Poder-se-á dizer, com toda a propriedade, que os extraordinários acontecimentos daquele Verão de 1144 tiveram início no ano anterior, num emaranhado de fios tanto eclesiásticos como seculares, numa teia em que as mais diversas pessoas ficaram enredadas, desde o arcebispo até ao mais humilde diácono do bispo Roger de Clinton, e, entre os laicos, desde os príncipes do Norte do País de Gales até ao mais humilde habitante de Arfon. E, mais exactamente, entre a plebe assim emaranhada, um monge beneditino idoso da Abadia de S. Pedro e S. Paulo, em Shrewsbury.
O Irmão Cadfael tinha chegado a Abril sentindo-se cheio de esperança, ligeiramente inquieto, como habitualmente lhe acontecia quando as aves faziam os seus ninhos, as flores do campo começavam a fazer despontar os seus botões através da erva nova e todos os dias o sol estava um pouco mais alto no céu ao meio dia. É verdade que havia problemas no mundo, como sempre houvera. As dificuldades por que a Inglaterra passava, dilacerada por dois primos que disputavam o trono, ainda não tinham qualquer esperança de solução visível. O Rei Stephen ainda se mantinha firme no sul e na maior parte da região leste; a Imperatriz Maud, graças a Robert de Gloucester, o seu leal meio-irmão, estava firmemente estabelecida na zona sudoeste e mantinha a sua própria corte ilesa em Devizes. Mas, nos últimos meses, devido à exaustão ou à política, tinha havido poucas escaramuças entre eles, e uma estranha calma, que era quase paz, tinha-se instalado no país. Nos Fens, o fora-da-lei Geoffrey de Mandeville, inimigo de todos, ainda se encontrava em liberdade, mas uma liberdade limitada pelas novas fortalezas circundantes do rei e cada vez mais vulnerável. Bem vistas as coisas, havia motivo para um optimismo cauteloso, e a própria frescura e luminosidade da Primavera interditava o desalento, mesmo que o desalento estivesse entre as tendências de Cadfael.
Assim, naquele dia específico no final de Abril, ele chegou ao capítulo sentindo-se extremamente sereno e tolerante, cheio de boas intenções para com todos os homens e satisfeito com a perspectiva de as coisas continuarem calmas e rotineiras durante o Verão, até ao Outono. Certamente que ele não tinha qualquer premonição de uma mudança nesse estado idílico, muito menos dos meios através dos quais ela chegaria.
Como se impelido, de um modo meio receoso, meio grato, para a mesma tranquilidade precária mas bem acolhida, o assunto tratado nesse dia no capítulo foi simples e não provocou qualquer discussão, não havia ninguém em falta, nem sequer um pequeno pecado entre os noviços para o Irmão Jerome lamentar, e os alunos da escola, intoxicados com a Primavera e a luz do sol, pareciam comportar-se como os anjos que certamente não eram. Até mesmo o capítulo da Regra, lido nos tons monótonos, reprovadores, do Irmão Francis, era o 34º, explicando suavemente que a doutrina de partes iguais para todos nem sempre podia ser mantida, uma vez que as necessidades de um poderiam exceder as necessidades de outro, e aquele que recebia mais de acordo com as suas necessidades não devia vangloriar-se de receber mais do que os seus irmãos, e o que tivesse recebido menos mas suficiente não devia invejar o quinhão extra que fora atribuído aos seus irmãos. E, acima de tudo, nada de queixas, nada de invejas. Tudo era plácido, conciliatório, moderado. Talvez, até mesmo, um pouco monótono?
Era uma coisa abençoada, de um modo geral, viver numa época ligeiramente enfadonha, especialmente depois das desordens, dos cercos e das lutas amargas. Mas, algures em Cadfael, ainda havia algo que começava a torná-lo impaciente quando a quietude se prolongava durante demasiado tempo. Afinal de contas, um pouco de excitação não significava necessariamente que algo de mal se passava, e era um agradável contraponto à ordem constante, por mais que esta possa ser amada e fielmente servida.
Tinham chegado ao fim dos assuntos de rotina, e a atenção de Cadfael vagueara para longe dos pormenores das contas do adegueiro, uma vez que ele próprio não tinha qualquer função como obediencial e deixava, de bom grado, essas questões para os que tinham. O Abade Radulfus estava prestes a encerrar o capítulo, olhando em volta para se certificar de que ninguém mais w estava a cismar com uma objecção ou reserva, quando o porteiro laico que prestava serviço na casa do portão durante os serviços religiosos e o capítulo, meteu a cabeça dentro da sala, numa atitude que sugeria que estivera à espera daquele preciso momento, sem ser visto.
- Pai Abade, está aqui um visitante de Lichfield. O Bispo de Clinton enviou-o numa missão a Gales, e ele solicitou alojamento aqui por uma ou duas noites.
Se se tratasse de uma pessoa menos importante, pensou Cadfael, ele teria aguardado até todos nós termos emergido da sala, mas, se o bispo estava envolvido, podia muito bem ser um assunto sério e exigir consideração oficial antes de dispersarmos. Ele tinha boas recordações de Roger de Clinton, um homem decidido e sensato, rápido a distinguir o que era genuíno e falso nos outros homens, e uma maneira directa de encarar os problemas da doutrina. Pelo brilho dos olhos do abade, embora o seu rosto permanecesse impassível, Radulfus também guardava uma recordação grata da última visita do bispo.
- O enviado do bispo é muito bem-vindo - disse ele - e pode alojar-se aqui o tempo que quiser. Ele tem algum pedido imediato a fazer-nos, antes de encerrarmos este capítulo?
- Pai, ele gostaria de o cumprimentar imediatamente e de lhe dizer qual é a sua missão. Aqui ou em privado, conforme o Pai quiser.
- Manda-o entrar - disse Radulfus.
O porteiro desapareceu, e o pequeno e discreto murmúrio de curiosidade e especulação que percorreu a casa do capítulo como a ondulação num lago desfez-se num silêncio de antecipação quando o enviado do bispo entrou e se deixou ficar de pé no meio deles.
Era um homem baixo, de ossos finos, magro mas rijo, pequeno como um rapaz de dezasseis anos e parecendo, de facto, ter apenas dezasseis anos até uma observação atenta revelar a maturidade do rosto oval, sem barba. Beneditino como aqueles seus irmãos, de tonsura e hábito, ele manteve-se erecto na dignidade da sua posição e na humildade e simplicidade da sua natureza, frágil como uma criança e resistente como uma árvore. O seu cabelo curto, cor de palha, era espetado e indisciplinado, fazendo lembrar a criança. Os olhos cinzentos, espantosamente directos e límpidos, confirmavam o homem adulto.
Um pequeno milagre! Cadfael recebera subitamente um presente por que ansiara com frequência ao longo dos últimos anos, e que, dado o seu carácter repentino e improvável, era seguramente milagroso. Roger de Clinton tinha escolhido como seu enviado acreditado a Gales, não um corpulento cónego com uma presença imponente, mas sim o mais jovem e humilde diácono da sua casa, o Irmão Mark, que já estivera na abadia de Shrewsbury, onde, durante dois anos de grata recordação, fora assistente de Cadfael no meio das ervas aromáticos e medicamentos da sua oficina.
O Irmão Mark fez uma vénia profunda ao abade, baixando a sua exuberante tonsura com uma solenidade que ainda retinha, até ter voltado a erguer os olhos límpidos, o ligeiro eco e encanto do absurdo que envolvia o rapaz calado de que Cadfael se recordava. Quando se endireitou, ele era novamente o embaixador; a partir desse momento, seria sempre ao mesmo tempo homem e criança, até ao dia em que se tornasse padre, como era seu fervoroso desejo. E isso só aconteceria daí a alguns anos, pois ainda não tinha idade suficiente para ser aceite.
- Meu senhor - disse ele -, eu fui enviado pelo meu bispo numa missão de boa vontade a Gales. Ele pede que me receba e aloje uma ou duas noites entre vós.
- Meu filho - disse o abade, sorrindo -, aqui não precisas de quaisquer credenciais para além da tua presença. Achas que nos esquecemos de ti tão depressa? Aqui tens tantos amigos quantos irmãos há, e em apenas dois dias terás dificuldade em satisfazê-los a todos. E quanto à tua missão ou, por outra, a missão do teu senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance para a ajudar. Desejas falar sobre ela? Aqui, ou em privado?
O rosto solene do Irmão Mark desfez-se num sorriso de alegria, não só por se lembrarem dele, mas por se recordarem com um prazer óbvio.
- Não é uma história longa, Pai - disse ele -, e posso bem contá-la aqui, embora mais tarde lhe vá pedir os seus conselhos, pois uma missão destas é uma novidade para mim, e não há ninguém melhor para me ajudar a levá-la fielmente a cabo. O Pai sabe que, no ano passado, a Igreja decidiu restaurar a diocese de Santo Asaph, em Llanelwy.
Radulfus concordou, inclinando a cabeça. A quarta diocese galesa tinha estado suspensa durante cerca de setenta anos, muito poucos homens vivos se conseguiam lembrar de ter havido um bispo no trono de S. Kentigern. A localização da sé, com um pé de ambos os lados da fronteira, e todo o poder de Gwynedd a oeste, tinha sido sempre difícil de manter. A catedral estava situada em terras que pertenciam ao conde de Chester, mas todo o vale do Clwyd acima dela ficava no território de Owain Gwynned. O motivo exacto por que o Arcebispo Theobald tinha decidido reanimar a diocese naquela altura não era bem claro para ninguém, talvez nem sequer para o próprio arcebispo. Aparentemente, uma mistura de razões políticas da Igreja e estratagemas seculares exigiam um controlo firme sobre aquelas terras fronteiriças, uma vez que o homem que fora nomeado era normando. Não tinha havido muita consideração pelas sensibilidades galesas naquela nomeação, reflectiu Cadfael com pesar.
- Depois da sua consagração, o ano passado, pelo Arcebispo Theobald, em Lambeth, o Bispo Gilbert está finalmente instalado na sua sé, e o arcebispo quer que ele receba a garantia de que tem o apoio do nosso próprio bispo, uma vez que os deveres pastorais naquela zona estavam antigamente a cargo da diocese de Lichfield. Eu sou portador de cartas e ofertas para Llanelwy, em nome do meu senhor.
Isso fazia sentido se a intenção da Igreja fosse obter uma posição segura no interior de Gales e demonstrar que a mesma seria preservada e defendida. Era espantoso, reflectiu Cadfael, que qualquer bispo tivesse alguma vez conseguido gerir uma sé tão grande como a diocese original de Mercia, deslocando, com êxito, a sua base de Lichfield para Chester, novamente para Lichfield, e agora para Coventry, numa tentativa de permanecer em contacto com o rebanho mais variado que um pastor alguma vez tivera a seu cargo. E, quer aprovasse ou não a estratégia que o privara daquelas paróquias fronteiriças, Roger de Clinton talvez não lamentasse ter-se visto livre delas.
- A missão que te traz de volta até nós, mesmo por apenas alguns dias, é muito bem-vinda - disse Radulfus. - Se o meu tempo e experiência te puderem ser úteis, eles são teus, embora eu pense que consegues desenvencilhar-te perfeitamente bem sem qualquer ajuda minha ou de qualquer homem.
- É uma pesada honra ser alvo de tamanha confiança - disse Mark muito solene.
- Se o bispo não tem quaisquer dúvidas - disse Radulfus - nós também não devemos ter. Eu considero-o um homem que sabe muito bem avaliar onde pode depositar a sua confiança. Se vieste a cavalo de Lichfield deves estar a precisar de descanso e comida, pois é óbvio que partiste cedo. A tua montada está a ser cuidada?
- Está sim, Pai. - A velha forma de tratamento voltava-lhe naturalmente.
- Então vem comigo até aos meus aposentos, aproveita para descansares e usa o meu tempo como desejares. Toda a sabedoria que eu possa ter está à tua disposição. - Tal como Cadfael, ele já tinha uma profunda consciência de que aquela missão, aparentemente simples, a um bispo estrangeiro, recentemente ordenado em Santo Asaph, envolvia um grande número de outros riscos calculados e problemas questionáveis que poderiam bem obrigar aquele inocente sensato a atravessar, pé ante pé, um pantanal, deparando-se a cada passo com turfa pouco firme. O que tornava ainda mais impressionante o facto de Roger de Clinton ter depositado a sua confiança no seu clérigo mais jovem e mais insignificante.
- Este capítulo terminou - disse o abade, dirigindo-se para a saída. Quando ele passou o visitante, os olhos cinzentos do Irmão Mark, finalmente livres para percorrer a assembleia à procura de outros velhos amigos, encontraram-se com os olhos de Cadfael e retribuíram o seu sorriso, antes de o jovem se virar e seguir o seu superior. Radulfus poderia mantê-lo ao seu lado durante algum tempo, saboreá-lo, ouvir todas as notícias que ele trazia e todos os pormenores que pudessem complicar a sua próxima viagem, e dar-lhe o benefício da sua longa experiência e do seu senso comum. Mais tarde, terminado tudo isso, Mark encontraria novamente o caminho até ao herbário.
- O bispo tem sido muito bom para mim - disse Mark, afastando firmemente a ideia de que o facto de ter sido escolhido para aquela missão era uma manifestação de especial preferência. - Mas ele é muito bom para todos os que o rodeiam. Há algo mais nisto do que um privilégio que me é concedido. Agora que colocou o Bispo Gilbert em Santo Asaph, o arcebispo sabe muito bem que a sua posição deve ser bastante instável, e quer certificar-se que o seu trono se encontra seguro, com todos os apoios possíveis. Foi seu desejo, na verdade, foi uma ordem, que o nosso bispo fizesse uma visita de cortesia a este novo homem, uma vez que foi à sua diocese que a maior parte da nova sé de Gilbert foi retirada. Que o mundo testemunhe a harmonia que existe entre os bispos... até mesmo bispos que tiveram um terço do seu território retirado de debaixo dos seus pés. Independentemente do que o Bispo Roger possa pensar acerca da sensatez de colocar um normando, que não fala uma palavra de galês, numa sé nove décimos galesa, ele não podia dizer não ao arcebispo. Mas cabia-lhe a ele decidir a forma como iria cumprir a ordem. Penso que me escolheu porque não desejava manifestar-se de maneira demasiadamente efusiva e lisonjeira. A carta dele é formal e muito bem executada, e a sua oferta é mais do que apropriada. Mas eu... eu sou um discreto embaixador de meia-tigela!
Estavam reunidos num dos recantos do claustro norte, onde ainda chegavam os dedos oblíquos de ouro pálido do sol da Primavera, até mesmo ao fim da tarde, cerca de uma hora antes das Vésperas. Hugh Beringar tinha vindo da sua casa na cidade assim que tivera conhecimento da chegada do Irmão Mark, não porque o xerife tivesse oficialmente alguma coisa a ver com aquela embaixada clerical, mas pelo prazer de voltar a ver um jovem que recordava com afecto e a quem, neste caso, talvez pudesse dar alguma ajuda e conselhos. As relações de Hugh com o Norte de Gales eram boas. Ele tinha um acordo amigável com Owain Gwynedd, uma vez que nenhum deles confiava no seu vizinho mútuo, o conde de Chester, e podiam aceitar, sem qualquer dúvida, a palavra um do outro. Com Madog ap Meredith de Powis, o xerife tinha uma relação mais precária. A fronteira de Shropshire estava constantemente em alerta contra ataques esporádicos e quase insignificantes oriundos do outro lado do dique, embora, no momento actual, tudo estivesse relativamente calmo. Hugh era o homem que melhor deveria saber quais eram as condições de viagem até Santo Asaph.
- Eu penso que és demasiado modesto - disse ele num tom sério. - Calculo que o bispo, se te manteve constantemente perto dele, já te conhece suficientemente bem para ter uma opinião muito boa da tua sabedoria e sabe que vais agir com cautela, ao passo que um embaixador mais importante poderia falar demasiado e ouvir muito pouco. O Cadfael aqui poderá dizer-te mais do que eu sobre os sentimentos de Gales quanto às questões da Igreja, mas eu sei onde é que a política entra. Podes ter a certeza de que Owain Gwynedd tem observado atentamente o que o Arcebispo Theobald fez nos seus domínios, e é necessário ter sempre Owain em conta. E há apenas quatro anos foi consagrado um novo bispo totalmente galês na sua diocese natal de Bangor. Ali, pelo menos, eles deram o seu consentimento a um galês que, de princípio, se recusou a jurar fidelidade ao Rei Stephen e a reconhecer a dominância de Cantuária. Meurig não era um herói e acabou por ceder e fazer ambas as coisas, o que, na altura, lhe custou o apoio e a protecção de Owain. A sua nomeação para o cargo deparou-se com uma forte resistência. Mas eles chegaram a acordo e resolveram as suas diferenças, o que significa que certamente trabalharão juntos para evitar que Gwynedd seja totalmente subserviente à influência de Theobald. Consagrar agora um normando a Santo Asaph é um desafio tanto para príncipes como para prelados, e quem efectuar uma missão diplomática terá que observar ambos atentamente.
- E Owain, pelo menos - acrescentou Cadfael com astúcia -, observará atentamente os sentimentos da sua gente, e escutará o que eles estão a dizer. Compete a Gilbert fazer o mesmo. Gwynedd não tenciona ceder a Cantuária, eles têm santos, costumes e rituais próprios.
- Eu ouvi dizer - disse Mark - que antigamente, há muito tempo, a sé de S. David era a sé metropolitana de Gales, com o seu próprio arcebispo que não estava sujeito a Cantuária. Actualmente, existem alguns clérigos galeses que querem que essa regra seja reposta.
Cadfael abanou a cabeça com um ar de alguma dúvida.
- É melhor não olharmos demasiado atentamente para o passado; quanto mais o mandado de Cantuária nos é imposto, mais ouvimos essa pretensão. Mas certamente que Owain irá lançar a sua sombra sobre este novo bispo para lhe fazer lembrar que está em território estrangeiro e que deverá ter o cuidado de se comportar devidamente. Eu espero que ele seja um homem sensato e que trate o seu rebanho com brandura.
- O nosso bispo concorda inteiramente contigo - disse Mark - e eu recebi instruções claras. No capítulo, eu não referi toda a minha missão, embora posteriormente a tenha contado ao Pai Abade. Tenho outra carta e outra oferta para entregar. Vou até Bangor... oh, não, isto certamente não é por ordem do Arcebispo Theobald!... fazer a mesma visita de cortesia ao Bispo Meurig que vou fazer ao Bispo Gilbert. Se Theobald insiste que os bispos se devem manter unidos, então o texto de Roger de Clinton diz que esse princípio se aplica tanto aos normandos como aos galeses. E nós tencionamos tratá-los do mesmo modo.
O "nós"", aplicado a Mark e ao seu ilustre superior fez soar um eco aos ouvidos de Cadfael. Ele recordou-se de uma suposta sociedade que existira alguns anos antes, quando aquele rapaz tinha emergido gradualmente da sua bem-fundamentada desconfiança de todos os homens para a cordialidade, afecto e lealdade impulsiva para com aqueles que admirava e servia. Nessa altura, o seu "nós" significara ele próprio e Cadfael, como se eles fossem dois aventureiros a enfrentar o mundo juntos.
- Eu gosto cada vez desse nosso bispo - disse Hugh num tom de apreço. - Mas ele enviou-te sozinho nesta viagem ainda mais longa?
- Não exactamente sozinho. - O rosto magro, inteligente, do Irmão Mark animou-se por um instante num sorriso levemente malicioso, como se ainda tivesse uma surpresa misteriosa na manga. - Mas ele não hesitaria em atravessar Gales sozinho, e eu também não. Ele parte do princípio de que a Igreja e o hábito serão respeitados. Mas claro que eu ficarei grato por quaisquer conselhos que me possam dar sobre o melhor caminho a seguir. Conheceis melhor a situação de Gales do que eu ou o meu bispo. Pensei em ir directamente através de Oswestry e Chirk. O que acham?
- As coisas estão bastante sossegadas por lá - concordou Hugh. - Em todo o caso, Madog é uma alma pia no que diz respeito aos homens da igreja, independentemente da forma como possa tratar os laicos ingleses. E, de momento, ele mantém todos os rapazes de Powys Fadog numa rédea curta. Sim, esse caminho é o mais curto, e estarás em segurança, embora tenhas um duro percurso a subir entre o Dee e o Clwyd.
Pelo brilho e ar de especulação dos olhos cinzentos de Mark, ele estava certamente ansioso por aquela aventura. É óptimo ser-nos confiada uma missão importante quando se é o mais recente e humilde servidor do nosso senhor, e embora tivesse consciência de que o seu estatuto humilde tinha a intenção de moderar a cortesia, ele também sabia que a forma como ele desempenhasse a sua tarefa era muito importante. Ele não deveria lisonjear, não deveria exaltar mas, ao mesmo tempo, tinha que apresentar na sua pessoa a formidável e real solidariedade de um bispo para com outro.
- Há alguma coisa que eu deva saber - perguntou ele - sobre como estão as coisas em Gwynedd? A política da igreja tem que ter em conta a política do estado, e eu não sei nada sobre o que se passa em Gales. Preciso saber quando me deverei manter calado, e quando falar, e o que será sensato dizer. Ainda mais porque vou continuar até Bangor. E se a corte lá estiver? Eu posso ter que prestar contas aos agentes de Owain. Talvez até mesmo ao próprio Owain!
- E verdade - disse Hugh - pois ele consegue geralmente ter conhecimento de todos os desconhecidos que entram no seu território. Se te encontrares com ele, verás que é bastante acessível. Nesse caso, podes apresentar-lhe os meus cumprimentos e saudações. E o Cadfael já se encontrou com ele pelo menos duas vezes. Um homem grande, em todos os sentidos! Mas não lhe fales em irmãos! Essa ainda pode ser uma questão melindrosa para ele!
- Os irmãos têm sido a ruína dos principados galeses através dos tempos - observou Cadfael com tristeza. - Os príncipes galeses deviam ter apenas um filho cada. O pai constrói um principado sólido e um poder forte e, depois da sua morte, os seus três, quatro ou cinco filhos, nascidos dentro e fora do casamento, exigem por direito partes iguais, e a lei diz que as devem ter. Depois, um mata outro para alargar as suas terras, e seria preciso mais do que a lei para travar as mortes. Às vezes pergunto a mim próprio o que irá acontecer quando Owain desaparecer. Ele já tem filhos, e tempo suficiente à sua frente para ter mais. Será que eles vão desfazer tudo o que ele fez?
- Queira Deus - disse Hugh num tom fervoroso - que a morte de Owain só aconteça daqui a trinta ou mais anos. Ele acabou de fazer quarenta anos. Eu consigo lidar com Owain, ele cumpre a sua palavra e mantém o equilíbrio. Se Cadwaladr fosse o mais velho e tivesse ficado com o poder, teríamos tido constantemente guerras fronteiriças.
- Esse Cadwaladr é o irmão de que é melhor não falar? - perguntou Mark. - O que fez com ele se tornasse proscrito?
- Várias coisas ao longo dos anos. Owain deve amá-lo, caso contrário há anos que teria mandado alguém livrar-se da peste. Alguns meses atrás, no Outono do ano passado, um grupo dos seus homens mais próximos fez uma emboscada ao príncipe de Deheubarth e mataram-no. Só Deus sabe o motivo louco por que o fizeram. O jovem tinha uma aliança com ele e estava casado com a filha de Owain, aquele acto não fez qualquer sentido. E embora Cadwaladr não tivesse participado pessoalmente nele, Owain não teve quaisquer dúvidas de que tinha sido levado a cabo sob as suas ordens. Nenhum deles se teria atrevido, não por sua própria iniciativa.
Cadfael recordava-se do choque do assassinato e do castigo rápido e total. Owain Gwynedd, indignado, mandara o seu filho Hywel expulsar Cadwaladr de todas as terras que ele detinha em Ceredigion e queimar o seu castelo de Llanbadarn, e o jovem, com pouco mais de vinte anos, tinha desempenhado a tarefa com satisfação e eficiência. Sem dúvida que Cadwaladr tinha amigos e apoiantes que lhe dariam pelo menos o abrigo de um tecto, mas ele permaneceu sem terras e proscrito. Cadfael não conseguia deixar de perguntar a si próprio, não só onde andaria o criminoso, mas também se ele não acabaria, tal como Geoffrey de Mandeville nos Fens, reunindo à sua volta a escumalha do norte de Gales, criminosos, descontentes, foras-da-lei inatos, a atormentar os cumpridores da lei.
- O que é que aconteceu a esse Cadwaladr? - perguntou Mark com compreensível curiosidade.
- Foi expropriado. Owain expulsou-o de todas as terras que tinha em seu nome. Não resta nada dele em Gales.
- Mas ele ainda se encontra em liberdade, algures - comentou Cadfael, com alguma preocupação -, e não é, de modo algum, homem para aceitar mansamente o seu castigo. Ainda poderá haver problemas. Estou a ver que te vais meter num labirinto perigoso. Penso que não deverias ir sozinho.
Hugh estava a examinar o rosto de Mark, exteriormente impassível, mas com um brilho secreto de divertimento nos olhos que observavam frequentemente Cadfael.
- Se bem me recordo - disse Hugh suavemente -, ele disse "Não completamente sozinho."
- Pois foi! - Cadfael olhou para o rosto jovem que o fitava com um ar muito solene, com excepção do brilhozinho que tinha nos olhos. - O que foi que não nos contaste, rapaz? Fala! Quem vai contigo?
- Mas eu já vos disse - replicou Mark - que ia a Bangor. O Bispo Gilbert é normando e fala francês e inglês, mas o Bispo Meurig é galês, e ele e muita da sua gente não fala inglês, e o meu latim só me serviria para falar com os clérigos. Por isso estou autorizado a levar um intérprete. Não há ninguém próximo do Bispo Roger, nem que mereça a sua confiança, que fale bem galês. Eu propus um nome, alguém que ele não esquecera. - O brilho transformara-se numa auréola que lhe iluminava o rosto e reflectia, não só a luz, como o esclarecimento espelhado nos olhos espantados de Cadfael. - Guardei o melhor para o fim - disse Mark, radiante. - Tenho autorização para obter o meu homem, se o Abade Radulfus autorizar a sua ausência. Praticamente já lhe jurei que o empréstimo será, no máximo, por cerca de dez dias. Por isso, como é que eu posso errar - perguntou Mark em conclusão - se tu vens comigo?
Para o Irmão Cadfael, era uma questão de princípio, ou talvez de honra, quando uma porta se abria súbita e inesperadamente à sua frente, aceitar a oferta e passar a porta. E fazia-o com ainda mais entusiasmo se a porta se abrisse tendo Gales como perspectiva; dir-se-ia até que desatava a correr, não fosse a porta voltar a fechar-se recusando-lhe aquela encantadora paisagem. Desta vez, não era apenas uma breve deslocação a Powis, do outro lado da fronteira, mas vários dias a cavalgar, com uma companhia que ele próprio teria escolhido, através das regiões costeiras de Gwynedd, de Santo Asaph até Carnarvon, passando por Aber dos príncipes, sob as enormes espaldas de Moei Wnion. Tempo para conversar sobre todos os dias dos tempos em que tinham estado separados, tempo para ficar cordialmente em silêncio quando tudo o que precisava de ser dito tivesse sido dito. E tudo isso era um presente do Irmão Mark. Como é maravilhosa a riqueza que um homem que, por escolha e vocação, nada possui, pode conceder. O mundo está cheio de pequenos milagres beneficentes.
- Meu filho - disse Cadfael entusiasticamente -, por um tal repouso, eu serei teu cavalariço durante todo o caminho, além de intérprete. Não há nada que tu ou qualquer outro homem me possa dar que me dê mais prazer. E Radulfus disse mesmo que posso ir?
- Disse - garantiu-lhe Mark - e podes escolher um cavalo das cavalariças. E tens hoje e amanhã para fazer os teus preparados com Edmund e Winfrid para os dias em que estiveres ausente, e para respeitar rigorosamente as horas do Santo Ofício de modo a que até mesmo a tua alma errante esteja protegida durante a viagem até Bangor e durante o regresso.
- Eu sou um homem totalmente virtuoso e regenerado - disse Cadfael com enorme satisfação. - Os céus não acabaram de o mostrar levando-me a Gales? Achas que vou arriscar a reprovação agora?
Uma vez que pelo menos a primeira parte da missão de Mark deveria ser pública e expansiva, não havia qualquer motivo para que toda a gente do enclave não se interessasse avidamente por ela, e não houve falta de conselhos espontâneos oriundos de todos os lados sobre a melhor forma de a levar a cabo, especialmente por parte do velho Irmão Dafydd da enfermaria, que há quarenta anos não via Duffryn Clwyd, a sua terra natal, mas ainda estava convencido de que a conhecia como a palma da sua velha mão. A felicidade que sentira com o restabelecimento da diocese tinha sido um pouco ensombrada pela nomeação de um normando, mas a leve excitação tinha-lhe dado um novo interesse pela vida, e ele voltara a usar a sua própria língua e foi loquaz em conselhos quando Cadfael o visitou. O Abade Radulfus, pelo contrário, contribuiu apenas com a sua bênção. A missão pertencia a Mark e deveria ser deixada escrupulosamente nas suas mãos. O Prior Robert absteve-se de comentar, embora o seu silêncio contivesse um certo tom de reprovação. Um enviado com a sua dignidade e presença seria mais apropriado numa corte de bispos.
O Irmão Cadfael reexaminou as suas provisões de medicamentos, entregou o jardim, com toda a confiança, ao Irmão Winfrid e fez uma visita de precaução a Saint Giles, para se assegurar de que os armários do hospital estavam adequadamente fornecidos e que o Irmão Oswin se encontrava em sereno comando do seu rebanho, antes de se dirigir às cavalariças para ter o prazer de seleccionar o cavalo para a viagem. Foi lá que Hugh o encontrou ao princípio da tarde, a olhar embevecido para um elegante ruano claro com uma crina creme, que se deixava complacentemente acariciar.
- É demasiado alto para ti - disse Hugh por cima do ombro. - Precisarias de ser içado para a sela, e o Mark nunca conseguiria levantar-te.
- Ainda não estou não pesado nem tão velho que não consiga subir para um cavalo - disse Cadfael com dignidade. - O que te traz cá outra vez à minha procura?
- Uma boa ideia que a Aline teve, quando lhe contei o que tu e o Mark vão fazer. Maio já está à porta e, dentro de uma ou duas semanas, no máximo, vou mandá-la e ao Giles para Maesbury, para passarem lá o Verão. Ali ele tem o solar todo por sua conta, e é melhor para ele estar fora da cidade. - Era habitual Hugh deixar lá a família até depois de a tosquia ter sido efectuada e os campos respigados, enquanto ele dividia o seu tempo entre a casa e os assuntos do condado. Cadfael estava familiarizado com a rotina. - Ela perguntou porque é que nós não antecipamos a viagem uma semana e vamos convosco amanhã, acompanhando-os até Oswestry? O resto do pessoal pode seguir-nos mais tarde, e nós podíamos passar um dia, pelo menos, na vossa companhia, e vocês podiam passar a noite connosco em Maesbury, se quiserem. O que dizes?
Cadfael disse que sim, muito entusiasticamente, e o mesmo fez Mark, quando lhe perguntaram, embora tivesse declinado a oferta de alojamento por uma noite. Ele queria chegar a Llanelwy ao fim de dois dias de viagem e chegar lá a uma hora civilizada, o mais tardar a meio da tarde, para permitir as delicadezas da hospitalidade antes da refeição nocturna, por isso preferia passar Oswestry e entrar em Gales antes de parar para pernoitar, deixando uma etapa fácil para o segundo dia. Se conseguissem chegar ao vale do Dee, encontrariam alojamento numa das igrejas e atravessariam o rio de manhã cedo.
Assim, parecia que tudo estava já resolvido, e não faltava fazer nada a não ser assistir reverentemente às Vésperas e às Completas e entregar aquele empreendimento, como todos os outros, à vontade de Deus, mas talvez lembrando também à Santa Winifred que eles tinham por destino o país dela e, se ela se sentisse disposta a permitir que a sua delicada mão os protegesse ao longo do caminho, eles ficariam muito gratos por esse gesto.
Na manhã da partida, uma pequena fila de seis cavalos e um pónei de carga atravessou a ponte ocidental e saiu da cidade. Havia Hugh, no seu cavalo cinzento preferido, com o filho no arção da sela, Aline, nada perturbada com os apressados preparativos para sair da cidade, montada no seu ginete branco, a sua criada e amiga Constance sentada atrás de um cavalariço, seguindo-se um segundo cavalariço no pónei de carga e os dois peregrinos a Santo Asaph alegremente escoltados por aquele grupo familiar. Era o último dia de Abril, uma manhã verde e prateada. Cadfael e Mark partiram antes da hora de prima e reuniram-se a Hugh e ao seu grupo na cidade. Um aguaceiro, tão fino que era quase imperceptível no ar, seguira-os enquanto atravessavam a ponte, onde o Severn corria cheio mas tranquilo e, antes de se terem reunido no pátio de Hugh, o sol tinha aparecido em toda a sua glória, faiscando nas folhas e nas ervas. Todas as ondulações do rio eram douradas pela luz caprichosa, cintilante. Um bom dia para iniciar uma viagem, qualquer que fosse o seu motivo ou destino.
O sol estava alto, e a névoa perlada da manhã já se tinha praticamente dissolvido quando atravessaram o rio em Montford. A estrada era boa, alguns troços tinham bermas largas com ervas em que o passo era confortável e rápido, e Giles exigia ocasionalmente um galope suave. Ele era demasiado orgulhoso para partilhar uma montada com outra pessoa além do pai. Uma vez instalado em Maesbury, o pequeno pónei de carga, calmo e bem-humorado, seria o seu pónei de montar durante o Verão, e o cavalariço que o conduzia o discreto guardião das suas correrias pois, tal como a maior parte das crianças que nunca tiveram motivo para ter medo, ele era intrépido a cavalo - Aline diria imprudente, mas hesitava em fazer avisos, talvez por temer abalar a sua confiança, ou talvez por ter a certeza de que eles não seriam escutados.
Pararam ao meio-dia sob a colina de Ness, onde vivia um rendeiro de Hugh, para descansar os cavalos e comer. Chegaram a Felton antes do meio da tarde, e ali Aline e os seus acompanhantes viraram para tomar o caminho mais próximo para casa, mas Hugh decidiu acompanhar os seus amigos até aos arredores de Oswestry. Giles foi transferido, a protestar mas obediente, para os braços da mãe.
- Vão em segurança e regressem em segurança - disse Aline, com a cabeça loura clara e resplandecente como a de uma criança, o lustro da Primavera no seu rosto e o brilho da luz do sol no seu sorriso. E ela fez o sinal da cruz no ar no meio deles antes de conduzir o seu cavalo para o trilho da esquerda.
Livres das bagagens e das mulheres, eles percorreram mais rapidamente as poucas milhas até Whittington, onde pararam junto da parede de uma pequena torre de menagem de madeira. Oswestry estava a seus pés, na rota do caminho para casa de Hugh. Mark e Cadfael deviam continuar ainda para norte, mas já estavam junto da fronteira, em terras que, durante séculos, antes da chegada dos normandos, tinham sido alternadamente galesas e inglesas, onde os nomes das aldeias e dos homens eram mais provavelmente galeses do que ingleses. Hugh vivia no meio dos dois enormes diques que os príncipes de Mercia tinham construído muito tempo antes, para assinalar o local onde as suas terras e a sua jurisdição tinham início, para que nenhuma força as usurpasse facilmente e nenhum homem que as atravessasse de um lado para o outro tivesse qualquer dúvida sobre a lei que o regia. A barreira mais baixa, agora muito danificada, situava-se a leste do solar; a mais alta tinha sido erguida a oeste, no tempo em que o poder dos príncipes de Mercia tinha conseguido penetrar mais no interior de Gales.
- É aqui que tenho de vos deixar - disse Hugh, olhando para trás, para o caminho por onde tinham vindo, e para oeste, na direcção da cidade e do castelo. - É uma pena! Com este tempo, teria muito gosto em ir convosco até Santo Asaph, mas é melhor que os oficiais do rei se mantenham afastados dos assuntos da igreja para evitar o fogo cruzado. Eu não gostaria de pisar os calos de Owain.
- De qualquer modo, trouxeste-nos até à jurisdição do Bispo Gilbert - disse o Irmão Mark, sorrindo. - Tanto esta igreja como a tua de Santo Oswald pertencem agora à sé de Santo Asaph. Sabias isso? Lichfield perdeu muitas paróquias aqui no nordeste. Eu acho que deve ser política de Cantuária alargar a diocese em ambos os lados da fronteira, de modo a que a linha entre os galeses e os ingleses não tenha qualquer importância.
- Owain também terá algo a dizer a esse respeito. - Hugh saudou-os com uma mão erguida e começou a conduzir o seu cavalo na direcção da estrada que o levaria até casa. - Que Deus vos acompanhe, e boa viagem! Ver-nos-emos novamente daqui a cerca de dez dias. - Ele já estava a alguns metros de distância quando olhou para trás por cima do ombro e gritou: - Porta-te bem! Se conseguires! - Mas não houve qualquer indicação sobre a qual dos dois o pedido era dirigido, ou a possibilidade de mau comportamento se aplicava. Eles podiam partilhá-lo entre si.
Estou demasiado velho - comentou o Irmão Cadfael num tom complacente - para me meter em aventuras destas.
- Reparei - disse Mark olhando-o de lado - que não disseste nada desse teor antes de estarmos bem longe de Shrewsbury, até não haver ninguém que acreditasse em ti, pobre velhote, e insistisse para que ficasses em casa.
- Que idiota eu teria sido! - concordou, de bom grado, Cadfael.
- Sempre que começas a invocar a tua idade, sei com o que é que eu tenho de lidar. Um cavalo cheio de energia, acabado de sair da baia e com o freio nos dentes. Nós temos que lidar com bispos e cónegos - disse Mark num tom severo. - Façamos votos para que sejamos poupados a encontros piores. - Mas ele não pareceu demasiado convencido. A viagem a cavalo tinha posto cor no seu rosto magro e pálido, e um brilho nos seus olhos.
Mark tinha sido criado com cavalos de quinta, a trabalhar como um escravo para um tio que lhe dava, de má vontade, alojamento e comida, e mesmo agora que a cavalariça do bispo lhe proporcionara um belo cavalo alto em vez de um animal de trabalho, ainda montava à maneira da quinta, deselegante mas resistente.
O cavalo era castanho, com um brilho acobreado no pêlo, e cheio de vida sob um peso tão leve.
Tinham parado no cume do espinhaço que dava para o luxuriante vale verde do Dee. O sol dirigia-se para ocidente e tinha passado do ouro do meio-dia para uma suave luz âmbar, brilhando na corrente, onde a serpentina do rio cintilava e desaparecia alternadamente no meio das orlas do bosque. Ali ainda era um rio de montanha, dançando sobre um leito rochoso e criando arco-íris com os borrifos iluminados pelo sol. Algures lá em baixo eles iriam encontrar um local para pernoitar.
Retomaram o caminho ao lado um do outro, descendo o trilho coberto de erva que era suficientemente largo para os dois.
- Apesar de tudo - disse Cadfael - nunca esperei, com a minha idade, ser recrutado para uma expedição destas. Devo-te mais do que tu imaginas. Shrewsbury é a minha casa, e eu não a trocaria por qualquer lugar no mundo, a não ser de visita, mas de vez em quando fico com um formigueiro nos pés. É óptimo uma pessoa ir a caminho de casa, mas também é óptimo ir para longe de casa, com a perspectiva da ida e do regresso. Foi bom para mim o Theobald ter pensado em recrutar aliados para o seu novo bispo. E que lhe enviava Roger de Clinton, para além da carta protocolar? - Até essa altura, ele ainda não sentira qualquer curiosidade a esse respeito. O rolo da sela de Mark era demasiado pequeno para conter um objecto volumoso.
- Uma cruz peitoral abençoada no santuário de S. Chad. Foi feita por um dos cónegos, que é um bom ourives.
- E uma igual para Meurig em Bangor, com as suas orações e cumprimentos fraternais?
- Não, para Meurig é um breviário muito bonito. O nosso melhor iluminista estava praticamente a terminá-lo quando o arcebispo deu as suas ordens, por isso ele acrescentou uma folha especial com um desenho de S. Deiniol, o fundador e patrono de Meurig. Eu preferiria o livro - disse Mark descendo o caminho sinuoso e íngreme na direcção do vale, enquanto o sol se punha. - Mas a cruz é supostamente um tributo mais formal. Afinal de contas, nós recebemos as nossas ordens. Mas isso demonstra, não é verdade, que Theobald sabe que deu um lugar muito difícil a Gilbert?
- Eu não gostaria de estar no seu lugar - admitiu Cadfael. - Mas, quem sabe, talvez o desafio lhe agrade. Há pessoas que gostam de viver no meio da discórdia. Se ele interferir muito com os costumes galeses, é o que vai ter.
Eles emergiram nos campos verdes, ondulantes, e nas manchas de arbustos cerrados ao longo do rio, com o Dee ao seu lado a reflectir a luz cor de laranja do poente. No outro lado da água, elevava-se uma enorme colina coberta de ervas, coroada pelos contornos, feitos pelo homem, de fortificações erguidas muitos anos antes e, sob uma estreita ponte de madeira, o Dee dançava sobre um leito de pedra. Ali, na igreja de S. Collen, eles pediram e encontraram alojamento para a noite na casa do padre da paróquia.
No dia seguinte, atravessaram o rio e subiram os montes sem árvores do vale do Dee até ao vale do Clwyd, e ali seguiram ao longo da corrente durante a manhã luminosa e a tarde de aguaceiros suaves e espreitadelas decididas do sol. Atravessaram Ruthin, sob a colina de pedra calcária vermelha coroada por um forte de madeira baixo, e entraram no vale propriamente dito, largo, belo, inundado pelo verde fresco da folhagem nova. Antes de o sol se pôr, chegaram a uma língua estreita de terra entre o Clwyd e o Elwy, antes de os dois rios se encontrarem acima de Rhuddlan, e se dirigirem juntos para o mar. E no meio deles ficava a cidade de Llanelwy e a catedral de Santo Asaph, confortavelmente aninhada num verde vale abrigado.
Era tão pequena e compacta que não era exactamente uma cidade. As casas de madeira baixas estavam muito juntas umas das outras, o único caminho existente conduzia ao centro delas e desvendava o inconfundível tecto longo e o campanário de madeira da catedral, no centro da aldeia. Embora fosse modesto, aquele era o maior edifício que se via, e o único com paredes de pedra. Uma série de outros telhados baixos enchia o recinto; na maior parte deles tinham sido feitas algumas reparações apressadas, noutros ainda havia alguns homens a trabalhar azafamadamente, pois embora a igreja tivesse sido utilizada, a diocese estivera inactiva durante setenta anos e, se ainda havia cónegos ligados àquele centro, os seus números deviam ter diminuído, e há muito que as suas casas se teriam degradado. Ela tinha sido fundada, muitos séculos antes, por S. Kentigern, sob o princípio monástico do antigo cias celta, um colégio de cónegos sob um padre-abade e com um ou mais padres entre os seus membros. Os normandos desprezavam o cias e estavam empenhados a fazer com que todas as coisas religiosas de Gales ficassem sujeitas aos ritos romanos de Cantuária. Um trabalho difícil, mas os normandos eram pessoas persistentes.
Mas o que era espantoso naquela comunidade rural remota era o facto de parecer ter uma população excessiva. Assim que se aproximaram do recinto, viram-se rodeados por uma azáfama e determinação mais consentânea com o llys de um príncipe do que com um enclave religioso. Além dos atarefados carpinteiros e pedreiros, havia homens e mulheres a andar de um lado para o outro com jarros de água, roupa de cama, cortinas dobradas, tabuleiros de pão acabado de cozer e cestos de comida, e um rapaz forte com metade de um porco ao ombro.
- Isto é mais do que a criadagem de um bispo - disse Cadfael, observando toda aquela actividade. - Eles estão a dar de comer a um exército! Será que Gilbert declarou guerra ao vale do Clwyd?
- Penso - disse Mark, olhando para além do redemoinho de gente atarefada, para as colinas que se elevavam suavemente - que têm convidados mais importantes que nós.
Cadfael seguiu o olhar de Mark e viu, na sombra das colinas, pontos de cor a salpicar as verdes elevações acima da cidade. Bandeiras garridas e galhardetes esvoaçantes estendiam-se ao longo do verde, não as toscas tendas de um acampamento militar, mas sim os alojamentos de uma casa principesca.
- Não é um exército - disse Cadfael - mas sim uma corte. Nós viemos esbarrar com um grupo majestoso. Não seria melhor irmos ver rapidamente se mais dois são bem-vindos? Poderá haver questões que têm a ver com algo mais do que uma firme solidariedade entre bispos. Embora, se os oficiais do príncipe se mantiverem perto de Gilbert, talvez venha mesmo a calhar fazer-lhes lembrar Cantuária. Por mais fria que seja a recepção!
Eles avançaram em direcção ao recinto e olharam em volta. O palácio do bispo era um edifício novo de madeira contendo o salão e câmaras, e algumas pequenas habitações novas de ambos os lados. Tinha decorrido quase um ano desde que Gilbert fora consagrado em Lambeth, e era óbvio que tinha havido preparativos apressados para restaurar alguma semelhança a um enclave de catedral a fim de ele ser condignamente recebido. Cadfael e Mark estavam a desmontar quando um jovem passou apressadamente no meio da azáfama para se dirigir a eles e deu instruções a um cavalariço que o seguia para que tomasse conta dos seus cavalos.
- Irmãos, posso-vos ser útil?
Ele era jovem, não tinha seguramente mais de vinte anos, e certamente que não era um dos eclesiásticos de Gilbert, pelo seu traje parecia mais um cortesão, e usava jóias à volta de um belo e robusto pescoço. Movia-se e falava com uma segurança e graciosidade descontraídas, tinha um rosto alegre e uma tez clara, e o cabelo castanho arruivado. Era alto, tendo algo que pareceu vagamente familiar a Cadfael, embora certamente nunca o tivesse visto antes. Ele dirigira-se a eles primeiro em galês, mas mudou facilmente para inglês depois de ter observado Mark da cabeça aos pés com um olhar inteligente.
- Homens do vosso hábito são sempre bem-vindos. Vieram de longe?
- De Lichfield - disse Mark - com uma carta fraternal e uma oferta para o Bispo Gilbert, do meu bispo de Coventry e Lichfield.
- Ele ficará muito satisfeito - disse o jovem, com uma candura surpreendente - pois pode estar a sentir necessidade de reforços. - O seu sorriso foi malicioso mas amigável. - Eu vou arranjar alguém para levar os sacos das selas e conduzir-vos-ei a um local onde poderão descansar e comer alguma coisa. Ainda falta algum tempo para o jantar.
A um gesto seu, os criados correram para desapertar os sacos de bagagem e seguir atrás dos visitantes enquanto o jovem os conduzia através do pátio para uma das novas celas que davam para o salão.
- Não tenho o direito de dar ordens aqui, uma vez que eu próprio sou um convidado, mas eles já se habituaram a mim - isto foi dito com uma segurança firme e ligeiramente divertida, como se soubesse bem o motivo por que o círculo do bispo o devia obsequiar, mas suficiente humilde para não exagerar. - Será isto suficiente?
O alojamento era pequeno mas adequado, mobilado com camas, um banco e uma mesa, e cheio do aroma a madeira seca trabalhada há pouco tempo. Havia uma pilha de cobertores novos em cima da cama, e o cheiro a lã de boa qualidade misturava-se com o da madeira nova.
- Eu vou mandar alguém trazer-vos água - disse o seu guia - e procurar um dos cónegos. Sua Excelência tem andado a seleccionar onde pode, mas as suas exigências são grandes. Ele está a ter dificuldade em encher o capítulo. Mas estejam à vontade, Irmãos, que virá alguém ter convosco.
E foi-se embora, com as suas passadas longas e leves e o andar saltitante, e eles ficaram a instalar-se e a espreguiçar-se à vontade depois do dia em cima da sela.
- Água? - perguntou Mark reflectindo sobre aquela primeira cortesia, aparentemente essencial. - Aqui em Gales, isso equivale a tomar sal?
- Não, meu rapaz. Um povo que anda muito a pé conhece o valor dos pés, da poeira e das dores das viagens. Eles trazem água para lavarmos os pés. É uma maneira delicada de perguntar: Tenciona passar cá a noite? Se a recusarmos, é porque é apenas uma breve visita de cortesia. Se a aceitarmos, somos hóspedes da casa a partir desse momento.
- E aquele jovem? Ele é demasiado fino para ser criado, e certamente que não é um clérigo. Um visitante, disse ele. Em que tipo de reunião tropeçámos, Cadfael?
Eles tinham deixado a porta aberta para deixar entrar a luz do fim de tarde e para presenciar a animação do pátio. Uma rapariga passou por entre a multidão com passos longos e graciosos, transportando um jarro e uma bacia. Era alta e vigorosa. Uma trança de cabelo preto azulado da grossura do seu pulso caía-lhe por cima do ombro, e caracóis rebeldes esvoaçavam nas têmporas, soprados pela brisa suave. Um regalo para os olhos, pensou Cadfael, ao vê-la aproximar-se. Ela fez-lhes uma vénia profunda quando entrou e manteve os olhos baixos enquanto os servia, deitando água para eles, desapertando-lhes as sandálias com as mãos bonitas e compridas; não era uma criada, mas sim uma anfitriã decorosa, e seguramente que ocupava uma posição de dominância, pois podia baixar-se para servir sem, em qualquer momento, se rebaixar. O toque das suas mãos nos tornozelos magros e nos pés delicados, quase femininos, de Mark, provocou neste um rubor que se estendeu do pescoço até à testa e depois, como se o tivesse sentido a queimar-lhe a testa, ela ergueu o olhar.
Embora durasse apenas um momento, foi um olhar extremamente revelador. Assim que ergueu os olhos, um rosto até então impassível e austero foi iluminado por uma rápida sequência de expressões que o perpassaram num relâmpago. Ela observou Mark num relance, e o mal-estar dele divertiu-a e, por um instante, ela pensou em permitir que ele visse o seu riso, o que o teria embaraçado ainda mais; mas depois ela compadeceu-se, sentindo impulsivamente simpatia pela sua juventude e aparente inocência frágil, e recompôs a gravidade do seu rosto oval.
Os olhos dela eram de um violeta tão escuro que, na sombra, pareciam pretos. Não podia ter mais de dezoito anos. Talvez menos, pois a sua altura e porte conferiam-lhe uma segurança de mulher. Ela trouxera toalhas de linho por cima do ombro, e teria tido a amabilidade deliberada e talvez ligeiramente provocadora de secar os pés de Mark com as suas próprias mãos, mas ele não lho permitiu. A autoridade que pertencia, não à sua pessoa franzina, mas à gravidade do seu cargo, pegou-lhe com firmeza na mão e fê-la erguer-se. Ela levantou-se obedientemente, e apenas um relâmpago momentâneo nos seus olhos escuros comprometeu a sua solenidade. Clérigos jovens, pensou Cadfael, apercebendo-se de que ele próprio não corria perigo, talvez tivessem problemas em lidar com uma situação daquelas. E os idosos também, afinal, embora de uma forma ligeiramente diferente.
- Não - disse Mark com firmeza. - Não está certo. O nosso papel no mundo é servir, não ser servido. E por tudo o que vimos lá fora, já têm hóspedes suficientes, mais exigentes do que nós gostaríamos de ser.
Aquilo fê-la rir, obviamente não dele, mas dos pensamentos que as palavras tinham suscitado na sua mente. Até essa altura, ela não dissera nada para além da saudação que murmurara à porta. Agora desatou a falar em galês, numa voz cadenciada que fazia da língua poesia dançante.
- Mais do que suficiente para sua excelência o Bispo Gilbert, e mais do que ele estava à espera! É verdade o que o Hywel disse, que trouxeram saudações e ofertas dos bispos ingleses? Nesse caso serão os visitantes mais bem-vindos aqui em Llanelwy esta noite. O nosso novo bispo sente que precisa de todo o encorajamento que conseguir encontrar. Algo que o faça lembrar que tem um arcebispo a apoiá-lo far-lhe-á muito bem, uma vez que, doutro modo, está a ser assediado por príncipes. Ele vai tirar o maior partido possível da vossa presença. Tenho a certeza de que vão ficar na mesa alta no salão esta noite.
- Príncipes! - repetiu Cadfael. - E Hywel? Foi Hywel que falou connosco quando chegámos? Hywel ab Owain?
- Não o reconheceu? - disse ela, espantada.
- Jovem, eu nunca o tinha visto. Mas conhecemos a sua reputação. - Com que então aquele era o jovem que o pai mandara atravessar o Aeron à frente de um exército e expulsar Cadwaladr de North Ceredigion, deixando para trás o castelo de Llanbadarn em chamas, e que desempenhara a tarefa com rapidez e profissionalismo sem, aparentemente, perder a compostura ou a calma. E ele parecia mal ter idade para empenhar armas!
- Eu bem achei haver algo nele que me era familiar! Eu conheço Owain, encontrámo-nos há três anos, por causa de uma troca de prisioneiros. Com que então ele mandou o filho verificar como é que o Bispo Gilbert está a levar a cabo os seus deveres pastorais? - Cadfael ficou pensativo. Ao que parecia, eram confiadas ao jovem missões tanto seculares como religiosas e, provavelmente, ele resolvia-as com igual perfeição.
- Melhor que isso - disse a rapariga com uma gargalhada.
- Veio ele próprio! Não viram as tendas dele ali no prado? Durante estes dias, LIanelwy é o llys de Owain, e nada menos do que a corte de Gwynedd. É uma honra que o Bispo Gilbert teria dispensado. Não que o príncipe faça algo para o reprimir ou intimidar, excepto com a sua simples presença, com o bispo a olhá-lo constantemente pelo canto do olho e consciente de tudo o que ele diz ou faz. Mas esta noite jantarão todos no salão. Os Irmãos verão que chegaram num momento muito oportuno.
Enquanto falava, ela tinha estado a apanhar as toalhas e a colocá-las em cima do braço, mantendo-se atenta à azáfama do pátio. Seguindo o seu olhar, Cadfael viu um homem com uma batina preta atravessar a erva com um ar imponente, na direcção dos aposentos deles.
- Eu trar-vos-ei comida e hidromel - disse a rapariga, voltando abruptamente para as coisas práticas; depois, pegou na bacia e no jarro e saiu porta fora antes da chegada do clérigo alto. Cadfael viu-os encontrar-se e passar um pelo outro, com o homem a dirigir uma palavra à rapariga, e ela a inclinar mudamente a cabeça. Pareceu-lhe que havia uma curiosa tensão entre eles, constrangida por parte do homem, friamente respeitosa por parte da rapariga. A aproximação dele apressara a partida dela, no entanto, a forma como ele lhe falara quando se cruzaram e, em particular, a forma como ele voltou a parar antes de chegar aos aposentos e se voltou para olhar para ela, sugeria que era ele que a temia e não ela a ele, e que ela tinha algum ressentimento ao qual não estava disposta a renunciar. Ela não erguera os olhos para ele, nem interrompera o ritmo acelerado do seu andar. Ele aproximou-se mais lentamente, talvez para recuperar a dignidade antes de entrar no aposento dos desconhecidos.
- Bom dia, Irmãos, e sejam bem-vindos! - disse ele do limiar.
- Espero que a minha filha tenha tomado bem conta de vós? Isso estabelecia imediatamente a relação entre eles. Foi afirmado com considerável clareza, como se uma questão implícita viesse posteriormente a levantar-se, e seria bom que fosse devidamente compreendida. O que poderia muito bem ser o caso, visto que aquele homem tinha indubitavelmente uma tonsura, tinha autoridade e era padre. Ele decidiu também dizer claramente:
- Eu sou Meirion, sirvo esta igreja há muitos anos. De acordo com uma nova dispensação, sou cónego no capítulo. Se precisarem de alguma coisa, qualquer coisa que vos possamos proporcionar durante a vossa estada, basta dizerem, que eu tratarei disso.
Ele falou num inglês formal, de um modo um pouco hesitante, pois era óbvio que era galês. Era um homem robusto, musculoso, atraente de um modo sombrio, com traços bem delineados e uma postura muito erecta, e o anel do seu cabelo curto ainda mal salpicado de branco. A rapariga herdara dele a cor da pele e os olhos escuros, brilhantes, mas nos olhos dela o brilho era de alegria, até mesmo malícia, e, nos dele, dava a impressão de uma vaga apreensão por trás da sobrancelha autoritária. Um homem orgulhoso, ambicioso, pouco seguro de si próprio e dos seus poderes. E talvez numa situação delicada agora que se tornara um dos cónegos que serviam um bispo normando? Era uma possibilidade. Se havia uma filha reconhecida a justificar, tinha que haver também uma mulher. Cantuária não ficaria muito satisfeita. Eles garantiram-lhe que o alojamento que lhes fora proporcionado era totalmente satisfatório, até mesmo luxuoso segundo os princípios monásticos, e Mark tirou do seu saco a carta selada do Bispo Roger, magnificamente gravada e sobrescrita, e a caixinha de madeira esculpida que continha a cruz de prata. O Cónego Meirion inspirou, satisfeito, pois o ourives de Lichfield era um bom artista, e o trabalho era muito belo.
- Ele ficará muito satisfeito, disso podem ter a certeza. Não preciso de vos ocultar, como homens da igreja, que a situação de sua excelência o bispo está longe de ser fácil, e qualquer gesto de apoio é uma ajuda para ele. Se me permitem a sugestão, seria bom que aparecessem pessoalmente, quando estivermos todos reunidos à mesa, e entregassem publicamente a vossa mensagem. Eu levá-los-ei ao salão como vosso arauto e terei reservado lugares para vós à mesa do bispo. - Ele foi bastante directo, deveria ser tirado o maior partido possível daquela visita protocolar, através da qual, não meramente Lichfield, mas Theobald e a Cantuária, pretendiam fazer lembrar que os ritos católicos tinham sido aceites e que fora colocado um prelado normando em Santo Asaph. Por um lado, o príncipe tinha trazido o seu próprio poder e cavalaria, por outro, o Cónego Meirion tencionava utilizar o Irmão Mark, por mais inadequado que este parecesse ser, como símbolo.
- E, Irmão, embora o bispo não tenha necessidade de tradução, seria bom se repetisse em galês o que o Irmão Mark disser no salão. O príncipe sabe um pouco de inglês, mas poucos dos seus chefes o compreendem. - E era intenção determinada do Cónego Meirion que todos eles, até ao homem mais humilde da guarda, soubessem o que se passava. - Eu informarei previamente o bispo da vossa chegada mas, por enquanto, não digam nada a ninguém.
- Hywel ab Owain já sabe - disse Cadfael.
- E sem dúvida que disse ao pai. Mas o espectáculo não perderá brilho por causa disso. Na verdade, foi um acaso feliz terem chegado neste dia, pois o grupo real regressa a Aber amanhã.
- Nesse caso - disse Mark, decidindo ser franco para com um anfitrião que estava certamente a ser franco para com eles -, nós podemos ir com eles, pois eu também sou portador de uma carta para o Bispo Meurig de Bangor.
O cónego recebeu estas palavras com uma breve pausa para reflexão, depois acenou a cabeça em sinal de aprovação. Ele próprio era, afinal, galês, ainda que tivesse feito o possível por se manter nas boas graças de um superior normando.
- Óptimo! O vosso bispo é sensato. Isso coloca-nos em pé de igualdade e agradará aos príncipes. Eu e a minha filha Heledd também faremos parte do grupo. Ela vai casar com um cavalheiro ao serviço do príncipe que possui terras em Anglesey e irá ter connosco a Bangor. Faremos o percurso juntos.
- Teremos muito gosto em ter companhia durante a viagem - disse Mark.
- Eu virei buscar-vos assim que eles ocuparem os seus lugares à mesa - prometeu o cónego, bastante satisfeito, e deixou-os a descansar. Só depois de ele se ter ido embora é que a rapariga regressou, trazendo um prato de bolos de mel e um jarro de hidromel. Ela serviu-os em silêncio, mas não fez menção de se ir embora. Ao fim de um momento de soturnos pensamentos, perguntou abruptamente:
- O que é que ele vos disse?
- Que ele e a sua filha partem para Bangor amanhã, tal como nós. Ao que parece - disse Cadfael calmamente, observando o rosto impassível dela - teremos a escolta de um príncipe até Aber.
- Então ele ainda reconhece que é meu pai - disse ela franzindo o lábio.
- Reconhece, e por que motivo não o deveria declarar com orgulho? Se te olhares ao espelho - disse Cadfael com candura - verás uma esplêndida razão para ele se gabar. - As suas palavras provocaram um sorriso relutante nela. Ele prosseguiu:
- O que se passa entre os dois? É alguma ameaça do novo bispo? Se ele estiver decidido a livrar-se de todos os padres casados da sua diocese, vai ter um osso duro de roer. E o teu pai parece ser um homem capaz, que alguém que acabou de receber um benefício não se pode dar ao luxo de perder.
- E é - concordou ela, animando-se. - E o bispo quer mantê-lo. O caso dele podia ter sido muito pior, mas a minha mãe já estava muito doente quando o Bispo Gilbert chegou, e parecia que ela não ia conseguir durar muito, por isso eles esperaram! Conseguem imaginar uma coisa dessas? Esperar que uma mulher morra, para não ter de a separar do marido, que lhe era útil! E ela acabou por morrer, no Natal passado, e desde então eu tenho tomado conta da casa dele, cozinhado e limpado para ele, e pensava que podíamos continuar assim. Mas não, eu sou uma lembrança de um casamento que o bispo diz que foi ilegal e sacrílego. Aos olhos dele, eu nunca devia ter nascido! Mesmo que o meu pai permaneça celibatário o resto da vida, eu continuo aqui, a fazer lembrar o que ele quer que seja esquecido. Sim, ele, não o bispo! Eu sou um obstáculo à sua carreira.
- Seguramente - disse Mark, chocado - que estás a ser injusta para com ele. Eu tenho a certeza de que ele sente por ti um afecto paternal, tal como julgo que sentes um amor de filha por ele.
- Nunca foi posto à prova antes - disse ela simplesmente.
- Ninguém nos invejou um verdadeiro amor. Oh, ele não me deseja mal, nem o bispo. Mas ambos desejam ardentemente que eu me vá embora de cá, para tão longe que não volte a incomodá-los.
- Então foi por isso que planearam casar-te com um homem de Anglesey. O mais longe possível - disse Cadfael ironicamente - que um homem poderá ir, permanecendo no norte de Gales. Sim, isso certamente que deixará o bispo descansado. E tu? Conheces o homem que te está destinado?
- Não, isso foi obra do príncipe, e ele fê-lo com boas intenções, e eu aceito-o de bom grado. Não, o bispo queria enviar-me para um convento em Inglaterra e fazer de mim uma freira. Owain Gwynedd disse que isso seria um enorme desperdício, a não ser que fosse esse o meu desejo, e perguntou-me no salão, em frente de toda a gente, se era o que eu queria e eu respondi muito claramente em voz alta que não. Por isso ele propôs-me este casamento. O homem dele está à procura de mulher, e disseram-me que é um bom homem, não muito jovem mas com pouco mais de trinta anos, o que não é muito velho, atraente e com uma boa reputação. Pelo menos, é melhor - disse ela sem grande entusiasmo - do que ficar fechada atrás das grades de um convento inglês.
- Lá isso é - concordou Cadfael entusiasticamente -, a não ser que o teu próprio coração te leve até lá, e eu duvido que isso alguma vez te aconteça. Seguramente que é também melhor do que continuares a viver aqui, sentindo-te uma proscrita e um fardo. Tu não tens absolutamente nada contra o casamento?
- Não! - respondeu ela com veemência.
- E não tens conhecimento de nada contra esse homem que o príncipe tem em mente?
- Só que não fui eu que o escolhi - disse ela, cerrando os lábios numa expressão de teimosia.
- Quando o vires, podes gostar dele. Não seria a primeira vez - disse Cadfael sagazmente - que um casamenteiro acerta.
- Bem ou mal - disse ela, pondo-se de pé com um suspiro -, não tenho outra opção a não ser ir. O meu pai vai comigo para ter a certeza de que eu me comporto bem, e o Cónego Morgant, que é tão rígido como o próprio bispo, vai connosco para se certificar de que nos portamos os dois bem. Mais um escândalo, e adeus a qualquer promoção junto de Gilbert. Eu podia destruí-lo, se quisesse - disse ela, reflectindo, com um ar vingativo, sobre algo que, apesar de toda a sua ira e desdém, nunca poderia ser uma possibilidade. E da porta, à luz do entardecer, ela olhou para trás e acrescentou: - Eu posso muito bem viver sem ele. Mais cedo ou mais tarde, teria de me casar. Mas sabe o que mais me mortifica? É que ele renuncie a mim tão facilmente, e fique tão grato por se ver livre de mim.
Tal como prometera, o Cónego Meirion veio buscá-los quando a azáfama do pátio se instalou numa quietude competente, com o trabalho de construção abandonado até ao dia seguinte, todos os preparativos para o festim da noite terminados, o pequeno exército de serviçais colocado nos seus lugares e os membros da casa, dos príncipes aos cavalariços, reunidos no salão. A luz ainda era radiosa mas já se atenuava num silêncio dourado antes do pôr-do-sol.
O cónego estava vestido para a cerimónia, escovado e imaculado mas com simplicidade, mantendo a austeridade do seu cargo, talvez ainda mais meticulosamente para afastar a recordação dos dias em que tinha sido casado com uma mulher. Houvera uma altura, há muito tempo, na época dos santos, em que tinha sido exigido o celibato a todos os padres celtas, com a mesma insistência com que era agora exigido pelo Bispo Gilbert, pelo simples facto de que toda a estrutura da Igreja Celta estava construída sobre o ideal monástico, e qualquer coisa menos do que isso era um desvio do precedente e uma perda de santidade. Mas há muito que a memória desse tempo se tinha esbatido ao ponto de ter desaparecido, e a reposição do ideal iria provocar uma reacção de indignação semelhante à que se devia ter verificado com o seu abandono gradual. Há séculos que os padres viviam como homens casados decentes e tinham famílias tal como os seus paroquianos. Mesmo em Inglaterra, nos locais mais remotos do país, havia muitos padres humildes casados, e certamente que ninguém os censurava. Em Gales, não era invulgar o filho suceder ao pai como cura de uma paróquia e, o que era ainda era pior, os filhos de bispos partiam do princípio de que deveriam suceder aos pais, como se os cargos cimeiros da Igreja tivessem passado a ser feudos hereditários. Agora chegava aquele bispo estrangeiro, imposto de fora, a denunciar essas práticas como pecado abominável, e a livrar a sua diocese de todos os clérigos excepto dos celibatários.
E aquele homem capaz e imponente que veio chamá-los para apoiar o seu senhor não tinha qualquer intenção de ser alvo de despromoção simplesmente porque, embora tivesse enterrado a mulher mesmo a tempo, a sobrevivência de uma filha continuava a acusá-lo. Ele não tinha nada contra a rapariga, e certificar-se-ia de que a sua subsistência ficaria garantida, mas noutro local, longe da vista e longe do coração.
Justiça lhe seja feita, ele não tinha qualquer relutância em ir directo ao que queria, ao que lhe seria mais vantajoso. Ele pretendia tirar o maior partido possível dos seus dois visitantes monásticos e da sua missão, para alegria e satisfação do seu bispo.
- Eles acabaram de se sentar. Haverá silêncio até os príncipes e os bispos estarem instalados. Certifiquei-me de que haveria um espaço vago por baixo da mesa alta, onde todos vos poderão ver e ouvir.
Justiça lhe seja igualmente feita, ele não ficou decepcionado nem desanimado ao ver a pequenez de estatura e o modesto hábito beneditino do Irmão Mark, nem a simplicidade do seu porte; na realidade, ele examinou-o com um aceno de cabeça de aprovação, satisfeito com a modéstia que, mesmo assim, tinha a sua própria distinção.
Mark pegou no pergaminho iluminado da carta de Roger Clinton e na caixinha esculpida que continha a cruz, e eles atravessaram o pátio atrás do seu guia, até à porta do salão do bispo. No interior, o ar estava cheio do odor rico da madeira e do fumo resinoso dos archotes, e o murmúrio de vozes das mesas inferiores ficou silencioso quando os três entraram, com o Cónego Meirion à frente. Atrás da mesa alta colocada no extremo do salão, uma série de rostos iluminados pelas luzes dos archotes observava atentamente a pequena procissão que avançava para o espaço livre por baixo do estrado. O bispo, àquela distância apenas uma figura sem traços, estava sentado no meio, com os príncipes de ambos os lados e o resto dos clérigos e dos nobres galeses da corte de Owain dispostos alternadamente, e todos os olhos fixos no Irmão Mark, uma pequena figura erecta, solitária no espaço livre, pois o Cónego Meirion tinha-se afastado para que ele tivesse o palco inteiro para si, e Cadfael tinha ficado alguns passos atrás dele.
- Senhor Bispo, tenho aqui o Diácono Mark, da casa do bispo de Lichfield e Coventry, que solicitou uma audiência.
- O mensageiro do meu colega de Lichfield é muito bem-vindo - disse a voz formal oriunda da mesa alta.
Mark fez o seu breve discurso com uma voz clara, com os olhos fixos no rosto comprido e estreito em frente dele. Cabelo liso cinzento-aço, com uma tonsura em forma de abóbada, um nariz comprido, fino como uma lâmina, com narinas largas, e uma boca altiva, de lábios rígidos, que usava o seu sorriso formal de um modo um tanto hesitante devido à falta de prática.
- Meu senhor, o Bispo Roger de Clinton pediu-me que vos saudasse com reverência em seu nome, como vosso irmão em Cristo e vosso vizinho ao serviço da igreja, e deseja-vos um longo e frutuoso desempenho na diocese de Santo Asaph. E pela minha mão ele envia-vos com todo o amor fraternal esta carta e esta caixa, e solicita-vos que as aceiteis com benevolência.
Cadfael ouviu tudo e, depois de uma breve pausa para provocar um efeito teatral, começou a traduzir para galês, o que suscitou um murmúrio de aprovação por parte dos seus próprios conterrâneos entre a assembleia.
O bispo tinha-se levantado do seu assento e dera a volta à mesa alta para chegar à beira do estrado. Mark foi ao seu encontro e dobrou o joelho para colocar a carta e a caixa nas mãos grandes e musculosas que se estenderam para as receber.
- Aceitamos com alegria a generosidade do nosso irmão - disse o Bispo Gilbert com cortesia reflectida e grata, pois o poder secular de Gwynedd estava ali, ao alcance do ouvido, e não perdia nada do que se passava. - E recebemos os seus mensageiros com igual satisfação. Ergue-te, irmão, e sê mais um honroso convidado à nossa mesa. E o teu companheiro também. Foi muito amável da parte do Bispo de Clinton enviar um falante de galês contigo na tua deslocação a uma comunidade galesa.
Cadfael manteve-se afastado e seguiu-o de longe até ao estrado. Deixai Mark ter toda a atenção e ser conduzido para um lugar de honra ao lado de Hywel ab Owain, que estava sentado à esquerda do bispo. Isso seria obra do Cónego Meirion, decisão do próprio bispo para tirar o maior partido possível da visita, ou teria Hywel algo a ver com o assunto? Ele podia muito bem estar interessado em saber mais sobre o que outros capítulos de catedrais pensavam da ressurreição do trono de S. Kentigern e da sua atribuição a um prelado estrangeiro. E as perguntas, que feitas por ele, poderiam esperar uma resposta mais franca do que se fossem colocadas pelo seu temível pai, e produzir uma colheita mais inocente e abundante. Poderia ser uma primeira ocasião para Mark dizer pouco e ouvir muito.
O lugar atribuído a Cadfael, perto da ponta da mesa, estava muito mais distante do centro principesco mas dava-lhe uma excelente perspectiva de todos os rostos alinhados ao longo dos lugares de honra. À direita do bispo estava sentado Owain Gwynedd, um homem grande em todos os sentidos, no corpo, na mente, em capacidade, muito alto, com mais trinta centímetros do que a média dos seus homens, e o seu cabelo muito louro contrastava com a sua gente morena, pois a sua avó Ragnhild, neta do Rei Sitric Barba de Seda, tinha sido uma princesa do reino dinamarquês de Dublin, mais nórdica do que irlandesa, e a sua mãe Angharad tinha sido famosa pelo seu cabelo louro no meio das mulheres morenas de Deheubarth. À esquerda do bispo, Hywel ab Owain sentava-se descontraidamente, com o rosto virado para o Irmão Mark numa atitude cordial de boas-vindas. A parecença era óbvia, embora o filho fosse mais moreno do que o pai e não fosse tão alto como o progenitor. Cadfael achou irónico o facto de alguém tão parecido com o pai ser considerado ilegítimo pelo clérigo sentado ao seu lado, pois ele nascera antes do casamento de Owain, e a sua mãe também era irlandesa. Para os galeses, um filho reconhecido era tanto filho como os nascidos no casamento, e Hywel, ao atingir a idade adulta, tinha sido instalado honrosamente em South Ceredigion e agora, depois da queda em desgraça do seu tio, ficara com tudo. E, pelo que mostrara até então, era muito capaz de se aguentar sozinho. Havia mais três ou quatro galeses do grupo de Owain, todos eles alternados com cónegos e capelães, o secular e o clero lado a lado e a conversar cautelosamente, embora agora tivessem a caixa aberta e a sua cruz de filigrana como tema seguro, pois Gilbert abrira-a e colocara-a na mesa à sua frente, com o pergaminho de Clinton ao lado, indubitavelmente à espera de ser lido cerimoniosamente em voz alta quando a refeição estivesse prestes a terminar.
Entretanto, hidromel e vinho oleavam as rodas da diplomacia e a babel de vozes erguia-se com êxito. E era melhor Cadfael concentrar-se em desempenhar o seu papel naquela reunião social e começar e cumprir os seus deveres para com os seus vizinhos.
A sua direita ele tinha um clérigo de meia-idade, certamente um cónego da catedral, corpulento, bem fornecido de carnes mas com uma expressão de tamanha rectidão intransigente que Cadfael supôs que ele poderia bem ser o tal Morgant cuja missão futura seria certificar-se de que tanto o pai como a filha se comportavam normalmente durante a viagem para entregar Heledd a um marido. O nariz fino, altivo, e os olhos gélidos, penetrantes, pareciam adequados a essa tarefa. Mas, quando ele falou, a sua voz e os seus modos para com o convidado foram bastante delicados. Ele estaria à altura de qualquer situação e reagiria de forma conveniente, mas não parecia ser tolerante para com as falhas dos outros.
À esquerda de Cadfael estava sentado um jovem do grupo do príncipe, de constituição verdadeiramente galesa, robusto e compacto, muito bem vestido e com cabelo e olhos escuros. Olhos muito pretos, intensos, focados ao longe, e que não olhavam para o que se encontrava à frente do seu olhar, quer fossem homens, quer objectos, mas sim através deles. Só quando ele olhava ao longo da mesa alta, para onde Owain e Hywel estavam sentados, é que o alcance da sua visão se encurtava, se fixava e adquiria uma expressão afectuosa de reconhecimento, e os seus lábios finos quase sorriam. Os príncipes de Gwynedd possuíam pelo menos um seguidor devoto. Cadfael observou o jovem de lado, com discrição, pois ele merecia ser estudado, muito decoroso nos seus modos sóbrios e tendendo para um silêncio contido e privado. Quando falou, por deferência para com o novo conviva, a sua voz era baixa mas ressoante, e movia-se em cadências que pareceram não pertencer a Gwynedd. Mas o mais significativo que havia na sua pessoa só se revelou algum tempo depois, uma vez que ele comeu e bebeu pouco e utilizou apenas a mão direita que tinha pousada sobre a mesa debaixo dos olhos de Cadfael. Só quando ele se virou directamente para o seu vizinho e descansou o cotovelo esquerdo na beira da mesa, é que Cadfael viu que o seu antebraço esquerdo terminava alguns centímetros abaixo da articulação, e que um belo pano de linho, seguro por um fino fio de prata, estava colocado sobre o coto como uma luva.
A revelação foi tão inesperada que era impossível não ficar a olhar; mas Cadfael desviou imediatamente os olhos e absteve-se de qualquer comentário, embora não conseguisse resistir a examinar disfarçadamente a mutilação quando pensou que não estava a ser observado. Mas o seu vizinho já vivia com a sua perda há tempo suficiente para se habituar ao seu efeito nos outros.
- Pode perguntar, Irmão - disse ele com um sorriso triste. - Não tenho vergonha de dizer onde é que a deixei. Era a minha melhor mão, embora fosse capaz de usar as duas, e ainda consigo arranjar-me bem com a que me resta.
Uma vez que a curiosidade era compreendida e esperada da sua parte, Cadfael não fez qualquer segredo a esse respeito, embora já estivesse a tentar adivinhar respostas possíveis. Porque aquele rapaz era quase certamente do sul de Gales, muito longe dos seus companheiros habituais que tinha ali em Gwynedd.
- Eu não tenho qualquer dúvida - disse ele cautelosamente - de que, onde quer que a tenha deixado, a ocasião lhe proporcionou apenas honra. Mas, se me quiser contar, deve saber que eu já empunhei armas no meu tempo e provoquei e recebi ferimentos no campo de batalha. Eu serei capaz de o seguir até onde me quiser admitir, e não como um desconhecedor de tais assuntos.
- Eu já tinha pensado - disse o jovem, voltando para ele os brilhantes olhos pretos com um ar de aprovação - que o Irmão não tinha um ar monástico. Siga-me, então, e seja bem-vindo. Eu deixei o meu braço esquerdo sobre o corpo do meu senhor, ainda a segurar a espada.
- O ano passado - disse Cadfael lentamente, seguindo as suas próprias suposições proféticas - em Deheubarth.
- Exactamente.
- Anarawd?
- O meu príncipe e irmão adoptivo - disse o homem mutilado. - O golpe, o golpe final que lhe levou a vida levou-me o meu braço.
- Quantos homens - perguntou Cadfael cuidadosamente, após um breve silêncio - estavam com ele nessa altura?
- Éramos três. Numa viagem simples, pequena, não pensando nada de mal. Eles eram oito. Eu sou o único que resta dos que cavalgavam com Anarawd nesse dia. - A sua voz era baixa e calma. Ele não se esquecera de nada e não perdoara nada, mas tinha completo controlo sobre a voz e o rosto.
- Estou espantado - disse Cadfael - com o facto de ter sobrevivido para contar a história. Com uma ferida dessas, não demoraria muito tempo a esvair-se em sangue.
- E menos tempo ainda a desfechar outro golpe para acabar o trabalho - concordou o jovem com um sorriso torto. - E eles tê-lo-iam feito se outros homens nossos não tivessem ouvido a rixa e acorrido ao local. Eles deixaram-me deitado no chão quando fugiram. Fui levantado e tratado depois da fuga dos assassinos. E quando Hywel chegou com o seu exército para vingar as mortes, ele trouxe-me para aqui com ele, e Owain colocou-me ao seu serviço. Um homem com um braço ainda serve para alguma coisa. E ainda consegue odiar.
- Era muito chegado ao seu príncipe?
- Eu cresci com ele. Adorava-o. - Os seus olhos pretos pousaram no perfil animado de Hywel ab Owain, que seguramente tinha ocupado o lugar de Anarawd na sua lealdade, na medida em que um homem consegue substituir outro.
- Posso saber o seu nome? - perguntou Cadfael. - E o meu é, ou era, no mundo, Cadfael ap Meilyr ap Dafydd, sou um homem de Gwynedd, nascido em Trefriw. E embora seja beneditino, não me esqueci das minhas origens.
- Nem se deve fazê-lo, quer se esteja no mundo, quer fora dele. E o meu nome é Cuhelyn ab Einion, um filho mais novo do meu pai, e homem da guarda do príncipe. Antigamente - disse ele num tom mais sombrio -, era uma desonra para um homem regressar com vida do campo em que o seu senhor fora morto. Mas eu tinha e continuo a ter bons motivos para viver. Dei o nome dos assassinos que conhecia a Hywel, e eles pagaram. Mas havia alguns que eu não conhecia. Guardo os seus rostos na minha memória, para o dia em que os voltar a ver e ouvir os nomes que condigam com os rostos.
- Há ainda outro, o chefe que pagou apenas o preço do sangue em terras - disse Cadfael. - E ele? De certeza que foi ele que deu as ordens para a emboscada?
- De certeza! Caso contrário, eles nunca se teriam atrevido. E Owain Gwynedd não tem quaisquer dúvidas.
- E onde é que acha que esse Cadwaladr está neste momento? Será que ele se resignou à perda de tudo o que possuía?
O jovem abanou a cabeça.
- Onde ele está, parece que ninguém sabe. Nem o que ele está a planear. Mas resignado à perda? Disso eu duvido! Hywel fez reféns entre os chefes menores que serviam sob as ordens de Cadwaladr e trouxe-os para norte, a fim de garantir que não haveria mais resistência em Ceredigion. A maior parte deles já foi libertada, depois de terem jurado que não empunhariam armas contra as forças de Hywel nem voltariam a servir Cadwaladr, a não ser que, no futuro, ele jure emendar-se e seja reintegrado. Ainda resta um preso em Aber, Gwion. Ele deu a sua palavra em como não vai tentar fugir, mas recusa-se a jurar fidelidade a Cadwaladr ou a prometer paz a Hywel. É um sujeito bastante decente - disse Cuhelyn num tom tolerante - mas ainda é dedicado ao seu senhor. Será que se deve levar-lhe isso a mal? Mas um senhor daqueles! Ele merece venerar alguém melhor.
- Não lhe tem ódio?
- Não, não existe motivo para isso. Ele não tomou parte na emboscada, é demasiado jovem e demasiado honesto para ser apanhado numa vilania daquelas. De certo modo, gosto dele, tal como ele gosta de mim. Somos parecidos. Como poderei culpá-lo de manter a sua fidelidade do mesmo modo que eu mantenho a minha? Tal como ele estava disposto a matar por Cadwaladr, eu também estaria, e fi-lo, por Anarawd. Mas não furtivamente, em vantagem numérica contra homens pouco armados que não estavam à espera de enfrentar qualquer perigo. Honestamente, em campo aberto, isso é outra questão.
A longa refeição estava quase no fim, só o vinho e o hidromel ainda circulavam, e o murmúrio das conversas tinha-se transformado num zumbido baixo, satisfeito, como um cortiço de abelhas embriagadas e felizes nos prados de Verão. No centro da mesa alta, o Bispo Gilbert tinha pegado no rolo da carta e quebrado o lacre, e estava de pé com a folha de pergaminho desenrolada nas mãos. Para atingir o seu efeito pleno, a saudação de Roger de Clinton devia ser declamada em público, e tinha sido cuidadosamente fraseada de modo a impressionar tanto os laicos como o clero celta, que era quem talvez mais precisasse de uma palavra de cautela. A voz sonora de Gilbert tirou o maior partido possível dela. Ao escutá-la, Cadfael pensou que o Arcebispo Theobald ficaria muito satisfeito com o resultado da sua embaixada.
- E agora, meu senhor Owain - prosseguiu Gilbert, aproveitando o momento de tranquilidade por que devia ter estado à espera durante o festim - peço autorização para apresentar um suplicante que vem pedir a sua indulgência para um pedido em nome de outro. A minha nomeação para este local dá-me algum direito, devido ao meu cargo, de pedir a paz, quer entre indivíduos, quer entre povos. Não é bom que haja raiva entre irmãos. No início, poderá ter havido um motivo justo, mas deve haver um termo para todos os banimentos, todas as brigas. Eu peço uma audiência para um embaixador que fala em nome do seu irmão Cadwaladr, pedindo que se reconcilie com ele como é adequado e lhe restitua o lugar nas suas boas graças que ele perdeu. Posso mandar entrar Bledri ap Rhys?
Houve um breve silêncio, durante o qual todos os olhos se voltaram para o rosto do príncipe. Cadfael sentiu o jovem ao seu lado ficar tenso e estremecer de irritação com tal violação de hospitalidade, pois era óbvio que aquilo tinha sido preparado sem uma palavra de aviso ao príncipe, sem qualquer consulta prévia, aproveitando, de forma injusta, a cortesia que um homem daqueles indubitavelmente manifestaria para com o anfitrião a cuja mesa estava sentado. Mesmo que a audiência tivesse sido solicitada em privado, Cuhelyn tê-la-ia considerado profundamente insultuosa. Precipitá-la assim publicamente no salão, perante todos os membros da casa, era uma falta de cortesia apenas possível para um normando colocado num lugar de autoridade entre um povo a respeito do qual ele não sabia nada. Mas se o abuso era tão desagradável a Owain como era a Cuhelyn, aquele não o manifestou. Ele deixou que o silêncio se mantivesse durante tempo suficiente para que houvesse dúvidas quanto ao desfecho da questão, e talvez abalar a corajosa autoconfiança de Gilbert, depois disse claramente:
- Como desejar, Excelência, eu certamente que escutarei o que Bledri ap Rhys tem a dizer. Toda a gente tem o direito de pedir para ser ouvido e de ser escutado. Sem qualquer ideia preconcebida quanto ao desfecho.
Quando o mordomo do bispo fez entrar o suplicante no salão, tornou-se óbvio que este não tinha vindo directamente pedir a audiência assim que chegara da viagem. Algures no enclave do bispo, ele tinha aguardado confortavelmente a sua entrada no salão e tinha-se preparado com cuidado, pelo que quer o seu traje, quer a sua pessoa, tinham um ar muito elegante e imponente, com todas as partículas de poeira das estradas bem sacudidas. Era um homem alto, vigoroso, de ombros largos, cabelo e bigode pretos, com um arrogante nariz aquilino e um porte mais agressivo do que conciliatório. Dirigiu-se com passadas largas para o centro do espaço livre em frente do estrado e fez uma elaborada vénia na direcção do príncipe e do bispo. Pareceu a Cadfael que o gesto tendia mais a ser um gesto de vaidade do que uma manifestação de particular reverência para com os que eram saudados. Ele tinha captado a atenção de toda a gente e tencionava mantê-la.
- Senhor príncipe, senhor bispo, Excelências, vosso servo dedicado! Eu venho perante vós como suplicante. - Ele não parecia adequado a esse papel, nem a sua voz cheia, confiante, se coadunava com tal função.
- Foi o que ouvi dizer - disse Owain. - Tem uma coisa a pedir-me. Peça à vontade.
- Meu senhor, eu sou fiel ao vosso irmão Cadwaladr e atrevo-me a falar em defesa dos seus direitos, na medida em que ele está privado das suas terras e tornou-se um estranho e um deserdado no seu próprio país. Seja do que for que o considereis culpado, atrevo-me a considerar que esse castigo é superior ao que ele merece, e algo que um irmão não deve infligir ao outro. E eu venho pedir-vos aquela medida de generosidade e perdão que vos permita devolver-lhe o que é dele. Há já um ano que ele suporta esta espoliação, permitei que isso seja castigo suficiente e restitui-lhe as terras de Ceredigion. O senhor bispo adiciona a sua voz à minha a favor da reconciliação.
- O senhor bispo falou antes de si - disse Owain secamente - e de uma forma igualmente eloquente. Eu não sou, nem nunca fui, contra o meu irmão, quaisquer que sejam as loucuras que ele tenha cometido, mas o assassínio é pior que a loucura e exige alguma penitência antes do perdão. Os dois, por si sós, não possuem qualquer valor e, quando um não existe, não vou desperdiçar outro. Cadwaladr enviou-o nesta missão?
- Não, meu senhor, ele não tem conhecimento da minha vinda. E ele que sofre a privação, e sou eu que peço que os seus direitos sejam reinstituídos. O facto de ele ter errado no passado será um bom motivo para o excluir da possibilidade de praticar o bem no futuro? E o que lhe foi feito é excessivo, pois ele foi transformado num exilado no seu próprio país, sem qualquer apoio no seu próprio solo. Isso é justo?
- É menos excessivo - disse Owain friamente - do que o que foi feito a Anarawd. As terras podem ser restituídas, se a restituição for merecida. A vida perdida não pode ser restituída.
- É verdade, meu senhor, mas até mesmo o homicídio pode ser resgatado por uma compensação monetária. Ser despojado de tudo, para toda a vida, é outra forma de morte.
- Nós não estamos a falar de um mero homicídio, mas sim de assassínio - disse Owain -, como muito bem sabe.
À esquerda de Cadfael, Cuhelyn estava tenso e imóvel no seu lugar, com os olhos fixos em Bledri, com o olhar alongado de modo a penetrar através dele e para além dele. O seu rosto ficara pálido, e a sua única mão agarrava com força a beira da mesa, com os nós dos dedos bem vincados e brancos como o gelo. Ele não disse uma única palavra e não emitiu qualquer som, mas o seu olhar sombrio nunca oscilou.
- Um nome demasiado duro para um acto cometido no ardor duma briga - disse Bledri impetuosamente. - Vós também não haveis esperado para ouvir o lado do meu príncipe a esse respeito.
- Para um acto cometido no ardor duma briga - disse Owain com uma compostura impassível - este foi muito bem planeado. Oito homens não ficam escondidos, à espera de quatro viajantes inocentes e desarmados, com o sangue quente. Não está a favorecer a causa do seu senhor ao defender o seu crime. Disse que veio suplicar. A minha mente não está fechada à reconciliação, procurada de uma forma educada. Está imune às ameaças.
- No entanto, Owain - exclamou Bledri, flamejando como um archote resinoso - compete-vos a vós pesar as consequências que poderão advir se fordes obstinado. Um homem sábio sabe quando ceder antes de ser queimado pelo seu próprio ferrete.
Cuhelyn saiu da imobilidade, a tremer, e já se tinha soerguido quando readquiriu o controlo e voltou a afundar-se no assento, calado e imóvel. Hywel não se tinha movido, e o seu rosto não se alterara. Ele possuía a enorme compostura do pai. E a inabalada e inabalável calma de Owain reprimiu de imediato a agitação e os murmúrios que tinham percorrido a mesa alta e provocaram ecos mais altos no chão do salão.
- Devo tomar isso como uma ameaça, uma promessa ou uma previsão de uma condenação do céu? - perguntou Owain, numa voz extremamente cordial, que continha, no entanto, um tom cortante que lhe conferia uma doçura penetrante, e fez com que Bledri atirasse um pouco a cabeça para trás como se estivesse à espera de receber um soco e, por um momento, velasse o fogo que ardia nos seus olhos pretos e mitigasse a expressão dura dos seus lábios cerrados. Um pouco mais cautelosamente, ele respondeu por fim:
- Eu só queria dizer que a inimizade e o ódio entre irmãos é impróprio entre os homens e não pode deixar de desagradar a Deus. Só pode produzir frutos catastróficos. Suplico-vos, restitui os direitos ao vossos irmão.
- Isso - disse Owain num tom pensativo, observando o suplicante com um olhar que ajuizava e sondava para além das palavras proferidas. - Eu ainda não estou pronto para ceder. Mas talvez devêssemos reflectir mais longamente sobre este assunto. Amanhã de manhã eu e a minha gente partimos para Aber e Bangor, juntamente com alguns membros da casa do bispo e estes visitantes de Lichfield. Eu sou da opinião, Bledri ap Rhys, de que deves vir connosco e ser nosso hóspede em Aber e, quer no caminho, quer em casa, no meu llys, poderás desenvolver melhor o teu argumento, e eu poderei reflectir melhor sobre as consequências daquilo a que te referes. Eu não gostaria - disse Owain docemente - de atrair a catástrofe por falta de antevisão. Aceita a minha hospitalidade e senta-te connosco à mesa do nosso anfitrião.
Tornou-se totalmente claro para Cadfael, bem como para muitos outros no interior do salão, que, nessa altura, Bledri tinha pouca possibilidade de escolha. Os homens da guarda de Owain tinham compreendido plenamente a natureza do convite. Pelo seu sorriso tenso, o mesmo acontecera a Bledri, embora ele o tivesse aceite manifestando muito prazer e satisfação. Sem dúvida que lhe era útil continuar na companhia do príncipe, quer fosse como hóspede, quer como prisioneiro, e manter os olhos e os ouvidos abertos durante o caminho para Aber. Ainda mais se a sua insinuação de consequências funestas significasse mais do que a perspectiva do desagrado divino com a inimizade entre irmãos. Ele dissera um pouco demasiado para ser tomado à letra. E, como hóspede, em liberdade ou sob guarda, a sua própria segurança estava garantida. Aceitou o lugar que lhe foi arranjado à mesa do bispo e bebeu à saúde do príncipe com uma expressão discreta e um sorriso descontraído.
O bispo respirou fundo, visivelmente aliviado com o facto de o seu esforço bem intencionado de manter a paz ter sobrevivido pelo menos à primeira escaramuça. Era duvidoso que ele tivesse compreendido o que estava subjacente ao que acontecera. As subtilezas dos galeses eram provavelmente desperdiçadas num devoto normando terra-a-terra, reflectiu Cadfael. Felizmente para ele, pois assim podia despedir-se dos seus hóspedes, aos quais tinha sido acrescido mais um elemento, e consolar-se com a ideia de que tinha feito tudo o que era possível para conseguir a reconciliação. O que quer que se seguisse, não seria da sua responsabilidade.
O hidromel dava a volta cordialmente à mesa, e o harpista do príncipe cantou a grandiosidade e as virtudes da linha de Owain e a beleza de Gwynedd. E, depois dele, para respeitosa surpresa de Cadfael, Hywel ab Owain levantou-se e pegou na harpa, e improvisou num tom melífluo sobre as mulheres do norte. Poeta e bardo, bem como guerreiro, aquele era indubitavelmente um rebento admirável daquele admirável caule. Ele sabia o que estava a fazer com a sua música. Todas as tensões da noite se dissolveram em amizade e canções. Ou, se elas sobreviveram, pelo menos o bispo, reconfortado e descontraído, perdeu toda a noção da sua existência.
Na privacidade dos seus aposentos, com a noite ainda sonolentamente agitada no exterior da porta entreaberta, o Irmão Mark ficou, durante alguns momentos, sentado em silêncio e pensativo à beira da cama, a reflectir sobretudo o que se passara, até finalmente dizer, com a convicção de alguém que reexaminara todas as circunstâncias e tinha chegado a uma conclusão firme:
- Ele só tinha boas intenções. É um bom homem.
- Mas não é um homem sensato - disse Cadfael da ombreira da porta. A noite lá fora estava escura, sem lua, mas as estrelas preenchiam-na com um brilho azul distante que mostrava sombras ocasionais a atravessarem de edifício para edifício, dirigindo-se para os seus locais de repouso. A babel do dia era agora um quase-silêncio, estremecendo de vez em quando com o murmúrio de vozes baixas a desejar tranquilamente uma boa noite. Era mais um tremor no ar do que um som audível. Não havia vento. Até mesmo os movimentos mais suaves vibravam ao longo das cordas dos sentidos, tornando o silêncio eloquente.
- Ele confia com demasiada facilidade - concordou Mark com um suspiro. - A integridade espera integridade.
- E achas que Bledri ap Rhys não a tem? - perguntou Cadfael respeitosamente. O Irmão Mark ainda conseguia surpreendê-lo de vez em quando.
- Eu duvido dele. É demasiado atrevido, sabendo que, uma vez recebido como hóspede, não sofrerá quaisquer danos físicos nem afrontas. E sente-se tão seguro da hospitalidade galesa que até faz ameaças.
- É verdade - disse Cadfael num tom pensativo. - E fez passar as ameaças como uma lembrança do desagrado de Deus. O que achaste disso?
- Ele moderou o tom - disse Mark com segurança - sabendo que tinha ido demasiado longe. Mas as suas palavras contiveram mais do que um aviso pastoral. E eu gostaria muito de saber onde está Cadwaladr agora, e o que está a fazer. Porque eu acho que houve uma ameaça directa para o caso de Owain se recusar a satisfazer as exigências do irmão. Há alguma coisa a ser planeada, e este Bledir sabe disso.
- Calculo - disse Cadfael placidamente - que o príncipe seja da mesma opinião que tu ou, pelo menos, que tenha essa possibilidade em mente. Tu ouviste-o. Ele avisou todos os seus homens que Bledri ap Rhys permanecerá na comitiva real aqui, em Aber, e durante o caminho até lá. Se estiver a ser planeada alguma velhacaria, Bledri, embora não possa ser obrigado a denunciá-la, poderá ser impedido de participar nela ou de comunicar ao seu senhor que o príncipe está avisado e está a tomar as devidas providências. Agora, será que Bledri compreendeu tudo isso e dar-se-á ele ao trabalho de o testar?
- Ele não me pareceu preocupado - disse Mark num tom de dúvida. - Se ele o compreendeu assim, isso não o inquietou. Será que o provocou de propósito?
- Quem sabe? Pode convir-lhe ir connosco até Aber e manter os olhos e os ouvidos atentos ao longo do caminho e no interior do Hys, se estiver a sondar as intenções do príncipe a respeito do seu senhor. Ou dele próprio! - admitiu Cadfael pensativamente. - Embora eu confesse não compreender as vantagens que isso lhe possa trazer, a não ser afastá-lo em segurança da luta. - Porque não pode, em caso algum, acontecer algo de mal a um prisioneiro que tem oficialmente o estatuto de hóspede. Se o seu próprio senhor vencer, ele é-lhe entregue sem opróbrio e, se o seu captor for o vencedor, ele fica igualmente imune, livre de ferimentos da batalha e de represálias depois dela. - Mas ele não me pareceu ser um homem cauteloso - admitiu Cadfael, rejeitando a opção, embora com alguma relutância.
Alguns restos de sombras ainda atravessavam a escuridão que se ia apoderando do precinto, como ondulações num lago à noite. A porta aberta do salão do bispo formava um rectângulo de luz fraca, pois a maior parte dos archotes já tinha sido apagado, a lareira tinha sido abafada mas ainda brilhava, murmúrios distantes de movimentos e vozes eram um leve frémito no silêncio enquanto os criados retiravam os restos do festim e as mesas em que este fora servido.
Uma figura alta, escura, de ombros largos e erecta de encontro à luz pálida surgiu à porta do salão, parou por um momento como se a respirar o ar fresco da noite, depois desceu lentamente os degraus e começou a andar de um lado para o outro do pátio, lenta e sinuosamente, como um homem a exercitar os músculos depois de ter estado sentado durante demasiado tempo. Cadfael abriu um pouco mais a porta, para ter os movimentos na sombra dentro do seu campo de visão.
- Onde vais? - perguntou Mark atrás dele, antecipando-se com uma inteligência atenta.
- Não muito longe - disse Cadfael. - Apenas suficientemente longe para ver o que morde o isco do nosso amigo Bledri. E como ele reage!
Ele deixou-se ficar imóvel à porta durante um longo momento, fechando a porta atrás de si, para habituar os olhos à noite, como sem dúvida Bledri ap Rhys estava também a fazer enquanto arrastava o seu casaco atrás de si de um lado para o outro, cada vez mais perto do portão do precinto. A terra era suficientemente firme para tornar audíveis os seus passos rápidos, deliberados, como era claramente sua intenção. Mas nada se moveu e ninguém reparou nele, nem sequer os poucos criados que se dirigiam às suas camas, até ele se ter virado deliberadamente e caminhado na direcção do portão aberto. Cadfael tinha avançado calmamente ao longo da linha de modestas casas de cónegos e alojamentos de hóspedes, para continuar a ver o que se passava.
Com admirável aprumo, duas figuras entraram rapidamente pelo portão vindos dos campos no exterior, afavelmente abraçados, chocaram com Bledri no meio do portão, separaram-se e abraçaram-se a ele.
- Meu senhor Bledri! - exclamou uma alegre voz galesa. - É o senhor? A apanhar ar antes de dormir? E está uma bela noite para isso!
- Nós temos todo o gosto em fazer-lhe companhia - propôs a segunda voz num tom entusiástico. - Ainda é cedo para ir para a cama. E, se se perder no escuro, nós levamo-lo em segurança até ao seu cobertor.
- Não estou tão embriagado que me possa perder - respondeu Bledri sem surpresa nem preocupação. - E apesar de toda a boa companhia que existe em Santo Asaph, esta noite acho que vou para a cama. E os senhores também vão precisar de dormir, se vamos partir amanhã cedo. - Pressentia-se claramente o sorriso na sua voz. Ele tinha a resposta de que estivera à procura, e ela não lhe provocara qualquer desalento, pelo contrário, causara-lhe algum divertimento, talvez até satisfação. - Boa noite! - disse ele, voltando-se para se dirigir novamente à porta do salão, ainda ligeiramente iluminada do interior.
O silêncio pairou sobre o muro do precinto, embora as tendas mais próximas do acampamento de Owain não estivessem distantes. O muro não era tão alto que não se pudesse trepar por ele acima, embora, por onde quer que um homem subisse, houvesse sempre alguém lá em baixo, do outro lado, à espera. Mas, em qualquer caso, Bledri ap Rhys não tinha intenção de se ir embora, tinha apenas confirmado a sua suposição de que qualquer tentativa nesse sentido seria muito simples e rapidamente frustrada. As ordens de Owain, mesmo quando dadas de uma forma indirecta, eram prontamente compreendidas e levadas a cabo com eficiência. Se Bledri tivesse tido quaisquer dúvidas a esse respeito, agora já estava esclarecido. Quanto aos dois simpáticos guardas, estes retiraram-se novamente para a escuridão com uma ausência de fingimento que era quase insultuosa.
E isso, aparentemente, foi o fim do incidente. Cadfael, porém, permaneceu imóvel e interessado à distância, invisível contra o volume escuro dos edifícios de madeira, como se estivesse à espera que algum tipo de epílogo pusesse termo ao entretenimento da noite.
No oblongo da luz fraca ao topo das escadas, surgiu a rapariga Heledd, inconfundível até mesmo em silhueta pela graciosidade impetuosa do seu porte e pela elegância da sua figura alta. Até mesmo ao fim de uma noite a servir os convidados do bispo e os membros da sua casa, ela se movia como um fauno. E se Cadfael observou a sua aparição com um prazer impessoal, o mesmo fez Bledri ap Rhys do local onde se encontrava, ao lado do fundo das escadas, com uma admiração um tanto menos impessoal, uma vez que não tinha quaisquer restrições monásticas a controlá-la. Ele tinha acabado de confirmar que era agora, voluntária ou involuntariamente, membro da comitiva do príncipe pelo menos até Aber e, uma vez que estava alojado na casa do bispo, com toda a probabilidade já sabia que aquela rapariga promissora era a que iria partir com o grupo ao amanhecer. Aquela perspectiva proporcionava-lhe a esperança de um suave prazer ao longo do caminho, de passar o tempo de uma forma agradável. No mínimo, ali estava aquele momento, a finalizar uma noite agradável e rica em acontecimentos. Ela vinha a descer, com uma das cobertas bordadas da mesa alta enrolada no braço, a caminho das habitações dos cónegos no outro lado do precinto. Talvez alguém tivesse derramado vinho no tecido ou um dos fios dourados tivesse sido repuxado pela fivela de um cinto, pelo punho de um punhal ou por uma pulseira, e ela estava encarregada de a arranjar. Ele estivera prestes a subir, mas ficou à espera ao lado das escadas, pelo prazer de a ver ainda mais de perto à medida que ela descia, de olhos baixos para ter a certeza de pousar o pé em segurança. Ele estava tão quieto, e ela tão preocupada, que não reparara nele. E quando ela chegou ao terceiro degrau a contar do chão, ele estendeu subitamente a mão, agarrou-a bem pela cintura, fê-la descrever um semicírculo e, por um longo momento, segurou-a assim suspensa no ar, com o rosto próximo do seu, antes de a pousar suavemente no chão. Mas não a largou.
Foi tudo feito de uma forma ligeira e brincalhona e, tanto quanto Cadfael conseguiu ver, que foi apenas um jogo de sombras, Heledd, uma vez passada a surpresa, recebeu-o sem qualquer manifestação de desagrado nem de alarme. Ela tinha soltado uma pequena exclamação de espanto quando ele a levantou no ar, mas isso foi tudo e, uma vez pousada no chão, ficou a olhá-lo nos olhos e não fez qualquer movimento para se afastar. Não é desagradável para uma mulher ser admirada por um homem bonito. Ela disse-lhe qualquer coisa, as palavras eram imperceptíveis mas, aos ouvidos de Cadfael, o tom era ligeiro e tolerante, se não encorajador. E ele disse-lhe qualquer coisa em resposta, no mínimo sem qualquer sinal de desencorajamento. Sem dúvida que Bledri ap Rhys tinha uma opinião muito boa sobre si próprio e sobre os seus atractivos, mas Cadfael pensou que Heledd, embora pudesse gostar das atenções dele, era bastante capaz de as manter dentro de limites decorosos. Era duvidoso que ela estivesse a pensar em deixá-lo ir muito longe e poderia libertar-se daquele agradável encontro com ele quando quisesse. Nenhum deles estava a levá-lo a sério.
Em qualquer caso, ela não teve oportunidade de o concluir à sua vontade, porque a luz oriunda da porta aberta foi subitamente escurecida pela forma de um corpo de homem grande, e o eclipse abrupto lançou o par na obscuridade relativa. O cónego Meirion parou por um momento para adaptar a vista à noite e começou a descer as escadas com a sua dignidade habitual. Com a diminuição da sua enorme sombra, a luz voltou a cair sobre o cabelo brilhante de Heledd, sobre o seu pálido rosto oval e sobre os ombros largos e a cabeça arrogante de Bledri ap Rhys, os dois muito juntos um do outro no que era quase um abraço.
Pareceu ao Irmão Cadfael, que os observava do seu canto escuro com um interesse despudorado, que ambos tinham bem consciência da tempestade prestes a desabar sobre eles, e nenhum estava disposto a fazer o que quer que fosse para a evitar ou mitigar. De facto, ele reparou que Heledd suavizou um pouco a rigidez da sua postura e permitiu que a cabeça se inclinasse na direcção da luz e brilhasse com um sorriso luminoso, mais com a intenção de inquietar o pai do que de gratificar Bledri. O pai que lutasse pelo seu cargo e pela promoção que desejava! Ela dissera que, se quisesse, poderia destruí-lo. Era algo que nunca faria mas, se ele era assim tão estúpido, e a conhecia tão mal que acreditasse que ela seria capaz de provocar a sua ruína, então ele merecia pagar pela sua estupidez.
O instante de intensa imobilidade explodiu num movimento agitado, quando o Cónego Meirion recuperou a respiração e desceu, furioso, os degraus, num tumulto de negro clerical, como uma nuvem de tempestade súbita, pegou no braço da filha e arrancou-a com firmeza das mãos de Bledri. Ela afastou-se daquela nova coerção com igual firmeza e competência, e sacudiu a mão dele da sua manga. Os olhares como punhais entre o pai e a filha que devem ter atravessado a obscuridade foram embotados pela noite. E Bledri suportou graciosamente a sua privação, sem dar um passo, e riu muito suavemente.
- Oh, perdoe-me se violei a sua coutada - disse ele, deliberadamente obtuso. - Não estava a contar com um rival de hábito. Não aqui, na casa do Bispo Gilbert. Estou a ver que subestimei a sua largueza de vistas.
Ele estava a ser deliberadamente provocador, claro. Mesmo que ele tivesse a mínima ideia que este idoso indignado era o pai da rapariga, sabia certamente que aquela intervenção não podia ter a interpretação que lhe estava a dar. Mas não tinha o impulso para a diabrura tido início com Heledd? Ela não gostara que o cónego tivesse tão pouca confiança no seu discernimento que supusesse que ela ia precisar de ajuda para lidar com um gesto passageiro de desfaçatez por parte daquele visitante questionavelmente bem-recebido. E Bledri era suficientemente conhecedor de mulheres para compreender a suave malícia dela e fingir-se cúmplice, tanto para gratificação dela como para seu próprio divertimento.
- Senhor - disse Meirion com grave e ameaçadora dignidade, dominando a sua ira -, a minha filha está noiva e vai-se casar em breve. Aqui na corte de Sua Senhoria, deve tratá-la, bem como a todas as outras mulheres, com respeito. - E, dirigindo-se a Heledd, prosseguiu bruscamente, com um gesto abrupto da mão na direcção da sua casa situada sob o muro oposto do enclave. - Vai para dentro, rapariga! Já é tarde, devias estar dentro de portas.
Heledd, sem pressa nem falta de compostura, dirigiu-lhes uma leve e abrupta inclinação da cabeça para eles partilharem entre si, deu meia volta e afastou-se. A visão das suas costas enquanto caminhava era expressiva e desdenhosa dos homens em geral.
- Ela é, de facto, uma bela rapariga - disse Bledri com ar aprovador, vendo-a afastar-se. - Pode estar orgulhoso da sua descendência, Pai. Espero que esteja a casá-la com um homem que aprecie a sua beleza. A pequena cortesia de pegar na moça para a colocar no chão plano não pode ter manchado o seu bom negócio - a sua voz clara, incisiva, tinha-se demorado afectuosamente na palavra "Pai", bem consciente do ferrão duplo. - Bem, o que os olhos não vêem, o coração não sente, e ouvi dizer que o noivo está bem longe, em Anglesey. E sem dúvida que o Pai pode manter o silêncio no que diz respeito ao casamento. - A implicação simples estava lá, muito docemente insinuada. Não, era extremamente improvável que o Cónego Meirion fizesse algo que pusesse em risco o seu prometedor futuro purificado e celibatário. Bledri ap Rhys era de compreensão muito rápida e estava bem informado sobre as reformas clericais do bispo. Ele tinha até pressentido o ressentimento de Heledd por se desembaraçarem tão implacavelmente dela, e o seu impulso de se vingar antes de partir.
- Senhor, é um hóspede do príncipe e do bispo e, como tal, deve observar as normas da sua hospitalidade - Meirion estava rígido como uma lança, e a sua voz era fina e de aço como a lâmina de uma espada. Dentro da sua pessoa culta havia um feroz temperamento galês arduamente controlado. - Se não o fizer, irá arrepender-se. Independentemente da minha própria situação, eu certificar-me-ei disso. Não se aproxime da minha filha, nem tente ter mais alguma coisa a ver com ela. As suas gentilezas não são bem-vindas.
- A dama, julgo eu, não é da mesma opinião - disse Bledri, com um sorriso extremamente complacente implícito do tom da sua voz. - Ela tem uma língua e uma palma da mão, e eu creio que utilizaria ambas prontamente se eu lhe causasse algum desagrado. Eu gosto de uma rapariga com fibra. Se ela me conceder essa oportunidade, dir-lho-ei. Por que é que ela não há-de receber a admiração que merece, nestas poucas horas na estrada a caminho do seu casamento?
O breve silêncio caiu como uma pedra entre eles. Cadfael sentiu o ar estremecer com a tensão do silêncio. Seguidamente, o Cónego Meirion disse, através de dentes cerrados e de uma garganta contraída com o esforço de dominar a sua ira:
- Meu senhor, não pense que o hábito que eu visto lhe servirá de alguma protecção se afrontar a minha honra, ou o bom nome da minha filha. Escute o aviso e mantenha-se longe dela, caso contrário terá um excelente motivo para se arrepender. Embora talvez - terminou ele num tom ainda mais baixo e mais malévolo -, muito pouco tempo.
- Tempo suficiente - disse Bledri, pouco perturbado pela ameaça palpável - para todo o arrependimento que provavelmente sentirei. É algo em que tenho tido pouca prática. Boa noite, Eminência! - E ele passou tão perto de Meirion que as mangas dos dois se tocaram, talvez intencionalmente, e começou a subir as escadas do salão. E o cónego, arrancando-se si próprio, com esforço, à paralisia causada pela ira, compôs a sua dignidade o melhor que conseguiu e dirigiu-se para a sua própria porta.
Cadfael regressou, pensativo, aos seus aposentos e relatou o pequeno incidente ao Irmão Mark, que estava deitado, acordado e de olhos abertos depois das suas orações, sentindo, através de uma particular sensibilidade pessoal, as turbulentas contracorrentes que estremeciam no ar nocturno. Ele escutou, nada surpreendido.
- Até que ponto, dirias tu, Cadfael, está ele preocupado apenas com a sua carreira, e até que ponto com a filha? Porque ele, de facto, sente-se culpado em relação a ela. Culpado por considerá-la um obstáculo à sua carreira, culpado por amá-la menos do que ela o ama. Uma culpa que o torna ainda mais ansioso por que ela desapareça da vista dele, para muito longe, passando a estar sob a responsabilidade de outro homem.
- Quem consegue decifrar os motivos de qualquer homem? - disse Cadfael num tom resignado. - Muito menos os de uma mulher. Mas digo-te uma coisa, seria bom ela não o provocar demasiado. O homem tem um âmago de violência nele. Eu não gostaria de a ver à solta. Pode ser uma força assassina.
- E contra qual deles - interrogou-se Mark, a olhar para o tecto escuro por cima de si - seria lançado o raio, se houvesse uma tempestade?
A comitiva do príncipe reuniu-se ao amanhecer, por um momento hesitante entre o mau humor e sorrisos. A erva fora humedecida por um breve aguaceiro quando Cadfael e Mark atravessavam o pátio até à igreja para rezarem antes de selarem os cavalos, mas o sol cintilava nas gotas finas, e o céu no alto era do mais pálido e límpido azul, com excepção de alguns farrapos de nuvens a leste, abraçando a orbe de luz nascente com dedos acariciadores. Quando emergiram de novo no pátio este já transbordava de azáfama e som, os cavalos de carga estavam a ser carregados, a galharda cidade de tendas ao longo da colina dobrada e em movimento, e até mesmo as frágeis plumas de nuvens se tinham dissolvido numa húmida e cintilante radiância.
Mark ficou a observar com prazer os preparativos da partida com o rosto corado e alegre, como uma criança a partir para uma aventura. Até esse momento, pensou Cadfael, ele não se tinha apercebido plenamente das possibilidades, das fascinações, até mesmo dos perigos da viagem que empreendera. A viagem com os príncipes não era mais do que metade da história; havia uma ameaça à espreita algures, um irmão hostil, um prelado decidido a reformar um modo de vida que, nas mentes da sua população, não precisava de qualquer reforma. E quem conseguiria adivinhar o que poderia acontecer entre aquele local e Bangor, entre os dois bispos, o estrangeiro e o nativo?
- Eu disse uma palavra ao ouvido de Santa Winifred - disse Mark, corando com um ar de culpa, como se se tivesse apropriado de uma patrona que pertencia, por direito, a Cadfael. - Achei que devíamos estar muito próximos dela aqui, e pareceu-me delicado informá-la da nossa presença e das nossas esperanças, e pedir-lhe a sua bênção.
- Se a merecermos! - disse Cadfael, embora tivesse praticamente a certeza de que uma santa tão meiga e sensível olharia com indulgência para aquele sensato inocente.
- É verdade! Qual é a distância, Cadfael, daqui até à sua fonte sagrada?
- Cerca de catorze milhas para leste.
- É verdade que ali nunca neva? Por mais rigoroso que o Inverno seja?
- É verdade. Nunca ninguém a viu parada... borbulha sempre no centro.
- E Gwytherin, onde a tiraste da sua sepultura?
- Isso fica mas para sul e oeste - disse Cadfael, coibindo-se de referir que também voltara a colocá-la na sepultura nesse mesmo local. - Nunca tentes limitá-la - aconselhou ele cautelosamente. - Onde quer que a chames, ela estará presente, e ouvir-te-á assim que fizeres o teu pedido.
- Disso eu nunca duvidei - disse Mark com simplicidade e, com um passo ágil e esperançoso, foi juntar os seus parcos haveres e selar o seu cavalo castanho. Cadfael deixou-se ficar alguns minutos a apreciar a azáfama à sua volta, depois dirigiu-se mais calmamente para as cavalariças. No exterior dos muros do enclave, os guardas e os nobres de Owain já se estavam a juntar, o seu acampamento desaparecera do relvado, deixando apenas as manchas pisadas, mais claras, que em breve readquiririam o seu tom verde vivo, apagando a memória da sua visita. No interior dos muros, cavalariços assobiavam e chamavam, cascos batiam energicamente no chão, ritmos abafados na terra compacta, os arreios tiniam, as criadas gritavam estridentemente umas para as outras por cima da babel de vozes masculinas, e uma leve poeira levantada por todo aquele vigoroso movimento elevava-se na direcção da luz do sol e cintilava como neblina dourada.
O grupo reuniu-se tão alegremente como se fosse celebrar a Festa da Primavera, e certamente que uma manhã tão luminosa convidava a folguedos agradáveis. Mas, enquanto montavam, havia acontecimentos mais graves a ser recordados. Heledd apareceu já pronta, com a capa vestida, serena e séria, mas ladeada pelo Cónego Meirion, de lábios cerrados e sobrolho carregado, e pelo Cónego Morgant, também de lábios cerrados mas com as sobrancelhas arqueadas numa expressão de intransigente severidade, e os olhos penetrantes a pousar alternadamente no pai e na filha, sem aprovar seguramente qualquer deles. E apesar de todas as suas precauções, no último momento Bledri ap Rhys meteu-se entre eles e içou a rapariga para a sela com as suas mãos grandes e potencialmente predatórias, com uma vénia tão elaborada que rondava a insolência; e, pior ainda, Heledd aceitou o préstimo com uma graciosa inclinação da cabeça e um sorriso frio, reservado, ambíguo entre a reprovação casta e a malícia discreta. Desaprovar o comportamento de qualquer deles teria sido um disparate, tão bem tinham eles preservado o ar de decoro, mas os cónegos, embora tivessem mantido a boca fechada, contemplaram o incidente com irritação e sobrolhos cada vez mais carregados.
E aquela não foi a única nuvem súbita naquele céu limpo, pois Cuhelyn, surgindo já montado ao portão, demasiado tarde para ter observado qualquer motivo de ofensa, ficou sentado no cavalo com a testa franzida, enquanto os seus olhos atentos percorriam todo o grupo até encontrar Bledri, fixando-se nele com um ar mal-humorado, um homem de memória longa e paixões intensas, a avaliar o inimigo. Pareceu a Cadfael, que observava a cena com um ar pensativo, que a abastada bagagem daquele grupo principesco continha uma quantidade considerável de má vontade e ressentimento.
O bispo desceu para o pátio para se despedir dos hóspedes reais. O primeiro encontro tinha decorrido com bastante êxito, tendo em conta a tensão que ele lhe conferira ao convidar o enviado de Cadwaladr para a reunião. Ele não era tão insensível que não tivesse sentido a tensão e o desagrado momentâneos, e sem dúvida que respirava de alívio por ter sobrevivido ao perigo. Se ele tinha a humildade de compreender que devia isso à clemência do príncipe era outra questão, reflectiu Cadfael. E ali vinha Owain ao lado do seu anfitrião, com Hywel atrás. À sua chegada, a alegre comitiva animou-se, expectante, e, quando ele estendeu a mão para as rédeas e para a espora, todos o imitaram. Demasiado alto para mim, hem, Hugh? pensou Cadfael, subindo para a sela alta do mano, com uma leveza que lhe proporcionou uma opinião muito gratificante de si próprio. Eu vou-te mostrar se perdi a vontade de viajar e se esqueci tudo o que aprendi no Oriente antes sequer de teres nascido.
Partiram, saindo pelo portão aberto em direcção a oeste, atrás da altiva cabeça loura do príncipe, descoberta no sol da manhã. Os membros da casa do bispo ficaram a vê-los partir, cautelosamente satisfeitos com o facto de o encontro diplomático ter sido levado a cabo com êxito. As ameaças que persistiam da troca de palavras da noite anterior lançavam as suas sombras sobre os hóspedes que partiam. O Bispo Gilbert, mesmo que acreditasse em todas elas, podia deixá-las partir incontestadas, pois não representavam qualquer ameaça para ele.
À medida que os que se encontravam no interior do enclave emergiam para o trilho verde no exterior, os oficiais de Owain que se encontravam no acampamento iam-se juntando ordeiramente a eles, ladeando cada um dos flancos, e Cadfael observou com interesse mas sem surpresa que havia arqueiros entre eles, dois dos quais se mantiveram alguns metros atrás do ombro esquerdo de Bledri. Dada a indubitável rapidez de percepção daquele hóspede específico, ele apercebeu-se igualmente da presença deles, e foi igualmente óbvio que não tinha qualquer objecção a que eles ali estivessem pois, durante o primeiro quilómetro, não permitiu que isso o inibisse de mudar de posição duas ou três vezes para dizer uma palavra cortês ao ouvido do Cónego Morgant, ou para trocar amabilidades com Hywel ab Owain, que seguia próximo do pai. Mas não fez qualquer movimento para se esgueirar por entre a fila de guardas. Do mesmo modo que eles o faziam lembrar que se encontrava praticamente em cativeiro, ele estava decidido a garantir-lhes que se sentia perfeitamente satisfeito e não tinha qualquer intenção de tentar fugir. Na verdade, ele olhou uma ou duas vezes para a esquerda e para a direita para fazer uma avaliação da eficiência discreta do príncipe, e pareceu ficar favoravelmente impressionado com o que viu.
Tudo aquilo era de considerável interesse para um homem curioso, mesmo que, nessa fase, permanecesse indecifrável. Era melhor guardar tudo no fundo da mente, juntamente com tudo o mais que parecesse estranho naquela expedição, pois sem dúvida que chegaria a altura em que o seu significado seria revelado. Entretanto, ali estava Mark, silencioso e feliz ao seu lado, com a estrada para oeste à sua frente, e o sol a brilhar na flâmula de cabelo claro de Owain à cabeça da coluna. Que mais poderia um homem querer numa bela manhã de Maio?
Eles não seguiram, como Mark esperara, um pouco para norte em direcção ao mar, encaminhando-se antes para oeste, sobre colinas suavemente ondulantes e através de vales bem protegidos, ao longo de trilhos verdes por vezes nitidamente marcados, outras vezes menos bem definidos, mas mantendo acentuadamente uma linha directa tanto na subida como na descida da colina, ali onde havia campo aberto e o declive era suficientemente suave para uma cavalgada agradável.
- Uma estrada muito, muito antiga - disse Cadfael. - Começa em Chester e vai directa à origem da água de maré do Conwy, onde outrora, segundo dizem, havia uma fortaleza igual ao de Chester. Na maré baixa, conhecendo as areias, pode-se passar o rio a vau ali mas, na maré cheia, os barcos conseguem passar um pouco mais adiante.
- E depois de atravessarmos o rio? - perguntou Mark, atento e feliz.
- Depois subimos. De lá, se olharmos para oeste, pensar-se-ia que não seria possível haver um trilho que passasse por ali, mas ele existe e leva-nos pelas montanhas acima até ao outro lado, descendo finalmente para o mar. Já alguma vez viste o mar?
- Não. Como poderia tê-lo visto? Até entrar para a casa do bispo, nunca tinha saído do condado, nem sequer dez milhas do local onde nasci. - Ele estava a esforçar-se por ver ao longe enquanto cavalgava, com ansiedade e alegria, sedento por tudo o que nunca tinha visto. - O mar deve ser uma grande maravilha - disse ele num murmúrio.
- É um bom amigo e um mau inimigo - disse Cadfael, evocando recordações antigas. - Se o respeitares, ele servir-te-á bem, mas nunca facilites.
O príncipe tinha estabelecido um ritmo constante, fácil, que podia ser mantido milha após milha naquele terreno ondulante, verde e luxuriante, salpicado de aldeias nos vales, com as casas e a igreja muito juntas, com a orla de campos aráveis como uma tapeçaria à sua volta, e aqui e ali, solitárias, espalhadas pelo tref, as casas de proprietários de terras livres e, não menos solitária, algures no meio delas, a sua igreja paroquial.
- Estes homens têm uma vida solitária - disse Mark, reparando na diferença com algum espanto.
- Estes são os homens nascidos livres. São donos da sua própria terra, mas não podem fazer com ela o que quiserem, é herdada através de uma rígida lei da herança no interior da família. As aldeias de vilões trabalham a terra entre si e pagam juntas os impostos comunais, embora todos os homens tenham a sua casa, o seu gado e o seu justo quinhão de terra. Nós certificamo-nos disso supervisionando frequentemente a distribuição. Assim que os filhos se tornam homens, eles recebem a sua parte na distribuição seguinte.
- Por conseguinte, ninguém herda - deduziu Mark.
- Ninguém a não ser o irmão mais novo, o último a ter idade suficiente para receber a sua parte. Ele herda a parte e a casa do pai. Nessa altura, os seus irmãos mais velhos já se terão casado e construído as suas próprias casas. - Parecia a Cadfael, e aparentemente também a Mark, uma forma justa, se bem rudimentar, de garantir a todos os homens um meio de sustento e um lugar onde viver, uma porção justa do trabalho e uma porção justa do lucro da terra.
- E tu? - perguntou Mark. - Era aqui que pertencias?
- Pertencia e não podia pertencer - admitiu Cadfael, recordando, com alguma surpresa, as suas próprias origens. - Sim, eu nasci num tref vilão deste género e, quando fiz catorze anos, recebi um pedaço de terra. E consegues acreditar numa coisa?... Eu não o quis! Boa terra galesa, e eu não sentia nada por ela. Quando o mercador de lã de Shrewsbury gostou de mim e me ofereceu trabalho que me permitiria ver pelo menos mais algumas milhas do mundo, saltei para a porta aberta como tenho saltado para todas as que já me surgiram à frente. Eu tinha um irmão mais novo, mais interessado em ficar a vida inteira num pedaço de terra. Parti, até onde a estrada me levou, e ela levou-me a metade do mundo até eu ter compreendido. A vida não segue em linha recta, meu rapaz, mas sim num círculo. Passamos a primeira metade a aventurar-nos até ao fim do mundo, para longe da casa, da família e do silêncio, e a segunda metade traz-nos de volta, através de caminhos indirectos mas acabando sempre por nos levar à situação de que partimos. Assim, acabei ligado, através dos votos, a um lugar restrito, com excepção das raras oportunidades de partir em missão da minha casa, e a trabalhar um pequeno pedaço de terra, na companhia dos meus familiares mais próximos. E feliz - disse Cadfael, com um suspiro de satisfação.
Antes do meio dia, chegaram ao cume de um espinhaço elevado; abaixo deles abria-se o vale do Conwy e, para além deste, o terreno elevava-se suavemente a princípio, mas acima daqueles níveis verdes destacavam-se ao longe os enormes bastiões de Eryri, elevando-se em picos de aço polido contra o azul pálido do céu. O rio era um fio de prata sinuoso, serpenteando ao longo de um curso tortuoso através e por cima de bancos de lama e areia da maré, a caminho do mar a norte; àquela hora, as suas águas estavam tão espalhadas e reduzidas que seria possível atravessá-lo sem qualquer dificuldade. E, depois da travessia, tal como Cadfael avisara, subiram.
As primeiras milhas verdes e soalheiras deram lugar a um trilho ascendente que acompanhava um pequeno afluente, subindo a pique até as árvores terem ficado para trás, e eles emergiram gradualmente num mundo soberbo de charneca, tojo e urze, aberto e nu como o céu. Arado algum tinha alguma vez penetrado no solo ali, não havia qualquer movimento visível a não ser a ondulação do vento súbito entre o tojo e os arbustos baixos, nem quaisquer habitantes a não ser os pássaros que surgiam diante dos cavaleiros da frente e os falcões que pairavam, quase imóveis, lá no alto. E, no entanto, através daquela imensidão desolada mas bela, havia uma estrada perceptível pavimentada com pedras almofadadas com ervas, elevada acima dos ocasionais lugares pantanosos, escarranchada por cima de poças pouco fundas de água castanha escura, dirigindo-se para a majestosa parede de rocha que parecia ao Irmão Mark totalmente impenetrável. Nos lugares em que a rocha firme penetrava no solo e proporcionava uma base sólida, o trilho elevado continuava visível como um caminho muito usado que não precisava de qualquer rampa de pedras, mantendo sempre a linha recta em frente.
- Isto foi feito por gigantes - disse o Irmão Mark, espantado.
- Foi feito por homens - disse Cadfael. Nos troços claramente visíveis a estrada era larga, suficientemente larga para uma coluna de seis filas a marchar, embora a cavalaria tivesse que seguir com não mais de três, e os arqueiros de Owain, que conheciam bem aquele território, se tivessem colocado em ambos os flancos, deixando a estrada livre para o grupo que eles guardavam. Uma estrada, pensou Cadfael, construída, não para prazer, não para a falcoaria ou para a caça, mas como um meio de deslocar um grande número de homens de uma fortaleza para outra o mais rapidamente possível. Ela não tinha em conta a inclinação do solo, seguia sempre em frente, fazendo desvios apenas quando essa linha recta era impossível de manter e, nesses casos, só até o obstáculo ter sido ultrapassado.
- Mas através daquela parede alcantilada - disse Mark num tom de espanto, olhando para a barreira de montanhas à sua frente - certamente que não conseguiremos passar.
- Sim, vais ver que há uma passagem, estreita mas suficientemente larga, no desfiladeiro de Bwlch y Ddeufaen. Vamos serpentear através daquelas colinas, mantendo este nível elevado durante mais três ou quatro milhas, depois começamos a descer.
- Em direcção ao mar?
- Em direcção ao mar - respondeu Cadfael.
Chegaram ao primeiro declive, o primeiro vale de arbustos e árvores abrigado, e, no seu centro, borbulhava uma nascente que se transformava num alegre regato e que os acompanhou na descida gradual em direcção à costa. Há muito que tinham deixado para trás os riachos que corriam para leste, para o Conwy; ali, os ribeiros reluzentes tinham vidas breves, precipitosas, e dirigiam-se para o mar. E juntamente com o mais pequeno do seu género o trilho descia, elevado num nível de terra firme acima da água, à beira da fenda de árvores. A descida tornou-se mais gradual, o ribeiro afastou-se um pouco do trilho e, subitamente, o campo visual abriu-se à frente deles e lá estava, de facto, o mar.
Imediatamente abaixo deles havia uma aldeia com campos cultivados que formavam padrões, para além dela um prado estreito que se dissolvia em salinas e seixos, depois a imensidão do mar e, para além deste, distante mas nítida na luz do fim de tarde, a costa de Anglesey estendia-se para norte, terminando na pequena ilha de Ynys Lanog. Na praia em direcção à qual se deslocavam, a água pouco funda cintilava com um brilho de ouro pálido revestido de água-marinha, quase até onde os olhos conseguiam distinguir a cor, pois as areias abrangiam a maior parte do percurso até à praia, e só ali, ao longe, é que o mar escurecia, adquirindo o azul puro, esverdeado de um canal fundo. Ao ver a maravilha com que sonhara e sobre a qual especulara o dia inteiro, Mark parou o cavalo por um momento e ficou a olhar, com o rosto corado e olhos brilhantes, encantado com a beleza e a diversidade do mundo.
Aconteceu Cadfael virar a cabeça para olhar para o local onde alguém tinha parado naquele mesmo momento, talvez com o mesmo deleite extasiado. No meio dos seus guardiães cónegos, Heledd tinha estancado e ficado a olhar, mas a sua visão estava erguida para além do cristal e ouro dos baixios, para além do canal cor de cobalto, para a costa distante de Anglesey, e tinha os lábios austeramente cerrados e as sobrancelhas direitas, não manifestando qualquer emoção. Ela olhou para a terra do seu noivo, do qual não sabia nada, o homem de quem só ouvira falar bem; ela viu o casamento avançar demasiado depressa, e havia no seu rosto uma tristeza tão perplexa e ressentida, bem como uma rejeição tão obstinada do seu destino, que Cadfael ficou admirado por sentir a sua veemente indignação e virou-se, alarmado, para descobrir a origem daquela intensa inquietação.
Depois, tão subitamente como parara, ela pegou nas rédeas e fez o cavalo descer a colina num trote impaciente, deixando para trás os seus acompanhantes de hábito preto, e enfiou-se no meio da cavalgada para que eles a perdessem de vista pelo menos durante alguns minutos de rebeldia.
Ao observar a sua impetuosa passagem através das filas da comitiva do príncipe, Cadfael absolveu-a de qualquer intenção deliberada de se aproximar da montada de Bledri. Ele estava simplesmente no seu caminho, dentro de um momento ela passaria por ele. Mas houve bastante intenção na alacridade oportunista com que Bledri estendeu a mão para o freio dela e a fez parar com o joelho muito próximo do seu, bem como no sorriso íntimo, seguro, que lhe dirigiu quando ela cedeu à persuasão. Houve, pensou Cadfael, um instante em que ela quase o sacudiu, quando enrolou o lábio numa expressão de troça tolerante, que era tudo o que ela sentia por ele. Depois, com uma intencionalidade perversa, ela sorriu-lhe e consentiu em ficar ao seu lado, sem qualquer pressa de se libertar da mão musculosa que a detinha. Seguiram juntos num ambiente de aparente amizade, a passo idêntico e conversando descontraidamente. A visão traseira deles não sugeria a Cadfael mais do que uma continuação de um jogo um tanto malicioso mas divertido para ambas as partes, mas quando ele virou cautelosamente a cabeça para ver o efeito que o incidente tivera nos dois cónegos de Santo Asaph, foi óbvio que, para estes, ele sugeria algo muito diferente. Se as sobrancelhas carregadas e os lábios rígidos de Meirion ameaçavam tempestades na direcção de Heledd e ira em relação a Bledri ap Rhys, eles estavam igualmente tensos de apreensão pelo que se devia estar a passar atrás da rectidão controlada mas ameaçadora do rosto cheio de Morgant.
Ah, bem! Mais dois dias, e tudo estaria terminado. Chegariam finalmente a Bangor, o noivo atravessaria o estreito para ir ao seu encontro, e Heledd seria levada para aquela costa envolta em neblina para além do ouro pálido e azul-gelo de Lavan Sands. E o Cónego Meirion poderia finalmente respirar de alívio.
Chegaram à orla das salinas e viraram para oeste, com a trémula face plana dos baixios a reflectir a luz cintilante à direita, e o verde dos campos e dos bosques à esquerda, elevando-se em socalcos sucessivos até às colinas. Por uma ou duas vezes eles chapinharam através dos ténues riachos que gotejavam, através dos pântanos salgados, para o mar. E, ao fim de uma hora, estavam a cavalgar ao longo da estacada alta da mansão real de Owain e da aldeia de Aber, e os carregadores e as sentinelas de guarda aos portões tinham visto o brilho das suas bandeiras a aproximar-se e anunciaram a sua chegada no interior.
De todos os edifícios que orlavam as paredes do pátio do maenol de Owain, das cavalariças à sala das armas e ao salão, bem como da série de aposentos para hóspedes, surgiram os membros da casa para receber e para desejar as boas-vindas aos seus visitantes. Acorreram cavalariços para tomar conta dos cavalos, escudeiros com jarros e chifres. Hywel ab Owain, que tinha distribuído meticulosamente as suas atenções hospitaleiras durante a viagem, indo amavelmente de cavaleiro em cavaleiro como representante do seu pai, e sem dúvida reparando em todas as tensões entre eles, tendo em mente os interesses do pai, foi o primeiro a desmontar, tendo pegado imediatamente nas rédeas do príncipe, num elegante gesto de respeito filial, antes de entregar o cavalo ao cavalariço que estava à espera e de beijar a dama que tinha saído do salão de madeira para dar as boas vindas ao seu senhor. Não era a mãe dele! Os dois rapazinhos que saíram pela porta do salão e desceram os degraus aos saltos atrás da dama eram dela, ágeis diabinhos morenos com cerca de dez e sete anos, a gritar de excitação e com uma confusão de cães a enrolar-se à volta dos seus pés. A mulher de Owain era filha de um príncipe de Arwystli, do centro de Gales, e os seus irrequietos filhos tinham a sua cor morena. Mas um rapaz mais velho, com talvez quinze ou dezasseis anos, desceu as escadas atrás deles com uma atitude mais circunspecta, dirigiu-se directamente a Owain com um ar de autoridade e confiança, e foi abraçado com um afecto que não deixava lugar para dúvidas. Este rapaz tinha o cabelo claro do pai, mas da cor do ouro puro, e o impressionante garbo masculino do seu progenitor refinara-se numa espantosa beleza. Alto, erecto, com a graciosidade de movimentos de um atleta, ele não podia emergir na companhia de quem quer que fosse sem que se reparasse nele, e até mesmo ao longe o azul nórdico luminoso dos seus olhos era tão límpido como se um sol interior brilhasse através de cristais de safira. O Irmão Mark viu-o e susteve a respiração.
- Filho dele? - murmurou ele, espantado.
- Mas não dela - disse Cadfael. - É outro como Hywel.
- Não pode haver muitos assim no mundo - disse Mark, olhando-o atentamente. Ele sempre se considerara o mais feio e insignificante dos mortais e observava a beleza nos outros com particular deleite.
- Só há um, rapaz, como muito bem sabes, pois só há um de cada homem que jamais existiu, moreno ou louro. E, no entanto - admitiu Cadfael, reconsiderando a singularidade do invólucro físico, se não da alma que o habita -, nós estamos próximos de duplicar este lá em casa, em Shrewsbury. O rapaz chama-se Rhun. Se olhares para o nosso Irmão Rhun, uma vez que a Santa Winifred o aperfeiçoou, poderás pensar que um deles é um reflexo miraculoso.
Até mesmo no nome! E seguramente, pensou Mark, recordando com prazer o mais jovem dos que tinham sido seus irmãos em Shrewsbury, era assim que devia ser o molde de um príncipe, do filho de um príncipe... e não menos, um santo, o protegido de um santo. Todo radiosidade e claridade, todo franqueza e serenidade no rosto. Não era de admirar que o seu pai, reconhecendo um prodígio, o amasse mais do que aos outros.
- Gostaria de saber - disse Cadfael, em parte para si próprio, lançando involuntariamente uma sombra sobre a contemplação da luz por parte de Mark - como é que os dois dela olharão para ele quando forem todos adultos.
- É impossível - disse Mark com firmeza - que eles alguma vez lhe queiram mal, mesmo que a ganância pela terra transforme por vezes irmãos em inimigos. Este jovem não seria capaz de odiar.
Junto dele, uma voz fria e seca comentou ironicamente:
- Irmão, eu invejo a tua certeza, mas não a partilharia por nada deste mundo... a queda é demasiado mortal. Não há ninguém que não possa ser detestado, por mais improvável que pareça. Nem ninguém que não possa ser amado, contra toda a razão.
Cuhelyn tinha-se aproximado sem que eles se tivessem dado conta, abrindo caminho por entre o movimento de homens e cavalos, cães, criados e crianças. Apesar da sua soturna intensidade, ele era um homem muito calmo, discreto em todos os seus movimentos. Ao ouvir a observação inesperada, Cadfael virou-se, mesmo a tempo de ver o olhar atento dos olhos astuciosos do jovem, naquele momento fixos com um afecto irónico, indulgente, no rapaz Rhun, avivar-se e esfriar quando outra figura se interpôs, e seguir a azáfama com uma fixidez que, ao princípio, sugeriu a Cadfael, apenas um interesse distante mas que, numa questão de segundos, endureceu numa composta mas indubitável hostilidade. Talvez até mais que hostilidade, alguma desconfiança contida mas implacável.
Um jovem com a idade de Cuhelyn e não muito diferente dele em estatura e cor, embora com o rosto mais magro e um pouco mais alto, mantivera-se um pouco distante, a observar a azáfama à sua volta, de braços cruzados e com os ombros encostados à parede do piso inferior, como se aquela chegada tumultuosa lhe dissesse menos respeito do que aos restantes membros da casa. Subitamente, ele abandonou aquela atitude distante e moveu-se, atravessando no meio de Cuhelyn e do par abraçado, pai e filho, encobrindo o rosto radioso de Rhun. Afinal, havia ali algo que interessava ao jovem, ele tinha avistado alguém que significava mais para ele do que os clérigos de Santo Asaph ou os jovens nobres da guarda de Owain.
Cadfael seguiu a sua impetuosa passagem através da multidão e viu-o agarrar na manga de um cavaleiro que descia do cavalo. O mesmo toque, o mesmo encontro que tinha tornado tensos todos os traços do rosto de Cuhelyn. Bledri ap Rhys virou-se, ficou frente a frente com o jovem que o abordara, reconheceu claramente alguém conhecido e cumprimentou-o disfarçadamente. Não foi um gesto de boas-vindas muito exuberante, mas houve, em ambas as partes, um lampejo momentâneo de cordialidade e reconhecimento, antes de Bledri fazer com que o seu rosto ficasse formalmente inexpressivo, e o rapaz aceitou a sugestão e deu início ao que parecia ser a mais habitual das amabilidades da corte. Não havia, aparentemente, necessidade de fingir que não se conheciam suficientemente bem, mas havia toda a necessidade de manter o conhecimento em termos meramente corteses.
Cadfael olhou por um pequeno instante por cima do ombro para o rosto do Cuhelyn e perguntou simplesmente:
- Gwion?
- Gwion!
- Eles eram muito chegados? Estes dois?
- Não. Não mais chegados do que devem ser dois homens que servem o mesmo senhor.
- Isso poderá ser suficientemente chegado para fazer o mal - disse Cadfael abruptamente.-Tal como me disse, o vosso homem deu a sua palavra de que não iria tentar fugir. Ele não jurou renunciar à sua fidelidade para além disso.
- É bastante natural que ele goste de ver outro vassalo - disse Cuhelyn num tom firme. - Ele vai cumprir a sua palavra. Quanto a Bledri ap Rhys, eu certificar-me-ei de que cumpre os termos da sua estadia entre nós. - Ele sacudiu-se um pouco e pegou nos dois pelo braço. O príncipe, a mulher e os filhos estavam a subir as escadas que iam dar ao salão, seguidos, sem pressa, dos membros da casa mais chegados. - Venham, Irmãos, permiti-me que seja o vosso guia aqui. Vou levar-vos aos vossos aposentos e mostrar-vos a capela. Usem-na como pretenderem, o capelão do príncipe irá dar-se a conhecer.
Na privacidade dos aposentos que lhes foram atribuídos, protegidos pela parede do maenol, o Irmão Mark estava sentado, revigorado e pensativo, a recordar, com olhos cinzentos bem abertos, tudo o que acontecera durante a chegada a Aber. Por fim, disse:
- O que mais me despertou a curiosidade e o espanto foi a semelhança entre aqueles dois... os jovens vassalos de Anarawd e Cadwaladr. Não é uma mera questão da mesma idade, do mesmo tipo de corpo, do mesmo género de rosto, é a mesma paixão dentro deles. Em Gales, Cadfael, esta é outra forma de lealdade, diferente da dos normandos, ou, pelo menos, é o que me parece. Eles estão em lados opostos, o teu Cuhelyn e este Gwion, e podiam ser irmãos.
- E como irmãos deviam, embora por vezes não o façam, respeitar-se mutuamente e gostar um do outro. O que não os impediria de se matarem - admitiu Cadfael - se houvesse um conflito entre os seus senhores no campo de batalha.
- É o que eu acho que está tão errado - disse Mark num tom sério. - Como é que aqueles jovens conseguem olhar um para o outro e não se ver a si próprios? Ainda mais agora que vivem juntos na mesma corte e admitiram sentir afecto um pelo outro?
- Eles parecem gémeos, tendo um nascido canhoto e o outro destro; são ao mesmo tempo duplos e opostos. Eles podiam matar sem maldade, e morrer sem maldade. Que Deus não permita - disse Cadfael - que alguma vez se chegue a esse ponto. Mas uma coisa é certa. Cuhelyn estará atento a todos os momentos em que o seu reflexo se encontrar com Bledri ap Rhys e tomará nota de todas as palavras e todos os olhares que eles trocarem. Porque eu acho que ele sabe um pouco mais a respeito do enviado de Cadwaladr do que nos contou.
Ao jantar, no salão de Owain, havia boa comida, muito hidromel e cerveja, e música de harpa da melhor. Hywel ab Owain cantou, improvisando sobre a beleza de Gwynedd e o esplendor da sua história, e o coração recalcitrante de Cadfael despiu o hábito durante meia hora e seguiu os versos até às montanhas do interior de Aber e através do espelho pálido de Lavan Sands até ao cemitério real de Llanfaes em Anglesey. Na juventude, as suas aventuras tinham-no levado para leste, agora, na sua idade avançada, os olhos e o coração voltavam-se para oeste. Todos os céus, todos os santuários dos abençoados ficavam a oeste, em todas as lendas e em todas as imaginações, pelo menos para os homens de origem celta; uma meditação apropriada para os velhos. No entanto, ali no llys real de Gwynedd, Cadfael não se sentia velho.
Também não parecia que os seus sentidos estivessem menos apurados, mesmo quando se comprazia nos seus sonhos, pois encontrava-se suficientemente atento para detectar o momento em que Bledri ap Rhys fez deslizar o braço pela cintura de Heledd quando esta lhe serviu hidromel. Nem perdeu a rigidez gélida do rosto do Cónego Meirion quando viu a cena, nem a intencionalidade com que Heledd, bem consciente do mesmo olhar malévolo, se coibiu de se libertar imediatamente e disse uma palavra sorridente ao ouvido de Bledri, que tanto poderia ter sido uma maldição como um elogio, embora não houvesse qualquer dúvida sobre o modo como o pai dela a interpretou. Bem, se a rapariga estava a brincar com o fogo, de quem era a culpa? Ela vivera com o pai durante muitos anos e tinha sido uma filha leal, afectuosa; ele tinha obrigação de a conhecer melhor, o suficiente para confiar nela. Bledri ap Rhys servia-lhe apenas para ela se vingar do pai que estava com tamanha pressa de se livrar dela.
Pensando bem, também não parecia que Bledri ap Rhys estivesse seriamente interessado em Heledd. Ele fez o gesto de admiração e corte quase distraidamente, como se esse fosse o comportamento que, de acordo com o uso, era esperado dele, e embora o gesto tivesse sido acompanhado por um elogio sorridente, ele largou-a assim que ela se afastou, e o seu olhar recaiu novamente num determinado jovem sentado entre os nobres da guarda na mesa inferior. Gwion, o último refém obstinado que se recusava a renunciar à sua lealdade absoluta para com Cadwaladr, estava sentado em silêncio no meio dos seus pares e inimigos, alguns dos quais, como Cuhelyn, se tinham tornado seus amigos. Durante o festim, ele mantivera-se calado e guardara os seus pensamentos para si próprio, não olhando sequer em volta. Mas sempre que erguia o olhar, era em Bledri ap Rhys que os seus olhos pousavam, e Cadfael viu-os trocar um olhar breve e vivo pelo menos duas vezes, do tipo que os aliados utilizam para transmitir mundos de significado quando é impossível falar abertamente.
Aqueles dois vão arranjar forma de se encontrarem em privado antes de a noite chegar ao fim, pensou Cadfael. E com que finalidade? Não é Bledri que procura afincadamente um encontro, embora ele tenha andado em liberdade e se suspeite que tenha algum assunto secreto a transmitir. Não, é Gwion que quer, exige, está a contar em ser escutado por Bledri. É Gwion que tem um objectivo importante e urgente que, para ser atingido, precisa de um aliado. Foi Gwion que deu a sua palavra em como não iria deixar o cativeiro suave de Owain. Bledri ap Rhys não o fez.
Bem, Cuhelyn garantira que Gwion estava de boa fé e jurara vigiar constantemente Bledri. Mas pareceu a Cadfael que o llys era suficientemente grande e suficientemente complexo para lhe proporcionar uma vigilância difícil, se aqueles dois estivessem decididos a escapar-lhe.
A dama tinha permanecido com os filhos em privado e não jantara no salão, e o príncipe também se retirara cedo para os seus aposentos, pois estivera ausente, da família durante alguns dias. Ele levou o seu filho preferido com ele e deixou Hywel a presidir à mesa até os seus hóspedes decidirem retirar-se. Todos os homens tinham agora liberdade para mudar de lugar ou para sair para apanhar o ar fresco da noite, e houve um movimento considerável no salão; e, com o barulho das muitas conversas e da música dos harpistas, com o fumo dos archotes e a obscuridade dos cantos sombrios, quem ia conseguir manter um olho atento num homem entre tantos? Cadfael reparou que Gwion tinha deixado a companhia dos jovens da casa, mas Bledri ap Rhys continuava sentado no seu modesto lugar perto da base da mesa alta, bebendo serenamente o seu hidromel - mas com moderação, reparou Cadfael - e observando atentamente tudo o que se passava à sua volta. Ele pareceu estar cautelosamente impressionado com a força e com a rígida ordem da casa real, bem como com o número, a disciplina e a confiança dos jovens da guarda.
- Eu penso - disse o Irmão Mark em voz baixa ao ouvido de Cadfael - que, se formos agora, talvez tenhamos a capela só para nós.
Eram quase horas das Completas. O Irmão Mark não teria descanso se negligenciasse o ofício religioso. Cadfael pôs-se de pé e foi com ele, saindo pela porta do salão para o frio e para a frescura da noite e atravessando o pátio interior até à capela de madeira junto do muro exterior. Ainda não estava muito escuro nem era muito tarde, e os bebedores determinados que ainda se encontravam no salão não poriam ainda termo ao convívio, mas nas passagens sombrias entre os edifícios do maenol, os que tinham obrigações a cumprir movimentavam-se sem pressa e em voz baixa, desempenhando as suas tarefas habituais com a languidez tranquila do final de um longo e satisfatório dia.
Ainda estavam a alguns metros da porta da capela quando um homem emergiu desta e virou para a fila de aposentos que orlava o muro do pátio, desaparecendo numa das passagens estreitas atrás do salão. Ele não passou muito perto deles, e podia ser qualquer um dos frequentadores mais altos e mais velhos da corte de Owain. Não tinha pressa e dirigia-se tranquilamente e com um ar um pouco cansado para o seu local de repouso nocturno, no entanto, a mente de Cadfael estava tão constantemente concentrada em Bledri ap Rhys que, mesmo ao lusco-fusco cada vez mais acentuado, ele tinha quase a certeza da identidade do homem.
Teve a certeza absoluta quando entraram na capela pouco iluminada pelo pavio rosado de uma lamparina colocada em cima do altar, e viu os contornos sombrios de um homem ajoelhado um pouco ao lado do pequeno lago de luz. Este não se apercebeu imediatamente da presença deles ou, pelo menos, pareceu não ter reparado nela, embora eles tivessem entrado sem grande cuidado em preservar o silêncio; e quando pararam e se deixaram ficar imóveis para não interromper as suas orações, ele não deu qualquer sinal e continuou curvado e preocupado, com o rosto na sombra. Por fim, moveu-se, suspirou e pôs-se de pé e, ao passar por eles a caminho da saída, desejou-lhes "Boas-noites, Irmãos!" em voz baixa. A pequena luz vermelha da lamparina do altar desenhou claramente o seu perfil no ar, mas apenas durante um momento, tempo suficiente, contudo, para mostrar com nitidez os traços jovens, intensos e taciturnos de Gwion.
Há muito que as Completas tinham terminado, já passava da meia-noite, e eles estavam a dormir tranquilamente nos pequenos aposentos que partilhavam quando se deu o alarme. Os primeiros sinais, um clamor súbito ao portão principal do maenol, o ruído surdo de cascos a entrar, a agitada troca de vozes entre cavaleiro e sentinela, passaram distantes, como um sonho, pelos sentidos de Cadfael sem quebrar o seu sono, mas o ouvido mais jovem de Mark e a sua mente hiperactiva devido à excitação do dia acordaram-no mesmo antes de o murmúrio de vozes se transformar em ordens dadas em voz alta, e os homens da casa começarem a reunir-se no pátio, prontos mas sonolentos, vindos dos recantos do salão e dos inúmeros aposentos do maenol. Seguidamente, o que restava do repouso da noite foi estilhaçado pelo som de uma corneta, e Cadfael rolou do seu cobertor para o chão, completamente acordado e pronto para a acção.
- O que se passa?
- Entrou alguém a cavalo. Cheio de pressa. Apenas um cavaleiro.
- Eles não iam acordar a corte por causa de uma insignificância - disse Cadfael, agarrando nas sandálias e dirigindo-se para a porta. A corneta voltou a soar, e os ecos faziam ricochete entre os edifícios do llys do príncipe, suavizando a sua aspereza nas paredes. No pátio aberto, os jovens acorreram, armados, à chamada, e o murmúrio das vozes, ainda num tom baixo por ser noite, foi aumentando, tendo-se transformado num rugido mudo, sem palavras, como a maré numa tempestade. De todas as portas abertas um fio de luz de candeeiros e velas apressadamente acendidos jorrava para o escuro, fazendo aparecer um rosto reconhecido no meio da multidão. Um cavalo exausto que tivera uma viagem dura estava a ser conduzido com a cabeça caída em direcção às cavalariças, e o seu cavaleiro, ignorando as inúmeras mãos que se estendiam para o segurar e as inúmeras vozes que lhe faziam perguntas, abria caminho por entre a multidão e dirigia-se para o salão. Mal tinha chegado ao fundo dos degraus quando a porta acima dele se abriu e Owain apareceu com o seu roupão de pele, grande e escuro de encontro à luz do interior, com o escudeiro que tinha corrido a acordá-lo com a notícia da chegada ao seu lado.
- Aqui estou eu - disse o príncipe em voz alta, clara e bem desperta. - Quem quer falar comigo? - Quando ele se aproximou da beira das escadas, a luz vinda do interior recaiu sobre o rosto do mensageiro, e Owain reconheceu-o. - És tu, Goronwy? De Bangor? Que notícias trazes?
O mensageiro mal dobrou o joelho. Ele era conhecido e de confiança, e a cerimónia era um desperdício de momentos preciosos.
- Meu senhor, ao princípio da noite chegou um mensageiro com notícias de Carnarvon, e eu trouxe-vos essas notícias o mais rapidamente que o meu cavalo conseguiu. Por volta das Vésperas, foram avistados barcos a oeste de Abermenai, uma frota grande de guerra. O marinheiro diz que são barcos dinamarqueses do reino de Dublin que vêm atacar Gwynedd e obrigar-vos a agir. E que Cadwaladr, o vosso irmão, vem com eles! Ele trouxe-os até cá por despeito para se vingar e ser reinstalado. A lealdade que não conseguiu manter por amor, comprou ele com a promessa de ouro.
Num país sob o domínio de Owain, a invasão da desordem poderia provocar uma consternação momentânea, mas não podia ter esperança de, por sua vez, dar azo à desordem. A sua mente era demasiado rápida e resoluta para albergar o caos. Antes de o rugido surdo de ira ter envolvido o pátio, o comandante da guarda do príncipe estava ao seu lado, à espera de ordens. Eles compreendiam-se demasiado bem para precisar de muitas palavras.
- Esta notícia é segura? - perguntou Owain.
- É, sim, meu senhor. O próprio mensageiro que ma deu viu-os das dunas. Demasiado distante para ter a certeza de quantos barcos eram, mas sem qualquer dúvida acerca de onde eles vinham e poucas dúvidas sobre o motivo. Sabia-se que ele tinha fugido para junto deles. Por que motivo havia de voltar com uma força tão grande a não ser para um ajuste de contas?
- Ele tê-lo-á - disse Owain tranquilamente. - Quando é que eles deverão desembarcar?
- Antes da manhã, seguramente, meu senhor. Eles vinham à vela, e há um vento constante de oeste.
Owain reflectiu durante um longo momento. Talvez um quarto dos cavalos que estavam nas cavalariças tivesse feito uma viagem longa, mas não dura, no dia anterior, e um igual número dos seus homens armados tinha feito essa mesma viagem e estivera alegremente no salão até noite alta. E a viagem que agora enfrentavam seria urgente e rápida.
- Pouco tempo - disse ele, reflectindo - para organizar sequer metade de Gwynedd, mas certificar-nos-emos de que temos reservas e reuniremos todos os homens disponíveis no caminho entre aqui e Carnarvon. Preciso de seis mensageiros, um que vá agora à nossa frente, os outros para levar as minhas ordens através do resto de Arlechwedd e Arfon. Chamem-nos a Carnarvon. Poderemos não precisar deles, mas não há mal nenhum em termos a certeza. - Os seus escrivães ouviram as suas palavras e desapareceram, com uma calma louvável, para prepararem as ordens seladas que os mensageiros levariam aos chefes dos dois clãs antes do fim da noite. - Agora, todos os homens que pegam em armas - disse Owain, erguendo a voz de modo a que esta chegasse às paredes e ecoasse - devem ir para a cama repousar o mais que puderem. Temos que nos reunir à primeira luz do dia.
Cadfael, que estava a ouvi-lo na orla da multidão, aprovou. Os mensageiros podiam certamente cavalgar de noite, mas deslocar uma hoste disciplinada através do país no escuro era um desperdício de tempo que poderia ser mais bem utilizado a conservar a sua energia. Embora com relutância, os guerreiros da casa dispersaram; apenas o comandante da guarda pessoal de Owain voltou para junto do seu senhor, depois de se ter assegurado da obediência rígida dos seus homens.
- Tira as mulheres do nosso caminho - disse Owain por cima do ombro. A sua mulher e as damas desta tinham permanecido junto da porta aberta do salão, silenciosas, com excepção dos murmúrios agitados das mais jovens. Elas foram-se embora com um ar inquieto e a olhar frequentemente para trás, mais curiosas e excitadas do que alarmadas, mas foram-se embora. A princesa tinha uma mão tão firme sobre os membros da sua casa como Owain tinha sobre os seus guerreiros. Ficaram os administradores e conselheiros mais velhos, e os criados que poderiam vir a ser necessários para qualquer serviço da sala de armas, das cavalariças, dos armazéns, da destilaria ou da padaria. Os homens armados também tinham outras necessidades para além das suas lanças e arcos, e a adição de várias centenas de homens a uma guarnição significava que um comboio de abastecimentos se seguiria.
Cadfael reparou que entre o grupo mais pequeno que agora rodeava o príncipe se encontrava Cuhelyn, pelo aspecto acabado de sair da cama, talvez mesmo arrancado ao sono, pois vestira-se apressadamente, ele que habitualmente gostava de apresentar-se elegantemente vestido. E estava Hywel, vigilante e calado ao lado do pai. E Gwion, atento e imóvel, um pouco afastado, tal como na primeira vez que Cadfael o vira, como se se mantivesse sempre indiferente às preocupações de Owain e de Gwynedd, por mais honrosamente que as reconhecesse. E o Cónego Meirion e o Cónego Morgant, que se tinham aproximado ao serem confrontados com uma crise que não tinha nada a ver com Heledd e que não representava uma ameaça directa a qualquer deles. Eles também eram espectadores, e não participantes. A sua tarefa era levar a noiva relutante em segurança até Bangor, para os braços do seu noivo, e não havia barcos dinamarqueses perto de Bangor, nem era provável que viesse a haver. Heledd tinha sido colocada em segurança junto das mulheres da princesa, e sem dúvida que estaria agora a conversar animadamente com elas sobre o que lhe parecia ser uma diversão quase agradável.
- Então isto - disse Owain no silêncio relativo que aguardava as suas ordens - são as consequências funestas que Bledri ap Rhys tinha em mente. Ele sabia perfeitamente bem o que o meu irmão tinha planeado. Ele avisou-me. Deixá-lo esperar a sua vez, nós temos outras coisas a fazer antes do amanhecer. Se ele estiver deitado, deixá-lo lá estar.
Os mensageiros escolhidos para transmitir as suas ordens aos príncipes vassalos estavam a reaparecer envergando o manto para a cavalgada nocturna, e os cavalariços surgiram das cavalariças a conduzir os cavalos selados e prontos para eles. O cavalo de guia vinha quase a trote, conduzido pelo primeiro cavalariço, e o homem, num estado de contida agitação, disse rapidamente antes sequer de parar.
- Meu senhor, desapareceu um cavalo das cavalariças, juntamente com os arreios! Voltámos a verificar, pois queríamos proporcionar-lhe o melhor para a manhã. Um ruano novo, bom, sem uma única mancha branca, teliz, sela, rédeas e tudo o que lhe pertencia.
- E o cavalo que ele montou até cá... Bledri ap Rhys? O cavalo que ele levou consigo para Santo Asaph? - perguntou Hywel secamente. - Um cavalo cinzento, com manchas mais claras nos flancos? Ele ainda aí está?
- Eu sei qual é, meu senhor. Não se compara ao ruano. Ainda está exausto de ontem. Ainda cá está. O ladrão, quem quer que ele seja, soube escolher.
- E queria ir depressa! - disse Hywel, furioso. - Ele certamente que desapareceu. Foi ter com Cadwaladr e os seus dinamarqueses irlandeses em Abermenai. Como é que ele conseguiu sair pelo portão? E com um cavalo!
- Vão, alguns de vós, interrogar o vigia - ordenou Owain, mas sem grande preocupação e sem se voltar para ver quem correu a cumprir a sua ordem. As sentinelas de todos os portões do maenol eram homem em quem ele confiava, conforme testemunhava o facto de nenhum deles ter deixado o seu posto e vindo a correr para ali, por maior que tenha sido a curiosidade que pudesse ter sentido a respeito do tumulto audível que tinha lugar longe do seu campo de visão.
Só ali na porta principal, por onde o mensageiro de Bangor tinha entrado, é que um homem se movera do seu posto, e esse fora o oficial da guarda.
- Não existe qualquer forma de fechar um homem cá dentro - reflectiu Owain filosoficamente - se ele tiver o vigor necessário e estiver decidido a sair. Por uma causa suficientemente importante, é possível trepar por qualquer muro jamais construído. E ele é um homem do meu irmão de corpo e alma - ele virou-se novamente para o mensageiro cansado. - No escuro, um viajante sensato iria pela estrada. Enquanto vinhas para cá encontraste algum homem que seguisse para oeste?
- Não, meu senhor, nem um. Não desde que atravessei o Cegin, e esses eram homens eram nossos, meus conhecidos, e não estavam com pressa.
- A esta hora, ele já deve estar fora do nosso alcance mas, pelo menos, vamos mandar partir Einion com as minhas ordens. Quem sabe? Um cavalo pode ficar coxo, se tiver uma viagem difícil durante a noite, um homem pode perder-se em terras que não são suas. Talvez ainda o possamos apanhar - disse Owain, virando-se para o administrador que tinha ido ver como era feita a vigia nas portas traseiras do llys. - Então?
- Ninguém foi interpelado pelas sentinelas, ninguém passou. Embora ele possa ser um estranho, eles já o conhecem de vista. Seja como for que ele fugiu, não foi pelos portões.
- Eu nunca pensei que tivesse sido - concordou o príncipe num tom sombrio. - Eles sempre fizeram uma vigia meticulosa. Bem, envia os mensageiros, Hywel, e depois vem comigo para dentro, para a minha câmara privada. Cuhelyn, vem connosco. - Ele olhou rapidamente em volta enquanto os seus mensageiros montavam. - Gwion, isto não é culpa tua nem tem nada a ver contigo. Vai-te deitar. E continua a manter a tua palavra em mente. Se a retirares - acrescentou ele secamente - ficarás fechado a cadeado enquanto estivermos ausentes.
- Eu dei-a - disse Gwion num tom altivo - e vou mantê-la.
- E eu aceitei-a - disse o príncipe, tornando-se menos severo - e confio nela. Pronto, podes ir, tens alguma coisa a fazer aqui?
Teria ele, de facto, alguma coisa a fazer, pensou Cadfael com ironia, a não ser invejar a todos nós a liberdade que se negara a si próprio? E, no mesmo instante, veio-lhe o pensamento que Bledri ap Rhys, o fogoso defensor que tão descaradamente desculpara o seu senhor e ameaçara em seu nome, não tinha dado a sua palavra e tinha tido, quase certamente, uma conversa muito privada e urgente com Gwion na capela do llys algumas horas antes, e estava agora a caminho de se encontrar com Cadwaladr em Abermenai, sabendo muito sobre os movimentos, as forças e as defesas de Owain. Gwion nunca tinha prometido nada, a não ser não fugir. No interior dos muros ele podia movimentar-se à vontade, talvez a sua liberdade se estendesse até ao tref situado no exterior do portão. Em troca disso, ele dera o seu consentimento à detenção. Ninguém tinha prometido o mesmo em nome de Bledri ap Rhys. E Gwion não ocultara a sua forte lealdade a Cadwaladr. Poderia ele ser acusado de deslealdade por ter ajudado o seu aliado inesperado a fugir e voltar para junto do seu príncipe? Uma boa questão! Conhecendo, ainda que apenas em segunda mão, através de Cuhelyn, a teimosa e ardente lealdade de Gwion, este poderia muito bem ter avisado repetidas vezes os seus captores sobre os limites que impunha à sua palavra, e sobre o fervor com que agarraria qualquer oportunidade de servir o senhor que tão obstinadamente amava, mesmo àquela distância.
Gwion tinha-se virado, lenta e hesitantemente, acatando a ordem para que se fosse embora, mas depois parou, deixou-se ficar com a cabeça curvada e um passo indeciso, até que, ao fim de um momento, se dominou abruptamente e começou a caminhar na direcção da capela; da porta aberta, a pequena centelha vermelha atraía-o como um íman. E por que é que Gwion iria rezar agora? Por um desembarque bem sucedido para os mercenários dinamarqueses de Cadwaladr, e um acordo rápido e sem sangue entre irmãos, em vez de uma guerra desastrosa? Ou pela sua própria paz de espírito? Possuído de um forte sentido de honra, ele poderia considerar até mesmo a sua lealdade um pecado no caso de uma violação involuntária do seu juramento. Tinha uma mente complicada, sensível a qualquer auto-repreensão, por mais venial que o pecado fosse.
Cuhelyn, que era quem talvez melhor o conhecia e quem mais se parecia com ele, tinha-o visto afastar-se com um ar pensativo, chegando até a dar dois passos impulsivos para o seguir, antes de reflectir melhor e voltar para junto de Owain. O príncipe e os comandantes subiram os degraus para o salão e aposentos privados, e desapareceram no interior. Cuhelyn seguiu-os sem voltar a olhar para trás, e Cadfael e Mark, juntamente com alguns criados, ficaram no pátio quase vazio, e o silêncio sucedeu ao clamor, e a imobilidade escura ao tumulto de movimento. Tudo era conhecido e compreendido, tudo estava preparado e seria tratado com competência.
- E isto não contempla qualquer tarefa para nós - disse o Irmão Mark em voz baixa ao lado de Cadfael.
- Nada, a não ser selar os cavalos amanhã e seguir para Bangor.
- Sim, eu tenho que o fazer - concordou Mark. Havia uma curiosa nota de inquietação e pena na sua voz, como se ele considerasse quase uma incúria da sua humanidade o facto de se afastar daquela crise para cumprir a sua própria missão, deixando tudo confuso e incompleto. - Eu estive a pensar, Cadfael... Vigiar dos portões, todos os portões, foi considerado suficiente? Achas que o homem era vigiado, mesmo aqui dentro, ou será que o facto de estar rodeado de paredes era suficiente? Não havia ninguém de guarda à porta dos seus aposentos e ninguém o seguiu do salão até à cama?
- Da capela até à cama - corrigiu Cadfael -, se é que alguém estava encarregado disso. Não, Mark, nós vimo-lo. Não havia ninguém a segui-lo. - Ele olhou através do pátio, para o beco em que Bledri tinha desaparecido quando saiu da capela. - Não estaremos todos a tirar conclusões precipitadas? O príncipe tem assuntos mais urgentes entre mãos, é verdade, mas não deveria alguém confirmar o que todos nos apressámos a acreditar?
Gwion emergiu lenta e silenciosamente da porta aberta da capela, fechando-a atrás de si, pelo que a pequena centelha vermelha desapareceu. Ele atravessou o pátio com um ar cansado, aparentemente sem reparar nos dois homens que estavam imóveis e calados nas sombras, até Cadfael dar um passo em frente para o interceptar, procurando suavemente informação junto de alguém que deveria ser capaz de a fornecer.
- Um momento! Sabes em qual destes inúmeros aposentos este Bledri ap Rhus dormiu? - E quando o jovem parou abruptamente, virando-se para ele com um ar de espanto e desconfiança, ele prosseguiu: - Eu vi-te cumprimentá-lo ontem quando chegámos, pensei que talvez soubesses. Podias ter ficado contente por conversar com um velho conhecido enquanto ele aqui estivesse.
Por qualquer motivo, o longo silêncio foi mais eloquente do que o que foi finalmente dito em resposta. Teria sido bastante natural responder imediatamente: "Por que é que quer saber? O que interessa isso agora?", uma vez que o aposento deve estar vazio, se o homem que lá dormiu fugiu durante a noite. A pausa tornou claro que Gwion sabia bastante bem quem o surpreendera na capela, e tinha bem a noção de que eles deviam ter visto Bledri a sair de lá. Ele tivera tempo para pensar antes de falar, e o que disse foi:
- Eu fiquei contente por ver um homem da minha própria tribo. Eu estou refém aqui há mais de meio ano. Já devem saber isso. O administrador tinha-lhe dado um dos aposentos junto do muro a norte. Eu posso mostrar-lhe. Mas que diferença faz isso agora? Ele foi-se embora. As pessoas podem culpá-lo - disse ele num tom altivo -, mas eu não. Se eu fosse livre, teria feito o que ele fez. Eu nunca fiz segredo sobre qual dos lados tinha a minha fidelidade. E ainda tem!
- Deus não permita que alguém condene um homem por se manter fiel - concordou Cadfael tranquilamente. - Bledri tinha o quarto só para ele?
- Tinha - Gwion encolheu os ombros, numa expressão de desdém por um interesse que não compreendia, mas aceitava como significando qualquer coisa para os dois beneditinos errantes, mesmo que não significasse nada para ele.
- Eu estava a pensar - disse Cadfael, desvalorizando a questão - se não estaremos a tirar conclusões precipitadas só porque um cavalo desapareceu. Se o aposento dele ficava num canto remoto do pátio, como muitas paredes até lá, será que ele não podia ter continuado a dormir mesmo com todo o barulho, e ainda estar a ressonar em toda sua inocência? Uma vez que ele estava sozinho, não havia ninguém para o acordar, se ele tivesse um sono assim tão pesado.
Gwion ficou a fitá-lo nos olhos, com as espessas sobrancelhas escuras erguidas.
- Bem, isso é verdade, um homem que tivesse bebido o suficiente podia não ter acordado se não fosse o toque da corneta. Eu duvido, mas se sente necessidade de ver por si próprio... Não me fica a caminho, mas eu mostro-lhe. - E sem mais palavras, ele entrou na passagem que ficava entre o salão e o longo edifício de madeira do armazém e da sala de armas. Eles seguiram a sua figura rápida, sombria no escuro, em direcção à longa fila de edifícios abrigados pelo muro exterior.
- A porta dele era a terceira. - Ela estava entreaberta, e não se via luz nenhuma através da fenda. - Entrem, Irmãos, e vejam por vós próprios. O mais certo é verem que ele se foi embora, levando todas as suas coisas consigo.
A fila de pequenos quartos estava construída por baixo da plataforma de vigia ao longo do muro exterior, e a projectura fazia sombra sobre ela. Cadfael tinha visto apenas uma escada que ia dar à plataforma, larga e de fácil acesso mas claramente visível do portão principal. Além disso, não seria fácil descer no exterior, excepto com uma corda comprida, pois a galeria projectava-se para fora da parede, e havia um fosso por baixo dela. Cadfael levou a mão à porta e abriu-a. Os seus olhos, nessa altura já habituados à noite e à luz que o céu límpido mas sem lua proporcionava, ficaram novamente cegos. Não havia qualquer movimento, nem qualquer som no interior. Ele abriu bem a porta e deu um ou dois passos para o interior do pequeno quarto.
- Devíamos ter trazido um archote - disse Mark, junto dele. Ao que parecia, isso não era necessário para mostrar que o quarto não continha qualquer ser vivo. Mas Gwion, tolerante em relação àqueles dois visitantes exigentes, sugeriu do limiar:
- A braseira ainda deve estar a arder na casa da guarda. Eu vou buscar luz.
Cadfael dera mais um passo para o interior e quase tropeçou quando o seu pé se enredou silenciosamente numa dobra de material macio, como se um cobertor amarrotado tivesse sido atirado da cama para o chão. Ele baixou-se e levou a mão ao tecido e encontrou algo mais firme dentro dele. Uma manga elevou-se quando agarrou nela, o calor e o odor da lã agitaram-se no ar e, quando a levantou, um peso articulado balouçou, suspenso, sólido no interior do tecido. Ele deixou-o cair suavemente e percorreu-o com os dedos até chegar a uma bainha grossa e, para além desta, o toque macio, lasso, de carne humana a arrefecer, mas não completamente fria. Era, de facto, uma manga e um braço dentro dela, e uma mão grande, vigorosa no extremo do braço.
- Faz isso - disse ele por cima do ombro. - Traz uma luz. Vamos precisar de toda a luz que conseguirmos arranjar.
- O que é? - perguntou Mark, atento e ainda atrás dele.
- Segundo todas as indicações, um homem morto. Morto há algumas horas. E a não ser que tenha lutado com alguém que lhe impedia a fuga e que ele deixou aqui para contar a história, quem poderá ele ser senão Bledri ap Rhys?
Gwion veio a correr com um archote e colocou-o no candelabro da parede, concebido para conter apenas uma lanterna pequena. Normalmente, nunca seria permitido um archote em quartos tão pequenos, mas tratava-se de uma crise. Os contornos do esparso conteúdo da câmara saltaram, nítidos, do escuro; uma cama desmanchada encostada à parede do fundo, os cobertores caídos no chão, a impressão de um corpo comprido ainda discernível na coberta do colchão de palha. Em cima da prateleira ao lado da cabeceira da cama, à mão do hóspede, havia um pequeno pires-lamparina. Não fora apagado, pois tinha ardido e restava apenas uma mancha de azeite e o pavio queimado. Por baixo da prateleira, meio desdobrada, estava uma bolsa de cabedal e, caídos descuidadamente em cima dela, as calças, os sapatos e a camisa de um homem, bem como uma capa enrolada de que ele não precisara durante a viagem. E, ao canto, as botas de montar, uma delas caída e fora do lugar como se lhe tivessem dado um pontapé.
E entre a cama e a porta, estendido de costas aos pés de Cadfael, com as pernas e os braços abertos, a cabeça encostada à parede de madeira, como se um enorme soco o tivesse levantado do chão e atirado para trás, estava Bledri ap Rhys com os olhos semi-abertos, os lábios afastados dos seus dentes grandes, regulares, num esgar contorcido. As saias da sua túnica ondeavam desordenadamente à sua volta, o corpete tinha-se aberto quando ele caíra, e por baixo dele, estava nu. À luz trémula do archote, era difícil dizer se a mancha escura no maxilar e na face esquerda era uma sombra ou uma nódoa negra, mas não podia haver qualquer engano a respeito da ferida por cima do coração e do sangue que dela escorrera para as dobras de tecido por baixo do seu lado esquerdo. O punhal que infligira a ferida tinha sido retirado rapidamente e levado a vida atrás de si.
Cadfael ajoelhou-se ao lado do corpo e abriu com cuidado o corpete da túnica de lã para observar melhor a ferida à luz trémula. Gwion, que estava atrás dele, à porta, hesitante em entrar, respirou fundo e soltou um enorme soluço que fez com que a chama vacilasse, e o que pareceu um arrepio vivo percorreu o rosto morto.
- Tem calma - disse Cadfael num tom tolerante, inclinando-se para fechar os olhos semiabertos. - Porque ele agora está em paz. Eu bem sei que lhe eras leal. E lamento muito.
Mark estava de pé, calado e imóvel, olhando para baixo com um ar de impávida compaixão.
- Será que ele tem mulher e filhos? - disse ele por fim. Cadfael reparou na primeira preocupação de um padre recente, e aprovou. O primeiro instinto de Cristo poderia ter sido muito semelhante. Não: "Sem confissão, e com a alma em perigo!" Nem sequer: "Quando foi a última vez que ele se confessou e recebeu a absolvição?" mas sim "Quem vai cuidar dos seus filhos?"
- Tem! - disse Gwion. - Tem mulher e filhos. Eu sei. Eu tratarei disso.
- O príncipe certamente que te dará autorização - disse Cadfael, levantando-se lentamente. - Temos que ir todos contar-lhe o que aconteceu. Estamos na sua jurisdição e somos hóspedes em sua casa, todos nós, incluindo este homem, e isto é assassinato. Leva o archote, Gwion, que eu fecho a porta.
Gwion obedeceu à voz do estranho sem protestar, embora ela não tivesse qualquer autoridade sobre ele a não ser a que lhe atribuísse de sua livre vontade. No limiar, ele cambaleou, com o archote na mão. Mark pegou-lhe no braço até ele ter recuperado o equilíbrio e soltou-o com igual cortesia assim que o seu passo se tornou seguro. Gwion não disse nada, não agradeceu, pois Mark não precisava de agradecimentos. Ele foi à frente como um arauto, com o archote na mão, directo aos degraus do salão, e iluminou-os até estarem no interior.
- Estávamos todos enganados, meu senhor - disse Cadfael -, ao supormos que Bledri ap Rhys tinha fugido da vossa hospitalidade. Ele não foi longe, nem precisou de um cavalo para a viagem, embora seja a viagem mais longa que um homem pode fazer. Ele está morto no aposento em que o vosso administrador o alojou. Pelo que lá vimos, ele nunca teve intenção de fugir. Eu não diria que ele dormiu. Mas certamente que tinha estado deitado na cama, e seguramente que tinha coberto a sua nudez com a túnica quando se levantou, para defrontar quem quer que tenha entrado quando ele estava a descansar. Estes dois que me acompanham viram o que eu vi e confirmá-lo-ão.
- Assim é - disse o Irmão Mark.
- Assim é - disse Gwion.
À volta da mesa do conselho do seu apartamento privado, austeramente mobilado, o silêncio durou muito tempo, todos os homens entre os comandantes se imobilizaram, aguardando a reacção do príncipe. Hywel, que estava de pé ao lado do pai, a colocar um pergaminho à sua frente, tinha ficado parado com a folha meio desenrolada nas mãos e os olhos muito abertos a fitar atentamente o rosto de Cadfael.
Owain disse num tom pensativo, mais a digerir do que a questionar a notícia que lhe fora dada tão subitamente.
- Morto. Bem! - E passado um momento: - E como é que esse homem morreu?
- Com um punhal no coração - disse Cadfael com toda a certeza.
- Pela frente? Cara a cara?
- Nós deixámo-lo tal como o encontrámos, meu senhor. O vosso próprio médico poderá vê-lo exactamente como nós o vimos. Penso - disse Cadfael - que foi atingido por um enorme murro que o atirou contra a parede, pelo que caiu atordoado. Certamente que quem o atacou estava de frente para ele; esta foi uma confrontação, não um ataque pelas costas. E sem armas, até essa altura. Alguém deu um murro, com grande raiva. Mas depois ele foi apunhalado enquanto estava caído. O sangue escorreu para baixo e juntou-se nas dobras da túnica debaixo do seu lado esquerdo. Não houve qualquer movimento. Ele estava inconsciente quando foi apunhalado. Por alguém!
- O mesmo alguém? - perguntou Owain.
- Quem sabe? É provável. Não é certo. Mas eu duvido que ele estivesse deitado indefeso durante mais de alguns momentos.
Owain colocou as mãos abertas em cima da mesa à sua frente, afastando os pergaminhos ali espalhados.
- Está-me a dizer que Bledri ap Rhys foi assassinado. Debaixo do meu tecto. Sob o meu cuidado, independentemente da forma como ele possa ter cá chegado, amigo ou inimigo, para todos os efeitos, ele era um hóspede na minha casa. Isso eu não tolerarei - ele olhou para além de Cadfael, para o rosto sombrio de Gwion. - Não deves recear que eu atribua menos valor à vida de um inimigo honesto do que à de qualquer homem meu - disse ele, tranquilizando-o generosamente.
- Meu senhor - disse Gwion, num tom muito baixo -, disso eu nunca duvidei.
- Embora tenha que ir tratar de outros assuntos agora - disse Owain - ser-lhe-á feita justiça, se eu conseguir garanti-la, por quaisquer meios. Quem foi a última pessoa a ver o homem vivo?
- Eu vi-o sair da capela, já tarde - disse Cadfael -, e seguir na direcção do seu aposento. O Irmão Mark estava comigo e também o viu. Mais do que isso, não sei.
- Nessa altura - disse Gwion, com a voz um pouco rouca de constrangimento - eu estava na capela. Conversei com ele. Fiquei satisfeito por ver um rosto conhecido. Mas quando ele saiu, não o segui.
- Serão feitas perguntas - disse Owain - a todos os criados da casa, que são os que estariam acordados até mais tarde no maenol. Trata disso, Hywel. Se algum deles teve ocasião de passar por lá e viu Bledri ap Rhys ou qualquer outro homem a entrar ou sair tarde da porta dele, traz a testemunha aqui. Temos que nos reunir assim que o dia nascer, mas ainda temos algumas horas antes do amanhecer. Se isto puder ser resolvido antes de eu ir lidar com o meu irmão e os seus dinamarqueses, tanto melhor.
Hywel saiu imediatamente, pousando a sua folha de pergaminho em cima da mesa e escolhendo dois homens do conselho para o ajudar na busca. Não haveria descanso nessa noite para os criados, administradores e criadas da corte de Owain, nem para os membros da guarda pessoal, nem para os jovens que o seguiam armados. Bledri ap Rhys tinha vindo a Santo Asaph com a intenção de fazer o mal, ameaçara fazer o mal, e o preço tinha recaído sobre a sua própria cabeça, mas os ecos espalhar-se-iam como a ondulação provocada por uma pedra atirada a um lago e atormentaria as vidas de todos que ali estavam até o crime ter sido punido.
- O punhal que foi utilizado - disse Owain, voltando para a sua investigação como um falcão a lançar-se sobre a presa. - Não foi deixado na ferida?
- Não foi. Também não observei a ferida tão atentamente que me atreva a arriscar dizer que tipo de lâmina tinha. Os seus próprios homens, meu senhor, conseguirão fazê-lo tão bem como eu. Melhor ainda - disse Cadfael - uma vez que os punhais mudam com os anos, e há muito que perdi a prática com as armas.
- E disse que ele tinha dormido na cama. Ou pelo menos tinha-se deitado nela. E o homem não tinha feito quaisquer preparativos para montar e não deixou qualquer indício de que tencionava fugir. Não era uma questão tão importante que me fizesse colocar um homem a vigiá-lo durante a noite. Mas há outro mistério aqui - disse o príncipe. - Porque, se não foi ele que fugiu com um dos nossos cavalos, quem foi? Não existe qualquer dúvida de que o animal desapareceu.
Era uma questão que Cadfael, com a sua preocupação com a morte de Bledri, nem sequer ponderara. Algures no fundo da sua mente ele sentira a arreliadora e indefinível sensação de que algo mais teria que ser investigado antes do fim da noite, mas nos breves instantes em que tentou vê-la claramente, ela tinha desaparecido do canto do seu olho. Subitamente confrontado com o quebra-cabeças que lhe escapava, ele previu uma longa e cuidadosa contagem de todas as pessoas que estavam no maenol para encontrar a única que desaparecera sem deixar rasto. Alguém mais teria que fazer isso, pois a partida do príncipe ao amanhecer não poderia sofrer qualquer atraso.
- Eu estou nas suas mãos, meu senhor - disse ele. - tal como todos nós.
Owain colocou a palma da mão aberta sobre a mesa à sua frente.
- O meu plano está traçado, e só pode ser alterado quando os dinamarqueses de Dublin contratados por Cadwaladr forem enviados de volta para a sua terra, de orelhas murchas. E vocês, Irmãos, têm o vosso próprio caminho a percorrer, com menos pressa do que o meu, mas também não se devem atrasar. O vosso bispo tem direito a um serviço tão rigoroso como aquele que os príncipes exigem. Tentemos saber, no tempo que nos resta, qual de nós poderia ter cometido um assassínio. É possível que esta questão tenha que ser adiada para outro dia, mas não será esquecida. Venham, eu quero ver por mim próprio esta desgraça, e depois trataremos do morto e providenciaremos uma compensação à sua família. Não era um homem meu, mas ele não me fez mal, e agirei o mais correctamente possível para com ele.
Voltaram para a reunião na câmara do conselho cerca de uma hora depois. Nessa altura, o corpo já tinha sido decentemente colocado na capela, entregue aos cuidados do capelão do príncipe, e já não era possível saber mais pelo esparso conteúdo do quarto em que ele morrera. Não restava qualquer arma digna de nota, até mesmo o fluxo de sangue era reduzido, deixando um pequeno vestígio, pois o golpe fora certeiro, estreito e preciso. Não era difícil apunhalar o coração de um homem de uma forma limpa e exacta quando este já estava sem sentidos. Bledri mal teria sentido a morte a removê-lo do mundo.
- Suponho que ele não era um homem muito amado - disse Owain enquanto se dirigiam novamente ao salão. - Muitos homens aqui deviam ter-lhe ressentimento, pois ele mostrou-se bastante arrogante. Depois disso, talvez não fosse preciso mais do que uma discussão para fazer com que um homem o agredisse violentamente. Mas matá-lo? Porque é que qualquer dos meus homens iria tão longe, quando eu fizera dele meu hóspede?
- Seria necessário um homem muito irado - admitiu Cadfael - para ir tão longe contra a vossa vontade. Mas para desferir um golpe basta apenas um instante, e menos de um instante para esquecer toda a precaução. Ele fez alguns inimigos, mesmo até durante o breve tempo em que cavalgámos juntos. - Era necessário a todo o custo suprimir nomes, mas ele estava a pensar no ameaçador olhar assassino do Cónego Meirion ao presenciar a familiaridade de Bledri com a sua filha, e a consequente ameaça a uma carreira que o bom cónego não tinha qualquer intenção de pôr em risco.
- Uma discussão em público não seria um mistério - disse Owain. - Isso eu teria resolvido. Mesmo que resultasse em morte, seria paga uma compensação, a culpa não seria toda de uma das partes. Ele provocou, de facto, o ódio. Mas segui-lo até ao quarto e arrastá-lo da cama? Isso já é muito diferente.
Atravessaram o salão e entraram na câmara do conselho. Todos os olhares se voltaram para eles quando entraram. Mark e Gwion tinham aguardado com os outros. Estavam de pé muito próximos um do outro, em silêncio, como se o facto de terem descoberto uma morte juntos os tivesse unido numa amizade permanente que os diferenciava dos comandantes à volta da mesa do conselho. Hywel regressou antes do pai e tinha trazido consigo um dos criados da cozinha, um rapaz moreno e desgrenhado, um pouco intumescido do sono, mas que ficou bem desperto, revigorado, com os olhos brilhantes, quando soube que tinha havido uma morte súbita e que ele tinha algo, por mais insignificante que fosse, a relatar a esse respeito.
- Meu senhor - disse Hywel -, o Meurig aqui foi o último a passar pelos aposentos em que Bledri ap Rhys estava alojado. Ele contar-vos-á o que viu. Ele ainda não disse nada, estávamos à vossa espera.
O rapaz falou com bastante ousadia. Pareceu a Cadfael que ele não estava muito convencido da importância do que tinha para dizer, embora lhe agradasse estar ali a declará-lo. Os príncipes que julgassem se era ou não importante.
- Meu senhor, passava da meia-noite quando acabei o meu trabalho e atravessei aquele corredor para ir para a cama. Nessa altura, não havia ninguém por ali, eu era um dos últimos. Não vi vivalma até chegar à terceira porta daquela fileira, onde agora me dizem que era onde esse Bledri ap Rhys estava alojado. Havia um homem à porta, a olhar para o quarto, com a aldraba na mão. Quando ele me ouviu aproximar fechou a porta e seguiu ao longo do beco.
- À pressa? - perguntou Owain com rispidez. - Furtiva-mente? No escuro, ele podia muito bem afastar-se sem ser reconhecido.
- Não, meu senhor, nada disso. Ele simplesmente fechou a porta e foi-se embora. Eu não dei qualquer importância ao assunto. E ele não se preocupou em não ser visto. Quando passou por mim, deu-me as boas noites. Como se tivesse estado a acompanhar um hóspede em segurança até à cama... alguém que tivesse dificuldade em andar, ou que não conhecesse bem o caminho.
- E tu respondeste-lhe?
- Com certeza, meu senhor.
- Agora diz como é que ele se chama - disse Owain - pois eu penso que o conhecias suficientemente bem para o chamares pelo nome nessa altura.
- Chamei, sim, meu senhor. Todos os homens na corte de Aber o conhecem e gostam dele, embora ele fosse um desconhecido quando o senhor Hywel o trouxe de Deheubarth. Era Cuhelyn.
Um sussurro de surpresa percorreu a mesa. Todas as cabeças se voltaram e todos os olhos se fixaram em Cuhelyn que se deixou ficar sentado, aparentemente nada perturbado com o facto de ser, subitamente, o centro das atenções. As suas sobrancelhas espessas e escuras tinham-se erguido numa expressão de ligeira surpresa, até mesmo com uma ponta de divertimento.
- Isso é verdade - disse ele simplesmente. - Eu podia ter-vos dito mas, tanto quanto sabia ou sei agora, podiam lá ter estado outros depois de mim. Como certamente houve um. O último a vê-lo vivo, sem dúvida. Mas esse não fui eu.
- No entanto tu não disseste nada sobre o assunto - fez notar o príncipe tranquilamente. - Porquê?
- É verdade. Não agi muito bem. Era um assunto demasiado melindroso - disse Cuhelyn. - Abri a boca uma vez para falar, mas voltei a fechá-la sem dizer nada. Porque é verdade que eu tinha a morte daquele homem em mente e, apesar de não lhe ter tocado nem ter discutido com ele, quando o Irmão Cadfael nos disse que ele estava morto, senti o dedo frio da culpa no meu pescoço. Se não fosse o acaso e o facto de este rapaz ter aparecido quando foi mais necessário, sim, eu podia ter sido o assassino de Bledri. Mas não fui, graças a Deus! - Porque é que lá foste, e àquela hora? - perguntou Owain, não dando qualquer indicação se acreditava ou não.
- Fui lá para o confrontar. Para o matar em combate. Porquê àquela hora? Porque o ódio tinha levado horas a ferver dentro de mim, e só então é que eu atingira o ponto de matar. Também, acho eu, porque queria que ficasse claro, sem sombra de dúvida, que nenhum outro homem estava envolvido na minha contenda e que nenhum outro podia ser acusado sequer de saber o que eu tinha feito - a voz de Cuhelyn manteve-se baixa e calma, mas o seu rosto tinha ficado tenso e tinham-lhe surgido vincos pálidos sobre as maçãs do rosto e à volta do ângulo magro e forte do maxilar.
Hywel disse em voz baixa, preenchendo e suavizando a pausa:
- Um homem com um só braço contra um guerreiro experiente com dois?
Cuhelyn olhou com indiferença para o fio de prata que segurava o pedaço de linho que cobria o coto do seu braço esquerdo.
- Um braço ou dois, o desfecho teria sido o mesmo. Mas, quando abri a porta, ele dormia profundamente. Ouvi a sua respiração, longa e plácida. É um comportamento honesto fazer um homem acordar, sobressaltado, e desafiá-lo para um duelo de morte? E enquanto eu estava ali à porta, apareceu Meurig. E eu fechei outra vez a porta e fui-me embora, deixando Bledri a dormir. Não que eu tivesse desistido do meu propósito - disse ele erguendo a cabeça impetuosamente. - Se ele estivesse vivo de manhã, meu senhor, eu tencionava acusá-lo abertamente de ter cometido uma ofensa mortal, e desafiá-lo a combater pela vida. E se me desse autorização, matá-lo.
Owain estava a olhá-lo atentamente, tentando perscrutar a mente que formulara o discurso amargo e lhe conferia uma força tão apaixonada. Com imperturbável calma, ele disse:
- Tanto quanto eu saiba, ele não cometeu qualquer ofensa grave contra mim.
- Contra vós não, meu senhor, para além da sua arrogância. Mas contra mim, a pior possível. Ele estava entre os oito que nos montaram a emboscada e mataram o príncipe ao meu lado. Quando Anarawd foi assassinado, e esta mão foi decepada, Bledri ap Rhys estava lá, armado. Só quando ele chegou ao salão do bispo é que eu soube o seu nome. O seu rosto eu nunca esqueci. Nem podia alguma vez esquecer, até tê-lo feito pagar com sangue a morte de Anarawd. Mas houve alguém que fez isso por mim. E eu estou livre dele.
- Diz-me outra vez - ordenou Owain, quando Cuhelyn terminou a sua declaração - que deixaste o homem com vida e que não és culpado da sua morte.
- Foi assim que o deixei. Nunca lhe toquei, a sua morte não é culpa minha. Se me ordenar, jurá-lo-ei no altar.
- Por enquanto - disse o príncipe com voz grave - sou obrigado a deixar esta questão por solucionar até regressar de Abermenai com um assunto mais urgente decidido e revolvido. Mas continuo a precisar de saber quem fez o que tu não fizeste, pois nem todos aqui têm um verdadeiro motivo de queixa contra Bledri ap Rhys. E do mesmo modo que, no que me diz respeito, eu aceito a tua palavra, poderá haver muitos que duvidem de ti. Se deres a tua palavra em como regressas comigo e suportas o que poderá ser ainda descoberto, até estarmos todos satisfeitos, então vem comigo. Eu preciso de ti, tal como preciso de todos os homens bons.
- Deus é minha testemunha - disse Cuhelyn. - Não vos deixarei, por qualquer motivo, até me mandardes embora. E serei ainda mais feliz se nunca o fizerdes.
A última e mais inesperada palavra de uma noite de acontecimentos inesperados foi a do administrador de Owain, que entrou na câmara do conselho no momento em que o príncipe se levantava para mandar embora os seus oficiais, com instruções suficientes para a partida ao amanhecer. Já tinham sido tomadas providências para os ritos devidos aos mortos. Gwion permaneceria em Aber, de acordo com o seu juramento, e já se tinha comprometido a informar a mulher de Bledri em Ceredigion, e a cumprir as obrigações necessárias para com o morto que ela exigisse. Uma tarefa melancólica, mas era preferível que fosse levada a cabo por um homem fiel ao mesmo senhor. A reunião matinal das tropas estava planeada com precisão, e tinham sido dadas ordens para que fossem dadas provisões adequadas ao enviado do bispo de Lichfield que ia para Bangor, enquanto as forças do príncipe seguiam uma estrada mais directa para Carnarvon, a estrada velha que tinha ligado as grandes fortalezas com as quais um povo estranho tinha mantido o seu poder em Gales, há muito tempo. Os locais em que eles tinham vivido ainda tinham nomes latinos, embora actualmente só os padres e os estudiosos os usassem. Estava tudo preparado, até ao último pormenor. Excepto que o cavalo desaparecido se perdera novamente, esgueirando-se para o limbo através das fendas no meio de preocupações maiores. Até Goronwy ab Einion ter entrado com o resultado de um longo e tortuoso inquérito a todos os membros da casa no interior do llys.
- Meu senhor, o senhor Hywel colocou-me um quebra-cabeças, encontrar a pessoa que devia estar aqui e não está. Achei por bem deixar de lado os nossos criados... por que é que algum deles havia de querer fugir? Meu senhor, a dama de companhia da princesa conhece perfeitamente as suas criadas e todas as hóspedes femininas estão sob seu cuidado. Há uma rapariga que veio no vosso séquito ontem, meu senhor, que desapareceu do lugar que lhe foi atribuído. Ela veio com o pai, um cónego de Santo Asaph, e um segundo cónego dessa diocese viajava com eles. Nós ainda não incomodámos o pai dela. Esperei pela vossa palavra. Mas não há qualquer dúvida, a jovem desapareceu. Ninguém a viu desde que os portões se fecharam.
- Raios me partam! - praguejou Õwain, entre o riso e a exasperação. - O que me disseram era verdade! A rapariga morena que não queria ser freira em Inglaterra... Deus a guarde, porque havia ela de o ser, uma galesa morena!... e disse que sim a Ieuan ab Ifor como um alívio abençoado, em comparação... estás-me a dizer que ela roubou um cavalo e fugiu no meio da noite antes de a guarda fechar os portões? Que diabo! - disse ele, estalando os dedos. - Como é que a rapariga se chama?
- Chama-se Heledd - disse o Irmão Cadfael.
Não havia qualquer dúvida, Heledd tinha desaparecido. Ali ela não era anfitriã, com deveres e estatuto, mas talvez a mais insignificante dos hóspedes que tinham chegado, e mantivera-se distante da dama de companhia da princesa, reservada e, ao que parecia, à espera da sua oportunidade. Tão pouco conformada com a perspectiva de casar com o noivo desconhecido de Anglesey como com uma cela conventual entre desconhecidos em Inglaterra, Heledd tinha-se esgueirado através dos portões de Aber antes de eles terem sido fechados à noite e ido à procura de um futuro escolhido por ela própria. Mas como tinha ela tirado também um cavalo, selado e arreado, ainda por cima um cavalo rápido, de primeira?
A última vez que alguém a vira fora quando ela saíra do salão com um jarro vazio, no meio do festim do príncipe, deixando toda a nobreza ocupada à mesa, e o pai ainda a olhá-la severamente quando ela correu a cortina atrás de si. Talvez ela tencionasse realmente encher novamente o jarro e regressar ao salão para continuar a encher os chifres de beber galeses, mais que não fosse para aborrecer o Cónego Meirion. Mas ninguém tinha voltado a vê-la desde esse momento. E, ao nascer do dia, quando as forças do príncipe começassem a reunir-se nos pátios, e a azáfama e o clamor, embora cuidadosos e moderados, trouxessem todos os membros da casa para o exterior, quem iria contar ao bom cónego que, durante a noite, a filha tinha fugido do convento, do casamento e do amor e do afecto muito imperfeito do seu pai por ela?
Owain decidiu não delegar essa tarefa inevitável. Quando a luz vinda de oriente tocou na parede exterior do maenol, e o pátio começou a encher-se de cavalos, cavalariços, guerreiros e arqueiros despertos e prontos, ele mandou chamar os dois cónegos de Santo Asaph à casa do portão, onde aguardou com um olho atento nos soldados que se juntavam e montavam, e outro no céu e na luz que prometia bom tempo para viajar. Ninguém se tinha antecipado a dar as más notícias; isso era óbvio no rosto sereno, seguro, do Cónego Meirion enquanto atravessava o pátio com uma delicada boa manhã já a formar-se nos lábios, e uma graciosa bênção pronta para a seguir assim que o príncipe montasse. Atrás dele, de pernas mais pequenas e mais corpulento e preocupado com o seu porte, o Cónego Morgant vinha envolvido na sua imponência majestosa e mantinha um rosto inexpressivo.
Owain não tinha o hábito de estar com rodeios. O tempo era pouco, a questão urgente, e o que interessava agora era tomar as providências necessárias para reparar o que tinha corrido mal, tanto no que dizia respeito às ameaças de um irmão obstinado como ao perigo que uma filha perdida corria.
- Houve notícias durante a noite - disse o príncipe energicamente assim que os dois clérigos se aproximaram - que não vão agradar a vossas reverências e não me agradam a mim.
Cadfael, que os observava de junto do portão, não conseguiu detectar qualquer inquietação no Cónego Meirion ao ouvir aquelas palavras. Sem dúvida que ele pensava que se referiam apenas à ameaça da frota dinamarquesa, e possivelmente à fuga de Bledri ap Rhys, pois os dois clérigos tinham ido deitar-se antes de essa suposta fuga se ter transformado em morte. Mas tanto uma coisa como outra seria motivo de alívio e satisfação para ele, uma vez que Bledri e Heledd lhe tinham dado motivos para recear pela sua carreira futura, com o Cónego Morgant a armazenar por detrás da sua austera testa todos os olhares inconvenientes e palavras libertinas para comunicar ao seu bispo. Pelo seu porte actual, Meirion não tinha conhecimento de nada de errado, nada no mundo que perturbasse a sua complacência, quer Bledri tivesse fugido ou morrido.
- Meu senhor - começou ele a dizer afavelmente -, nós estávamos presentes e ouvimos falar da ameaça à vossa costa. Certamente que ela poderá ser repelida sem quaisquer danos...
- Não é isso! - disse Owain bruscamente. - Isto tem a ver consigo. Senhor, a sua filha fugiu durante a noite. Lamento comunicar-lhe este facto e deixá-lo a tratar do assunto na minha ausência, mas não é possível evitá-lo. Dei ordens ao comandante da minha guarnição para que lhe dê toda a ajuda possível para a procurar. Fique cá o tempo que precisar, utilize os meus homens e as minhas cavalariças como mais lhe convier. Eu e todos os que irão comigo estaremos atentos e perguntaremos por ela ao longo do caminho em direcção a oeste, até Carnarvon. O mesmo, creio eu, farão o Diácono Mark e o Irmão Cadfael na sua viagem para Bangor. Entre nós, deveremos cobrir o país a oeste. O Cónego pode perguntar e procurar à volta de Aber e a leste, e também a sul, se necessário, embora eu pense que ela não se arriscaria a ir para as montanhas sozinha. Eu retomarei a busca assim que puder.
Ele tinha falado sem ser interrompido apenas porque o Cónego Meirion tinha emudecido de espanto às primeiras palavras, e olhava-o fixamente com olhos redondos e lábios entreabertos, empalidecendo cada vez mais até os picos das maçãs do rosto salientes ficarem brancos sob a pele esticada. A consternação fez-lhe parar a respiração na garganta.
- A minha filha! - repetiu ele lentamente, por fim, formando as palavras quase sem som. E depois, com voz ofegante, rouca: - Desapareceu? A minha filha sozinha por aí, e esses piratas em terra?
Pelo menos, pensou o irmão Cadfael aprovadoramente, se ela ali estivesse para o ouvir, saberia que ele gostava realmente dela. A sua primeira exclamação tivera a ver com a segurança dela, esquecendo a sua própria carreira. Mesmo que fosse durante apenas um momento.
- Eles estão a metade da largura de Gales daqui - disse Owain num tom decidido - e eu certificar-me-ei de que não se aproximam mais do que isso. Ela ouviu o mensageiro, não vai cair nos braços deles. Esta sua filha não é tola nenhuma!
- Mas é teimosa! - lamentou-se Meirion, angustiado, recuperando a voz. - Quem sabe que riscos ela irá correr? E se fugiu de mim agora, vai continuar a esconder-se de mim. Nunca imaginei uma coisa destas, que ela se sentisse assim impelida e encurralada.
- Eu volto a dizer - disse Owain com firmeza -, utilize a minha guarnição, as minhas cavalariças, os meus homens como lhe aprouver, mande perguntar por ela, pois certamente que não pode ter ido muito longe. Quanto aos caminhos para oeste, procurá-la-emos ao longo da viagem. Mas temos que partir. O cónego conhece bem essa necessidade.
Meirion recuou um pouco, muito erecto, e sacudiu os ombros largos.
- Ide com Deus, meu senhor, não podeis fazer mais nada. A vida da minha filha é apenas uma, e muitas dependem de vós. Ela será responsabilidade minha. Eu receio me não ter preocupado tanto com ela ultimamente como me preocupei comigo próprio, senão ela não me teria deixado assim.
E, com uma vénia apressada, ele virou-se e dirigiu-se para o salão, tão precipitadamente que Cadfael estava já a vê-lo a calçar furiosamente as botas e a seguir a passo de marcha para a cavalariça para selar o cavalo e a sair para interrogar toda a gente da aldeia no exterior dos muros, à procura da filha morena que se esforçara para despachar para longe, e que agora estava ansioso por recuperar. E, atrás dele, ainda silencioso, friamente inexpressivo, potencialmente reprovador, seguiu o Cónego Morgant, um anjo negro a anotar tudo o que passava.
Tinham percorrido mais de uma milha ao longo do trilho costeiro na direcção de Bangor quando o Irmão Mark quebrou o seu profundo e pensativo silêncio. Tinham-se separado das forças do príncipe quando deixaram Aber, com Owain a seguir para sudoeste para tomar a estrada mais directa para Carnarvon, enquanto Cadfael e Mark se mantiveram junto da costa, com a cintilante e pálida planície de baixios sobre Lavan Sands a reflectir a luz da manhã à sua direita, e os picos de Fryri a elevarem-se uns acima dos outros à esquerda, para além das estreitas e verdejantes planícies costeiras. Acima do canal fundo a seguir a Lavan Sands, a costa de Anglesey brilhava à luz do sol.
- Será que ele sabia - perguntou Mark subitamente em voz alta - que o homem estava morto?
- Ele? Meirion? Quem sabe? Ele estava lá com todos nós quando o cavalariço disse que faltava um cavalo, e pensámos que Bledri o tivesse levado para ir para junto do seu senhor. Isso ele sabia. Ele não estava connosco quando procurámos o homem e o encontrámos morto, nem esteve presente no conselho do príncipe. Se estavam os dois deitados, só podiam ter tido conhecimento da notícia esta manhã. Isso é importante? Quer tivesse morrido ou fugido, o homem estava fora do caminho de Meirion, e não podia voltar a escandalizar Morgant. Não admira que ele tenha reagido tão calmamente.
- Não era isso o que queria dizer - disse Mark. - Ele saberia por si próprio? Antes de mais alguém saber? - E, quando Cadfael ficou calado, ele prosseguiu, hesitante. - Não tinhas pensado nisso?
- Já me tinha ocorrido - admitiu Cadfael. - Achas que ele é capaz de matar?
- Não a sangue-frio, não furtivamente. Mas o sangue dele não é frio, aquece demasiado rapidamente. Há pessoas que vociferam e gritam, e que assim se libertam da bílis. Ele não! Ele refreia-a, e ela ferve dentro dele. É muito mais capaz de explodir em acção do que em barulho. Sim, eu acho que ele é capaz de matar. E se ele confrontou Bledri ap Rhys, dali só poderia esperar provocação e desdém. O suficiente para contribuir para um fim violento.
- E será que ele seria capaz de ir desse fim directamente para a cama, com uma companhia tão enervante, e manter a calma? Até mesmo dormir?
- Quem diz que ele dormiu? Ele só tinha que ficar quieto e em silêncio. Não havia nada que mantivesse o Cónego Morgant acordado.
- Vou fazer-te outra pergunta - disse Cadfael. - Cuhelyn será capaz de mentir? Ele não se envergonhou do seu propósito. Porque é que ele haveria, então, de mentir quando esse propósito se tornou conhecido?
- O príncipe acreditou nele - disse Mark franzindo a testa com um ar pensativo.
- Etu?
- Qualquer homem pode mentir, sem sequer ser por uma razão muito grave. Até mesmo Cuhelyn pode mentir. Mas eu penso que ele não mentiria a Owain. Nem a Hywel. Ele fez o seu segundo juramento de uma forma tão absoluta como o primeiro. Mas há uma outra pergunta a fazer a respeito de Cuhelyn. Não, há duas. Será que ele contou a alguém o que sabia a respeito de Bledri ap Rhys? E, se ele não é capaz de mentir a Hywel, que o tinha salvo e o trouxera para um serviço honroso, será ele capaz de mentir por ele? Porque se ele contou a alguém que reconhecera Bledri como um dos assassinos do seu príncipe, seria a Hywel. Que não tinha mais motivos para amar os perpetradores daquela emboscada do que o próprio Cuhelyn.
- O mesmo se aplica a qualquer homem que tenha ido com Hywel expulsar Cadwaladr de Ceredigion por causa de Anarawd - concordou Cadfael num tom de resignação - ou qualquer um que se tivesse sentido ofendido ao ouvir Bledri naquela noite no salão a ser tão insolente em nome de Cadwaladr, a cuspir ameaças para o rosto de Owain. É verdade, morreu um homem que, quando vivo, era odiado e que não se empenhou em ser algo melhor do que odiado. Numa corte cheia de gente em que a sua mera presença era uma afronta, é de admirar que ele tenha morrido tão cedo? Mas o príncipe não vai deixar as coisas assim.
- E nós não podemos fazer nada - disse Mark com um suspiro. - Nem sequer podemos procurar a rapariga antes de eu ter cumprido a minha missão.
- Podemos perguntar - disse Cadfael.
E perguntaram, em todas as aldeias e casas ao longo do caminho, se uma jovem não tinha passado a cavalo por aquela estrada, uma rapariga galesa morena montada num ruano jovem, todo da mesma cor. Um cavalo da cavalariça do príncipe não passaria despercebido, especialmente com uma rapariga na sela. Mas o dia foi passando, o céu ficou ligeiramente nublado e voltou a ficar limpo, e eles chegaram a Bangor ao meio da tarde; mas ninguém lhes deu notícias de Heledd, a filha de Meirion.
O Bispo Meurig de Bangor recebeu-os assim que eles abriram caminho por entre as ruas da cidade até ao enclave da catedral e se apresentaram ao arcediago. Parecia que tudo ali era feito activa e rapidamente, com poucas semelhanças com o cerimonial planeado e público que o Bispo Gilbert tinha preferido. Ali estavam muito mais próximos da ameaça dos atacantes dinamarqueses e tomavam muito sensatamente as precauções possíveis para lhes fazer frente se eles conseguissem penetrar até lá. Além disso, Meurig era galês e sentia-se em casa, não tendo necessidade dos preceitos que Gilbert considerava necessários para manter a sua posição. Talvez fosse verdade que ele fora, a princípio, uma desilusão para o seu príncipe ao sucumbir à pressão normanda e submetendo-se a Cantuária, mas continuava a ser fortemente galês e a sua resistência, ainda que desviada, devia prosseguir através de formas mais subtis. Pelo menos ele não pareceu a Cadfael, quando foram admitidos à sua presença em privado, o tipo de homem que comprometesse a sua identidade galesa e a sua adesão aos hábitos da Igreja Galesa sem uma longa e valente acção de retaguarda.
O bispo não era nada parecido com o seu colega de Santo Asaph. Em vez do Gilbert alto, digno, patrício e austero no exterior e apreensivamente inseguro no interior, ali estava um clérigo baixo, rotundo, azafamado, na casa dos quarenta, falador mas indo directo ao assunto, de movimentos rápidos e um pouco desgrenhado, com olhos vivos e modos bem dispostos, vigorosos, como um cão ruidosamente alegre a seguir afincadamente uma pista. O seu prazer no simples facto de eles terem vindo numa missão daquele tipo foi muito óbvio e ultrapassou até o seu deleite com o breviário que Mark lhe trouxera, embora ele tivesse claramente olho para uma letra bonita e virasse as folhas com movimentos delicados dos seus dedos grossos e fortes.
- Já devem ter ouvido falar, Irmãos, da ameaça às nossas costas, por isso compreenderão que aqui estejamos preocupados com as nossas defesas. Deus não permita que os nórdicos desembarquem, ou que não vão para além da praia, mas, se o fizerem, temos uma cidade a defender, e os homens da igreja têm que agir como todos os outros. Por esse motivo, observamos actualmente muito pouca pompa ou cerimonial, mas espero que sejam meus hóspedes durante um dia ou dois antes de precisarem de regressar com as minhas cartas e cumprimentos ao vosso bispo.
Competia a Mark responder ao convite, que foi feito com bastante cordialidade, mas como uma expressão vagamente preocupada nos olhos astuciosos do bispo. Pelo menos parte da sua mente estava a varrer a frente marítima da sua cidade, onde a pequena faixa de terra lamacenta entre as marés dava lugar ao istmo do estreito. Faltavam vinte quilómetros ou mais para o extremo ocidental de Abermenai, mas os barcos mais pequenos, de calado baixo, com vinte remadores, conseguiam percorrer rapidamente essa distância. Era uma pena os galeses nunca se terem realmente feito ao mar! E o Bispo Meurig tinha o seu rebanho a ter em conta, e o seu temperamento pouco submisso não permitiria que ele sofresse alguma coisa que o seu vigor conseguisse evitar. Ele não lamentaria enviar os seus visitantes de volta a Inglaterra, para Lichfield, para ter as mãos livres. Mãos que pareciam muito capazes de pegar numa espada ou num arco sempre que necessário.
- Meu senhor - disse o Irmão Mark, após uma breve e pensativa hesitação. - Eu penso que devemos partir amanhã, se isso não vos causar demasiado incómodo. Por mais que eu gostasse de ficar mais tempo, prometi regressar o mais cedo possível. E, além disso, o grupo com o qual viajámos de Santo Asaph incluía uma jovem que deveria ter vindo para Bangor connosco, sob a protecção de Owain Gwynedd, mas agora, privada dessa protecção, uma vez que o príncipe teve que se dirigir apressadamente para Carnarvon, ela, insensatamente, partiu de Aber sozinha, e perdeu-se. Andam à procura dela a partir de Aber. Mas uma vez que nós viemos até Bangor, se eu puder justificar a demora de pelo menos um dia ou dois, gostaria de passar a procurá-la também por estas partes. Se me autorizardes a aproveitar essa breve demora, usaremos esse tempo em proveito da dama e, vós, eu sei, utilizareis todos os momentos para proteger o vosso próprio povo.
Um bom discurso que Cadfael aprovou e que não denunciou nada do que estava por detrás da fuga de Heledd, poupando assim a reputação dela e a respeitável preocupação daquele bom prelado. Ele traduziu-o cuidadosamente, improvisando um pouco quando a memória falhava, uma vez que Mark não lhe permitira qualquer pausa entre as frases. O bispo acenou a cabeça em sinal de compreensão imediata e perguntou pragmaticamente:
- A dama tinha conhecimento desta ameaça de Dublin?
- Não - respondeu Mark. - O mensageiro de Carnarvon só chegou mais tarde. Ela não podia ter sabido.
- E ela encontra-se algures entre Aber e Bangor, e sozinha? Eu gostaria de ter mais homens para irem à procura dela - disse Meurig franzindo o sobrolho -, mas já enviámos para Carnarvon todos os guerreiros que podem ser dispensados, para se juntarem ao príncipe lá. Os que restam poderão ser necessários aqui.
- E se, nesta altura, ela já tiver ouvido falar do perigo - acrescentou Mark ansiosamente - e procurar, muito sensatamente, um abrigo seguro, existe nesta região alguma casa de religiosas onde ela se possa refugiar?
Cadfael traduziu isto também, embora ele próprio pudesse ter dado uma resposta sem incomodar o bispo. A Igreja de Gales nunca tivera conventos para freiras, e até mesmo a vida conventual para os homens nunca existira nos mesmos moldes monásticos que em Inglaterra. Em vez de uma casa de irmãs metódica, bem regulada, com uma autoridade reconhecida e um regulamento, ali poderia surgir, na vastidão mais remota e solitária, um pequeno oratório vedado com vimes, com uma única santa no seu interior, um santo do antigo sistema religioso, sem o benefício do Papa nem canonização, que cultivava algumas hortaliças e ervas aromáticas para a sua alimentação, apanhava bagas e frutos selvagens e travava amizade com os pequenos animais da zona, de tal modo que eles corriam a esconder-se debaixo das suas saias quando eram perseguidos nas caçadas, e nem os caçadores nem as cornetas conseguiam incitar os cães a afrontar a dama ou a fazer mal aos seus pequenos visitantes. Embora Cadfael, pensando bem, tivesse que admitir que os dinamarqueses de Dublin poderiam não sentir o respeito devido a testemunhos de santidade tão invulgares. O bispo abanou a cabeça.
- As nossas mulheres santas não se juntam em comunidades, como as vossas; elas montam as suas celas em lugares ermos, solitários. Essas ermitãs nunca se instalam perto das cidades. É mais habitual retirarem-se para as montanhas. Nós temos conhecimento de uma que tem a sua ermida perto deste mesmo rio Menai, algumas milhas a oeste daqui, para além do estreito. Mas assim que soubemos desta ameaça oriunda do mar, mandei avisá-la e trazê-la para cá para se abrigar. E ela teve o bom senso de vir, sem levantar quaisquer objecções. Deus é a primeira e a melhor defesa das mulheres sós, mas eu não vejo qualquer mérito em deixar tudo a seu cargo. Não quero mártires nos meus domínios, e a santidade não confere grande protecção.
- Então a cela dela está vazia - disse Mark, com um suspiro. - Mas se esta rapariga tivesse vindo até cá e não tivesse encontrado uma mão amiga que a ajudasse, para onde iria ela?
- Para o interior, certamente, para a protecção dos bosques. Eu não tenho conhecimento da existência de nenhuma propriedade próxima que possa ser defendida, mas estes atacantes, se desembarcarem, não se afastarão muito dos seus barcos. Qualquer casa em Arfon receberia uma rapariga. Embora os habitantes das mais próximas, as que estão mais em risco - acrescentou ele simplesmente -, possam ter também fugido para as colinas. O vosso amigo aqui sabe com que facilidade podemos desaparecer, se necessário.
- Eu duvido que ela possa estar muito à nossa frente - disse Cadfael, reflectindo sobre as possibilidades. - E, tanto quanto sabemos, ela pode ter os seus próprios planos e saber muito bem para onde fugir. Pelo menos podemos perguntar em todos os locais por que passarmos no caminho de regresso. - Havia sempre a possibilidade de o Cónego Meirion já ter encontrado a filha, mais perto do palácio real de Aber.
- Eu posso mandar rezar pela segurança dela - disse o bispo num tom enérgico -, mas tenho o meu próprio rebanho para cuidar e não posso, por mais que queira, ir à procura de uma ovelha que se tenha perdido. Pelo menos, Irmãos, passem cá a noite, antes de voltarem a fazer-se à estrada, e espero que façam uma boa viagem e tenham boas notícias da jovem que procuram.
O Bispo Meurig podia estar preocupado em proteger a sua casa alargada, mas não permitiu que isso interferisse com a sua hospitalidade. A mesa estava bem fornecida, a carne e o hidromel eram abundantes e estavam bem preparados, e ele não deixou os seus hóspedes partir na manhã seguinte sem se levantar ao amanhecer para se despedir deles. Estava uma manhã límpida, húmida, depois de alguns aguaceiros durante a noite, e o sol nasceu brilhante e radioso, dourando os baixios a leste.
- Vão com Deus! - disse o bispo, sólido e quadrado ao portão do seu precinto, como se conseguisse protegê-lo sozinho contra todos os que ali aparecessem. As suas cartas de saudações já estavam guardadas no saco de Mark, juntamente com um frasco de vidro dourado contendo o xarope que ele fazia com o seu próprio mel, e Cadfael levava à sua frente um cesto com comida para um dia que era suficiente para seis homens, e não dois. - Regressem em segurança para junto do vosso bispo, que Deus o abençoe, e ao seu convento, Irmão Cadfael, onde a sua graça certamente prevalece. Espero que nos voltemos a encontrar um dia destes.
Ele certamente que não parecia receoso do perigo que agora o ameaçava. Quando olharam para trás, da estrada, ele atravessava energicamente o pátio aberto, com a cabeça baixa, impelida para a frente, como um pequeno touro determinado, ainda não beligerante mas com o qual certamente não se devia brincar.
Eles já tinham saído da orla da cidade e chegado à estrada quando Mark estancou e se deixou ficar, calado e pensativo, sentado no cavalo, a olhar primeiro para trás ao longo da estrada que ia ter a Aber, depois para oeste, na direcção das invisíveis curvas sinuosas do estreito que separava Anglesey de Arfon. Cadfael parou ao lado dele e aguardou, sabendo o que se passava na cabeça do amigo.
- Será que ela conseguiu passar para além deste ponto? Não deveríamos ir para oeste? Ela saiu de Aber algumas horas antes de nós. Quanto tempo terá demorado a saber da chegada dos dinamarqueses?
- Se ela cavalgou durante toda a noite - disse Cadfael -, provavelmente só saberia de manhã, não haveria ninguém para a avisar. De manhã, ela já estaria bastante a oeste e, se tencionava fugir ao casamento, não ia aproximar-se de Bangor, pois era ali que deveria encontrar-se com o marido. Sim, tens razão, ela pode estar bastante a oeste, e em perigo. Também não tenho a certeza de que ela, se soubesse, voltaria para trás.
- Então de que é que estamos à espera? - perguntou simplesmente Mark, virando o cavalo para oeste.
Na igreja de S. Deiniol, várias milhas a sudoeste de Bangor e talvez a duas do estreito, tiveram finalmente notícias dela. Ela devia ter seguido a estrada antiga, directa, a mesma que Owain e o seu anfitrião tomariam, mas com algumas horas de avanço. O único enigma era o motivo por que demorara tanto tempo a chegar lá, pois, quando perguntaram ao padre daquele local não houve qualquer hesitação da sua parte, sim, ela tinha desmontado ali para pedir indicações na tarde anterior, por volta das Vésperas.
- Uma mulher jovem num ruano claro, sozinha. Ela perguntou o caminho para a cela da Norma. Esta fica a oeste daqui, no meio das árvores perto da água. Ofereci-lhe abrigo para passar a noite, mas ela disse que iria ter com a santa.
- Ela iria encontrar a cela deserta - disse Cadfael. - O Bispo Meurig receou pela segurança da ermitã e mandou levá-la para Bangor. De que direcção é que a rapariga veio?
- Veio das florestas, do sul. Eu não sabia - disse o padre, perturbado - que ela iria encontrar o local vazio. O que faria ela, pobre criança? Ainda haveria tempo para se refugiar em Bangor.
- Duvido que ela fizesse isso - disse Cadfael. - Se chegou tão tarde à cela, provavelmente passou lá a noite, em vez de se arriscar a deslocar-se no escuro. - Olhou para Mark, não tendo qualquer dúvida sobre o que o jovem estaria a pensar. Era Mark quem detinha a liderança daquela viagem, e Cadfael não lha roubaria por nada deste mundo, por palavras ou actos.
- Vamos à procura dela na ermida - disse Mark num tom firme - e, se ela lá não estiver, separamo-nos e tentamos os trilhos em que mais provavelmente ela encontraria abrigo. Nestas planícies de pastagem deve haver casas que ela poderá ter tentado.
- Muitos terão seguido os conselhos - sugeriu o padre, abanando a cabeça com um ar de dúvida. - Mesmo sem esta ameaça, dentro de algumas semanas eles teriam deslocado as suas manadas e rebanhos para as terras altas. Alguns poderão ter-se deslocado mais cedo, para não se arriscarem a ser pilhados.
- Não temos outra alternativa senão tentar - disse Mark num tom firme. - Se necessário for, iremos procurá-la nas colinas.
Ele fez uma vénia rápida ao seu informador, fez o cavalo dar meia volta e partiu em direcção a oeste, direito como uma flecha. O padre de S. Deiniol ficou a olhar para ele de sobrancelha erguida e com uma expressão meia divertida, meio solícita, abanando a cabeça com um ar de dúvida.
- Aquele jovem anda à procura da rapariga por bondade? Ou para si próprio?
- Mesmo em relação àquele jovem - disse Cadfael com cautela - eu não me atreveria a dizer que alguma coisa é impossível. Mas isso não importa. Qualquer ser em perigo de vida ou em risco de sofrer qualquer mal, seja ele homem, mulher, cavado de arado ou lebre de S. Melagell, pode levá-lo a atravessar pântanos e areais movediços. Eu sabia que não conseguiria fazê-lo voltar para Shrewsbury enquanto Heledd andasse perdida.
- O Irmão vai voltar? - perguntou o padre secamente.
- Nem pensar! Se ele está ligado a ela, também eu estou a ele. Vou acompanhá-lo até casa!
- Bem, mesmo que a preocupação dele com ela seja mais pura que o orvalho - disse o padre com convicção -, é bom que ele pense nos seus votos quando a encontrar. Porque ela é uma bela morena como eu nunca vi. Fiquei satisfeito por já ser velho quando me atrevi a oferecer-lhe hospedagem por uma noite em minha casa. E fiquei grato quando ela não aceitou. E, com ou sem tonsura, aquele rapaz está ainda na sua juventude.
- Mais uma razão para eu ir atrás dele - concordou Cadfael. - E os meus agradecimentos pelo bom conselho. Por todos os bons conselhos. Eu transmiti-los-ei fielmente quando o apanhar.
- A Santa Norma - disse Cadfael didacticamente, atravessando a cintura de bosques que se estendia durante mais de uma milha a partir do estreito - era a mãe de S. David. Ela tem muitas fontes sagradas espalhadas pelo país que têm poderes curativos, especialmente para os olhos, curam até a cegueira. Esta mulher santa deve ter decidido adoptar o nome da santa.
O Irmão Mark prosseguiu determinadamente o seu caminho ao longo do trilho estreito e não disse nada. De ambos os lados, as árvores cintilavam à luz húmida do sol depois dos aguaceiros matinais, um bosque misto suficientemente aberto para deixar entrar o brilho do início da tarde, suficientemente fechado para ser percorrido a cavalo em fila indiana, e todo ele novo e fresco, com as primeiras folhas a despontar, e cheio de aves. Todas as Primaveras são uma Primavera única, um espanto perpétuo. Ela irrompe sobre os homens todos os anos, pensou Cadfael, contemplando-a com deleite apesar de todas as ansiedades, como se ela nunca tivesse acontecido antes, como se Deus tivesse acabado de lhe ensinar o que fazer e, depois de tentar, ela visse que o impossível era possível.
À frente dele, Mark tinha parado na erva pisada pelo cavalo, a olhar em frente. No meio das árvores, ali menos compactas, a luz brilhava à frente deles, ainda a alguma distância mas já não muito longe, cintilante com reflexos brilhantes da água. Estavam a aproximar-se do estreito. E, à esquerda de Mark, um caminho estreito serpenteava por entre as árvores e ia ter a uma cabana de tecto baixo situada a alguns metros do trilho.
- É este o lugar.
- E ela esteve aqui - disse Cadfael. A erva molhada, que não fora sacudida pelo vento em nenhum dos lados, tinha retido o orvalho suave da chuva que transformava o seu verde novo em cinzento prateado, mas um cavalo tinha certamente passado por cima dela, deixando um trilho mais escuro e roçando as pontas das ervas novas, pois a abertura que ia dar à cela era muito estreita. O caminho em que tinham parado era usado regularmente, e não lhes ocorrera examiná-lo enquanto cavalgavam. Mas de certeza que ali, no meio dos arbustos invasores, tinha passado um cavalo depois de ter chovido. E não se dirigia para o interior, mas sim para o exterior. Alguns rebentos novos tinham sido partidos na ponta, inclinando-se para o caminho aberto, e as ervas mais longas, escurecidas por cascos, mostravam claramente a direcção em que tinham sido roçadas à sua passagem. - E foi-se embora - disse Cadfael - esta manhã.
Eles desmontaram e aproximaram-se da cela a pé. Esta era pequena e baixa, com apenas uma divisão, construída para uma mulher que não tinha necessitava de quase nada, para além do pequeno altar de pedra encostado a uma parede e do colchão de palha junto de outra, e do pequeno espaço de horta atrás da cela, para plantar hortaliças e ervas aromáticas. A porta estava encostada, mas não se via nenhuma fechadura no exterior nem tranca no interior, apenas um trinco que qualquer viajante podia levantar. A cela estava vazia. Norma tinha obedecido ao desejo expresso pelo bispo e permitira que a acompanhassem até Bangor, para ali se refugiar, não se sabe se com grande vontade. Se ela tinha tido uma hóspede ali durante a sua ausência, a hóspede também já se tinha ido embora. Mas num pedaço de turfa no meio das árvores a erva tinha sido pastoreada, e tinha havido um animal com cascos preso por uma corda comprida, deixando os seus vestígios antes da chuva, pois ainda havia gotas nas ervas que não tinham sido sacudidas. E, num sítio, o animal tinha deixado os seus excrementos, frescos e ainda húmidos, mas já frios./ - Ela passou a noite aqui - disse Cadfael - e partiu de manhã. Foi-se embora depois de ter chovido. Por onde terá ido? Ela chegou a Llandeiniolen vinda do interior, tendo saído das colinas e atravessado a floresta, segundo disse o padre. Teria ela em mente algum local de refúgio lá, algum parente de Meirion que talvez a acolhesse? E será que ela encontrou esse local vazio e pensou na ermitã como a esperança seguinte? Isso explicaria a razão por que ela demorou tanto tempo a cá chegar. Mas para onde foi ela agora, como é que havemos de saber?
- Nesta altura, ela já tem conhecimento do perigo que vem do mar - disse Mark. - Certamente que ela não iria para oeste, em direcção a esse perigo? Mas voltar para Bangor e para o casamento? Ela já tinha arriscado muito para fugir a ele. Será que voltaria para Aber, para junto do pai? Isso não a libertaria desse casamento, se ela se opõe tanto a ele.
- De qualquer modo, ela não o faria - disse Cadfael. - Por muito estranho que pareça, ela ama o pai, tanto como o detesta. Um sentimento é o reflexo do outro. Ela detesta-o porque o seu amor por ele é muito mais forte do que qualquer amor que ele sinta por ela, porque ele está tão prontamente disposto a renunciar a ela, a afastá-la através de todos os meios possíveis, de modo a que ela não possa continuar a projectar uma sombra sobre a sua reputação e a sua carreira. Ela disse-o muito claramente uma vez, segundo me recordo.
- Eu também me lembro - disse Mark.
- No entanto, ela não fará nada para o prejudicar. Recusou o véu. Aceitou este casamento por causa dele, como o menor dos males. Mas, quando a oportunidade lhe surgiu, fugiu desse também e, para não bloquear a luz dele, preferiu retirar-se a permitir que outros conspirassem para a afastar. Ela tomou a sua vida nas próprias mãos, preparou-se para correr os seus próprios riscos e pagar as suas próprias dívidas, deixando-o livre. Ela não vai voltar atrás com essa decisão.
- Mas ele não está livre - disse Mark pondo, com tristeza, um dedo no cerne da dór daquela relação, aparentemente simples, entre pai e filha. - Ele está mais preso a ela na ausência do que jamais esteve quando ela o servia obedientemente todos os dias, presente e visível. Ele não vai ter paz até saber que ela está em segurança.
- Então - disse Cadfael -, é melhor irmos à procura dela.
No caminho, Cadfael olhou para trás através das árvores, na direcção das centelhas de água trémula para além da qual ficava a costa de Anglesey. Tinha-se levantado uma leve brisa, e as folhas de um verde vivo ondulavam numa cortina cintilante, mas os reflexos fugazes da água eram faíscas ainda mais brilhantes através dos ramos. E havia outra coisa, algo que aparecia e desaparecia quando os ramos a revelavam e voltavam a esconder, mas permanecia constante no mesmo lugar, parecendo apenas subir e descer como se flutuasse e ondulasse com a maré. Um fragmento de cor garrida, vermelho, mudando de forma com o movimento da sua moldura de folhas.
- Espera aí! - disse Cadfael, parando. - O que é aquilo?
Não era um tom de vermelho que se encontrasse na natureza, certamente não no fim da Primavera, quando a terra se permite apenas tons delicados de ouro pálido, lilás e branco de encontro ao verde virgem. Aquele vermelho tinha uma solidez dura, impenetrável. Cadfael desmontou e voltou-se para ele, passando por entre as árvores até ter chegado a um local mais elevado onde ele próprio poderia ficar invisível, mas ver nitidamente, através da orla do bosque, os trezentos passos ou mais até ao estreito. Uma planície verde de pasto e alguns campos, uma habitação, certamente já abandonada, depois o brilho azul prateado da água, que ali quase atingia o seu ponto mais estreito, mas ainda com meia milha de largura. E, mais além, a planície rica e fértil de Anglesey, o celeiro de Gales. A maré estava a encher, e via-se metade do troço de seixos e areia sob a costa do outro lado. E ancorado junto da praia debaixo do aglomerado de árvores onde Cadfael se encontrava, um barco comprido e estreito, com uma cabeça de dragão na proa e na popa, mergulhava e subia suavemente na maré, com a vela central descida, os remos arrumados, e um conjunto de escudos vermelhos colocados ao longo do seu flanco baixo. Um navio ágil como uma serpente, com o mastro baixado à ré, a limpar o corpo vazio para a acção enquanto oscilava suavemente, preso à sua amarração como um lagarto adormecido, gracioso e inofensivo. Dois membros da tripulação, grandes, de cabelo claro, um deles com uma trança de cada lado do pescoço, estavam parados no estreito convés posterior, por cima dos bancos dos remadores. Outro, nu, nadava preguiçosamente no meio do estreito. Mas Cadfael contou o que considerou ser orifícios para remos na terceira fiada de tábuas do casco, doze deles naquele lado. Doze pares de remos, vinte e quatro remadores, e mais tripulação para além dos três que tinham ficado de guarda. Os restantes não deviam estar longe.
O Irmão Mark tinha prendido os cavalos e aproximara-se de Cadfael. Ele viu o que Cadfael tinha visto e não fez quaisquer perguntas.
- Aquilo - disse Cadfael em voz baixa - é um barco dinamarquês de Dublin.
Nenhum deles falou. Deram meia volta, voltaram apressadamente para junto dos cavalos e conduziram-nos para o interior através do trilho do bosque, até se encontrarem suficientemente longe para montar e prosseguir viagem. Se Heledd, depois de ter passado a noite na ermida, tivesse assistido à chegada daquele barco de pilhagem com o seu formidável complemento de guerreiros, não era de admirar que ela se tivesse apressado a abandonar aquela zona. E sem dúvida que ela se dirigiria para o interior o mais rapidamente possível e, uma vez suficientemente longe, procuraria refúgio numa cidade. Isso, pelo menos, é o que faria qualquer rapariga no seu perfeito juízo. Ali, ela estava a meio caminho entre Bangor e Carnarvon. Que direcção tomaria?
- Um barco solitário - disse Mark finalmente, quando o caminho alargou e se tornou possível seguirem lado a lado. - Isso é sensato? Não correm o risco de encontrar oposição, de serem até capturados?
- Neste momento, talvez fossem - concordou Cadfael - mas não está aqui ninguém para tentar fazê-lo. Certamente que eles passaram por Carnarvon de noite, e vão voltar a sair sorrateiramente de noite. Este deve ser um dos barcos mais pequenos e mais velozes da frota; com mais de vinte remadores a bordo, nós não temos nada que o consiga apanhar. Tu viste como ele é construído, podem remá-lo para a frente ou para trás, e virá-lo enquanto o diabo esfrega um olho. O único risco que eles correm é enquanto a maior parte da tripulação estiver em terra, a saquear, e isso eles farão em investidas súbitas, indo rapidamente a terra e regressando rapidamente ao barco.
- Mas por que é que eles haviam de enviar um barco sozinho? Segundo ouvi dizer - disse Mark - eles atacam em força e, além de saquear, fazem escravos. Eles não podem fazer isso com um só barco.
Ill - Desta vez - disse Cadfael, reflectindo - não se trata disso. Se Cadwaladr os trouxe até cá, então ele prometeu-lhes um pagamento chorudo pelos seus serviços. Eles estão aqui para persuadir Owain que seria sensato devolver as terras ao irmão, e contam ser bem pagos pelo serviço; se este puder ser feito, de uma forma barata, apenas com a ameaça da sua presença, sem perda de homens em batalha, eles preferem isso, e Cadwaladr não levantará qualquer objecção, desde que o resultado seja o mesmo. Digamos que ele consegue o que quer e recupera as suas terras. De futuro, ele vai ter que viver ao lado no irmão, porque é que há-de tornar as relações entre eles mais difíceis do que o necessário? Não, eles não vão queimar e matar a eito, e não vão fazer escravos, a não ser que o negócio azede.
- Então porquê esta incursão por um único barco até tão longe no estreito? - perguntou Mark sensatamente.
- Os dinamarqueses têm que dar de comer às suas forças, e não é seu hábito levar consigo provisões quando se dirigem a uma terra em que se podem alimentar sem qualquer custo. Eles já conhecem os galeses suficientemente bem para saber que nós vivemos com pouca coisa e viajamos com pouca bagagem, e que podemos deslocar as nossas famílias e o nosso gado para as montanhas com poucas horas de aviso. Aquele pequeno barco não perdeu tempo a ir a terra, a partir de Abermenai, assim que alcançou a costa, para chegar às aldeias que ouviram as notícias tarde ou foram lentas a reunir o gado. Eles voltarão para junto dos seus companheiros esta noite com o barco cheio de boas carcaças, e de toda a farinha ou trigo a que conseguiram deitar a mão. E algures ao longo destes bosques e campos eles estão a fazer exactamente isso neste preciso momento.
- E se eles encontrarem uma rapariga sozinha? - perguntou Mark. - Será que se coibiriam de cometer um ultraje desnecessário?
- Numa situação dessas, eu não me responsabilizaria por ninguém, dinamarquês, galês ou normando - admitiu Cadfael. - Se fosse uma princesa de Gwynedd, ela valeria muito mais intacta e bem tratada do que violada ou maltratada. E, ainda que Heledd não seja de nascimento real, ela tem língua para falar e pode muito bem tornar claro que está sob a protecção de Owain, por isso, se a ultrajarem, eles terão que responder perante ele. Mas, mesmo assim...
Tinham chegado a um local onde o trilho do bosque se dividia, com uma ramificação a manter-se ainda no interior mas inclinando-se para oeste, a outra dirigindo-se mais directamente para leste.
- Estamos mais perto de Carnarvon do que de Bangor - calculou Cadfael, parando no ponto em que as estradas se dividiam. - Mas ela saberia isso? E agora, Mark? Para leste ou para oeste?
- É melhor separar-nos - disse Mark, preocupado com uma decisão tomada às cegas. - Ela não pode ter ido muito longe. Teria que se manter escondida. Se o barco tiver que regressar esta noite, ela poderá encontrar um sítio para se esconder em segurança até eles terem partido. Vai por um caminho, que eu vou por outro.
- Não podemos perder o contacto um com o outro - avisou Cadfael, muito sério. - Se nos separarmos aqui, deverá ser durante apenas algumas horas, e temos que nos voltar a encontrar aqui. Não somos livres de fazer o que queremos. Segue na direcção de Carnarvon e, se a encontrares, acompanha-a até lá. Se não, volta para cá antes do crepúsculo, que eu farei o mesmo. E se eu a encontrar neste caminho da esquerda, abrigá-la-ei onde puder, mesmo que isso signifique regressar a Bangor. Se não te encontrares comigo aqui ao pôr-do-sol, esperarei por ti em Bangor. E, se eu não aparecer, procura-me lá.
Um arranjo improvisado, mas o melhor que conseguiram fazer, com um tempo tão limitado e uma tarefa inevitável à espera deles. Ela tinha deixado a cela situada na costa nessa manhã, e teria que ter muito cuidado e seguir pelos caminhos do bosque, em que um cavalo tem que andar devagar. Não, ela não podia estar longe. E àquela distância do estreito, certamente que ela se manteria num trilho usado e não serpentearia pelo bosque, embrenhando-se mais no seu interior. Talvez ainda a encontrassem e trouxessem até ali antes do anoitecer, ou a acompanhassem a um lugar seguro algures, voltando a encontrar-se os dois ali sem ela e regressando finalmente a Inglaterra.
Mark olhou para a luz e para o ligeiro declínio do sol do seu zénite.
- Temos quatro horas ou mais - disse ele e, virando rapidamente o cavalo em direcção a oeste, partiu.
O trilho de Cadfael virava para leste num troço plano durante talvez oitocentos metros, emergindo ocasionalmente do bosque para uma pastagem aberta, e permitindo relances do estreito através das árvores dispersas lá em baixo. Depois, ele virava para o interior e começava a subir, embora o declive ali não fosse muito grande, pois aquela cintura de terra do continente partilhava, nalguma medida, a fertilidade rica da ilha antes de se elevar para as montanhas. Ele seguiu lentamente, à escuta, parando de vez em quando para ouvir mais atentamente, mas não havia qualquer sinal de vida a não ser os pássaros, muito atarefados com as suas ocupações primaveris e nada perturbados com o tumulto entre os homens. O gado ovino e caprino tinha sido conduzido para as colinas, para cercas guardadas; os atacantes encontrariam apenas alguns que tinham ficado para trás e talvez não se aventurassem a ir mais adiante ao longo do estreito. As notícias deviam certamente precedê-los onde quer que eles surgissem, e as capturas mais lucrativas já teriam sido feitas. Se Heledd tivesse virado para aquele lado, talvez estivesse em segurança e já não corresse qualquer perigo.
Ele tinha atravessado um campo aberto e entrado numa cintura de bosque mais elevada, cerrada e salpicada de raios de sol à esquerda, floresta ainda mais cerrada à direita, quando uma cobra atravessou o caminho por baixo dos cascos do seu cavalo como um pequeno clarão de relâmpago verde-prateado e desapareceu na erva mais basta do outro lado, e o animal parou por um instante e soltou um relincho surdo de susto. Algures à direita, no meio das árvores e não muito longe, outro cavalo respondeu com um excitado relincho de reconhecimento. Cadfael parou e escutou atentamente, na esperança de que outro relincho lhe permitisse fazer uma leitura mais exacta da direcção, mas o som não se repetiu. Provavelmente, quem quer que fosse que estava refugiado ali, bem afastado do trilho, se tivesse apressado a acalmar e persuadir o animal a ficar silencioso. Naquela colina, os relinchos de um cavalo poderiam ouvir-se a uma grande distância.
Cadfael desmontou e conduziu o seu cavalo por entre as árvores, seguindo um caminho sinuoso na direcção do local em que pensou que o outro viajante deveria estar, parando frequentemente para tentar escutar e, por fim, quando já estava no meio dos arbustos cerrados, ouviu o farfalhar súbito de galhos a serem sacudidos mais adiante, seguido do silêncio. Os seus próprios movimentos, por mais cauteloso que ele tivesse sido, tinham certamente sido ouvidos. Havia alguém escondido à espreita, à espera dele.
- Heledd! - disse Cadfael em voz alta.
O silêncio pareceu tornar-se ainda mais silencioso.
- Heledd? Sou eu, o Irmão Cadfael. Podes estar descansada, aqui não há dinamarqueses de Dublin. Mostra-te.
E ela mostrou-se, passando por entre os arbustos para ir ter com ele. Era, de facto, Heledd, com um punhal desembainhado na mão, embora, por um momento, ela se deva ter esquecido que o tinha. Tinha o vestido amarrotado e um pouco sujo dos arbustos, uma face ligeiramente manchada de verde por se ter deitado no musgo e na erva, e o cabelo solto à volta dos ombros era preto na sombra, uma nuvem da meia-noite. Mas o seu rosto oval estava composto, descontraindo-se um pouco da sua prontidão para lutar, e os seus olhos, enormes à sombra, eram muito pretos, com laivos arroxeados. Atrás dela, no meio das árvores, ele ouviu o cavalo dela mexer-se e bater com as patas, pouco à vontade naquele ermo desconhecido.
- É realmente o Irmão - disse ela, deixando cair a mão que segurava a faca com um enorme suspiro. - Como é que me encontrou? E onde está o diácono Mark? Eu pensei que, nesta altura, já estariam a caminho de casa.
- E estaríamos - concordou Cadfael, extremamente aliviado por encontrá-la tão segura de si própria - se não tivesses fugido no meio da noite. Mark está na estrada para Carnarvon, a uma milha ou mais de distância de nós, à tua procura. Separámo-nos quando a estrada se bifurcou. Pusemo-nos a tentar adivinhar por onde terias ido. Fomos à tua procura à cela de Norma. O padre disse-nos que te tinha dito onde era.
- Então já viram o barco - disse Heledd, encolhendo os ombros numa atitude de resignação perante o inevitável. - Nesta altura, eu já teria subido as colinas à procura dos primos da minha mãe nas cabanas dos borregos, aqueles que eu tinha esperança de ainda encontrar na sua quinta na planície, se o meu cavalo não tivesse ficado um pouco coxo. Achei que era melhor esconder-me e descansar até ao cair da noite. E agora somos dois - disse ela, e o seu sorriso brilhou na sombra com uma segurança recuperada -, três se conseguirmos encontrar o seu pequeno diácono. E agora, que caminho devemos tomar? Venha comigo pelas colinas, que encontrará um caminho seguro de regresso ao Dee. Porque eu não vou voltar para o meu pai - avisou ela, com um brilho ameaçador nos seus olhos escuros. - Ele livrou-se de mim, tal como queria. Não lhe desejo mal. Mas não fugi de todos eles para acabar por regressar e casarem-me com um homem que nunca vi, nem para definhar num convento. Pode dizer-lhe, ou deixar uma mensagem a alguém que lha transmita, que estou em segurança junto dos familiares da minha mãe, e que ele pode ficar satisfeito.
- Tu vais para o primeiro refúgio seguro que conseguirmos encontrar - disse Cadfael com firmeza, impelido por uma indignação que não poderia ter sentido se a tivesse encontrado infeliz ou com medo. - Mais tarde, quando os problemas terminarem, podes fazer o que quiseres com a tua vida. - Mesmo no momento em que o disse, teve a sensação de que ela era capaz de fazer qualquer coisa ou até mesmo algo admirável com a sua vida e, se tivesse que ser contra a opinião do mundo, isso não a demoveria. - O teu cavalo consegue andar?
- Eu posso levá-lo pela rédea, e vamos ver.
Cadfael reflectiu durante um momento. Ali estavam a meio caminho entre Bangor de Carnarvon, mas quando voltassem para o trilho que seguia para oeste por que Mark seguira, a estrada para Carnarvon era mais directa e, se a tomassem, acabariam por se encontrar com Mark. Quer ele tivesse ido até à cidade ou voltasse para trás para regressar ao ponto de encontro na bifurcação antes do crepúsculo, se seguissem por esse trilho haviam de o encontrar. E numa cidade cheia de guerreiros de Owain não haveria perigo. Uma força contratada para ameaçar não seria louca ao ponto de provocar todos os exércitos de Gwynedd. Alguma pilhagem, talvez, o agradável desporto de roubar algum gado tresmalhado e levar consigo alguns aldeões tresmalhados, mas eles não eram tolos ao ponto de atrair contra si todo o exército de Owain.
- Trá-lo para o trilho - disse Cadfael. - Podes montar o meu, que eu levo o teu a pé.
Não havia nada no olhar cintilante que ela lhe dirigiu que lhe assegurasse que faria o que ele disse, nem nada que o inquietasse com dúvidas. Ela hesitou apenas um instante, durante o qual o silêncio da tarde sem vento pareceu fenomenalmente intenso, depois virou-se, apartou os ramos atrás de si e desapareceu, quebrando o silêncio com o sussurro da sua passagem através dos arbustos cerrados. Ao fim de alguns momentos, ele ouviu o cavalo a relinchar suavemente, e depois os arbustos a moverem-se quando a rapariga e o cavalo se viraram para voltar para junto dele através de um caminho mais aberto. E, seguidamente, ouviu-a gritar, um grito espantosamente agudo, furioso e indignado.
O salto instintivo que ele deu para ir ter com ela só lhe permitiu avançar dois passos. De ambos os lados os arbustos vergastavam-no, e mãos estenderam-se para o agarrar pelo capuz e pelo hábito, prender-lhe os braços e mantê-lo erecto mas indefeso, a lutar contra um amplexo de que não conseguia libertar-se mas que, curiosamente, não fez qualquer menção de o molestar, para além de o manter prisioneiro. Subitamente, a pequena clareira estava a fervilhar de homens enormes, de braços nus, cabelo louro e cintos de cabedal, e do matagal à sua frente irrompeu um homem ainda maior, um jovem gigante, muito acima da robusta altura média de Cadfael, a rir tão alto que os bosques, até então silenciosos, ecoaram com a sua alegria, e a segurar uma Heledd enraivecida, aos pontapés e a contorcer-se com toda a força, mas produzindo pouco efeito. As unhas da mão que ela tinha livre já tinham deixado a sua marca na face do captor e puxavam os seus longos cabelos louros, até que ele se virou, baixou a cabeça e tomou o pulso dela entre os seus dentes e manteve-o ali. Dentes grandes, regulares, brancos, que tinham brilhado quando ele se rira, e agora mal magoavam a pele macia de Heledd. Foi o espanto, e não o medo nem a dor, que fez com que ela ficasse imóvel nos braços dele e, com a desorientação, os seus dedos fechados abriram-se gradualmente. Mas quando ele a largou e voltou a rir-se, ela recuperou a sua raiva e atacou-o furiosamente, batendo inutilmente com os punhos no seu peito largo.
Atrás dele vinha um rapaz sorridente com cerca de quinze anos, conduzindo o cavalo de Heledd que coxeava ligeiramente de uma pata. Ao ver uma segunda presa amarrada e a mudar desconfortavelmente de posição na orla das árvores, o rapaz soltou um grito de prazer. Na realidade, o ambiente do grupo de saqueadores não parecia nada ameaçador, mas sim bem-humorado e entusiástico. Não eram tantos como a princípio parecera, devido ao seu tamanho e presença exuberantemente animal. Dois deles, com um peito redondo como um barril e bigodes e tranças cor de palha de cada lado do rosto, mantinham Cadfael preso pelos braços. Um terceiro tinha pegado nas rédeas do ruano e acariciava o focinho comprido e brilhante e a crina creme. Mas algures no caminho desbravado havia outros, Cadfael ouvia-os mover-se e conversar enquanto esperavam. O que era espantoso era que homens tão grandes conseguissem mover-se tão suavemente para cercar as suas presas. Os cavalos, chamando um pelo outro, tinham alertado os saqueadores que já estava de regresso e tinham-nos conduzido àquele ganho inesperado. Um monge, uma rapariga, pelo cavalo e pelo traje uma rapariga da alta sociedade, e dois bons cavalos.
O jovem gigante estava a observar as suas novas aquisições com um ar muito prático por cima dos esforços inúteis de Heledd, e Cadfael reparou que, embora tratasse a sua prisioneira com alguma rudeza, não o fazia com brutalidade. Pareceu que Heledd compreendeu isso e deixou gradualmente de opor resistência, sabendo que esta era inútil, e ficou quieta, surpreendida com o facto de não haver qualquer retaliação.
- Saeson? - perguntou o gigante, observando Cadfael com curiosidade. Ele já sabia que Heledd era galesa, ela tinha-o insultado nessa língua até ficar sem fôlego.
- Galês! - disse Cadfael. - Tal como a dama. Ela é filha de um cónego de Santo Asaph, e está sob a protecção de Owain Gwy-nedd.
- Ele tem gatos selvagens? - perguntou o jovem, desatando novamente a rir e pousando-a no chão com um movimento ágil, mas mantendo-a bem presa pela faixa do vestido, enrolada no seu enorme punho para a apertar e segurar. - E ele vai querer este de volta sem que lhe falte sequer um cabelo? Mas, ao que parece, a dama escapou-se da trela, senão o que estaria ela a fazer aqui com apenas um monge beneditino como guarda-costas? - Ele falava numa mistura de erse, dinamarquês e galês muito capaz de se fazer entendida naquela região. Ao longo dos séculos, nem todos os contactos irregulares entre Dublin e Gales tinham sido de invasão e rapina; tinham sido feitos muitos bons casamentos entre os principados, e uma quantidade razoável de comércio tinha sido lucrativa para ambas as partes. Aquele jovem sabia provavelmente falar francês normando. Até mesmo ratim, pois era provável que tivesse sido ensinado por monges irlandeses. Ele era claramente um jovem com uma boa posição social. Também, felizmente, franco e bem disposto, nada interessado em estragar aquilo que poderia vir a ser um bem valioso. - Tragam o homem - disse o jovem, regressando energicamente às questões práticas - e mante-nham-no agarrado. Owain respeita o hábito preto, embora o das celta seja mais do seu agrado. Quando é preciso negociar, a santidade consegue um bom preço. Eu trato da rapariga.
Eles correram a obedecer-lhe, tão bem dispostos, ao que parecia, como o seu líder, e todos eles muito satisfeitos com o resultado da sua pilhagem. Quando emergiram no caminho desimpedido com os seus cativos e os dois cavalos atrás, foi fácil ver o motivo por que estavam tão contentes. Havia mais quatro à espera, todos a pé, levando duas varas compridas carregadas com animais mortos e sacos, o saque de redis dispersos, de pastagens remotas e até mesmo da própria floresta, pois havia veados entre os despojos. Um quinto homem tinha improvisado uma canga de madeira para os ombros, para equilibrar dois odres de vinho. Este devia ser um de, pelo menos, dois grupos que tinham ido a terra, calculou Cadfael, pois o pequeno barco levava doze pares de remos além de outra tripulação. Só podia tentar adivinhar o número dos que compunham as forças dinamarquesas, mas certamente que não lhes faltaria comida durante um ou dois dias.
Ele deixou-se levar para onde o empurraram, não inteiramente por compreender sensatamente que não conseguiria levar a melhor sobre um dos musculosos guerreiros que o agarravam, quanto mais dois, nem sequer porque, mesmo que conseguisse fugir, não poderia fazer nada para levar Heledd consigo. Para onde quer que os levassem como reféns úteis, ele talvez conseguisse proporcionar-lhe protecção e companhia. Ele já tinha deixado de pensar que lhe poderia acontecer grande mal. Não fizera mais do que confirmar algo que já sabia quando insistira que ela era valiosa; e aquilo não era a guerra total, mas sim uma expedição comercial com o objectivo de obter o maior lucro possível com o mínimo dispêndio.
Houve alguma redistribuição do saque que tinham acumulado, e o cavalo coxo de Heledd foi chamado a transportar parte da carga. Eles eram notavelmente enérgicos e exactos nos seus movimentos, equilibrando o peso e não sobrecarregando o valioso animal. Entre si, eles falavam a sua própria língua nórdica, embora, com toda a probabilidade, todos aqueles jovens e vigorosos guerreiros tivessem nascido no reino de Dublin, tal como os seus pais antes deles, e compreendessem bem as línguas celtas que rodeavam o seu enclave e as falassem livremente em tempo de paz e de guerra. No final daquele dia de pilhagem, estavam atentos ao sol e, com excepção daquela incursão depois de terem ouvido o alarme dos cavalos, não perderam tempo.
Cadfael tinha perguntado a si próprio o que faria o líder com o cavalo são, e pensou que ele reclamaria para si próprio o privilégio de montar. Em vez disso, o jovem ordenou ao rapaz, o mais leve entre eles, que subisse para a sela, e colocou Heledd à sua frente, nos braços que, mesmo só com quinze anos, eram suficientemente musculosos para tornar ineficazes os esforços dela para se libertar depois de as suas mãos terem sido atadas com a sua própria faixa. Mas, nessa altura, ela já compreendera que resistir seria ao mesmo tempo inútil e indigno, e deixou-se instalar de encontro ao peito largo do rapaz sem opor resistência. Pela expressão do seu rosto, ela iria aguardar a primeira oportunidade de fugir e, até esse momento, manteria a presença de espírito e as suas forças de reserva. Tinha ficado calada, cerrando os lábios e os dentes de raiva ou de medo, e mantendo uma dignidade tensa e taciturna, mas não era possível saber o que estaria a germinar por trás do rosto imóvel.
- Irmão - disse o jovem, voltando-se energicamente para Cadfael, ainda imobilizado no meio dos seus guardas -, se preza a rapariga, pode caminhar ao lado dela sem ninguém a agarrá-lo. Mas aviso-o já que Torsten estará mesmo atrás de si, e ele consegue, a cinquenta passos, atirar uma lança e rachar uma árvore jovem, por isso mantenha a sua posição - ele estava a sorrir, seguro de que Cadfael não tencionava fugir, deixando a rapariga em cativeiro. - Em frente agora, e depressa! - disse ele alegremente, impondo o passo, e o grupo inteiro colocou-se em fila ao longo do caminho, e Cadfael fez o mesmo, ao lado do seu próprio ruano, com uma mão no couro do estribo do cavaleiro. Se Heledd tivesse necessidade da frágil segurança da sua presença, ela tê-la-ia, mas Cadfael duvidava que precisasse. Ela não se tinha mexido desde que fora içada para o cavalo, excepto para se mover de modo a ficar mais confortável no seu poleiro, e a própria tensão do seu rosto tinha-se transformado numa imobilidade pensativa. Todas as vezes que Cadfael erguia os olhos para voltar a olhar para ela, descobria que ela se sentia cada vez mais à vontade naquela situação inesperada. E, todas essas vezes, os seus olhos estavam pousados, com um ar de especulação, na cabeça loura que ficava acima de todas as outras, avançando à frente deles com um penacho erecto e longos caracóis louros a ondular na leve brisa.
Desceram a colina com um passo rápido, através de bosques e pastagens, até vislumbrarem os primeiros lampejos prateados de água a cintilar através da última cintura de árvores. O sol mergulhava suavemente em direcção a oeste, dourando a ondulação levantada pela brisa ao longo da superfície quando emergiram na praia do estreito, e os membros da tripulação que tinham ficado de guarda soltaram um grito de boas vindas e trouxeram o barco-dragão até à costa para eles subirem para bordo.
Quando regressava, de mãos a abanar, da sua busca a oeste, para comparecer ao encontro na bifurcação antes do pôr do Sol, o Irmão Mark ouviu um grupo de homens passar, rápida e silenciosamente, atravessando o seu trilho um pouco à frente, e descendo na direcção da praia. Ele deixou-se ficar parado, escondido, até eles terem passado, depois seguiu cautelosamente na mesma direcção, tencionando apenas certificar-se de que não poderiam vê-lo nem ouvi-lo, antes de prosseguir para o local de encontro. Mas o caminho que seguiu pela colina abaixo por entre as árvores inclinou-se para o percurso do trilho deles e aproximou-o rapidamente, pelo que recuou e voltou a parar, desta vez vendo-os de relance por entre os ramos de arbustos agora quase cobertos com a folhagem de Verão. Um jovem alto, louro, cuja cabeça passou por ele a flutuar como uma prímula desabrochada mas com a altura de um espruce de três anos, um cavalo carregado levado pelas rédeas, dois homens com uma vara aos ombros e carcaças de animais a balouçar ao ritmo dos seus passos. Depois, inequivocamente, viu passar Heledd e o rapaz, um par entrelaçado e a flutuar um metro e meio acima do chão, sendo o cavalo por baixo deles apenas sugerido pelo ritmo da sua passagem, pois naquele momento os ramos eram impenetráveis, deixando ver apenas uma tonsura castanha avermelhada quase totalmente salpicada de cinzento a arrastar-se ao lado deles. Era apenas uma pequeníssima pista quanto ao homem que a usava, mas bastava para Mark identificar o Irmão Cadfael.
Então ele tinha-a encontrado, e aqueles estrangeiros muito menos bem-vindos tinham-nos encontrado a ambos antes de eles terem conseguido escapar para um refúgio seguro. E Mark não podia fazer nada a não ser segui-los, pelo menos o suficiente para saber para onde eles estavam a ser levados, e como eram tratados, e depois certificar-se de que a notícia era levada para onde estavam os que podiam levar o seu desaparecimento em consideração e fazer planos para os recuperarem.
Desmontou e deixou o cavalo preso, para se poder mover mais rápida e silenciosamente por entre as árvores. Mas o grito que ouviu, ecoando do barco, fê-lo abandonar todas as precauções e emergir em terreno aberto, correndo pela colina abaixo para encontrar um local de onde pudesse ver as águas do estreito e o timoneiro a trazer o seu barco para perto, por baixo da margem coberta de ervas, para um lugar em que até mesmo uma criança conseguiria saltar para bordo, por cima da borda baixa dos bancos dos remadores situado no meio do barco. Mark viu a maré de homens louros, ferozes, a encher o barco, persuadindo o cavalo de carga carregado a segui-los e arrumando o produto do saque por baixo da minúscula coberta de proa e no poço no meio dos bancos. Cadfael foi obrigado a entrar com eles, no entanto pareceu a Mark que, mesmo ao ser persuadido, ele mantinha um ar jovial. Era certo que ele tinha poucas possibilidades de escapar, mas outro homem seria menos hábil a lidar com a situação.
O rapaz a cavalo mantinha Heledd bem segura, até que o jovem gigante louro, depois de assistir ao embarque dos seus homens, estendeu os braços e pegou nela, com tanta leveza como se ela fosse uma criança, saltou com Heledd por entre os bancos dos remadores e, pousando-a no chão, estendeu novamente a mão para as rédeas do cavalo de Cadfael e persuadiu-o a entrar a bordo com palavras murmuradas em voz baixa que soaram estranhas aos ouvidos de Mark. O rapaz seguiu-o, o timoneiro afastou-se rapidamente da margem, o nó de homens que repartia o saque dissolveu-se ordenadamente e distribuiu-se pelos remos, e o pequeno e esguio barco-dragão dirigiu-se para o meio da corrente/Quando Mark recuperou a presença de espírito, ele avançava rapidamente, deslizando como uma cobra para sul, na direcção de Carnarvon e Abermenai, onde os seus companheiros estariam agora no porto ou atracados nos ancoradouros, no exterior das dunas. Nem sequer era necessário virá-lo, pois os dois extremos eram idênticos. A sua velocidade conseguia livrá-lo de problemas em qualquer direcção; mesmo que fosse avistado da cidade, Owain não tinha nada que o pudesse apanhar. A rapidez com que ele se transformou silenciosamente numa pequena mancha escura na água deixou Mark espantado, sem respiração.
Ele deu meia volta para voltar para onde tinha deixado o cavalo preso e partiu apressadamente para oeste, na direcção de Carnarvon.
Atirado pesadamente para o poço estreito no meio dos bancos e ali abandonado com igual rapidez, Cadfael dedicou um momento a encostar-se às tábuas do estreito convés da ré e a reflectir sobre a situação dos dois. As relações entre os captores e os capturados pareciam já ter encontrado um nível viável, a um preço surpreendentemente baixo em termos de tempo ou exaltação. A resistência era impraticável. A prudência recomendava resignação aos prisioneiros, e tornava possível aos seus carcereiros ocuparem-se da tarefa mais imediata de regressar ao acampamento com o saque, sem qualquer restrição mais rígida do que aquela que um barco veloz e cerca de uma milha de água de cada lado proporcionavam. Ninguém tinha tocado em Cadfael depois de terem embarcado. Ninguém prestara mais atenção a Heledd, encostada, com um ar defensivo, ao cadaste da popa, onde o dinamarquês a colocara, com os joelhos puxados para si e os braços a abraçar as saias. Ninguém receava que ela saltasse borda fora e nadasse para Anglesey; os galeses não eram conhecidos como nadadores notáveis. Ninguém tinha qualquer interesse em insultá-los ou magoá-los; eles eram simplesmente bens a ser mantidos intactos para utilização futura.
Para testar um pouco mais essa teoria, Cadfael percorreu o poço no meio do barco, entre o saque de carne e provisões, observando atentamente os pormenores do ágil barco comprido, e nem um único remador interrompeu a cadência das suas remadas, ou se virou para verificar o movimento junto do seu ombro. Um barco concebido para ser veloz, elegante como um galgo, com talvez uns dezoito passos de comprimento e não mais que três ou quatro de largura. Cadfael calculou que houvesse dez fiadas de tábuas ao lado, seis pés de profundidade no meio do barco, o único mastro descido à ré. Reparou nos rebites que mantinham as tábuas unidas. Sendo um batel chato, com um calado pouco fundo, leve para a força que tinha e a velocidade que atingia, com os dois extremos idênticos para poder ser instantaneamente manobrado, era o barco ideal para aportar nas dunas de Abermenai. Não servia para transportar uma carga mais volumosa; para isso, eles deviam ter trazido barcos de carga, mais lentos, mais dependentes das velas e com apenas alguns remadores para os livrar de problemas quando se deparassem com uma calmaria. Tinha uma vela redonda, como ainda sucedia a todos os barcos naquelas águas setentrionais. Os barcos de dois mastros com velas latinas do inesquecível mar mediterrâneo ainda não eram conhecidos por aqueles navegadores nórdicos.
Ele estivera demasiado embrenhado naquelas observações para ter consciência de que ele próprio estava a ser observado com idêntica astúcia e curiosidade por um par de luminosos olhos azuis, debaixo de sobrancelhas espessas louras erguidas num ar de perplexidade. Ao jovem comandante daquele grupo não escapava nada, e ele sabia interpretar aquela apreciação do seu barco. Saiu subitamente de junto do timoneiro e foi ter com Cadfael ao poço.
- Sabe alguma coisa sobre barcos? - perguntou ele, interessado e surpreendido com uma preocupação tão improvável por parte de um irmão beneditino.
- Já soube. Há muito tempo que não me aventurava a andar na água.
- Conhece o mar? - prosseguiu o jovem, com agradada curiosidade.
- Este mar, não. Houve um tempo em que conheci bastante bem o Mediterrâneo e as costas orientais. Entrei tarde para o convento - explicou ele, vendo os olhos azuis dilatar-se e cintilar numa expressão de deleitado espanto, e uma centelha mais profunda de prazer e reconhecimento a brilhar dentro deles.
- Irmão, fez subir o seu preço - disse o jovem dinamarquês alegremente. - Eu pensava que era mais sensato. Monges navegadores são animais raros, eu nunca conheci nenhum. Como é que se chama?
- O meu nome é Cadfael, um irmão galês da abadia de Shrewsbury.
- Um nome em troca de outro nome é um negócio justo. Eu sou Turcaill, filho de Turcaill, familiar de Otir, que chefia esta expedição.
- E sabe o que está em disputa aqui? Entre dois príncipes galeses? Porque é que colocam o vosso peito no meio das suas espadas? - perguntou Cadfael num tom calmo.
- Pelo dinheiro - respondeu Turcaill alegremente. - Mas, mesmo que não fosse pago, eu não ficaria para trás se Otir se fizesse ao mar. Torna-se enfadonho estar em terra. Eu não sou um marinheiro de água doce, capaz de ficar numa quinta ano após ano, contentando-se em ver as colheitas crescer.
Não, isso certamente ele não era, nem tinha temperamento para ir para um convento e tomar o hábito, mesmo quando as aventuras da juventude tivessem chegado ao fim. Bem fornecido de carnes, brilhando com uma energia animal, aquele era um homem feito para casar e ter filhos e criar mais gerações de aventureiros, irrequietos como o próprio mar e prontos para entrar, por lucro, na disputa de qualquer homem, pagando o preço de pôr em risco as suas próprias vidas.
Seguidamente, com uma palmada de despedida no ombro de Cadfael, ele afastou-se e atravessou o barco com uma passada firme e foi colocar-se ao lado de Heledd, no convés de ré. A luz, que estava a desaparecer no crepúsculo, ainda mostrou a Cadfael a expressão desdenhosa dos lábios de Heledd e o arqueado frio da sua sobrancelha enquanto afastava a bainha da saia da contaminação do contacto inimigo e virava a cara, recusando-se a olhar para ele.
Turcaill soltou uma gargalhada, nada desagradado, sentou-se ao lado dela e tirou pão de uma bolsa do cinto. Partiu-o com as suas mãos jovens, grandes e macias, e ofereceu-lhe metade, e ela recusou. Sem se sentir ofendido, pegou-lhe à força na mão direita, colocou-lhe a oferenda na palma da mão e cobriu-a com a mão esquerda dela. Heledd não o conseguiu impedir e não comprometeu o seu desdém mudo com uma luta inútil. Mas quando ele se pôs de pé e a deixou ali, sem olhar para trás, para fazer o que lhe apetecesse com a sua oferta, ela não a atirou à água escura do estreito nem mordeu a côdea em jeito de aceitação, mas ficou sentada tal como ele a deixara, com o pão no meio das mãos e a fitar a cabeça loura dele com uma expressão calculista nos olhos semicerrados cujo significado Cadfael não conseguiu interpretar mas que o intrigou e inquietou.
Ao início da noite, num crepúsculo através do qual deslizaram rápida e silenciosamente no meio da corrente, com apenas leves centelhas de fosforescência a dourar a imersão dos remos, passaram pelas luzes costeiras da Carnarvon de Owain e emergiram numa bacia larga, isolada do mar alto apenas por línguas gémeas de dunas de areia encimadas por arbustos cerrados e árvores dispersas. Ao longo da água, viam-se formas escuras de barcos, alguns com mastros com carlingas, outros estreitos e baixos como a pequena serpente de Turcaill. Espaçados ao longo da costa, os archotes dos postos avançados dinamarqueses ardiam no ar parado e, mais acima, na direcção do cume, brilhavam as fogueiras de um acampamento.
Os remadores de Turcaill deram a última remada e arrumaram os lemes, ao mesmo tempo que o timoneiro fazia o barco descrever uma curva e abicava na areia, nas sombras. Os dinamarqueses saíram pelo lado, carregando o saque, e chapinharam na água até chegarem a terra firme, sendo recebidos pelos companheiros que estavam de sentinela na orla da maré. E lá foi Heledd pelo lado, erguida com leveza nos braços de Turcaill, desta vez não oferecendo qualquer resistência, uma vez que esta seria, em todo o caso, inútil, e ela estava preocupada sobretudo em preservar a sua dignidade.
Quanto a Cadfael, ele não teve outra opção a não ser segui-los, mesmo que dois dos remadores não o tivessem obrigado a saltar para fora e o tivessem levado a vau até terra, agarrando-o com firmeza pelos ombros. Quaisquer que fossem as oportunidades que lhe surgissem, ele só fugiria daquele cativeiro quando pudesse levar Heledd consigo. Subiu filosoficamente as dunas, entrou no perímetro guardado do acampamento e seguiu para onde foi conduzido, com a certeza de que o círculo de guardiães se fechava confortavelmente atrás dele.
Cadfael acordou com a luz cinzenta pérola do amanhecer, o imenso céu aberto por cima dele, ainda salpicado de estrelas no zénite, a empalidecer, e a recordação instantânea da sua situação actual. Tudo o que tinha acontecido tinha confirmado que eles tinham pouco a recear dos seus captores, pelo menos enquanto mantivessem o seu valor de troca, e nada a esperar no que dizia respeito à fuga, uma vez que os dinamarqueses estavam claramente seguros da eficiência das suas precauções. A costa estava bem guardada, a orla do acampamento bem vigiada. Naquele recinto, não havia necessidade de manter uma jovem e um monge idoso sob vigilância constante. Eles podiam vaguear à vontade que não / conseguiriam sair do círculo e, no interior deste, eles não poderiam causar qualquer mal.
Cadfael recordava-se claramente que lhe tinha sido dado de comer, tão generosamente como aos jovens da guarda que se moviam à sua volta, e tinha a certeza de que Heledd, por mais informal que fosse o seu alojamento ali, também tinha recebido comida e, uma vez entregue a si própria, sem ser observada, teria tido o bom senso de comer o que lhe fora dado. Ela não era tão tola que fosse, por despeito, deitar fora os seus trunfos quando tinha uma luta entre mãos.
Ele estava deitado, bastante confortavelmente, abrigado por um quebra-ventos formado uma barreira, numa depressão de erva grossa, embrulhado na sua própria capa. Lembrou-se de Turcaill lha atirar quando ela fora desenrolada do meio dos seus parcos haveres quando o cavalo fora descarregado. A volta dele, uma dúzia de jovens dinamarqueses ressonavam tranquilamente. Cadfael levantou-se, espreguiçou-se e sacudiu a areia do hábito. Ninguém fez qualquer movimento para o interceptar quando ele se dirigiu a um local mais elevado para olhar em volta. O acampamento fervilhava de actividade, as fogueiras já estavam acesas, e os poucos cavalos, incluindo o seu, já tinham bebido água e sido levados para níveis abrigados mais verdes na direcção da costa, onde havia pastagens melhores. Cadfael olhou naquela direcção, para a familiar solidez de Gales, e atravessou, sem quaisquer impedimentos, o acampamento, à procura de um local elevado de onde pudesse ver para além do perímetro da base de Otir. Se quisesse atacar aquela praça-forte por terra, Owain devia vir de sul, após uma longa marcha à volta da baía que penetrava muito para sul. Por mar, ele estaria em desvantagem, não tendo nada que se comparasse aos compridos barcos nórdicos. E Carnarvon parecia estar longe, muito longe daquele acampamento militar.
No centro do acampamento tinham sido montadas algumas tendas resistentes que alojavam os líderes da expedição. Cadfael passou muito perto delas e parou para observar os homens que se moviam por perto. Dois em particular tinham os inconfundíveis sinais de autoridade, embora, curiosamente, fossem muito diferentes, como se a autoridade de cada um deles tivesse um desígnio oposto. Um era um homem de cinquenta anos ou mais, entroncado, com o tronco como um barril e a estrutura de um tronco de uma árvore, e tão queimado pelo sol, pelos borrifos da água e pelo vento, que o castanho-avermelhado da sua pele era mais escuro do que as duas tranças cor de palha que emolduravam o seu rosto largo e o bigode comprido que caía abaixo do queixo. Tinha os braços nus até aos ombros, com excepção das braceletes de cabedal à volta dos antebraços e das grossas pulseiras de ouro nos pulsos.
- Otir! - disse a voz de Heledd suavemente ao ouvido de Cadfael. Ela tinha surgido atrás dele sem que ele desse por isso, com passos silenciosos na areia, e o tom da sua voz era cauteloso e preocupado. Ali ela tinha que enfrentar mais do que um jovem bem-humorado cuja atitude tolerante talvez nem sempre lhe fosse útil. Ali, Turcaill era um mero subordinado; aquele homem imponente à frente deles podia anular todas as outras autoridades. Ou seria possível que até mesmo o seu poder fosse controlado? Ali estava outra personagem a seu lado, com um olhar altivo e modos autoritários, pelo seu ar, um homem que não aceitaria com humildade ordens de qualquer outro homem.
- E o outro? - perguntou Cadfael sem virar a cabeça.
- Aquele é Cadwaladr. Não era mentira, ele trouxe estes bárbaros de cabelo comprido para Gales para arrancar os seus direitos à força ao senhor feudal Owain. Eu conheço-o. Já o vi antes. Ouvi o dinamarquês chamá-lo pelo nome.
O homem atraente era então Cadwaladr, reflectiu Cadfael, aprovando a boa aparência da forma, embora tivesse dúvidas a respeito da mente no seu interior não era tão alto como o irmão, mas era suficientemente alto para ter um porte gracioso, e movia-se com grande à vontade e poder ao lado do dinamarquês entroncado e musculoso. Era mais escuro que Owain, tinha o cabelo castanho avermelhado grosso aos caracóis em cima de uma cabeça bem proporcionada, e olhos escuros, altivos, por baixo de sobrancelhas que quase se encontravam e que eram de um castanho mais escuro que o cabelo. Estava bem barbeado, mas tinha adquirido alguma da roupa e dos adornos dos seus anfitriões de Dublin durante a sua estadia entre eles, pelo que não era imediatamente perceptível que estava ali o príncipe galês que trouxera toda aquela expedição através do mar para causar danos ao seu país. Ele tinha fama de ser impetuoso, precipitado, extremamente generoso para com os amigos, irreconciliavelmente rancoroso para os inimigos. O seu rosto espelhava tudo o que se dizia a seu respeito. Também não era difícil imaginar que Owain ainda pudesse amar o seu problemático irmão, depois de tantas e repetidas reconciliações.
- Uma bela figura de homem - disse Cadfael, observando atentamente a sua perigosa presença.
- Se ao menos o seu comportamento fosse igualmente belo - disse Heledd.
Os chefes tinham-se retirado para leste, na direcção do estreito, rodeados pelo círculo dos seus comandantes. Cadfael, por outro lado, continuou a andar para sul, para ter uma visão da aproximação por terra que Owain deveria levar acabo se tencionasse isolar os invasores na sua praia arenosa. Heledd colocou-se ao seu lado, não, supôs ele, porque precisasse do conforto da sua companhia ou de qualquer outra, mas porque ela também sentia curiosidade a respeito das circunstâncias do seu cativeiro e achava que duas cabeças talvez fizessem melhor sentido delas do que uma sozinha.
- Como tens passado? - perguntou Cadfael olhando-a atentamente enquanto ela caminhava a seu lado, e reparando na expressão composta, auto-suficiente e resoluta dos lábios e dos olhos. - Têm-te tratado bem neste lugar em que não há mulheres?
Ela franziu um lábio tolerante e sorriu.
- Não cometeram falta nenhuma. Se houver razão para isso, sou bem capaz de me defender mas, por enquanto, ainda não houve motivo. Tenho uma tenda para me abrigar, o rapaz traz-me comida e, se quiser mais alguma coisa, eles deixam-me ir buscá-la. Só se me aproximar demasiado da praia a leste é que me fazem voltar para trás. Já tentei. Eu penso que eles sabem que sei nadar.
- Não fizeste qualquer tentativa quando estávamos apenas a cem jardas da costa - disse Cadfael sem qualquer insinuação de aprovação ou censura.
- Não - concordou ela com um pequeno sorriso triste, sem acrescentar mais nada.
- E mesmo que conseguíssemos roubar os nossos cavalos de volta - reflectiu ele filosoficamente - não íamos conseguir sair deste recinto armado com eles.
- E o meu está coxo - concordou ela novamente, sorrindo o seu sorriso íntimo.
Até esse momento, ele ainda não tivera oportunidade de lhe perguntar como é que ela fora dar com aquele cavalo, roubando-o dos estábulos do rei quando o festim estava no seu auge, e antes de terem chegado as notícias de Bangor a alertar Owain para a ameaça oriunda da Irlanda. Perguntou-lhe:
- Como é que ficaste na posse deste cavalo a que chamas teu?
- Encontrei-o - respondeu simplesmente Heledd. - Selado, arreado, preso no meio das árvores, não muito longe da casa do portão. Era melhor do que eu alguma vez estaria à espera, considerei-o um bom augúrio e senti-me muito grata por não ter que vaguear ao longo da noite a pé. Mas eu tê-lo-ia feito. Quando fui encher o jarro ainda não tinha pensado nisso mas, quando estava no pátio, pensei, porque é que hei-de voltar para dentro? Já não havia nada em Llanelwy que eu pudesse guardar, e nada em Bangor ou Anglesey que eu quisesse. Mas tinha que haver algo para mim, algures no mundo. Porque é que eu não havia de ir à sua procura, já que ninguém o obteria para mim? E enquanto eu ali estava na sombra junto do muro, os guardas do portão não tinham reparado em mim, e esgueirei-me quando estavam de costas. Eu não tinha nada. Não levava nada. Teria ido a pé assim, e nunca me queixaria. Foi a minha decisão. Mas encontrei o cavalo no meio das árvores, selado, arreado e pronto para mim, uma dádiva de Deus que não podia recusar. Se agora o perdi – disse ela muito solenemente - pode ser que ele me tenha trazido onde eu deveria estar.
- Pode ser que seja uma etapa da tua viagem - disse Cadfael, preocupado -, mas certamente que não é o fim. Porque aqui estamos nós, reféns numa situação muito questionável, e eu acho que és uma rapariga que preza muito a sua liberdade. Ainda temos que nos libertar a nós próprios do cativeiro, ou aguardar aqui que Owain o faça por nós. - Ele estava a reflectir, admirado, sobre o que ela lhe dissera, e os seus pensamentos voltavam continuamente para tudo o que acontecera em Aber. - Então ali estava aquele animal escondidd no exterior do enclave, pronto para ser montado. E embora os céus o tivessem destinado a ti, houve outra pessoa que tinha em mente um desfecho muito diferente quando o selou e levou para o bosque. Agora parece-me que Bledri ap Rhys tencionava, de facto, fugir para junto do seu senhor para o informar sobre as forças do príncipe. No entanto, ele foi encontrado nu no seu quarto, de forma alguma preparado para montar. Tu colocaste-nos um enigma. Foi-se ele deitar à espera que o llys estivesse a dormir profundamente? Terá sido morto antes da hora favorável? E como é que ele tencionava sair do maenol, se todas as portas estavam guardadas?
Heledd estava a observá-lo atentamente por cima do ombro, com as sobrancelhas franzidas, só compreendendo parcialmente, mas adivinhando, muito viva e inteligentemente, o que ainda lhe era obscuro.
- Está a dizer-me que Bledri ap Rhys morreu? Assassinado, disse. Naquela mesma noite? Na noite em que deixei o llys?
- Não sabias? Foi depois de te teres ido embora, tal como as notícias que chegaram de Bangor. Ninguém te contou?
- Eu soube da vinda dos dinamarqueses, sim, ouvia-se essa notícia por todo o lado na manhã seguinte. Mas não ouvi nada sobre qualquer morte, nem uma palavra.
Não, não seriam notícias de importância crucial como era a invasão vinda da Irlanda, um tref 'não a espalharia a outro trefe um maenol a outro maenol, do mesmo modo que os mensageiros de Owain tinham levado até Carnarvon a notícia da reunião das tropas. Heledd estava a pensar nas notícias tardias, entristecida pela morte de qualquer homem, especialmente a de um que conhecera durante algum tempo, tinha-o até utilizado, à sua maneira, para atormentar um pai que procedera mal para com o afecto que ela lhe dedicava.
- Tenho muita pena - disse ela. - Ele era tão cheio de vida.
Que desperdício! Morto, acha, para impedir a sua fuga? Mais um guerreiro para Cadwaladr, e conhecendo os planos de príncipe para o receber? Então quem? Quem podia ter descoberto e cometido um acto tão terrível para o impedir?
- Isso não se sabe, e eu não me vou pôr com suposições que não servem para nada. Mas, mais cedo ou mais tarde, o príncipe irá descobrir. O homem era, em certo sentido, seu hóspede, ele não permitirá que a sua morte não seja vingada.
- Está a prever outra morte - disse Heledd, com amargura. - O que é que isso repara?
E para essa pergunta não havia qualquer resposta que não suscitasse mais perguntas, sondando todos os cantos obscuros do que estava certo e do que estava errado. Continuaram a caminhar juntos, até um ponto mais elevado da orla sul do acampamento militar, sem qualquer impedimento, embora fossem observados com um breve e curioso interesse por parte dos guerreiros dinamarqueses por cujas linhas passavam. Na pequena colina, sem árvores, pararam para olhar em volta.
Otir tinha optado por fazer a sua aproximação a terra não a partir da praia a norte do estreito, onde a costa de Anglesey se estendia numa extensão larga de dunas e buracos, nenhum deles seguro na maré alta, e terminava numa língua comprida de areia e seixos, mas sim a sul, onde a península de terra era mais elevada e mais seca, abrigava uma ancoragem mais funda e proporcionava um acampamento mais fácil de defender, bem como um acesso mais rápido ao mar em caso de necessidade. O facto de estar voltado mais directamente para a forte base de Carnarvon, onde as forças de Owain se reuniam, não tinha dissuadido o invasor. As praias do acampamento que escolhera estavam bem guarnecidas de homens, o ponto de aproximação por terra era suficientemente compacto para proporcionar uma vigorosa defesa se fosse assaltada, e estava separado da cidade por uma baía larga de água de maré. Vários rios desaguavam na baía, lembrou-se Cadfael, mas, na maré baixa, eles seriam meros veios sinuosos de prata numa traiçoeira extensão de areia onde um exército não se arriscaria de ânimo leve. Owain teria que fazer as suas forças dar a volta pelo sul para se aproximar do inimigo em terreno seguro. Com cerca de seis ou sete milhas de marcha entre ele e Owain, e tendo conquistado já uma base segura, sem dúvida que Cadwaladr se sentia quase invulnerável.
Excepto que as seis ou sete milhas pareciam ter encolhido para uma única milha durante a noite. Porque quando Cadfael chegou ao cimo da crista de arbustos e teve uma vista nítida para além da orla do acampamento para sul, com o mar aberto a cintilar com a luz da manhã à direita, e as águas pálidas pouco fundas e as areias nuas da baía à esquerda, ele viu ao longe, espalhado ao longo da extensão de dunas, campos aráveis e terras cobertas de arbustos, o brilho inconfundível de armas e o lampejo pálido de tendas coloridas, um muro oculto durante a noite. A luz matinal iluminava contornos de movimentos, como um trémulo vento passageiro a ondular um campo-de trigo, à medida que os homens andavam com um ar decidido de um lado para o outro, levando pausadamente a cabo a tarefa de fortificar a posição escolhida. Fora do alcance de lanças ou arcos, Owain tinha trazido o seu exército sob a cobertura da noite, fechando o topo da península e encurralando as forças dinamarquesas no seu interior. Não havia tempo a perder. Assim, frente a frente, como dois carneiros rivais a estudar-se um ao outro, uma ou outra das partes tinha que dar início sem demora à tentativa de resolução do problema em causa.
Foi Owain que abriu as negociações e, antes do fim da manhã, enquanto os chefes dinamarqueses ainda estavam a debater a aparição das suas hostes tão perto dos seus limites, e a perguntar a eles próprios que acção teria ele mente, agora que ali estava. Era pouco provável que estivessem preocupados com a sua própria segurança, uma vez que tinham acesso ao mar aberto se necessário, bem como barcos com os quais os galeses não conseguiam rivalizar e, sem dúvida, pensou Cadfael, discretamente afastado dos homens armados reunidos agora no outeiro, que estavam também a especular sobre a guarnição que ele teria deixado a defender Carnarvon, se valeria a pena efectuar um ataque por mar à cidade se o príncipe tentasse um ataque directo ali. Por enquanto, eles não estavam convencidos de que ele se arriscaria a levar a cabo uma acção de tão elevado custo. Ficaram a observar as linhas distantes e aguardaram. Ele que falasse primeiro. Se já estivesse decidido a receber o irmão com benevolência, como fizera várias vezes antes, porque é que haviam de levar a cabo qualquer acção que frustrasse uma resolução tão desejável?
Foi a meio da manhã, com o sol pálido alto, que dois cavaleiros foram vistos a emergir de uma ligeira depressão nos terrenos arenosos entre as duas hostes. Por enquanto eram apenas salpicos movediços, por vezes perdidos em concavidades, seguidamente surgindo na elevação seguinte, avançando na direcção das linhas dinamarquesas. Havia menos de meia dúzia de habitações em todo aquele troço de dunas e buracos, uma vez que havia pouco pasto utilizável e nenhuma terra arável, e sem dúvida que essas poucas habitações tinham sido evacuadas durante a noite. Aquelas duas figuras solitárias eram os únicos habitantes de uma terra de ninguém no meio de dois exércitos e, ao que parecia, estavam encarregados de dar início a negociações para evitar um confronto desnecessário que teria um elevado custo. Otir esperou que eles se aproximassem mais, e havia no seu rosto cautela e satisfação; Cadwaladr tinha o corpo rígido e o rosto tenso, mas previa já uma vitória. Via-se isso na forma arrogante como pisava o solo galês com os pés afastados, na altiva elevação da sua cabeça e nos olhos semicerrados que observavam os enviados do príncipe.
Ainda no limite do alcance de lanças ou setas, o segundo cavaleiro parou e aguardou, protegido por uma fina cintura de árvores. O outro continuou a cavalgar até se encontrar a uma distância em que poderia ser ouvido, e ali parou o cavalo, a olhar para o grupo que o observava, atento, do outeiro acima dele.
- Meus senhores - a sua voz chegou claramente até eles -, Owain Gwynedd envia o seu emissário para negociar convosco em seu nome. Um homem de paz, desarmado, acreditado pelo príncipe. Recebem-no?
- Deixem-no entrar - disse Otir. - Ele será honradamente recebido.
O mensageiro retirou-se para uma distância respeitosa. O segundo cavaleiro avançou na direcção da orla do acampamento. Quando se aproximou, tornou-se óbvio que era um homem pequeno, magro e jovem que cavalgava com determinação, mais do que com graciosidade, como se tivesse lidado sempre mais com cavalos de quinta do que com elegantes montadas de príncipes e embaixadores. Quando se aproximou mais, Cadfael que, do cimo das dunas, observava a cena com tanto interesse como qualquer outro, inspirou profundamente e soltou um enorme suspiro. O cavaleiro vestia o hábito negro dos beneditinos e mostrava o rosto jovem, composto e decidido do Irmão Mark. Era, na verdade, um homem de paz, um mensageiro de bispos e agora de príncipes.
Não havia qualquer dúvida de que ele próprio pedira para desempenhar aquela tarefa, nem que ele fizera ver ao príncipe o aspecto prático de utilizar alguém cujos motivos não suscitariam desconfiança, que não tinha nada a ganhar a não ser a sua própria liberdade, vida e paz de espírito, sem quaisquer contas a ajustar, sem qualquer perspectiva de lucro, sem qualquer senhor a apaziguar neste mundo, galês, dinamarquês ou qualquer outro. Um homem cuja humildade se podia mover como uma barreira encantada por entre os excessos de orgulho de outros homens.
O Irmão Mark chegou à orla do acampamento, e os guardas afastaram-se para,o deixar passar. Foi o jovem Turcaill, que tinha o dobro do tamanho de Mark, que avançou hospitaleiramente para lhe pegar nas rédeas quando ele desmontou e começou a subir energicamente a pequena colina onde Otir e Cadwaladr aguardavam para o cumprimentar.
Na tenda de Otir, apinhada até à entrada com os comandantes das suas forças e todos os homens que conseguiram pôr o pé no limiar, o Irmão Mark transmitiu o que viera dizer, em parte em seu nome, e em parte em nome de Owain Gwynedd. Sabendo instintivamente que aqueles piratas partiam do princípio de que tinham direitos a assistir aos conselhos dos seus líderes, ele elevou a voz de modo a esta chegar aos ouvintes que se apinhavam no exterior da tenda. Cadfael fez questão de conseguir colocar-se suficientemente perto para ouvir o que estava a acontecer, e ninguém levantou quaisquer objecções à sua presença. Ele era um refém ali, e tinha as suas preocupações, tal como eles tinham as deles. Todos os homens que tinham um interesse na expedição exerciam o seu livre direito de salvaguardar a sua posição.
- Meus senhores - disse o Irmão Mark, levando algum tempo a encontrar as palavras certas e a dar-lhes a ênfase apropriada. - Eu pedi para efectuar esta missão porque não estou envolvido em qualquer das partes da querela que vos trouxe a Gales. Não empunho armas e não tenho nada a ganhar, mas vós e todos os homens que aqui estão têm muito, demasiado, a perder se esta disputa terminar num derrame de sangue desnecessário. Se ouvi muitas palavras a atribuir a culpa a qualquer dos lados, aqui não usarei nenhuma. Direi apenas que deploro a inimizade e o ódio entre irmãos e entre povos, e que considero que todas as disputas deviam ser resolvidas sem derrame de sangue. E quanto ao príncipe de Gwynedd, Owain ap Griffith ap Cynan, direi o que ele me mandou dizer. Esta querela tem a ver apenas com dois homens, e todos os outros devem afastar-se de uma causa que não é sua. Owain Gwynedd pediu-me que dissesse que se Cadwaladr, o seu irmão, tiver qualquer queixa a fazer, ele que venha discuti-la cara a cara, com a segurança garantida na ida e no regresso.
- E eu devo aceitar a sua palavra, sem qualquer garantia? - perguntou Cadwaladr. Pelo brilho velado dos seus olhos, aquela abordagem não lhe desagradava.
- Sabeis muito bem que podeis fazê-lo - disse Mark simplesmente.
Sim, ele sabia. Todos os homens que ali estavam o sabiam. A Irlanda já tinha tido muitos contactos com Owain Gwynedd, e nem sempre sob a forma de disputa. Ele tinha familiares lá que conheciam o seu valor tão bem como este era conhecido em Gales. O rosto de Cadwaladr tinha um ar brilhante de contido prazer, como se pensasse que aquela primeira troca de palavras era mais do que encorajadora. Owain tinha ouvido o aviso, tinha visto a força do exército invasor e estava a preparar-se para ser conciliatório.
- O meu irmão é conhecido por ser um homem de palavra - admitiu ele graciosamente. - Ele não deve pensar que tenho medo de me encontrar com ele cara a cara., Certamente que irei.
- Espera um pouco! Espera um pouco! - Otir moveu o seu corpo enorme no banco em que estava sentado a ouvir. - Não tão depressa! Esta questão pode bem ter surgido entre dois homens, mas agora nós também estamos envolvidos nisto, convidados de acordo com condições que eu cumpro e que conto que cumpras, meu amigo. Se estás disposto a abandonar os teus bens confiando na palavra de qualquer homem, sem garantia, eu não estou disposto a abandonar os meus. Se saíres daqui para entrar no acampamento de Owain para te submeteres à persuasão de Owain ou à coerção de Owain, então eu exijo um refém que assegure o teu regresso em segurança, não uma promessa oca.
- Retenham-me - disse simplesmente o Irmão Mark. - Eu estou disposto a ficar como garantia de que Cadwaladr irá e regressará sem qualquer impedimento.
- Recebeu instruções nesse sentido? - perguntou Otir, algo desconfiado com a eficácia daquela troca de palavras.
- Não. Mas faço eu a proposta. É o seu direito, se receia a traição. O príncipe não lhe diria que não.
Otir observou a figura franzina à sua frente com um cauteloso grau de aprovação, mas permaneceu céptico.
- E o príncipe atribui-lhe, Irmão, um valor igual ao do seu próprio parente e inimigo? Eu penso que ele talvez se sinta tentado a agarrar um pássaro na mão e deixar o outro voar ou afogar-se.
- Eu sou, de certo modo, hóspede de Owain - disse Mark num tom firme - e, de certo modo, seu mensageiro. O valor que ele me atribui é o valor do seu mandado e da sua honra. Eu nunca valerei mais do que valho tal como me vê aqui.
Otir deu uma enorme gargalhada e bateu as palmas.
- Uma óptima resposta. Fique, então, Irmão, e seja bem-vindo! Já tem um irmão cá. Esteja à vontade no meu acampamento, tal como ele está, mas deixe-me avisá-lo de uma coisa, não se aproxime muito da orla. Os meus guardas têm as suas ordens. Aquilo que eu tomo eu guardo até ser resgatado por um preço justo. Quando o senhor feudal Cadwaladr regressar, poderá voltar para junto de Owain e dar-lhe a resposta que vocês dois considerarem apropriada.
Foi, pensou Cadfael, um aviso deliberado a Cadwaladr, bem como a Mark. Aqueles dois não confiavam muito um no outro. Se Otir exigia que Cadwaladr regressasse em paz, certamente que não era apenas por preocupação com a segurança de Cadwaladr, mas também por zelar pelos seus próprios interesses no negócio. O homem era o seu investimento, a ser guardado cuidadosamente, mas em que nunca, nunca, confiaria totalmente. Uma vez longe da vista, quem sabe o que um príncipe tão impetuoso faria das circunstâncias vantajosas que lhe fossem oferecidas?
Cadwaladr pôs-se de pé e espreguiçou o seu corpo admirável com uma suave, agradável segurança. Quaisquer reservas que os outros pudessem ter, ele interpretara a proposta do irmão como totalmente encorajadora. A ameaça à paz de Gwynedd tinha sido astuciosamente avaliada, e Owain estava pronto para ceder terreno, talvez apenas algumas polegadas, mas o suficiente para afastar o caos. E agora a única coisa que ele, Cadwaladr, tinha que fazer, era ir encontrar-se com ele, comportar-se correctamente aos olhos dos outros, como ele bem sabia fazer com elegância e, em privado, não ceder nem um pouco naquilo que exigira, e assim recuperaria tudo, todas as terras que lhe tinham sido tiradas, todos os homens que anteriormente o tinham seguido. Não podia haver outro desfecho, quando Owain falava num tom tão suave e razoável na primeira aproximação.
- Eu irei ter com o meu irmão - disse ele, com um sorriso sinistro - e o que trouxer comigo será um ganho teu, tanto como meu.
O Irmão Mark estava sentado com Cadfael numa concavidade das dunas que davam para o mar aberto, à luz límpida, quase sem sombras, da tarde. À sua frente, faixas de areia, esculpidas pelos ventos marítimos, rolavam em ondas de ouro estéril e erva áspera, persistente, até à beira da água. A uma profundidade segura estavam ancorados sete barcos de Otir, quatro deles de carga, atarracados e resistentes, com capacidade suficiente para receber um enorme saque se chegassem a arrancar o seu prémio a Gwynedd à força, e os outros três eram os maiores dos seus barcos compridos. Os barcos mais pequenos e mais velozes estavam todos à entrada da baía, onde havia ancoradouros seguros se necessário, e possibilidade de abicar confortavelmente na praia. Para além dos barcos, a oeste, estendia-se a água prateada, espelhando um céu azul sem nuvens, mas salpicado, em diversos lugares, com o ouro velado dos baixios.
- Eu sabia - disse Mark - que te ia encontrar aqui. Mas teria vindo, mesmo sem esse estímulo. Eu estava de volta ao ponto de encontro quando eles passaram por mim. Vi-vos prisioneiros, tu e a rapariga. O melhor que consegui fazer foi ir até Carnarvon contar a história a Owain. Ele tem o teu caso bem em mente. Mas que mais tem ele em mente com este encontro que pediu, não sei. Parece-me que não te tens dado muito mal com estes dinamarqueses. Acho-te muito satisfeito. Confesso que receei por Heledd.
- Não havia necessidade - disse Cadfael. - Era óbvio que tínhamos o nosso próprio valor para o príncipe, e ele não deixaria de pagar um resgate, de uma forma ou doutra. Eles não desperdiçam os seus reféns. Está-lhes prometida uma recompensa, e eles estão decididos a recebê-la com o menor custo possível, e não farão nada que provoque a ira de Gwynedd, a não ser que toda a expedição lhes corra mal. Eles não cometeram qualquer afronta contra Heledd.
- E ela disse-te o que a levou a fugir de nós em Aber, e como conseguiu sair do llysl E o cavalo que ela montou... pois eu vi-o a ser levado pelos piratas, e ele tinha uns bons arreios das cavalariças do príncipe... como é que ela arranjou o cavalo?
- Encontrou-o - disse Cadfael simplesmente -, selado, arreado e preso no meio das árvores no exterior das muralhas, quando saiu sorrateiramente pelo portão no momento em que os guardas estavam de costas. Ela diz que teria fugido a pé, se necessário fosse, mas ali estava o cavalo pronto, à espera dela. O que pensas disto? Porque eu tenho a certeza de que ela está a falar a verdade.
Mark reflectiu muito seriamente sobre a pergunta durante vários minutos. - Bledri ap Rhys? - arriscou ele, num tom de dúvida. - Será que ele tencionava realmente fugir e se certificou de que tinha um cavalo disponível quando os portões ainda estavam abertos, durante o dia? E outro homem, desconfiando da sua teimosa lealdade para com o seu senhor, impediu a sua partida? Mas não havia nada que indicasse que ele tencionava ir-se embora. Parecia que o homem estava satisfeito por ser hóspede de Owain e por ter a mão de Owain a protegê-lo.
- Só há um homem que sabe a verdade - disse Cadfael - e ele tem um bom motivo para não abrir a boca. Mas, apesar de tudo isso, a verdade virá ao de cima, pois o príncipe não esquecerá o assunto. Foi o que eu disse a Heledd, e ela respondeu: "Está a prever outra morte. Como é que isso repara alguma coisa?"
- Ela tem razão - concordou Mark num tom sombrio. - Ela tem mais senso comum do que a maior parte dos príncipes e de muitos padres. Eu ainda não a vi aqui no acampamento. Ela tem liberdade para andar à vontade, dentro dos limites, como tu?
- Podes vê-la neste preciso momento - disse Cadfael - se virares a cabeça e olhares ali para baixo, para a direita, onde a língua de areia se projecta para os baixios ao longe.
O Irmão Mark virou obedientemente a cabeça para onde Cadfael apontava. A língua de areia, com uma crista de erva grossa na ponta para mostrar que não estava completamente submersa nem mesmo na maré alta normal, projectava-se para os baixios à direita deles como um pulso magro e uma mão a esticar-se na direcção de um braço mais comprido que se estendia para sul a partir da costa de Anglesey. No seu ponto mais elevado, havia solo suficiente para suportar alguns arbustos, e ali uma pequena rocha emergia através da areia macia. Heledd caminhava sem pressa ao longo do pulso estendido em direcção àquela articulação rochosa, a certa altura chapinhando com água até ao tornozelo para lá chegar; e, uma vez lá, sentou-se na rocha, a olhar para o mar, para a invisível e desconhecida costa da Irlanda. Àquela distância ela parecia muito frágil, muito vulnerável, uma pequena figura magra e solitária. Poder-se-ia julgar que ela estava a distanciar-se o mais possível dos seus captores, numa atitude de defesa contra um destino ao qual não tinha forma de escapar fisicamente. Sozinha junto do mar, com o céu vazio por cima e um oceano vazio à sua frente, pelo menos a sua mente procurava uma forma de liberdade. O Irmão Cadfael achou o quadro enganadoramente cativante. Heledd tinha, astuciosamente, consciência da força, bem como da fraqueza, da sua situação e, mesmo que fosse uma pessoa temerosa, o que decididamente não era, sabia muito bem que não tinha nada a recear. Ela também sabia até onde podia ir na reivindicação da sua liberdade de movimentos. Ela não se teria aproximado da praia da baía sem ter sido interceptada. Eles sabiam que ela sabia nadar. Mas aquela praia não lhe proporcionava qualquer possibilidade de fuga. Ali ela podia passar a vau por entre os baixios que ninguém levantaria um dedo para a impedir. Era pouco provável que ela desatasse a nadar para a Irlanda, mesmo que não houvesse uma pequena frota de barcos irlandeses na água. Ela estava sentada imóvel, com os braços nus à volta dos joelhos, a olhar para oeste, mas com a cabeça tão atentamente erecta que, mesmo àquela distância, ela parecia estar à escuta. As gaivotas giravam e gritavam por cima dela. O mar era plácido, iluminado pelo sol, de momento complacente como um gato. E Heledd aguardava e escutava.
- Já alguma vez se viu alguém mais desanimado! - indagou-se o Irmão Mark, a meia voz. - Cadfael, eu tenho que falar com ela o mais depressa possível. Eu vi o noivo dela em Carnarvon. Ele veio apressadamente da ilha para se juntar a Owain, ela tem que saber que ele não renunciou a ela. Este Ieuan é um homem honesto, decente, e lutará pela sua noiva. Mesmo que Owain se sentisse tentado a deixar a rapariga entregue ao seu destino aqui (e isso é impossível!) Ieuan não o permitiria. Se ele tivesse que vir buscá-la sem quaisquer outras forças a não ser o seu pequeno séquito, tenho a certeza de que nunca desistiria. A igreja e o príncipe ofereceram-na a ele, e ele está desejoso de a ter.
- Eu acredito - disse Cadfael - que lhe arranjaram um bom homem, com todas as qualidades à excepção de uma. Um defeito fatal! Não foi ela que o escolheu.
- Ela podia arranjar muito pior. Quando o conhecer, irá gostar dele. E neste mundo - reflectiu Mark com tristeza -, as mulheres, tal como os homens, têm que tirar o maior partido possível daquilo que conseguirem arranjar.
- Com trinta anos ou mais - disse Cadfael - ela talvez tivesse disposta a contentar-se com isso. Mas com dezoito... duvido!
- Se ele vier em pé de guerra para a levar, aos dezoito anos isso talvez a influencie - observou Mark, mas o tom da sua voz não era de plena convicção.
Cadfael tinha virado a cabeça e estava a olhar para trás, na direcção da crista das dunas, onde um homem tinha acabado de subir ao outeiro e descia agora na direcção da praia. O passo largo, generoso, o movimento exuberante dos seus ombros largos, o porte alegre da cabeça loura, mais brilhante que o sol, atribuir-lhe-iam um nome mesmo a uma distância maior.
- Eu não apostaria nisso - disse Cadfael cautelosamente. - E, mesmo que assim seja, ele chega um pouco tarde, pois já veio alguém para a levar. Essa questão também está em dúvida.
O jovem Turcaill emergiu no campo de visão do Irmão Mark apenas quando se aproximou da língua de terra e, em vez de a percorrer toda para manter os pés secos, passou alegremente a vau através dos baixios para o local onde Heledd estava sentada. Ela continuava de costas para ele, mas os seus ouvidos estavam indubitavelmente atentos.
- Quem é aquele? - perguntou Mark, ficando tenso.
- Aquele é Turcaill, filho de Turcaill, e, se nos viste a ser levados para o barco, deves ter visto a cabeça dele a passar. Não é possível deixar de a ver, ela fica bem acima de nós.
- Aquele é o homem que a fez prisioneira? - Mark estava a olhar, de sobrancelha franzida, para a ilha minúscula de Heledd, onde ela continuava a fingir que não dera pelo aparecimento de um intruso na sua solidão.
- Foi tal como disseste. Ele veio em pé de guerra e levou-a.
- O que é que ele quer dela agora? - interrogou-se Mark, fitando-o.
- Nada de mal. Aqui ele está sujeito a uma autoridade mas, mesmo que não estivesse, não lhe faria mal. - O jovem tinha emergido, com uma pequena chuva de borrifos, ao lado da rocha de Heledd e deixou-se cair com graciosidade na areia aos pés dela. Ela não mostrou dar pela presença dele, a não ser que se considere como tal o facto de se ter afastado um pouco dele. O que quer que tivessem dito um ao outro não podia ser ouvido àquela distância e, estranhamente, Cadfael teve a certeza súbita de que não era a primeira vez que Heledd se sentava ali, nem a primeira vez que Turcaill enroscava as suas pernas confortavelmente ao lado dela.
- Eles estão a travar uma pequena guerra privada - disse ele placidamente.--Isso dá-lhes grande prazer. Ele adora fazê-la cuspir fogo, ela gosta de troçar dele.
Uma brincadeira de crianças, pensou ele, uma batalha animada que lhes faz passar o tempo de uma forma tanto mais agradável porque nenhum deles precisa de a levar a sério. Bem vistas as coisas, nós também não precisamos de a levar a sério.
Ocorreu-lhe mais tarde que ele estava a violar a suas próprias regras, e a apostar numa questão que ainda estava em dúvida.
Na quinta abandonada em que Owain tinha montado o seu quartel general, a uma milha da orla do acampamento de Otir, Cadwaladr deu a conhecer todas as suas razões de queixa, fazendo-o com alguma discrição porque falou na presença, não só do seu irmão, mas também de Hywel, contra quem ele sentia talvez uma mais azeda animosidade, e de meia dúzia de comandantes de Owain, homens que ele não desejava alienar se pudesse manter a sua simpatia. Mas ele foi incapaz de conter a sua indignação ao longo da longa história, e a própria reserva e tolerância com que o escutaram agravou o seu furioso rancor. Quando chegou ao fim, estava inflamado com as injustiças sofridas e encontrava-se disposto a prosseguir com o que estava implícito em todas as palavras, a ameaça de guerra aberta se as suas terras não lhe fossem devolvidas.
Owain ficou silencioso durante alguns minutos, a olhar para o irmão com uma expressão que Cadwaladr não conseguia decifrar. Por fim, moveu-se, sem pressa, e disse calmamente:
- Tu estás um pouco equivocado sobre a situação e esqueceste-te, muito convenientemente, de uma pequena questão que foi a morte de um homem, pela qual foi cobrado um preço. Trouxeste cá estes dinamarqueses de Dublin como forma de me pressionar. Eu sou pressionado tão facilmente, nem sequer por um irmão. Agora deixa-me mostrar-te a realidade. Agora a bota encontra-se no outro pé. Já não é uma questão de tu me dizeres: devolve-me todas as minhas terras, senão eu deixo estes bárbaros à solta em Gwynedd até o fazeres. Agora deixa-me dizer-te: Tu trouxeste estas hostes cá, agora livra-te delas, depois talvez... eu estou a dizer talvez... te seja devolvido o que já foi teu.
Não era de modo algum aquilo que Cadwaladr esperara, mas ele estava tão seguro do seu êxito junto daqueles aliados, que não se coibiu de fazer a interpretação que mais lhe convinha. Owain queria dizer mais e melhor do que estava disposto a pôr em palavras. Ele já se mostrara muitas vezes tolerante em relação às ofensas do irmão, e sê-lo-ia de novo. À sua maneira, ele já estava a falar numa aliança para desafiar e expulsar os invasores estrangeiros. Não podia ser outra coisa.
- Se estiveres disposto a receber-me e juntar-te a mim... - começara ele, num tom suave e respeitoso, tendo em conta o seu temperamento exaltado, mas Owain interrompeu-o impiedosamente.
- Eu não falei em tal intenção. Volto a dizer-te, livra-te deles, e só então eu considerarei restituir-te os teus direitos em Ceredigion. Eu disse sequer que te prometia alguma coisa? A possibilidade de alguma vez voltares a governar em Gales depende de ti, e não apenas no que diz respeito a esta questão. Não te prometo nada, nenhuma ajuda para enviares esses dinamarqueses de volta através do mar, nenhum tipo de pagamento, nenhuma trégua a não ser se ou quando eu decidir estabelecer tréguas com eles. Eles são um problema teu, não meu. Eu posso ter, e reservar, a minha própria desavença com eles por terem ousado invadir o meu domínio. Mas, neste momento, essas considerações ficam em suspenso. A tua desavença com eles, se os mandares embora agora, é problema teu.
O rosto de Cadwaladr tinha ficado vermelho de ira, e os seus olhos chamejavam com uma raiva incrédula.
- O que é que estás a exigir de mim? Como é que queres que eu lide com um exército daqueles? Sem ajuda? O que é que queres que eu faça?
- Não há nada mais simples - disse Owain, imperturbável. - Mantém o acordo que tinhas com eles. Paga-lhes o dinheiro que prometeste, ou acarreta com as consequências.
- E isso é tudo o que tens a dizer-me?
- É tudo o que tenho a dizer-te. Mas podes ter tempo para pensar no que mais poderá ser dito entre nós se mostrares que tens juízo. Passa cá a noite - disse Owain - ou volta quando quiseres. Mas não receberás mais nada de mim enquanto houver um dinamarquês não desejado em solo galês.
Ele estava tão claramente a mandá-lo embora, e Owain era implacavelmente o príncipe e não o irmão, que Cadwaladr se pôs mansamente de pé e saiu, chocado e silencioso. Mas não estava na sua natureza aceitar a possibilidade de todos os seus esforços não terem dado em nada. No acampamento compacto e bem planeado do irmão, ele foi recebido e reconhecido como hóspede e, ao mesmo tempo, como membro da família, inviolável e com direito à máxima cortesia por um lado, tratado com confortável familiaridade por outro. Esse trato só confirmou o seu optimismo natural e reforçou a sua arrogante autoconfiança. O que ele ouvira era a superfície que cobria uma realidade muito diferente. Muitos dos chefes de Õwain nutriam algum afecto por aquele príncipe incómodo, por mais duramente que esse afecto tivesse sido posto à prova no passado, e por mais abertamente que condenassem os excessos a que o seu temperamento altivo o impelia. Como era maior, reflectiu ele sentado à mesa de campanha de Owain e na tenda de Owain durante a noite; o amor que o irmão lhe dedicava. Quantas vezes ele o desprezara e tinha sido por isso castigado, tendo até caído em desgraça, mas apenas durante algum tempo? Quantas vezes Owain o tinha perdoado e recebido fraternalmente de volta ao seu inevitável afecto? Ele voltaria a fazê-lo. Porque é que desta vez havia de ser diferente?
De manhã, levantou-se com a certeza de que conseguiria manobrar o irmão tão seguramente como sempre fizera antes. Por mais monstruoso que fosse o delito, os laços de sangue que os uniam não podiam ser ignorados. Por causa desse sangue, uma vez lançados os dados, Owain faria melhor do que dissera e apoiaria incondicionalmente o irmão.
Tudo o que Cadwaladr tinha a fazer era lançar os dados que forçariam Owain a agir.
O resultado nunca estivera em dúvida. Uma vez profundamente enredado na sua teia, o irmão não o abandonaria. Um homem menos optimista teria visto aquelas maquinações como sendo uma aposta um tanto duvidosa. Cadwaladr via o resultado final como uma certeza.
Alguns dos que estavam no acampamento tinham sido homens seus antes de Hywel o ter expulso de Ceredigion. Calculou o seu número e sentiu uma falange atrás de si. Ele não estaria sem defensores. Mas, naquele momento, não usou nenhum deles. A meio da manhã mandou selar o cavalo e deixou o acampamento de Owain sem se despedir formalmente, como se regressasse para junto dos dinamarqueses para negociar com eles com a menor perda possível de gado, dinheiro ou prestígio. Muitos viram-no partir com uma simpatia meio relutante. Provavelmente, o próprio Owain também o fez, observando o cavaleiro solitário a afastar-se no campo aberto, até ter desaparecido numa das depressões do terreno, reaparecendo na encosta mais distante já transformado numa minúscula figura anónima sozinha na vastidão da areia soprada pelo vento. Aceitar censuras, suportar o fardo que lhe era imposto e regressar sem se queixar para fazer o melhor que podia com ele, era algo novo em Cadwaladr. Se ele mantivesse aquela virtude inusitada, ainda valeria bem a pena o irmão salvá-lo.
A reaparição de Cadwaladr, avistado antes do meio-dia das linhas de patrulha que cobriam a aproximação por terra ao acampamento de Otir, não suscitou qualquer surpresa. Tinha-lhe sido prometida liberdade para ir e voltar. O vigia, comandado pelo homem Torsten, o que tinha a reputação de conseguir rachar uma árvore a cinquenta passos, mandou comunicar a Otir que o seu aliado estava de regresso, sozinho e ileso, conforme tinha sido prometido. Ninguém estivera à espera de qualquer outro desfecho; queriam apenas saber que recepção ele tivera, e que condições trazia do príncipe de Gwynedd.
De um local mais elevado no interior das linhas, desde manhã cedo que Cadfael tinha estado atento a ver se chegava alguém e, ao saber da notícia que Cadwaladr tinha sido avistado a atravessar as dunas, Heledd veio, curiosa, ver por ela própria, acompanhada pelo Irmão Mark.
- Se o seu penacho estiver alto - disse Cadfael sensatamente -, quando ele se aproximar o suficiente para vermos bem, então é porque Owain cedeu, de algum modo. Ou então acredita que, com mais um pouco de persuasão, consegue fazê-lo ceder. Se há algum pecado mortal em que Cadwaladr nunca cairá, certamente que é o desânimo.
O cavaleiro solitário chegou sem pressa ao esparso véu de árvores no cimo de um outeiro, a alguma distância da orla do acampamento. Cadwaladr sabia calcular o alcance das setas e das lanças tão bem como a maior parte dos outros homens pois, durante alguns minutos, ficou ali parado, sentado em silêncio no cavalo. Essa demora provocou o primeiro murmúrio de leve surpresa que atravessou as fileiras dos guerreiros de Otir.
- O que se passa com ele? - perguntou Mark ao lado de Cadfael. - Ele tem liberdade para ir ou vir. Owain não deu qualquer passo para o reter, os seus dinamarqueses querem-no de volta. Mas parece-me que o penacho dele é suficientemente alto. Se ele não tiver motivo para se sentir envergonhado, pode muito bem vir transmitir as notícias que tiver.
Em vez disso, o cavaleiro soltou um grito que ecoou sobre as dunas até os que estavam à escuta na paliçada.
- Chamem Otir! Tenho uma mensagem de Gwynedd para ele- O que poderá ser? - perguntou Heledd, intrigada. - E lógico que ele tenha uma mensagem, por que outro motivo foi ele lá? Mas porque há-de transmitir a mensagem aos gritos, a cem passos?
Otir apareceu no cimo do acampamento com uma dúzia de chefes atrás de si, entre eles Turcaill. Da entrada da paliçada, ele respondeu com um grito:
- Aqui estou eu, Otir. Entra e trás a tua mensagem, sê bem-vindo.
Mas se ele, nesta altura, não se sentia apreensivo e cheio de dúvidas, pensou Cadfael, então ele deveria ser certamente o único homem ainda seguro do controlo daquela expedição. E, se se sentia, decidira de momento esquecer as dúvidas e aguardar que tudo fosse esclarecido.
- Esta é a mensagem que te trago de Gwynedd - disse Cadwa-ladr devagar, num tom de voz alto e claro, de modo a ser ouvido por todos os homens no interior das linhas dinamarquesas. -~ Volta para Dublin, com todo o teu exército e todos os teus barcos. Porque Owain e Cadwaladr fizeram as pazes, Cadwaladr vai reaver as suas terras e já não precisa de ti. Vai-te embora!
E, no mesmo instante, ele deu meia volta com o cavalo e desceu as dunas a galope, na direcção do acampamento galês. Um enorme uivo de raiva seguiu-o, e duas ou três setas, que a desconfiança levara a colocar no arco, caíram inofensivamente na areia atrás dele. Era impossível segui-lo, o seu cavalo era tão rápido como qualquer um que os dinamarqueses conseguissem arranjar, e partiu a toda a velocidade para junto do irmão, para cumprir o que se atrevera a dizer em voz alta. Eles viram-no desaparecer e reaparecer duas vezes durante a fuga, descendo e subindo com as ondas das dunas, até não ser mais do que um mero ponto ao longe.
- Isto será possível? - espantou-se o Irmão Mark, chocado e incrédulo. - Ele pode ter virado a casaca tão rápida e facilmente? Owain teria aprovado?
O clamor de ira e incredulidade que tinha sacudido os piratas dinamarqueses transformou-se, subitamente, num murmúrio de compreensão e aceitação mais contido e muito mais impressionante. Otir reuniu os chefes à sua volta, virando as costas ao acto de traição e, com um ar decidido, subiu as dunas até à sua tenda, para conferenciar sobre o que se seguiria. Não houve desperdício de tempo com acusações ou ameaças, não houve nada no seu rosto moreno largo que denunciasse o que se passava por detrás da testa de cobre. Otir encarava as coisas como elas eram, não como ele gostaria que fossem. Ele nunca hesitaria em enfrentar a realidade. - Se uma coisa é certa - disse Cadfael, ao vê-lo passar, enorme, reservado e perigoso - é que ali vai um homem que cumpre os seus acordos, bons ou maus, e exigirá o mesmo daqueles que estabelecem acordos com ele. Com ou sem Owain, Cadwaladr terá que ter muito cuidado, porque Otir vai arrancar-lhe o preço acordado, em bens ou em sangue.
Nenhuma premonição daquele género incomodava Cadwaladr na sua viagem de regresso ao acampamento do irmão. Quando a sentinela no exterior o mandou parar, ele parou o tempo suficiente para tranquilizar alegremente a sentinela:
- Deixa-me passar, porque eu sou tão galês como tu, e este é o meu lugar. Agora temos uma causa comum. Eu responderei perante o príncipe pelo que fiz.
Levaram-no à presença do príncipe, na verdade escoltaram-no até lá, sem saberem bem o que estava por detrás do seu regresso, e decididos a que ele confirmasse o seu objectivo a Owain antes de falar com qualquer outra pessoa. Havia bastantes antigos associados seus entre os soldados, e ele conseguia manter a devoção que os outros lhe dedicavam até muito depois de ter sido provado que não a merecia. Se ele tinha trazido os dinamarqueses para ali para ameaçar Gwynedd, era bem possível que tivesse conspirado com eles, de uma forma nova e subtil, para atingir os seus objectivos. E Cadwaladr chegou junto de Owain no meio deles, sorrindo desdenhosamente da sua desconfiança implícita, deixando-se convencer, como sempre, pelos argumentos da sua própria mente optimista, e seguro do seu poder.
Owain afastou-se da secção da paliçada que os seus engenheiros estavam a reforçar e olhou, de sobrolho franzido, para o irmão, regressado tão inesperadamente. A sua expressão era de surpresa e espanto, até mesmo de preocupação com a possibilidade de que alguma coisa inesperada tivesse impedido a liberdade de movimentos de Cadwaladr.
- Já estás de volta? O que é que se passa?
- Caí em mim - disse Cadwaladr, num tom confiante - e voltei para onde pertenço. Eu sou tão galês como tu, e igualmente real.
- Até que enfim que te lembras disso - disse Owain secamente. - E agora que aqui estás, quais são as tuas intenções?
- Eu tenciono libertar este país de irlandeses e dinamarqueses, como julgo que é também teu desejo. Eu sou teu irmão. As tuas forças e as minhas são uma única força, têm que ser uma única força. Nós temos os mesmos interesses, as mesmas necessidades, os mesmos objectivos...
O sobrolho franzido de Owain acentuara-se, e o seu rosto era como uma nuvem de trovoada, ainda silenciosa, mas ameaçadora.
- Fala claramente - disse ele. - Eu não estou com disposição para rodeios. O que é que fizeste?
- Desafiei Otir e todos os seus dinamarqueses! - Cadwaladr estava orgulhoso do seu gesto e tinha a certeza de que conseguiria torná-lo aceitável e fundir num só os poderes que a iriam fazer cumprir. - Mandei-os embarcar e voltar para Dublin, pois eu e tu estamos decididos a expulsá-los do nosso solo, e o melhor que eles têm a fazer é ir-se embora e evitar um recontro sangrento. Foi um erro da minha parte trazê-los para cá. Se quiseres, sim, eu arrependo-me. Entre nós dois não há necessidade de uma briga tão feroz. Agora renunciei aos seus serviços pagos e rejeitei-os. Livrar-nos-emos deles, até ao último homem. Se estivermos unidos, eles não se atreverão a enfrentar-nos...
Até então, ele tinha falado numa torrente de palavras cada vez mais rápida, como estivesse desesperado por se convencer a si próprio, mais do que a Owain. Quase sem se dar conta, as dúvidas tinham-se instalado na sua mente, suscitadas pela gélida imobilidade do rosto do irmão e pela expressão sombriamente silenciosa da sua boca debaixo da testa franzida. O fluxo de eloquência enfraqueceu e vacilou, e embora Cadwaladr tivesse respirado fundo e retomasse o fio, já não conseguiu recuperar a convicção anterior.
- Eu ainda tenho partidários, eu farei a minha parte. Não podemos falhar, eles não têm uma base de operações firme, ficarão encurralados pelas suas próprias defesas e serão varridos para o mar que os trouxe até cá.
Desta vez, ele acabou por se calar. Fez-se até silêncio, muito eloquente para vários homens de Owain que tinham parado de trabalhar nas defesas para escutar com um interesse de homem livre, e sem dispersar. Não havia galês nenhum que não dissesse claramente o que pensava, nem que fosse ao seu príncipe.
- O que será - perguntou Owain a si próprio em voz alta, para o céu acima dele e a terra abaixo de si - que leva este homem a pensar que as minhas palavras não querem dizer o que parecem querer dizer aos ouvidos de homens sãos? Eu não disse que não vais conseguir nada de mim? Que não vou gastar uma única moeda, nem arriscar a vida de um só homem? O mal que tu fizeste, meu irmão, és tu que tens que o desfazer. Foi o que eu disse e mantenho.
- E eu já fiz muita coisa! - explodiu Cadwaladr, corando até à raiz dos cabelos. - Se fizeres a tua parte com o mesmo empenho, o assunto fica resolvido. E quem irá arriscar a vida? Eles não se atreverão a travar uma batalha. Retirar-se-ão enquanto é tempo.
- E tu acreditas que eu iria participar numa traição dessas? Tu fizeste um acordo com esses piratas, agora quebra-lo com a leveza da lanugem do cardo soprada pelo vento e estás à espera que eu te elogie por isso? Se a tua palavra é assim tão leve, pelo menos deixa-me sobrecarregá-la com o meu desagrado. Se fosse só por isso - disse Owain, subitamente furioso -, eu não mexeria um dedo para te salvar das tuas loucuras. Mas há pior. Quem irá arriscar a vida, dizes tu! Já te esqueceste, ou nunca te deste ao trabalho de compreender, que os teus dinamarqueses têm em seu poder dois frades beneditinos, um dos quais que se ofereceu como refém da tua boa fé, que agora já todos viram que não vale absolutamente nada, quanto mais a liberdade e a vida de um homem bom. Além disso, eles têm também uma rapariga que fazia parte da minha comitiva e estava ao meu cuidado, mesmo que ela tivesse decidido aventurar-se a deixá-lo e partir sozinha. Eu sou responsável por todos três. E tu abandonaste-os ao destino que Otir pode decidir dar aos seus reféns, agora que lhe cuspiste, o enganaste e colocaste em perigo à custa da tua própria honra. Foi isso o que tu fizeste! Eu não vou desfazer nada disso, e tu podes fazer os acordos que puderes fazer com os aliados que traíste e abandonaste.
E sem fazer uma pausa para ouvir qualquer resposta, mesmo que o seu irmão tivesse recuperado o fôlego suficiente para falar, Owain virou-lhe as costas e ordenou ao homem mais próximo:
- Manda selar o meu cavalo! Já, e rápido!
Cadwaladr caiu em si com uma violenta convulsão e correu atrás dele, pegando-lhe no braço.
- Que é que vais fazer? Estás louco? Agora já não tens possibilidade de escolha, estás tão envolvido nisto como eu. Não podes abandonar-me!
Owain libertou-se, empurrando o irmão para longe, num gesto de breve e amarga aversão.
- Deixa-me! Fica ou vai-te embora, faz o que quiseres, mas mantém-te longe da minha vista até eu conseguir suportar olhar para ti ou tocar-te. Tu não falaste em meu nome. Se o fizeste, mentiste. Se eles tocaram num só cabelo do jovem diácono, tu responderás por isso. Se a rapariga foi insultada ou magoada, pagarás o preço. Vai, esconde-te, pensa no teu próprio problema, pois não és meu irmão nem meu aliado; tens que suportar as consequências das tuas próprias loucuras até ao fim.
Ainda não passava duas horas do meio-dia quando outro cavaleiro solitário foi avistado do acampamento nas dunas, cavalgando velozmente e dirigindo-se para o perímetro dinamarquês. Um homem sozinho, com um objectivo manifesto e não parando cautelosamente fora do alcance das armas, mas avançando com um ar decidido na direcção dos sentinelas, que ficaram a vê-lo aproximar-se de olhos semicerrados para avaliar o seu porte e os seus aprestos, tentando adivinhar as suas intenções. Ele não usava cota de malha nem trazia armas visíveis.
- Não há mal nenhum nele - disse Torsten. - Pelo seu porte, ele dir-nos-á o que pretende. Vão dizer a Otir que temos outro visitante.
O portador da mensagem foi Turcaill, que a transmitiu tal como a interpretou.
- Pelo cavalo e pelos arreios, é um homem de boa posição social. Mais louro que eu, podia ser um dos nossos, e bastante grande. Mais ou menos do meu tamanho, julgo. Pode ser até mais alto que eu. Nesta altura, ele já estará próximo. Trago-o até cá?
Otir reflectiu apenas por um momento.
- Sim, ele que venha. Um homem que vem ter directamente comigo de homem para homem merece ser ouvido.
Turcaill voltou alegremente para o posto da sentinela a tempo de ver o cavaleiro parar junto do portão e desmontar de mãos vazias para falar.
- Vão dizer a Otir e aos seus pares que Owain Griffith ap Cynan, príncipe de Gwynedd, pede para falar com ele.
Desde o desafio de Cadwaladr que tinha havido conversações muito sérias e muito calmas no círculo interior dos chefes de Otir. Não eram homens que aceitassem uma traição daquelas e tentassem sair mansamente da armadilha em que ela os tinha deixado. Mas o que quer que tivessem discutido e contemplado em retaliação ficou subitamente suspenso quanto Turcaill, sorrindo, satisfeito, com aquela espantosa visita, entrou e anunciou:
- Meus senhores, aqui à porta está Owain Gwynedd na sua pessoa real, a pedir para falar convosco.
Otir teve um sentido protocolar que não precisou de instigação. O espanto que aquela chegada lhe provocou foi posto de parte num instante, e ele levantou-se, dirigiu-se à porta aberta da tenda e levou o visitante pela sua própria mão até à mesa desmontável à volta da qual estavam reunidos os seus comandantes.
- Senhor meu príncipe, seja o que for que tendes a dizer, sois muito bem-vindo. Conhecemos a vossa linhagem e a vossa reputação, os vossos antepassados por parte da vossa avó são familiares próximos dos nossos. Ainda que tenhamos as nossas discordâncias e já tenhamos lutado em lados opostos e possamos voltar a fazê-lo, nada impede que nos encontremos e conversemos francamente.
- Eu não espero nada menos que isso - disse Owain. - Não tenho qualquer motivo para vos estimar, uma vez que estais aqui no meu solo sem terdes sido convidado e sem qualquer propósito bom em relação a mim. Eu não vim trocar saudações convosco, nem fazer queixas, mas sim esclarecer o que poderá ser um mal-entendido entre nós.
- Será que há algum mal-entendido? - perguntou Otir com um bom humor irónico. - Eu achava que a nossa situação era bastante clara, pois aqui estou eu, e aqui estais vós a reconhecer que eu não tenho o direito de aqui estar.
- Isso, para já - disse Owain -, podemos deixar para ser resolvido noutra altura. O que vos poderá ter iludido foi a visita que o meu irmão Cadwaladr vos fez esta manhã.
- Ah, isso! - disse Otir, sorrindo. - Então ele está de volta ao vosso acampamento?
- Está. Ele está de volta, e eu estou aqui para vos dizer... podia até dizer, para vos avisar... que ele não falou em meu nome. Eu desconhecia as suas intenções. Pensei que ele tivesse voltado para junto de vós tal como vos deixou, ainda vosso aliado, ainda hostil em relação a mim, ainda um homem de palavra ligado a vós. Não foi meu desejo nem com a minha autorização que ele vos abandonou, e, ao abandonar-vos, renunciou ao valor sagrado da sua palavra. Eu não fiz as pazes com ele, nem farei guerra com ele contra vós. Ele não recuperou as terras que lhe tirei, por uma boa razão. Ele tem que cumprir o acordo que fez convosco o melhor que puder.
Eles estavam a olhar atentamente para ele, e uns para os outros, em redor da mesa, à espera de ser esclarecidos e coibindo-se de fazer qualquer juízo até as dúvidas se terem dissipado.
- Nesse caso, estou com dificuldade em compreender o objectivo desta visita - disse Otir educadamente -, por mais prazer que a companhia de Owain Gwynedd me proporcione.
- É muito simples - disse Owain. - Eu estou aqui para reclamar os três reféns que detêm no vosso acampamento. Um deles, o jovem diácono Mark, permaneceu voluntariamente para garantir o regresso em segurança do meu irmão, que agora tornou esse regresso impossível. Os outros dois, a rapariga Heledd, filha de um cónego de Santo Asaph, e o Irmão Beneditino Cadfael, da Abadia de Shrewsbury, foram capturados pelo jovem guerreiro que me conduziu até vós, quando fez uma incursão em Menai, à procura de provisões. Eu vim certificar-me de que nada de mal deve acontecer a nenhum deles devido ao facto de Cadwaladr ter renunciado ao seu acordo. Eles não têm nada a ver com ele. Todos os três estão sob minha protecção. Eu estou aqui para oferecer um resgate justo por eles, independentemente do que possa vir a acontecer entre o meu povo e o vosso. Eu assumo honrosamente as minhas responsabilidades. As de Cadwaladr não têm nada a ver comigo. Exijam dele o que ele vos deve, não de qualquer destes três seres inocentes.
Otir não disse abertamente: "É o que tenciono fazer!", mas esboçou um pequeno sorriso que falava claramente por ele.
- A vossa proposta poderá interessar-me - disse ele - e não duvido que, entre nós, possamos acordar um resgate justo. Mas, por enquanto, tereis que me desculpar por eu decidir manter todos os meus bens. Quando tiver reflectido sobre tudo isto, então sabereis se estou disposto a vender-vos os vossos hóspedes de volta, e por que preço.
- Então, pelo menos - disse Owain - prometei-me que eles regressarão ilesos quando eu os recuperar... quer seja através da compra, quer da captura.
- Eu não estrago aquilo que posso desejar vender - concordou Otir. - E quando eu exigir o que me é devido, será ao devedor que o exigirei. Isso eu prometo.
- E eu aceito a vossa palavra - disse Owain. - Mandai-me uma mensagem quando quiserdes.
- E não há mais nada a ser dito entre nós?
- Por enquanto - disse Owain -, não há mais nada. Vós haveis reservado as vossas escolhas. Eu reservo igualmente as minhas.
Cadfael saiu do lugar onde estivera imóvel e em silêncio, no abrigo da tenda, e seguiu ao longo das fileiras mudas de dinamarqueses que se afastaram, abrindo caminho para o príncipe de Gwynedd se dirigir ao cavalo que o aguardava. Owain montou e cavalgou, agora sem pressa, mais seguro do seu inimigo do que alguma vez estivera do seu irmão, desde a juventude. Depois de a cabeça loura, descoberta ao sol, ter desaparecido duas vezes de vista e voltado a aparecer, e de se ter transformado num ponto distante de ouro pálido ao longe, Cadfael voltou para trás ao longo das dunas e foi à procura de Heledd e Mark. Eles deviam estar juntos. Mark tinha assumido, um tanto timidamente, o dever de proteger a privacidade da rapariga. Ela podia mandá-lo embora quando lhe apetecesse, quando não o quisesse; quando ela o quisesse, ele estaria por perto. Cadfael achara estranhamente comovente o facto de Heledd suportar esses cuidados tímidos mas resolutos, pois ela usava Mark como uma irmã mais velha faria, mostrando-se atenciosa para com a sua dignidade e tendo o cuidado de nunca lançar sobre ele as perigosas armas que tinha à sua disposição ao lidar com outros homens, e por vezes usava para seu próprio prazer, não menos do que em magoada retaliação contra o pai. Porque não havia qualquer dúvida de que Heledd, com o vestido rasgado na manga e amarrotado por dormir na areia em concavidades orladas de ervas, o cabelo solto à volta dos ombros numa juba escura a que o sol conferia laivos azuis, e os pés geralmente descalços na areia quente e nos baixios frescos ao longo da costa, estava mais próxima da beleza pura do que alguma vez estivera e, se quisesse, podia ter semeado o caos na vida da maior parte dos jovens que ali estavam. Também não era totalmente para sua própria defesa que ela se deslocava tão discretamente no acampamento, suprimindo a sua radiosidade e evitando o contacto com os seus captores, com excepção do jovem que a servia e de Turcaill, a cuja companhia brincalhona ela se acostumara, e cujas farpas ela se comprazia em retribuir.
Naqueles dias de cativeiro, havia em Heledd uma frescura, um fulgor de Verão que era mais do que o brilho do sol no seu rosto. Parecia que agora que ela era prisioneira, por mais suave que fosse o seu cativeiro dentro dos seus rígidos limites, e tinha aceite o facto de não estar indefesa, agora que toda a acção e todas as decisões lhe eram negadas, ela deixara de sentir ansiedade e contentava-se em viver o dia a dia, sem se preocupar com o dia seguinte. Mais satisfeita do que alguma vez estivera, pensou Cadfael, desde que o Bispo Gilbert chegara a Llanelwy e começara a reformar o seu clero enquanto a mãe dela se encontrava no seu leito de morte. Ela podia até ter sofrido o intenso azedume de perguntar a si própria se o pai não estaria ansioso pela morte que lhe garantiria o seu cargo. Naquele momento, não havia qualquer nuvem desse tipo a pairar sobre ela, ela irradiava um calor que parecia não ter uma única preocupação no mundo. Ela resignara-se a aceitar e sobreviver, até mesmo retirar prazer daquilo que não podia influenciar.
Quando Cadfael os encontrou, eles estavam no meio das árvores na crista das dunas. Eles tinham visto Owain chegar, e tinham subido até ali para o ver partir. Heledd ainda estava a olhar, de olhos muito abertos e em silêncio, depois de a cabeça loura do príncipe ter desaparecido ao longe. Mark estava um pouco afastado dela, evitando tocar-lhe. Ela tratava-o como uma irmã, mas Cadfael perguntava-se por vezes se Mark não se sentiria em perigo, mantendo sempre, por isso, um espaço entre eles. Quem poderia garantir que os seus sentimentos permaneceriam sempre fraternais? A preocupação que ele sentia por ela, assim suspensa entre um passado incerto e um futuro ainda mais questionável, era uma perigosa armadilha.
- Owain não tolera a situação - anunciou Cadfael calmamente. - Cadwaladr mentiu, Owain esclareceu o assunto. O irmão tem que resolver sozinho a sua salvação ou condenação.
- Como é que sabes tanto? - perguntou Mark tranquilamente.
- Eu tive o cuidado de estar perto. Achas que um bom galês ia negligenciar os seus interesses no que diz respeito às maquinações dos seus superiores?
- Eu achava que um bom galês nunca reconhecia superiores - disse Mark, sorrindo. - Tinhas o ouvido encostado à tenda?
- Já que queres saber, foi isso mesmo. Owain propôs comprar o nosso resgate a Otir. E Otir, embora não tenha concordado imediatamente, prometeu manter-nos sãos e salvos e com alguma liberdade até tomar uma decisão. Não temos nada de pior a recear.
- Eu não estava com medo - disse Heledd, ainda a olhar pensativamente para sul. - Então o que é que vai acontecer a seguir, se Owain deixou o irmão entregue à sua sorte?
- Ficamos à espera, aqui onde estamos, até Otir decidir aceitar o resgate, ou Cadwaladr conseguir arranjar o dinheiro e o gado que prometeu aos dinamarqueses.
- E se Otir não puder esperar e decidir arrancar o seu preço à força a Gwynedd? - interrogou-se Mark.
- Ele não fará isso, a não ser que algum tolo provoque alguma morte e o obrigue a agir. Eu exigirei o pagamento, disse ele, ao devedor. E ele estava a ser sincero, não apenas por interesse próprio, mas por um profundo ressentimento contra Cadwaladr, que o enganou. Ele não vai obrigar Owain e todas as suas forças a combater se conseguir, por qualquer meio, evitá-lo e, mesmo assim, obter os seus lucros. E ele ainda é tão capaz de fazer os seus próprios planos como qualquer outro homem e, tanto quanto eu consiga ver, melhor do que a maioria. Não são apenas Owain e o irmão que dominam a situação, Otir pode muito bem ter um ou dois trunfos na manga.
- Eu não quero mortes - disse Heledd peremptoriamente, como se tivesse o direito de dar ordens a todos os homens armados. - Nem para nós, nem para eles. Eu prefiro continuar aqui como prisioneira a provocar a morte de um homem. E, no entanto - disse ela com tristeza -, sei que não podemos continuar neste impasse, ele tem que terminar de alguma forma.
Terminaria, reflectiu Cadfael, a não ser que algum desastre imprevisto interviesse, na aceitação, por parte de Otir, do resgate que Owain pagaria pelos seus prisioneiros, muito provavelmente depois de Otir ter lidado, da forma que considerasse apropriada, com Cadwaladr. Esse acerto de contas estaria em primeiro lugar na sua mente e teria que ser resolvido primeiro. Ele já não tinha qualquer obrigação para com o seu antigo aliado, esse acordo tinha sido quebrado de uma forma definitiva. Uma vez paga a dívida, Cadwaladr poderia ir para o exílio ou podia ajoelhar-se aos pés do irmão a suplicar a devolução das suas terras. Otir não lhe devia nada. E uma vez que tinha que pagar aos seus seguidores, não iria recusar o lucro adicional do resgate pago por Owain. Heledd ficaria livre e voltaria a estar sobre a protecção de Owain. Entre as forças de Owain havia agora um homem à espera de a reclamar quando ela regressasse. Um homem bom, dissera Mark, de ar apresentável, com uma boa reputação, um homem de posses, nas boas graças do príncipe. Ela podia sair-se muito pior.
- Não há qualquer razão no mundo - disse Mark - para que não acabes por ter uma vida muito boa. Esse Ieuan que nunca viste está totalmente disposto a receber-te e a amar-te, e ele merece a tua aceitação.
- Eu acredito em ti - disse Heledd, num tom que, para ela, era quase submisso. Mas os seus olhos estavam fixos no horizonte sobre o mar, onde a luz do ar e a luz da água se fundiam numa neblina cintilante, indissolúvel e misteriosa, e tudo o que se encontrava para além dela estava escondido na luminosidade. E Cadfael perguntou subitamente a si próprio se não estaria, afinal, a imaginar a convicção na voz do Irmão Mark e o tom de graciosa resignação feminina na de Heledd.
Turcaill saiu da reunião na tenda de Otir e desceu em direcção à praia da baía abrigada, onde o seu pequeno e ágil barco-dragão se encontrava perto da areia, com os lados reflectidos na água parada dos baixios. O ancoradouro na foz do Menai estava separado das praias largas da baía a sul por uma longa língua de seixos, para além da qual a água dos dois rios e dos seus afluentes serpenteava até ao estreito e ao mar aberto, num percurso sinuoso através da imensidão da areia. Turcaill ficou a olhar para a enorme extensão de terra e água, para a enorme baía que se estendia mais de duas milhas para sul, para o ouro pálido dos bancos de areia e da sinuosa água prateada, e para a costa verde de Arfon mais ao longe, estendendo-se para as colinas distantes. A maré estava a encher, mas só daí a duas horas ou mais é que atingiria a preia-mar e cobriria tudo excepto uma cintura estreita de salgadiço que orlava a areia da praia. À meia noite ela teria começado de novo a baixar, mas estaria suficientemente cheia para fazer flutuar o pequeno barco com o seu calado pouco fundo para mais perto da praia. Na areia a seguir ao salgadiço haveria, se tivessem sorte, arbustos suficientes para dar cobertura a alguns homens hábeis e silenciosos que se deslocassem para terra. Também não iriam muito longe. O acampamento de Owain devia abarcar a cintura da península. Até mesmo no seu ponto mais estreito devia ter uma milha de largura, mas certamente que haveria sentinelas em ambas as praias. Em menor número e menos vigilantes, talvez, na praia da baía, uma vez que era pouco provável que ocorresse algum ataque por mar por esse lado. Os navios maiores de Otir não tentariam passar por entre os baixios. Os galeses estariam a concentrar a sua vigilância no mar a oeste.
Turcaill estava a assobiar para si próprio, muito baixinho e com um ar satisfeito, enquanto observava o céu a escurecer com o crepúsculo. Ainda faltavam duas horas para eles poderem partir e, com o entardecer, as nuvens tinham-se reunido suavemente nos céus, formando um véu cinzento que não ameaçava chuva mas que prometia protegê-los de uma noite demasiado clara. Daquele ancoradouro exterior ele teria que fazer um desvio à volta da barreira de seixos até à foz do rio, para chegar ao canal, mas isso adicionaria apenas cerca de um quarto de hora à viagem. Muito antes da meia-noite, decidiu rapidamente, podia-mos embarcar.
Ele ainda estava a assobiar alegremente quando deu meia volta para regressar para o centro do acampamento, a fim de reflectir sobre os pormenores da sua expedição. E ali à sua frente estava Heledd, a descer o outeiro com o seu passo longo e elástico, e a juba escura do seu cabelo a balouçar à volta dos ombros na brisa que se levantara ao cair da tarde, trazendo as nuvens que serviriam de cobertura. Todos os encontros entre eles eram, de certo modo, um confronto que provocava em ambos uma pulsação mais acelerada, curiosamente agradável.
- O que é que estás a fazer aqui? - perguntou ele, parando de assobiar. - Estavas a pensar em fugir através da areia? - Ele estava a troçar dela, como sempre.
- Segui-te - disse ela simplesmente. - Desde a tenda de Otir, ao longo deste caminho, e a olhar para o céu, para a maré e para aquele teu barco que parece uma cobra. Fiquei curiosa.
- Foi a primeira vez que ficaste curiosa a meu respeito ou a respeito de qualquer coisa que eu fizesse - disse ele alegremente. - Porquê agora?
- Porque subitamente te vi empenhado numa busca, e não posso deixar de perguntar a mim própria que malfeitorias estarás prestes a cometer.
- Não há malfeitoria nenhuma - disse Turcaill. - Porque é que havia de haver? - Ele estava a observá-la, enquanto faziam juntos o percurso de volta, com uma atenção maior do que a que dava às habituais escaramuças entre eles, pois pareceu-lhe que ela estava a sondá-lo quase a sério, até mesmo com alguma ansiedade. Ali, no seu cativeiro, entre dois acampamentos armados, uma mulher sozinha podia muito bem farejar a maldade, do tipo que mata, em todos os movimentos, e temer pelo seu povo.
- Eu não sou tola - disse Heledd impacientemente. - Sei tão bem como tu que Otir não vai permitir que a traição de Cadwaladr fique sem vingança, nem que o preço acordado lhe escape por entre os dedos. Ele não é homem para isso! Durante todo o dia de hoje, ele e os seus chefes estiveram a planear o lance seguinte, e agora, subitamente, tu apareces resplandecente com a alegria que vocês, homens tolos, sentem quando se atiram de cabeça para uma briga, e estás a querer dizer-me que não há nada no ar. Malfeitoria nenhuma.
- Nada com que te devas preocupar - garantiu-lhe ele. - Otir não tem nada contra Owain nem contra qualquer soldado de Owain; eles mandaram Cadwaladr resolver sozinho os seus problemas e pagar as suas dívidas, porque é que havíamos de causar problemas maiores? Se o preço prometido for pago, fazemo-nos ao mar e não vos incomodaremos mais.
- Façam boa viagem! - disse Heledd secamente. - Mas porque é que eu hei-de confiar que tu e os teus companheiros façam as coisas bem? Basta haver um ferimento ou uma morte por acaso, e haverá guerra e uma grande carnificina.
- E uma vez que tens tanta certeza de que eu estou envolvido nessa malfeitoria, tu prevês...
- Tu és o seu instrumento - disse ela com veemência.
- Então não confias que eu a possa levar a bom termo? - estava a rir-se novamente dela, mas com uma delicadeza quase apreensiva.
- Confio em ti menos que em qualquer outro - disse ela com uma certeza mordaz. - Eu conheço-te, tu gostas do perigo, não há nada mais idiota, mas tu desafiá-lo-ias e destruirias tudo numa guerra sangrenta contra todos nós.
- E tu, sendo uma boa galesa - disse Turcaill sorrindo ironicamente -, temes pelo teu Gwynedd e por todos os homens do acampamento de Owain, a pouco mais de uma milha de nós.
- Eu tenho um noivo entre eles - recordou-lhe ela vivamente, cerrando os dentes.
- É verdade que tens. Não me esquecerei do teu noivo - prometeu Turcaill, sorrindo. - Cada passo que der, pensarei no teu Ieuan ab Ifor, e impedirei a minha mão de desferir qualquer golpe que possa pô-lo em perigo no campo de batalha. Nenhuma outra consideração poderá moderar tanto a minha impetuosidade como a necessidade de te ver casada com um bom, sólido uchelwr de Anglesey. Isso satisfaz-te?
Ela tinha-se virado para o olhar atentamente, com os enormes olhos pretos muito sérios.
- Então vais, de facto, fazer uma incursão para Otir! Praticamente que o admitiste. - E como ele não protestou nem tentou negá-lo, acrescentou: - Cumpre o que me prometeste. Toma cuidado! Regressa sem que ninguém se tenha ferido. Eu não quero que te aconteça mal nenhum. - E fitando os olhos azuis, um tanto demasiado vivos, acrescentou sacudindo a cabeça, mas um pouco depressa demais para a desdenhosa dignidade que pretendia: - Muito menos aos meus compatriotas.
- E, à cabeça dos teus compatriotas, Ieuan ab Ifor - concordou Turcaill com um rosto solene; mas ela já lhe tinha virado as costas e partido, com a cabeça erguida e um passo firme na direcção da concavidade abrigada onde a sua pequena tenda estava colocada.
Cadfael acordou no ninho que escolhera à sombra dos arbustos salgados, bem desperto e inquieto sem qualquer motivo aparente, deixou Mark a dormir e largou a capa ao pé do amigo, porque a noite estava quente. Fora Mark que insistira para que dormissem sempre perto da tenda de Heledd, de modo a poderem ouvi-la se ela chamasse, mas não tão perto que ofendesse o seu espírito independente. Nessa altura, Cadfael não tinha dúvidas a respeito da segurança dela no interior do enclave dinamarquês. Otir tinha dado as suas ordens, e era pouco provável que algum dos homens que o seguiam não as levasse a sério, mesmo que as suas mentes não estivessem concentradas num saque mais lucrativo do que uma raparia galesa, por mais tentadora que ela fosse. Os aventureiros, reparara Cadfael ao longo da sua vida de aventura enquanto jovem, eram pessoas eminentemente práticas e conheciam o valor do ouro e dos bens materiais. As mulheres ocupavam um lugar muito inferior na escala dos despojos desejáveis.
Ele olhou na direcção da tenda dela, e ali tudo estava escuro e silencioso. Devia estar a dormir. Por qualquer razão incompreensível, ele não tinha sono. O céu tinha uma leve cobertura de nuvens, através da qual brilhavam apenas algumas estrelas. Não havia vento, e naquela noite não haveria lua. A nuvem talvez se tornasse mais espessa de manhã, trazendo até a chuva. À meia-noite, o silêncio era profundo, até mesmo opressivo, e a escuridão por cima das dunas, tanto a leste como a oeste, tornava-se mais clara, dando a impressão de uma luz movediça oriunda do mar, agora quase na maré cheia. Cadfael virou para leste, onde havia menos sentinelas e era menos provável que houvesse alguma objecção ao facto de ele andar por ali a meio da noite. Não havia fogueiras, excepto as que tinham sido abafadas no centro do acampamento de modo a arderem lentamente até de manhã, nem archotes a perfurar a escuridão. As sentinelas de Otir confiavam nos seus olhos nocturnos. O mesmo fez o Irmão Cadfael. Gradualmente, foram surgindo formas na noite informe, até mesmo as curvas e os declives das dunas ficaram vagamente perceptíveis. Era estranho como um homem podia estar tão só no meio de milhares, como se a solidão pudesse ser conseguida quando se quisesse, e como alguém que era, para todos os efeitos, um prisioneiro, conseguia sentir-se mais livre do que os seus captores, que eram tolhidos pelo seu número e acorrentados pela sua disciplina.
Ele tinha chegado ao cimo da colina por cima do ancoradouro onde estavam os barcos dinamarqueses mais leves e mais rápidos, bem protegidos entre o mar aberto e o estreito. Uma linha trémula de luz fugidia que aparecia e desaparecia enquanto ele olhava beijava a praia, e ali no interior da curva da areia estavam eles, muitos peixes magros, compridos, perceptíveis apenas como pontos mais escuros momentaneamente delineados pelas carícias da maré. Eles estremeciam, mas não se deslocavam dos seus lugares. Excepto um, o mais estreito e o mais pequeno. Ele viu-o rastejar do seu ancoradouro, tão suavemente que, por um momento, pensou que estivesse a imaginar o impulso para a frente. Depois viu os remos a mergulhar, alfinetes de fogo que desapareceram quase antes de ele compreender o que eram. Nenhum som chegou até ele vindo de longe, nem mesmo naquela quietude e silêncio nocturnos. O mais pequeno e provavelmente o mais rápido dos barcos-dragão estava a serpentear na direcção da foz do Menai, dirigindo-se para leste, para o canal.
Outra expedição de pilhagem? Se fosse essa a intenção, fazia sentido percorrer o estreito durante a noite e aguardar algures depois de Carnarvon para começar a pilhagem em terra antes do amanhecer. Certamente que teria sido deixada uma boa guarnição na cidade, mas as zonas costeiras para além dela ainda podiam ser pilhadas, mesmo que a maior parte dos seus habitantes tivesse deslocado o gado e todos os seus bens portáteis para as colinas. E o que possuía um bom galês que não fosse portátil? Eles podiam facilmente, se necessário, abandonar as suas casas e construí-las de novo quando já não houvesse perigo. Há séculos que o faziam, e eram bons nisso. No entanto, as aldeias e os campos mais próximos já tinham sido saqueados uma vez e não poderiam proporcionar comida para um pequeno exército. Cadfael imaginou que, apesar da presença do exército de Owain, eles prefeririam procurar na suave costa a sul do mar aberto. No entanto, aquele pequeno caçador dirigia-se silenciosamente para o estreito. Nessa direcção ficava apenas a longa passagem do Menai ou, alternativamente, ele tencionava contornar a barra de seixos e virar para sul, para a baía, aproveitando a maré cheia. À primeira vista, isso era pouco provável, embora um barco tão pequeno conseguisse ter uma boa corrente durante algumas horas, até a maré vazar. Um barco maior, reflectiu Cadfael, nunca se aventuraria a ir por ali. Seria essa a razão por que aquele fora escolhido e enviado sozinho? Nesse caso, com que objectivos teria saído de noite?
- Então eles partiram - disse a voz de Heledd atrás dele, num tom muito suave e sombrio.
Ela tinha surgido silenciosamente junto dele, descalça na areia ainda quente da luz do sol do dia. Tal como ele, ela estava a olhar para a praia, e o seu olhar seguia a remada vagamente luminosa da esteira do barco que desaparecia rapidamente em direcção a leste. Cadfael virou-se para olhar para ela, calma e imóvel, com a nuvem de cabelo comprido à sua volta.
- Então partiram! Já sabias? Não ficaste surpreendida!
- Não - disse ela -, não fiquei surpreendida. Não que eu faça alguma ideia do que se passa nas suas mentes, mas houve alguma coisa no ar o dia inteiro desde que Cadwaladr os enganou. Não sei o que eles estão a planear para ele, e não me atrevo a tentar adivinhar o que isso poderá significar para todos nós, mas certamente que não é nada de bom.
- Aquele é o barco de Turcaill - disse Cadfael. Ele já se encontrava tão longe na escuridão que agora só conseguiam segui-lo com os olhos da mente. Mas ele não podia ter chegado ao extremo da barra de seixos.
- Deve ser - disse ela. - Se estiverem a preparar alguma malfeitoria, ele deve estar envolvido. Não há nada que Otir lhe possa pedir, por maior que seja a loucura, que ele não se atire alegremente de cabeça, sem pensar nas consequências.
- E tu pensaste em todas as consequências possíveis - deduziu Cadfael - e elas não te agradam.
- Não - retorquiu ela com veemência -, não me agradam! Se, por acaso, ele matar um homem de Owain, pode haver uma batalha e uma carnificina. Basta um rastilho desses para atear um fogo.
- E o que te leva a pensar que ele se vai aproximar dos homens de Owain e correr esse risco?
- Como é que eu hei-de saber o que aquele tolo está a pensar? - perguntou ela impacientemente. - O que me preocupa é o mal que ele nos poderá causar a nós.
- Eu não o classificaria tão prontamente de tolo - disse Cadfael suavemente. - Eu considero-o tão astucioso mentalmente como é habilidoso com as mãos. O que quer que ele esteja a fazer, julga-o quando ele regressar, pois eu acredito que ele irá regressar com êxito. - Ele teve o cuidado de não acrescentar: "Por isso pára de te preocupar com ele!" Ela teria negado tal preocupação, embora com menos veemência do que a que outrora teria utilizado. Era melhor não dizer nada. Por mais que tivesse esperança de enganar os outros, Heledd não era rapariga que conseguisse enganar-se a si própria.
E lá ao longe, a sul, no campo de Owain, estava o homem que ela nunca vira, Ieuan ab Ifor, com pouco mais de trinta anos, o que não era muito velho, um homem de quem o príncipe tinha uma boa opinião, proprietário de boas terras, de boa aparência, possuidor de todas as qualidades excepto uma, e invisível e desprezível sem ela. Não era o homem que ela escolhera.
- Amanhã veremos - disse Heledd, com um enorme sentido prático. - É melhor irmos dormir para estarmos preparados.
Eles tinham contornado a ponta da barra de seixos e manti-veram-se fora do canal principal enquanto viravam para sul, para a baía. Uma vez bem no interior dela, podiam aproximar-se da praia e vigiar a linha da costa, para tentar ver as primeiras sentinelas do acampamento de Owain. Leif, o rapaz de Turcaill, ajoelhou-se no minúsculo convés da proa, semicerrando os olhos a observar atentamente a praia. Ele tinha quinze anos e falava o galês de Gwynedd, pois a sua mãe tinha sido raptada daquela mesma costa noroeste aos doze anos, durante um ataque dos dinamarqueses, e tinha-se casado com um dinamarquês do reino de Dublin. Mas ela nunca se esquecera da sua língua e falara-a sempre com o filho, a partir do momento em que ele começou a falar. Um rapaz seminu no pino do Verão, Leif podia percorrer as aldeias piscatórias e os trefs galeses, passar por um deles, e o seu talento para adquirir informação já tinha produzido uma útil colheita.
- Cadwaladr manteve-se sempre em contacto com os que se mantêm fiéis a ele - relatara Leif alegremente - e há alguns homens entre os guerreiros do seu irmão que o seguiriam se ele tentasse fazer alguma coisa sozinho. E ouvi dizer que ele enviou uma mensagem do acampamento de Owain aos seus homens em Ceredigion. Que mensagem foi essa, ninguém sabe, se foi para virem juntar-se a ele, armados, se foi para reunirem o dinheiro e o gado para o caso de ele ser obrigado a pagar o que nos prometeu. Mas se um mensageiro vier perguntar por ele, ele não pensará nada de mal, julgará que é para seu proveito.
E havia mais a contar, o resultado de muita escuta atenta.
- Owain não o quer perto de si. Agora ele rodeou-se de alguns dos seus homens e fez a sua base na orla sul do acampamento, no canto mais próximo da baía. Ali, se chegarem notícias das suas antigas terras, ele pode deixar entrar o mensageiro sem Owain saber. Porque ele jogará uns contra os outros, conforme lhe for mais vantajoso - disse Leif num tom intencional.
Não havia qualquer dúvida a esse respeito. Todos os que conheciam Cadwaladr sabiam que era verdade. E embora os dinamarqueses tivessem sido lentos a compreender isso, agora também já sabiam. E Leif podia ser um mensageiro tão bom como qualquer outro. Aos catorze anos, um rapaz galês torna-se um homem e é reconhecido como um homem adulto.
O barco aproximou-se cautelosamente da praia. Contornos de dunas, seixos e arbustos espalhados surgiam como formas mais densas ou mais claras no escuro, deslizando à direita deles. Ao fim de algum tempo, a orla exterior do acampamento tornou-se perceptível, mais através de persistentes sugestões de seres humanos, do fumo das fogueiras, dos odores resinosos da madeira da paliçada rachada há pouco tempo, até mesmo dos sons murmurados das actividades que persistiam durante a noite, do que de qualquer coisa que eles vissem ou ouvissem claramente. O timoneiro aproximou o barco ainda mais, cauteloso com as ondulações da erva do salgadiço por baixo da superfície plácida dos baixios, até terem passado a parte principal do acampamento e se encontrarem paralelos ao canto sul onde se dizia que Cadwaladr tinha montado o seu acampamento reunindo à sua volta antigos seguidores, cuja adesão ao seu irmão permanecia menos confiável do que os laços que os ligavam ao seu príncipe anterior. Mais do que um tipo de mensageiro podia contactar com ele lá, trazendo-lhe outras novidades para além da gratificante notícia de que a sua sumptuosa generosidade ainda era recordada por alguns, e que ele ainda era respeitado como senhor e príncipe, a quem era devida fidelidade. Ainda lhe podiam recordar, não só privilégios, mas também responsabilidades a que estava obrigado, e dívidas por pagar.
A linha da costa recuava, mergulhando para oeste, e fechou-se gradualmente com eles à medida que passavam. O ligeiro calor e o movimento que não era bem som, mas apenas uma sensibilidade primitiva à presença de outros seres humanos invisíveis, inaudíveis, vigilantes e potencialmente hostis ficou para trás, no silêncio vazio da noite.
- Já passámos - disse Turcaill em voz baixa ao ouvido do timoneiro. - Leva-nos para terra.
Os remos mergulharam suavemente na água. O ágil barco deslizou por entre os tufos de ervas e tocou no fundo com a leveza de uma pena. Leif rodou as pernas sobre o lado e deixou-se cair para os baixios. Havia areia firme debaixo dos seus pés descalços, e a água mal lhe chegava a meio da canela. Ele olhou para trás, ao longo da linha da costa por onde tinham passado, e até mesmo por cima do acampamento às escuras pairava ainda uma leve luminosidade que restara do dia.
- Estamos perto. Esperem até eu dizer qualquer coisa.
Ele desapareceu, serpenteando por entre ervas e arbustos até à elevação das dunas, que ali eram estreitas e em breve davam lugar a pastagens irregulares e, seguidamente, a bons campos férteis. A sua pequena figura fundiu-se com a escuridão suave e densa.
Saindo tão silenciosamente da noite como um farrapo de neblina, ele estava de volta em menos de um quarto de hora, antes de eles estarem preparados para o seu regresso, embora tivessem aguardado sem impaciência, com os ouvidos atentos a qualquer som estranho. Leif passou por entre os arbustos salgados com a água fria, pouco funda, à volta das suas pernas, estendeu o braço para o lado do barco e murmurou num silvo excitado.
- Encontrei-o! É perto! Ele tem um homem seu no posto da sentinela. Não há nada mais simples do que chegar até ele em segredo por este lado. Aqui eles não estão à espera de qualquer ataque por terra, e ele pode movimentar-se à vontade, e o mesmo acontece com alguns homens mais dispostos a obedecer-lhe do que a Owain.
- Não estiveste lá dentro? - perguntou Turcaill. - Depois da sentinela?
- Não foi necessário! Houve outra pessoa que lá chegou um momento antes de mim, vindo do sul. Eu estava no meio dos arbustos, suficientemente perto para ouvir a sentinela perguntar quem vinha ali. Quem quer que ele fosse, bastou-lhe abrir a boca para o mandarem entrar. E eu vi para onde o levaram. Neste momento, ele está na tenda de Cadwaladr com ele, e até a sentinela foi mandada prosseguir com a vigia. Não está mais ninguém na tenda para além de Cadwaladr e o seu visitante, e apenas uma sentinela entre eles e nós.
- Tens a certeza de que Cadwaladr está lá? - perguntou Torsten, em voz baixa. - Não podes tê-lo visto.
- Ouvi a sua voz. Eu fui criado do homem desde que saímos de Dublin - disse o homem com firmeza. - Achas que não conheço a voz dele?
- E ouviste o que eles disseram? Esse outro... ele chamou-o pelo nome?
- Não houve nomes! "Tu!", disse ele claramente em voz alta, mas não disseram nomes. Mas ele ficou surpreendido e contente, muitíssimo contente ao vê-lo. Quando a sentinela for silenciada, vocês podem apanhar os dois e fazer com que o homem vos diga como é que se chama.
- Nós viemos buscar um - disse Turcaill - e vamos voltar com um. E nada de mortes! Owain está fora desta briga, mas ele entrará rapidamente nela se matarmos um dos seus homens.
-Mas ele não vai fazer nada pelo irmão? - perguntou Leif em voz baixa, admirado.
- O que tem ele a recear pelo irmão? Nem uma beliscadura em Cadwaladr, lembrem-se! Se ele pagar o resgate que nos é devido, pode ir-se embora, tão inteiro como quando nos contratou. Owain sabe isso melhor do que qualquer um. Não é preciso dizê-lo. Vá, vão, que temos que partir com a maré.
Os planos tinham sido feitos com antecedência; e se não tinham tomado em conta aquele viajante inesperado oriundo do sul, eles podiam muito simplesmente adaptar-se de modo a integrá-lo. Dois homens sozinhos numa tenda convenientemente próxima da orla do acampamento constituíam um alvo fácil, quando a sentinela estivesse fora de campo. O homem de Cadwaladr, em que ele tinha confiança e que estava envolvido nos esquemas que ele tinha em mente, tinha que se arriscar a ser tratado com aspereza, mas não lhe deveria acontecer nada de mal.
- Eu trato da sentinela - disse Torsten, o primeiro a deslizar sobre o lado do barco para o local onde Leif o aguardava. Cinco outros remadores de Turcaill seguiram o seu líder até ao salgadiço e através da praia arenosa. A noite recebeu-os silenciosamente e com indiferença, e Leif foi à frente, voltando atrás pelo mesmo caminho, indo de um local abrigado para uma cobertura esparsa, na direcção do perímetro do acampamento. Parou debaixo de um grupo de árvores e espreitou por entre os ramos. A linha das defesas era perceptível mais adiante apenas como uma escuridão mais rígida e mais sólida, quando todas as outras sombras eram sinuosas e passageiras. Mas conseguia ver-se o vassalo de Cadwaladr na abertura que era o portão que ele guardava, percorrendo-a de um lado para o outro, com a cabeça e os ombros recortados com nitidez de encontro ao céu. Um homem grande, armado, mas movendo-se descontraidamente, não esperando qualquer alarme. Torsten observou a calma patrulha durante alguns minutos, assinalou a distância que ela cobria e esgueirou-se de lado por entre as árvores, de modo a estar atrás no seu extremo a leste, onde os arbustos chegavam a alguns metros da paliçada, e um homem se podia aproximar sem que o vissem nem ouvissem.
A sentinela estava a assobiar suavemente para si própria quando deu meia volta na areia macia, e o musculoso braço esquerdo de Torsten lhe tolheu o corpo e os braços, e o direito lhe colocou uma palma da mão com força sobre a boca e interrompeu abruptamente o assobio. Ela tentou freneticamente erguer os braços para agarrar no braço que a amordaçava, mas não conseguiu chegar lá, e as suas tentativas de dar pontapés para trás fizeram-na perder o equilíbrio e não atingiram Torsten, que a fez rodar e caiu sobre ela na areia, mantendo-a de barriga para baixo. Nessa altura, Turcaill estava ao lado deles, pronto para enfiar um bocado de tecido de lã na boca do homem assim que este fosse autorizado a levantar-se e a cuspir a areia e a erva que lhe enchiam a boca. Puseram a capa dele à volta da cabeça e dos ombros e amarraram-lhe as mãos e os pés. Colocaram-no em segurança, se bem que pouco confortavelmente, no meio dos arbustos, e voltaram a sua atenção para a orla do acampamento. Não houvera qualquer clamor, nem qualquer movimento no interior da paliçada. Algures em redor das tendas do príncipe haveria homens despertos e atentos mas ali, no canto mais remoto, escolhido deliberadamente por Cadwaladr para os seus próprios fins, não havia ninguém por perto que impedisse a vingança contra ele.
Apenas Turcaill, Torsten e outros dois seguiram Leif quando este passou cautelosamente o portão sem guarda e seguiu ao longo da paliçada na direcção do local em que se recordava de ouvir os tons inconfundíveis, autoritários, da voz de Cadwaladr, que se erguera de satisfação e espanto ao reconhecer o seu visitante nocturno. As linhas do acampamento acabavam ali, em imobilidade e silêncio, os invasores moviam-se como sombras no meio de sombras. Leif apontou, mas não disse uma palavra. Não havia necessidade. Até mesmo num acampamento militar seria tida em consideração a posição social de Cadwaladr e seria assegurado o seu conforto. A tenda era ampla, à prova do vento e da chuva, e sem dúvida bem fornecida no interior. Na orla da aba que protegia a entrada viam-se finas linhas de luz e, no ar parado da noite, vozes baixas formavam um murmúrio regular, confidencial, demasiado baixo para se conseguir distinguir as palavras. O mensageiro do sul ainda lá estava com o seu príncipe; os dois reflectiam sobre as notícias que ele trouxera e os planos a ser feitos.
Turcaill aproximou a mão na porta da tenda e esperou por Torsten que, com o punhal na mão, tinha dado a volta à tenda para procurar uma junção onde as peles tinham sido cosidas. Tanto as tiras de couro finas como o fio ensebado podiam ser cortados com uma lâmina afiada. A luz no interior, pela forma constante como ardia e pela sua origem baixa, devia ser um simples pavio num pires de óleo, colocado talvez num banco ou numa mesa desmontável. Não se veriam os contornos de corpos que se movessem no exterior, ao passo que Torsten, enquanto seleccionava o local, conseguia sentir, mais do que ver, as formas vagas dos dois no interior. Muito perto um do outro, atentos, absortos, não estando à espera de qualquer interrupção.
Turcaill afastou a porta da tenda e lançou-se para o interior tão rapidamente e com os outros dois a segui-lo tão de perto, que Cadwaladr só teve tempo de se pôr de pé, alarmado, com a boca aberta para expressar a sua indignação, antes de ter um punhal junto da garganta, e a sua ira principesca por ter sido rudemente interrompido transformou-se de imediato numa compreensão paralisada e numa imobilidade reverente e trémula. Ele era um homem temerário, mas com excelentes reacções rápidas, e a sua temeridade não ia ao ponto de discutir com um punhal desembainhado quando as suas próprias mãos estavam vazias. Foi o homem que estava sentado ao seu lado que deu um salto para atacar, lançando-se à garganta de Turcaill. Mas atrás dele a faca de Torsten tinha cortado as tiras de couro que uniam as peles da tenda, e uma enorme mão agarrou no desconhecido pelo cabelo e arrastou-o para trás. Antes de ele conseguir levantar-se outra vez, foi embrulhado na colcha da cama e agarrado pelos homens de Turcaill.
Cadwaladr deixou-se ficar imóvel e em silêncio, bem consciente do aço a picar-lhe a garganta. Os seus belos olhos pretos faiscavam de ira, os dentes estavam cerrados com o esforço para se dominar, mas não fez qualquer movimento quando o companheiro que tinha recebido com prazer foi, apesar de ter oferecido resistência, amarrado de modo a não se poder mexer e colocado, quase com ternura, em cima da cama do seu senhor.
- Não faça barulho - disse Turcaill - e não lhe acontecerá nada de mal. Se gritar, a minha mão pode deslizar. Há uma pequena questão que Otir quer discutir consigo.
- Vais-te arrepender disto! - disse Cadwaladr por entre os dentes.
- É possível - concordou Turcaill num tom conciliatório -, mas ainda não. Eu deixo-o escolher entre andar ou ser arrastado, mas não confio em si. - E aos dois remadores ele disse: - Agarrem-no! - retirando a mão e embainhando o punhal que segurava.
Cadwaladr não foi suficientemente rápido para aproveitar o instante em que poderia ter gritado em voz alta para chamar uma dúzia de homens em seu auxílio. De facto, quando o aço foi retirado, ele abriu a boca para chamar os seus homens, mas um cobertor foi-lhe atirado para cima da cabeça, e uma mão larga apertou-o contra a sua boca aberta. O único som que emergiu foi um gemido estrangulado, imediatamente sufocado. Ele tentou atacar com os punhos e com os pés, mas o áspero tecido de lã envolvia-o, tolhendo-lhe os movimentos.
No exterior da tenda, Leif estava de sentinela com o ouvido atento, e os seus olhos percorriam os espaços escuros do acampamento, tentando detectar qualquer movimento que pudesse ameaçar o seu empreendimento, mas estava tudo sossegado. Se Cadwaladr tinha desejado e ordenado uma conversa privada, sem perturbações, com o seu visitante, ele tinha feito muito bem o trabalho de Turcaill por ele. Ninguém se movia. No arvoredo em que tinham deixado a sentinela, os últimos membros do grupo saíram da escuridão para se juntar a eles e riram-se baixinho ao ver o fardo que transportavam, suspenso pelas cordas que o tolhiam.
- A sentinela? - perguntou Turcaill num murmúrio.
- Está viva, e a balbuciar pragas. E é melhor embarcarmos antes que dêem pela falta dele e venham à sua procura.
- E o outro? - atreveu-se Leif a perguntar em voz baixa, enquanto serpenteavam de cobertura em cobertura, de regresso à praia e às salinas. - O que fizeram com ele?
- Deixámo-lo a descansar - disse Turcaill.
- Tu disseste nada de mortes!
- E não houve nenhuma. Ele não tem uma única beliscadura, podes estar descansado. Owain não tem mais motivo de contenda contra nós do que quando pusemos pela primeira vez o pé em solo seu.
- E continuamos sem saber - admirou-se Leif, seguindo com firmeza a seu lado ao longo da orla húmida deixada pela maré vazante - quem era o outro, e o que estava ele a fazer aqui. Ainda podes vir a arrepender-te de não o teres detido quando podias.
- Nós viemos buscar um, e levamos um de volta. Era tudo o que queríamos e precisávamos - disse Turcaill.
A tripulação deixada a bordo estendeu as mãos para içar Cadwaladr para o poço no meio dos bancos e, seguidamente, ajudar os seus companheiros. O timoneiro inclinou-se sobre a sua pesada cana do leme, os remadores empurraram os seus remos, impelindo o pequeno barco suavemente ao longo do sulco que ele fizera na areia, até ficar solto e se erguer animadamente na maré vazante.
Antes do amanhecer eles entregaram o seu trofeu, com algum orgulho, a um Otir que acabara de ser acordado, mas que chegara de olhos brilhantes e satisfeito ao encontro. Cadwaladr emergiu corado, despenteado e furioso do seu invólucro paralisante, mas contendo a sua fúria num silêncio aguerrido.
- Tiveram algum problema no caminho? - perguntou Otir, observando o prisioneiro com astuta satisfação. Sem qualquer marca, sem sangue, retirado do meio dos seus seguidores sem pisar os calos do seu poderoso irmão nem fazer mal a qualquer outra pessoa. Uma missão levada a cabo de uma forma muito satisfatória e que deveria ser lucrativa.
- Nenhum - disse Turcaill. - O homem tinha preparado a sua própria queda, retirando-se mesmo para a orla do acampamento e colocando um homem seu de sentinela. E por algum motivo! Calculo que estivesse à espera de notícias das suas antigas terras, e encontrou um meio de manter um portão aberto. Porque eu duvido que ele obtenha qualquer simpatia de Owain, ou que esteja a contar com ela.
Ao ouvir isto, Cadwaladr abriu a boca, descerrando os dentes com esforço, pois era duvidoso que ele próprio acreditasse no que estava prestes a dizer.
- Tu estás enganado a respeito da força dos laços de sangue galeses. Um irmão defende sempre outro irmão. Fizeste com que Owain te ataque com todo o seu exército, conforme virás a saber.
- Do mesmo modo que um irmão defende sempre outro irmão quando contrataste homens de Dublin para ameaçar o teu irmão com a guerra - disse Otir com uma breve e dura gargalhada.
- Vocês vão ver o que Owain fará por mim - disse Cadwaladr acaloradamente.
- É o que realmente vamos ver, e tu também. Eu duvido que encontres menos conforto nisso do que nós. Ele avisou-nos, tanto a mim como a ti, que a tua contenda não é a contenda dele e que tu deves assumir as tuas próprias responsabilidades. E é o que irás fazer - disse Otir com satisfação - antes de voltares a pôr os pés fora deste acampamento. Eu tenho-te em meu poder e manter-te-ei aqui até me pagares o que prometeste. Vais pagar-me todas as moedas, todas as vitelas, ou o equivalente em mercadoria. Feito isso, podes partir em liberdade, ir novamente para as tuas terras, ou voltar para o mundo, como um pedinte, conforme Owain quiser. E aviso-te já, nunca mais procures ajuda em Dublin, agora nós conhecemos o valor da tua palavra. E, sendo assim - disse ele, esfregando o seu enorme queixo com um punho musculoso - agora que te temos em nosso poder, certificar-nos-emos de que assim permanecerás! - Ele virou-se para Turcaill, que estava a observar o encontro com um interesse distante, uma vez que o seu próprio papel já fora cumprido. - Entrega-o a Torsten para tomar conta dele, mas manda amarrá-lo. Sabemos demasiadamente bem que a sua palavra e juramento não significam nada para ele, por isso é melhor usarmos outros meios. Ponham-lhe correntes e assegura-te de que é bem vigiado.
- Vocês não se atreveriam! - cuspiu Cadwaladr num silvo, fazendo um movimento convulsivo para se lançar contra o seu juiz, mas mãos prontas puxaram-no para trás com uma facilidade insultuosa e seguraram-no, a contorcer-se e a transpirar no meio dos seus guardas sorridentes. Perante uma atitude tão indiferente e despreocupada, a sua raiva ardente parecia pouco mais do que a birra de uma criança turbulenta e extinguiu-se inevitavelmente por si própria na fria tomada de consciência de que estava indefeso e tinha que se resignar à reversão da sua sorte, pois não podia fazer nada para a alterar.
- Paga o que nos deves, e podes ir-te embora-disse simplesmente Otir. E para Torsten: - Levem-no!
De madrugada, ao fazerem a ronda completa da orla sul do acampamento, dois homens da companhia de Cuhelyn encontraram o portão mais distante sem sentinela e comunicaram o facto ao seu comandante. Para começar, se este não fosse Cuhelyn, aquela verificação das defesas não teria sido ordenada. Para ele, a presença de Cadwaladr no acampamento de Owain, tolerada ainda que não aceite, era uma profunda ofensa, não apenas por causa da morte de Anarawd, mas também por causa de Owain. E o comportamento de Cadwaladr no interior do acampamento também não tinha sido de molde a mitigar a desconfiança e o ódio que Cuhelyn lhe nutria. O facto de ele se ter retirado para aquele canto remoto podia ter sido interpretado por outros como demonstrando alguma sensibilidade em relação à irritação que o irmão pudesse sentir ao vê-lo. Cuhelyn conhecia-o melhor, um ser arrogante, cego às necessidades e aos sentimentos dos outros homens. E nunca se podia ter confiança nele, uma vez que todos os seus actos eram imprudentes e imprevisíveis. Por isso, Cuhelyn fazia questão, sem dizer nada a ninguém, de vigiar os movimentos de Cadwaladr, bem como o comportamento dos que se reuniam à sua volta. Quando eles se encontravam, havia necessidade de vigilância.
A deserção de uma sentinela levou Cuhelyn apressadamente até ao portão, antes de as linhas terem acordado. Encontraram o homem desaparecido ileso mas embrulhado como um rolo de tecido de lã, deitado no meio dos arbustos, não muito longe da paliçada. Ele tinha conseguido alargar o cordão que lhe atava as mãos, embora não o suficiente para as libertar, e tinha soltado parcialmente o tecido que o amordaçava. Os roncos abafados, a única coisa que ele conseguia murmurar, foram suficientes para o localizar assim que os que o procuravam chegaram às árvores. Uma vez solto, ele pôs-se rigidamente de pé e relatou, com os lábios inchados, o que lhe acontecera durante a noite.
- Dinamarqueses... pelo menos cinco. Vieram da baía. Um rapaz que podia ser galês mostrou-lhes o caminho...
- Dinamarqueses! - repetiu Cuhelyn, entre o espanto e o esclarecimento. Ele estivera à espera de uma diabrura qualquer por parte de Cadwaladr, seria possível que aquilo significasse, em vez disso, uma diabrura contra Cadwaladr? Este pensamento provocou-lhe algum divertimento amargo, mas ele não acreditou bem nele. Aquilo poderia ser ainda um outro tipo de malfeitoria, dinamarqueses e galeses a lamentarem o seu rompimento e a resolverem secretamente as suas divergências agindo juntos à revelia de Owain.
Dirigiu-se apressadamente para a tenda de Cadwaladr, e entrou sem qualquer cerimónia. A brisa que se levantava soprou-lhe no rosto, fazendo esvoaçar as peles rasgadas atrás do cobertor. A figura embrulhada em cima da cama soerguia-se e contorcia-se, proferindo pequenos sons animalescos. Esta segunda vítima atada confundiu todas as explicações que pudessem justificar a primeira. Porque é que um grupo de dinamarqueses, tendo chegado clandestinamente junto de Cadwaladr, haveria seguidamente de o atar e silenciar, deixando-o depois de modo a ser inevitavelmente encontrado e libertado ao nascer do sol? Se eles tivessem vindo conspirar de novo com ele, se tivessem vindo fazê-lo refém devido ao que ele lhes devia, nenhuma destas hipóteses fazia sentido. Assim reflectia, intrigado, Cuhelyn, enquanto desatava as cordas que amarravam os braços e as pernas, desfazendo pacientemente os nós com uma só mão e desenrolando o corpo dos tapetes torcidos. Uma mão vincada pela corda ergueu-se às apalpadelas ao ser libertada e puxou para trás as últimas dobras, revelando uma cabeleira despenteada e um rosto que Cuhelyn conhecia bem.
Não o semblante imperioso de Cadwaladr, mas sim o rosto mais jovem, mais magro, mais intenso e mais sensível do reflexo gémeo de Cuhelyn, Gwion, o último refém de Ceredigion.
Chegaram juntos ao quartel-general de Owain um não tanto a conduzir o outro como a dignar-se a caminhar atrás dele, o outro andando com firmeza à sua frente para tornar claro a todos os que o vissem que ele não estava a ser conduzido, mas sim a dirigir-se para onde queria ir. O ar entre eles vibrava com a animosidade que nunca existira entre os dois até àquele momento e que, pela sua própria intensidade e dor, não poderia durar muito. Owain viu isso na pose rígida dos seus corpos e na árdua inexpressividade dos seus rostos quando eles chegaram à sua presença e se colocaram lado a lado à sua frente, a aguardar o seu juízo.
Dois jovens morenos, graves, apaixonados, um deles um pouco mais alto e mais magro, o outro ligeiramente mais corpulento e menos trigueiro, mas vistos ali ao lado um do outro, a tremer de tensão, poderiam bem ser irmãos gémeos. A diferença gritante entre eles era que a um fora decepado metade de um membro, e isso num acto de traição por parte do senhor que o outro servia e venerava. Mas não era isso que os mantinha equilibrados naquela intensidade de ira e hostilidade tão estranhas para ambos, e que lhes causava tamanha dor indignada.
Owain olhou de um rosto sombrio para o outro e perguntou num tom neutro a ambos:
- O que significa isto?
- Significa - disse Cuhelyn, descerrando os dentes - que a palavra deste homem não vale mais do que a do seu senhor. Encontrei-o amarrado e amordaçado na tenda de Cadwaladr. A razão disso deverá ser ele a dizer-vos, porque eu não sei mais nada. Mas Cadwaladr desapareceu, e este homem ficou, e a sentinela que vigiava aquelas linhas diz que os dinamarqueses vieram da baía durante a noite e o deixaram também amarrado no meio dos arbustos, para poderem entrar. Se tudo isto tem um significado, deverá ser ele a dizê-lo, não eu. Mas eu sei e vós também sabeis, meu senhor, que ele jurou não tentar fugir de Aber e que quebrou o seu juramento e desonrou o seu compromisso.
- O que não foi exactamente vantajoso para ele - disse Owain, coibindo-se de sorrir ao ver o rosto de Gwion marcado pelas dobras ásperas do cobertor, o cabelo preto despenteado e espetado, e os lábios inchados, magoados pela mordaça. E ao jovem silencioso, numa atitude de desafio, ele disse suavemente: - E o que tens a dizer, Gwion? Renegaste o teu juramento? Estás desonrado, com o teu juramento em apuros?
Os lábios inchados separaram-se e tremeram por um momento, à medida que a tensão diminuía. Num tom tão baixo que mal se ouvia, Gwion disse sem remorsos:
- Sim.
Foi Cuhelyn que se virou um pouco para o lado e evitou o seu olhar. Tendo admitido o pior, Gwion fixou os olhos pretos no rosto de Owain e respirou fundo.
- E porque é que o fizeste, Gwion? Eu já te conheço há algum tempo. Soluciona o teu enigma para mim. É um facto que eu te deixei trabalho para fazer em Aber relacionado com a morte de Bledri ap Rhys. E um facto que me tinhas dado a tua palavra. Até aí nós sabemos. Agora conta-me como é que te desvirtuaste ao ponto de renunciares ao teu juramento.
- Esquecei! - disse Gwion, estremecendo. - Eu fi-lo! Deixai-me pagar por isso.
- Mesmo assim, conta-me! - disse Owain com uma calma terrível. - Porque eu quero saber!
- Vós julgais que eu vou usar desculpas em minha defesa - disse Gwion. A sua voz tinha-se tornado mais firme e assumira um tom calmo de total distanciamento, indiferente ao que lhe pudesse acontecer. Começou a falar timidamente, como se ele próprio nunca tivesse, até esse momento, sondado as complexidades do seu próprio comportamento, e receasse o que poderia encontrar. - Não, eu fiz o que fiz, não o desculpo, o meu comportamento é, de facto, vergonhoso. Mas eu vi vergonha em todos os caminhos, e não tinha outra opção a não ser aceitar e suportar a vergonha menor. Não, aguardai. Não me compete a mim dizer. Deixai-me dizer como o fiz. Eu estava incumbido de devolver o corpo de Bledri à sua mulher e de lhe contar como é que ele tinha morrido. Achei que podia, sem ofensa, fazer-lhe a cortesia de a enfrentar e de o levar eu próprio até ela, tencionando regressar ao meu cativeiro... se assim se pode chamar às condições confortáveis que tinha junto de vós, meu senhor. Assim, fui ter com ela a Ceredigion, e ali sepultámos Bledri. E ali falámos sobre o que Cadwaladr, o vosso irmão, tinha feito, trazendo uma frota para exigir os seus direitos, e eu cheguei à conclusão de que, tanto para vós como para ele, para Gwynedd inteiro, para Gales, o melhor seria que os dois se unissem e juntos enviassem os dinamarqueses de volta para Dublin, de mãos vazias. A ideia não veio de mim - disse ele meticulosamente. - Veio dos homens velhos, sábios que sobreviveram a guerras e caíram em si. Eu era, eu sou um homem de Cadwaladr, não posso ser outra coisa. Mas quando eles me demonstraram que, precisamente por causa dele, deverá haver paz entre os dois irmãos, eu vi as coisas da forma que eles viam. E eu juntei-me aos antigos comandantes dele o mais depressa que pude e reuni uma força que lhe é leal, mas que pretende a reconciliação que eu também desejava ver. E quebrei o meu juramento - disse Gwion com uma veemência brutal. - Quer os nossos belos planos tivessem tido êxito ou não, digo-vos abertamente que teria lutado por ele. Contra os dinamarqueses, alegremente. Quem lhes mandou fazer um acordo daqueles? Contra vós, meu senhor Owain, com muita tristeza, mas, se as coisas chegassem a esse ponto, eu tê-lo-ia feito. Porque é ele o meu senhor, e não sirvo nenhum outro. Por isso não voltei para Aber, trouxe cem bons guerreiros para entregar a Cadwaladr, seja qual for o uso que ele lhes queira dar.
- E encontraste-o no meu acampamento - disse Owain, sorrindo. - E metade dos teus desígnios pareceram já ter sido conseguidos, e as pazes entre nós feitas.
- Foi o que eu pensei e tive esperança que sucedesse.
- E foi o que encontraste? Porque tu falaste com ele, não falaste, Gwion? Antes de os dinamarqueses chegarem da baía e o levarem como prisioneiro e te terem deixado para trás? Ele concordou contigo?
Por um instante, o rosto moreno de Gwion contorceu-se.
- Eles vieram e levaram-no. Não sei mais do que isso. Agora já vos disse, e estou nas vossas mãos. Ele é o meu senhor e, se me permitirdes que lute sob o vosso comando, ainda lhe poderei ser útil mas, se me negardes isso, tendes esse direito. Eu imaginei-o sitiado, e o meu coração não conseguiu suportá-lo. No entanto, dei-lhe a minha fidelidade, agora renunciei por ele até mesmo à minha honra, e sei muito bem que a perda desta me coloca numa situação muito pior. Façais como julgardes melhor.
- Estás a querer dizer-me - perguntou Owain observando-o atentamente - que ele não teve tempo de te contar como estão as coisas entre nós? Se eu permitir que lutes sob o meu comando, dizes tu! Se eu estivesse a pensar em lutar, era bem capaz de o fazer, e não serias o pior homem que já tive sob a minha bandeira, mas enquanto eu conseguir o que quero sem guerra, não estou a pensar nisso. O que te faz pensar que estou prestes a ordenar um ataque?
- Os dinamarqueses têm o vosso irmão em seu poder! - protestou Gwion, gaguejando, subitamente desorientado. - Certamente que tencionais salvá-lo.
- Não tenho tal intenção - disse Owain secamente. - Não levantarei um só dedo para o tirar das mãos deles.
- Porquê, se o fizeram refém por ele ter feitos as pazes convosco?
- Eles fizeram-no refém - disse Owain - por causa dos dois mil marcos que lhes prometeu se eles me obrigassem a devolver-lhe as terras que lhe foram confiscadas.
- Não importa, não importa o que eles têm contra ele, embora não possa ser só isso! Ele é vosso irmão, está em mãos inimigas e corre perigo de vida! Não podeis abandoná-lo assim!
- Ele não correrá o mínimo perigo - disse Owain - se pagar o que deve. Como certamente fará. Eles tratá-lo-ão como tratam os seus próprios bebés e libertá-lo-ão sem uma beliscadura quando tiverem carregado o gado e os bens dele, no valor que ele lhes prometeu. Eles não querem envolver-se numa guerra mais do que eu, desde que recebam o que lhes é devido. E eles sabem que, se mutilarem ou matarem o meu irmão, então terão que se haver comigo. Eu e os dinamarqueses compreendemo-nos. Mas colocar os meus homens no campo de batalha para o tirar do atoleiro que ele escolheu para si próprio? Não! Nem um homem, nem uma espada, nem um arco!
- Eu não consigo acreditar no que estou a ouvir! - disse Gwion, de olhos muito abertos.
- Diz-lhe, Cuhelyn, como vai esta discórdia - disse Owain, recostando-se com um suspiro perante uma lealdade tão inocente e irreconciliável.
- O meu senhor Owain recebeu o seu irmão sem qualquer ideia preconcebida - disse Cuhelyn resumidamente - e disse-lhe que tinha que se livrar dos dinamarqueses antes de as suas terras lhe serem devolvidas. E só havia uma forma de os mandar regressar a casa, e esta era pagar-lhes o que ele prometera. A desavença era dele, e ele é que tinha que a resolver. Mas Cadwaladr achou que era mais esperto e que, se forçasse o meu senhor a agir, o meu senhor teria que se juntar a ele para expulsar os dinamarqueses por meio da guerra. E assim ele não teria que pagar nada! Por isso desafiou Otir e mandou-o regressar a Dublin, pois Owain e Cadwaladr tinham feito as pazes e expulsá-los-iam para o mar se eles não levantassem âncora e partissem. O que - disse Cuhelyn entre dentes, com uma expressão feroz, firme e de desafio nos olhos fixos em Owain que era, afinal, irmão daquele homem desonesto e talvez sentisse relutância em falar demasiado claramente - ele mentiu. As pazes não foram feitas, e não houve qualquer aliança.
Ele mentiu e quebrou um acordo solene, e estava à espera de ser louvado por isso! Pior ainda, com essa intrujice, ele colocou em perigo três reféns, dois monges e uma rapariga aprisionados pelos dinamarqueses. O meu senhor prontificou-se a protegê-los e ofereceu um preço justo pelo seu resgate. Mas quanto a Cadwaladr, ele não vai levantar um dedo. E agora já sabes - disse ele num tom feroz - o motivo por que os dinamarqueses vieram buscá-lo durante a noite, por que te trataram bem a ti que não lhes fizeste afronta nenhuma. Eles têm uma dívida a receber de Cadwaladr. Porque até mesmo tratando-se de dinamarqueses, um príncipe de Gales deve manter a sua palavra.
Tudo aquilo foi dito numa voz firme, lenta e, ao mesmo tempo com uma acalorada indignação que manteve Gwion em silêncio até ao fim.
- Tudo o que Cuhelyn te disse é verdade - disse Owain. Gwion abriu os lábios rígidos e disse num tom inexpressivo:
- Eu acredito. Mesmo assim, ele ainda é vosso irmão e meu senhor. Eu sei que ele é imprudente e impulsivo. Age sem pensar. Por conseguinte, eu não posso renunciar à minha fidelidade, mesmo que vós repudieis o vosso sangue.
- Isso - disse Owain com uma paciência principesca - eu não fiz. Ele que cumpra a sua palavra para com aqueles que trouxe com o objectivo de recuperar os seus direitos, e liberte o meu solo galês de um invasor indesejado, que será meu irmão tal como dantes. Mas eu quero-o livre de malevolência e falsidades e não darei a minha aprovação às coisas que ele fez e que o desonram.
- Eu não posso fazer tal estipulação - disse Gwion com um sorriso triste e doloroso -, nem colocar tais limites à minha fidelidade. Eu próprio estou renegado, até mesmo nisto sou seu companheiro. Irei com ele para onde ele for, até mesmo para o Inferno.
- Tu estás à minha mercê - disse Owain - e eu não tenho o Inferno em mente para ti nem para ele.
- No entanto, não o ides ajudar agora! Oh, meu senhor - suplicou Gwion com veemência -, pensai no que os homens dirão de vós, se deixardes o vosso irmão nas mãos dos inimigos.
- Há apenas uma semana - disse Owain pacientemente -, esses dinamarqueses eram seus amigos e camaradas de armas. Se ele não me tivesse enganado e resolvido não pagar o que lhes devia, eles estariam quietos. Mesmo que eu ignore a traição que ele lhes fez, não posso ignorar o modo grosseiro e tolo como ele se enganou a meu respeito. Eu não gosto de ser considerado um homem que é condescendente para com aqueles que quebram juramentos e que faltam desavergonhadamente à palavra livremente dada.
- Vós condenais-me não menos que a ele - disse Gwion, contorcendo-se.
- A ti, pelo menos eu compreendo. A tua traição deriva de uma lealdade demasiado imutável. Não é motivo de honra - disse Owain, cansado de ser paciente -, mas não afastará os teus amigos de ti.
- Eu estou à vossa mercê, então. O que ides fazer comigo?
- Nada - disse o príncipe. - Fica ou vai-te embora, como quiseres. Alimentar-te-emos e alojar-te-emos como fizemos em Aber, se quiseres ficar e esperar pela sorte que lhe cabe. Se não, vai quando e para onde quiseres. Tu és um homem dele, não meu. Ninguém te impedirá.
- E já não ides pedir a minha submissão?
- Já não lhe atribuo qualquer valor - disse Owain, erguendo-se com um movimento da mão a mandá-los retirar-se da sua presença.
Saíram juntos, tal como tinham entrado, mas, assim que se encontraram no exterior, Cuhelyn virou-se e ter-se-ia afastado bruscamente sem dizer uma palavra se Gwion não lhe tivesse agarrado no braço.
- Ele condena-me com a sua misericórdia! Ele podia ter-me tirado a vida, ou amarrado com as correntes que eu mereço. Tu também desvias os teus olhos de mim? Se fosse ao contrário, se fosse o próprio Owain, ou o Hywel, que estivesse cercado de inimigos, tu não terias colocado a tua lealdade para com ele acima da tua palavra e ido ter com ele, ainda que desonrado, se necessário?
Cuhelyn tinha parado tão abruptamente como se virara. O seu rosto estava tenso.
- Não. Eu só dei a minha fidelidade a senhores de honra absoluta e que exigem o mesmo dos que os servem. Se eu tivesse feito o que fizeste e trazido a desonra como um presente para Hywel, ele ter-me-ia insultado e expulsado. Cadwaladr, não tenho qualquer dúvida, recebeu-te bem e ficou satisfeito por teres vindo.
- Foi uma coisa difícil de fazer - disse Gwion com a solenidade do desespero. - Mais difícil do que morrer.
Mas Cuhelyn já se tinha soltado com um cuidado fastidioso e estava a atravessar a passos largos o acampamento que estava a acordar com a luz da manhã.
Gwion sentia-se um exilado e um proscrito entre os homens de Owain, embora eles aceitassem a sua presença sem qualquer objecção e não se esforçassem por evitá-lo ou excluí-lo. Ali, ele não tinha qualquer função. As suas mãos e as suas capacidades não pertenciam àquele senhor, e ele não podia ir para junto do seu próprio senhor. Retraído e em silêncio, atravessou as linhas e, de uma pequena colina dentro do perímetro norte do acampamento, ficou durante muito tempo a olhar para as dunas distantes onde Cadwaladr era prisioneiro, um refém por dois mil marcos em gado, dinheiro e bens, o preço de uma frota dinamarquesa.
Dentro do seu campo de visão, os campos ao longe davam lugar às primeiras ondulações de areia e as árvores dispersas passavam a agrupamentos de arbustos e vegetação rasteira. Algures para além deles, Cadwaladr, possivelmente acorrentado depois da sua captura, cismava e esperava pela ajuda que o irmão friamente lhe negava. Nenhuma afronta, nem o facto de ele ter voltado atrás com a palavra dada, nem mesmo o assassínio de Anarawd, se, de facto, essa culpa o tocava, nada podia justificar aos olhos de Gwion o abandono do irmão por parte de Ówain. Gwion considerava a sua própria quebra de juramento ao deixar Aber um gesto imperdoável, e não culpava os que o condenavam, mas não havia nada que Cadwaladr tivesse feito ou pudesse ainda fazer que levasse aquele vassalo devoto a deixar de o venerar ou seguir. A fidelidade, uma vez dada e aceite, era para toda a vida.
E ele não podia fazer nada! E verdade que ele tinha autorização para se ir embora se quisesse, e também era verdade que ele tinha uma companhia de cem bons guerreiros estacionados a poucas milhas dali, mas o que era isso contra o elevado número de homens que os dinamarqueses deviam ter e as defesas que eles deviam ter construído? Uma tentativa irreflectida de invadir o acampamento deles para libertar Cadwaladr poderia custar-lhe a vida ou, o que era mais provável, fazer com que os dinamarqueses levantassem ferros e se fizessem ao mar, onde não era possível rivalizar com eles, levando o prisioneiro para a Irlanda, fora do alcance de qualquer operação de salvamento.
Essa possibilidade distante não lhe proporcionou qualquer esclarecimento, nem lhe fez ver um caminho que conduzisse à libertação do seu senhor. Entristecia-o o facto de Cadwaladr, que já tinha perdido tanto, ser obrigado a dar o que lhe restava em dinheiro e gado para pagar a sua liberdade, sem ter sequer a certeza de vir a recuperar as terras que perdera, em troco das quais tinha sido prometida a quantia que agora lhe era exigida. Mesmo que Owain tivesse razão, e os dinamarqueses não tencionassem fazer-lhe mal se a dívida fosse paga, a humilhação do cativeiro e da submissão consumiria como uma úlcera aquele espírito orgulhoso. Gwion sentiu ressentimento contra Otir e os seus homens por cada marco do dinheiro que exigiam. Poder-se-ia dizer que Cadwaladr nunca deveria ter pedido ajuda estrangeira contra o irmão, mas esses impulsos impetuosos e errados tinham constituído sempre uma ameaça à sabedoria de Cadwaladr, e os homens que o amavam tinham-nos suportado como se fossem tropelias perigosas de uma criança valente e temerária, fazendo o melhor possível com o caos resultante. Não era generoso nem justo negar-lhe a indulgência que nunca lhe fora recusada, agora que ela era mais necessária que nunca.
Gwion moveu-se ao longo do cimo da colina, ainda a esforçar os olhos em direcção a norte. Uma franja de árvores coroava o topo, atarracadas e deformadas pelo ar salgado, e inclinando-se para o interior com o vento. E do outro lado dessa linha irregular estava um homem imóvel, robusto e enraizado como uma árvore, a olhar para as forças dinamarquesas invisíveis, tal como Gwion olhava. Era um homem com cerca de trinta e cinco anos, entroncado e musculoso, com os primeiros salpicos cinzentos no cabelo castanho, e os olhos sombreados por baixo de espessas sobrancelhas pretas estavam fixos nas curvas, moldadas pela areia, do horizonte nu. Não estava armado e tinha o peito e os braços nus à luz do sol matinal, um corpo vigoroso, imponentemente imóvel na sua concentração no horizonte. Embora ele tivesse ouvido os passos de Gwion na erva seca por baixo das árvores, e era óbvio que ele os devia ter ouvido, não virou a cabeça nem se mexeu durante alguns momentos, até Gwion se encontrar muito perto dele. Mesmo então, ele moveu-se e virou-se lentamente e com uma expressão de indiferença.
- Eu sei - disse ele, como se há muito tivessem dado conta da presença um do outro. - Ficar a olhar não traz as coisas para mais perto.
Era exactamente o pensamento de Gwion, expresso de uma forma muito adequada e, por um momento, ele ficou sem respiração. Cautelosamente, perguntou:
- Também tu? Que interesse tens entre os dinamarqueses?
- Uma mulher - disse o outro homem, com um força breve e seca que não necessitava de mais palavras para expressar a enormidade de sua privação.
- Uma mulher! - repetiu Gwion, sem compreender. - Por que estranho acaso... - O que dissera Cuhelyn sobre três reféns deixados em perigo depois da fuga e do desafio de Cadwaladr, dois monges e uma rapariga raptados pelos dinamarqueses? Dois monges e uma rapariga tinham partido de Aber integrados na comitiva de Owain. Que primeiro tinham sido vítimas dos mercenários de Cadwaladr, e depois tinham ficado prisioneiros, para pagar o preço da traição de Cadwaladr, no caso de os dinamarqueses estarem a pensar em vingar-se? Oh, o cômputo já ia longo, e a obstinação de Owain tornava-se cada vez mais fácil de compreender. Mas Cadwaladr não tinha pensado, ele nunca pensava antes, agia primeiro e arrependia-se depois, e nesse momento já devia estar arrependido de tudo o que fizera desde que cometera o primeiro erro fatal de fugir para o reino de Dublin à procura de retaliação.
Sim, a rapariga... Gwion recordava-se da rapariga. Uma bonita rapariga morena, alta, magra e calada, a servir vinho e hidromel à volta da mesa do príncipe sem um sorriso, excepto, ocasionalmente, o sorriso malicioso e triste com que atormentava o clérigo que diziam que era seu pai, recordando-lhe a posição precária em que ele se encontrava, e como ela poderia prejudicá-lo se quisesse. Essa história tinha circulado em murmúrios pelo llys, dos cavalariços às criadas, aos armeiros e aos pajens e chegado, ao fim de pouco tempo, aos ouvidos do último refém de Ceredigion, o único que podia observar todos aqueles acontecimentos com indiferença, uma vez que Gwynedd não era a sua terra e Owain não era o seu senhor, nem Gilbert de Santo Asaph o seu bispo. Seria a mesma rapariga? Ela ia casar-se, recordou-se, com um homem de Anglesey ao serviço de Owain.
- Tu és Ieuan ab Ifor - disse ele - que se ia casar com a filha do cónego.
- Sou, sim - disse Ieuan, franzindo as sobrancelhas pretas. - E quem és tu, que sabes o meu nome e o que eu estou a fazer aqui? Até agora, eu não te vi entre os vassalos do príncipe.
- Por uma boa razão. Eu não sou seu vassalo. Eu sou Gwion, o último dos reféns que ele trouxe de Ceredigion. A minha fidelidade era e é para com Cadwaladr - disse Gwion secamente, e viu o fogo lento brilhar nos olhos penetrantes que o observavam. - Para o bem ou para o mal, sou um homem dele, mas eu preferia que fosse para bem.
- É por culpa dele - disse Ieuan, irritado - que a filha de Meirion é prisioneira daqueles piratas. O bem que alguma vez veio dele cabe dentro de uma chávena de bolotas e, tal como as bolotas, pode ser dado aos porcos. Ele traz piratas bárbaros para Gwynedd, depois volta atrás com a sua palavra e foge para um lugar seguro, deixando reféns inocentes a sofrer as consequências da ira de Otir. Ele tem sido uma maldição tão grande para os seus familiares mais próximos como foi para Anarawd, que ele mandou matar.
- Tem cuidado e não vás demasiado longe a censurá-lo - disse Gwion, mas num tom de cansaço e dor, mais do que de indignação --, pois eu não suporto ouvir alguém insultá-lo.
- Oh, tem calma! Deus sabe que eu não censuro homem nenhum por apoiar o seu príncipe, mas que Deus te envie um príncipe melhor para apoiares. Tu podes perdoar-lhe tudo, independentemente do quanto ele te desonra, mas não me peças que o perdoe por ter abandonado a minha noiva ao destino que os dinamarqueses lhe reservam.
- O príncipe declarou que ela está sob sua protecção - disse Gwion -, ouvi eu dizer há apenas uma hora. Ele ofereceu um resgate justo por ela e pelos dois monges que vieram de Inglaterra, e avisou-os quanto ao valor que atribui ao facto de ela se encontrar sã e salva.
- O príncipe está cá-disse Ieuan num tom de tristeza-e ela está lá, e eles perderam o domínio sobre aquele que preferiam ter sob o seu poder. Os outros prisioneiros poderão acabar por ocupar o seu lugar.
- Não - disse Gwion -, estás enganado. Por mais que o possas odiar, podes ficar satisfeito! A noite passada, eles trouxeram um barco até à baía e puseram homens em terra para assaltarem a tenda dele, no acampamento. Fizeram Cadwaladr prisioneiro e levaram-no de volta com eles, para pagar o seu próprio resgate ou suportar o seu destino. Não são necessárias outras vítimas, eles têm a que escolheram em sua posse.
As sobrancelhas irregulares de Ieuan, o seu traço mais expressivo, uniram-se abruptamente numa linha de desconfiança e incredulidade e, seguidamente, confrontado com o olhar firme de Gwion, descontraíram-se numa expressão de perplexidade e espanto.
- Estás enganado, isso não pode...
- É verdade.
- Como é que sabes? Quem te disse?
- Não foi preciso ninguém dizer-me - respondeu Gwion. - Eu estava com ele quando eles chegaram. Eu vi. Quatro dinamarqueses de Otir entraram de rompante durante a noite. A ele, levaram-no, a mim deixaram-me amarrado e amordaçado, tal como fizeram à sentinela que estava de guarda ao portão. Tenho aqui as marcas dos cordões com que me ataram. Olha!
Os cordões tinham feito vergões profundos nos pulsos quando ele tentara libertar-se; as queimaduras provocadas pelas cordas eram inconfundíveis. Ieuan olhou para elas, em silêncio, durante um longo momento, avaliando e aceitando o que lhe fora dito.
- Foi por isso que me perguntaste: "Também tu?" Agora eu sei, sem ter que perguntar, que interesses tens entre os dinamarqueses. Hás-de desculpar-me por te dizer claramente que a tua dor não me aflige. Foi ele que provocou o que lhe vier a acontecer. Mas o que fez a minha rapariga para merecer o perigo em que ele a deixou? Se a captura dele a libertar, isso alegrar-me-á.
Uma vez que não era possível contestar tal argumento, Gwion ficou calado.
- Se tivesse uma dúzia de homens que pensassem como eu - prosseguiu Ieuan, mais para si próprio do que para outra pessoa - eu próprio a tiraria de lá, contra todos os dinamarqueses que Dublin possa enviar a Gwynedd. Ela é minha, e eu tê-la-ei.
- No entanto, ainda não a viste - disse Gwion, sacudido pela súbita convulsão de paixão num homem tão contido e imóvel.
- Ah, mas eu já a vi. Eu já estive a dois passos da paliçada deles sem eles me verem, e posso voltar a fazê-lo. Via-a lá, no cimo das dunas, a olhar para sul, à procura da libertação que ninguém lhe envia. Ela é mais do que me disseram. Ágil e viva como o aço, e move-se como um fauno. Eu aventurar-me-ia a ir buscá-la sozinho, mas receio provocar a sua morte mesmo antes de conseguir chegar perto dela.
- Eu faria o mesmo pelo meu senhor - disse Gwion, ficando imóvel e atento, pois aquele amante ousado e fervoroso tinha feito nascer uma centelha de esperança dentro de si.-Embora Cadwaladr não signifique nada para ti, e a tua Heledd pouco mais seja para mim, se juntarmos as nossas cabeças e unirmos as nossas forças, podemos ambos beneficiar com isso. Dois é melhor que um só.
- Mas continuamos a ser apenas dois - disse Ieuan. Mas ele estava à escuta.
- Dois é apenas um começo. Dois agora podem ser mais dentro de alguns dias. Mesmo que eles obriguem o meu senhor a pagar o resgate, serão necessários alguns dias para trazer e carregar o gado e juntar o que faltar em moedas de prata. - Ele aproximou-se mais e prosseguiu em voz baixa, de modo a ser ouvido apenas por Ieuan, se mais alguém passasse por ali. - Eu não vim cá sozinho. Eu reuni e trouxe de Ceredigion cerca de cem homens que ainda são fiéis a Cadwaladr. Oh, não com o objectivo que temos em mente neste momento. Eu tinha a certeza de que os irmãos fariam as pazes e que eles se uniriam para expulsar os dinamarqueses, e trouxe ao meu senhor pelo menos um número de seguidores razoável para lutar por ele lado a lado com os que lutam por Owain. Eu não queria que ele se libertasse e permanecesse vivo apenas por graça do irmão, mas sim à frente de uma companhia dos seus próprios homens. Eu vim à frente para lhe trazer a notícia e descobri que Owain o tinha abandonado. E agora os dinamarqueses levaram-no.
O rosto de Ieuan tinham readquirido a sua calma impassível mas, por trás da testa larga e do olhar distante, uma mente perspicaz estava ocupada com os cálculos das possibilidades até então imprevistas.
- A que distância estão os teus cem homens?
- A dois dias de marcha. Eu deixei o meu cavalo e um cavalariço que veio comigo a uma milha a sul e vim sozinho à procura de Cadwaladr. Agora que Owain me deu a liberdade de ficar ou partir, eu posso voltar dentro de uma hora para o local em que deixei o meu homem e mandá-lo trazer a companhia o mais depressa que homens a pé conseguirem marchar.
- Há alguns homens cá dentro - disse Ieuan - que gostariam de se aventurar. Alguns eu posso persuadir, outros não precisam de qualquer persuasão. - Ele esfregou as mãos grandes, vigorosas, e fechou os dedos com força sobre uma arma invisível. - Eu e tu, Gwion, havemos de conversar mais sobre isto. E não devias estar já a caminho antes do fim do dia?
Passava do meio-dia quando Torsten levou novamente o seu prisioneiro acorrentado, humilhado e extremamente irritado, à presença de Otir. Os belos lábios de Cadwaladr estavam cerrados, e os seus olhos pretos ardiam de raiva, ainda mais amarga por estar acorrentado. Apesar de todos os seus protestos, ele sabia tão bem como qualquer outra pessoa que Owain não cederia na posição que assumira. O tempo para esperanças inúteis tinha passado, a realidade tinha-o submergido e colocado numa situação de que era impossível escapar. Não valia a pena resistir, uma vez que a submissão acabaria por ser inevitável.
- Ele tem uma coisa para te dizer - disse Torsten, sorrindo. - Ele não gosta de viver acorrentado.
- Ele que fale por si próprio - disse Otir.
- Eu pagar-vos-ei os vossos dois mil marcos - disse Cadwaladr. A sua voz saiu fina entre dentes cerrados, mas ele estava bem seguro de si. - Tu não me deixas outra opção, uma vez que o meu irmão me trata de uma forma pouco fraternal. - E, testando os baixios que lhe restavam da sua maré de azares, acrescentou: - Vais ter que me permitir alguns dias de liberdade para reunir uma tão grande quantidade de bens, pois não pode ser tudo em dinheiro.
Isso provocou uma enorme gargalhada de Torsten e um enfático movimento de cabeça de Otir.
- Oh, não, não, meu amigo! Eu não sou tão tolo que volte a acreditar em ti. Tu não vais dar um passo para fora daqui, nem te vais livrar dos teus grilhões, até os meus barcos estarem carregados, prontos para se fazerem ao mar.
- Então como é que propões que eu efective esta questão do resgate? - perguntou Cadwaladr num tom ríspido. - Estás à espera que os meus administradores te tragam o meu gado e o meu dinheiro, simplesmente a uma ordem tua?
- Usarei um intermediário em que confio - disse Otir, nada perturbado com qualquer lampejo de ira ou desafio vindo de um homem que se encontrava inteiramente em seu poder. - Isto é, se ele agir em teu nome mesmo nesta questão. Que ele a aprova, isso já nós sabemos, tu melhor do que qualquer de nós. O que vais fazer, antes de eu deixar à solta, mesmo sob a minha guarda, é entregar o teu pequeno selo... eu sei que o tens, tu não vais a lado nenhum sem ele... e dar-me uma pequena mensagem, fraseada de modo a que o teu irmão saiba que ela só poderia vir de ti. Eu lidarei com um homem em quem confio, independentemente de a situação entre nós ser de amizade ou inimizade. Owain Gwynedd, ainda que não pretenda pagar o teu resgate, não deixará de receber bem a notícia de que tencionas pagar as tuas dívidas honrosamente, nem te recusará ajuda para que a compensação seja efectuada. Owain Gwynedd fará os ajustes entre eu e tu.
- Ele não o fará! - inflamou-se Cadwaladr, picado. - Porque é que ele havia de acreditar que eu te dei o meu selo de livre vontade, quando podias ter-me despido e mo tirado? Independentemente da mensagem que eu possa enviar, como é ele vai confiar, como é que ele poderá ter a certeza de que a enviei de minha livre vontade, e que ela não ma foi arrancada com o teu punhal junto da minha garganta, ameaçando-me de morte?
- Ele já me conhece suficientemente bem - disse Otir secamente - para saber que eu não sou tolo ao ponto de destruir o que me pode ser e será lucrativo. Mas, se tens dúvidas, muito bem, enviaremos alguém em quem ele confiará, e esse homem aceitará as ordens directamente da tua pessoa e testemunhará a Owain que as recebeu desse modo. Owain saberá a verdade pelo seu portador. Eu duvido que, neste momento, ele tenha muito prazer em ver-te. Mas quando souber que decidiste honrar as tuas dívidas, ele procederá como um irmão e juntará rapidamente o dinheiro. Ele quer que eu me vá embora, e eu irei assim que tiver aquilo por que vim, e ele poderá ter-te de volta e que faça bom proveito.
- Tu não tens um homem assim na tua companhia - disse Cadwaladr enrolando o lábio. - Porque é que ele havia de confiar num homem teu?
- Ah, mas tenho! Não é um homem meu, nem de Owain, nem teu, o seu serviço pertence a outra jurisdição. Um homem que se ofereceu livremente como garantia do teu regresso quando saíste de cá para ir falar com o teu irmão. Sim, um homem que deixaste entregue ao seu destino e ao meu senso comum quando me lançaste o teu desafio à cara e fugiste de volta para um irmão que te desprezou por o teres feito. - Otir viu o rosto moreno do príncipe corar e ficou muito satisfeito por o ter picado.
- Ele ficou refém por ti, por bondade, e agora que regressaste, embora de má vontade, já não tenho o direito de o manter cá. E esse é o homem que irá ter com Owain como teu enviado e, em teu nome, reunir os meios e os bens que ainda tiveres e trazer cá o teu resgaste. - Ele virou-se para Torsten, que se mantivera à espera durante a troca de palavras, com um ar obviamente satisfeito. - Vai à procura do jovem diácono de Lichfield, o rapaz do bispo, Mark, e pede-lhe que venha falar comigo.
Quando recebeu a notícia, Mark estava com o Irmão Cadfael no meio das árvores raquíticas ao longo do outeiro, a apanhar galhos para a fogueira. Ele endireitou-se com a sua carga reunida na dobra de uma manga larga e ficou a olhar para o mensageiro, um pouco surpreendido, mas sem o mínimo vestígio de alarme. Naqueles dias de cativeiro nominal, ele nunca se sentira prisioneiro, nem em perigo, mas também nunca imaginara que tinha qualquer particular interesse ou importância para os seus captores, para além do valor negocial que o seu corpo franzino pudesse ter.
Tal como uma criança curiosa, ele perguntou, de olhos muito abertos:
- O que poderá o vosso comandante querer de mim?
- Nada de mal - disse Cadfael. - Tanto quanto eu consigo ver, ao fim deste tempo todo, estes dinamarqueses irlandeses têm mais de irlandês do que de dinamarquês neles. Otir parece-me tão cristão como a maior parte dos habitantes da Inglaterra ou de Gales, e muito mais cristão do que alguns deles.
- Ele tem uma tarefa para ti - disse Torsten, sorrindo com um ar bem disposto - que será benéfica para todos. Vem ouvir por ti próprio.
Mark empilhou o combustível que tinha apanhado perto da lareira que tinham construído com pedras na concavidade de areia abrigada que ocupavam, e seguiu Torsten, com curiosidade, até à tenda aberta de Otir. Ao ver Cadwaladr, rigidamente erecto, acorrentado e tenso como a corda de um arco, Mark parou e respirou fundo, espantado. Era a primeira indicação que ele tinha de que o turbulento fugitivo estava de regresso ao acampamento, e era desconcertante vê-lo ali amarrado e em apuros. O seu olhar deslocou-se do prisioneiro para o captor e viu Otir, obviamente muito satisfeito, com um sorriso intimidante nos lábios. O destino estava ocupado a pôr tudo de pernas para o ar, para se divertir.
- Mandou-me chamar - disse Mark simplesmente. - Estou aqui.
Otir observou, com um ar indulgente e surpreendentemente suave e divertido, aquele jovem franzino que falava ali em nome de uma igreja que tanto os galeses como os irlandeses e os dinamarqueses de Dublin reconheciam. Um dia, daí a alguns anos, ele talvez até tivesse que chamar "Pai" àquele rapaz! "Irmão" já ele lhe podia chamar.
- Como vê - disse Otir -, o senhor feudal Cadwaladr, por quem o Irmão ficou cá como garantia de que ele iria e viria sem qualquer impedimento, voltou para junto de nós. O seu regresso faz com que o Irmão fique livre para se ir embora. Se levar uma mensagem dele ao seu irmão Owain Gwynedd, estará a fazer uma boa acção para ele e para todos nós.
- Tem que me dizer o que é - disse Mark. - Eu não me senti privado da minha liberdade aqui. Não tenho qualquer queixa.
- O próprio senhor Cadwaladr dir-lhe-á - disse Otir, e o seu sorriso satisfeito alargou-se. - Ele diz que está disposto a pagar os dois mil marcos que nos prometeu se viéssemos a Abermenai com ele. Ele quer que transmita ao seu irmão como isso deverá ser feito. Ele dir-lhe-á.
Mark olhou com alguma dúvida para o rosto tenso e para os ardentes olhos escuros de Cadwaladr.
- É verdade?
- É - a voz era forte e clara, embora um pouco irritada. Uma vez que não podia fazer nada, Cadwaladr aceitava a necessidade, se não com elegância, pelo menos com os restos recuperados da sua dignidade. - Eu sou obrigado a pagar a minha liberdade. Muito bem, decidi pagar.
- Isso é realmente uma decisão sua? - perguntou Mark num tom de dúvida.
- É. Para além do que vê, não estou a ser ameaçado. Mas eu só serei livre quando o resgate tiver sido pago e os barcos carregados para se fazerem ao mar e, por conseguinte, não posso ir eu próprio dar ordens para reunir o meu gado, nem ir buscar o dinheiro para perfazer a quantia. Eu quero que o meu irmão faça tudo isso por mim o mais rapidamente possível. Eu enviar-lhe-ei a minha autoridade por si, e o meu selo como prova.
- Se é isso o que deseja - disse Mark -, sim, eu serei portador da sua mensagem.
- É o que eu desejo. Se lhe contar que eu próprio lhe disse, ele irá acreditar. - Naquele momento, os seus lábios estavam muito finos do esforço de conter o azedume e a fúria, mas ele tinha tomado uma decisão. Mais tarde poderia vingar-se, poderia exigir outro pagamento como retribuição deste, mas do que ele agora precisava era da sua liberdade. Tirou o seu selo privado de um bolso da manga e estendeu a mão, não para Otir, que o observava com um sorriso radioso, mas para Mark. - Leve isto ao meu irmão, diga-lhe que o recebeu da minha mão e peça-lhe que se apresse a obter aquilo de que preciso.
- Fá-lo-ei, fielmente - disse Mark.
- Então peça-lhe que envie alguém por mim a Llanbadarn ter com Rhodri Fychan, que era o meu administrador e será novamente o meu administrador se eu alguma vez recuperar o que é meu. Ele saberá onde encontrar o que resta do meu dinheiro e, de acordo com as minhas ordens, testemunhadas pelo meu selo, ele entregá-lo-á. Se a quantia não for suficiente, o que falta terá que ser coberto com gado. Rhodri sabe onde está o meu gado. Ainda há manadas que estão a ser cuidadas para mim, mais do que suficientes. A quantia é dois mil marcos. Peça ao meu irmão que se apresse.
- Fá-lo-ei - disse Mark simplesmente, começando a apressar-se. Foi ele que se despediu deles como um embaixador, e não como se reconhecesse que Otir o estava a mandar embora. Uma pequena vénia e umas breves palavras de despedida, e ele já estava a caminho. Por qualquer motivo, o espaço no interior da tenda e em redor desta pareceu ficar curiosamente vazio com a remoção da sua figura franzina.
Ele foi a pé; a distância era pouco mais de uma milha. Dentro de meia hora ele estaria a transmitir a mensagem a Owain Gwynedd e a pôr em movimento os acontecimentos que devolveriam a liberdade a Cadwaladr, se não as suas terras, e faria desaparecer de Gwynedd a ameaça da guerra e a presença opressora de um exército estrangeiro.
A única pausa que fez antes de partir foi para comunicar a Cadfael a missão de que fora incumbido.
O Irmão Cadfael dirigiu-se muito pensativamente para onde Heledd estava a atiçar o fogo na lareira de pedra, para preparar a comida para a refeição nocturna. A sua mente estava ocupada com o que acabara de saber, mas não pôde deixar de notar como Heledd se dava bem com a vida errante de um acampamento militar. Ela recebera o sol com graciosidade, a sua pele adquirira um tom de bronze dourado que tinha a suave frescura da azeitona e que ficava muitíssimo bem com o cabelo e os olhos escuros, e com o vermelho vivo da boca. Ela nunca fora tão livre na vida como era agora em cativeiro. O brilho da liberdade envolvia-a como um manto de ouro, e não tinha qualquer importância que a sua manga estivesse rasgada e que a bainha do vestido estivesse suja e puída.
- Há notícias que podem ser boas para todos nós - disse Cadfael observando os seus movimentos simples com prazer. - Não só Turcaill regressou são e salvo da sua expedição da meia-noite, como parece que ele trouxe Cadwaladr de volta com ele.
- Eu sei - disse Heledd. As suas mãos ocupadas ficaram imóveis por um momento, e ela olhou para o fogo e sorriu. - Eu vi-os regressar antes do nascer do sol.
- E não disseste nada? - Não, ela não diria, ainda não, não a qualquer pessoa. Isso revelaria mais do que ela estava disposta a revelar por enquanto. Como é que ela podia dizer que se tinha levantado antes do nascer do sol, para ficar à espera de ver o pequeno barco voltar, são e salvo? - Eu mal te vi hoje. O que quer que eles tivessem feito não teve quaisquer consequências nefastas, isso era a única coisa que interessava. Porquê, o que há? Como é que é bom para todos nós?
- Bem, o homem caiu em si e concordou em pagar aos dinamarqueses o que lhes prometeu. Mark acabou de ser enviado para encarregar Owain de, em nome do seu irmão e com o selo do irmão como garantia da veracidade, reunir e pagar o resgate. Assim que o receber, Otir vai-se embora, deixando Gwynedd em paz.
Agora ela tinha-se realmente virado para prestar a devida atenção ao que ele estava a dizer, com as sobrancelhas erguidas e as mãos imóveis.
- Ele cedeu? Já? Vai pagar?
- Foi Mark quem me disse e Mark já vai a caminho. Nada pode ser mais certo.
- E eles vão-se embora! - disse ela, num tom que era um mero murmúrio nos seus lábios imóveis. Ela puxou os joelhos para cima, colocou os braços à volta deles, e ficou a olhar em frente, sem sorrir nem franzir a testa, limitando-se a pesar os prós e os contras daquelas novas perspectivas. - Quanto tempo pensas, Cadfael, que demorarão a trazer o gado de Ceredigion até cá?
- Três dias, pelo menos - disse Cadfael, vendo-a armazenar aquele facto nos metódicos recantos da sua mente, para ser tido em conta.
- Três dias no máximo, então - disse ela -, pois Owain terá pressa em ver-se livre deles.
- E tu ficarás contente por te veres em liberdade - disse Cadfael sondando suavemente áreas em que a verdade tinha pelo menos duas caras, e ele não tinha a certeza de qual delas estava virada para ele, e qual não estava.
- Sim - disse ela. - Ficarei contente! - e ela olhou para além dele, para a inconstante superfície azul acinzentada do mar, e sorriu.
Gwion tinha chegado sem qualquer impedimento ao posto da sentinela, o mesmo através do qual o seu senhor tinha sido raptado, e estava a atravessar o limiar quando a sentinela lhe barrou o caminho com uma lança e lhe perguntou secamente:
- És Gwion, não és, o vassalo de Cadwaladr?
Mais perplexo do que alarmado, Gwion admitiu que era. Não havia dúvida de que, depois da incursão da noite anterior, o portão estava a ser vigiado mais atentamente, e aquela sentinela não sabia o que Owain tinha em mente e não tencionava ser acusado de permitir que alguém entrasse ou saísse sem ser interrogado.
- Sou. O príncipe deu-me autorização para ficar ou partir, conforme eu quiser. Pergunta a Cuhelyn. Ele confirmá-lo-á.
- Eu tenho notícias para ti - disse a sentinela, sem se mexer. - Porque o príncipe há ainda pouco tempo pediu que te procurássemos, se ainda estivesses no interior da paliçada, e te levássemos novamente à sua presença.
- Eu nunca o vi mudar de ideias desta maneira - protestou Gwion num tom desconfiado. - Ele tornou claro que não estava interessado em mim e que lhe era indiferente que eu ficasse ou partisse. Ou que eu vivesse ou morresse.
- No entanto, parece que ele tem qualquer coisa útil para fazeres. Não deve ser nada de mal, uma vez que ele não fez qualquer ameaça. Vai ver. Ele quer falar contigo. Não sei nada mais do que isso.
Não era possível evitá-lo. Gwion deu meia volta e dirigiu-se à casa atarracada, com a mente num tumulto de especulações infrutíferas. Owain não podia ter ouvido falar do que ainda era, na melhor das hipóteses, apenas uma intenção vaga, nem sequer um plano, embora ele tivesse passado muito tempo a conversar com Ieuan ab Ifor sobre números e meios, e tudo o que Ieuan tinha conseguido saber a respeito da disposição do acampamento dinamarquês. Demasiado tempo, ao que parecia agora. Ele devia ter partido imediatamente, antes de ter sido possível detê-lo. Nesta altura, ele já devia ter enviado o seu cavalariço para sul, para trazer as forças prometidas, e regressado ao interior da paliçada antes de terem dado pela sua falta. Os planos podiam ter esperado. Agora era demasiado tarde, estava encurralado. No entanto, ainda nada estava perdido. Owain não podia saber. Ninguém sabia a não ser Ieuan, e Ieuan ainda não tinha dito uma única palavra aos homens que ele sabia que participariam de bom grado numa aventura. Esse recrutamento ainda não fora feito. Nesse caso, o que Owain queria dele não podia ter nada a ver com o seu embrionário empreendimento.
Ele ainda estava febrilmente a imaginar e a pôr de parte possibilidades quando entrou no salão de traves baixas e fez uma vénia rígida e cautelosa ao príncipe, sentado do outro lado da tosca mesa desmontável.
Hywel estava lá, perto do pai, e dois comandantes de confiança do príncipe encontravam-se um pouco afastados, testemunhando algo que ainda era inexplicável para Gwion. Pois a outra pessoa presente no salão era o franzino diácono de Lichfield, com o seu hábito preto, o seu anel espetado de cabelo cor de palha a crescer teimosamente para todos os lados, os seus olhos cinzentos muito abertos, francos e tranquilos como sempre. Eles olharam para Gwion, e Gwion virou a cabeça, como se receasse que eles lessem os seus pensamentos se o olhassem de frente. Até mesmo o olhar benevolente daqueles olhos o enervava. Mas o que podia aquele pequeno clérigo ter a ver com qualquer questão entre Owain, Cadwaladr e os invasores dinamarqueses? No entanto, se se tratasse de algo completamente diferente, o que poderia isso ter a ver com ele, e que necessidade havia de o terem chamado?
- Ainda bem que ainda não nos deixaste, Gwion - disse Owain -, porque, afinal de contas, há uma coisa que podes fazer por mim e, por conseguinte, também pelo teu senhor.
- Certamente que o farei, com todo o gosto - disse Gwion, embora não muito convencido.
- O diácono Mark acabou de chegar de junto de Otir, o dinamarquês - disse o príncipe - que mantém prisioneiro o meu irmão e teu senhor. Ele trouxe uma mensagem de Cadwaladr, que concordou em pagar a quantia que prometeu, saldando assim a sua dívida e comprando a sua liberdade.
- Não acredito! - disse Gwion, empalidecendo de choque. - Eu só acreditarei se o ouvir a ele a dizê-lo, livre e abertamente.
- Então somos os dois da mesma opinião - disse Owain secamente - porque eu não estava à espera que ele visse a razão tão depressa. Tu tens bons motivos para saber o que eu penso sobre este assunto. Eu preferia que o meu irmão fosse um homem de palavra e que cumprisse o que promete. Mas eu também não aceitaria de outra pessoa as instruções que o vão reduzir à miséria. Otir é uma pessoa justa. Não poderás ouvir o desejo do meu irmão da sua própria boca, pois ele só será livre quando a sua dívida tiver sido paga. Mas podes ouvi-lo do Irmão Mark, que o recebeu dele e testemunhará que ele o expressou com firmeza e intenção, com o corpo intacto e no seu juízo perfeito.
. - Eu, de facto, testemunho-o - disse Mark. - Ele é prisioneiro há apenas um dia. Está acorrentado mas, para além disso, ninguém lhe pôs a mão em cima, e não foi feita qualquer ameaça contra o seu corpo ou a sua vida. Foi o que ele disse, e eu acredito, porque nem a mim nem aos outros reféns dos dinamarqueses foram feitas quaisquer ameaças de violência. E ele próprio me entregou o seu selo, como autorização para o acto, e eu entreguei-o ao príncipe, de acordo com as ordens de Cadwaladr.
- E o conteúdo da mensagem? Tenha a amabilidade de a repetir, - pediu o príncipe cortezmente. - Eu não quero que o Gwion receie que eu o tenha instigado, ou deturpado as suas palavras.
- Cadwaladr pede ao senhor feudal Owain, seu irmão - disse Mark fixando os intimidantes olhos límpidos no rosto de Gwion -, que enviasse alguém o mais depressa possível a Llanbadarn falar com Rhodri Fychan, que era seu administrador e que sabe onde está guardado o dinheiro que lhe resta, dizendo-lhe que o seu senhor quer que lhe seja enviado para Abermenai dinheiro e gado no valor de dois mil marcos, a serem entregues às forças dinamarquesas de Otir, conforme lhes foi prometido no acordo feito em Dublin. E, para esse fim, ele enviou o seu selo como garantia.
Houve um longo silêncio depois de a voz clara e suave ter terminado o discurso; Gwion ficou imóvel e calado, lutando contra a fúria da negação, desespero e ira dentro de si. Não era possível que uma pessoa tão orgulhosa e intolerante como Cadwaladr se tivesse conformado, e tão depressa. E, no entanto, os homens, até mesmo os mais arrogantes e impulsivos, atribuem um grande valor às suas vidas e à sua liberdade e, quando a ameaça se aproxima e passa da imaginação à realidade, são capazes de as comprar mesmo que isso acarrete humilhação e vergonha. Mas atrever-se a desafiar e abandonar os dinamarqueses primeiro, e depois rastejar perante eles e juntar o dinheiro para lhes pagar com uma pressa pouco dignificante... isso era desonroso. Se ele tivesse aguardado alguns dias, poderia ter havido outro desfecho. Os seus próprios homens estavam muito perto e não o deixariam acorrentado durante muito tempo, mesmo que o irmão e todos os outros o tivessem abandonado. Meu Deus, dá-me dois dias, rezou Gwion atrás do seu rosto moreno fechado, que eu irei buscá-lo à força, e ele cancelará as instruções ao administrador e recuperará os seus bens, e será novamente Cadwaladr, erecto como sempre foi.
- Eu tenciono - estava Owain a dizer, algures na orla do consciente de Gwion, uma voz que vinha de longe, ou das profundezas - cumprir esta incumbência rapidamente, como ele pede, para recuperar a sua pessoa e o seu bom nome o mais depressa possível. O meu filho Hywel irá imediatamente para sul. Mas uma vez que aqui estás, Gwion, e a tua única preocupação é servi-lo, vais acompanhar Hywel, e a tua presença será mais uma garantia para Rhodi Fychan de que esta é, de facto, a voz de Cadwaladr a falar, e os que o servem devem obedecer-lhe. Vais?
- Vou.
Que outra coisa podia ele dizer? Já estava decidido. Era uma maneira de o mandar embora, mas com uma concessão à sua inabalável lealdade. Em nome dessa lealdade, ele era agora obrigado a ajudar a tirar ao seu senhor uma grande parte dos bens que lhe restavam, quando há apenas pouco tempo ele se sentia muito animado, prestes a levar um exército para resgatar Cadwaladr, sem aquela ignomínia e perda. Mas Gwion disse: "Vou", dissimulando. Talvez ainda houvesse uma oportunidade de contactar com as forças que o aguardavam antes de os dinamarqueses terem carregado os barcos, levantado ferros com o seu saque e partido triunfantemente para Dublin.
Partiram menos de uma hora depois, Hywel ab Owain, Gwion e uma escolta de dez homens armados, com boas montadas e autoridade para exigir cavalos frescos ao longo do caminho. Quaisquer que fossem os sentimentos de Owain em relação ao seu irmão, ele não queria que ele ficasse prisioneiro durante muito tempo - nem talvez um devedor negligente. Não havia qualquer forma de saber qual duas situações era mais importante.
Os três dias previstos por Cadfael decorreram com enérgica actividade noutro local, mas nos dois acampamentos opostos eles arrastaram-se interminavelmente, como uma respiração sustida. Até mesmo a vigia das paliçadas se tornou um pouco descuidada, não se esperando qualquer ataque, uma vez que o problema estava perto de ser solucionado sem necessidade de recorrer à guerra. Só Ieuan estava ainda inquieto com a espera e mantinha sempre em mente o facto de negociações daquele género poderem sempre falhar e os prisioneiros serem mantidos prisioneiros, as dívidas por pagar, os casamentos adiados para além do que era suportável. E à medida que as horas passavam, ele falava em privado com um ou outro dos seus amigos mais jovens e mais obstinados, explicava-lhes o caminho seguro que fizera duas vezes durante a noite com a maré vazia ao longo dos seixos e da areia para espiar as defesas dinamarquesas, e como havia um local em que a aproximação a partir do mar era possível com uma cobertura razoável de arbustos e árvores. Cadwaladr podia ter-se submetido, mas aqueles jovens galeses exaltados não o tinham feito. Eles sentiam um amargo ressentimento pelo facto de os invasores da Irlanda não só voltarem para casa sem qualquer perda, mas levando ainda um lucro substancial resultante da sua incursão. Mas não seria já demasiado tarde, agora que se sabia que Hywel tinha ido para sul com ordens para trazer e pagar a quantia que Otir exigira e com a qual Cadwaladr concordara?
De modo algum. Porque Gwion tinha ido com eles, e algures entre aquele local e Ceredigion Gwion tinha colocado cem homens dispostos a lutar por Cadwaladr. Nenhum deles tinha consentido em que o seu senhor fosse roubado de dois mil marcos ou obrigado a rastejar perante o dinamarquês. Mesmo que Cadwaladr tivesse sido levado a descer tão baixo que se tivesse submetido, eles não suportariam. Ieuan falara com Gwion antes de este ter partido com o grupo de Hywel. No caminho para sul, se houvesse oportunidade, ele afastar-se-ia dos seus companheiros e iria ter com os guerreiros que o aguardavam. Quando estivesse novamente a caminho do norte, se ele tivesse sido observado com demasiada suspeita no caminho para sul, até mesmo Hywel estaria satisfeito com ele pelo papel que desempenhara a lidar com Rhodri Fychan em Llanbadarn, e ninguém estaria a prestar demasiada atenção ao que ele fazia. Algures ao longo do percurso das manadas, ele conseguiria afastar-se e ir à frente. A única coisa de que precisavam era de uma noite escura com a maré vazia e, com os seus números assim reforçados, Heledd e Cadwaladr seriam arrancados ao cativeiro e Otir far-se-ia ao mar para salvar a vida, voltaria a Dublin de mãos vazias.
Entre os seguidores de Owain, havia alguns jovens exaltados cujos instintos tendiam mais para resolver todas as questões de um modo sangrento do que para tentar a saída do impasse sem perda de vidas. Havia alguns que diziam abertamente que Owain agia erradamente ao abandonar o seu irmão à sua sorte, obrigando-o a pagar as suas dívidas sozinho. Era verdade que as promessas deviam ser cumpridas, mas a força de laços sanguíneos e familiares podia até fazer esquecer as promessas. Por isso eles escutaram, e a ideia de assaltar as defesas dos dinamarqueses, varrendo Otir e os seus homens para os seus barcos na ponta das lanças e de os expulsar para o mar começou a ter um poderoso atractivo. Eles estavam cansados de estar inactivos dia após dia. Que glória havia em negociar uma saída do perigo com dinheiro e conciliação?
A imagem de Heledd ardia na memória de Ieuan, a rapariga morena sentada de encontro ao céu numa colina das dunas. Ele tinha-a visto lá duas vezes e observado o passo longo e ágil, e a cabeça de pose orgulhosa. Mesmo quando imóvel, ela tinha uma impetuosa graciosidade. E ele não conseguia acreditar, não conseguia convencer-se a si próprio, de que uma mulher nas suas condições, sozinha num acampamento de homens, pudesse continuar até ao fim sem ser violada, sem ser cobiçada. Isso era contra a natureza dos mortais. Fosse qual fosse a autoridade de Otir, alguém a desafiaria. E agora o seu maior receio era que, quando tivessem carregado o seu saque, tão mansamente entregue, e estivessem a levantar ferros para navegar em direcção a casa, eles levassem Heledd consigo, tal como tinham levado muitas
- mulheres galesas no passado, para ser escrava de um dinamarquês de Dublin o resto da sua vida.
Ele não se teria empenhado como fazia só por causa de
Cadwaladr, a quem só devia desventuras. Mas pela hostilidade que sentia contra os invasores, e para recuperar Heledd, ele ousaria atacar com apenas o seu pequeno grupo de heróis de opiniões semelhantes, se necessário fosse. Mas seria muito melhor que Gwion regressasse a tempo com os seus cem homens. Por isso, durante o primeiro dia, bem como no segundo, Ieuan aguardou com paciência e ficou de vigia, atento a qualquer sinal oriundo do sul.
No campo de Otir, os dias de espera passaram lenta mas confiantemente, talvez com demasiada confiança, pois havia certamente algum afrouxamento na rígida vigia que era feita. Os barcos de carga, de vela quadrada, com os poços centrais prontos a serem carregados, foram levados para mais próximo de terra, a fim de serem facilmente trazidos para a praia quando chegasse a altura, e apenas os pequenos e rápidos barcos-dragão permaneceram no interior do ancoradouro. Otir não tinha qualquer motivo para duvidar da boa fé de Owain e, como prova da sua, retirara as correntes de Cadwaladr, embora Torsten se mantivesse vigilante junto do prisioneiro, pronto para qualquer movimento temerário. Eles não confiavam em Cadwaladr, conheciam-no demasiado bem.
Cadfael via as horas passar e não sabia bem o que pensar. As coisas ainda podiam correr mal, embora não parecesse haver qualquer motivo para que isso acontecesse. Simplesmente, quando dois exércitos armados se encontravam tão perto um do outro numa atitude de confronto, bastava uma faísca para incendiar a hostilidade latente entre eles. A espera podia até fazer com que o silêncio parecesse agoirento, e ele sentia a falta da companhia serena de Mark. O que mais atraiu a sua atenção durante aquele interlúdio foi o comportamento de Heledd. Ela prosseguia com a simples rotina que tinha concebido para viver ali sem aparente impaciência ou antecipação, como se tudo estivesse pré-deter-minado e já tivesse sido aceite, e não pudesse fazer nada a esse respeito e não houvesse nada na situação que lhe agradasse ou a perturbasse. Ela estava, talvez, mais silenciosa do que era habitual, mas sem que isso implicasse tensão ou angústia, mais como se as palavras fossem desperdiçadas em questões já tidas como certas. Essa atitude poderia ter sugerido nada mais do que a resignação a um destino que ela não podia influenciar, mas não havia qualquer alteração na luz de Verão que tinha transformado o seu rosto atraente em beleza, ou no fulgor profundo dos seus olhos quando eles observavam a praia de seixos e o balouçar dos barcos na água sob o ímpeto das diferentes marés. Cadfael não a seguia com demasiada frequência, nem a observava atentamente. Se ela tinha segredos, ele não queria saber quais eram. Se ela quisesse fazer confidências, fá-las-ia. Se precisasse alguma coisa dele, pedi-la-ia. E ele tinha a certeza de que ela estava em segurança. A única coisa que aqueles rapazes inquietos queriam agora era carregar os barcos e regressar a Dublin com os seus ganhos, livres de uma missão que poderia bem ter terminado em catástrofe, dado o seu parceiro vira-casacas.
Assim, o segundo dia chegou ao fim nos dois acampamentos.
Confrontado com a autoridade de Hywel ab Owain e o testemunho relutante e altivo de Gwion, que tão obviamente detestava ter de admitir a capitulação do seu senhor, e com o selo de Cadwaladr na mão, Rhodri Fychan, nas suas terras em Ceredigion, não encontrou motivo para duvidar das instruções que lhe foram dadas. Ele aceitou-as com um encolher de ombros e entregou a Hywel a maior parte dos dois mil marcos em moedas. Estas constituíam um fardo pesado para alguns cavalos de carga que também foram entregues como parte do preço do resgate. E o resto, disse ele num tom de resignação, podia ser reunido nas pastagens perto da fronteira norte de Ceredigion, perto da raia de Gwynedd, nas manadas que ainda pertenciam a Cadwaladr e que tinham sido levadas para lá quando o mesmo Hywel o expulsara do castelo e deitara fogo a este, há mais de um ano. Os seus próprios vaqueiros pastoreavam-nos lá desde que ele fora expulso.
Foi Gwion quem sugeriu que ele próprio fosse encarregado de cavalgar novamente para norte à frente dos seus companheiros a fim de levar o gado, cujo andamento seria lento, imediatamente para Abermenai. Os cavaleiros poderiam apanhá-los facilmente depois de terem carregado a prata, e não se desperdiçaria tempo na viagem de regresso. Um cavalariço de Rhodri, satisfeito com a oportunidade de viajar, iria com ele, para testemunhar que tinham autorização do próprio Cadwaladr, através do seu administrador, para separar cerca de trezentas cabeças de gado e para as levar para norte.
Era tudo ou mais do que ele podia ter desejado. Na viagem para sul, ele não tinha tido oportunidade de se afastar nem de preparar a sua fuga. Agora que ia novamente em direcção a norte, tudo lhe vinha parar às mãos. Assim que atravessasse a fronteira de Gwynedd, com a manada e os vaqueiros atrás de si, nada seria mais fácil do que separar-se deles e cavalgar à frente, com o pretexto de comunicar a Otir que podia preparar os barcos para receber os animais e deixá-los seguir para Abermenai o mais depressa que eles conseguissem deslocar-se.
Foi na manhã do segundo dia, muito cedo, que ele partiu, chegando ao fim da tarde ao acampamento onde tinha deixado os seus cem companheiros a viver à custa dos camponeses da zona e, naquela altura, pouco mais benquistos pelos seus vizinhos do que exércitos desse género geralmente são, e satisfeitos por se encontrarem novamente em movimento.
Pareceu sensato aguardar até de manhã antes de marcharem. Eles encontravam-se num local abrigado numa clareira, afastado das estradas. Passariam mais uma noite ali e partiriam à primeira luz do dia, pois, a partir desse momento, só se poderiam deslocar a um passo rápido e, mesmo em marchas forçadas, os soldados de infantaria não conseguem andar mais depressa que a cavalaria. Os vaqueiros de Cadwaladr teriam que deixar a manada descansar durante a noite, não havendo, por conseguinte, receio de serem ultrapassados por eles. Gwion dormiu algumas horas, satisfeito por ter feito tudo o que um homem podia fazer.
Durante a noite, Hywel e a sua escolta montada passaram por eles na estrada, a meia milha do acampamento.
No fim da tarde do terceiro dia, o Irmão Cadfael foi até ao cimo das dunas e viu os barcos de carga dinamarqueses abicados nos baixios lá em baixo, e uma fila de homens seminus, a ir a vau da praia até aos barcos, transportando barricas de moedas de prata para bordo, guardando-as debaixo da coberta da proa e no convés da ré. Dois mil marcos dentro daqueles pequenos e pesados recipientes. Não, um pouco menos, porque, segundo constava, os cavalos de carga e algum gado iriam também com eles, como parte do pagamento que Otir exigia. Porque Hywel regressara de Llanbadarn antes do meio-dia e, por conseguinte, os vaqueiros não viriam muito atrás.
No dia seguinte, tudo teria terminado. Os dinamarqueses levantariam ferros e partiriam para casa, o exército de Owain vê-los-ia partir do solo galês e depois regressaria a Carnarvon e, a partir dali, os homens dispersariam para as suas casas. Heledd seria entregue ao seu noivo, Cadfael e Mark voltariam para as suas tarefas quase esquecidas em Inglaterra. E Cadwaladr? Nessa altura, Cadfael tinha a certeza de que Cadwaladr, uma vez resolvida a questão em causa, recuperaria algum poder e algumas das suas antigas terras. Owain não podia estar contra a força do sangue para sempre. Além disso, apesar de todo o desalento e exasperação que o irmão lhe tinha provocado, Owain sempre tivera esperança e acreditara que haveria uma mudança, que ele aprenderia a lição, que se iria arrepender de uma loucura ou de um crime que cometera. E iria, mas por pouco tempo. Cadwaladr nunca mudaria. No meio dos seixos cinzentos, Hywel ab Owain observava o carregamento do dinheiro que trouxera de Llanbadarn. Não havia pressa, ele tinha dúvidas de que conseguissem embarcar animais antes do dia seguinte, mesmo que eles chegassem antes do anoitecer. Lá em baixo, em terreno neutro, o dinamarquês e o galês passavam cordialmente um pelo outro, satisfeitos por se separarem com as dívidas pagas e sem sangue derramado. O problema tinha-se tornado quase numa questão protocolar. Isso não agradaria aos membros do clã de Owain mais aventureiros. Era bom que ele os tivesse bem sob controlo, caso contrário ainda poderia haver guerra. Eles não gostavam de ver prata a ser levada de Gales para Dublin, mesmo que fosse prata resultante de um acordo, uma dívida de honra. Mas as pequenas barricas foram passando de homem para homem, e as costas queimadas pelo sol inclinavam-se e balouçavam, e os braços musculosos estendiam a cadeia da praia até ao porão. À volta das suas pernas nuas, a água pouco funda espalhava-se em tons claros de azul e verde sobre a areia dourada, e o céu acima deles era muito azul, quase branco, com algumas nuvens mais brancas, diáfanas como plumas. Um dia radioso num belo Verão.
Da paliçada, Cadwaladr também estava a observar o embarque do seu resgate, com Torsten, a sua imperturbável sombra, ao seu lado. Cadfael tinha-os visto, um pouco para trás à sua direita, Torsten placidamente satisfeito, Cadwaladr sério e com um ar zangado, mas resignado à sua perda. Turcaill estava lá em baixo a bordo do barco mais próximo, içando as barricas para debaixo do convés da ré, e Otir encontrava-se ao lado de Hywel, a observar a cena com um ar benevolente.
Heledd subiu a colina e atravessou a vegetação rasteira e o salgadiço para chegar ao pé de Cadfael. Ela olhou para a actividade que se desenrolava entre a praia e o barco, e o seu rosto estava calmo, quase indiferente.
- Ainda falta levar o gado para bordo - disse ela. - Será uma viagem difícil para eles. Disseram-me que aquela travessia pode ser terrível.
- Com um tempo tão bom - disse Cadfael, num tom semelhante ao dela - terão uma travessia fácil. - Não havia necessidade de perguntar quem lhe dera aquela informação.
- Amanhã à noite - disse ela -, eles já terão partido. Um bom desfecho para todos nós. - E a sua voz era serena, até mesmo fervorosa, e os seus olhos seguiam os movimentos do último carregador quando este chegou a terra, com a água a cintilar à volta dos joelhos. Turcaill deixou-se ficar no convés da ré durante alguns momentos a examinar o resultado dos seus esforços antes de saltar pelo lado e atravessar os baixios, impulsionando água azul e borrifos brancos à sua frente e, ao erguer a vista, viu Heledd no alto a olhar para baixo, atirou a cabeça loura para trás, sorriu-lhe com um deslumbramento de dentes brancos e acenou a mão para a saudar.
Entre os homens armados que se encontravam atrás de Hywel para ver o dinheiro a ser entregue em segurança, Cadfael tinha observado um, entroncado, vigoroso, moreno e atraente, que também estava a olhar na direcção do outeiro. Ele mantinha a cabeça inclinada para trás, e pareceu a Cadfael que os seus olhos estavam fixos em Heledd. É verdade que uma mulher num acampamento de invasores dinamarqueses poderia muito bem atrair a atenção e o interesse de qualquer homem, mas havia algo na sua imobilidade tensa, na sua concentração e na postura do seu corpo que o intrigou. Puxou a manga de Heledd.
-Rapariga, há um rapaz ali em baixo, no meio dos que trouxeram a prata... estás a vê-lo? A esquerda de Hywel! ... que está a olhar muito fixamente para ti. Conhece-lo? Pelo ar dele, ele conhece-te.
Ela virou-se para olhar para onde ele estava a apontar, demorou um momento a estudar o rosto tão atentamente virado para si e abanou a cabeça com um ar de indiferença.
- Nunca o vi antes. Como é que ele me pode conhecer? - E ela voltou-se para ver Turcaill atravessar a praia e parar para trocar amabilidades com Hywel ab Owain e com a sua escolta antes de conduzir os seus próprios homens pela encosta da duna acima, em direcção à paliçada. Ele passou à frente de Ieuan ab Ifor sem olhar para ele, e Ieuan apenas se moveu um pouco para voltar a ver Heledd nas dunas acima dele, pois a cabeça loura de Turcaill, ao passar, tinha-a cortado do seu campo de visão.
Durante aquelas vitais vigias nocturnas, Ieuan ab Ifor tivera o cuidado de ser o comandante da guarda do portão ocidental do acampamento de Owain, e de ter um homem seu de vigia ao longo da noite. Perto da meia-noite da terceira noite, Gwion tinha chegado com os seus homens, após marchas forçadas, perto da paliçada de Owain, e ali desviara-os para a estreita cintura de seixos expostos pela maré baixa, para passarem sem ser detectados. Ele próprio dirigiu-se silenciosamente para o posto da guarda e Ieuan foi ao seu encontro.
- Chegámos - disse Gwion num murmúrio -, eles estão na praia.
- Chegaram tarde - silvou Ieuan. - Hywel chegou cá antes de ti. Eles já colocaram o dinheiro a bordo dos barcos e só estão à espera do gado.
- Como pode isso ser? - perguntou Gwion, num tom de desalento. - Eu parti de Llanbadarn primeiro. A única paragem que fiz foi para dormir algumas horas a noite passada. Esta manhã começámos a marchar antes do nascer do sol.
- E durante essas horas, durante a noite, Hywel ultrapassou-vos e passou por vós, porque ele estava aqui a meio da manhã. E amanhã de manhã a manada estará cá e será carregada. É demasiado tarde para salvar qualquer coisa excepto uma vida de pedinte para Cadwaladr, que irá viver das esmolas de Owain em vez de ser prisioneiro de Otir. - Ele não tinha muita pena de Cadwaladr, excepto na medida em que o seu apuro tinha dado força à possibilidade de efectuar um salvamento que, ao mesmo tempo, libertaria Heledd.
- Não é demasiado tarde - disse Gwion, inflamado como um fogo atiçado. - Traz os teus homens e despacha-te! A maré está baixa e ainda está a vazar. Temos tempo suficiente!
Eles tinham estado prontos todas as noites à espera do sinal e vieram um a um, silenciosa e ansiosamente, evitando ser vistos e interrogados. Deslizaram pelas suaves encostas das dunas abaixo e atravessaram a cintura de seixos até à areia húmida e firme para além desta, onde os seus pés não faziam qualquer som. Havia mais de milha e meia entre os acampamentos, mas faltava uma hora para a maré atingir o ponto mais baixo, e eles tinham bastante tempo para voltar. Uma luz trémula irradiava da água, uma luz movediça mas suave que era suficiente para os seus objectivos, e as orlas brancas de cada ondulação mostravam a dimensão da terra descoberta. Ieuan ia à frente, e eles seguiram-no numa linha longa, silenciosa e furtiva sob os diques das defesas de Owain, até à terra de ninguém mais adiante. A frente deles, ancorados depois de terem sido carregados, os barcos de carga dinamarqueses balouçavam recortados na leve luminosidade das ondas e na relativa palidez do céu. Gwion parou quando os viu.
- Eles já guardaram as moedas? Nós podíamos exigir que as devolvessem - disse ele num murmúrio. - Eles devem ter pouca gente a bordo durante a noite.
- Amanhã! - disse Ieuan com uma brusca autoridade. - Ainda demora bastante a nadar até lá, e a água ali é funda. Eles conseguiam apanhar-nos um a um antes de lá chegarmos. Amanhã eles vão trazê-los novamente até à praia para carregar os animais. Há bastantes homens no exército de Owain que são contra dar uma única moeda aos piratas; se nós começarmos, eles seguir-nos-ão, e o príncipe não terá outra opção a não ser lutar. Esta noite vamos buscar a minha mulher e o teu senhor. Amanhã o dinheiro!
Cadfael acordou de madrugada com um clamor súbito de vozes aos gritos e cornetas a tocar, e levantou-se do seu ninho na areia ainda atordoado entre a realidade e o sonho, batalhas antigas regressaram-lhe à mente com espantosa nitidez, pelo que ele estendeu o braço às cegas para pegar numa espada antes de se pôr de pé, consciente da noite estrelada no alto e da areia fria sob os seus pés nus. Procurou à sua volta para acordar Mark antes de se recordar que este já não estava a seu lado, mas sim novamente na comitiva de Owain, fora do alcance do que aquela súbita ameaça pudesse conter. A sua direita, do lado em que o mar aberto se estendia para ocidente até à Irlanda, o choque ácido do aço acrescentava uma nota feroz ao ruído de homens a lutar. Movimentos confusos de luta e alarme sacudiram o ar imóvel no tumulto convulsivo entre a areia e o céu, como se uma enorme tempestade de areia se tivesse levantado para varrer os homens sem tocar na erva que eles pisavam. A terra estava imóvel, fria e indiferente, o céu permanecia silencioso e calmo, mas a força e a violência tinham vindo do mar para pôr termo à paz precária entre os homens.
Cadfael correu na direcção de onde o tumulto chegava intermitentemente aos seus ouvidos. Outros, saindo das suas camas situadas no lado do acampamento virado para terra, corriam como ele, desembainhando as armas enquanto corriam, convergindo todos para as defesas do lado do mar, onde o clamor da batalha se tinha movido para o interior em direcção a eles, como se a paliçada tivesse sido derrubada. No meio da luta, erguia-se a voz trovejante de Otir, comandando os seus homens. E eu não sou um homem dele, pensou Cadfael, espantado mas ainda a correr na direcção dos gritos, porque é que me hei-de ir meter em problemas? Ele podia ter-se deixado ficar a uma distância segura, à espera de ver quem tinha planeado o que era claramente um ataque premeditado, e de saber como corriam as coisas para os dinamarqueses ou para os galeses, antes de avaliar a sua influência no seu próprio bem-estar mas, em vez disso, ele estava a dirigir-se para o coração da batalha o mais depressa que conseguia, amaldiçoando quem quer que tivesse decidido destruir o que poderia ter sido uma resolução ordeira de um assunto melindroso.
Owain, não! Disso ele tinha a certeza. Owain tinha provocado um desfecho justo e sensato, e não poderia ter originado nem aprovado uma acção destinada a destruir o que ele tinha conseguido. Alguns jovens de sangue quente, envenenados de ódio contra os dinamarqueses, ou ansiosos pela glória da guerra! Owain poderia sentir animosidade contra uma frota estrangeira que invadira a sua terra sem ser convidada, poderia até decidir esforçar-se por expulsá-los quando todos os problemas tivessem sido resolvidos, mas nunca deitaria fora o seu próprio trabalho paciente ao tentar resolver o assunto. A batalha de Owain, se alguma vez chegasse a esse ponto, como ainda podia acontecer, seria directa, simples e profissional, sem mortes desnecessárias.
Ele estava agora perto do local da luta e conseguia ver a linha da paliçada quebrada aqui e ali pelas cabeças e ombros dos homens envolvidos na batalha, bem como uma enorme brecha na barreira no meio dos postos de vigia, onde os atacantes tinham forçado a entrada sem terem sido detectados. Eles não tinham penetrado até muito longe, e Otir já tinha um temível anel de aço à sua volta, mas nas franjas, na escuridão e em tamanha confusão, não era possível distinguir os amigos dos inimigos, e alguns dos que tinham passado primeiro pela brecha podiam muito bem andar à solta dentro do acampamento.
Ele estava ao pé do anel exterior de dinamarqueses que se esforçavam por deslocar toda a massa intrusa novamente através da paliçada em direcção ao mar, quando apareceu alguém a correr atrás dele, leve e rápida, e ele sentiu uma mão agarrar-lhe no braço, e ali estava Heledd, com o rosto oval pálido e sobressaltado, cintilante no escuro, iluminado pelos olhos muito abertos, chamejantes.
- O que é? Quem são eles? São loucos, loucos... O que poderá tê-los levado a isto?
Cadfael parou abruptamente, afastando-a da multidão, para longe do alcance das lanças.
- Rapariga tola, sai daqui! Enlouqueceste? Mantém-te longe até isto ter terminado. Queres que te matem?
Ela agarrou-se a ele, mas deixou-se ficar onde estava, mais excitada do que com medo.
- Mas porquê? Por que é que algum dos homens de Owain faria uma coisa destas, quando estava tudo a correr tão bem?
A massa de homens a lutar, demasiado emaranhada para permitir a acção das lanças, cambaleou, alguns deles perderam o equilíbrio, a massa desfez-se, alguns caíram, e pelo menos um foi espezinhado e expirou com um gemido ofegante. Heledd foi arrancada das mãos de Cadfael e soltou um pequeno grito irado num tom claro, penetrante, que se ouviu no meio da algazarra e, até mesmo na tensão da batalha, fez virar cabeças para olhar abruptamente na direcção dela com uma expressão de espanto. Ela tinha sido atirada tão bruscamente para o lado, que teria caído se um braço não a tivesse agarrado pela cintura e arrastado para longe, ao mesmo tempo que a luta se deslocava na direcção dela. Cadfael foi atirado, por um momento, na direcção oposta, e seguidamente o grito de chamamento de Otir retesou o círculo dinamarquês, e o seu peso fez os atacantes recuar, comprimindo-os contra a brecha que tinham feito na paliçada e empurrando-os desordenadamente. Uma dúzia de lanças foi atirada atrás deles, e retiraram-se e desceram a encosta das dunas em direcção à praia.
Uma mão-cheia de jovens dinamarqueses, excitados e impacientes, pretendeu perseguir os atacantes em retirada pelas dunas abaixo, mas Otir chamou-os asperamente à ordem. Mesmo que não houvesse mortos, já havia feridos, porque haveria de se arriscar a ter mais? Eles vieram com relutância, mas vieram. Talvez ainda chegasse a altura de se vingarem de um acto que era praticamente de traição, pois o acordo, embora não tivesse sido feito sob juramento e selado, fora quase uma trégua. Mas aquela era a altura de reparar o que fora danificado e reforçar a vigilância que se tornara menos atenta quando a necessidade parecera ter diminuído.
Com uma calma e um silêncio relativos, eles começaram a apanhar os que tinham caído, a tratar dos ferimentos menores, a reparar a brecha na paliçada, tudo num silêncio sombrio quebrado apenas pelas poucas palavras necessárias. Debaixo da cerca quebrada estavam três homens mortos, os primeiros defensores dominados pelo elevado número de atacantes antes de terem podido receber ajuda. Apanharam um quarto a sangrar de uma ferida feita por uma lança destinada ao seu coração, mas desviada para o ombro. Ele sobreviveria, mas talvez tivesse perdido a força muscular do braço esquerdo para o resto da vida. Havia muitas feridas e arranhadelas pouco profundas, e o homem que tinha sido espezinhado cuspia sangue, de lesões interiores. Cadfael esqueceu todas as outras considerações e, juntamente com os outros, deitou mãos à obra no abrigo mais próximo, à luz dos archotes, com os panos e os medicamentos que eles conseguiram arranjar. Eles tinham experiência de ferimentos e sabiam como tratá-los, embora o seu tratamento fosse um tanto improvisado. O rapaz Leif levava e ia buscar coisas, admirado e excitado com aquele surto de violência durante a noite. Quando tudo o que podia ser feito foi feito, Cadfael recostou-se com um suspiro e olhou em volta para o seu vizinho mais próximo. Ele deu consigo a olhar para os olhos azuis e para o rosto invulgarmente sombrio de Turcaill. O jovem tinha sangue no rosto proveniente de uma escoriação, e sangue nas mãos oriundo das feridas dos seus amigos.
- Porquê? - perguntou Turcaill. - O que havia a ganhar? Estava tudo praticamente terminado. Agora eles também têm os seus mortos e feridos. Eu vi homens a serem levados ou arrastados quando eles desataram a fugir. O que é que os levou a assaltar-nos?
- Eu penso - disse Cadfael, esfregando os olhos cansados com uma mão - que eles vieram buscar Cadwaladr. Ele ainda tem seguidores tão impulsivos como ele próprio. Eles podiam bem ter pensado em arrancá-lo à vossa guarda, contra a vontade de Owain. Que outra coisa têm vocês com tanto valor para eles que arriscassem a vida por ela?
- Bem, o dinheiro já foi pago - disse Turcaill pragmaticamente. - Certamente que eles não tentariam apoderar-se dele?
- Podem muito bem fazê-lo - admitiu Cadfael. - Se tentaram apoderar-se de um, podem fazer o mesmo em relação ao outro.
- Quando trouxermos os barcos novamente para a praia amanhã - os olhos brilhantes de Turcaill abriram-se muito enquanto ele pensava. - Eu direi a Otir: eles podem levar o homem, e bons ventos o levem, mas o resgate é nosso com toda a justiça, e ficaremos com ele.
- Se eles estiverem seriamente interessados - disse Cadfael - ainda terão que lutar por ambos. Pois suponho que Cadwaladr ainda está sob a guarda de Torsten?
- E novamente acorrentado. E passou esta incursão com uma faca apontada à garganta. Oh, eles foram-se embora de mãos vazias - disse Turcaill com uma satisfação amarga, pondo-se de pé e dirigindo-se para junto do seu líder, que conferenciava sobre os seus três mortos. E Cadfael foi à procura de Heledd, mas não a encontrou.
- Estes levaremos nós connosco para lhes fazer o funeral - disse Otir com tristeza olhando para os corpos dos seus homens. - Tu dizes que os que vieram durante a noite não foram enviados por Owain. É possível, mas como poderemos sabê-lo? Certamente que eu o julgava um homem de palavra. Mas nós iremos ficar com aquilo que é nosso por direito, contra Owain ou qualquer outro. Se tiveres razão, e eles vieram buscar Cadwaladr, então só lhes resta uma oportunidade de levar o homem e o seu resgate. E nós enfrentá-los-emos, com os barcos e o mar atrás de nós, com os mastros nos seus lugares e prontos para navegar. O mar é mais nosso amigo do que deles. Estaremos armados entre eles e a praia, e veremos se eles se atrevem a fazer à luz do dia o que tentaram de noite.
Ele deu as suas ordens clara e sucintamente. De manhã, o acampamento já teria sido evacuado, as fileiras dinamarquesas estariam em ordem de batalha na praia, os barcos seriam trazidos para perto, para embarcar o gado. Se este chegasse, disse Otir, então Owain estava a agir de boa fé, e os atacantes não agiam sob as suas ordens. Se ele não viesse, então todos os acordos seriam quebrados, e ele e o seu exército far-se-iam ao mar e atacariam locais da costa não guardados, para se apropriaram eles próprios do saldo da dívida, acrescido de mais alguma coisa pelas vidas perdidas.
- O gado virá - disse Turcaill. - Só pela loucura do gesto, este não foi obra de Owain. E ele entregou-te o dinheiro pela mão do seu próprio filho. E fará o mesmo com o gado. E o monge e a rapariga? Foi oferecido um preço justo por eles, mas tu nunca aceitaste esse acordo. O Irmão Cadfael mereceu a sua liberdade esta noite, e é demasiado tarde para regatear o seu valor.
- Deixaremos provisões para ele e para a rapariga, eles podem ficar aqui em segurança até termos partido. Owain poderá tê-los de volta tão inteiros como quando chegaram.
- Eu dir-lhes-ei isso - disse Turcaill, com um sorriso.
O Irmão Cadfael estava nesse momento a atravessar o acampamento desfeito para se dirigir a eles, por entre as linhas que em breve seriam abandonadas. Ele não tinha pressa, uma vez que não era possível fazer nada a respeito da notícia de que era portador, esta era um facto consumado. O seu olhar deslocou-se dos três corpos deitados decorosamente direitos por baixo dos mantos que os cobriam para o rosto sombrio de Otir, e deste directamente para Turcaill.
- Falámos antes de tempo. Eles não se foram embora de mãos vazias. Eles levaram Heledd.
Turcaill, cujos movimentos eram, de um modo geral, constantes e fluidos como o mercúrio, ficou subitamente imóvel. O seu rosto não se alterou, apenas os seus espantosos olhos se estreitaram um pouco, como se para olhar para longe, para além do tempo e da distância actuais. Um último vestígio do seu sorriso muito privado permaneceu nos seus olhos.
- Como é que ela - perguntou ele - chegou tão perto da batalha? Não interessa, ela certamente que iria correr na direcção do que era proibido ou perigoso, não para longe. Tem a certeza, Irmão?
- Tenho a certeza. Eu já a procurei por todo o lado. O Leif viu-a a ser arrancada do meio da barafunda, mas não consegue dizer por quem. Mas o certo é que ela desapareceu. Ela esteve ao meu lado até nos separarem, pouco antes de vocês os terem feito recuar através da paliçada. Quem quer que a tenha agarrado pela cintura, levou-a consigo.
- Foi por causa dela que eles vieram - disse Turcaill com convicção.
- Pelo menos, foi por causa dela que um deles veio. Porque eu penso - disse Cadfael - que esse deve ser o homem a quem Owain a prometera. Ontem, quando estavam a carregar o dinheiro, havia um perto de Hywel que não conseguia tirar os olhos dela. Mas eu não conhecia o homem e não dei importância ao assunto.
- Então ela está em segurança e já se encontra em liberdade - disse Otir, não adiantando mais. - E o Irmão também, se assim o desejar mas, se fosse a si, eu deixar-me-ia ficar um pouco afastado até nós termos partido. Nenhum de nós sabe que mais eles tencionam fazer de manhã. Não há necessidade de o Irmão se colocar entre dinamarqueses e galeses em guerra.
Cadfael ouviu-o sem escutar, embora mais tarde se tivesse apercebido das palavras e da sua importância. Ele estava a observar Turcaill tão atentamente que não conseguia pensar no que iria fazer a seguir. O jovem tinha-se movido e saído fácil e naturalmente da sua imobilidade temporária. Ele respirou regularmente como sempre, e o resto do sorriso permaneceu como uma faísca nos seus olhos claros e brilhantes depois de ter abandonado os lábios. Não era possível ler nada naquele rosto para além do ar francamente apreciador e divertido que era a sua abordagem constante a Heledd, e isso desapareceu instantaneamente quando baixou novamente os olhos para as baixas da noite.
- Ainda bem que ela está longe do que vai acontecer hoje - disse ele simplesmente. - Não se sabe como é que vai terminar.
E isso foi tudo. Ele atarefou-se a levantar o acampamento e a armar-se para a acção como todos os outros. Na escuridão, eles desarmaram as tendas e os abrigos existentes e deslocaram os barcos mais leves do cais da baía para o mar aberto, de modo a se juntarem aos barcos maiores e proporcionarem uma guarda vigilante e móvel para as tripulações e para a carga. O mar era o seu elemento e lutava ao lado deles, o mesmo acontecendo até à leve brisa que tremulava através da calmaria antes do amanhecer. Com as velas içadas e enfunadas, até mesmo os barcos mais lentos podiam ser colocados rapidamente no mar, a salvo de ataques. Mas sem o gado! Otir nunca partiria sem a última moeda que lhe era devida.
E agora Cadfael não tinha nada para fazer a não ser percorrer o cimo das dunas no meio das fogueiras abandonadas e dos detritos da ocupação, e observar o exército dinamarquês a arrumar as coisas, reunir-se e descer metodicamente a esteva rasteira em direcção aos barcos ancorados.
E eles vão-se embora! Dissera Heledd, séria mas com um ar que não era nem de felicidade nem de desânimo. Eles praticamente que já se foram embora, satisfeitos por estarem a caminho de casa. Se tinha sido, de facto, Ieuan ab Ifor quem inspirara o ataque nocturno, talvez não houvesse, afinal de contas, alguém a agir em benefício de Cadwaladr, da sua pessoa, prestígio ou dos seus bens, e não houvesse mais confrontos, na praia ou no mar, mas apenas uma partida ordeira, talvez até com uma fria troca de amabilidades entre galeses e dinamarqueses, em jeito de despedida. Ieuan tinha vindo buscar a sua esposa prometida e já tinha o que queria. Não havia necessidade de voltar a agir. Mas como convencera ele tantos homens a segui-lo? Os homens não tinham nada a ganhar, e não tinham ganho nada. Alguns talvez tivessem perdido a vida para o ajudar a casar.
O pequeno e ágil barco-dragão saiu silenciosamente para o mar aberto e ocupou a sua posição, navegando bem até à praia. Cadfael desceu um pouco na direcção da faixa de seixos e viu a praia agora meio seca, meio a cintilar sob a água que a lambia, e vazia até à frente da linha dinamarquesa, depois virou para sul ao longo da praia, que era uma linha mais escura que ia clareando até atingir o cinzento claro que precede o amanhecer. Os atacantes em retirada tinham fugido para os campos desertos e para bosques esparsos no meio dos acampamentos, para terem alguma cobertura. Havia locais em que o caminho pela praia seria agora demasiado perigoso, com a maré a encher, embora Cadfael tivesse a certeza de que eles tinham vindo por ali. Era melhor e mais rápido deslocarem-se para o interior com os seus feridos e o seu trofeu, e chegarem com os pés secos ao seu próprio acampamento.
Cadfael colocou uma colina de arbustos enfezados pelo sal entre si próprio e o vento refrescante, fez um buraco na areia e sentou-se à espera.
À luz suave da manhã, imediatamente após o nascer do sol, Gwion reuniu os seus cem homens e os poucos que Ieuan mobilizara e que permaneciam com eles, numa depressão no meio das dunas, fora do campo de visão da praia, com uma sentinela de vigia na colina acima deles. Havia uma neblina a elevar-se do mar, uma diáfana espiral azul clara por cima da praia, que permanecia na sombra, enquanto a oeste a superfície da água já brilhava, salpicada por cintilação branca de borrifos soprados pela brisa. Os dinamarqueses, formados em fileiras abertas, alinhadas à beira-mar, aguardavam imóveis e sem impaciência que os vaqueiros de Owain trouxessem o gado de Cadwaladr. Atrás deles, os barcos de carga tinham sido trazidos para junto da costa e estavam ancorados nos baixios. E ali, no meio dos dinamarqueses, estava o próprio Cadwaladr, sem correntes mas ainda prisioneiro, indefeso no meio dos seus inimigos armados. O próprio Gwion tinha ido para o topo da colina para olhar para ele, e vê-lo assim foi como sentir uma faca na barriga.
Ele tinha falhado em tudo o que tentara fazer. Não tinha ganho nada; ali estava o seu senhor feudal, humilhado às mãos dos dinamarqueses, exposto ao desdém do irmão, não tendo sequer, depois de todo aquele desagradável empreendimento, a garantia de recuperar uma única polegada das terras na posse do irmão. Gwion remoía incessantemente a sua própria frustração e sentia que esta lhe deixava um gosto amargo na boca. Ele não devia ter confiado em Ieuan ab Ifor. O homem só estivera preocupado com a mulher e, já com o seu trofeu nos braços, não quisera ficar, como Gwion fizera, para tentar um novo ataque. Não, ele fugira com ela, abafara os seus gritos tapando-lhe a boca com uma mão até conseguir silvar-lhe ao ouvido, bem longe dos dinamarqueses na sua paliçada desfeita, que ela não tinha motivo para ter medo porque ele só desejava o seu bem pois era o homem dela, o marido que arriscara a vida para a libertar do perigo, e que, com ele, ela estava e estaria para sempre em segurança. Gwion ouvira-o, totalmente absorto com o que ganhara e sem se preocupar absolutamente nada com o que os outros tinham perdido. Assim, a rapariga estava livre, mas Cadwaladr, humilhado e furioso, teria que vir debaixo de guarda para ser entregue, por um preço, ao irmão que o abandonara e desprezara.
Era insuportável. Ainda havia tempo para o tirar do meio dos inimigos antes de Owain chegar para se deleitar vendo-o prisioneiro. Até mesmo sem Ieuan, que partira com a sua magoada e perplexa mulher, e os cerca de doze recrutas que tinham preferido voltar para o acampamento para recuperar da derrota, ainda ali havia guerreiros fortes em número suficiente para o fazer. Mas era melhor esperar até à chegada da manada e da sua escolta. Pois certamente que, uma vez lançado o ataque, outros veriam que esse era o caminho certo e seguí-los-iam. Nem sequer Hywel, se Hywel fosse novamente o enviado do príncipe, seria capaz de fazer parar os seus guerreiros depois de eles terem visto sangue dinamarquês a correr. E, depois de Cadwaladr, os barcos. Uma vez atirada a cautela às urtigas, os galeses iriam até ao fim, para recuperar o dinheiro e expulsar Otir e os seus piratas para o mar.
A espera foi longa, e pareceu ainda mais longa, mas Otir não se moveu do seu posto à frente das suas linhas. Eles tinham baixado a guarda uma vez, não voltariam a fazê-lo. Aquela tinha sido a oportunidade perdida, pois agora não podia haver uma segunda surpresa. Eles não voltariam a confiar totalmente em Hywel, nem sequer no próprio Owain.
O vigia que estava no cimo da colina informava, regular e monotonamente, que não havia nenhuma alteração, nenhum movimento, nenhum sinal ainda da poeira da manada ao longo do caminho de areia. Passava mais de uma hora do nascer do sol quando ele gritou finalmente: "Eles vêm aí!" E seguidamente ouviram o mugido do gado, intermitente e sonolento no ar. Pelo som, tinham comido e bebido água, e estavam novamente em movimento depois de terem descansado pelo menos algumas horas durante a noite.
- Estou a vê-los. Uma boa meia companhia, a avançar ao lado, à frente dos vaqueiros, longe da poeira. Hywel veio em força. Eles avistaram os dinamarqueses... - Essa visão podia bem tê-los feito fazer uma pausa, pois não estariam à espera de ver o exército inteiro de invasores em formação de batalha para o carregamento de algumas centenas de cabeças de gado. Mas eles continuaram a andar, acompanhando o passo dos animais. E agora ele conseguia ver nitidamente o cavaleiro que vinha à frente, muito alto na sela, de cabeça nua, muito louro. - Não é o Hywel, é o próprio Owain!
Na sua colina por cima do acampamento deserto, Cadfael tinha visto o sol brilhar na cabeça loura, e até mesmo àquela distância ele soube que o príncipe de Gwynedd viera pessoalmente assistir à partida do nórdico do seu país. Ele aproximou-se mais lentamente, olhando na direcção do encontro iminente que teria lugar na praia.
Na concavidade no meio das dunas, Gwion formou as suas linhas e deslocou-as um pouco para a frente, ainda resguardadas pelas ondas curvas de areia que o vento formara e que as ervas e os arbustos resistentes tinham revestido parcialmente e mantido no seu lugar.
- A que distância estão? - Apesar da presença de Owain, ele ia arriscar. E os membros do clã que vinham atrás de Owain e que não podiam ser todos dóceis até mesmo em relação ao controlo do seu príncipe, deveriam ver o ataque e estar suficientemente perto para se entusiasmarem com ele e engrossar as suas fileiras.
- Ainda não estão suficientemente perto para nos ouvirem, mas estão próximos. Ainda falta um pouco.
Otir estava de pé como uma rocha à beira do mar, com as pernas sólidas bem assentes no chão, a observar o avanço do gado escuro e corpulento e a sua escolta de homens armados. Com armas ligeiras, como um homem que leva a cabo os seus afazeres normais. Dali não havia a esperar traição. Também não parecia provável que Owain tivesse alguma coisa a ver com o ataque mal amanhado da noite anterior, nem que tivesse conhecimento dele. Se ele tivesse agido, as coisas teriam sido mais bem feitas.
- Agora! - disse o vigia secamente do alto. - Agora, enquanto estiverem todos a olhar para Owain. Podes atacá-los pelo flanco.
- Avançar agora! - repetiu Gwion, saindo de rompante da encosta abrigada com um grande rugido de libertação e determinação, quase de exultação. Atrás dele, as fileiras dos seus companheiros avançaram com as espadas desembainhadas e as lanças curtas erguidas, e o aço lampejou subitamente quando eles emergiriam das sombras para o sol. Já bem à vista, descendo a última encosta de areia para os seixos da praia, directos ao exército dinamarquês. Otir deu meia volta, com um grito de alarme que fez virar todas as cabeças para fazer frente ao ataque. Os escudos ergueram-se para desviar as primeiras lanças atiradas, e o silvo das espadas a serem desembainhadas em simultâneo elevou-se no ar com um enorme sopro. Seguidamente, a primeira vaga do exército de Gwion lançou-se sobre as fileiras dinamarquesas, e o seu peso obrigou-os a recuar, chocando com os seus companheiros, pelo que toda a batalha se desenrolou com a água do mar até aos joelhos.
Cadfael viu tudo do seu local elevado, o impacto e o estrondoso baque quando as fileiras colidiram num choque trémulo, e ouviu o clamor súbito de vozes a gritar e do gado sobressaltado a berrar. Os dinamarqueses tinham disposto as suas fileiras de modo a que todos os homens pudessem usar livremente o seu braço direito e empunhassem rapidamente a arma. Houve um ou dois que foram derrubados pelo primeiro ímpeto da colisão e arrastaram os seus atacantes consigo para o mar numa confusão de borrifos, mas a maior parte deles manteve-se firmemente de pé. Gwion tinha-se atirado directamente a Otir. Não havia outra maneira de chegar a Cadwaladr a não ser por cima do cadáver de Otir. Mas o dinamarquês tinha o dobro do tamanho de Gwion e três vezes mais experiência com as armas. A espada bateu com força num escudo erguido e torcido, e quase foi arrancada das mãos do atacante. A seguir, a única coisa que Cadfael conseguiu ver foi uma massa de galeses e dinamarqueses a lutar, envolvidos por borrifos de água cintilantes. Começou a descer rapidamente para a praia, sem que ele próprio soubesse bem porquê.
Ressoaram gritos de entre os membros do clã que marchavam atrás de Owain, e alguns começaram a sair das suas fileiras e correram na direcção da confusão nos baixios, levando instantaneamente as mãos aos punhos das espadas, com uma intenção bem óbvia. Cadfael não ficou surpreendido. Já era bem visível que havia galeses a lutar contra um invasor estrangeiro. O sangue galês não suportava ficar de fora, o certo e o errado não contava para nada. Eles gritaram a sua aprovação e mergulharam nos baixios em ebulição. A massa vacilante de corpos emaranhados elevava-se e distendia-se, tão cerrada que não havia espaço para fazerem grande mal uns aos outros. Só quando as fileiras se abrissem é que poderia haver mortes.
Uma voz alta de comando elevou-se acima do ruído das vozes raivosas e do tilintar do aço, ao mesmo tempo que Owain Gwynedd metia as esporas ao seu cavalo e cavalgava até à orla do mar batendo nos seus homens demasiado impetuosos com a parte plana da sua espada embainhada.
- Para trás! Para trás! Voltem para as vossas fileiras, e ergam as vossas armas!
A sua voz, que raramente se levantava, conseguia, quando ele estava zangado, cortar o ar como o trovão que vem logo atrás do relâmpago. Foi essa irada chamada, mais do que os golpes, que fez com que os fugitivos se sentissem intimidados e se afastassem do seu caminho, chapinhando até à praia, com uma pressa relutante. Até mesmo os ex-vassalos de Cadwaladr vacilaram e recuaram da sua luta corpo a corpo. Os dois lados separaram-se, e os golpes que poderiam ter sido abafados pelo peso dos corpos a lutar, encontraram espaço para ferir antes de serem refreados ou defendidos.
Estava terminado. Eles recuaram para o chão de seixos firme, baixaram as espadas, os machados e os dardos, receosos do olhar gélido dos olhos de Owain e do som irado dos cascos do seu cavalo aos círculos na água, criando uma zona de quietude no meio dos combatentes. Os dinamarqueses mantiveram as suas fileiras, alguns deles ensanguentados, mas nenhum tinha caído. Dos atacantes, dois saíram a rastejar debilmente das ondas e ficaram deitados na areia. Seguidamente, fez-se silêncio.
Owain ficou sentado no seu cavalo, agora tranquilizado por uma mão calmante mas ainda a tremer, e olhou para Otir, olhos nos olhos, durante um longo momento. Otir manteve-se firme e retribuiu-lhe o olhar penetrante. Não eram necessárias explicações nem protestos. Owain vira com os seus próprios olhos.
- Isto - disse ele por fim - não foi engendrado por mim. Agora eu saberei, e ouvi-lo-ei da sua própria boca, quem usurpou o meu poder e lançou dúvidas sobre a minha boa fé. Avança e mostra-te!
Não havia qualquer dúvida de que ele já sabia, pois vira a carga sair do esconderijo. Era, em certa medida, generoso da sua parte permitir que um homem admitisse o que tinha feito, afirmando que tinha agido de livre vontade e enfrentando as consequências. Gwion deixou cair o braço que ainda estava erguido, com a espada na mão, e afastou-se dos seus companheiros. Avançou muito lentamente, mas não por relutância, pois tinha a cabeça orgulhosamente erguida e os olhos fixos em Owain. Saiu, a chapinhar, cambaleante, da água, enquanto as ondas, uma após outra, lhe lambiam os pés e recuavam. Ele chegou à beira dos seixos e, subitamente, um fio de sangue escorreu-lhe dos lábios cerrados e salpicou-lhe o peito, e uma pequena mancha vermelha formou-se no linho acolchoado da sua túnica e expandiu-se numa enorme estrela ensopada. Por um momento, manteve-se direito em frente de Owain e abriu os lábios para falar, e o sangue jorrou-lhe da boca numa golfada vermelha escura. Caiu de bruços junto das patas do cavalo do príncipe, e o animal, espantado, recuou e soltou um enorme sopro de lamentação por cima do corpo dele.
- Tratem dele! - disse Owain, olhando, impassível, para o homem caído. As mãos de Gwion moveram-se e agarraram debilmente nos seixos polidos, vagamente conscientes do toque e da textura. - Ele não está morto, levem-no daqui e tratem dele. Eu não quero mais mortos, mais do que aqueles que não é possível salvar.
Eles apressaram-se a cumprir a ordem. Três homens da fileira da frente, com Cuhelyn à frente, acorreram a virar suavemente Gwion de costas e a limpar-lhe a boca e as narinas da areia. Fizeram uma padiola com lanças e escudos e embrulharam-no em mantos para o transportar. E o Irmão Cadfael afastou-se da praia sem que tivessem reparado nele e seguiu a padiola até ao local abrigado pelas dunas. Em matéria de pano para ligaduras ou bálsamos, ele tinha pouca coisa consigo, mas era melhor do que nada até conseguirem colocar o ferido numa cama e prestar-lhe cuidados menos improvisados.
Owain olhou para a poça de sangue a escurecer nos seixos a seus pés e ergueu seguidamente o olhar para o rosto atento de Otir.
- Ele é um homem de Cadwaladr, fiel e leal. No entanto, ele agiu mal. Se te custou homens, já o fizeste pagar por isso. - Dois dos homens que tinham seguido Gwion estavam caídos à beira mar, suavemente embalados pelas ondas que avançavam. Um terceiro tinha-se ajoelhado, e os que estavam ao seu lado ajudaram-no a pôr-se de pé. Ele estava a sangrar de um ombro e de um braço feridos, mas não corria perigo de vida. Otir também não se deu ao trabalho de acrescentar ao número de mortos os três que já tinha posto a bordo, para serem sepultados na sua terra natal. Porque é que ia desperdiçar fôlego a queixar-se àquele príncipe que reconhecera o gesto de loucura e a quem não podiam ser atribuídas quaisquer culpas?
- Eu considero-te obrigado a cumprir o acordo - disse ele - que estabelecemos entre nós dois. Nada mais, nada menos. Nem tu nem eu tivemos alguma coisa a ver com isto. Foi uma escolha deles, e o que disso resultou foi entre mim e eles.
- Assim seja! - disse Owain. - E agora guardem as vossas armas, carreguem o vosso gado e vão-se embora, mais livremente do que chegaram, pois vieram sem o meu conhecimento ou autorização. E digo-te na tua cara que, se alguma vez voltares a pisar a minha terra sem teres sido convidado, expulso-te outra vez para o mar. Desta vez, pega no que te foi pago e vai em paz.
- Então aqui entrego eu o teu irmão Cadwaladr - disse Otir num tom igualmente frio. - A ele próprio, não a ti, pois isso não fazia parte do acordo entre nós. Ele pode ir para onde quiser, ou ficar e fazer o seu próprio acordo contigo. - Ele deu meia volta, virando-se para os homens que ainda seguravam Cadwaladr, cheio de azedume, no meio deles. Embora estivesse no centro de todo o conflito, ele tinha sido reduzido a nada, um bem inútil, uma questão inteiramente resolvida por outros homens. Ele tinha ficado em silêncio enquanto outros homens decidiam sobre a sua pessoa, os seus meios e a sua honra, e tinham-no feito com manifesta repugnância. Agora ele não tinha nada a dizer, mas reprimiu o azedume e a ira que lhe subiam à garganta e lhe queimavam a língua, enquanto os seus captores o soltavam e se afastavam, deixando o caminho livre para ele partir. Avançou rigidamente para a praia, em direcção ao local onde o seu irmão estava à espera.
- Carreguem os vossos barcos! - disse Owain. - Têm o dia de hoje para abandonar o meu país.
E ele fez rodar o cavalo e virou as costas, dirigindo-se a passo lento para o seu próprio acampamento. As fileiras dos seus homens fecharam-se numa marcha ordenada e seguiram-no, e os homens feridos e enlameados do malfadado exército de Gwion pegaram nos seus mortos e arrastaram-se atrás deles, deixando deserta a espezinhada e ensanguentada praia, com excepção dos vaqueiros e do seu gado, e de Cadwaladr que, sozinho, afastado de todos os outros homens, caminhava envolto numa ameaçadora nuvem negra de repulsa e humilhação atrás do irmão.
No ninho de erva espessa onde o tinham deitado, Gwion abriu os olhos e disse num fio de voz, mas bastante claramente:
- Tenho uma coisa para dizer a Owain Gwynedd. Tenho que ir ter com ele.
Cadfael estava ajoelhado ao lado dele, estancando com o pano que tinha à mão, a fazer de tampão por baixo das dobras espessas dos cobertores, o sangue que fluía abundantemente de uma enorme ferida num dos lados do jovem, debaixo do coração. Cuhelyn, ajoelhado com a cabeça de Gwion no colo, tinha limpo a espuma de sangue da boca aberta e o suor da testa já fria e lívida com a aproximação lenta da morte. Ele ergueu os olhos para Cadfael e disse quase silenciosamente:
- Temos que o levar de volta para o acampamento. Ele está ansioso por ir. Tem que ir.
- Ele não vai a lugar nenhum neste mundo - disse Cadfael numa voz igualmente baixa. - Se o levantarmos, ele morrerá nas nossas mãos.
Algo semelhante ao mais pálido e breve dos sorrisos, no que foi indubitavelmente um sorriso, aflorou os lábios abertos de Gwion. Ele disse, no mesmo tom de surdina com que eles tinham falado.
- Então Owain tem que vir ter comigo. Ele tem mais tempo que eu. Ele virá. É uma coisa que ele quer saber e que mais ninguém lhe pode dizer.
Cuhelyn afastou a madeixa de cabelo preto que caía, húmida, sobre a testa de Gwion, com medo que ela o incomodasse, agora que toda a comodidade estava a desaparecer demasiado rapidamente. A sua mão era firme e suave. Já não havia qualquer hostilidade. Não havia espaço para ela. E, ao seu modo oposto, eles tinham sido amigos. A semelhança ainda lá estava, cada um deles estava a olhar para um espelho, um espelho cada vez mais escuro e com uma imagem desfigurada.
- Eu vou chamá-lo. Tem calma. Ele virá.
- Vai depressa! - disse Gwion, fechando a boca com um sorriso distorcido.
Já de pé, e com uma mão estendida para a rédea do cavalo, Cuhelyn hesitou.
- Cadwaladr não? Queres que ele venha?
- Não - disse Gwion, virando a cabeça com uma convulsão de dor aguda. O último golpe defensivo de Otir, que não tinha a intenção de matar, tinha sido desferido no momento em que Owain gritara o seu desagrado e separara as fileiras, e Gwion tinha deixado cair a lança e a guarda, deixando o flanco aberto ao aço. Não tinha remédio, estava feito e não podia ser desfeito.
Cuhelyn foi-se embora apressadamente, com os cascos do cavalo a levantar uma nuvem de poeira até ter chegado ao prado do planalto, deixando as dunas para trás. Não havia ninguém mais empenhado em levar o recado de Gwion do que Cuhelyn que, por um breve espaço de tempo, tinha perdido a capacidade de ver o seu próprio rosto no seu oposto. Isso também pertencia ao passado.
Gwion ficou deitado de olhos fechados, dominando a dor que pudesse sentir. Cadfael não achou que esta fosse muito intensa, ele quase perdera a consciência. Aguardaram juntos. Gwion estava imóvel, pois a imobilidade parecia diminuir a hemorragia e conservar a vida nele, e ele ainda precisava de viver mais algum tempo. Cadfael tinha água ao seu lado no capacete de Cuhelyn e lavava as gotas de suor que se juntavam, frias como o orvalho, na testa e por cima do lábio do seu doente.
Já não se ouvia qualquer clamor vindo da praia, apenas a rápida troca de palavras e os movimentos dos homens a levarem a cabo as suas tarefas, agora sem quaisquer impedimentos, e os mugidos e berros ocasionais do gado ao ser incitado a atravessar os baixios e a subir as rampas para os barcos. Para os animais, seria uma viagem desconfortável nos poços fundos no meio dos barcos mas, ao fim de algumas horas, estariam novamente em prados verdes, com boas pastagens e água doce.
- Ele virá? - perguntou Gwion, subitamente ansioso.
- Virá.
Ele já vinha a caminho, um momento depois ouviram o ruído surdo de cascos, e Owain Gwynedd surgiu, vindo da praia, com Cuhelyn atrás. Desmontaram em silêncio, e Owain olhou para o jovem corpo arruinado, sem se aproximar demasiado, com receio de que até o ouvido ainda estivesse suficientemente apurado para ouvir o que não deveria ser ouvido.
- Há possibilidade de ele viver?
Cadfael abanou a cabeça e não deu qualquer outra resposta. Owain deixou-se cair na areia e inclinou-se.
- Gwion... eu estou aqui. Não fales muito, não é preciso.
Os olhos pretos de Gwion, um pouco ofuscados pelo sol, abriram-se muito e reconheceram-no. Cadfael molhou os lábios que se abriram com uma expressão triste e se esforçaram por articular as palavras.
- É preciso. Eu tenho uma coisa a dizer.
- Para fazermos as pazes - disse Owain -, eu volto a dizer que não são necessárias palavras. Mas, se queres falar, eu estou a ouvir.
- Bledri ap Rhys... - começou Gwion, depois fez uma pausa para respirar. - Tu querias saber quem o matou. Não culpes mais ninguém. Fui eu que o matei.
Ele ficou à espera, com resignada paciência, de uma exclamação de incredulidade, mais do que de indignação, mas nenhuma delas se ouviu. Apenas um silêncio de reflexão e aceitação que pareceu durar muito e, seguidamente, a voz de Owain, calma e serena como sempre, a dizer:
- Porquê? Ele era, tal como tu, vassalo do meu irmão.
- Ele tinha sido - disse Gwion, sacudido por uma gargalhada que lhe contorceu a boca e fez um fino fio de sangue escorrer pelo queixo. Cadfael inclinou-se e limpou-o. - Fiquei satisfeito quando ele chegou a Aber. Eu sabia o que meu senhor estava a preparar. Eu estava ansioso por ir ter com ele e poder contar-lhe tudo o que sabia sobre as tuas forças e os teus movimentos, e tê-lo-ia feito. Era justo. Eu tinha-te dito que era totalmente e para sempre um homem do teu irmão, tu sabias o que eu pensava. Mas eu não podia ir, tinha dado a minha palavra em como não me iria embora.
- E tinhas cumprido a tua palavra - disse Owain. - Até agora!
- Mas Bledri não tinha feito qualquer juramento. Ele podia partir. Por isso eu contei-lhe tudo o que ficara a saber em Aber, as forças que poderias reunir, quanto tempo levarias a chegar a Carnarvon, tudo o que meu senhor Cadwaladr precisava de saber para sua defesa. Antes do anoitecer, quando os portões ainda estavam abertos, eu tirei um cavalo dos estábulos e prendi-o no meio das árvores para ele. E, como um idiota, nunca duvidei que Bledri agisse como devia. E ele ouviu tudo e não disse nada, deixando-me acreditar que estava de acordo comigo!
- Como é que contavas fazê-lo sair do llys depois de os portões estarem fechados? - perguntou Owain, tão suavemente como se estivesse a fazer uma pergunta sobre uma vulgar tarefa diária.
- Há maneiras... Eu estive muito tempo em Aber. Nem todos são cuidadosos com as chaves. Mas, enquanto esperava, ele reparou em tudo o que se passava na tua corte, e ele sabia contar tão bem como eu e avaliar as possibilidades de êxito com igual perspicácia, ao mesmo tempo que se comportava de modo a afastar quaisquer suspeitas sobre as suas intenções. O que eu julgava que eram as suas intenções! - disse Gwion com amargura. A voz falhou-lhe por um momento, mas ele recuperou a energia e prosseguiu esforçadamente: - Quando lhe fui dizer que eram horas de partir e certificar-me de que ele ia em segurança, ele estava nu, deitado na cama. Sem qualquer pejo, disse-me que não ia a lado nenhum, não era assim tão idiota, tendo visto por si próprio o teu poder e o número dos teus homens. Ele deixar-se-ia ficar em segurança em Aber à espera de ver de que lado sopraria o vento e, se ele soprasse para o lado de Owain Gwynedd, então ele seria um homem de Owain. Eu recordei-lhe o seu juramento de fidelidade, e ele riu-se de mim. Atirei-o ao chão - disse Gwion através dos dentes. - E depois, uma vez que ele não ia fazer nada, apercebi-me de que, para me manter fiel a Cadwaladr, eu tinha que quebrar o juramento que te fizera e partir no lugar de Bledri. E, como ele virara a casaca, vi que tinha que o matar porque, para cair nas tuas boas graças, ele certamente que me trairia. E antes de ele recuperar os sentidos, apunhalei-o no coração.
Alguma da tensão trémula do seu corpo descontraiu-se, e ele respirou fundo e soltou um enorme suspiro. Ele já tinha feito quase tudo que a verdade exigia dele. O resto não custava muito.
- Fui à procura do cavalo, mas o cavalo tinha desaparecido. E depois chegou o mensageiro, e eu já não podia fazer nada. Foi tudo em vão. Eu tinha cometido um assassínio para nada! O que me foi confiado fazer por Bledri ap Rhys, que eu matei, fiz, por penitência. E já sabes qual foi o resultado. Mas é justo! - disse ele, mais para si próprio do que para qualquer outra pessoa, mas eles ouviram. - Ele morreu sem se ter confessado, e vai-me acontecer o mesmo.
- Não necessariamente - disse Owain, com uma compaixão desapaixonada. - Aguenta-te neste mundo um pouco mais, que o meu sacerdote estará cá, pois eu mandei-o chamar.
- Ele chegará demasiado tarde - disse Gwion fechando os olhos.
No entanto, ele ainda estava vivo quando o capelão de Owain chegou, obedientemente apressado, para ouvir a última confissão de um homem moribundo e guiar a sua voz cada vez mais fraca através do seu último acto de contrição. Cadfael, presente até ao fim, duvidou que o coração penitente tivesse ouvido as palavras de absolvição, pois depois de elas terem sido proferidas não houve qualquer resposta, qualquer estremecimento no rosto exangue, nem nas pálpebras arqueadas que cobriam os intensos olhos pretos.
Gwion tinha dito as suas últimas palavras na terra e não tinha medo do que pudesse vir a acontecer no mundo em que estava a entrar. Ele vivera tempo suficiente para ter a certeza de que tinha a absolvição de que tanto necessitava, bem como a clemência e o perdão de Owain, nunca formalmente proferidos, mas generosamente dados.
- Amanhã - disse o Irmão Mark - temos que iniciar o regresso a casa. Já ficámos mais tempo do que devíamos.
Estavam os dois na orla dos campos no exterior do acampamento de Owain, a olhar para o mar aberto. Ali as dunas eram apenas uma estreita franja de ouro acima da descida para a praia e, à luz suave da tarde, o mar estendia-se em azuis nebulosos que ao longe se transformavam num verde límpido, e a longa península submersa de bancos de areia brilhava através da água. Nos canais profundos, no meio do mar, os barcos de carga dinamarqueses iam-se transformando gradualmente em barcos à vela de brinquedo, impulsionados por uma brisa constante, na direcção da costa irlandesa. E, mais ao longe, os barcos mais leves, ainda mais pequenos, dirigiam-se ansiosamente para casa.
O perigo tinha passado, Gwynedd estava salvo, as dívidas tinham sido pagas, os irmãos encontravam-se novamente juntos, se bem que ainda não reconciliados. O problema poderia ter-se tornado muito mais sangrento e mais destruidor. Mesmo assim, tinham morrido homens.
No dia seguinte, também as defesas improvisadas do acampamento atrás deles seriam desmanteladas, os agricultores regressariam às suas quintas, levando os seus animais consigo, e voltariam, imperturbáveis, a tratar da terra e do seu gado, como os seus antepassados tinham feito repetidas vezes, cedendo docilmente terreno aos inimigos saqueadores que eles sabiam que acabariam por se ir embora. Os galeses, que deixavam as suas casas e iam para as colinas quando o inimigo se aproximava, sabiam que voltariam para as reconstruir.
O príncipe levaria o seu exército para Carnarvon e ali mandaria embora aqueles cujas terras se situavam em Arfon e Anglesey, antes de prosseguir para Aber. Dizia-se que Cadwaladr regressaria com ele, e os que os conheciam melhor acrescentavam que pelo menos parte dos seus bens seriam restituídos a Cadwaladr. Porque, apesar de tudo, Owain amava o irmão, e não conseguia vê-lo caído em desgraça durante muito mais tempo.
- E Otir levou o seu pagamento - disse Mark, ponderando ganhos e perdas.
- Foi prometido.
- Não lhe levo a mal. Podia ter sido muito mais elevado.
E podia, embora dois mil marcos não pudessem comprar de volta as vidas dos três jovens de Otir que estavam a ser levados de volta a Dublin para serem sepultados, nem as dos seguidores de Gwion que tinham sido retirados mortos do mar, nem a de Bledri ap Rhys na sua deslealdade fria e calculista, nem a do próprio Gwion na sua lealdade inflexível e destrutiva, sendo uma tão fatal como a outra. Nem todos os que tinham morrido nesse ano podiam devolver a vida a Anarawd, morto no ano anterior no sul, sob instigação de Cadwaladr, se não pelas suas próprias mãos.
- Owain enviou um mensageiro ao Cónego Meirion, de Aber - disse Mark - para o tranquilizar a respeito da filha. Nesta altura, ele sabe que ela está em segurança, com o seu noivo. O príncipe enviou-o assim que Ieuan a trouxe para o acampamento ontem à noite.
O seu tom de voz, pensou Cadfael, era cuidadosamente neutro, como se se tivesse colocado à margem e se coibisse de emitir qualquer juízo, observando com igual distanciamento os dois lados de um problema complexo que não lhe competia resolver.
- E como é que ela se tem comportado? - perguntou Cadfael. Mark poderia desejar abster-se de participar naqueles acontecimentos, mas não podia deixar de observar.
- Ela é muito obediente e sossegada. Agrada a Ieuan. Agrada ao príncipe, pois é como uma noiva deve ser, submissa e obediente. Ela estava aterrorizada, diz Ieuan, quando a tirou do acampamento dinamarquês. Agora já não tem medo.
- Eu pergunto a mim próprio - disse Cadfael - se submissa e obediente é o que a Heledd deve ser. Alguma vez a vimos ser assim, desde que veio connosco de Santo Asaph?
- Aconteceu muita coisa desde essa altura - disse Mark, sorrindo pensativamente. - Pode ser que ela esteja cansada de aventuras e não lamente assentar, casando-se sensatamente com um homem decente. Tu viste-a. Viste algum motivo para duvidar que ela esteja satisfeita?
E, na verdade, Cadfael não podia dizer que tivesse observado qualquer vestígio de descontentamento no seu porte. De facto, ela fazia, sorridente, o trabalho que encontrava para si própria, servia Ieuan hábil e serenamente, e continuava a irradiar à sua volta um tipo de brilho que não podia ter vindo de uma mulher infeliz. O que quer que ela tivesse em mente e mantivesse ali de reserva com profunda satisfação, era algo que seguramente não a inquietava nem perturbava. Heledd encarava o caminho que se abria à sua frente com inconfundível prazer.
- Já conversaste com ela? - perguntou Mark.
- Ainda não tive ocasião.
- Podes tentar agora, se quiseres. Ela está a vir para aqui. Cadfael virou a cabeça e viu Heledd a caminhar agilmente ao longo da colina em direcção a eles, com um passo decidido e o rosto voltado para norte. Mesmo quando parou ao lado deles, foi apenas por um momento, como um pássaro a parar a meio do voo.
- Irmão Cadfael, estou muito satisfeita por vê-lo são e salvo. A última vez que soube de si foi quando nos separaram, junto da brecha da paliçada. - Ela olhou para o mar, onde os barcos se tinham tornado pontos pretos na água cintilante. O seu olhar seguiu a linha deles. Era possível que estivesse a contá-los. - Então eles foram-se embora com o dinheiro e o gado. Assistiu à partida?
- Assisti - disse Cadfael.
- Eles não me fizeram mal nenhum - disse ela, olhando para a frota que se afastava, com um leve sorriso nos lábios, como se a recordar-se. - Eu tinha vontade de lhes acenar a desejar uma boa viagem, mas Ieuan achou que não era seguro.
- Ainda bem - disse Cadfael, muito sério -, porque não foi uma partida inteiramente pacífica. E onde vais agora?
Ela virou-se e encarou-os de frente, e os seus olhos muito abertos, da cor roxa da íris, tinham um ar muito inocente.
- Deixei uma coisa no acampamento dos dinamarqueses - disse ela. - Vou à procura dela.
- E o Ieuan deixa-te ir?
- Tenho autorização - disse ela. - Já se foram todos embora. De facto, já se tinham ido todos embora, e agora era seguro deixar a sua noiva, obtida com dificuldade, voltar às dunas desertas onde tinha estado prisioneira durante algum tempo mas onde nunca se sentira em cativeiro. Viram-na retomar o seu passo decidido ao longo da orla dos campos. Faltava pouco mais de meia milha.
- Não te ofereceste para ir com ela - disse Mark com um rosto solene.
- Eu não ia ser estúpido a esse ponto. Mas deixá-la ter um bom avanço - disse Cadfael num tom pensativo - e talvez vamos nós dois atrás dela.
- Achas - perguntou Mark - que a nossa companhia talvez seja mais desejada no caminho de regresso?
- Eu duvido que ela volte - admitiu Cadfael.
Mark acenou a cabeça em sinal de concordância, não se mostrando nada surpreendido.
- Eu próprio estava a pensar nisso - disse ele.
A maré estava a vazar, mas ainda não estava tão baixa ao ponto de expor a longa e fina língua de areia que se estendia como uma mão e um pulso na direcção da costa de Anglesey. Era possível vê-la, da cor do ouro pálido, sob os baixios, e aqui e ali um tufo de erva e solo quebrava a superfície. Na extremidade, onde os nós dos dedos se projectavam numa rocha, os arbustos enfezados do salgadiço erguiam-se como uma cabeleira áspera e rija, com as raízes a orlar o amarelo da areia. Cadfael e Mark deixaram-se ficar na colina e olharam para baixo como já tinham olhado uma vez e fizeram a mesma descoberta. Repetida, ela revelava todas as vezes, todas as noites em que tinha sido repetida sem testemunhas. Eles até recuaram um pouco, para que a sua forma fosse menos indiscreta na linha do horizonte, se ela olhasse para cima. Mas ela não olhou para cima. Olhou para baixo, para a água límpida, de um verde muito claro à luz do entardecer, que lhe chegava quase aos joelhos enquanto percorria o estreito caminho dourado em direcção ao trono de pedra rodeado pelo mar. Ela segurava as saias, ainda rasgadas e sujas da viagem e de ter vivido ao ar livre, e inclinou-se para observar a água fria e doce a estremecer à volta das suas pernas, quebrando os seus contornos flexíveis num tremor desincorporado, como se, em vez de passar a vau, ela estivesse a flutuar. Tinha tirado todos os ganchos do cabelo, e este caía numa nuvem preta, ondulante, à volta dos ombros, ocultando o rosto oval que ela levava inclinado para a frente, para ver onde punha os pés. Movia-se como uma dançarina, lentamente, com uma graciosidade lânguida. Pois qualquer que fosse o encontro que ela ali tivesse, tinha chegado cedo, e sabia-o. Mas porque não havia qualquer incerteza, o tempo era uma bênção, até mesmo a espera seria um prazer antecipado.
De vez em quando, ela parava e ficava imóvel, deixando a água assentar e ficar parada à volta dos seus pés, depois inclinava-se para observar o ardor trémulo do seu rosto cintilante, à medida que as ondas recuavam para o mar. A maré era muito suave, naquele momento mal havia vento. Mas, naquela altura, os barcos de Otir já estariam a mais de meio caminho de Dublin.
Ela sentou-se no trono de pedra, espremeu a água da borda do vestido e ficou a olhar para o mar à espera, sem impaciência e sem dúvidas. Outrora, naquele local, ela parecera inconsulavelmente só e abandonada mas, mesmo nessa altura, isso tinha sido uma ilusão. Agora ela parecia alguém que se encontrava na serena posse de tudo o que a rodeia, uma companheira querida do mar e do céu. A orbe do sol estava a declinar à sua frente, dourando o rosto e o corpo.
O barco pequeno, estreito, escuro e súbito, surgiu velozmente vindo de norte, emergindo do esconderijo proporcionado pela linha da costa que, para além dos baixios arenosos do outro lado do estreito, estava agora a subir. Algures na costa mais acima' ao largo de Anglesey, ele tinha estado à espera até ao pôr do sol. Não tinha havido, pensou Cadfael, um encontro marcado. Eles não tinham tido tempo para trocar uma só palavra quando ela fora levada por Ieuan. Tinha havido apenas a garantia interior de que se manteriam fiéis, de que o barco viria e de que ela estaria a espera. Eles tinham estado soberbamente seguros um do outro. Assim que Heledd recuperara o fôlego e aceitara o facto do seu inocente rapto, ela passou a aceitar os acontecimentos, Sabendo como deveriam terminar e como, de facto, terminariam. Por que outro motivo tinha andado tão serena enquanto aguardava, iludindo as suspeitas, até mesmo esforçando-se, quem sabe com que tristeza, por dar a Ieuan algum prazer antes de ele ter que pagar com uma perda perpétua. No fim, a filha do Cónego Meinon sabia o que queria e era implacável a consegui-lo, uma vez que ninguém de entre os homens e os senhores à sua volta manifestava algum sinal de a ajudar a realizar os seus desejos.
Pequeno, sinuoso e incrivelmente veloz, com os remos a impulsioná-lo como se fossem um só, o barco-dragão de Thrcaill chegou à praia mas não abicou. Ficou imóvel por um momento, com os remos a roçar na água, como uma ave a pairar no céu.
Turcaill saltou sobre o lado e dirigiu-se a vau, com água até à cintura, para a minúscula ilha de pedra. O pôr do Sol carmesim conferira um brilho quase vermelho ao seu cabelo louro, parecido com o de Owain Gwynedd, igualmente forte e louro. E quando eles olharam novamente para Heledd, esta tinha-se levantado e entrado no mar. A força da maré vazante arrastou-a consigo, com as saias a flutuar. Turcaill emergiu, cintilante, da água mais funda. Encontraram-se a meio do caminho e ela dirigiu-se para os braços dele e foi levantada de encontro ao seu coração. Não houve uma grande manifestação, apenas um breve e distante repique de gargalhadas que se ergueu no ar e chegou até aos dois que os observavam. Não havia necessidade de mais, pois nenhum daqueles seres do mar tivera jamais alguma dúvida a respeito do inevitável desfecho.
Turcaill tinha virado as costas e caminhava na água em direcção ao seu barco, com Heledd nos braços, e a maré, a vazar mais rapidamente à medida que o Sol se punha, formava fontes de borrifos iridescentes à sua frente, pequenos arco-íris que rodeavam os seus pés nus. Ele içou a rapariga por cima do lado baixo do seu dragão e subiu depois dela. E ela, assim que recuperou o equilíbrio, virou-se para ele e abraçou-o. Eles ouviram o riso dela, alto, selvagem e doce, mais ténue que a canção de um pássaro àquela distância, mas penetrante e límpido como um carrilhão de sinos.
Todo o longo e sinuoso banco de remos, suspenso no ar, mergulhou ao mesmo tempo. A pequena serpente obedeceu e dirigiu-se, veloz, levantando espuma, para a passagem estreita entre os baixios arenosos que já mostravam níveis dourados por baixo do azul, mas que ainda eram suficientemente fundos para aquele viajante veloz. Ele afastou-se rapidamente, cada vez mais pequeno, uma folha levada por uma corrente impetuosa, transportada para a Irlanda, para a Dublin dos reis dinamarqueses e dos irrequietos navegadores. E Turcaill tinha levado consigo uma companheira adequada, juntos teriam uma formidável descendência que dominaria aqueles mares agitados durante gerações.
O Cónego Meirion não precisava de se preocupar com a possibilidade de a sua filha voltar alguma vez a aparecer para pôr em perigo o seu estatuto junto do seu bispo, a sua reputação ou a sua carreira. Embora talvez a amasse e provavelmente lhe desejasse felicidades, ele tinha desejado com todo o coração que ela fosse feliz noutro local, longe da vista, se não longe do coração. O seu desejo fora satisfeito. Também não precisava de se preocupar, pensou Cadfael observando aquela partida resplandecente, com a felicidade dela. Ela tinha o que queria, um homem que ela própria escolhera. Ela cumpriria a sua parte, sensata ou insensata de acordo com os padrões do seu pai. Mas ela tinha outros padrões e era pouco provável que alguma vez se viesse a arrepender.
A pequena Mancha preta que se dirigia velozmente para casa mal era visível apenas como um ponto escuro num luminoso mar cintilante.
- Foram-se embora - disse o Irmão Mark, virando-se e sorrindo. - E nós também nos podemos ir embora.
Eles tinham ficado mais tempo do que tencionavam. Dez dias no máximo, dissera Mark, e o Irmão Cadfael estaria de volta, são e salvo, ao seu herbário e ao seu trabalho junto dos doentes. Mas talvez, tendo em causa o desfecho, o Abade Radulfus e o Bispo de Clinton considerassem os dias ociosos como bem passados. Talvez até mesmo o Bispo Gilbert ficasse muito satisfeito por conservar o seu eficiente e enérgico cónego, com a inconveniente filha de Meirion em segurança no outro lado do mar, e o seu escandaloso casamento esquecido. Todos os outros pareciam bastante contentes com a satisfatória resolução do que poderia ter sido um problema sangrento. O que interessava agora era voltar para a tranquilidade da vida diária e deixar os rancores e as animosidades antigas desaparecer gradualmente na obscuridade do passado. Sim, Cadwaladr seria reinstituído condicionalmente, Owain não podia ignorá-lo totalmente. Mas não plenamente reinstituído, e não para já. Gwion, que tinha sido, sob todos os pontos de vista, o perdedor, seria sepultado decentemente, sem grande reconhecimento da sua lealdade por parte do senhor que tão amargamente o desiludira. Cuhelyn permaneceria em Gwynedd e, com o tempo, certamente que ficaria satisfeito por não ter tido que assassinar ninguém com as suas próprias mãos para vingar a morte de Anarawd, pelo menos Bledri ap Rhys. Os príncipes, que mandam outros fazer o trabalho menos agradável por eles, geralmente escapam a todos os juízos temporários, mas não ao final.
E Ieuan ab Ifor teria simplesmente que se resignar à perda da imagem ilusória de uma mulher submissa, um ser em que Heledd nunca se poderia tornar. Ele mal a vira ou falara com ela e, por muito que a sua dignidade ficasse ferida, o seu coração não podia ficar despedaçado por a perder. Se ele olhasse à sua volta, havia mulheres agradáveis em Anglesey que poderiam consolá-lo.
E ela... ela tinha o que queria, e estava onde queria estar, não onde os outros tinham achado conveniente colocá-la. Owain tinha-se rido quando ouvira a história, embora, por consideração por Ieuan, tivesse mantido um rosto grave na sua presença. E havia um outro homem à espera em Aber que teria a última palavra da história de Heledd.
A última palavra, depois de o Cónego Meirion ter ouvido e digerido a história da escolha da sua filha, foi pronunciada após um longo suspiro de alívio pelo facto de, pelo menos, ela se encontrar em segurança - ou teria sido por ele próprio ter ficado liberto?
- Quem diria! - disse Meirion, entrelaçando e desentre-laçando as suas mãos compridas. - Há um mar entre nós. - Era verdade, e isso era um alívio para ambos. Mas ele prosseguiu: - Nunca mais voltarei a vê-la! - e as suas palavras continham tanta dor como satisfação. Cadfael nunca saberia bem o que pensar a respeito do Cónego Meirion.
Chegaram à fronteira do condado ao entardecer do dia seguinte e, seguindo o princípio de que o mal já estava feito, fizeram um desvio para passar a noite com Hugh em Maesbury. Os cavalos ficariam gratos pelo descanso, e Hugh gostaria de saber, em primeira mão, o que acontecera em Gwynedd e como o bispo normando se estava a dar com o seu rebanho galês. Havia também o prazer de passar algumas horas tranquilas com Aline e Giles, num ambiente doméstico contemplado com ainda mais deleite porque tinham renunciado a ele para si próprios, bem como ao mundo no exterior da Ordem.
Foi esse o comentário afoito que Cadfael teceu quando estava sentado, feliz, à lareira de Hugh, com Giles ao colo. E Hugh riu-se dele.
- Tu, renunciar ao mundo? E acabado de voltar de um passeio à orla mais ocidental de Gales? Será um milagre se, depois deste passeio, eles conseguirem manter-te dentro do mosteiro durante mais de um mês ou dois. Eu já te vi ficar irrequieto ao fim de uma semana de observância rígida. Eu pergunto a mim próprio de vez em quando se um dia não partes para S. Giles e acabas em Jerusalém.
- Oh, não, isso não! - disse Cadfael, com uma certeza serena.
- É verdade que, de vez em quando, os meus pés anseiam pela estrada. - Ele estava a olhar para dentro de si próprio, onde as memórias antigas sobreviviam e permaneciam, à sua maneira, calorosas e satisfatórias, mas no passado, uma vez que nunca seriam repetidas ^ já não eram desejáveis. - Mas, afinal de contas - disse Cadfael, com profunda satisfação -, quando se trata de estradas, a estrada a caminho de casa é tão boa como qualquer outra.
Ellis Peters
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