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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADFAEL 18 / Morte no Campo do Oleiro
CADFAEL 18 / Morte no Campo do Oleiro

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A Feira de São Pedro daquele ano de 1143 passara há uma semana, e eles recomeçavam a assentar na rotina habitual de um Agosto seco e favorável, com a colheita já a ser transportada para os celeiros, quando o Irmão Matthew, o despenseiro, levou a primeira vez para o cabido a questão que, durante a Feira, discutira durante alguns dias com o prior do mosteiro agostiniano de São João Evangelista, situado cerca de seis milhas a nordeste de Shrewsbury. Haughmond tinha sido fundado por FitzAlan, e FitzAlan caíra em desgraça e fora privado dos seus bens desde que defendera o Castelo de Shrewsbury contra o Rei Stephen, embora constasse que ele tinha deixado o seu refúgio em França e estava de novo em Inglaterra, em segurança junto das forças da Imperatriz em Bristol. Mas muitos dos seus rendeiros locais tinham permanecido leais ao rei e tinham mantido as suas terras, e Haughmond florescia com o seu apoio e as suas ofertas, sendo um vizinho altamente respeitável com o qual poderiam ser efectuadas trocas comerciais, por vezes com benefícios mútuos. Aquela, de acordo com o Irmão Matthew, era uma dessas vezes.

- A proposta desta troca de terras veio de Haughmond - disse ele -, mas faz sentido para ambas as casas. Eu já coloquei os factos necessários ao Pai Abade e ao Prior Robert, e tenho aqui as plantas dos dois campos em causa, ambos extensos e de qualidade comparável. O que esta casa possui fica a cerca de milha e meia depois de Haughton e é rodeado por todos os lados por terrenos oferecidos ao Priorado de Haughmond. Será claramente vantajoso para eles acrescentar esse pedaço aos seus bens, devido à economia na utilização e à poupança em tempo e trabalho que representará não ter que andar de um lado para o outro. E o campo que Haughmond quer trocar com ele fica situado deste lado da casa senhorial de Longner, a duas milhas daqui, mas a uma distância bastante inconveniente de Haugmond. Considerar esta troca é obviamente uma questão de bom senso. Eu já vi o terreno, e o negócio é um negócio justo. Recomendo que o aceitemos.

- Se esse campo fica deste lado de Longner - disse o irmão Richard, o sub-prior, oriundo de uma ou duas milhas para além daquela casa senhorial e conhecedor dos contornos da terra -, onde se situa ele em relação ao rio? Está sujeito a inundações?

- Não. Tem o Severn num dos lados, sim, mas a margem é elevada, e os campos elevam-se gradualmente a partir dela até uma faixa de terra não lavrada e um quebra-ventos de árvores e arbustos ao longo do cômoro. É um terreno de que o irmão Ruald foi rendeiro até há cerca de quinze meses. Havia duas ou três pequenas zonas argilíferas ao longo da margem do rio, mas acho que já se esgotaram. O terreno é conhecido como o Campo do Oleiro.

Um movimento levemente ondulante percorreu a casa do cabido quando todas as cabeças se viraram numa direcção, e todos os olhos se fixaram, por um discreto momento, no Irmão Ruald. Este era um homem franzino, calado e grave, com um rosto longo e austero, de feições muito regulares e uma beleza clássica, imemorial, que vivia as horas devotas do dia como se estivesse semi-recolhido num enlevo privado, pois fizera os seus votos definitivos há apenas dois meses, e o seu desejo pela vida monástica, só reconhecido ao fim de quinze anos de vida matrimonial e de vinte cinco anos dedicados à arte da olaria, tinha ardido numa agonia intensa antes de ele ter conseguido ser admitido e ter alcançado a paz. Uma paz que agora parecia nunca abandoná-lo, nem sequer por um momento.

 

 

 

 

 

 

Embora todos os olhos se tivessem voltado para ele, a sua calma permaneceu absoluta. Todos os presentes conheciam a sua história, que era bastante estranha e complexa, mas isso não o incomodava. Ele estava onde queria estar.

- É um bom terreno para pasto - disse ele simplesmente. - E, se necessário, poderá ser cultivado. Fica situado muito acima de qualquer linha de inundação habitual. O outro terreno, obviamente, eu não conheço.

- Talvez seja um pouco maior - disse o Irmão Matthew num tom inexpressivo, olhando para os seus pergaminhos com a cabeça inclinada, medindo com os olhos semicerrados. - Mas a essa distância, poupa-nos tempo e trabalho. Tal como eu já disse, acho que é uma troca justa.

- O Campo do Oleiro! - disse o prior Robert, num tom pensativo. - Era esse o nome de um campo que foi comprado com as moedas da traição de Judas, para sepultar homens desconhecidos. Espero que o nome não contenha um mau presságio.

- Foi-lhe dado esse nome devido ao meu ofício - disse Ruald. - A terra é inocente. Só a utilização que fazemos dela a pode manchar. Eu trabalhei lá honestamente, antes de saber que o meu destino estava aqui. É uma boa terra. Poderá muito bem ser-lhe dado melhor uso do que como uma oficina e forno como os meus. Para estes um quintal estreito teria servido.

- E o acesso, é fácil? - perguntou o Irmão Richard. - Ele fica situado no outro extremo do rio, quando se vem da estrada.

- Existe um baixio um pouco acima, e uma barcaça ainda mais próxima do campo.

- Aquele terreno foi oferecido a Haughmond há apenas um ano por Eudo Blount de Longner - recordou-lhes o Irmão Anselm. - Blount tem conhecimento desta troca? Ele não levantou objecções? Ou será que ele ainda não foi consultado?

- Devem recordar-se - disse o Irmão Matthew, pacientemente competente em todos os aspectos, como era seu hábito -, que Eudo Blount pai morreu no início deste ano, na retaguarda que assegurou a retirada do rei. O filho dele, que também se chama Eudo, é agora o senhor de Longner. Sim, nós conversámos com ele. Ele não levantou qualquer objecção. A dádiva é propriedade de Haughmond, para ser usada da forma que Haughmond considerar mais proveitosa, e esta troca é-lhe manifestamente vantajosa. Daí não provém qualquer obstáculo.

- E não há qualquer restrição à utilização que nós possamos fazer dele? - perguntou o prior, vivamente. - O acordo terá as cláusulas habituais? Que cada uma das partes pode utilizar os terrenos como desejar? Construir, cultivar ou mantê-los como pastagens, conforme quiser?

- Isso foi acordado. Se quisermos lavrar a terra, não existem quaisquer obstáculos.

- Parece-me - disse o Abade Radulfus, olhando demoradamente em volta dos rostos atentos do seu rebanho -, que já ouvimos o suficiente. Se alguém tiver qualquer outra questão a levantar, deverá fazê-lo agora.

No silêncio pensativo que se seguiu, muitos olhos viraram-se de novo, com alguma expectativa, para o rosto austero do Irmão Ruald, que era o único que se mantinha retraído e indiferente. Quem, melhor que ele, conhecia as qualidades daquele terreno onde trabalhara durante tantos anos, ou estava mais apto a afirmar se fariam bem em aprovar a troca proposta? Mas ele já dissera tudo o que o dever o tinha compelido a dizer e não sentiu necessidade de dizer mais nada. Quando voltara as costas ao mundo e seguira a vocação que desejava, o campo, a cabana, o forno e a família tinham desaparecido para ele. Nunca falava da sua vida anterior, provavelmente nunca pensava nela. Durante todos aqueles anos ele tinha andado perdido e longe de casa.

- Muito bem - disse o abade. - É óbvio que tanto nós como Haughmond beneficiamos com a troca. Conversa com o prior, Matthew, e prepara a escritura, e assim que pudermos marcar o dia, ela será assinada perante testemunhas e selada. E, uma vez feito isso, penso que o Irmão Richard e o Irmão Cadfael deverão ir ver o terreno e pensar na utilização mais lucrativa a fazer dele.

O Irmão Matthew enrolou energicamente os seus planos com um ar satisfeito. O seu papel era vigiar atentamente os bens e os fundos da casa, e avaliar as terras, as colheitas e as heranças em termos dos lucros que poderiam trazer ao mosteiro de São Pedro e São Paulo, e ele tinha avaliado o Campo do Oleiro com astúcia profissional e gostara do que vira.

- Não há mais nada a tratar? - perguntou Radulfus.

- Não, Pai!

- Então este cabido está terminado - disse o abade, saindo da casa do cabido, para o cemitério coberto de erva branqueada pelo sol de Agosto.

O Irmão Cadfael foi à cidade depois das Vésperas, à luz fresca de uma noite clara, para jantar com o seu amigo Hugh Beringar e visitar o seu afilhado Giles, de três anos e meio, há muito um tirano benevolente de toda a família. Tendo em conta o dever sagrado que um mentor tem para com o seu tutelado, e Cadfael tinha autorização para visitar a casa com razoável regularidade, e embora o tempo que passava com o rapaz fosse geralmente ocupado mais com brincadeiras do que com as sérias admoestações de um padrinho responsável, nem Giles nem os seus pais tinham qualquer queixa a fazer.

- Ele presta-te mais atenção - disse Aline, olhando-os com sorridente serenidade -, do que me presta a mim. Mas ele vai-te cansar antes de tu o cansares. Tens sorte de serem quase horas de ele ir para a cama.

Ela era tão branca como Hugh era moreno, loura e de ossos finos, e um pouco mais alta que o marido. O filho tinha as mesmas linhas compridas e magras, e cabelo louro como o dela. Um dia ele seria uns trinta centímetros mais alto que o pai. O próprio Hugh previra isso na primeira vez que vira o seu herdeiro recém-nascido, uma criança que nascera no Inverno, perto do Natal, o melhor dos presentes da festa religiosa. Agora, aos três anos, ele tinha a energia turbulenta de um cachorrinho saudável e o mesmo abandono total ao sono quando a energia se esgotava. Ele acabou por ser levado ao colo de Aline para a sua cama, e Hugh e Cadfael ficaram sentados a conversar amigavelmente enquanto bebiam vinho e recordavam os acontecimentos do dia.

- O terreno do Ruald? - disse Hugh ao tomar conhecimento do assunto discutido no cabido nessa manhã. - Esse é o enorme terreno perto de Longner, onde ele costumava ter a quinta e forno? Eu lembro-me de ele ter sido oferecido a Haughmond, fui uma das testemunhas. Foi no princípio de Outubro do ano passado. Os Blounts foram sempre bons benfeitores de Haughmond. Não que os cónegos alguma vez fizessem grande uso dessa terra quando ela era deles. Ela ficará melhor nas vossas mãos.

- Há muito tempo que não passo por lá perto - disse Cadfael. - Porque é que ele está abandonado? Eu sei que, quando o Ruald entrou para o mosteiro, não havia ninguém para dar continuidade ao seu ofício mas, pelo menos, Haughmond colocou uma rendeira na cabana.

- Exactamente, uma viúva idosa, o que é que ela havia de fazer com a terra? Agora até ela se foi embora, para casa da filha na cidade. O forno foi assaltado para lhe roubarem a pedra, e a cabana está a degradar-se. Já é altura de alguém tomar conta daquele sítio. Este ano, os cónegos não se deram sequer ao trabalho de fazer a colheita do feno, e ficarão contentes por se verem livres dele. - É bom para ambas as partes - disse Cadfael num tom pensativo. - E o Matthew disse-nos que o jovem Eudo Blount de Longner não tem qualquer objecção. Embora o prior de Haughmond tenha seguramente pedido a sua autorização, uma vez que a dádiva foi feita pelo pai dele. É uma pena - disse ele num tom pesaroso -, que o doador tenha entregue prematuramente a alma ao criador e não esteja aqui para dar a sua opinião sobre o assunto. Eudo Blount o velho, da casa senhorial de Longner, tinha deixado as suas terras a cargo do seu filho e herdeiro umas semanas depois de ter feito a dádiva do terreno ao priorado, e tinha ido ter com o exército do Rei Stephen que, na altura, cercava a Imperatriz e as suas forças em Oxford. Ele sobrevivera a essa campanha, mas morrera alguns meses mais tarde na inesperada derrota de Wilton. O rei, mais uma vez, tinha subestimado o seu adversário mais forte, o Conde Robert de Gloucester, e calculara mal a velocidade a que o inimigo se conseguia deslocar, e fora apanhado, apenas com a sua vanguarda, numa situação perigosa da qual só escapou são e salvo devido a uma heróica acção de retaguarda que custou a liberdade a William Martel, o administrador do rei, e a vida a Eudo Blount. Stephen víu-se moralmente obrigado a pagar um preço elevado para resgatar Martel. Ninguém, neste mundo, conseguiu resgatar Eudo Blount. O seu filho mais velho tornou-se senhor de Longner em seu lugar. O filho mais novo, recordava-se Cadfael, um noviço da abadia de Ramsey, tinha trazido o corpo do pai para ser sepultado, em Março.

- Era um homem alto e de fino porte - lembrou Hugh - que não tinha mais de quarenta e dois ou quarenta e três anos. E muito bem parecido! Nenhum dos seus filhos se lhe pode comparar. É estranho o que a vida nos reserva. A sua dama é alguns anos mais velha e sofre de uma doença que a fez definhar e lhe causa dores constantes, no entanto ela continua viva, e ele morreu. Ela não te manda pedir medicamentos? A dama de Longner? Esqueci-me do nome dela.

- Donata - disse Cadfael. - Chama-se Donata. Agora que falas nisso, houve uma altura em que a criada dela costumava vir pedir poções para a ajudar a aliviar as dores. Mas há um ano ou mais que isso não acontece. Eu pensava que ela estivesse a melhorar, ou que sentisse menos necessidade das ervas. Eu não podia fazer muito por ela. Há doenças que estão para além das minhas capacidades.

- Eu vi-a quando sepultaram Eudo - disse Hugh, olhando com tristeza através da porta aberta do salão para o crepúsculo de Verão que se formava, azul e luminoso, por cima do jardim. - Não, não há remissão. Ela tem tão pouca carne entre a pele e os ossos, que eu poderia jurar que a luz brilhava através da sua mão quando ela a ergueu, e o seu rosto era cinzento como a alfazema, e contraído em rugas profundas. Eudo mandou-me chamar quando decidiu ir para Oxford, para o cerco. Eu perguntei a mim próprio como é que ele conseguia deixá-la naquele estado. Stephen não o tinha chamado e, mesmo que o tivesse feito, não havia necessidade de ir ele próprio. A sua única obrigação era fornecer um escudeiro, armado e montado, durante quarenta dias. No entanto, ele pôs os seus assuntos em ordem, pôs a casa senhorial em nome do filho e foi.

- Poderá muito bem ser - disse Cadfael -, que ele já não conseguisse suportar olhar diariamente para um sofrimento que não conseguia evitar nem mitigar.

O tom da sua voz era baixo, e Aline que, nesse momento, voltou a entrar na sala, não ouviu as palavras. A aparição dela, radiosamente feliz na sua plenitude, uma esposa e mãe feliz, expulsou todos esses pensamentos e obrigou os dois a sacudir apressadamente todos os vestígios de solenidade que pudessem ter lançado uma sombra na sua serenidade. Ela foi sentar-se ao pé deles, com as mãos desocupadas, para variar, pois já estava demasiado escuro para coser, ou mesmo fiar, e a noite quente e suave era demasiado bonita para ser banida por velas acesas.

- Ele está a dormir profundamente. Já cabeceava quando estava a rezar. Mas, mesmo assim, despertou o suficiente para exigir a sua história a Constance. Só deve ter ouvido as primeiras palavras, mas hábitos são hábitos. E eu também quero a minha história - disse ela, sorrindo para Cadfael -, antes de permitir que te vás embora. Que notícias há na abadia? Desde a feira que o mais longe que eu tenho ido é até à igreja de Santa Maria para a missa. Achas que a feira foi um êxito este ano? Eu achei que havia menos flamengos lá, mas, mesmo assim, havia alguns tecidos excelentes. Eu comprei, bem, algumas lãs galesas grossas para roupas de Inverno. O xerife - disse ela, voltando um rosto malicioso para Hugh -, não se preocupa com o que veste, mas eu não permito que o meu marido ande roto e a passar frio. Acreditas que o seu melhor traje para usar dentro de casa tem dez anos, já foi forrado duas vezes e, mesmo assim, ele não quer outro?

- Os criados velhos são os melhores - disse Hugh num tom distraído. - Verdade seja dita, é apenas o hábito que me faz procurá-lo, podes fazer-me um novo, minha querida, sempre que quiseres. E por mais novidades, Cadfael disse-me que foi acordada uma troca de terras entre Shrewsbury e Haughmond. O terreno a que chamam o Campo do Oleiro, perto de Longner, passará a pertencer à abadia. Numa boa altura para ser lavrado, se for isso que decidirem, Cadfael.

- Poderá bem ser - admitiu Cadfael. - Pelo menos na parte superior, bem longe do rio. A parte inferior é boa terra de pastagem.

- Eu era cliente do Ruald - disse Aline num tom um tanto pesaroso. - Ele era um bom artesão. Ainda pergunto a mim própria o que é que o levou a abandonar o mundo e a entrar no mosteiro, e tudo tão repentinamente?

- Quem poderá dizer? - Cadfael recordou, como raramente fazia hoje em dia, o ponto de viragem da sua própria vida, muitos anos antes. Depois de ter viajado, lutado, suportando o calor, o frio e privações, depois dos prazeres e das dores da experiência, o desejo súbito e irresistível de voltar as costas a tudo e de se retirar para a quietude permanecia um mistério. Não um retiro, certamente. Era mais uma emergência para a luz e para a certeza. - Ele nunca conseguiu explicá-lo nem descrevê-lo. A única coisa que ele conseguia dizer era que tivera uma revelação de Deus e que se tinha virado para onde lhe tinha sido indicado, e fora para onde tinha sido chamado. Acontece. Eu acho que, a princípio, Radulfus teve dúvidas. Ele prolongou-lhe o noviciado. O seu desejo era extremo, e o nosso abade desconfia de extremos. E, além disso, ele estava casado há quinze anos, e a sua mulher não estava absolutamente nada de acordo. Ruald deixou-lhe tudo o que tinha para deixar, e ela desdenhou de tudo. Ela lutou contra a decisão dele durante semanas, mas ele não se deixou convencer. Depois de ele ter sido admitido no mosteiro, ela não ficou muito tempo na quinta, nem fez uso de nada que ele lhe deixou. Algumas semanas mais tarde ela foi-se embora, deixou a porta aberta e tudo no seu lugar, e desapareceu.

- Com outro homem, pelo menos é o que todos os vizinhos dizem - comentou Hugh cinicamente.

- Bem - disse Cadfael com sensatez -, o dela tinha-a deixado. E ela, para todos os efeitos, sentia-se muito amarga a esse respeito. Era bem possível que ela, para se vingar, tivesse arranjado um amante. Alguma vez a viste?

- Não - respondeu Hugh -, não que me lembre.

- Eu vi - disse Aline. - Ela ajudava na banca dele nos dias do mercado e na feira. No ano passado, não, claro, no ano passado ele estava no mosteiro e ela já tinha desaparecido. Houve muito falatório sobre o facto de Ruald a ter abandonado, naturalmente, e os mexericos nunca são muito caridosos. As mulheres do mercado não gostavam muito dela, e ela nunca se esforçou por fazer amizades, nunca permitiu que se aproximassem dela. E depois, compreendem, ela era muito bonita, e uma estranha. Ele trouxera-a de Gales há muitos anos e, mesmo ao fim de alguns anos, ela mal falava inglês, nunca fez nenhum esforço para deixar de ser uma estranha. Ela parecia não querer ninguém a não ser o Ruald. Não admira que ela tivesse sentido azedume quando ele a abandonou. Os vizinhos disseram que ela passou a odiá-lo, que dizia que tinha outro amante e que podia bem passar sem um marido como ele. Mas ela lutou por ele até ao fim. Por vezes, as mulheres viram-se facilmente para o ódio, quando o amor não lhes deixa nada-a não ser dor. - Ela tinha meditado sobre a angústia de outra mulher com invulgar gravidade; sacudiu a imagem com algum desalento. - Agora eu é que estou a falar da vida dos outros! O que é que vocês vão pensar de mim? E já se passou um ano, seguramente que, a esta hora, ela já deve estar conformada. Não admira que ela tivesse arrancado as suas raízes (as que ela cá tinha eram muito pouco profundas, depois de Ruald se ter ido embora) e regressado ao País de Gales sem dizer nada a ninguém. Com outro homem ou sozinha, que importa?

- Meu amor - afirmou Hugh, ao mesmo tempo comovido e divertido -, tu não paras de me surpreender. Como é que sabes tanto sobre este caso? E porque é que ele te interessa tanto?

- Eu vi-os juntos, isso foi suficiente. Do outro lado da banca da feira, era fácil de ver como ela estava apaixonada. E vocês, os homens - disse Aline com resignada tolerância -, naturalmente que vêem os direitos do homem em primeiro lugar, quando ele decide fazer o que quer, quer seja entrar para um mosteiro, quer seja ir para a guerra, mas eu sou mulher e compreendo como a mulher dele foi maltratada. Será que ela não tinha quaisquer direitos no assunto? E vocês alguma vez pararam para pensar que ele podia ter a liberdade de entrar para um mosteiro, mas que isso não lhe dava liberdade a ela. Ela não podia ter outro marido; o que ela tinha, monge ou não, ainda estava vivo. Isso era justo?

Eu quase - declarou Aline sem rodeios -, espero que ela tenha partido com um amante, em vez de ter que suportar a vida sozinha. Hugh estendeu um braço comprido para puxar a mulher para junto de si, com algo entre uma gargalhada e um suspiro.

- Minha senhora, tens muita razão no que estás a dizer, e este mundo está cheio de injustiças.

- Mas eu acho que o Ruald não teve culpa - disse Aline, cedendo. - Julgo que ele, se pudesse, a teria libertado. Mas está feito, e espero que ela, onde quer que esteja, tenha alguma consolação na vida. E suponho que, se um homem é subitamente tomado por um chamamento de Deus, não há nada que ele possa fazer a não ser obedecer. Pode ter sido igualmente penoso para ele. Que espécie de monge se tornou ele, Cadfael? Era realmente algo que não podia ser negado?

- Na realidade - respondeu Cadfael -, parece que era. O homem é totalmente devoto. Eu acredito verdadeiramente que ele não teve alternativa. - Ele fez uma pausa para pensar, sentindo dificuldade em encontrar as palavras apropriadas para um grau de auto-submissão que lhe era impossível atingir. - Ele agora tem a segurança total que nem o bem nem o mal conseguem alterar, uma vez que, no seu estado actual, tudo está bem. Se agora lhe fosse exigido o martírio, ele aceitá-lo-ia com a mesma serenidade com que aceitaria a felicidade. Na verdade, isso seria a felicidade, ele não conhece outra coisa. Eu duvido que ele pense nalguma parte da vida que levou durante quarenta anos, ou na mulher que conheceu e abandonou. Não, o Ruald não teve outra alternativa.

Aline estava a fitá-lo firmemente com os seus enormes olhos brilhantes que eram tão astuciosos na sua inocência.

- Foi assim para ti - perguntou ela -, quando a tua altura chegou?

- Não, eu tinha uma alternativa. Eu fiz uma escolha. Foi até uma escolha difícil, mas fi-la, e mantenho-a. Eu não sou um santo eleito como o Ruald.

- Isso é ser-se santo? - perguntou Aline. - A mim parece-me demasiado fácil.

A escritura da troca de terras entre Haughmond e Shrewsbury foi redigida, selada e assinada perante testemunhas na primeira semana de Setembro.

Alguns dias mais tarde, o Irmão Cadfael e o Irmão Richard, o sub-prior, foram ver a nova aquisição para decidirem sobre qual a utilização futura que seria mais vantajosa para a abadia. Quando partiram, a manhã estava enevoada mas, quando chegaram à barca um pouco acima do campo, o sol já rompia por entre a neblina, e as suas sandálias deixavam marcas escuras na erva coberta de orvalho acima das margens. Do outro lado do rio, a margem mais distante elevava-se, arenosa e íngreme, cortada aqui e ali pelas correntes e terminando numa estreita faixa plana de erva, com uma crista de arbustos e árvores que se elevava para além dela. Quando saíram do barco, andaram durante alguns minutos ao longo desta cintura de pastagens, e depois deixaram-se i ficar ao canto do Campo do Oleiro, tendo à sua frente, em oblíquo, toda a sua extensão.

Era um local muito aprazível. Da escarpada arenosa da margem do rio, a encosta subia gradualmente em direcção a um promontório natural de arbustos e espinheiros, e a uma tela de filigrana de bétulas recortadas de encontro ao céu. Encostada a esta crista, ao canto de um dos extremos, ficava a cabana vazia, cujo jardim sem cerca se espraiava para os terrenos incultos cobertos de erva por ceifar. Os cereais que Haughmond achara que não valia a pena colher tinham amadurecido e dado semente algumas semanas antes e estavam a perder a cor na palidez do início do Outono e, no meio dos caules branqueados ainda se via todo o tipo de flores silvestres, campainhas, papoilas, margaridas e centáureas, com rebentos verdes da erva nova a despontar por entre as raízes das colheitas a desbotar. Por baixo do promontório, emaranhados de amoreiras silvestres ofereciam frutos que começavam a passar de encarnados a pretos.

- Podíamos cortar e secar isto para servir de cama para o gado - disse o Irmão Richard, lançando um olhar judicioso a toda a expansão silvestre -, mas será que valeria a pena ter esse trabalho? Ou podíamos deixá-lo murchar por si e lavrar a terra ainda com ele lá. Há muitas gerações que esta terra não é lavrada.

- Seria um trabalho pesado - disse Cadfael, olhando com deleite para o brilho da luz do sol nos troncos brancos distantes das bétulas da crista.

- Não tão pesado como poderás pensar. O solo que está por baixo é uma terra preta boa e friável. Nós temos uma junta de bois forte, e o campo tem comprimento suficiente para conseguir colocar seis na canga. Precisamos de um sulco fundo e largo para a primeira vez que se lavrar. Eu recomendaria isso - disse o Irmão Richard, seguro na experiência das suas origens agrícolas, e começou a subir pelo campo até ao cimo, mantendo-se no promontório em vez de seguir pelo meio da erva. - Devíamos deixar a faixa inferior para pastagem e lavrar este nível superior.

Cadfael era da mesma opinião. O campo por que tinham trocado este e que ficava para lá de Haughton tinha servido apenas de pastagem; aqui, eles podiam muito bem fazer uma colheita de trigo ou cevada e depois levar o gado da pastagem inferior para o restolho, para estrumar a terra para o ano seguinte. Este lugar agradava-lhe, no entanto havia nele uma tristeza indefinida. Os restos de uma cerca de jardim, quando lá chegaram, o emaranhado em que as ervas aromáticas e as ervas daninhas lutavam por raiz, luz e espaço, a ombreira sem porta e a janela sem portada, tudo aquilo fazia pensar em seres humanos que tinham partido e ocupação humana abandonada. Sem aqueles restos, esta teria sido uma cena inteiramente plácida, suave e feliz. Mas era impossível olhar para a quinta deserta sem pensar que duas vidas tinham vivido ali durante quinze anos, unidas num casamento sem filhos, e que nem um único vestígio restava de todos os sentimentos e pensamentos que eles tinham partilhado. Nem sem reparar no terreno nu, plano, do qual todas as pedras tinham sido roubadas, e sem recordar que ali, onde agora a lareira estava vazia e fria, tinha trabalhado um artesão, enchendo o seu forno e acendendo-o. Certamente que aqui devia ter havido felicidade, satisfação da mente, uma sensação de realização das mãos. Seguramente que devia ter havido dor, azedume e raiva, mas agora só restavam os detritos dessa vida passada, envoltos numa melancolia fria e indiferente.

Cadfael tinha voltado as costas ao canto que outrora tinha sido habitado, e ali à sua frente estendia-se a extensão do prado, fumegando suavemente à medida que o sol afastava a neblina e o orvalho, e com as cores garridas das flores no meio da erva. Os pássaros afloravam os arbustos do promontório e esvoaçavam por entre as árvores da crista, e a memória incómoda do homem desaparecia do Campo do Oleiro.

- Bem, qual é a tua opinião? - perguntou o Irmão Richard.

- Eu acho que devíamos plantar um cereal de Inverno. Uma lavra funda agora, depois fazer uma segunda lavra e plantar trigo de Inverno, juntamente com algum feijão. Era bom que conseguíssemos colocar um pouco de marga nele para a segunda lavra. - Essa seria uma utilização tão boa como qualquer outra -, concordou Richard, satisfeito, descendo a encosta em direcção à curva e ao brilho do rio sob os seus penhascos de areia em miniatura. Cadfael seguiu-o, com a erva seca a farfalhar à volta dos seus tornozelos em longos, rítmicos suspiros, como se suspirassem ao recordar uma tragédia. Seria bom, pensou ele, começar a cavar o mais depressa possível, de modo a tornar o solo fértil. Vamos plantar milho onde existiu erva daninha, e deitar a velha casa abaixo ou colocar alguém a viver nela, e ela que limpe o jardim e trate dele. Ou isso, ou lavrar tudo. É melhor esquecer que foi um campo e uma quinta de um oleiro.

Nos primeiros dias de Outubro, a junta de seis bois da abadia, com o arado pesado, de rodas altas, atravessou o baixio e cortou e revolveu o primeiro torrão de terra do campo de Ruald. Começaram no canto superior, perto da cabana degradada, e fizeram o primeiro sulco por baixo da crista, sob a enorme proliferação de arbustos e silvas que formavam o promontório. O condutor dos bois incitava a junta, os animais avançavam pesada e imperturbavelmente, a sega penetrava fundo através da turfa e do solo, a relha do arado cortava as raízes emaranhadas e a pá levantava os torrões como uma onda a elevar-se taciturnamente, fazendo surgir solo preto e um forte odor a terra. O Irmão Richard e o Irmão Cadfael tinham vindo assistir ao início dos trabalhos, o Abade Radulfus abençoara o arado, e todos os augúrios eram bons. O primeiro sulco recto já atravessava o campo, de um preto brilhante contra a palidez outonal da erva, e o homem que conduzia o arado, orgulhoso da sua perícia, fez rodar a junta numa curva súbita para a colocar o mais próximo possível do percurso de regresso. Richard tivera razão, o solo não era muito pesado, o trabalho seria rápido.

Cadfael virara as costas ao trabalho e estava na ombreira vazia da cabana, a olhar para o interior vazio. Um ano antes, depois de a mulher ter sacudido dos pés o pó deste lugar e de se ter afastado dos destroços da sua vida para tentar recomeçá-la noutro local, todos os bens móveis do casamento de Ruald tinham sido retirados, com o consentimento do seu suserano de Longner, e dados ao Irmão Ambrose, o esmoler, para serem divididos pelos suplicantes de acordo com as suas necessidades. Nada permanecia no interior. A lareira ainda continha as últimas cinzas frias, e as folhas tinham sido trazidas pelo vento para os cantos e tinham sedimentado ali como ninhos para o ouriço-cacheiro e para o arganaz hibernante. Longas espirais de silvas vindas dos arbustos no exterior tinham entrado pela janela vazia, e um ramo de pilriteiro balouçava por cima do seu ombro, despido de metade das folhas mas carregado de bagas encarnadas. Urtigas e tasneiras tinham criado raízes e cresciam nas fendas do chão. A terra leva muito pouco tempo a cobrir os vestígios dos seres humanos.

Ele ouviu um grito distante vindo do campo, mas pensou apenas que o condutor estava a gritar com a sua junta, até Richard lhe ter agarrado na manga e lhe ter dito bruscamente ao ouvido:

- Aconteceu alguma coisa ali! Olha, eles pararam. Encontraram qualquer coisa, ou partiram qualquer coisa. Oh, espero que não tenha sido a sega! - Ele ficara rapidamente aflito. Um arado é uma máquina cara, e uma sega revestida de ferro num terreno novo, não testado, pode ser bastante vulnerável.

Cadfael virou-se e ficou a olhar para o local em que a junta de bois tinha parado, no extremo do campo onde se elevava o emaranhado de arbustos. Eles tinham levado o arado até lá, fazendo o maior uso possível da terra, e agora os bois, que tinham avançado apenas alguns metros no novo sulco, estavam parados, aguardando pacientemente sob a canga, enquanto o condutor e o lavrador se inclinavam, com as cabeças juntas, a olhar para qualquer coisa no chão. E, ao fim de um momento, o lavrador deu um salto e começou a correr em direcção à cabana, a esbracejar e com os pés a tropeçar na erva alta.

- Irmão... Irmão Cadfael... Venha. Venha ver! Há qualquer coisa ali.

Richard tinha aberto a boca para fazer uma pergunta, um pouco irritado com um chamamento tão incoerente, mas Cadfael tinha olhado para o rosto espantado e inquieto do lavrador, e desatara a correr pelo campo fora. Pois essa coisa, o que quer que fosse, era claramente tão indesejada quanto imprevista, e de uma natureza pela qual uma autoridade mais elevada teria que assumir a responsabilidade. O lavrador correu ao lado dele, balbuciando palavras perturbadas que não lançavam muita luz sobre o assunto.

- A sega trouxe-o ao de cima... há mais enterrado, não se sabe...

O condutor da junta de bois tinha-se posto de pé e estava à espera deles, com as mãos caídas num gesto de impotência.

- Irmão, nós não podíamos tomar isto a nosso cargo, não sabemos o que encontrámos. - Ele tinha conduzido a junta um pouco mais para a frente, para deixar o local livre e mostrar o que tinha interrompido o trabalho de uma forma tão estranha. Debaixo do ligeiro declive da encosta que assinalava a orla do campo, com moitas de giestas inclinadas sobre a curva do sulco, no local em que o arado tinha virado, a sega tinha ido mais fundo e arrastara atrás de si, ao longo do sulco, algo que não era raiz nem caule. Cadfael pôs-se de joelhos e inclinou-se para ver melhor. O Irmão Richard, sacudido finalmente pela consternação que tinha tornado os seus companheiros incoerentes e agora os gelara e emudecera, deixou-se ficar atrás a observar, enquanto Cadfael percorria o sulco com uma mão, tocando nos longos fios que se tinham enredado na sega e que esta tinha trazido para a luz do dia.

Fibras, mas fabricadas pelo homem. Não os fios rijos de raízes arrancadas da encosta, mas fios meio apodrecidos de tecido, outrora preto, ou o vulgar castanho escuro, mas possuindo ainda natureza suficiente para se rasgarem em trapos compridos quando o ferro penetrou nas dobras de onde eles tinham vindo. E mais uma coisa, retirada juntamente com eles, talvez de dentro deles, e deitada ao longo do sulco com quase o comprimento do antebraço de um homem, preta, ondulada e fina, uma longa madeixa de cabelo escuro.

 

O Irmão Cadfael voltou sozinho para a abadia e pediu uma audiência imediata ao Abade Radulfus.

- Pai, algo inesperado fez-me vir ter consigo com esta urgência. Eu não o teria incomodado se não fosse importante, mas acontece que, no Campo do Oleiro, o arado trouxe ao de cima algo que diz respeito tanto a nós como à lei secular. Preciso da sua autorização para comunicar isto também a Hugh Beringar e também, se ele assim o permitir, para prosseguir com o que, de momento, deixámos tal como o encontrámos. Pai, a sega trouxe para a luz do dia pedaços de tecido e cabelo humano. Cabelo de mulher, segundo me parece. É comprido e fino, e acho que nunca foi cortado. E, Pai, está bem preso debaixo da terra.

- Estás a querer dizer-me - disse Radulfus, após uma longa pausa -, que ele ainda está preso a uma cabeça humana. - O tom da sua voz era sensato e firme. Nos seus mais de cinquenta anos, havia poucas situações improváveis com que ele não se tivesse deparado. Embora esta fosse a primeira do género, ela não era, sem dúvida alguma, a mais grave com que alguma vez se confrontara. O enclave monástico ainda faz parte e está dependente de um mundo em que todas as coisas são possíveis. - Nesse local não santificado está enterrado um ser humano. Ilegalmente.

- É o que eu receio - disse Cadfael. - Mas ainda não avançámos de modo a termos a confirmação, pois queríamos ter a sua autorização e a presença do xerife.

- Então o que fizeram? Como é que deixaram as coisas lá no campo?

- O Irmão Richard ficou a vigiar o local. A lavra prossegue, mas com o devido cuidado, e longe daquele sítio. Não pareceu haver necessidade - disse ele sensatamente -, para a protelar. Também não queríamos chamar demasiado a atenção para o que está a acontecer ali. A lavra justifica a nossa presença, ninguém ficará intrigado se nos vir ocupados lá. E, mesmo que seja verdade, isto pode ser antigo, muito antigo, muito anterior a nós.

- É verdade - disse o abade, olhando atentamente para o rosto de Cadfael -, embora eu pense que tu não acreditas numa bênção dessas. Tanto quanto eu saiba dos registos e das cartas régias, nunca houve qualquer igreja ou cemitério perto desse local. Peço a Deus para que não sejam feitas mais descobertas desse género, uma é mais do que suficiente. Bem, tens a minha autorização, faz o que precisa de ser feito.

Cadfael fez o que precisava de ser feito. A primeira prioridade era alertar Hugh e assegurar que a autoridade secular testemunhasse o que quer que se seguisse. Hugh conhecia o seu amigo suficientemente bem para não lançar quaisquer dúvidas, fazer perguntas ou perder tempo com hesitações, e mandou selar imediatamente cavalos, levando consigo um sargento da guarnição para servir de mensageiro em caso de necessidade, e partiu com Cadfael para o baixio do Severn e para o Campo do Oleiro.

Quando seguiram ao longo do promontório até ao local onde o Irmão Richard aguardava, junto da orla da moita de giestas, a junta do arado ainda estava a trabalhar, mais abaixo na encosta. As longas, atenuadas e sinuosas formas em S dos sulcos brilhavam, escuras, contra a palidez espessa e emaranhada do prado. Só este canto sob o promontório tinha sido deixado virgem, e o arado tinha sido desviado depois da primeira e ominosa volta. A cicatriz deixada pela sega terminava abruptamente, e viam-se os filamentos compridos e escuros ao longo do sulco. Hugh baixou-se para olhar e para tocar. Os fios de tecido desintegraram-se sob os seus dedos, os cabelos compridos enrolaram-se e ficaram agarrados a eles. Quando os levantou cuidadosamente, eles deslizaram-lhe na mão, ainda enraizados na terra.

- Seja o que for que encontraram aqui, é melhor desenterrá-lo. Ao que parece, o vosso lavrador estava por demais ansioso por terra. Ele podia ter-nos poupado o trabalho, se tivesse virado a junta a alguns metros da elevação.

Mas já era demasiado tarde, a coisa estava feita e não podia voltar a ser tapada e esquecida. Eles tinham trazido pás, uma enxada para tirar com cuidado o emaranhado de raízes dos arbustos há muito intactos, e uma foice para cortar as giestas salientes que tolhiam os seus movimentos e haviam escondido parcialmente esta sepultura secreta. Ao fim de um quarto de hora, tornou-se claro que a forma que estava por baixo tinha, de facto, o comprimento de uma sepultura, pois os pedaços de tecido apodrecidos apareciam aqui e ali em alinhamento com o sopé da encosta, e Cadfael abandonou a pá e ajoelhou-se para tirar a terra com as mãos. Não era sequer uma sepultura muito funda, era mais como se esta trouxa embrulhada tivesse sido escondida sob a encosta, e a terra cheia de ervas colocada de novo sobre ela, com os arbustos a dissimular o local. A uma profundidade suficiente para não ser perturbada, num sítio como aquele; um arado menos eficiente não teria dado uma curva tão apertada para a atingir, e a sega não teria ido suficientemente fundo para a penetrar.

As mãos de Cadfael percorreram as faixas de tecido preto expostas e sentiu os ossos no seu interior. O longo rasgão feito pela sega cortava o lado mais distante da encosta do meio até à cabeça, de onde tinha trazido, juntamente com os fios, a madeixa de cabelo. Ele escavou o local onde o rosto deveria estar. O corpo estava coberto, da cabeça aos pés, com faixas de tecido de lã, uma capa ou um cobertor, mas já não havia qualquer dúvida de que se tratava de um ser humano enterrado ali em segredo. Ilegalmente, dissera Radulfus. Enterrado ilegalmente, morto ilegalmente.

Com as mãos, eles escavaram pacientemente o solo que envolvia a forma inconfundível de um ser humano, trabalhando cuidadosamente de ambos os lados por baixo dela, para a retirar do seu leito, erguê-la da sua sepultura e colocá-la sobre a erva. Leve, magra e frágil, ela emergiu para a luz, manuseada com a respiração sustida e com muito cuidado, pois a cada fricção os fios de lã esfarelavam-se e desintegravam-se. Cadfael separou as dobras e abriu o tecido para expor os restos mirrados.

Era certamente uma mulher, pois tinha um vestido comprido, escuro, sem cinto, sem qualquer ornamento e parecia, estranhamente, que a saia tinha sido cuidadosamente disposta em dobras regulares, ainda preservadas pelo cobertor em que tinha sido embrulhada para ser sepultada. O rosto era esquelético, as mãos que emergiam das mangas compridas eram apenas ossos, mas o invólucro mantinha a sua forma. Nos pulsos e nos tornozelos viam-se vestígios de carne seca e mirrada. A última recordação que lhe restava de uma vida abundante era a enorme coroa de cabelo preto, entrançado, do qual a sega tinha retirado um caracol despenteado da têmpora direita. Estranhamente, era óbvio que ela tinha sido colocada na sepultura com todo o decoro, com as mãos juntas e cruzadas sobre o peito. Mais estranhamente ainda, estas seguravam uma cruz tosca, feita de dois paus aparados unidos por uma fita de linho.

Cadfael voltou a colocar cuidadosamente as orlas do tecido a apodrecer por cima do crânio, do qual o cabelo escuro brotava em estranha profusão. Com o rosto da caveira coberto, ela tornou-se ainda mais assombrosa, e os quatro afastaram-se um pouco, olhando-a com uma expressão de indiferente assombro, pois perante uma morte tão composta e austera, a piedade e o horror pareciam igualmente irrelevantes. Eles não sentiam sequer qualquer vontade de perguntar o que havia de estranho no modo como fora sepultada, nem de admitir que tinham reparado nisso. Ainda não; essa altura viria, mas não agora, não ali. Em primeiro lugar, sem qualquer comentário nem interrogação, era preciso completar o que era necessário fazer.

- Bem - disse Hugh secamente -, e agora, Irmãos? Isto recai sob a minha jurisdição ou sob a vossa?

O Irmão Richard, com o rosto um pouco mais cinzento do que era habitual, disse num tom de dúvida:

- Estamos num terreno da abadia. Mas isto não está exactamente de acordo com a lei, e a lei é da sua competência. Não sei qual é a vontade do senhor abade, num caso tão estranho.

- Ele vai querer que a levemos para a abadia - disse Cadfael com segurança. - Quem quer que ela seja, independentemente do tempo que tenha permanecido sepultada sem ter sido abençoada, é uma alma a ser salva, e merece uma sepultura cristã. Iremos retirá-la de um terreno da abadia, e ele vai querer que ela seja devolvida ao terreno da abadia. Depois de ela ter recebido aquilo a que tem direito, se é que isso alguma vez poderá ser determinado - disse Cadfael com determinação.

- Pelo menos, pode ser tentado - disse Hugh, lançando um olhar pensativo à moita de giestas e ao buraco que tinham aberto através da turfa. - Será que haverá mais alguma coisa aqui, enterrado com ela? Vamos, pelo menos, desobstruir um pouco mais, e mais fundo, para ver. - Baixou-se para embrulhar melhor o corpo com o cobertor e, ao tocar-lhe, os fios separaram-se e fizeram grãos de poeira flutuar pelo ar.

- Vamos precisar de uma mortalha melhor para a levarmos connosco, e de uma padiola para ela poder ser transportada inteira e em posição de descanso, tal como a vimos. Richard, pega no meu cavalo, vai ter com o senhor abade e diz-lhe simplesmente que, na realidade, encontrámos um corpo enterrado aqui e que nos envie uma padiola e uma cobertura decente para a levarmos para casa. Por agora, não precisamos de mais nada. Que mais sabemos nós? Deixa outros pormenores para quando voltarmos.

- Fá-lo-ei! - concordou o Irmão Richard, num tom tão veemente que era óbvio que sentira um grande alívio. A sua natureza despreocupada não fora feita para descobertas daquelas, e ele preferia uma vida ordenada em que todas as coisas se comportavam como deviam e lhe poupavam um esforço excessivo do corpo ou da mente. Ele dirigiu-se entusiasticamente para onde o cavalo cinzento e magro de Hugh comia pacificamente a turfa mais verde debaixo do promontório, elevou um pé forte para a espora e montou. Não havia nada de errado com a sua equitação a não ser falta de prática recente. Ele era um filho mais novo de uma família nobre e, com apenas dezasseis anos, tinha feito a escolha entre o serviço das armas e o serviço no mosteiro. O cavalo de Hugh, que não tolerava a maior parte dos cavaleiros excepto o seu dono, condescendeu, sem ressentimento, em transportá-lo ao longo do promontório e pelo prado abaixo.

- Embora ele o possa cuspir no baixio - comentou Hugh, vendo-os afastar-se em direcção do rio, - se lhe der na gana. Bem, vejamos o que podemos encontrar aqui.

O sargento estava a cavar a encosta, debaixo das moitas de giestas. Cadfael virou as coisas à morta e, com o hábito apanhado, desceu para a sepultura e, com a pá, começou a tirar de lá a terra solta e a tornar mais funda a cova em que ela estivera deitada.

- Nada - disse ele finalmente, ajoelhado num chão que era agora mais compacto e mais duro e cuja cor estava a tornar-se mais clara, com o subsolo a revelar uma camada de argila. - Estás a ver isto? Mais abaixo, junto do rio, o Ruald tinha dois ou três locais onde ia buscar a argila. Já está esgotada, dizem, pelo menos nos sítios em que era obtida com facilidade. Este não é mexido há mais tempo do que ela aqui está. Não precisamos de ir mais fundo, não há nada aqui. Vamos procurar um pouco dos lados, mas duvido que haja mais alguma coisa.

- É mais do que suficiente - disse Hugh, limpando as mãos sujas à turfa espessa e fibrosa. - E não é suficiente. É demasiado pouco para lhe atribuir uma idade ou um nome.

- Ou uma família ou uma casa, ainda vivas - concordou Cadfael com tristeza -, ou um motivo para ter morrido. Não podemos fazer mais nada aqui. Já vi o que havia para ser visto sobre o modo como foi colocada. O que falta fazer deverá ser feito em privado, com tempo e testemunhas de confiança.

Decorreu mais uma hora até o Irmão Winfrid e o Irmão Urien chegarem ao promontório, carregados com cobertores e uma padiola. Eles levantaram cuidadosamente o feixe de ossos, dobraram os cobertores à volta deles e cobriram-nos recatadamente, de modo a não serem vistos. O sargento de Hugh foi enviado de volta para a guarnição do castelo. Em silêncio e a pé, o insignificante cortejo fúnebre da desconhecida partiu para a abadia.

- É uma mulher - disse Cadfael, informando, a seu devido tempo, o Abade Radulfus na privacidade da sala do abade. - Colocámo-la na capela mortuária. Duvido que haja qualquer coisa nela que possa ser reconhecida por qualquer homem, mesmo que a sua morte seja recente, o que eu considero improvável. O vestido é do género que qualquer camponesa usaria, sem ornamentos, sem cinta, outrora de um preto vulgar, hoje em dia desbotado. Ela não tem sapatos, nem jóias, nem nada que a identifique.

- O seu rosto...? - perguntou o abade, num tom de dúvida, não esperando nada.

- Pai, o seu rosto é agora uma imagem comum. Não resta nada que leve um homem a dizer: Esta é a mulher, ou a irmã, ou uma mulher que eu conheci. Nada, excepto, talvez, o facto de ela ter uma farta cabeleira escura. Mas o mesmo acontece com muitas mulheres. É de altura média para uma mulher. Quanto à idade, só podemos especular, e isso muito por alto. Seguramente que, pelo cabelo, não era velha, mas acho que também não era muito nova. Uma mulher na força da idade, mas entre vinte cinco e quarenta anos, quem poderá dizer?

- Então não há absolutamente nada de singular a seu respeito? Nada que a distinga? - perguntou Radulfus.

- Há o modo como ela foi enterrada - disse Hugh. - Sem luto, sem ritos, colocada ilegalmente em terreno não sagrado.

E, no entanto... Cadfael dir-lhe-á. Ou, se preferir, Pai, pode ver por si próprio, pois nós deixámo-la deitada tal como a encontrámos.

- Estou a começar a compreender - disse Radulfus com determinação -, que devo, de facto, ir ver esta mulher morta com os meus próprios olhos. Mas uma vez que tanta coisa já foi dita, podem contar-me o que é que ultrapassa em estranheza as circunstâncias do seu enterro secreto. E, no entanto...?

- E, no entanto, Pai, ela foi deitada direita e com compostura, o cabelo foi entrançado, as mãos cruzadas sobre o peito, por cima de uma cruz formada com dois paus de sebe ou de um arbusto. Quem quer que a tenha enterrado, fê-lo com uma manifestação de respeito.

- O pior dos homens, ao fazê-lo, poderá sentir algum temor - disse Radulfus lentamente, franzindo a testa ao tomar conhecimento desta prova de uma mente dividida. - Mas foi um acto feito no escuro, secretamente. Ele implica um acto pior, também feito no escuro. Se a sua morte foi natural, sem qualquer implicação de culpa para qualquer homem, por que motivo não houve um padre, não houve ritos fúnebres? Até agora, Cadfael, ainda não argumentaste que esta pobre criatura foi morta tão ilegalmente como foi sepultada, mas eu faço-o. Que outro motivo poderá haver para ter sido enterrada em segredo e sem ser abençoada? E até mesmo a cruz que o seu coveiro lhe deu, ao que parece, foi cortada de uma sebe, para que nunca fosse conhecida como propriedade de qualquer homem, para que ela não apontasse o dedo ao assassino! Pois, pelo que tu dizes, tudo aquilo que lhe possa ter devolvido a identidade foi removido do seu corpo, para que o segredo se mantivesse secreto, mesmo agora que o arado a trouxe de volta à luz e à possibilidade da graça.

- Parece que, de facto, assim foi - disse Hugh gravemente -, só que Cadfael não encontrou qualquer sinal de ferimento nela, nenhum osso partido, nada que mostre como morreu. Depois de tanto tempo enterrada, talvez seja difícil encontrar um golpe de um punhal ou de uma faca, mas nós não vimos qualquer sinal disso. Ela não tem o pescoço partido, nem o crânio. Cadfael não acha que ela tenha sido estrangulada. É como se ela tivesse morrido na cama, até mesmo enquanto dormia. Mas, nesse caso, ninguém a teria enterrado sorrateiramente e ocultado tudo o que a distinguia de todas as outras mulheres.

- Não, é verdade! Ninguém poria em perigo a sua própria alma a não ser por razões desesperadas. - O abade reflectiu durante alguns minutos em silêncio, considerando o problema que lhe tinha caído tão estranhamente em cima. Era fácil agir bem para com a morta maltratada, como a sua alma imortal merecia. Mesmo sem um nome, podiam ser rezadas orações por ela e cantada uma missa; e o enterro cristão que lhe fora negado, a sepultura cristã, podiam ser-lhe finalmente dados. Mas a justiça do mundo também clamava por reconhecimento. Ele levantou os olhos para Hugh, uma função a avaliar a outra. - O que dizes, Hugh? Esta mulher foi assassinada?

- Em vista do pouco que sabemos, e do muito que não sabemos - disse Hugh cuidadosamente -, não me atrevo a partir do princípio que não tenha sido. Ela está morta, e foi atirada para a terra sem confissão. Até haver motivo para ter uma opinião melhor sobre o acto, considero-o um assassínio.

- Então, para mim é claro - disse Radulfus, após um pequeno silêncio -, que não acreditas que ela estivesse sepultada há muito tempo. Isto não é uma ignomínia de muito antes do nosso tempo, nem nada com que não nos devamos preocupar a não ser com corrigir adequadamente o mal que foi feito à sua alma. A justiça de Deus pode estender-se através dos séculos e aguardar a sua altura durante séculos, mas a nossa é impotente fora da nossa geração. Há quanto tempo calculas que ela tenha morrido?

- Só posso tentar adivinhar, e com humildade - disse Cadfael. - Pode não ter sido há mais de um ano, pode ter sido há três ou quatro, até mesmo cinco anos, mas não mais do que isso. Ainda há pouco tempo ela estava viva e a respirar.

- E eu não posso fugir dela - disse Hugh num tom irónico.

- Não. Nem eu. - O abade colocou as mãos espalmadas sobre a secretária e levantou-se. - Mais uma razão para eu a ver cara a cara e reconhecer o meu dever para com ela. Vamos olhar para a nossa hóspede. Devo-lhe isso, antes de a entregar à terra, desta vez com melhores augúrios. Quem sabe, poderá haver alguma coisa, uma coisa pequena, que faça com que alguém que a tenha conhecido se lembre da mulher viva.

Pareceu a Cadfael, enquanto atravessava o pátio e passava o alpendre sul em direcção ao claustro e à igreja atrás do seu superior, que havia algo pouco natural na forma como todos eles estavam a evitar dizer um nome. Este ainda não fora pronunciado, e ele não pôde deixar de se interrogar quem seria o primeiro a dizê-lo, e por que motivo ele próprio não tinha já precipitado o inevitável. Não poderia decorrer muito mais tempo sem que ele fosse dito. Mas, entretanto, deveria ser o abade a tentar fazê-lo primeiro. A morte, nova ou velha, não o desconcertava.

Na pequena e gelada capela mortuária, as velas ardiam à cabeça e aos pés do ataúde de pedra, em cima do qual a mulher sem nome estava deitada, com um lençol de linho esticado sobre ela. Ao examinarem os ossos à procura de uma pista sobre a causa da sua morte, eles tinham tocado o menos possível nos restos mortais e, terminada a infrutífera inspecção, tinham-nos colocado tão em ordem quanto o conseguiram. Tanto quanto Cadfael conseguia determinar, não havia qualquer sinal de ferimento nela. No espaço fechado, ela cheirava fortemente a terra, mas o frio da pedra suavizava o cheiro, e a compostura e o decoro do seu repouso ultrapassavam a presença intimidante da morte antiga, assim exposta de novo e sumariamente à luz e à intrusão dos olhos.

O Abade Radulfus aproximou-se dela sem hesitação e puxou para trás o lençol que a cobria, dobrando-o sobre o braço. Ficou alguns minutos a observar atentamente os restos mortais, desde o cabelo escuro, luxuriante, até aos ossos finos e nus dos pés, que certamente os pequenos e secretos habitantes do promontório tinham ajudado a descarnar. Ele olhou mais demoradamente para os ossos brancos do seu rosto, mas não encontrou nada ali que a distinguisse de todas as longas gerações das suas irmãs mortas.

- Sim. É estranho! - disse ele, quase para si próprio. - Alguém certamente que sentiu ternura por ela e respeitou os seus direitos, mesmo que não tivesse ousado conceder-lhos. Um homem para matar, talvez, e outro para sepultar? Um padre, possivelmente? Mas porque haveria ele de ocultar a sua morte, se não tinha qualquer culpa nela? É possível que o mesmo homem a tivesse morto e enterrado?

- Têm acontecido coisas assim - disse Cadfael.

- Um amante, talvez? Algum acidente fatal, não intencional? Um momento de violência de que se arrependeu imediatamente? Mas não, se fosse só isso, não haveria motivo para esconder.

- E não há quaisquer vestígios de violência - disse Cadfael.

- Então como é que ela morreu? Não de doença, senão estaria no cemitério, absolvida e abençoada. De que outro modo? Envenenada?

- Isso é possível. Ou uma punhalada que lhe atingiu o coração e que pode não ter deixado quaisquer vestígios nos seus ossos, pois estes estão inteiros e direitos, não foram deformados por um golpe ou por uma fractura.

Radulfus voltou a colocar o lençol de linho, alisando-o metodicamente em cima dela.

- Bem, vejo que há pouco aqui que se possa comparar com um rosto vivo ou a que seja possível atribuir um nome. No entanto, acho que se deve tentar fazer isso. Se ela esteve aqui, viva, nos últimos cinco anos, então houve alguém que a conheceu bem e que saberá qual foi a última vez que ela foi vista e deu pela sua falta depois. Vamos - disse o abade -, vamo-nos embora e reflectir cuidadosamente sobre todas as possibilidades que nos vierem à mente.

Nesta altura, era óbvio para Cadfael que a primeira e mais ominosa possibilidade já viera à mente do abade e trouxera com ela uma profunda inquietação. Quando estavam os três de novo na tranquilidade da sala, isolados do mundo pela porta fechada, o nome teve que ser dito.

- Há duas perguntas que aguardam resposta - disse Hugh, tomando a iniciativa. - Quem é ela? E se essa pergunta não puder ser respondida com segurança, então quem poderá ela ser? E a segunda: Alguma mulher desapareceu desta região durante estes últimos anos, sem uma palavra e sem deixar rasto?

- De uma delas - disse o abade pesadamente -, nós temos certamente conhecimento. E o lugar em si é muito adequado. No entanto, nunca ninguém duvidou que ela se tivesse ido embora por sua livre vontade. Foi um caso que tive dificuldade em aceitar, tal como a mulher nunca aceitou. No entanto, impedir o Irmão Ruald de seguir a inclinação da sua alma era tão viável como não deixar o sol nascer. Quando tive a certeza a respeito dele, não me restou outra alternativa. Para meu grande desgosto, a mulher nunca se conformou.

Assim, o nome do homem tinha sido mencionado. Talvez ninguém se recordasse sequer do da mulher. Muitos dos que estavam no interior do convento nunca tinham posto os olhos nela, nem ouvido falar nela até o marido ter tido a sua visitação e se ter deixado ficar pacientemente ao portão, pedindo para ser admitido.

- Tenho que lhe pedir autorização para que ele veja o corpo - disse Hugh. - Mesmo que ela seja, de facto, a mulher dele, na realidade ele poderá não ser capaz de o dizer com alguma certeza, no entanto temos que lhe pedir que faça a tentativa. O campo era dele, a quinta foi a casa dela depois de ele se ter ido embora. - Ele ficou calado durante um longo momento, olhando com firmeza para o rosto fechado e sério do abade. - Depois de o Ruald ter entrado para cá, até à altura em que se diz que ela se foi embora com outro homem, ele foi alguma vez mandado lá? Houve os pertences que ele lhe deu, poderia haver acordos a ser feitos, até mesmo assinados perante testemunhas. Alguém sabe se ele voltou a encontrar-se com ela, depois de se terem separado?

- Encontrou - disse Radulfus imediatamente. - Visitou-a duas vezes no início do seu noviciado, mas acompanhado pelo Irmão Paul. Como mestre dos noviços, o Paul estava preocupado com a paz de espírito do homem, bem como com a da mulher, e fez o possível por levá-la a aceitar e abençoar a vocação do Ruald. Em vão! Mas ele foi com o Paul e voltou com o Paul. Não tenho conhecimento de qualquer outra ocasião em que ele pudesse tê-la visto ou falado com ela.

- Nem nunca foi trabalhar no campo ou fazer qualquer outra coisa perto daquele campo?

- Já se passou mais de um ano - disse o abade num tom calmo. - Até mesmo o Paul teria dificuldade em dizer onde é que o Ruald trabalhou durante todo esse tempo. Normalmente, durante o seu noviciado, sempre que fosse mandado trabalhar fora do claustro, ele estaria acompanhado por, pelo menos, um irmão, provavelmente mais de um. Mas, sem dúvida - disse ele retribuindo o olhar de Hugh com igual fixidez -, que vai querer perguntar isso a ele.

- Com a sua autorização, Pai, quero.

- Agora, imediatamente?

- Se o autorizar, sim. O que encontrámos ainda não é do conhecimento geral. É melhor que ele seja apanhado de surpresa, sem qualquer aviso e desconhecendo qualquer motivo de fingimento. Em sua própria defesa - disse Hugh enfaticamente -, se mais tarde vir que tem necessidade de defesa.

- Vou mandar chamá-lo - disse Radulfus. - Cadfael, importas-te de ir à procura dele e, talvez, se o xerife concordar, trazê-lo directamente para a capela? Tal como disseste, deixá-lo vir na ignorância, para seu próprio bem. E agora me lembro - disse o abade -, de uma coisa que ele próprio disse na primeira vez que esta troca de terras foi discutida. A terra é inocente, disse ele. É a utilização que fazemos dela que a mancha.

O Irmão Ruald era o exemplo perfeito da obediência, o aspecto da Regra com que Cadfael sempre tivera mais problemas. Ele levava a sério o dever de obedecer imediatamente a qualquer ordem dada por um superior como se fosse um comando divino, "sem falta de entusiasmo nem resmungos", e certamente sem perguntar "Porquê?", que era o primeiro instinto de Cadfael, agora domesticado mas não esquecido. Chamado por Cadfael, mais velho e sénior na vocação, Ruald seguiu-o até à capela mortuária sem fazer quaisquer perguntas, não sabendo o que esperava, a não ser que o abade e o xerife desejavam a sua presença.

Até mesmo no limiar da capela, subitamente confrontado pela forma do esquife, pelas velas e por Hugh e Radulfus a conversar em voz baixa no outro extremo da laje de pedra, Ruald não hesitou, mas avançou e ficou à espera de saber o que era pretendido dele, totalmente dócil e perfeitamente sereno.

- Mandou-me chamar, Pai.

- Tu és um homem desta região - disse o abade -, e, até recentemente, conhecias todos os teus vizinhos. Talvez nos possas ajudar. Temos aqui, como vês, um corpo encontrado por acaso, e nenhum de nós consegue, através de qualquer sinal, atribuir um nome à morta. Vê se consegues fazer melhor. Aproxima-te.

Ruald obedeceu e ficou a olhar fielmente para a forma amortalhada enquanto Radulfus puxava o lençol para trás com um movimento brusco e descobria os ossos rigidamente ordenados e o rosto sem carne com as suas madeixas de cabelo escuro. Certamente que a tranquilidade de Ruald estremeceu perante a visão inesperada, mas as vagas de compaixão, alarme e angústia que lhe perpassaram o rosto não foram mais do que uma ligeira ondulação num lago calmo, e ele não desviou os olhos e continuou a olhá-la atentamente da cabeça aos pés e voltando de novo para o rosto, como se, através de um longo olhar, conseguisse voltar a construir, no olho da sua mente, a carne que outrora revestira o osso nu. Quando levantou os olhos para o abade, foi com uma expressão de suave espanto e tristeza resignada.

- Pai, não há nada aqui que alguém consiga reconhecer e a que possa dar um nome.

- Olha outra vez - disse Radulfus. - Há uma forma, uma altura, cor. Esta era uma mulher, alguém deve ter estado um dia perto dela, talvez um marido. Existem por vezes meios de reconhecimento que não dependem dos traços de um rosto. Não há nada nela que te desperte a lembrança?

Seguiu-se um longo silêncio enquanto Ruald repetia o seu cuidadoso escrutínio de todos os trapos que a vestiam, das mãos cruzadas ainda a segurar a cruz improvisada. Depois ele disse, com uma tristeza cuja origem era mais o facto de decepcionar o abade do que uma morte distante:

- Não, Pai, lamento muito. Não há nada. É uma questão assim tão grave? Todos os nomes são conhecidos de Deus.

- É verdade - disse Radulfus -, tal como Deus sabe onde estão sepultados todos os seus mortos, até mesmo os que foram escondidos secretamente. Eu tenho que te dizer, Irmão Ruald, onde é que esta mulher foi encontrada. Tu sabes que a lavra do Campo do Oleiro deveria começar esta manhã. Na volta do primeiro sulco, sob o promontório e parcialmente escondido pelos arbustos, a junta do arado da abadia trouxe ao de cima um pedaço de tecido de lã e uma madeixa de cabelo escuro. No campo que outrora foi teu, o xerife desenterrou e trouxe para esta casa esta mulher morta. Agora, antes de eu a cobrir, olha outra vez, e diz-me se não há nada que te diga qual deveria ser o seu nome.

Pareceu a Cadfael, observando o perfil de Ruald, que apenas neste momento a sua compostura foi abalada por um estremecimento de horror genuíno, até mesmo de culpa, embora fosse uma culpa sem medo, certamente não de uma morte física, mas da morte de um afecto ao qual ele voltara as costas sem sequer olhar para trás. Inclinou-se mais sobre a morta, observando-a atentamente, e um leve orvalho de suor surgiu-lhe na testa e no lábio. A luz da vela captou o seu brilho. Este último silêncio durou uns longos momentos, antes de ele, pálido e trémulo, erguer a vista para o rosto do abade.

- Pai, Deus me perdoe um pecado que eu só agora compreendi. Arrependo-me do que agora considero ser uma falta terrível em mim. Não há nada, nada que me diga alguma coisa. Não sinto nada ao olhar para ela. Pai, mesmo que esta fosse, de facto, Generys, a minha mulher Generys, eu não a reconheceria.

 

Na sala do abade, cerca de vinte minutos depois, ele já recuperara a calma, a calma da resignação, até mesmo aos seus próprios defeitos e fracassos, mas não parara de se acusar a si próprio.

- Preocupado com as minhas próprias necessidades, eu protegi-me contra as dela. Que tipo de homem consegue quebrar um afecto que durava há metade de uma vida e, ao fim de um ano, não sentir nada? Sinto-me envergonhado por conseguir estar ao lado daquele esquife a olhar para os restos mortais de uma mulher, e ser obrigado a dizer: Não sei. Tanto quanto eu saiba, pode ser a Generys. Não estou a ver porque é que havia de ser, ou como é que isso poderia ter acontecido, mas também não consigo dizer: Não é. O meu coração não sentiu nada. E quanto aos olhos e à mente, o que existe agora naqueles ossos que fale a qualquer homem?

- Excepto - disse o abade num tom austero -, na medida que isso fala a todos os homens. Ela foi enterrada secretamente, sem ritos, num chão não abençoado. Daí a chegarmos à conclusão de que encontrou a morte de uma forma igualmente secreta e não abençoada às mãos do homem, vai apenas um pequeno passo. Ela exige de mim uma devida, se bem que atrasada, preparação da sua alma, e reclama do mundo justiça pela sua morte. Tu declaraste, e eu acredito, que não podes dizer quem ela é. Mas uma vez que foi encontrada numa terra que já foi tua, perto da quinta de onde a tua mulher partiu e para a qual nunca voltou, é natural que o xerife tenha perguntas a fazer-te. E é possível que, antes de este assunto ficar resolvido, ele tenha perguntas a fazer a muitas outras pessoas.

- Eu compreendo isso - disse Ruald num tom humilde -, e responderei ao que me for perguntado. De bom grado e com toda a verdade.

E ele fê-lo, até mesmo com uma ansiedade triste, como se quisesse flagelar-se pelos erros que acabara de tomar consciência de ter cometido em relação à sua mulher, quando se alegrara com a sua própria realização enquanto ela provava apenas o veneno da amargura e da privação.

- Agi bem em ir para onde fui chamado e em fazer o que me estava destinado. Mas procedi mal ao abraçar a minha alegria e esquecer completamente a infelicidade dela. Agora chegou o dia em que não consigo sequer recordar-me do rosto dela, nem da forma como se movia, apenas sinto plenamente a inquietação, ignorada há demasiado tempo, que ela deixou em mim. Onde quer que esteja, ela tem a sua retribuição. Nestes últimos seis meses - disse ele penosamente -, nem sequer tenho rezado pela sua paz. Esquecia-a completamente, porque me sentia feliz.

- Creio que a visitou duas vezes, depois de ter sido recebido aqui como postulante - disse Hugh.

- Visitei, com o Irmão Paul, como ele lhe dirá. Eu tinha bens que o Pai Abade me autorizou a dar-lhe, para o seu sustento. Isso foi feito legalmente. Essa foi a primeira ocasião.

- E quando foi isso?

- No dia vinte e oito de Maio do ano passado. E voltámos outra vez à quinta nos primeiros dias de Junho, depois de eu ter juntado a quantia que recebi da venda da minha roda, das ferramentas e do que restava de útil na quinta. Estava à espera que ela já estivesse resignada e me concedesse o seu perdão e benevolência, mas isso não aconteceu. Durante todas aquelas semanas, insistira comigo para que eu me mantivesse a seu lado como antes. Mas naquele dia ela virou-se para mim com ódio e raiva, recusou-se a tocar em qualquer parte do que era meu e gritou que eu podia ir-me embora, pois ela tinha um amante merecedor do seu amor, e toda a ternura que sentira por mim tinha-se transformado em rancor.

- Ela disse-lhe isso? - perguntou Hugh secamente. - Que tinha outro amante? Eu sei que foi isso que se disse quando ela abandonou a cabana e se foi embora em segredo. Mas o Irmão ouviu-o dos seus próprios lábios?

- Sim, ela disse isso. Estava cheia de azedume porque, depois de não ter conseguido manter-me a seu lado, também não podia libertar-se de mim e ser livre aos olhos do mundo, pois eu ainda era seu marido, um fardo sobre os seus ombros, e ela não conseguia livrar-se de mim. Mas isso não a ia impedir, disse ela, de tomar a sua liberdade à força, porque tinha um amante que valia cem vezes mais do que eu, e iria com ele, se ele lhe pedisse, até ao fim do mundo. O Irmão Paul assistiu a tudo isso - disse Ruald com simplicidade. - Ele dir-lhe-á.

- E essa foi a última vez que a viu?

- Essa foi a última vez. No final do mês de Junho ela já se tinha ido embora.

- E, desde essa altura, alguma vez voltou àquele campo?

- Não. Eu tenho trabalhado nas terras da abadia, a maior parte do tempo em Gaye, mas esse campo só agora passou a pertencer à abadia. No início de Outubro, faz agora um ano, ele foi dado a Haughmond. Eudo Blount de Longner, que era o meu suserano, ofereceu-lhos. Eu nunca pensei que iria voltar a ver ou ouvir falar daquele lugar.

- Ou de Generys? - interrompeu Cadfael suavemente, e viu as linhas do rosto magro de Ruald ficarem tensas num breve espasmo de dor e vergonha. E ele suportaria fielmente até mesmo essas sensações, pois elas eram mitigadas e tornadas suportáveis pela garantia de alegria que agora nunca o abandonava. - Eu tenho uma pergunta a fazer - disse Cadfael -, se o Pai Abade permitir. Em todos os anos que passaste com ela, alguma vez tiveste motivo de queixa da lealdade e da fidelidade da tua mulher, ou do amor que nutria por ti?

Ruald respondeu, sem qualquer hesitação: - Não! Ela sempre foi leal e afectuosa. Quase demasiado afectuosa! Duvido que alguma vez conseguisse igualar a sua devoção. Eu tirei-a da sua terra - disse Ruald colocando a verdade à frente dos seus próprios olhos e mal prestando atenção aos que o ouviam -, para um país que lhe era desconhecido, onde a sua língua era estranha e os seus modos incompreendidos. Só agora vejo que ela me deu muito mais do que eu alguma vez conseguiria retribuir-lhe.

Ao fim da tarde, eram quase horas para as Vésperas, Hugh pediu de volta o cavalo que o Irmão Richard considerara guardado no estábulo para o resto do dia e saiu pelo portão em direcção a Foregate. Por um momento, ele hesitou, indeciso entre virar à esquerda e ir para a sua casa, na vila, ou à direita e continuar a procurar a verdade até depois do crepúsculo. Uma leve neblina azul já se elevava acima do rio e o céu estava nublado, mas ainda haveria uma hora ou mais de luz, tempo suficiente para ir até Longner e voltar, e conversar com o jovem Eudo Blount. Ele duvidava que este tivesse prestado muita atenção ao Campo do Oleiro desde que fora doado a Haughmond mas, pelo menos, a sua casa senhorial ficava perto dele, acima do espinhaço, no meio dos bosques dos seus domínios, e era possível que algum dos seus homens tivesse que passar por ali quase todos os dias. Valia a pena investigar.

Dirigiu-se ao baixio, deixando a estrada perto do hospital de Saint Giles, e seguiu o trilho ao longo do rio, deixando a encosta parcialmente lavrada à sua esquerda. Para além do promontório que ladeava a nova terra lavrada, uma suave encosta de bosques começava acima das margens do rio e, num espaço livre de árvores no interior desta cintura arborizada estava situada a casa senhorial de Longner, em segurança de qualquer cheia. A galeria subterrânea baixa estava recuada de encontro à encosta, e a escada íngreme de pedra conduzia à porta do salão e ao piso de habitação superior. Quando Hugh entrou pelo portão aberto, um cavalariço estava a atravessar o pátio vindo do estábulo e dirigiu-se rapidamente a ele para lhe pegar nas rédeas e perguntar o que pretendia do seu senhor.

Eudo Blount ouvira vozes lá em baixo e foi até à porta do salão para saber quem era o seu visitante. Ele já conhecia bem o xerife do condado e cumprimentou-o calorosamente, pois ele era um jovem alegre e franco por natureza, estabelecido há um ano na sua senhoria e com um relacionamento fácil com a sua gente e o mundo ordenado à sua volta. A morte do seu pai, ocorrida fazia então sete meses, e a forma heróica como ele morrera, embora tivesse sido motivo de sofrimento, servira também para fundar e fortalecer a relação de confiança e respeito mútuos que o novo e jovem senhor tinha com os seus rendeiros e criados. Pelo mais simples vilão que possuísse um pedaço da terra Blount sentia uma quota-parte do orgulho que era devido aos poucos eleitos de Martel que tinham coberto a retirada do rei de Wilton e que tinham morrido na batalha. O jovem Eudo tinha apenas vinte e três anos e era inexperiente, pouco viajado e preso tão firmemente a este solo como qualquer vilão à sua propriedade. Era um sujeito alto, bem parecido, de pele clara, com um farto cabelo grosso e castanho. A gestão correcta de uma casa senhorial potencialmente próspera, um tanto desfalcada na época do seu avô, constituiria para ele uma alegria absorvente, e ele faria um bom trabalho e deixá-la-ia ao seu eventual herdeiro mais rica do que a tinha herdado do seu pai. Nessa altura, recordou-se Hugh, este jovem estava casado há apenas três meses, e cintilava nele o brilho novo da realização.

__Venho numa missão que não será certamente uma boa notícia para ti - disse Hugh sem quaisquer preâmbulos -, embora também não haja motivo para que ela te cause problemas. Esta manhã, a abadia pôs a sua junta a lavrar o Campo do Oleiro.

- Já ouvi dizer - disse Eudo com serenidade. - O meu homem Robin viu-os chegar. Ficarei satisfeito de o ver produtivo, embora isso já não tenha nada a ver comigo.

- Nenhum de nós está muito contente com a primeira colheita que ele produziu - disse Hugh bruscamente. - O arado fez aparecer uma mulher de debaixo do promontório. Temos uma mulher morta na capela mortuária da abadia... ou, pelo menos, os seus ossos.

O jovem tinha sustido o gesto de deitar vinho numa caneca para o seu visitante, tão abruptamente que o jarro estremeceu e derramou o líquido vermelho sobre a sua mão. Espantado, virou para Hugh os seus olhos azuis, redondos, e ficou de boca aberta.

- Uma mulher morta? O quê, enterrada lá? Ossos, diz... morta há quanto tempo? E quem poderá ser?

- Quem poderá saber? A única coisa que temos é ossos, mas de certeza que é uma mulher. Ou era. Morta há já talvez cinco anos, segundo me dizem, mas não mais, e talvez muito menos. Alguma vez viste por aqui pessoas desconhecidas, ou reparaste nalguma coisa digna de nota? Eu sei que não tiveste necessidade de vigiar o lugar, há um ano que isso competia a Haughmond mas, uma vez que fica tão perto, se houvesse alguns intrusos por lá, alguns dos teus homens podiam ter reparado. Não tens conhecimento de nada fora do normal?

Eudo sacudiu veementemente a cabeça.

- Não vou lá desde que o meu pai, Deus o tenha em descanso, deu o campo ao priorado. Ouvi dizer que tem havido vagabundos a dormir na cabana de vez em quando durante a feira ou, no Inverno passado, apenas para pernoitar durante as suas deambulações, mas não sei quem são. Nunca foram comunicados quaisquer problemas, isso eu sei. Isto parece-me tudo muito estranho.

- A todos nós também - concordou Hugh num tom pesaroso, pegando na caneca que lhe fora oferecida. Estava a ficar escuro no salão, e havia uma lareira já preparada. No exterior da porta aberta a luz tornara-se levemente azul com a neblina trespassada pelo ouro esmaecido do pôr do sol. - Nunca ouviste falar de qualquer mulher que tenha desaparecido de casa nesta região, durante estes últimos anos?

- Não, nenhuma. A minha gente vive aqui à volta, teriam sabido, e isso chegaria rapidamente aos meus ouvidos. Ou aos do meu pai, no seu tempo. Ele tinha conhecimento de tudo o que acontecia por aqui, eles comunicavam-lhe tudo, sabendo que ele não permitiria que um homem seu se extraviasse.

- Eu sei que isso é verdade - disse Hugh com veemência. - Mas certamente que não te deves ter esquecido que houve uma mulher que saiu de casa e se foi embora sem dizer nada. E dessa mesma quinta.

Eudo estava novamente a fitá-lo com um ar de incredulidade, de olhos bem abertos, e a ideia fez com que os seus lábios se abrissem num sorriso largo.

- A mulher do Ruald? Não podes estar a falar a sério! Toda a gente soube que ela se foi embora, isso não foi segredo. E acreditas realmente que poderá ser assim tão recente? Mas, mesmo que pudesse, e a pobre mulher esteja reduzida a ossos, isso é um disparate! A Generys foi-se embora com outro homem, e não a podemos censurar por isso, quando ela descobriu que ele podia seguir a sua inclinação, e ela continuava presa. Teríamo-nos assegurado que não passaria necessidades, mas isso não era suficiente para ela. As viúvas podem voltar a casar, mas ela não era viúva. Seguramente que não podes acreditar que a mulher que está na capela mortuária seja Generys?

- Confesso que não sei - admitiu Hugh. - Mas o lugar, o tempo e a forma como eles se dilaceraram um ao outro faz-nos pensar. Por enquanto pouca gente tem conhecimento disto mas, dentro de algum tempo, a notícia espalhar-se-á, e então irás ouvir o que todos irão murmurar. É melhor que sejas tu a fazer perguntas aos teus homens por mim, para saber se algum deles reparou em algo furtivo a acontecer naquele campo, ou em sujeitos duvidosos que tivessem estado na cabana. Especialmente se eles tinham mulheres com eles. Se encontrarmos uma forma de dar um nome à mulher, faremos um enorme progresso.

Pareceu que, nesta altura, Eudo já aceitara a realidade da morte e estava a levá-la a sério, embora não como um facto que pudesse perturbar o sentido da sua ordenada existência ou que fosse sequer autorizado a fazê-lo. Ele ficou a olhar pensativamente para Hugh por cima das canecas de vinho, reflectindo sobre as implicações do acontecimento.

- Achas que essa mulher foi morta em segredo? Poderá o Ruald estar ameaçado por uma suspeita desse tipo? Eu não posso pensar mal dele. Certamente que eu irei perguntar aos meus homens e, se descobrir alguma coisa digna de registo, mandar-te-ei dizer. Mas, se tivesse havido alguma coisa, seguramente que isso já teria sido trazido ao meu conhecimento.

- Mesmo assim, faz-me esse favor. Uma coisa insignificante que um homem possa deixar escapar sem pensar, de uma forma normal, pode ter um significado importante se houver uma morte envolvida. Eu vou reunir tudo o que puder que tenha a ver com o Ruald e, além disso, farei perguntas a muita gente. Ele viu o que encontrámos - disse Hugh num tom sombrio -, e não pôde dizer se era ela ou não, e disso ele não teve culpa, pois seria, de facto, muito difícil para qualquer homem, mesmo que tivesse vivido muitos anos com ela, reconhecer o seu rosto agora.

- Ele não podia ter feito mal à mulher - afirmou Eudo num tom veemente. - Depois de ele entrar para o mosteiro, ela ainda ficou na quinta durante três ou quatro semanas, talvez mais, antes de se ir embora. Essa é outra pobre alma que foi atacada por salteadores, ou outra escória do género, e foi esfaqueada para lhe roubarem a roupa que levava vestida.

- Não foi isso - disse Hugh secamente. - Ela estava vestida decorosamente, e deitaram-na estendida com as mãos cruzadas em cima do peito sobre uma pequena cruz tosca, cortada de uma sebe. Quanto à forma como morreu, não há quaisquer marcas, nenhum osso partido. Pode ter havido uma faca. Quem poderá saber, agora? Mas foi sepultada com algum cuidado e respeito. É isso que é estranho.

Eudo abanou a cabeça, com a testa franzida, numa expressão de espanto.

- Como um padre talvez fizesse? - arriscou ele num tom de dúvida. - Se a encontrasse morta? Mas, nesse caso, certamente que teria falado sobre o assunto e a teria levado para a igreja.

- Há pessoas - disse Hugh -, que em breve irão dizer "Como um marido talvez fizesse", se eles estivessem a discutir amargamente e ela o conduzisse primeiro à violência, e depois ao remorso. Não, não há necessidade de nos preocuparmos com o Ruald, desde que a mulher foi vista inteira e bem de saúde que ele tem estado sempre na companhia de irmãos. Dos testemunhos destes, nós vamos ficar a conhecer todos os movimentos dele desde que iniciou o noviciado. E vamos recuar alguns anos, à procura de outras mulheres que tenham desaparecido. - Ele levantou-se, olhando para o crepúsculo que descia lá fora. - É melhor eu ir andando. Já tomei demasiado do teu tempo.

Eudo levantou-se também, com uma expressão séria.

- Não, fizeste bem em vir cá primeiro. Podes ter a certeza de que vou perguntar aos meus homens. Às vezes ainda me parece que aquele terreno é meu. Não nos desfazemos da terra, nem mesmo a favor da Igreja, sem a sensação de termos lá deixado algumas raízes. Acho que me mantive longe desse terreno para evitar sentir ressentimento pelo facto de ele ter sido deixada ao abandono. Eu sabia que a abadia o aproveitaria melhor. Para dizer a verdade, fiquei surpreendido quando o meu pai decidiu dá-lo a Haughmond, vendo a dificuldade que eles teriam em tirar proveito dele. - Ele tinha seguido Hugh até à porta exterior, para acompanhar o visitante até ao seu cavalo, quando parou subitamente e olhou para trás, para a porta coberta por uma cortina situada a um canto do salão.

- Hugh, já que aqui estás, importas-te de ir dar uma palavra à minha mãe? Ela agora já não pode sair de casa e tem muito poucas visitas. Desde o funeral do meu pai que ela não sai. Ficaria muito satisfeita se a fosses ver por um momento.

- Com certeza - disse Hugh, dando imediatamente meia volta.

- Mas não lhe digas nada sobre a mulher morta, isso só iria perturbá-la, uma vez que se trata de terra que foi nossa até há pouco tempo, e o Ruald foi nosso rendeiro... Deus sabe que ela já sofre bastante, nós tentamos mantê-la na ignorância das más notícias do mundo, especialmente quando se trata de algo tão próximo de nós.

- Nem uma palavra! - concordou Hugh. - Como tem ela passado desde a última vez que a vi?

O jovem abanou a cabeça.

- Não há qualquer alteração. Só que de dia para dia ela fica mais magra e mais pálida, mas não se queixa. Tu vais ver. Entra!

- Ele tinha a mão na cortina e falava em voz baixa, de modo a que apenas Hugh o ouvisse. Era óbvio que ele estava relutante em entrar com o seu visitante, pois a sua juventude vigorosa sentia-se pouco à vontade e impotente na presença da doença, e poderia ser desculpado por desviar o olhar. Assim que abriu a porta da mansão e falou com a mulher no interior, a sua voz tornou-se suave e constrangida, como se se dirigisse a um desconhecido difícil de abordar, mas a quem devia afecto. - Mãe, está aqui o Hugh Beringar que veio visitar-nos.

Hugh passou por ele e entrou numa pequena sala aquecida por uma braseira de carvão e iluminada por um archote colocado num candelabro de parede. Sob a luz, estava a dama viúva de Longner, sentada muito direita num banco colocado de encontro à parede, amparada por mantas e almofadas, e a sua imobilidade e compostura dominavam a sala. Tinha mais de quarenta e cinco anos, e a longa e debilitante doença tornara-lhe os cabelos brancos e o rosto emaciado, fazendo-a parecer muito mais velha. Ela tinha uma roca à sua frente e estava a torcer a lã com uma mão que parecia frágil como uma folha murcha, mas era paciente e competente a pentear e torcer os fios. Quando Hugh entrou, ela ergueu a vista com um sorriso de admiração e pousou o fuso junto do pé do banco.

- Que surpresa, meu senhor, que grande amabilidade a sua! Há muito tempo que não o via. - A última vez que a vira fora no funeral do marido, sete meses antes. Ela estendeu-lhe a mão leve como uma anémona, e igualmente fria quando ele a beijou. Os seus olhos, enormes, azuis-escuros e encovados, percorreram-no com comedida perspicácia. - O seu cargo fica-lhe bem - disse ela. - A responsabilidade assenta-lhe bem. Eu não sou tão presunçosa que pense que fez a viagem para me ver, quando há outras tarefas importantes que reclamam o seu tempo. Teve alguma questão a tratar com o Eudo? Seja o que for que o trouxe cá, é muito agradável vê-lo.

- De facto, estou bastante ocupado - disse ele com uma reserva premeditada. - Sim, tive uma questão a tratar com o Eudo. Nada com que a deva incomodar. E não vou ficar muito tempo para não a fatigar, e consigo não vou conversar sobre trabalho. Como tem passado? Precisa de alguma coisa ou posso ser-lhe útil de alguma forma?

- Todas as minhas necessidades são satisfeitas antes sequer de eu pedir - disse Donata. - O Eudo é uma boa alma, e tive sorte com a filha que ele me trouxe. Não tenho nada de que me queixar. Sabe que a rapariga já está grávida? E é rija e saudável como um bom pão, certamente que terá filhos varões. O Eudo fez bem. De vez em quando eu talvez sinta falta do mundo lá fora. O meu filho está totalmente ocupado a fazer com que a sua casa senhorial valha um pouco mais a cada colheita, especialmente agora que está à espera de um filho. O meu senhor, quando era vivo, interessava-se mais pelo que se passava para além das suas próprias terras. Eu ouvia falar de todos os altos e baixos da sorte do rei. O vento soprava de onde Stephen estava. Agora estou desactualizada. O que é que se passa no mundo lá fora?

Não pareceu a Hugh que ela necessitasse de qualquer protecção das incursões do mundo exterior, próximo ou distante, mas ele avançou cautelosamente, tendo em consideração as preocupações do filho.

- Na nossa parte do mundo, muito pouco. O Conde de Gloucester está ocupado a transformar o sudoeste numa fortaleza para a Imperatriz. Ambas as facções estão a conservar o que têm e, de momento nenhum dos lados quer combater. Nós aqui estamos fora da luta. Temos sorte!

- Mas parece - disse ela, atenciosa e atenta -, que tem notícias muito diferentes de outros locais. Então, Hugh, agora que aqui está não me vai negar uma pequena brisa fresca vinda de além da cerca do Eudo, pois não? Ele cobre-me de almofadas, mas o Hugh não tem necessidade de o fazer. - E, de facto, pareceu a Hugh que até mesmo a sua inesperada companhia tinha trazido um pouco de cor ao seu rosto envelhecido e um brilho aos seus olhos encovados.

Ele admitiu:

- Há bastantes notícias de outros locais, um pouco excessivas para o conforto do rei. Em St. Albans vai haver o diabo! Metade dos lordes da corte, ao que parece, acusaram o Conde de Essex de ter novamente acordos traiçoeiros com a Imperatriz e de planear o derrube do rei, e ele foi obrigado a entregar o seu cargo de guardião da Torre, bem como o seu castelo e terras em Essex. Era isso ou a forca, e ele não está, de modo algum, pronto para morrer.

- E ele já as entregou? Isso seria muito difícil para um homem como Geoffrey de Mandeville - disse ela, em tom de espanto. - O meu senhor nunca gostou dele. Um homem arrogante, dominador, dizia ele. Já virou a casaca bastantes vezes, pode ser verdade que tenha planeado virá-la mais uma vez. Ainda bem que foi apanhado a tempo.

- É possível que tenha sido, mas assim que lhe tiraram a terra e o libertaram, ele partiu para o seu próprio condado e reuniu à sua volta a escória da zona. Saqueou Cambridge. Roubou tudo o que valia a pena roubar, igrejas e tudo, antes de deitar fogo à cidade.

- Cambridge? - disse a dama, chocada e incrédula. - Ele atreveu-se a atacar uma cidade como Cambridge? O rei deve seguramente ir atrás dele. Não o podem deixar a saquear e incendiar à vontade.

- Não será fácil - disse Hugh ironicamente. - Ele conhece a região dos Fens (1) como a palma da sua mão, e não é fácil defrontá-lo em batalha numa zona assim.

- O meu filho está no meio dos pântanos - disse ela calmamente. - O meu filho mais novo. O Hugh deve lembrar-se, ele decidiu tomar o hábito em Setembro do ano passado, e entrou para a Abadia de Ramsey.

- Sim, recordo-me. Quando ele trouxe o corpo do seu senhor para ser sepultado, em Março, eu perguntei a mim próprio se, nessa altura, ele não teria mudado de ideias. Eu não pensava que o seu Sulien tivesse vocação para monge, tanto quanto eu o conhecia ele tinha um bom e são apetite para viver no mundo. Pensei que seis meses talvez o tivessem feito mudar de ideias. Mas não, uma vez cumprido aquele dever, ele voltou para lá.

Ela levantou os olhos para ele em silêncio durante um minuto, com as pálpebras arqueadas a rolar para trás de olhos ainda brilhantes. O mais leve dos sorrisos aflorou-lhe os lábios e voltou a desaparecer.

- Uma vez que ele estava outra vez em casa, eu tive esperança que ficasse. Mas não, ele voltou. Ao que parece, não se pode discutir com uma vocação.

As suas palavras soaram como o eco mudo da partida inexorável de Ruald do mundo, da mulher e do casamento, e ainda soavam aos ouvidos de Hugh quando ele, ao anoitecer, se despediu de Eudo no pátio, montou e partiu, dirigindo-se, pensativo, para casa.

 

* (1) Região pantanosa situada na parte leste de Inglaterra (N. da T.)

 

De Cambridge a Ramsey eram menos de vinte milhas, calculou ele enquanto cavalgava. Vinte milhas para nordeste, um pouco mais longe do que Londres, a sede das forças de Stephen. Um pouco mais no interior do mundo quase impenetrável dos Fens, e com o Inverno a aproximar-se. Se um lobo louco como De Mandeville estabelecesse ali uma base, numa ilha situada algures naquela imensidão de água, seriam necessárias todas as forças de Stephen para o fazer sair novamente de lá.

O Irmão Cadfael foi várias vezes ao Campo do Oleiro enquanto a lavra prosseguia, mas não houve mais achados imprevistos. O lavrador e a sua manada de bois tinham avançado cautelosamente em todas as voltas debaixo da encosta, receando mais choques, mas os sulcos abriram-se um atrás do outro, lisos, escuros e inocentes. Essa palavra vinha-lhe muitas vezes à mente. A terra, dissera Ruald, é inocente. É o uso que fazemos dela que a mancha. Sim, a terra e muitas outras coisas: o conhecimento, a técnica, a força, todas são coisas inocentes até o uso as manchar. Na beleza fresca, outonal, deste enorme campo que descia suavemente do seu cume de arbustos, silvas e árvores, ladeado de ambos os lados por promontórios virgens, Cadfael pensou no homem que ali tinha trabalhado durante muitos anos e que fizera aquela afirmação sobre o solo em que trabalhara e do qual escavara o seu barro. Totalmente franco, decente e amável, um bom trabalhador e um cidadão honesto, era o que teriam dito todos os que o conheciam. Mas até que ponto consegue um homem conhecer o seu semelhante? Já estavam a ser emitidas muitas opiniões diferentes acerca de Ruald, outrora oleiro, actualmente monge beneditino de Shrewsbury. Elas não tinham demorado muito a ser alteradas.

Porque a história da mulher que fora encontrada enterrada no Campo do Oleiro em breve passara a ser do conhecimento geral e tema de conversa em todo o distrito, e para onde olhariam as más-línguas primeiro a não ser para a mulher que ali vivera durante quinze anos e que, no fim, desaparecera sem dizer nada a ninguém? E onde iriam elas procurar o culpado a não ser no seu marido, que a tinha abandonado para tomar o hábito?

A mulher em si, quem quer que ela fosse, já tinha sido novamente enterrada, por graça do abade, num modesto canto do cemitério, com todos os ritos que lhe eram devidos com excepção da dádiva de um nome. Do ponto de vista paroquial, a situação dos domínios de Longner era peculiar, pois eles tinham pertencido anteriormente aos bispos de Chester, que tinham doado à paróquia de São Chad, em Shrewsbury, todas as suas propriedades locais que estavam suficientemente próximas desta e que passaram a constituir dependências exteriores e isoladas da paróquia. Mas uma vez que ninguém sabia se esta mulher era uma paroquiana ou uma desconhecida que ali estivesse de passagem, Radulfus considerara que era mais simples e hospitaleiro dar-lhe um lugar nas terras da abadia e pôr termo a pelo menos um problema dos muitos que ela trouxera consigo.

Mas se ela se encontrava finalmente em descanso, o mesmo não sucedia a mais ninguém.

- Tu não deste qualquer passo para o acusar - disse Cadfael a Hugh, na privacidade da sua oficina no herbário, no final de um longo dia. - Nem sequer para o interrogares a sério.

- Ainda não houve necessidade - disse Hugh. - Ele está bastante seguro onde está, se alguma vez eu precisar dele. Ele não vai sair de onde está. Tu viste por ti próprio, ele aceita tudo como se, na pior das hipóteses, fosse um castigo justo que Deus lhe tivesse imposto... oh, não necessariamente por assassínio, simplesmente por todos os defeitos que ele encontra constan-temente em si próprio... ou, na melhor das hipóteses, como um teste à sua fé e paciência. Se todos nós o considerássemos culpado, ele suportaria isso com humildade e gratidão. Nada o levaria a evitá-lo. Não, eu prefiro ir juntando as peças de todos os seus movimentos desde que ele entrou para cá. Se alguma vez tiver motivo para suspeitar realmente dele, sei onde poderei encontrá-lo.

- E por enquanto ainda não tiveste motivo?

- Não mais nem menos do que tive no primeiro dia. Nem tenho conhecimento de nenhuma outra mulher que tenha desaparecido do sítio onde deveria estar. O local, a altura em que possivelmente a morte ocorreu, a discussão entre eles, a raiva, tudo isso está contra o Ruald e insiste que a mulher era a Generys. Mas a Generys estava viva quando ele já se encontrava aqui no interior do claustro, e eu não encontrei uma única ocasião em que ele pudesse ter-se encontrado novamente com ela, excepto na companhia do Irmão Paul, conforme ambos nos disseram.

No entanto não é impossível que ele tenha, apenas uma vez, saído sozinho e tenha ido ter com ela, contra todas as ordens, pois tenho a certeza de que Radulfus queria pôr termo a todo o azedume. O cenário - disse Hugh, irritado e cansado -, está demasiado cheio de Ruald e Generys, e não encontro mais ninguém que se encaixe nele.

- Mas tu não acreditas nisso - deduziu Cadfael, sorrindo.

- Não acredito nem deixo de acreditar. Vou continuar a procurar. O Ruald pode esperar. Se as más-línguas continuaram a falar contra ele, aqui dentro estará em segurança de qualquer coisa pior. E se elas falarem injustamente, ele pode considerá-las um castigo cristão e aguardar pacientemente a sua ilibação.

 

No oitavo dia de Outubro, a manhã começou com uma chuva miudinha cinzenta, que mal era perceptível no rosto mas que, ao fim de algum tempo, molhava. O povo trabalhador de Foregate foi à sua vida com capuzes de serapilheira, e o jovem que seguia ao longo da estrada, passando pelo campo da feira de cavalos, tinha o capuz bem puxado sobre a testa e parecia-se muito com qualquer dos homens que, apesar do tempo, eram obrigados a sair para trabalhar naquela manhã. O facto de ele vestir o hábito beneditino não despertou qualquer atenção. Tomaram-no por um dos irmãos residentes que tivesse ido cumprir uma tarefa entre a abadia e Saint Giles e quisesse estar de regresso a tempo de assistir à missa e ao cabido. Ele tinha um passo comprido, mas caminhava como se os seus pés, calçados com sandálias, estivessem doridos, além de lamacentos, e o seu hábito estava levantado quase até aos joelhos, descobrindo pernas musculosas, bem torneadas, lisas e jovens, atoladas até aos tornozelos. Parecia que ele tinha ido um pouco mais longe do que o hospital e por estradas um tanto menos frequentadas do que a de Foregate.

Ele era moderadamente alto, mas magro e angular como um jovem que ainda não gere bem o corpo de um homem, do mesmo modo que os potros de um ano são angulares e ágeis, e Cadfael achou curioso ver um jovem assim pousar os pés resoluta mas suavemente, e avançar com esforço. Quando se dirigia à sua oficina e se aproximava da curva do caminho que ia ter ao jardim, ele olhara para trás exactamente no momento em que o jovem virou para o postigo da casa do porteiro, e o que atraiu o seu olhar, antes de qualquer outra coisa, foi o andar do recém-chegado. A curiosidade tardia fê-lo olhar uma segunda vez, a tempo de observar que o homem que entrou, embora fosse manifestamente um monge, tinha parado para falar com o porteiro, como um desconhecido a perguntar por alguém com autoridade ali.

Aparentemente, não era um monge desta casa. E, agora que estava a prestar mais atenção, Cadfael viu que era alguém que ele não conhecia. Os hábitos pretos desbotados são todos muito parecidos, especialmente com o capuz puxado como protecção contra a chuva, mas Cadfael conseguia identificar todos os membros desta família alargada, monges do coro, noviços ou postulantes, a uma distância maior do que do outro lado do pátio, e este rapaz não era nenhum deles. Não que houvesse alguma coisa de estranho nisso, uma vez que um irmão de outra casa da Ordem podia muito bem ser enviado aqui a Shrewsbury numa missão legítima. Mas havia algo neste visitante que o distinguia dos outros. Ele viera a pé: os enviados oficiais que iam de uma casa a outra deslocavam-se geralmente a cavalo. E, a julgar pelo seu aspecto andrajoso e cansado, de pés doridos, este percorrera uma distância considerável a pé.

Não foi exactamente o pecado da curiosidade de Cadfael que o fez abandonar o seu objectivo imediato e atravessar o pátio até à casa do porteiro. Eram quase horas da Missa e, por causa da chuva, toda a gente que tinha que vir ao exterior fazia-o tão breve e rapidamente quanto possível e apressava-se a regressar para o interior, pelo que não havia ninguém visível naquele momento que pudesse oferecer-se para transmitir mensagens ou acompanhar peticionários. Mas tem que se admitir que a curiosidade também teve a sua quota-parte de responsabilidade. Ele aproximou-se dos dois homens que estavam ao portão com os olhos a brilhar e as palavras na ponta da língua.

- Precisas de um mensageiro, Irmão?

- Este nosso irmão diz que recebeu instruções - disse o porteiro -, para se apresentar primeiro ao senhor abade, de acordo com as ordens do seu próprio abade. Ele tem uma questão a relatar, antes de poder descansar.

- O Abade Radulfus ainda se encontra nos seus aposentos - disse Cadfael -, pois eu deixei-o há pouco tempo. Queres que te anuncie? Ele estava sozinho. Se é muito grave, seguramente que te receberá de imediato.

O jovem pôs o capuz molhado para trás da cabeça e sacudiu as gotas, que tinham penetrado lentamente nele, de uma tonsura um pouco demasiado comprida para o conformismo, e de uma coroa coberta por uma estranha penugem de cabelo novo, encaracolado e de um castanho dourado. Sim, ele tinha-se posto a caminho há muito tempo, avançando esforçadamente a pé do seu mosteiro distante, onde quer que o mesmo se situasse. O seu rosto era oval, afunilando-se ligeiramente desde uma testa larga e olhos bem afastados, até ao maxilar teimoso, inquiridor, coberto neste momento por uma fina barba dourada a condizer com a coroa por rapar. Ele podia estar cansado e com os pés doridos mas, de outro modo, a longa caminhada não parecia ter-lhe feito qualquer mal, pois as suas faces tinham uma cor saudável e os seus olhos eram de um límpido azul claro, e ele enfrentou Cadfael com um olhar vivo e firme.

- Gostaria muito que o fizesse - disse ele -, pois preciso de me libertar da sujidade da viagem, mas foi-me ordenado que falasse primeiro com ele, e tenho que obedecer. E sim, é bastante grave para a Ordem... e para mim, embora isso tenha pouca importância - disse ele sacudindo, juntamente com a humidade do seu capuz e do escapulário, a preocupação actual com os seus próprios problemas.

- Ele pode não concordar contigo - disse Cadfael. - Mas vem, vamos pôr isso à prova - e ele conduziu-o rapidamente ao longo do pátio em direcção aos aposentos do abade, deixando que o porteiro se retirasse para o conforto dos seus próprios aposentos, ao abrigo da chuva.

- Há quanto tempo andas na estrada? - perguntou Cadfael ao jovem que coxeava a seu lado.

- Sete dias - A sua voz era grave e clara e estava de acordo com todos os outros testemunhos da sua juventude. Cadfael calculou que ele não deveria ter mais de vinte anos, talvez ainda nem tanto.

- Enviado tão longe sozinho? - perguntou Cadfael, espantado.

- Irmão, nós fomos todos mandados embora, tivemos que nos dispersar. Perdoe-me por não lhe contar o que tenho a dizer, devo comunicá-lo primeiro ao senhor abade. Prefiro dizer tudo apenas uma vez e deixar tudo nas mãos dele.

- Podes fazer isso com toda a confiança - garantiu-lhe Cadfael, não fazendo mais perguntas. Nas suas palavras estava implícita uma crise, e a voz jovem revelava a primeira nota de desespero, calmamente contido. À porta dos aposentos do abade, Cadfael entrou sem cerimónias para a antecâmara e bateu à porta entreaberta da sala. A voz do abade, preocupada e ausente, mandou-o entrar. Radulfus tinha uma pasta de documentos à sua frente e um indicador a assinalar o local onde ia, e ergueu a vista por um breve instante para ver quem tinha entrado.

- Pai, está aqui um jovem irmão, de uma casa distante da nossa Ordem, com ordens do seu próprio abade para falar consigo e lhe comunicar o que parecem ser notícias graves. Ele está aqui à porta. Posso mandá-lo entrar?

Radulfus ergueu a vista com a testa franzida, abandonando aquilo com que estava ocupado, e deu toda a sua atenção a esta inesperada comunicação.

- De que casa distante?

- Não perguntei - disse Cadfael -, e ele não disse. As suas instruções são para comunicar os factos apenas a si. Mas há sete dias que ele se meteu à estrada para chegar até cá.

- Manda-o entrar - disse o abade, empurrando para o lado os pergaminhos que estavam em cima da secretária.

O jovem entrou, fez uma vénia profunda perante a autoridade, respirou fundo e, subitamente, como se um lacre colocado sobre a sua mente e a sua língua tivesse sido quebrado, as palavras jorraram-lhe da boca, atropelando-se e saindo aos tropeções como uma golfada de sangue.

- Pai, eu sou portador de notícias muito más da abadia de Ramsey. Pai, em Essex e nos Fens os homens tornaram-se demónios. George de Mandeville tomou a nossa abadia para fazer dela o seu forte e expulsou, como pedintes errantes, os que ainda estão vivos. A Abadia de Ramsey tornou-se um antro de ladrões e assassinos.

Ele nem sequer esperara que lhe fosse dada autorização para falar, nem que as notícias fossem transmitidas através de perguntas e respostas ordenadas, e Cadfael mal tinha começado a fechar a porta para os deixar sozinhos, embora devagar e com os ouvidos atentos, quando a voz do abade interrompeu secamente as palavras ofegantes do rapaz.

- Espera! Fica connosco, Cadfael. Posso precisar de um mensageiro com urgência. - E, para o rapaz, ele disse com firmeza: - Respira fundo, meu filho. Senta-te, pensa antes de falares, e deixa-me ouvir uma história clara. Ao fim de sete dias, estes poucos minutos significarão muito pouco. Agora, em primeiro lugar, nós aqui só agora ouvimos falar nisto. Se demoraste tanto tempo a chegar até aqui a pé, admira-me que isto não tenha chegado mais rapidamente aos ouvidos do xerife. És o primeiro a sair vivo desse ataque?

O rapaz submeteu-se, trémulo, à mão que Cadfael colocou sobre o seu ombro e sentou-se obedientemente no banco colocado de encontro à parede.

- Pai, eu tive muita dificuldade em atravessar as linhas de De Mandeville, e o mesmo aconteceria a qualquer emissário. Um homem a cavalo, em particular, como o que seria enviado para levar a notícia aos xerifes do rei, teria dificuldade em atravessá-las com vida. Eles estão a apoderar-se de todos os cavalos, de todos os animais, de todos os arcos e espadas de três condados, e lançam-se como lobos sobre qualquer homem a cavalo. Eu talvez seja o primeiro, uma vez que não tinha nada comigo por que valesse a pena matar-me. É possível que Hugh Beringar ainda não saiba.

A simples menção do nome de Hugh espantou tanto Cadfael como Radulfus. O abade virou-se rapidamente para olhar melhor para o rosto jovem que se erguia, confiante, para o dele.

- Tu conheces o xerife daqui? Como?

- Foi essa a razão... uma das razões... pela qual fui enviado para cá, Pai. Eu nasci aqui. O meu nome é Sulien Blount. O meu irmão é o senhor de Longner. O Pai nunca me viu, mas Hugh Beringar conhece bem a minha família.

Então este, pensou Cadfael, esclarecido, e estudando melhor o rapaz da cabeça aos pés, é o irmão mais novo que decidiu entrar para a Ordem Beneditina há pouco mais de um ano e partiu para se tornar noviço em Ramsey nos finais de Setembro, por volta da altura em que o pai doou o Campo do Oleiro à Abadia de Haughmond. Por que motivo teria ele escolhido os beneditinos em vez dos preferidos da sua família, os agostinianos? Ele podia muito bem ter ido com a tradição e vivido tranquila e pacificamente entre os cónegos de Haughmond- Mas' reflectiu Cadfael, olhando para a tonsura do jovem, com a sua penugem nova dourada escura no interior do anel de cabelo castanho húmido, porque é que eu hei-de pôr em causa uma preferência que está de acordo com a minha própria escolha? Tal como eu, ele gostou da moderação, do bom senso e da benevolência humana de São Benedito. Foi um pouco desconcertante que esta agradável ideia só levantasse outras questões igualmente pertinentes. Porquê ir Para Ramsey, tão longe? Porque não aqui em Shrewsbury?

- Hugh Beringar ficará a saber por mim, sem demora - disse o abade num tom tranquilizador -, tudo o que me puderes contar.

Dizes que De Mandeville tomou Ramsey. Quando é que isso aconteceu? E como?

Sulien humedeceu os lábios e, sensata e calmamente, juntou as peças do quadro que trouxera na sua mente durante sete dias.

- Foi há nove dias atrás. Sabíamos, como toda a região sabia, que o conde tinha voltado para as terras que tinham sido suas e reunido os que o tinham servido no passado e todos os que levavam uma vida dissoluta, ou que tivessem problemas com a justiça, que quisessem servi-lo no seu exílio. Mas não sabíamos onde estavam as suas forças e não tivemos qualquer aviso de qualquer propósito em relação a nós. O Pai sabe que Ramsey é quase uma ilha, com apenas um caminho seco que vai até lá? É por isso que, no início, foi escolhida como um local de retiro do mundo.

- E sem dúvida que essa foi a razão por que o conde a cobiçou - disse Radulfus num tom sombrio. - Sim, nós sabíamos isso.

- Mas que necessidade tínhamos nós de defender esse caminho? E, mesmo que soubéssemos, como é que nós, sendo irmãos, o íamos defender com armas? Eles vieram aos milhares - disse Sulien, claramente ponderando o que dissera dos números e falando num tom sério -, atravessaram e apoderaram-se de tudo. Levaram-nos para o pátio e fizeram-nos sair pelo portão, tirando-nos tudo excepto os nossos hábitos. Incendiaram parte do claustro. Alguns de nós ofereceram resistência, embora sem violência, e eles espancaram-nos ou mataram-nos. Os que permaneceram na região, mesmo no exterior da ilha, foram alvejados com setas. Transformaram a nossa casa num antro de bandidos e carrascos, encheram-na com armas e homens armados e, a partir daquela praça forte, eles saem para roubar, saquear e matar. Ninguém, num raio de muitos quilómetros, possui os meios para cultivar as suas terras, nem pode guardar qualquer coisa de valor em casa. Foi assim que aconteceu, Pai, e eu vi-o acontecer.

- E o vosso abade? - perguntou Radulfus.

- O abade Walter é, de facto, um homem corajoso. No dia seguinte, foi sozinho ao acampamento deles e atacou-os com um archote da fogueira deles, queimando algumas das tendas. Excomungou-os a todos, e é de admirar que não o tenham morto; limitaram-se a troçar dele e deixaram-no ir-se embora sem lhe fazerem mal. De Mandeville apoderou-se de todas as propriedades da abadia que ficam perto e deu-as aos seus companheiros para que as defendessem, mas deixou incólumes algumas que ficam mais longe, e o Abade Walter levou a maior parte dos irmãos para lá. Eu deixei-o em segurança quando consegui atravessar as linhas para Peterborough. Esta cidade não está ameaçada.

- Porque é que ele não te levou com ele? - perguntou o abade.

__Compreendo perfeitamente bem que ele quisesse mandar notícias a um dos senhores feudais do rei, mas porquê este condado em particular?

- Eu tenho contado tudo em todo o lado por que passei, Pai. Mas o meu abade enviou-me para cá por minha causa, pois eu próprio tenho um problema. Eu contei-o a ele, por dever - disse Sulien, com uma voz hesitante e o olhar baixo -, e, uma vez que esta perturbação nos aconteceu antes de ele poder ser resolvido, ele enviou-me para cá para me apresentar, bem como ao meu problema, a si, e receber de si conselhos, penitência ou absolvição, conforme achar que eu mereço.

- Então isso é entre nós dois - disse o abade rapidamente -, e pode esperar. Conta-me mais sobre o âmbito deste terror nos Fens. Tínhamos conhecimento do que sucedera a Cambridge, mas se o homem tem agora uma base segura em Ramsey, que outros locais podem estar em perigo?

- Ele acabou de se instalar - disse Sulien -, e as aldeias próximas foram as primeiras a sofrer. Nenhuma cabana é demasiado avara, mas eles querem, por força, extorquir algum tipo de tributo do rendeiro e, se ele não possuir nada para além da sua pessoa, matam-no ou mutilam-no. Mas eu sei que o Abade Walter receava por Ely, pois esta aldeia é um trofeu muito rico e está situada num condado que o conde conhece muito bem. Ele ficará no meio da água, onde nenhum exército o poderá obrigar a combater.

Esta opinião foi proferida com uma elevação da cabeça e um brilho dos olhos que denunciava mais um aprendiz das armas do que um noviço monástico. Radulfus também reparara nela e trocou um longo olhar mudo com Cadfael por cima do ombro do jovem.

- Pronto! Se isso é tudo o que nos podes dizer, vamos providenciar para que seja transmitido imediatamente a Hugh Beringar. Cadfael, encarregas-te disso? Deixa o Irmão Sulien aqui comigo e manda-nos o Irmão Paul. Pega num cavalo e vem ter connosco aqui quando voltares.

Um pouco depois de meia hora, o Irmão Paul, mestre dos noviços, levou Sulien novamente à sala do abade, um jovem diferente, lavado da lama das estradas, barbeado, vestido com um hábito seco, e o cabelo, se não devidamente aparado dos seus caracóis rebeldes, pelo menos penteado. Ele cruzou as mãos num gesto submisso em frente do abade, com todos os sinais de humildade e reverência, mas sempre com o mesmo olhar directo e confiante nos seus límpidos olhos azuis.

- Deixa-nos, Paul - disse Radulfus. E para o rapaz, depois de a porta se ter fechado suavemente quando Paul saiu: - Já comeste? Ainda falta algum tempo para a refeição, e penso que hoje ainda não comeste.

- Não, Pai, eu pus-me a caminho antes do nascer do sol. O Irmão Paul deu-me pão e cerveja. Obrigado.

- Chegámos, então, ao que te perturba. Não precisas de ficar de pé, prefiro que estejas à vontade e te sintas capaz de falar livremente. Fala comigo como conversarias com o Abade Walter.

Sulien, obediente às ordens, sentou-se, mas continuou rígido no interior do seu próprio corpo jovem, incapaz de entregar de todo o coração o que oferecia ardentemente por palavras e pela forma do seu corpo. Sentou-se com as costas direitas e olhos baixos, e os seus dedos entrelaçados tinham os nós brancos.

- Pai, foi em finais de Setembro do ano passado que entrei para a abadia de Ramsey como postulante. Tentei cumprir fielmente o que prometi, mas houve problemas que eu não previra, e foram-me pedidas coisas que nunca pensei ter que enfrentar. Depois de ter saído de casa, o meu pai foi juntar-se às forças do rei e esteve com ele em Wilton. Talvez já saiba tudo isto, como ele morreu na retaguarda, a proteger a retirada do rei. Coube-me a mim recuperar o seu corpo e trazê-lo para casa para ser sepultado, em Março último. Tive autorização do meu abade, e regressei no dia aprazado. Mas... é difícil ter duas casas, quando ainda não se renunciou completamente à primeira e ainda não se aceitou bem a segunda, e depois é-se forçado a efectuar outra vez a viagem. E ultimamente tem havido discussões em Ramsey que nos têm dilacerado. Durante algum tempo, o Abade Walter entregou o seu cargo ao Irmão Daniel que não merecia, de forma alguma, ocupá-lo. Isso agora está resolvido, mas provocou ruptura e angústia.

Agora o ano do meu noviciado está a chegar ao fim, e eu não sei o que fazer, nem o que quero fazer. Pedi mais tempo ao meu abade, antes de fazer os meus votos definitivos. Quando esta catástrofe se abateu sobre nós, ele achou melhor enviar-me para aqui, para os meus irmãos de Shrewsbury. E aqui me submeto à vossa orientação e às vossas regras, até conseguir ver claramente o caminho à minha frente.

- Tu já não estás seguro da tua vocação - disse o abade.

- Não, Pai, já não estou. Sou assolado por dois ventos contrários.

- O Abade Walter não te simplificou a vida - comentou Radulfus, franzindo o sobrolho. - Mandou-te para aqui, onde ficas mais exposto a ambos.

- Pai, eu penso que ele achou que era justo. A minha casa é aqui, mas ele não disse: Vai para casa. Enviou-me para onde eu pudesse continuar sob a disciplina que escolhi mas, no entanto, eu ainda sinto a forte atracção do local e da família. Porque é que a minha vida havia de ser facilitada - disse Sulien erguendo subitamente os olhos azuis, resolutamente garbosos e profundamente perturbados -, para que a resposta, no fim, seja a resposta certa? Mas eu não consigo chegar a conclusão nenhuma, porque o simples acto de olhar para trás me faz sentir envergonhado.

- Não há necessidade disso - disse Radulfus. - Tu não és o primeiro, e não serás o último a olhar para trás, nem o primeiro nem o último a voltar atrás, se for essa a tua decisão. Todos os homens têm dentro de si apenas uma vida e uma natureza para colocar ao serviço de Deus e, se houvesse apenas uma forma de o fazer, o celibato no interior do mosteiro, a procriação e os nascimentos cessariam, o mundo ficaria despovoado, e Deus deixaria de ser adorado, dentro ou fora da igreja. Compete aos homens olharem para dentro de si próprios e dar o melhor uso possível aos dons que Deus lhes concedeu. Se agora consideras errado o que outrora te parecia certo, não estás a agir mal em questioná-lo. Afasta da tua mente a ideia de que estás amarrado. Nós não te queremos amarrado. Ninguém que não seja livre consegue dar livremente.

O jovem encarou-o em silêncio durante alguns momentos, com os olhos tão limpidamente claros como campainhas e os lábios cerrados com firmeza, sondando o seu mentor, mais do que ele próprio. Depois, disse lentamente:

- Pai, eu nem sequer estou seguro dos meus actos, mas acho que não foi pelos motivos certos que pedi para ser admitido na Ordem. Acho que é por isso que me envergonho de pensar em abandoná-la.

- Isso, por si só, meu filho - disse Radulfus -, pode ser uma boa razão para a Ordem te abandonar a ti. Muitos entraram pelas razões erradas e mais tarde permaneceram pelas razões certas, mas seria um pecado ficar a contragosto e contra a verdade, por teimosia e orgulho. - E ele sorriu ao ver as sobrancelhas do rapaz unirem-se numa perplexidade angustiante. - Estou a confundir-te ainda mais? Não te pergunto porque é que entraste, embora pense que tenha sido para escapar ao mundo exterior, e não para abraçar o mundo interior. Tu és jovem, e ainda viste muito pouco desse mundo exterior e podes ter julgado mal o que viste. Agora não há pressa. Por enquanto, podes ocupar plenamente o teu lugar aqui entre nós, mas separado dos outros noviços. Eu não quero que eles fiquem perturbados com o teu problema. Descansa durante alguns dias, reza constantemente por orientação, tem fé em que esta te será concedida, e depois escolhe. Porque essa escolha tem que ser tua, não permitas que ninguém te tire isso.

- Primeiro Cambridge - disse Hugh, andando de um lado para o outro no interior do castelo com passadas longas, irritadas, enquanto digeria as notícias sobre a zona dos pântanos -, agora é Ramsey. E Ely está em perigo! O vosso jovem tem razão, que belo trofeu ela seria para De Mandeville. Digo-te uma coisa, Cadfael, o melhor é eu ir verificar todas as lanças, espadas e arcos que há no depósito de armas e escolher alguns rapazes bons, prontos para a acção. Às vezes o Stephen é um pouco lento a começar pois, até ser incitado, possui uma veia preguiçosa, mas vai ter que agir contra esta ralé. Ele devia ter torcido o pescoço de De Mandeville quando o tinha em seu poder, foi avisado bastantes vezes.

- É pouco provável que ele te chame - considerou Cadfael judiciosamente -, mesmo que decida formar uma nova força para expulsar os lobos. Ele pode seguramente apelar para os condados vizinhos. Ele vai querer homens depressa.

- Tê-los-á rapidamente - disse Hugh num tom sombrio -, pois eu estarei pronto para me fazer à estrada assim que ele o disser. É verdade que ele pode não precisar de vir buscar homens daqui da fronteira, uma vez que não confia em Chester mais do que em Essex, e a vez de Chester virá certamente. Mas quer ele me chame quer não, estarei pronto para ir ter com ele. Se vais regressar à abadia, Cadfael, transmite os meus agradecimentos ao abade pelas notícias. Nós vamos pôr os armeiros e fabricantes de setas a trabalhar, e certificar-nos de que os cavalos estão em boas condições. Não importa que eles não venham a ser necessários, não faz mal nenhum à guarnição ser alertada à pressa de vez em quando. - Ele virou para a ala exterior e para a casa do portão com o seu amigo, ainda a franzir pensativamente o sobrolho ao reflectir sobre esta nova complexidade da já confusa e problemática situação de Inglaterra. – É estranho como as vidas dos grandes e dos pequenos se entrelaçam, Cadfael. De Mandeville vinga-se no leste e faz com que este rapaz de Longner regresse apressadamente à sua casa situada aqui na fronteira com Gales. Tu dirias que o destino lhe fez um favor? É bem possível. Tu só o conheceste agora, não é verdade? Ele nunca me pareceu um postulante provável para o mosteiro.

- Eu acho - disse Cadfael cautelosamente -, que ele ainda não fez os votos definitivos. Ele disse que tinha um problema por resolver e que o seu abade o encarregou de o apresentar aqui ao Radulfus. Pode ser que, agora que a altura se aproxima, ele se tenha assustado. Isso acontece! Vou voltar para trás e ver o que Radulfus tem em mente para ele.

O que Radulfus tinha em mente para a alma atormentada foi tornado claro quando Cadfael regressou, conforme convocado, à sala do abade. Desta vez, o abade estava sozinho à secretária, o recém-chegado tinha sido enviado com o Irmão Paul para descansar da sua longa viagem a pé e para tomar o seu lugar, com determinadas salvaguardas, entre os seus pares.

- Ele precisa de alguns dias de tranquilidade - disse Radulfus -, com tempo para rezar e pensar, pois duvida da sua vocação e, verdade seja dita, eu também duvido. Mas eu desconheço totalmente qual era o seu estado de espírito e o seu comportamento quando concebeu o desejo pela vida monástica, e não estou em posição de julgar se, na altura, os seus motivos eram genuínos ou se as suas reservas agora o são. A única coisa que Posso fazer é garantir que nenhuma sombra ou choque recaia sobre ele, distraindo-o quando mais precisa de ter as ideias claras.

Eu não quero que ele seja constantemente recordado da sorte de Ramsey nem que fique perturbado com qualquer conversa sobre esta questão do Campo do Oleiro. É bom que ele esteja sozinho, em silêncio, para reflectir primeiro sobre o seu problema. Eu disse ao Irmão Vitalis que, quando ele estiver pronto para falar outra vez comigo, o mande entrar imediatamente. Mas, entretanto, talvez fosse boa ideia ele ajudar-te no herbário, separado dos irmãos a não ser às horas das orações. No refeitório e no dormitório, o Paul irá vigiá-lo atentamente; durante as horas de trabalho ele estará melhor ao pé de ti, que já conheces a situação.

- Eu tenho estado a pensar - disse Cadfael, esfregando a testa, pensativo -, que ele sabe que o Ruald está aqui connosco. Quando este jovem resolveu entrar para o mosteiro, já o Ruald cá estava há alguns meses. O Ruald foi rendeiro de Blount a vida inteira e vivia perto da casa senhorial, e o Hugh disse-me que este rapaz Sulien desde pequeno que passava a vida na oficina; eles não tinham filhos e gostavam muito dele. Ele não falou no Ruald nem pediu para o ver? E se ele o procurar?

- Se o fizer, tudo bem. Ele tem esse direito, e eu não tenciono mantê-lo isolado durante muito tempo. Mas acho que ele está demasiado preocupado com Ramsey e com os seus próprios problemas para pensar noutras coisas. Ele ainda não fez os votos definitivos - disse Radulfus, reflectindo com ansiedade resignada sobre as complexas agonias dos jovens. - A única coisa que podemos fazer é proporcionar-lhe um período de protecção e calma. A vontade e os actos são dele. E quanto a esta sombra que está suspensa sobre Rual, de que serviria ignorar a ameaça? se as relações entre eles eram como o Hugh diz, isso será mais um motivo de tristeza e perturbação para o jovem. É melhor poupá-lo por um dia ou mais. Mas, se acontecer, aconteceu. Ele é adulto, não podemos retirar de cima dele o fardo que lhe compete.

Foi na manhã do segundo dia após a sua chegada que Sulien se encontrou frente a frente com o Irmão Ruald, muito próximo dele e com mais ninguém presente a não ser Cadfael. Ele vira-o no meio de todos os outros irmãos em todos os serviços religiosos, o seu olhar cruzara-se com o dele, e ele sorrira-lhe através do espaço na penumbra do coro, mas recebera em resposta apenas um breve e longo olhar de doçura abstracta, como se o homem mais velho o visse através de um véu de assombro e êxtase em que as associações antigas não tinham qualquer lugar. Agora eles emergiram no pátio no mesmo momento, convergindo para a porta sul do claustro, Sulien vindo do jardim, Ruald da enfermaria. Agora que as bolhas dos pés tinham sarado, Sulien tinha um andar vigoroso, impetuoso, e ele deu a volta à sebe alta tão precipitadamente que quase chocaram os dois, as suas mangas tocaram-se, e pararam ambos abruptamente e recuaram com desculpas apressadas. Aqui ao ar livre, sob um céu ainda listado com rastos dourados de um nascer do sol luminoso, encontraram-se como humildes mortais, sem qualquer véu de glória entre eles.

- Sulien! - Ruald abriu os braços com um sorriso deleitado, afectuoso, e deu um breve abraço ao jovem, encostando a sua face à dele. - Eu vi-te na igreja no primeiro dia. Estou muito contente por estares aqui, em segurança!

Sulien ficou em silêncio por um momento, olhando atentamente para o homem mais velho, examinando-o da cabeça aos pés, cativado pela serenidade do seu rosto magro, e pelo ar curioso que ele tinha de ter encontrado o seu caminho, de ter assentado aqui e de se sentir feliz como nunca se sentira antes, na sua arte, na sua cabana, no seu casamento, na sua comunidade. Cadfael, que se mantivera afastado, junto da sebe, a observar os dois atentamente, viu Ruald momentaneamente como Sulien estava a vê-lo, um homem seguro da justeza da sua escolha e irradiando a sua alegria impoluta para todos os que se aproximavam dele. Para quem não soubesse que uma ameaça ou sombra pairava sobre este homem, ele devia parecer possuidor de uma felicidade perfeita. A verdadeira revelação era que, na verdade, ele o era. Um espanto!

- E tu? - perguntou Sulien, ainda a olhar para ele, e recordando-se. - Como estás? Estás bem? E feliz? Eu vejo que estás muito feliz.

- Está tudo bem comigo - disse Ruald. - Está tudo muito bem, melhor do que eu mereço. - Ele puxou o jovem pela manga, e juntos, dirigiram-se os dois para a igreja. Cadfael seguiu-os mais lentamente, permitindo que se afastassem o suficiente para não ouvir o que eles diziam. Pelo seu ar, Ruald estava a falar alegremente sobre coisas vulgares, como de irmão para irmão. Tal como toda a casa, ele tinha conhecimento da fuga de Sulien de Ramsey, mas era óbvio que ainda não sabia nada a respeito da fé abalada do rapaz na sua vocação. E era igualmente óbvio que não tencionava dizer uma palavra sobre a suspeita e o possível perigo que pairavam sobre a sua cabeça. Vistos de trás, a juventude ágil e a meia-idade laboriosa e paciente, garbosamente lado a lado, eram como pai e filho com o mesmo ofício a caminho do trabalho e, paternalmente, o mais velho não queria que o seu destino ensombrado nublasse os luminosos horizontes de fé que chamavam o seu filho.

- Ramsey será recuperada - disse Ruald num tom de certeza. - O mal será expulso de lá, embora talvez tenhamos que ser muito pacientes. Eu tenho rezado pelo teu abade e pelos irmãos.

- Eu também - disse Sulien pesarosamente -, durante todo o caminho. Tive sorte em ter escapado àquele terror. Mas é pior para os pobres habitantes das aldeias que não têm onde procurar abrigo.

- Nós também temos rezado por eles. Haverá um regresso, e um acerto de contas.

A sombra do pátio sul fechou-se sobre eles, e eles pararam, indecisos, prestes a separar-se, Ruald para o seu lugar no coro, Sulien para o seu lugar obscuro entre os noviços, quando Ruald falou. A sua voz ainda era calma e suave, mas vinha de uma fonte de sentimento mais profundo dentro de si, e assumira um tom distante, plangente, como um sino ao longe.

- Tiveste notícias da Generys, depois de ela ter partido? Ou sabes se alguém mais teve?

- Não, nem uma palavra - disse Sulien, espantado e trémulo.

- Não, nem eu. Eu não o merecia, mas eles ter-me-iam dito, por uma questão de amabilidade, se se soubesse alguma coisa dela. Ela gostava muito de ti desde que eras bebé, eu pensei que talvez... Eu gostaria muito de saber que ela está bem.

Sulien deixou-se ficar calado por um longo momento, com os olhos baixos. Depois disse numa voz muito baixa:

- Eu também, só Deus sabe quanto!

 

O Irmão Jerome não gostava que acontecesse alguma coisa no interior do claustro da qual ele fosse mantido até mesmo apenas marginalmente na ignorância, e achava que, na questão do noviço refugiado de Ramsey, nem tudo tinha sido dito abertamente. É verdade que o Abade Radulfus tinha feito uma declaração clara no cabido a respeito do destino de Ramsey e do terror nos Fens, e manifestara o desejo de que fosse concedido ao jovem Irmão Sulien, que tinha trazido as notícias e procurara refúgio ali, um período de tranquilidade e paz para se restabelecer da penosa experiência. Certamente que isso era razoável e amável. Mas, nesta altura, já toda a gente da casa sabia quem Sulien era e não conseguia deixar de relacionar o seu regresso com a questão da mulher morta encontrada no Campo do Oleiro e com a sombra cada vez maior que pairava sobre a cabeça do Irmão Ruald, e ele interrogava-se se Sulien já tinha sido informado de todos os pormenores daquela tragédia e qual o efeito que ela teria nele se tivesse. O que estaria ele a pensar do antigo rendeiro da sua família? Seria por isso que o abade fazia questão de pedir paz e tranquilidade para ele e de se certificar que o seu trabalho diário fosse feito sem muita gente por perto? E, quando Sulien e Ruald se encontrassem, o que diriam eles, qual seria o seu comportamento?

E agora já todos sabiam que eles se tinham encontrado. Todos os tinham visto a entrar lado a lado na igreja para a Missa, a conversar em voz baixa, e viram-nos separar-se para se dirigirem aos seus lugares sem qualquer alteração visível no rosto de qualquer deles, e irem depois às suas diferentes tarefas, com passos Seguros e rostos imperturbáveis. O Irmão Jerome tinha-os observado avidamente e não ficara mais sábio. Isso aborreceu-o. ele orgulhava-se de saber tudo o que se passava no interior e em redor da abadia de São Pedro e São Paulo, e a sua reputação iria sofrer se ele permitisse que aquele ponto obscuro não fosse investigado. Além disso, o seu estatuto junto do Prior Robert talvez fosse igualmente afectado. A dignidade de Robert proibia-lhe meter o seu aristocrático nariz em todas as questões obscuras mas, mesmo assim, ele contava ser informado do que se passava. As suas finas sobrancelhas prateadas talvez se erguessem, com desagradáveis implicações, se descobrisse que a sua fonte de confiança era, afinal, falível.

Assim, quando, nessa mesma tarde, o Irmão Cadfael se dirigiu, com uma sacola cheia, ao hospital de Saint Giles para visitar um novo doente e para reabastecer o armário dos medicamentos, deixando o herbário entregue aos seus dois assistentes, dos quais o Irmão Winfrid era plenamente visível a cavar os canteiros depauperados de hortaliças, preparando-os para o Inverno, o Irmão Jerome aproveitou a oportunidade e foi também fazer uma visita.

Ele não foi sem ter arranjado um pretexto. O Irmão Petrus queria cebolas para a mesa do abade, e estas tinham sido apanhadas e postas a secar em tabuleiros na despensa de Cadfael. Geralmente, Jerome teria delegado esta tarefa em alguém mas, naquele dia, foi ele mesmo.

Na oficina do herbário, o jovem Sulien estava a escolher diligentemente feijões que tinham sido secados para servirem de semente no ano seguinte, rejeitando os defeituosos ou suspeitos e colocando os melhores num jarro de barro feito certamente pelo Irmão Ruald na sua vida anterior. Da porta, Jerome estudou-o cuidadosamente antes de entrar e interromper o seu trabalho. A visão só aumentou a suspeita de que havia coisas a acontecer sobre as quais ele, Jerome, estava insuficientemente informado. Para começar, a coroa de Sulien ainda mantinha os seus novos caracóis castanhos claro que se tornavam mais luxuriantes cada dia que passava, formando uma imagem incongruente que ofendia o sentido de decoro de Jerome. Porque é que ele não tinha a cabeça bem rapada e apresentável, como todos os irmãos? Mais uma vez, ele desempenhava a sua simples tarefa com uma serenidade tranquila e uma mão firme, aparentemente nada perturbado pelo que ouvira da boca de Ruald. Jerome não conseguia imaginar que eles tivessem percorrido juntos o grande pátio até à igreja antes da Missa sem que tivesse sido dito uma só palavra sobre a mulher assassinada encontrada no terreno que fora outrora propriedade do pai do rapaz e de que o próprio Ruald fora rendeiro. Aquele era o principal tema de conversa, escândalo e especulação, como podia ele ser evitado? E este rapaz e a sua família poderiam bem constituir uma protecção considerável para um homem ameaçado de ser acusado de assassínio, se decidissem dar-lhe o seu apoio. Se estivesse no lugar do Ruald, Jerome teria certamente tentado obter esse apoio, teria contado a história assim que tivesse oportunidade. Ele partiu do princípio que Ruald tinha feito o mesmo. No entanto, aqui estava este jovem indecifrável a escolher cuidadosamente as suas sementes, aparentemente sem mais nada no pensamento, tendo até mesmo dominado já a tensão de Ramsey.

Sulien virou-se quando a sombra do visitante se projectou no interior, levantou os olhos para o rosto de Jerome e aguardou em respeitoso silêncio que lhe fosse dito o que era pretendido dele. Para ele, os irmãos ainda eram todos muito parecidos, e ele ainda não tinha, até então, falado com este homenzinho magro. O rosto estreito, cinzento, e os ombros curvados faziam com que Jerome parecesse mais velho do que era, e os irmãos jovens tinham o dever de ser prestáveis e submissos em relação aos mais velhos.

Jerome pediu cebolas, e Sulien foi à despensa e trouxe o que tinha sido pedido, escolhendo as melhores e mais redondas, uma vez que eram para a cozinha do próprio abade. Jerome começou benevolentemente:

- Como te sentes agora, aqui entre nós, depois de todas as tuas provações? Estás bem aqui com o Irmão Cadfael?

- Muito bem, obrigado - respondeu Sulien cuidadosamente, ainda inseguro a respeito deste visitante solícito cujo aspecto não era exactamente tranquilizador, nem a sua voz, mesmo falando com simpatia, particularmente agradável. - Tenho sorte em estar aqui, agradeço a Deus ter-me salvo.

- Um estado de espírito muito apropriado - disse Jerome num tom persuasivo. - Embora eu receie que, mesmo aqui, haja questões que devem perturbar-te. Eu gostaria que tivesses regressado para nós em circunstâncias mais felizes.

- Na realidade, também eu! - concordou Sulien com veemência, ainda recordando as convulsões de Ramsey.

Jerome sentiu-se encorajado. Parecia que o jovem estava, afinal, disposto a fazer confidências, se fosse encorajado compassivamente.

- Tenho muita pena de ti - disse ele num tom melífluo. - Deve ser chocante, depois de infortúnios tão grandes, chegar a casa e ter ainda mais notícias más. Esta morte que veio à luz e, pior ainda, saber que ela lança uma sombra de suspeita tão negra sobre um irmão nosso, tão bem conhecido da tua família...

Ele estava a elaborar tão confiantemente sobre aquele tema que não reparara que o corpo de Sulien tinha ficado rígido e que o seu rosto tinha assumido uma súbita imobilidade inexpressiva.

- Morte? - perguntou o rapaz abruptamente. - Que morte? Interrompido em pleno discurso, Jerome pestanejou, ficou de boca aberta e inclinou-se para olhar mais atentamente para o rosto jovem e franzido à sua frente, desconfiando de impostura. Mas os olhos azuis confrontaram-no com um olhar de uma limpidez tão cristalina que nem sequer Jerome, que era, ele próprio, um perito em dissimulação e uma causa de evasão defensiva por parte dos outros, conseguiu duvidar da perplexidade sincera do jovem.

- Queres dizer que o Ruald não te contou? - perguntou Jerome, incrédulo.

- Contou o quê? Seguramente que não me contou nada sobre uma morte! Eu não sei de que é que estás a falar, Irmão!

- Mas esta manhã tu entraste com ele na Missa - protestou Jerome, relutante em renunciar à sua certeza. - Eu vi-vos chegar, vocês conversaram...

- Sim, conversámos, mas não dissemos nada sobre más notícias, nada sobre mortes. Eu conheço o Ruald desde que comecei a andar - disse Sulien -, e fiquei contente de o encontrar e de o ver tão seguro na sua fé e tão feliz. Mas o que me estás a dizer sobre uma morte? Peço-te, deixa-me compreender-te.

Jerome pensara que ia extrair informações mas, em vez disso, deu por si a transmiti-las.

- Eu achava que já devias saber. No primeiro dia em que escavou o solo do Campo do Oleiro, a nossa junta de lavra fez vir à superfície o corpo de uma mulher. Enterrada ali ilegalmente, sem ritos... o xerife julga que foi morta ilegalmente. O primeiro pensamento que veio à mente foi que devia ser a mulher que era esposa de Ruald quando ele vivia no mundo. Eu pensei que ele te tivesse contado. Ele não te disse nada?

- Não, nem uma palavra - disse Sulien. O tom da sua voz era uniforme e quase distante, como se todos os seus pensamentos já tivessem lutado com a triste verdade dos factos, e se tivessem retirado para o interior do seu ser, para conter e disfarçar qualquer reflexão imediata sobre o seu pleno significado. O seu olhar azul, opaco, fitou Jerome sem vacilar. - Que devia ser, disseste. Então não se sabe? Nem ele nem ninguém conseguiu identificar a mulher?

- Não foi possível identificá-la. Não restou nada que um homem pudesse reconhecer. A única coisa que encontraram foi ossos. - A carne murcha de Jerome encolheu-se ao contemplar uma lembrança tão violenta da mortalidade. - Morta o ano passado, segundo julgam. Talvez mais, poderá até mesmo ser cinco anos. A terra trata o corpo de formas muito diferentes.

Sulien ficou rígido e calado por um momento, digerindo esta informação com um rosto imóvel como uma máscara. Por fim, disse:

- Será que compreendi bem o que disseste, que esta morte lança uma sombra negra de suspeita sobre um irmão da nossa casa? Com isso queres dizer sobre o Ruald?

- Como se poderá evitá-lo? - disse Jerome num tom razoável. - Se, de facto, é ela, para onde é que a lei iria olhar em primeiro lugar? Nós não temos conhecimento de qualquer outra mulher que tivesse frequentado aquele lugar, nós sabemos que esta desapareceu daqui sem dizer nada a ninguém. Mas quer ela esteja viva ou morta, quem pode ter a certeza?

- É impossível - disse Sulien com muita firmeza. - O Ruald já estava aqui na abadia há um mês ou mais quando ela desapareceu. Hugh Beringar sabia isso.

- E reconhece-o, mas isso não o torna impossível. Ele visitou-a depois disso, na companhia do Irmão Paul, para resolver questões sobre bens que ele deixou. Quem é que pode ter a certeza de que ele nunca a visitou sozinho? Ele não era prisioneiro dentro do claustro, saía para trabalhar em Gaye e noutras terras nossas. Quem poderá dizer que ele nunca saiu de junto dos seus companheiros? Pelo menos -, disse Jerome, com uma satisfação ligeiramente maliciosa no seu próprio raciocínio superior -, o xerife está ocupado a investigar todos os recados que o Irmão Ruald fez no exterior dos portões nos primeiros dias do seu noviciado. Se ele chegar à conclusão que eles nunca se encontraram e entraram em conflito, bem. Se não, ele sabe que o Ruald está aqui, e estará aqui à espera. Ele não pode fugir.

- Isso é um disparate - disse o rapaz com uma súbita violência contida. - Mesmo que houvesse provas de muitas testemunhas, eu não acreditaria que ele lhe tivesse feito mal. Eu chamar-lhes-ia mentirosas, porque o conheço. Ele nunca faria uma coisa dessas. Ele não o fez! - repetiu Sulien fitando em desafio o rosto de Jerome.

- Irmão, tu estás a agir presunçosamente! - Jerome endireitou-se de modo a atingir a sua altura máxima, embora ainda ficasse cerca de trinta centímetros mais baixo que Sulien. - É pecado ser-se movido pelo afecto humano para defender um irmão. A verdade e a justiça são preferíveis à mera inclinação falível. Isso está escrito no capítulo sexagésimo nono do Regulamento. Se conheceres o Regulamento como deves, sabes que a parcialidade é uma ofensa.

Não se pode dizer que Sulien tenha baixado o seu olhar aguerrido ou inclinado a cabeça ao ouvir esta censura, e teria certamente recebido uma repreensão muito mais longa se o ouvido atento do seu superior não tivesse, nesse momento, captado o som longínquo da voz de Cadfael, que parara no caminho, a alguns metros de distância, para trocar algumas palavras alegres com o Irmão Winfrid, que acabara de limpar a pá e estava a arrumar as suas ferramentas. Jerome não tinha a mínima vontade de ver esta insatisfatória conversa complicada por uma terceira pessoa, muito menos se essa pessoa fosse Cadfael que, pensando bem, talvez tivesse ficado encarregado deste assistente indisciplinado precisamente para evitar que ele soubesse demasiado, demasiado cedo. Era melhor deixar as coisas como estavam.

- Mas tu poderás ter desculpa - disse ele, com uma magnanimidade apressada -, uma vez que foste apanhado de surpresa, e numa altura em que já tinhas sido duramente posto à prova. Eu não direi mais nada!

E, de seguida, ele foi-se embora um tanto abruptamente, se bem que com dignidade, e foi a tempo de estar alguns passos fora da porta quando se encontrou com Cadfael. Para alguma surpresa de Cadfael, eles trocaram algumas palavras quando se cruzaram. Esta delicadeza fraternal em Jerome denunciava um ligeiro embaraço, se não uma consciência culpada.

Sulien estava a juntar os feijões rejeitados numa bacia, para serem adicionados ao estrume, quando Cadfael entrou na oficina. Ele não olhou em volta quando o seu mentor entrou. Reconhecera a voz, conhecia o passo.

- O que é que o Jerome queria? - perguntou Cadfael, com apenas um interesse ligeiro.

- Cebolas. O Irmão Petrus mandou-o cá buscá-las. Ninguém com um estatuto inferior ao do Prior Robert mandava o Irmão Jerome a qualquer lado. Ele guardava os seus serviços para onde eles pudessem reflectir favor e benefício para si próprio, e o cozinheiro do abade, um homem ruivo e beligerante do norte, não tinha quaisquer benefícios para conceder, mesmo que gostasse de Jerome, o que seguramente não acontecia.

- Eu acredito que o Irmão Petrus quisesse cebolas. Mas o que é que o Jerome queria?

- Ele queria saber como eu me estava a dar aqui contigo - respondeu Sulien lentamente. - Pelo menos, foi o que me perguntou. E, Cadfael, tu sabes o que se passa comigo. Ainda não tenho bem a certeza de como estou, nem do que devo fazer, mas antes de decidir ir ou ficar, acho que é altura de voltar a falar com o Pai Abade. Ele disse que podia fazê-lo, quando sentisse necessidade.

- Vai agora, se quiseres - disse Cadfael simplesmente, observando atentamente as mãos firmes que limpavam a bancada de fragmentos, e a cabeça diligentemente inclinada que mantinha o rosto jovem e austero na sombra. - Ainda há tempo antes das Vésperas.

O Abade Radulfus olhou o suplicante com um ar distante e tolerante. Em três dias, o rapaz tinha mudado compreensivelmente, a sua exaustão tinha sido curada, o seu passo era agora firme e vigoroso, as linhas do seu rosto já não reflectiam cansaço e tensão, o reflexo de perigo e horror desaparecera dos seus olhos. Ainda não era claro se o resto tinha resolvido o seu problema por ele, mas certamente que não havia nada de indeciso nos seus modos, nem na projecção de um respeitável maxilar.

- Pai - disse ele directamente -, vim pedir-lhe autorização para visitar a minha família e a minha casa. É justo que eu esteja igualmente exposto a influências interiores e exteriores.

- Eu pensei - disse Radulfus suavemente -, que tivesses vindo dizer-me que os teus problemas estavam resolvidos e a tua decisão tomada. Tens esse ar. Parece que estou a ser prematuro.

- Não, Pai, ainda não tenho a certeza. E não farei novos votos antes de ter a certeza.

- Então, queres respirar o ar de Longner antes de decidires tua vida, a e permitir que os membros da casa e da família falem contigo, tal como a vida aqui falou. Eu não gostaria que fosse de outro modo - disse o abade. - Certamente que podes fazer-lhes uma visita. Vai à vontade. Melhor ainda, passa a noite outra vez em Longner, pensa bem em tudo o que tens a ganhar lá e tudo o que tens a perder. Podes até precisar de mais tempo. Quando estiveres pronto, quando tiveres a certeza, então vem-me dizer o que decidiste.

- Fá-lo-ei, Pai - disse Sulien. O tom da sua voz era o que ele aprendera a utilizar durante o ano ou mais do seu noviciado em Ramsey, submisso, cumpridor e reverente, mas os seus olhos desconcertantes estavam fixos num objectivo distante, visível apenas para si próprio, ou pelo menos foi o que pareceu ao abade, que era tão versado na leitura do rosto monástico como Sulien o era a esconder-se atrás dele.

- Vai, então, imediatamente se quiseres. - Ele pensou na longa viagem a pé que este jovem tivera que fazer recentemente e acrescentou uma concessão. - Leva uma mula do estábulo, se quiseres ir já. Se fores montado, ainda chegarás lá de dia. E diz ao Irmão Cadfael que tens autorização para ficar até amanhã.

- Fá-lo-ei, Pai! - Sulien fez a sua vénia e saiu com um entusiasmo que Radulfus observou com alguma diversão e alguma pena. Seria óptimo se o rapaz ficasse entre eles, se essa fosse, de facto, a sua vocação, mas Radulfus estava a começar a achar que já o perdera. Desde que tinha entrado para o mosteiro ele já estivera uma vez em casa, quando trouxera o corpo do pai para ser sepultado depois da retirada de Wilton; nessa ocasião, ele tinha ficado alguns dias e, mesmo assim, decidira regressar para a sua vocação. Desde então, tivera vários meses para reconsiderar, e esta vontade súbita de visitar Longner, sem qualquer inevitável dever filial a reforçá-la, pareceu ao abade uma prova significativa de uma decisão praticamente tomada.

Cadfael estava a atravessar o pátio, para entrar na igreja para as Vésperas, quando Sulien se aproximou dele com as notícias.

- É muito natural - disse Cadfael entusiasticamente -, que queiras ver a tua mãe e o teu irmão. Tens toda a nossa aquiescência, e que Deus abençoe a tua decisão, seja ela qual for.

A sua expectativa, porém, enquanto observava o rapaz a sair do portão, era a mesma que Radulfus tinha em mente. Por mais que ele se esforçasse por acreditar na sua escolha errada, Sulien Blount não era, aparentemente, feito para a vida monástica. Uma noite em casa, na sua própria cama e rodeado pela família, resolveria o assunto.

Esta conclusão levou a uma pergunta muito pertinente que ocupou a mente de Cadfael durante as Vésperas. O que teria levado o rapaz a entrar para o mosteiro?

Sulien regressou no dia seguinte a horas de assistir à Missa, com um ar muito solene e um porte resoluto, parecendo, por algum motivo, mais próximo da maturidade plena de um homem do que quando chegara vindo de horrores e provações suportados com toda a força e determinação de um homem. Fora um jovem, resistente mas vulnerável, que passara dois dias na companhia de Cadfael; foi um homem, sério e determinado, que voltou de Longner e se dirigiu a ele depois da missa. Ainda envergava o hábito, mas a sua tonsura absurda, o tufo de caracóis castanhos dourados no interior de um anel de cabelo castanho mais escuro demasiado comprido dava-lhe um ar incongruente de zombaria, exactamente quando o seu rosto assumia o seu ar mais sério. É altura, pensou Cadfael, observando-o com afecto, de este voltar para o lugar que lhe pertence.

- Eu vou falar com o Pai Abade - disse Sulien sem rodeios.

- Foi o que eu pensei - concordou Cadfael.

- Importas-te de vir comigo?

- É necessário que o faça? O que eu tenho a certeza que vais dizer é entre ti e o teu superior, mas penso - admitiu Cadfael -, que ele não vai ficar surpreendido.

- Tenho mais uma coisa para lhe dizer - disse Sulien com um rosto sério. - Tu estavas lá quando eu cá cheguei e foste o mensageiro que ele enviou para comunicar as notícias ao xerife. Eu sei, pelo meu irmão, que tens sempre acesso a Hugh Beringar, e agora sei o que anteriormente não sabia. Sei o que aconteceu quando a lavra começou, sei o que foi encontrado no Campo do Oleiro. Eu sei o que toda a gente está a pensar e a dizer, mas sei que não pode ser verdade. Vem comigo ao Abade Radulfus. Gostaria que estivesses lá como testemunha. E acho que ele talvez precise de um mensageiro, tal como aconteceu antes.

A sua atitude era tão urgente e o seu pedido tão incisivo, que Cadfael não perguntou mais nada.

- Seja como tu e ele quiserem. Anda!

Foram autorizados a entrar na sala do abade sem quaisquer perguntas. Sem dúvida que Radulfus estivera à espera que Sulien pedisse uma audiência assim que a Missa terminasse. Se ficou surpreendido com o facto de o rapaz trazer um conselheiro consigo, possivelmente para defender a sua decisão ou como mera obrigação para com o mentor a quem tinha sido entregue durante o seu período experimental, ele não permitiu que isso transparecesse no rosto ou na voz.

- Então, meu filho? Espero que tenhas encontrado tudo bem em Longner? A viagem ajudou-te a encontrar o teu caminho?

- Sim, Pai - Sulien estava à sua frente com uma atitude um pouco rígida, e o seu olhar directo era muito brilhante e solene no rosto pálido. - Vim pedir autorização para deixar a Ordem e voltar para o mundo.

- Essa é a tua decisão reflectida? - perguntou o abade com a mesma voz suave. - Desta vez não tens dúvidas?

- Não tenho dúvidas, Pai. Foi um erro ter pedido para entrar para o convento. Reconheço isso agora; deixei deveres para trás para ir à procura da minha própria paz. Foi o Pai que me disse que esta tem que ser uma decisão minha.

- Continuo a dizer o mesmo - disse o abade. - De mim não vais ouvir censuras. Ainda és novo, mas estás um ano mais velho do que quando procuraste refúgio no interior do mosteiro, e creio que mais sensato. É muito melhor prestar um serviço entusiástico noutro campo do que ficar sem entusiasmo e com dúvidas na Ordem. Vejo que ainda não despiste o hábito - disse ele, com um sorriso.

- Não, Pai! - a rígida dignidade jovem de Sulien sentiu-se um pouco ofendida com a sugestão. - Como poderia eu fazê-lo, sem a sua autorização? Só serei livre depois de o Pai me libertar.

- Eu liberto-te. Gostaria muito de te ter cá, se tivesses decidido ficar, mas creio que para ti é melhor assim, e o mundo ficará satisfeito de te ter nele. Vai, com a minha autorização e a minha benção, e serve onde o teu coração estiver.

Supondo que a audiência tinha terminado, embora sem manifestar qualquer sinal de pressa ou de o mandar embora, ele virara-se um pouco na direcção da secretária, onde assuntos mais mundanos aguardavam a sua atenção; mas Sulien não arredou pé, e a intensidade do seu olhar interrompeu os movimentos do abade e fê-lo voltar a olhar, mais atentamente, para o filho que acabara de libertar.

- Tens mais alguma coisa a pedir-nos? Certamente que terás as nossas orações.

- Pai - disse Sulien, vindo-lhe naturalmente aos lábios o antigo modo de se dirigir ao abade -, agora que o meu problema terminou, descobri que me deparei com uma enorme teia de problemas de outros homens. Em Longner, o meu irmão contou-me o que me foi poupado aqui, quer por acaso, quer propositadamente. Soube que, quando a lavra começou no campo que o meu pai doou a Haughmond o ano passado e, há dois meses, Haughmond trocou com esta casa por uma terra mais conveniente, a sega trouxe à superfície o corpo de uma mulher enterrada ali há já algum tempo. Mas não há tanto tempo que o modo, a data e a causa da sua morte não suscitem perguntas. Por todo o lado se diz que esta era a mulher do Irmão Ruald, que ele deixou para entrar na Ordem.

- Poder-se-á dizer por todo o lado - concordou o abade, olhando para o rapaz com um rosto grave e as sobrancelhas franzidas -, mas não se sabe em todo o lado. Nenhum homem pode dizer quem era ela, e não existe, por enquanto, qualquer forma de saber como ela morreu.

- Mas não é isso o que se diz e acredita no exterior destas muralhas - insistiu Sulien com veemência. - E uma vez conhecida uma descoberta tão terrível, como pode a mente de qualquer homem escapar a esse pensamento imediato? Uma mulher encontrada num local em que uma mulher desaparecera sem dizer nada a ninguém! Que outra coisa iria qualquer homem pensar a não ser que era exactamente essa? É verdade, eles podem estar todos enganados. Na realidade, seguramente que estão! Mas, segundo ouvi, é isto o que até mesmo o Hugh Beringar está a pensar, e quem o pode culpar por isso? Pai, isso significa que o dedo aponta para o Ruald. Segundo me disseram, os rumores dizem que ele é culpado de assassínio, e que a sua vida corre perigo.

- Os mexericos não falam necessariamente com autoridade - disse o abade num tom paciente. - Certamente que não podem falar pelo xerife. Ao estudar os movimentos e os actos do Ruald, ele está apenas a cumprir o seu dever, e fará o mesmo em relação aos outros, se for necessário. Suponho que o próprio Ruald não te disse nada sobre isto, caso contrário não terias de o ouvir pela primeira vez em tua casa, em Longner. Se ele não está preocupado, por que motivo hás-de estar preocupado por ele?

- Mas, Pai, é isso o que tenho para dizer - Sulien corou, veemente e ansioso. - Ninguém precisa de estar preocupado por ele. É verdade que, como o Pai disse, nenhum homem consegue dizer quem é aquela mulher, mas aqui está um que pode dizer com absoluta certeza quem ela não é! Porque eu tenho provas de que Generys, a mulher do Ruald, está viva e bem de saúde ou, pelo menos, estava há cerca de três semanas.

- Tu viste-a? - perguntou Radulfus, reflectindo, semi-incrédulo, o brilho ardente da veemência do rapaz. .

- Não, não vi! Mas posso fazer melhor que isso! - Sulien enfiou uma mão dentro da garganta do seu hábito e tirou de lá um objecto pequeno que trazia enfiado num cordel à volta do pescoço. Ele tirou-o pela cabeça e estendeu a palma da mão aberta para mostrar, ainda quente do seu corpo, um anel de prata simples com uma pequena pedra amarela como as que se encontram por vezes nas montanhas de Gales e da fronteira. Por si só, pouco valioso, mas maravilhoso pelo que denotava. - Pai, eu sei que foi ilegal guardar isto, mas juro que não o tinha em Ramsey. Pegue nele, veja o que tem por dentro!

Radulfus lançou-lhe um olhar longo, penetrante, antes de estender a mão e pegar no anel, virando-o para que a sua superfície interior apanhasse luz. As suas sobrancelhas pretas uniram-se. Ele encontrara o que Sulien queria que encontrasse.

- Um G e um R entrelaçados. Tosco, mas nítido... É antigo. As orlas estão esbatidas, mas quem quer que o tenha gravado fez um corte profundo. - Ele ergueu a vista para o rosto ardente de Sulien. - Onde é que obtiveste isto?

- De um ourives de Peterborough, depois de termos fugido de Ramsey, e de o Abade Walter me ter mandado vir para cá. Foi um mero acaso. Houve alguns comerciantes na cidade que tiveram medo de ficar depois de saberem que De Mandeville estava perto e que tipo de exército ele trazia consigo. Eles estavam a vender tudo para se irem embora. Mas outros eram corajosos e tencionavam ficar. Era noite quando eu cheguei à cidade, e recomendaram-me que me dirigisse a um ourives de Priestgate que me daria abrigo para a noite. Ele era um homem forte, que não se deixava intimidar por bandidos nem ladrões, e que fora um bom benfeitor de Ramsey. Ele tinha escondido os seus objectos de valor, mas entre as coisas menos valiosas que tinha na loja vi este anel.

- E reconheceste-o?

- De antigamente, há muito tempo, quando eu era criança. Não podia estar enganado, nem mesmo antes de procurar esta marca. Perguntei-lhe onde e quando ele lhe chegara às mãos, e ele disse que uma mulher lho trouxera uns dez dias antes, para vender, porque, dissera ela, ela e o marido tinham decidido ir para longe dos saqueadores de De Mandeville e estavam a transformar tudo o que podiam em dinheiro para se poderem instalar em segurança noutro local. Era o que estavam a fazer muitas pessoas que não tinham grandes interesses na cidade. Perguntei-lhe que tipo de mulher era ela, e ele descreveu-ma, sem margem de erro. Pai, há apenas três semanas, Generys estava viva e de saúde em Petersborough.

- E como é que adquiriste o anel? - perguntou Radulfus suavemente, mas com um olhar penetrante fixo no rosto do rapaz. - E porquê? Tu não tinhas motivo nenhum para saber que ele poderia ter um enorme significado aqui.

- Não, nenhum. - Cadfael reparou no leve rubor que subiu às faces de Sulien, mas o olhar azul firme era límpido como sempre, desafiando até mesmo qualquer dúvida ou censura. - O Pai enviou-me de volta para o mundo, eu posso falar como uma pessoa que já esteja no exterior destas muralhas, e fá-lo-ei. O Ruald e a sua mulher eram meus amigos de infância e, quando deixei de ser criança, essa amizade aumentou e amadureceu. Já lhe devem ter dito que a Generys era muito bela. O que eu sentia por ela não a tocou absolutamente nada, ela nunca soube. Mas foi depois de ela partir que eu pensei e tive esperança, admito, de que o mosteiro e o hábito me devolvessem a paz. Mas quando vi o anel e lhe toquei, sabendo que tinha sido dela, tive vontade de ficar com ele. É tão simples quanto isso.

- Mas tu não tinhas dinheiro - disse Radulfus no mesmo tom plácido, coibindo-se de fazer qualquer censura.

- Ele deu-mo. Eu contei-lhe o que lhe contei agora. Talvez mais - disse Sulien, com um radioso sorriso súbito que durou apenas um instante nos olhos de outro modo veementemente solenes. - Só fomos companheiros durante uma noite. Não devo voltar a vê-lo, nem ele a mim. Duas pessoas que se encontrem desta forma fazem mais confidências do que faziam às suas próprias mães. E ele deu-me o anel.

- E por que motivo - perguntou Radulfus de um modo igualmente directo -, não o devolveste, ou pelo menos o mostraste a Ruald e lhe transmitiste as notícias assim que te encontraste com ele aqui?

- Não foi para o Ruald que eu o pedi ao ourives - disse Sulien bruscamente -, mas sim para meu próprio consolo. E quanto a mostrá-lo e dizer-lhe como e onde o tinha obtido, eu não soube até agora que pairava qualquer dúvida sobre ele, nem que havia uma mulher morta, agora enterrada há pouco tempo aqui, que se pensava ser Generys. Só falei com ele uma vez desde que cá cheguei, e isso foi durante apenas alguns minutos, a caminho da Missa. Ele pareceu-me tão plenamente feliz e satisfeito, porque é que eu havia de me apressar a despertar recordações antigas? A sua vinda para cá acarretou dor, bem como alegria, e eu achei por bem não perturbar a sua alegria actual. Mas agora ele tem que saber. Talvez eu tivesse sido guiado para trazer o anel de volta, Pai. Eu tenho todo o gosto em o entregar a si. Ele já fez por mim aquilo de que eu precisava.

Houve uma breve pausa enquanto o abade reflectia sobre todas as implicações para os presentes, bem como para aqueles que não estavam ainda envolvidos. Depois, virou-se para Cadfael.

- Irmão, importas-te de levar as minhas saudações a Hugh Beringar e de lhe pedir que volte contigo e venha ter connosco aqui? Se não o conseguires encontrar logo, deixa-lhe uma mensagem. Até ele ter ouvido, acho que não deve ser dito nada a mais ninguém, nem sequer ao Irmão Ruald. Sulien, tu já não és um irmão desta casa, mas eu espero que fiques como hóspede até teres contado novamente a tua história, e na minha presença.

 

Hugh estava no castelo, e Cadfael encontrou-o no armeiro a verificar as existências de aço, preocupado com a possibilidade de uma investida contra a anarquia que reinava em Essex. Ele tinha levado o presságio a sério e queria estar preparado se o rei o chamasse. Mas Hugh estava sempre preparado para a acção e, de um modo geral, estava satisfeito com os preparativos. Quando a chamada viesse, ele poderia ter um número razoável de homens na estrada em poucas horas. Não havia qualquer certeza de que um xerife de um condado tão distante da devastada zona dos Fens fosse convocado, mas a possibilidade permanecia. Para o sentido de ordem e equilíbrio de Hugh, a existência de De Mandeville e de homens como ele constituía uma afronta.

Cumprimentou Cadfael com uma atenção um pouco abstracta e continuou a observar, com um olhar crítico, o seu armeiro a bater no aço, dando-lhe a forma de uma espada. Ele dedicou apenas as orlas da sua mente ao convite urgente do abade até que Cadfael o fez ficar atento ao acrescentar:

- Tem a ver com o corpo que encontrámos no Campo do Oleiro. O caso mudou de figura.

Isso fez com que a cabeça de Hugh se virasse subitamente.

- Mudou como?

- Vem ouvi-lo da boca do rapaz que o mudou. Parece que o jovem Sulien Blount trouxe consigo dos Fens mais do que más notícias. O abade quer ouvi-lo a contar-te tudo outra vez. Se houver algo significativo que ele não tenha detectado, ele tem a certeza de que tu o irás encontrar, e depois vocês podem pensar juntos, pois parece que uma estrada te está vedada. Pega no teu cavalo e vamos.

Mas no caminho de regresso através da cidade e sobre a ponte para Foregate, ele deu-lhe uma notícia preliminar, como introdução ao que se ia seguir.

- Ao que parece, o Irmão Sulien decidiu voltar para o mundo. Tu tinhas razão, ele não foi feito para ser monge. Ele chegou à mesma conclusão, sem desperdiçar demasiado tempo da sua juventude.

- E o Radulfus concorda contigo? - perguntou Hugh.

- Eu acho que ele já o sabia antes. O Sulien é um bom rapaz, fez o melhor que pôde, mas ele próprio diz que entrou para a Ordem pelas razões erradas. Agora, vai regressar à vida para que estava destinado. É possível que, antes de tudo isto terminar, o tenhas na tua guarnição, pois, se vai abandonar uma vocação, irá certamente precisar de outra.

- Ainda mais agora - disse Hugh -, pois o Eudo está casado há pouco tempo, por isso poderá haver filhos dentro de um ou dois anos. Com a continuação da linha assegurada, não há lugar para um irmão novo. Podia sair-me pior. Ele parece um jovem promissor. Bem feito e com várias capacidades, e sempre montou bem.

- Certamente que a mãe dele ficará satisfeita de o ter de volta - reflectiu Cadfael. - Pelo que me disseste, ela tem poucas alegrias na vida; um filho a regressar a casa poderá fazer-lhe muito bem.

O jovem promissor ainda estava na sala do abade quando Hugh entrou, seguido de Cadfael. Ao que parecia, sentiam-se ambos muito à vontade um com o outro, com excepção de uma ligeira tensão na forma como Sulien estava sentado, muito erecto e imóvel, com os ombros encostados aos painéis da parede. O seu papel aqui só ainda estava meio completo; ele estava à espera, atento e de olhos bem abertos, para o terminar.

- O Sulien - disse o abade -, tem uma coisa importante para te contar, e eu pensei que era melhor que a ouvisses directamente da sua boca, pois podes querer fazer-lhe perguntas que não me tenham ocorrido.

- Disso eu tenho dúvidas - disse Hugh, sentando-se num sítio de onde conseguia ver claramente o rapaz à luz que entrava pela janela. Passava pouco do meio-dia, e era a hora mais luminosa de um dia de céu nublado. - Foi muito amável da sua parte mandar-me chamar tão rapidamente. Pois, suponho que isto tenha a ver com a questão da mulher morta. Cadfael não me disse nada para além disso. Estou a ouvir, Sulien. O que tens para contar?

Sulien voltou a contar a sua história, mais resumidamente do que antes, mas com palavras muito semelhantes no que dizia respeito aos factos. Não havia quaisquer discrepâncias, mas as frases também não eram tão exactas que parecessem ter sido estudadas. Ele tinha uma forma veemente e rápida de falar, e as palavras vinham-lhe facilmente. Quando terminou, encostou-se de novo para trás com um suspiro e disse:

- Portanto, agora já não pode haver qualquer suspeita contra o Irmão Ruald. Quando é que ele teve qualquer coisa a ver com qualquer outra mulher que não fosse a Generys? E a Generys está viva e bem de saúde. Quem quer que tenham encontrado, não pode ser ela.

Hugh tinha o anel na palma da mão, as iniciais gravadas eram bem visíveis à luz. Ele sentou-se, pensativo, a olhar para ele com a testa franzida.

- Foi o teu abade que te recomendou que procurasses abrigo junto desse ourives?

- Foi. Ele era conhecido por ser um bom amigo dos beneditinos de Ramsey.

- E como é que se chamava? E onde fica a loja dele?

- Chama-se John Hinde, e a loja fica em Priestgate, não muito longe da igreja da abadia. - As respostas eram dadas rapidamente, quase com ansiedade.

- Bem, Sulien, parece que tu libertaste o Ruald de toda a preocupação com este mistério e com esta morte, e que me roubaste um suspeito, se é que ele alguma vez foi um suspeito a sério. Mas, para dizer a verdade, ele nunca foi um malfeitor muito provável, mas homens são homens... até mesmo os monges são homens... e há entre nós muito poucos que não seriam capazes de matar, dada a ocasião, a necessidade, a raiva e a solidão. Era possível. Não tenho pena de ver essa teoria deitada por terra.

Parece que temos que procurar uma mulher perdida noutro lado.

E o Ruald já foi informado disto? - perguntou ele, erguendo o olhar para o abade.

- Ainda não.

- Manda chamá-lo agora - disse Hugh.

- Irmão - disse o abade, virando-se para Cadfael -, importas-te de ir à procura do Ruald e de lhe pedir que venha cá?

Cadfael, pensativo, foi fazer o recado. Para Hugh, esta informação significava voltar ao princípio, bem como uma distracção dos assuntos do rei, numa altura em que ele preferiria poder concentrar-se neles. Sem dúvida que procuraria encontrar quaisquer outras identidades possíveis para a mulher morta, mas não era possível negar que a desaparecida Generys era a possibilidade mais óbvia. Mas agora, com este inesperado revés, pelo menos a abadia de São Pedro e São Paulo podia estar mais tranquila. Quanto ao próprio Ruald, ficaria satisfeito e grato pela mulher, mais do que por si. A plenitude da sua paz, muito maior do que aquela que a maior parte dos falíveis irmãos humanos poderia atingir, era uma perpétua maravilha. Para ele, o que quer que Deus decretasse e fizesse, por ele ou a ele, até mesmo na sua dor e humilhação, até mesmo à sua vida, era bem feito. O martírio não o faria mudar de ideias.

Cadfael encontrou-o na galeria subterrânea abobadada do refeitório, onde o Irmão Matthew, o adegueiro, guardava as provisões mais volumosas. Ruald tinha-lhe sido atribuído, como um homem prático cujas capacidades eram manuais e não intelectuais ou artísticas. Chamado à sala do abade, ele limpou o pó das mãos, abandonou o inventário que estava a fazer, dirigiu-se ao escritório ao fundo da ala sul para informar o Irmão Matthew sobre a mensagem que recebera e para lhe dizer onde ia, e seguiu atrás de Cadfael, numa atitude de obediência simples e incondicional. Não era o tipo de pessoa que perguntasse ou que se interrogasse, embora, nas actuais circunstâncias, reflectiu Cadfael, ele poderia bem sentir um ligeiro sobressalto ao ver a autoridade secular reunida com a monástica, e ambas com rostos austeramente graves e os olhos fixos nele. Se a visão deste tribunal duplo a aguardar a sua entrada abalou a sua serenidade no limiar da sala, o seu porte ou o seu rosto não o manifestaram. Ele fez a sua plácida vénia e esperou que lhe dirigissem a palavra. Cadfael fechou a porta atrás dele.

- Mandei-te chamar, Irmão - disse o abade -, porque apareceu uma coisa que talvez reconheças.

Hugh mostrou-lhe o anel na palma da sua mão.

- Conheces isto, Ruald? Pega nele, examina-o.

Isso não era necessário, pois bastou-lhe vê-lo na mão de Hugh para ele abrir os lábios para responder. Mas pegou obedientemente no anel e virou-o imediatamente para que a luz incidisse de lado nas iniciais entrelaçadas toscamente gravadas no interior. Ele não precisara de as ver para o identificar, ele queria-o e aceitou-o com gratidão como um sinal, tanto de consentimento recordado, como de esperança de reconciliação futura e de perdão. Cadfael viu o leve estremecimento de afecto e promessa dissolver momentaneamente as linhas pacientes do seu rosto magro.

- Eu conheço-o bem, meu senhor. É da minha mulher. Dei-lho antes de nos casarmos, em Gales, onde a pedra foi encontrada. Como é que ele veio aqui parar?

- Primeiro deixa-me esclarecer... tens a certeza de que este anel era dela? Que não pode haver outro igual?

- É impossível. Poderá haver outros casais com estas iniciais, sim, mas estas fui eu que as gravei, e eu não sou gravador. Conheço todas as linhas, todas as irregularidades, todos os defeitos do trabalho, eu vi as incisões brilhantes perderem o brilho e escurecerem ao longo dos anos. A última vez que o vi ele estava na mão da Generys. Não há nada mais certo debaixo do sol. Onde está ela? Voltou? Posso falar com ela?

- Ela não está aqui - disse Hugh. - O anel foi encontrado na cidade de Peterborough, numa ourivesaria, e o ourives afirmou que o comprara a uma mulher apenas dez dias antes. A mulher que lho vendeu precisava de dinheiro para a ajudar a sair da cidade, para ir para um lugar mais seguro, pois a anarquia tinha rebentado nos Fens. Ele descreveu-a. Parece que ela era, de facto, a mesma que foi tua mulher.

O radiar de esperança fora como um lento e velado nascer do sol no rosto de meia-idade de Ruald mas, nesta altura, todas as nuvens se dissiparam. Ele virou-se para o Abade Radulfus com uma ansiedade tão luminosa que a luz oriunda da janela, que irrompia em raios de sol um tanto pálidos, pareceu apenas o reflexo da sua alegria.

- Então ela não está morta! Ela está viva e bem de saúde! Pai, posso fazer-lhe outra pergunta? Pois isto é maravilhoso!

- Certamente que podes - disse o abade. - E é, de facto, maravilhoso.

- Senhor xerife, como é que este anel chegou até cá, se foi comprado e vendido em Peterborough?

- Foi trazido por alguém que chegou recentemente a esta casa vindo dessa região. Estás a vê-lo aqui, Sulien Blount. Tu conhece-lo. O ourives deu-lhe guarida por uma noite, e ele viu o anel na loja e reconheceu-o. Ele desejou trazê-lo com ele - disse Hugh lentamente -, como recordação da velha amizade, e fê-lo, e aí o tens na tua mão.

Ruald virou-se e lançou um olhar longo e firme ao jovem silencioso e imóvel, um pouco retirado, como se desejasse ir-se embora e, não conseguindo desaparecer numa sala tão pequena, tinha, pelo menos, esperança de escapar a uma observação excessivamente atenta, mantendo-se imóvel e fechando as portadas sobre o seu rosto demasiado transparente e sobre os olhos cândidos. Um olhar estranho e penetrante passou entre eles, e nenhum deles se moveu ou falou de modo a quebrar a sua intensidade. Cadfael ouviu, no interior da sua própria mente, as perguntas que não estavam a ser feitas: Porque é que não me mostraste o anel? Se, por motivos que eu posso adivinhar, não o quiseste fazer, não podias, pelo menos, dizer-me que tinhas ouvido falar recentemente dela, que ela estava viva e bem de saúde? Mas a única coisa que Ruald disse, sem desviar os olhos do rosto de Sulien, foi:

- Não posso ficar com ele. Eu renunciei a todos os bens materiais. Agradeço a Deus tê-lo visto e por Ele ter achado por bem manter Generys em segurança. Rezo para que Ele a guarde no futuro.

- Amem - disse Sulien, numa voz que mal se ouviu. O som era um mero suspiro, mas Cadfael viu os seus lábios tensos estremecer e mover-se.

- Mesmo que não o possas guardar, Irmão, é teu para ofereceres - disse o abade, observando ambos com olhos astuciosos que estudavam e reflectiam, mas que se coibiam de julgar. O rapaz já lhe tinha confessado o motivo por que tinha adquirido o anel e por que tencionava ficar com ele. Por si só, uma coisa insignificante, mas importante nas suas consequências, ele tinha desempenhado o seu papel e deixara de ter significado. A não ser, talvez, na sua alienação. - Podes oferecê-lo a quem quiseres - disse Radulfus.

- Se o senhor xerife já não precisar dele - disse Ruald -, eu devolvo-o ao Sulien, que o encontrou. Ele trouxe-me as melhores notícias que eu poderia receber e esse pedaço de paz que nem sequer esta casa conseguia restabelecer. - Ele sorriu subitamente, o que iluminou o seu rosto comprido, e estendeu o anel para Sulien. O rapaz estendeu a mão muito lentamente, quase com relutância, para o receber. Quando se tocaram, uma cor vívida deu às suas faces um rubor ardente, e ele afastou altivamente o rosto da luz para amenizar a denúncia.

Então o que se passa é isto, pensou Cadfael, esclarecido. Não foram feitas mais perguntas porque estas não eram necessárias. Ruald devia ter visto o filho mais novo do seu senhor entrar e sair da oficina e da casa quase desde que o rapaz nascera, e vira-o atingir a desajeitada adolescência e o prenúncio da idade adulta, e sempre próximo daquela mulher misteriosa e formidável, a desconhecida, que para ele não era desconhecida, a que se mantinha distante, mas não dele, o ser de quem todos os homens diziam que era muito bela, mas que não era cordial e amável para com toda a gente. As crianças conseguem, por direito próprio, entrar onde outros não são admitidos. Sulien afirmou que os seus sentimentos não a tinham tocado, ela nunca soubera. Mas Ruald soubera. Não havia agora necessidade de o rapaz falar sobre os seus próprios motivos, nem de pedir perdão pelos meios através dos quais ele defendera o que lhe era precioso.

- Muito bem, assim seja - disse Hugh secamente. - Não tenho mais nada a perguntar. Fico muito satisfeito, Ruald, de ver que a tua mente ficou em paz. Tu, pelo menos, não precisas de te preocupar mais com este assunto, não resta qualquer sombra de ameaça em relação a ti ou a esta casa, e tenho que procurar noutro local. Ouvi dizer, Sulien, que decidiste abandonar a Ordem. Vais estar em Longner, se eu precisar de falar contigo?

- Vou - disse Sulien, ainda um pouco rígido e numa atitude de defesa da sua própria dignidade. - Quando quiser falar comigo, eu estarei lá.

Agora, pergunto-me eu, pensou Cadfael quando o abade dispensou Ruald e Sulien, abençoando-os com um gesto breve, e eles saíram juntos, que truque de mente fizera o rapaz utilizar a palavra "quando"? Eu estaria à espera que ele dissesse "se quiser falar comigo". Será que ele tem uma premonição de que um dia, por algum motivo, será exigido mais dele?

- É óbvio que ele estava apaixonado pela mulher - disse Hugh quando os três ficaram sozinhos. - São coisas que acontecem! Não nos podemos esquecer que a mãe dele está doente há uns oito anos, definhando gradualmente até se tornar na coisa débil que é hoje. Que idade teria este rapaz quando isso começou? Mal teria dez anos. Embora ele gostasse da quinta do Ruald e fosse bem recebido lá muito antes disso. Uma criança afeiçoa-se a uma mulher generosa e bela ao longo de muitos anos inocentes, e subitamente descobre que tem impulsos de homem no seu corpo, bem como na mente. Depois, uns ou outros vencem. Este rapaz, imagino eu, daria a superioridade à mente, colocaria o seu amor num pedestal... ou melhor, num altar, se me permite a palavra, Pai... e venerá-la-ia em silêncio.

- Foi o que fez, segundo ele diz - concordou Radulfus secamente. - Ela nunca soube. Palavras dele.

- Sinto-me inclinado a acreditar. Vocês viram como ele corou como uma peónia quando viu que Ruald conseguia ver através dele. Será que o Ruald nunca teve ciúmes da mulher? Todos parecem concordar que ela era muito bonita. Ou será que ele simplesmente estava habituado a ter o rapaz lá em casa e sabia que ele era inofensivo?

- Ou então, segundo dizem - sugeriu Cadfael num tom sério -, ele sabia que a mulher era imutavelmente leal.

- No entanto, os rumores dizem que ela tinha um amante, no fim, quando ele estava decidido a deixá-la.

- Não são só os rumores que o dizem - recordou-lhes o abade com firmeza. - Ele próprio o diz. Na última visita que ele lhe fez, e o Irmão Paul pode confirmá-lo, ela disse-lhe que tinha um amante melhor, que era digno de ser amado, e que ele próprio, o seu marido, tinha destruído toda a ternura que ela sentira por ele.

- Ela disse isso - concordou Cadfael. - Mas seria verdade? E contudo, lembro que ela também falou ao ourives no marido.

- Quem sabe? - Hugh ergueu as mãos ao ar. - Ela podia ter agredido o marido com o que tivesse à mão, mas não tinha qualquer motivo para mentir ao ourives. A única coisa que é certa é que a nossa mulher morta não é a Generys. E posso esquecer o Ruald, bem como qualquer outro que possa ter tido alguma coisa a ver com a Generys. Estou à procura de outra mulher e de outro motivo para a terem assassinado.

- O que me está atravessado - disse Hugh, dirigindo-se para o portão, com Cadfael a seu lado -, é o facto de ele não lhe ter dito, assim que se encontraram, que a mulher estava viva e bem de saúde. Quem tinha mais direito de o saber do que o marido, mesmo que este se tivesse tornado monge? E que outras notícias podiam ser mais urgentes no momento em que o rapaz o viu?

- Nessa altura, ele não sabia nada sobre uma mulher morta, nem que recaíam suspeitas sobre o Ruald - sugeriu Cadfael, prestável, e ele próprio ficou surpreendido com o modo hesitante com que as palavras soaram, mesmo aos seus ouvidos.

- Com isso eu estou de acordo. Mas ele sabia, melhor do que ninguém, que o Ruald deve pensar constantemente nela e perguntar a si próprio como ela estará, se está viva ou morta. O mais natural era dizer, assim que o visse, "Não precisas de te preocupar com a Generys, ela está bem." Era tudo o que ele precisava de saber, e a sua felicidade estaria completa.

- O próprio rapaz estava apaixonado por ela - arriscou Cadfael. - Talvez sentisse ressentimento e não quisesse dar essa satisfação ao Ruald.

- Ele parece-te uma pessoa de ressentimentos? - perguntou Hugh.

- Digamos, então, que ele ainda tinha a mente ocupada com o saque de Ramsey e a sua fuga de lá. Isso foi suficiente para se esquecer de todas as questões menores.

- Ele recordou-se do anel depois de Ramsey - recordou-lhe Hugh -, e essa recordação foi suficientemente importante para preencher a sua mente na altura.

- É verdade. E, para dizer a verdade, isso também me intriga. Quem pode julgar o raciocínio de um homem sob tensão? O que importa é o anel. Era dela; o Ruald, que lho dera, reconheceu-o imediatamente como sendo dela. Ela vendeu-o para satisfazer necessidades imediatas. Independentemente de quaisquer irregu-laridades que possa ter havido na natureza e nos actos do jovem Sulien, ele trouxe a prova. A Generys está viva, e o Ruald está ilibado de toda a culpa possível. Que mais precisamos de saber?

- Para onde nos havemos de virar a seguir - disse Hugh num tom irónico.

- Não tens mais nada? E a viúva que Haughmond lá colocou como rendeira depois de Eudo lhes ter feito a doação?

- Já falei com ela. Agora vive na cidade, com a filha, não muito longe da ponte ocidental. Ela esteve lá pouco tempo, porque deu uma queda e o marido da filha foi buscá-la, deixando o sítio desocupado. Mas deixou tudo em ordem e, enquanto lá esteve, nunca viu nem ouviu nada fora de vulgar, nem quaisquer desconhecidos que tivessem passado por lá. O local fica afastado das estradas. Mas tem havido histórias de viajantes que dormem lá às vezes, especialmente durante a feira. Em Longner, o Eudo prometeu perguntar à sua gente se alguma vez reparou em coisas que lá tivessem acontecido sem autorização, mas ainda não tive notícias dele sobre o assunto.

- Se houvesse alguns rumores a esse respeito - disse Cadfael sensatamente -, o Sulien tê-los-ia trazido com ele, juntamente com a sua história.

- Então tenho que procurar mais longe. - Ele tivera agentes a fazer precisamente isso desde o início, embora a sua atenção tivesse sido, em certa medida, distraída pela súbita e alarmante complicação ocorrida nos assuntos do rei.

- Nós podemos, pelo menos, estabelecer um limite temporal - disse Cadfael pensativamente. - Enquanto a viúva lá vivia, é pouco provável que houvesse alguém a cometer crimes nesse local. Não era possível usá-lo como alojamento barato para pernoitar, e fica bastante distante de qualquer estrada principal, por isso é pouco provável que alguém passe por lá por acaso, e um casal à procura de um lugar sossegado para rolar na erva dificilmente escolheria o único local habitado numa grande quantidade de terrenos. Quando a rendeira abandonou o lugar, este passou a ser suficientemente solitário para qualquer propósito furtivo, e antes de os cónegos a terem instalado lá... em que dia exactamente é que a Generys se foi embora deixando a porta da cabana aberta e cinzas na lareira?

- O dia exacto, entre três - disse Hugh, parando à portinhola aberta do portão -, ninguém sabe. Um vaqueiro de Longner passou ao longo da margem do rio no dia vinte sete de Junho e viu-a no jardim. No último dia de Junho, uma vizinha do lado norte do espinhaço - os vizinhos mais próximos que eles tinham, e que viviam a uma distância de cerca de uma milha - passou por lá a caminho da barcaça. Esse não é um caminho muito directo, mas suponho que ela tinha faro para mexericos e andava atrás das últimas notícias sobre um saboroso escândalo. Encontrou a porta aberta e a lareira fria. Depois disso, ninguém voltou a ver a mulher do Ruald por estas bandas.

- E a escritura que doou o terreno a Haughmond foi redigida e assinada em Outubro. Em que dia? Tu foste uma das testemunhas.

- Dia sete - disse Hugh. - E a viúva do velho ferreiro mudou-se para lá para tomar conta do lugar três dias depois.

Foi preciso fazer reparações antes de a cabana estar habitável, nessa altura tinha havido alguns roubos. Uma ou duas panelas e um cobertor da cama, e os ladrões tinham partido a fechadura para lá entrarem. Oh, sim, tinha havido visitas a entrar e sair de lá mas, até então, os danos não tinham sido muitos. Mais tarde é que limparam a cabana de tudo o que valia a pena levar.

- Por conseguinte, entre trinta de Junho e dez de Outubro - calculou Cadfael, reflectindo -, poderia muito bem ter sido cometido um assassínio lá, a morta enterrada, e ninguém saberia de nada. E quando é que a velha foi viver com a filha na cidade?

- Foi o Inverno que a levou a ir-se embora - disse Hugh. - Por volta do Natal, com a geada, ela deu uma queda. Teve a sorte de a filha estar casada com um bom sujeito e, quando o tempo rigoroso começou, ele manteve-se bem atento a como ela ia passando e, quando ficou de cama, sem se poder valer a si própria, ele levou-a para a cidade para viver com eles. A partir dessa altura, a quinta foi deixada desocupada.

- Por conseguinte, também é verdade que desde o início deste ano que podiam ter sido cometidos crimes mortais lá, sem quaisquer testemunhas. E, no entanto - disse Cadfael -, eu penso, eu realmente penso que ela estava debaixo da terra há um ano ou mais, e que tinha sido colocada lá quando o solo estava em condições de ser trabalhado rápida e facilmente, não em época de geadas. Na Primavera deste ano? Não, é muito pouco tempo. Olha mais para trás, Hugh. Penso que este acto foi cometido algures entre o final de Junho e o dia dez de Outubro do ano passado. Tempo suficiente para o solo ter assentado e ser coberto por raízes espessas ao longo das estações. Se houve vagabundos de passagem a utilizar a cabana, quem é que ia procurar debaixo do promontório no meio das giestas? Tenho estado a pensar que quem quer que a tenha colocado ali previu que um dia o terreno pudesse ser cavado para ser amanhado e pô-la num local onde o seu sono não seria perturbado. Se a volta tivesse sido dada uns passos ao lado, nunca a teríamos encontrado.

- Sinto-me tentado - admitiu Hugh com um sorriso irónico - a desejar que nunca o tivéssemos feito. Mas sim, vocês encontraram-na. Ela viveu e está morta, e, quem quer que ela seja, não lhe podemos fugir. E não sei bem por que motivo é tão importante identificá-la e exigir uma explicação a quem a colocou lá no campo, mas, até isso ser feito, eu e tu não teremos descanso.

Era um facto bem conhecido que todos os mexericos da região em volta, em contraste com os que fervilhavam alegremente no interior da própria cidade, chegavam primeiro ao hospital de São Giles, a uma meia milha de distância ao longo de Foregate, na orla leste do subúrbio. Quem frequentava habitualmente o abrigo de caridade era a população das estradas, sem raízes: pedintes, trabalhadores errantes à procura de trabalho, meliantes, pequenos ladrões e burlões decididos, pelo contrário, a evitar o trabalho, aleijados e doentes dependentes da caridade, leprosos a necessitar de tratamento. A única colheita que eles obtinham das suas viagens era notícias, e eles utilizavam-nas como um meio de despertar interesse. O Irmão Oswin, encarregado do hospício sob a direcção nominal de um leigo nomeado que raramente saía da sua própria casa em Foregate para visitar a instituição, habituara-se ao movimento de pessoas a entrar e sair, e conseguia distinguir entre os pobres genuínos e infelizes, e os pequenos e patéticos vigaristas. O ocasional aldrabão saudável que fingia uma incapacidade física era raro, mas Oswin estava a desenvolver a capacidade de identificar essa fonte de problemas. Durante algum tempo antes de se dedicar ao seu trabalho actual, ele tinha sido ajudante de Cadfael no herbário e aprendera com ele mais técnicas do que a mera mistura de loções e pomadas.

Foi três dias depois da revelação de Sulien que Cadfael juntou os medicamentos que o Irmão Oswin tinha mandado pedir e se pôs a caminho com uma sacola cheia ao longo de Foregate para reabastecer o armário de medicamentos de Saint Giles, uma tarefa regular que levava a cabo de duas em duas ou de três em três semanas, de acordo com as necessidades. Com o Outono agora bem avançado, os homens das estradas estariam já a pensar no Inverno e a reflectir sobre onde é que poderiam encontrar apoio e refúgio durante os piores dias. O número de infelizes ainda não tinha aumentado, mas todos aqueles que andavam de um lado para o outro estariam a fazer planos de sobrevivência. Cadfael seguiu sem pressa ao longo da estrada, trocando cumprimentos em portas de casas abertas e retirando algum prazer abstracto da contemplação de crianças a brincar ao sol intermitente, acompanhadas pelos seus seguidores constantes, os cães de Foregate. O seu estado de espírito era contemplativo, a condizer com o ar outonal e as folhas mortas. Ele tinha afastado momentaneamente todos os pensamentos do problema do Hugh, e voltado, com um zelo e uma devoção levemente culpados, para o horarium do dia monástico e para os seus deveres nele. As pequenas e atormentadoras dúvidas que habitavam o fundo da sua mente estavam adormecidas, ainda que o sono pudesse ser ténue.

Chegou ao local em que a estrada bifurcava e o telhado baixo e comprido do hospital se erguia ao lado da estrada, para lá de uma suave colina coberta de erva e de uma vedação de canas, com a torre atarracada da sua igrejinha a espreitar por cima da paisagem. O Irmão Oswin saiu para o pátio ao seu encontro, grande, alegre e exuberante como sempre, com os caracóis hirsutos da sua tonsura eriçados pelos ramos baixos das árvores do pomar, e trazendo no braço um cesto de pequenas pêras tardias, a espécie que duraria até ao Natal. Desde que começara a ajudar Cadfael no herbário, ele tinha aprendido a controlar o seu corpo vigoroso e mente activa, e já não quebrava as coisas em que mexia nem tropeçava nos seus próprios pés, na pressa e ânsia de fazer bem feito. De facto, desde que viera para o hospital, ele excedera todas as expectativas de Cadfael. As suas mãos grandes e braços fortes eram mais adequados para levantar os doentes e os enfermos e para controlar os indivíduos agressivos, do que para fazer pequenos comprimidos e pílulas, mas era bastante competente a ministrar os medicamentos que Cadfael lhe trazia, e demonstrara ser um enfermeiro sensato e competente, nunca perdendo a paciência, nem sequer com os doentes mais difíceis e ingratos.

Eles encheram juntos as prateleiras do armário dos medicamentos, fecharam os seus segredos à chave e atravessaram o salão. Com Novembro à porta, e alguns doentes demasiado enfermos para se movimentarem à vontade, havia uma lareira acesa. Alguns desses doentes nunca deixariam este lugar antes de serem levados para o cemitério, para serem sepultados. Os saudáveis estavam no pomar, a respigar o que restara das colheitas.

- Temos um doente novo - disse Oswin. - Seria bom que o visses e te certificasses de que estou a usar o tratamento certo. É um homem mau, devo dizer, com uma linguagem obscena, e chegou tão cheio de piolhos que tive que o pôr num canto do celeiro, longe dos outros. Mesmo agora que se lavou e vestiu roupa limpa, acho que é melhor mantê-lo separado. As suas feridas podem infectar os outros. A sua maldade certamente que poderia ser prejudicial, pois tem um ressentimento contra todo o mundo.

- Talvez todo o mundo lhe tenha feito mal suficiente para o merecer - comentou Cadfael com ironia -, mas é uma pena vingar-se em alguns que estão ainda pior que ele. Haverá sempre pessoas com ódio, entre nós. Onde é que foste buscar este?

- Chegou a coxear há quatro dias. De acordo com a história que contou, tem andado a dormir nas aldeias da floresta, mendigando comida quando podia e provavelmente roubando-a quando a caridade era pouca. Diz que arranjou alguns trabalhos para fazer aqui e ali durante a feira, mas desconfio que andou a roubar carteiras por sua conta pois, com o seu aspecto, nenhum comerciante respeitável lhe daria trabalho. Anda ver!

O celeiro do hospício era um lugar espaçoso e até mesmo confortável, com a fragrância reconfortante do feno do Verão e o cheiro das maçãs armazenadas. O homem sujo, indubitavelmente com o corpo menos sujo do que quando chegara, tinha a sua cama desdobrável montada no canto menos sujeito a correntes de ar, e estava acocorado em cima do colchão de palha como uma galinha a chocar, com a cabeça grisalha desgrenhada enfiada nos ombros, outrora enormes. Pela expressão desagradável com que recebeu os visitantes, não tinha havido grande alteração no seu mau feitio. O seu rosto chupado era uma máscara de desconfiança e despeito, e do meio das marcas das feridas meio cicatrizadas, os olhos pequenos, malévolos e vivos ergueram-se, brilhantes, para eles. A bata que lhe tinham vestido era demasiado grande para um corpo cada vez mais pequeno com a idade, e tinha sido escolhida deliberadamente, pensou Cadfael, para ficar larga e evitar a fricção nas feridas que continuavam pela garganta enrugada e pelos ombros abaixo. Para suavizar o toque da lã, tinha sido colocado um pedaço de linho entre o tecido e o seu corpo.

- A infecção melhorou um pouco - disse Oswin em voz baixa ao ouvido de Cadfael.

- Não foi - disse uma voz inesperadamente cheia e robusta para um invólucro tão maltrapilho -, por ver dois de vocês em vez de um. - Ele deslocou-se um pouco mais para a beira da cama, com um ar de curiosidade. - Eu conheço-o - disse ele, sorrindo, como se isso lhe desse, não prazer, talvez, mas uma vantagem sobre um possível adversário.

- Agora que falas nisso - concordou Cadfael, olhando com igual atenção para o rosto erguido -, acho que também me recordo de te ter visto em qualquer lado. Mas, se assim foi, foi numa situação melhor. Vira o teu rosto aqui para a luz, assim! - O que ele estava a examinar era as feridas, mas observou necessariamente as linhas do rosto e os olhos do homem, amarelados e brilhantes nos seus ninhos de rugas, observou-o com firmeza durante todo o tempo em que estudou a erupção cutânea. À volta das orlas da infecção viam-se as crostas deformadas de feridas que tinham sarado há pouco tempo. - Porque é que te queixas de nós, quando aqui estás quente e tens comida, e o Irmão Oswin te tratou bem? Bem sabes que estás a ficar melhor. Se tiveres paciência durante mais duas ou três semanas, podes ver-te livre deste problema.

- E depois vocês põem-me fora daqui - resmungou a voz vigorosa com azedume. - Eu sei como é! É a minha sorte neste mundo. Tratam-me e depois expulsam-me para ulcerar e apodrecer outra vez. É sempre a mesma coisa, onde quer que vá. Quando encontro um pedaço de tecto para me abrigar durante a noite, aparece um patife que me expulsa para ficar lá ele.

- Eles não podem fazer isso aqui - fez notar placidamente Cadfael, voltando a colocar o linho protector no seu lugar à volta do pescoço descarnado. - O Irmão Oswin assegurar-se-á disso. Deixa-o curar-te e não penses onde é que vais dormir ou o que vais comer quando estiveres bom. Depois disso, terás muito tempo para pensar nessas questões.

- Uma bonita conversa, mas o fim é sempre o mesmo. Eu nunca tenho sorte. Está tudo muito bem para si - balbuciou ele, lançando um ar zangado a Cadfael -, a distribuir migalhas ao vosso portão, quando têm grande fartura, um bom tecto sobre as vossas cabeças e boas camas secas, e depois dizem a Deus que são muito piedosos. Pouco se importam onde é que nós, pobres diabos, pousamos a cabeça nessa mesma noite.

- Então foi aí que eu te vi - disse Cadfael, esclarecido. - Na véspera da feira.

- E foi também aí que o vi. E o que é que eu ganhei com isso? Pão, sopa e uns tostões para gastar.

- E gastaste em cerveja - adivinhou Cadfael num tom suave, sorrindo. - E onde é que pousaste a cabeça nessa noite? E em todas as noites da feira? Tivemos gente pobre como tu a dormir bastante confortavelmente num dos nossos celeiros.

- Eu prefiro não dormir no interior das vossas muralhas. Além disso - disse ele num tom de ressentimento, - eu conhecia um lugar, não muito distante, uma cabana, não vivia ninguém lá. Estive lá o ano passado, até aquele maldito vendedor ambulante ruivo aparecer lá com a mulher e me expulsar. E onde é que eu acabei por ficar? Debaixo de uma sebe do terreno ao lado. Pensa que ele me deixou dormir a um canto, ao pé do forno? Não, ele queria ter a cabana toda para si próprio, para as suas bebedeiras com a mulher. E depois eles brigavam como o cão e gato a maior parte das noites, pois eu ouvia-os. - A sua voz baixou para resmungos taciturnos, indiferente ao súbito silêncio atento de Cadfael. - Mas este ano fiquei lá. Valeu bem a pena! Mas agora ela de pouco há-de servir, a cair aos pedaços como está. Está tudo podre.

- Essa cabana, que também tinha um forno, onde fica? - disse Cadfael lentamente.

- Do outro lado do rio, perto de Longner. Agora não está ninguém a trabalhar lá. Está tudo em ruínas!

- E este ano dormiste lá durante a feira?

- Agora chove lá dentro - disse o velho num tom irónico. - No ano passado estava tudo em bom estado, eu pensei que ficaria lá bem. Mas a minha sorte é essa, sempre a ser escorraçado como um cão vadio, para acabar a tremer de frio debaixo de uma sebe.

- Diz-me uma coisa, acerca do ano passado - disse Cadfael. - Esse homem que te expulsou foi um vendedor ambulante que tinha vindo vender na feira? Ele ficou nessa cabana até ao fim da feira?

- Ele e a mulher - O velho apercebera-se de que as suas informações eram de grande interesse e começara a gostar da sensação, para além da esperança de tirar proveito dela. - Uma criatura selvagem, de cabelo preto, má como o marido. Quando tentei regressar sorrateiramente, ela atirou-me água fria para cima, para correr comigo.

- Viste-os partir? Os dois juntos?

- Não, eles ainda lá ficaram quando eu me pus a caminho, como ajudante de um sujeito que ia para Beiston e que tinha comprado mais do que conseguia levar sozinho.

- E este ano? Viste o mesmo sujeito na feira deste ano?

- Oh, sim, ele estava lá - disse o homem com indiferença. - Eu não tive nada a ver com ele, mas vi-o lá.

- E a mulher ainda estava com ele?

- Não, este ano não a vi. Vi-o sempre sozinho ou com os rapazes, na taberna, e sabe-se lá onde é que ele dormiu! A cabana do oleiro não lhe serviria de nada agora. Ouvi dizer que ela era acrobata ou cantora, errante como ele. Nunca cheguei a saber o nome dela.

A ligeira ênfase no dela não tinha escapado aos ouvidos de Cadfael. Ele perguntou, com a sensação de quem tira a tampa de um frasco que poderá ou não soltar revelações perigosas.

- Mas o nome dele, tu sabes?

- Oh, toda a gente das bancas e das cervejarias sabe o nome dele. Chama-se Britric, e é de Ruiton. Compra nos mercados da cidade e vende a mercadoria nesta parte do condado e em Gales. Anda sempre de um lado para o outro, a maior parte do tempo, mas nunca vai demasiado longe. Segundo ouvi dizer, o seu negócio está a correr bem.

- Bem - disse Cadfael com um longo e lento suspiro -, não lhe desejes nada pior, que isso te fará bem à alma. Tu tens os teus próprios problemas, duvido que os de Britric sejam mais fáceis e mais leves. Come, descansa e faz o que o Irmão Oswin te mandar, e o teu fardo poderá em breve tornar-se mais leve. Vamos desejar o mesmo a todos os homens.

O velho, agachado na cama, ficou a vê-los, com um ar observador e curioso, retirar-se até à porta. A mão de Cadfael estava sobre a fechadura quando a voz atrás dele, estranhamente ressonante e cheia, disse:

- Tenho que admitir que a mulher dele, mesmo sendo uma peste, era muito bonita.

 

Agora já o tinham, um nome genuíno, um amuleto para instruir a memória. Os nomes são uma magia poderosa. Dois dias depois de Cadfael ter feito a visita a Saint Giles, relatada fielmente a Hugh antes do final do dia, eles já tinham dados suficientes sobre o vendedor ambulante para preencher uma crónica. Bastava dizer o nome de Britric ao ouvido de quase toda a gente no mercado e na feira de cavalos, que as bocas se abriam e as pessoas tagarelavam livremente. Parecia que a única coisa que não sabiam a respeito dele era que tinha passado as noites da feira do ano anterior na cabana do Campo do Oleiro, na altura abandonada há menos de um mês e ainda num estado muito confortável. Nem sequer a casa vizinha de Longner soubera isso. O inquilino clandestino saía com a sua mercadoria durante o dia, e a mulher, se tinha que ganhar a vida a entreter as multidões, faria o mesmo, e eles seriam suficientemente discretos para deixar a porta fechada e tudo em ordem. Se, como o velho dizia, eles tinham passado muito do seu tempo a discutir, tinham mantido as suas brigas dentro de casa. E, depois de Generys se ter ido embora, ninguém de Longner tinha subido o campo até à quinta abandonada. Uma espécie de frieza e desolação tinha caído sobre o local para aqueles que o tinham conhecido cheio de vida, e eles evitavam-no, virando o rosto. Só o velho desgraçado tinha tentado a sua sorte lá, na esperança de arranjar um abrigo confortável, e fora expulso por alguém mais forte que lá chegara antes.

A viúva do ferreiro, uma mulher idosa baixa e magra com olhos brilhantes como um tordo, apurou o ouvido quando ouviu o nome de Britric.

- Oh, ele, sim, há alguns anos, quando eu vivia com o meu marido na oficina em Sutton, ele costumava aparecer por lá com a sua trouxa. Ele começou com muito pouco, mas aparecia regularmente nas aldeias e, sabe, uma pessoa não pode ir todas as semanas à cidade. Eu comprava-lhe o sal. O negócio estava a ir bem e, quando estava sóbrio, ele trabalhava muito, mas quando estava embriagado, era violento. Recordo-me de o ver na feira o ano passado, mas não falei com ele. Eu nunca soube que ele, durante a feira, dormiu na quinta do oleiro. Bem, nessa altura, eu nunca vira a cabana. Só dois meses depois é que o prior me pôs lá para tomar conta do lugar. O meu marido morreu no final dessa Primavera, e eu tinha pedido a Haughmond que me arranjasse um trabalho para fazer. O ferreiro tinha trabalhado bem para eles, eu sabia que o prior não me viraria as costas.

- E a mulher? - perguntou Hugh. - Uma acrobata ambulante, segundo me dizem, morena, muito bonita. Viu-o com ela?

- Ele tinha, de facto, uma rapariga com ele - concordou a viúva após um momento de reflexão -, porque um dia eu fui às compras à banca do peixe perto da taberna do Wat, ao canto da feira dos cavalos, e ela foi lá buscá-lo antes, disse ela, de ele ter bebido todos os seus ganhos do dia e metade dos dela. Disso eu lembro-me. Eles falaram em voz muito alta, com os copos. ele estava a ficar birrento, mas ela era uma adversária à sua altura. Insultaram-se um ao outro mas depois foram-se embora muito abraçados, com ela a segurá-lo para ele não tropeçar, e ainda a ralhar-lhe. Bonita? - disse a viúva, reflectindo e fungando hesitantemente. - Alguns poderão achar que sim. Uma mulher ousada, enérgica, de olhos pretos, magra como um pau.

- Disseram-me que o Britric também esteve na feira deste ano - disse Hugh. - Viu-o?

- Sim, ele esteve lá. A viver muito bem, pelo aspecto. Dizem que se pode viver bem da venda ambulante, se uma pessoa estiver disposta a trabalhar muito. Mais um ano ou dois, e ele vai alugar uma banca como os comerciantes, e pagar imposto à abadia.

- E a mulher? Ela ainda estava com ele?

- Não que eu a tenha visto. - Ela não era tola e, nesta altura, já não havia quase ninguém num raio de uma milha de Shrewsbury que não soubesse que havia uma mulher morta para justificar e, por algum motivo, a resposta óbvia não era satisfatória, uma vez que a investigação prosseguia e tinha até adquirido maior agudeza.

- Este ano eu só fui uma vez a Foregate, durante os três dias - disse ela. - Há outros que estiveram lá o dia todo, todos os dias, eles saberão. Mas eu não a vi. Só Deus sabe o que ele lhe fez - disse a viúva, fazendo o sinal da cruz com uma lentidão matronal, afastando todos os augúrios maléficos da sua própria virtude invulnerável -, mas eu duvido que encontre alguém que lhe tenha posto os olhos em cima desde a Feira de São Pedro do ano passado.

- Oh, sim, esse sujeito! - disse o Mestre William Rede, o mais velho dos administradores leigos da abadia, que recebia as suas rendas e os impostos dos comerciantes e artesãos que traziam a mercadoria à feira anual. - Sim, eu sei a que homem se está a referir. Um bocado trapaceiro, mas já vi pior. Ele devia pagar um pequeno imposto por vender aqui, pois traz uma carga apropriada para Hércules. Mas o Irmão sabe como é. Um homem que monta uma banca durante três dias, isso é simples, sabemos onde o podemos encontrar. Ele paga os seus impostos e não se desperdiça tempo. Mas um sujeito que anda com a sua mercadoria às costas, vê-nos ao longe e vai para outro lado, e pode perder-se mais tempo a andar atrás dele do que o seu pequeno imposto merece. A brincar à cabra cega por entre cem bancas, e todas cheias de gente a comprar e vender, isso não é para mim. E, assim, ele safa-se. Não se perde grande coisa, e lá virá o tempo, o negócio dele está a crescer. É a única coisa que sei sobre ele.

- Estava uma mulher com ele, este ano? - perguntou Hugh. - Morena, bonita, uma acrobata?

- Que eu visse, não. No ano passado reparei que havia uma mulher que comia e bebia com ele, e podia bem ser essa a que se refere. Houve ocasiões em que tive a certeza de que, quando eu aparecia, ela lhe fazia sinal para que se fosse embora. Mas este ano não. Este ano ele trouxe mais mercadoria, e penso que irá descobrir que ele dormiu na taberna do Wat, pois precisava de um lugar para a guardar. Poderá saber mais a respeito dele lá.

Walter Renold pousou os braços cruzados, nus e musculosos, no enorme barril que tinha rolado sem esforço para um lugar a um canto da sala e observou Hugh com olhos plácidos e profissionais.

- Britric, é? Sim, ele ficou aqui comigo durante a feira. Este ano veio muito carregado, deixei-o pôr as coisas no sótão. Porque não? Eu sei que ele foge aos impostos da abadia, mas a perda de um tostão não os vai levar à ruína. O senhor abade não é muito severo para com os pequenos. Não que o Britric seja pequeno em qualquer outro aspecto. É um homem grande e forte, de cabelo ruivo, um pouco brigão às vezes, quando está embriagado, mas, no seu conjunto, não é um mau rapaz.

- O ano passado - disse Hugh -, ele tinha uma mulher com ele, pelo menos foi o que eu ouvi. Tenho motivos para supor que, nessa ocasião, ele não se hospedou aqui, mas vinha cá beber, e tu deves ter visto os dois. Lembras-te dela?

Certamente que Wat já se estava a lembrar dela, com algum prazer e muita alegria.

- Oh, ela! Depois de a vermos, é difícil esquecê-la. Conseguia contorcer-se como uma tira de salgueiro, dançar como um borrego de Março e tocar uma pequena flauta. Fácil de transportar, melhor do que uma rabeca, a não ser que se seja um mestre. E ela era uma mulher prática, mantinha um pulso firme sobre o dinheiro que ambos ganhavam. Ela falava em casamento, mas duvido que conseguisse fazê-lo passar a porta da igreja. Talvez ela falasse demasiado nisso, pois este ano ele veio sozinho. Não faço ideia de onde a deixou, mas, onde quer que esteja, ela há-de sobreviver.

Aquelas palavras tiveram um som amargo aos ouvidos de Hugh, tendo em conta a possibilidade que ele tinha em mente. Ao que parecia, Wat não tinha feito a ligação que já influenciara o pensamento da viúva. Mas antes de ele lhe conseguir fazer mais perguntas, Wat surpreendeu-o acrescentando simplesmente:

- Gunnild, é o nome que ele lhe chamava. Eu nunca soube de onde ela era... duvido até que ele soubesse... mas é uma bela mulher.

Essas palavras também tiveram uma estranha ressonância, quando Hugh se lembrou dos ossos nus. Na sua imaginação, eles assumiam cada vez mais o aspecto vivo dessa rapariga errante selvagem, sinuosa e trabalhadora, sombriamente luminosa no brilho de admiração que conseguia despertar num taberneiro de meia-idade, mesmo após um ano ou mais de ausência.

- Não voltaste a vê-la, aqui ou em qualquer outro lugar?

- Quantas vezes é que eu vou a outros lugares? - respondeu Wat num tom bem-humorado. - Eu fiz as minhas deambulações cedo, sinto-me feliz onde estou. Não, eu nunca mais voltei a ver a rapariga. Nem, pensando bem, o ouvi sequer falar no nome dela este ano. Pelo que ele parece não lembrar-se da paixão do ano passado - disse Wat num tom tolerante -, é como se ela estivesse morta.

- Então, aqui temos - disse Hugh, resumindo rapidamente as novidades para Cadfael na confortável privacidade da oficina do herbário. - Britric é o homem que nós sabemos que se instalou na quinta do Ruald. Pode ter havido outros, mas nenhum de que tenhamos ouvido falar. Além disso, ele tinha consigo uma mulher, e a relação entre eles era, de acordo com todos os relatos, tempestuosa, ela a insistir no casamento, e ele nada disposto a ser persuadido. Isso foi há mais de um ano. E, este ano, ele não só veio sozinho à feira, como ninguém a viu lá, ela que ganha a vida em feiras, mercados, casamentos e festas desse tipo. Isso não prova nada, mas exige uma justificação.

- E ela tinha um nome - disse Cadfael, pensativo. - Gunnild. Mas não tinha domicílio. Ela não veio de lado nenhum e desapareceu não se sabe para onde. Bem, temos que os procurar diligentemente, mas ele deve ser mais fácil de encontrar. Suponho que já deves ter alertado todos os teus homens para ver se o vêem.

- Em todo o condado e do outro lado da fronteira - disse Hugh num tom inexpressivo. - As suas andanças, segundo dizem, não vão mais longe que isso, com excepção de viagens às cidades para comprar coisas como sal e especiarias.

- E aqui estamos nós em Novembro, e a época dos mercados e feiras já chegou ao fim, mas o tempo ainda está razoavelmente bom e seco. Ele ainda deve andar nas suas viagens pelas aldeias, mas eu suponho - disse Cadfael, reflectindo -, que não vai muito longe. Se ele ainda tiver uma base em Ruiton, quando começarem as geadas e a neve, dirigir-se-á para lá e vai querer estar razoavelmente perto quando o pior chegar.

- Por volta desta altura do ano - disse Hugh -, ele lembra-se que tem uma mãe em Ruiton e volta para lá para passar o Inverno.

- E tu tens lá alguém à espera que ele chegue.

- Com sorte - disse Hugh -, podemos encontrá-lo antes disso. Eu conheço Ruiton, fica a cerca de oito milhas de Shrewsbury. Ele deve planear as suas viagens de modo a passar por todas as aldeias galesas, virando depois para leste e passando por Knockin, em direcção a casa. Nessa zona há muitos povoados pequenos próximos uns dos outros, e ele pode continuar a fazer as suas vendas até o tempo mudar e continuar perto de casa. Algures por ali iremos encontrá-lo.

Algures por ali encontraram-no, de facto, três dias depois. Um dos sargentos de Hugh tinha localizado o vendedor ambulante a trabalhar nas aldeias no lado galês da fronteira e esperou discretamente por ele no lado inglês até ele a ter atravessado e se ter dirigido sem pressa a Meresbrook, a caminho de Knockin e da sua casa. Hugh mantinha uma vigilância atenta sobre os seus vizinhos turbulentos de Powys e não tolerava qualquer violação da lei inglesa no seu lado da fronteira, por isso era escrupuloso em não lhes dar qualquer motivo para se queixarem de ele ter violado a lei galesa no lado deles, a não ser que tivessem violado primeiro o seu acordo tácito. As suas relações com Owain Gwynedd, a noroeste, eram amistosas e bem compreendidas em ambos os lados, mas os galeses de Powys eram indisciplinados e instáveis, e não era bom provocá-los, mas também não podiam ficar impunes se lhe causassem problemas sem qualquer provocação. Por isso, o sargento esperou até a sua insuspeita presa atravessar o dique antigo que marcava a fronteira, um tanto desfeito e abandonado nesta zona, mas ainda reconhecível. O tempo ainda estava razoavelmente bom, e não era desagradável andar na estrada, mas parecia que a trouxa de Britric estava praticamente vazia, pelo que ele ia para casa antes do início das geadas, aparentemente satisfeito com os seus lucros. Se ele tivesse mercadoria em casa, em Ruiton, ainda poderia vendê-la aos seus vizinhos e nos povoados próximos.

Por isso, ele entrou no condado em direcção a Meresbrook, assobiando serenamente e balouçando um longo bastão no meio das ervas à beira da estrada. E perto da aldeia encontrou uma patrulha de dois homens da guarnição de Shrewsbury, equipados com armas ligeiras, que se aproximaram dele, um de cada lado, o agarraram pelos braços e perguntaram calmamente se ele se chamava Britric. Ele era um homem grande, vigoroso, vinte centímetros mais alto do que qualquer um dos seus captores, e poderia fugir deles se quisesse, mas reconheceu-os pelo que eles eram e pelo que representavam e absteve-se de tentar desnecessariamente a providência. Comportou-se com uma discrição cautelosa, admitiu que esse era o seu nome e perguntou, com uma inocência desarmante, o que queriam dele.

Eles não estavam preparados para lhe dizer nada para além de que o xerife exigia a sua presença em Shrewsbury, e a sua reticência, juntamente com a sólida eficiência com que o agarraram, podia bem tê-lo levado a repensar a sua colaboração e tentar fugir mas, nessa altura, já era demasiado tarde, pois mais dois homens da companhia dos primeiros surgiram vindos do nada e juntaram-se a eles, caminhando sem pressa mas com dois arcos a tiracolo convenientemente à mão, e com o ar de homens que sabiam utilizá-los. A ideia de uma flecha espetada nas costas não agradou a Britric. Resignou-se a obedecer à necessidade. Era uma pena, com Gales a apenas um quarto de milha para atrás. Mas, se as coisas corressem mal, talvez mais tarde houvesse uma melhor oportunidade de fuga, se permanecesse dócil agora.

Levaram-no para Knockin e, para apressar as coisas, encontraram um cavalo extra para ele; chegaram a Shrewsbury antes do anoitecer e conduziram-no a uma cela no castelo. Nessa altura, ele mostrava sinais de intensa apreensão, mas não de um verdadeiro medo. Por trás de um rosto fechado e inescrutável, ele talvez estivesse a pesar e a medir as irregularidades que tinha cometido, perguntando a si próprio quais teriam vindo a lume mas, se assim era, os resultados pareciam deixá-lo perplexo em vez de esclarecido ou alarmado. Todos os seus esforços para extrair informações dos seus captores tinham fracassado. A única coisa que podia fazer agora era esperar, pois parecia que o xerife não estava disponível de imediato.

O xerife, afinal, estava a jantar nos aposentos do abade, juntamente com o Prior Robert e o senhor da casa senhorial de Upton, que acabara de oferecer à abadia os direitos de pesca do Rio Tern, que delimitava as suas terras. A escritura tinha sido redigida e selada antes das Vésperas, com Hugh como uma das testemunhas. Upton era uma propriedade arrendada à coroa, e para este tipo de transacções era necessária a autorização do representante do rei. O mensageiro do castelo foi suficientemente sensato para esperar pacientemente na antecâmara até os convivas se terem levantado da mesa. As boas notícias podem esperar pelo menos tanto tempo como as más, e o suspeito estava em segurança no interior de paredes de pedra.

- Esse é o homem de quem falaste? - perguntou Radulfus quando ouviu o que o homem tinha a dizer. - O que se sabe que ocupou a quinta do Irmão Ruald o ano passado?

- Exactamente - disse Hugh. - E o único que se sabe ter-se alojado lá, gratuitamente. E, se me permite, Pai, tenho que ir ver o que consigo arrancar dele, antes que tenha tempo de recuperar a respiração e as faculdades mentais.

- Eu estou tão preocupado com a justiça como tu - declarou o abade. - Não se trata tanto de eu querer a vida deste ou de qualquer homem, mas sim de pretender uma explicação para a da mulher. Claro que podes ir. Espero que, desta vez, estejamos mais próximos da verdade. Sem ela não pode haver absolvição.

- Posso levar o Irmão Cadfael, Pai? Foi ele que me falou primeiro neste homem, ele sabe melhor o que o velho de Saint Giles disse sobre ele. Ele pode aperceber-se de pormenores que me escapariam.

O Prior Robert torceu o seu patrício nariz a esta sugestão e cerrou os seus longos lábios numa expressão de desagrado. Ele achava que era permitido a Cadfael, com demasiada frequência, um grau de liberdade no exterior do claustro que ofendia a interpretação rígida que o Prior fazia da Regra. Mas o Abade Radulfus acenou a cabeça em sinal de pensativa concordância.

- Certamente que uma testemunha perspicaz não fará mal nenhum. Sim, leva-o contigo. Eu sei que ele tem uma excelente memória e um faro apurado para discrepâncias. Ele está envolvido nesta questão desde o início e tem o direito, julgo eu, de o acompanhar até ao fim.

E foi assim que Cadfael, que acabara de jantar no refeitório, em vez de seguir obedientemente para a casa do cabido, ou de se lembrar, menos obedientemente, que tinha algo urgente a fazer na oficina, a fim de evitar a sensaborona e prosaica leitura feita pelo Irmão Francis, a quem calhava a vez, foi arrancado à sua rotina e atravessou a cidade até ao castelo com Hugh, para ali confrontar o preso.

Ele tinha a idade que o velho dissera, e era alto e forte, ruivo, capaz de expulsar intrusos mais vigorosos do que um vagabundo velho e magro e, a um olho imparcial, uma figura de homem suficientemente apresentável para cativar uma mulher fogosa e independente, tão conhecedora da vida como ele próprio. Pelo menos durante algum tempo. Se eles tinham estado juntos tempo suficiente para brigarem facilmente, ele poderia bem ter utilizado demasiado livremente e demasiadas vezes as mãos grandes, musculosas, acabando por descobrir que a tinha matado sem qualquer intenção de o fazer. E se alguma vez se incensasse com a intensa raiva que o seu cabelo flamejante sugeria, ele seria capaz de matar intencionalmente. Na cela que Hugh escolhera para lhe falar, ele estava sentado com os ombros encostados à parede, rigidamente erecto e vigilante, um rosto de pedra como a própria parede, com excepção dos olhos desconfiados que desafiavam as perguntas e os inquiridores com um olhar firme. Um homem, pensou Cadfael, que já por mais de uma vez tivera problemas e resolvera satisfatoriamente a situação. Nada de mortal, provavelmente, um veado caçado ilegalmente aqui e ali, uma galinha roubada, nada que não pudesse, plausivelmente, ser resolvido fora dos tribunais, nestes dias desorganizados em que, em muitos locais, os guardas florestais do rei tinham pouco tempo ou vontade de impor os rigores da lei florestal.

No que dizia respeito à situação actual, não era possível saber que receios, que especulações, lhe perpassavam a mente, quanto ele tinha adivinhado, ou que febris compilações de mentiras estava ele a reunir contra quaisquer acusações que lhe pudessem ser feitas. Ele esperou sem protestos, tão rigidamente tenso que até mesmo o seu cabelo parecia estar em pé e a tremer. Hugh fechou a porta da cela e observou-o demoradamente.

- Bem, Britric... é o teu nome, não é? Tu tens vindo à feira da abadia, não tens, nestes dois últimos anos?

- Há mais tempo - disse Britric. O tom da sua voz era baixo e cauteloso, e pouco disposto a utilizar mais palavras do que necessário. - Seis anos ao todo. - Um pequeno relance de soslaio de olhos apreensivos apreendeu a figura de Cadfael, com o seu hábito, imóvel ao canto da cela. Talvez ele se estivesse a lembrar dos impostos que evitara pagar e perguntasse a si próprio se o abade se cansara de fingir que não via os pequenos infractores.

- É com o ano passado que estamos preocupados. Não foi há tanto tempo que a tua memória te possa falhar. Na véspera de São Pedro ad Vincula e nos três dias seguintes, tu andaste a vender a tua mercadoria. Onde é que passaste as noites?

Agora ele estava desorientado, e isso tornou-o ainda mais cauteloso, mas respondeu sem qualquer hesitação:

- Eu sabia que havia uma cabana vazia. Ouvi falar dela no mercado, diziam que um oleiro tinha decidido ser monge e que a mulher dele se tinha ido embora e deixado a casa vazia.

Do outro lado do rio, ao pé de Longner. Achei que não fazia mal nenhum abrigar-me ali. Foi por isso que me trouxeram para aqui? Eu não roubei nada. Deixei-a tal como a encontrei. A única coisa que eu queria era estar debaixo de um tecto, e um lugar para me deitar confortavelmente.

- Sozinho? - perguntou Hugh.

Desta vez não houve qualquer hesitação. Teria ele já calculado que aquela mesma pergunta devia ter sido respondida por outros, antes de ter sido apanhado para responder por si próprio?

- Eu tinha uma mulher comigo. Chamava-se Gunnild. Ela percorria as feiras e os mercados, dando espectáculos para ganhar a vida. Conheci-a em Coventry, e estivemos juntos durante algum tempo.

- E quando a feira acabou? A feira do ano passado? Foram-se embora os dois e continuaram juntos?

Os olhos semicerrados de Britric moveram-se de um rosto para o outro e não encontraram uma pista útil. Ele respondeu lentamente.

- Não, cada um foi para seu lado. Eu ia para oeste, os meus melhores clientes estão nas aldeias da fronteira.

- E onde e quando te separaste dela?

- Deixei-a na cabana em que dormimos. No dia quatro de Agosto, cedo. Quando parti, ainda estava a amanhecer. Dali, ela ia para leste, não havia necessidade de atravessar o rio.

- Eu não encontro ninguém na cidade ou em Foregate - disse Hugh deliberadamente -, que tenha voltado a vê-la.

- Eles não a veriam - disse Britric. - Tal como eu disse, ela ia para leste.

- E nunca mais a voltaste a ver? Nunca tentaste, em nome dos velhos tempos, encontrá-la?

- Nunca tive ocasião. - Ele estava a começar a suar, o que quer que isso significasse. - Foi um encontro fortuito, nada mais do que isso. Ela seguiu o seu caminho, eu segui o meu.

- E vocês não se zangaram? Não houve qualquer agressão? Não houve gritos? Foram sempre amáveis e gentis um para o outro, Britric? Há quem faça relatos diferentes a vosso respeito - disse Hugh. - Houve outro sujeito, não houve, que tivera esperança de dormir confortavelmente na cabana? Um velho que tu expulsaste. Mas ele não foi muito longe. Ele ouviu-os aos dois quando brigavam à noite. Uma relação tempestuosa, foi o que ele achou.

E ela estava a pressionar-te para casares com ela, não estava? E o casamento não estava nos teus planos. O que é que aconteceu? Ela tornou-se demasiado cansativa? Ou demasiado violenta? Uma mão como a tua sobre a boca dela e à volta da sua garganta podia muito facilmente silenciá-la.

Britric tinha puxado a cabeça para trás contra a pedra como um animal numa baia, com a testa coberta de gotas de suor sob o cabelo ruivo. Por entre os dentes, ele disse, numa voz ofegante, quase estrangulada:

- Isto é uma loucura... loucura... estou-lhe a dizer, eu deixei-a a ressonar, viva e sensual como sempre. O que é isto? O que está a pensar de mim, meu senhor? O que é que eu sou acusado de fazer?

- Eu vou dizer-te, Britric, o que penso que fizeste. Não houve nenhuma Gunnild na feira deste ano, pois não? Nem ela foi vista em Shrewsbury desde que a deixaste no campo do Ruald. Eu penso que numa das noites, talvez a última, vocês se zangaram e brigaram e, em consequência disso, Gunnild morreu. E penso que a enterraste lá durante a noite, sob o promontório, para o arado da abadia a encontrar este Outono. Tal como aconteceu! Os ossos de uma mulher, Britric, o cabelo preto de uma mulher, uma enorme cabeleira preta ainda presa ao crânio.

Britric fez um pequeno som e soltou um enorme suspiro, como se tivesse sido atingido no peito por um punho de ferro. Quando conseguiu falar, num murmúrio estrangulado que eles perceberam mais pela forma dos lábios do que por qualquer som, ele disse repetidas vezes:

- Não... não... não! A Gunnild, não!

Hugh deixou-o em paz até ele recuperar a respiração e estar refeito, e ter tempo para pensar, acreditar e raciocinar sobre a situação em que se encontrava. Pois ele foi rápido a dominar-se e a acreditar, ainda que com esforço, que o xerife não estava a mentir, que esse fora o motivo da sua prisão, e que ele deveria pensar na sua própria defesa.

- Eu nunca lhe fiz mal - disse ele por fim, lenta e enfaticamente. - Deixei-a a dormir. Nunca mais a vi. Ela estava bem viva.

- Um corpo de mulher, Britric, enterrada há pelo menos um ano. Cabelo preto. Disseram-me que Gunnild era morena.

- Era sim. Ela é morena, onde quer que esteja. Tal como muitas mulheres ao longo destas terras fronteiriças. Os ossos que encontraram não podem ser da Gunnild. - Hugh deixara escapar demasiado facilmente que a única coisa que eles tinham praticamente era um esqueleto, que nunca seria identificado por um rosto ou forma. Agora Britric sabia que estava a salvo de uma imagem acusadora demasiado exacta. - Estou a dizer-lhe a verdade, meu senhor - disse ele, com um cuidado mais insinuante -, que ela estava viva quando saí sorrateiramente e a deixei na cabana. Eu não nego que ela se tenha tornado demasiado segura de mim. As mulheres querem ser donas de um homem, e isso torna-se irritante. Foi por isso que eu me levantei cedo, quando ela dormia profundamente, e parti sozinho em direcção ao oeste, para me ver livre dela sem gritos. Não, eu não lhe fiz mal. A pobre criatura que eles encontraram tem que ser outra mulher. Não é a Gunnild.

- Que outra mulher, Britric? Um local solitário, os rendeiros já tinham partido, porque é que alguém havia de lá ir, quanto mais morrer ali?

- Como é que eu hei-de saber, meu senhor? Eu só ouvi falar naquele lugar na véspera da feira, no ano passado. Não sei nada sobre as terras daquele lado do rio. A única coisa que eu queria era um sítio para dormir confortavelmente. - Agora ele já se tinha controlado, sabendo que, por mais preto que fosse o cabelo preso ao seu crânio, nunca seria atribuído um nome, com segurança, a um mero conjunto de ossos. Esse facto poderia não o salvar, mas dava-lhe uma frágil protecção contra a culpa e a morte, e ele agarrar-se-ia a ele e repetiria a sua negação tão frequente e incansavelmente quanto necessário. - Eu não fiz mal a Gunnild. Deixei-a viva e bem de saúde.

- O que sabias sobre ela? - perguntou subitamente Cadfael, numa tangente tão abrupta que, por um momento, Britric se desconcertou e perdeu a concentração na simples negação. - Se andaram juntos durante algum tempo, seguramente que ficaste a saber alguma coisa sobre a rapariga, de onde ela era, onde é que ela tinha família, o padrão habitual das suas viagens anuais. Tu dizes que ela está viva, que, pelo menos, estava viva quando a deixaste. Onde é que a podemos procurar, para o provar?

- Ela nunca me disse. - Ele estava hesitante e inseguro, era óbvio que sabia pouco a respeito dela, caso contrário tê-lo-ia dito imediatamente, como prova das suas boas intenções em relação à lei. Também não teve tempo para reunir um conjunto de mentiras que desviasse a atenção para uma região distante onde ela pudesse levar a sua vida errante. - Conheci-a em Coventry. Viemos de lá juntos, mas ela falava pouco. Duvido que ela alguma vez tivesse estado mais a sul do que isso, mas nunca me disse de onde era, nem falou na família.

- Disseste que ela ia para leste, depois de a deixares. Mas como podes saber o que ela fez? Ela não te tinha dito nem concordara em separar-se, senão não terias tido necessidade de sair cedo, para a evitar.

- Falei sem pensar - admitiu Britric, contorcendo-se. - Admito-o. Eu penso... penso que ela foi para leste quando descobriu que eu me tinha ido embora. Não valia a pena ela ir cantar ou fazer acrobacias em Gales, sozinha. Mas eu estou a dizer a verdade, não lhe fiz mal. Quando a deixei, ela estava viva.

E aquela foi a resposta simples e teimosa a todas as demais perguntas, essa e a súplica que fez entre negações obstinadas.

- Meu senhor, trate-me com justiça. Mande anunciar que ela é procurada, mande apregoar isso na cidade, peça aos viajantes que passem a palavra para onde forem, que ela deverá mandar-lhe notícias e mostrar que ainda está viva. Eu não lhe menti. Se ouvir dizer que eu sou acusado de a ter morto, ela irá aparecer. Nunca lhe fiz mal. Ela dir-lho-á.

- E portanto vamos afixar o nome dela, para ver se ela aparece - concordou Hugh enquanto se dirigiam ao portão do castelo depois de terem fechado Britric na sua cela de pedra, deixando-o entregue ao seu inquieto repouso. - Mas eu duvido que uma mulher com o tipo de vida de Gunnild esteja muito desejosa de se aproximar dos representantes da lei, mesmo para salvar o pescoço de Britric. O que pensas dele? As negações são negações e, por si só, valem muito pouco. E ele tem qualquer coisa na consciência, qualquer coisa a ver com aquele lugar e aquela mulher. A primeira coisa que ele exclamou quando o ligámos à cabana foi "Eu não roubei nada. Eu deixei-a tal como a encontrei." Por isso deduzo que ele tenha roubado. Quando eu disse que a Gunnild estava morta, então ele assustou-se, até ter compreendido que eu, que nem um idiota, tinha deixado escapar que ela não era mais do que ossos. Então ele ficou a saber qual era a melhor maneira de lidar com o assunto, e só nessa altura é que começou a suplicar que a procurássemos. Parece e soa bem, mas eu penso que ele sabe que ela nunca vai ser encontrada. Ou, por outra, ele sabe perfeitamente que ela foi encontrada, uma coisa que nunca esperara que acontecesse.

- E vais mantê-lo preso? - perguntou Cadfael.

- Com toda a certeza! E continuarei a seguir o seu rasto por onde quer que ele tenha estado depois dessa última vez, e tentar avivar a memória de todos os estalajadeiros, taberneiros ou fregueses das aldeias que estiveram em contacto com ele. Deve haver alguém, algures, que consiga preencher uma hora ou duas da vida dele... e da dela. Agora que o tenho, vou mantê-lo cá até saber a verdade, de uma forma ou doutra. Porquê? Tens alguma coisa a acrescentar que me tenha escapado? Eu não recusarei qualquer dado que tenhas em mente.

- Um mero pensamento - disse Cadfael distraidamente. - Deixa-o amadurecer durante um dia ou dois. Quem sabe, talvez não tenhas que esperar muito tempo pela verdade.

Na manhã seguinte, que era domingo, Sulien Blount veio a cavalo de Longner para assistir à missa na igreja da abadia e trouxe com ele, sacudido, escovado e cuidadosamente dobrado, o hábito com que fora para casa depois de o abade o ter dispensado. Com a sua própria túnica e meias, camisa de linho e bons sapatos de cabedal, parecia ligeiramente menos à vontade do que com o hábito, tão recente era a sua libertação após mais de um ano de noviciado. Ainda não recuperara a liberdade do passo fácil de um jovem, sem o estorvo das saias monásticas. Nem, estranhamente, parecia mais feliz ou mais despreocupado por ter tomado uma decisão. Havia uma expressão solene no seu admirável maxilar, e uma ruga silenciosa de pensamentos sérios entre as suas direitas sobrancelhas. O anel de cabelo que ficara demasiado comprido na sua viagem de Ramsey tinha sido aparado, e os caracóis dentro dele tinham atingido um comprimento respeitável, misturando-se com o castanho. Ele assistiu à missa com a mesma concentração grave que tinha mostrado quando pertencia à Ordem, entregou a roupa a que renunciara, apresentou os seus cumprimentos ao Abade Radulfus e ao Prior Robert, e foi à procura do Irmão Cadfael no herbário.

- Bem, bem! - disse Cadfael. - Pensei que talvez nos viesses ver em breve. E como encontraste as coisas no mundo? Não encontraste motivos para mudares de ideias?

- Não - disse o rapaz laconicamente e, de momento, não teve mais nada a dizer. Ele olhou em volta do jardim de paredes altas, com os seus canteiros bem tratados, agora um pouco mais pernilongos e nus com a perda das folhas e os bastos caules do tomilho escuros como arame. - Eu gostei de estar aqui contigo. Mas não, eu não voltaria atrás. Foi errado fugir. Não voltarei a cometer o mesmo erro.

- Como tem passado a tua mãe? - perguntou Cadfael, adivinhando que ela poderia bem ser a dor insolúvel da qual Sulien tinha tentado fugir. Viver com a inevitável contemplação da dor perpétua e com a aproximação infinita e cruelmente lenta da morte poderia bem ser insuportável para o jovem. Pois Hugh tinha falado muito claramente do estado actual dela. Se era esse o cerne da questão, o rapaz tinha-se preparado para compensar e suportar a sua parte nas responsabilidades da casa, deste modo aliviando certamente as delas.

- Mal - disse Sulien bruscamente. - Sempre na mesma. Mas nunca se queixa. É como se ela tivesse uma fera esfomeada a comer-lhe o interior do corpo. Uns dias são um pouco melhores que outros.

- Eu tenho ervas que talvez façam qualquer coisa contra a dor - disse Cadfael. - Algum tempo atrás ela usou-as durante algum tempo.

- Eu sei. Todos nós já lhe dissemos isso, mas agora ela recusa-se a tomá-las. Diz que não precisa delas. Mesmo assim - disse ele, animando-se -, dá-me algumas, talvez a consiga convencer.

Ele seguiu Cadfael até à oficina, debaixo dos molhos sussurrantes de ervas secas pendurados das traves do tecto, e sentou-se no banco de madeira enquanto Cadfael enchia um frasco com o xarope que fizera com as suas papoilas orientais e que aplacava a dor e provocava o sono.

- Talvez ainda não tenhas ouvido dizer - disse Cadfael, de costas viradas -, que o xerife tem um homem na cadeia acusado de ter assassinado a mulher que nós pensávamos que era a Generys até nos teres demonstrado que não podia ser ela. Um sujeito chamado Britric, um vendedor ambulante que percorre as aldeias fronteiriças e dormiu na quinta do Ruald o ano passado, durante a Feira de São Pedro.

Ele ouviu um leve movimento ligeiro atrás de si, quando os ombros de Sulien se moveram, encostados à parede de madeira. Mas não se ouviu uma palavra.

- Parece que tinha uma mulher com ele, uma tal Gunnild, uma acrobata e cantora que dava espectáculos na feira. E nunca mais ninguém a viu desde o fim da feira do ano passado. Uma mulher de cabelos pretos, dizem. Ela podia muito bem ser a pobre alma que encontrámos. O Hugh Beringar pensa que é.

A voz de Sulien perguntou, num tom seco e baixo:

- E o que é que Britric diz a isso? Certamente que não confessou?

- Ele disse o que se esperava que dissesse, que deixou a mulher na manhã depois da feira, sã e salva e bem de saúde, e não voltou a vê-la.

- É possível que o tenha feito - disse Sulien, sensatamente.

- É possível. Mas ninguém voltou a ver a mulher desde essa altura. Ela não veio à feira este ano, ninguém sabe nada sobre ela. E, segundo ouvi, sabia-se que eles discutiam, chegando mesmo a andar à pancada. E ele é um homem forte, com um temperamento explosivo, que poderá facilmente ir demasiado longe. Eu não gostaria - disse Cadfael intencionalmente -, de estar no seu lugar, pois acho que vai ser acusado formalmente. A sua vida não valerá grande coisa.

Só então ele se virou. O rapaz estava sentado muito quieto, os olhos fixos no rosto de Cadfael. Numa voz de compaixão distante, sem grande emoção, ele disse:

- Pobre diabo! Suponho que ele não teve intenção de a matar. Como é que disseste que essa acrobata se chamava?

- Gunnild. Chamavam-lhe Gunnild.

- Deve ser uma vida difícil, andar na estrada - disse Sulien pensativamente -, especialmente para uma mulher. No Verão não é tão mau, mas o que farão eles no Inverno?

- O que todos os jograis fazem - disse Cadfael, num tom pragmático. - Por volta desta altura do ano começam a procurar uma casa senhorial que os acolha durante o Inverno, pelas suas canções e música. E, chegando a Primavera, partem outra vez.

- Sim, suponho que um canto ao pé do lume e um jantar na mesa mais baixa devem ser mais do que bem-vindos quando a neve cai - concordou Sulien, com indiferença, pondo-se de pé para aceitar o pequeno frasco que Cadfael tinha tapado para ele. - Agora vou andando, o Eudo deve precisar de ajuda no estábulo. E obrigado, Cadfael. Por isto e por tudo.

 

Foi três dias mais tarde que um cavalariço chegou ao portão do castelo, com uma mulher atrás, e a depositou no pátio exterior para falar com os guardas. Modestamente, mas com toda a confiança, ela pediu para falar com o xerife e anunciou que era um assunto importante e seria considerado como tal pela personagem que ela procurava.

Hugh saiu do armeiro em mangas de camisa e um gibão de cabedal, corado e ainda envolto no fumo da fornalha do ferreiro. A mulher olhou para ele com tanta curiosidade como a que ele sentiu em relação a ela, pois ele tinha, inesperadamente, um ar muito jovem. Ela nunca tinha visto o xerife do condado e estivera à espera de alguém mais velho e mais exemplificativo da sua dignidade do que este jovem magro bem arranjado, com menos de trinta anos, de cabelo e sobrancelhas pretas, que parecia mais um dos aprendizes de armeiro de que o oficial do rei.

- Pediu para falar comigo, minha senhora? - perguntou Hugh. - Entre e diga-me o que pretende de mim.

Ela seguiu-o tranquilamente até à antecâmara da casa do portão mas hesitou por um momento quando ele a convidou a sentar-se, como se tivesse que declarar e justificar o assunto que ali a trouxera antes de se sentir à vontade.

- Meu senhor, se o que eu ouvi é verdade, penso que é o senhor que precisa de mim. - A sua voz tinha a cadência de uma camponesa, bem como uma ligeira aspereza, como se lhe tivesse sido dado um uso excessivo ou tivesse sido utilizada sob tensão. E ela não era tão nova como ele julgara a princípio, talvez com cerca de trinta e cinco anos, mas bonita e de porte erecto, e movia-se com uma graça decorosa. Vestia um bom vestido escuro, matronal e sóbrio, e o seu cabelo estava puxado para trás e escondido sob uma touca branca. A imagem perfeita de uma mulher decente de um burguês, ou de uma dama de companhia de uma dama. Hugh não conseguiu adivinhar imediatamente onde e quando ela se enquadrava nas suas preocupações actuais, mas estava disposto a aguardar um esclarecimento.

- O que foi que ouviu dizer? - perguntou ele.

- Dizem no mercado que o senhor prendeu um homem chamado Britric, um vendedor ambulante, por ter morto uma mulher que esteve com ele durante algum tempo no ano passado. É verdade?

- É verdade - disse Hugh. - Tem alguma coisa a dizer sobre o assunto?

- Tenho, meu senhor! - Ela manteve os olhos semivelados por pestanas espessas, compridas, só raramente olhando, por breves instantes, directamente para o rosto dele. - Tenho razões de sobra para não desejar nada de particularmente bom a Britric, mas também não lhe desejo mal. Ele foi um bom companheiro durante algum tempo e, embora nos tivéssemos separado, não quero que ele seja enforcado por um assassínio que nunca foi cometido. Por isso aqui estou eu em carne e osso, para provar que estou bem viva. E o meu nome é Gunnild.

- E, por Deus, era mesmo! - disse Hugh na oficina de Cadfael, contando-lhe toda a inverosímil história, na hora de descanso da tarde monástica. - Não existe qualquer dúvida, ela é Gunnild. Devias ter visto a cara do vendedor ambulante quando a levei à cela, e ele olhou demoradamente para a sua forma decorosa e respeitável, e depois atentamente para o seu rosto, e ele teve tanta dificuldade em acreditar que ficou de boca aberta. Mas "Gunnild!", gritou ele assim que recuperou a respiração. Oh, é a mesma mulher, não há qualquer dúvida, mas está tão diferente que ele levou alguns minutos a confiar nos seus próprios olhos. E havia mais do que o que ele nos contou sobre aquela sua fuga de manhã cedo. Não admira que tenha saído sorrateiramente, deixando-a a dormir. Para além do seu próprio dinheiro, ele levou consigo tudo o que ela ganhara. Eu bem disse que ele tinha qualquer coisa a pesar-lhe na consciência, e qualquer coisa a ver com a mulher. E, de facto, tinha... ele roubara-lhe tudo o que ela possuía de valor, e ela deve ter passado por grandes dificuldades no Outono e no Inverno do ano passado.

- Parece - disse Cadfael, atento mas nada surpreendido -, que hoje o seu encontro poderá bem ser mais um encontro tempestuoso.

- Bem, ele ficou tão contente com a vinda dela que era todo agradecimentos, promessas de emenda e lisonjas bajuladoras. E ela recusa-se a acusá-lo de roubo. Eu acho que ele pensava que podia convencê-la a voltar com ele para a vida errante, mas ela não quer. Decididamente que não. Ela chamou o cavalariço, e este içou-a para o assento traseiro e foram-se embora.

- E o Britric? - Cadfael estendeu a mão para mexer a panela que tinha a ferver suavemente na grelha que cobria um lado da braseira. O cheiro acre, quente e fumegante, a xarope de marroio-branco picou-lhes o nariz. Na enfermaria de Edmund já havia algumas tosses e constipações entre os irmãos velhos e débeis.

- Foi libertado e partiu, muito humilde, embora ninguém saiba quanto tempo isso vai durar. Não havia razão para o manter preso por mais tempo. Vamos estar atentos aos seus negócios mas, se ele está a começar a prosperar honestamente... bem, quase honestamente!... desta vez pode bem ter ganho sensatez suficiente para se manter dentro da lei. E até é possível que a abadia possa receber os seus impostos, se ele vier à feira do ano que vem. Mas aqui estamos nós, Cadfael, com uma história que se repete a si própria em pormenor e plausibilidade, a libertar não só um possível assassino, mas também um segundo. Dá para acreditar?

- Essas coisas acontecem - disse Cadfael cautelosamente -, mas não com frequência.

- Tu acreditas nisso?

- Eu acredito que aconteceu. Mas que tenha acontecido por acaso, disso tenho algumas dúvidas. Não - corrigiu Cadfael num tom enfático -, mais do que algumas.

- Que uma mulher supostamente morta ressuscitasse, tudo muito bem. Mas a segunda também? E será que agora devemos esperar uma terceira, se conseguirmos encontrar uma terceira para morrer e aparecer outra vez? E, no entanto, nós ainda temos esta pobre alma ofendida à espera de justiça, se não através da morte de outra pessoa, pelo menos pela graça e recordação de um nome. Ela está morta e exige uma justificação.

Cadfael tinha escutado com respeito e afecto um discurso que poderia ter vindo do próprio Abade Radulfus, mas feito com uma paixão secular, cheia de juventude. Hugh não se entregava com frequência à paixão, pelo menos em voz alta.

- Hugh, ela disse-te como e onde ouviu dizer que o Britric estava na tua prisão?

- Só vagamente. Ouviu rumores no mercado, disse ela. Não me ocorreu interrogá-la mais rigorosamente - disse Hugh, aborrecido.

- E só decorreram três dias desde que divulgaste o crime de que ele era suspeito e anunciaste o nome dela. As notícias correm depressa, mas a questão é até onde elas terão chegado. Suponho que a Gunnild deve ter explicado a mudança ocorrida na sua vida? Ainda não me disseste onde é que ela vive e trabalha agora.

- Afinal, parece que, de certo modo, o Britric lhe fez um favor quando a deixou sem um tostão na quinta do Ruald. Foi em Agosto, no fim da feira, altura difícil para ganhar dinheiro, e ela mal conseguiu sobreviver durante o Outono, alimentada mas sem quaisquer economias, e tu deves lembrar-te (Deus sabe que deves lembrar-te) que o Inverno chegou cedo e rigoroso. Ela fez o que os músicos errantes fazem, começou a procurar uma casa senhorial em que pudesse haver lugar para um bom menestrel durante os piores dias do Inverno. É prática comum, tenta-se a sorte, pode-se ganhar ou passar mal.

- Sim - concordou Cadfael, mais para si próprio do que para o seu amigo -, foi que eu lhe disse.

- As coisas correram-lhe bem. Ela foi ter à casa senhorial de Withington durante os nevões de Dezembro. A casa está agora ocupada por Giles Otmere, hoje em dia rendeiro da coroa, uma vez que as terras de FitzAlan foram confiscadas, e ele tem filhos jovens que ficaram contentes por terem uma menestrel durante a festa do Natal, por isso acolheram-na. Mas, melhor ainda, a filha jovem, que acabou de fazer dezoito anos, gostou dela e, de acordo com Gunnild, ela tem muito jeito para pentear e bordar, e a rapariga aceitou-a como criada de quarto. Devias ver agora o seu passo delicado e os seus modos pudicos. Ela tem sido muito útil à sua dama e gosta muito dela. Agora a Gunnild nunca há-de voltar para as estradas e para as feiras, é demasiado sensata para o fazer. Na verdade, Cadfael, tu deverias ver por ti próprio.

- Na verdade - disse Cadfael num tom pensativo -, acho que devo fazê-lo. Bem, Withington não é longe, não fica muito para além de Upton mas, a não ser que a Senhora Gunnild tenha vindo à cidade para o mercado de ontem, ou que alguém tenha estado por acaso em Withington com as notícias do dia, os rumores parecem ter percorrido as ervas e atravessado o rio por sua livre iniciativa. É verdade que às vezes eles voam mais depressa que os pássaros, pelo menos na cidade e em Foregate, mas demoram cerca de um dia a chegar às aldeias mais distantes. A não ser que alguém vá levá-los apressadamente.

- Levados do mercado para casa ou soprados pelo vento - disse Hugh -, parece que chegaram a Withington. Ainda bem para o Britric. Agora, fiquei sem saber onde procurar, mas isso é melhor do que perseguir um homem inocente. Mas detestaria desistir e deixar as coisas como estão.

Ainda não há necessidade de pensar nesses termos - disse Cadfael. - Aguarda mais alguns dias e entretanto concentra-te nos assuntos do rei, que talvez ainda nos reste um fio de esperança.

Antes das Vésperas, Cadfael dirigiu-se aos aposentos do abade e solicitou uma audiência. Ele estava um pouco hesitante em fazer o pedido, sabendo que lhe eram muitas vezes concedidas autorizações para além do que a Regra normalmente aprovaria mas, desta vez, não tinha bem a certeza do que iria fazer. A confiança que o abade depositava nele era, em si, uma responsabilidade.

- Pai, eu penso que o Hugh Beringar esteve consigo esta tarde e lhe contou o que aconteceu com o homem chamado Britric. A mulher que se sabe que esteve com ele há um ano ou mais desapareceu, de facto, dos locais que costumava frequentar, mas não por ter morrido. Ela apareceu para mostrar que ele não lhe fizera mal, e o homem foi posto em liberdade.

- Sim - disse Radulfus -, eu sei isso. O Hugh esteve comigo uma hora atrás. Não posso deixar de estar contente por o homem não ter cometido qualquer crime e poder ir à sua vida em liberdade. Mas a nossa responsabilidade para com a morta continua, e a nossa busca tem que prosseguir.

- Pai, eu vim pedir autorização para fazer uma viagem amanhã. Algumas horas serão suficientes. Há um aspecto desta ilibação que suscita algumas perguntas que precisam de resposta. Eu não sugeri a Hugh Beringar que ele as fizesse, em parte porque está muito preocupado com os assuntos do rei, mas também porque, se eu estiver enganado a respeito do que penso, não há necessidade de o incomodar. Se ficar provado que as minhas dúvidas não têm fundamento - disse Cadfael num tom muito sério -, então coloco a questão nas mãos dele e não me meto mais no assunto.

- E será que posso perguntar que dúvidas serão essas? - perguntou o abade após um momento de reflexão e com um sorriso vago e irónico a assomar-lhe aos lábios.

- Preferia não dizer nada - disse Cadfael com franqueza -, até eu próprio ter as respostas, sim ou não. Porque se eu me estiver a tornar num mero velho desconfiado, com demasiada tendência para ver práticas tortuosas onde elas não existem, prefiro não arrastar mais ninguém para esse indigno atoleiro, nem fazer acusações falsas que são mais fáceis de espalhar do que de suprimir. Aguarde até amanhã.

- Então diz-me só uma coisa - disse Radulfus. - Não existe qualquer motivo, espero, nesse curso de acção que tens em mente, para voltares a apontar o dedo ao Irmão Ruald?

- Não, Pai. Ele aponta noutra direcção que não a dele.

- Óptimo! Eu não posso acreditar que o homem tenha feito algum mal.

- Tenho a certeza de que não o fez - disse Cadfael num tom firme.

- Então ele, pelo menos, pode estar em paz.

- Eu não disse isso. - E quando o olhar arguto e penetrante do abade se fixou nele, prosseguiu: - Todos nós nesta casa partilhamos a preocupação e a dor por uma criatura que foi colocada nas terras da abadia sem um nome nem ritos adequados de morte e absolvição. Nessa medida, até isto estar resolvido, nenhum de nós pode ter paz.

Radulfus ficou imóvel durante um longo momento, olhando atentamente para Cadfael; depois moveu-se abruptamente e disse num tom prático:

- Então, quanto mais depressa resolveres este assunto melhor. Se a viagem for um tanto longa, leva uma mula dos estábulos, para ires e vires no mesmo dia. Onde vais? Posso perguntar isso?

- Não muito longe - disse Cadfael -, mas, se for a cavalo, pouparei tempo. É só até à casa senhorial de Withington.

Na manhã seguinte, logo a seguir à hora de prima, Cadfael partiu para a viagem de seis milhas até à casa senhorial onde Gunnild tinha encontrado refúgio das sortes e azares da estrada.

Atravessou o rio a montante das terras de Longner e, no outro lado, seguiu o pequeno riacho que ali desaguava no Severn, com campos que se elevavam de ambos os lados. Durante um quarto de milha ele viu, à sua direita, a longa crista de árvores e arbustos, no extremo da qual ficava o Campo do Oleiro, agora transformado num planalto de nova terra arável em cima, e a suave encosta de prados em baixo. O que restava da cabana já devia ter sido demolido, o jardim limpo e a terra aplanada. Cadfael não tinha lá voltado para ver.

O caminho corria através de campos abertos até à aldeia de Upton, subindo muito suavemente. Para além dela, as cerca de duas milhas que faltavam para Withington eram feitas ao longo de um trilho muito usado, através de terra plana, rica e verde. Dois riachos corriam suavemente por entre as casas da aldeia, fundindo-se na orla sul e desaguando no Rio Tern. A pequena igreja situada no centro do largo era propriedade da abadia, tal como a sua vizinha de Upton, uma oferta do Bispo de Clinton aos beneditinos alguns anos antes. No extremo da aldeia, um pouco recuada do riacho, ficava a casa senhorial dentro de uma cerca baixa, rodeada pelos seus celeiros, vacarias e estábulos. A galeria subterrânea era de traves de madeira, uma extremidade do piso de habitação era de pedra, e um pequeno e íngreme lance de escadas conduzia à porta do salão, que mesmo tão cedo já estava aberta, pois o padeiro e a leiteira estariam provavelmente atarefados a entrar e a sair apressadamente.

Cadfael desmontou junto do portão e, calmamente, conduziu a mula até ao pátio, olhando à sua volta. Uma criada estava a atravessar o pátio, levando um jarro de leite da vacaria para a leitaria, e parou quando o viu, mas prosseguiu com a sua tarefa quando um cavalariço emergiu do estábulo e se aproximou rapidamente e pegou nas rédeas da mula.

- Veio muito cedo, Irmão. Em que o podemos servir? O meu senhor já saiu em direcção a Rodington. Quer que o mandemos chamar, se veio falar com ele? Ou se puder aguardar o seu regresso, tenha a bondade de entrar. A porta dele está sempre aberta aos monges.

- Eu não quero perturbar a ordem de um dia atarefado - disse Cadfael cordialmente. - Só vim agradecer à vossa jovem senhora a sua amabilidade e ajuda num assunto aborrecido e, se eu puder cumprimentar a dama, voltarei logo para Shrewsbury.

Não sei o nome dela, pois ouvi dizer que o vosso senhor tem muitos filhos. Eu calculo que a dama com quem pretendo falar seja a mais velha. A que tem uma criada de quarto chamada Gunnild.

Pelo modo prático como o cavalariço recebeu o nome, era óbvio que o lugar de Gunnild nesta casa estava estabelecido e aceite e, se alguma vez houvera murmúrios e ressentimentos entre as outras criadas sobre a transformação de uma acrobata maltrapilha numa criada de quarto estimada, há muito que eles tinham sido esquecidos, o que era um astucioso testemunho do bom senso de Gunnild.

- Ah, sim, essa é a Menina Pernel - disse o cavalariço, virando-se para chamar um rapaz que ia a passar e dizendo-lhe que pegasse na mula e tratasse dela. - Ela está lá dentro, embora a minha dama tenha ido com o meu senhor, pelo menos parte do caminho; ela tem coisas a tratar com a mulher do moleiro em Rodington. Entre, eu vou chamar a Gunnild.

O som das vozes que se ouvia por todo o pátio deu lugar, enquanto subiam as escadas até à porta do salão, a vozes mais agudas e a muitos risos de crianças, e dois rapazes de doze e oito anos saíram a correr pela porta aberta e desceram os degraus com três saltos, quase derrubando Cadfael, e retomando, com gritos ofegantes, a sua corrida em direcção aos campos. Eles eram seguidos apressadamente por uma menina de cinco ou seis anos que segurava as saias com as mãos gorduchas e chamava os irmãos, gritando-lhes que esperassem por ela. O cavalariço apanhou-a habilmente e colocou-a de pé ao fundo dos degraus, e ela partiu atrás dos rapazes à maior velocidade que as suas pernas curtas conseguiam correr. Por um momento, Cadfael virou-se nos degraus para a ver correr. Quando olhou de novo em volta para continuar a subir, viu uma rapariga mais velha emoldurada pela ombreira da porta, a olhar para ele com uma surpresa sorridente e espantada.

Não era certamente Gunnild, mas sim a ama de Gunnild. Dezoito anos acabados de fazer, dissera Hugh. Dezoito anos, e ainda não era casada nem, ao que parecia, estava noiva, talvez devido à modéstia do seu dote ou às ligações do seu pai, mas também devido ao facto de ser a mais velha desta alegre prole, e muito valiosa para a casa. A sucessão estava assegurada, com dois filhos saudáveis, e prover a subsistência de duas filhas talvez fosse uma sobrecarga para os recursos de Giles Otmere, e por isso não havia pressa. Com o seu ar gracioso e uma natureza obviamente afectuosa, ela talvez não precisasse de um grande dote se o rapaz certo aparecesse.

Não era alta, mas era suavemente arredondada e conseguia irradiar uma luminosidade física como se todo o seu corpo, do cabelo suave aos pés pequenos, sorrisse quando os olhos e os lábios sorriam. Tinha um rosto redondo, os olhos bem afastados e bem abertos numa candura brilhante, e a boca ao mesmo tempo generosamente cheia, apaixonada e resolutamente firme, embora neste momento estivesse entreaberta num sorriso de surpresa. Ela trazia na mão a boneca de madeira da sua irmãzinha, tendo acabado de a apanhar do chão, para onde fora atirada.

- Aqui está a Menina Pernel - disse o cavalariço num tom alegre, recuando um passo em direcção ao pátio. - Minha senhora, o bom irmão gostaria de conversar consigo.

- Comigo? - perguntou ela, abrindo ainda mais os olhos. - Suba, sir, e seja bem-vindo. É realmente comigo que quer falar? Não é com a minha mãe?

A sua voz estava de acordo com a luminosidade que ela irradiava, aguda e alegre como a de uma criança, mas muito melodiosa na sua cadência cantante.

- Bem, pelo menos podemos ouvir a voz um do outro, agora que as crianças estão fora de casa - disse ela, a rir. - Venha até ao banco junto da janela e descanse.

O recanto em que os dois se sentaram tinha a portada da chuva parcialmente fechada, mas a do vento estava aberta. Nessa manhã quase não havia vento, e, embora o céu estivesse nublado, a luz era boa. Estar sentado em frente da rapariga era como olhar para uma lamparina acesa. Durante um momento eles estiveram sozinhos no salão, embora Cadfael ouvisse várias vozes vindas do corredor, da cozinha e do pátio lá fora, numa atarefada harmonia.

- Veio de Shrewsbury? - disse ela.

- Com autorização do meu abade - disse Cadfael -, para lhe agradecer o facto de ter enviado tão prontamente a sua criada Gunnild ao xerife, para ilibar o homem que estava preso, suspeito de provocar a sua morte. Tanto o meu abade como o xerife lhe estão agradecidos. O objectivo deles é a justiça. A menina ajudou-os a evitar a injustiça.

- Mas nós não podíamos fazer outra coisa - disse ela simplesmente -, assim que tivemos conhecimento de que era necessário fazê-lo. Certamente que ninguém deixaria um homem ficar preso mais um dia do que o necessário, quando ele não fez mal nenhum.

- E como é que soube dessa necessidade? - perguntou Cadfael. Era essa a pergunta que ele viera fazer, e ela respondeu-lhe alegre e francamente, sem desconfiar do seu verdadeiro significado.

- Disseram-me. Na verdade, se existe algum mérito na questão, ele não é nosso, mas sim do jovem que me falou no caso, pois ele andara a perguntar pela Gunnild por todo o lado, querendo saber se ela passara o Inverno do ano passado nalguma casa desta zona do condado. Ele não estava à espera de a encontrar instalada aqui, e isso foi um grande alívio para ele. A única coisa que eu fiz foi enviar Gunnild com um cavalariço a Shrewsbury. Ele andara por aí a perguntar por ela, para saber se estava viva e bem de saúde, e a pedir-lhe que se apresentasse e o provasse, pois pensava-se que estava morta.

- Foi muito meritório da parte dele preocupar-se tanto com a justiça - disse Cadfael.

- Foi! - concordou ela acaloradamente. - Nós não fomos os primeiros que ele visitou; antes de cá vir ele ja tinha ido até Cressage.

- Sabe o nome dele?

- Até essa altura eu não sabia. Ele disse-me que era Sulien Blount, de Longner.

- Ele perguntou expressamente por si? - perguntou Cadfael.

- Oh, não! - Ela estava surpreendida e divertida, e ele não teve a certeza se, nessa altura, ela ainda não tomara consciência da curiosa insistência das suas perguntas, mas não viu motivo para hesitar em responder. - Ele perguntou pelo meu pai, mas ele estava no campo, e eu estava no pátio quando ele chegou. Foi só por acaso que ele falou comigo.

Pelo menos foi um acaso agradável, pensou Cadfael, que deu uma inesperada consolação a um homem perturbado.

- E quando ele soube que tinha encontrado a mulher que procurava, pediu para falar com ela? Ou deixou isso a seu cargo?

- Sim, ele falou com ela. Disse-lhe, na minha presença, que o vendedor ambulante estava preso e que ela se devia apresentar para provar que ele não a matara. E ela fê-lo, de bom grado.

Ela agora estava grave e não a sorrir, mas continuava a ser franca, directa e alegre. Pela limpidez inteligente dos seus olhos, era evidente que reconhecera um objectivo mais profundo por trás das perguntas dele e estava muito preocupada com as implicações das mesmas mas, mesmo reconhecendo isso, não via motivo para não responder ou mentir, uma vez que, para ela, a verdade não podia causar qualquer mal. Por isso ele fez a última pergunta sem qualquer hesitação.

- Ele teve oportunidade de falar com ela a sós?

- Teve - disse Pernel. Os seus olhos, muito abertos, que fitavam Cadfael com firmeza, eram de um castanho dourado, mais claros que os cabelos. - Ela agradeceu-lhe e foi com ele até ao pátio, onde ele montou e se foi embora. Eu estava cá dentro com as crianças, que tinham acabado de chegar, e eram quase horas do jantar. Mas ele não quis ficar.

Mas ela convidara-o. Ela tinha gostado dele, naquele preciso momento gostava dele e perguntava a si própria, embora sem apreensão, o que este monge de Shrewsbury quereria saber a respeito dos movimentos, generosidades e preocupações de Sulien Blount de Longner.

- O que eles disseram um ao outro - disse Pernel -, eu não sei. Tenho a certeza que não foi nada de mal.

- Isso - disse Cadfael -, acho que posso adivinhar. Eu acho que o jovem pode ter-lhe pedido que, quando fosse ter com o xerife ao castelo, não dissesse que foi ele que veio à procura dela, mas apenas que ela tinha ouvido falar no problema de Britric e da sua suposta morte. As notícias espalham-se. Ela teria acabado por saber, mas não, creio, tão depressa.

- Sim - disse Pernel, corando -, isso eu acredito, que ele não quisesse receber os louros pela bondade do seu coração. Porquê? Ela fez o que ele lhe pediu?

- Fez. Não a podemos censurar por isso, ele tinha o direito de lhe pedir.

Talvez não apenas o direito, mas também a necessidade! Cadfael fez menção de se levantar, de lhe agradecer pelo tempo que ela lhe dedicara e de se ir embora, mas ela estendeu uma mão para o deter.

- Não se pode ir embora sem tomar qualquer coisa na minha casa, Irmão. Se não quiser ficar para almoçar connosco ao meio-dia, pelo menos deixe-me pedir à Gunnnild que nos traga vinho. O meu pai comprou vinho francês na feira de Verão. - E ela pôs-se de pé e atravessou o salão até à porta, a chamar, antes de ele ter tempo de aceitar ou recusar. Era justo, reflectiu ele. Ele tinha obtido o que quisera dela, sem protestos nem receios; agora ela queria qualquer coisa dele. - Não precisamos de dizer nada à Gunnild - disse ela em voz baixa, quando voltou. - Ela tinha uma vida difícil, vamos deixar que a esqueça, bem como a tudo o que a poderá fazer recordá-la. Tem sido uma boa amiga e criada para mim, e gosta muito das crianças.

A mulher que entrou vinda da cozinha e da despensa com um jarro e copos era alta, e poderia ser considerada mais magra do que esbelta, mas os seus movimentos eram elegantes e sinuosos, mesmo no interior do vestido escuro simples. O rosto oval emoldurado pela touca branca era moreno e suave, os olhos escuros que observaram Cadfael com uma curiosidade serena mas cautelosa e pousaram em Pernel com um afecto quase possessivo, ainda eram límpidos e belos. Ela serviu-os com destreza e retirou-se discretamente. Gunnild tinha chegado a um porto do qual não tencionava voltar a partir, certamente não a convite de um vagabundo como Britric. Mesmo quando a sua dama se casasse, haveria a sua irmãzinha para tomar conta e, quem sabe, um dia, o casamento da própria Gunnild, o casamento confortável, prático, de dois criados decentes e a envelhecer que tinham servido juntos durante tempo suficiente para saberem que podiam viver juntos o resto dos seus dias.

- Está a ver - disse Pernel -, como valeu a pena recebê-la e como ela se sente feliz aqui. E agora - disse ela, falando sem subterfúgios sobre o que mais lhe interessava -, fale-me de Sulien Blount. Porque eu penso que o deve conhecer.

Cadfael respirou fundo e contou-lhe o que lhe pareceu desejável que ela soubesse sobre o ex-noviço beneditino, sobre a sua casa e a sua família, e a sua escolha definitiva do mundo secular. Não incluiu nada sobre a história do Campo do Oleiro a não ser o mero facto de que este passara, por etapas, dos Blounts para a abadia e produzira, ao ser lavrado, o corpo de uma mulher morta de cuja identidade as autoridades andavam agora à procura. Esta parecia ser razão suficiente para que um filho da família se interessasse pessoalmente pelo caso e se esforçasse por ilibar os inocentes da suspeita, e justificava, de um modo satisfatório, a preocupação manifestada pelo abade e pelo seu enviado, este monge idoso que estava agora sentado num vão de janela com Pernel, contando resumidamente toda a perturbadora história.

- E a mãe dele está assim tão doente? - perguntou Pernel, escutando com os olhos muito abertos, compassivos, e uma atenção absorta. - Pelo menos ela deve estar muito satisfeita por ele ter decidido voltar para casa.

- O filho mais velho casou-se no Verão passado - disse Cadfael -, por isso há uma jovem em casa para lhe dar conforto e cuidar dela. Mas sim, ela deve estar satisfeita por ter Sulien novamente em casa.

- Não fica muito longe - murmurou Pernel, quase para si própria. - Somos quase vizinhos. Acha que a dama Donata alguma vez estará suficientemente bem para querer receber visitas? Se não pode sair de casa, às vezes ela deve sentir-se só.

Cadfael despediu-se com aquela delicada sugestão ainda a soar aos seus ouvidos na voz afectuosa, decidida e alegre da rapariga, e com o seu rosto alegre e confiante perante os seus olhos, a antítese da doença, da solidão e da dor. Bem, porque não? Mesmo que ela fosse mais à procura do jovem que tocara a sua generosa imaginação do que por causa dos benefícios que o seu vigor e encanto poderiam representar para uma dama nobre a definhar, ainda assim a sua presença poderia operar maravilhas.

Ele fez a viagem de regresso através dos campos outonais e, em vez de entrar pelo portão da abadia, continuou em frente, atravessou a ponte e entrou na cidade, para procurar Hugh no castelo.

Assim que começou a subir a rampa para a casa do portão do castelo, tornou-se óbvio para Cadfael que acontecera algo que estava a provocar uma enorme agitação no interior. Duas carroças vazias subiam, a ranger, o declive, passando por baixo da arcada profunda da torre e, no interior, havia tal movimento entre o pátio, os estábulos, a armaria e os armazéns que, no meio das idas e vindas, Cadfael ficou sentado na sua mula sem que ninguém reparasse nele durante muitos minutos, a analisar o que via e a reflectir sobre o seu inevitável significado. Não havia nada de confuso ou perturbado, tudo era decidido e exacto, o clímax ordenado de preparativos calculados e bem planeados. Ele desmontou, e Will Warden, o sargento mais velho e mais experiente de Hugh, deixou por um instante de dirigir os condutores das carroças para o pátio interior e veio esclarecê-lo.

- Estamos de partida amanhã de manhã. A notícia chegou há apenas uma hora. Vá ter com ele, Irmão, ele está na torre do portão.

E ele afastou-se, acenando ao condutor da segunda carroça para que atravessasse a arcada e entrasse no pátio anterior, e desaparecendo atrás da carroça para se certificar que esta era carregada eficientemente. A coluna de abastecimentos devia estar a preparar-se para sair naquele dia, a companhia armada partiria atrás dela ao amanhecer.

Cadfael entregou a sua mula a um moço de estrebaria e atravessou a ombreira da porta funda da sala da guarda da torre do portão. Quando o viu, Hugh levantou-se de uma mesa cheia de papéis, arrumou os seus registos e afastou-os para o lado.

- Já chegou, como eu pensei que chegaria. O rei teve que avançar contra o homem, ele não podia deixar de fazer alguma coisa para salvar as aparências. Embora ele saiba tão bem como eu - admitiu Hugh, preocupado e veemente -, que as possibilidades de levar Geoffrey de Mandeville para o campo de batalha sejam muito pequenas. Para quê, se ele tem as linhas de abastecimento de Essex seguras, mesmo que, a dada altura, ele não consiga extorquir mais milho ou gado dos Fens? E com todas aquelas planícies sombrias entretecidas de água que lhe são tão familiares como as palmas das suas próprias mãos? Bem, nós vamos provocar-lhe todo o mal que pudermos, talvez empurrá-lo mais para o interior, se não pudermos fazê-lo sair de lá. Quaisquer que sejam as possibilidades, Stephen enviou as suas tropas para Cambridge e pediu-me uma companhia por um tempo limitado, e vai ter uma companhia, tão boa como qualquer uma que ele consiga obter dos seus flamengos. E a não ser que ele voe como um relâmpago... por vezes tanto ele como nós somos apanhados de surpresa... estaremos em Cambridge antes dele.

Tendo desabafado as suas preocupações imediatas, em relação às quais não havia qualquer pressa especial, uma vez que tudo tinha sido tratado antecipadamente, Hugh olhou mais atentamente para o rosto do amigo e viu que o mensageiro do Rei Stephen não tinha sido o único visitante com notícias importantes a comunicar.

- Bem, bem! - disse ele suavemente. - Vejo que tens coisas em mente, não menos que Sua Graça o rei. E aqui estou eu prestes a deixar-te carregar o fardo sozinho. Senta-te e conta-me o que há de novo. Temos tempo antes de eu partir.

 

- O acaso não teve nada a ver com o assunto - disse Cadfael, debruçando os braços cruzados sobre a mesa. - Tu tinhas razão. Houve um motivo para a história se repetir, porque a mesma mão a empurrou para onde a mesma mente quis. Duas vezes! Foi o que eu pensei, por isso testei-o. Tive o cuidado de dizer ao rapaz que havia outro homem suspeito desta morte. Eu posso ter pintado o perigo de Britric mais negro do que era. E vejam só, o rapaz toma a peito o que eu lhe disse, que os homens e mulheres errantes procuram um porto seguro durante o Inverno, e lá vai ele, à procura por toda a região, para descobrir se uma tal Gunnild tinha encontrado um canto junto da lareira de uma casa senhorial. E, desta vez, vê bem, ele não tinha possibilidade de saber se a mulher estava viva ou morta, pois não sabia nada a respeito dela para além do que lhe dissera. Ele teve sorte e encontrou-a. Agora, por que é que ele, se nunca tinha ouvido o nome dela antes, se nunca tinha visto o seu rosto, se havia de dar a esse trabalho por causa do Britric?

- Por que motivo - concordou Hugh fitando-o através da mesa -, a não ser que ele soubesse, mesmo que não soubesse mais nada, que a nossa mulher morta não era esta Gunnild? E como é que ele poderia saber isso, a não ser que soubesse perfeitamente bem quem ela realmente é? E o que lhe aconteceu?

- Ou acredita que sabe - disse Cadfael cautelosamente.

- Cadfael, eu começo a achar interessante o nosso irmão arrependido. Vejamos exactamente o que temos. Aqui temos este jovem que, subitamente, muito pouco tempo depois de a mulher do Ruald ter desaparecido de casa, decide inesperadamente sair ele próprio de casa e tomar o hábito, não próximo daqui onde ele é conhecido, junto de vós ou em Haughmond, a casa e a ordem de que a sua família foi benfeitora, mas longe, em Ramsey. Afastando-se de uma cena que o perseguia e que lhe era dolorosa?

Talvez até mesmo perigosa? Ele é obrigado a voltar para casa quando Ramsey se torna um antro de ladrões, e poderá bem ser verdade que tenha começado a duvidar da sensatez de entrar para o mosteiro. E o que é que acontece aqui? Foi encontrado o corpo de uma mulher, enterrado em terras que outrora pertenceram aos domínios da sua família, e a ideia comum e razoável é que esta seja a mulher desaparecida do Ruald, e que o Ruald seja o seu assassino. Por isso, o que é que ele faz? Conta uma história para provar que Generys está viva e bem de saúde. Demasiado distante para ser encontrada facilmente e ela própria aparecer, dada a situação do país neste momento, mas ele tem provas. Ele tem um anel que tinha sido dela, um anel que ela vendera em Peterborough, muito depois de se ter ido embora daqui. Por conseguinte, este corpo não pode ser o dela.

- O anel era indubitavelmente dela, e genuíno - disse Cadfael sensatamente. - O Ruald reconheceu-o imediatamente e ficou extremamente satisfeito e grato ao saber que ela estava viva e a passar razoavelmente bem sem ele. Tu viste-o, tal como eu o vi. Tenho a certeza de que não havia qualquer artifício nele, nem falsidade.

- Eu também acredito nisso. Não penso que estejamos a voltar a pensar no Ruald, embora sabe Deus se não estamos outra vez às voltas com a Generys. Mas vejamos o que se segue! A seguir, uma busca faz aparecer outro homem que, de acordo com todos os indícios, poderá ser culpado de ter morto outra mulher desapa­recida nesse mesmo lugar. E, mais uma vez, Sulien Blount, quando te ouviu falar nisso, continuou a interessar-se pelo assunto e dispôs-se voluntariamente a procurar o rasto dessa mulher, para provar que ela está viva. E, por Deus, ele teve a sorte de a encontrar! Ilibando assim Britric, tal como ilibara Ruald. E agora diz-me, Cadfael, diz-me a verdade, o que é que pensas de tudo isto?

- Eu penso - admitiu Cadfael com toda a sinceridade -, que, quem quer que a mulher seja, o culpado é o próprio Sulien, e ele tenciona lutar pela vida, sim, mas não à custa do Ruald, do Britric ou de qualquer homem inocente. E isso, penso eu, estaria de acordo com a sua personalidade. Ele pode matar. Mas não permitiria que outro homem fosse enforcado por isso.

- É assim que lês os augúrios? - Hugh estava a observá-lo atentamente, com as sobrancelhas pretas ligeiramente erguidas e um sorriso irónico a curvar um canto da sua boca expressiva.

- É assim que eu leio os augúrios.

- Mas tu não acreditas nisso!

Era mais uma afirmação do que uma pergunta, proferida sem surpresa. Hugh conhecia Cadfael suficientemente bem para detectar nele tendências de que ele próprio não tinha consciência. Durante alguns minutos, Cadfael reflectiu muito seriamente em silêncio sobre as implicações. Depois, disse judiciosamente:

- À primeira vista, é lógico, é possível, é até provável. Se, afinal de contas, for a Generys, como agora parece bastante provável, todos estão de acordo que ela era uma mulher muito bonita. Com quase idade para ser mãe do rapaz, é verdade, e ele conhecia-a desde criança, mas praticamente confessou que fugira para Ramsey porque se sentia culpado de estar dolorosamente apaixonado por ela. É uma coisa que acontece a muitos rapazes inexperientes, terem a sua primeira paixão desastrosa por uma mulher que conhecem bem há muito tempo e que amam de outro modo, uma mulher que pertence a outra geração e que está fora do seu alcance. Mas se isso foi mais do que uma mera fuga a problemas insolúveis e à dor incurável? Imaginemos a situação, quando um marido que ela amara e em quem confiara se libertou dela, deixando-a presa e só! Na sua raiva e amargura perante tal abandono, uma mulher apaixonada poderia bem ter decidido vingar-se de todos os homens, até mesmo dos jovens vulneráveis. Aceitá-lo, consolar-se nos olhos de adoração dele, e depois pô-lo de parte. Afrontas destas em jovens inexperientes causam um sofrimento mortal. Mas a morte pode ter sido dela. Esse é motivo suficiente para fugir da cena e do mundo para um mosteiro distante, fora do campo de visão até mesmo das árvores que tinham abrigado a casa dela.

- É lógico - disse Hugh, ecoando as palavras de Cadfael -, é lógico, é credível.

- A minha única objecção - concordou Cadfael -, é que eu não acredito. Nem posso, por um bom motivo... simplesmente não acredito.

- As tuas reservas sempre me refrearam e fizeram ser cauteloso - disse Hugh filosoficamente. - Agora como sempre! Mas estou a pensar noutra coisa. E se o Sulien sempre teve o anel em sua posse, desde que se separou da Generys... viva ou morta? E se foi ela própria que lho deu? Se ela, no azedume de ter sido abandonada pelo marido, tivesse atirado a prenda de amor deste ao amante mais inocente e digno de pena que ela podia ter tido. E ela disse que tinha um amante.

- Se a tivesse morto - disse Cadfael -, teria ele guardado a sua prenda?

- É possível! Oh, sim, ele podia muito bem tê-lo feito. Essas coisas têm acontecido quando o amor, na sua faceta mais diabólica, ergue o ódio como outro demónio, para se guerrearem entre eles. Sim, eu penso que ele guardaria o anel, mesmo durante um ano, escondendo-o do abade, do confessor e de todos, em Ramsey.

- Tal como ele jurou a Radulfus - comentou Cadfael, recordando-se subitamente -, que não o fez. Ele podia mentir, penso eu, mas não mentiria injustificadamente, sem uma boa razão.

- Não lhe atribuímos já uma razão suficiente para mentir? Depois, se sempre teve o anel em sua posse, houve uma altura em que era urgente, por causa do Ruald, apresentá-lo como prova, com esta história falsa sobre como ele lhe foi parar às mãos. Se, de facto, for falsa. Se tivesse provas de que não é - disse Hugh, irritado com a frustração do acaso - eu quase, quase, conseguiria esquecer o Sulien.

- Há também a questão - disse Cadfael lentamente -, do motivo por que ele, quando se encontraram, não disse logo a Ruald que tivera notícias de Generys em Peterborough, e que ela estava viva e de boa saúde. Mesmo que, como ele diz, a sua intenção fosse ficar com o anel, ele podia ter dado ao Ruald a informação que sabia representar um enorme alívio para ele. Mas não o fez.

- Nessa altura, o rapaz não sabia - contrapôs Hugh razoavelmente -, que nós tínhamos encontrado uma mulher morta, nem que havia uma sombra a pairar sobre o Ruald. Ele não teve conhecimento de qualquer necessidade urgente de lhe dar notícias da mulher até ter conhecimento de toda a história em Longner. Na realidade, ele pode ter pensado que era melhor deixar as coisas como estavam, uma vez que o homem é abençoadamente feliz onde está.

- Eu não tenho bem a certeza - disse Cadfael lentamente, recordando o breve período em que Sulien fora seu ajudante no herbário -, de ele só ter tido conhecimento do caso quando foi a casa. No mesmo dia em que pediu autorização para visitar Longner para voltar a ver a família, o Jerome tinha estado com ele no jardim, pois eu encontrei-me com o Jerome quando ele ia a sair, subitamente cheio de pressa, e um pouco mais delicado e amável do que de costume. E agora, pergunto a mim próprio se algo teria sido dito sobre a descoberta dos ossos de uma mulher e sobre a ameaça que pairava sobre a reputação de um homem. Nessa mesma tarde, o Sulien foi ter com o senhor abade e pediu autorização para ir a Longner. Quando regressou no dia seguinte, foi para declarar a sua intenção de deixar a Ordem e apresentar o anel e a história sobre como o obteve.

Hugh estava a tamborilar suavemente na mesa, a pensar de olhos semicerrados.

- O que aconteceu primeiro? - perguntou ele.

- Primeiro ele pediu a libertação e obteve-a.

- Achas que seria mais fácil para um homem que geralmente diz a verdade, mentir ao abade depois disso do que antes?

- Os teus pensamentos não diferem dos meus - disse Cadfael num tom sombrio.

- Bem, duas coisas são certas - disse Hugh, sacudindo as preocupações actuais de cima dos ombros. - A primeira é que, qualquer que seja a verdade sobre o próprio Sulien, esta segunda ilibação ficou totalmente provada. Nós vimos a Gunnild e falámos com ela. Ela está viva, vive bem e, muito sensatamente, não tem qualquer intenção de voltar para as suas viagens. E uma vez que não temos motivo para ligar Britric a qualquer outra mulher, ele vai-se embora em paz, e boa sorte a ambos. E a segunda certeza, Cadfael, é o facto de esta segunda ilibação lançar grandes dúvidas sobre a primeira. Nós não vimos a Generys. Com anel ou sem anel, duvido que alguma vez a voltemos a ver. E, no entanto, no entanto... Cadfael não acredita! Não tal como as coisas estão, não como as vemos agora.

- Há mais uma certeza - lembrou-lhe Cadfael num tom sério. - É que tu partes amanhã de manhã, e os assuntos do rei não podem esperar, por isso os nossos têm que aguardar. Há alguma coisa que queiras feita até tomares de novo as rédeas? O que, se Deus quiser, não vai levar muito tempo.

Eles tinham-se posto ambos de pé quando ouviram as carroças carregadas mover-se rapidamente debaixo da arcada, com o som oco das rodas sob a pedra a ecoar até eles como se viesse de uma caverna. Um destacamento de arqueiros a pé faria a primeira etapa da viagem juntamente com os mantimentos, e recolheria cavalos frescos em Coventry, onde os lanceiros lhes passariam à frente.

- Não digas nada ao Sulien nem a ninguém, mas observa bem o que se passa - disse Hugh. - Conta a Radulfus o que quiseres, se alguém sabe ficar calado, é ele. Deixa o jovem Sulien descansar, se é que ele consegue fazê-lo. Duvido que ele durma muito bem, embora tenha limpo o campo de assassinos para mim, ou, por outra, ele tem esperança, acredita, espera tê-lo feito. Se eu precisar dele, quando a altura chegar, ele estará cá.

Saíram juntos para o pátio exterior, e pararam ali para se despedirem.

- Se eu estiver fora durante muito tempo - disse Hugh -, importas-te de visitar a Aline? - Não houvera qualquer referência, nem haveria nenhuma, a questões menores como o facto de homens poderem morrer até mesmo em pequenas guerras regionais, tal como os Fens provavelmente proporcionariam. Como Eudo Blount pai tinha morrido na retaguarda depois da emboscada de Wilton, ainda não fizera um ano. Sem dúvida que Geoffrey de Mandeville, perito em virar a casaca e ainda a fazer-se valioso e merecedor de ser cortejado, preferiria manter as suas opções desleais em aberto evitando, se pudesse, a batalha com as forças do rei e não pondo em perigo o seu estatuto de barão, mas era possível que ele nem sempre conseguisse ditar os termos do conflito, nem sequer nos seus próprios terrenos pantanosos. E o Hugh não era homem para se deixar ficar atrás dos seus soldados.

- Fá-lo-ei - disse Cadfael num tom veemente -, e que Deus vos guarde a ambos, bem como aos rapazes que vão contigo.

Hugh acompanhou-o até ao portão, com uma mão no ombro do amigo. Eles eram mais ou menos da mesma altura e podiam acertar facilmente o passo. Debaixo da sombra da arcada, pararam.

- Lembrei-me de mais uma coisa - disse Hugh. - Algo em que certamente tens pensado este tempo todo, embora não o tenhas referido. Cambridge e Peterborough não ficam muito distantes.

- Chegou, então! - disse o Abade Radulfus num tom sombrio quando, depois das Vésperas, Cadfael lhe fez o relatório completo das actividades do seu dia. - É a primeira vez, desde Lincoln, que o Hugh é chamado a juntar-se às forças do rei. Espero que corra em melhor êxito. Deus permita que eles não precisem de estar ausentes durante muito tempo.

Cadfael não conseguia imaginar que este confronto fosse terminar fácil e rapidamente. Ele nunca vira Ramsey, mas a descrição que Sulien fizera dela, uma ilha com o seu próprio intimidante fosso natural, alcançada apenas por uma passagem estreita que podia ser defendida por uma mera meia dúzia de homens, oferecia pouca esperança de uma conquista fácil. E embora os salteadores de De Mandeville tivessem que abandonar o forte para fazer as suas pilhagens, eles tinham a vantagem de ser homens locais, habituados a todas as libertinagens naquela região aberta e sombria e, a qualquer aproximação hostil, eram capazes de se retirar para os pântanos.

- Uma vez que já estamos em Novembro - disse ele -, e o Inverno vem aí, duvido se se poderá fazer muito mais do que encurralar estes bandidos nos seus próprios Fens e, pelo menos, limitar o mal que eles possam fazer. Para todos os efeitos, este já é mais do que suficiente para as pobres almas que vivem naquela zona. Mas como o Conde de Chester é nosso vizinho, e a sua lealdade é tão dúbia, eu imagino que o Rei Stephen queira enviar o Hugh e os seus homens de novo para casa assim que puder passar sem eles, para protegerem o condado e a fronteira. Ele pode muito bem estar a contar com um golpe certeiro e uma morte rápida. Eu já não vejo outro fim para De Mandeville, por mais habilnnente que ele tenha aprendido a virar a casaca. Desta vez ele foi demasiado longe para qualquer possibilidade de recuperação.

- Triste necessidade - disse Radulfus num tom sombrio -, a de ser obrigado a desejar a morte de um homem, mas este tem causado a morte de tantos outros, almas humildes e indefesas, e através de meios tão abomináveis, que eu seria capaz de rezar pelo seu fim, como uma misericórdia necessária para os seus vizinhos. De que outro modo pode haver paz e uma boa agricultura naquelas terras desoladas? Entretanto, Cadfael, nós ficamos, durante algum tempo, incapazes de fazer qualquer coisa a respeito desta morte mais próxima de nós. Na sua ausência, o Hugh deixou Alan Herbard como castelão?

O substituto de Hugh era jovem, ardente e promissor. Ainda era pouco experiente na gestão da guarnição, mas era apoiado por sargentos calejados, mais velhos, que o ajudariam se a sua experiência lhe fosse necessária.

- Deixou. E Will Warden estará atento a qualquer palavra que possa produzir uma nova pista, embora as suas ordens, tal como as minhas, sejam manter o silêncio e um rosto plácido, e evitar problemas. Mas compreende, Pai, como o simples facto de esta mulher ter aparecido como o fez, a pedido de Sulien, lança dúvidas sobre a primeira história que ele nos contou. Na altura, nós dissemos, sim, ela é totalmente credível, porque é que havemos de duvidar? Mas duas vezes a mesma ilibação, pela mesma mão? Não, isto não é obra do acaso, nem é fácil de acreditar. Não! Sulien não permitiu que Ruald ou Britric fossem acusados de assassínio e fez um grande esforço para provar que isso era impossível. Como pode ele estar tão certo da inocência deles, a não ser que saiba quem é realmente o culpado? Ou, pelo menos, que acredite que sabe?

Radulfus olhou para ele com um rosto impenetrável e disse sem rodeios o que nem Cadfael nem Hugh tinham posto ainda em palavras:

- Ou que ele próprio seja o culpado!

- Esse foi o primeiro pensamento lógico que me veio à mente - admitiu Cadfael. - Mas descobri que não conseguia admiti-lo. O mais longe que, por enquanto, me atrevo a ir, é reconhecer que o comportamento dele lança grandes dúvidas sobre a sua ignorância, se não a sua inocência, desta morte. No caso do Britric, não existe qualquer dúvida. Desta vez, não é uma questão da palavra de um homem, a mulher apareceu em carne e osso e falou por si própria. Ela está viva, afortunada e grata, não há necessidade de a procurar na sepultura. Quanto ao facto de a Generys ainda estar viva neste mundo, temos apenas a palavra de Sulien. Ela não apareceu. Ela não falou. Até agora, a única coisa que temos é o que ouvimos dizer. A palavra de um homem sobre a mulher, sobre o anel, e é tudo.

- Do pouco que conheço dele - disse Radulfus -, não penso que Sulien seja mentiroso por natureza.

- Eu também não. Mas todos os homens, mesmo os que não são mentirosos por natureza, podem ser obrigados a mentir se acharem que é muito necessário que o façam. Como eu receio que ele tivesse feito, para libertar o Ruald do peso da suspeita. Além disso - disse Cadfael num tom confiante, recorrendo à sua antiga experiência com homens falíveis no exterior do claustro -, se mentirem apenas por uma causa desesperada, eles fá-lo-ão bem, melhor do que os que mentem com ligeireza.

- Tu argumentas - disse Radulfus secamente, mas com o lampejo de um sorriso privado -, como alguém que fala com conhecimento de causa. Bem, se a palavra de um homem não for aceitável sem provas, não estou a ver como é que podemos levar as nossas investigações para além do teu "até agora". É melhor deixarmos as coisas como estão enquanto o Hugh estiver ausente. Não digas a ninguém de Longner, nem ao Irmão Ruald. No silêncio, ouvem-se claramente os murmúrios, e até o farfalhar de uma folha tem significado.

- E acabei de me lembrar - disse Cadfael, pondo-se de pé com um forte suspiro, para se dirigir ao refeitório -, da última coisa que o Hugh me disse, que de Cambridge a Peterborough não é muito longe.

O dia seguinte era consagrado a Santa Winifred e, por conseguinte, era uma festa importante na abadia de São Pedro e São Paulo, embora o dia da sua ascensão e instalação no seu altar actual na igreja, o vinte e dois de Junho, fosse celebrado com maior cerimonial. Um dia santo no Verão proporciona um tempo melhor e mais horas de luz para procissões e festividades do que o dia três de Novembro, com dias mais pequenos e o Inverno a aproximar-se.

Cadfael levantou-se de manhã muito cedo; muito antes da hora de prima, pegou nas sandálias e no escapulário e saiu do dormitório às escuras pelas escadas nocturnas onde a pequena lamparina ardia durante toda a noite para alumiar pés vacilantes, inseguros do sono, até à igreja para as Matinas e Laudas. O dormitório comprido, orlado pelas suas divisórias baixas que separavam as celas umas das outras, estava cheio de pequenos sons humanos, como uma abóbada povoada de fantasmas suaves, suspiros leves, o som involuntário na garganta, próximo de um soluço, que saudava um sonho nostálgico, os movimentos inquietos de alguém meio acordado, os ressonos sólidos, satisfeitos, de um corpo grande a dormir um sono sem sonhos e, ao fundo do comprido dormitório, o sono profundo, silencioso, do Prior Robert, venerandamente satisfeito com todos os seus actos e palavras, sém ser perturbado por dúvidas nem intimidado por sonhos. Normalmente, o prior dormia tão profundamente que era fácil alguém levantar-se e sair sem receio de o perturbar. No seu tempo, Cadfael tinha-o feito por razões menos aprovadas do que nesta manhã específica. Era possível que alguns dos que dormiam inocentemente à sua volta tivessem feito o mesmo.

Ele desceu silenciosamente as escadas para a igreja, escura, vazia e grande, iluminada apenas pelas lamparinas dos altares, quais estrelas diminutas numa noite abobadada. O seu primeiro destino, quando se levantava cedo, com muito tempo disponível, era sempre o altar de Santa Winifred, com o seu relicário de prata, onde ele parava para trocar algumas palavras respeitosas e afectuosas com a sua conterrânea. Ele falava sempre com ela em galês, os sotaques da sua infância e da dela criavam uma agradável intimidade, na qual ele lhe podia pedir qualquer coisa sem nunca se sentir rejeitado. Mesmo sem lhe pedir, sentia ele, a sua benevolência e protecção acompanhariam Hugh até Cambridge, mas não fazia mal mencionar a necessidade. Não importava que os finos ossos galeses de Winifred estivessem a muitas milhas de distância, no solo de Gwytherin, no Norte de Gales, onde ela exercera o seu ministério. Os santos não são corpóreos, mas sim presenças, eles podem estender os braços e tocar onde quer que a sua graça e generosidade desejarem.

Ocorreu a Cadfael, nesta manhã específica, dizer também uma palavra por Generys, a desconhecida, a mulher morena que também era galesa e cuja sombra bela e perturbadora perseguia a imaginação de muitos outros homens para além do marido que a abandonara. Quer ela estivesse a viver o resto da sua vida algures, distante do seu próprio país, em terras que nunca imaginara visitar, entre pessoas que nunca tivera o desejo de conhecer, quer jazesse agora ali perto, naquele canto tranquilo do cemitério, retirada de terras da abadia para ser sepultada em terras da abadia, ele quase se sentiu emocionado ao pensar nela, e seguramente que a santa que escapara a um exílio semelhante sentiria afecto e ternura. Cadfael apresentou o caso dela com confiança, ajoelhado no último degrau do altar de Winifred, onde o Irmão Rhun, quando ela o levara pela mão e curara a sua coxeadura, tinha pousado as muletas descartadas.

Quando se pôs de pé, a primeira e vaga atenuação de escuridão anterior ao nascer do sol tinha-se transformado numa sugestão pálida e perlada de luz, desenhando claramente as formas altas das janelas da nave e fazendo surgir do escuro as colunas, a abóbada e o altar. Cadfael desceu a nave até à porta oeste, que só ficava fechada em tempos de guerra ou de perigo, e saiu para os degraus exteriores para olhar ao longo de Foregate na direcção da ponte e da cidade.

Eles vinham aí. Ainda faltava uma hora ou mais para a hora de prima, e a primeira luz da manhã era muito pálida, mas ele já conseguia ouvir os cascos, firmes e rápidos e ligeiramente ocos na ponte. Ouviu a alteração no seu passo quando emergiram no chão sólido de Foregate, e viu como que uma agitação da escuridão, um movimento sem forma, até mesmo antes de os suaves lampejos da luz trémula a brilhar no aço darem forma aos seus arreios e fazê-los surgir, humanos, da obscuridade. Não havia qualquer panóplia, apenas as flâmulas dos lanceiros, duas cornetas a tiracolo para poderem ser utilizadas facilmente, e as armaduras leves em que montavam. Trinta lanceiros e cinco arqueiros montados. Os restantes arqueiros tinham ido à frente com os mantimentos. Hugh tinha respondido bem ao chamamento do Rei Stephen, e eles formavam uma companhia muito apresentável e eram provavelmente em maior número do que tinha sido pedido.

Cadfael viu-os passar, com Hugh à frente montado no seu cavalo cinzento preferido. Havia entre eles rostos que ele conhecia, soldados experientes da guarnição, filhos de famílias mercantis da cidade, arqueiros que se tinham tornado peritos a praticar nos troncos de árvores debaixo das muralhas do castelo, jovens fidalgos das casas senhoriais do condado. Em tempos normais, o tributo devido por uma casa senhorial da coroa seria talvez um fidalgo com os seus arreios e um cavalo, para um serviço de quarenta dias contra os galeses perto de Oswestry. Emergências tais como a anarquia que reinava actualmente em East Anglia perturbavam todas as circunstâncias normais mas, mesmo assim, a duração do serviço devia ter sido estipulada. Cadfael não perguntara quantos dias as vidas destes homens estariam em risco. Ali estava Nigel Apsley entre os lanceiros, bem montado e gracioso. Cadfael recordava-se que, três anos antes, aquele rapaz tinha estado envolvido numa tentativa de traição, e sem dúvida que tencionava pôr essa recordação atrás das costas através de um serviço diligente. Bem, se Hugh achara por bem utilizá-lo, ele tinha provavelmente aprendido bem a lição, e era pouco provável que voltasse a errar. E era um homem atlético e forte, que sabia usar bem as mãos e que era digno de ocupar o seu lugar.

Eles passaram, com o som surdo dos seus cascos a martelar na terra compacta e seca, e o som foi desaparecendo na distância ao longo da muralha do claustro. Cadfael ficou a observá-los até quase terem desaparecido na escuridão, e depois, quando deram a volta à muralha alta do recinto, desapareceram totalmente na curva da estrada. A luz chegou com relutância, pois o céu estava muito nublado. Ia ser um dia escuro e enevoado, possivelmente com chuva, mais tarde. Chuva era a última coisa que o Rei Stephen quereria ter nos Fens, pois esta reduziria todas as formas de aproximação por terra e complicaria todos os trilhos dos pântanos. Custava muito dinheiro manter um exército no terreno e, embora desta vez o rei tivesse chamado muitos homens a prestar o seu tributo, ele ainda estaria a pagar a uma enorme companhia de mercenários flamengos, temidos e odiados pela população civil e até mesmo detestados pelos ingleses, que lutavam a seu lado. Ambos os rivais nesta interminável disputa pela coroa utilizavam flamengos. Para eles, o lado certo era o lado que lhes pagava, e podiam passar-se facilmente para os adversários se estes oferecessem mais; no entanto, no seu tempo, Cadfael tinha conhecido muitos mercenários que cumpriam fielmente os acordos que tinham feito, enquanto barões e condes como De Mandeville mudavam de direcção tão facilmente como cata-ventos se isso lhes fosse vantajoso.

A pequena companhia de Hugh, compacta e competente, já tinha partido, e até mesmo o último estremecimento e reverberação da terra debaixo dos seus pés desaparecera. Cadfael deu meia volta e voltou a entrar na igreja pela enorme porta oeste.

Havia outra figura a dar suavemente a volta ao altar da paróquia, uma sombra silenciosa na escuridão iluminada apenas pelas fiéis lamparinas. Cadfael seguiu-o até ao coro e viu-o acender uma vela de palha torcida na pequena chama vermelha e atear as velas do altar, preparando a igreja para a Hora de Prima. Esta era uma tarefa que era efectuada rotativamente, e Cadfael não fazia a mínima ideia a quem caberia hoje a vez, até ter avançado tanto que quase podia tocar no homem que estava tranquilamente de pé, de cabeça erguida, a olhar para o altar. Uma figura erecta, magra mas forte e vigorosa com mãos grandes e bonitas dobradas na cintura, e olhos encovados abertos e fixos num sonho enlevado. O irmão Ruald ouviu os passos firmes a aproximar-se, mas não sentiu necessidade de virar a cabeça nem de mostrar, por qualquer outra forma, que dera pela presença de uma segunda pessoa. Por vezes parecia que ele quase não tinha consciência de que havia outros a partilhar com ele este local de refúgio. Só quando Cadfael se colocou a seu lado, e as mangas de ambos se tocaram, fazendo com que as velas bruxuleassem ligeiramente, é que Ruald olhou em volta com um suspiro, como se tivesse sido arrancado de um sonho.

- Levantaste-te cedo, Irmão - disse ele suavemente. - Não conseguias dormir?

- Levantei-me para ver o xerife e a sua companhia partir - respondeu Cadfael.

- Já se foram embora? - Ruald inspirou com um ar de admiração, contemplando uma vida e uma disciplina totalmente estranhas às suas práticas anteriores ou actuais. Metade da vida que ele podia esperar tinha sido passada como um humilde artesão, por algum motivo obscuro o menos considerado entre os artesãos, embora o motivo por que os oleiros honestos tinham um estatuto tão baixo constituísse um mistério para Cadfael. Agora, toda a vida que ainda lhe restava seria passada aqui no devoto serviço a Deus. Ele nunca tinha sequer disparado para as árvores por desporto, como os filhos das famílias mercantis de Shrewsbury faziam regularmente, ou combatido com bastões ou espadas rombas no campo de exercícios público. - O Pai Abade vai mandar dizer diariamente orações para que regressem em breve, sãos e salvos - disse ele. - E o Padre Bonifácio fará o mesmo nas cerimónias religiosas da paróquia. - Falou como se estivesse a tranquilizar e consolar uma alma gravemente preocupada, mas a respeito de algo que não o tocava. A sua vida tinha sido limitada, reflectiu Cadfael, recordando com gratidão a amplitude e profundidade da sua própria vida. E, subitamente, começou a parecer-lhe que toda a paixão que tinha existido até mesmo no casamento deste homem, todo o sangue que ardera nas suas veias, devia ter vindo da mulher.

- Façamos votos - disse ele concisamente -, para que regressem tantos quantos os que partiram hoje.

- Assim seja - concordou Ruald num tom humilde -, no entanto, está escrito que quem com ferros mata, com ferros morre.

- Não vais encontrar nenhum espadachim honesto que contradiga isso - disse Cadfael. - Há maneiras piores.

- Isso poderá muito bem ser verdade - disse Ruald, muito sério. - Eu sei que tenho coisas de que me arrepender, coisas pelas quais devo fazer penitência, que são tão horríveis como o derramamento de sangue. Será que não matei, mesmo quando procurava fazer o que Deus exigia de mim? Mesmo que ela ainda esteja viva no leste, eu tirei-lhe, por assim dizer, a vida. Na altura, eu não tinha consciência disso. Eu nem sequer consegui ver claramente o seu rosto, para compreender como a dilacerei. E aqui estou eu, sem ter a certeza se fiz bem em seguir o que pensei ser um chamamento sagrado, ou se, por ela, eu deveria ter esquecido até isto. Pode ser que Deus me esteja a pôr à prova. Diz-me, Cadfael, tu já viveste no mundo, viajaste pelo mundo, conheces os extremos a que os homens podem ser levados, para o bem ou para o mal. Achas que alguma vez houve um homem que estivesse disposto a renunciar ao céu para ficar no purgatório com outro ser que o amasse?

Para Cadfael, de pé muito perto dele, este homem magro e limitado parecia ter crescido ou ter ficado mais sólido; ou talvez fosse apenas a força crescente e a claridade da luz que agora brilhava em todas as janelas, empalidecendo as velas do altar. Certamente que a voz modesta e suave nunca tinha sido tão eloquente.

- A gama é seguramente tão ampla - disse ele com uma deliberação lenta e cautelosa -, que até mesmo isso é possível. No entanto, duvido que te tenha sido exigido tal prodígio.

- Daqui a três dias - disse Ruald, num tom mais suave, observando as chamas que ele tinha acendido a arder altas, firmes e douradas -, será o dia de Santo Illtug. Tu és galês, deves saber o que se diz a respeito dele. Ele tinha uma mulher, uma dama nobre, disposta a viver humildemente com ele numa cabana de junco junto do Rio Nadafan. Um anjo disse-lhe que deixasse a mulher e, uma manhã, ele levantou-se cedo e expulsou-a de casa de uma forma muito cruel, segundo se diz, e foi receber a tonsura de um monge de São Dyfrig. Eu não fui cruel, no entanto a situação é a mesma, pois foi assim que me separei da Generys. Cadfael, o que eu gostaria de perguntar é, foi um anjo que me deu as ordens, ou um demónio?

- Estás a fazer uma pergunta - disse Cadfael -, cuja resposta só Deus pode saber, e nós temos que nos contentar com isso. Seguramente que houve outros antes de ti que receberam o mesmo chamamento e que lhe obedeceram. O grande conde que fundou esta casa e dorme aqui no meio dos altares também deixou a sua dama e tomou o hábito antes de morrer. - Na verdade, apenas três dias antes de morrer e com o consentimento da mulher mas, naquele momento, não havia necessidade de referir isso.

Nunca, até àquele momento, Ruald tinha aberto os locais selados dentro de si em que escondera a sua mulher, até mesmo da sua própria visão, a princípio devido ao seu desejo de santidade, depois por causa da falibilidade humana da memória e sentindo que se tornava cada vez mais difícil recordar-se dos traços do seu rosto. A conversão caíra sobre ele como uma pancada que tinha adormecido todas as sensações, e agora, com o tempo, ele estava a voltar à vida, e as recordações estavam a preencher o seu ser com uma dor aguda e penetrante. Talvez ele nunca tivesse conseguido abrir o seu coração e falado sobre ela, excepto na sua solidão imemorial e impessoal, se não tivesse apenas uma testemunha.

Porque ele falou como se falasse sozinho, clara e simplesmente, mais a recordar do que a relatar.

- Eu não tinha qualquer intenção de a magoar... a Generys... eu não podia decidir outra coisa que não fosse partir, no entanto existem muitas formas de uma pessoa se ir embora. Eu não fui sensato. Eu não tinha jeito. Não o fiz bem. E eu tinha-a tirado de junto do seu próprio povo e, durante todos aqueles anos, ela contentou-se com poucas recompensas a não ser o homem que eu sou, e não desejando mais nada. Eu nunca poderia ter-lhe dado uma décima parte, nem uma ínfima parte, de tudo o que ela me deu.

Cadfael escutava, imóvel, enquanto a voz baixa prosseguia o seu canto lúgubre.

- Morena, ela era morena, muito bela. Toda a gente o dizia, mas agora eu vejo que ninguém sabia como ela era bela, pois para o mundo lá fora era como se andasse velada, e só eu a vi descobrir o rosto. Ou talvez, às crianças... a elas ela talvez se mostrasse descoberta. Nós nunca tivemos filhos, não tivemos essa bênção. Isso tornou-a meiga e afectuosa para com os filhos dos vizinhos. Ela ainda pode ter esperança de ter filhos. Quem sabe, com outro homem, ela poderá ainda conceber um filho.

- E ficarias contente por ela? - perguntou Cadfael, muito suavemente, para não quebrar o fio.

- Ficaria contente. Ficaria muito contente. Porque é que ela há-de continuar estéril quando eu me sinto realizado? Ou presa, quando eu estou livre? Eu nunca pensei nisso quando senti o desejo.

- E acreditas que ela estava a dizer a verdade, na última vez, quando disse que tinha um amante?

- Sim, acredito - disse Ruald com simplicidade e sem hesitação. - Não que ela não me pudesse mentir, pois eu fui estúpido e magoei-a muito, agora compreendo que o fiz, magoei-a mesmo ao visitá-la. Eu acredito por causa do anel. Lembras-te? O anel que o Sulien trouxe com ele quando regressou de Ramsey.

- Lembro-me - disse Cadfael.

O sino do dormitório estava a tocar para chamar os irmãos para a Hora Prima. Num canto remoto da consciência deles, ele soou muito sumido e distante, e nenhum deles lhe prestou atenção.

- Ela nunca o tirou do dedo, desde que eu lho enfiei. Eu acho que, ao fim de tanto tempo, ele não conseguiria passar pelo nó do dedo. Na primeira vez que a visitei com o Irmão Paul, eu sei que ela o trazia, como sempre. Mas na segunda vez... eu tinha-me esquecido, mas agora eu compreendo. Ela não o trazia no dedo na última vez que a vi. Ela tinha arrancado o seu casamento comigo do dedo juntamente com o anel e dera-o a outra pessoa, tal como me tinha arrancado da sua vida, e oferecera-a a outra pessoa. Sim, eu acredito que a Generys tinha um amante. Um amante digno de ser amado, disse ela. Eu espero, de todo o meu coração que ele tenha demonstrado sê-lo.

 

Durante as cerimónias, serviços religiosos e leituras do dia de Santa Winifred, uma parte da mente de Cadfael, persistente e sem arrependimento, ocupou-se, muito contra a sua vontade, com assuntos que não tinham nada a ver com a adoração genuína que ele sentia pela sua santa especial e em quem ele pensava sempre como ela era quando a sua primeira e breve vida fora tão brutalmente ceifada: uma rapariga de cerca de dezassete anos, fresca, bela e radiosa, a transbordar de generosidade e doçura, tal como as águas da sua fonte eram sempre límpidas e puras, desafiando a geada, irradiando saúde do corpo e da alma. Ele gostaria que a mente estivesse totalmente ocupada com ela durante todo este dia, mas ela virava-se obstinadamente para o anel do Ruald, para o pálido círculo do dedo do qual Generys o arrancara, abandonando-o tal como ele a abandonara.

Tornava-se cada vez mais claro que tinha havido, de facto, outro homem. Ela tinha-se ido embora com ele e tinha-se instalado, ao que parecia, em Peterborough ou algures nessa região, talvez um local ainda mais exposto às atrocidades dos bárbaros de De Mandeville. E quando o reinado de assassínio e terror começou, ela e o seu homem tinham arrancado as suas raízes recentes, pouco profundas, transformado tudo o que tinham de valioso em dinheiro e tinham-se afastado ainda para mais longe da ameaça, deixando para trás o anel que Sulien encontrara e trouxera para casa consigo, ilibando Ruald. Todas as palavras que ele dissera perante o altar nessa manhã tinham o carimbo da sinceridade. Por isso, muito dependia agora da questão de quarenta milhas entre Cambridge e Peterborough. Não era, afinal, uma distância muito pequena mas, se tudo corresse bem com os assuntos do rei e este decidisse dispensar uma força que poderia ser melhor empregue a vigiar o Conde de Chester, uma passagem por Peterborough não iria tornar muito mais longo o caminho de regresso a casa.

E se a resposta fosse afirmativa, confirmando todas as palavras da história de Sulien, então Generys estava, de facto, viva, e não abandonada à solidão, e a mulher morta do Campo do Oleiro ainda permaneceria à deriva, sem nome. Mas, nesse caso, porque é que Sulien se empenhara tão resolutamente em provar que Britric, que não lhe era nada, estava tão inocente como Ruald? Como é que ele poderia ter sabido e porque é que teria concebido a possibilidade de o vendedor ambulante estar inocente? Ou de a mulher Gunnild estar viva, ou de ela poder sequer estar viva?

E se a resposta fosse negativa, e Sulien não tivesse passado a noite com o ourives em Peterborough, nunca lhe tivesse pedido o anel, mas tivesse inventado a história para defender Ruald perante todos os seus irmãos e tivesse apoiado a história num anel que sempre tivera em sua posse, então certamente que ele estava a tecer uma corda para o seu próprio pescoço enquanto se ocupava a desatar os nós de outrém.

Mas por enquanto não havia resposta, nem qualquer forma de a apressar, e Cadfael fez o possível por prestar atenção ao ofício religioso, mas passou a festa de Santa Winifred em pensamentos distraídos. Nos dias que se seguiram, ele trabalhou conscientemente no herbário mas sem a sua vigorosa concentração habitual, e foi taciturno e ligeiramente distraído com o Irmão Winifred, cuja placidez de temperamento e apetite juvenil para o trabalho felizmente lhe permitiam conviver com as mudanças de disposição dos outros homens sem perder o seu próprio equilíbrio.

Agora que começou a pensar na primeira parte do calendário de Novembro, pareceu a Cadfael que este estava ocupado sobretudo por santos galeses. Ruald lembrara-lhe que o sexto dia era dedicado a Santo Illtud que tinha obedecido ao seu anjo ditatorial com tanta presteza e tão pouca consideração pelos sentimentos da sua mulher. Talvez, nas casas inglesas, não lhe fosse prestada grande devoção, mas São Tysilio, cujo dia era celebrado no dia oito, tinha um significado bastante especial aqui perto de Powys, e a sua influência atravessava a fronteira para os condados das redondezas. Pois o centro do seu ministério era a igreja principal de Powys em Meifod, Gales, não muito longe da fronteira, e o santo tinha a fama de ter possuído virtudes militares, bem como sagradas, e de ter combatido ao lado dos cristãos na batalha de Maserfield, perto de Oswestry, onde o santo real, Oswald, foi capturado e martirizado pelos pagãos. Por isso o seu dia era celebrado com algum respeito, e um número considerável de galeses da cidade e de Foregate vinham à missa nessa manhã. Mas, apesar de tudo isso, Cadfael não estava nada à espera da presença de alguém vindo de tão longe.

Ela chegou a cavalo à casa do portão, algum tempo antes da missa, montada atrás de um cavalariço idoso, e foi içada e colocada respeitosamente no empedrado por um cavalariço mais novo que vinha atrás num segundo cavalo robusto, com a criada Gunnild empoleirada atrás dele. As duas mulheres ficaram um momento a sacudir as saias antes de se dirigirem recatadamente à igreja, a dama à frente, a criada atenciosa um passo atrás dela, enquanto os cavalariços diziam algumas palavras ao porteiro e levavam os cavalos para o pátio do estábulo. Era o quadro perfeito de uma jovem que agia de acordo com todas as sanções sociais que impunham regras ao seu porte e movimentos, com a criada como guardiã e dama de companhia, e os cavalariços como acompanhantes. Pernel estava a certificar-se de que esta saída do seu ambiente natural seria demasiado correcta em todos os pormenores para provocar comentários. Ela poderia ser a mais velha dos irmãos em Withington mas ainda era muito nova, e era imperativo moderar com cautela a sua franqueza e ousadia. Tinha que se admitir que ela o fez com considerável estilo e graça, e tinha uma cúmplice admirável em Gunnild. Elas atravessaram o pátio com as mãos cruzadas e os olhos baixos, com um ar de modéstia, e desapareceram no interior da igreja pela porta sul sem se arriscarem a cruzar o olhar com qualquer dos celibatários que circulavam pelo pátio e pelo claustro à volta delas.

- Se ela tem em mente aquilo que eu penso que tem -, reflectiu Cadfael, vendo-as avançar -, ela vai precisar de toda a experiência mundana de Gunnild para apoiar o seu próprio bom senso e determinação. E eu acho que a mulher lhe é dedicada e será um formidável dragão protector se alguma vez houver necessidade disso.

Ele viu-a outra vez de relance quando entrou na igreja com os irmãos e tomou o seu lugar no coro. A nave estava cheia de leigos, alguns de pé ao lado do altar da paróquia, de onde podiam ver o altar-mor no seu interior, outros agrupavam-se à volta das colunas redondas que sustentavam a abóbada. Pernel estava ajoelhada no local em que a luz que passava pela abertura do coro iluminado incidia, por acaso, no seu rosto. Tinha os olhos fechados e os lábios imóveis.

As suas orações não eram em palavras. Tinha um ar muito grave, vestida austeramente para assistir à missa, com o suave cabelo castanho escondido por uma touca branca e o capuz do manto por cima, pois dentro da igreja não estava nada quente. Ela parecia uma freira noviça muito jovem, o seu rosto redondo tinha um ar mais infantil do que nunca, mas os seus lábios possuíam uma impressionante firmeza adulta. Atrás dela, estava ajoelhada Gunnild e os seus olhos, embora semivelados por longas pestanas, estavam abertos e brilhantes, fixando a dama com uma expressão de posse. Mal de quem tentasse afrontar Pernel Otmere enquanto a sua aia estivesse por perto!

Depois da missa, Cadfael tentou vê-las de novo, mas elas estavam escondidas no meio da massa de gente que se agrupava lentamente para sair pela porta oeste. Ele saiu pela porta sul e pelos claustros e emergiu no pátio, onde a encontrou tranquilamente à espera que a procissão dos irmãos dispersasse para ir às suas diversas tarefas. Ele não ficou surpreendido quando, ao vê-lo, o rosto dela se animou e os olhos se iluminaram, e ela deu um passo na direcção dele, o suficiente para o fazer parar.

- Irmão, posso falar consigo? Eu pedi autorização ao senhor abade. - A voz dela soou prática e decidida, mas parecia que não tinha arriscado a mais pequena indiscrição. - Tive a ousadia de me dirigir a ele há pouco, quando saiu - disse ela. - Parece que ele já sabia o meu nome e o da minha família. Isso só podia ter vindo de si, suponho.

- O Pai Abade está bem informado sobre a questão que me levou a visitá-la - disse Cadfael. - Ele está preocupado com a justiça, tal como todos nós. Para com os mortos e para com os vivos. Ele não se vai opor a qualquer conversa que possa servir esse fim.

- Ele foi generoso - disse ela, sorrindo subitamente. - E agora que observámos todas as formalidades adequadas, posso voltar a respirar. Onde é que podemos conversar?

Ele levou-as à sua oficina no herbário. Estava a ficar demasiado frio para ficarem a conversar ao ar livre, a sua braseira estava acesa mas abafada no interior e, com as portas de madeira abertas, o Irmão Winfrid a cavar o último canteiro antes do Inverno no exterior da muralha do enclave e Gunnild a uma discreta distância, nem sequer o Prior Robert teria erguido as sobrancelhas quanto à correcção desta conversa. Pernel tinha sido sensata ao pedir autorização directamente ao seu superior que já tinha conhecimento do papel que ela desempenhara e não tinha seguramente qualquer razão para a censurar. Não tinha ela feito tanto para salvar um corpo e uma alma? E ela tinha trazido o corpo, senão visivelmente a alma, para lhe mostrar.

- Agora - disse Cadfael atiçando a braseira de modo a que esta mostrasse um pouco de brilho vermelho por entre a turfa - sentem-se as duas e estejam à vontade. E diga-me o que tem em mente, o que a fez vir cá rezar quando, eu sei, tem a sua própria igreja e padre. Eu sei, pois ela pertence, tal como Upton, a esta casa de São Pedro e São Paulo. E o seu padre é um homem excelente e um estudioso; sei isso pelo Irmão Anselmo, que é amigo dele.

- De facto, é - disse Pernel com veemência -, e não pense que eu não conversei com ele muito a sério sobre esta questão. - Ela tinha-se sentado decorosamente a um extremo do banco encostado à parede, muito composta e direita, com o rosto luminoso contra a madeira escura e o capuz caído sobre os ombros. Gunnild, convidada com um sorriso e um gesto, saiu das sombras e sentou-se no outro extremo do banco, deixando um espaço discreto entre as duas para assinalar a diferença no seu estatuto, mas não demasiado grande, para sublinhar a profundidade da aliança com a sua dama. - Foi o padre Ambrosius que disse a palavra que me trouxe aqui hoje - disse Pernel. - O Padre Ambrosius estudou alguns anos na Bretanha. O Irmão sabe que santo celebramos hoje?

- Tenho obrigação de saber - disse Cadfael, largando o fole que tinha provocado um brilho vermelho na braseira. - Ele é tão galês como eu, e um vizinho muito próximo deste condado. O que é que tem o São Tysilio?

- Mas sabia que se diz que ele foi para a Bretanha para fugir à perseguição de uma mulher? E na Bretanha eles também contam a sua vida, como nas leituras que irá ouvir hoje na Colação. Mas eles conhecem-no por outro nome. Chamam-lhe Sulien.

- Oh, não - disse ela vendo o olhar especulativo que Cadfael lhe lançava -, quando o Padre Ambrosius me disse isso, eu não o considerei um sinal do céu. Foi só que o nome me incitou a agir, quando antes eu me limitava a interrogar-me a mim própria e a impacientar-me. Porque não no seu dia? Porque eu acho que o Irmão pensa que Sulien Blount não é o que aparenta ser, não é tão franco como parece. Eu tenho estado a pensar e interrogar-me sobre essa questão. Acho que as coisas estão a tomar um rumo em que ele poderá ser suspeito de saber demasiado sobre este assunto da mulher morta que o seu arado encontrou no Campo do Oleiro, debaixo do promontório. De saber demasiado, talvez até de ser culpado. É verdade?

- De saber demasiado, certamente - disse Cadfael. - Quanto à culpa, isso é uma mera conjectura, no entanto existem motivos de suspeita. - Ele devia-lhe sinceridade, e era isso que ela esperava dele.

- Importa-se de me contar a história toda? - disse ela. - Eu só sei o que se diz por aí. Deixe-me compreender o perigo que ele poderá correr. Culpado ou não, ele não iria permitir que outro homem arcasse com as culpas injustamente.

Cadfael contou-lhe a história toda, desde o primeiro sulco aberto pelo arado da abadia. Ela ouviu atentamente, com um ar sério, pensativo, e a testa redonda franzida. Ela não podia pensar, nem pensava mal do jovem que a tinha visitado com um objectivo tão generoso, mas também não ignorava os motivos por que outros pudessem duvidar dele. No fim, ela respirou longa e suavemente, e mordeu o lábio por um momento, reflectindo.

- O Irmão acredita que ele é culpado? - perguntou ela sem rodeios.

- Eu acredito que ele sabe coisas que não quis revelar. Não direi mais do que isso. Tudo depende de ele nos ter dito a verdade sobre o anel ou não.

- Mas o Irmão Ruald acredita nele? - perguntou ela.

- Sem qualquer dúvida.

- E ele conhece-o desde criança.

- E pode ser parcial - disse Cadfael, sorrindo. - Mas sim, ele conhece melhor o rapaz que eu ou a Pernel, e obviamente que não espera dele nada que não seja a verdade.

- E eu também não. Mas há uma coisa que me faz pensar - disse Pernel num tom muito sério. - O Irmão diz que pensa que ele tinha conhecimento deste assunto antes de ir a casa, embora ele tivesse dito que só tinha ouvido falar dele lá. Se o Irmão tiver razão, e se ele tiver sabido pelo Irmão Jerome antes de ter pedido autorização para visitar Longner, porque é que ele não mostrou imediatamente o anel e contou o que tinha a contar? Porque é que ele esperou até ao dia seguinte? Quer tivesse obtido o anel da forma que disse, quer já o tivesse na sua posse muito antes, ele podia ter poupado a Ruald mais uma noite de infelicidade. Ele parece ser uma pessoa muito boa, porque é que ele deixaria um homem sofrer durante mais uma hora do que o necessário, quanto mais um dia?

Este era um pensamento que Cadfael tivera no fundo da sua mente desde aquela ocasião, mas não sabia a que conclusão chegar. Se a mente de Pernel mantinha em dúvida essa mesma reserva, deixá-la falar por ele e sondar para além de onde ele ainda não quisera ir. Ele disse simplesmente:

- Ainda não me debrucei sobre isso. Implicaria fazer perguntas ao Irmão Jerome, o que eu detestaria fazer antes de estar mais seguro do terreno. Mas só consigo pensar numa razão. Por algum motivo, ele quis preservar a aparência de só ter ouvido falar no caso quando fez a visita a Longner.

- Porque é que ele haveria de querer fazer isso? - contrapôs ela.

- Suponho que talvez quisesse falar com o irmão antes de se comprometer com alguma coisa. Ele estivera ausente durante mais de um ano, certamente que queria assegurar-se de que a sua família não estava a ser ameaçada por uma questão de que ele acabara de ter conhecimento. Naturalmente que atenderia aos interesses dos familiares, tanto mais que há tanto tempo que não os via.

Ela concordou com as palavras dele, com um pensativo e enfático aceno de cabeça.

- Sim, ele faria isso. Mas eu consigo pensar noutra razão para ele ter protelado, e tenho a certeza de que o Irmão também está a pensar nela.

- E essa é?

- Que ele não o tinha consigo e não o podia mostrar antes de ir a casa buscá-lo - disse Pernal com firmeza.

Ela tinha, na verdade, falado franca e intrepidamente, e Cadfael não pôde deixar de admirar a sua sinceridade. Ela acreditava piamente que Sulien estava isento de qualquer sombra de culpa, o seu único objectivo era prová-lo ao mundo, mas a sua confiança na eficácia da verdade levava-a a ir com determinação atras dela, certa de que, quando a encontrasse, ela estaria do seu lado.

- Eu sei - disse ela -, que estou a usar argumentos que parecem ser prejudiciais para ele mas, no fim, não podem ser, porque eu tenho a certeza de que ele não fez nada de mal. Temos que estudar todas as possibilidades. Eu sei que o Irmão disse que o Sulien estava apaixonado por aquela mulher, que ele próprio lho dissera, e se ela, de facto, despeitada com o marido, deu o anel a outro homem, ela podia realmente tê-lo dado ao Sulien. Mas, ao mesmo tempo, podia tê-lo dado a outra pessoa. E embora eu não queira retirar a maldição de cima de um homem lançando-a sobre outro, o Sulien não era o único jovem que vivia perto do oleiro e que poderia sentir-se atraído por uma mulher que todos dizem que era bela. Se Sulien sabe alguma coisa que não pode revelar, ele tanto poderá estar a escudar um irmão como a proteger-se a si próprio. Eu não acredito - disse ela com veemência -, que não tenha pensado nessa possibilidade.

- Tenho pensado em muitas possibilidades - concordou Cadfael placidamente -, sem grande coisa no que diz respeito a factos para apoiar qualquer delas. Sim, porque ele pode estar a mentir por causa de si próprio ou do irmão. Ou do Ruald. Mas só ele sabe, tão seguramente como é certo que o sol vai nascer amanhã, que a nossa pobre mulher morta é, de facto, a Generys. E não se esqueça que existe também a possibilidade, um tanto diminuída desde os seus esforços para ilibar Britric, de ele não estar a mentir, de a Generys estar, de facto, viva e bem de saúde, algures no leste, com o homem que decidiu seguir. E nós podemos nunca vir a saber quem era a mulher de cabelo escuro que alguém enterrou com reverência no Campo do Oleiro.

- Mas o Irmão não acredita nisso - disse ela com segurança.

- Eu penso que a verdade, tal como um bolbo plantado no solo, por mais fundo que esteja, acabará por conseguir chegar à luz.

- E não há nada que possamos fazer para o apressar - disse Pernel com um sorriso resignado.

- De momento, nada a não ser esperar.

- E rezar, talvez?

Mesmo assim, Cadfael não podia deixar de perguntar a si próprio o que iria ela fazer a seguir, pois a inacção era-lhe insuportavelmente enervante, agora que toda a sua energia estava dirigida para o jovem que vira apenas uma vez. Não havia forma de saber se Sulien lhe tinha prestado uma atenção igual mas, na mente de Cadfael, mais cedo ou mais tarde ele teria que o fazer, pois ela não tinha qualquer intenção de voltar atrás. Ele também pensou que o rapaz podia sair-se muito pior. Isto é, se ele saísse daquela teia de mistério e engano com o corpo inteiro e uma mente tranquila, algo que, de momento, ele certamente não possuía.

De Cambridge e dos Fens não havia quaisquer notícias. Ninguém estava à espera de notícias tão cedo. Mas os viajantes vindos do leste relatavam que o tempo estava a ficar mau, com chuvas fortes e as primeiras geadas do Inverno. Não era uma perspectiva atraente para um exército atolado em extensões de água que não lhes eram familiares mas que eram conhecidas do esquivo inimigo. Cadfael recordou-se da promessa que fizera a Hugh que, nesta altura, estava ausente há mais de uma semana, e pediu autorização para ir à cidade visitar Aline e o seu afilhado. O céu estava muito nublado, o tempo de leste estendia-se gradualmente a Shrewsbury numa chuva muito fina, pouco mais que uma neblina, que se agarrava ao cabelo e às fibras da roupa, e mal escurecia a terra cinzenta escura de Foregate. No Campo do Oleiro, o cereal de Inverno já tinha sido plantado, e haveria gado a pastar na faixa inferior de pastagem. Cadfael ainda não voltara lá para o ver com os seus próprios olhos, mas via-o muito claramente com a sua visão interior, o solo escuro, rico, que em breve faria brotar uma nova vida; turfa verde, húmida, e o promontório coberto de urze sob a crista de arbustos e árvores. O facto de ter outrora contido uma sepultura não abençoada em breve seria esquecido. O dia cinzento e suave era propício à melancolia. Foi um prazer e um alívio passar o portão do quintal do Hugh e ser recebido e abraçado à volta dos joelhos por um rapazinho exuberante que o cumprimentou com gritos de alegria. Dentro de cerca de um mês, Giles faria quatro anos. Ele agarrou o hábito de Cadfael e puxou-o alegremente para dentro de casa. Com Hugh ausente, Giles era o homem da casa, bem consciente dos seus deveres e privilégios. Ele pôs à disposição de Cadfael as comodidades da sua casa senhorial com solene dignidade, sentou-o cerimoniosamente e dirigiu-se à despensa para ir buscar uma caneca de cerveja demasiado cheia e em risco de entornar, segurando-a cuidadosamente com as duas mãos infantis, ainda rechonchudas, com o cabelo louro erecto e despenteado e a ponta da língua a um canto da boca. A sua mãe seguiu-o até ao salão a uma distância discreta para evitar perturbar-lhe o equilíbrio ou a dignidade. Ela sorria para Cadfael por cima da cabeça loira do seu filho, e subitamente a radiante semelhança entre eles reluziu sobre Cadfael como o sol a explodir do meio das nuvens. O rosto redondo, sério, com as faces infantis cheias, e o oval puro com a testa larga e queixo afunilado, tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão parecidos, tinham a mesma cor pálida, lustrosa e pele macia, os traços refinados e olhar firme. O Hugh é, de facto, um homem de sorte, pensou Cadfael, fazendo seguidamente uma oração supersticiosa para que a sorte continuasse a seu lado, onde quer que ele estivesse naquele momento.

Se Aline tinha algumas apreensões, estas não estavam autorizadas a manifestar-se. Como sempre, ela sentou-se alegremente ao lado dele e conversou, com o seu bom senso habitual, sobre questões da casa e assuntos do castelo sob a administração de Alan Herbard; e Giles, em vez de subir para o colo do padrinho como teria feito algumas semanas antes, sentou-se ao lado dele no banco como um homem da mesma idade.

- Sim - disse Aline -, um arqueiro da companhia chegou cá esta tarde, foram as primeiras notícias que tivemos. Ele ficou ferido numa escaramuça e, uma vez que conseguia montar e eles tinham deixado mudas de cavalos ao longo do caminho, o Hugh mandou-o voltar para casa. Ele vai sarar bem, diz o Alan, mas o seu braço está mais fraco.

- E como estão eles? - perguntou Cadfael. - Conseguiram levar Geoffrey para campo aberto?

Ela abanou a cabeça com veemência.

- Há muito pouca probabilidade de o fazerem. A água subiu em todo o lado, e continua a chover. A única coisa que eles podem fazer é ficar à espera dos bandos quando eles saem para saquear as aldeias. Até mesmo aí o rei está em desvantagem, uma vez que os homens de Geoffrey conhecem todos os trilhos transitáveis, e eles podem muito facilmente atolar-se nos pântanos. Mas eles apanharam alguns desses pequenos grupos. Não é que o Stephen quer, mas é tudo o que ele consegue ter. Ramsey está praticamente isolada, não há esperança de os fazer sair de lá.

- E esta enfadonha questão de fazer emboscadas e ficar à espera - disse Cadfael -, desperdiça demasiado tempo. O Stephen não pode dar-se ao luxo de manter esse tipo de acção durante muito tempo. Dispendiosa e ineficaz como é, ele vai ter que se retirar e tentar outra coisa. Se o número de seguidores de Geoffrey aumentou assim tanto, ele deve estar a obter mantimentos de outros locais para além das Aldeias dos Fens. As suas linhas de abastecimento poderão ser vulneráveis. E o Hugh? Está bem?

- Molhado, cheio de lama e de frio, acho eu - disse Aline, sorrindo pesarosamente -, e provavelmente a praguejar violentamente, mas está bem e inteiro ou, pelo menos, estava quando o arqueiro o deixou. Esta questão enfadonha, como lhe chamaste, tem uma coisa boa, as baixas que tem havido têm sido do lado de De Mandeville. Mas são demasiado escassas para o prejudicar grandemente.

- Não o suficiente para valer a pena o rei perder muito mais tempo - disse Cadfael, pensativo. - Eu penso, Aline, que não vais ter que esperar muito tempo para teres o Hugh novamente em casa.

Giles encostou-se um pouco mais e aninhou-se ao lado do padrinho, mas não disse nada.

- E vós, meu senhor, tereis que voltar a entregar a vossa casa senhorial e dar contas da vossa administração - disse Cadfael. - Eu espero que não tenhais permitido que as coisas tivessem saído fora dos eixos enquanto o xerife esteve ausente.

O substituto de Hugh emitiu um pequeno som, indicando o seu desdém pela mera ideia de que a sua rígida governação pudesse ser posta em causa.

- Eu sou bom nisto - disse ele com firmeza. – É o que o meu pai diz. Ele diz que eu mantenho uma rédea mais curta do que ele. E que uso mais as esporas.

- O teu pai - disse Cadfael num tom grave -, é sempre justo, até mesmo para com aqueles que são melhores do que ele. - Através de uma espécie de alquimia de proximidade e afecto, ele teve consciência do sorriso que Aline não permitia que se notasse no seu rosto.

- Especialmente para com as mulheres - disse Giles num tom complacente.

- Isso, posso muito bem acreditar - disse Cadfael.

A tenacidade do Rei Stephen em qualquer empreendimento sempre tinha sido precária. Não era a falta de coragem, certamente, nem sequer a falta de determinação, que o levava a retirar os cercos após apenas alguns dias e correr para um ataque mais promissor. Era mais a impaciência, o optimismo frustrado e o facto de detestar estar inactivo que o levavam a abandonar o empreendimento.

Ocasionalmente, como em Oxford, se a situação oferecesse uma esperança razoável de um triunfo final, ele conseguia obrigar-se a si próprio a persistir mas, quando o impasse era óbvio, depressa se cansava e partia para campos frescos. Nas chuvas invernosas dos Fens, a ira e o ódio pessoal mantiveram-no constante durante mais tempo do que o habitual, mas os seus êxitos eram parcos e, na última semana de Novembro, ocorreu-lhe que não podia ter esperança de terminar o seu trabalho. Aos tropeções na lama daquelas planícies tristes, as suas forças tinham seguramente feito o cerco com método e força suficientes para comprimir o território de De Mandeville e tinham apanhado um número razoável de soldados meliantes quando estes se aventuravam a sair para terras mais secas, mas era óbvio que o inimigo tinha bastantes mantimentos e poderia até mesmo abster-se de sair para roubar durante algum tempo. Não havia esperança de os fazer sair do seu buraco. Stephen mudou de política com o vigor instantâneo que conseguia encontrar quando precisava. Ele queria que os seus tributos feudais, especialmente os que tinham vindo de regiões potencialmente vulneráveis, tais como as que ficavam próximas de Gales ou de amigos dúbios como o Conde de Chester, voltassem para onde eram mais úteis. Ali nos Fens, ele propôs-se comandar um exército constituído mais por construtores do que por soldados, formar um anel de praças fortes, ligeiras mas bem colocadas, para delimitarem o território dos criminosos, comprimindo-o ainda mais onde isso fosse possível e ameaçando as linhas exteriores de abastecimento de Geoffrey quando os seus mantimentos diminuíssem. Guarnecidas pelos experientes mercenários flamengos, familiarizados com combates em terras planas e entre cursos de água complexos, este anel de praças fortes poderia manter o que tinha sido conseguido durante o Inverno, até as condições serem mais favoráveis para manobras em campo aberto.

Aproximava-se o fim de Novembro quando Hugh e os seus soldados receberam uns breves agradecimentos e foram dispensados. Ele não tinha perdido nenhum dos seus homens e tinha algumas pequenas feridas e arranhões, e ficou muito satisfeito por retirar os seus homens dos lamaçais em redor de Cambridge e partiu com eles para noroeste em direcção a Huntington, onde o castelo real tinha mantido a cidade relativamente segura e as estradas abertas. A partir daí, ele mandou-os prosseguir para oeste, para Kettering, e cavalgou para norte, com destino a Peterborough.

Até ter atravessado a ponte do Nené e ter entrado na cidade, ele não tinha parado para pensar no que esperava encontrar ali. Era melhor, talvez, abordar a questão sem expectativas de espécie alguma. A partir da ponte, a estrada levou-o até ao mercado, que estava animado e movimentado. Os burgueses que tinham decidido ficar haviam tido razão, pois até agora a cidade era demasiado forte para constituir uma tentação para De Mandeville enquanto este conseguisse encontrar vítimas mais isoladas e indefesas. Hugh encontrou um estábulo para o cavalo e foi a pé à procura de Priestgate.

A loja estava lá, pelo menos havia lá uma ourivesaria, aberta aos fregueses e mostrando uma próspera frente ao mundo. Esta era a primeira confirmação. Hugh entrou e perguntou pelo Mestre John Hinde a um jovem que estava sentado a trabalhar ao fundo da loja, debaixo de uma janela que iluminava a sua banca de trabalho. O nome foi recebido jovialmente, e o jovem pousou as suas ferramentas e saiu por uma porta traseira para chamar o seu mestre. Não havia aqui qualquer questão de discrepância, a loja e o homem estavam ali, tal como Sulien os deixara quando partira de Ramsey em direcção a oeste.

O Mestre John Hinde surgiu atrás do seu ajudante, vindo dos seus aposentos privados. Era claramente um homem de substância na cidade que poderia muito bem ser um bom benfeitor da sua casa religiosa favorita e gozar de excelentes relações com os abades. Tinha cerca de cinquenta anos de idade e era uma figura magra, activa e erecta, vestida com uma túnica rica debruada a pele. Os olhos escuros vivos num rosto magro determinado observaram Hugh num relance.

- Eu sou John Hinde. Em que lhe posso ser útil? - As marcas da cansativa espera à chuva, das emboscadas varridas pelo vento e das ocasionais cavalgadas velozes em campo aberto eram patentes nas roupas e nos arreios de Hugh. - O senhor é soldado do rei? Ouvimos dizer que ele vai retirar o exército. Espero que não seja para deixar o campo livre para De Mandeville.

- Não se trata disso - garantiu-lhe Hugh -, embora eu tenha sido mandado regressar para tomar conta do meu próprio campo. Não, a nossa partida não vos afectará, os flamengos estarão entre vós e o perigo, com pelo menos uma praça forte bem colocada para os encurralar na ilha. Ele pouco mais pode fazer agora, com o Inverno a chegar.

- Bem, onde quer que estejamos, nós vivemos como velas sopradas por Deus - disse o ourives filosoficamente. - Eu tenho consciência disso há demasiado tempo para me assustar facilmente. E de que necessita, sr., antes de se dirigir para casa?

- Recorda-se - disse Hugh -, de, por volta do dia um ou dois de Outubro, um jovem monge ter procurado abrigo e passado a noite em sua casa? Foi logo a seguir ao saque de Ramsey, o rapaz vinha de lá, recomendado a si, segundo ele disse, pelo seu abade. O Abade Walker mandou-o para a casa do irmão dele em Shrewsbury, para dar notícias de Ramsey ao longo do caminho. Recorda-se dele?

- Claramente - disse John Hinde, sem hesitar. - Ele estava mesmo no fim do seu noviciado. Os irmãos estavam a espalhar-se, por uma questão de segurança. Nenhum de nós esquecerá facilmente essa época. Eu quis emprestar um cavalo ao rapaz para as primeiras milhas, mas ele disse que era melhor ir a pé, pois eles estavam por toda a região, como um enxame de abelhas. Que há sobre ele? Espero que tenha chegado são e salvo a Shrewsbury?

- Chegou, e deu as notícias nos locais por que passou. Sim, ele está bem, embora tenha deixado a Ordem e voltado para a casa senhorial do irmão.

- Ele disse-me que tinha dúvidas se estava no caminho certo - concordou o ourives. - O Walter não era homem para manter um jovem contra a sua inclinação. Então que mais lhe posso dizer sobre esse jovem?

- Lembra-se - perguntou Hugh lentamente -, se ele reparou num determinado anel que estava na sua loja? E se ele fez algum comentário a respeito dele e inquiriu sobre a mulher a quem o senhor o tinha comprado cerca de dez dias antes? Um anel de prata simples com uma pequena pedra amarela e umas iniciais gravadas no interior? E se ele lho pediu porque conhecia bem a mulher desde que era criança, e ainda lhe dedicava afecto? Alguma coisa destas é verdadeira?

Houve um longo momento de silêncio enquanto o ourives o fitava, olhos nos olhos, e a especulação inteligente acentuava as linhas magras do seu rosto. É possível que ele estivesse a pensar em esquivar-se a quaisquer outras confidências, por não saber quais seriam as consequências das suas respostas para um jovem que, talvez sem qualquer culpa, se tivesse visto enredado nalgum infortúnio. Os homens de negócios aprendem a evitar confiar em demasiadas pessoas demasiado depressa. Mas, se foi esse o caso, ele pôs de parte o impulso de negar depois de ter estudado atentamente Hugh e de ter chegado, ao que parecia, a uma conclusão.

- Entre! - disse ele então, com igual lentidão e igual certeza. E voltou-se para a porta da qual tinha emergido, convidando Hugh com um gesto. - Entre! Conte-me mais. Agora que já fomos até aqui, podemos ir mais longe juntos.

 

Sulien tinha despido o hábito, mas não era fácil abandonar a ordem das horas que o acompanhava. Ele dava por si a acordar à meia noite para as Matinas e para as Laudas e ficava à espera da campainha, sentindo-se perturbado e surpreendido pelo silêncio onde devia haver a sensação de muitos irmãos a mover-se e a suspirar, um murmúrio suave de vozes a acordar os que tinham o sono pesado e, na escuridão ao cimo das escadas nocturnas, o brilho da pequena lamparina para os alumiar, permitindo-lhes descer em segurança até à igreja. Até mesmo a liberdade da sua própria roupa lhe era ainda desconfortável, depois de ter andado de saias durante um ano. Ele tinha renunciado a uma forma de vida sem conseguir retomar a antiga no ponto em que a abandonara, e começar de novo constituía um esforço e sofrimento inesperados. Além disso, as coisas em Longner tinham mudado desde a sua partida para Ramsey. O irmão estava casado com uma mulher jovem, instalado na sua senhoria e feliz com a perspectiva de um herdeiro, pois Jehane estava grávida. As terras da casa Longner eram propriedades razoáveis, mas não suficientemente grandes para sustentar duas famílias, mesmo que essa partilha tivesse sido alguma vez prometida, e um filho mais novo teria que arranjar uma vida independente para si próprio, como os irmãos mais novos sempre se tinham visto obrigados a fazer. Ele tinha experimentado e abandonado o mosteiro. A sua família mostrar-se-ia tolerante e paciente até ele conseguir encontrar o seu caminho. Eudo era o mais franco e amável dos irmãos, e gostava muito dele. Sulien poderia levar o tempo que quisesse e, até se ter decidido, Longner era a sua casa, satisfeita de o ter de volta.

Mas ninguém podia ter a certeza de que Sulien estivesse satisfeito. Ele ocupava os seus dias com o trabalho que havia para fazer nos estábulos e nas estrebarias, a exercitar falcões e cães, a ajudar com os borregos e o gado bovino nos campos, a transportar madeira para a reparação das cercas e para combustível, onde quer que fosse necessário ajudar ele estava disposto a fazê-lo, como se tivesse armazenado dentro de si tamanha tensão de energia que tinha que a gastar, caso contrário adoeceria.

Dentro de casa, ele era uma pessoa calada mas, afinal, ele sempre tinha sido o mais sossegado. Era gentil e atencioso para com a mãe e suportava estoicamente horas na sua presença angustiada, o que Eudo tendia a evitar sempre que podia. O controlo inflexível com que ela escondia todos os sinais de dor era admirável, mas quase mais difícil de suportar do que o sofrimento visível. Sulien ficava admirado e suportava com ela, uma vez que não podia fazer mais nada por ela. E ela era afável e digna, mas não era possível saber se a companhia dele lhe agradava, ou se apenas adicionava mais uma dimensão ao seu sofrimento. Ele sempre pensara que o Eudo era o seu preferido e tinha a parte de leão do seu amor. Essa era a ordem normal das coisas, e Sulien não via nada de errado nisso.

Eudo e Jehane mal reparavam na sua abstracção e silêncio. Eles estavam a reproduzir-se, eram felizes; para eles a vida era cheia e agradável, e achavam natural que um jovem que tinha desperdiçado um ano inteiro de vida numa vocação que reconsiderara mesmo a tempo, passasse as primeiras semanas de liberdade a reflectir bastante sobre o seu futuro. Por isso, deixavam-no entregue aos seus pensamentos, forneciam-lhe o trabalho árduo de que ele parecia precisar e aguardavam, com um afecto indulgente, que ele emergisse a seu devido tempo.

Um dia, em meados de Novembro, ele saiu a cavalo com ordens para o pastor de Eudo nos campos distantes a leste de Longner, ao longo do Rio Tern, quase em Upton e, tendo cumprido a sua tarefa, deu meia volta para voltar para trás e depois, em vez disso, volteou o cavalo e prosseguiu muito lentamente, mal sabendo o que tinha em mente. Não havia pressa, toda a sua azáfama não conseguia convencê-lo de que a sua presença era necessária em casa e o dia, embora nublado, estava seco, e o ar ameno. Ele continuou a cavalgar, afastando-se gradualmente da margem do rio, e só quando chegou ao cimo da ligeira crista que era o ponto mais elevado daqueles campos planos é que compreendeu para onde se dirigira. A sua frente, não muito longe, através de uma frágil filigrana de ramos nus, viam-se os telhados de Withington, e a torre baixa e quadrada da igreja erguia-se acima do bosquete de árvores pequenas.

Ele não compreendera como, desde a sua visita, ela estivera constantemente na sua mente profundamente alojada na sua memória, discreta mas sempre presente. Agora bastava-lhe fechar os olhos e ele conseguia ver o seu rosto tão claramente como quando ela ouvira o som dos cascos do seu cavalo no chão duro do pátio, e se virara para ver quem chegava. A própria maneira como ela parara e se virara para ele fora como uma flor a oscilar ao mais leve vento, e o rosto que ela erguera para ele era aberto como uma flor, sem reservas nem receios, pelo que, nesse primeiro olhar, ele parecera ver bem no interior dela. Como se a sua carne, embora redonda, cheia e firme, fosse translúcida no seu exterior e luminosa no interior. Naquele dia tinha havido uma pálida luz do sol, e esta tinha ganho intensidade nos olhos dela, olhos castanhos dourados, e reflectia luz da sua testa larga sob o macio cabelo castanho. Ela sorrira-lhe com a mesma amável intensidade, irradiando à sua volta um calor que dissolveu o frio da ansiedade da sua mente e do seu coração, ela que nunca o vira antes e que não deveria voltar a vê-lo ou a pensar nele.

Mas, consciente ou inconscientemente, ele pensara nela.

Ele mal se apercebera de que ainda estava a cavalgar em direcção à orla mais distante da aldeia, onde se situava a casa senhorial. A linha da cerca elevava-se dos campos, o íngreme declive do telhado no interior, o padrão de faixas de terreno para além do recinto, um terreno quadrado com árvores de fruto, todas colhidas e quase sem folhas. Ele tinha atravessado o primeiro riacho quase sem se dar conta, mas o segundo, tão próximo agora do portão aberto da cerca da casa senhorial, fê-lo parar subitamente e reflectir sobre o que ia fazer e não devia, não tinha o direito de fazer.

Ele conseguia ver o pátio no interior da cerca, e o rapaz mais velho a conduzir cuidadosamente um pónei em círculos decorosamente uniformes, com uma rapariguinha em cima. Eles apareciam regularmente, passavam, desapareciam e reapareciam na orla oposta do seu círculo e desapareciam de novo, com o rapaz a dar ordens com um ar importante e a criança mais pequena agarrada à crina do pónei. Por um momento, ele viu Gunnild de relance, sorridente, ao ver a criança mais nova a seu cargo montada como um rapaz, a bater com os calcanhares nus nos flancos gordos do pónei. Depois ela voltou a recuar, deixou o campo de exercícios e desapareceu de vista. Com esforço, Sulien caiu em si e deu meia volta em direcção à aldeia.

E ali estava ela, a dirigir-se a ele, vinda da igreja, com o cesto no braço debaixo das dobras do seu manto, e o cabelo castanho penteado numa trança grossa, atada com um cordão escarlate. Os olhos dela estavam fixos nele. Ela reparara nele muito antes de ele ter consciência da presença dela e aproximava-se sem se apressar nem andar muito lentamente, com um prazer confiante. Tal como ele a vira com o olho da sua mente um momento antes, excepto que, na altura, ela não tinha um manto vestido, e o cabelo caía solto à volta dos ombros. Mas o seu rosto tinha a mesma radiância franca, os olhos a mesma capacidade de o deixar entrar no seu coração.

Ela parou a alguns passos do local onde ele parara, e eles olharam um para o outro em silêncio durante um longo momento. Depois ela disse:

- Ia-se realmente embora, agora que aqui veio? Sem uma palavra? Sem entrar?

Ele sabia que devia ir buscar a um canto astuto da sua mente presença de espírito suficiente e palavras suficientes para mostrar que a sua presença ali não tinha nada a ver com ela nem com a sua visita anterior, que a sua passagem por aquele local se devia a uma qualquer tarefa, e que era urgente voltar para casa sem demora. Mas ele não conseguiu encontrar uma única palavra, por mais falsa e dura que fosse, para a afastar de si.

- Venha conhecer o meu pai - disse ela simplesmente. - Ele vai ficar satisfeito de o ver, ele conhece o motivo por que cá veio antes. Claro que a Gunnild lhe disse; como é que acha que ela conseguiu ter um cavalo e um cavalariço para a levar a Shrewsbury, ao xerife? Nenhum de nós age às escondidas do meu pai. Eu sei que lhe pediu que não falasse em si a Hugh Beringar, e ela fez o que lhe pediu, mas nesta casa nós não temos segredos, não temos motivos para isso.

Isso ele podia bem acreditar. A sua natureza falava pelo seu progenitor, uma herança constante e despreocupada. E embora soubesse que tinha a obrigação de se afastar dela, de a evitar e de preservar a sua paz de espírito, bem como de poupar aos seus pais qualquer sofrimento futuro por causa dela, ele não conseguiu fazê-lo. Desmontou e acompanhou-a, de rédeas na mão e ainda calado e confuso, e passou o portão de Withington.

O Irmão Cadfael viu-os juntos na igreja na missa cantada do dia de Santa Cecília, o dia vinte e dois de Novembro. O motivo por que eles tinham decidido assistir à missa ali na abadia, quando tinham as suas próprias igrejas paroquiais, era tema para conjectura. Talvez Sulien ainda sentisse um carinho precário pela Ordem que tinha abandonado, devido à sua estabilidade e certeza, inexistentes no mundo lá fora, e ainda sentisse necessidade de contactar com ela de vez em quando, enquanto reorientava a sua vida. Talvez ela quisesse ouvir a música admirável do Irmão Anselmo, especialmente no dia mais importante de todos os dias de santos. Ou talvez, reflectiu Cadfael, eles considerassem este um local de encontro conveniente e eminentemente respeitável para duas pessoas que ainda não tinham ido tão longe que pudessem ser vistas em público mais perto de casa. Fosse qual fosse a razão, ali estavam eles na nave, perto do altar da paróquia, de onde podiam ver o coro e ouvir os cânticos sem serem prejudicados pelos pontos mudos atrás de alguns dos enormes pilares. Eles estavam perto um do outro, mas sem se tocarem, nem sequer com um roçar das dobras das mangas, imóveis, muito atentos, com rostos solenes e olhos límpidos abertos. Cadfael viu que, desta vez, a rapariga estava séria, embora ainda brilhasse, e o rapaz à vontade e tranquilo, embora a sombra da sua inquietação ainda colocasse o seu dedo no pequeno sulco entre as sobrancelhas.

Não era difícil, concluiu Cadfael, compreender a aura ambivalente que eles traziam consigo, tão obviamente juntos, tão tacitamente separados. Não haveria qualquer resolução, qualquer solução da dicotomia, antes de uma pergunta fundamental ser respondida. Ruald, que era quem melhor conhecia o rapaz, nunca, por um instante, duvidara de que o que lhe tinha sido dito era verdade, e a simplicidade da aceitação dessa certeza, por parte de Ruald, era a salvação do próprio Ruald. Mas Cadfael ainda não conseguia ver certezas em nenhum dos lados. E Hugh, com os seus lanceiros e arqueiros, ainda se encontrava a muitas milhas de distância, a sua sorte era ainda desconhecida, e não havia nada a fazer a não ser esperar.

No último dia de Novembro, um arqueiro da guarnição, sujo e desalinhado, chegou vindo de leste, parando primeiro em Saint Giles para apregoar a notícia de que os soldados do xerife não vinham muito atrás, intactos como tinham deixado a cidade, com excepção de alguns arranhões e nódoas negras; que as tropas do rei oriundas dos condados, que eram mais necessárias noutros locais, tinham sido dispensadas para regressarem às suas próprias guarnições, pelo menos durante o Inverno, e que a táctica do rei se tinha alterado, tendo passado da tentativa de desalojar e destruir o seu inimigo para medidas para o conter territorialmente e limitar os danos que ele poderia causar aos seus vizinhos. A campanha estava adiada e não terminada, mas isso significava o regresso a salvo dos homens de Shropshire às suas pastagens. Quando o mensageiro chegou a Foregate, a notícia já voara à sua frente, e ele reduziu a velocidade para a apregoar à medida que passava, e para responder a algumas perguntas ansiosas que os habitantes lhe faziam. Estes saíam a correr das suas casas, lojas e quintais, com as ferramentas na mão, as mulheres das suas cozinhas, o ferreiro da forja, o Padre Bonifácio do seu quarto por cima do átrio norte da igreja da abadia, num grande alvoroço de alívio e alegria, trocando informações uns com os outros à medida que as colhiam por acaso da boca do mensageiro.

Quando o cavaleiro solitário passou pela casa do portão da abadia, em direcção à ponte, já o ruído surdo e ordenado dos cascos e o sumido tilintar dos arreios tinha chegado a Saint Giles, e a população de Foregate deixou-se ficar à espera para dar as boas-vindas à companhia que regressava. O trabalho podia esperar uma ou duas horas. A notícia circulou até mesmo no recinto da abadia, e os irmãos reuniram-se no exterior da muralha, sem serem repreendidos, para assistir ao regresso. Cadfael, que se tinha levantado cedo da cama para os ver partir, foi, agradecido, vê-los chegar de novo a casa sãos e salvos.

Eles chegaram, compreensivelmente, com os trajes menos imaculados do que tinham partido. Os pendões dos lanceiros estavam sujos e coçados e até mesmo com alguns rasgões, algumas das armaduras leves estavam amolgadas e baças, algumas das cabeças ligadas, um ou dois braços vinham ao peito, e havia várias barbas que nunca tinham existido. Mas eles cavalgavam em boa ordem e proporcionavam um espectáculo muito respeitável, apesar das nódoas causadas pela viagem e pela lama mal escovada da roupa. Hugh tinha ultrapassado os seus homens muito antes de eles terem chegado a Coventry e parado para descansar e tratar dos homens e dos cavalos. As carroças das bagagens e os arqueiros de infantaria poderiam demorar algum tempo a sair de Coventry, onde as estradas eram boas e estavam desimpedidas, e a notícia de que se encontravam bem tinha seguido à sua frente.

À frente da coluna, Hugh tinha despido a sua cota de malha para poder cavalgar facilmente, envergando o seu próprio casaco e manto. Ele tinha um ar atento e entusiasmado, ligeiramente corado de prazer com os sussurros e murmúrios de alívio e alegria que o acompanharam ao longo de Foregate, e seguramente continuariam através da cidade. Hugh troçaria sempre ironicamente dos elogios e dos aplausos, tendo bem consciência do pouco que os separava dos ruídos de censura com que poderia ter sido recebido se tivesse perdido homens num recontro desesperado. Mas era humano estarem satisfeitos por saberem que ele não tinha perdido ninguém. O regresso de Lincoln, quase três anos antes, não tinha sido igual a este; ele podia dar-se ao luxo de gozar a sua recepção.

Na casa do portão da abadia, ele procurou Cadfael no meio do grupo de coroas rapadas e viu-o nos degraus da porta ocidental. Hugh disse uma palavra ao ouvido do seu capitão, tirou o seu cavalo castanho da fila e fê-lo parar ao lado, embora não tivesse desmontado. Cadfael estendeu a mão para as rédeas, extremamente satisfeito.

- Bem, rapaz, é muito bom ver-te. Praticamente sem uma única beliscadura e sem faltar nenhum homem! Que mais se poderia desejar?

- O que eu queria - disse Hugh com toda a sinceridade -, era apanhar o De Mandeville, mas ele ainda resiste e o Stephen não vai poder fazer nada até conseguir expulsar o rato do seu buraco. Tens visto a Aline? Está tudo bem por lá?

- Está tudo bastante bem e estará muito melhor quando ela vir o teu rosto à porta. Vais entrar para falar com o Radulfus?

- Ainda não! Agora não! Tenho de levar os meus homens para casa e pagar-lhes, e depois vou eu próprio para casa. Cadfael, faz-me um favor!

- Com todo o prazer - disse Cadfael com veemência.

- Quero falar com o jovem Blount, e quero falar com ele em qualquer lado excepto em Longner, pois imagino que a mãe dele não sabe nada sobre o assunto em que ele se envolveu. Ela nunca sai de casa, pelo que não pode ter ouvido o que se diz por aí, e a família faz o possível por evitar que tenha conhecimento de quaisquer problemas. Se eles não lhe disseram nada sobre o corpo que vocês encontraram, Deus não permita que seja eu a contar-lhe a notícia, assim de repente. Ela já sofreu o suficiente. Podes pedir autorização ao abade e encontrar uma forma de levar o rapaz ao castelo?

- Então tens notícias! - Mas ele não perguntou quais. - Vai ser fácil trazê-lo até cá, e o Radulfus vai ter que saber, mais cedo ou mais tarde. Ele já foi um de nós, se for chamado, virá. Radulfus arranjará um pretexto. Preocupação com alguém que já foi seu filho. E isso não é mentira!

- Óptimo! - disse Hugh. - Isso serve! Trá-lo, e mantém-no cá até eu chegar.

Ele enfiou os calcanhares no flanco do cavalo, e Cadfael soltou as rédeas. Hugh afastou-se atrás dos seus soldados, em direcção à ponte e à cidade. Era possível seguir o seu avanço pelo som cada vez mais distante da recepção que lhes era feita, uma onda a rolar ao longe, enquanto o murmúrio grato e feliz de vozes ao longo de Foregate se transformava num sussurro semelhante a abelhas num prado em flor. Cadfael voltou para o pátio e foi pedir uma audiência ao abade.

Não foi muito difícil pensar numa razão plausível para fazer uma visita a Longner. Havia lá uma mulher doente que outrora utilizara os conhecimentos dele para, pelo menos, minorar a sua dor, e havia um filho mais novo recém-regressado que consentira em levar um pouco desse xarope e tentar convencê-la a voltar a tomá-lo, depois de ela ter recusado todo o conforto. Perguntar pela saúde da mãe e, ao mesmo tempo, comunicar o convite paternal do abade ao filho que estivera recentemente a seu cuidado, não devia parecer pouco plausível. Cadfael só vira Donata uma vez, nos tempos em que ela ainda tinha forças suficientes para sair de casa; nessa altura, ela estava disposta a pedir e aceitar conselhos. Ela tinha vindo consultar o Irmão Edmund, o enfermeiro, apenas uma vez, e fora levada por este à oficina de Cadfael. Há alguns anos que ele não pensava nessa visita e, durante esse tempo, ela tornara-se gradual e lentamente mais débil, e já não era vista para além do pátio de Longner e, mesmo aí, ultimamente, raras vezes.

O Hugh tinha razão, os seus homens escondiam dela todas as coisas más que pudessem acrescentar mais uma preocupação ao pesado fardo que ela já carregava. Se acabasse por ter que ouvir as más notícias, ao menos que o fizesse apenas depois de haver provas e certezas, quando já não fosse possível fugir aos factos.

Ele recordava-se do seu aspecto, nessa única vez que a vira, uma mulher um pouco mais alta do que a sua própria altura modesta, magra como um salgueiro mesmo então, com o cabelo preto já tocado por algumas madeixas brancas, e olhos de um azul escuro, lustroso. De acordo com o que Hugh lhe contara, ela era agora uma vara seca, todos os seus movimentos constituíam um esforço, todos os movimentos eram sinónimos de dor. Pelo menos as papoilas de Lethe podiam proporcionar-lhe alguns interlúdios de sono, se ao menos ela as usasse. E algures no fundo da sua mente, Cadfael não conseguia deixar de se interrogar se ela se abstinha para convidar a morte a levá-la mais cedo, libertando-a.

Mas aquilo que o preocupava agora, enquanto montava no cavalo castanho e partia em direcção a leste ao longo de Foregate, era o filho dela, que não era velho nem doente e cujas dores eram da mente, talvez até da alma.

Era ao princípio da tarde, e estava um dia pesado. Desde manhã que o céu estava nublado, com nuvens baixas que eliminavam distâncias, mas não havia vento nem sinais de chuva e, uma vez fora da cidade e a caminho da barcaça, ele teve consciência de um silêncio pesado, opressivo e imóvel, em que nem sequer uma folha ou erva se moviam, perturbando o ar plúmbeo. Enquanto passava ao longo dos prados, ele levantou os olhos na direcção da crista de árvores acima do Campo do Oleiro. A terra lavrada, rica e escura, começava a mostrar a primeira sombra verde e leve de plantas a crescer, fugidias e frágeis como um véu. Até mesmo o gado ao longo do rio estava imóvel, como se estivesse a dormir.

Atravessou a cintura de arvoredo bem tratado situado para além dos prados e subiu a ligeira encosta da clareira que ia dar aos portões abertos de Longner. Um cavalariço veio a correr pegar nas rédeas do cavalo, e uma criada que atravessava o pátio vinda da leitaria voltou para trás para perguntar, com alguma surpresa e curiosidade, o que ele queria, como se os visitantes inesperados fossem muito raros ali. E talvez fossem, pois a casa senhorial ficava um pouco distante da estrada principal onde os viajantes pudessem ter necessidade de um tecto para passar a noite, ou de um abrigo no tempo inclemente. Os que vinham fazer uma visita faziam-na com um objectivo, não por acaso.

Cadfael perguntou por Sulien, em nome do abade, e ela acenou a cabeça em sinal de compreensão, e a sua cortesia descontraiu-se num sorriso entendido. Era natural que as ordens monásticas não gostassem muito de perder um jovem que já tivesse estado nas suas mãos, e talvez valesse a pena fazer uma visita solícita, pouco depois da fuga, para ver se a persuasão conseguia convencê-lo a voltar. Ela estava a pensar em qualquer coisa desse género, mas com alguma indulgência. Servia muito bem. Ela que dissesse isso aos outros criados da casa, e a partida de Sulien, ao ser chamado pelo abade, só iria confirmar a história, talvez até levantar dúvidas sobre o assunto.

- Entre, sr., encontrá-los-á no solar. Entre à vontade, será bem-vindo.

Ela ficou a vê-lo subir os primeiros degraus para a porta do salão, antes de ela própria se dirigir à galeria subterrânea, onde as portas largas das carroças se encontravam abertas e alguém estava a rolar e a empilhar barris no interior. Cadfael entrou no salão escuro depois do pátio aberto, ainda mais escuro por causa do dia nublado, e parou para permitir que os seus olhos se adaptassem à alteração. A esta hora, a fogueira estava amplamente abastecida e bem acesa, mas abafada de modo a arder lentamente durante toda a noite, altura em que a casa inteira estaria reunida ali dentro, satisfeita por ter calor e luz. Naquele momento, estavam todos fora a trabalhar ou ocupados na cozinha e no armazém, e o salão estava vazio, mas a cortina pesada estava corrida sobre a porta no outro extremo do salão, e a porta que ela resguardava encontrava-se semiaberta. Cadfael ouviu vozes vindas do interior do quarto, uma delas a voz jovem de um homem, agradavelmente baixa. Eudo ou Sulien? Ele não podia ter a certeza. E a da mulher... Não, as das mulheres, pois eram duas, uma firme, profunda, lenta e clara, como se fosse necessário um esforço para formar as palavras e dar-lhes som; a outra, uma voz jovem, fresca e doce, com uma cândida plenitude. Essa Cadfael reconheceu. Então eles tinham avançado tanto que, de algum modo, ela, as circunstâncias ou o próprio destino tinham feito com que Sulien a tivesse trazido a casa. Por conseguinte, quem estava com ela no solar devia ser Sulien.

Cadfael empurrou a cortina toda para trás e bateu à porta enquanto a abria, parando no limiar. As vozes tinham-se calado abruptamente, a de Sulien e a de Pernel com um reconhecimento imediato e uma reserva imediata, a da Dama Donata com um ar tolerante e de ligeiro espanto, mas amável. Aqui, os intrusos eram poucos e causavam surpresa, mas a sua firme dignidade nunca seria perturbada.

- Paz a todos que aqui estão! - disse Cadfael. As palavras tinham saído espontaneamente, uma bênção costumeira, mas ele sentiu a imediata pontada de culpa por as ter utilizado, quando sabia perfeitamente que lhes trouxera tudo menos paz. - Desculpem, não me ouviram chegar. Disseram-me que podia vir ter consigo. Posso entrar?

- Entre, Irmão, e seja bem-vindo! - disse Donata.

A sua voz, embora a usasse com esforço e cautela, era quase mais cheia do que a sua carne. Estava sentada num banco largo de encontro à parede do fundo, debaixo de um único archote que derramava uma luz vacilante do seu suporte colocado por cima dela. Ela estava apoiada em almofadas cuidadosamente empilhadas de modo a que se mantivesse direita, com um banquinho almofadado debaixo dos pés. O rosto oval magro tinha a cor azulada e translúcida das sombras na neve não pisada, e era iluminado por enormes olhos encovados com o azul escuro e brilhante da buglossa. As mãos que estavam pousadas nas almofadas eram frágeis como teias de aranha, e o corpo dentro do vestido escuro e da túnica de brocado era pouco mais do que pele e ossos. Mas ela ainda era a dona da casa e estava à altura do seu papel.

- Veio de Shrewsbury? O Eudo e a Jehane irão ter pena de não o verem, eles foram a Atcham ter com o Padre Eadmer. Sente-se aqui, Irmão, perto de mim. A luz é fraca. Eu gosto de ver os rostos das minhas visitas e já não vejo tão bem como antigamente. Sulien, vai buscar uma caneca de cerveja para o nosso hóspede. Tenho a certeza -, disse ela, voltando para Cadfael o sorriso fino e tranquilo que suavizava o traço estóico dos seus lábios - de que a sua visita deve ser realmente para o meu filho. É mais um prazer que o regresso dele me trouxe.

Pernel não disse absolutamente nada. Ela estava sentada à direita de Donata, muito calada e imóvel, com os olhos fixos em Cadfael. Pareceu-lhe que ela era ainda mais rápida do que Sulien a pressentir um objectivo mais profundo e mais sombrio por trás desta visita inesperada. Se assim era, ela reprimiu o que sabia e continuou serena e submissa, mostrando-se a jovem respeitosa e atenciosa para com uma mulher mais velha. Uma primeira visita aqui? Cadfael achou que sim, pela ligeira tensão que dominava os dois jovens.

- Chamo-me Cadfael. O seu filho foi meu ajudante no herbário da abadia, durante os poucos dias que passou connosco. Tive muita pena de o perder - disse Cadfael -, mas não tive pena que ele voltasse para a vida que escolheu.

- O Irmão Cadfael foi um mestre amável - disse Sulien, entregando-lhe a caneca com um sorriso um pouco tenso.

- Eu acredito que sim - disse ela -, por tudo o que me contaste sobre ele. E eu lembro-me de si, Irmão, e dos medicamentos que preparou para mim há alguns anos. Foi muito amável da sua parte mandar mais algum por Sulien, quando ele o foi visitar. Ele tem estado a convencer-me a tomar o xarope. Mas eu não preciso de nada, Como vê, estou a ser muito bem tratada e sinto-me bastante feliz. Deve levar o frasco de volta, pode haver outros que precisem dele.

- Uma das razões desta visita - disse Cadfael - é saber se o xarope lhe fez bem e se há mais alguma coisa que eu lhe possa oferecer.

Ela sorriu directamente para os olhos dele, mas a única coisa que disse foi:

- E a outra razão?

- O senhor abade - respondeu Cadfael - mandou-me perguntar se o Sulien se importa de voltar comigo para lhe fazer uma visita.

Sulien ficou de pé à sua frente com um rosto inescrutável, mas traiu-se por um segundo ao humedecer os lábios subitamente secos.

- Agora?

- Agora. - A palavra soou demasiado pesada, precisava de ser aligeirada. - Ele ficar-te-ia grato. Durante algum tempo - disse Cadfael virando-se para Donata -, ele pensou no seu filho como se fosse dele. Ele não retirou a sua benevolência paternal. Ele gostaria de ver e saber - disse ele com ênfase, levantando novamente os olhos para o rosto de Sulien - que tu estás bem. É tudo o que nós queremos. - E o que quer que se seguisse, pelo menos isso era verdade. Se eles podiam ter esperança de ter e manter o que queriam, era outra questão.

- Ser-me-ia permitido demorar uma hora ou duas? perguntou Sulien com firmeza. - Tenho que acompanhar Pernel a casa, a Withington. Eu talvez deva fazer isso primeiro. - O que significava, para Cadfael, que sabia interpretar: Eu Posso demorar muito a voltar da abadia. É melhor resolver todos os assuntos inacabados.

- Isso não será necessário - disse Donata com autoridade. - A Pernel pode passar a noite aqui comigo, se não se importar. Eu mando um rapaz a Withington comunicar ao pai que ela está segura aqui comigo. Tenho tão poucas visitas jovens que não me posso dar ao luxo de me separar dela tão depressa. Vai com o Irmão Cadfael, que nós faremos companhia uma à outra até voltares.

As palavras trouxeram uma expressão cautelosa aos rostos de Sulien e Pernel. Eles trocaram um breve olhar, e Pernel disse imediatamente:

- Eu gostaria muito, se realmente permitir que eu fique. A Gunnild está lá para tomar conta das crianças e a minha mãe, tenho a certeza, dispensar-me-á por um dia.

Seria possível, perguntou Cadfael a si próprio, que Donata, até mesmo perto da morte, estivesse a pensar no seu filho mais novo e gostasse de ver este primeiro sinal de interesse por uma jovem apropriada? Mães com uma personalidade forte, há muito familiarizadas com a sua própria morte lenta, podem também desejar resolver assuntos inacabados.

Ele acabara de compreender o que mais o inquietava a respeito dela. O inimigo destruidor que tinha embranquecido os seus cabelos e mirrara o seu corpo até aos ossos, não tinha conseguido fazê-la parecer velha. Ela parecia mais uma rapariguinha frágil que fora acometida por uma doença, que definhara e passara fome na Primavera, quando o botão estava a desabrochar. Ao lado da resplandecência de Pernel ela era como um farrapo de vapor soprado pela brisa, o fantasma de uma criança. No entanto, nesta sala ou em qualquer outra, ela continuaria a ser a personalidade dominante.

- Então eu vou selar o cavalo - disse Sulien, quase tão alegremente como se estivesse a planear apenas um passeio no bosque para apanhar ar. Baixou-se para beijar o rosto descaído da mãe, e ela ergueu uma mão que, ao tocar no seu rosto, parecia o leve esvoaçar do esqueleto de filigrana de uma folha morta.

Ele não se despediu, nem dela, nem de Pernel. Isso talvez tivesse parecido algo ominoso que o traísse. Ele atravessou rapidamente o salão, e Cadfael apresentou as suas despedidas o mais delicadamente que conseguiu e apressou-se a ir ter com ele aos estábulos. Montaram no pátio e partiram lado a lado sem dizer uma única palavra, até terem chegado à cintura de arvoredo.

- Já ouviste dizer - perguntou então Cadfael - que o Hugh Beringar e os seus soldados voltaram hoje? Sem quaisquer baixas!

- Sim, ouvi dizer. Eu já tinha percebido - disse Sulien sorrindo ironicamente - de quem era a voz que me estava a chamar. Mas fizeste bem em fazer de conta que era o abade. Para onde vamos realmente? Para a abadia ou para o castelo?

- Para a abadia. Isso era verdade. Diz-me uma coisa, o que é que ela sabe?

- A minha mãe? Nada. Nada sobre o crime, nada sobre a Gunnild, o Britric ou o purgatório do Ruald. Ela não sabe que a vossa junta do arado fez aparecer o corpo de uma mulher no que foi outrora terra nossa. O Eudo não lhe disse nada, e mais ninguém o fez. Tu viste-a - disse Sulien. - Ninguém, dos que a rodeiam, permitiria que fosse adicionado mais sofrimento, por mais pequeno que seja, ao seu fardo. Obrigado por teres tido também esse cuidado.

- Se isso puder ser mantido - disse Cadfael -, sê-lo-á. Mas, para dizer a verdade, não tenho a certeza se procederam bem. Alguma vez pensaste que ela poderá ser mais forte do que qualquer de vós? E que, no fim, ela terá que saber e sofrerá ainda mais?

Sulien cavalgou ao lado dele em silêncio durante algum tempo, com a cabeça erguida, os olhos fixos firmemente em frente e com o perfil, visto claramente de encontro ao céu aberto com as suas nuvens pesadas, pálido e com a rigidez de uma máscara. Outro estóico, muito parecido com a mãe.

- O que eu mais lamento - disse ele por fim, lentamente - é ter-me aproximado da Pernel. Não tinha esse direito. O Hugh Beringar teria acabado por encontrar a Gunnild, ela iria aparecer quando soubesse que era necessário, sem qualquer interferência. E agora veja o mal que eu fiz!

- Eu acho - disse Cadfael, com um cuidado respeitoso - que a dama desempenhou um papel tão importante como tu. E duvido que ela o lamente.

Sulien entrou no baixio à frente do seu companheiro. A sua voz soou clara e resoluta aos ouvidos de Cadfael.

- Algo terá que ser feito para desfazer o que fizemos. E quanto à minha mãe, sim, eu já pensei no final. E já tomei providências a respeito disso.

 

Na sala do abade, os quatro estavam reunidos depois das Vésperas, com as portadas das janelas e a porta fechadas. Tiveram que esperar por Hugh. Ele tinha uma guarnição para passar revista, recrutas dispensados do serviço feudal para pagar e mandar para casa, para junto das suas famílias, alguns feridos para tratar devidamente, antes de ele conseguir sequer desmontar no seu próprio pátio, abraçar a mulher e o filho, despir a roupa suja da viagem e recuperar a respiração sentado à sua própria mesa. O interrogatório de uma testemunha duvidosa, por mais duvidosa que fosse actualmente a sua reputação, podia perfeitamente aguardar mais uma ou duas horas.

Mas depois das Vésperas ele veio, descontraído e revigorado, se bem que cansado. Despiu a capa à porta e fez uma vénia ao abade. Radulfus fechou a porta, e houve um silêncio, breve mas profundo. Sulien estava sentado, imóvel e calado, no banco situado de encontro à parede apainelada. Cadfael tinha-se afastado para um canto junto da janela fechada.

- Tenho que lhe agradecer, Pai - disse Hugh - por nos ter proporcionado este local para nos encontrarmos. Eu não gostaria de incomodar a família em Longner e, afinal de contas, o senhor também está interessado neste assunto, tanto quanto eu.

- Todos nós temos interesse na verdade e na justiça, suponho - disse o abade. - Eu também não posso rejeitar toda a responsabilidade por um filho que partiu para o mundo. Como o Sulien sabe. Proceda como quiser, Hugh.

Ele fez lugar para Hugh a seu lado atrás da secretária, agora desimpedida dos pergaminhos e dos assuntos do dia. Hugh aceitou o lugar e sentou-se com um enorme sorriso. Ainda se sentia dorido da sela e tinha arranhões sarados há pouco, mas regressara dos Fens com a sua companhia intacta, e isso era suficiente. Ele estava prestes a analisar cuidadosamente tudo o mais que trouxera consigo e que estes três que estavam com ele estavam prestes a conhecer.

- Sulien, eu não preciso de te recordar, nem a estes que foram tuas testemunhas, do que disseste sobre o anel da mulher do Ruald, sobre a forma como o encontraste na loja de John Hinde, em Priestgate, em Peterborough. Perguntei-te o nome e o local, e tu disseste-mos. De Cambridge, quando fomos dispensados, fui a Peterborough. Encontrei Priestgate. Encontrei a loja. Encontrei John Hinde. Falei com ele, Sulien, e vou relatar o seu testemunho tal como o ouvi. Sim - disse Hugh lentamente, com os olhos postos no rosto pálido e composto de Sulien. - Hinde lembra-se muito bem de ti. De facto, foste ter com ele levando o nome do Abade Walter como recomendação, e ele alojou-te por uma noite e viu-te partir no dia seguinte. Isto é verdade. Isto ele confirma.

Recordando-se da prontidão com que Sulien tinha dado o nome do ourives e do local em que a sua loja se encontrava, Cadfael tinha poucas dúvidas sobre a veracidade daquela parte da história. Na altura, não parecera provável que o resto da história alguma vez viesse a ser testado. Mas o rosto de Sulien continuava tão inexpressivo como a firmeza o poderia tornar, e os seus olhos nunca abandonaram o rosto de Hugh.

- Mas quando lhe perguntei sobre o anel, ele perguntou, que anel era esse? E quando o descrevi, ele afirmou categoricamente que nunca vira um anel assim, que nunca comprara o anel nem qualquer outra coisa a uma mulher parecida com a que eu descrevi. Mesmo que ele não tivesse tudo registado como tem, não poderia ter-se esquecido de uma transacção tão recente. Ele nunca te deu o anel, porque nunca teve o anel. O que nos contaste é um chorrilho de mentiras.

O novo silêncio caiu como uma pedra e pareceu ficar suspenso na imobilidade de Sulien. Ele não falou nem baixou os olhos. Apenas um ligeiro movimento espasmódico da mão musculosa de Radulfus em cima da secretária quebrou a tensão no interior da sala. O que Cadfael previra desde o momento em que transmitira a convocatória do abade e observara a expressão rígida do rosto de Sulien ao ouvi-la constituiu um choque para Radulfus. Havia muito poucas formas de comportamento humano com que ele não se tivesse já deparado na vida. Ele já conhecera e lidara com mentirosos, sem qualquer surpresa, mas deste ele não estava à espera.

- No entanto, tu mostraste o anel - prosseguiu Hugh com firmeza - e o Ruald reconheceu-o e confirmou que era o da mulher. Uma vez que não o obtiveste de um ourives, onde é que o arranjaste? A história que nos contaste é falsa. Agora tens a oportunidade de contar outra, mais verdadeira. Nem todos os mentirosos têm essa sorte. Agora diz o que tens a dizer.

Sulien abriu os olhos com um esforço rangente, como alguém a dar a volta a uma chave numa fechadura pouco disposta a abrir-se.

- Eu já tinha o anel - disse ele. - Foi a Generys quem mo deu. Eu já contei ao senhor abade, e conto-vos agora, toda a minha vida eu tive um grande afecto por ela, mais profundo do que eu imaginava. Mesmo depois de me ter tornado homem, só compreendi como o afecto se estava a transformar quando o Ruald a abandonou. A sua raiva e dor fizeram-me saber isso. O que a movia, eu não sei. É possível que ela se estivesse a vingar de todos os homens, até mesmo de mim. Ela recebeu-me e usou-me. E deu-me o anel. Não durou muito - disse ele, sem amargura. - Eu não podia satisfazê-la, inexperiente como era. Eu não era o Ruald, nem tinha peso suficiente para trespassar o coração do Ruald.

Havia algo estranho, pensou Cadfael, na sua escolha das palavras, como se algumas vezes o sangue da paixão corresse nelas, e outras elas surgissem calculadas e inventadas, com uma cautela indiferente. Talvez Radulfus sentisse a mesma apreensão, porque desta vez ele falou, impaciente por que a história fosse contada com uma maior simplicidade.

- Estás a dizer, meu filho, que foste amante dessa mulher?

- Não - disse Sulien. - Estou a dizer que a amava, e que ela me admitiu, de alguma forma, na sua dor, quando se sentiu desesperada. Se o meu tormento aplacou o dela, aquele não foi tempo perdido. Se quer saber se ela me admitiu na sua cama, não, isso ela nunca fez, nem eu pedi nem esperei que acontecesse. O meu significado, a minha utilidade, nunca foi tão grande.

- E quando ela desapareceu - perguntou Hugh com implacável paciência -, o que soubeste a esse respeito?

- Nada, não mais do que qualquer outro homem.

- O que pensaste que lhe tinha acontecido?

- O meu tempo - disse Sulien - já tinha terminado, ela já não precisava de mim. Acreditei no que toda a gente acreditou, que ela tinha arrancado as raízes e fugido do lugar que se lhe tornara tão odioso.

- Com outro amante? - perguntou Hugh num tom inexpressivo. - Foi o que todos pensaram.

- Com um amante ou sozinha. Como é que eu havia de saber?

- Realmente! Tu não sabias mais do que qualquer outro homem. No entanto, quando voltaste para cá e ouviste dizer que tínhamos encontrado o corpo de uma mulher enterrado no Campo do Oleiro, sabias que devia ser ela.

- Eu sabia - disse Sulien, com penosa cautela - que todos pensavam que devia ser. Eu não sabia que era.

- Isso é verdade! Tu não tinhas nenhum conhecimento secreto, por isso também não podias saber que não era Generys. No entanto, consideraste imediatamente necessário inventar a tua história cheia de mentiras e mostraste o anel que ela te tinha dado, como agora dizes, para provar que ela estava viva e suficientemente longe para que fosse difícil confirmá-lo e para que a sombra de suspeita que recaía sobre o Ruald fosse levantada. Sem ter em conta a sua culpa ou inocência pois, de acordo com o que agora dizes, tu não sabias se ela estava viva ou morta, nem se ele a tinha morto ou não.

- Não! - disse Sulien, com um súbito ímpeto de energia e indignação que lhe fez estremecer o corpo, afastando-o da parede apainelada. - Isso eu sabia, porque o conheço. É inconcebível que ele alguma vez lhe tivesse feito mal. Ele não é homem para matar.

- Feliz o homem cujos amigos estão tão seguros dele! - disse Hugh secamente. - Muito bem, passemos ao que se seguiu. Nessa altura, nós não tínhamos qualquer motivo para duvidar da tua palavra; tu tinhas provado, não é verdade, que a Generys estava viva? Por conseguinte, procurámos outras possibilidades e encontrámos outra mulher que lá tinha estado e que há algum tempo que não era vista. E aí temos outra vez a tua mão a moldar os acontecimentos. A partir do momento em que ouviste falar na prisão do vendedor ambulante começaste a procurar uma casa senhorial em que uma mulher pudesse ter encontrado abrigo durante o Inverno, onde alguém pudesse testemunhar que ela estava viva muito depois de se ter separado do Britric. Eu duvido que estivesses à espera de a encontrar instalada ali, mas tenho a certeza de que ficaste muito satisfeito com isso. Isso significava que não precisavas de aparecer, ela podia apresentar-se por sua própria iniciativa ao ouvir dizer que havia um homem acusado de a ter morto. Duas vezes, Sulien? Por duas vezes temos que aceitar a tua mão como mão de Deus, sem qualquer outro motivo a não ser o amor puro da justiça? Uma vez que tinhas demonstrado, de um modo tão infalível, que a mulher morta não podia ser a Generys, como é que podias ter tanta certeza de que ela não era a Gunnild? Duas ilibações eram ilibações a mais para ser verdade. A sobrevivência da Gunnild ficou demonstrada, não havia qualquer dúvida de que era ela em carne e osso. Mas quanto ao facto de a Generys estar viva, só temos a tua palavra. E se se demonstrar que a tua palavra era falsa, acho que não precisamos de continuar a procurar um nome para a mulher que encontrámos. Ao negares-lhe um nome, estavas a dar-lhe um nome.

Sulien tinha fechado os lábios e cerrado os dentes, como se nunca mais fosse dizer uma única palavra. Era demasiado tarde para utilizar mais mentiras.

- Eu penso - disse Hugh - que, quando soubeste o que o arado tinha desenterrado do solo, não tiveste a menor dúvida quanto ao seu nome. Acho que sabias muito bem que ela estava lá. E tinhas a certeza de que o Ruald não era o seu assassino. Oh, isso eu posso acreditar! Essa é uma certeza, Sulien, a que apenas Deus, que sabe todas as coisas com certeza, tem direito. Só Deus e tu, que sabias perfeitamente bem quem era o assassino.

- Filho - disse Radulfus, quebrando o longo silêncio -, se tiveres uma resposta para isto, fala agora. Se houver alguma culpa na tua alma, não sejas obstinado e confessa-a. Se não, diz-nos qual é a tua resposta, pois fizeste com que a suspeita recaísse sobre ti. Fazendo-te justiça, parece que não permitiste que outro homem, fosse ele amigo ou desconhecido, fosse acusado de um crime que não cometeu. Isso é algo que eu esperaria de ti. Mas as mentiras não têm qualquer mérito, nem mesmo numa causa destas. É muito melhor ilibar todos os outros declarando directamente: Sou eu o homem, não procurem mais.

Fez-se de novo silêncio e, desta vez, ele foi ainda mais prolongado, ao ponto de Cadfael sentir a extrema quietude da sala como um peso sobre a sua carne e um estrangulamento na respiração. No exterior da janela, o crepúsculo caíra na forma de uma nuvem fina, baixa e sem traços, um cinzento de chumbo que sugava toda a cor do mundo. Sulien estava sentado sem se mover, com os braços puxados para trás, para sentir a parede sólida que o apoiava, e com as pestanas semicerradas sobre o azul escurecido dos seus olhos. Ao fim de muito tempo ele mexeu-se, ergueu as duas mãos e apertou, com dedos rígidos, as faces, como se o desespero em que se encontrava tivesse paralisado até mesmo a sua carne e ele tivesse que a massajar antes de conseguir falar. Mas quando falou, fê-lo com uma voz baixa, sensata e persuasiva, e ergueu a cabeça e enfrentou Hugh com a compostura de alguém que tinha tomado uma decisão e uma atitude da qual não seria facilmente demovido.

- Muito bem! Eu menti, menti várias vezes, e eu detesto as mentiras tanto como vós, meu senhor. Mas se eu fizer um acordo convosco, juro que o cumprirei fielmente. Eu ainda não confessei nada. Mas confessarei o assassínio, com condições!

- Condições? - perguntou Hugh com as sobrancelhas pretas erguidas obliquamente, numa expressão de divertida ironia.

- Elas não precisam, necessariamente, de limitar, de algum modo, o que me poderá ser feito - disse Sulien, tão suavemente como se argumentasse uma causa sensata com a qual todos os homens têm que concordar depois de a terem ouvido. - A única coisa que eu quero é que a minha mãe e a minha família não sofram qualquer desonra ou ignomínia por minha causa. Porque é que não se há-de fazer um acordo até mesmo sobre questões de vida ou morte, se pudermos poupar todos os que não têm culpa e destruir apenas os culpados?

- Estás a oferecer-me uma confissão em troca do silêncio em volta deste assunto? - disse Hugh.

O abade tinha-se posto de pé, com uma mão erguida em indignado protesto:

- Não haverá quaisquer acordos em questões de assassínio. Tens que te retirar, meu filho, estás a adicionar o insulto à tua ofensa.

- Não, deixe-o falar - disse Hugh. - Todo o homem merece ser ouvido. Vamos, Sulien, o que é que estás a oferecer e a pedir?

- Uma coisa que pode ser feita muito facilmente. Eu fui chamado aqui, ao local em que decidi abandonar a minha vocação.

- Sulien começou a falar na mesma voz ponderada e persuasiva.

- Seria estranho se eu voltasse a mudar de ideias e regressasse para cá, para a minha vocação de penitente? O Pai Abade, tenho a certeza, podia convencer-me se tentasse. - Neste momento, Radulfus estava a franzir a testa numa expressão de controlada reprovação, não da má utilização que estava a ser feita da sua influência e cargo, mas da nota de desesperante frivolidade que tinha surgido na voz do jovem. - A minha mãe tem uma doença mortal - disse Sulien - e o meu irmão tem um nome honrado, tal como o nosso pai antes de nós, uma esposa, e um filho que vai nascer no próximo ano, e não fez mal nenhum a ninguém e não tem conhecimento de mal nenhum. Por amor de Deus deixai-os em paz, deixai-os manter o seu nome e reputação tão limpos como sempre foram. Digam-lhes que eu me arrependi da minha abjuração e que voltei para a Ordem, e que vou ser enviado para longe daqui, para procurar o Abade Walter, onde quer que ele possa estar, para me submeter à sua disciplina e merecer o meu regresso à Ordem. Ele não me recusaria, eles serão capazes de acreditar nisso. A Regra permite que os transviados regressem e sejam aceites, até mesmo uma terceira vez. Façam isso por mim, que eu vos darei a minha confissão de assassínio.

- Então em troca da tua confissão - disse Hugh, pedindo ao abade, com um aceno de mão, que se mantivesse em silêncio - devo deixar-te em liberdade, para regressares ao mosteiro?

- Eu não disse isso. Eu disse que devem permitir que eles acreditem nisso. Não, faça isso por mim - disse Sulien num tom muito sério e com o rosto mais branco do que a sua camisa - que eu aceitarei a minha morte da forma que a exigir, e poderá enterrar-me e esquecer-se de mim.

- Sem o benefício de um julgamento?

- Para que é que eu havia de querer um julgamento? Eu quero que eles sejam deixados em paz, que não saibam nada. Uma vida é um pagamento justo para uma vida, que diferença podem as palavras fazer?

Era chocante, e apenas um pecador muito desesperado teria ousado fazer aquela proposta a um homem como Hugh, cujo desempenho do cargo era tão firme e escrupuloso como, por vezes, pouco ortodoxo. Mas Hugh ficou calado, resistindo ao abade com um olhar de soslaio dos seus olhos pretos, e batendo na secretária com as pontas dos dedos de uma mão comprida, como se estivesse a reflectir seriamente. Cadfael tinha uma ideia do que ele iria dizer, mas não conseguia imaginar como é que ele o faria. A única coisa certa era que um acordo tão abominável nunca poderia ser aceite. Eliminar um homem, assassino ou não, a sangue frio e em segredo, era impensável. Só um rapaz inexperiente, no limite da sua resistência, poderia propô-lo ou ter a mais pequena esperança de que a proposta fosse levada a sério. Era isto o que ele queria dizer quando dissera que tinha tomado providências. Estas crianças, pensou Cadfael num súbito assomo de esclarecida indignação, como se atrevem eles, com tamanha devoção mal orientada, insultar e ofender tanto os seus progenitores? E fazerem tanto mal a si próprios!

- Tu interessas-me, Sulien - disse Hugh finalmente, fitando-o nos olhos do outro lado da secretária. - Mas eu preciso de saber um pouco mais sobre esta morte antes de te poder responder. Há pormenores que podem atenuar o mal. Já agora deves beneficiar deles, para a tua própria paz e para a minha, seja o que for que aconteça mais tarde.

- Não vejo necessidade disso - disse Sulien num tom cansado mas resignado.

- Muito depende de como esta coisa aconteceu - insistiu Hugh. - Foi uma discussão? Quando ela te rejeitou e humilhou? Até mesmo um mero acaso, uma briga e uma queda? Porque nós sabemos como ela foi sepultada, ali debaixo dos arbustos do jardim do Ruald... - Ele calou-se, pois Sulien tinha ficado subitamente rígido e virara a cabeça para olhar fixamente para ele. - O que é?

- Está confuso, ou a tentar confundir-me - disse Sulien, caindo novamente na apatia da exaustão. - Não foi lá, deve sabê-lo. Foi debaixo da moita de giestas no promontório.

- Sim, é verdade, tinha-me esquecido. Já aconteceu tanta coisa desde essa altura, e eu não estava presente quando a lavra começou. De facto, nós sabemos, ia eu a dizer, que a sepultaste com alguma prova de respeito, pena, até mesmo remorso. Enterraste uma cruz com ela. Uma cruz simples, de prata - disse Hugh -, não conseguimos que ela nos conduzisse a ti ou a qualquer outra pessoa, mas ela estava lá.

Sulien fitou-o com firmeza e não fez qualquer contestação.

- O que me leva a perguntar - prosseguiu Hugh com brandura - se não se tratou simplesmente de um acidente, um desastre que nunca houve intenção que acontecesse. Porque pode não ser preciso mais do que uma briga, talvez uma fuga, uma pancada irada, uma queda, para quebrar o crânio de uma mulher tal como o dela estava. Ela não tinha mais nenhum osso partido, só isso. Por isso diz-nos, Sulien, como tudo aconteceu, pois isso pode ajudar a desculpar-te.

Sulien, quase tão branco como o mármore, enfrentou-o com uma expressão sombria e desconfiada no rosto. Ele disse entre dentes:

- Eu contei-lhe tudo o que precisa de saber. Não direi nem mais uma palavra.

- Bem - disse Hugh, pondo-se abruptamente de pé, como se tivesse perdido a paciência. - Talvez seja suficiente. Pai, eu tenho dois arqueiros com cavalos lá fora. Por enquanto, pretendo manter o preso sob guarda no castelo até ter mais tempo para prosseguir com o assunto. Os meus homens podem vir buscá-lo? Eles deixaram as armas no portão.

O abade tinha-se mantido em silêncio durante todo aquele tempo, mas prestara atenção a tudo o que fora dito e, pela expressão de compreensão dos olhos semicerrados no seu rosto austero, ele não perdera nenhuma das implicações. Agora ele disse:

- Sim, manda-os chamar. - E para Sulien, enquanto Hugh atravessava a sala até à porta e saía: - Meu filho, embora as mentiras nos possam ser impostas, ou pelo menos nós possamos pensar que o são, no fim, não existe outro remédio que não seja a verdade. É o único curso que não pode ser mau.

Sulien virou a cabeça, e a vela captou e iluminou o azul baço dos seus olhos e a palidez exausta do seu rosto. Ele abriu os lábios com esforço.

- Pai, pode manter a minha mãe e o meu irmão nas suas orações?

- Constantemente - disse Radulfus.

- E a alma do meu pai?

- E a tua.

Hugh apareceu novamente à porta da sala. Os dois arqueiros da guarnição entraram atrás dele, e, sem que lhe tivesse sido dito nada, Sulien levantou-se do banco com o vigor do alívio, e saiu no meio deles sem dizer uma palavra nem olhar para trás. E Hugh fechou a porta.

- Vocês ouviram-no - disse Hugh. - Ele respondeu prontamente ao que sabia. Mas quando o induzi em erro, não conseguiu manter o que dizia e recusou-se a responder. Ele estava lá, sim, e viu-a ser enterrada. Mas não a matou nem a enterrou.

- Eu percebi - disse o abade - que lhe fizeste perguntas que o teriam traído...

- Que, de facto, o traíram - disse Hugh.

- Mas uma vez que não conheço todos os pormenores, não sei exactamente o que arrancaste dele. Certamente que existe a questão do local exacto em que ela foi encontrada. Isso eu compreendi. Ele corrigiu-te. Isso era uma coisa que ele sabia e que confirmava a sua história. Sim, ele foi testemunha.

- Mas não um cúmplice, nem sequer uma testemunha próxima - disse Cadfael. - Não suficientemente próxima para ver a cruz que foi colocada sobre o peito dela, pois ela não era de prata mas sim feita apressadamente de dois paus de arbustos. Não, ele não a enterrou, e não a matou porque, se o tivesse feito, com a sua tendência para suportar a culpa, ele ter-nos-ia emendado a respeito dos ferimentos. O abade sabe, tal como eu sei, que o crânio dela não estava partido. Ela não tinha quaisquer ferimentos visíveis. Se soubesse como é que ela morreu, ele ter-nos-ia dito. Mas ele não sabia, e foi demasiado astucioso para se arriscar a adivinhar. Ele pode até ter-se apercebido de que o Hugh estava a preparar-lhe uma armadilha. Preferiu ficar calado. O que não dizemos não nos pode trair. Mas com olhos como os dele, nem sequer o silêncio o pode escudar. O rapaz é transparente como o cristal.

- Tenho a certeza que era verdade - disse Hugh - que ele estava apaixonado pela mulher. Desde a infância que ele a amava incondicional, impensadamente, como a uma irmã ou a uma ama. A pena e a raiva que sentiu por causa dela quando ela foi abandonada devem ter despertado a paixão de um homem dentro dele. Deve ser verdade, penso eu, que ela se apoiou nele e lhe deu motivos para acreditar que tinha sido eleito, enquanto ela ainda pensava nele como um simples rapaz, uma criança de quem ela gostava e que lhe dava o conforto de uma criança.

- Será também verdade - interrogou-se o abade - que ela lhe deu o anel?

Foi Cadfael que disse imediatamente:

- Não.

- Eu ainda tinha dúvidas - disse Radulfus suavemente -, mas tu dizes que não?

- Há uma coisa que sempre me perturbou - disse Cadfael - e que foi a forma como ele mostrou o anel. Deve lembrar-se, Pai, que ele veio pedir-lhe autorização para ir a casa. Ele passou lá a noite, como o autorizou a fazer e, quando regressou, deu-nos a entender que só durante essa visita é que tivera conhecimento, pelo irmão, da descoberta do corpo da mulher e da compreensível suspeita que recaía sobre o Ruald. E depois ele mostrou o anel e contou a sua história, da qual nós não tivemos, na altura, motivo para duvidar. Mas eu acredito que ele, antes de lhe ter pedido autorização para se ausentar, já tinha conhecimento do caso. Essa foi a razão por que a sua visita a Longner se tornou necessária. Ele tinha que ir a casa porque o anel estava lá, e tinha que o ir buscar antes de poder falar em defesa do Ruald. Com mentiras, sim, porque a verdade era impossível. Nós podemos ter a certeza de que ele sabia, pobre rapaz, quem tinha enterrado a Generys e onde ela estava sepultada. Por que outro motivo haveria ele de fugir de um lugar onde já não suportava estar, para entrar para um mosteiro, ainda por cima tão longe?

- Não há outra explicação - disse Radulfus num tom pensativo -; ele está a proteger outra pessoa. Alguém próximo que lhe é querido. Toda a sua preocupação é com a sua família e a honra da sua casa. Poderá ser o irmão?

- Não - disse Hugh. - O Eudo parece ser a única pessoa que escapou. O que quer que tenha acontecido no Campo do Oleiro, nem uma única sombra desse acontecimento recaiu sobre o Eudo. Ele está feliz, exceptuando a doença da mãe ele não tem quaisquer preocupações, está casado com uma mulher agradável e a aguardar ansiosamente o nascimento de um filho. Melhor ainda, ele está totalmente ocupado com a sua casa senhorial, com o trabalho das suas mãos e os frutos do seu solo, e raramente olha para baixo, para as coisas tristes que atormentam os homens menos simples. Não, podemos esquecer o Eudo.

- Houve duas pessoas - disse Cadfael lentamente - que fugiram de Longner depois de a Generys ter desaparecido. Uma para o mosteiro, a outra para o campo de batalha.

- O pai dele! - disse Radulfus, após o que ficou a reflectir por um momento. - Um homem com uma excelente reputação, um herói que combateu na retaguarda do rei em Wilton, e ali morreu. Sim, eu posso acreditar que Sulien prefira sacrificar a sua própria vida a ver essa reputação manchada. Por causa da mãe, do irmão e do futuro dos filhos do irmão, não menos do que por causa da memória do pai. Mas claro que - disse ele simplesmente - não podemos deixar as coisas como estão. E agora o que é que vamos fazer?

Cadfael tinha estado a pensar o mesmo desde que as armadilhas de Hugh tinham feito com que até mesmo os silêncios obstinados falassem com tamanha eloquência e confirmassem com segurança o que sempre estivera presente num canto da mente de Cadfael. Sulien sabia de coisas que o oprimiam como uma sensação de culpa, mas ele próprio não tinha qualquer culpa. Ele só sabia o que tinha visto. Mas o que tinha ele visto? Não a morte, senão ele ter-se-ia agarrado a todos os pormenores e tê-los-ia utilizado como prova contra si próprio. Só o enterro. Um rapaz na agonia do seu primeiro amor impossível, aceite e bem recebido numa dor e raiva devoradoras, depois posto de parte, talvez apenas porque Generys gostava demasiado dele e não queria que ele ficasse mais incuravelmente chamuscado e mutilado pelo fogo dela do que ele já estava, ou então porque outro homem já ocupara o seu lugar, irresistivelmente atraído para a mesma fornalha, uma privação inextricavelmente fundida com outra. Pois Donata já tinha, há vários anos, conhecimento da sua própria morte interminável, e Eudo Blount, na sua apaixonada e vigorosa plenitude, vira-se forçado, durante um igual número de anos, a ficar celibatário como um padre ou um monge. Dois seres esfomeados alimentaram-se. E um rapaz atormentado espiou-os, talvez apenas uma vez, talvez várias vezes mas, em qualquer dos casos, demasiadas vezes, alimentando a sua própria angústia com os ciúmes de um rival que nem sequer podia odiar porque o adorava.

Era concebível. Era provável. Então até que ponto o pai e o filho tinham conseguido dissimular a sua obsessão mútua e mutuamente destrutiva? E será que mais alguém naquela casa se apercebera do perigo?

Sim, era possível. Pois ela fora, como toda a gente dizia, uma mulher muito bonita.

- Eu acho - disse Cadfael - que, com a sua autorização, Pai, tenho que voltar a Longner.

- Não há necessidade - disse Hugh distraidamente. - Certamente que nós não podíamos deixar a dama à espera toda a noite sem dizer nada, e eu mandei lá um homem da guarnição.

- Para lhe dizer apenas que ele passa cá a noite? Hugh, o grande erro em tudo isto foi não lhe dizer mais do que meias-verdades inócuas para a manter satisfeita e despreocupada.

OU, pior ainda, não lhe dizer absolutamente nada. Esses disparates são feitos em nome da compaixão! Não devemos permitir que ela saiba nada disto! Temos que a proteger deste problema! Matando à fome a sua coragem, determinação e força de vontade e transformando-as numa frágil sombra, tal como a doença tem corroído o seu corpo. Quando, se eles a conhecessem e respeitassem como deviam, ela poderia ter tirado metade do fardo de cima deles. Se ela não tem medo da coisa monstruosa com a qual partilha a sua vida, então ela não tem medo de nada. É bastante natural - disse ele num tom pesaroso - que um filho ache que tem que ser o escudo e a defesa da sua mãe, mas ele não lhe está a fazer bem nenhum. Eu disse-lhe isso no caminho para cá. Ela preferiria poder satisfazer a sua própria vontade e propósito e ser o escudo e a defesa dele, quer ele o compreendesse ou não. Ou melhor ainda, se ele nunca o compreendesse.

- Tu pensas - disse Radulfus olhando-o com um ar sério - que se lhe deve dizer?

- Acho que há muito que se lhe deveria ter contado tudo o que há a dizer sobre este assunto. Eu acho que, mesmo agora, ela deveria saber. Mas eu não o posso fazer, nem permitir que seja feito se o puder evitar. No caminho para cá, prometi demasiado levianamente ao Sulien que, se fosse possível continuar a esconder a verdade dela, eu me certificaria de que isso seria feito. Bem, se pensa que é melhor adiar o assunto por hoje, tudo bem. É verdade que já é demasiado tarde para os incomodar. Mas, Pai, se me permitir, eu vou lá amanhã de manhã cedo.

- Se achas que é necessário, vai - disse o abade. - Se for possível devolver-lhe o filho com o mínimo de sofrimento e apaziguar a memória do seu marido sem divulgar qualquer desonra, tanto melhor.

- Certamente que uma noite - disse Hugh calmamente, pondo-se de pé juntamente com Cadfael - não vai alterar nada. Se ela tem vivido todo este tempo em feliz ignorância e for dormir esta noite julgando que o senhor abade deteve o Sulien cá sem que houvesse qualquer problema, podes deixá-la descansar à vontade. Quando conseguirmos que o Sulien nos diga a verdade, haverá tempo para reflectir sobre quanto ela deverá saber. Não é necessariamente mortal. Que sentido faz agora manchar o nome de um homem morto?

O que era bastante sensato, no entanto Cadfael abanou a cabeça, com dúvidas sobre estas poucas horas de demora.

- Mesmo assim, eu tenho que ir. Tenho uma promessa a manter. E acabei de me lembrar, um pouco tardiamente, que deixei lá alguém que não fez quaisquer promessas.

 

Cadfael pôs-se a caminho ao nascer do dia e avançou lentamente, pois não servia de nada chegar a Longner antes de os membros da casa estarem a pé. Além disso, agradava-lhe andar devagar e ter tempo para pensar, mesmo que os pensamentos não o levassem muito longe. Ele não sabia se devia estar à espera de encontrar tudo tal como deixara quando partira com Sulien, ou se já tinham renunciado ao silêncio e todo o secretismo tinha desaparecido da noite para o dia. Na pior das hipóteses, Sulien não corria qualquer perigo. Eles estavam de acordo em que ele não era culpado de nada a não ser de suprimir a verdade e, se a culpa pertencesse, de facto, a um homem que já morrera, que necessidade havia de divulgar a sua mácula ao mundo? O caso estava agora fora da jurisdição de Hugh ou do Rei Stephen, e não eram necessários advogados quando o seu caso fosse levado a tribunal. Tudo o que poderia ser usado como acusação ou atenuante era já conhecido do juiz.

Assim, a única coisa de que precisamos, pensou Cadfael, é de um pouco de engenho a lidar com a consciência de Sulien e de manipular um pouco a verdade para enterrar gradualmente o caso, e a dama não necessitaria de saber mais do que sabia na véspera. Com o tempo, os mexericos cansar-se-iam do assunto e voltar-se-iam para a pequena crise ou escândalo seguinte que ocorresse na cidade e, por fim, eles esquecer-se-iam que a sua curiosidade nunca fora satisfeita e que não tinha sido apanhado nenhum assassino.

E ali, compreendeu ele, era onde colidia frontalmente com o seu próprio desejo insatisfeito de ter a verdade, se não colocada perante toda a gente, pelo menos desenterrada, identificada e reconhecida. De outro modo, como poderia haver uma verdadeira reconciliação com a vida, a morte e as ordens de Deus?

Entretanto, Cadfael cavalgou através de uma manhã igual a qualquer outra manhã de Novembro, cinzenta, sem vento e parada, com todos os verdes dos campos esbranquiçados e secos, a filigrana das árvores despidas de metade das suas folhas, e a superfície do rio cor de chumbo e não de prata e agitada apenas por raras ondulações nos locais em que as correntes eram mais fortes. Mas os passarinhos estavam acordados e a cantar, atarefados e ruidosos, senhores das suas próprias minúsculas casas senhoriais, gritando os seus direitos e privilégios, desafiando os intrusos.

Ele deixou a estrada em Saint Giles e seguiu ao longo do trilho suave, elevado, parte prado, parte charneca e árvores espalhadas, que atravessava o terreno em direcção à barcaça. Para trás ficaram toda a azáfama de Foregate a acordar, o rangido das carroças, o ladrar dos cães e a mistura de muitas vozes, e a brisa que tinha sido imperceptível no meio das casas transformara-se num vento fresco. Ele passou a crista da encosta por entre as árvores que a orlavam e olhou para baixo, na direcção da curva sinuosa do rio, da íngreme elevação da margem e dos prados mais ao longe. E ali parou subitamente e ficou a olhar, espantado e com alguma consternação, para a barcaça que estava no meio do rio lá em baixo. A distância não era tão grande que ele não conseguisse distinguir claramente a carga que ela transportava em direcção à margem.

Uma liteira estreita, construída de forma a assentar em quatro pernas curtas e sólidas, estava no meio da barcaça, de modo a balouçar o menos possível. Um toldo de linho protegia o topo do vento e do tempo inclemente, e ela era assistida de um lado por um cavalariço entroncado e, do outro, por uma jovem com um manto castanho, de cabeça descoberta e com o cabelo castanho avermelhado despenteado pela brisa. Ao fundo da barcaça, onde o barqueiro impelia a sua carga através de águas plácidas, o segundo carregador segurava as rédeas de um cavalo malhado que nadava, imperturbável, atrás da barcaça. Na realidade, ele só tinha que nadar no meio do riacho, pois a água naquele local era ainda razoavelmente pouco funda. Os carregadores podiam ser criados de qualquer casa local, mas a rapariga era inconfundível. E quem seria transportado numa liteira ao longo de apenas algumas milhas e com um tempo razoável a não ser os doentes, os velhos, os aleijados ou os mortos?

Mesmo sendo tão cedo, ele iniciara esta viagem demasiado tarde. A Dama Donata tinha deixado o seu solar, deixado o seu salão, deixado, Deus sabe em que condições, o seu cuidadoso e solícito filho e viera descobrir por si própria que assuntos o abade e o xerife de Shrewsbury tinham a tratar com o seu segundo filho, Sulien.

Cadfael incitou a mula através da crista de árvores e começou a descer o longo declive do trilho para ir ao encontro delas, enquanto o barqueiro fazia deslizar suavemente a sua barcaça para o terreno plano e arenoso lá em baixo.

Pernel deixou os carregadores a conduzir o cavalo para a margem e içar a liteira para terra e correu ao encontro de Cadfael enquanto este desmontava. Ela estava corada do ar e da sua própria corrida, bem como da excitação improvável desta expedição extremamente improvável. Ela puxou-o ansiosa mas resolutamente pela manga olhando, muito séria, para o seu rosto.

- Ela quer ir! Ela sabe o que está a fazer! Porque é que eles nunca compreendem? Sabia que nunca lhe disseram nada sobre todo este assunto? A casa inteira... O Eudo queria mantê-la na ignorância, protegida e embrulhada em penas. Fizeram todos o que ele queria. Por afecto, mas de que é que lhe serve esse afecto? Cadfael, não havia ninguém livre para lhe dizer a verdade, excepto eu e o Cadfael.

- Eu não era livre - disse Cadfael concisamente. - Prometi ao rapaz respeitar o seu silêncio, como todos eles fizeram.

- Respeito! - exclamou Pernel, num tom de espanto. - Onde esteve o respeito por ela? Eu só a conheci ontem e parece-me que a conheço melhor do que todos aqueles que se movem o dia inteiro, todos os dias, sob o mesmo tecto. O Cadfael viu-a! Ela é apenas uma mão cheia de ossos magros, coberta de dor sob a forma de carne e coragem sob a forma de pele. Como é que qualquer homem pode olhar para ela e dizer a respeito de qualquer assunto, por mais atemorizador que ele seja: Não podemos permitir que chegue aos ouvidos dela, ela não conseguiria suportá-lol - Eu já compreendi - disse Cadfael dirigindo-se à faixa de terra para onde os carregadores tinham transportado a liteira. - A Pernel ainda estava livre, era a única pessoa.

- Uma é suficiente! Sim, eu contei-lhe tudo o que sei, mas ainda há mais que eu não sei, e ela quer saber tudo. Ela agora tem um objectivo, uma razão para sair de casa assim, por mais que se considere isso uma loucura... é melhor do que ficar sentada à espera da morte.

Uma mão magra abriu a cortina quando Cadfael se inclinou para o topo da liteira. A armação era de cânhamo entrançado, de modo a ser leve e ceder com o movimento e, no seu interior, Donata estava reclinada sobre cobertores dobrados e almofadas. Era assim que ela devia ter viajado há mais de um ano, quando fizera as suas últimas viagens ao mundo exterior a Longner. Era difícil imaginar os prodígios de resistência que lhe eram exigidos agora. Debaixo do toldo de linho, o seu rosto definhado estava lívido e contraído, os lábios eram cinzento-azulados e cerrados, pelo que ela teve que fazer um esforço para os abrir e falar. Mas a sua voz ainda era clara e possuía ainda a sua autoridade cortês mas inflexível.

- Vinha ao meu encontro, Irmão Cadfael? Pernel supôs que fosse a Longner. Pode estar descansado, eu vou à abadia. Soube que o meu filho se envolveu em questões que são importantes tanto para o senhor abade como para o xerife. Eu acho que posso esclarecer o assunto e resolver a questão.

- Terei todo o gosto em acompanhá-la e de a servir no que puder - disse Cadfael.

Já não valia a pena insistir com ela para que tivesse cuidado e bom senso, nem tentar que ela voltasse para trás, nem perguntar como é que ela escapara aos cuidados ansiosos de Eudo e da mulher para efectuar esta viagem. Ela sabia o que estava a fazer, não havia dor nem risco que a demovesse. A energia frágil tinha ardido nela como um fogo remexido. E ela era como um fogo atiçado, há demasiado tempo abafado e reduzido à resignação.

- Então vá à frente, Irmão - disse ela - se não se importa, e peça a Hugh Beringar que venha ter connosco aos aposentos do abade. Nós iremos mais devagar, e o Irmão e ele provavelmente chegarão lá antes de nós. Mas o meu filho não! - acrescentou ela, erguendo a cabeça com uma faísca breve e profunda nos olhos. - Deixem-no sossegado! É melhor, não é verdade, que os mortos suportem o peso dos seus próprios pecados e que não deixem esse peso para os vivos?

- É sem dúvida melhor - disse Cadfael. - Uma herança é mais generosa se não trouxer dívidas consigo.

- Óptimo! - disse ela. - As questões entre mim e o meu filho ficarão como estão até ao momento certo. Eu encarregar-me-ei disso. Ninguém mais se deve preocupar.

Um dos carregadores estava ocupado a secar a sela e o pelo molhado do cavalo para Pernel voltar a montar. A passo de marcha, ainda teriam mais uma hora de caminho. Donata afundou-se de novo nas almofadas, animada e imóvel, com todas as linhas descarnadas do seu rosto compostas numa resistência estóica. No seu leito de morte ela talvez tivesse este aspecto, nunca deixaria escapar um gemido. Morta, toda a tensão teria desaparecido, tão seguramente como a passagem de uma mão fecha os olhos pela última vez.

Cadfael montou a sua mula e voltou a subir a colina, dirigindo-se a Foregate e à cidade.

- Ela sabe? - disse Hugh, espantado. - A única coisa em que Eudo insistiu desde o primeiro dia que fui falar com ele, a única pessoa que ele não queria ver arrastada para uma questão tão sinistra! A última coisa que tu próprio disseste, quando nos despedimos ontem à noite, era que tinhas jurado mantê-la na ignorância. E agora contaste-lhe?

- Não fui eu - disse Cadfael. - Mas sim, ela sabe. Foi outra mulher que lhe contou. E ela está agora a caminho dos aposentos do abade, para contar o que tem a dizer às autoridades sagradas e seculares, e quer fazê-lo apenas uma vez.

- Por amor de Deus - perguntou Hugh, de boca aberta - como é que ela conseguiu fazer a viagem? Eu vi-a, ainda não há muito tempo, só de mover a mão ela ficava cansada. Há meses que não sai de casa.

- Não tinha uma razão forte para o fazer - disse Cadfael. - Agora tem. Ela não tinha motivo para lutar contra os cuidados e a ansiedade que lhe impunham. Agora tem. Não há fraqueza na sua força de vontade. Ela foi trazida numa liteira ao longo destas poucas milhas, com esforço da sua parte, eu sei, mas é o que ela quer fazer e eu, no que me diz respeito, não lhe negaria isso.

- E com esse esforço - disse Hugh -, ela talvez provoque a sua própria morte.

- E se assim fosse, seria um fim assim tão mau?

Hugh lançou-lhe um longo olhar pensativo e não o negou.

- O que disse ela, então, para justificar a sua atitude? Nada, ainda, excepto que os mortos devem carregar os seus próprios pecados, e não os deixar de herança aos vivos.

- É mais do que conseguimos arrancar ao rapaz - disse Hugh.

- Bem, deixá-lo ficar a pensar durante mais algum tempo. Ele tinha o pai para salvar, ela tem o filho. E, entretanto, os filhos e toda a casa têm estado ocupados a poupá-la. Se é ela que vai dirigir a orquestra agora, talvez ouçamos uma canção diferente. Espera, Cadfael, vai transmitir as minhas desculpas à Aline enquanto eu vou selar o cavalo.

Tinham chegado à ponte e seguiam tão devagar que pareciam estar a aproveitar o tempo para pensar antes de chegarem a reunião, quando Hugh disse:

- E ela não quis que o Sulien estivesse presente?

- Não. Ela disse muito firmemente: "O meu filho não! O que existe entre eles" disse ela, "pode esperar até ao momento certo." Quanto ao Eudo, ela sabe que o pode manipular toda a vida, se não disseres nada. E de que serve divulgar os pecados de um homem morto? Ele não pode ser obrigado a pagar por eles, e os vivos não devem fazê-lo por ele.

- Mas ela não pode enganar o Sulien. Ele presenciou o enterro. Ele sabe. O que pode ela fazer a não ser contar-lhe a verdade? Toda a verdade, para acrescentar à metade que ele já sabe.

Só nesse momento é que ocorreu a Cadfael interrogar-se se, de facto, eles conheciam, ou se Sulien conhecia, sequer metade da verdade. Eles estavam muito seguros, porque pensavam que tinham posto de parte todas as outras possibilidades, que o que lhes restava era a verdade. Agora a dúvida que tinha aguardado à parte apresentava-se subitamente como um mundo de possibilidades ainda não consideradas e, por mais que pensassem, não era possível excluir todas elas. O que saberia Sulien que não era, afinal, conhecimento, mas apenas uma suposição?

Desmontaram no pátio do estábulo da abadia e dirigiram-se à porta do abade.

Foi a meio da manhã que finalmente se reuniram na sala do abade. Hugh tinha esperado por ela na casa do portão, para garantir que ela fosse transportada de imediato ao longo do grande pátio até à porta dos aposentos de Radulfus. A sua solicitude talvez a fizesse recordar Eudo, pois quando ele a ajudou a sair da liteira no meio dos canteiros outonais do jardim do abade, ela esboçou um pequeno sorriso rígido mas tolerante, suportando as atenções demasiado ansiosas da juventude e da saúde com a paciência, alcançada com grande dificuldade, da idade e da doença. Ela aceitou o apoio do seu braço através da antecâmara onde normalmente o Irmão Vitalis, capelão e secretário, estaria a trabalhar a esta hora, e o Abade Radulfus tomou a sua mão do outro lado e conduziu-a para o interior, até um local almofadado preparado pára ela, com o apoio da parede apainelada atrás de si.

Cadfael, que observava esta cerimoniosa instalação sem tentar tomar parte nela, pensou que a mesma continha algo semelhante à entronização de uma dama soberana. Talvez, no íntimo, isso até a divertisse. Os privilégios da doença mortal quase lhe tinham sido impostos, e era possível que nunca se viesse a saber o que ela pensava deles. Certamente que ela tinha uma dignidade imperecível e uma compreensão ampla e tolerante da preocupação e até mesmo da intranquilidade que causava aos outros e que tinha que suportar graciosamente. Cuidadosamente vestida para uma provação e visita social, ela tinha também uma frágil e admirável elegância. O vestido era azul escuro como os seus olhos e, tal como os olhos, ligeiramente desbotado, e a túnica que usava por cima dele, sem mangas e até às ancas, era do mesmo azul, bordado a cor de rosa e prata na bainha. A brancura da sua touca de linho transformava as suas faces encovadas num cinzento translúcido à luz do meio dia.

Pernel tinha-os seguido silenciosamente até à antecâmara, mas não entrou na sala. Ficou à espera na ombreira da porta, com os seus olhos castanhos redondos e graves.

- Pernel Otmere foi bastante amável em me fazer companhia durante todo o caminho - disse Donata - e estou-lhe grata por mais do que isso, mas ela não precisa de ser submetida ao tédio de ouvir a longa conversa que receio impor-vos, meus senhores. Se não se importam que pergunte primeiro... onde está o meu filho agora?

- Está no castelo - disse Hugh simplesmente.

- Enclausurado? - perguntou ela directamente, mas sem censura nem excitação. - Ou em liberdade condicional?

- Ele tem a liberdade das alas - disse Hugh, não dando mais esclarecimentos.

- Então, Hugh, se tiveres a amabilidade de dar à Pernel algo que lhe permita entrar para o ver, eu acho que eles poderão passar o tempo de uma forma muito mais agradável juntos do que separados enquanto nós conversamos. Sem prejuízo - disse ela suavemente - de quaisquer procedimentos que tenhas em mente para mais tarde.

Cadfael viu as sobrancelhas pretas, traiçoeiras, de Hugh estremecer e elevarem-se em oblíqua ponderação, e agradeceu encarecidamente a Deus a existência de uma compreensão tão rara entre duas pessoas tão diferentes.

- Eu vou dar-lhe a minha luva - disse Hugh, lançando um breve olhar divertido à rapariga silenciosa na ombreira da porta. - Ninguém a porá em causa, não é preciso mais nada. - E ele deu meia volta, pegou na mão de Pernel e saiu com ela da sala.

Os seus planos tinham sido feitos, obviamente, na noite anterior ou de manhã, no solar de Longner, quando a verdade surgiu, tanto quanto a verdade era conhecida, ou durante a viagem ao nascer do dia, antes sequer de terem chegado à barcaça que fazia a travessia do Severn, onde Cadfael tinha ido ao seu encontro. No salão de Eudo tinha sido preparada uma conspiração de mulheres que tinha em devida conta os direitos e as necessidades de Eudo, a gravidez feliz da sua mulher, mesmo enquanto alimentava e fomentava a busca determinada, por parte de Pernel Otmere, de uma verdade que libertasse Sulien Blount de todos os fardos assombrados e cavalheirescos que pesavam sobre ele. A jovem e a velha - velha não em idade, apenas na rapidez com que se aproximava da morte - tinham-se unido como íman e metal, para construir a sua própria justiça.

Hugh voltou para a sala a sorrir, embora o sorriso fosse invisível para todos com excepção de Cadfael. Um sorriso preocupado, mesmo assim, pois ele também andava à procura de uma verdade que talvez não fosse a verdade de Pernel. Ele fechou a porta com firmeza atrás de si.

- Agora, minha senhora, em que a podemos servir?

Ela tinha assumido uma postura de imobilidade que poderia ser mantida durante uma longa reunião. Sem o manto, era uma figura tão pequena que dava a impressão de que um homem poderia abarcar o seu corpo com as mãos.

- Eu tenho que vos agradecer, meus senhores - disse ela - , por me terem concedido esta audiência. Devia tê-la pedido mais cedo, mas só ontem tomei conhecimento do assunto que vos tem perturbado. A minha família é demasiado cuidadosa em relação a mim, e a sua intenção era poupar-me qualquer conhecimento que me pudesse preocupar. Um erro! Não há nada mais preocupante do que descobrir, muito tarde, que aqueles que reorganizam as circunstâncias à nossa volta para nos poupar sofrimento têm, eles próprios, sofrido dia e noite. E, desnecessário será dizer, inutilmente. É uma indignidade, não acham, ser protegido por pessoas que sabemos que precisam mais de protecção do que jamais precisámos ou alguma vez precisaremos? Mesmo assim, é um erro causado pelo afecto, não me posso queixar. Mas já não preciso de o suportar. A Pernel teve o bom senso de me relatar o que mais ninguém me queria contar. Mas ainda há coisas que ainda não sei, uma vez que ela própria as desconhece. Posso perguntar?

- Pergunte o que quiser - disse o abade. - Leve o tempo que quiser e, se precisar de descansar, diga-nos.

- É verdade - disse Donata -, agora não há pressa. Os que estão mortos estão em segurança, e os que estão vivos e apanhados nesta confusão também estão seguros. Eu soube que o meu filho Sulien vos deu causa para o julgarem culpado desta morte que está a ser julgada aqui. Ele ainda é suspeito?

- Não - disse Hugh sem hesitar. - De assassínio, certamente que não. Embora ele diga e mantenha, e não é possível demovê-lo, que está disposto a confessar o assassínio. E, se necessário, a morrer por isso.

Ela acenou lentamente a cabeça, nada surpreendida. As dobras engomadas de linho sussurraram suavemente contra as suas faces.

- Eu calculei que assim fosse. Quando o Irmão Cadfael o foi buscar ontem, eu não sabia de nada que me fizesse interrogar-me a mim própria ou fazer perguntas. Pensei que tudo era o que parecia ser, e que o Abade ainda tinha dúvidas sobre se ele tomara a decisão certa e se não deveria ser aconselhado a pensar mais reflectidamente sobre o abandono da sua vocação. Mas quando a Pernel me disse que tinham encontrado a Generys e que o meu filho tinha provado que o Ruald estava inocente, demonstrando que ela, de facto, não podia ser a Generys... e depois que ele se empenhara, mais uma vez, em encontrar a mulher Gunnild viva... Então eu compreendi que ele fizera recair a inevitável suspeita sobre si próprio, uma vez que sabia demasiado. Tanto esforço desperdiçado, se ao menos eu tivesse sabido! E ele estava disposto a carregar com esse fardo? Bem, mas parece que os senhores já tinham visto através das falsas aparências, sem qualquer ajuda da minha parte. Posso presumir, Hugh, que estiveste em Peterborough? Ouvimos dizer que regressaste há pouco tempo dos Fens e, uma vez que mandaram chamar o Sulien logo a seguir ao teu regresso, não pude deixar de chegar à conclusão de que os dois factos estavam relacionados.

- Sim, eu fui a Peterborough - disse Hugh.

- E descobriste que ele tinha mentido?

- Sim, ele tinha mentido. O ourives alojou-o por uma noite, é verdade. Mas não lhe deu o anel, nunca viu o anel, nunca comprou nada à Generys. Sim, o Sulien mentiu.

- E ontem? Quando o confrontaram com as suas mentiras, o que é que ele vos disse ontem?

- Disse que o anel sempre estivera na sua posse, que a Generys lho dera.

- Uma mentira conduz a outra - disse ela com um suspiro profundo. - Ele achava que tinha um bom motivo, mas os motivos nunca são suficientemente bons. As mentiras dão sempre mau resultado. Eu posso dizer-vos onde é que ele foi buscar o anel. Ele tirou-o de uma caixinha que eu guardo no meu armário. Há mais algumas coisas lá, um alfinete para prender o manto, um colar de prata simples, uma fita... Tudo coisas sem valor, mas que poderiam ser reconhecidas e através das quais ela poderia ser identificada, mesmo ao fim de muitos anos.

- Está a querer dizer - perguntou Radulfus, escutando, incrédulo, o tom calmo e distante da voz que proferia aquelas palavras - que essas coisas foram tiradas da mulher morta? Que ela é realmente a Generys, a mulher do Ruald?

- Sim, ela é realmente a Generys. Eu poderia tê-la identificado imediatamente, se alguém me tivesse perguntado. Eu não gosto de mentiras. E, sim, os objectos eram todos dela.

- É um pecado terrível - disse o abade pesadamente - roubar dos mortos.

- Não houve tal intenção - disse ela com uma calma inabalável. - Mas, sem eles, ninguém seria capaz de a identificar, mesmo ao fim de muito tempo. Conforme descobriram, ninguém conseguiu fazê-lo. Mas não foi uma decisão minha, eu não teria ido tão longe. Eu penso que foi quando o Sulien trouxe o corpo do meu senhor de volta de Salisbury, depois de Wilton, e o enterrámos e pusemos todos os seus assuntos e dívidas em ordem, que o Sulien encontrou a caixa. Ele havia de reconhecer o anel. Quando precisou de uma prova para demonstrar que ela ainda estava viva, então foi a casa buscá-lo. De outro modo, nunca ninguém usou ou tocou nas coisas dela. Elas estão simplesmente guardadas. Eu posso entregá-las prontamente aos senhores, ou a quem as reclamar. Até à noite passada eu não tinha aberto a caixa desde que lá a colocara. Eu não sabia o que ele tinha feito. Nem o Eudo sabia. Ele não sabe nada sobre este assunto. Nem alguma vez saberá.

Do seu canto preferido, de onde podia observar sem se envolver, Cadfael falou pela primeira vez.

- Eu também penso que a senhora poderá não saber tudo o que gostaria de saber sobre o seu filho Sulien. Tente recordar-se da altura em que o Ruald entrou para esta casa, abandonando a mulher. Até que ponto sabia o que se passava na mente do Sulien? Sabia que ele era profundamente afeiçoado à Generys? Um primeiro amor, sempre o mais desesperado. Sabia que, na sua desolação, ela lhe deu motivo para pensar que talvez houvesse uma cura para a dele? Quando, na verdade, não havia nenhuma?

Ela tinha voltado a cabeça e fixado os seus olhos escuros sérios no rosto de Cadfael, e respondeu com firmeza:

- Não, não sabia. Eu sabia que ele ia à quinta deles. Ele fazia-o desde pequeno, eles gostavam dele. Mas se houve uma alteração tão extrema, não, ele nunca disse uma palavra nem deu qualquer indício. Ele era uma criança reservada. Quando o Eudo tinha problemas, eu sabia sempre, ele é muito cristalino. O Sulien, não!

- Ele disse-nos que assim foi. E sabia que, por causa desse afecto, ele continuava a lá ir, mesmo depois de ela ter posto termo à sua ilusão? E que ele estava lá, no escuro - perguntou Cadfael com uma suavidade pesarosa - quando a Generys foi enterrada?

- Não, não sabia - disse ela. - Só agora comecei a receá-lo. Isso ou qualquer outra coisa não menos horrível que ele tivesse ficado a saber.

- Suficientemente horrível para justificar muita coisa. Porque é que ele decidiu tomar o hábito, e não o fez aqui em Shrewsbury, mas sim longe, em Ramsey? O que pensa disso, então?

- Nele, isso não era muito estranho - disse ela, olhando para a distância e sorrindo vaga e tristemente. - Era algo que podia acontecer ao Sulien, ele era uma pessoa profunda e pensativa. E depois, havia azedume e dor em casa, e eu sei que ele não podia deixar de o sentir e ficar perturbado. Eu penso que não lamentei o facto de ele ter fugido e se ter libertado, mesmo que tivesse sido para o convento. Eu não sabia que havia uma razão pior. Que ele estivera lá e vira... não, isso eu não sabia.

- E o que ele viu - disse Hugh após um breve e pesado silêncio - foi o seu pai a enterrar o corpo da Generys.

- Sim - disse ela -, deve ter sido isso.

- Não conseguíamos encontrar outra possibilidade - disse Hugh - e lamento ter de o dizer directamente a si. Embora eu ainda não consiga compreender que motivo poderia haver, a razão por que ele a matou e como é que o fez.

- Oh, não! - disse Donata. - Não, isso não. Ele enterrou-a, sim. Mas não a matou. Porque é que ele havia de o fazer? Estou a ver que o Sulien acreditava nisso e não permitiria, por nada no mundo, que se soubesse. Mas não foi assim.

- Então quem o fez? - perguntou Hugh, confundido. - Quem foi o assassino?

- Ninguém - disse Donata. - Não houve qualquer assassinato.

 

No incrédulo silêncio que se seguiu, a voz de Hugh perguntou:

- Se não houve assassinato, porquê o enterro secreto, porquê ocultar uma morte que não acarretava qualquer culpa?

- Eu não disse - respondeu Donata pacientemente - que não houve culpa. Eu não disse que não houve pecado. Não me compete a mim julgar. Mas não houve qualquer assassinato. O juízo deve ser vosso.

Ela falou como uma pessoa, a única pessoa, que pudesse esclarecer tudo o que tinha acontecido, e a única que fora mantida na ignorância da necessidade de o fazer. A sua voz permaneceu atenciosa, segura e amável. Ela expôs o seu caso muito simples e claramente, não se desculpando de nada, não lamentando nada.

- Quando o Ruald abandonou a mulher, ela ficou desolada e desesperada. Não se deverá ter esquecido disso, Pai, pois deve ter tido muitas dúvidas sobre a decisão dele. Quando viu que não conseguia demovê-lo, ela apelou para o meu marido, como suserano e amigo de ambos, para que falasse com o Ruald e o persuadisse de que estava a agir muito mal. E eu penso que, de facto, ele fez o melhor que pôde por ela e tentou também, seguramente, consolá-la e tranquilizá-la de que não perderia a casa nem o sustento devido ao facto de o Ruald a ter abandonado. O meu senhor era bom para a sua gente. Mas o Ruald não virou as costas ao caminho que escolhera. Ele deixou-a. Ela amava-o loucamente - disse Donata friamente, dizendo a pura verdade - e, na mesma medida, odiava-o. E durante todos aqueles dias e semanas, o meu senhor lutou pelos direitos dela, mas não conseguiu vencer a batalha. Ele nunca tinha estado tantas vezes e durante tanto tempo na sua companhia.

Ela fez uma pausa momentânea, olhando de rosto para rosto, mostrando a sua própria ruína com olhos bem abertos, sem ilusões.

 

- Os senhores estão a ver-me como sou agora. Desde essa altura eu posso, talvez, ter-me aproximado um pouco mais da sepultura, mas a diferença não é muito grande. Eu já estava como estou agora. Há muitos anos que estou assim. Tinham decorrido pelo menos três, julgo eu, desde que o Eudo partilhara a minha cama, por pena de mim, sim, mas ele próprio em abstinência, e sem se queixar. A beleza que eu alguma vez possuíra tinha desaparecido, murchando nesta concha dolorosa. Ele não conseguia tocar-me sem me causar dor. E uma dor maior a ele próprio, quer me tocasse, quer se abstivesse. E ela, como se recordarão se alguma vez a viram, era extremamente bela. Eu digo o mesmo que todos os homens dizem. Extremamente bela, enraivecida e desesperada. E esfomeada, tal como ele. Receio estar a constrangê-los, cavalheiros - disse ela, vendo os três imóveis de espanto com a sua compostura e implacável franqueza, exposta sem qualquer ênfase, até mesmo com compaixão. - Espero que não. Eu simplesmente desejo tornar tudo claro. É necessário que assim seja.

- Não há necessidade de elaborar mais - disse Radulfus. - Isso não é difícil de compreender, mas deve ser tão difícil de contar como de ouvir.

- Não - disse ela num tom tranquilizador. - Não sinto qualquer relutância. Não se preocupem comigo. Eu tenho uma dívida de verdade para com ela, bem como para convosco. Mas basta. Ele amava-a. Ela amava-o. Sejamos breves. Eles amavam-se, e eu sabia. Mais ninguém. Eu não os culpei por isso. Também não lhes perdoei. Ele era o meu senhor, eu amava-o há vinte cinco anos e não deixara de o amar por me ter tornado uma concha vazia. Ele era meu, e não suportaria partilhá-lo.

"E agora - disse ela -, tenho que contar uma coisa que tinha acontecido mais de um ano antes. Nessa altura, eu estava a utilizar os medicamentos que me mandava, Irmão Cadfael, para aliviar as dores quando estas se tornavam demasiado fortes. E admito que o xarope de papoilas ajuda, de facto, durante algum tempo, mas depois o encanto falha, o corpo habitua-se, ou então o demónio interior torna-se mais forte.

- É verdade - disse Cadfael num tom sério. - Eu já o vi perder a eficácia. E o tratamento não pode ir para além de determinada dose.

- Isso eu compreendo. Para além disso, há apenas uma cura, e nós estamos proibidos de recorrer a ela.

Mesmo assim - disse Donata inexoravelmente -, eu reflecti sobre como havia de morrer. Um pecado mortal, Pai, eu sabia, mas pensei nisso. Oh, não, não olhe de lado para o Irmão Cadfael, eu não teria ido ter com ele para obter os meios, eu sabia que ele não mos daria. E eu também nunca tive intenção de desistir facilmente da vida. Mas eu previa que haveria uma altura em que o fardo seria mais pesado do que eu conseguiria suportar e desejei ter algo comigo, um pequeno frasco de libertação, uma promessa de paz que talvez nunca utilizasse, apenas para guardar como um talismã que, só de lhe tocar, me fizesse sentir alguma consolação de que na pior... no limite, eu tinha uma forma de escapar. Saber isso era continuar a suportar o sofrimento. Isso é condenável, Pai?

O Abade Radulfus saiu abruptamente de uma imobilidade mantida há tanto tempo que emergiu dela inspirando profundamente, como se ele próprio tivesse sido tomado de uma percepção sombria do sofrimento dela.

- Eu não tenho a certeza de ter o direito de me pronunciar. A senhora está aqui, resistiu à tentação. A única coisa que é exigida aos mortais é vencer a atracção do mal. Mas não fez qualquer referência às outras consolações que a alma cristã tem à sua disposição. Eu sei que o seu padre é um homem virtuoso. Deu-lhe a oportunidade de tirar algum do peso de cima de si?

- O Padre Eadmer é um homem bom e generoso - disse Donata com um leve sorriso irónico - e sem dúvida que a minha alma tem beneficiado com as suas orações. Mas a dor está aqui no corpo e fala muito alto. Por vezes eu não conseguia ouvir a minha própria voz a dizer Amén!, por causa dos uivos do demónio. No entanto, certo ou errado, eu procurei outra ajuda.

- Isto tem alguma relação com o presente? - perguntou Hugh suavemente. - Pois não pode ser agradável para si, e Deus sabe que deve estar a cansá-la.

- Tem uma grande relação. Vocês vão ver. Tenham paciência comigo até eu terminar o que comecei. Eu tinha o meu talismã - disse ela. - Não vos vou dizer quem mo deu. Eu ainda conseguia deslocar-me, vaguear por entre as bancas da feira da abadia ou do mercado. Comprei o que queria a uma vendedora ambulante. Nesta altura, ela própria já deve ter morrido, pois era velha. Mas fez-me o que eu queria, deu-me uma poção dentro de um frasquinho, para me libertar da dor e do mundo. Com o frasco bem tapado, disse ela, a poção não perderia a potência.

Ela falou-me das suas propriedades, pois em doses muito pequenas é utilizada para combater a dor quando tudo o mais falha, mas em toda a sua potência poria para sempre termo à dor. A erva é a cicuta.

- São conhecidos casos - disse Cadfael num tom sombrio - em que ela pôs termo para sempre à dor quando o sofredor não tencionava desistir da vida. Eu não a utilizo. É demasiado perigosa. Com ela pode-se fazer uma loção para as úlceras, inchaços e inflamações, mas existem outros remédios mais seguros.

- Sem dúvida! - disse Donata. - Mas a segurança que eu procurava era de um tipo diferente. Eu tinha o meu talismã e mantinha-o sempre comigo, e muitas vezes tocava-lhe quando a dor era insuportável, mas retirava sempre a mão sem tirar a tampa. Como se o mero facto de o ter me desse mais forças. Tenham paciência comigo, estou a chegar ao assunto. O ano passado, quando o meu senhor se entregou completamente ao amor da Generys, eu fui à cabana dela, numa hora da tarde em que o Eudo estava algures noutro local da sua casa senhorial. Levei uma boa garrafa de vinho, duas canecas iguais e o meu frasco de cicuta. E fiz-lhe uma proposta.

Ela fez uma pausa apenas para respirar e mudou rapidamente da posição em que estava há tanto tempo imóvel. Nenhum dos seus três ouvintes tinha a intenção de quebrar o fio à meada do seu pensamento. Todas as suas suposições já tinham sido varridas pelo vento do frio distanciamento dela, pois ela falava da dor e da paixão num tom de voz tranquilo, quase indiferente, preocupada apenas em tornar tudo claro, de modo a que não restasse qualquer dúvida.

- Eu nunca fui inimiga dela - disse ela. - Nós conhecíamo-nos há muitos anos, eu senti a sua raiva e desespero quando o Ruald a abandonou. Isto não foi feito por ódio, inveja ou despeito. Nós éramos duas mulheres agrilhoadas pelas correntes dos nossos direitos sobre um homem, e nenhuma de nós conseguia suportar a mutilação de ter de o partilhar. Eu propus-lhe uma forma de sair da armadilha. Enchíamos duas canecas de vinho e acrescentaríamos a poção de cicuta a uma delas. Se fosse eu a morrer, ela ficaria com o meu senhor e, Deus sabe, a minha bênção se lhe pudesse dar a felicidade que eu perdera o poder de dar. E se fosse ela a morrer, eu jurei-lhe que viveria a minha vida até ao fim sem paliativos e nunca mais voltaria a procurar alívio para as dores.

- E a Generys concordou com a proposta? - perguntou Hugh, incrédulo.

- Ela sentia-se tão amarga, ousada e resoluta como eu, e igualmente atormentada por ter e, ao mesmo tempo, não ter. Ela concordou. E, julgo eu, de bom grado.

- No entanto, essa não era uma coisa fácil de fazer com imparcialidade.

- Sem vontade de fazer batota, não, era muito fácil - disse ela simplesmente. - Ela saiu da sala e não ficou a ver nem a ouvir enquanto eu enchia as canecas por igual, mas uma continha a cicuta. Depois saí, fui até ao Campo do Oleiro, enquanto ela pegava nas canecas e as mudava de lugar conforme achou melhor, colocando uma em cima do armário e a outra em cima da mesa, após o que me foi chamar, e eu escolhi. Foi em Junho, a vinte e oito, num belo dia de Verão. Recordo-me que as ervas dos campos estavam a florir, eu voltei para a cabana com as saias salpicadas com a prata das suas sementes. E nós sentámo-nos as duas, ali dentro, bebendo o nosso vinho e sentindo-nos em paz. E depois, uma vez que eu sabia que a poção provocava a rigidez de todo o corpo, desde as extremidades até ao coração, concordámos em separar-nos, ela deixou-se ficar quieta onde estava, eu voltei para Longner, a que Deus... será que me atrevo a dizer Deus, Pai, ou deverei dizer antes o acaso, ou o destino?... a que fosse escolhida deveria morrer em casa. Eu juro-lhe, Padre, que não me esquecera de Deus, não pensei que ele me tivesse riscado do seu livro. Era tão simples como está escrito: das duas, uma será levada, a outra ficará. Fui para casa e, enquanto esperei, fiei. E hora após hora, pois demora algum tempo a acontecer, esperei que as mãos ficassem dormentes e que eu me atrapalhasse a manusear a lã na roca, mas os meus dedos continuaram a fiar e o meu pulso a rodar, e não houve qualquer alteração na minha destreza. E esperei que o frio invadisse os meus pés e subisse pelos meus tornozelos, mas não senti frio nem qualquer inabilidade, e respirava sem dificuldade.

Ela soltou um suspiro fundo e encostou a cabeça ao painel da parede, aliviada do peso que lhes trouxera.

- Tinha ganho a sua aposta - disse o abade numa voz baixa e triste.

- Não - disse Donata. - Eu perdera a minha aposta. - E, passado um momento, acrescentou escrupulosamente. - Há um pormenor que me esqueci de referir. Quando nos despedimos, beijámo-nos como duas irmãs.

Ela não tinha terminado, estava apenas a reunir forças para prosseguir de forma coerente até ao fim, mas o silêncio durou alguns minutos. Hugh levantou-se do seu lugar e encheu um cálice de vinho do jarro que estava em cima da mesa e foi sentar-se ao lado dela, ao alcance da sua mão.

- Está muito cansada. Não quer descansar um pouco? Já fez o que veio fazer. O que quer que isto tenha sido, não foi um assassinato.

Ela ergueu os olhos para ele com a indulgência benigna que actualmente sentia em relação a todos os jovens, como se tivesse cem anos e não quarenta e cinco, e visto todos os tipos de tragédia acontecer e cair no esquecimento.

- Obrigada, mas sinto-me melhor por ter resolvido este assunto. Não precisam de se incomodar comigo. Deixem-me terminar, que depois eu irei descansar. - Mas, para lhe fazer a vontade, ela estendeu a mão para o cálice e, ao ver como até mesmo o peso mais leve lhe fazia tremer o pulso, Hugh apoiou-o enquanto ela bebia. Por um momento, o vinho tinto deu aos seus lábios cinzentos a humidade e a cor do sangue.

"Deixem-me terminar! O Eudo chegou a casa, eu contei-lhe o que tínhamos feito e que a sorte não tinha recaído sobre mim. Eu não queria segredos, estava disposta a dizer a verdade, mas ele não quis. Ele perdera-a e não queria perder-me a mim, nem à sua honra, nem à do seu filho. Nessa noite ele saiu sozinho e enterrou-a. Agora eu vejo que o Sulien, no seu profundo sofrimento, o deve ter seguido e descoberto a efectuar um rito funerário. Mas o meu senhor nunca soube isso. Nunca foi dita uma palavra sobre o assunto, nunca houve qualquer indício a esse respeito. Ele disse-me que a encontrara deitada na cama como se estivesse a dormir. Quando se sentiu ficar dormente ela deve ter-se deitado ali, à espera da morte. Ele trouxe para casa consigo, sem esconder de mim, as pequenas coisas que ela usava e que lhe davam um nome e uma identidade. Já não havia segredos entre nós, não havia ódio, apenas um sofrimento partilhado. Eu nunca soube se ele as retirou por minha causa, considerando que eu cometera um crime terrível, como admito que um homem possa pensar, e receando as consequências que eu poderia sofrer, ou se as queria para si próprio, como as únicas coisas que poderia guardar dela.

"O tempo passou, como tudo passa. Quando deram pela falta dela, ninguém se lembrou de olhar de soslaio para nós. Não sei quando é que se começou a dizer que ela partira de livre vontade, com um amante, mas a notícia espalhou-se como sucede com os mexericos, e as pessoas acreditaram. Quanto ao Sulien, ele foi o primeiro a fugir de casa. O meu filho mais velho nunca se deu com o Ruald nem com a Generys, para além de palavras de cortesia quando se encontravam nos campos ou atravessavam o rio juntos na barcaça. Ele estava ocupado com a casa senhorial e a pensar em se casar, e nunca teve noção de que havia dor dentro de casa. Mas o Sulien era diferente. Eu senti a sua inquietação, antes mesmo de ele nos dizer que estava decidido a entrar para Ramsey. Agora eu sei que havia uma razão melhor para os seus problemas do que eu julgara. Mas a sua partida afectou ainda mais o meu senhor e, a dada altura, ele já não suportava aproximar-se do Campo do Oleiro, nem olhar para o local onde ela tinha vivido e morrido. Ele fez a doação a Haughmond, para se libertar dele e, quando o processo terminou, foi juntar-se ao Rei Stephen em Oxford. E sabem o que lhe aconteceu a seguir.

"Eu não pedi o privilégio da confissão, Pai - disse ela escrupulosamente - pois não quero guardar mais segredos daqueles que têm capacidade para me julgar, pertençam eles à Lei ou à Igreja. Eu estou aqui, façam o que considerarem apropriado. Eu não a enganei quando ela estava viva, foi uma proposta justa, e não a engano agora que ela está morta. Eu mantive o meu juramento. Não tomo quaisquer paliativos, qualquer que seja o meu estado. Pago o meu tributo todos os dias da vida que me resta, até ao fim. Apesar do que vêem, sou forte. O fim pode estar ainda muito distante.

Estava feito. Ela ficou imóvel e com uma curiosa satisfação patente na relativa tranquilidade do seu rosto. Ao longe, no outro lado do pátio, o sino do refeitório soou o meio-dia.

O oficial do rei e o representante da Igreja não trocaram mais do que um olhar como uma espécie de consulta. Cadfael reparou nele e perguntou a si próprio qual deles falaria primeiro e, na verdade, qual destas duas autoridades tinha um direito de precedência num caso tão estranho. O crime era um assunto da competência do Hugh, o pecado era pertença do Abade, mas o que era a justiça neste caso em que os dois estavam tão tristemente interligados que não era possível destrinçá-los? Generys estava morta, Eudo estava morto, quem lucraria com o facto de a questão ser levada para diante? Quando dissera que os mortos devem suportar o peso dos seus próprios pecados Donata contara-se entre eles. E embora para ela a aproximação da morte tivesse sido infinitamente lenta, ela estaria certamente próxima. Hugh foi o primeiro a falar.

- Não há nada aqui - disse ele - que caia sob a minha jurisdição. O que foi feito, quer tenha sido certo ou errado, não foi um assassínio. Se foi crime sepultar um morto sem ser abençoado, quem o fez também já morreu, e que benefícios traria para a lei do rei ou para a boa ordem do meu condado proclamar a sua desonra agora? Também ninguém desejaria aumentar a sua dor, ou causar perturbação ao herdeiro do Eudo, que é inocente de tudo. Eu direi que o caso está encerrado, por solucionar, e deixá-lo-ei ficar assim, para meu descrédito. Eu não sou tão infalível que não possa falhar como qualquer outro homem e admitir o fracasso. Mas há coisas que precisarão de ser ditas. Acho que não há outra solução a não ser tornar público que a Generys é a Generys, embora nunca se venha a saber como é que ela morreu. O Ruald tem o direito de saber que ela está morta e de chorar devidamente a sua morte. Com o tempo, as pessoas deixarão o assunto cair no esquecimento. Mas, para si, ainda há o Sulien.

- E a Pernel - disse Donata.

- E a Pernel. É verdade, ela já conhece metade da história. O que vai fazer a respeito deles?

- Contar-lhes a verdade - disse ela com firmeza. - De outra forma, como poderão eles ficar descansados? Eles merecem a verdade, eles podem suportar a verdade. Mas o meu filho mais velho não. Deixemo-lo com a sua inocência.

- Como é que lhe vai explicar esta visita? - perguntou Hugh num tom prático. - Ele sabe sequer que está cá?

- Não - admitiu ela com o seu sorriso triste -, ele saiu cedo de casa. Sem dúvida que ele pensará que eu estou louca mas, quando eu regressar tão bem como quando saí, não será difícil apaziguá-lo. A Jehane sabe. Ela tentou dissuadir-me, mas eu não me deixei demover, por isso ele não a pode culpar. Eu disse-lhe que queria rezar por ajuda no santuário de Santa Winifred. E farei isso, Pai, com a sua autorização, antes de regressar. Se - disse ela - eu regressar?

- Pela minha parte, sim - disse Hugh. - E com essa finalidade - acrescentou ele, pondo-se de pé - se o senhor abade concordar, eu vou buscar o seu filho.

Ele esperou que o abade falasse, o que demorou bastante tempo. Cadfael conseguia adivinhar qualquer coisa, pelo menos, do que se passava naquela mente austera e íntegra. Fazer acordos com a vida e a morte não é muito diferente do suicídio, e o desespero que possa levar à aceitação de uma proposta daquele tipo é, em si, um pecado mortal. Mas a mulher morta assombrava a mente com compaixão e dor, e a viva estava ali a frente dos seus olhos, implacavelmente estóica, com a morte a aproximar-se de forma interminável, cumprindo inexoravelmente o castigo que se impusera a si própria quando perdera a aposta. E apenas um juízo, o final, seria certamente suficiente, e esse ainda não estava marcado.

- Assim seja! - disse finalmente Radulfus. - Eu não posso aprovar nem condenar. É possível que a justiça ja tenha alcançado o seu próprio equilíbrio mas, onde não há certezas, a mente deve voltar-se para a luz e não para a sombra. Se Deus exigir penitência, minha filha, tu és a tua própria penitência. Eu não posso fazer nada, a não ser rezar para que tudo o que resta resulte em graça. Já houve feridas suficientes, vamos tentar por todos os meios não causar mais. Que nada mais seja dito, para além dos que têm o direito de saber, para sua própria tranquilidade. Sim, Hugh, se não te importas, vai buscar o rapaz e a rapariga que, ao que parece, lançou uma luz tão benfazeja sobre estas sombras dolorosas. E, minha senhora, quando tiver descansado e comido em minha casa, ajudá-la-emos a ir até à igreja, até ao altar da Santa Winifred.

- E eu encarregar-me-ei - disse Hugh - de me certificar que chega sã e salva a casa. Faça o que for necessário pelo Sulien e pela Pernel. Tenho a certeza de que o Pai Abade fará o que É necessário pelo Irmão Ruald.

- Isso - disse Cadfael -, farei eu, se me for dada autorização.

- Com a minha bênção - disse Radulfus. - Vai à procura dele depois do jantar no refeitório e conta-lhe como a história dela termina em paz.

Antes de o dia ter chegado ao fim, eles tinham feito tudo.

Estavam de pé sob o muro alto do cemitério, no canto mais distante onde os benfeitores leigos modestos, bem como os administradores e criados fiéis da abadia, tinham um lugar, e sob um montículo baixo ainda a assentar e a ficar coberto de verdura, jazia a mulher sem nome que ficara órfã depois de morta e a quem a compaixão beneditina recebera e dera acolhimento.

Cadfael tinha ido com Ruald depois das Vésperas, sob a chuva suave que era pouco mais do que orvalho no rosto, frio e silencioso. A luz não duraria muito mais. As Vésperas já tinham lugar na sua hora de Inverno, e eles estavam sozinhos ali à sombra do muro, na erva molhada, com os odores terrosos da folhagem a esmaecer e a melancolia outonal à sua volta. Uma melancolia sem dor, uma indulgência do espírito depois de passada a amargura e a angústia. E não pareceu estranho que Ruald não manifestasse grande surpresa ao saber que esta criatura abandonada era, afinal, a sua mulher, tinha aceite sem espanto o facto de Sulien, preocupado com um velho amigo, ter fabricado uma história falsa e idiota para desmentir a sua morte. E ele também não se rebelara contra a probabilidade de nunca vir a saber como é que ela tinha morrido, nem por que motivo ela tinha sido sepultada sem ritos, antes de ter sido trazida para este lugar melhor. Como todos os seus votos, o voto de obediência de Ruald era levado ao extremo do dever, à aceitação total. O que quer que fosse, era o melhor para ele. Ele não questionava.

- O que é estranho, Cadfael - disse ele, pensativo, a olhar para a turfa nova que a cobria - é que agora começo outra vez a ver claramente o rosto dela. Ao princípio, quando entrei para cá, eu era como um homem febril, atento apenas ao que desejara e tinha conseguido. Não me conseguia recordar do aspecto dela, era como se toda a minha vida anterior tivesse desaparecido do mundo.

- É o resultado de se olhar fixamente para uma luz demasiado intensa - disse Cadfael, num tom calmo, pois ele próprio nunca ficara ofuscado. Fizera o que fizera com toda a presença de espírito, fizera a sua escolha, que não fora uma escolha fácil, com deliberação, entrara para o seu noviciado sobre pés nus a pisar a terra sólida, não fora transportado para lá em nuvens de felicidade. - Essa é, à sua maneira, uma bela experiência - disse ele - mas pode fazer mal à vista. Se se olhar para ela durante demasiado tempo pode-se ficar cego.

- Mas agora eu vejo-a claramente. Não como a vi pela última vez, não zangada e amarga. Como ela costumava ser, ao longo de todos os anos que estivemos juntos. E jovem - disse Ruald, admirado. - Tudo o que eu sabia e fiz, antigamente, vem-me à memória com ela. Lembro-me da quinta, do forno e onde todas as coisas tinham o seu lugar na casa. Era um lugar muito agradável, com vista para o rio e para além deste.

- Ainda é - disse Cadfael. - Nós lavrámo-lo e arrancámos as giestas do promontório, e talvez sintas a falta das flores do campo e das borboletas no Verão quando as ervas do prado atingem a maturação. Mas agora haverá erva nova a nascer ao longo dos sulcos, e as aves no promontório estão exactamente na mesma. Sim, é um lugar muito bonito.

Eles tinham dado meia volta para atravessar a erva molhada em direcção à casa do cabido, e o crepúsculo em redor era um suave verde-azulado que se agarrava, húmido, aos ramos semi-despidos das árvores.

- Ela nunca teria um lugar nesta terra abençoada - disse Ruald, da sombra do seu capuz - se não tivesse sido encontrada em terra pertencente à abadia e sem qualquer outro benfeitor para tomar conta dela. Tal como Santo Illtud expulsou a mulher para a noite sem que ela tivesse qualquer culpa, tal como eu, sem qualquer culpa da parte dela, abandonei a Generys, no fim, Deus trouxe-a de volta para os cuidados da abadia e deu-lhe uma sepultura invejável. O Pai Abade recebeu e abençoou o que eu usei mal e menosprezei.

- Poderá bem ser - disse Cadfael - que a nossa justiça veja como uma imagem ao espelho, a esquerda onde a direita deveria estar, o mal reflectido como o bem, o teu anjo como se fosse um demónio. Mas a justiça de Deus, embora possa ser lenta, não comete erros.

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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