido ditas, tive receio pela minha própria alma, se as escondesse. Tudo o que fiz foi contar ao irmão Jerome o que me estava a preocupar.
— E ele contou ao prior Robert — gritou Fortunata, junto à entrada — e o prior Robert foi contar a toda a gente, especialmente àquele homem importante de Canterbury, como sabia muito bem que ele faria. Como pode fingir que não tinha a intenção de prejudicar Elave? Uma vez lançada a questão, sabia muito bem como iria acabar.
Todos se tinham virado para a olhar, admirados mais com a sua raiva do que com a surpresa de a terem visto entrar.
— Não! — protestou Aldwin, recuperando o fôlego. — Não, juro que só pensei que o prior pudesse falar com ele, avisá-lo, aconselhá-lo melhor...
— E, portanto — disse ela secamente —, acabou por lhe dizer quem tinha estado presente a ouvir. Para que o faria se não fosse com a intenção de ir mais longe? Porquê incluir-me nos seus planos? Nunca lhe perdoarei isso!
— Calma, calma, calma! — gritou Jevan, levantando as mãos.
— Está a dizer, minha filha, que você foi chamada para testemunhar? Por amor de Deus, homem, o que lhe passou pela cabeça? Como se atreveu a incluir a nossa menina nesse assunto?
— Não fui eu que quis isso — protestou Aldwin. — O irmão Jerome fez-me dizer quem tinha assistido à conversa, nunca tive intenção de a meter na confusão. Mas sou um crente da Igreja, precisava de aliviar esse fardo da minha consciência, mas depois as coisas perderam o controlo.
— Não sabia que era tão constante na sua observância — disse Jevan pesaroso. — Podia ter-se recusado a dizer outros nomes que não o seu. Bem, o que está feito está feito. E agora já está acabado?
Será que a vão chamar para mais inquéritos, mais interrogatórios? O assunto vai ser levado até à exaustão, agora que começou?
— Ainda não acabou — disse Fortunata. Não pronunciaram nenhuma sentença, mas não vão desistir assim tão facilmente. Elave não se pode ir embora até estar, livre da acusação. Sei isso porque acabei de estar com ele, entre as árvores ao pé da ponte. Ia regressar à abadia para firmar a sua posição. Queria que ele fugisse, implorei-lhe para o fazer, mas ele recusa-se a isso. Veja bem o que fez, Aldwin, a um pobre homem que nunca lhe fez mal nenhum, que neste momento nem sequer tem família nem patrão, nenhum lar, nem uma vida segura, como você tem. Aqui você tem a sua vida garantida, sem ter de se preocupar com a velhice, ele tem de procurar trabalho outra vez, naquilo que puder, e você acabou por lhe ensombrar a vida, de tal modo que, seja qual for o julgamento, ninguém lhe quererá dar emprego, com medo de serem encarados como suspeitos de virem a ser influenciados. Por que fez isso? Porquê?
Gradualmente, a partir do choque que lhe causara a entrada de Fortunata, Aldwin retomara a sua compostura, mas agora parecia tê-la perdido completamente, bem como a sua esperteza. Olhava ora para ela ora para Jevan e continuava mudo. Engoliu em seco duas vezes antes de conseguir dizer uma palavra e, quando o fez, foi com excessiva cautela, querendo negar tudo.
— Seguro para o resto da vida?
— Sabe muito bem que sim — disse ela impaciente, calando-se no momento seguinte, apercebendo-se de repente que, para Aldwin, nunca nada passara de uma possibilidade ou de uma dúvida. Era de esperar tudo de pior, todo o bem seria de suspeitar e de vigiar ciosamente, não fosse evaporar-se na sua respiração. — Oh, não! — disse ela num suspiro desesperado. — Foi isso? Pensou que ele tinha voltado para lhe tirar o lugar? Foi por isso que se quis livrar dele?
— O quê? — gritou Jevan. — A rapariga tem razão no que está a dizer, homem? Supôs que ia parar à rua para que ele retomasse o seu antigo lugar? Depois de todos estes anos que viveu nesta casa e trabalhou para nós? Alguma vez nesta casa se tratou assim as pessoas? Sabe muito bem que não!
Mas esse era o problema de Aldwin, valorizava-se a si próprio tão pouco que não esperava que ninguém tivesse consideração por ele. Mesmo após todos aqueles anos e apesar do respeito e da consideração que a casa de Lythwood mostrava para com os outros dependentes, não podia, a seu ver, confiar em ser tratado da mesma maneira. Continuava com ar assustado, a boca movendo-se em silêncio.
— Pobre alma! — disse Margaret, desgostosa. — Nunca nos passou pela cabeça pô-lo de lado. É certo que ele foi um bom rapaz enquanto cá trabalhou, mas nunca o colocaríamos a si de parte. Para quê? Nem o rapaz queria isso! Eu disse-lhe o que poderia esperar, na primeira vez que ele cá esteve, depois de ter regressado, e ele respondeu que sem dúvida alguma o lugar era seu, que nunca tivera o menor desejo de lho tirar. Não me diga que tem andado este tempo todo preocupado com isso? Pensei que nos conhecia melhor.
— Acabei por o prejudicar sem razão — disse Aldwin, como se fosse para si próprio. — Sem qualquer motivo! — E de repente, num momento convulsivo que fez abanar o seu corpo envelhecido como um arbusto sacudido pelo vento, virou-se e cambaleou em direcção à porta. Conan segurou-o pelo braço, impedindo-o de sair.
— Onde vai? Que pode fazer agora? Já está feito. Não disse nenhuma mentira, o que está dito está dito.
— Vou ver se o apanho a tempo — disse Aldwin com uma invulgar resolução. — Vou dizer-lhe que estou arrependido. Vou com ele falar com os padres e ver se consigo desmanchar o mal que fiz... todo o mal que fiz. Vou confessar por que o fiz. Vou retirar a acusação que apresentei.
— Não seja louco! — disse Conan asperamente. — Que diferença fará isso? Agora a acusação já foi feita, os padres não vão retirá-la, nem pensar. Não é assunto fácil, acusar um homem de heresia e depois querer voltar atrás, só acabaria por ficar em tão maus lençóis quanto ele. E têm o meu testemunho, e o de Fortunata, para que serviria retirar agora o seu? Deixe as coisas como estão e mostre algum senso!
Mas a coragem de Aldwin estava determinada e a consciência demasiado pesada para pensar com lucidez. Libertou-se da mão que o segurava.
— Só me resta tentar! E é o que vou fazer! Pelo menos vou tentar. — E estava já do lado de fora, a meio caminho no pátio, em direcção à estrada. Conan teve intenção de ir atrás dele, mas Jevan chamou-o de volta bruscamente.
— Deixe-o sozinho! Pelo menos, se reconhece a sua malícia, tem de o demonstrar ao rapaz. Palavras, palavras, não duvido que tenham sido ditas, mas as palavras podem ser interpretadas de várias maneiras e basta uma pequena réstia de dúvida para alterar o que se disse. Volte para o seu trabalho e deixe o pobre diabo seguir e aliviar a consciência o melhor que puder. Se ele decidir ir falar com os padres, iremos interceder por ele e tirá-lo de lá.
Conan desistiu com relutância, dando pouca importância aos maus pressentimentos que tinha sobre o assunto.
Então é melhor eu voltar aos meus deveres, até ao anoitecer. Deus sabe o que lhe irá acontecer, mas nessa altura, de uma maneira ou de outra, suponho que acabaremos por saber. — E saiu, continuando a abanar a cabeça, desaprovando a loucura de Aldwin, - e ouviram-se as suas fortes passadas atravessarem o pátio em direcção à passagem para a estrada.
— Que confusão! — disse Jevan com um suspiro revoltado. — E eu também tenho de me ir embora, tenho de levar mais umas peles para a oficina. Amanhã vem cá Um cónego de Haughmond e ainda não sei bem qual o tamanho do livro que vai querer. Não leve as coisas demasiado a peito, minha menina — disse ele, dando um forte e carinhoso abraço a Fortunata.
— Se as coisas correrem pelo pior, pedimos ao prior de Haughmond que interceda junto de Gerbert a favor dos nossos homens... um agostinho dará certamente ouvidos a outro, e o prior deve-me um ou dois favores.
Libertou-a e dirigiu-se por sua vez à porta, quando, abruptamente, ela perguntou:
— Tio... Elave é considerado como um homem desta casa? Jevan virou-se para a olhar, com as finas sobrancelhas pretas
erguidas, os olhos escuros e perscrutadores, e dirigiu-lhe um daqueles raros e brilhantes sorrisos, um pouco provocadores, um pouco intimidantes, mas que sempre a reconfortavam.
— Se assim quiseres — disse ele —, assim o podemos considerar.
Elave estava apenas a uns quantos metros do portão da abadia quando viu uma meia dúzia de homens exaltados do lado de fora do portão aberto. A surpresa desta visão e o som distante das vozes exaltadas enquanto dispersavam fê-lo esconder-se apressadamente entre as árvores, para poder pensar se aquela questão teria algo a ver com ele. Tinham certamente sido enviados em grupo e tinham bastões, o que não era nada bom sinal se de facto andavam à procura dele. Caminhou cautelosamente por entre o arvoredo para conseguir ver mais de perto, pois estavam a verificar a estrada antes de alargarem o campo de busca e dois seguiam agora ao longo do muro do mosteiro, com o fim de alcançarem a esquina e poderem ver o troço seguinte ao longo da estrada. Era certo que andavam à caça de algo ou de alguém. Não se tratava de ninguém dos monges. Ali não havia hábitos negros, mas sim homens comuns, robustos e sóbrios. Reconheceu três deles como criados do cónego Gerbert, um outro como seu criado pessoal, pois Elave tinha-o visto na hospedaria, ocupado e pomposo, com um ar superior devido ao estatuto do seu mestre. Os outros tinham certamente sido contratados entre os peregrinos mais robustos e sedentos de desordem. Não tinha sido o abade quem mandara dar-lhe caça, tinha sido Gerbert.
Recuou para melhor se esconder e permaneceu agachado perante os intencionados caçadores que esquadrinhavam Foregate. Não tinha intenção de se mostrar, nem da forma mais corajosa, e arriscar-se a ser apanhado e arrastado como um criminoso, já que não tinha, pelo menos a seu ver, quebrado a sua palavra. Talvez o cónego Gerbert não interpretasse as coisas da mesma maneira e tivesse considerado a sua saída para lá do portão, mesmo sem ter levado as suas bagagens, como prova de uma consciência culpada e de uma fuga desesperada. Bem, não lhe daria a satisfação de manter essa opinião. Elave pretendia atravessar o portão pelo seu próprio pé, com a sua determinada vontade, fiel à sua palavra, desafiando a sua liberdade e até talvez a própria vida. O perigo, no qual antes não queria acreditar, parecia-lhe agora mais real e mais sinistro.
Tinham deixado apenas um homem, o mais moreno dos três criados de Gerbert, de sentinela ao portão, andando de um lado para o outro como se nem o tempo nem a força o fizessem desistir. Pouca esperança de conseguir passar despercebido àquele homem pesado e forte! E dois dos caçadores, tendo batido a estrada, os jardins e os campos ao longo de Foregate, cem passadas para cada lado, atravessavam agora a estrada em direcção às árvores. Era melhor sair dali para um sítio mais distante e seguro até que ambos abandonassem a busca ou decidissem seguir para mais longe, de forma a poder escapar em segurança. Elave moveu-se rapidamente entre as árvores e seguiu o curso deles em direcção a noroeste, até que chegou perto do pomar para lá de Gaye e dos arbustos que ladeiam a berma do rio. O mais provável é que seguissem para oeste à procura dele. Ao longo da margem, fugitivos ingleses dirigiam-se para Gales e fugitivos galeses para Inglaterra. As leis de cada um destes países só vigoravam até ao dique, embora houvesse bastante circulação de mercadorias entre um lado e o outro.
Faltavam ainda cerca de três horas antes das Vésperas, altura em que todos estariam novamente na igreja e Elave poderia entrar quer através do portão, se o tal guarda já lá não estivesse, quer através da igreja pela porta oeste, entre os paroquianos locais. Entretanto, não valeria a pena regressar e arriscar-se a cair numa cilada. Encontrou um local confortável para descansar entre as ervas altas junto do rio, rodeadas de arbustos e envolvidas num silêncio que lhe permitiria ouvir quaisquer passos ou quaisquer ombros roçando os ramos dos amieiros e dos salgueiros, num raio de vários metros, e sentou-se a pensar em Fortunata. Não queria acreditar que se encontrava perante o tipo de perigo que ela afirmava, mas também não podia deixar de pensar nisso.
Ao longo do curso e das sinuosas correntes do rio Severn, brilhando à luz do Sol, a colina da cidade erguia-se nitidamente, com a grande e envolvente muralha terminando nas sólidas torres do castelo, em frente do local em que se escondera, dando para a estrada principal com direcção a norte, do Castelo de Foregate para Whitchurch e Wem. Poderia andar um pouco rio abaixo e seguir rapidamente por aquela estrada, mas estaria condenado seo fizesse! Não tinha cometido nenhum crime, afirmara apenas a sua opinião, que nada tinha de blasfémia ou de desrespeito para com a Igreja, e não retiraria nem uma palavra do que dissera nem fugiria, não daria essa vitória fácil aos seus acusadores.
Não tinha forma de calcular o tempo, mas, quando achou que estaria perto das Vésperas, abandonou o esconderijo e regressou cautelosamente, seguindo o mesmo caminho que fizera, escondendo-se, até que conseguiu ver por entre as árvores a estrada poeirenta, com pessoas caminhando ao longo dela e o movimento à volta do portão. Teve de esperar mais um pouco até que o sino tocasse para as Vésperas, tempo esse que passou movendo-se cautelosamente de um esconderijo para outro, para ver se distinguia algum dos seus perseguidores entre as pessoas que se encontravam do lado de fora da porta oeste da igreja. Não reconheceu nenhum deles, mas era difícil ter uma certeza perante o constante movimento que se verificava. Aquele homem grande que fora deixado de guarda ao portão não se encontrava à vista, em lado nenhum. O momento ideal para Elave surgiria quando soasse o pequeno sino e as pessoas terminassem as conversas de final do dia e entrassem na igreja.
Tão rápido quanto o seu pensamento, surgiu a altura ideal. O sino tocou e os paroquianos juntaram-se por famílias, cumprimentaram os amigos e começaram a entrar pela porta oeste. Elave correu a tempo de se juntar a eles, escondendo-se no meio da procissão, sem ter ouvido nenhum grito de alerta nem sentido nenhuma mão a agarrá-lo pelo ombro. Tinha então a possibilidade de continuar para a esquerda, junto do bom povo de Foregate, e entrar na igreja ou escapar através do portão aberto do mosteiro para o grande pátio e dirigir-se calmamente para a hospedaria. Se tivesse escolhido entrar na igreja, tudo poderia ter corrido bem, mas não resistiu à tentação de entrar abertamente no pátio como se vindo de um passeio respeitável. Deixou o abrigo que os paroquianos lhe proporcionavam e entrou para o pátio atravessando o portão.
Ouviu-se um grande grito de triunfo vindo da porta da casa do guarda do portão, à sua direita, que ecoou pela estrada que deixara para trás. O enorme criado do cónego tinha estado a falar com o guarda do portão, para armar uma emboscada, e dois dos seus colegas regressavam nesse preciso momento de uma incursão pela cidade. Os três lançaram-se rapidamente sobre o pródigo que acabava de voltar. Uma pesada clava atingiu-o na nuca, fazendo-o cambalear, e, antes que pudesse recuperar o equilíbrio ou os sentidos, foi apanhado pelos braços musculados daquele homem grande, enquanto um dos outros o agarrava pelos cabelos, puxando-lhe a cabeça para trás. Soltou um grito de raiva e defendeu-se com os punhos e os pés, atingindo o seu agressor por trás, libertando uma mão do braço do homem que o agarrava e socando-o vigorosamente no nariz. Uma segunda pancada na cabeça fê-lo cair de joelhos, meio atordoado. Ouviu à distância vozes que gritavam perante aquela violência num solo sagrado, e o som de sandálias correndo rapidamente sobre o chão de pedra. Por sorte, ao toque do sino, os monges deixaram naquele momento as suas várias ocupações.
O irmão Edmund, vindo da enfermaria, e o irmão Cadfael, contornando o caminho vindo do jardim, correram na direcção daquele estranho ajuntamento, furiosos, com os hábitos a esvoaçar.
— Parem com isso! Parem imediatamente! — gritou Edmund, escandalizado diante daquela profanação, movendo agitadamente os braços perante todos os agressores.
Cadfael, estugando ainda mais o passo, não perdeu mais tempo com reprimendas, lançando-se para agarrar a clava erguida, pronta para um terceiro golpe sobre a cabeça já ensanguentada da vítima, agarrou-a no ar e retirou-a sem dificuldade da mão que a segurava, provocando um grito do criado. Os três caçadores pararam de agredir a sua presa, mas continuaram a agarrá-la, mantendo-a cercada no solo, como se esta pudesse ainda escapar-lhes por entre as mãos e sair disparada pelo portão.
— Apanhámo-lo! — gritaram quase em uníssono. — É ele, é o herege! Estava a preparar-se para se livrar do sarilho em que está metido, mas nós apanhámo-lo, são e salvo.
— São e salvo? — gritou Cadfael indignado. — Quase mataram o rapaz! Eram precisos três para enfrentar um só homem? Está quase sem sentidos, era preciso partir-lhe a cabeça?
— Estivemos toda a tarde à caça dele — protestou o homem grande, inchado pela sua proeza —, tal como nos ordenou o cónego Gerbert. Iríamos arriscar-nos com um homem destes depois de o termos apanhado? Encontrem-no e tragam-no de volta, foi o que nos mandaram, e aqui o têm.
— Trazê-lo? — disse Cadfael, afastando sem cerimónias um dos captores de Elave, tomando o seu lugar e rodeando o corpo do jovem com um dos braços para o segurar. — Ao dobrar a esquina, vi perfeitamente quem o trouxe de volta. Ele regressou de sua própria vontade. Não foram vocês, mesmo que venham a dizer que foram. Que terá passado pela cabeça do vosso mestre para lhe mandar dar caça? Ele prometeu que não fugia, o abade aceitou a sua palavra e disse que, por enquanto, era livre de entrar e sair quando quisesse. Suponho que esta promessa, que foi quanto basta para o nosso abade, não foi suficiente para o cónego Gerbert!
Por essa altura, outros três ou quatro monges exaltados juntaram-se ao grupo, e ali vinha o prior Robert, dobrando a esquina do claustro, mostrando todo o seu desagrado ao ver aquilo que parecia ser um grupo agitado e desordeiro a perturbar a procissão para as Vésperas.
— Que é isto? Que se passa aqui? Não ouviram o sino? Os seus olhos caíram sobre Elave, apoiado entre Cadfael e Edmund, com as roupas sujas e desalinhadas, a testa e a face manchadas de sangue.
— Oh — disse ele, satisfeito por o ver mas com desagrado por toda a violência de que fora alvo —, então trouxeram-no de volta. Parece que a tentativa de fuga lhe saiu cara. Lamento que esteja ferido, mas não devia ter fugido à justiça.
— Eu não fugi à justiça — disse Elave, ofegante. — O senhor abade deu-me permissão para entrar e sair livremente, depois de eu ter dado a palavra de que não fugia, e não fugi.
— É verdade — disse Cadfael —, pois ele voltou por sua livre iniciativa. Dirigia-se para a hospedaria, onde está alojado como os outros viajantes, quando estes sujeitos lhe caíram em cima, e agora afirmam que o capturaram por ordem do cónego Gerbert. Ele deu mesmo essa ordem?
— O cónego Gerbert entendeu que a liberdade que lhe foi concedida só era válida dentro do mosteiro — disse secamente o prior. — E assim também eu entendi, devo dizer. Quando se descobriu que este homem tinha saído, pensámos que tinha tentado escapar. Só lamento que tivesse sido necessária tanta violência. Vejamos, que é preciso fazer agora? Ele precisa de cuidados... Cadfael, se não se importa, trate-lhe das feridas, que eu, depois das Vésperas, irei ter com o abade e contar-lhe-ei o que se passou. Pode dar-se o caso de ter de ser instalado sozinho...
O que significava, pensou Cadfael, numa cela fechada à chave. Bem, pelo menos isso manteria afastados estes grandes imbecis. Seria melhor esperar e ver o que o abade Radulfus iria dizer.
— Se estou dispensado das Vésperas — disse Cadfael —, por ora vou levá-lo para a enfermaria, para lhe tratar das feridas. Não vai precisar de guardas armados, no estado em que está, mas eu fico com ele até ouvirmos as ordens do abade.
— Bem, pelo menos — disse Cadfael, limpando o sangue da cabeça de Elave na pequena antessala da enfermaria, onde estava o armário dos remédios —, deixou a sua marca num par deles. E, embora vá ficar durante um tempo com uma grande dor de cabeça, tem uma cabeça forte, não vai sofrer nada mais grave. Não sei se não ficaria melhor numa cela, até tudo acalmar. Acama é igual a todas as outras, a cela é boa e fresca nesta altura, tem uma pequena secretária para leitura... os nossos delinquentes devem passar o seu tempo de prisão a melhorar as suas consciências e a arrependerem-se dos seus erros. Sabe ler?
— Sim — disse Elave, sossegado enquanto as mãos de Cadfael o tratavam.
— Nesse caso, podemos pedir livros da biblioteca. A melhor maneira de lidar com um jovem que se deixou arrastar por crenças menos santificadas é rodeá-lo com as obras dos pais da Igreja e visitá-lo para lhe dar bons conselhos e argumentos divinos. Comigo para lhe tratar das feridas e Anselmo para discutir consigo este mundo e o próximo, terá uma das melhores companhias deste mosteiro, em missão oficial, lembre-se disso. E uma cela solitária mantém afastados os doidos e os idiotas, como os três que atacaram um só homem. Agora esteja quieto! Está a doer?
— Não — disse Elave, curiosamente acalmado pelo rumo desta conversa, sobre a qual não sabia muito bem o que dizer. — Acha que me vão fechar numa cela?
— Creio que o cónego Gerbert vai insistir nisso. E não é assim tão fácil recusar algo ao enviado do arcebispo. Pois, ouvi dizer, chegaram à conclusão de que o seu caso não pode ser facilmente resolvido. É esse o veredicto de Gerbert. O abade acha que, se é preciso ir mais longe, deve ser o próprio bispo a fazê-lo e que não se deve fazer nada até que ele pronuncie a sua vontade sobre o assunto. E Serio irá amanhã de manhã a Coventry, para lhe contar tudo o que se passou. Por isso nada de mal lhe pode acontecer, nem ninguém o pode interrogar ou incomodar até que Roger de Clinton tenha tomado uma decisão. Pode passar o seu tempo da melhor maneira possível. Anselmo reuniu uma biblioteca bastante boa.
— Acho — disse Elave com um interesse repentino, apesar da terrível dor de cabeça — que gostaria de ler Santo Agostinho, para ver se realmente escreveu aquilo que dizem que escreveu.
— Acerca do número de eleitos? Escreveu, efectivamente, num tratado chamado De Correptione et Grada, se não me falha a memória. O qual — disse Cadfael honestamente — nunca li, embora mo tivessem lido na Irmandade. Conseguirá lê-lo em latim? Nisso não lhe posso dar grande ajuda, mas Anselmo pode.
— Não deixa de ser estranho — disse Elave, ponderando profunda e solenemente sobre o curso dos acontecimentos que o tinham levado àquela situação — que, durante todos os anos que trabalhei para William, em que viajei com ele e o ouvi, nunca me ter dedicado a pensar sobre estas questões senão agora. Nunca me incomodaram. Agora incomodam-me e preocupam-me. Se ninguém tivesse questionado a memória de William e tentasse negar-lhe a sepultura, nunca teria pensado nesses assuntos.
— Se lhe serve de algum consolo — admitiu Cadfael —, começo a achar o meu caso muito parecido com o seu. Onde caem as sementes, crescem as plantas. E não há nada como maus tratamentos ou uma seca para que as raízes cresçam bem fundas.
Jevan regressou à casa perto de Saint Alkmund quando já estava escuro, com uma pilha de novos pergaminhos brancos, de uma textura sedosa e macia, muito finos e maleáveis. Estava orgulhoso do bom trabalho que fizera. O prior de Haughmond não ficaria desapontado com aquela encomenda. Jevan arrumou-os cuidadosamente na loja, que fechou antes de atravessar o pátio até ao hall, onde o jantar estava servido e Margaret e Fortunata o esperavam.
— Aldwin ainda não voltou? — perguntou ele, olhando à volta com as sobrancelhas erguidas enquanto apenas três se sentavam à mesa.
Margaret parou de servir durante um momento para o olhar com uma cara algo ansiosa.
— Não, até agora não deu qualquer sinal. Já estava a começar a ficar preocupada com ele. Que o poderá ter demorado tanto tempo?
— Se calhar entrou em conflito com os teólogos — disse Jevan, encolhendo os ombros —, serviu-os bem, atirando-lhes o rapaz, como um osso a uma matilha de cães. Ainda deve estar na abadia, agora é a vez de ele responder a algumas questões mais incómodas. Mas, quando lhe tiverem feito as perguntas todas e o espremerem até ao fim, deixam-no em paz. Se farão o mesmo com Elave, não se sabe. Bem, antes de me deitar, vou fechar a casa como de costume. Se ele acabar por voltar mais tarde, terá de passar a noite no sótão do estábulo.
— Conan também ainda não voltou — disse Margaret, sacudindo a cabeça perante aquele dia desgraçado, que deveria ter sido um dia de festa. — E sempre pensei que Girard estivesse de regresso antes de tudo isto. Espero que nada lhe tenha acontecido.
— Não lhe aconteceu nada — assegurou-lhe Jevan com firmeza —, qualquer assunto de interesse para o negócio deve tê-lo demorado. Sabe muito bem que ele é capaz de tratar de si próprio e que tem excelentes relações ao longo de toda a fronteira. Se tinha intenção de regressar para a festa e perdeu a oportunidade, de certeza que foi porque conseguiu mais clientes para o negócio. Não é fácil negociar com os galeses. Daqui a um dia ou dois estará de volta, são e salvo.
— E que vai encontrar quando chegar? — disse ela, pesarosa. — Elave vai estar em apuros logo que voltar à cidade, o tio William morto e enterrado e agora Aldwin a enterrar-se ainda mais neste assunto. Sinceramente, espero que você tenha razão e que ele se tenha saído bem com as tosquias. Pelo menos teremos o conforto de saber que alguma coisa correu bem.
Margaret levantou-se para tirar os pratos da mesa, continuando a sacudir a cabeça perante as estranhas ausências, ficando Fortunata
a sós com Jevan...
- Tio - disse ela, hesitante, após alguns minutos de silêncio. - Queria falar consigo. Quer queira quer não, acabei por ser envolvida nesta terrível acusação contra Elave. Ele não quer acreditar no grande perigo em que se encontra, mas eu sei que ele está em perigo. Quero ajudá-lo. Tenho de o ajudar.
O tom grave da voz de Fortunata fez com que ele se virasse para a olhar longa e atentamente, com aqueles olhos negros e penetrantes que a fitavam agora tão profundamente como quando ela era criança, sempre com uma grande afeição.
- Acho que isso a preocupa muito - disse ele -, mais do que possa parecer, ainda que mal o tenha visto após todos estes anos.
Não se tratava de uma pergunta, mas ela respondeu na mesma.
- Acho que o amo. Que mais poderá ser isto? Não é assim tão estranho. Houve tempo, antes daquele em que esteve ausente. Nessa altura já gostava dele, mais do que ele supunha.
- E, se bem me lembro, hoje falou com ele - disse Jevan entusiasmando-a —, depois daquela audição na abadia.
- Sim — afirmou ela.
- E depois disso, digo eu, ele ficou a saber melhor o quanto gosta dele! E ele deu-lhe motivos para acreditar que é correspondida nos
seus sentimentos?
- Motivos de sobra. Disse que, se não houvesse qualquer outra razão eu seria o motivo pelo qual ele devia regressar, apesar de todos os perigos que isso pudesse implicar. O tio sabe que eu agora tenho um dote oferecido por William. Quando o meu pai voltar para casa e a caixa for aberta, quero usar o que me foi oferecido para ajudar Elave Para pagar a fiança, se permitirem pagar uma fiança pela sua dívida para comprar a sua liberdade se o prenderem, sim, até mesmo para corromper os guardas, se vier a acontecer o pior, e levá-lo para lá da fronteira.
- E não se sentirá culpada - disse Jevan com o seu profundo e amargo sorriso - ao desafiar a lei e ir contra a Igreja?
- Não porque ele não fez mal nenhum. Se o condenarem, serão eles os culpados. Mas tenciono pedir ao pai para interceder por ele. Porque o pai conhece-o e é respeitado por toda a gente, pela lei, pela Igreja e por todos. Se Girard de Lythwood se responsabilizar pelo seu futuro comportamento, acredito que o oiçam.
- Talvez assim seja - concordou Jevan, respeitosamente. Pelo menos temos de tentar esse e todos os outros meios. Como lhe disse... se o quer, então Elave pode, e deve, ser considerado como um homem desta casa. Pronto, agora pode ir para a cama e dormir descansada. Quem sabe o que se vai descobrir quando a caixa de William for aberta?
Tarde, mas ainda a tempo, Conan regressou a casa antes de a porta ser trancada, ligeiramente embriagado após ter celebrado o final do dia, como admitiu sem rodeios, com meia dúzia de companheiros na taberna de Mardol.
Aldwin não regressara a casa.
O irmão Cadfael levantou-se muito antes da primeira oração do dia, pegou na sua sacola e saiu para ir colher certas plantas ribeirinhas, agora que se encontravam com toda a folhagem de Verão. A manhã estava coberta por algumas nuvens, através das quais o Sol brilhava em tons nacarados de rosa-suave e azul-pálido. Mais tarde, o tempo abriria e estaria novamente calor. Quando saiu do portão, um criado trazia a mula de Serio do pátio dos estábulos. O diácono do bispo saía da hospedaria para começar a sua viagem e parou ao cimo dos degraus para tomar fôlego, como se a viagem solitária a Coventry lhe permitisse todas as benesses de um feriado, em comparação com as viagens na oprimente companhia do cónego Gerbert. A sua missão, porém, seria menos agradável. Uma alma tão gentil não ficaria satisfeita por informar o bispo sobre uma acusação que podia ameaçar a liberdade e a vida de um homem ainda novo, mas, de acordo com a sua própria natureza, seria o mais justo possível em relação ao caso daquele acusado. E Roger de Clinton era um homem de boa reputação, devotado e caridoso, apesar de austero, um fundador de casas religiosas e patrono dos padres mais pobres. Tudo poderia ainda correr bem em relação a Elave, se ele não deixasse alastrar a sua recém-descoberta predilecção pelos pensamentos indisciplinados.
“Tenho de falar com Anselmo sobre uns livros para emprestar a Elave”, lembrou Cadfael a si próprio enquanto deixava a estrada poeirenta e começava a descer o caminho verdejante em direcção à margem do rio, afastando os arbustos que agora se encontravam no seu crescimento mais exuberante devido ao Verão, um perfeito esconderijo para fugitivos ou para os animais do bosque. Avistava as hortas de Gaye, com o seu aspecto verdejante e organizado, ao longo da beira do rio, as ervas crescidas da margem formando uma espessa barreira entre a água e a zona agrícola. Mais além, viam-se os pomares, a seguir dois campos de cultura de grão e o moinho em desuso, e depois disso viam-se as árvores e os arbustos ao longo das rápidas e silenciosas correntes, enchendo uma margem em declive, recuando aqui e acolá para formar pequenas enseadas, onde a água permanecia ilusoriamente calma e parada, fazendo pequenos bancos de areia. Cadfael pretendia colher consolda e alteia, quer as folhas quer as raízes, e sabia exactamente onde cresciam profusamente. Folhas e raízes frescas de consolda para curar a ferida na cabeça de Elave e alteia para acalmar a inflamação dos tecidos à volta eram melhores do que os unguentos já preparados ou as cataplasmas feitas com plantas secas da sua estufa. A natureza era um rico manancial nos meses de Verão. Os remédios armazenados destinavam-se a ser usados no Inverno.
Tinha enchido a sacola e preparava-se para voltar para trás, sem pressas, pois tinha ainda muito tempo antes da oração da manhã, quando os seus olhos repararam na palidez de umas estranhas flores aquáticas que flutuavam sobre as águas mais calmas, sob os arbustos pendentes, e voltavam de novo para trás, mostrando as suas pétalas brancas manchadas. O ligeiro movimento da água iluminava-as com pequenos pontos de brilho à medida que surgiam os primeiros raios da manhã por entre a neblina. Acerta altura, flutuaram novamente até ficarem totalmente visíveis, e desta vez pôde ver que estavam reunidas num espesso e pálido ramo que terminava abruptamente em algo escuro.
Havia locais ao longo deste troço do rio onde o Severn por vezes depositava aquilo que apanhara mais acima. Na maré baixa, como agora, as coisas que encalhavam momentaneamente por debaixo da ponte eram apanhadas nesse sítio. Uma vez passada a ponte, podiam ser arrastadas para qualquer ponto daquele troço do rio. Só por altura das cheias e das grandes inundações, causadas pelas tempestades de Inverno ou pelos degelos de Fevereiro, é que o Severn as arrastava, para talvez as reunir rio abaixo até Attingham ou para as afundar juntamente com os estragos das tempestades, sem nunca mais aparecerem.
Cadfael conhecia a maior parte das correntes e sabia agora onde cresciam aquelas lânguidas e pálidas flores. A claridade da manhã, abrindo como uma rosa à medida que as escassas nuvens se afastavam, parecia, apesar de tudo, enegrecer o dia promissor.
Pousou a sacola, levantou um pouco o hábito e desceu entre os arbustos até à água pouco profunda. Na sua impetuosidade, o rio tinha arrastado o corpo de um homem, de tal forma que o conseguira empurrar para uma das margens. Tinha o rosto virado para baixo, apenas o braço esquerdo, não totalmente mergulhado, balançava com a corrente, tratava-se de um homem magro, de ombros curvados, com umas calças e um casaco de cor parda. Para dizer a verdade, todo ele parecia daquela cor, como se tivesse iniciado a vida com tons mais brilhantes e tivesse empalidecido com o desânimo do tempo. O cabelo grisalho, despenteado, mais cinzento que castanho, rodeava uma pequena careca. Mas não tinha sido apanhado pelo rio, tinha sido atirado intencionalmente. Nas costas do casaco, exactamente na parte exposta à superfície da água, via-se um longo rasgão, em cuja extremidade superior um pequeno fio de sangue tinha escurecido o tecido grosseiro do casaco. No sítio em que as suas costas curvadas apareciam nitidamente à superfície, o veio de sangue tinha secado formando uma crosta ao longo das dobras da roupa.
Cadfael não se chegou muito perto do corpo, para o caso de este ser novamente arrastado pela corrente ao ser movido, e virou o corpo para cima, expondo à vista a figura longa, desencorajada e rancorosa do empregado de Girard de Lythwood, Aldwin.
Nada havia a fazer por ele. Estava ensopado em água e descolorado, sem dúvida morto havia muitas horas. Nem podia ser deixado ali para se ir buscar ajuda para o retirar, ou o rio poderia levá-lo novamente. Cadfael pegou-lhe por debaixo dos braços e arrastou-o para um local onde a margem era menos íngreme, pousando-o aí sobre as ervas. Depois apressou-se a regressar pelo mesmo caminho até à ponte. Aí, hesitou por um momento sobre qual o caminho a tomar, ou para a cidade, para comunicar a notícia a Hugh Beringar, ou para a abadia, para informar o abade e o prior, mas foi para a cidade que decidiu ir. O cónego Gerbert podia esperar pela notícia de que o acusador nunca mais testemunharia contra Elave, na questão da heresia ou noutra qualquer ofensa. Não que a sua morte pusesse um fim àquele caso! Pelo contrário, Cadfael tinha a sensação de que uma sombra ainda mais sinistra pairava sobre aquele jovem numa cela de penitente da abadia. Não tinha agora tempo para contemplar as implicações, mas elas estavam lá, no seu consciente, enquanto se apressava a atravessar a ponte e a transpor as portas da cidade, e não lhe agradavam nada. Seria melhor, muito melhor, ir ter primeiro com Hugh e deixar que este entendesse o significado daquela morte, antes que outros menos razoáveis se debruçassem sobre o assunto.
— Há quanto tempo acha que ele está dentro de água? — perguntou Hugh, olhando atentamente para o corpo inerte.
Fazia esta pergunta não a Cadfael mas a Madog, que se apressara a juntar-se-lhes, vindo dos lados da ponte oeste, onde tinha a sua cabana e os seus barcos. Pouco havia sobre os percursos do Severn que Madog não soubesse, era a sua vida, tal como tinha sido a morte para muitos da sua geração, nas traiçoeiras enchentes. Se lhe dessem uma dica sobre em que local um homem desafortunado tinha caído, Madog saberia dizer onde o corpo iria parar e era a ele que todos se dirigiam para encontrar o que tivessem perdido no rio. Afagou, pensativo, a espessa barba e observou sem pressa o corpo, de alto a baixo. O corpo de Aldwin, já menos ensopado, a pele acinzentada, escorrendo água sobre as ervas, e os olhos, não totalmente fechados, fitavam o céu brilhante.
— Durante toda esta noite, de certeza. Talvez há umas dez horas, mas provavelmente menos do que isso, deve ter sido ainda à luz do dia. Algures, imagino eu — disse Madog —, deixaram-no morto, nalgum sítio, até ao anoitecer e depois atiraram-no ao rio. Não foi longe daqui. O corpo esteve aqui a maior parte da noite, onde o irmão Cadfael o encontrou. De outra forma, como poderia ver-se ainda o sangue? Se não tivesse percorrido uma curta distância, de cara para baixo como você disse, o rio tê-lo-ia lavado totalmente.
— Entre este sítio e a ponte? — sugeriu Hugh, observando o pequeno, moreno e cabeludo galês com respeito. O xerife e o homem do rio tinham colaborado antes desta ocasião, e conheciam-se bem um ao outro.
— Ao nível a que o rio está, se tivesse sido para lá da ponte, duvido de que alguma vez passasse para cá.
Hugh olhou para trás, ao longo da planície verdejante de Gaye, exuberante e solarenga, para lá da barreira de arbustos e de árvores.
— Entre este local e a ponte, nada podia ter acontecido à luz do dia. Este é o primeiro recanto desta zona do rio. E, embora este sujeito não pese muito, ninguém quereria transportá-lo ou arrastá-lo de muito longe até alcançar o rio. E, se foi lançado aqui, quem quisesse ver-se livre dele ter-se-ia certificado que o lançava de forma a que a corrente o levasse para longe. Que acha, Madog?
Madog confirmou esta opinião com um aceno de cabeça.
— Não houve chuva nem orvalho — disse Cadfael pensativo. — As ervas e a terra estão secas. Se o esconderam até ao anoitecer, deve ter sido perto do sítio onde o mataram. Para matar e esconder o corpo, o assassino precisou de um local reservado que lhe desse cobertura e privacidade para o fazer. Algures deve haver vestígios de sangue nas ervas, ou seja lá onde for que o assassino o atacou.
— Só nos resta procurar — concordou Hugh, sem grande esperança de encontrar algo. — Há o velho moinho, um sítio onde o assassínio poderia ter sido cometido sem quaisquer testemunhas. Vou mandar verificar o local. Vamos também pesquisar estas fileiras de árvores, embora duvide que se encontre aqui alguma coisa. E, a propósito, que estaria este sujeito a fazer aqui ou no moinho? Você contou-me o que ele fez durante a manhã. O que fez a seguir a isso, poderemos indagar na casa onde viveu, na cidade. Ainda não sabem nada do que aconteceu. Talvez já estejam preocupados e a tentar saber dele, se é que já se aperceberam de que esteve fora toda a noite. Ou talvez costumasse fazê-lo e ninguém se tenha preocupado. Não sei muito acerca dele, mas sei que vivia lá, com a família do seu mestre. Mas, para lá do moinho, rio acima... ou melhor, toda a extensão de Gaye é uma zona aberta. Daqui para cima nenhum local poderia esconder um assassínio. Nada até à ponte. Mas, certamente, se o homem foi morto à luz do dia e escondido nos arbustos umas duas horas até ao anoitecer, poderia ser encontrado antes de o terem atirado para o rio.
— Isso é importante? — perguntou Cadfael. — Talvez um pouco mais arriscado, mas continua a não haver nada que indique quem lhe espetou o punhal nas costas. Atirá-lo ao rio só ajuda a confundir o local e a hora. Talvez isso tenha sido importante para quem quer que o fez.
— Bem, eu próprio darei a notícia aos mercadores de peles e verei o que eles me podem dizer. — Hugh olhou para onde o seu sargento e os quatro homens da guarnição do castelo se encontravam, um pouco distanciados, à espera das suas ordens, atentos e em silêncio, — Will tratará de que o corpo seja levado. O sujeito não tinha outro lar, que eu saiba, terão de tratar do enterro dele. Venha comigo, Cadfael, vamos pelo menos verificar entre as árvores ao pé da ponte e sob o arco.
Afastaram-se, seguindo lado a lado por entre as fileiras de árvores, atravessando os campos de trigo e o local do moinho abandonado. Tinham chegado ao caminho à beira do rio que ladeava a pequena horta, quando Hugh perguntou, lançando um pequeno e esforçado sorriso sobre o ombro:
— Quanto tempo é que diz que aquele peregrino herege esteve ontem em liberdade? Enquanto os criados do cónego Gerbert andavam apressados e em vão para cima e para baixo à procura dele?
A pergunta tinha sido feita de uma forma ligeira e banal, mas Cadfael percebeu o seu significado e compreendeu que Hugh também tinha considerado essa hipótese.
— Desde cerca de uma hora antes da oração das Nonas até à oração das Vésperas — ouvindo perfeitamente a desconhecida mas perceptível reserva e preocupação contidas no seu tom de voz.
— E depois entrou no mosteiro consciente e inocentemente. E não referiu onde passou aquelas horas?
— Ainda ninguém lhe fez essa pergunta — disse simplesmente Cadfael.
— Óptimo! Então não se importa de ir para lá antes de mim? Não conte nada na abadia sobre esta morte, a ninguém, e não deixe que interroguem Elave até que eu próprio o faça. Irei ter consigo antes do fim da manhã e então teremos uma conversa em particular com o abade, antes que se saiba o que aconteceu. Quero ver pessoalmente esse rapaz e ouvir o que ele próprio tem a dizer antes que mais alguém lhe faça perguntas. Pois aposto que sabe, irmão Cadfael — disse Hugh mostrando uma simpatia desinteressada —, o que os inquiridores vão dizer!
Cadfael deixou os outros continuarem a sua busca entre as árvores e os arbustos que ladeavam o caminho até ao rio, e voltou sozinho para a abadia, embora com alguma relutância por ter de abandonar a busca durante umas quantas horas. Tinha a perfeita noção das implicações imediatas da morte de Aldwin e estava perfeitamente consciente de que não conhecia Elave o suficiente para o pôr fora de questão. A simpatia instintiva não chega, por si só, para garantir a integridade de um homem, para não falar da sua inocência, que poderia ter sido corrompida pela ocasião perfeita, levando Elave a vingar-se. Um temperamento vivo e precipitado, o qual sem dúvida possuía, poderia ter feito o resto, mesmo antes de pensar bem no assunto.
Mas pelas costas?
Não, nisso Cadfael não queria acreditar. Se tivesse havido um tal encontro, teria sido face a face. E quanto ao punhal? Elave possuía uma arma dessas? Devia possuir uma faca para uso geral, nenhum viajante precavido iria longe sem levar uma. Mas não andava com ela na abadia e de certeza não tivera tempo de a ir buscar à hospedaria antes de sair apressadamente pelo portão atrás de Fortunata. O guarda do portão pode testemunhar esse facto. Saiu apressadamente da casa do capítulo sem sequer olhar para o lado. “E se, embora isso seja pouco provável, a tivesse com ele durante o inquérito, então agora deve tê-la com ele na cela onde se encontra fechado.” Ou, se a deitou fora, os sargentos de Hugh acabarão por fazer tudo para a encontrar. De uma coisa Cadfael tinha a certeza, não desejava que Elave fosse um assassino.
No preciso momento em que Cadfael alcançava o portão, uma figura saiu e dirigiu-se para a cidade. Um homem alto, magro e moreno, caminhando abstraído sobre o pó de Foregate, com um rosto de desaprovação, sacudindo a cabeça por alguma frustração pessoal, provavelmente passageira mas ainda assim preocupante. Abandonou momentaneamente a sua preocupação quando Cadfael lhe deu os bons-dias, devolvendo o cumprimento com um olhar ausente e um sorriso vago antes de mergulhar novamente no assunto que lhe perturbava a paz de espírito.
Lembrou-se de repente que Jevan de Lythwood deveria estar a aparecer na abadia àquela hora, depois de o empregado do irmão não ter passado a noite anterior em casa. Cadfael virou-se para o olhar. Um homem alto com passos largos e decididos, a caminho de casa com as mãos cruzadas atrás das costas e as sobrancelhas erguidas numa questão sem resposta. Cadfael desejou que ele atravessasse a ponte sem parar e sem se debruçar sobre o parapeito para olhar a extensão de Gaye, para onde, provavelmente, naquele momento os homens de Will Warden transportavam o corpo de Aldwin. Seria melhor que Hugh chegasse primeiro à casa, para avisar a família e para recolher tudo o que pudesse a partir das opiniões e respostas que lhe fornecessem, antes de começarem as inevitáveis tarefas e rituais funerários.
— Que fazia aqui Jevan de Lythwood? — perguntou Cadfael ao guarda do portão, que se mantinha ocupado a segurar uma linda e fogosa égua enquanto o seu dono lhe colocava a sela. Um grande número de convidados iria embora nesse dia, tendo prestado o seu tributo anual a Santa Winifred.
— Queria saber se o empregado dele tinha cá estado — disse o guarda do portão.
— Por que é que ele supunha que o empregado tinha estado cá?
— Disse que ele tinha mudado de ideias, ontem, em relação a acusar o rapaz que cá está prisioneiro, quando percebeu que ele não tinha intenção de lhe tirar o emprego. Disse que tinha vindo para cá apressado com a ideia de retirar o que disse contra ele. Não iria servir de muito. De nada serve tentar agarrar uma flecha depois de ter sido lançada. Mas era o que ele queria fazer, segundo o mestre dele.
— E que lhe disse? — perguntou Cadfael.
— Que haveria de dizer? Disse-lhe que nunca mais tínhamos visto o empregado dele desde que saiu pelo portão ontem ao princípio da tarde. Parece que não apareceu durante toda a noite. Mas, fosse onde fosse que esteve, esse lugar não é aqui.
Cadfael ponderou esta nova viragem dos acontecimentos com alguma desconfiança.
— Quando será que mudou de ideias e se apressou a vir para cá? A que horas do dia?
— Logo que chegou a casa, segundo diz Jevan. Não mais de uma hora depois de ter saído daqui. Mas nunca chegou a voltar — disse o guarda do portão impassível. — Imagino que tenha mudado de ideias outra vez quando chegou perto daqui e começou a ver que as coisas se podiam virar contra ele se não entregasse o outro homem.
Cadfael entrou no pátio com um ar muito pensativo. Já tinha falhado a oração das Matinas, mas ainda tinha muito tempo antes da missa; podia ir para a estufa, pousar a sua sacola e tentar esclarecer todos aqueles acontecimentos confusos e intrigantes. Se Aldwin tinha voltado a correr com a ideia de desfazer o que tinha feito, mesmo que tivesse encontrado um Elave zangado e ressentido, teriam sido necessárias apenas as primeiras palavras de penitência e de desculpa para desarmar a sua raiva. Para quê matar um homem que queria pelo menos corrigir os seus erros? Ainda assim, poderão alguns dizer, um homem deveras zangado pode não ficar à espera das palavras, mas sim agir imediatamente. Mas pelas costas? Não, não faria isso. Que Elave tinha morto o seu acusador poderia ser a primeira ideia a surgir na mente dos outros, mas não se encaixava na mente de Cadfael. Também não era por uma obstinada simpatia pelo rapaz, simplesmente porque não fazia sentido.
Hugh caminhou até ao final do capítulo sozinho e, de certa forma para surpresa e grande alívio de Cadfael, antes que tivesse surgido um outro e calamitoso relato sobre o sucedido. Habitualmente, os rumores espalhavam-se tão depressa pela cidade e por Foregate que receara ouvir comentários sobre a morte de Aldwin, com factos por certo distorcidos, mas isso não se verificara. Hugh podia contar a história à sua maneira, na privacidade da sala de visitas do abade Radulfus, com Cadfael para confirmar e ajudar o seu relato. E o abade não afirmou aquilo que em breve, inevitavelmente, alguns iriam dizer. Em vez disso, perguntou directamente:
— Quem foi o último a vê-lo vivo?
— Tanto quanto sabemos neste momento — disse Hugh —, os que o viram sair de casa ontem ao início da tarde: Jevan de Lythwood, que veio cá de manhã à procura dele, como afirma Cadfael, antes de eu lhe dar a notícia da morte; a jovem adoptada, Fortunata, aquela que ontem serviu de testemunha; a dona da casa; e o pastor Conan. Mas isso foi em plena luz do dia, ele deve ter sido visto por outras pessoas, nas portas da cidade, na ponte, aqui em Foregate ou onde quer que tenha ido. Daremos conta de todos os seus passos, para reconstituirmos o seu percurso antes de morrer.
— Mas não podemos saber quando isso aconteceu — disse Radulfus.
— Sim, isso é verdade, só podemos tentar adivinhar. Mas Madog acha que o atiraram ao rio logo que escureceu e que o esconderam algures depois de o matarem, à espera de que anoitecesse. Talvez umas duas ou três horas, não se sabe ao certo. Coloquei homens à procura de quaisquer vestígios de onde o possam ter escondido. Se o encontrarmos, descobrimos onde foi assassinado, pois não o poderiam ter trazido de muito longe.
— E todas as pessoas da casa de Lythwood confirmam o mesmo... que o empregado, quando ouviu dizer que o jovem não tinha intenção de lhe roubar o lugar na casa, se dirigiu para cá, para confessar a sua maldade e retirar a acusação que tinha feito?
— Além disso, a jovem diz que deixou Elave entre as árvores, ou seja, perto da ponte, e que disse isso a Aldwin. Ela acha que este saiu apressado na esperança de ainda o apanhar no caminho. Também afirma — disse Hugh dando ênfase às palavras — que pediu a Elave para se apressar a ir embora e que ele recusou.
— Nesse caso, o que ele fez está de acordo com o que disse — consentiu Radulfus. — E o acusador saiu a correr para lhe confessar o que fizera e pedir-lhe perdão. Sim... é caso para pensar contra ele — disse, olhando fixamente para Hugh.
— Haverá quem afirme isso. E deve dizer-se — afirmou Hugh sinceramente — que as circunstâncias dão razão a tudo o que se diga. Ele estava em liberdade e tinha boas razões para não estar satisfeito. Não se sabe de mais ninguém que tivesse motivos para atacar Aldwin. Saiu ao encontro de Elave, para a zona das árvores. Onde ninguém os podia ver. Tudo se conjuga, aparentemente muito bem, pois o corpo deve ter sido certamente lançado à água sob a ponte e arrastado ao longo de Gaye.
— Tudo isso poderá ser verdade — disse Radulfus. — Mas também é verdade, penso eu, que, se o jovem é de facto o assassino, dificilmente teria regressado aqui de sua própria vontade, tal como assumidamente fez. Além disso, se o corpo foi atirado ao rio depois de anoitecer, isso não foi obra de Elave. Pelo menos sabemos a que horas regressou aqui, foi exactamente quando o sino anunciou a oração das Vésperas. Isso não prova que não seja ele o assassino, mas vem levantar dúvidas. Bem, temo-lo cá. — Sorriu, um pouco amargamente. Era uma garantia algo ambígua. Uma cela de pedra, fechada com toda a segurança, garantia a integridade física de Elave bem como a sua custódia. — E agora deseja interrogá-lo.
— Na sua presença, senhor abade — disse Hugh —, se não se importar. — E, percebendo a ideia, com olhar inteligente, disse simplesmente: — Será melhor fazê-lo com uma testemunha que não seja suspeita. O senhor abade tem mais competência para julgar um homem do que eu.
— Muito bem — disse Radulfus. — Não será ele a vir ter connosco. Iremos nós até ele, enquanto todos se encontram no refeitório. Robert está reunido com o cónego Gerbert.
“Já calculava”, pensou Cadfael sem piedade. Robert não deixaria escapar a oportunidade de cair nas boas-graças de um homem com influência junto do arcebispo. Desta vez, essa predilecção pelo poder seria útil.
— Anselmo tem-me pedido para enviar ao rapaz alguns livros para ler — disse o abade. — Defende, com toda a razão, que temos o dever de lhe fornecer bons conselhos e exortações, se queremos combater crenças erradas. Sente-se capaz, Cadfael, de, no interesse de Deus, servir de advogado?
— Não tenho a certeza — disse Cadfael sem cerimónia, confrontado desta forma com as suas próprias preocupações e com a sua parcialidade no assunto —, receio que o aluno seja mais esperto que o instrutor, Estou mais preparado para lhe curar a cabeça partida do que para lidar com as ideias que tem lá dentro.
Elave sentou-se no estreito catre, numa das duas celas de penitência que raramente se encontravam ocupadas, e disse o que tinha a dizer enquanto Cadfael renovava os curativos e lhe colocava novas ligaduras. Elave continuava a recear o pior, depois das atenções dos tão zelosos criados de Gerbert, mas de forma alguma se tinha subjugado. De facto, ao princípio mostrou-se inclinado a ser beligerante, na assunção de que todos aqueles oficiais, religiosos e seculares, poderiam ser hostis e predispostos a encontrar culpa em cada palavra que ele proferisse. Tratava-se de uma atitude que não se harmonizava com a sua habitual abertura e simpatia, e Cadfael sentiu pena por o ver afectado daquela forma, mesmo que fosse por pouco tempo. Mas, ao que parecia, não viu naquelas visitas nem a animosidade nem a ameaça de que estava à espera, pois, passado pouco tempo, o seu rosto tenso e alerta tornou-se mais aberto e calmo, e o tom frio da sua voz desaparecera.
— Dei a minha palavra que não sairia daqui — disse firmemente — até estar totalmente dispensado e livre para partir. Nunca tive intenção de não cumprir o que disse. O senhor disse-me que entretanto eu era livre de sair e entrar, e foi o que eu fiz, sem nunca ter tido qualquer outra ideia. Fui atrás da senhora porque ela estava angustiada por minha causa, e isso eu não podia consentir. O senhor abade é testemunha disto. Alcancei-a perto da ponte. Queria dizer-lhe que não se preocupasse pois não me tinha feito nenhum mal, o que dissera foram coisas que eu próprio tinha afirmado e por nada deste mundo queria que ela tivesse dito outra coisa a não ser a verdade, independentemente do que pudesse vir a acontecer. E também — disse Elave, recordando sentidamente — queria mostrar-lhe a minha gratidão por ela ter sido gentil comigo. Pois isso foi evidente, os senhores também viram isso, e eu fiquei muito satisfeito.
— E que se passou quando a deixou? — perguntou Hugh.
— Tencionava voltar imediatamente, mas vi-os fora do portão, a esquadrinhar Foregate, e compreendi imediatamente que estavam à minha procura. Por isso escondi-me entre as árvores à espera de uma oportunidade. Não fazia intenção de ser arrastado à força — disse Elave indignado — quando apenas tinha em mente regressar de própria vontade e sentar-me à espera de ser julgado. Mas deixaram de guarda aquele sujeito enorme, eu não tinha possibilidade de passar por ali. Pensei que se esperasse até à oração das Vésperas conseguiria esconder-me entre as pessoas que iam para a igreja.
— Mas não esteve todo esse tempo escondido aqui perto — disse Hugh —, pois ouvi dizer que esquadrinharam todos os recantos, num raio de oitocentos metros a partir da estrada. Onde esteve?
— Voltei por entre as árvores, por detrás de Gaye, e andei um bom bocado ao longo do rio, escondi-me por ali até achar que eram quase horas das Vésperas.
— E durante todo esse tempo não viu ninguém? Ninguém o viu nem ninguém falou consigo?
— Era minha intenção que ninguém me visse — disse Elave com sinceridade. — Estava a esconder-me dos que me queriam caçar. Não, ninguém pode responder por mim durante todo esse tempo. Mas por que haveria de voltar, como realmente fiz, se tivesse intenção de fugir? Por essa altura já estaria a meio caminho de chegar à fronteira. Pelo menos têm de reconhecer que mantive a minha palavra.
— Isso é verdade — disse o abade Radulfus. E pode ter a certeza de que não soube nada da caça que lhe fizeram e não a teria aprovado se tivesse sabido. Sem dúvida que se tratou de uma questão de zelo, mas mal orientado e bastante criticável, só lamento que tenha sido vítima de violência. Neste momento todos sabem que não tinha intenção de fugir. Aceitei a sua palavra e fá-lo-ia de novo.
Terminado o trabalho do irmão Cadfael, Elave olhava-os, cara a cara, sobrancelhas erguidas, com ar apreensivo.
— Então, qual a razão de todas estas perguntas? É importante saberem onde fui, já que acabei por regressar? Que é que isso importa?
— Olhou demorada e intensamente para Hugh, cuja autoridade era secular e por isso não teria nada a dizer quanto a uma acusação de heresia. — Que se passa? Aconteceu alguma coisa. Que pode ter acontecido de novo desde ontem? Que é que eu ainda não sei?
Todos o fitavam intensa e silenciosamente, questionando-se se de facto ele sabia ou não e se um jovem relativamente simples podia representar tão bem, mais a mais alguém cuja palavra o abade tinha aceite sem condicionalismos apenas há um dia atrás. Fosse qual fosse a conclusão a que chegassem, não podiam ainda proclamá-la. Hugh disse com toda a indulgência:
— Em primeiro lugar, é melhor que saiba o que Fortunata e a família nos contaram. Você deixou-a entre este local e a ponte, isso ela confirma. Depois ela seguiu para casa, onde encontrou Aldwin e discutiu com ele por este o ter acusado, descobrindo-se então que ele tinha procedido assim com medo de perder o emprego, um assunto que muito o afligia, como compreenderá.
— Mas isso nunca esteve em questão — disse Elave, surpreendido.
— Isso ficou esclarecido logo na primeira vez que lá fui. Nunca quis afastá-lo e a Dona Margaret disse-me directamente que não o dispensariam. Ele não tinha nada a recear da minha parte.
— Mas ele não pensou assim. Até àquele momento, ninguém lhe dissera isso claramente. Quando ele ouviu as explicações da família Lythwood, pois todos, incluindo o pastor, mantinham a mesma opinião, declarou a sua intenção de ir atrás de si para lhe confessar o que fizera e lhe pedir perdão. Se não o conseguisse apanhar... a rapariga disse-lhe onde o deixara... iria até à abadia, onde faria todos os esforços para retirar o que dissera contra si.
Elave sacudiu a cabeça, admirado.
— Não cheguei a vê-lo. Estive escondido entre as árvores uns dez minutos ou mais, observando a estrada, antes de ter desistido e ter optado por seguir ao longo ao rio. Se ele tivesse passado por ali, tê-lo-ia visto. Talvez tenha ficado com receio quando os viu percorrer todos os recantos à minha procura, ao longo de Foregate, e achou por bem arrepender-se. — Dissera isto sem amargura, até com um sorriso algo resignado. — É sempre mais fácil mandar os cães atrás da caça do que fazê-los voltar.
— Lá isso é verdade! — disse Hugh. Acabariam por o apanhar também, exaltados como estavam. Ou seja, nunca o chegou a ver, nem a falar com ele e não faz ideia de onde é que ele foi ou o que lhe aconteceu?
— Não faço ideia nenhuma. Porquê? — perguntou simplesmente Elave. — Não sabem por onde anda?
— Não — disse Hugh —, já o encontrámos. O irmão Cadfael encontrou-o hoje de manhã cedo encalhado num banco de areia do Severn, para lá de Gaye. Morto, apunhalado nas costas.
— Saberia ou não Elave deste facto? — interrogava-se Hugh quando já se encontravam cá fora no pátio principal, tendo deixado o prisioneiro fechado na cela. — Você próprio o viu, sabe o que dizer? Mesmo que olhado fixamente, qualquer homem pode mentir se precisar. Prefiro antes restringir-me aos factos sólidos e mais prováveis. Ele regressou. Um homem que tivesse cometido um assassínio teria feito isso? Possui uma boa faca, para todo o uso, capaz de matar alguém, mas continua dentro da sua trouxa na hospedaria, não a tem com ele e, como sabemos, é impossível que lá tenha ido entretanto, pois assim que apareceu de novo no portão foi atacado e, seguidamente, enclausurado numa cela. Se possui outra faca e a levou, deve ter-se livrado dela. Senhor abade, acredita nele? Acha que ele está a dizer a verdade? Quando ele lhe deu a sua palavra, o senhor aceitou-a. Aceitá-la-ia de novo?
— Não acredito nem deixo de acreditar — disse Radulfus com pesar. — Quem sou eu para tal? Mas tenho esperança!
William Warden, o sargento de Hugh mais experiente e com mais anos de serviço, apareceu à procura do xerife no momento em que Hugh e Cadfael se dirigiam para o portão; era um homem de meia-idade, grande e robusto, usava barba, era grisalho, com um aspecto batido pelo tempo, tinha um sólido conceito de si próprio, o que por vezes o levava a subvalorizar os outros. De início, tinha considerado o jovem Hugh como um homem fraco, quando este subiu ao cargo de xerife, mas com o tempo mudou consideravelmente essa opinião, acabando por manterem uma relação saudável de mútuo respeito. A barba do sargento estava eriçada de contentamento. Era notório que tinha feito alguns progressos e que estava orgulhoso de si próprio.
— Senhor, encontrámos!... o local onde o esconderam até escurecer. Ou pelo menos onde ele, ou alguém, permaneceu a sangrar o tempo suficiente para ter deixado claros vestígios. Enquanto estávamos a bater a zona dos arbustos, Madog lembrou-se de procurar entre as ervas por debaixo do arco da ponte. Um pescador tinha puxado lá o seu pequeno barco e tinha-o virado ao contrário para colocar umas chapas no casco. Não o iria usar ontem, sendo um dia de festa. Quando levantámos o barco, vimos a relva achatada e uma pequena parte desta manchada de sangue. Com o tempo seco como está e tendo estado coberto durante um mês ou mais, aquele solo está seco como palha. A mancha via-se facilmente, ainda que não seja grande. Pode perfeitamente ter lá estado deitado o corpo de um homem, escondido por debaixo de um barco virado ao contrário.
— Então foi aí! — disse Hugh com um longo suspiro e em tom pensativo. — E sem correr grandes riscos, se atiraram o corpo à água nesse local, às escuras, por debaixo do arco. Nem o barulho do corpo a cair na água, nada que chamasse a atenção. Com um remo ou com uma vara, podem tê-lo empurrado para a corrente.
— Afinal, parece que tínhamos razão — disse Cadfael. Só temos de nos restringir àquela extensão do rio, desde a ponte até onde retirámos o corpo. Não encontraram o punhal?
O sargento abanou a cabeça. Quem o matou, se o fez naquele sítio, sob o arco ou entre os arbustos, deve ter limpo a faca à beira da água e deve tê-la levado com ele, Para quê desperdiçar uma boa faca? E para quê deixá-la ali, para alguém a encontrar e dizer: “Conheço esta faca, pertence ao John Weaver, ou lá quem fosse, e por que será que está manchada de sangue?” Não, nunca vamos encontrar essa faca.
— Tem razão — disse Hugh —, era preciso um homem estar louco para a atirar fora e poder ser encontrada, e segundo creio este homem estava perfeitamente consciente do que estava a fazer. Não se prenda com isso, fez muito bem, agora já sabemos o local onde o crime ocorreu, ou ali ou muito perto dali.
— Ainda há mais a dizer, senhor — disse Will, satisfeito —, e é ainda mais estranho, se estava com tanta pressa como dizem quando foi a correr para retirar a acusação. Perguntámos ao guarda das portas da cidade se o tinha visto passar e atravessar a ponte, ele disse que sim, que tinha falado com ele e que mal obtivera resposta. Mas que não tinha vindo directamente da casa de Lythwood, disso tinha a certeza. Já tinha passado mais de uma hora, talvez uma hora e meia.
— Tem a certeza disso? — perguntou Hugh. — Não há um grande controlo, pelo menos em tempos calmos. Poderia estar confundido com as horas.
— Diz que tem a certeza. Viu todos os outros regressarem depois daquela questão que houve no capítulo, primeiro Aldwin e o pastor e depois a rapariga, pareceu-lhe que estavam todos com um ar preocupado. Nessa altura ainda não tinha ouvido nada sobre o que se passara, mas reparou que não tinham um ar nada satisfeito e, muito antes de Aldwin ter voltado a passar pelo portão, já todos sabiam o que tinha acontecido. O guarda ficou perfeitamente espantado quando o viu surgir e quis interpelá-lo, fazer-lhe perguntas sobre o assunto, mas Aldwin passou por ele sem sequer responder. Oh, disso ele tem a certeza! Sabe exactamente quando ele lá passou.
— Então, afinal, esteve todo esse tempo na cidade — disse Hugh, mordendo pensativamente o lábio. — Mas efectivamente acabou por atravessar a ponte, para ir onde disse que ia. Mas porquê a demora? Que o terá mantido ocupado?
— Ou quem? — sugeriu Cadfael.
— Ou quem! Acha que alguém foi atrás dele para o tentar dissuadir? Ninguém lá de casa, ou ter-nos-iam dito. Quem mais poderia tentar que ele voltasse para trás? Mais ninguém sabia o que ele tencionava fazer. Bem — disse Hugh —, sobre isso nada se sabe, vamos percorrer cada centímetro do caminho entre a casa de Lythwood e a ponte e bater em todas as portas até conseguirmos saber onde andou antes de sair da cidade. Alguém o deve ter visto, algures ao longo do caminho.
— Imagino — disse Cadfael, ponderando tudo o que tinha visto e que sabia acerca de Aldwin, o que, para além de triste, não era lá muito — que não teria muitos amigos nem seria um homem muito resoluto. Se teve de reunir toda a coragem que tinha para ter acusado Elave, deve ter-lhe custado ainda mais decidir retirar a acusação e correr o risco de se tornar suspeito de querer mal a alguém ou de perjúrio, ou de ambas as coisas. A meio do caminho, o medo pode ter-lhe mudado novamente as ideias e pode ter decidido esperar que as coisas se resolvessem por si mesmas. Onde teria ido pensar sobre o assunto, esta pobre alma confusa e solitária, e tentar ganhar coragem outra vez? Há um tipo de coragem que se vende nas tabernas. E um outro, embora não se encontre à venda, que se pode obter no confessionário. Experimente perguntar nas tabernas e nas igrejas, Hugh. Tanto num sítio como no outro, um homem pode encontrar sossego para pensar.
Foi um dos homens armados da guarnição do castelo, nada contrariado por lhe terem dado a tarefa de perguntar nas tabernas da cidade, que trouxe a notícia seguinte sobre o caminho incerto que Aldwin tomara em Shrewsbury. Havia uma pequena taberna numa passagem recatada no cimo da ladeira que descia até Wyle. Ficava situada sensivelmente a meio caminho entre a casa junto da igreja de Saint Alkmund e as portas da cidade, as ruelas que lá conduziam eram ladeadas por grandes muralhas e, num dia de festa, era bem possível que estivessem desertas. Um homem influenciado por outro decidido a mudar-lhe as ideias, ou subitamente possuído por receios, sem qualquer outra persuasão, poderia muito bem passar despercebido durante todo o caminho e debater a questão diante de uma caneca de cerveja naquela taberna calma e recatada. Pelos vistos, o jovem encarregue de fazer as perguntas não tivera intenção de falhar nenhum dos locais onde se podia refrescar e que correspondiam à sua missão.
— Aldwin? — perguntou o taberneiro, desejoso de falar sobre aquela tragédia sensacional. — Só soube há uma hora atrás. É claro que o conhecia. Era um homem dado a poucas conversas. Quando cá aparecia, sentava-se num canto e quase não dizia uma palavra. Parece que estava sempre à espera do pior, mas quem iria imaginar que alguém lhe podia querer fazer mal? Que eu saiba, nunca fez mal a ninguém, pelo menos antes do que se passou ontem à tarde. O que se diz por aí é que aquele a quem acusou voltou para se vingar. Como se já não tivesse problemas que chegassem — disse o taberneiro, baixando a voz em tom de confidência. — Se a Igreja lhe deita as unhas, de nada lhe vai servir gritar, porque não escapa.
— Viu mesmo o homem, ontem? — perguntou o soldado.
— Aldwin? Sim, esteve cá um bocado, ali no último lugar daquele banco, a olhar para o infinito, como sempre. Nessa altura, eu ainda não tinha ouvido dizer nada sobre o que se tinha passado na abadia, senão tinha tentado saber mais coisas. Ninguém podia imaginar que aquela alma ia aparecer morta hoje de manhã. Quando menos se espera, um homem é apanhado sem sequer ter tempo para pôr os assuntos em dia.
— Esteve aqui? — repetiu o soldado, eufórico. — A que horas foi isso?
— Muito depois do meio-dia. Eram umas três da tarde, suponho, quando eles entraram.
— Eles? Não estava sozinho?
— Não, o outro sujeito é que o trouxe para cá, com ar de grandes confidências, com um braço por cima do ombro dele e a segredar-lhe ao ouvido. Devem ter estado sentados mais de meia hora, depois o outro foi-se embora e ele ficou cá sozinho mais outra meia hora, a remoer o assunto, ao que parece. Mas Aldwin nunca foi de beber muito. Estava sóbrio como uma pedra quando se levantou e saiu sem dizer palavra, veja bem! Agora já é tarde para dizer qualquer coisa, pobre alma.
— Quem estava com ele? — perguntou o soldado, ansioso por saber. — Sabe o nome dele?
— Não sei se alguma vez ouvi chamarem-no pelo nome, mas sei quem ele é. Trabalha para o mesmo mestre... é aquele pastor deles que se encarrega do rebanho que eles têm para lá do lado galês da cidade.
— Conan? — repetiu Jevan, regressando das prateleiras da sua loja trazendo um pergaminho bege nas mãos. — Está com o rebanho e é bem possível que passe lá a noite, como costuma fazer nestes dias de Verão. Porquê, há alguma novidade? Ele já contou o que sabia, todos contámos o que sabíamos, hoje de manhã. Devia ter cá ficado? Não fazia ideia de que podiam precisar dele outra vez.
— Nem eu sabia, nessa altura — concordou Hugh com pesar. — Mas parece que o mestre Conan só contou metade da história, a metade que o senhor e todas as pessoas da casa o ouviram contar. Não falou sobre o facto de ter ido atrás de Aldwin, de o ter levado para aquela taberna no Three-Tree Shut e de lá ter estado com ele mais de meia hora.
As negras sobrancelhas de Jevan erguiam-se agora até quase à raiz do cabelo e por um momento ficou de boca aberta.
— Ele fez isso? Na altura, disse que ia para junto do rebanho e que ficava a trabalhar o resto do dia. — Avançou vagarosamente até à sólida mesa onde dobrava as suas peles e pousou cuidadosamente a que trazia nas mãos, alisando-a abstraído com um longo gesto de uma das mãos. Era um homem muito meticuloso. Tudo na sua loja estava arrumado numa ordem imaculada, as peles por cortar sobrepostas em camadas, as peles cortadas colocadas em prateleiras, de acordo com os vários tamanhos, e as facas que utilizava para as cortar rigorosamente alinhadas num tabuleiro, prontas a utilizar. A loja era pequena e naquele tempo quente abria para a rua, com as portadas descerradas até ao anoitecer.
— Conan entrou na taberna levando Aldwin pelo braço, segundo disse o taberneiro, por volta das três horas. Ficaram lá mais de meia hora, durante a qual Conan falou rápida e confidencialmente ao ouvido de Aldwin. Depois Conan saiu deixando-o lá, tanto quanto sei para ir para o seu trabalho, e Aldwin continuou sentado durante mais uma meia hora, sozinho. É esta a história que o meu homem ouviu e é essa mesma história que eu quero ouvir contada por Conan, além de tudo o mais que possa ter a dizer.
Jevan afagou o queixo longo e bem barbeado e considerou o assunto, com um olhar especulativo sobre o rosto de Hugh.
— Agora que me fala nisso, senhor, devo dizer que neste momento vejo um maior alcance no que foi dito ontem, pois quando Aldwin afirmou que tinha de sair e tentar salvar aquele rapaz, a quem tinha feito tudo para prejudicar, para irem ambos ter com os monges para ele retirar tudo o que havia dito sobre Elave, Conan disse-lhe que isso seria uma loucura, que só iria meter-se em sarilhos, sem conseguir fazer nada pelo rapaz. Tentou tudo para o dissuadir. Mas na altura achei que era só uma questão de bom senso, que ele queria proteger Aldwin do perigo. Quando eu lhe disse para o deixar ir, Conan limitou-se a encolher os ombros e saiu para o seu trabalho. Pelo menos, foi isso que pensei. Agora fico a pensar... Isto não lhe soa como se ele tivesse passado mais outra meia hora a tentar persuadir o outro a desistir da sua penitência? Disse que era ele que falava e que Aldwin se limitava a ouvir. E mais outra meia hora até que Aldwin se decidisse a tomar uma atitude, num ou noutro sentido.
— De facto, também me soa assim — disse Hugh. — Além disso, se Conan saiu satisfeito e o deixou sozinho, certamente pensou que o tinha conseguido convencer. Se isso era tão importante para ele, não se teria ido embora até ficar satisfeito por ter conseguido o que queria. Mas aquilo que não consigo perceber é a razão por que isso tinha tanta importância para ele. Conan é homem para se interessar tanto por um amigo indeciso?
— Confesso — disse Jevan — que nunca pensei nisso. É muito esperto quando se trata de defender os seus interesses, embora seja bom no trabalho que faz e dê valor ao que lhe pagamos por isso.
— Então qual teria sido a razão? Que outro motivo poderia ter para tentar desesperadamente persuadir o pobre homem a deixar as coisas como estavam? Que poderia ter contra Elave, para o querer morto ou enterrado vivo numa prisão da Igreja? O rapaz mal tinha acabado de regressar. Se trocaram uma dúzia de palavras, foi muito. Se não estava preocupado com Aldwin nem tinha nada contra Elave, que mais poderia ter em mente?
— Terá de lhe perguntar directamente — disse Jevan abanando brevemente a cabeça, mas com um certo tom de voz que fez com que Hugh ficasse atento.
— É isso que farei. Mas agora estou a perguntar-lhe a si.
— Bem — disse Jevan cautelosamente —, é preciso ver que eu posso estar errado. Mas há algo que Conan pode ter contra Elave. Embora nem tenha sido provocado, e Elave ficaria muito admirado se soubesse disso. Não reparou na nossa Fortunata? Cresceu e transformou-se numa jovem bonita e decidida, desde que Elave acompanhou o meu tio na peregrinação a Jerusalém, e antes disso, há que ver que durante anos conheceram-se bem e gostavam bastante um do outro, ele condescendendo a uma criança e ela infantilmente apaixonada por um jovem simpático, mesmo que ele não fizesse caso daquela paixoneta. Quando regressou encontrou algo muito diferente. E cá estava Conan...
— Que a conhece há muito tempo e a viu crescer — disse Hugh num tom céptico — e que se podia ter decidido há muito se estivesse tão interessado, sem Elave no meio do caminho. E chegou a...?
— Não — garantiu Jevan, com um sorriso vago. — Mas as coisas mudaram. Para além do nome que o meu tio lhe deu, até agora Fortunata não possuía nada de seu que a pudesse tornar um bom partido. O jovem Elave trouxe do Oriente uma herança do tio William, abençoada seja a sua alma, que decidiu ser generoso para a sua filha adoptiva quando se apercebeu de que poderia não voltar a vê-la. Oh!, não, Conan até agora ainda não sabe o que poderá haver naquela caixa que Elave trouxe. Só será aberta quando o meu irmão regressar da compra de lãs. Mas Conan sabe da sua existência, sabe que está aqui, que foi dada por um homem generoso, praticamente no seu leito de morte, quando se espera que um homem assim abra o seu coração. Pelos olhares que vi Conan lançar a Fortunata nestes últimos dias, começou a vê-la como destinada para ele, com dote e tudo, e a ver Elave como uma ameaça a ser posta de lado.
— Morto, se fosse preciso? — aventurou-se Hugh a dizer, duvidando. Parecia uma atitude demasiado atrevida para um homem tão banal. — Não foi ele que fez a acusação.
— Tenho andado a pensar se não terá sido uma coisa combinada entre os dois. Seria proveitoso para ambos, livrarem-se do jovem, pois Aldwin teve receio de ficar sem o emprego. Era o género dele, pensar o pior de mim e do meu irmão, bem como de todos os outros.
Oh!, duvido que algum deles tivesse pensado em algo tão definitivo como uma sentença de morte. Bastaria que o rapaz fosse parar à prisão do bispo, ou ficasse tão mal visto e se sentisse tão inútil por aqui que decidisse ir para outras paragens quando fosse libertado. E não tenha dúvida, Conan não sabe lidar com as mulheres — disse Jevan, que nunca se tinha casado, com ar cínico — e pensou que a acusação contra Elave afastaria dele a rapariga. Devia ter pensado melhor. Só fez com que acontecesse o contrário! Agora até está disposta a defendê-lo com unhas e dentes. Os padres ainda nem ouviram metade do que Fortunata tem a dizer.
— Então é isso — disse Hugh, assobiando levemente. — Afinal, havia mais alguma coisa neste caso. Se ele é assim, deve ter ficado bastante alarmado quando Aldwin mudou de ideias e quis que o rapaz desaparecesse da mira em que o tinha colocado. Isso pode ter sido o suficiente para ter ido atrás de Aldwin, tê-lo desviado do caminho, ter-lhe segredado ao ouvido e feito tudo o que era possível para o dissuadir. Terá sido suficiente para o impedir de ir mais longe?
Jevan continuava a olhá-lo com ar interrogativo, e pousou, devagar e absorto, o pergaminho que tinha ido buscar, para o dobrar ao meio.
— Mais longe? Como mais longe? Em que está a pensar? Ao que parece, os argumentos dele deram resultado e foi-se embora satisfeito. Não era preciso mais nada.
— Ah, mas suponha que ele não ficou completamente satisfeito. Suponha que não se podia fiar que tinha ganho? Sabendo que Aldwin era uma pobre alma influenciável, com a consciência pesada, os seus receios e ressentimentos poderiam ser afastados por uma nova resolução, tal como o vento vai e vem. Suponha que Conan se escondeu nalgum sítio à espera de ver o que ele faria. E o viu levantar-se e sair da taberna sem dizer palavra, descer de Wyle até às portas da cidade e até à ponte. Toda aquela conversa não teria servido para nada e era preciso mais do que só palavras, urgentemente, antes que tudo estivesse estragado. Seria assim tão importante para ele? Aldwin não veria o mal que estava por detrás, mesmo depois de ter sido persuadido segunda vez... por um homem que conhecia de longa data. Podia até deixar-se arrastar para um local sossegado, para remoer o assunto outra vez. E Aldwin — disse Hugh — morreu algures perto da ponte, esconderam-no debaixo de um barco virado ao contrário até ao anoitecer e foi atirado à água por debaixo do arco.
Jevan permaneceu em silêncio, reflectindo durante alguns minutos. Depois sacudiu vigorosamente a cabeça, sem estar completamente convencido.
— Penso que isso já não foi obra dele. Mas terá a ver com a razão por que omitiu metade da história, dizendo que a última vez que viu Aldwin foi aqui no pátio, como o resto de nós. Mas não, de certeza que homens mesquinhos com pequenos ressentimentos não chegam a matar. Amenos que... — disse em jeito de conclusão — que o façam num momento de raiva, sem pensar, quase por acidente, arrependendo-se no momento seguinte. Disso são capazes!
— Mande chamá-lo de volta — disse Hugh. — Não lhe diga nada. Se o mandar vir, virá sem suspeitar de nada. E, se tiver juízo, dirá a verdade.
Girard de Lythwood voltou para casa a meio da tarde, dois dias depois daquilo que tencionava, mas muito satisfeito com o trabalho daquela semana, pois o atraso devia-se ao facto de, nas suas andanças, ter arranjado dois novos clientes, com boas tosquias para vender, gratos por negociarem com um agente e intermediário honesto, após alguns negócios menos felizes em anos anteriores. Todos os lotes de lã que tinha pesado e comprado estavam armazenados em segurança no seu armazém, fora do Castelo de Foregate, tendo depois seguido para casa. Os cavalos de carga que alugara, necessários apenas uma vez por ano, após a tosquia anual, foram devolvidos ao respectivo estábulo e os dois homens que contratara receberam o seu dinheiro e voltaram às suas casas. Girard era um homem prático, que sabia como resolver os assuntos. Pagava as suas contas a horas e esperava que os outros lhe pagassem o que lhe deviam sem relutâncias nem atrasos. Entre o final de Junho e o princípio de Julho, apareceria o mercador de lã, que negociava com as exportações flamengas, para levar o produto do Verão. Girard conhecia as suas limitações. Estava satisfeito por ter expandido a sua rede por mais de um quarto do condado e pelos seus vizinhos galeses, tendo deixado o comércio da venda das lãs a outros mais ambiciosos.
Girard era meio palmo mais baixo do que o irmão mais novo, mas bastante mais largo de ombros e de ossos, um homem vigoroso, saudável de físico e de espírito, de rosto redondo e alegre, com um denso cabelo castanho-arruivado e uma barba bem aparada.
O bom humor de Girard era raramente abalado, mesmo por acontecimentos inesperados, mas não poderia deixar de ficar muito consternado ao regressar a casa, após uma semana de ausência, e saber que o seu tio William, o peregrino, estava morto e enterrado; que o jovem companheiro de William tinha regressado a salvo de todos os perigos da viagem para se ver envolvido num perigo mortal à chegada; o seu empregado, Aldwin, morto e colocado num caixão, numa das casas anexas do pátio, pronto a ser enterrado; o padre da paróquia de Saint Alkmund a rezar ansiosamente pela sua alma antes do enterro, e o seu pastor, Conan, a suar, com um olhar aparvalhado, na loja de Jevan, vigiado por um dos homens do xerife. De nada serviu estarem três pessoas à volta dele a tentar explicar ao mesmo tempo como é que aqueles acontecimentos desastrosos se tinham dado na sua ausência.
Mas Girard era um homem que resolvia uma coisa de cada vez. Se o tio William estava morto e enterrado, com o devido respeito, então nada mais havia a fazer, nem havia pressa em saber o que acontecera. Se Aldwin, no meio de tantas outras pessoas, acabara por ser vítima de uma morte violenta, então também isso, embora requeresse uma resolução final, não era assunto da sua competência. As dúvidas do padre Elias sobre a condição espiritual do pobre homem eram outro assunto e precisavam de ser consideradas. Se Elave se encontrava fechado numa cela da abadia, pelo menos por agora nada de pior lhe aconteceria. Quanto a Conan, era suficientemente sólido, não lhe faria mal nenhum suar durante um bocado. Haveria tempo para o defender, se viesse a ser necessário. Entretanto, o cavalo de Girard, que tinha percorrido uma distância considerável naquele dia, precisava de ser levado para o estábulo, e o próprio Girard estava com fome.
— Vamos para dentro, moça — disse animado, passando um braço à volta da cintura da mulher e conduzindo-a para o hall. — Jevan, trata do cavalo por mim, se não te importas, enquanto eu oiço esta história toda. É tarde para lamentos e demasiado cedo para entrar em pânico. O que quer que tenha corrido mal, haverá uma altura em que tudo se há-de arranjar. Quanto mais depressa, mais devagar! Fortunata, minha querida, vai buscar-me uma cerveja, estou cheio de sede. E sirvam o jantar, sem comer é que não presto para nada.
Todos fizeram as vontades de Girard. O pivô daquela casa, líder amado e respeitado, estava de regresso. Jevan, que tinha deixado a maior parte das exclamações às mulheres, devolveu ao irmão a sua posição de chefe da casa e dos negócios, mantendo a sua devida distância, tendo o seu próprio reino à parte, entre as folhas de pergaminho. Levou o cavalo cansado para o estábulo, escovou-o e alimentou-o antes de entrar em casa para se juntar à mesa. Nessa altura, Conan tinha sido levado para o castelo, para responder às perguntas de Hugh Beringar. Jevan sorriu, algo forçado, fechando a porta e atravessando o hall.
— Bem, é estranho — disse Girard, encostando-se atrás na cadeira, com um suspiro — que tudo tenha acontecido precisamente na única semana do ano em que um homem está fora. Ainda bem que Conan não me encontrou, ou teria perdido dois novos clientes, pois, se ele me tivesse encontrado, eu teria voltado para trás. Consegui a lã de quatrocentas ovelhas naquelas duas aldeias e mais alguma na planície. Só lamento, meu amor, que tivesses todas estas preocupações sem eu cá estar para te livrar desse peso. Agora temos de ver o que é preciso fazer. Em primeiro lugar, creio eu, está a questão de Aldwin.
O que quer que possa ter feito e dito contra outro homem, dominado pelos seus próprios receios e preocupações... quem melhor do que Aldwin para temer sempre o pior e recear pedir ajuda se isso viesse a suceder? Bem, o que quer que tenha feito, era um homem desta casa e vamos enterrá-lo como deve ser. Mas aqui o senhor padre Elias está preocupado com o funeral.
O padre Elias, responsável pela paróquia de Saint Alkmund, estava reunido com eles, sentado no topo da mesa, tendo deixado de remoer o assunto sobre aquela alma e aproveitado a hospitalidade de Girard para jantar. Pequeno, idoso, de cabelo cinzento e todo-piedoso, o padre Elias comia como um pisco, quando se lembrava de comer alguma coisa, e passava o tempo entre o seu rebanho, atarefado e preocupado, como uma galinha aturdida tentando proteger todos os pintainhos debaixo das asas. As almas costumavam escapar-lhe, apesar de se dedicar completamente a cada caso, e passava grande parte do seu tempo de joelhos, pedindo desculpa a Deus pela alma que lhe tinha escapado por entre os dedos. Mas não abandonaria nem aquele fugitivo entregue a falsas recomendações.
— Este homem era meu paroquiano — disse o pequeno padre num tom de voz que revelava já a sua decisão —, lamento a sua morte e rezo por ele. Mas teve uma morte violenta e, como foi na sequência de ter feito maliciosamente uma acusação mortal contra outro homem, qual poderia ser a saúde mental desta alma? Há várias semanas que não aparecia na missa, nem na confissão, pelo menos na minha igreja. Nunca foi assíduo na sua fé, ao contrário do que todos deveriam ser. Não vou bani-lo por essa falta. Mas quando foi a última vez que se confessou e foi absolvido? Como posso aceitá-lo se não sei se morreu em penitência?
— Bastaria um pequeno acto de contrição? — atreveu-se a perguntar Girard cautelosamente. — Pode ter falado com outro padre. Quem sabe? A ideia pode ter-lhe surgido enquanto estava noutro lado e ter-lhe parecido uma questão de vida ou de morte.
— Existem quatro paróquias dentro das muralhas — disse Elias com uma tolerância que não escondia a sua inveja. — Terei de perguntar. Embora alguém que falte à missa com tanta frequência... Bem, terei de perguntar, aqui na cidade e nos arredores. Pode até ter-se dado o caso de ter tido receio de vir ter comigo. Os homens são fracos, e às vezes fogem para esconder a sua fraqueza.
— Tem toda a razão, senhor padre! Não teria ele vergonha de ir ter consigo, se há tanto tempo não ia à missa? Não teria ido ter com outro padre que não o conhecesse tão bem e lhe pudesse perdoar mais facilmente os seus pecados? Pergunte, senhor padre, e algures acabará por encontrar desculpa para ele. Depois há este assunto de Conan. Também é um homem desta casa, o que quer que tenha andado a preparar. Dizem-me que ele deu provas de que o rapaz de William afirmou uns disparates sobre a Igreja! Qual é a tua opinião, Jevan, parece-te que se juntaram os dois para lhe fazer mal?
— É o que parece — disse Jevan, encolhendo os ombros. — Embora ache que não tivessem compreendido exactamente aquilo que estavam a fazer. Acabou por se descobrir que Aldwin, pobre alma, receava ser substituído por Elave.
— Isso acredito que ele tivesse pensado, era mesmo dele! — concordou Girard com um suspiro. — Sempre foi muito pessimista. Embora devesse ter tido mais bom senso, conhecendo-nos há tantos anos. Atrevo-me a dizer que pensou que o jovem se iria embora à procura de fortuna noutro lado, assim que se sentisse ameaçado. Mas por que quereria Conan livrar-se dele?
Houve um breve e total silêncio e um certo abanar de cabeças. Depois Jevan, com o seu pequeno sorriso pesaroso, disse:
— Penso que o nosso pastor também viu em Elave um perigoso rival, embora não por questões de emprego. Está de olho em For-tunata...
— Em mim? — surpreendeu-se Fortunata endireitando-se na cadeira, fitando de boca aberta o tio que estava sentado do outro lado da mesa. — Nunca dei por isso! E tenho a certeza de que nunca lhe dei razões para tal.
— ... e imaginou e receou — continuou Jevan, perdendo o sorriso
— que Elave, se cá ficasse, daria um melhor partido. Já para não dizer mais bem-vindo! Quem pode afirmar que ele não tinha razão?
— Acrescentando com os olhos negros fitando a jovem com uma afeição provocadora: —Nos dois aspectos!
— Conan nunca me dedicou qualquer atenção — disse Fortunata, passado o espanto inicial, rápida a compreender que tudo aquilo poderia ser verdade, apesar de lhe ter escapado até agora. — Nunca! Não posso acreditar que alguma vez tenha sequer pensado em mim.
— Certamente, nunca teria pensado nisso — disse Jevan —, mas houve uma mudança nestes últimos dias. Tem estado demasiado ocupada a olhar para outro lado para ter dado por isso.
— Queres dizer que ele tem andado a lançar olhares à minha menina? — perguntou Girard, rindo alto e em bom som perante a ideia.
— Não terá sido bem assim. Diria antes que lhe lançava um olhar bastante calculista. Margaret ainda não te contou que agora Fortunata tem uma herança de William, destinada a ser o seu dote?
— Falaram-me numa caixa que ainda não foi aberta. Mas porquê? Alguém pensou que eu deixaria a minha menina sem dote quando ela tivesse intenção de casar? Embora tivesse sido bom o velhote ter-se lembrado dela e ter-lhe enviado a sua bênção. Se ela estivesse inclinada para Conan, bem, suponho que ele não é mau homem, não seria assim tão má escolha. Ele já devia saber que eu não a deixaria ir de mãos vazias, fosse com quem fosse. — E acrescentou, lançando um olhar apreciador a Fortunata: — Embora a nossa menina conseguisse muito melhor!
— Mais vale um pássaro na mão — disse Jevan, irónico — do que dois a voar.
— Ah, não estás a ser justo com o homem! Quem o impedia de ver que a nossa menina se transformou numa beldade, não só bonita como bondosa. E, mesmo que tenha acusado Elave para o colocar fora da corrida, forçando Aldwin a não retirar a sua palavra, pela mesma razão nada honrosa, há homens que já fizeram muito pior do que isso e não pagaram um preço assim tão elevado. Mas em relação a Aldwin... trata-se de homicídio. Não, Conan não teve nada a ver com isso, de certeza! — Olhou para o extremo da mesa, para o pequeno padre Elias, com a sua tonsura cinzenta impecável, sentado, ouvindo e com olhar atento. — De certeza, não acha, senhor padre?
— Aprendi — disse o pequeno padre — a não colocar nenhuma vilania fora do alcance dos homens, nem nenhuma bondade. A vida é algo muito frágil, feita de trabalho árduo, que pode ser abalada por um mero sopro de vento... a fúria, a embriaguez ou as simples partidas que acabam mal acontecem de um momento para o outro.
— Conan só tem de explicar o que fez durante umas poucas horas — salientou Jevan, indulgente. — Certamente quando ia para junto do rebanho encontrou alguém que o conhecia, só tem de dizer quem foi, e esse alguém só tem de dizer onde e quando o viu. Desta vez, se disser toda a verdade, não terá de se preocupar.
Assim, restava apenas Elave. O mais acusado, o mais prejudicado, subitamente acercado pelo seu acusador, entre as árvores, sem outras testemunhas, demasiado enfurecido para esperar e ouvir o que o seu inimigo que lhe queria dizer. Devia ser o que todos andavam a dizer em Shrewsbury, dando como certo o final de toda esta história. Uma acusação de heresia, agora outra de homicídio. Durante toda aquela tarde, até às Vésperas, esteve em liberdade, e quem foi o último a ver Aldwin vivo, depois de ter passado pelo guarda nas portas da cidade? Duas horas e meia desde essa altura até às Vésperas, quando Elave foi novamente colocado sob custódia, duas horas e meia durante as quais podia ter cometido um assassínio. Até o facto de Aldwin ter sido apunhalado pelas costas pode ser facilmente explicado. Aldwin surgiu a correr para apresentar as suas desculpas, Elave mostrou-lhe um olhar tão furioso e ameaçador que ele ficou tão assustado que se virou para desatar a correr e nesse momento o punhal cravou-se-lhe nas costas. Sim, é isto que todos vão pensar. E se alguém defendesse que Elave não levava consigo um punhal, que o seu tinha ficado no meio da bagagem na hospedaria? Ele teria outro, que sem dúvida agora está no fundo do rio. Haveria uma resposta para tudo.
— Pai — disse Fortunata abruptamente, levantando-se da cadeira — não se importa de abrir agora a minha caixa? Vamos ver quanto valho, E depois preciso de falar consigo. Sobre Elave!
Margaret foi buscar a caixa ao armário do canto e desviou os pratos num dos lados da mesa, para arranjar espaço para a colocar diante do marido. As espessas sobrancelhas de Girard ergueram-se admiradamente ao vê-la e segurou-a com ar apreciativo.
— Para quê, isto já é bonito só por si. Isto podia trazer-te um dinheiro extra se um dia viesses a precisar. — Pegou na chave trabalhada e colocou-a na fechadura. Esta moveu-se suave e silenciosamente e Girard abriu a tampa, revelando um fino e impecável pano de feltro, dobrado de uma tal maneira que podia ser aberto para revelar o conteúdo da caixa sem ter de ser removido. Seis pequenos sacos feitos do mesmo feltro estavam dispostos dentro da caixa. todos do mesmo tamanho, perfeitamente arrumados de forma a ocuparem todo o espaço.
— Bem, são teus - disse Girard, sorrindo para Fortunata. que se debruçara para os ver, a sombra incidindo na sua face. — Abre um.
Ela pegou num dos sacos e o suave tilintar das moedas de prata soou entre os seus dedos. Não estava atado, a parte de cima do saco estava apenas dobrada. Despejou o conteúdo sobre a mesa, uma quantidade de moedas de prata, mais do que alguma vez vira e, no entanto, de certa forma, curiosamente desapontadoras. A caixa era muito bonita-e tão fora do vulgar, uma verdadeira peça de arte, o conteúdo, embora, valioso, era mero dinheiro corrente, produto de intercâmbio comercial. Mas de qualquer forma seria útil, seria rapidamente empregue se o pior acabasse por acontecer...
— Aqui tens, rapariga! — disse Girard encantado. — Bom dinheiro do nosso reino, e é todo teu. Estão aqui cerca de cem moedas, calculo eu. E mais os outros cinco sacos. O tio William foi generoso contigo. Vamos contar quanto há aqui ao todo?
Ela hesitou por um momento e depois disse:
— Sim! — E ela própria apanhou com a mão a pilha de pequenas moedas de prata e começou a contá-las, uma a uma, à medida que as colocava novamente no saco. Eram noventa e três moedas. quando ela fechou de novo o saco e o tornou a colocar no respectivo canto da caixa, Girard ia a meio do saco seguinte.
O padre Elias tinha-se afastado um pouco da mesa, desviando o olhar desta súbita riqueza com uma curiosa mistura de desejo e desprezo. Raramente um responsável por uma paróquia via mais que dez moedas de prata juntas, quanto mais uma centena. Acabou por dizer vagamente:
— Vou a Saint Julian perguntar sobre Aldwin; atravessou calmamente a sala, em direcção à porta da casa, e só Margaret reparou na sua saída, correndo atrás dele para o acompanhar até à rua.
Ao todo, os seis sacos continham quinhentas e setenta moedas. Fortunata colocou-os novamente nos seus lugares dentro da caixa e fechou a tampa.
— Torne a fechá-la e guarde-a em local seguro — disse ela. — É minha, não é verdade? Para usar como eu quiser? — Todos a fitavam directamente com um interesse benevolente e com o respeito indulgente com que sempre a encaravam, desde a sua infância complicada.
— Quero que saibam que, desde que Elave regressou, principalmente depois de ter surgido esta questão, me aproximei mais dele, mais do que nunca. Creio que o amo. Como já há muito tempo, mas agora é um amor diferente. Ele trouxe-me este dinheiro para que eu pudesse fazer um bom casamento, mas agora sei que é com ele que quero casar e, mesmo que isso não venha a acontecer, quero usar esta oferta para o ajudar a sair da situação em que se encontra, mesmo que isso signifique que ele tenha de se afastar daqui, para onde ninguém lhe possa deitar a mão outra vez. O dinheiro pode comprar muitas coisas, até maneiras de escapar da prisão, pode até comprar homens para abrir a porta. Pelo menos posso tentar.
— Minha querida — disse Girard, gentil mas firmemente —, tu própria me disseste, há pouco, como insististe para que fugisse para salvar a vida quando havia oportunidade. E foi ele quem recusou. Um homem que não quer fugir não pode ser forçado a isso. Na minha maneira de ver, ele tem razão. Não só por ter dado a sua palavra mas sobretudo pela razão com que o fez. Disse que não tinha feito nada de mal, por isso não temia a justiça e, consequentemente, não fugiria.
— Eu sei — disse Fortunata. — Mas ele tem uma fé absoluta na justiça da Igreja e do Estado e eu não tenho a certeza de poder afirmar o mesmo. Prefiro comprar a vida dele, mesmo contra a sua vontade, do que vê-lo arriscar.
— Ele não vai aceitar — avisou Jevan. — Já recusou uma vez.
— Isso foi antes de Aldwin ter sido assassinado — disse ela com convicção. — Antes era apenas acusado de heresia. Agora, se é que ainda não o acusaram disso, trata-se de um assassínio. Não foi ele, não acredito nisso, matar não faz parte da sua natureza. Mas continua lá preso, nas mãos deles. Agora trata-se da vida dele.
— E vai continuar vivo — disse Girard sem deixar lugar a dúvidas, envolvendo-a com um braço, para a fazer sentir-se amparada. — Hugh Beringar não é homem para aceitar as aparências sem olhar à volta. Se o rapaz estiver inocente, acabará por ultrapassar isso tudo e sair livre. Espera! Espera mais um tempo para vermos o que a lei entretanto descobre. É melhor não interferir num assunto de assassínio. Como posso ter a certeza de que um homem é inocente, quer se trate de Elave ou de Conan? Mas se se chegar à conclusão de que se trata só da questão da heresia, então exercerei toda a influência que tenho para o tirar de lá a salvo. Tu ficarás com ele, ele ficará no lugar que Aldwin tanto quis proteger e eu responsabilizo-me pela boa conduta dele. Mas assassínio... isso não! Não sou Deus para ver a culpa ou a inocência na cara de alguém!
Depois de ter visitado todos os seus colegas da cidade, o padre Elias regressou à abadia na manhã seguinte e, no capítulo, perguntou aos irmãos, aos que também eram padres, se por acaso tinham ouvido alguma confissão por parte de Aldwin antes dos serviços de trasladação de Santa Winifred. A véspera de um dia festivo era sempre um dia de muito trabalho para os confessores, pois, como é natural, todos os crentes que tinham negligenciado, durante algum tempo, o seu estado espiritual tinham alguns problemas de consciência que os levavam a confessar-se, de forma a festejarem o dia já penitenciados e satisfeitos na sua renovada virtude e paz de espírito. Se algum daqueles padres tivesse sido abordado por Aldwin, por certo saberia dizê-lo. Mas ninguém o tinha ouvido. O padre Elias acabou, assim, por sair apressadamente da casa do capítulo, desapontado e absorto nos seus pensamentos, abanando negativamente a cabeça grisalha e sacudindo as grandes mangas do hábito como um pequeno pássaro depenado.
O irmão Cadfael deixou o capítulo para tratar do seu trabalho no jardim, tendo ainda em mente a imagem daquela pequena figura. O padre Elias era um homem obstinado, não iria desistir facilmente. Nalgum sítio e de algum modo teria de encontrar uma razão para se convencer a si próprio de que Aldwin tinha morrido em estado de graça, de forma a poder dispensar à sua alma todo o conforto e assistência contemplados nos rituais da Igreja. Mas parecia já ter perguntado a todos os padres da cidade e de Foregate, até agora em vão. E não era homem para fechar simplesmente os olhos e fingir que tudo estava bem, a sua consciência ficaria atormentada e vingar-se-ia se ele não observasse os seus padrões sem a devida clemência. Cadfael sentia uma dupla simpatia pelo padre perfeccionista e pelo paroquiano dedicado. Naquele momento, aquele caso parecia até sobrepor-se à questão de Elave. Este estava entretanto em segurança até que o bispo Roger de Clinton pronunciasse a sua vontade. Se, por um lado, Elave não podia sair, por outro, nenhum fanático lá podia entrar para lhe partir a cabeça outra vez. As suas feridas estavam a sarar e as contusões a desaparecer, e o padre Anselmo, chefe do coro e bibliotecário, tinha-lhe emprestado o primeiro volume das Confissões de Santo Agostinho para o ajudar a passar o tempo. Assim, ele acabaria por descobrir, dissera Anselmo, que Agostinho também escreveu sobre outros assuntos para além da predestinação, da reprovação e do pecado.
Anselmo era dez anos mais novo que Cadfael, uma dedicada e activa alma, dotada de uma réstia de irremediável travessura, embora normalmente escondida. Cadfael sugerira que ele deveria antes ter emprestado a Elave a obra de Agostinho Contra Fortunatus. Nessa obra, escrita alguns anos antes das afirmações mais ortodoxas do santo, num dos períodos de maior mudança nas suas crenças, Elave poderia descobrir outras ideias do santo como: “Não existe pecado a não ser pela vontade do próprio homem e é também pela nossa vontade, pela que nos leva a praticar o bem, que somos recompensados.” Se Elave memorizasse estas palavras, poderia citá-las em sua própria defesa. Muito provavelmente, Anselmo iria falar-lhe sobre isso e forneceria ao suspeito toda a espécie de afirmações que pudessem suportar a sua causa. Era um jogo que qualquer dos padres mais cultos sabia jogar, e Anselmo melhor do que ninguém.
Assim, durante pelo menos mais alguns dias, até Serio alcançar o bispo em Coventry e regressar com a sua resposta, Elave estaria a salvo e poderia aproveitar o tempo para se instruir sobre o assunto. Mas Aldwin, morto e a aguardar que lhe fizessem o funeral, não podia esperar.
Cadfael não podia deixar de pensar como estaria a correr o inquérito de Hugh na cidade. Não soubera nada dele desde a manhã do dia anterior, quando a revelação do assassínio tinha removido o centro das atenções da abadia para o vasto e populoso campo do mundo secular. Mesmo que a origem daquele caso obscuro residisse dentro daquelas paredes, na questão turva da heresia, e o suspeito mais óbvio lá estivesse fechado, as últimas horas da vida de Aldwin, fora daquelas paredes, permaneciam por esclarecer. Havia centenas de homens na cidade e em Foregate que o tinham conhecido, que podiam ter alguns velhos ressentimentos ou novas queixas contra ele, embora estas nada tivessem a ver com a acusação feita a Elave. E havia aspectos por esclarecer no caso contra Elave, que o próprio Hugh tinha salientado e que não iria descurar a troco de uma resposta mais rápida. De facto, Aldwin era agora a prioridade mais urgente. Depois do jantar, durante a meia hora seguinte dada para descanso, : Cadfael esteve na igreja, entre as frescas paredes de pedra, e ali permaneceu alguns minutos em silêncio diante do altar de Santa Winifred. Por vezes, quando sentia necessidade de falar com ela através de palavras, dava por si a falar em galês, mas, de uma maneira geral, sabia que ela conhecia todas as suas preocupações sem ter de lhedirigir quaisquer palavras. Em qualquer dos casos, seria de duvidar que a jovem e bela galesa, na sua primeira e breve fase da vida, tivesse sabido falar inglês ou latim ou mesmo soubesse ler e escrever na sua própria língua, embora na segunda fase da vida, quando foi prioresa, peregrina em Roma e chefe de uma comunidade de freiras, deva ter tido tempo para aprender e estudar. Mas era enquanto jovem que Cadfael sempre a imaginava. Uma jovem de uma beleza lendária que a levou a ser cortejada por príncipes.
Antes de a deixar, embora não tivesse consciência de lhe ter
expressado alguma necessidade ou algum pedido, sentiu aquela paz e aquela certeza que ela sempre lhe transmitia. Circundou o altar até à nave onde se encontrava o padre Boniface, que estava a encher a pequena lamparina do altar e a ajustar as velas nos respectivos candelabros. Cadfael parou para conversar e deixar passar o tempo.
— Imagino que hoje o padre Elias, de Saint Alkmund, tenha andado à sua procura! Também veio ter connosco ao capítulo, com o mesmo propósito. Uma tristeza, este assunto da morte de Aldwin.
O padre Boniface assentiu com a sua cabeça morena e ar solene, limpando o óleo que tinha nos dedos nas mangas do hábito, como uma criança. Era magro mas de aspecto resistente, quase tão taciturno como o seu sacristão, mas aquela timidez desaparecia gradualmente à medida que ia ganhando a confiança do seu rebanho.
— Sim, veio ter comigo depois da oração das Matinas. Nunca cheguei a conhecer Aldwin em vida. Gostaria de o ter podido ajudar, mas, tanto quanto me lembro, só o vi no funeral do mercador de lã, no dia antes da festa. Nunca se confessou comigo.
— Nem com mais ninguém daqui — disse Cadfael. — Nem na cidade, pois Elias foi lá primeiro perguntar. E a sua paróquia é grande. O pobre do padre Elias deve ter tido de andar umas quantas milhas para chegar ao padre da paróquia seguinte. E se Aldwin nunca sequer bateu à porta de nenhum dos seus padres vizinhos, duvido de que tenha feito uma longa jornada à procura de penitência noutros lados.
— É verdade, eu próprio tenho de percorrer algumas milhas por causa dos meus deveres — concordou Boniface, mais com orgulho do que com lamento pela extensão da sua paróquia. — Não que eu faça sacrifício, Deus sabe disso! De noite ou de dia, é uma satisfação saber que me chamam das aldeias mais longínquas quando precisam de mim, e sabem que não deixo de aparecer. Por vezes não compreendo a minha sorte, sendo tão pouco merecida. Há apenas dois dias, fui chamado para ir a Betton, falhei todas as orações menos a missa da manhã. Tive pena de que tivesse de ser naquele dia, mas não tive hipótese de escolha, estava um homem a morrer, ou pelo menos ele e a família acharam que estava prestes a morrer. Valeu a pena a viagem, pois a vida venceu a morte e fiquei lá até termos a certeza disso. Já era quase noite quando regressei. - Interrompeu a conversa bruscamente, ficando de boca aberta e olhos esbugalhados. — Pois foi! — disse ele lentamente. — E nunca me lembrei de referir isso!
— Que foi? — perguntou Cadfael, curioso. Tinha sido um discurso longo e confidente para aquele jovem padre calmo e reticente, e aquela interrupção brusca era intrigante. — De que se lembrou agora?
— Que esteve cá outro padre, que entretanto já se foi embora. O padre Elias não pode ter tido conhecimento disso. Recebi uma visita no dia da trasladação da Santa Winifred, um colega de estudos que foi ordenado há apenas um mês. Chegou na véspera da festa, ao princípio da tarde, e ficou durante todo o dia seguinte. Quando fui chamado a seguir à missa da manhã, deixei-o aqui a substituir-me em todas as minhas obrigações, pois eu sabia que isso era do seu agrado. Ficou cá até eu ter regressado, mas já estava a escurecer e saiu apressado para fazer o caminho até casa. Não decorreu assim tanto tempo, desde depois do meio-dia até ao anoitecer do dia a seguir, mas e se alguém lhe veio pedir para se confessar?
— Não disse nada acerca disso antes de se ir embora? — perguntou Cadfael.
— Estava com pressa de ir embora, ainda tinha de andar umas quatro milhas. Também não lhe perguntei. Estava muito orgulhoso por me ter substituído, rezou as Completas por mim. Pode ter sido!
— disse Boniface. — Não é muito provável, mas pode ter acontecido. É melhor termos a certeza, não acha?
— Sim, é melhor — disse Cadfael esperançoso —, se o conseguirmos encontrar. Mas onde vamos à procura dele? Quatro milhas, foi o que disse? Nem é assim tanto.
Ele é sobrinho do padre Eadmer, de Attingham, e foi ordenado pelo tio. Se ainda lá está com ele, já não sei dizer. Mas ele ainda não foi colocado em nenhuma paróquia. Eu devia lá ir — disse Boniface, hesitante —, mas assim não chegaria a horas das Vésperas. Se me tivesse lembrado mais cedo...
— Não se preocupe com isso — disse Cadfael. Eu peço licença ao senhor abade e vou lá eu. Por uma causa destas, ele não me diz que não. Trata-se do bem-estar de uma alma em risco. E, com este calor — acrescentou com carácter prático —, é melhor apressarmo-nos.
Era, como já calculava, o primeiro dia de uma semana em que o tempo iria estar um pouco encoberto, embora ao entardecer as nuvens se dispersassem. Caminhar ao longo de Foregate com a bênção do abade e ter uma caminhada de quatro milhas pela frente era para ele um prazer. Perdido nos seus pensamentos enquanto caminhava, Cadfael retomou o fôlego quando chegou ao cruzamento de Saint Giles e seguiu pelo caminho da esquerda em direcção a Attingham. Havia momentos em que o velho desejo e as saudades das viagens ainda o assaltavam, e o simples facto de ter sido enviado numa missão para lá dos limites do condado, há apenas três meses atrás, em Março, só lhe aumentara o apetite, em vez de o satisfazer. Os votos que fizera de uma vida estável, embora feitos com toda a sinceridade, por vezes pareciam-lhe tão difíceis de manter como os votos de obediência, os quais Cadfael sempre vira como grandes obstáculos. Sentia-se satisfeito com aquela tarde de liberdade - mais a mais uma liberdade justificada, pois tinha-lhe sido consentida e tinha um objectivo -, como se fosse um dia feriado.
As bermas da estrada principal eram densas de ervas, permitindo uma caminhada suave, as nuvens tinham temperado o calor do Sol, os campos estavam verdejantes de um lado e de outro, salpicados de flores e vibrando de insectos, nos arbustos e nos extremos dos campos os pássaros cantavam alto e compenetradamente, tentando afastar os rivais, as crias já chocadas experimentando agora as suas asas. Cadfael caminhou satisfeito ao longo da berma verdejante, as ervas rodeando os seus tornozelos com uma suave frescura. Agora, que estava quase a terminar a viagem, tornaria a fazer o mesmo caminho com redobrado prazer.
Diante dele, acima do nível dos campos, erguia-se a encosta de árvores do Wrekin e em breve, à sua esquerda, o rio surgiria de novo à distância, serpenteando à medida que avançava, até se aproximar da estrada, um leito gentil e inocente entre margens verdejantes, aparentemente incapaz de ameaçar, embora as pessoas que habitavam por perto tomassem a devida cautela. Havia gado e aves aquáticas naquelas pastagens, entre as fileiras de juncos. Em breve conseguiria ver a torre quadrada e pouco alta da igreja de Saint Eata, depois da curva do Severn, rodeada pelos telhados baixos da aldeia. Havia uma ponte de madeira que conduzia algures para a esquerda, mas Cadfael seguiu em direcção à casa do padre situada ao lado da igreja. Ali o rio espalhava-se num labirinto de águas pouco profundas, douradas e verdejantes, que naquela altura do Verão podiam facilmente ser atravessadas a pé. Cadfael levantou um pouco o hábito e avançou pela água, afastando os pequenos ranúnculos, fazendo estremecer a superfície da água.
Ao longo dos anos, Verão após Verão, tantas pessoas tinham atravessado o rio aqui, em vez de seguirem pela ponte, que tinham feito um estreito caminho de areia até à margem oposta e através das ervas, entre o rio e a igreja, em direcção à casa do padre. Por detrás da igreja de pedra, em tom vermelho-suave, e da modesta casa de madeira queimada pelo tempo, situada na sua sombra, um círculo de velhas árvores abrigava do vento e dava sombra a metade do pequeno jardim. Há vários anos que o padre Eadmer cumpria ali o seu serviço.
Cultivara, dedicado, a terra junto da casa, criando um jardim e uma horta. Esta fornecia legumes para a sua alimentação, mas, a julgar pela extensão, haveria um excesso de produção destinado a melhorar a dieta dos seus vizinhos mais pobres. Aoutra parte de terra cultivada era constituída por um belo jardim de plantas medicinais, cheio de flores, onde a ondulação do terreno lhe possibilitara construir um pequeno banco de terra batida, forrado de tomilho selvagem, proporcionando um local de descanso, Era ali que se encontrava sentado o padre Eadmer, em toda a sua glória, um homem generoso e robusto, com o seu breviário fechado sobre os joelhos, o seu peso considerável destilando ao calor, rodeado daquela atmosfera de fragrâncias. Perante ele, de cabeça ao sol, um homem novo estava ocupado a cavar com uma enxada as fileiras entre as pequenas couves, e o brilho daquela tonsura rodeada de cabelo encaracolado assegurou a Cadfael, à medida que se aproximava, que não fizera aquela caminhada em vão.
Pelo menos seria possível inquirir, mesmo que as respostas fossem desapontadoras.
— Vejam bem! — disse o velho Eadmer endireitando-se no banco e quase deixando cair o breviário que tinha sobre os joelhos. - E mesmo você, de volta às suas viagens?
— Desta vez foi só até aqui — disse Cadfael.
— E como está aquele pobre jovem irmão que estava consigo na Primavera? — perguntou Eadmer, chamando em seguida, ao longo das fileiras de vegetais, o jovem que tinha a enxada: — Deixa isso, Eddi, e traz uma caneca de cerveja ao irmão Cadfael. Traz também o jarro!
O jovem Eadmer pousou de boa vontade a enxada e entrou em casa com a sua passada larga. Cadfael sentou-se no banco ao lado do outro padre e sentiu em redor a fragrância das ervas.
— Regressou às suas penas e aos seus pincéis, está a fazer um bom trabalho, está bastante melhor de espírito. Tem feito progressos no andar, devagar, mas tem feito progressos. E você, como tem passado? Ouvi dizer que este jovem é seu sobrinho e que foi ordenado padre há pouco tempo,
— Há um mês. Está à espera de saber o que o bispo lhe vai destinar. O rapaz teve sorte de cair nas boas graças dele, pode ser que se safe bem.
Cadfael compreendeu imediatamente, quando o jovem Eadmer voltou trazendo um tabuleiro de madeira com o jarro e as canecas e as encheu simpática e graciosamente, que o novo padre chamava facilmente a atenção de qualquer pessoa atenta, pois era alto, bem constituído e bonito, mas graças a Deus nada consciente da sua beleza. Sentou-se sobre as ervas, em frente dos dois padres, depois de os servir, reconhecendo, com agradável deferência, a sua apresentação àquele beneditino mais velho, mas sem qualquer temor. Uma daquelas pessoas felizardas a quem as circunstâncias sempre tratavam de arranjar as coisas pelo melhor e a quem a vida sempre sorriria. Cadfael ficou a pensar se aquele dom poderia fazer outro tanto por outras almas menos afortunadas.
— Receio que enquanto estou aqui a beber cerveja consigo, apesar de ser um momento muito agradável, seja tempo desperdiçado — admitiu Cadfael com algum remorso. — Venho numa missão que não pode ser adiada, e logo que esteja cumprida terei de regressar. Venho falar aqui com o seu sobrinho.
— Comigo? — perguntou o jovem, erguendo o olhar, surpreendido.
— Foi visitar o padre Boniface durante a trasladação de Santa Winifred, não foi? E esteve lá desde depois do meio-dia da véspera até depois das Completas no dia da festa?
— Sim, estive. Fomos colegas — disse o jovem Eadmer, esticando-se para encher de novo as canecas, sem se levantar. — Porquê? Esqueci-me de alguma coisa? Irei lá ter com ele outra vez antes de me ir embora.
— E ficou no lugar dele a maior parte desse dia, desde depois da missa da manhã até depois das Completas. Durante todo esse tempo, algum homem foi ter consigo a pedir conselhos ou a querer confessar-se?
Aqueles olhos castanhos ergueram-se para o fitar, directa e pensativamente, com um ar grave. Cadfael pôde ler a resposta, tendo ficado satisfeito mesmo antes de Eadmer responder:
— Sim. Apareceu lá um homem.
Mas ainda era cedo para ter uma certeza. Cadfael perguntou cautelosamente:
— Que tipo de homem? De que idade?
— Oh!, com uns cinquenta anos, digo eu, a ficar grisalho e careca. Um pouco curvado e de rosto enrugado, mas estava preocupado e pouco à vontade quando o vi. A julgar pelas mãos, não era um artesão, talvez um pequeno comerciante ou empregado de alguma casa.
Cada vez mais esperançado, Cadfael continuou com as perguntas, encorajado:
— Conseguiu vê-lo bem?
— Não foi na igreja. Ele apareceu no pequeno quarto por cima da entrada, onde Cynric dorme. Vinha à procura do padre Boniface, mas, em vez dele, estava lá eu. Por isso encontrámo-nos face a face.
— Mas não o conhecia?
— Não, conheço muito pouca gente em Shrewsbury. Nunca lá tinha ido antes.
Não era preciso perguntar-lhe se ele tinha estado no capítulo ou na sessão que se seguiu, para saber se tinha visto outra vez Aldwin depois daquele encontro. Cadfael sabia que ele não o tinha visto mais.
— E confessou esse homem? Penitenciou-o e absolveu-o?
— Sim, e ajudei-o na sua penitência. Como comprenderá, não lhe posso dizer nada sobre a confissão.
— Nem eu lhe farei perguntas. Se se trata do homem que eu penso, o que importa é que tenha sido absolvido, que a sua alma tenha ficado em paz. Pois bem vê — disse Cadfael, olhando o jovem com toda a gravidade —, se é o homem em que estou a pensar, agora está morto. E como o padre da sua paróquia tinha razões para pôr em causa o estado daquela ovelha extraviada, tem andado a perguntar a todos sobre o seu estado espiritual antes de o enterrar segundo os rituais da Igreja. É por isso que todos os padres da cidade já foram questionados sobre o assunto, e por fim vim eu falar consigo.
— Morto? — perguntou Eadmer, desanimado. — Parecia estar de perfeita saúde, para um homem da sua idade. Como foi isso possível? E saiu mais contente do que quando entrou, não iria... Não! Como morreu assim tão depressa?
— Certamente já terá ouvido dizer — disse Cadfael — que na manhã a seguir ao dia da festa foi retirado um corpo do rio? Não afogado, mas apunhalado. O xerife anda à caça do assassino.
— E é este homem? — perguntou o jovem padre, espantado.
— É este homem que tanto precisa que possam afirmar que foi absolvido. Se é na realidade o mesmo homem que confessou, ainda não posso ter a certeza.
— Não cheguei a saber o seu nome — disse o jovem, hesitante.
— Mas conhece o rosto — disse o tio, sem quaisquer outros comentários desnecessários. Apoiando uma mão sobre o solo, o jovem Eadmer levantou-se, sacudindo rapidamente as saias da sua batina. — Volto consigo — disse ele — e espero sinceramente poder dizer alguma coisa sobre esse homem que foi assassinado.
Encontravam-se quatro homens à volta da mesa montada sobre uns cavaletes, onde o corpo de Aldwin tinha sido decentemente colocado antes de ser enterrado: Girard, o padre Elias, Cadfael e o jovem Eadmer. Naquele pequeno armazém do pátio, que fora varrido e atapetado com ramas verdes, não cabia mais ninguém. Bastavam aquelas testemunhas.
Pouco tinham conversado no caminho de regresso a Shrewsbury. Eadmer, comprometido a não divulgar o que se passara entre eles, nem quisera voltar a mencionar esse encontro até ter a certeza de que o corpo pertencia de facto ao seu penitente. Possivelmente, o seu primeiro penitente e, em consequência, ouvido e aconselhado com receio, humildade e reverência.
Foram ter imediatamente com o padre Elias, para lhe pedir que os acompanhasse até à casa de Girard, pois, se aquela esperança se revelasse verdadeira, poderia ficar descansado e apressar os preparativos para o funeral. O pequeno padre seguiu com eles apressadamente. Colocou-se no lugar de topo da mesa, local que lhe era garantido por direito; as suas mãos, já com alguns sinais de envelhecimento, os dedos finos e encolhidos como as garras de uma pequena ave, tremeram enquanto destapava a face do morto. Eadmer ficou aos pés do homem, de frente para o padre mais velho, de aspecto gasto mas resistente, após anos de tentativas, umas ganhas outras perdidas, para tratar a condição humana.
Eadmer permaneceu quieto e silencioso enquanto o pano descobria um rosto agora algo aliviado, pensou Cadfael, de uma vida de desânimo e de desconfiança. A rigidez das maçãs-do-rosto e do queixo tinha suavizado, fazendo-o parecer uns anos mais novo, dando-lhe um ar sereno. Eadmer observou-o prolongadamente, com surpresa e compaixão, e disse simplesmente:
— Sim, é o meu penitente.
— Tem mesmo a certeza? — perguntou Cadfael.
— Tenho a certeza.
— E confessou-se e foi absolvido? Graças a Deus! — disse o padre Elias, tapando novamente o rosto de Aldwin. — Já não me restam dúvidas. No próprio dia em que morreu, a sua alma foi purificada. Ele cumpriu a penitência?
— Rezámo-la em conjunto — disse Eadmer. — Vinha aflito, quis que se fosse embora mais confortado, e assim foi. Não vi razão para ser mais severo com ele. Pareceu-me que durante toda a vida já teria cumprido bastantes penitências. Há pessoas que tornam a sua própria vida difícil. Sem qualquer mérito, mas duvido que o possam evitar, e considerei que isso pudesse contribuir para perdoar alguns pequenos pecados.
Perante aquela afirmação, o padre Elias lançou-lhe um olhar algo agudo e desaprovador, mas absteve-se de comentários reprovadores sobre aquilo que um velho austero poderia considerar como a presunção, ou mesmo frivolidade, da juventude. Certamente, a ideia de Eadmer ao fazer tais reservas fora inocente. Fitou honestamente o padre Elias com os seus grandes olhos castanhos e disse simplesmente:
— Fico muito satisfeito, padre, por o irmão Cadfael me ter chamado a tempo. Ainda mais satisfeito do que quando este homem precisou de mim. Deus sabe que eu também tenho algumas falhas para confessar, pois ao princípio fiquei aborrecido quando vi este homem cambaleando pelas escadas acima. Aproximei-me para lhe dizer que se fosse embora e que voltasse numa melhor ocasião, até que pude ver claramente o rosto dele, carregado de preocupação. Tudo porque me podia atrasar para as Vésperas.
Dissera aquilo tão simples e naturalmente que durante um longo momento Cadfael não se apercebeu das palavras. Virara-se para sair e Girard preparava-se para os conduzir à porta, onde o final do dia surgia, o Sol escondendo-se a oeste. Tinha ouvido as palavras sem perceber o que estava por detrás e, quando se apercebeu, ficou tão espantado que tropeçou à saída. Desatou a correr para conseguir apanhar o jovem.
— Que disse? Para as Vésperas? Ele fez com que chegasse atrasado para as Vésperas?
— Pois foi — disse Eadmer sem compreender. — Estava precisamente a abrir a porta para descer para a igreja quando ele chegou. O serviço estava quase no fim quando o mandei embora, já mais consolado.
— Santo Deus! — disse Cadfael, com toda a reverência. — Eu nem sequer me lembrei de perguntar a que horas tinha sido! E isso foi no dia da festa? Não foi nas Vésperas do dia em que chegou? Não foi no dia antes da festa?
— Foi no dia da festa, quando Boniface esteve fora. Porquê, que é que isso tem de especial? Que é que eu disse para o deixar assim?
— No momento em que o vi, meu rapaz — disse Cadfael alegremente —, percebi imediatamente que você tinha um dom feliz à sua volta. Acabou de libertar não apenas um mas dois homens ao mesmo tempo, Deus o abençoe por isso. Agora venha, venha comigo até à esquina de Saint Mary, dizer ao xerife aquilo que acabou de me dizer.
Hugh tinha regressado a casa, para junto da família, após um longo e exasperante dia de inquéritos infrutíferos a uma populaça aparentemente alheia ao que se passa à sua volta e de tentar extrair a verdade a um Conan assustado e transpirado, que se mostrara cooperante ao admitir que tinha passado cerca de uma hora a tentar persuadir Aldwin a deixar as coisas como estavam, como já todos sabiam nessa altura, mas insistia que, depois de achar que já não devia desperdiçar mais tempo, tinha ido directamente para o seu trabalho nos pastos a oeste da cidade. Isso podia ser verdade, embora ele não tivesse visto nem falado com ninguém no caminho. Mas havia ainda a possibilidade de ele estar a mentir, de o ter seguido e ter feito mais uma tentativa desastrosa de persuadir uma mente habitualmente fácil de demover.
Mais do que o suficiente para um só dia. Hugh decidira ir para casa jantar com a mulher e o filho e estava agora sentado sobre a esteira do chão do hall, de camisa aberta e descalço, naquele agradável fim de tarde, ajudando o seu filho Giles, de 3 anos, a construir um castelo de brincar, quando Cadfael surgiu apressadamente diante da porta aberta, avançando todo satisfeito por trazer grandes novidades, arrastando pelo braço um jovem desconhecido e perfeitamente pasmado.
Hugh largou a construção da sua torre de blocos de madeira, indo ao encontro deles com um ar alerta.
— A vadiar outra vez? Andei à sua procura há uma hora atrás na estufa. Por onde andou? E quem é este jovem que vem consigo?
— Só fui até Attingham — disse Cadfael — visitar o padre Eadmer. Aqui tem o sobrinho dele, que também se chama Eadmer, foi ordenado no mês passado. Este jovem veio ter com o seu amigo padre Boniface, em Holy Cross, para as celebrações de Santa Winifred. Bem sabe que o padre Elias tem andado muito preocupado em saber se Aldwin morreu em estado de receber todos os ritos da Igreja, já que raramente aparecia na missa da sua própria paróquia. Elias perguntou a todos os padres que conhece, dentro e fora da cidade, para ver se alguém podia responder sobre o pobre homem. Boniface contou-me que outro padre tinha cá estado durante um dia e meio, embora fosse pouco provável que um homem daqui se decidisse a ir ter com ele em tão pouco tempo. Cá está ele e tem uma história para lhe contar.
O jovem Eadmer contou a sua história, conformado, embora sem compreender totalmente o significado de tudo aquilo, para além do que já sabia.
— E voltei para cá com o irmão Cadfael para ver se era o homem que tinha ido ter comigo. “De facto, é ele”, disse simplesmente. Mas o que o irmão Cadfael vê de especial para além disso, terá de ser ele próprio a dizer-lhe, meu senhor, pois eu não faço ideia do que possa ser.
— Mas não mencionou — disse Cadfael — a que horas esse homem foi ter consigo para se confessar.
— Foi exactamente quando o sino tocou a chamar para as Vésperas
— repetiu Eadmer obedientemente, ainda perplexo. — Por causa dele, cheguei muito atrasado.
— A hora das Vésperas? — Hugh estacara, perplexo com este esclarecimento. — Tem a certeza? Nesse mesmo dia?
— Exactamente nesse dia! — concordou triunfalmente Cadfael.
— E foi precisamente ao soar do toque das Vésperas, como bem sabemos, que Elave entrou no pátio principal e foi apanhado pelos homens de Gerbert, que lhe bateram até cair no chão, e que, desde então, tem estado prisioneiro na abadia. Nesse momento, Aldwin estava vivo e prestes a confessar-se. Fosse quem fosse que o matou, não foi Elave!
O capítulo estava quase terminado quando, na manhã seguinte, Girard de Lythwood se apresentou ao portão, pedindo para ser ouvido diante do senhor abade. Tratando-se de um homem bem considerado na cidade e, tal como o seu falecido tio, um bom patrono da abadia, sentia-se confiante, ciente do seu próprio mérito e estatuto. Trouxera consigo a sua filha adoptiva, Fortunata, e vinham ambos preparados, se não para uma batalha, pelo menos para uma possível disputa, a ser encarada com cortesia mas com determinação.
— Com certeza que os recebo — disse Radulfus. — Fico contente por saber que o mestre Girard está de regresso, a sua casa tem enfrentado grandes problemas e precisa da sua chefia.
Cadfael observou-os com toda a atenção enquanto entravam na casa do capítulo. Ambos vestiam as suas melhores roupas, decididos a causar a melhor impressão possível, o cidadão ideal e respeitado acompanhado pela sua modesta filha. A jovem tomou o seu lugar um passo atrás do pai e mantinha a cabeça devotadamente inclinada perante aquela assembleia monástica, mas, quando por um instante ergueu os olhos, para olhar à volta da sala e fazer uma rápida estimativa dos possíveis amigos e inimigos, a sua expressão revelara-se muito astuta, agressiva e inteligente. Aquele primeiro olhar notara a continuação da presença do cónego Gerbert, desapontando-a. Diante dele teria de conter o seu desgosto, a sua raiva e a sua ansiedade em relação a Elave e teria de deixar Girard falar por ela. Gerbert desprezaria uma mulher insubmissa e, naquela altura, Fortunata já tinha informado o pai sobre todos os pormenores. Pai e filha deviam ter passado o resto da noite, depois de Cadfael se ter ido embora, a preparar o que agora vinham propor.
A importância de um pequeno detalhe ainda não era aparente, embora sugerisse outras interessantes possibilidades. Girard trazia debaixo do braço a caixa contendo o dote de Fortunata, maravilhosamente polida com aquela patina do tempo e do uso, com a luz incidindo sobre o belo trabalho de entalhe.
— Meu senhor — afirmou Girard —, agradeço a sua cortesia. Venho por causa daquele assunto do jovem que está aqui detido como prisioneiro. Todos os que se encontram nesta sala sabem que o seu acusador foi assassinado e, embora em relação a isso não tenha sido feita qualquer acusação contra Elave, Vossa Senhoria já deve saber que por todo o lado se diz ter sido ele o autor desse crime. Creio que já ouviu o xerife dizer o contrário. Aldwin estava vivo quando Elave foi apanhado e feito prisioneiro. Quanto ao assassínio, está provado que Elave está inocente. Tem inclusivamente a palavra de um padre a defendê-lo.
— Sim, já temos conhecimento disso — disse o abade. — Quanto a esse assunto, Elave está isento de culpa. Fico satisfeito por poder anunciar a sua inocência.
— E eu fico grato pelas suas palavras — disse Girard, dando ênfase a esta cortesia —, pois creio ter direito a falar e a ser ouvido sobre este assunto, considerando que tanto Aldwin como Elave eram empregados da casa do meu tio, agora empregados da minha casa, daí que esse peso não pode deixar de cair sobre mim. Um dos meus homens foi assassinado e quero que seja feita justiça. Não aprovo tudo o que ele fez, mas posso compreender a sua maneira de pensar e as suas acções, tendo conhecido bem a sua natureza. Por ele não posso fazer muito mais a não ser enterrá-lo decentemente e, se possível, ajudar a descobrir quem o matou. Também tenho um dever para com Elave, que continua vivo e contra quem foi feita a grave acusação de ser o assassino do primeiro, que agora caiu por terra. Dá-me licença que fale sobre este assunto, senhor?
— De boa vontade — disse Radulfus. — Continue!
— Será esta a ocasião e o lugar indicado para tal pedido? — objectou o cónego Gerbert, movendo-se com impaciência no banco e erguendo as sobrancelhas diante do sólido burguês, que se mantinha impassível à sua frente. — Não vamos agora discutir o caso desse homem. O retirar de uma acusação...
— A acusação de assassínio nunca foi feita — disse Radulfus, interrompendo-o imediatamente — e, segundo agora sabemos, nunca poderá ser apresentada.
— O facto de ter deixado de haver essa suspeita — respondeu Gerbert asperamente — não afecta a acusação que lhe foi feita e que aguarda julgamento. Não faz parte da finalidade de um capítulo ouvir pedidos descabidos e que só podem prejudicar o caso quando o bispo declarar a sua vontade. Permitir isso seria abrir uma brecha nas formalidades.
— Meus senhores — disse Girard com uma admirável calma e gentileza. — Tenho uma proposta a fazer, que considero razoável e admissível, se estiverem interessados em ouvir. Para vos apresentar esta proposta terei de falar sobre o que conheço de Elave, sobre o seu carácter e sobre o serviço que prestou na minha casa. Isso é relevante.
— Considero ser razoável — disse o abade, imperturbável. — Será ouvido, mestre Girard. Pode falar à vontade!
— Muito obrigado, meu senhor! Como julgo ser do vosso conhecimento, este jovem foi empregado do meu tio durante alguns anos, tendo provado sempre ser honesto, credível e de toda a confiança, tendo o meu tio levado esse rapaz como servente, guarda e amigo na sua peregrinação a Jerusalém, Roma e Compostela. Durante todos esses anos de viagem, continuou sempre cumpridor dos seus deveres, tendo socorrido o seu mestre na doença e, quando este morreu em França, trouxe de volta o seu corpo para ser enterrado. Um longo e devotado serviço, meus senhores. Entre outras tarefas levadas a cabo, de acordo com a vontade do seu mestre, foi portador deste tesouro, que se encontra dentro desta caixa, destinado a servir de dote à sua filha adoptiva aqui presente, agora minha filha.
— Isso poderá ser indiscutível — disse Gerbert, continuando agitado sobre o banco —, mas não tem a ver com o caso. A acusação de heresia mantém-se de pé e não pode ser posta em causa. Na minha opinião, tendo visto noutros lados os horrores a que pode levar, é uma acusação mais grave do que a de assassínio. Bem sabemos como este tipo de veneno tem contaminado centenas de almas. Um homem não pode prevalecer pelos seus bons actos, apenas pela graça divina, e quem se desvia da verdadeira doutrina da Igreja repudiou a graça divina.
— No entanto, ensinam-nos a julgar uma árvore pelos seus frutos — salientou o abade com toda a frieza. — A graça divina, creio eu, saberá onde encontrar as respostas da graça humana, sem intervenção de mais ninguém. Continue, mestre Girard. Creio que tem uma proposta a apresentar.
— Tenho sim, padre. Pelo menos agora sabe-se que a morte do meu empregado não sucedeu por culpa de Elave, que aliás nunca cobiçou o seu lugar nem tentou afastá-lo, nem lhe causou qualquer mal. Porém, o lugar dele encontra-se neste momento vazio. E eu, conhecendo e confiando em Elave, posso afirmar que estou preparado para o aceitar novamente no lugar de Aldwin e de o incluir no meu negócio. Se o libertarem, à minha responsabilidade, serei seu fiador em como não sairá de Shrewsbury. Tratarei de que permaneça na minha casa e que esteja disponível sempre que a sua presença seja exigida diante de Vossas Senhorias até que o seu caso seja ouvido e devidamente julgado.
— Independentemente de qual venha a ser o veredicto? — perguntou Radulfus calmamente.
— Meu senhor, se o julgamento for justo, assim será também o veredicto. Desse dia em diante, não necessitará mais de um fiador.
— É uma presunção — disse Gerbert friamente — estar tão seguro da sua certeza.
— Falei abertamente. E eu, tal como qualquer homem, tenho consciência de que, perante o calor dos argumentos ou da cerveja, as palavras podem dizer mais do que se pretendia, mas não creio que Deus condene um homem pelas suas tolices, acredito que o condene pelas consequências dessas tolices, que podem só por si ser um castigo suficiente.
Por detrás da máscara austera, Radulfus sorria, embora só os que o conheciam bem pudessem ver isso.
— Bem, agradeço a gentileza das suas intenções — disse ele. — Tem algo mais a acrescentar?
— Apenas este facto a acrescentar às minhas palavras, senhor abade. Esta caixa contém quinhentas e setenta moedas de prata, que constituem o dote enviado pelo meu tio à jovem que adoptou em criança. Como Elave enfrentou grandes dificuldades para lhe entregar este dote, Fortunata deseja, em reverência a William, utilizá-lo neste momento para livrar Elave da sua prisão. Oferece-o assim como fiança, e eu próprio garantirei que, em tempo oportuno, Elave responda a esta fiança.
— É exactamente esse o seu desejo, minha filha? — perguntou o abade, estudando interessado a atitude calma e de reserva de Fortunata. — Ninguém a persuadiu a fazer esta oferta?
— Ninguém, padre — disse ela firmemente. — A ideia foi minha.
— E sabe — insistiu o abade gentilmente — que quem dá tudo o que tem como fiança corre o risco de ficar sem nada?
Erguendo as pálpebras cor de marfim, suave e calmamente, revelando um brilho no olhar daqueles olhos cor de avelã:
— Nem todos, senhor padre — disse ela, disfarçando o desafio naquela voz suave e discreta de filha submissa.
Para Cadfael, que estivera atento e observador, era notório que Radulfus, embora mantivesse a sua formidável compostura, não estava descontente.
— Talvez não saiba, senhor padre — explicou Girard, considerando com alguma complacência —, que as mulheres só apostam quando têm a certeza. Bem, é esta a minha proposta e prometo cumprir totalmente a minha parte, se concordar em libertá-lo sob a minha custódia. Poderá ter a certeza de que o encontrará em qualquer momento na minha casa. Contaram-me que ele não fugiu quando teve oportunidade; também não o fará desta vez, quando Fortunata está disposta a perder tudo por ele. — Como o senhor pode ver — acrescentou generosamente —, pois eu não tenho quaisquer dúvidas.
Radulfus tinha à sua direita o cónego Gerbert e à esquerda o prior Robert, e tinha consciência de estar entre dois monumentos, não só de doutrina, mas de ortodoxia. As palavras exactas dos cânones da lei eram sagradas para Robert e a influência de um arcebispo, presente através do seu enviado, estreitava ainda mais essa atitude, fortalecendo uma mente já predisposta à rigidez. Entre o abade e o vicário de Theobald, Robert poderia estar comprometido e desejaria certamente compatibilizar-se com ambos, mas numa situação extrema acabaria por estar de acordo com Gerbert. Cadfael, que o observava a ser manipulado por aqueles argumentos, com as mãos devotadamente juntas, com as sobrancelhas grisalhas erguidas e a boca completamente cerrada, quase podia adivinhar as palavras com que defenderia o que Gerbert acabasse por dizer, embora subtilmente se pudesse abster de as proferir. E se ele conhecia aquele carácter, era certo que o abade também. Quanto ao próprio Gerbert, Cadfael tinha a noção exacta do carácter dele, perfeitamente oposto ao seu. Pois aquele homem tinha de facto, algures na Europa, assistido a um caos crescente, ficara receoso ao ver as subtilezas do Diabo através da boca dos homens e a divisão da Cristandade, latente na voz dos profetas, a rebentar como bolhas na espuma de uma panela a ferver, e a consequente propensão para a selvajaria dos excessos malignos dos seus cegos seguidores. Nada havia de falso no horror com que Gerbert via a ameaça de heresia, embora fosse incompreensível como a vira numa alma aberta como a de Elave.
Nem o abade se atreveria a opor-se ao representante do arcebispo, embora muito provavelmente Theobald tivesse uma opinião mais equilibrada sobre aqueles que se sentiam tentados a discutir a fé do que Gerbert. Uma ameaça que, no estrangeiro, preocupava o papa, os cardeais e os bispos, que, embora fosse algo nebulosa aqui, devia ser tomada a sério. Havia muito a ser dito, ainda que esta questão estivesse isolada da ameaça maior. As invasões, as doenças e as pragas levam mais tempo a chegar e chegam tão enfraquecidas que mal se fazem sentir. Porém, nem sempre a distância constituía uma boa defesa.
— Acabaram de ouvir — disse Radulfus — uma oferta generosa vinda de um homem cuja boa-fé pode ser tida como uma certeza. Apenas nos resta discutir qual será a nossa resposta. Tenho apenas uma reserva. Se isto dissesse respeito apenas à minha casa, não teria qualquer reserva. Oiçamos a sua opinião, cónego Gerbert.
Era inevitável, certamente expressaria a sua opinião de uma maneira feroz; era melhor incentivá-lo a falar primeiro, para que pelo menos o seu rigor pudesse ser depois atenuado.
— Numa matéria com esta gravidade — disse Gerbert —, sou absolutamente contra quaisquer condescendências. É um facto, e aceito-o, que o acusado já esteve uma vez em liberdade e regressou, tal como se comprometeu a fazer. Mas essa mesma experiência pode levá-lo a fazer o oposto, se houver uma nova oportunidade. Penso que não temos o direito de correr qualquer risco com um prisioneiro acusado de um crime tão perigoso. Afirmo-vos, a ameaça ao Cristianismo não é aqui compreendida, de contrário, nem se discutiria este assunto, de forma alguma! O acusado deve continuar preso até a questão estar totalmente resolvida.
— Robert?
— Não posso deixar de concordar — disse o prior, apreensivo. — Trata-se de uma acusação demasiado séria para se correr qualquer risco de fuga. Além disso, o tempo em que estiver sob a nossa custódia não será desperdiçado. O irmão Anselmo tem-lhe emprestado livros, para melhor instruir a sua mente. A manter-se assim, a boa semente poderá vir ainda a cair num solo não totalmente contaminado.
— É verdade — disse o irmão Anselmo com uma visível ironia —, ele lê e pensa naquilo que lê. Trouxe outras coisas da Terra Santa, para além das moedas de prata. A bagagem de qualquer homem inteligente numa tal viagem não deve ser muito pesada, mas a sua mente pode acumular muito mais. — Sensata e ambiguamente, ficou-se por aquelas palavras antes que o cónego Gerbert aproveitasse a frase para continuar o discurso, vendo em tudo uma nota de heresia. Não seria sensato brincar com um homem com total falta de humor.
— Creio que não seria apoiado se me inclinasse para o lado mais condescendente — disse secamente o abade —, o que me leva também a continuar a defender que o jovem deve permanecer dentro do mosteiro. Esta casa é o meu domínio, mas a jurisdição ultrapassa as minhas competências. Já enviámos a palavra ao bispo e esperamos em breve ouvir a sua vontade. Deste modo, o julgamento encontra-se agora nas suas mãos e a nossa obrigação é simplesmente submeter o acusado à sua presença, ou à dos seus representantes, mal tenhamos notícia da sua decisão. De momento, não sou mais do que um agente do bispo neste assunto. Lamento, mestre Girard, mas é esta a minha resposta. Não posso aceitá-lo como fiador, não posso entregar-lhe a custódia de Elave. Só posso prometer-lhe que nesta casa ninguém lhe fará mal. Nem sofrerá qualquer outra violência — acrescentou com intenção, embora sem qualquer ênfase.
— Então, pelo menos — disse Girard rapidamente, aceitando o que permaneceria inalterável, mas considerando o que ainda lhe restava — posso ter a certeza de que o bispo me ouvirá, caso seja necessário um julgamento, da mesma forma como aqui fui ouvido?
— Tratarei de que ele seja informado do seu desejo e do seu direito a ser ouvido — disse o abade.
— E podemos ver e falar com Elave, agora que estamos aqui? Poderá ajudar a tranquilizar a sua mente, saber que tem um tecto e um emprego à espera dele quando estiver livre para o exercer.
— Não vejo qualquer objecção — disse Radulfus.
— Sob vigilância — acrescentou Gerbert rapidamente e em voz alta. — Terá de estar presente um irmão para testemunhar tudo o que for dito.
— Isso não será difícil — disse o abade. — O irmão Cadfael continua a visitar diariamente o jovem, depois do capítulo, para ver como as suas feridas estão a sarar. Ele pode conduzir o mestre Girard e ficar lá durante a visita. — Perante isto, levantou-se com toda a sua autoridade, impedindo quaisquer outras objecções que a mente do cónego Gerbert, sem dúvida menos ágil, pudesse estar a formar. Lançou apenas um breve olhar na direcção de Cadfael. — Este capítulo está concluído — disse, acompanhando as suas visitas seculares até à saída da casa do capítulo.
Elave estava sentado no catre sob a estreita janela da cela. Junto dele, em cima da mesa, encontrava-se um livro aberto, mas já não o estava a ler, apenas olhava carrancudo, nalguma consideração profunda sobre o que lera e, pela expressão do seu rosto, não teria achado muito compreensível o que os padres mais antigos tinham escrito e que Anselmo lhe trouxera para ler. Na sua maneira de ver, a maior parte deles tinha passado mais tempo a denunciar-se uns aos outros do que a louvar Deus, mais com veneno do que com fervor. Talvez tivessem existido outros menos prontos a declarar guerra à mais ínfima palavra e que, na verdade, pensassem e dissessem bem dos seus colegas teólogos, mesmo quando entrassem em divergência, mas, se assim era, todos os seus livros devem ter sido queimados e, possivelmente, eles próprios também.
— Quanto mais tempo estou aqui a estudar — tinha ele dito bruscamente ao irmão Anselmo — mais começo a achar que os heréticos têm razão. Afinal, talvez eu seja um deles. Se todos professam crer em Deus e tentam viver de uma forma que Lhe agrade, como podem odiar-se tanto uns aos outros?
Ao fim de poucos dias de companhia, tinham chegado a um à-vontade que permitia que tais questões pudessem ser colocadas e respondidas abertamente. Anselmo tinha virado uma página de Origen e respondido tranquilamente:
— Tratava-se de tentar formular o que é demasiado vasto e misterioso para poder ser formulado. Quando chegaram a essa conclusão, nada mais havia a fazer a não ser abrir uma excepção a tudo o que diferisse da sua própria concepção. E cada concepção rival afundava cada vez mais o seu criador num pântano. As almas simples, que não viam qualquer dificuldade e que nada sabiam sobre a formulação, andavam sobre o mesmo lodo sem se aperceberem de que o faziam.
— Imagino que era o que eu andava a fazer — disse Elave com pesar — até ter chegado. Agora estou enterrado até aos joelhos e duvido que alguma vez saia daqui.
— Oh!, talvez tenha perdido a sua inocência — disse Anselmo confortando-o —, mas, se pensar, trata-se de um pântano de palavras de outros homens, não das suas. Nunca pretenderam chegar a tanto. Só tem de fechar o livro.
— Já é tarde! Agora há coisas que quero saber. Como é que o Pai e o Filho se transformaram em três? Quem foi o primeiro a escrever sobre a Santíssima Trindade, para nos confundir a todos? Como podem existir três, todos iguais, se são só um em vez de três?
— Da mesma maneira que as partes da folha de um trevo são três e iguais, mas unidas na mesma folha — sugeriu Anselmo.
— E os trevos de quatro folhas, os que dão sorte? Que é a quarta folha? A Humanidade? Ou nós somos o caule que une as três folhas?
Anselmo sacudiu a cabeça, olhando-o, mas com uma serenidade imperturbável e uma expressão tolerante.
— Nunca escreva um livro, meu filho! Estaria predestinado a ser queimado!
Agora Elave estava sentado sozinho, o que não lhe parecia particularmente solitário, e pensava sobre esta e outras conversas, tidas nos últimos dias entre preceptor e prisioneiro, considerando seriamente se não seria melhor um homem não ler nenhum daqueles livros, deixando de lado aquelas obras complicadas de teologia, que só serviam para transformar o que é simples e claro em algo obscuro e profundo ao exporem todas as ideias por palavras vazias e dúbias, para além da compreensão dos homens comuns, dos quais é composta a maior parte da criação humana. Quando olhou através da janela da cela para um estreito pedaço de céu azul-pálido, perturbado pelo tremor das folhas e decorado com alguns laivos de nuvens brancas e brilhantes, tudo lhe pareceu de novo simples e radiante, ao mais ínfimo pormenor, conferindo uma benevolência imparcial e alegre sobre todas as coisas.
Sobressaltou-se quando ouviu a chave girar na fechadura, não tendo associado o murmúrio das vozes do lado de fora à sua pessoa. Os sons do mundo exterior chegavam-lhe durante o dia através da janela e as badaladas do sino marcavam-lhe as horas do dia. Começava até a habituar-se ao horário e celebrava as obrigações diárias fazendo pequenas genuflexões. Pois Deus não fazia parte do pântano ou do labirinto, não podia ser culpado por aquilo que os homens tinham feito de uma evidente simplicidade e certeza.
Mas o som da chave a rodar na fechadura pertencia ao seu próprio mundo prático e diário, no qual este exílio só podia ser temporário, possivelmente com um objectivo, um local de paragem para pensar após a viagem por meio mundo. Sentou-se a ver a porta abrir, mostrando o dia de Verão lá fora, mas esta não foi aberta devagar e cuidadosamente, mas sim total e generosamente, até tocar na parede enquanto o irmão Cadfael entrava.
— Meu filho, tem visitas! — Fez sinal para que entrassem na pequena cela de pedra, observando o súbito brilho da face espantada de Elave enquanto piscava os olhos. — Como está hoje a sua cabeça?
A cabeça em questão deixara de ter as ligaduras desde o dia anterior, restando apenas uma cicatriz entre o espesso cabelo. Elave disse espantado:
— Bem, muito bem!
— Sem dores? Então o meu trabalho está terminado. E agora — disse Cadfael, virando-se para se colocar junto dos pés da cama, virado para a parede — é como se eu fosse uma das pedras desta parede. Ordenaram-me que ficasse aqui, mas pode considerar-me cego e surdo.
Parecia que duas das três pessoas presentes tinham ficado invisíveis, pois Elave levantara-se perfeitamente atónito e continuava a olhar para Fortunata enquanto ela o olhava espantada, corada e de olhos abertos, sem dizer uma palavra. Apenas os olhos de ambos permaneciam eloquentes, e Cadfael não tinha virado completamente as costas, observando-os pelo canto do olho e conseguindo ouvir o que não estava a ser dito. Não demorou muito para que ambos se decidissem. Porém, Cadfael devia ter em conta que aquilo não fora assim tão súbito, excepto na sua descoberta. Conheciam-se e tinham vivido na mesma casa desde a infância dela até aos 11 anos de idade, e, embora de uma outra forma, houvera uma grande amizade entre eles, indulgente e condescendente, sem dúvida, por parte de Elave, provavelmente séria e profunda da parte dela, pois as raparigas tendem a atingir a maturidade e as afeições dolorosas bastante mais cedo do que os rapazes. Ela tivera de esperar tornar-se adulta até que ele regressasse, para descobrir que ela desabrochara e para ficar espantado perante a sua beleza.
— Bem, rapaz! — disse Girard com toda a sinceridade, olhando o jovem da cabeça aos pés e cumprimentando-o calorosamente com ambas as mãos. — Por fim está de volta a casa, depois de todas as aventuras, e eu que não estava cá para o receber! Mas cumprimento-o agora e faço-o com todo o prazer. Nunca imaginei vê-lo metido neste sarilho, mas, com a ajuda de Deus, no fim tudo acabará bem. O que importa é que fez muito pelo tio William. Da nossa parte, faremos tudo o que for possível por si.
Elave esforçou-se para tentar sair do seu próprio espanto e sentou-se abruptamente sobre a cama.
— Nunca pensei — disse ele — que o deixassem entrar para me ver. Foi muito gentil da sua parte ter-se preocupado comigo, mas não corra riscos por minha causa. Mesmo sem dizer uma palavra, podem virar-se contra si! Sabe qual é a acusação que me foi feita? Não devia aproximar-se de mim — disse veemente —, pelo menos por agora, enquanto eu não estiver livre. Posso ser contagioso!
— Mas sabe — disse Fortunata — que não é suspeito de ter feito mal a Aldwin? Isso está arrumado, está provado que é falso.
— Sim, eu sei. O irmão Anselmo deu-me a notícia, a seguir à oração das Matinas. Mas isso é só metade da questão.
— A metade principal — disse Girard, sentando-se no banco estreito e alto, fazendo sobrar por todo o lado a sua amplitude.
— Nem toda a gente daqui pensa assim. Fortunata já se colocou em má situação perante alguns por não ter estado contra mim quando a interrogaram. Por nada deste mundo — disse Elave honestamente
— desejo trazer-lhe mal, a ela ou a si. Será melhor afastarem-se de mim, ficarei mais descansado.
— Obtivemos licença do abade para vir aqui — disse Girard — e, pelo que pude ver, também a boa vontade dele. Viemos ter ao capítulo, eu e Fortunata, apresentar uma oferta pela sua liberdade. Se acha que nos devemos ir embora e abandoná-lo por causa de uns quantos sujeitos demasiado zelosos sobre o mal, com línguas demasiado compridas, é porque não nos conhece. O meu nome é sobejamente conhecido nesta cidade para sobreviver a qualquer mexerico. E o mesmo acontecerá consigo, antes que isto esteja acabado. O que nós queríamos era vê-lo liberto para poder voltar para casa connosco, com a minha garantia sobre a sua conduta. Disse-lhes que você responderia quando chegasse a altura e que teria um emprego no meu negócio. Por que não? Nenhum de nós teve nada a ver com a morte de Aldwin, nem nenhum de nós o teria afastado para dar o lugar dele a si. Mas tudo isso está acabado! Aquela pobre alma foi-se embora, eu preciso de um empregado e você precisa de um sítio para onde ir quando sair daqui. Onde melhor do que na casa que já conhece, a trabalhar num negócio que já conheceu bem e que depressa voltará a dominar? Por isso, se assim quiser, tem a minha ajuda. Que lhe parece?
— Digo que nada mais no mundo me deixaria tão contente! — O rosto de Elave, cuidadosamente composto nestes últimos dias com uma estudada calma, tinha deixado cair a sua máscara, mostrando agora uma expressão de prazer e gratidão que o fazia parecer muito jovem e vulnerável. Não lhe seria fácil reunir de novo as suas defesas, quando aqueles dois se tivessem ido embora, reflectiu Cadfael.
— Mas não devíamos estar a falar disso agora. É melhor não! — protestou Elave, estremecendo. — Deus sabe o quanto estou grato pela sua generosidade, mas nem me atrevo a pensar no futuro enquanto não sair daqui. Fora daqui e inocente! Não me disse qual foi a resposta deles, mas posso até adivinhar. Não me libertariam, nem que fosse à sua guarda.
Girard concordou, desgostoso.
— Mas o abade deu-nos licença para o vir visitar e dizer-lhe o que tenho a propor-lhe, para pelo menos ficar a saber que tem amigos prontos a ajudá-lo. Tudo quanto for dito a seu favor poderá ter algum peso. Já lhe disse o que tenho reservado para si. Agora Fortunata tem algo pessoal a dizer-lhe.
Ao entrar, Girard tinha sensatamente pousado o embrulho que trouxera sobre o banco, ao lado de Elave. Fortunata saiu da quietude que mantivera, avançou para apanhar o embrulho e sentou-se ao lado de Elave, pousando a caixa sobre os joelhos.
— Lembra-se de ter trazido isto até à nossa casa? Eu e o pai trouxemo-lo hoje para servir de fiança à sua liberdade, mas eles não o deixaram sair. Mas, se não conseguimos comprar a sua liberdade de uma maneira — disse ela num deliberado tom de voz baixo —, há outras formas. Lembre-se do que lhe disse quando estivemos juntos da última vez.
— Lembro-me bem — disse ele.
— Para isso é preciso dinheiro — disse Fortunata, escolhendo as palavras com todo o cuidado. — O tio William mandou-me bastante dinheiro. Quero que seja usado para o seu bem. Da maneira que for preciso. Desta vez não deu a sua palavra. Quando a deu, eles violaram-na, não foi você.
Girard pousou uma mão sobre o braço dela para a fazer parar e disse num sussurro de aviso, o que no entanto pôde ser ouvido junto das pedras da parede:
— Cuidado, minha filha! As paredes têm ouvidos!
— Mas não têm língua — disse Cadfael num sussurro idêntico. — Não, fale à vontade, minha filha, não é de mim que precisa de ter receio. Diga tudo o que tem a dizer-lhe e deixe-o responder à vontade. Não farei qualquer interferência, num ou noutro sentido.
Em resposta, Fortunata pegou na caixa que tinha no colo e colocou-a entre as mãos de Elave. Cadfael ouviu o infinitésimo barulho das moedas a tilintarem e virou a cabeça a tempo de ver o ligeiro espanto de Elave ao tomar-lhe o peso, contraindo os ombros e levantando as sobrancelhas. Viu-o abanar a caixa para ouvir aquele ligeiro som e sentir-lhe o peso sobre as palmas das mãos.
— Foi dinheiro que o tio William lhe enviou? — perguntou Elave pensativo. — Nunca soube o que estava lá dentro. Mas é seu. Foi a si que ele o enviou, foi para si que eu o trouxe.
— Se lhe traz proveito a si, então também me traz a mim — disse Fortunata. — Sim, vou dizer aquilo que vim aqui dizer, embora saiba que o pai não o aprova. Não acredito que eles lhe façam justiça. Receio pela sua vida. Quero vê-lo longe daqui e a salvo. Este dinheiro é meu, posso fazer com ele o que quiser. Com ele pode comprar um cavalo, um abrigo, comida, talvez até um homem para lhe abrir esta porta. Quero que o aceite... que aceite aproveitá-lo e tudo o que eu puder comprar com ele para si. Não tenho medo de nada, só receio por si. Não me envergonho de nada. E onde quer que vá, por mais longe que seja, segui-lo-ei.
Tinha começado com uma calma triste e desafiadora, mas acabara com uma paixão contida e silenciada, com o mesmo tom de voz baixo, as mãos juntas sobre o regaço, o rosto muito pálido e altivo. As mãos de Elave tremiam quando as apertou contra as dela, empurrando a caixa para o lado. Após uma longa pausa, não de hesitação mas sim de uma resolução inflexível, com dificuldade em encontrar as palavras mais exactas para se expressar, disse calmamente:
— Não! Não posso ficar com ela nem deixar que a use para me libertar. Já sabe porquê. Não mudei e não é agora que vou mudar. Se fugir desta acusação, estarei a abrir a porta aos demónios, prontos a perseguirem outros homens honestos. Se esta luta não for levada até ao fim, qualquer pessoa que ofenda o seu vizinho pode ser acusada de heresia, sendo tão fácil acusar se há os que condenam apenas por uma dúvida, por uma pergunta, por uma palavra fora do contexto. Não vou desistir. Não me mexo enquanto não vierem ter comigo e me disserem que não encontram qualquer culpa e me pedirem civilizadamente para me ir embora e seguir o meu caminho.
Durante todo o tempo ela soubera, apesar da sua persistência, que ele diria que não. Retirou as suas mãos das dele devagar e levantou-se, mas nem por um momento conseguiu olhá-lo nos olhos, nem mesmo quando Girard a levou segurando-lhe o braço.
— Mas nessa altura — disse Elave deliberadamente, fixando-a nos olhos — aceitarei o seu presente... se também puder ficar com a noiva a quem pertence.
Tenho um pedido a fazer-lhe, Fortunata — disse Cadfael enquanto atravessava o grande pátio, entre aquelas visitas que o acompanhavam em silêncio, a jovem desconsolada, o padrasto certamente aliviado perante a teimosa insistência de Elave em permanecer sob justiça no local onde estava. Sem dúvida, Girard acreditava na justiça. — Permite-me que mostre esta caixa ao irmão Anselmo? Ele é bastante versado em todos os trabalhos de entalhe e poderá dizer-lhe de onde veio esta caixa e há quantos anos terá sido feita. Gostaria de saber o que ele diz sobre a finalidade com que foi feita. Não tem nada a perder com isso, Anselmo fez votos de confidencialidade e simpatiza bastante com Elave. Tem tempo para vir agora ao escritório dele comigo? Talvez venha a gostar de saber mais sobre a sua caixa. De certeza que tem valor por si própria.
Ela consentiu de uma forma quase ausente, os seus pensamentos continuando sobre Elave.
— O rapaz precisa de todos os amigos que possa arranjar — disse Girard entristecido. — Tinha esperança de que agora, que a pior acusação foi retirada, os que o culparam de tudo pudessem ter alguma vergonha e se mostrassem mais benévolos em relação à outra acusação. Mas está cá este grande prelado de Canterbury, a defender essa maneira de ver a crença como sendo pior do que um assassínio. Que espécie de valores são estes? Só sei que não hesitaria em ajudar o rapaz se viesse a acontecer o pior, se ele concordasse, mas preferia que a minha filha não tomasse parte nisso.
— Ele não me vai deixar fazer nada — disse Fortunata, amargurada.
— E ainda o considero mais por isso! Tudo o que eu puder fazer dentro da lei para o tirar a salvo de tudo isto, isso farei, a qualquer custo. Se ele é o homem que escolheste, como parece que és a escolhida dele, então nada será em vão — disse Girard sem deixar lugar a dúvidas.
O irmão Anselmo tinha o seu escritório numa sala situada na esquina norte do claustro, onde guardava os manuscritos da sua música, perfeita e cuidadosamente arrumados. Estava ocupado a consertar os foles do seu pequeno órgão de apoio quando os viu entrar, tendo largado de boa vontade o seu trabalho quando viu a caixa que Girard pousou à sua frente. Ergueu-a e virou-a para obter um melhor ângulo de luz, para admirar a delicadeza do entalhe e a tonalidade que o tempo conferira à madeira.
— É muito bonita! Foi um grande artesão que a fez. Reparem no trabalho do marfim, a parte de cima arredondada, como se o artesão tivesse primeiro desenhado um círculo para guiar o seu trabalho e depois tivesse desenhado as linhas de acordo com a sua experiência e arte. Não sei quem será o santo que aqui está desenhado!? Um dos mais antigos, certamente. Poderá ser São João Crisóstomo.
— Percorreu com um dedo fino e apreciador as várias linhas das folhas de videira. Gostava de saber onde é que ele arranjou uma coisa destas!
— Elave contou-me — disse Cadfael — que William a comprou num mercado em Trípolis, a uns monges fugitivos postos fora do seu mosteiro, algures para lá de Edessa, por invasores de Mosul. Acha que foi feito lá, no Oriente?
— O trabalho de marfim deve ter sido feito lá — afirmou Anselmo.
— Algures no império oriental, certamente. Este rosto redondo, estes olhos bem abertos e fixos... Quanto ao entalhe da madeira, não tenho a certeza. Imagino que tenha sido feito mais perto daqui. Não numa casa inglesa... talvez francesa ou alemã. Dá-me licença, jovem, que examine o interior da caixa?
A curiosidade de Fortunata tinha sido despertada, estava desejosa de ouvir o que Anselmo pudesse explicar.
— Sim, abra-a! — disse ela estendendo-lhe a chave.
Girard introduziu a chave na fechadura, fê-la girar e abriu a tampa, retirando a seguir os pequenos sacos de feltro que produziram aquele ligeiro som ao serem manuseados. O interior da caixa estava forrado com um pergaminho castanho de tom suave. Anselmo ergueu a caixa de modo a poder vê-la à luz e observou o interior atentamente. Um dos cantos do pergaminho estava ligeiramente enrolado, deixando ver algo mais escuro, entalado entre a madeira e o pergaminho. Retirou-o cuidadosamente com a unha e desenrolou-o, era um pedaço de uma membrana de cor púrpura, desgastada, pois um dos seus cantos estava quase desfeito no topo, o resto apresentava um corte perfeito e nítido, o segmento de um círculo ou de um semicírculo. Um bocado tão pequeno e tão inexplicável. Esticou-o sobre a secretária. Não era maior do que a unha de um polegar, mas o lado cortado era um segmento de uma curva maior. A cor, embora sumida e talvez mais pálida que a cor original, era no entanto de um roxo-suave e profundo.
O forro pálido da base da caixa parecia ter também um tom mais escuro aqui e ali. Cadfael passou um dedo em toda a sua extensão e examinou o fino pó de pergaminho que restara no seu dedo, rosa-azulado, deixando uma fina e nítida linha onde tinha passado o dedo. Anselmo passou o dedo ao longo da marca, tentando alisá-la, mas a linha continuava bem visível. Olhou mais de perto para o dedo, observando a pequena mancha de cor, uma névoa de azul-translúcido. Mas havia algo mais, que o fez olhar ainda mais de perto e a seguir pegar novamente na caixa e segurá-la de forma a que luz lhe incidisse totalmente, girando-a para melhor apanhar os raios do Sol. Cadfael vira o que Anselmo também tinha visto, escondido sob a fina superfície de pele, invisível excepto à plena luz, aquele disperso brilho do pó de ouro.
Fortunata continuava a olhar curiosamente para o pedaço púrpura colocado sobre a secretária. Um sopro bastaria para o fazer voar.
— Que poderá ter sido isto? Um bocado de quê?
— É um fragmento de uma tira de pele, do género que se colocava na base e no topo da lombada dos livros, se se destinavam a ser colocados em baús. Arrumados lado a lado, na vertical. As tiras serviam para ajudar a retirar um só livro de cada vez.
— Então acha — continuou ela — que em tempos houve um livro dentro desta caixa?
— É possível. A caixa tem uns cem ou duzentos anos. Pode ter estado em vários sítios e ter sido utilizada para vários fins antes de ter ido parar ao mercado de Trípolis.
— Mas, para ser guardado numa caixa, um livro não precisava dessas tiras de pele — alertou ela objectando, aumentando a sua curiosidade. — Ficaria deitado e sozinho. Não cabe aqui mais de um livro.
— É verdade. Mas os livros, tal como as caixas, podem percorrer muitas milhas e ser transportados de várias maneiras antes de serem colocados juntamente com outros. A julgar por este fragmento, de certeza que em tempos esteve aqui um livro, mesmo que por pouco tempo. Talvez os monges que venderam a caixa guardassem aqui o seu breviário. O livro sem o qual não teriam partido, mesmo quando foram expulsos. No mosteiro poderia haver vários e não puderam trazer todos quando os mosul os expulsaram.
— Este bocado deve ter caído — continuou Fortunata, tocando no pedaço de pele fino como gaze. — O livro devia caber aqui mesmo à justa, para isto ter ficado aqui agarrado.
— Apele acaba por se desfazer — disse Girard. — O uso contínuo acaba por esfarelá-la e transformá-la em pó e os livros do ofício estão constantemente a uso. Se houve uma tal ameaça dos mamelucos de Mosul, aquelas pobres almas dos arredores de Edessa não terão tido ocasião de copiar novos livros de serviço.
Cadfael tinha começado a repor pensativamente os sacos de feltro com as moedas dentro da caixa, acondicionando-as devidamente.
Antes de a base estar coberta, voltou a passar um dedo sobre o pergaminho, estudando-o à luz do Sol, e os grãos de ouro aparentemente invisíveis brilharam, tornaram-se visíveis por um breve instante e desapareceram de novo quando ele moveu a mão. Girard fechou a tampa, rodou a chave e levantou a caixa para a segurar debaixo do braço. Cadfael tinha colocado os sacos ao lado uns dos outros para impedir que se movessem, mas, ainda assim, quando Girard lhe pegou, conseguiu ouvir o breve e leve tilintar das moedas de prata.
— Estou-vos grato por me terem mostrado uma peça destas, tão bonita — disse Anselmo, relaxando com um suspiro. — É um trabalho de mestre, e a senhora tem sorte em possuir uma coisa assim. O mestre William tinha olho para o que é de qualidade.
— Foi o que eu lhe disse — concordou Girard com toda a sinceridade. — Se se desfizesse dela, acabaria por perder parte do valor que contém.
— Pode muito bem valer mais do que a soma que está lá dentro — disse Anselmo com uma expressão séria. — Pergunto-me se terá sido feita para guardar relíquias. O marfim sugere isso, mas é claro que pode não ser isso. Quem a fez teve prazer em embelezar o seu trabalho, fosse qual fosse a finalidade.
— Acompanho-vos até ao portão — disse Cadfael, saindo dos seus próprios pensamentos quando Girard e Fortunata se viraram para sair, caminhando a seguir ao longo da ala norte. Caminhava lado a lado com Girard, enquanto a jovem seguia um ou dois passos à frente, com os olhos postos no chão, de boca fechada e sobrancelhas erguidas, algures distante deles no seu próprio mundo de pensamentos. Só quando chegaram ao fim do grande pátio, já perto do portão, e Cadfael parou para se despedir, é que ela se virou para o olhar directamente. Os seus olhos fixaram o que ele ainda segurava entre os dedos e de repente ela sorriu.
— Esqueceu-se de guardar a chave da cela de Elave. Ou — indagou ela, intensificando o seu sorriso — está a pensar tirá-lo de lá?
— Não — disse Cadfael. — Estou a pensar ir eu lá dentro. Há umas quantas coisas sobre as quais eu e Elave temos de conversar.
Por essa altura, Elave tinha perdido a expressão aguda, defensiva, quase agressiva, que no início apresentava a quem entrasse na cela. Ninguém o visitava regularmente, excepto Anselmo, Cadfael e o noviço que lhe levava comida, e com todos estes falava agora de uma forma singularmente familiar. O som da chave a rodar na fechadura fê-lo virar a cabeça, mas, ao ver Cadfael entrar novamente, tão depressa, transformou o breve olhar inquisidor num sorriso de boas-vindas. Estivera reclinado na cama com a face virada para a luz que entrava pela estreita janela de lanceta, mas sentou-se e desviou-se um pouco para deixar Cadfael instalar-se no banco ao seu lado.
— Não pensava vê-lo outra vez tão cedo — disse ele. — Já se foram embora? Deus proíba que a tenha magoado, mas que posso eu fazer? Ela não quer admitir o que no fundo já sabe! Se eu fugir, envergonhar-me-ei e a ela também, isso é insuportável. Agora não estou envergonhado, não tenho nada de que me envergonhar. Você acha que sou louco por me recusar a fugir?
— Se é, pertence a uma espécie rara — disse Cadfael — e com todo o sentido prático. Quem melhor do que você sabe alguma coisa sobre a caixa que trouxe para ela? Por isso diga-me... quando ela a colocou nas suas mãos há momentos, o que notou nela que tanto o surpreendeu? Oh!, eu vi-o pegar nela. No momento em que lhe sentiu o peso ficou muito surpreendido, a seguir não disse nem mais uma palavra. Que havia de novo nela? Quer dizer-me ou prefere que seja eu a dizer primeiro? Veremos então se estamos de acordo.
Elave olhava-o sobre o ombro, pensativo, com olhar de dúvida e de especulação.
— Sim, lembro-me de que lhe pegou uma vez antes, no dia em que a levei para a cidade. Teria notado uma diferença tão pequena quando lhe pegou novamente?
— Não foi isso — disse Cadfael. — Foi a sua atitude que deixou isso claro. Sabia o peso dela por a ter carregado tanto tempo, ao longo do caminho de França até aqui. Quando Fortunata a colocou nas suas mãos, você sabia com que peso contar. No entanto, quando lhe pegou ergueu as mãos. Eu vi, e vi que tinha percebido o que isso significava. Por isso abanou-a, para um lado para o outro. E sabe bem o que ouviu. De alguma forma, a caixa estava mais leve do que quando lhe pegou da última vez, isso espantou-o e deixou-me espantado. Que produziria o tilintar das moedas não tive dúvidas, pois no capítulo afirmaram-nos que continha quinhentas e setenta moedas inglesas de prata. Mas vi que foi uma surpresa para si, pois tornou a repetir o teste. Por que não disse nada naquela altura?
— Não tinha a certeza — disse Elave, sacudindo a cabeça. — Como poderia ter a certeza? Percebi o barulho que ouvi, mas, desde a última vez que a tive nas mãos, a caixa já foi aberta, talvez alguma coisa não tenha sido reposta quando voltaram a colocar o que estava lá dentro, menos embrulhos, que já não eram precisos... O suficiente para modificar o peso e permitir que as moedas se movessem, antes estavam bem apertadas, não tilintavam. Precisava de tempo para pensar. Se você não tivesse aparecido...
— Eu sei — disse Cadfael. — Tinha acabado por pôr a ideia de lado como se não fosse nada de importante, um erro de memória. Afinal, entregou a sua carga no destino, Fortunata tinha o seu dinheiro, para quê perder tempo a pensar sobre uma questão de peso a menos e moedas a tilintar? Especialmente para um homem com assuntos mais graves em que pensar. E tem-se dedicado a isso, muito sensatamente. Mas agora aqui estou eu, a provocar as ideias que já estavam a acalmar. Meu filho, acabo de pegar novamente naquela caixa. Não direi que noto a diferença de peso, à excepção da altura em que o vi surpreendido. Mas o que lembro perfeitamente é a forma como o peso era sólido, estável. Nada se movia lá dentro quando lhe peguei pela primeira vez. Tive a sensação de ter uma peça sólida de madeira entre as mãos. Desta vez não senti isso. Duvido que alguns bocados de feltro, que entretanto tivessem sido tirados, pudessem silenciar as moedas que agora lá estão, pois eu próprio a arrumei novamente... seis pequenos sacos de feltro, dobrados e comprimidos uns contra os outros, e ainda assim ouvi o tilintar quando pegaram na caixa para a levantar. Não, não se enganou. Está mais leve do que estava e perdeu aquela solidez que antes tinha.
Elave permaneceu sentado em silêncio durante um longo momento, aceitando os factos, mas com dúvidas sobre o seu sentido ou relevância.
— Mas não estou a ver — disse pausadamente — de que serve sabermos essas coisas, nem mesmo para quê pensar nelas e pô-las em questão. Que ganhamos com isso? Mesmo se for tudo verdade, porquê essa diferença? Não vale a pena resolver um mistério tão pequeno, pois ninguém é melhor ou pior do que os outros, embora nos consideremos ou não como tal.
— Tudo aquilo que não é o que parece e não é o que devia ser — disse Cadfael com firmeza — tem com certeza um significado. Enquanto não souber qual o significado, nomeadamente se se manifesta no meio de um assassínio e de um acto de malícia, não fico satisfeito. Graças a Deus, neste momento já ninguém supõe que você teve a ver com a morte de Aldwin, mas alguém o matou, e, fossem quais fossem as suas faltas e erros, fizeram-lhe um mal muito pior e tem direito à justiça. Acho até natural que a maior parte das pessoas pensasse que a súbita morte dele tivesse a ver consigo e com a acusação que lhe foi feita. Mas agora, consigo fora de questão, resta saber quem terá sido. Quem mais teria alguma razão para o matar? Não será lógico, assim, procurar uma outra causa? Que nada tenha a ver consigo e com as suas preocupações? Mas, ainda assim, algo que tem a ver com o seu regresso. A morte verificou-se nos dias seguintes à sua chegada. Por mais que pareça estranho e não possa ser explicado, durante esses poucos dias após a sua chegada, houve qualquer mudança de atitude.
— E fui eu que trouxe a caixa — disse Elave, seguindo até ao fim a lógica daquele pensamento. — E há aqui algo estranho em relação à caixa, algo que não pode ser explicado. Amenos que agora me venha dizer que tem uma explicação para isso?
— Uma explicação possível, sim. Ater em conta... Examinámos a caixa, sem os sacos das moedas, por dentro e por fora. E no forro de pergaminho da base desta encontrámos vestígios de uma camada de ouro, restava um pó muito fino, mas à luz era visível. E no pergaminho mais claro há uma mancha de um azul-arroxeado, da cor de uma ameixa. Penso, e sei que o irmão Anselmo também acha, embora não tivéssemos ainda falado, que se trata de um pequeno pedaço de outro pergaminho que em tempos esteve ali em contacto permanente e o manchou. E amachucado contra um dos cantos encontrámos um fragmento muito gasto de um pergaminho roxo, como aqueles que se encontram nas lombadas dos livros que temos nos baús da biblioteca.
— Está a tentar dizer — afirmou Elave, olhando-o com ar especulativo — que o que a caixa continha em tempos era um livro... ou livros. Um livro que antes era guardado juntamente com outros num baú. Pode bem ser uma verdade, mas que significado pode ter isso neste momento? A caixa é antiga, pode ter sido usada para vários fins desde que foi feita. Podem ter passado cem anos desde que lá esteve um livro.
— Pois podem — concordou Cadfael —, mas há outra coisa. É que ambos pegámos na caixa há apenas cinco dias atrás e hoje pegámos-lhe outra vez e achámo-la mais leve, com uma forma de abanar diferente e cheia de algo que soa audivelmente quando alguém segura ou abana a caixa. O que estou a dizer, Elave, é que o que continha, não há cem anos mas sim há apenas cinco dias atrás, exactamente no vigésimo dia deste mês de Junho, não é o que contém agora, no vigésimo quinto dia.
— Um tamanho-padrão — disse o irmão Anselmo, fazendo o gesto com as mãos sobre a secretária. — A pele cortada de forma a dar oito folhas... caberia exactamente dentro da caixa. Muito provavelmente, a caixa foi feita para isso.
— Mas, se foram feitas ao mesmo tempo — objectou Cadfael —, o livro não teria levado os pedaços de pergaminho na lombada. Não teriam sido necessários.
— Pode ter razão, embora o fabricante os possa ter acrescentado por mero hábito. Mas a caixa pode ter sido feita para tal posteriormente. Se o livro foi encomendado, o escrivão e o encadernador teriam seguido a sequência normal do trabalho. Mas se foi o género de livro que penso, a julgar pelos vestígios existentes, o dono pode muito bem ter mandado fazer uma caixa especificamente para o guardar, para impedir que fosse estragado pelo manuseamento de outros livros menos valiosos dentro de um mesmo baú.
Cadfael alisava entre os dedos o pedaço de pergaminho roxo, tentando desenrolar a ponta. Minúsculos farrapos caíram entre os seus dedos, finos pedaços azulados.
— Falei com Haluin, que sabe mais sobre pigmentos e pergaminhos do que eu vou saber durante toda vida. Quem me dera que ele tivesse cá estado para ter visto com os próprios olhos. Mas disse o mesmo que você disse, que o púrpura é a cor imperial, ouro sobre pergaminho roxo deve ter sido um livro feito para um imperador. No Oriente ou no Ocidente, em ambos os lados, mandavam fazer livros desses. Dourado e púrpura eram as cores imperiais.
— Continuam a ser. Neste bocado temos essa cor e vestígios de ouro. Na Roma Antiga — disse Anselmo —, os Césares usavam essa moda exclusivamente. Duvido de que outros se atrevessem a usar tais cores. Sabe-se que em Aix-la-Chapelle e em Bizâncio seguiram a mesma moda.
— E a que império, supondo que temos razão quanto a este livro e à caixa que o continha, terá pertencido este trabalho de arte? Consegue interpretar os símbolos?
— Consegue melhor do que eu — disse Anselmo. — Andou por essas partes do mundo e eu não. Dê a sua própria opinião.
— O marfim foi gravado por um artesão de Constantinopla ou dos arredores, mas não é forçoso que tenha sido lá feito. Há comércio entre os dois reinos, tal como desde o tempo de Carlos Magno. O que é estranho é o facto de a caixa juntar estes dois elementos, marfim e entalhe em madeira, pois este último não é oriental. A madeira não sei, mas deve ser de algum sítio à volta do Mediterrâneo. Talvez Itália? Como é que estes materiais e talentos se juntaram, vindos de diversos lados, para criar um objecto tão pequeno e tão raro!
— Em tempos continha, talvez, algo mais raro e mais pequeno. E quem sabe quem teria sido o escrivão que escreveu... acha que em dourado sobre pergaminho roxo?... que texto terá sido esse ou para que príncipe bizantino ou de Roma terá sido escrito? Ou quem foi o pintor que o decorou, e em que estilo, oriental ou ocidental?
O irmão Anselmo olhava ao longe sobre o jardim solarengo, sonhando acordado, o estilo de sonho que mais lhe agradava, palavras inscritas com todo o cuidado e dedicação para o prazer dos reis, ornamentadas com elaboradas ramagens e delicadas flores.
— Deve ter sido uma maravilha — disse apaixonadamente.
— Gostava de saber — disse Cadfael mais para si próprio do que para o seu interlocutor — onde estará agora.
Fortunata entrou na loja de Jevan ao final da tarde e encontrou-o a arrumar impecavelmente as suas ferramentas e a estender, numa das prateleiras, a pele que acabara de dobrar, de um branco-creme e de fina textura. Três dobras faziam dela um potencial maço de oito folhas, mas ainda não tinha cortado as arestas. Fortunata colocou-se ao lado dele e passou o dedo indicador sobre a pele.
— É exactamente o tamanho ideal — disse com uma expressão pensativa.
— O tamanho ideal para vários fins — disse Jevan. — Mas por que disse isso? Tamanho ideal para quê?
— Para fazer um livro que caiba na minha caixa. — Ergueu o rosto para o fitar com aqueles olhos grandes cor de avelã. — Sabe que fui com o pai tentar convencê-los a libertarem Elave, que ficaria aqui connosco até o caso dele ser ouvido? Não aceitaram. Mas mostraram grande interesse na caixa. O irmão Anselmo, que toma conta de todos os livros da abadia, quis examiná-la. Sabe, eles acham que em tempos deve ter servido para guardar um livro. Por causa de o tamanho ser tão apropriado para um maço feito a partir de uma pele dobrada em três. Como a caixa é tão bonita, deve ter servido para guardar um livro precioso. Acha que eles podem ter razão?
— Tudo é possível — disse Jevan. — Não tinha pensado nisso, mas o tamanho é sem dúvida sugestivo, agora que fala nisso. Dava realmente uma esplêndida caixa para um livro. — Fitou o rosto grave de Fortunata com o seu habitual sorriso estudado. — Uma pena ter perdido o conteúdo antes de o tio William a ter encontrado em Trípolis, mas atrevo-me a dizer que isso se deveu a muitas mudanças de costumes e de sorte daquela gente. São regiões perturbadas, aquelas. É mais fácil fundar lá um reino cristão do que mantê-lo!
— Bem, fico satisfeita — disse Fortunata — por lá estarem boas moedas de prata quando chegou às minhas mãos, em vez de um livro velho qualquer. Não sei ler, de que me serviria um livro?
— Um livro também teria o seu próprio valor. Um valor elevado se fosse bem escrito e bem pintado. Mas ainda bem que está satisfeita com o conteúdo, espero que isso lhe traga o que deseja.
Ela passou a mão ao longo de uma prateleira e ficou com resíduos de pó da pele clara na palma da mão. Tal como os monges tinham passado o dedo sobre o forro da caixa e encontrado algo significativo no minúsculo resíduo encontrado sobre o pergaminho. Ela conseguira ver o brilho do ouro à luz do Sol, mas não tinha compreendido o resto. Estudou a mão e sacudiu o suave pó quase imperceptível.
— Está na altura de lhe fazer uma limpeza aqui — disse ela. — Tem tudo tão arrumado, mas precisa de uma limpeza ao pó.
— Quando quiser! — Jevan lançou um olhar crítico à volta da sala e concordou. — Está de facto a precisar, sobretudo aqui o sítio das peles acabadas, tem um pó especial. Vivo aqui, respiro este ar, por isso já não noto. Sim, se quiser pode limpar o pó e puxar o lustro.
— Deve ser muito pior lá na sua oficina — disse ela —, com toda aquela raspagem das peles e as idas e vindas ao rio, com os pés cheios de lama, e as peles, quando as traz para as molhar, e todo aquele pêlo... Também deve ter um cheiro — disse ela, enrugando o nariz só de pensar na ideia.
— Nem tanto, minha menina! — Jevan riu-se da expressão enjoada de Fortunata. — Conan limpa a oficina sempre que é preciso e também faz isso muito bem. Podia até ensinar-lhe o ofício, se ele não fizesse falta junto dos rebanhos. É esperto, já sabe muito sobre o fabrico dos pergaminhos.
— Mas Conan está preso no castelo — lembrou ela com um ar sério. — O xerife continua à procura de alguém que possa testemunhar onde ele esteve e o que fez antes de ter ido para os pastos no dia em que Aldwin foi morto. Não acredita, pois não, que tivesse sido ele?
— Podia ter sido qualquer um — disse Jevan indiferente —, considerando o local e a hora! Mas não, Conan não. Vão acabar por soltá-lo. Vai voltar para cá. Não lhe faz mal nenhum suar durante uns dias. A minha oficina não se importa de esperar mais uns dias até à próxima limpeza. E agora, minha senhora, está pronta para o jantar? Fecho a loja e vamos para casa.
Fortunata não estava a prestar atenção. Os seus olhos percorriam a extensão das prateleiras e a estante onde estavam as maiores peles acabadas, cortadas e ordenadamente colocadas umas sobre as outras, formando um grande maço destinado a alguma grande Bíblia, a ser colocada num local de destaque. Daqui desviou o olhar para o maço de oito folhas, cujo tamanho cabia na caixa dela.
— Tio, tem alguns livros deste tamanho, não tem?
— É o tamanho mais usual — disse ele. — Sim, o melhor que tenho é desta medida. Foi feito em França. Sabe Deus como veio parar à feira perto da abadia, aqui em Shrewsbury. Por que pergunta?
— Então cabe na minha caixa. Gostava que ficasse com ela. Por que não? Se é tão bonita e tem valor, devia ficar na família. Eu não sei ler e não tenho nenhum livro para pôr lá dentro, além disso - disse ela —, estou feliz com o meu dote e só tenho a agradecer ao tio William. Depois do jantar, vamos experimentar pôr lá o livro. Mostre-me outra vez os seus livros. Posso não saber ler, mas são bonitos, gosto de os ver.
Do cimo da sua estatura, Jevan continuava a olhá-la, quieto e solene. Daquela maneira, sem se mexer, tudo nele parecia mais alongado do que o habitual, como um santo no seu pedestal de igreja, desde o estreito rosto erudito até aos grandes sapatos que cobriam os seus pés, longos e magros, e às mãos finas e aptas. O seu olhar profundo estudava o rosto dela. Sacudiu a cabeça perante aquela generosidade espontânea e ingénua.
— Minha filha, não devia dar assim dessa maneira tudo o que é seu, antes de saber o valor que tem ou se vai precisar dele no futuro. Não siga os seus impulsos ou poderá vir a arrepender-se.
— Não — disse Fortunata. — Por que havia de me arrepender por dar uma coisa que não vou utilizar a uma pessoa que lhe daria um bom uso? Não me vai dizer que não gostaria de ficar com ela? — Obviamente, os olhos negros de Jevan brilhavam, se não de cobiça, com um inconfundível desejo e prazer. — E eu peço ao pai para me guardar o dinheiro.
O breviário francês era um dos sete manuscritos que Jevan tinha adquirido ao longo dos anos, nos seus negócios com homens da Igreja e outros patronos. Quando levantou a tampa do baú onde os guardava, Fortunata reparou que estavam alinhados, uns ao lado dos outros, na vertical, ligeiramente inclinados para um lado, pois o espaço ainda não tinha sido totalmente preenchido. Dois tinham títulos já um pouco apagados, escritos em latim na lombada, um tinha uma capa vermelha algo desbotada, os restantes tinham sido originalmente feitos com pergaminhos cor de marfim, emoldurados com madeira. Alguns eram suficientemente antigos para possuírem aquele tom castanho-suave, idêntico ao forro da caixa de Fortunata. Já os tinha visto várias vezes antes, mas nunca lhes prestara tanta atenção. Em todos os topos das lombadas, lá estavam as pequenas línguas de pele arredondadas para ajudar a tirá-los e a colocá-los novamente.
Jevan retirou o seu favorito, com a sua encadernação de um branco ainda imaculado, abriu-o ao acaso e as cores brilhantes sobressaíram como se tivessem sido acabadas de pintar, um rebordo do lado direito, em toda a extensão da página, muito fino e delicado, de folhas, ramagens e flores entrelaçadas, o resto da página escrita em duas colunas, com a letra inicial maior e cinco outras mais pequenas no início dos parágrafos seguintes, cada uma formando uma moldura para perfeitas miniaturas de flores e fetos. A precisão dos desenhos combinava com a impecável nitidez dos azuis, vermelhos, dourados e verdes, mas os azuis em particular enchiam e satisfaziam os olhos, com uma frescura translúcida que constituía um puro prazer.
— Está em tão bom estado — disse Jevan, passando apreciativamente a mão sobre a capa — que imagino ter sido roubado e levado para bem longe do local onde pertencia, antes de o mercador o ter conseguido vender. Isto é o começo das Escrituras dos Santos, daí o tamanho da primeira letra. Repare nas violetas e como é verdadeira a cor delas!
Fortunata abriu a caixa sobre os joelhos. A cor do forro conjugava harmoniosamente com o tom pálido da encadernação do breviário.
O livro ajustava-se perfeitamente dentro da caixa. Quando a tampa foi fechada, a suave superfície do forro mantinha o livro imóvel.
— Está a ver? — disse ela. — Como é melhor dar-lhe um uso? Na verdade, esta parece ter sido a finalidade com que foi feita.
Havia espaço dentro do baú para colocar a caixa. Jevan fechou a tampa sobre os seus livros e, durante um momento, permaneceu de joelhos com ambas as mãos premindo a tampa de madeira, admirando-o com prazer.
— Muito bem! Pelo menos pode ter a certeza de que vai ser bem utilizada. — Ergueu-se, os olhos ainda pousados sobre o baú que continha o seu tesouro, com um indistinto sorriso interior de perfeito contentamento transparecendo nos seus lábios. — Sabia, minha menina, que até agora nunca fechei isto à chave? Agora, que tem lá o seu presente, vou fechá-lo, por uma questão de segurança.
Dirigiram-se ambos para a porta, a mão dele colocada sobre o ombro dela. Ao cimo das escadas que davam para o hall, Fortunata parou e virou subitamente o rosto para Jevan.
— Tio, lembra-se de ter dito que Conan aprendeu muito sobre o seu trabalho quando às vezes o ajudava? Ele saberá o verdadeiro valor dos livros? Saberia reconhecê-lo, se por acaso encontrasse um de grande valor?
No vigésimo sexto dia de Junho, Portunata levantou-se bastante cedo e o seu primeiro pensamento ao acordar foi que aquele era o dia do funeral de Aldwin. Era certo que todas as pessoas da casa iriam estar presentes, tanto lhe era devido, por várias razões, anos de serviço, indistintos mas prestáveis, anos de familiaridade com a sua figura inocente e desconsolada, uma sensação de pena e um vago sentimento de nunca o terem compreendido, agora que encontrara um fim tão inesperado. As últimas palavras que ela lhe tinha dirigido foram de reprovação! Merecidas, talvez, mas agora, de uma forma menos razoável, atormentavam-na.
Pobre Aldwin! Nunca foi dado a grandes amizades, com receio de se sair mal, como um avarento com o seu ouro. Tinha feito um mal terrível a Elave, no seu grande receio de ser dispensado. Mas não merecia ter sido apunhalado pelas costas e atirado ao rio. De alguma forma, Fortunata tinha-o na sua consciência, apesar da ansiedade e receio por Elave, a quem ele prejudicara. Nessa manhã, mais do que em todas as outras, Aldwin preenchia-lhe os pensamentos, levando-a por um caminho que ela tinha relutância em seguir. Mas se a justiça é negada aos que têm um comportamento inadequado e aos infelizes, então a quem é dirigida?
Tal como ela se tinha levantado cedo, parecia que mais alguém o tinha feito. A loja estaria fechada durante todo o dia, cerrada e na penumbra, por isso não havia razão para Jevan acordar tão cedo, mas tinha-se levantado e tinha saído antes de Fortunata ter descido até ao hall.
— Foi para a oficina dele — disse Margaret quando Fortunata lhe perguntou por ele. — Tem umas peles novas para molhar no rio, mas estará de volta a tempo do funeral do pobre Aldwin. Que lhe querias?
— Não, nada que não possa esperar — disse Fortunata. — Dei pela falta dele, foi só isso.
Ficou satisfeita ao ver que todas as pessoas da casa estavam ocupadas com os preparativos para mais um acontecimento fúnebre, tão próximo do último, a noite do velório do tio William, quando todo aquele ciclo de infortúnio tinha começado. Margaret e a criada estavam ocupadas na cozinha e Girard, logo a seguir ao pequeno-almoço, tinha ido para o pátio, para arranjar o último percurso de Aldwin até à igreja, a qual negligenciara em vida. Fortunata entrou na loja, que continuava fechada, sem mais luz do que a que se escapava pelas juntas das portadas, e começou rápida e silenciosamente a procurar ao longo das prateleiras, entre as várias peles por cortar e as ferramentas, em todos os cantos daquela divisão ordenada e escassamente mobilada. Tudo estava à vista. Não esperava encontrar ali nada de estranho e não gastou muito tempo nessa tarefa. Tornou a fechar a porta, deixando atrás de si aquele interior sombrio, voltou ao hall completamente vazio e subiu as escadas que conduziam ao quarto de Jevan, situado sobre a entrada.
Talvez ele se tivesse esquecido de que, desde a infância, ela sabia onde tudo era guardado naquela casa ou tivesse menosprezado o facto de que esses pormenores, que nunca a tinham preocupado antes, pudessem ter agora uma grave importância. Ainda não lhe dera razões para reflectir sobre tais assuntos e naquele momento rezava interiormente para nunca lhe vir a dar tais motivos. Sentir-se-ia culpada do que ia fazer agora, mas isso ela conseguiria aguentar, era preciso fazê-lo. Não aguentava mais aquela obsessiva incerteza.
Nunca antes, dissera Jevan, se tinha preocupado em fechar os seus manuscritos, nunca até a preciosa caixa do dote dela estar dentro do baú. Isso podia ter sido um gesto simples e afectuoso, uma forma de reconhecimento para lhe agradar, mas ela tinha a certeza de que ele o teria voltado a abrir e fechar durante a noite. Sabia, mesmo antes de estender a mão para levantar a tampa, que o encontraria fechado. Assim sendo, se ele tivesse levado consigo as chaves ao sair de casa, ela não poderia ir mais longe. Mas ele não vira necessidade disso, pois as chaves estavam no local habitual, penduradas num gancho dentro do armário onde costumava guardar as roupas, num dos cantos do quarto. A mão dela tremia enquanto procurava a chave mais pequena, produzindo depois um ruído de metal a bater em metal antes de ter conseguido encaixá-la no buraco da fechadura do baú que continha os livros.
Levantou a tampa e ajoelhou-se imóvel diante do baú, segurando com tanta força a beira da tampa que lhe doíam os dedos. Só precisava de um rápido olhar, não daquele longo olhar com que fixou o interior, as lombadas cerradas umas contra as outras, o espaço vazio num dos lados. Não estava lá nenhuma caixa escura, nenhum santo em marfim, de olhos grandes e rosto redondo a devolver-lhe o olhar. Com a sua lombada mais clara, ao lado do seu companheiro de capa vermelha desbotada, lá estava o valioso breviário francês de Jevan, comprado a algum ladrão cauteloso ou vendido juntamente com outros bens roubados na feira de Saint Peter há uns dois anos atrás, no seu lugar habitual entre os outros livros, privado da sua nova e sumptuosa caixa.
O livro tinha ficado, a caixa, na qual cabia de forma tão harmoniosa, tinha sido retirada. Fortunata só podia pensar num motivo para tal e num só local para onde pudesse ter ido.
Fechou apressadamente a tampa, tomada por um súbito pânico, e rodou a chave, deixando uma madeixa de cabelo presa na fechadura, arrancando-a quando se levantou, num acto desesperado para sair daquele quarto e refugiar-se noutro sítio, no meio de pessoas inocentes e de acontecimentos normais, longe daquilo que desejava não ter sabido mas que agora não podia deixar de saber, reconhecendo que o caminho que não desejava seguir e que talvez desaparecesse sob os seus pés teria agora de ser levado até ao fim.
Aldwin foi levado para o local do seu enterro a meio da manhã, escoltado por Girard de Lythwood e por todas as pessoas da casa. Foi guiado para o outro mundo, com toda a solenidade, pelo padre Elias, que estava agora satisfeito com as credenciais do seu paroquiano e aliviado de todas as suas dúvidas iniciais. Fortunata manteve-se ao lado de Jevan diante da sepultura e sentiu as contracorrentes de pena e de horror assolando-lhe o espírito, enquanto a manga da camisa dele roçava a dela. Observara-o ajuntar-se aos outros para carregar o caixão, lançar um punhado de terra sobre este, e depois naquela expressão de pena, com um rosto contido e austero, enquanto a terra cobria lentamente o caixão. Uma vida vivida com desalento e pessimismo podia não parecer uma grande perda, mas, quando é levada por um assassínio, o acto e a privação parecem monstruosos.
Lá deixou assim Aldwin este mundo, que parece nunca o ter satisfeito, e Girard e a sua família regressaram a casa, tendo cumprido o seu dever para com o seu desafortunado empregado. Mantiveram-se à mesa em silêncio, mas o lugar deixado por Aldwin, que tinha sido estreitado o mais possível, em breve se fecharia como uma ferida que sarasse sem deixar cicatriz.
Fortunata levantou os pratos e foi para a cozinha ajudar a lavar a loiça do jantar. Não tinha a certeza da razão que a levava a adiar o que sabia ter de fazer: ou não queria levantar suspeitas com os seus movimentos ou porque, desesperadamente, não queria ir mais além. Mas, afinal, não podia deixar as coisas a meio. Não podia ficar naquela agonia desnecessária. Poderia haver uma boa resposta, neste preciso momento, e se não acabasse o que tinha começado nunca chegaria a descobrir. A verdade tem uma força terrível.
Atravessou o pátio e deslizou despercebidamente para dentro da loja, que se encontrava fechada. A chave da oficina de Frankwell estava no sítio habitual, onde Jevan a tinha pendurado, serena e naturalmente, quando regressou da sua expedição matinal. Fortunata retirou-a e escondeu-a no corpete do vestido.
— Vou até à abadia — disse ela, assomando-se à porta do hall — saber se me deixam ver Elave outra vez. Ou pelo menos saber seja se passou alguma coisa. O bispo deve estar a mandar uma mensagem por um destes dias. Coventry não é assim tão longe.
Ninguém se opôs, ninguém se ofereceu para ir com ela. Não havia dúvida de que acharam que, depois da consternação da manhã, por causa do enterro, sair e apanhar o ar da tarde seria a melhor coisa que ela tinha a fazer para orientar os seus pensamentos, por mais ansiosos que pudessem ser, para a vida e a juventude.
Como a loja se encontrava fechada e todas as janelas da casa estavam semicerradas, ninguém a viu sair do arco da entrada e virar, não à esquerda, em direcção às portas da cidade e à abadia, mas sim em direcção à ponte oeste e ao subúrbio de Frankwell.
O irmão Cadfael, que não costumava ser dado a hesitações, tinha passado a manhã inteira e mais uma hora da tarde a considerar os acontecimentos do dia anterior, a tentar determinar quanto da sua preocupação seria verdade e quanto seria especulação. Certamente, em dada altura, a caixa de Fortunata guardara um livro e, a julgar pelos vestígios encontrados, foi bastante usado durante muito tempo, para ter deixado aquela mancha no forro e um fino pedaço de pele roxa amarrotado num canto, entre o forro e a madeira. A folha de ouro é aplicada sobre cola e depois polida, embora as folhas sejam demasiado finas e frágeis para serem manuseadas no claustro ou ao mínimo vestígio de vento, a gravação devidamente feita é bastante duradoura. Teria sido preciso muito uso e um frequente tirar e pôr numa caixa de tamanho apropriado para terem restado mesmo só aqueles minúsculos grãos de ouro. Quanto mais pensava nisso mais tinha a certeza de que algures existia um livro designado para aquela caixa e que tinha lá estado durante um século ou mais. Se se tinham separado há muito tempo, se o livro tivesse sido roubado, tendo ido parar a mãos pagãs, talvez até tivesse sido destruído, então qual seria a natureza do dote que William tinha mandado à sua filha adoptiva? Pois tinha a certeza, tal como Elave também tinha agora a certeza, de que não tinham sido aqueles seis sacos de feltro com moedas de prata.
E supondo que se tratava de facto de um livro, acondicionado no seu lindo estojo, transportado ao longo de metade do mundo sem ter sido manuseado nem lido, devido ao valor que representava para uma rapariga quando esta atingisse a idade de casar? O valor de algo que pudesse ser muito bem vendido, de forma a proporcionar um grande proveito. Mas os livros têm um outro valor para aqueles que aprenderam a apreciá-los apaixonadamente para o resto da vida. Há quem cometa fraudes, quem roube, quem minta por eles, mesmo que depois nunca possam vir a mostrar ou a orgulhar-se dos seus tesouros em frente dos outros. Matar por eles? Não era impossível.
Mas isso ultrapassava certamente o caso presente, se não onde estaria a ligação? Quem ameaçou? Quem impediu o caminho? Não um empregado pouco letrado, que por certo não se interessava nada por manuscritos raros há muito escritos por artistas consumados.
Abruptamente, de algum modo para sua surpresa, pois não estava consciente da ideia que se formava, Cadfael parou de arrancar umas pequenas ervas daninhas de entre as suas ervas medicinais, pousou a enxada e foi à procura do irmão Winfrid, que arrancava à mão as ervas daninhas na horta.
— Meu filho, tenho de ir entregar um recado, se o nosso abade permitir. Devo estar de volta antes das Vésperas, mas, se chegar mais tarde, veja se ficou tudo em ordem e feche a estufa antes de ir embora.
O irmão Winfrid ergueu-se por um momento, mostrando toda a sua corpulência campestre para ouvir aquelas ordens, segurando um grande molho de ervas daninhas que arrancara.
— Com certeza. Há alguma mistura lá dentro que precise de ser mexida?
— Nada. Quando tiver terminado aqui, pode ir-se embora à vontade. — Não que ele fosse do género de levar estas palavras literalmente. O irmão Winfrid tinha tanta energia que precisava de estar constantemente ocupado ou, provavelmente, não saberia o que fazer. Cadfael deu-lhe uma leve palmada no ombro, deixando-o no seu trabalho vigoroso, e foi à procura do abade Radulfus.
O abade estava no seu escritório, concentrado nas contas do despenseiro da abadia, mas colocou-as de lado quando Cadfael pediu para ser ouvido e prestou-lhe toda a atenção.
— Meu pai — disse Cadfael —, o irmão Anselmo contou-lhe o que descobriu ontem sobre a caixa que trouxeram do Oriente para a jovem Fortunata? E o que, embora com reservas, concluímos depois de a termos examinado?
— Sim, contou — disse o abade. — Confio na opinião de Anselmo nestas matérias, mas não deixa de ser especulação. Parece lá ter estado um livro precioso. Uma grande pena ter-se perdido!
— Meu pai, não tenho a certeza de que se tenha perdido. Há razões para crer que o que chegou a Inglaterra dentro daquela caixa não é o dinheiro que agora lá está. Houve uma diferença no peso e no balanço. Quem o diz é o jovem que a trouxe do Oriente, e também eu o digo, pois peguei-lhe no mesmo dia em que ele a entregou em casa de Girard de Lythwood. Eu acho — disse Cadfael veementemente — que essa diferença que notámos também deve ser comunicada ao xerife.
— Crê — perguntou Radulfus, olhando-o com uma expressão grave — que isso poderá adiantar alguma coisa no único caso, julgo eu, que Hugh Beringar tem agora em mãos? Mas é um caso de homicídio. Que pode um livro, presente ou ausente, ter a ver com esse crime?
— Quando o empregado foi assassinado, meu pai, não foi opinião da maior parte das pessoas que o jovem que ele tinha acusado o tinha matado por vingança? No entanto, agora sabemos que não foi assim. Elave nunca lhe fez mal. E quem mais tinha motivos para atentar contra a vida do homem quanto à acusação feita? Ninguém. Acabei por chegar à conclusão de que a causa da sua morte nada teve a ver com a denúncia que fez. No entanto, continua a parecer que tinha algo a ver com o próprio Elave, com o seu regresso a Shrewsbury. Tudo o que se passou verificou-se após a sua chegada. Será possível, meu pai, que tenha a ver com o que ele trouxe para entregar naquela casa? Uma caixa que entretanto mudou de peso, que num dia parecia uma peça sólida de madeira e uns quantos dias mais tarde tilinta com o barulho de moedas de prata. Só este facto já é estranho. E tudo o que possa parecer estranho à volta daquela casa, onde o homem viveu e trabalhou longos anos, pode ter uma explicação.
— Que deve ser levada em conta — concluiu o abade, sentando-se em silêncio durante alguns minutos a ponderar no que ouvira. — Pois bem, assim seja. Sim, Hugh Beringar deve tomar conhecimento. O que fará com isso não faço ideia. Deus sabe que eu próprio não sei como usar esse novo pormenor, por enquanto, mas, se isso puder lançar uma luz para se dar mais um passo no caminho da justiça, então sim, deve ser comunicado. Vá ter com ele agora, se quiser. Demore o tempo que precisar, rezo para que tenha um bom efeito.
Cadfael encontrou Hugh, não na sua casa de Saint Mary mas sim no castelo. Estava nesse preciso momento a percorrer a passos largos a vigia exterior, numa pressa irrequieta que curiosamente indicava, ao mesmo tempo, ligeireza e irritação, enquanto Cadfael subia a rampa da estrada e entrava pelo grande túnel da torre do portão. Hugh viu-o e dirigiu-se imediatamente na sua direcção.
— Cadfael, vem mesmo a tempo, tenho novidades para lhe dar.
— Também eu tenho novidades para lhe dar — disse Cadfael —, se é que se podem chamar novidades. Mas é melhor ficar a saber do que se trata, acho que vale a pena.
— E Radulfus concordou? Então deve ser algo com substância. Vamos para dentro trocar essas informações — disse Hugh, seguindo à frente, atravessando a casa do guarda e a antessala da torre do portão, onde podiam conversar em privado. — Estava prestes a vir para dentro e ir visitar o nosso amigo Conan — disse com um sorriso algo forçado — antes de o soltar. Sim, é essa a novidade que tenho. Levou tempo a reunir os pormenores de todas as idas e vindas daquele dia, mas por fim encontrámos um camponês, no extremo de Frankwell, que o conhece e o viu ir para junto do rebanho, lá nas pastagens, muito antes das Vésperas daquela tarde. Não há forma de ele ter podido matar Aldwin, uma hora mais tarde o homem ainda estava vivo e de boa saúde.
Cadfael sentou-se devagar, com um longo e profundo suspiro.
— Então ele também está fora de questão! Bem, bem! Nunca achei que fosse um assassino, confesso, mas ter a certeza é outra coisa.
— Nem eu queria acreditar que ele fosse o assassino — concordou Hugh —, mas não lhe perdoo os dias que levámos para encontrar alguém que testemunhasse por ele, nem a patetice dele, tão cheio de medo que mal se conseguia lembrar das pessoas que viu quando passou por Frankwell, para ir para junto do rebanho. E continuava a mentir, é preciso que se note, quando conseguia dizer qualquer coisa. Mas está inocente e em breve estará de regresso ao trabalho, livre como um pássaro. Espero bem que Girard fique contente — disse Hugh desgostoso. Pousou os cotovelos sobre a pequena mesa e fitou Cadfael, olhos nos olhos. — Quer acreditar? Ele jurou que nunca mais viu Aldwin depois de a rapariga o ter censurado e o pobre diabo se ter ido embora cheio de culpa, para tentar desfazer o mal que tinha feito... até saber que nós descobrimos que ele passou cerca de meia hora com ele na taberna. Nessa altura acabou por admitir, mas jurou que não tinha passado disso. Não foi nada assim, como acabámos por saber, foi um dos batedores, que andavam ao longo de Foregate à caça de Elave, que nos contou o resto da história. Ele viu os dois a atravessarem a ponte e a dirigirem-se pela estrada em direcção à abadia, Conan levava uma mão sobre o ombro de Aldwin e continuava a sussurrar-lhe ao ouvido, tentando persuadi-lo. Até que ambos viram e ouviram o barulho dos batedores em plena caça! Totalmente assustados, diz ele, até parecia que eram eles que estavam a ser perseguidos. Desataram a correr para a zona entre as árvores. Imagino que tenha sido isso que pôs fim à intenção de Aldwin de ir à abadia resolver os seus problemas de consciência. Quem sabe se, depois de aquele jovem padre o ter confessado, ele encontrou de novo a coragem, se... Só hoje é que Conan admitiu que tornou a ir atrás dele. Estavam ambos um pouco bêbados, julgo eu. Mas por fim acabou por ir para as pastagens, quando percebeu que Aldwin estava demasiado assustado para ir mais longe.
— Então, assim, perdeu o seu principal suspeito — disse Cadfael pensativo.
— O único suspeito. Não tenho pena nenhuma de que, afinal, ele acabasse por estar inocente. Bem, pelo menos do assassínio — afirmou Hugh corrigindo-se a si próprio. — Mas desde o começo que tudo parece um pouco confuso. Que temos então agora?
— O que temos — disse Cadfael — é que lhe vou dizer o que me trouxe cá, pois agora, que Conan está fora de questão, o que tenho para lhe dizer ainda se torna mais substancial do que eu pensei. Depois, se estiver de acordo, podemos tentar espremer Conan até à última gota, para ver se ele diz tudo o que sabe, antes de o libertar. Não tenho ainda a certeza, alguém lhe falou sobre a caixa que Elave trouxe para a rapariga, contendo o dote dela? Enviada pelo velhote antes de ter morrido em França?
— Sim — disse Hugh com uma expressão interrogativa —, já me falaram nela. Jevan contou-me, a propósito de Conan se querer livrar de Elave. Conan gostava da rapariga, de uma maneira um tanto fria, mas começou a gostar muito mais dela quando soube que ela tinha um dote. É o que diz Jevan. Mas é tudo quanto sei sobre isso. Porquê? Que é que a caixa tem a ver com o crime?
— Desde o princípio que tenho estado intrigado — disse Cadfael — com a falta de motivo. Vingança, era o que todos diziam, apontando-o a Elave, mas, quando isso ficou esclarecido pelo jovem padre Eadmer, que mais restava? Conan podia ter ido longe de mais ao tentar convencer Aldwin a não retirar a sua acusação, mas mesmo isso não era suficiente e agora você diz que essa hipótese também está posta de lado. Quem poderia ter algo contra Aldwin para se pegar à luta com ele, mais a mais matá-lo? Já bastava ver como estava arrependido, pobre diabo. Não tinha nada que merecesse ser cobiçado, até aqui não tinha feito mal a ninguém. Não admira que não houvesse grandes suspeitos. No entanto, por certo atravessou-se no caminho de alguém, ou ameaçou alguém, consciente disso ou não. Por isso, desde que soube que a traição feita a Elave não era a causa da morte, comecei a olhar mais de perto para os assuntos da casa, aos quais os dois homens estavam ligados, a todos os pormenores, por mais insignificantes que pudessem parecer, especialmente algo novo, dado que esta questão foi tão súbita e tão terrível. Tudo estava perfeitamente calmo até Elave ter chegado. Para além dele, a única coisa que trouxe para aquela casa foi a caixa de Fortunata. E logo à primeira vista não era uma caixa vulgar. Por isso, quando Fortunata a trouxe até à abadia, com a ideia de usar o dinheiro que lá está dentro para tentar libertar Elave, perguntei se a podíamos examinar mais de perto. E isto, Hugh, isto foi o que encontrámos!
Contou tudo minuciosamente, todos os pormenores sobre o dourado e o púrpura, a diferença no peso, a possível e intrigante mudança de conteúdo. Hugh ouviu até ao fim sem fazer comentários. Depois disse pausadamente:
— Uma coisa assim, se é que de facto chegou a entrar naquela casa, podia ser o suficiente para tentar qualquer homem.
— Alguém que compreendesse o seu valor — disse Cadfael. — Em termos de valor monetário ou do valor da sua raridade.
— Antes de tudo o mais, haveria de ter sido alguém que tivesse aberto a caixa e visto o que estava lá dentro. Sabe-se se foi aberta logo a seguir ao rapaz a ter entregue? Ou quanto tempo depois?
— Isso — disse Cadfael — não sei. Mas tem cá um homem que talvez saiba. Um que até talvez possa dizer onde a colocaram, quem se aproximou dela, o que conversaram sobre o assunto durante aqueles poucos dias, pois Elave não sabe nada porque não estava lá. Por que não lhe fazemos mais umas quantas perguntas antes de o libertar?
— Não se esqueça — avisou Hugh — de que também isto pode não levar a lado nenhum. Pode ser que lá tenham estado sempre as moedas, mas melhor acondicionadas.
— Moedas inglesas e nesta quantidade? — perguntou Cadfael, considerando uma hipótese em que não havia pensado, mas considerando-a uma possibilidade. — No fim de uma viagem daquelas, tendo sido enviadas de França? Mas se lhe mandasse dinheiro teria de ser dinheiro inglês. Podia tê-las reservado para esse fim, quando começou a ficar doente. Não, não há certeza de nada, tudo parece escapar-se por entre os dedos.
Hugh levantou-se de forma decidida.
— Venha, vamos ver o que conseguimos sacar do mestre Conan, antes que se me escape das mãos.
Conan estava sentado na sua cela de paredes de pedra e lançou-lhes um olhar matreiro e desconfiado no momento em que entraram. Dispunha de uma janela estreita, de uma cama dura mas tolerável, de muita comida e de nenhum trabalho e estava a começar a habituar-se a esse facto, ao princípio admirado por ninguém mostrar interesse em querer aproveitá-lo arduamente, mas apesar disso pouco à vontade e ansioso sempre que Hugh aparecia. Tinha dito tantas mentiras para se tentar distanciar da suspeita de ter cometido o crime que tinha agora dificuldade em recordar-se exactamente do que dissera e não se queria meter em enredos ainda mais complicados.
— Conan, meu rapaz — disse Hugh, avançando para ele com ar descontraído —, há ainda uma pequena questão em que nos pode ser útil. Sabe quase tudo quanto se passa em casa de Girard de Lythwood. Viu a caixa que trouxeram de França para Fortunata. Responda-me a umas quantas perguntas sobre isso e desta vez não quero mais mentiras.
Fale-me sobre a caixa. Quem estava presente quando foi entregue lá em casa?
Pouco à vontade perante este assunto, ou qualquer outro, e não conseguindo compreender, Conan respondeu, cauteloso:
— Estavam Jevan, a Dona Margaret, Aldwin e eu. E Elave! Fortunata não estava lá nesse momento, veio mais tarde.
— A caixa foi aberta nessa altura?
— Não, a senhora disse que seria melhor esperar que o mestre Girard regressasse a casa. — Prudente nas suas palavras até compreender o sentido daquelas perguntas, Conan nada mais acrescentou.
— Então ela arrumou-a, foi isso? E você viu em que sítio, não foi? Conte-nos lá isso!
Estava cada vez mais embaraçado.
— Colocou-a no armário, numa das prateleiras de cima. Todos vimos isso!
— E a chave, Conan? A chave também lá estava? E você não ficou com curiosidade? Não ficou com vontade de ver o que estava lá dentro? Não começou a ficar com cócegas nos dedos antes de anoitecer?
— Nunca me meti nisso! — gritou Conan, alarmado e na defensiva.
— Não fui eu que andei lá a bisbilhotar. Nunca me cheguei perto dela. Fora tão fácil! Hugh e Cadfael trocaram um breve olhar de admirada gratidão. Faça-se a pergunta certa e o caminho abre-se perante nós. Interessados, acercaram-se ainda mais de Conan, satisfeitos com o proveito que tiravam do nervosismo dele.
— Então quem foi? — perguntou Hugh.
— Aldwin! Tinha sempre de bisbilhotar tudo e nunca tirava nada
— disse Conan febrilmente, desesperado para retirar as suspeitas de cima de si próprio a todo o custo —, mas não aguentava ficar sem saber. Estava sempre com medo de que houvesse qualquer coisa armada contra ele. Eu nunca lhe toquei, mas ele sim.
— E como sabe isso, Conan? — perguntou Cadfael.
— Ele disse-me, depois. Mas eu ouvi-os, lá em baixo no hall.
— E quando foi que os ouviu... lá em baixo no hall?
— Nessa mesma noite. — Conan inspirou profundamente, começando a recuperar a calma, dado que, afinal, nada daquilo parecia apontar na sua direcção. — Fui deitar-me e deixei Aldwin na cozinha, mas não tinha sono. Não o ouvi ir para o hall, mas ouvi Jevan de repente gritar ao cimo das escadas: “Que está aqui a fazer?” Depois Aldwin, lá em baixo, disse apressadamente que tinha deixado o punhal dele dentro do armário e que ia precisar dele de manhã. Jevan disse para então o ir buscar, ir para a cama e parar de incomodar os que já estavam deitados. Aldwin subiu todo apressado, com o rabo entre as pernas. Depois ouvi Jevan descer até ao hall e dirigir-se até ao armário, e acho que ele o fechou e levou a chave, pois na manhã seguinte estava fechado. Mais tarde perguntei a Aldwin o que ele tinha andado a fazer e ele disse que só queria dar uma vista de olhos no que estava lá dentro, que tinha aberto a caixa mas que tinha tido de a fechar logo a seguir e tentar dissimular o que estava a fazer, quando Jevan começou a gritar com ele.
— E ele viu o que estava lá dentro? — perguntou Cadfael, adivinhando qual seria a resposta, apreciando a ironia.
— Não, não viu! A princípio fingiu que sabia e que não me queria dizer, mas no fim teve de admitir que não chegou a ver o que estava lá dentro. Mal tinha tido tempo para levantar a tampa e teve de voltar a fechá-la logo a seguir. Não conseguiu ver nada! — disse Conan, quase com satisfação, como se se achasse superior ao colega pela infrutífera curiosidade deste.
“Conseguiu que o matassem”, pensou Cadfael, com uma terrível certeza. “E tudo para nada! Não teve tempo sequer de ver o que a caixa tinha lá dentro. Talvez ninguém tenha visto. Talvez tivesse sido esse acto que despertou a curiosidade de outro homem, uma curiosidade fatal para ambos.”
— Bem, Conan — disse Hugh —, pode respirar fundo e considerar-se um homem com sorte. Alguém do lado galês da cidade jura tê-lo visto a caminho do sítio onde estava o rebanho de Girard, muito antes das Vésperas, na noite em que Aldwin foi morto. Está livre de culpa. Quando quiser pode ir para casa, a porta está aberta.
— E ele nem sequer viu o que lá estava — disse Hugh enquanto regressavam pela ala exterior, lado a lado.
— Mas houve alguém que pensou que ele tinha visto. E não resistiu a ver por si próprio — disse Cadfael — e ficou perdido. Completamente enterrado! Passado mais um, dois ou três dias no máximo, Girard estaria de regresso, a caixa seria aberta, o seu conteúdo revelado a todos e pertenceria a Fortunata. Girard é um mercador esperto, tentaria obter para Fortunata a maior soma possível... não que lhe conseguisse compreender o valor. Mas, se ele próprio não soubesse onde o vender, sabia a quem devia perguntar. Se lá estava aquilo em que começo a acreditar, a soma deixada no seu lugar não chegaria para pagar nem uma das páginas.
— E só a vida de uma pessoa se estava a atravessar no caminho, ameaçando uma traição — disse Hugh. — Ou pelo menos assim parecia! E tudo aquilo para nada, o pobre infeliz não chegou a ter tempo de ver o que deveria estar lá dentro quando a caixa foi aberta. Cadfael, se não me falha a memória... ontem, quando Anselmo examinou a caixa, os vestígios de folha de ouro, a mancha púrpura e tudo isso, Girard e a rapariga estavam presentes? E se um deles for suficientemente esperto para pensar o que estamos a pensar? Tendo ido tão longe, poderia um homem parar agora, de repente, se o mesmo perigo o ameaçasse novamente?
Era uma ideia nova e perturbadora. Cadfael considerou-a um instante enquanto dava umas passadas largas, receando perante a ideia.
— Creio que Girard nunca pensou muito nisso. Quanto à rapariga... não diria o mesmo! É mais esperta do que parece e é ela que tem mais a perder. É jovem, bondosa e nunca antes a morte repentina rondou tanto à volta dela. Gostava de saber! Gostava mesmo de saber! Ela prestou toda a atenção, sem perder nada, sem dizer quase nada. Hugh, que vai fazer?
— Venha! — disse Hugh, decidindo-se. — Vamos os dois fazer uma visita à casa de Lythwood. Temos um bom pretexto. Enterraram hoje de manhã o empregado, eu libertei um suspeito, também empregado deles, e continuo empenhado em encontrar o assassino. Por enquanto, nenhum deles tem de se preocupar, pelo menos enquanto eu não souber os movimentos de cada um naquele dia, como fiz com Conan. Pelo menos ficamos a saber onde está a rapariga, até você ou eu podermos falar com ela outra vez e ter a certeza de que não está a fazer nada que a possa pôr em perigo.
Por volta da mesma hora em que Hugh e Cadfael saíram do castelo, Jevan de Lythwood teve oportunidade de subir ao quarto para despir e dobrar o seu melhor casaco, que usara no funeral de Aldwin, e vestir um mais leve e à vontade, com o qual costumava trabalhar. Raramente entrava no quarto sem lançar um olhar possessivo e de satisfação sobre o baú que continha os seus livros, o que fez também nesta ocasião.
A luz solar, declinando do zénite para as escassas horas douradas do final da tarde, entrava obliquamente pela janela virada a sul, incidindo sobre um canto da tampa e iluminando a placa de metal da fechadura. Algo muito fino flutuava sobre a placa ornamentada, aparecendo e desaparecendo com o movimento do ar. Quatro ou cinco longos cabelos, escuros mas brilhantes, mostrando aqui e acolá uns leves reflexos ruivos. Sem aquela luz, que os sobrepunha contra a sombra, teriam passado despercebidos.
Jevan reparou neles e parou ao vê-los, o rosto impassível. Depois foi buscar a chave ao local habitual, abriu a fechadura e levantou a tampa. Nada estava fora de ordem. Nada de diferente a não ser aqueles filamentos brilhantes que balançavam como se tivessem vida e que se enrolaram nos seus dedos quando cuidadosamente os retirou de uma das pontas da placa da fechadura, onde tinham ficado presos.
Num silêncio meditativo, tornou a baixar a tampa, rodou a chave na fechadura e desceu até à loja que continuava fechada. A chave da oficina que ficava rio acima, na margem direita do Severn, distanciada da cidade, desaparecera do gancho onde costumava estar pendurada.
Atravessou o pátio e espreitou para dentro do hall, onde Girard estava ocupado com as contas que Aldwin deixara por pagar e onde Margaret, sentada na outra ponta da mesa, remendava uma camisa.
— Vou outra vez lá para baixo — disse Jevan. — Deixei um trabalho a meio.
O acolhimento na casa de Girard foi caloroso, pois Conan tinha regressado a casa há apenas um quarto de hora, mostrando todo o seu alívio sem se queixar muito dos dias em que esteve encarcerado, e Girard, um homem sobretudo prático, estava disposto a não prolongar o ambiente de enterro, uma vez que os vivos tinham já cumprido todos os rituais fúnebres, despedindo os mortos para um mundo melhor. O que restava do seu pessoal parecia agora livre de qualquer calúnia e o seu negócio continuaria sem interferências.
Porém, dois membros da casa encontravam-se ausentes.
— Fortunata? — interrogou Margaret em resposta à pergunta de Cadfael. — Saiu depois do almoço. Disse que ia à abadia, tentar ver Elave novamente, ou pelo menos tentar saber se já havia novidades sobre o caso. Talvez a encontre no caminho de regresso, senão, encontra-a lá.
Um peso a menos sobre os ombros de Cadfael. Onde melhor poderia ela estar, a salvo?
— Assim sendo, talvez fosse melhor ir andando para casa — disse ele, satisfeito — para não perder mais tempo.
— E eu vim na esperança de encontrar o seu irmão — disse Hugh. — Tenho ouvido falar muito sobre a caixa da sua filha e tinha curiosidade em vê-la. Disseram-me que em determinada altura terá servido para guardar um livro. Queria saber a opinião de Jevan sobre isso. Ele sabe tudo sobre como se fazem os livros, desde a pele em bruto até à encadernação. Gostava de o consultar quando ele tivesse disponibilidade. Mas talvez eu possa ver a caixa?
Mostravam-se bastante satisfeitos por fornecer todas as informações possíveis. Não havia qualquer receio naquela casa.
— Foi agora mesmo para a oficina dele — disse Girard. — Esteve lá hoje de manhã, mas deixou algo por acabar. Com certeza não deve demorar. Entre e espere um bocado, ele não tardará. A caixa? Deve estar guardada até que ele chegue. Fortunata ofereceu-lha ontem à noite. Se foi feita para guardar um livro, disse ela, o tio Jevan é o homem que tem livros, por isso vou dar-lha. Ele utilizou-a para guardar um dos seus livros mais valiosos, como ela queria. Terá todo o prazer em mostrar-lhe a caixa. É uma peça muito bonita.
— Não vou maçá-lo mais, se ele não está cá agora — disse Hugh. — Volto cá mais tarde, moro bastante perto daqui.
Saíram juntos, e Hugh acompanhou Caddfael até ao cimo do Wyle.
— Ela deu-lhe a caixa — disse Hugh intrigado. — Que pode isso significar?
— É isso — disse Cadfael sem rodeios! — Agora tenho a certeza de que ela seguiu o mesmo caminho que a minha imaginação. Mas não para conseguir provar... mais para conseguir provar o contrário. Mas quis saber a todo o custo. Ele é o seu familiar e amigo mais próximo, mas ela não consegue fechar os olhos e fingir que não se passou nada de mal. No entanto, podemos estar errados, eu e ela. Bem, pelo menos, na abadia estará em segurança. Vou para lá ao encontro dela. Quanto ao outro...
— O outro — disse Hugh —, deixe-o por minha conta.
Cadfael atravessou o arco do portão para dar com uma cena de propositada actividade. Ao que parecia, chegara um importante personagem, para cuja recepção as hierarquias da casa se tinham reunido e com a qual estavam naquele momento ocupadas. O irmão Porter surgira esvoaçando as saias do hábito para segurar uma das rédeas, o irmão Jerome competia com um moço para segurar a outra, o prior Robert surgia no claustro com o seu passo mais largo, o irmão Denis hesitava, ainda sem ter a certeza de o recém-chegado ser hospedado no hall dos visitantes ou nos aposentos do abade. Uma série de irmãos e noviços agitados guardava uma distância respeitável, prontos a correr para prestar qualquer serviço que fosse preciso e três ou quatro dos rapazes da escola, sensatamente à distância para não serem notados nem censurados, fitavam apenas espantados, querendo ver e ouvir tudo.
No meio de toda esta recepção, estava o diácono Serio, que acabara de desmontar da sua mula e sacudia as saias do hábito. Com um pouco de poeira da viagem, mas, como habitualmente, com aquele ar rosado e sadio, decididamente agora mais feliz e tranquilo por ter trazido consigo o bispo e poder assim deixar que ele tomasse calmamente todas as decisões.
O bispo Roger de Clinton desmontava nesse momento de um cavalo alto e malhado, com o vigor e a destreza de um homem com metade da sua idade, pois, pensou Cadfael, devia estar próximo dos 60 anos. Há catorze anos que tinha sido nomeado bispo e usava a sua autoridade tão fácil e altivamente como o seu traje de montar completo, com a mesma confiança. Era alto e a sua figura erecta fazia-o parecer ainda mais alto. Um homem austero, competente e sem pretensões, pois eram-lhe desnecessárias. Havia algo nele, pensou Cadfael, que lembrava os bispos guerreiros, que eram agora uma raça em extinção. O seu rosto tanto daria para um soldado como para um padre, com a expressão de um falcão, directa e resoluta, com olhos cinzentos penetrantes que interpretavam rápida e decididamente o que viam. Apercebeu-se de toda a cena à sua frente com um rápido olhar, entregando as rédeas ao guarda do portão enquanto o prior Robert se apresentava à sua frente, prestando-lhe todas as reverências e boas-vindas.
Afastaram-se ambos em direcção aos aposentos do abade e o grupo desfez-se gradualmente, tendo perdido o seu centro. Os cavalos foram libertados das suas selas e conduzidos para os estábulos, os irmãos que aguardavam tinham dispersado para as suas várias ocupações, as crianças tinham ido em busca de outra diversão até serem chamadas para o jantar, que lhes era servido bastante cedo. E Cadfael lembrou-se de Elave, que devia ter ouvido, à distância no pátio, os sons que anunciavam a chegada do seu juiz. Cadfael só tinha visto Roger de Clinton duas vezes antes, por isso não tinha forma de saber em que estado de espírito e com que humor comparecera nesta causa controversa. Mas pelo menos tinha vindo em pessoa e parecia totalmente capaz de tomar a responsabilidade pela sua diocese, bem como pela saúde espiritual de todos aqueles que parecessem trespassar a sua autoridade.
Entretanto, a tarefa imediata de Cadfael era encontrar Fortunata. Aproximou-se do guarda do portão para perguntar:
— Onde posso encontrar a filha de Girard de Lythwood? Em casa disseram-me que ela estaria aqui.
— Conheço a rapariga — disse o guarda assentindo. — Mas hoje ainda não a vi.
— Ela disse em casa que vinha para cá. Logo a seguir ao almoço, foi o que me disse a mãe.
— Não a vi nem falei com ela, e estive a maior parte do tempo aqui, desde o meio-dia. Tive uma tarefa ou outra a fazer, mas foi só questão de poucos minutos fora daqui. Embora ela pudesse ter entrado nessa altura. Mas precisava de ter falado com alguém para entrar. Acho que teria esperado aqui ao portão à espera de que eu chegasse.
Cadfael também pensaria assim. Mas, se Fortunata tivesse visto o prior enquanto esperava, ou Anselmo, ou Denis, teria certamente pedido licença para entrar. Cadfael lembrou-se do irmão Denis, cujas obrigações o mantinham a maior parte do tempo à volta do pátio, de onde podia ver o portão, mas Denis não tinha visto Fortunata. Ela já conhecia o pequeno reino de Anselmo na ala norte, podia ter ido para lá, à procura de alguém conhecido. Mas Anselmo abanou a cabeça decididamente, não, não tinha estado ali. Não só não se encontrava naquele momento dentro do recinto como parecia não ter lá estado nesse dia.
As badaladas das Vésperas surpreenderam Cadfael, hesitando sobre o que devia fazer, e lembraram-no severamente das obrigações da vocação que havia escolhido livremente, por vezes repreendendo-se a si próprio por as negligenciar. Existem outras maneiras de abordar um problema sem ser através da acção beligerante. A mente e a vontade também têm algo a dizer no combate por resolver. Cadfael dirigiu-se para o claustro sul e juntou-se à procissão de irmãos, entrando na penumbra da fria sala do coro. Rezou piedosamente por Aldwin, morto e enterrado na sua piedosa e lastimável imperfeição humana, por William de Lythwood, regressado a casa, consolado e confessado para descansar no seu lugar eterno, e por todos os que são atormentados pela suspeita, dúvida ou receio, tanto os culpados como os inocentes, pois quais deles precisariam mais de ajuda? Estivesse ou não a inventar uma história fantástica à volta de um livro, que talvez nem tivesse existido, ou perante um grande perigo para quem soubesse demasiado, um terrível crime não deixara de acontecer, alguém tinha tirado a triste e inocente vida ao empregado Aldwin, de quem o único homem que tinha ofendido afirmara honestamente: “Tudo quanto ele disse que eu tinha dito, eu disse-o de facto.” Mas mais alguém, a quem ele não tinha feito nada, tinha-lhe enterrado um punhal entre as costelas, pelas costas, e tinha-o assassinado.
Tendo concluído a oração das Vésperas, Cadfael saiu consolado mas não menos preocupado com as suas responsabilidades. Era ainda totalmente de dia, mas já com o brilho próprio do fim de tarde e a quietude do ar que parecia desvanecer todas as cores, confundindo-as num tom suave e diáfano. Ainda havia mais uma pergunta a fazer, antes de ir mais longe. Era possível que Fortunata, duvidando cada vez mais que a deixassem ver Elave tão cedo depois da última visita, tivesse simplesmente pedido a alguém que estivesse junto do portão, durante a breve ausência do guarda, para levar uma mensagem ao prisioneiro, nada que um homem pudesse objectar, apenas algo para que Elave lembrasse que os amigos pensavam nele e para lhe pedir que mantivesse a coragem. Podia não significar nada o facto de Cadfael não a ter encontrado no caminho, podia ter ido à cidade e ter-se ocupado com qualquer outra coisa antes de regressar a casa. Pelo menos iria falar com o rapaz, saber se não tinha razão para estar ansioso.
Tirou a chave do sítio onde estava pendurada no átrio e entrou na cela. Elave desviou-se no lugar em que estava sentado à secretária, exibindo uma expressão carregada, pois estivera a cerrar os olhos e a franzir as sobrancelhas naquela penumbra, sobre um dos sermões mais humanos e devotados de Agostinho. A aparente nuvem desapareceu mal deixou de estar debruçado sobre a minúscula letra do texto. Outras pessoas receavam por ele, mas a Cadfael parecia-lhe que o próprio Elave não tinha qualquer receio e nunca parecera tão calmo naquele recolhimento total.
— Há qualquer coisa do monge em si — disse Cadfael, dando voz aos seus pensamentos. — Ainda acaba com um capucho na cabeça.
— Nunca! — disse Elave resoluto, rindo-se perante a ideia.
— Bem, talvez fosse um desperdício, vendo as ideias que tem para o futuro. Mas tem espírito para isso. Viajar pelo mundo ou estar isolado numa cela, nada perturba o seu equilíbrio. Tanto melhor para si! Alguém se lembrou de lhe dizer que o bispo já chegou? Em pessoa! É uma honra que lhe prestam, pois em Coventry há mais problemas do que aqui e ele precisa de estar atento à igreja de lá, por isso o tempo dispensado à sua causa é um sinal da sua importância. Ele não se deve demorar por aqui, parece ser um homem de decisões rápidas.
— Ouvi a azáfama de uma chegada — disse Elave. — Ouvi os cascos dos cavalos. Mas não sabia quem era. Então em breve serei chamado? Perante o olhar surpreso de Cadfael, Elave sorriu, embora com uma expressão grave. — Estou pronto. Até quero ser chamado. Aproveitei bem o tempo que aqui estive. Descobri que até Agostinho foi modificando as suas ideias ao longo dos anos. Se pegar num dos seus primeiros escritos, dizem exactamente o contrário do que ele afirmava na velhice. Isso e uma série de mudanças pelo caminho. Cadfael, alguma vez pensou que desperdício seria queimar um homem pelas ideias que tinha aos vinte anos, quando o que poderia pensar e escrever aos quarenta viria a ser considerado um dos textos mais abençoados e sagrados?
— Isso é o tipo de argumentos a que a maior parte dos homens não dá ouvidos — disse Cadfael —, senão hesitavam em tirar qualquer vida. Hoje ainda não recebeu visitas, pois não?
— Só Anselmo. Porquê?
— Nem recebeu nenhuma mensagem de Fortunata?
— Não. Porquê? — repetiu Elave alertado perante a expressão de Cadfael. — Está tudo bem com ela, espero?
— Também assim espero — concordou Cadfael —, deve estar tudo bem. Ela disse à família que vinha à abadia pedir se a deixavam vê-lo outra vez ou saber se havia novidades sobre o seu caso, foi só por isso que perguntei. Mas ninguém a viu. Ela não esteve cá.
— E isso deixa-o preocupado — disse Elave imediatamente. — Por que o preocupa? Em que está a pensar? Há algo que a ameace? Receia por ela?
— Digamos que ficava satisfeito de ouvir que ela está em casa, a salvo. Como certamente está. Receio, não! Mas é preciso não esquecer que anda um assassino à solta perto daquela casa e eu preferia saber que ela estava em casa, acompanhada, e não sozinha nalgum lado.
Mas, por hoje, deixei Hugh Beringar a vigiar de perto a casa e todos os que entram e saem, por isso esteja descansado.
Nenhum deles prestara atenção ao som de passos do lado de fora, o som das breves passadas atravessando o pátio, a rápida troca de palavras, curta e em tom baixo, e a seguir os leves passos aproximando-se num andar impetuoso. Ficaram totalmente surpreendidos quando a porta da cela foi totalmente aberta, mostrando a luz do entardecer perante a entrada abrupta de Hugh Beringar.
— Disseram-me que o encontraria aqui — disse ele, apressadamente e sem fôlego. — Dizem que a rapariga não está aqui nem veio cá desde ontem. É verdade?
— Ainda não regressou a casa? — perguntou Cadfael, aterrorizado.
— Nem ela nem o outro. A senhora está a começar a ficar preocupada. Achei melhor vir até cá e levá-la eu próprio para casa, se ela ainda cá estivesse, mas agora descubro que ela nem sequer cá esteve e sei que não está em casa, pois acabo de vir de lá. Saiu há tanto tempo e não está onde disse que ia!
Elave agarrou o braço de Cadfael, abanando-o veemente, confuso e alarmado.
— O outro? Qual outro? Que se passa? Quer dizer que ela pode estar em perigo?
Cadfael afastou-o e perguntou a Hugh:
— Mandou alguém à oficina?
— Ainda não! Ela pode ter lá estado, e em segurança. Vou lá agora, eu próprio. Venha comigo! Depois trato de justificar a sua saída perante o abade.
— Vou com certeza! — disse Cadfael sem qualquer dúvida e começou a dirigir-se para a porta, mas Elave agarrou-o desesperadamente sem o deixar largar.
— Tem de me dizer o que se passa! Qual outro? Que homem? Quem a pode ameaçar? A oficina... de quem? — E, no momento em que soube, proferiu o nome a gemer e em voz alta: — Jevan! O livro... que você achava que estava lá dentro... Acha que foi ele que...? — Estava quase a sair pela porta, que se encontrava aberta, mas Hugh impediu-o, agarrando-se à ombreira da porta para lhe fazer frente.
— Deixe-me ir! Tenho de ir! Deixe-me ir ter com ela!
— Não seja tonto! — disse Hugh asperamente. — Não torne as coisas ainda piores para si. Deixe isto connosco, que mais pode você fazer do que nós? Agora, que o bispo já cá está, trate de pensar em si e confie que nós tratamos deste assunto. — Desviou-se um pouco, ordenando a Cadfael, com um aceno de cabeça: — Vamos, feche a porta à chave! — E empurrou Elave, que lutava nos seus braços, quase fazendo com que este caísse para trás, recuando até à cama. Na altura em que conseguiu avançar de novo, como um felino, Hugh já estava do lado de fora da porta, Cadfael colocara a chave na fechadura e Elave esbarrou contra a madeira com um grito de raiva e desespero, continuando prisioneiro.
Ouviram-no bater na porta com toda a força e gritar para o deixarem sair enquanto se dirigiam para o portão. Continuariam, certamente, a ouvi-lo pelo claustro e na hospedaria, pois todas as janelas se encontravam abertas.
— Mandei selar um cavalo para si — disse Hugh — mal soube que ela não estava cá. Não imagino onde mais possa ter ido, e já que ele voltou para lá... Será que ela andou à procura? Será que ele descobriu?
O guarda do portão aceitara as ordens do xerife como se fossem do próprio abade e trazia do estábulo um cavalo já com a sela posta, num rápido trote.
— Atravessamos a cidade, é mais rápido que dar a volta.
As fortes pancadas na porta da cela tinham cessado. Elave estava em silêncio, mas o silêncio era ainda mais desesperado que a fúria anterior. Elave reuniu todas as forças e calculou o tempo.
— Desgraçado de quem abrir aquela porta esta noite — disse Cadfael ofegante, segurando as rédeas. — Dentro da próxima hora vai aparecer alguém para lhe levar o jantar.
— Por essa altura, já você estará de volta com boas notícias, se Deus quiser — disse Hugh, ajustando-se na cela e tomando o caminho de Foregate.
Entre as badaladas que anunciavam o horário dos ofícios, Elave calculava exactamente o tempo através da luz, conseguia perceber o nascer de cada novo dia, após todos os que passara naquela pequena cela. Soube, logo que conseguiu respirar e ficar em silêncio, que não tardaria muito a aparecer o noviço que lhe trazia o seu prato e a caneca de madeira, sem esperar nada de perturbador a não ser a cortês recepção a que estava acostumado, de um prisioneiro profundamente resignado a ter paciência e suficientemente justo para não deitar as culpas sobre um jovem irmão que apenas cumpria as ordens que lhe haviam dado. Um jovem grande e robusto tinha sido escolhido para essa tarefa, com uma expressão ingénua e um jeito amigável. Elave não lhe desejava e não lhe faria mal se assim fosse possível, mas quem quer que estivesse entre ele e o caminho para alcançar Fortunata precisava de se acautelar.
A própria disposição da cela era vantajosa. A janela e a secretária, colocada por debaixo desta, estavam situadas de tal forma que, ao abrir-se a porta, não podiam em parte ser vistas até se fechar de novo a porta, e o local mais provável para o noviço colocar a bandeja era aos pés da cama. Visita após visita deixara de estar alerta, sem nunca ter tido motivos para o contrário, e costumava entrar despreocupadamente, empurrando a porta com o cotovelo e o ombro e avançar até à cama para pousar o seu fardo. Só depois costumava fechar a porta, que deixava então de estar totalmente aberta, e passava esse tempo da manhã ou da tarde a fazer companhia a Elave até que este terminasse a refeição.
Elave desistiu daquela indignidade de apelos a que ninguém daria atenção nem responderia e tentou acalmar-se enquanto esperava pelos passos a que se tinha habituado. Aquele noviço, cujo nome desconhecia, tinha a passada de um gigante e uma figura robusta, por isso o barulho das sandálias sobre o chão de pedra mais parecia o som de umas bofetadas. Aqueles passos eram inconfundíveis, mesmo que a estreita janela não lhe permitisse ver o aro de cabelo castanho da sua tonsura a passar antes de virar a esquina e chegar junto da porta. E ali tinha de segurar a bandeja só com uma mão, enquanto com a outra rodava a chave na fechadura. Mais do que tempo para Elave se esconder imóvel atrás da porta, à espera de que o jovem entrasse, com o à-vontade do costume, e avançasse até à cama.
A reduzida dimensão daquele espaço fez com que Elave colidisse de lado com o jovem, empurrando-o contra a parede oposta, mas mesmo assim o prisioneiro conseguiu chegar à porta, sair para o claustro e desatar a correr como uma lebre para o portão, antes que alguém se apercebesse do que se passava. Atrás dele vinha o noviço, com as suas longas pernas e uma extraordinária velocidade, lançando um grito que alertou o guarda do portão e fez surgir alguns irmãos, empregados e convidados como se fosse um enxame de abelhas, vindos da hospedaria, do claustro e do pátio dos estábulos.
Os mais rápidos a compreender a situação e mais voluntariosos lançaram-se atrás de Elave. Os menos activos aproximavam-se para observar. Parecia que o primeiro grito de alarme tinha chegado também aos aposentos do abade, fazendo com que Radulfus e o seu hóspede saíssem, afrontados na sua dignidade, para conter aquela agitação.
Desde o início, existiam poucas perspectivas de sucesso. Porém, quando quatro ou cinco irmãos, perfeitamente escandalizados, correram para impedir o avanço de Elave e tentar cercá-lo, este conseguiu empurrar todo o grupo quase até ao portão, antes de o terem finalmente agarrado, com tanta força que o conseguiram imobilizar. Contorcendo-se e esbracejando, foi forçado a ficar de joelhos e caiu para frente, com a cara no chão, tentando respirar.
Por cima dele soou uma voz, num tom calmo:
— É este o homem de que me falou?
— Sim, é ele — disse o abade.
— E até agora não tinha dado preocupações, nem ameaçado ninguém, nem feito qualquer tentativa para escapar?
— Nada — disse Radulfus —, e não estava à espera de que o fizesse.
— Então deve ter havido uma razão — disse aquela voz calma.
— Não será melhor vermos qual terá sido a razão? Dirigindo-se aos perseguidores, que continuavam a agarrar Elave enquanto este continuava no chão ofegante: — Deixem-no levantar-se.
Elave fincou as mãos nas pedras e colocou-se novamente de joelhos, sacudiu fortemente a cabeça aturdida e viu à sua frente um elegante par de botas de montar, encimadas por um traje totalmente negro e por um rosto forte, quadrado, com um fino nariz aquilino e olhos cinzentos, que olhavam fixos e imperturbáveis o cabelo desgrenhado e o rosto bronzeado daquele famoso herege. Observaram-se um ao outro com grande interesse, juiz e acusado, medindo todo um campo de fé e pecado, justiça e injustiça, no fim do qual, com todos os seus pântanos e ravinas, teriam de se encontrar.
— Você é Elave? — disse o bispo num tom de voz calmo. — Elave, por que fugiu agora?
— Não estava a fugir daqui, ia atrás de uma pessoa! — disse Elave, tentando recuperar o fôlego. — Meu senhor, uma rapariga corre grande perigo se tudo for como tanto receio. Só agora soube disso. E fui eu que a pus em perigo! Só peço que me deixem ir à procura dela e trazê-la a salvo, depois volto para cá, juro. Meu senhor, eu amo-a, quero casar com ela... Se ela corre perigo, tenho de ir socorrê-la.
— Conseguira recuperar o fôlego, avançara e agarrara as saias do traje do bispo. Sentiu uma crescente esperança incrédula, pois o bispo não o repeliu nem tentou evitá-lo. — Meu senhor, meu senhor, o xerife foi tentar encontrá-la, depois ele dir-lhe-á que o que estou a dizer é verdade. Mas ela é minha, faz parte de mim e eu dela, tenho de ir à sua procura. Meu senhor, aceite a minha palavra, a minha palavra mais sagrada, a minha promessa de que voltarei para enfrentar o meu julgamento, qualquer que seja, se apenas me libertar esta noite durante umas horas.
O abade Radulfus recuou dois passos perante este encontro, deliberadamente, com uma tal sugestão de comando que todos os que se encontravam à volta se afastaram também, em silêncio, embora continuando a olhar atentamente. Roger de Clinton, que em escassos momentos tomava todas as suas decisões, estendeu uma mão para levantar Elave pelo braço e, movendo-se entre este e o portão, disse ao guarda com um gesto autoritário:
— Deixem-no sair!
A oficina onde Jevan de Lythwood tratava das suas peles de ovelha ficava bastante mais além das últimas casas do subúrbio de Frankwell, solitária sobre a margem direita do rio, no começo de um prado encimado por uma fileira de árvores e arbustos ao cimo da colina. Ali, o terreno era em declive e a água, mesmo no nível de Verão, corria profunda, com uma corrente rápida e forte, ideal para o trabalho de Jevan. O fabrico de pergaminhos exigia um imprescindível fornecimento de água, pois os primeiros dias do longo processo decorriam dentro de água, e este local, onde o Severn corria rápido, providenciava um ancoradouro perfeito para as caixas de madeira abertas cobertas de rede, nas quais eram colocadas as peles em bruto, para que a água percorresse livremente toda a sua extensão, de dia e de noite, até estarem prontas a ser mergulhadas na solução de água e cal, na qual permaneciam durante quinze dias antes de serem raspadas para retirar todos os pêlos restantes, seguidos de outros quinze dias para completar o longo processo de branqueamento. Fortunata conhecia bem aquele processo, através do qual se produziam as finas peles de tom cremoso de que o seu tio tanto se orgulhava. Mas não perdeu tempo a ver as caixas mergulhadas no rio. Ninguém esconderia ali nada de valor, não importa quantas camadas de oleado fossem colocadas à volta para proteger. Um leve odor a carne, provindo das peles mergulhadas, ofendeu-lhe as narinas enquanto ali passava, mas a corrente era suficientemente rápida para dispersar qualquer cheiro mais forte. Dentro da oficina, o cheiro a pele misturava-se com o intenso odor dos tanques de cal e com o cheiro mais aceitável das peles curtidas.
Entrou, levando consigo a chave, e fechou a porta. Lá dentro estava escuro e o ambiente era pesado, pois a oficina tinha estado fechada desde manhã, mas não se atreveu a abrir as portadas, que deixariam entrar a luz directamente sobre a grande mesa de Jevan, onde este limpava, raspava e alisava as peles com pedra-pomes. Tudo teria de parecer fechado e deserto. Não havia outras casas ali perto, nem nenhum caminho que ali passasse. Agora ela tinha tempo suficiente e não precisava de se apressar. O que já não estava em casa devia estar ali. Ele não tinha outro local tão privado e que só a ele pertencia.
Fortunata conhecia a disposição do local, sabia onde estavam os tanques de cal, um para o primeiro tratamento das peles, depois de serem retiradas do rio, outro para o segundo tratamento, depois de ambos os lados terem sido raspados, já sem vestígios de pêlos e de carne. O enxaguamento final era feito no rio, antes de as peles serem colocadas numa moldura para secarem ao sol e novamente sujeitas a repetidas e árduas limpezas com pedra-pomes e água. Jevan tinha trazido para dentro apenas a moldura que utilizara de manhã; a pele que lá se encontrava esticada era macia e quente ao tacto.
Esperou alguns minutos para que os seus olhos se habituassem à penumbra. Uns raios de luz escapavam-se pelas juntas das portadas. O telhado era espesso e coberto de palha, cedendo um pouco entre os barrotes de suporte, e o ambiente era pesado e sufocante.
O local de trabalho de Jevan estava sempre meticulosamente arrumado mas também completamente cheio, com todas as ferramentas do ofício, os tanques de cal, as redes de reserva para as caixas que eram mergulhadas no rio, as pilhas de peles em vários estados de manufacturação, as molduras de secagem e as prateleiras com as facas, pedra-pomes e trapos para a raspagem e limpeza. Havia também uma pequena lamparina a óleo, para o caso de ter de acabar algum trabalho ao entardecer, e ainda uma caixa com pederneira e pavio, mechas e gravetos para iluminação. Fortunata começou a sua busca à luz dos raios que entravam por entre as portadas. Não precisaria de procurar nos tanques de cal, mas estavam colocados de tal maneira que tapavam a luz num dos lados da oficina e atrás deles ficava a longa prateleira com pilhas de peles em vários estados de acabamento. Era fácil guardar ali uma caixa relativamente pequena, escondida entre as pontas por cortar que a ocultariam. Levou bastante tempo a procurar entre as peles, pois tinham de ser colocadas novamente numa ordem escrupulosa para serem encontradas como ela as encontrara, ainda para mais se ela estivesse enganada e apenas lá encontrasse a caixa. Mas era demasiado tarde para acreditar nisso. Se fosse verdade, para que tê-la escondido, para quê tê-la tirado do seu sítio no baú e deixar o breviário destituído da sua esplêndida caixa?
O pó e a penugem clara dançavam aos raios da luz do entardecer e irritavam-lhe a garganta e as narinas enquanto levantava cada uma das peles. Uma pilha foi gradualmente colocada no seu lugar, a segunda começou a ser investigada, peça a peça, mas nada havia ali a não ser peles de ovelha. Quando terminou, a luz estava a desaparecer, pois o Sol dirigia-se para oeste e os raios de luz deixavam de entrar por entre as portadas. Precisava da lamparina para poder ver os cantos mais escuros da oficina, onde dois ou três baús de madeira guardavam uma miscelânea de peles, sobras que eram aproveitadas para pequenos usos e maços de pergaminho prontos a serem utilizados, desde os grandes, de duas folhas, aos pequenos, estreitos e com dezasseis folhas utilizados para as pequenas gramáticas ou para textos escolares. Ela sabia bem que Jevan não costumava fechá-los à chave. A oficina em si ficava trancada quando ele saía, e os pergaminhos não eram uma tentação comum para o roubo. Se agora um dos baús estivesse fechado, seria um facto significativo.
Levou-lhe um certo tempo para que os gravetos se acendessem, produzindo uma pequena chama, suficiente para acender o pavio da lamparina. Levou-a para junto dos baús e colocou-a sobre a tampa do baú que se encontrava no meio, para iluminar o primeiro que tencionava abrir. Se não estivesse lá nada de estranho, não haveria mais onde procurar, as prateleiras das ferramentas estavam à vista, a superfície da sólida mesa estava vazia, excepto a chave que ela lá colocara.
Era a vez de abrir o terceiro baú, no qual eram guardadas as sobras de pele e os bocados de pergaminho, mas também ali tudo estava onde devia estar. Tinha procurado por todo o lado e não tinha encontrado nada.
Estava de joelhos sobre o chão de terra batida, baixando a tampa do baú, quando ouviu a porta começar a abrir. O leve chiar das dobradiças fê-la gelar, permanecendo imóvel e sustendo a respiração. A seguir, muito devagar, fechou a tampa do baú.
— Não encontrou nada — disse a voz de Jevan atrás dela, num tom de voz baixo e calmo. — Nem vai encontrar nada. Não há nada para encontrar!
Fortunata fincou as mãos sobre o baú diante do qual estava ajoelhada e levantou-se devagar, antes de se virar para o olhar. À luz amarelada da lamparina, viu o rosto dele com os ossos salientes e sombras profundas, perfeitamente imóveis, sem nada revelarem. E, no entanto, era demasiado tarde para tentar disfarçar, ambos já se tinham revelado, ela por qualquer sinal inadvertido que deixara em casa e que o alarmara, e por aquela busca, ele por a ter seguido até ali. Demasiado tarde para fingir que não havia nada a esconder, nada a que responder, nada que não tivesse sido calculado. Demasiado tarde para tentar reconstruir a simples confiança que sempre tivera nele. Ele sabia que ela perdera essa confiança, tal como ela, sem quaisquer dúvidas, tinha razão para a ter perdido.
Sentou-se sobre o baú que acabara de fechar e colocou a lamparina, cuidadosamente afastada, no baú ao lado. Como o silêncio parecia ainda mais difícil de suportar do que as palavras, disse simplesmente:
— Estava à procura da caixa. Vi que não estava no lugar dela.
— Eu sei — disse ele. — Vi os sinais que lá deixou. Pensei que me tinha dado a caixa. Continuo a ter de dar satisfações sobre o que faço com ela?
— Tive curiosidade — disse ela. — Ia usá-la para o melhor dos seus livros. Pensei que, de um dia para o outro, podia ter deixado de ser o seu favorito. Mas talvez tenha encontrado outro ainda melhor — disse ela deliberadamente — para ocupar o seu lugar.
Jevan sacudiu a cabeça, avançando na oficina os poucos passos que o fizeram alcançar o canto da mesa onde ela tinha pousado a chave. Foi nesse momento que Fortunata teve a certeza e algo murchou nas lembranças que tinha dele, forçando-a, como a uma pequena planta, numa pressa urgente para alcançar a maturidade. A lamparina mostrava o rosto dele, com um sorriso forçado, que não era mais do que um esgar de dor.
— Não a compreendo — disse ele. — Por que teve de procurar em segredo? Não me podia ter perguntado o que queria saber?
Furtivamente, a mão dele agarrou a chave. Recuou nas sombras até chegar perto da porta e, sem deixar de olhar para ela, tacteou até encontrar a fechadura e trancou a porta.
Fortunata pensou que devia ficar com receio, mas tudo o que sentia era uma profunda tristeza que lhe cortava o coração. Ouviu a sua própria voz fazer a pergunta:
— Aldwin também andou secretamente à procura? Era isso que o afligia?
Jevan encostou os ombros contra a porta e continuou a olhar para ela com uma teimosia paciente, como se estivesse a lidar com alguém que de repente tivesse ficado idiota, mas o seu sorriso consciente e paciente permaneceu igual, como uma convulsão de agonia.
— Está a falar por enigmas — disse ele. — Que tem isto a ver com Aldwin? Não imagino que história possa ter metido na cabeça, mas é pura ilusão. Se eu decidisse mostrar a um amigo que saberia apreciar a preciosidade que me deu, isso levá-la-ia a pensar que de alguma forma desprezei ou não lhe dei o devido uso?
— Oh, não! — disse Fortunata num tom de total desespero. — Essa desculpa não serve! Hoje não foi a mais lado nenhum a não ser aqui. Se houvesse mais alguma coisa, teria levado também o livro para mostrar, tinha dito o que ia fazer. E não me teria seguido até aqui! Foi um erro! Devia ter esperado. Não encontrei nada. Mas agora, ao vê-lo aqui, sei que há algo escondido. Se não, por que havia de se preocupar com o que eu fiz? — Um súbito acesso de raiva assolou-a naquela tentativa desesperada, que só serviu para a rebaixar. — Por que continua a fingir? — gritou ela. — Para quê? Se soubesse tinha-lhe dado eu o livro ou aceitado o valor que desse por ele, se era isso que queria. Mas agora há um assassino, um assassino entre nós, e isso não podemos esquecer ou fingir que não existe. Você sabe isso tão bem quanto eu. Por que não falamos abertamente? Não vamos ficar aqui eternamente, sem andar nem para trás nem para a frente. Diga-me, que vamos fazer agora?
Mas essa era uma resposta que nem ele nem ela sabiam dar. As mãos dela, tal como as dele, estavam cerradas, estavam ambos suspensos naquela expectativa e nenhum dos dois conseguia cortar as amarras que os impediam. Ele teria de matar, ela teria de denunciar, para poderem estar de novo livres, mas nenhum deles o conseguia fazer e no final nenhum deles conseguiria evitá-lo. Não havia resposta. Jevan suspirou profundamente e emitiu algo como um gemido.
— Estava a falar a sério? Poderia perdoar-me por a ter roubado?
— Nem precisava de pensar duas vezes. Passo muito bem sem aquilo que me tirou. Mas o que tirou a Aldwin não pode ser substituído e ninguém, a não ser o próprio Aldwin, teria o direito de perdoar isso.
— Como sabe — perguntou ele com uma súbita ferocidade — que alguma vez fiz mal a Aldwin?
— Porque, se não o tivesse feito, tê-lo-ia negado agora, neste instante, para desafiar aquilo que eu julgo saber. Oh! porquê, porquê?
Se fosse só por isso, podia calar-me. Faria isso por si! Mas que terá feito Aldwin, para morrer daquela maneira?
— Abriu a caixa — disse Jevan impassível — e viu o que estava lá dentro. Mais ninguém sabia. Quando a abrissem diante de todos, não ficaria calado. Aí tem! Um tolo curioso que se atravessou no meu caminho, que me podia ter traído, e eu ficava sem ela... perdia-a para o resto da vida. Foi a caixa, a caixa é que me encantou. Mas ele antecipou-se e viu o que eu depois também vi... e cobiçou-a!
Longos e pesados silêncios tinham interrompido a fúria lenta e ameaçadora do seu discurso, como se de vez em quando, por momentos, se esquecesse de onde estava e com quem estava a falar. Lá fora, a luz desaparecia lentamente. Dentro, a luz da lamparina começara a diminuir. A Fortunata, parecia-lhe que estavam ali há muito tempo.
— Tinha de o fazer antes que Girard voltasse para casa. Tirei-o nessa mesma noite e coloquei o que possuía no seu lugar. Nunca quis enganá-la... paguei pelo que tirei... Mas havia Aldwin. Desde quando é que ele guardava para si próprio tudo o que sabia? E o meu irmão vinha a caminho de casa...
Mais um silêncio assombrado, durante o qual se desencostou da porta, movendo-se incessantemente ao longo da oficina, passando por onde ela estava sentada, quase esquecida, imóvel e em silêncio.
— Quando ele foi a correr para ir ter com Elave, naquele dia, eu estava quase decidido. Era a minha palavra contra a dele! Um risco... mas fui-me habituando à ideia. Até neste momento... não sei se compreende... é a sua palavra contra a minha, se quiser! — Disse isto sem qualquer ênfase, de um modo quase indiferente. Mas depois lembrou-se, ela constituía um perigo, tal como o outro. As suas passadas irrequietas levaram-no até junto da mesa. Com a outra mão, a que não segurava a chave, percorreu a prateleira das facas, num gesto ausente de gosto por uma profissão que lhe agradara e na qual se destacara.
— No fim foi tudo uma questão de puro acaso. Acredita? O facto de eu ter a faca... Não era mentira, saí para vir trabalhar para aqui, naquela tarde. Tinha estado a usar uma faca... esta faca...
O tempo e o silêncio ficaram suspensos durante um longo momento, enquanto ele alcançava a faca e a tirava da bainha de cabedal, percorrendo os longos dedos pela lâmina fina e afiada.
— Tinha a bainha presa no cinto. Esqueci-me de a tirar quando fechei a oficina para ir para casa. Pensei em atravessar a cidade para assistir às Vésperas, em Holy Cross, já que era o dia da trasladação de Santa Winifred...
Virou-se para a olhar, sombria e intensamente, ela continuava sentada, esguia e imóvel sobre o baú ao lado da lamparina, o olhar sério e fixo sobre Jevan, sem pestanejar. Só por um instante a viu baixar os olhos ao ver a faca que tinha na mão. Virou a faca de modo a que luz incidisse sobre a lâmina. Como seria fácil agora acabar com ela, levar o prémio pelo qual tinha matado e dirigir-se para oeste, como tantos e tantos homens perseguidos haviam feito antes dele. Gales não ficava longe, os fugitivos cruzavam a fronteira em ambos os sentidos, consoante a necessidade. Mas era preciso mais do que a mera oportunidade. O tempo continuava a passar e aquela situação irreversível parecia prolongar-se para sempre, numa espécie de purgatório.
— ... Cheguei tarde, estavam todos lá dentro, ouvi os cânticos. Depois ele saiu pela pequena porta que dá para a sala do padre! Se ele não tivesse aparecido, eu teria entrado na igreja e não teria havido nenhuma morte. Acredita nisto?
Mais uma vez pensou profundamente nela, como a sobrinha de quem tanto gostara. E desta vez queria uma resposta, havia raiva no vibrar da sua voz.
— Sim — disse ela —, eu acredito.
— Mas ele apareceu. E, ao ver que ele se dirigia à cidade, para voltar para casa, mudei de ideias. Acontece de um momento para o outro e tudo se modifica. Encontrei-o e segui com ele. Não havia ninguém que nos visse, estavam todos na igreja. Então lembrei-me da faca... desta faca! Era tudo tão simples... nada impossível... Tinha acabado de se confessar e de cumprir a penitência e estava tão satisfeito quanto alguma vez o tinha visto. No princípio da descida para o rio, apunhalei-o e arrastei-o por entre os arbustos, até cá abaixo, onde estava o barco, por debaixo da ponte. Nessa altura, ainda era quase totalmente de dia, escondi-o lá até ao anoitecer. Assim não restava ninguém que me pudesse trair.
— Excepto você próprio — disse ela —, e agora eu.
— E você não vai fazer nada — disse Jevan. — Não vai... ou eu mato-a ...
Desta vez o silêncio fora ainda mais longo e mais intenso e o ambiente fechado e pesado da oficina perturbava os sentidos de Fortunata. Era como se estivessem trancados para sempre num mundo fechado, onde mais ninguém poderia entrar, para aliviar aquela tensão e fazê-los moverem-se de novo, agirem de alguma forma, avançarem ou recuarem. Jevan começou novamente a andar de um lado para o outro, virando-se para percorrer o mesmo trajecto após algumas passadas, como se uma dor intensa o assolasse. Assim continuou durante algum tempo, até que subitamente parou e, baixando com um longo suspiro as mãos que continuavam a segurar a faca e a chave, prosseguiu como se apenas se tivesse passado um segundo desde a última vez que falara:
— ... e no entanto, no final, um de nós terá de desistir. Ninguém mais nos vai tirar desta situação.
Mal tinha proferido estas palavras quando um punho bateu fortemente na porta e a voz de Hugh Beringar soou alta e animada:
— Está aí dentro, mestre Jevan? Vi a luz por entre as portadas. Acabo de entregar boas notícias à sua família, mas você não estava lá para ouvir. Abra a porta para eu lhe contar agora!
Durante um breve momento, chocado, Jevan ficou imóvel. Ela sentiu-o gelar, mas aquela rigidez não durou mais do que um pestanejar de olhos, contorcendo-se ao fazer um esforço para sair daquele torpor, como se tivesse arcado com o peso do mundo inteiro até conseguir responder num tom de voz não se sabe vindo de onde, perfeitamente casual.
— Só um momento! Estou mesmo a acabar.
Alcançara a porta e girava a chave tão suave e silenciosamente quanto os movimentos de um gato. Ela tinha-se posto de pé, mas não saíra do lugar, sem saber o que ele iria fazer, mas com uma sensação que a impediu de se mover. Ele agarrou-a pelo braço com a mão esquerda, dando-lhe a seguir o braço, mantendo-a próximo dele, tão próximo como um amante ou um pai afectuoso. Não foi dita qualquer palavra de ameaça ou de súplica nem feito qualquer pedido de silêncio ou submissão. Talvez ele já tivesse a certeza de que ela assim faria, embora ela talvez não o soubesse. Mas ela viu-o virar a faca que segurava na mão direita, de forma a que a lâmina ficasse para trás, encostada ao braço e escondida pela manga da camisa. Os seus longos dedos moviam-se habilmente e seguravam firmemente o cabo da faca. Arrastou-a com ele até à porta e ela acompanhou-o sem resistir. Com a mão que segurava a faca abriu totalmente a porta e conduziu-a, junto dele, para o verde prado naquele suave fim de tarde sem nuvens, que, de dentro da oficina, parecera totalmente escuro.
— As boas notícias são sempre bem-vindas — disse, encarando Hugh, a alguns metros de distância, com uma expressão aberta e despreocupada, tendo, através da força de vontade, perdido a breve e gelada palidez de rosto. — Em breve iria saber do que se trata... íamos agora para casa. A minha sobrinha esteve a varrer e a limpar a minha oficina. Não precisava de ter desviado o seu caminho para me dar as boas notícias, meu senhor, mas foi muito simpático da sua parte.
— Não desviei o caminho — disse Hugh. — Estávamos perto e o seu irmão disse que o encontraríamos aqui. Aquestão é que libertei o vosso pastor. Conan pode ser mentiroso, mas não é um assassino. Por fim, acabámos por saber tudo quanto fez naquele dia e agora está de volta a casa, inocente e sem qualquer culpa. Para além de eu lhe dizer isto, já deve ter perguntado a si próprio, depois de todas as mentiras que ele disse, se ele estaria assim tão metido neste assunto.
— Então isso significa — perguntou Jevan calmamente — que já encontrou o verdadeiro assassino?
— Ainda não — disse Hugh com uma expressão ao mesmo tempo confiante e decepcionada —, embora o cerco esteja cada vez mais apertado. Vai ficar contente de ver o seu homem de novo em casa. Ele está radiante, isso digo-lhe eu. Suponho que a ausência dele afecta mais a parte do negócio do seu irmão do que a sua, mas, segundo Conan, às vezes também já o tem ajudado a tratar das peles. — Hugh avançara até à porta da oficina e espreitava curiosamente para o local pouco iluminado pela pequena lamparina, que continuava acesa sobre a tampa do baú. Aluz amarelada esvanecia-se na luz que entrava pela porta. Os olhos de Hugh pesquisavam, com o interesse inquisidor de um leigo, a grande mesa debaixo das portadas fechadas, os baús e os tanques de cal, alcançando por fim a longa prateleira onde se encontravam as facas, arrumadas ao longo da sua extensão, facas para cortar, para raspar e para trabalhar as peles.
E uma das bainhas estava vazia.
Cadfael, um pouco distanciado junto dos cavalos, entre a fileira de árvores que se curvavam sobre o rio à sua esquerda e a colina por onde se estendia o prado, tinha uma perfeita visão do exterior da oficina, do prado verdejante e das três figuras reunidas no exterior, junto da porta aberta. O Sol estava baixo, mas ainda não se tinha escondido por detrás dos arbustos. A luz que caía para o ocidente revelava os pormenores com um brilho dourado e reflectia todos os pontos em que incidia. Cadfael olhava atentamente, pois daquela posição recuada poderia ver coisas que escapassem a Hugh, que estava perto. Não gostou da forma como Jevan agarrava o braço de Fortunata, segurando-a firmemente contra o seu corpo. Aquela espécie de abraço, pouco característica de uma pessoa tão fria e auto-suficiente como Jevan de Lythwood, não teria certamente passado despercebida a Hugh. Mas será que ele tinha reparado, como Cadfael vira, sob um raio vermelho do Sol que se punha, e apenas por um breve instante, o aço da faca brilhando por debaixo do punho da manga direita de Jevan?
Não havia nada de estranho na aparência da rapariga, excepto talvez uma expressão quieta, pouco vulgar nela. Não dissera nada, não fizera qualquer movimento que revelasse medo ou desconfiança, não estava à vontade agarrada daquela maneira ou, se estava, a sua atitude não o mostrava. Mas ela sabia, de certeza, o que Jevan tinha na outra mão.
— Então é aqui que fabrica os seus mistérios — dizia Hugh, avançando curioso para dentro da oficina. Tenho ouvido falar muito do seu trabalho. Conheço a qualidade do que produz, já o vi a uso, mas como é que as folhas ficam daquela maneira? Ao ver como são as peles antes de tratadas, nunca consegui perceber.
Como qualquer estranho curioso, andava às voltas pela oficina, espreitando pelos cantos mas evitando a prateleira das facas, pois o silêncio seria demasiado óbvio se se chegasse perto e não fizesse nenhum comentário. Estava a testar Jevan, se este sentisse qualquer ansiedade ou tivesse algo lá escondido, deixaria de apertar a rapariga daquela maneira e faria qualquer movimento, mas Jevan nunca largou a mão, apenas tinha conduzido Fortunata até à porta e ali ficara. De facto, aquela falta de movimento começava a parecer sinistra e avançar era agora uma questão de vida ou de morte. Cadfael chegou-se um pouco mais perto, segurando as rédeas dos cavalos.
Hugh surgia agora de novo, com a mesma expressão fixa de curiosidade. Passou ao lado do par, que continuava de braço dado, e desceu até à margem, onde as caixas com redes estavam submersas no rio. Jevan seguiu-o, continuando a segurar o braço da rapariga, inclinada para o lado dele. As senhoras caminham à esquerda, para que o braço direito dos homens fique livre para as defender, quer com o punho quer com a espada. Jevan segurava Fortunata à sua esquerda com toda a firmeza, de forma a poder alcançá-la rapidamente com a faca, se o assunto não se resolvesse. Ou tencionava usar a faca em si próprio?
Tal como Cadfael e Hugh Beringar, Elave tinha vindo pela cidade, atravessando uma ponte ao entrar e outra ao sair, a correr, após aquele impasse, já não como um homem perseguido, mas firme, num passo e num ritmo que sabia poder manter. De anos anteriores, conhecia exactamente qual o caminho mais rápido pelos subúrbios, rio acima até à curva onde a corrente fazia correr o Severn ainda mais depressa. Quando chegou ao cimo da colina e pôde parar e olhar para baixo, em direcção à solitária oficina no meio do prado, suficientemente afastada do declive para evitar as águas de um degelo, que só ali chegariam num ano de grandes cheias, escondeu-se entre as árvores para se aperceber da cena que decorria lá em baixo enquanto recuperava o fôlego.
Lá estavam eles, mesmo à porta da oficina, a qual ficava num dos extremos da casa, orientada no sentido contrário ao da corrente do rio, de modo a aproveitar a luz do entardecer, que desaparecia a oeste. Na parede virada a sul, uma grande janela deixava entrar a luz durante a maior parte do dia. Elave conseguia ver perfeitamente as duas molduras na água pela forma como flutuavam; tinham sido colocadas ligeiramente abaixo, onde a margem alta providenciava um bom ancoradouro. Por detrás da figura unida de Jevan e For-tunata, a porta da oficina continuava aberta, numa enganadora sugestão de honestidade, enquanto o braço-dado de tio e sobrinha revelava um gesto falso de afeição. Durante toda a infância de Fortunata, nunca Jevan tinha brindado a criança com as suas carícias, ao contrário de Girard, que o fazia naturalmente. Jevan pertencia a um tipo de homem diferente, solitário, auto-suficiente, nada dado a tocar ou a ser tocado, nada efusivo nos seus contactos. Tinha sido sempre um tio amigo, apesar da sua frieza e carácter implicativo, sem dúvida gostava dela, mas nunca o revelara daquela maneira. Não era amor paternal o que os unia agora. Em que é que Fortunata se tinha tornado? Sua refém? A protecção dele por algum tempo? Não, se ela nada tinha a revelar contra ele, e ele tinha a certeza de que assim era, que necessidade teria de a apertar com tanta força? Ela poderia ter-se mantido à parte, teria assim ajudado mais o tio, mantendo uma aparência de normalidade que iludisse o xerife, pelo menos por aquele dia. Segurava-a firmemente porque não tinha confiança nela. Lembrava-a, através da força com que a agarrava, que, se ela dissesse uma palavra em falso, ele podia vingar-se.
Elave acercava-se por entre as árvores que desciam numa longa e estreita fila, fazendo uma curva em direcção ao Severn, acima da oficina, que terminava nos arbustos a uns cinquenta passos da margem. Estava agora mais perto, conseguia ouvir o som das vozes mas não o que diziam. Entre ele e o grupo que se encontrava junto da porta, estava o irmão Cadfael com os cavalos, por enquanto sem intenção de se aproximar mais. E tudo aquilo era uma farsa, percebeu Elave naquele momento, uma farsa para preservar uma atmosfera de normalidade entre todas aquelas pessoas. Nada poderia perturbar aquela situação; qualquer palavra mais directa, qualquer movimento ameaçador poderia precipitar um desastre. Até as vozes tinham um tom casual, despreocupado e normal, como numa conversa entre pessoas conhecidas que se tinham encontrado na rua e trocavam as triviais novidades do dia.
Viu Hugh entrar na oficina e reparou que Jevan não largou a rapariga, forçando-a a acompanhá-lo, continuando imóvel. Viu o xerife sair, com ar animado e sorridente, passar ao lado do par e acenar a Jevan para que este descesse com ele até ao rio. Jevan acedeu, mas avançou com a sobrinha como se fossem um só. Nessa altura, Cadfael decidiu-se rapidamente e conduziu os cavalos pela colina abaixo para se lhes juntar, caminhando subitamente mesmo atrás de Jevan, mas este nunca se virou para o olhar nem largou o braço de Fortunata. Durante todo aquele tempo, a rapariga deixava-se guiar silenciosa, com uma expressão calma e cautelosa.
O que era preciso fazer, e o que estavam a tentar fazer, era arranjar uma diversão, algo que conseguisse separar aquele par, algo que permitisse a Hugh desviar a rapariga para longe do homem, a salvo. Privado do escudo que ela lhe fornecia, Jevan poderia ser apanhado. Mas eles eram apenas dois e Jevan estava bem ciente dos seus adversários e conseguira maneira de os manter afastados. Enquanto agarrasse o braço de Fortunata, estaria a salvo e ela continuaria em perigo. E ninguém se arriscava a desfazer aquela falsa aparência de que tudo estava bem.
Mas ele, Elave, podia! Jevan não se tinha apercebido dele e por isso não estava em guarda. Teria de haver alguma coisa que o fizesse acabar com aquela farsa e o obrigasse a largar a mão do seu escudo humano, ficando assim indefeso. Só haveria uma oportunidade.
Um último e longo raio do pôr do Sol brilhou por detrás dos arbustos, esvanecendo a pequena luz amarela do interior da oficina, de que Elave se tinha apercebido embora sem a ver, incidindo por um instante sobre o punho da mão direita de Jevan. Elave reconheceu imediatamente o brilho do aço e percebeu por que Hugh agia pacientemente. Decidiu também o que ele próprio iria fazer, pois todo o grupo, seguido pelos cavalos, se dirigia margem abaixo para as caixas, onde as peles balançavam na corrente. Quando estes se distanciassem mais uns quantos metros, a oficina ficaria entre ele e o grupo, que não poderia assim vê-lo atravessar o pasto até à porta, que continuava aberta.
Hugh Beringar alimentava a conversa, fingindo-se interessado no processo de fabrico dos pergaminhos, tentando absorver a atenção de Jevan, de tal forma que este negligenciasse a sua vigilância. Cadfael fingia caminhar distraidamente, segurando as rédeas dos cavalos, mas Jevan nunca olhou para trás. Tinha certamente deixado a porta aberta e a lamparina acesa para forçar o xerife a montar e, por fim, ir-se embora, deixando o artesão a fechar a sua oficina. Hugh estava decidido a manter a paciência nesta ocasião. E enquanto estavam ali, parados na margem do Severn, só havia um homem que podia agir, apenas um.
Elave deixou o esconderijo e desatou a correr. Usando a oficina como escudo, alcançou a porta e a penumbra do interior e agarrou na lamparina. A palha que cobria o telhado não era nova, estava completamente seca após aquele Verão quente, tendo começado a cair por entre os barrotes de suporte. Encostou a chama da lamparina ao tecto em dois locais diferentes, por cima da grande mesa, onde a corrente de ar, vinda das portadas das janelas, atiçaria as chamas. Ao sair, pegou fogo a um outro ponto do tecto, junto à porta. No exterior, lançou o pavio ainda a arder sobre o telhado e derramou o óleo da lamparina que restava. A brisa que frequentemente surgia ao entardecer dos dias calmos, começara a soprar de oeste, atiçando a pequena chama e desencadeando uma estreita e sinuosa serpente de fogo sobre o telhado. Vindo do interior, ouvia-se o som de algo que parecia o suspiro tempestuoso de um gigante, e as chamas atearam-se, passando de um feixe de palha para outro, ao longo do telhado, por entre os barrotes. Elave correu, não para se esconder entre os arbustos mas sim nas portadas das janelas, do lado da oficina que dava para o prado, agarrando-se às tábuas, aguentando o máximo que podia, até uma das portadas ter balançado e caído. O fumo começou a sair, seguido de grandes labaredas, que aumentavam à medida que o ar entrava na oficina. Elave recuou e ficou a assistir ao temível incêndio que provocara, enquanto o fumo saía e as chamas ardiam altas sobre o telhado.
Cadfael foi o primeiro a ver e a dar o alarme:
— Fogo! Veja, a sua oficina está a arder!
Jevan virou a cabeça, talvez não querendo acreditar, e viu o que Cadfael tinha visto. Lançou um profundo grito de perda e desespero, empurrou Fortunata, tão repentina e bruscamente que esta quase caiu, largou a faca, que acabou por cair na vertical sobre a erva, e correu desesperadamente para a oficina. Hugh gritava enquanto corria atrás dele:
— Pare! Não pode fazer nada!
Mas Jevan não prestava atenção a mais nada, só à espiral de fumo e fogo que escondia o pôr do Sol e escurecia o tom rosado e dourado do céu. Correu ao longo da parede maior da oficina e atravessou a coluna de fumo que saía pela porta.
Elave, contornando a esquina da oficina mesmo a tempo de o confrontar, viu-lhe a expressão horrorizada, com a boca aberta, aos gritos, e os olhos aterrorizados antes de Jevan mergulhar, sem hesitar, na sufocante escuridão. Elave chegou a agarrá-lo pela manga, para o impedir de cometer aquela loucura, mas Jevan virou-se e afastou-o violentamente com um soco na cara, que fez Elave cambalear para longe dele, no momento em que uma chama surgiu entre ambos e os separou de vez. Desequilibrando-se para trás e caindo sobre as ervas, Elave viu o fumo desviar-se momentaneamente para o lado, serpenteando num redemoinho de vento. Olhava estupefacto para a porta aberta e não pôde deixar de ver o que sucedeu.
Jevan avançara imprudente através do fumo, trepara para cima da mesa e, de braços esticados, enterrados até aos cotovelos na palha que ardia e que lhe caía aos molhos sobre a cabeça, procurava algo que ali tinha escondido. Encontrou-o, remexeu vigorosamente para o agarrar, gemendo e contorcendo-se com dores nas mãos queimadas. Nesse momento, metade da cobertura do telhado caiu sobre Jevan, numa grande explosão de chamas, e ele desapareceu no meio das labaredas ofuscantes, com um grande grito de angústia e de raiva.
Elave conseguiu erguer-se e levantou os braços para proteger a cara. Hugh surgiu sem fôlego e deteve-se à porta, pois o calor obrigou-o a recuar, tossindo e tentando inspirar ar puro. E de repente uma figura enegrecida surgiu entre eles, arrastando uma cauda de fumo e de fagulhas, com a roupa e o cabelo em chamas, segurando de forma protectora, firme e apaixonada, algo cuja forma não se conseguia perceber. Agonizava num gemido intenso, como o som do vento de Inverno entrando por debaixo da porta e pela chaminé. Correram para o interceptar e tentar apagar as chamas, mas ele corria rápido de mais. Desceu a encosta verdejante, uma tocha humana, e saltou para o meio da corrente. O Severn arrastou-o e Jevan desapareceu, rio abaixo, para lá das suas caixas e peles, passando por Fortunata, rígida e muda, em choque nos braços de Cadfael, rio abaixo naquele local apressado da corrente, para ancorar algures nas zonas mais baixas, onde o Severn contornava a cidade.
Fortunata viu-o passar, levado pela corrente, em breve desaparecendo de vista. Não tentava nadar. Ambas as mãos seguravam firmemente a preciosidade que o levara a matar e pela qual estava a morrer.
Tudo terminara. Já nada havia a fazer por Jevan de Lythwood, nada mais a fazer quanto à sua propriedade, queimada e em chamas, a não ser deixá-la acabar de arder. Não havia nada tão perto que pudesse pegar fogo, apenas o campo vazio. O que importava naquele momento, a Hugh e a Cadfael, era levar de volta, e a salvo, aquelas duas almas em choque para um mundo real, entre coisas que lhes eram familiares, mesmo se, para um deles, isso significasse o regresso a uma casa aterrorizada e enlutada e, para o outro, voltar a uma cela e à ameaça de uma condenação. Naquele momento e naquele local, tudo o que Fortunata conseguia dizer, e que repetiu inúmeras vezes, era:
— Ele não me faria mal... não me faria mal! — E, por fim, após várias repetições, quase num tom inaudível: — Ou faria?
E nada saíra da boca de Elave a não ser o protesto horrorizado:
— Não queria que isto acontecesse! Nunca pensei! Nunca pensei que isto acontecesse! Nunca lhe desejei isto! — Por fim, numa espécie de revolta contra si próprio, disse: — E nem sequer sabemos se ele tinha culpa de alguma coisa, continuamos sem saber!
— Sim — disse então Fortunata, saindo daquele silêncio gelado. — Eu sei! Ele contou-me.
Mas essa era uma história que ela, por enquanto, não conseguia contar, nem Hugh quereria que Fortunata perdesse tempo com isso naquele momento, pois ela estava com frio, um estranho frio interior, e ele queria vê-la em casa.
— Trate do rapaz, Cadfael, e leve-o de volta para o sítio onde o bispo o quer, antes que mais esta vadiagem seja acrescentada às acusações. Eu levo a rapariga para junto da mãe.
— O bispo sabe que eu saí — disse Elave, erguendo-se para responder, endireitando os ombros, embora estes não tivessem ainda conseguido livrar-se do peso que lhes caíra em cima. — Eu implorei-lhe e ele deixou-me sair.
— Ele fez isso? — perguntou Hugh, surpreendido. — Então tanto melhor para ele e para si. Tenho esperança nesse bispo. — Montou o cavalo num gesto vigoroso, esticando uma mão a Fortunata para a içar. O seu cavalo favorito, cinzento e forte, nem daria pelo peso extra.
— Ajude-a a subir, rapaz... isso mesmo, ponha o pé aqui em cima do meu. Agora tenha juízo, deixe o resto para amanhã. Eu encarrego-me do que for preciso fazer. — Tinha envolvido os ombros da rapariga com o seu casaco e segurava-a entre os braços. — Amanhã cedo, Cadfael, irei ter com o abade. Não há dúvida de que temos de nos reunir todos antes do fim do dia.
Foram-se embora, subindo a encosta do prado, virando as costas às chamas que começavam a extinguir-se sobre a madeira queimada do que restara das paredes da oficina, agora sem telhado, deixando para trás as caixas com as peles presas com redes, ondulando e resistindo à forte corrente, enquanto a água na margem oposta ondulava calmamente, quase parada.
— E nós também vamos embora — disse Cadfael, segurando as rédeas do cavalo —, pois já não há aqui nada que um homem possa fazer. Está tudo acabado e, ao que parece, podia ter sido muito pior. Suba, você monta e eu vou a pé, vamos calmamente para casa.
— Será que ele teria sido capaz de lhe fazer mal? — perguntou Elave após um longo silêncio, quando percorriam a estrada entre as viçosas casas e lojas de Frankwell e se aproximavam da ponte oeste.
— Como podemos saber, se nem a própria rapariga tem a certeza? A providência de Deus decretou que assim não viesse a acontecer. É tudo quanto ficamos a saber. E você foi o instrumento enviado por Ele.
— Para Girard, serei o culpado da morte do irmão — disse Elave.
— Só poderá culpar-me! Que mais poderei esperar dele agora?
— Teria sido melhor para Girard se o irmão tivesse sobrevivido, para depois ser enforcado? — perguntou Cadfael. — E o seu nome manchado pelo escândalo que isso iria causar? Não, deixe que Hugh fale com ele. Girard é um homem de bom senso, não lhe vai deitar as culpas. Salvou-lhe a filha, não lha vai negar quando chegar a altura.
— Nunca tinha matado um homem. — A voz de Elave soava cansada e reflectida. — Durante todas as milhas que percorri, depois de tantos perigos e lutas ao longo do caminho, duvido de que alguma vez tenha derramado sangue.
— Você não o matou, não se martirize sem razão. Foram os próprios actos dele que o mataram.
— Acha que ele se pode ter escondido algures? Vivo? Terá sobrevivido? Depois daquilo?
— Tudo é possível — disse Cadfael. Mas lembrou-se dos braços erguidos nas mangas queimadas, segurando firmemente o objecto que tinha resgatado do fogo, o corpo longo totalmente submerso na água, sem sinais de luta ou de som, e não teve muitas dúvidas em achar que o corpo seria encontrado no dia seguinte, algures no trajecto do rio, perto da cidade.
Sobre a ponte e ao longo das estradas, o cavalo caminhou placidamente, mas ao descer o Wyle cheirou o ar e estugou o passo, pressentindo o conforto do estábulo.
Quando entraram no pátio principal, os irmãos tinham acabado de sair das Completas. O abade Radulfus emergiu do claustro para se dirigir aos seus aposentos, com os seus distintos convidados, um de cada lado. Surgiram no exacto momento para verem um irmão do convento a entrar e, sobre um dos cavalos da abadia, o prisioneiro acusado de heresia, libertado sob palavra há cerca de três horas atrás. O cavaleiro vinha sujo de terra e enegrecido pelo fumo, com as mãos e o cabelo, sobre as têmporas, algo queimados pelo fogo, um facto que até aí não notara, mas que imprimia, aos olhos do cónego Gerbert, um nível ainda mais ultrajante àquela pequena procissão. A calma aceitação do irmão Cadfael perante aquele espectáculo inverosímil redobrava a ofensa. Cadfael ajudou Elave a desmontar, deu-lhe umas leves palmadas de encorajamento nas costas e seguiu para o estábulo com o cavalo, deixando o prisioneiro regressar à sua cela por sua livre vontade, até algo satisfeito, como se acabasse de regressar a casa. Não era forma de tratar um alegado herege. Todos os procedimentos naquela abadia de S. Pedro e S. Paulo deixavam o cónego Gerbert escandalizado.
— Bem, bem! — disse o bispo, imperturbável, quase apreciativo. — Tudo o mais que o rapaz possa ser, é um homem de palavra.
— Admira-me — disse Gerbert friamente — que Sua Senhoria tenha decidido correr esse risco. Se o tivesse perdido, seria uma grave negligência e uma grande injúria para a Igreja.
— Se o tivesse perdido — disse o bispo, impassível —, ele é que teria ficado a perder. Mas voltou tal como foi, intacto!
O irmão Cadfael solicitou uma audiência com o abade, no dia seguinte, logo pela manhã, para relatar todo o sucedido, e ficou satisfeito ao ver Hugh chegar no momento em que ele acabava de sair. A reunião de Hugh com o abade Radulfus demorou mais tempo. Havia muito a dizer e muito restava ainda por fazer, pois nada mais se soubera de Jevan de Lythwood, vivo ou morto, desde que se atirara ao Severn, como uma tocha humana, com o cabelo em pé, a arder. Também para Radulfus o assunto do dia era da maior importância. Roger de Clinton detestava perder tempo e a sua presença era reclamada em Coventry, por isso tinha intenção de resolver o assunto rapidamente, de uma maneira ou de outra, durante o capítulo daquela manhã e regressar à sua vulnerável e agitada cidade.
— Oh!, sim, trouxe e dei ao cónego Gerbert as últimas notícias sobre as fronteiras de Owain — disse Hugh, levantando-se para se retirar —, por ora, o conde Ranulf chegou a um acordo, convém a Owain manter a paz com ele por uns tempos. O conde estará de regresso a Chester esta noite. Sem dúvida que o cónego ficará aliviado ao saber que pode continuar a sua viagem.
— Sem dúvida — disse o abade. Não sorriu, mas naquelas poucas sílabas notou-se o tom de satisfação na sua voz.
Elave apresentou-se no seu julgamento, barbeado, lavado daquela sujidade do fumo e trazendo, por mérito do irmão Denis, uma camisa lavada e um casaco apresentável, em vez do seu, que estava indecente. Era como se a comunidade se tivesse habituado a ele durante os dias que lá estivera e tivesse perdido totalmente a tendência para o ver como um perigo potencial ou como alguém a ser condenado, por isso havian-se unido no desejo de o apresentar com o melhor aspecto possível, para que causasse a melhor impressão, num acto de conspiração benevolente que surgira de forma espontânea.
— Fui informado — disse o bispo rapidamente, abrindo a assembleia —, quanto à conduta e personalidade deste jovem, através de pessoas que o conhecem bem e que lidaram com ele, para além do que pude observar com os meus próprios olhos neste curto espaço de tempo. E que nenhum dos presentes se permita pensar que a probidade, ou improbidade, do comportamento comum de um homem não tenha nada a ver com uma tal acusação de heresia. Prevalece a autoridade das escrituras: pelos seus frutos, conhecê-los-ás. Uma boa árvore não produz maus frutos nem uma má árvore produz bons frutos. Tanto quanto me puderam informar, os frutos deste homem parecem ser comparáveis aos que a maioria de nós demonstra. Não ouvi falar de nenhum que se possa considerar como podre. É bom que se recordem disto. É relevante. Quanto às acusações que lhe foram feitas, sobre determinados aspectos que vão directamente contra os ensinamentos da Igreja... Que alguém faça o favor de me informar neste momento. O prior Robert anotou todos esses aspectos e entregou o registo com uma voz neutra e uma expressão imparcial, como se tivesse visto que a própria atmosfera dentro do convento se inclinara para o lado do acusado.
— Meu senhor, em suma, há quatro questões: primeiro, ele não acredita que as crianças que morrem sem ser baptizadas possam ser condenadas. Segundo, como razão para tal, não acredita no pecado original e defende que as crianças nascem no mesmo estado que Adão antes do pecado, num estado de inocência. Terceiro, defende que um homem pode, através dos seus próprios actos, traçar o seu caminho para a salvação, o que a Igreja considera como sendo uma negação da graça divina. Quarto, rejeita o que Santo Agostinho escreveu sobre a predestinação, sobre o facto de o número de eleitos já estar decidido e não poder ser alterado, estando todos os outros condenados à partida. Pois ele disse que está de acordo com Origen, que escreveu que no final todos os homens seriam salvos, dado que todas as coisas provêm de Deus e a Ele terão de regressar.
— E toda a questão se resume a esses quatro aspectos? — perguntou o bispo com uma expressão pensativa.
— Sim, meu senhor.
— Que tem a dizer sobre isso, Elave? Foi mal interpretado nalgum destes aspectos?
— Não, meu senhor — disse Elave firmemente. — Defendo-os totalmente. Embora nunca tenha citado o nome de Origen, pois nessa altura desconhecia o nome desse antepassado que escreveu as ideias que defendo e em que continuou a acreditar.
— Muito bem! Consideremos então o primeiro aspecto, aquilo que defende sobre as crianças que morrem sem baptismo. Não é o único a ter dificuldade em aceitar a condenação dessas crianças. Perante a dúvida, recorra-se à Sagrada Escritura, que não contém erros. Nosso Senhor — proferiu o bispo — ordenou que as crianças pudessem livremente ir para junto dele, pois este, disse Ele, é o reino dos Céus. Segundo a minha leitura, Ele nunca perguntou primeiro se elas eram baptizadas ou não, antes de as aceitar nos seus braços. Certamente que o paraíso lhes é concedido. Mas diga-me então, Elave, que valor vê no baptismo das crianças, se não é o único caminho para a salvação?
— Representa, com certeza, o acolhimento da Igreja e da vida — disse Elave, ainda incerto quanto ao chão que pisava e quanto ao seu juiz, mas esperançoso. — Nascemos inocentes, mas uma tal bênção ajuda-nos a manter essa inocência.
— Essa inocência, ao nascer, conduz-nos ao segundo aspecto. Faz parte da sequência dessa maneira de pensar. Não acredita que vimos ao mundo já manchados com o pecado de Adão?
Pálido, obstinado e inflexível, Elave disse:
— Não, não acredito. Seria injusto. Como pode Deus ser injusto? Enquanto adultos, já teremos de suportar os nossos pecados.
— Os pecados de todos — concordou o bispo com um sorriso algo pesaroso —, isso é certamente verdade. Santo Agostinho, que foi aqui mencionado, considerava que o pecado de Adão se perpetuava em todos os seus herdeiros. Será melhor pensar um pouco em que consistiu, na verdade, o pecado de Adão, Agostinho defendia que foi o acto carnal entre homem e mulher e considerou-o a raiz e a origem de todos os pecados. Há aqui um outro ponto que é discutível. Se em todos os casos é considerado pecado, como é possível que Deus tenha instruído as suas primeiras criaturas a frutificarem, a multiplicarem-se e a povoarem a Terra?
— Não deixa de ser um acto abençoado a refrear — disse o cónego Gerbert, fria mas cautelosamente, pois Roger de Clinton estava no seu próprio terreno, nobre e altamente considerado.
— Nem o acto nem a abstenção do acto são, em si próprios, bons ou maus — disse o bispo amigavelmente —, apenas o carácter da sua finalidade e o espírito com que é feito. Qual era a terceira questão, senhor prior?
— A questão da livre vontade e da graça divina — disse Robert. — Nomeadamente, se um homem pode, de livre vontade, escolher o bem em vez do mal e se, ao fazê-lo, avança um passo em direcção à salvação. Ou se para nada contribuem os seus actos, por mais virtuosos que sejam, pois só a graça divina o pode salvar.
— Quanto a isso, Elave — disse o bispo, observando a expressão resoluta e intensa com que o rapaz o olhava —, pode falar livremente. Não estou a tentar fazê-lo cair numa armadilha, desejo saber.
— Meu senhor — disse Elave, escolhendo deliberadamente o seu caminho —, acredito que nos foi concedida a livre vontade e que podemos e devemos utilizá-la para escolher entre o bem e o mal, já que somos humanos e não simples animais. Certamente é o mínimo que nos compete, tentarmos seguir o caminho para a salvação através das acções correctas. Nunca neguei a graça divina. E certamente a maior graça que nos foi concedida é este poder de escolha e a vontade para fazer dele um bom uso. Veja, meu senhor, se existe um último julgamento, não será nem poderia ser pela graça de Deus, mas sim através daquilo que cada um fez com ela, quer tenha enterrado o seu talento ou o tenha orientado para um bom proveito. É pelos nossos actos que teremos de responder quando chegar o dia.
— Se pensa assim — disse o bispo, olhando-o com interesse —, compreendo que dificilmente possa aceitar que a lista de eleitos já está definida e que todos os outros estão eternamente perdidos. Se isso fosse verdade, para quê lutarmos? E nós lutamos. É próprio do homem ter um objectivo e trabalhar para o conseguir. Deus sabe, melhor que ninguém, que a graça, a verdade e a rectidão são objectivos tão bons como outros quaisquer. Que mais é a salvação para além disso? Não é mal pensado sentirmo-nos obrigados a merecê-la e não ficar à espera de que nos seja dada como uma esmola a um pedinte, sem ser merecida.
— Estes são mistérios sobre os quais os sábios se devem debruçar, se a tal se atreverem — disse Gerbert numa fria desaprovação mas também de alguma forma abstraído, pois parte da sua mente estava já preocupada com a viagem a Chester e a subtil diplomacia que teria de exercer quando lá chegasse. — Vindo de um obscuro entre os leigos, é uma presunção.
— Foi uma presunção Nosso Senhor ter discutido com os sábios no templo — disse o bispo —, sabendo que era humano e que era também Deus, em ambos os aspectos verdadeiro. Mas fê-lo. Nós, sábios do templo dos nossos dias, deveríamos lembrar-nos de como somos vulneráveis. — Recostou-se de novo na sua cadeira e olhou honestamente para Elave durante alguns minutos. — Meu filho — disse então —, não vejo qualquer falta em se ter aventurado a usar os pensamentos, que, como você certamente diria, também são uma dádiva de Deus, destinados a ser usados e não enterrados em vão. Apenas deve ter em mente que também está sujeito ao erro e que é vulnerável perante a sua condição, como eu perante a minha.
— Meu senhor — disse Elave —, aprendi tudo isso muito bem.
— Não tanto assim, espero, como para enterrar o seu talento agora. É melhor percorrer a fundo um caminho do que estagnar e permanecer ignorante. Só exijo um teste, e para mim é tudo quanto basta. Se acredita, com toda a verdadeira fé, nas palavras do Credo, diante desta assembleia e de Deus, recite-o agora, neste momento.
A expressão de Elave começara a brilhar tão intensamente como os raios de Sol que incidiam no chão da sala da capela. Sem precisar de qualquer insistência, sem hesitar um segundo, começou num tom de voz alto, nítido e animado:
— Creio em um só Deus, Pai, todo-poderoso, criador do Céu e da Terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis...
Pois aquelas palavras ressoavam no fundo da sua mente desde a infância, ensinadas pelo seu primeiro sacerdote, de quem tanto gostara e a quem nunca poderia querer mal, com quem recitara aquelas palavras regular e alegremente durante anos, sem nunca questionar o seu significado, apenas sentindo o que elas significavam para o gentil mestre que admirava e imitava. Era uma fé não adquirida por si próprio, mas sim recebida, mais um encantamento do que uma declaração de fé. Após todas as suas dúvidas, provações e revoltas, era a sua inocência e a sua ortodoxia que ditavam a sua liberdade.
Estava prestes a terminar, triunfalmente, sabendo-se livre e provado inocente, quando Hugh Beringar entrou devagar na casa do capítulo, com uma trouxa de trapos envolvendo algo que segurava debaixo do braço.
— Encontrámo-lo — disse Hugh — encalhado debaixo da ponte, apanhado pela corrente que costumava prender um barco do moinho, há muitos anos. Entregámos o corpo em casa. Contámos a Girard tudo o que nos foi possível. Com a morte de Jevan, todo este assunto está terminado. Antes de morrer, confessou ser o assassino. Não há razão para dar a conhecer ao mundo tudo o que se passou, só prejudicaria ainda mais a sua família.
— Nenhuma — disse Radulfus.
Sete pessoas estavam reunidas no escritório do irmão Anselmo, na ala norte, mas o cónego Gerbert não estava entre elas. Gerbert já tentara esquecer a questionável ortodoxia desta abadia ao calçar as suas botas de montar, ao subir para um cavalo totalmente recuperado da sua pata e desejoso de exercício, e dirigira-se para Chester, com o seu criado pessoal e os seus escudeiros. Sem dúvida naquele momento já estaria a pensar no que teria de dizer ao conde Ranulf e no quanto conseguiria obter dele sem ter de prometer nada de substancial em troca. Mas o bispo, quando ouviu o que Hugh descobrira e as vicissitudes que tinha passado, e dada a natural curiosidade humana, decidiu ficar e assistir pessoalmente ao final de tudo aquilo. Juntamente com ele estavam Anselmo, Cadfael, Hugh, o abade Radulfus e Elave e Fortunata, em silêncio, de mãos dadas, embora mantendo a devida distância entre os seus corpos perante aquela augusta companhia. Estavam ainda um pouco aturdidos depois daquela experiência tão repentina e tão difícil e ainda não totalmente cientes daquele igualmente abrupto e confuso desfecho.
Hugh apresentara o seu relatório em poucas palavras. Quanto menos se falasse agora daquela morte melhor. Jevan de Lythwood morrera e tinha sido retirado do Severn, debaixo do mesmo arco da ponte onde tinha escondido a sua vítima até ao anoitecer. Com o tempo, Fortunata lembrar-se-ia dele como sempre o conhecera, um tio como tantos outros, afável embora não o mostrasse. Um dia deixaria de ter importância o facto de não ter a certeza se ele a teria matado, como antes matara uma testemunha, em vez de ter desistido daquilo que no final valorizou mais do que a própria vida. A maior ironia, segundo Conan, era que Aldwin nunca conseguira ver o que estava dentro da caixa. Jevan tinha assassinado em vão.
— E isto — disse Hugh — continuava firmemente agarrado entre os braços dele e a parede do molhe. — Estava agora em cima da mesa de trabalho de Anselmo, continuando a pingar algumas gotas de água enquanto era destapado. — Pertence, como sabem, a esta senhora, e ela pediu que fosse destapado aqui, perante vós, meus senhores, como testemunhas conhecedoras das obras que aqui poderão ser encontradas.
Desenrolava camada após camada enquanto falava. A camada de fora, queimada e esburacada, estava quase desfeita, mas Jevan tinha protegido o mais possível o seu tesouro e, quando as últimas camadas foram retiradas, a caixa surgiu diante deles imaculada, sem ter sido manchada pelo fogo ou pela água, a chave trabalhada ainda colocada na fechadura. O santo naquele losango de marfim fitava-os com um profundo olhar bizantino sob a grande testa que poderia ter sido desenhada com compassos antes de o cabelo farto ter sido gravado, e a barba, e os traços da idade e da sabedoria. Os cantos polidos das folhas de videira reflectiam a luz. Agora todos hesitavam em rodar a chave e abrir a tampa.
Foi Anselmo quem por fim se decidiu a abri-la. De ambos os lados, todos se debruçaram para ver. Fortunata e Elave aproximaram-se mais e Cadfael abriu espaço para eles avançarem. Quem mais tinha tanto direito?
A tampa levantou-se sobre a encadernação de pergaminho púrpura-desmaiado, rodeada de ricos enfeites de folhas, flores e ramagens em ouro e, no centro, numa delicada moldura de ouro, uma figura semelhante à de marfim da caixa. O mesmo rosto venerável e fronte majestosa, os mesmos olhos cativantes fitando a eternidade, mas este fora gravado numa escala mais pequena, não de corpo inteiro mas sim em meia figura, e segurava uma pequena harpa entre as mãos.
Com um cuidado reverente, Anselmo esvaziou a caixa e suportou o livro sobre a palma da mão para o colocar sobre a mesa.
— Não se trata de um santo — disse ele —, embora muitas vezes o mostrassem com um halo. Trata-se do rei David e, seguramente, o que temos aqui é um saltério (1).
* (1) Saltério ou Salter: a palavra tem, pelo menos, dois significados distintos: o primeiro, que corresponde ao termo aqui assinalado — livro litúrgico do Antigo Testamento que contém os salmos; o segundo, que surgirá mais à frente neste livro — antigo instrumento musical de cordas. (N. da T.)
O pergaminho púrpura da encadernação estava rodeado por uma fina moldura. As primeiras e as últimas folhas do livro, como Anselmo viu ao abrir, eram também de cor púrpura enfeitadas a ouro. O resto das folhas tinha um acabamento fino, suave, e eram de um branco quase puro. O frontispício mostrava uma pintura do salmista tocando e cantando, como num trono de imperador, rodeado de músicos terrenos e celestiais. As cores vibrantes ressaltavam à vista tão intensamente como os sons que os reais menestréis retiravam dos seus instrumentos de corda. Não se tratava dos poderosos e maciços blocos de cor bizantinos, clássicos e monumentais, mas sim de formas sinuosas, delicadas e graciosas, tão flexíveis e etéreas como as folhas de videira que rodeavam a pintura. Tudo vibrava e parecia ter vida, tudo tinha uma forma elegantemente alongada. Na página oposta, num pergaminho suave como a seda, o título fora desenhado em unciais (2) douradas.
Mas na folha seguinte, que era a página da dedicatória, a escrita mudara para uma letra perfeita, fluente e arredondada.
— Isto não é oriental — disse o bispo inclinando-se para olhar mais de perto.
— Não. É irlandês, em letra minúscula, na escrita insular. — A voz de Anselmo tornou-se mais reverente e respeitosa à medida que virava página a página, no tom marfim do corpo do livro, onde a escrita tinha abandonado o dourado por um rico azul muito escuro, os algarismos e as iniciais possuíam cores exóticas, enquadradas e decoradas com flores silvestres, rosas trepadeiras, pequenas ervas não maiores do que a unha de um polegar, nas quais pássaros cantavam sobre ramos quase tão finos como cabelos e tímidos animais espreitavam dos seus esconderijos entre os arbustos em flor. Pequenas mulheres perfeitas figuravam sentadas sobre a turfa, rodeadas de caramanchões de roseiras bravas. Fontes douradas corriam para vasilhas de marfim, cisnes deslizavam sobre rios de cristal, minúsculos navios aventuravam-se em oceanos do tamanho de uma lágrima.
Na última parte do livro, as folhas reassumiam a sua cor púrpura-imperial, os exultantes salmos finais eram novamente inscritos a ouro e o saltério terminava com uma página pintada com anjos celestiais, um paraíso de santos com auréolas, uma Terra transfigurada de almas redimidas que obedeciam em conjunto ao salmista e louvavam a Deus no firmamento do seu poder, com todos os instrumentos musicais conhecidos na Terra. Todas as asas ondulantes, todos os halos, todos os trompetes, saltérios, harpas, instrumentos de cordas e órgãos, campainhas e pandeiretas eram de um dourado-intenso; todas as
* (2) Unciais: caracteres maiúsculos de grandes dimensões com os quais, até ao século xi, se escreviam os textos eclesiásticos. (N. da T.)
figuras do Céu, do Paraíso e da Terra eram tão sinuosas e etéreas como as rosas silvestres, madressilvas e videiras que as rodeavam, e o céu, acima deles, tão azul como as íris e pervincas sob os seus pés, até as pontas das asas dos anjos se confundiam num zénite intensamente dourado, no qual o mistério final se perdia de vista.
— É uma maravilha! — disse o bispo. — Nunca tinha visto uma obra assim. Isto não tem preço. Onde é que uma coisa destas pode ter sido feita? Onde poderá ter havido uma arte como esta?
Anselmo voltou à página de dedicatória e leu em voz alta e pausada o latim, escrito a dourado:
— “Feito por ordem de Otto, rei e imperador, para o casamento do seu amado filho, Otto, príncipe do Império Romano, com a tão nobre e graciosa Theofanu, princesa de Bizâncio, este livro é a oferta da Sua Maior Graça Cristã e é dedicado à princesa. Escrito e pintado por Diarmaid, monge de Saint Gall.”
— Escrita irlandesa e um nome irlandês — disse o abade. — O próprio Gallus também era irlandês e muitos da sua raça seguiram-no até lá.
— Incluindo um — disse o bispo —, que criou esta obra tão preciosa e maravilhosa. Mas a caixa, certamente, foi feita depois e por outro artista irlandês. Talvez o mesmo artista que gravou o marfim da capa do livro tenha feito também o da caixa. Talvez a princesa tenha trazido esse artista para o Ocidente no seu séquito. É de facto um casamento entre duas culturas, tal como o casamento que celebra.
— Estavam em Saint Gall — disse Anselmo, aluno perante o historiador, observando com carinho mas sem cobiça o livro mais bonito e mais raro que alguma vez vira. — Estavam lá no mesmo ano em que o príncipe casou, quer o pai quer o filho. Vem registado na crónica. O jovem tinha dezassete anos e sabia valorizar os manuscritos. Levou com ele vários da biblioteca. Nem todos chegaram a regressar. Será possível que um homem que gostava profundamente de livros, depois de ter visto este, o cobiçasse até ao extremo da loucura?
Cadfael, à parte e em silêncio, retirou os olhos das cores intensas e puras, pintadas há quase duzentos anos por uma mão firme e uma mente dedicada, para olhar o rosto de Fortunata. Esta continuava junto de Elave, olhando-o sobre o ombro, e Cadfael percebeu que o rapaz continuava a segurar a mão dela com a mesma firmeza com que Jevan a agarrara quando ela era a única e frágil barreira que tinha contra a traição e a ruína. Fortunata não cessava de admirar o lindo objecto que William lhe enviara como dote e os seus olhos estavam toldados e os lábios fechados numa expressão pálida e imóvel.
Não fora culpa de Diarmaid, o monge irlandês de Saint Gall que tinha colocado toda a sua melhor arte numa oferta de amor, ou pelo menos numa prenda de casamento, o mais nobre da época, uma junção de impérios! Não fora por sua culpa que aquele objecto maravilhoso tinha provocado duas mortes e enlutado, bem como dotado, a noiva a quem fora enviado. Seria de admirar que um objecto assim tão perfeito tivesse corrompido um, até então inocente, amante de livros, para o ter cobiçado de tal forma que o levou a roubar e a matar?
Fortunata olhou por fim à sua volta e deu com os olhos do bispo, que a fitavam, do outro lado da mesa, sobre a qual repousava o maravilhoso objecto.
— Minha filha — disse ele —, tem aqui um presente muito precioso. Se pensar em vendê-lo, trar-lhe-á de facto um rico dote, mas aconselhe-se bem antes de o fazer e mantenha-o em segurança. Certamente o abade Radulfus o guardará em confiança, se assim o desejar, e tratará de que seja devidamente aconselhada se chegar a negociar com um comprador. Embora lhe deva dizer que, na verdade, é impossível atribuir um valor real àquilo que não tem um preço.
— Meu senhor — disse Fortunata —, sei o que quero fazer com ele. Não posso ficar com ele. É lindo e lembrar-me-ei para sempre dele e da sorte que tive em tê-lo visto. Mas se ficar com ele trar-me-á sempre uma recordação amarga e vê-lo-ei sempre como algo desperdiçado e mal empregue. Quero que nunca mais seja tocado pelo mal. Preferia antes que o levasse consigo. Entre os bens da sua igreja estará de novo num local puro e abençoado.
— Compreendo a sua aversão — disse o bispo de forma gentil —, depois de tudo o que aconteceu, percebo a razão do seu desgosto diante de um objecto de beleza e graça sem o devido uso. Mas se o que deseja é verdade, então tem de aceitar o que a minha biblioteca lhe possa pagar pelo livro, embora lhe deva dizer que não disponho do valor que ele tem.
— Não! — Fortunata sacudia a cabeça decididamente. — Já foi dado dinheiro por ele uma vez, não deve ser pago novamente. Se não tem preço, não lhe deve ser atribuído um, eu posso oferecê-lo sem sofrer nenhuma perda.
Roger de Clinton, ele próprio um homem decidido, reconheceu a tão forte resolução que o confrontava, a qual ele respeitava e aprovava. Mas em consciência lembrou-lhe consideradamente:
— O peregrino que o transportou por meio mundo e que lho enviou como dote também tem direito de ver os seus desejos honrados. E o seu desejo era que esta oferta fosse sua... de mais ninguém.
Ela reconheceu esse facto, inclinando a cabeça com um ar sério.
— Mas, se mo deu e o tornou meu, sabia que me pertenceria, para o tornar a dar se eu quisesse, e nunca guardaria rancor por isso.
Especialmente — disse Fortunata firmemente - a si e à sua igreja.
— Mas por outro lado ele queria que o seu presente fosse utilizado para lhe assegurar um bom casamento e uma vida feliz — disse o bispo.
Ela olhou novamente para o bispo firme e honestamente, com a mão de Elave na dela e o olhar deste acompanhando o dela.
— Isso já está tratado — disse Fortunata. — Fico com o melhor que ele me enviou.
Ao meio da tarde, todos se tinham ido embora. O bispo de Clinton e o seu diácono, Serio, iam a caminho de Coventry, para onde um dos predecessores de Roger tinha transferido a sede da diocese, embora continuasse a ser referida como sendo em Lichfield e não em Coventry e ambas as igrejas se considerassem como tendo o estatuto de catedral. Elave e Fortunata tinham regressado juntos à enlutada casa, perto da igreja de Saint Alkmund, onde agora o corpo do assassino descansava sobre a mesma mesa e na mesma divisão onde a sua vítima tinha estado. Girard, que tinha enterrado Aldwin, preparava-se agora para enterrar Jevan. As grandes feridas sofridas por uma família unida acabariam por fechar e sarar, mas seria preciso tempo. Sem dúvida, as mulheres rezariam tão piedosamente pelo assassino como pela vítima.
Juntamente com o bispo, cuidadosa e reverentemente embrulhado e colocado no alforge da sua sela, seguia o saltério da princesa Theofanu. Como tinha ido parar ao Oriente, a um pequeno mosteiro para lá de Edessa, nunca ninguém viria a saber, e um dia, talvez dali a duzentos anos, alguém se perguntasse como teria viajado de Edessa para a biblioteca de Coventry, e também isso permaneceria um mistério. Os livros são mais duráveis que os seus autores, mas pelo menos o monge irlandês Diarmaid tinha assegurado a sua própria imortalidade.
Até a hospedaria estava já quase vazia. Os festejos tinham acabado e os que ficaram por mais uns dias tinham terminado os seus afazeres em Shrewsbury e preparavam-se para partir. A pausa entre a trasladação de Santa Winifred e a feira de Saint Peter providenciava o tempo necessário para a colheita dos campos de milho da abadia, atrás das hortas de Gaye, onde as espigas já tinham começado a secar. As estações cumpriam o seu ritmo. Só os homens partiam e chegavam, agiam ou não, de forma intemporal.
O irmão Winfrid, satisfeito no seu trabalho, estava a aparar a sebe e assobiava enquanto cumpria a sua tarefa. Cadfael e Hugh, sentados no banco situado no muro norte do jardim das ervas medicinais, reflectiam em silêncio, já um pouco ensonados pelo sol e pela agradável quietude que se segue aos dias de maior ansiedade. As cores das rosas nos canteiros distantes lembravam as cores dos sinuosos enfeites de Diarmaid, e a borboleta branca sobre a flor de um funcho, com o seu tom azul-profundo, lembrava um pequeno navio num oceano do tamanho de uma pérola.
— Tenho de me ir embora — disse Hugh pela terceira vez, mas sem fazer qualquer gesto para se levantar.
— Espero — disse Cadfael por fim, endireitando-se com um suspiro — que nunca mais se oiça por aqui a palavra heresia. Se voltarmos a ter visitas episcopais, que resultem tão bem quanto esta. Se tivesse sido com outro homem, tudo poderia ter terminado num anátema.
— E perguntou com um ar pensativo: — Terá a rapariga feito bem em oferecê-lo? Parece que ainda o estou a ver com estes olhos. Quase consigo imaginar um homem a cobiçá-lo até à morte, a dele ou a de outro. Só as cores faziam arder o coração.
— Não — disse Hugh —, ela foi muito sensata. Como o poderia vender? Quem poderia pagar uma coisa assim, se não reis? Não, ao enriquecer a diocese, enriqueceu-se a si própria.
Quanto a isso — disse Cadfael após um longo e prazenteiro silêncio —, o bispo pagou-lhe um bom preço. Devolveu-lhe Elave, livre e provado inocente. Diria apenas que, afinal, ela deve ter ficado com a melhor parte do negócio.
Ellis Peters
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