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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADFAEL 20 / O Santo Ladrão
CADFAEL 20 / O Santo Ladrão

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

No auge de um Verão quente, no fim de Agosto de 1144, Geoffrey de Mandeville, conde de Essex, sucumbiu ao calor do sol, e cometeu o erro final e fatal da sua carreira longa e oportunista. Na altura, estava ocupado com o planeamento da destruição, por cerco, de uma do círculo de fortalezas improvisadas mas eficazes que o rei Stephen tinha erguido para conter e concentrar as depredações do bando de foras-da-lei, rebeldes e predadores de Geoffrey, na região dos Pântanos. Durante mais de um ano, a partir das suas bases secretas nos Pântanos, Geoffrey tinha devastado a região para garantir que nenhum campo era cultivado ou ceifado em segurança, nenhuma casa devidamente guardada, nenhum homem com qualquer coisa de valor a perder estaria seguro na sua posse, e ninguém que se recusasse a entregar o que ele queria ficava sequer com uma vida para perder. Como o rei lhe tinha confiscado todos os seus castelos e terras e títulos relativamente legítimos, nenhum deles de forma demasiado legal, verdade seja dita, Geoffrey tinha decidido fazer o mesmo a todos os homens, pobres ou ricos, que se atravessassem no seu caminho. Durante um ano, desde as fronteiras de Huntingdon até Mildenhall no Suffolk e na maior parte de Cambridgeshire, os Pântanos tinham-se tornado um reino fechado de salteadores apesar da superioridade do rei Stephen, e embora o seu apressado anel de castelos tivesse contribuído em certa medida para impedir um maior alargamento, não dificultara grandemente os movimentos do conde, nem o conduzira para a batalha que ele era perito em evitar.

 

 

 

 

 

 

Mas esta posição estratégica de Burwell, a nordeste de Cambridge, irritava-o porque começava a interferir com as suas linhas de abastecimento, praticamente a única coisa vulnerável na sua organização. E, num dos dias mais quentes de Agosto, ele andava a cavalgar à volta do castelo ofensivo para estudar as melhores possibilidades de ataque. Devido ao calor, tinha tirado o elmo e a rede de fina cota de malha que lhe protegia o pescoço. Um vulgar arqueiro na muralha disparou uma flecha, e atingiu-o na cabeça.

Geoffrey riu do incidente, pois o ferimento parecia superficial; recolheu-se para alguns dias de convalescença. E dentro de poucos dias estava a arder com uma infecção febril que lhe soltou a carne dos ossos e o confinou à sua cama. Levaram-no até Mildenhall, no Suffolk, e ali ficou a saber que estava a morrer. O sol fizera o que todos os exércitos do rei Stephen não tinham conseguido.

O que era impossível era morrer em paz. Ele tinha sido excomungado e não seria absolvido; nem sequer um padre poderia ajudá-lo, pois no conselho de meados da Quaresma, convocado no ano anterior por Henry de Blois, bispo de Winchester, irmão do rei e na época núncio papal, tinha sido decretado que nenhum homem que cometesse violência contra um clérigo poderia ser absolvido por alguém que não o próprio papa, e não simplesmente por um decreto distante, mas na presença do próprio papa. É um longo caminho desde Mildenhall até Roma para um moribundo com terror do fogo do inferno. Pois Geoffrey tinha sido excomungado pela ocupação violenta da abadia de Ramsey, e pela expulsão dos monges e do seu abade, para transformar o convento na capital do seu reino de ladrões, torturadores e assassinos. Para ele não havia absolvição possível, não havia esperança de enterro. A terra não o receberia.

Havia homens que faziam tudo o que estava ao seu alcance por ele, fanáticos em defesa da sua alma, se não podiam ajudar o corpo. Quando ficou tão fraco que deixou de delirar e mergulhou num torpor, os seus oficiais e conselheiros começaram febrilmente a emitir forais em seu nome, restituindo à Igreja várias propriedades que ele lhe roubara, incluindo a abadia de Ramsey. Se era da vontade dele ou não, ninguém parou para perguntar, e ninguém soube jamais. As ordens foram executadas, e respeitadas, mas não lhe serviram de nada. Ao seu corpo foi recusado um enterro cristão, o seu título nobiliárquico foi abolido, as suas terras e cargos foram confiscados e a família deserdada. O seu filho mais velho foi excomungado com ele, e parceiro na sua rebelião. Um filho mais novo, e seu homónimo, já estava com a imperatriz Maud, e fora reconhecido por ela como conde de Essex, embora o reconhecimento tivesse pouco valor sem terras ou estatuto.

No décimo sexto dia de Setembro, Geoffrey de Mandeville morreu, ainda excomungado, ainda não absolvido. Os únicos que mostraram alguma piedade por ele foram certos cavaleiros Templários que se encontravam em Mildenhall na época, e levaram o corpo num caixão para Londres, onde, por falta de compaixão cristã, foram obrigados a deixá-lo numa vala do lado de fora do Templo, em terreno não consagrado, e mesmo assim um passo para além do que era permitido pelo direito canónico, pois rigorosamente não devia sequer ser sepultado na terra.

Nas fileiras do seu exército variado não havia ninguém suficientemente forte para ocupar o seu lugar. A única coisa que os mantinha juntos era o interesse pessoal mútuo e a ganância, e sem estes motivos a sua aliança dúbia começou a desmoronar-se, à medida que as forças encorajadas do rei os atacaram com resolução renovada. Grupos de foras-da-lei afastaram-se discretamente em todas as direcções para procurarem pastos menos frequentados e ermos mais impenetráveis, onde poderiam esperar continuar as suas vidas como predadores. Os mais respeitáveis, ou aqueles de melhores famílias e com mais para oferecer, desviaram-se para fazer a paz e retiraram-se para alianças mais seguras.

Para todas as outras pessoas, a notícia da morte de Geoffrey provocou satisfação universal. A novidade chegou rapidamente ao rei, libertou-o do mais perigoso e implacável dos seus inimigos, e aliviou-o instantaneamente da necessidade de imobilizar a maior parte das suas forças numa região. A notícia foi transmitida de aldeia em aldeia, através da região dos Pântanos, à medida que os rudes saqueadores retiravam, e as pessoas que tinham vivido aterrorizadas emergiram cautelosamente para recuperar o que era possível de uma colheita devastada, reconstruir as suas casas queimadas e reunir as suas famílias e parentes. E também, já que a morte tinha andado mais do que normalmente ocupada por aquelas paragens, enterrar os mortos decentemente. Levaria mais de um ano até que a vida voltasse a algum tipo de normalidade, mas pelo menos agora podiam dar os primeiros passos cautelosos.

E antes do fim do ano a notícia chegou ao abade Walter de Ramsey, com o foral passado no leito de morte que lhe devolvia o mosteiro. O abade deu graças a Deus, e começou a enviar a notícia ao seu prior e sub-prior e a todos os seus irmãos espalhados um pouco por todo o lado, que tinham sido escorraçados sem um tostão e haviam ficado sem um tecto e tinham sido obrigados a encontrar abrigo onde puderam, alguns com os familiares, outros em outras casas Beneditinas hospitaleiras. O primeiro, e que estava mais perto, apressou-se a responder ao chamado para casa, e entrou numa desolação total. Os edifícios monásticos eram uma simples armação, as terras por cultivar, os feudos que a casa tinha anteriormente possuído entregues a ladrões e vagabundos, todos os seus tesouros pilhados. Dizia-se que as paredes sangravam de desgosto. No entanto, o abade Walter e os seus irmãos deitaram as mãos ao trabalho para restaurar a sua casa e a sua igreja, e mandaram a notícia do seu regresso para todos os monges e noviços que tinham sido forçados a viajar para longe para encontrar um abrigo durante o exílio. Como eram membros de uma irmandade mais vasta, tendo toda a Ordem Beneditina como aparentados, também fizeram um apelo urgente de ajuda em esmolas, material e mão-de-obra para acelerar o trabalho de reconstrução e para mobilar de novo o lugar sagrado.

Em devido tempo a notícia, o convite e a ajuda chegaram ao portão da abadia de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury.

 

 

 

 

                                   Capítulo Um

Os mensageiros chegaram durante a meia hora do cabido, e não quiseram comer, beber nem descansar, nem lavar dos pés a lama das estradas, antes de se dirigirem à assembleia na casa do cabido, e transmitirem a mensagem. Se os suplicantes falhassem em zelo, o mesmo aconteceria com os doadores.

Ficaram de pé com todos os olhos postos neles, recusando sentar-se até a mensagem ser proclamada. O sub-prior Herluin, com longa experiência e autoridade, um homem de presença impressionante, estava de frente para o senhor abade, com as mãos magras pousadas na faixa. O jovem noviço que tinha caminhado com ele desde Ramsey encontrava-se, modestamente, um ou dois passos atrás, a copiar devotamente a pose e imobilidade do seu superior. Três criados laicos da sua casa, a escolta da viagem, tinham ficado com o porteiro na casa do portão.

- Padre Abade, vós-conheceis, como todos os homens conhecem, a nossa lamentável história. Faz agora dois meses que a nossa casa e propriedades nos foram restituídas. O abade Walter está agora a chamar à sua vocação todos os irmãos que foram forçados a dispersar e a encontrar abrigo onde puderam, quando os rebeldes e foras-da-lei nos tiraram tudo o que possuíamos, e nos escorraçaram pela ponta da espada. Aqueles de nós que ficaram perto regressaram com o nosso abade logo que tiveram autorização. Para uma desolação total. Por direito, éramos proprietários de muitos feudos, mas depois da desapropriação todos foram entregues a vilãos sem lei que apoiavam Mandeville, e declará-los restituídos a nós de nada serve, uma vez que não temos força para os recuperar dos senhores ladrões a não ser através da lei, e a lei levará anos a dar-nos razão. Também, do mesmo modo, tudo o que recuperarmos terá sido saqueado e desprovido de tudo o que possuía de valor, deixado semi-arruinado, possivelmente incendiado. E na pálida...

Ele tinha uma voz clara e confiante que até então falara com grande força, mas sem ardor, mas uma indignação crescente roubou-lhe a fala por alguns instantes quando chegou ao dia do regresso.

- Eu estava lá. Vi o que eles tinham feito do lugar sagrado. Uma abominação! Uma estrumeira! A igreja profanada, os claustros um estábulo sujo, o dormitório e o refeitório sem madeira, que tinha sido arrancada para alimentar as fogueiras, todas as provisões levadas, todos os bens valiosos que não tivemos tempo nem aviso para retirar, roubados. Chumbo retirado dos tectos, quartos deixados abertos à mercê do tempo, da chuva e do gelo. Não ficou sequer uma panela para cozinhar, ou um livro de serviço ou uma tira de pergaminho. Paredes em ruína, um vazio, um vazio estéril. Tudo isto decidimos reconstruir e tornar mais glorioso do que antes, mas não podemos fazê-lo sozinhos. O abade Walter desistiu de muita da sua riqueza para comprar comida para o povo das nossas aldeias, pois não houve colheita alguma. Quem podia cultivar os campos com a morte atrás de si? Até aos mais pobres dos pobres aqueles malfeitores extorquiram o último bem, e se não havia nada para roubar, matavam.

- É bem verdade que ouvimos falar no terror que andava à solta na vossa região - disse o abade Radulfus. - Ouvimos com desgosto, e rezámos para que chegasse ao fim. Agora que esse fim chegou, não há casa alguma da nossa Ordem que possa recusar toda a ajuda possível para restaurar o que foi espoliado. Pedi-nos o que poderá servir melhor os interesses de Ramsey. Pois penso que fostes mandado como um irmão a irmãos, e dentro desta nossa família a fatalidade de um é a fatalidade de todos.

- Fui enviado para pedir ajuda a esta casa e a todos os laicos que possam sentir-se comovidos para fazer uma acção de graça, em esmolas, em trabalho, se houver alguém em Shrewsbury experiente na construção e disposto a trabalhar durante algumas semanas longe de casa, em materiais, em todas as ajudas que possam ser úteis à nossa reconstrução e para benefício das almas dos generosos. Ramsey ficará grato por todos os tostões e por todas as orações. Para esse fim, peço autorização para pregar uma vez aqui na vossa igreja, e uma vez, com a permissão do xerife e do clero, no pelourinho em Shrewsbury, para que todos os homens bons da cidade possam procurar nos seus corações e dar o que sentirem que devem dar.

- Conferenciaremos com o padre Boniface - disse Radulfus - e ele acederá seguramente a deixar-vos falar num serviço da paróquia. Da solidariedade desta casa podereis desde já ter a garantia.

- Eu sabia que podíamos contar - disse Herluin graciosamente - com o amor fraternal. Outros, como o irmão Tutilo aqui presente e eu próprio, foram implorar a ajuda de outras casas Beneditinas noutros condados. Estamos também encarregues de levar a notícia a todos os irmãos que foram obrigados a espalhar-se para salvar as suas vidas quando os nossos problemas começaram, para os chamar de volta para casa, onde são muito necessários. Pois alguns deles podem ainda nem sequer saber que o abade Walter está de volta ao enclave, e necessita do trabalho e da fé de cada irmão para concretizar o grandioso trabalho da reconstrução. Um dos nossos, creio - disse ele, a observar ansiosamente o rosto do abade -, veio para Shrewsbury, para casa da sua família. Tenho de o ver, e de exortá-lo a regressar comigo.

- É verdade - concedeu Radulfus. - Sulien Blount, da casa senhorial de Longner. Ele veio para junto de nós, com a aprovação do abade Walter. O jovem não tinha feito os votos finais. Estava a chegar ao fim do noviciado, e tinha algumas dúvidas em relação à sua vocação. Ele veio para cá, com autorização plena do seu abade, na condição de pensar no seu futuro. Foi decisão sua abandonar esta casa, e regressar para junto da sua família, e eu dei-lhe autorização para o fazer. Na minha opinião, ele tinha entrado para a Ordem por engano. No entanto, ele tem de responder por si mesmo, e assim fará. Mandarei um dos irmãos mostrar-vos o caminho para a casa do seu irmão mais velho.

- Farei tudo o que estiver ao meu alcance para o chamar de volta ao seu melhor eu - declarou Herluin, com uma implicação distante no tom de que gostaria de trazer de volta para o rebanho um penitente relutante mas sem argumentos.

O irmão Cadfael, a estudar aquele personagem formidável do seu canto recuado, e com os seus longos anos de experiência secular e monástica de todos os tipos e condições de homens, reflectiu que, provavelmente, o sub-prior faria uma boa pregação no Pelourinho, e extrairia donativos a muitas consciências culpadas; pois era suficientemente fluente, capaz até de ardor ao serviço de Ramsey. Mas em relação à perspectiva de fazer o jovem Sulien Blount mudar de ideias, tendo em conta a boa rapariga com quem ia casar dentro de muito pouco tempo, Cadfael abanou a cabeça. Se conseguisse, seria um milagreiro, e estaria a caminho da santidade. Havia santos inquietantes na hagiologia de Cadfael, que ele próprio teria confinado a um estatuto menos reverendo, mas cuja rectidão exasperante não podia negar. No fundo, conseguia sentir até alguma pena do sub-prior Herluin, que estava prestes a embotar todas as suas armas contra o escudo impenetrável do amor. Ele que tentasse agora afastar Sulien Blount de Pernel Otmere! Tinha aprendido a conhecer demasiado bem aquele par para que pudesse duvidar.

Descobriu que até agora não se sentia grandemente atraído pelo sub-prior Herluin, embora pudesse respeitar a dureza do homem na sua longa viagem a pé, e a sua determinação para voltar a encher os cofres saqueados de Ramsey e reconstruir as suas paredes arruinadas. Aqueles irmãos itinerantes dos Pântanos eram um par muito estranho. O sub-prior era um homem grande, com ossos compridos e ombros largos, com carne que em tempos fora ampla, talvez até excessiva, mas estava agora encolhida e um pouco flácida. Certamente, não era vergonha para ele; ao que tudo indicava, tinha partilhado o pouco com que os desafortunados habitantes dos pântanos tinham sobrevivido durante aquele ano de opressão sem colheitas. A sua cabeça descoberta revelava uma tonsura pálida rodeada por cabelos encanecidos, fortes, mais castanhos do que cinzentos, e um rosto comprido e chupado, de feições austeras, com olhos encovados e severos, uma boca grande e direita, quase sem lábios quando em repouso, como se o sorriso lhe fosse completamente desconhecido. Todas as rugas que o seu porte tinha adquirido, durante uma vida que Cadfael calculou ter aproximadamente cinquenta anos, mostravam uma personalidade rígida, reprimida e proibitiva.

Não era um companheiro muito agradável para uma viagem, a menos que a aparência enganasse. O irmão Tutilo, que se encontrava, modestamente, um pouco atrás do seu superior, seguindo com atenção extasiada cada palavra proferida por Herluin, parecia ter cerca de vinte anos, talvez menos ainda; um rapaz de constituição leve, notavelmente ágil e gracioso nos seus movimentos, um modelo de compostura disciplinada na imobilidade. O cimo da sua cabeça chegava apenas ao ombro de Herluin, e estava rodeada por uma profusão de caracóis castanho-claros, crescidos durante a grande viagem. Sem dúvida que seriam cortados austeramente curtos quando Herluin o levasse de volta para Ramsey, mas agora assemelhava-se a um serafim pintado num missal, embora o rosto por baixo desta auréola fosse pouco seráfico, apesar da sua expressão de radiante devoção. À primeira vista era um encantador inocente, tão puro como os seus olhos grandes, e com o rosado e a brancura acetinada de uma rapariga, mas um estudo mais penetrante revelava que esta coloração infantil era imposta num rosto oval de simetria clássica e modelação severa e incisiva. A tonalidade de rosas naquelas puras linhas de mármore tinha quase a aparência de um disfarce, atrás do qual uma criatura cativante mas levemente perigosa se escondia numa emboscada possivelmente perniciosa.

Tutilo - um nome estranho para um jovem inglês; pois não havia nada de normando ou celta neste jovem. Talvez fosse o nome escolhido para ele quando iniciara o noviciado. Tinha de perguntar ao irmão Anselm o que significava, e onde é que as autoridades em Ramsey o tinham descoberto. Cadfael concentrou-se uma vez mais no que estava a ser falado entre anfitrião e convidados.

- Enquanto estiverdes por estas paragens - disse o abade - suponho que pretendereis visitar outras casas Beneditinas. Se quiserdes, providenciaremos cavalos. A estação não é a mais favorável para viajar. Os rios estão cheios, alguns dos baixios não poderão ser atravessados, estareis melhor a cavalo. Apressaremos quaisquer providências que quiserdes tomar, conferenciarei com o padre Boniface sobre a utilização da igreja, pois é ele que tem a seu cargo a cura das almas na paróquia da Santa Cruz, e com Hugh Beringar, que é o xerife, e com o preboste e o representante do Grémio dos Mercadores da cidade sobre a vossa pregação no Pelourinho em Shrewsbury. Se houver mais alguma coisa útil que possamos fazer, só precisais de falar.

- Ficaremos muito gratos por podermos viajar montados durante algum tempo - concordou Herluin, e esboçou a expressão mais aproximada de um sorriso que as suas feições permitiam -, pois pretendemos ir pelo menos até aos nossos irmãos em Worcester, talvez também a Evesham e Pershore, e seria simples regressar por Shrewsbury e devolver os vossos cavalos. Os nossos foram levados, todos eles, pelos foras-da-lei antes de partirem. Mas em primeiro lugar, se for possível ainda hoje, gostaria de ir conversar com o irmão Sulien.

- Como achardes melhor - disse Radulfus simplesmente. - Creio que o irmão Cadfael é quem melhor conhece o caminho... há um canal que tem de ser atravessado numa barcaça... e também a propriedade do senhor de Longner. Será bom que ele vos acompanhe.

- O irmão Sulien - comentou Cadfael mais tarde, quando atravessava o pátio com o irmão Anselm, o chantre e bibliotecário - já não é chamado assim há algum tempo, e parece-me muito pouco provável que aceite sê-lo novamente agora. E Radulfus devia ter-lhe dito, pois conhece toda a história daquele jovem tão bem como eu. Mas suponho que se a tivesse contado, este Herluin não teria escutado. "Irmão" significa agora para Sulien o seu próprio irmão Eudo. Ele está a treinar para ser soldado, e será um dos jovens da guarnição de Hugh no castelo logo que a sua mãe morra, e disseram-me que a sua morte está muito próxima. E, muito provavelmente, será um homem casado antes mesmo que isso aconteça. Não voltará para Ramsey.

- Se o seu abade mandou o rapaz para casa para tomar uma decisão - disse Anselm, razoavelmente -, o sub-prior não pode ter poder para fazer uma pressão demasiado severa no rapaz para que ele regresse. Por muito que argumente e exorte, não pode fazer nada, e deve estar consciente disso, se o jovem se mantiver irredutível. Pode muito bem acontecer - acrescentou secamente - que o que espera daquele lado seja um pagamento em prata para aliviar a consciência.

- Bastante provável. E também é muito possível que consiga o seu objectivo. Há mais do que uma consciência naquela casa - concordou Cadfael - que se sente endividada com Ramsey. E que te parece o outro? - perguntou.

- O jovem? Um entusiasta, com graça e fervor a brilhar nas suas faces suaves. Escolhido para acompanhar Herluin para contrabalançar a frieza, não te parece?

- E onde terá arranjado aquele seu nome exótico?

- Tutilo! Sim - disse Anselm, pensativo. - Não no seu baptismo! Deve haver um motivo para lho terem escolhido. Tutilo encontra-se entre os santos de Março, embora não lhe prestemos muita atenção aqui. Era um monge de Saint Gall, e já morreu há mais de duzentos anos, e segundo todos os relatos era perito em todas as artes, pintor, poeta, músico e mais. Talvez tenhamos um rapaz dotado entre nós. Tenho de o levar a experimentar o arrabil ou o órgão, para ver o que ele sabe fazer. Recordas-te de que uma vez tivemos aqui um cantor errante? O pequeno acrobata que arranjou uma mulher na cozinha do ourives antes de nos deixar. Eu consertei o seu arrabil. Se este conseguir fazer melhor, talvez possa justificar o nome que lhe deram. Sonda-o, Cadfael, se fores o guia deles para Longner esta tarde. Herluin não vai perder tempo a procurar o seu noviço tresmalhado. Vê o que consegues com Tutilo.

O caminho para a casa senhorial de Longner dirigia-se para nordeste desde as veredas de Foregate, cortava um pedaço curto e denso de bosque, e subia um cume baixo de tojal e prado para se debruçar sobre o curso sinuoso do Severn, a jusante da cidade. O rio estava cheio e túrgido, e arrastava ramos e maciços de turfa das margens na sua corrente. O Inverno tinha trazido grandes nevões, sem fortes tempestades ou gelo. O degelo ainda enchia os vales por todo o lado com o suave pingar de água, até os prados junto ao rio e o regato sussurravam constantemente e brilhavam com reflexos prateados no meio da erva. O baixio, a pouca distância a montante, já estava intransponível, a ilha que ajudava o tráfego a pé para o outro lado em alturas normais estava submersa. Mas o barqueiro impelia a barcaça com a sua vara, transportando vigorosamente os passageiros para o outro lado, tão acostumado e tão à-vontade com as suas águas turbulentas que tempestade, cheia e calmaria eram uma única coisa para ele.

No lado mais afastado do Severn, o caminho percorria os terrenos pantanosos à beira da água, pois o rio já lambia a erva queimada no Inverno uma jarda para o interior. Se fortes chuvas de Primavera caíssem nas colinas do País de Gales, a seguir à água : do degelo, haveria cheias sob as muralhas de Shrewsbury, e o regato Meole e a represa subiriam perigosamente e ameaçariam até a nave da igreja da abadia. Acontecera por duas vezes desde que Cadfael entrara para a Ordem. E para oeste o céu pairava, ponderoso e cinzento, debruçado sobre as montanhas distantes.

Contornaram as águas invasoras, por baixo da escura terra arável do Campo do Oleiro, subiram aliviadamente a suave encosta que os levou para o interior, para os bem cuidados bosques da casa senhorial de Longner, e chegaram à clareira onde a casa se erguia confortavelmente na encosta, abrigada dos ventos fortes, e rodeada pela sua alta paliçada e pela incrustação de edifícios da propriedade.

Quando passaram o portão, Sulien Blount saía dos estábulos para se dirigir para casa. Usava um justilho de couro e a cota de trabalho e os calções mostravam que era um irmão mais novo a fazer a sua parte do trabalho na propriedade do primogénito até conseguir arranjar a sua própria casa, como seguramente faria. Parou ao avistar o trio que entrava naquele momento, com uma expressão tensa no olhar, pois reconhecera instantaneamente o seu antigo superior espiritual, e surpreendera-se ao vê-lo tão longe de casa. Mas veio imediatamente ao encontro dos recém-che-gados, com uma cortesia reverente e talvez levemente apreensiva. As tensões do último ano tinham-no afastado tanto do claustro e da tonsura que o reaparecimento tão perto de casa do que era passado e estava acabado pareceu, momentaneamente, oferecer uma ameaça à sua calma nova e conseguida a duras penas, e ao futuro que tinha escolhido. Apenas por um momento. Sulien já não tinha dúvida do caminho que queria seguir.

- Padre Herluin, sede bem-vindo à minha casa! Rejubilo ver-vos bem, e saber que Ramsey foi restituído à Ordem. Não quereis entrar, e dizer-nos em que podemos ajudar-vos, nós os de Longner?

- Não podes imaginar - disse Herluin, dirigindo-se cautelosamente a uma possível batalha à sua frente - em que estado recuperámos a nossa abadia. Durante um ano foi o antro de um exército de malfeitores, pilhada e despojada de tudo o que podia ser queimado. Até as paredes foram conspurcadas, onde não conseguiram partir, antes de fugirem. Necessitamos de todos os filhos da casa, e de todos os amigos da Ordem, para voltar a consagrar a Deus tudo o que foi profanado. E a ti que venho, e contigo desejo falar.

- Um amigo da Ordem - disse Sulien. - Espero ser. Filho de Ramsey e irmão dos seus irmãos já não sou. O abade Walter mandou-me para aqui, com muita sabedoria, para reflectir sobre a minha vocação, que sabia ser dúbia, e entregou o meu noviciado ao abade Radulfus, que me absolveu. Mas entrai, e poderemos conversar como amigos. Eu escutarei reverentemente, Padre, e respeitarei tudo o que tiverdes para dizer.

E assim faria, pois era um jovem que fora educado para respeitar todos os deveres para com os mais velhos; tanto mais que, na qualidade de filho mais novo, não tinha qualquer herança e precisava de construir o seu caminho, e tinha, portanto, mais necessidade ainda de agradar àqueles que tinham poder e autoridade, e podiam ajudá-lo a progredir na sua carreira. Ouviria e acederia, mas não mudaria de ideias. Não precisava de testemunhas favoráveis para apoiar o seu lado do caso, e por que é que o lado de Herluin seria sobrecarregado com um jovem acólito devoto e silencioso, a impor a um ex-irmão com a sua própria presença um dever que ele já não tinha, e que, à partida, assumira por engano pelos motivos errados?

- Desejais com certeza falar estritamente em particular - disse Cadfael, seguindo o sub-prior pelos degraus de pedra que conduziam à porta de entrada. - Com tua permissão, Sulien, este jovem irmão e eu iremos visitar a tua mãe. Se, é claro, ela estiver suficientemente bem e disposta a receber visitas.

- A vossa, sempre! - declarou Sulien, e esboçou um sorriso rápido e resplandecente por cima do ombro. - E um rosto novo dar-lhe-á alento. Sabeis como ela encara a vida e o mundo agora, com muita paz.

Nem sempre fora assim. Donata Blount sofria há vários anos de uma doença incapacitante e incurável que lhe devorava lentamente a carne e lhe provocava dores intensas. Apenas nas últimas fases da sua doença física quase conseguira suplantar a própria dor, e reconciliara-se com o mundo que ia deixar ao aproximar-se da porta que se abria para uma outra.

- Será muito em breve - disse Sulien com simplicidade. Parou no átrio debilmente iluminado. - Padre Herluin, fazei o favor de entrar no solar comigo, e pedirei refrescos para vós. O meu irmão está na quinta. Tenho pena de que não esteja aqui para vos saudar, mas não fomos avisados da vossa visita. Ireis desculpá-lo. Se a vossa missão é comigo, poderá ser melhor assim. - E para Cadfael: - Ide para os aposentos de minha mãe. Eu sei que ela está acordada, e nunca duvideis de que, para ela, sois sempre bem-vindo.

Lady Donata, confinada por fim ao seu leito, estava encostada em almofadas no seu pequeno quarto de dormir, com as cortinas abertas e uma pequena braseira a arder num canto, na pedra nua do chão. O seu corpo estava reduzido a ossos e pele translúcida, as mãos pousadas no cobertor como pétalas de lírios caídas na sua emaciação transparente. O seu rosto estava reduzido a uma frágil massa de ossos prateados, e os buracos fundos dos olhos estavam preenchidos com uma sombra de um azul gélido em volta da beleza surpreendente e imperecível dos próprios olhos, ainda claros e inteligentes, e do mais escuro e mais luminoso dos azuis. O espírito encerrado naquela concha frágil continuava alerta, indomável e profundamente interessado no mundo à sua volta, sem qualquer medo de o deixar, nem qualquer relutância em partir.

Ergueu os olhos para as visitas, e cumprimentou Cadfael num tom de voz baixo que não perdera nenhuma da sua qualidade.

- Irmão Cadfael, é um prazer! Quase não vos vi durante o Inverno. Não teria gostado de partir sem me despedir de vós.

- Podíeis ter mandado chamar-me - disse ele, e dirigiu-se para um banco junto à cabeceira. - Eu sou obediente. E Radulfus não recusaria um pedido vosso.

- Ele veio pessoalmente - disse Donata - para me ouvir em Confissão no Natal. Eu sou uma ovelha adoptada do seu rebanho. Não se esquece de mim.

- E como estão os vossos assuntos? - perguntou ele, analisando a serenidade do rosto da mulher. Nunca era necessário haver rodeios com Donata, ela compreendia o que ele queria dizer, e preferia assim.

- Na questão da vida e da morte - disse ela -, excelentemente bem. Na questão da dor... já a ultrapassei; não há o suficiente de mim para senti-la, nem me importaria se ela se fizesse sentir. Tomo isso como o sinal que procurei. - Falou sem apreensão ou pena, e agora até sem impaciência, perfeitamente satisfeita com o pouco tempo de vida que lhe restava. E ergueu os olhos escuros para o jovem que se mantinha afastado.

- E quem trouxestes para me ver? Um novo acólito vosso do herbário?

Tutilo aproximou-se mais, interpretando acertadamente aquelas palavras como um convite. Os seus olhos eram grandes e redondos, a observar o estado dela, mas não pareceu nada consternado, nem com pena. Donata não convidava à piedade. O rapaz tinha uma apreensão muito rápida e precisa.

- Não é meu - disse Cadfael, a olhar pensativamente para a figura magra, e a aprovar cautelosamente um pupilo inteligente que por certo não teria recusado. - Não, este jovem irmão veio com o seu sub-prior da abadia de Ramsey. O abade Walter voltou para o seu mosteiro, e está a chamar para casa todos os irmãos para ajudarem na reconstrução, pois Geoffrey de Mandeville e os seus salteadores deixaram uma concha vazia. E para vos pôr a par de toda a situação, o sub-prior Herluin está no solar neste momento, para ver o que pode fazer com Sulien.

- Aí está um que ele nunca recuperará - declarou Donata com certeza. - O meu desgosto é que ele tenha sido levado a enganar-se tão grosseiramente, e se Geoffrey de Mandeville não fez mais nada de bom, no muito mal que fez, pelo menos o seu ataque devastador conduziu Sulien de volta para si próprio. O meu filho mais novo - disse ela, fitando os grandes olhos dourados de Tutilo com um sorriso pensativo e apreciador - nunca foi talhado para ser um monge.

- O mesmo disse um imperador, creio - comentou Cadfael, recordando o que Anselm dissera do santo de Saint Gall -, sobre o primeiro Tutilo, de quem este jovem irmão herdou o nome. Pois este é o irmão Tutilo, um noviço de Ramsey, e a chegar ao fim do seu noviciado, segundo me disse o seu superior. E se tem o nome dele devia ser pintor, escultor, cantor e músico. Grande pena, disse o rei Carlos... Carlos o Gordo, chamavam-lhe... que um génio tal se tivesse transformado num monge. Lançou uma maldição sobre o homem que o fez. Pelo menos, foi o que Anselm me contou.

- Um dia - disse Donata, a observar aquele jovem muito agradável e gracioso da cabeça aos pés, e a registar com admiração indiferente o que via -, um rei poderá dizer o mesmo deste. Ou uma mulher, é claro! Sois esse modelo ideal, Tutilo?

- Foi por isso que me deram o nome - disse o rapaz honestamente, e um leve rubor rosado surgiu junto às pregas do capuz e subiu pela sua garganta forte para as faces suaves, mas, aparentemente, sem causar o menor desconforto. Ele não baixou os olhos, que se fixavam com fascínio no rosto da mulher. Na sua tranquilidade final, algo da beleza há muito perdida voltara, para tornar Donata ainda mais formidável e admirável. - Tenho um dom - disse ele - para a música. - Fez aquela declaração com a certeza de uma pessoa que é capaz de avaliar com imparcialidade, sem se vangloriar ou menosprezar as suas capacidades. Pequenas chamas de interesse e apreciação cintilaram nos olhos cavados de Donata.

- Bom! Fazeis bem em reconhecer o que sabeis fazer bem - disse ela, num tom de aprovação. - Muitas noites, a música foi a minha maior ajuda para dormir. O meu consolo, também, quando os demónios estavam demasiado activos. Agora passam o seu tempo a dormir, e eu fico acordada. - Moveu uma mão sobre a colcha, indicando uma arca que se encontrava no recanto mais afastado do quarto. - Há um saltério ali, que já não é utilizado há muito tempo. Gostaríeis de experimentar? Não duvido de que ele gostaria que lhe dessem voz outra vez. Existe uma harpa no átrio, mas agora não há ninguém que a toque.

Tutilo foi prontamente levantar a pesada tampa e espreitou para os objectos guardados no interior. Tirou o instrumento, que não era grande, mas sim para tocar sobre os joelhos, e com a forma do focinho largo de um porco. A forma como pegou no instrumento denotou claramente interesse e afeição, e se franziu o sobrolho foi ao ver um suporte partido entre as cordas. Espreitou com mais atenção para dentro da arca, à procura de penas para tocar, mas não encontrou nenhuma, e franziu de novo o sobrolho.

- Lá vai o tempo - disse Donata -, em que eu cortava penas novas praticamente todas as semanas. Lamento que tenhamos negligenciado o nosso dever.

Proferiu aquelas palavras com um sorriso breve e preocupado, mas a atenção do jovem voltou de imediato para o saltério.

- Posso usar as unhas - disse ele, levando o instrumento consigo para junto da cabeceira e, sem cerimónia ou hesitação, sentou-se na beira da cama, endireitou o saltério nos joelhos, e passou uma mão acariciadora sobre as cordas, soltando um murmúrio suave e trémulo.

- As vossas unhas são curtas de mais - disse Donata. - Ireis magoar as pontas dos dedos.

A sua voz ainda conseguia evocar as cores e tons que tornavam eloquente a frase mais simples. O que Cadfael ouviu foi uma mãe, entre a indulgência e a impaciência, a avisar o jovem que se ia aventurar num empreendimento que poderia ser doloroso. Não, talvez não uma mãe, nem sequer uma irmã mais velha; algo mais distante do que um parente de sangue com direitos, e no entanto mais próximo. Pois os contactos livres de qualquer dever e responsabilidade estão também livres de todos os constrangimentos, e podem aproximar-se tão rapidamente e tão perto quanto quiserem. E a ela restava-lhe muito pouco tempo, para se submeter agora a limitações. O rapaz não estava à espera do que ouviu, mas fitou-a com uma expressão alegre e aberta, mais alerta do que surpreendido, e as suas mãos imobilizaram-se por instantes, e sorriu.

- As pontas dos meus dedos são de couro... vede! - Abriu as palmas das mãos e os dedos compridos e flectidos. - Eu toquei harpa para o senhor do meu pai na casa senhorial de Berton durante mais de um ano antes de entrar para Ramsey. Agora, deixai-me experimentar! Falta-lhe uma corda, por isso tendes de me desculpar pelas falhas. - A sua voz também tinha um toque de indulgência, um leve divertimento, como se estivesse a dirigir-se desnecessariamente a uma pessoa mais velha que tinha de ser tranquilizada em relação à sua competência.

Tinha descoberto a chave de afinação dentro da arca juntamente com o instrumento, e começou a testar as cordas de tripa e a apertar atarefadamente as cravelhas que as ancoravam. O murmúrio musical ergueu-se como um coro de insectos num prado de Verão, e a cabeça tonsurada de Tutilo debruçou-se sobre o seu trabalho numa concentração total, enquanto Donata, das suas almofadas, o observava por detrás de pálpebras quase cerradas, com mais intensidade agora que ele não estava a prestar-lhe atenção. Porém, uma intimidade intensa unia-os, pois quando a expressão dele se suavizou num ardente sorriso íntimo, também ela sorriu com a concentração e o prazer dele.

- Esperai, uma das cordas nesta base partida é suficientemente comprida para se adaptar. É melhor uma do que nenhuma, embora se vá notar quando o tom afinar.

Os seus dedos, embora endurecidos pela harpa, eram muito ágeis e agradáveis quando esticou a corda e a prendeu cuidadosamente.

- Cá está! Consegui! - Passou a mão levemente pelas cordas, e produziu um regato reluzente de notas suaves. - Cordas de arame teriam um som mais alto e mais nítido do que tripa, mas estas servem muito bem.

E inclinou a cabeça sobre o instrumento, mergulhando como um falcão à espreita, e começou a tocar, com os dedos flectidos a dançar. O velho instrumento musical pareceu inchar e palpitar com a tensão das notas, demasiado cheio para encontrar alívio adequado pela rosa esculpida no centro.

Cadfael afastou o banco da cabeceira da cama, para os ver completamente a ambos, pois ofereciam um estudo interessante. O rapaz era, sem sombra de dúvida, profundamente dotado. Havia algo quase alarmante na paixão do assalto. Era como se um pássaro tivesse estado emudecido durante muito tempo, e de repente descobrisse que a sua garganta abafada recuperara a eloquência.

Pouco depois, a sua primeira fome estava saciada, e pôde acalmar para a moderação, e saborear com maior gratidão ainda a doçura desta indulgência. O compasso de dança intenso e rodopiante, leve como lanugem de cardo apesar de todo o seu ardor, acalmou para uma brisa leve, mais adaptada a um instrumento tão suave. Até uma ligeira melancolia, uma espécie de virelé, ritmado e triste. Onde tinha ele aprendido aquilo? Certamente não em Ramsey; Cadfael duvidava de que aquela melodia fosse bem recebida na abadia.

E Lady Donata, cansada do mundo e profunda conhecedora das ironias da vida e da morte, ficou imóvel nas suas almofadas, sem jamais tirar os olhos do rapaz que tinha olvidado a sua existência. Ela não era a audiência para quem ele tocava, mas era a inteligência profunda que o escutava. Captou-o com os seus grandes olhos magoados, e bebeu a sua música, que foi como vinho para a sua sede. Ao atravessar metade da Europa por terra, Cadfael vira gencianas na erva dos prados de montanha, mais azuis do que o azul, do mesmo mais-do-que-azul profundo dos olhos dela. A posição dos seus lábios, a sorrir retorcidamente, contava uma história um pouco diferente. Tutilo já era completamente transparente para ela, e sabia mais dele do que ele próprio.

A torção afectuosa e céptica da boca desvaneceu-se quando ele começou a cantar. O tom era ao mesmo tempo simples e subtil, a brincar com não mais de meia dúzia de notas, e a sua voz, com um tom mais alto do que quando falava, e muito macia e suave, tinha as mesmas qualidades, inocente como a infância, penetrante como um desgosto completamente adulto. E ele não estava a cantar em inglês, nem sequer no francês normando que a Inglaterra conhecia, mas na langue d'oc de que Cadfael se recordava imperfeitamente de há muito tempo. Onde tinha este noviço ouvido as melodias dos trovadores Provençais, e aprendido as suas cantigas? No salão do senhor, onde tinha tocado harpa? Donata não conhecia o francês do sul, Cadfael já o esquecera há muito, mas identificavam uma cantiga de amor quando a ouviam. Triste, não realizada, eternamente esperançosa, um amour de loin, que nunca se veria frente a frente.

A cadência mudou rapidamente, as palavras secretas passaram magicamente para: "Ave mater salvatoris..." e voltaram para a liturgia de São Marçalo antes de eles se aperceberem, como Tutilo se apercebera com os sentidos aguçados de uma raposa, que a porta do aposento tinha sido aberta. Ele não queria correr riscos. A porta tinha sido realmente aberta na pessoa inofensiva de Sulien Blount, mas o sub-prior Herluin encontrava-se atrás dele, a pairar como uma nuvem.

Donata estava a sorrir, a aprovar a inteligência rápida que podia mudar de curso tão rapidamente, sem uma pausa, sem um rubor. Na verdade, Herluin franziu o sobrolho numa expressão de desagrado quando viu o seu noviço sentado à cabeceira da cama de uma mulher e a cantar para seu prazer; mas bastou um olhar para a mulher, na sua dignidade enfraquecida e desencorajada, para o desarmar imediatamente. Foi um choque, ainda mais porque não era velha, e tinha murchado no auge da vida.

Tutilo levantou-se modestamente, apertando o saltério no peito, e retirou-se respeitosamente para um canto do quarto, com os olhos baixos. Cadfael suspeitou de que, quando não estava a olhar para ela, estava a vê-la com maior clareza ainda.

- Mãe - disse Sulien, sério e um pouco tenso no seu pequeno campo de batalha -, aqui está o sub-prior Herluin, em tempos meu instrutor em Ramsey, para vos desejar melhoras e para vos recomendar nas suas orações. Em nome de meu irmão, e tal como eu, dai-lhe as boas-vindas.

Na ausência do filho e da nora, ela representava-os a ambos.

- Padre, usai esta casa como se fosse vossa. A vossa visita é uma honra para nós. A notícia de que Ramsey foi de novo entregue ao serviço de Deus foi muito bem recebida por todos nós.

- Deus olhou por nós - disse Herluin, com alguma cautela e menos do que a sua segurança habitual, pois a visão daquela mulher abalara-o. - Mas há muito a ser feito para recuperarmos a nossa morada, e necessitamos de todas as mãos que possam vir em nosso auxílio. Eu tinha esperança de levar o vosso filho comigo, mas parece que já não posso chamar-lhe irmão. No entanto, podeis ter a certeza de que ele e a senhora estarão nas minhas orações.

- Eu lembrar-me-ei de Ramsey - disse Donata - nas minhas. Mas embora a casa de Blount vos tenha negado um irmão, ainda vos poderá ser útil de outras formas.

- Nós procuramos a caridade de todos os homens bons - concordou Herluin fervorosamente -, seja em que forma for. A nossa casa está pobre, eles não nos deixaram nada a não ser a estrutura das paredes, e até essa estrutura foi estragada, tendo-lhe sido retirado tudo o que podia ser arrancado.

- Eu prometi - declarou Sulien - voltar a Ramsey e trabalhar com as minhas próprias mãos durante um mês, quando chegar o momento certo. - Ele nunca se tinha libertado completamente de um sentimento de culpa por ter abandonado uma vocação que pensara ser verdadeira. Gostaria de pagar o seu resgate com trabalho duro, e libertar a sua consciência antes de se casar. E Pernel Otmere aprovaria a sua decisão, e deixá-lo-ia partir.

Herluin agradeceu-lhe a oferta, mas sem grande entusiasmo, talvez relutante em relação à quantidade de trabalho que Ramsey conseguiria extrair daquele jovem.

- Falarei também com meu irmão - continuou Sulien, ansiosamente -, e verei que mais poderemos fazer. Eles estão a cortar árvores pequenas, e haverá árvores mais velhas e maiores. E vão cortar algumas árvores de grande porte no bosque. Pedir-lhe-ei um carregamento de madeira para a vossa reconstrução, e creio que ele mo ofertará. Não pedirei mais nenhuma porção antes de entrar para o serviço do rei em Shrewsbury. Será que a abadia pode providenciar uma carroça para o transporte, ou poderá ser alugada uma? As carroças de Eudo não podem ser dispensadas durante tanto tempo.

Herluin recebeu esta oferta prática com mais entusiasmo. Cadfael pensou que ele ainda estava ressentido com o fracasso de arrasar todos os argumentos e levar o recalcitrante jovem consigo, não pelo mês prometido, mas para a vida inteira. Não que o próprio Sulien tivesse um valor tão grande, mas Herluin não estava acostumado a uma resistência tão tenaz. Todas as barricadas deviam ter caído como as paredes de Jericó ao toque da sua trombeta.

No entanto, extraíra tudo o que era possível, e preparou-se para partir. Tutilo, de ouvidos atentos e olhos modestamente baixos no seu canto, abriu a arca discretamente e guardou o saltério que tinha apertado junto ao coração. A própria suavidade com que o pousou e fechou lentamente a tampa sobre ele trouxe um pequeno sorriso pensativo à boca pálida de Donata.

- Tenho um favor para pedir - disse ela -, se quiserdes ter a bondade de o ouvir. Este vosso canário proporcionou-me deleite e calma. Se eu estiver por vezes sem sono e com dores, emprestar-me-eis esse consolo por uma hora, enquanto estiverdes em Shrewsbury? Não mandarei chamá-lo a menos que precise dele. Permitireis que venha?

Se Herluin ficou surpreendido com tal pedido, ficou no entanto fortemente consciente de que ela o colocara em desvantagem, embora muito provavelmente, pensou Cadfael, interessado, estivesse esperançado de que ela estivesse menos consciente desse facto. Mas estava seguramente iludido nessa esperança. Ela sabia muito bem que ele dificilmente poderia recusar o seu pedido. Mandar um noviço susceptível tocar música para uma mulher, e ainda por cima uma mulher confinada ao leito, era impensável, até escandaloso. Mas esta mulher estava agora tão familiarizada com a morte que o súbito chiar da porta a abrir estava presente na sua voz, e a palidez transparente da alma incorpórea no seu rosto. Ela já não reagia às coisas deste mundo, e não temia as pavorosas incertezas do próximo.

- A música é para mim como um remédio que me transmite paz - explicou ela, e esperou pacientemente a submissão dele. E o rapaz, no seu canto, manteve-se mudo e passivo, mas por baixo das pregas compridas e descidas os olhos cor de âmbar dourado brilharam, deleitados, sérios e cautelosos.

- Se o mandardes chamar em extrema necessidade - disse Herluin por fim, escolhendo as palavras com cuidado -, como pode a nossa Ordem rejeitar tal pedido? Se chamardes, o irmão Tutilo virá.

 

 

                                     Capítulo dois

- Não há dúvida quanto à origem do nome - disse Cadfael, na oficina do irmão Anselm, no claustro, depois da Missa Solene na manhã seguinte. - Doce como uma cotovia. - Tinham acabado de ouvir a cotovia a cantar, e tinham parado na biblioteca da esquina do chantre para observar os fiéis a dispersar, entre os quais se encontravam os visitantes laicos da sala de hóspedes. Para aqueles que procuravam alojamento ali era político e gracioso, embora não obrigatório, assistir pelo menos à missa principal do dia. Fevereiro não era um mês ocupado para o irmão Denis, o irmão encarregue de tratar dos hóspedes, mas apareciam sempre alguns viajantes a necessitar de abrigo.

- O rapaz é imensamente talentoso - concordou Anselm. - Um ouvido fantástico e um instinto para a harmonia. - E acrescentou, após alguns instantes de reflexão: - Porém, não é uma voz para trabalho coral. Demasiado notável. É impossível ele não mostrar o que vale.

Não valia a pena repisar aquele ponto, pois a justiça do veredicto já tinha sido provada. Ao escutar aquele canto pungentemente doce, entoado com tanta suavidade, a entrar no ouvido com tanto assombro, ninguém podia duvidar disso. Não havia maneira de subjugar aquela voz ao anonimato no meio da equilibrada polifonia de um coro. Cadfael perguntou a si mesmo se não seria igualmente redutor tentar moldar o seu possuidor numa alma conformada de uma irmandade disciplinada.

- O convidado Provençal do irmão Denis até levantou a cabeça - comentou Anselm - quando ouviu o rapaz. A noite passada pediu a Herluin que deixasse o rapaz participar no ensaio no átrio. Ali vão todos agora. Eu tenho a sua rabeca aqui para encordoar. Devo dizer, em abono dele, que se preocupa com os seus instrumentos.

O trio que estava a atravessar o átrio desde a porta sul da igreja foi alvo de considerável curiosidade e especulação entre os noviços. O convento não albergava muitas vezes um trovador do sul de França, obviamente de alguma riqueza e reputação, pois viajava com dois criados e uma grande quantidade de bagagem. Ele e a sua comitiva estavam ali há três dias, e tinham sido atrasados na sua viagem para norte, para Chester, porque um dos cavalos ficara manco. Rémy de Pertuis era um homem de aproximadamente cinquenta anos, com uma aparência marcante, um cavalheiro que valorizava a aparência e a apresentação. Cadfael observou-o a atravessar para o átrio dos hóspedes; até agora não havia tido ocasião de o observar com atenção, mas se Anselm o respeitava e aprovava a sua consciência musical, podia valer a pena estudá-lo. Um rosto bonito e lustroso de cabelos castanho-avermelhados e uma barba aparada. Bom porte e um corpo bem cuidado, capa forrada com peles, ouro no cinto. E dois criados que o seguiam de perto, um fulano alto com trinta e tal anos, todo vestido de castanho dos pés à cabeça, cujas roupas boas mas simples o colocavam discretamente entre escudeiro e moço de estrebaria, e uma mulher, com capa e capuz, mas que a figura magra e o andar ligeiro indicavam como jovem.

- Para que precisará ele da rapariga? - interrogou-se Cadfael.

- Ah, ele explicou isso ao irmão Denis - disse Anselm, e sorriu. - Meticulosamente! Não é sua familiar...

- Nunca pensei que fosse - disse Cadfael.

- Mas podias ter pensado, como eu pensei quando eles chegaram, que ele tinha uma utilização muito especial para ela, e na verdade tem, embora não seja a que eu imaginei. - Como tinha vindo muito cedo para os claustros, o irmão Anselm aprofundava a maior parte das jogadas que eram correntes fora daquelas paredes, e há muito que deixara de se surpreender ou chocar com elas. - É a rapariga que entoa quase todas as suas cantigas. Tem uma voz bonita, e ele valoriza-a por isso, mas, tanto quanto percebi, por nada mais. Ela é uma parte importante do seu negócio.

- Mas - inquiriu Cadfael - que faz um menestrel do centro da Provença aqui no centro da Inglaterra? E parece-me evidente que não é um simples jogral, mas um genuíno trovador. Está seguramente longe de casa.

"E no entanto", pensou, "por que não? Os patronos de quem estes artistas dependem estão agora a ser tanto ingleses como franceses, ou normandos ou bretões ou angevinos. Têm propriedades aqui e no estrangeiro, e procuram-nos aqui e lá. E a própria natureza do trovador, afinal de contas, é deambular e aventurar-se, como a palavra galega trobar, de onde deriva o seu nome, que, embora tenha passado a significar criar poesia e música, significa literalmente encontrar. Aqueles que encontram... procuram e encontram a poesia e a música são os trovadores. E se a sua arte é universal, por que não deveriam ser encontrados em todo o lado?"

- Ele vai para Chester - esclareceu Anselm. - É o que diz o criado... Bénezet, é como se chama. Talvez espere conseguir um lugar na casa do conde. Mas não tem pressa, e claramente não tem falta de dinheiro. Três bons cavalos de montar e dois criados por companhia é uma viagem bastante confortável.

- Agora pergunto a mim mesmo - disse Cadfael, pensativo - por que terá ele deixado o seu último serviço? Talvez se tenha insinuado de mais à esposa do seu senhor? Foi alguma coisa séria, para o obrigar a atravessar o mar.

- Eu estou mais interessado - disse Anselm, nada perturbado com aquela opinião dos trovadores em geral - em saber onde é que ele arranjou a rapariga. Pois ela não é francesa, nem bretã, nem da Provença. Fala o inglês destas fronteiras, e um pouco de galês. Parece que ela é uma propriedade que ele obteve deste lado do oceano. O escudeiro, Bénezet, é do sul como o seu senhor.

Nessa altura o trio já tinha desaparecido na ala dos hóspedes, e as suas vidas enredadas permaneciam tão misteriosas como quando tinham entrado no enclave pela primeira vez. E dali a alguns dias, se as estradas continuassem transitáveis e o cavalo ficasse bom, partiriam tão enigmaticamente, como tantos que procuravam refúgio sob aquele tecto hospitaleiro um dia, uma semana, e depois partiam, sem deixar nada de si próprios. Cadfael libertou-se do pensamento vão sobre almas que passavam como desconhecidas, e suspirou, voltando para o interior da igreja para dizer algumas palavras ao ouvido de Santa Winifred antes de ir trabalhar para o jardim.

Aparentemente, alguém estava antes de si para falar com a santa. Tutilo tinha algo a pedir à santa, pois estava ajoelhado no último degrau do altar, bastante evidenciado pela luz das velas. Estava tão concentrado na sua oração que não ouviu os passos de Cadfael nas lajes. Tinha o rosto erguido para a luz, ansioso e veemente, e os lábios moviam-se rapidamente e em silêncio num apelo loquaz, e a avaliar pelos olhos muito abertos e pelas faces ruborizadas com toda a confiança de ser ouvido e ver a sua prece atendida. Tudo o que Tutilo fazia, fazia com toda a sua força. Para ele, um simples pedido ao céu, através da intercessão de um santo receptivo, era o equivalente a lutar com anjos, e a levar a melhor na argumentação com os doutores em teologia. E quando se levantou foi com um salto exultante e com um levantar do queixo, como se soubesse que tinha conseguido o que queria.

Quando pressentiu outra presença, e se voltou para olhar para o recém-chegado, foi com grande compostura e modéstia de expressão, apagando a alegria e exuberância tão rapidamente como convertera a sua cantiga de amor em devoção litúrgica por causa de Herluin no quarto de Donata. É bem verdade que, quando reconheceu Cadfael, a sua devota seriedade se desvaneceu um pouco, e um brilho contido voltou cautelosamente aos seus olhos cor de âmbar.

- Estou a pedir o auxílio da santa para a nossa missão - disse ele. - Hoje o padre Herluin faz a pregação no Pelourinho, na cidade. Se Santa Winifred nos ajudar, não poderemos falhar.

Os seus olhos voltaram-se de novo para o relicário no altar, e deixaram-se ficar em adoração, grandes de admiração.

- Ela fez coisas milagrosas. O irmão Rhun contou-me como ela o curou e o tomou para seu servo fiel. E outras maravilhas... muitas... Todos os anos, no dia da sua subida ao céu, há centenas de peregrinos, diz o irmão Jerome. Tenho andado a perguntar-lhe sobre todo o tesouro de relíquias que a vossa casa reuniu aqui. Mas ela é a principal, e é incomparável.

O irmão Cadfael não tinha certamente nada a objectar a isso. Na verdade, havia algumas relíquias no tesouro, acumuladas por servos ao longo dos anos, acerca das quais ele sentia alguma reserva. Pedras do Calvário e do Monte das Oliveiras - bem, pedras são pedras, todos os montes têm imensas, é apenas a palavra do fornecedor para atestar a origem de um determinado espécime. Fragmentos de ossos de santos e mártires, uma gota do leite da Virgem, um retalho do seu manto, um pequeno frasco com o suor de São João Baptista, uma madeixa dos cabelos ruivos de Santa Maria Madalena... todos facilmente portáteis, e sem dúvida que alguns dos peregrinos que voltavam da Terra Santa eram genuínos, e acreditavam na genuinidade do que ofereciam, mas em alguns casos Cadfael perguntava a si mesmo se alguma vez tinham ido mais longe do que Eastcheap. Mas conhecia bem Santa Winifred, tirara-a da terra do País de Gales com as suas próprias mãos, e com as suas próprias mãos colocara-a reverentemente nela uma vez mais, e deitara o solo macio de Gwytherin sobre o seu eterno descanso. O que ela legara a Shrewsbury e a ele na sua ausência fora a sombra protectora da sua mão direita, e uma recordação semiculpada, semi-sagrada, de uma afeição e de uma bondade quase pessoais. Quando ele apelava, ela escutava. Ele tentava fazer-lhe apenas pedidos razoáveis. Mas sem dúvida que escutaria atentamente aquele jovem persuasivo e entusiasta, e lhe concederia, talvez não tudo o que ele pedira, mas o que fosse bom para ele.

- Se ao menos - sussurrou Tutilo, voltando a mostrar o seu esplendor mais vivo e irresistível -, se ao menos Ramsey tivesse uma patrona assim, a nossa glória futura estaria garantida. Todos os nossos infortúnios acabariam. Os peregrinos viriam aos milhares, as suas oferendas enriqueceriam a nossa casa. Por que não sermos outra Compostela?

- Pode ser vosso dever - recordou-lhe Cadfael secamente - trabalhar para o enriquecimento do vosso mosteiro, mas não é esse o dever dos santos.

- Não, mas é o que acontece - replicou Tutilo, impassível. - E, seguramente, Ramsey precisa e merece uma graça especial, depois de todos os sofrimentos que suportou. Não pode ser errado pedir o seu enriquecimento. Eu não quero nada para mim. - No momento seguinte corrigiu apressadamente a última declaração. - Sim, quero ser excelente. Quero ser útil aos meus irmãos e à minha Ordem. Quero fazer isso.

- E isso - disse Cadfael calmamente - ela vai certamente conceder-te. E será seguramente útil. Com dons como os teus devias considerar-te abençoado. Vai e faz o melhor por Ramsey na cidade, e dá o teu melhor quando chegares a Worcester, ou Pershore, ou Evesham, e que mais poderá ser-te pedido?

- Farei o que puder - concordou Tutilo, com grande resolução, mas decididamente um entusiasmo menos genuíno, e os olhos ainda a acariciar ternamente o relicário embutido de Winifred, com pontos de prata a brilhar à luz das velas. - Mas uma patrona assim... que poderia ela fazer para restaurar a nossa fortuna! Irmão Cadfael, não podeis dizer-me onde encontrar outra?

Afastou-se quase com relutância, e ficou a espreitar à porta, antes de abanar os ombros com firmeza e ir submeter-se às ordens de Herluin, e conseguir, de uma maneira ou de outra, abrir os cordões às bolsas de Shrewsbury.

Cadfael observou a figura elegante e ágil afastar-se, e achou que havia algo ligeiramente ambíguo na visão traseira daqueles caracóis, e na forma terna e jovem da nuca. Ah, bom! Poucas pessoas são exactamente o que parecem no primeiro contacto, e ele praticamente não conhecia o rapaz.

Partiram para a cidade em procissão solene, e o prior Robert emprestou a sua presença importante para reforçar a gravidade da ocasião. O xerife tinha notificado o preboste e o representante do Grémio dos Mercadores da cidade, e deixara a cargo deles a garantia de que todos os habitantes de Shrewsbury reconheciam o seu dever, e estariam presentes. Dar esmola a uma casa religiosa tão eminente, num momento de perseguição e necessidade, proporcionava um meio infalível de conseguir mérito, e devia haver muitas pessoas numa cidade tão grande dispostas a pagar um preço modesto para se livrarem de reprovação por deslizes menores.

Herluin regressou da sua incursão tão claramente satisfeito consigo mesmo, e Tutilo carregava um saco tão pesado, que foi óbvio que tinham feito uma colheita muito satisfatória. O sermão do domingo seguinte no púlpito da capela aumentou os proventos. O cofre que Radulfus tinha doado para receber oferendas ficou ainda mais pesado. Para além do mais, três bons artesãos, um mestre carpinteiro e dois pedreiros, ofereceram-se para voltar com os homens de Ramsey e arranjar trabalho na reconstrução dos celeiros e armazéns esventrados. O progresso da missão estava a ser muito bem sucedido. Até Rémy de Pertuis tinha dado moedas de prata, como convinha a um músico que no seu tempo tinha composto obras litúrgicas para as igrejas da Provença.

Mal tinham saído da igreja, após a missa, quando um escudeiro apareceu a cavalo de Longner, com um cavalo extra pela rédea, para apresentar um pedido de Lady Donata. O sub-prior Herluin, pedia ela, permitiria que o irmão Tutilo a visitasse? Como o dia já estava um pouco avançado, mandara uma montada para a sua viagem, e prometia que regressaria a tempo das Completas. Tutilo submeteu-se à vontade do superior com a maior humildade, mas com olhos brilhantes. Voltar sem vigilância para o saltério de Donata, ou para a harpa negligenciada no átrio de Longner, seria uma recompensa adequada por ter obedecido o dia inteiro às ordens de Herluin com tamanha devoção.

Cadfael viu-o atravessar os portões, e nessa altura o deleite infantil já era evidente; deleite por ser recordado e necessário, deleite por sair a cavalo quando esperara apenas uma noite rotineira no interior do convento. Cadfael podia apreciar e desculpar aquilo. O sorriso indulgente ainda lhe bailava no rosto quando foi cuidar de certos remédios que estava a fazer no seu herbário. E havia outra criatura tão resplandecentemente jovem, embora talvez não tão inocente, à porta da cabana, à sua espera.

- Irmão Cadfael? - perguntou a cantora de Rémy de Pertuis, a observá-lo com arrojados olhos azuis ao nível dos seus.

Não era alta, mas acima da média para uma mulher, elegante a raiar a magreza, e direita como uma lança.

- O irmão Edmund mandou-me vir ter convosco. O meu senhor está constipado, e coaxa como uma rã. O irmão Edmund diz que vós podeis ajudá-lo.

- Se Deus quiser! - disse Cadfael, observando-a por sua vez com a mesma candura. Nunca a vira tão perto antes, nem esperara que isso acontecesse, pois ela mantinha-se afastada, talvez para não correr riscos com um senhor exigente. Agora tinha a cabeça descoberta, e o rosto, oval, magro e inteligente tinha uma cor pálida entre ondas de cabelos pretos, encaracolados.

- Entra - disse ele - e fala-me mais sobre o problema dele. A sua voz é certamente importante. Um trabalhador que perde as suas ferramentas perdeu o seu meio de subsistência. Que tipo de constipação tem ele? Tem olhos remelosos? A garganta inchada? O nariz tapado?

Ela seguiu-o para a oficina, que já estava na penumbra, iluminada unicamente pelo brilho da braseira, até Cadfael acender um pavio de enxofre e acender a sua pequena candeia. Ela olhou à sua volta com interesse para as prateleiras cheias e para as ervas suspensas em molhos, a abanar e a sussurrar levemente devido à corrente de ar proveniente da porta aberta.

- A garganta - disse ela com indiferença. - Nada mais o preocupa. Está rouca e seca. O irmão Edmund diz que vós tendes rebuçados para a tosse e xaropes. Ele não está doente - disse ela com um desdém tolerante. - Não está quente e não tem febre. Qualquer coisa que lhe afecte a voz transtorna-o completamente. E, evidentemente, qualquer coisa que afecte a minha. Outra das suas ferramentas que não pode dar-se ao luxo de perder, por muito pouco que se importe com o resto da minha pessoa. Irmão Cadfael, fazeis todas estas pastas e poções? - Ela estava a percorrer as prateleiras de garrafas e frascos com olhos respeitosamente abertos.

- Eu faço a preparação e a trituração - disse Cadfael -, a terra fornece os meios. Vou mandar ao teu senhor algumas pastilhas para a garganta, e um xarope para ser tomado de três em três horas. Mas tenho de misturar o xarope. Só demora alguns minutos. Senta-te junto à braseira, porque aqui arrefece muito à noite.

Ela agradeceu, mas não se sentou. As filas de misteriosos contentores fascinavam-na. Continuou a passear e a olhar, inquieta mas em silêncio, uma presença felina atrás de si enquanto seleccionava entre os seus frascos potentila e marroio, hortelã-pimenta e um pouco de papoila, e os media para dentro de uma garrafa de vidro verde. A mão dela, magra e de dedos compridos, tocava nos frascos com inscrições em latim.

- Não precisas de nada para ti? - perguntou ele. - Para não seres contagiada pela infecção dele?

- Eu nunca me constipo - declarou ela, com desprezo pelas fraquezas de Rémy de Pertuis e de todos os da sua laia.

- Ele é um bom senhor? - perguntou Cadfael directamente.

- Alimenta-me e veste-me - disse ela imediatamente, sem demonstrar surpresa.

- Nada mais para além disso? Teria obrigação disso com o seu escudeiro ou com o seu moço de cozinha. Tu, ouço dizer, és o sustentáculo da reputação dele.

Ela voltou-se para o olhar enquanto ele enchia o frasco até ao gargalo com um xarope de mel, e o tapava. De olhos nos olhos, ela revelou-se experiente e sem ilusões, não magoada mas cautelosa para não se deixar magoar, e preparada para fugir dos golpes ou para os retribuir, se necessário fosse; e, no entanto, era ainda mais jovem do que ele pensara, seguramente não teria mais de dezoito anos.

- Ele é muito bom poeta e menestrel, nunca penseis o contrário. O que eu sei, foi ele que me ensinou. O que tinha de Deus, sim, é meu; mas ele mostrou-me a sua utilidade. Se havia uma dívida, a comida e a roupa tê-la-iam pago, mas não existe nenhuma. Ele não me deve nada. O preço por mim, pagou-o quando me comprou.

Ele voltou-se para a olhar de frente, e avaliar até que ponto era literal o sentido das suas palavras; e ela sorriu-lhe.

- Comprada, não alugada. Eu sou escrava de Rémy, e é muito melhor estar presa a ele do que ao homem a quem ele me comprou. Não sabíeis que ainda se vendem escravos?

- O bispo Wulstan pregou contra essa prática há anos - disse Cadfael -, e fez todos os possíveis para a apagar de Inglaterra, e até do mundo. Mas, embora tenha levado os negociantes a esconderem-se, sim, sei que ainda se mantém. Negoceiam a partir de Bristol. Muito discretamente, mas sim, sabe-se. Mas é principalmente uma questão de embarcar escravos Galeses para a Irlanda; o dinheiro raramente passa por humanidade aqui.

- A minha mãe - disse a rapariga - é a prova de que o tráfico é duplo. Numa estação má, com pouca comida, o pai dela vendeu-a, uma filha das muitas que tinha para alimentar, a um negociante de Bristol, que voltou a vendê-la ao senhor de um feudo semi-abandonado perto de Gloucester. Ele usou-a como sua amante até ela morrer, mas não foi na cama dele que eu fui gerada. Ela sabia como ter um filho do homem de quem gostava, e como livrar-se das crias do seu senhor - disse a rapariga com uma terrível simplicidade. - Mas eu nasci escrava. Não há nada a fazer.

- Podia haver uma saída - disse Cadfael, embora admitindo que seria difícil.

- Uma saída para quê? Outro laço pior? Pelo menos com Rémy não sou maltratada, de certa forma sou valorizada, posso cantar, posso tocar, embora seja outro a dar o tom. Não possuo nada, nem sequer o que trago no corpo. Para onde iria? Que faria? Em quem poderia confiar? Não, não sou parva. Iria, se soubesse de um lugar para mim em qualquer lado, como eu sou. Mas arriscar-me a ser trazida de volta, depois de ter fugido dele? Isso representaria outra servidão, de longe mais dura do que a de agora. Ele quereria que eu andasse acorrentada. Não, eu posso esperar. As coisas podem mudar - disse ela, e encolheu os ombros magros e direitos, um pouco largos e ossudos para uma rapariga. - Quando comparado com outros homens, Rémy não é mau. Já conheci piores. Posso esperar.

Havia bom senso naquelas palavras, tendo em conta as circunstâncias actuais. Aparentemente, o seu senhor provençal não exigia o seu corpo, e a utilização que fazia da voz dava-lhe um prazer considerável. Exercitar os dons de Deus dá essencialmente prazer. Ele vestia-a, dava-lhe um tecto e alimentava-a. Embora não sentisse amor por ele, também não o odiava; até reconhecia, com muita justiça, que os ensinamentos dele lhe tinham dado um meio para ter uma vida independente, se alguma vez conseguisse descobrir um lugar seguro para a viver. E na sua idade podia permitir-se alguns anos de espera. O próprio Rémy procurava um patrono poderoso. Na corte de um senhor importante ela poderia encontrar um lugar muito confortável.

Mas mesmo assim, pensou Cadfael no fim das suas reflexões práticas, como escrava.

- Estava à espera de que me dissésseis agora - disse a rapariga, a olhá-lo com curiosidade - que existe um lugar onde eu poderia refugiar-me e não ser perseguida. Rémy nunca se atreveria a seguir-me para um convento de freiras. - Deus me livre! - exclamou Cadfael com grande fervor. - Tu virarias qualquer convento de pernas para o ar no espaço de um mês. Não, nunca me ouvirás dar-te esse conselho. Não é para ti.

- Foi para vós - referiu ela, com ofensa na voz e nos olhos. - E para aquele rapaz, Tutilo, de Ramsey. Ou também o teríeis excluído? O caso dele é muito parecido com o meu. Aborrece-me ser escrava, a ele aborrecia ser um lacaio na casa de um abominável velho libidinoso que gostava demasiado dele. O terceiro filho de um homem pobre... teve de cuidar da sua vida.

- Acredito - disse Cadfael, agitando experimentalmente a garrafa de xarope para a tosse para garantir que os ingredientes ficavam bem misturados -, acredito que não foi o único motivo que teve para entrar em Ramsey.

- Oh, pois eu penso que foi, embora ele não saiba. Ele pensa que foi chamado para uma vocação, longe de todos os males do mundo. - Ela própria, pensou Cadfael, tinha conhecido intimamente muitos desses males, e no entanto emergia com um desprezo muito maior por eles do que abatida ou receosa. - É por isso que trabalha tanto para ser santo - disse ela, muito séria. - Qualquer coisa que decide fazer, faz com todo o seu ardor. Mas, se estivesse convencido, levaria as coisas de uma forma mais descontraída.

Cadfael ficou a olhar para ela profundamente espantado.

- Pareces saber mais do que eu sobre este meu jovem irmão - disse ele. - E no entanto nunca te vi sequer reparar na existência dele. Moves-te pelo enclave, quando és vista, como uma sombra modesta, com os olhos baixos. Como é que alguma vez trocaste um bom dia com ele, e ainda por cima leste a mente do pobre rapaz?

- Rémy pediu-o emprestado para fazer uma terceira voz no coro. Mas na ocasião não tivemos oportunidade de falar. Claro que nunca nos vêem a olhar um para o outro ou a falar um com o outro. Seria mau para ambos. Ele vai ser monge, e nunca deveria ser íntimo de uma mulher, e eu sou uma escrava, e se falo com um jovem as pessoas pensarão que tenho noções de uma mulher livre, e que posso tentar livrar-me das minhas correntes. Estou acostumada a dissimular, e ele está a aprender. Não precisais de temer algum mal. Ele tem os olhos na santidade, no serviço ao seu mosteiro. Quanto a mim, sou uma voz. Falamos sobre música, é a única coisa que partilhamos.

Verdade, mas não toda a verdade, se não ela não poderia ter sabido tanto sobre o rapaz em um ou dois encontros. Ela estava bastante segura do seu julgamento.

- Está pronto? - perguntou ela, voltando abruptamente ao seu recado. - Ele deve estar inquieto.

Cadfael entregou-lhe o frasco e contou pastilhas para dentro de uma pequena caixa de madeira.

- Uma colher cheia, mais pequena do que a de cozinha, à noite e de manhã, bebida lentamente, e durante o dia se sentir necessidade, mas sempre com, pelo menos, três horas de intervalo. E estas pastilhas podem ser chupadas quando ele quiser, acalmar-lhe-ão a garganta. - E perguntou, quando ela pegou na caixa: - Mais alguém sabe que te tens encontrado com Tutilo? Pois não observaste qualquer cautela comigo.

Os ombros dela ergueram-se despreocupadamente; estava a sorrir.

- Eu aceito o que encontro. Mas Tutilo falou de vós. Nós não fazemos nada de mal, e vós não nos acusareis de nenhum. Sempre que é necessário temos muito cuidado.

Ela agradeceu-lhe alegremente, e estava a chegar à porta quando ele perguntou:

- Posso saber qual é o teu nome?

Ela virou-se para ele à porta:

- O meu nome é Daalny. Foi como a minha mãe o disse, nunca o vi escrito. Não sei ler nem escrever. A minha mãe contou-me que o primeiro herói do seu povo veio para a Irlanda dos mares do ocidente, da terra dos mortos felizes, a que chamam a terra dos vivos. Chamava-se Partholan - disse ela, e a sua voz assumiu por momentos o tom ritmado e cantado da contadora de histórias. - E Daalny era a sua rainha. Na época, havia uma raça de monstros na terra, mas Partholan levou-os para norte, para os mares e para lá deles. Mas no fim houve uma grande pestilência, e toda a raça de Partholan se reuniu na grande planície, e morreu, e a terra foi deixada vazia para o povo seguinte que veio do mar do ocidente. Sempre do ocidente. Vêm de lá, e quando morrem voltam para lá.

Saiu para o lusco-fusco que se adensava, flexível e direita, deixando a porta aberta atrás de si. Cadfael observou-a até ela circundar a sebe de buxo e desaparecer do seu campo de visão. A rainha Daalny na escravidão, quase um mito como a sua homónima, e tão perigosa como ela.

No fim da hora que tinha permitido a si mesma, Donata virou a ampulheta na mesa ao lado da cama, e abriu os olhos. Tinham permanecido fechados enquanto Tutilo tocava, para se alhear em certa medida dele, para o aliviar do fardo do olhar de uma mulher velha e gasta, e deixá-lo livre para desfrutar do seu talento sem ter de se submeter à sua audiência. Embora ela pudesse retirar prazer da contemplação da sua juventude e frescura, dificilmente haveria muita alegria para ele na confrontação com a sua emaciação e ruína. Tinha mandado transferir a harpa do átrio para o seu quarto para lhe dar o prazer de a afinar e tocar, e ficara contente ao ver que, enquanto tocava e esticava e ajustava, inclinando a cabeça encaracolada sobre o trabalho, se tinha esquecido da própria presença dela. Era assim que devia ser. Para ela, a angústia requintada da música dele era maravilhosa, e a felicidade que ele sentia mais maravilhosa ainda.

Mas só podia pedir uma hora. Tinha prometido que ele regressaria à hora das Completas. Virou a ampulheta, e nesse instante ele parou, e as cordas vibraram com o pequeno sobressalto que teve.

- Toquei mal? - perguntou ele, alarmado.

- Não, mas perguntais mal - disse ela secamente. - Sabeis que não tocastes nada mal. Mas o tempo passa, e tendes de voltar para o vosso dever. Fostes bondoso, e estou grata, mas o vosso sub-prior querer-vos-á de volta como eu prometi, a tempo das Completas. Se quero voltar a pedir, tenho de cumprir os meus acordos.

- Poderia tocar até que adormecêsseis - disse ele - antes de ir.

- Eu dormirei. Nunca vos inquieteis comigo. Não, tendes de ir, e há uma coisa que quero que leveis convosco. Abri aquela arca... ao lado do saltério encontrareis uma pequena pasta de couro. Trazei-ma.

Ele pousou a harpa e fez o que ela lhe pedira. Ela soltou a corda que prendia a abertura do pequeno saco gasto, e esvaziou-o sobre a colcha, espalhando uma mão cheia de jóias de pouco valor, uma gargantilha de ouro, duas pulseiras iguais, um pesado colar de ouro torcido de ouro com pedras preciosas toscamente engastadas, e dois anéis, um deles um selo maciço de homem, o outro uma aliança de ouro larga, muito trabalhada. O seu próprio dedo mostrava a marca encolhida e pálida por baixo do nó inchado, de onde a tirara. Por fim, tirou uma grande pregadeira muito trabalhada, de ouro avermelhado, trabalho saxónico, para apertar um manto.

- Levai estas coisas, e juntai-as ao que conseguiram reunir para Ramsey. O meu filho promete uma boa carrada de lenha, em parte madeira miúda, na verdade Eudo vai mandar as carroças para cá amanhã à noite. Mas essas oferendas são minhas. São o resgate do meu filho mais novo. - Voltou a guardar o ouro no saco, e fechou a abertura. - Levai-as!

Tutilo permanecia hesitante, a olhá-la em dúvida.

- Senhora, não é preciso um resgate. Ele não tinha feito os votos finais. Tinha o direito de escolher o seu caminho. Não deve nada.

- Não Sulien, mas eu - disse ela, e sorriu. - Não precisais de ter escrúpulos em levá-las. São minhas e posso dispor delas, não pertenciam à família do meu marido, mas ao meu pai.

- Mas a esposa de vosso filho - insistiu ele -, e a senhora que vai casar com o vosso Sulien... não têm algum direito? Estas jóias têm grande valor, e as mulheres gostam destas coisas.

- As minhas filhas estão de acordo com a minha decisão. Estamos todos unidos. Ramsey pode rezar pela minha alma - disse ela serenamente -, e isso saldará todas as contas.

Ele desistiu então, ainda espantado e em dúvida, aceitou o saco que ela lhe estendia, e beijou a mão que o entregava.

- Ide agora - disse Donata, e estendeu-se de novo nas suas almofadas com um suspiro. - Edred irá convosco para vos ajudar a atravessar na barcaça, e trará o cavalo de volta. Esta noite não deveis ir a pé.

Ele despediu-se, ainda um pouco ansioso, sem saber ao certo se fizera bem em aceitar o que parecia um presente tão rico. Voltou-se de novo à porta, e ela abanou a cabeça, e fez-lhe sinal para se ir embora com uma autoridade que o fez sair rapidamente, como se tivesse sido repreendido.

No pátio, o escudeiro esperava com os cavalos. Já era de noite, mas estava uma noite clara e com luar, e nuvens muito altas a passar rapidamente no céu. Na barcaça, o rio estava a correr mais alto do que quando tinham vindo, embora não tivesse chovido. Algures a levante, havia água de cheias a caminho.

Depois das Completas, entregou orgulhosamente os seus tesouros ao sub-prior Herluin. Todos os habitantes da casa, e a maior parte dos hóspedes, encontravam-se presentes para testemunhar a chegada do gasto saco de couro, e vislumbraram o seu conteúdo quando Tutilo o exibiu alegremente. Os presentes de Donata foram acrescentados às esmolas dos burgueses de Shrewsbury no cofre de madeira que as levaria para Ramsey, com o carregamento de madeira de Longner, enquanto Herluin e Tutilo iam visitar Worcester, e possivelmente também Evesham e Pershore, para apelar a mais ajuda.

Herluin fechou o tesouro à chave e colocou o cofre no altar de Nossa Senhora até chegar o momento de o confiar aos cuidados de Nicol, o seu servo de maior confiança, para a viagem de regresso a casa. Mais dois dias, e continuariam viagem. A abadia tinha emprestado uma grande carroça para transporte, e a cidade providenciara o empréstimo de uma parelha de cavalos para puxá-la. Cavalos do estábulo da abadia transportariam Herluin e Tutilo na continuação da sua viagem. Shrewsbury tinha feito muito pela sua casa-irmã, e o ouro de Donata era a coroa do esforço. Muitos olhos seguiram o rodar da chave, e a instalação do cofre no altar, onde o pavor do inferno o salvaria da violação. Deus exerce uma atracção poderosa.

Deixando a igreja, Cadfael parou por instantes para cheirar o ar e observar o céu, que àquela hora estava pesado com nuvens de chuva, através das quais a lua espreitava fugazmente de vez em quando, e era rapidamente escondida de novo. Quando foi fechar a sua oficina para a noite, reparou que as águas do regato se tinham apoderado de aproximadamente mais um metro da parte mais baixa do seu campo de ervilhas.

Durante a noite inteira, desde o toque do sino para as Matinas, choveu intensamente.

De manhã, aproximadamente à hora da Prima, Hugh Beringar, o xerife do rei Stephen em Shropshire, veio apressadamente da cidade para trazer o primeiro aviso dos problemas que se avizinhavam, e mandou os seus funcionários levarem a notícia ao longo de Foregate, enquanto a trazia pessoalmente ao abade Radulfus.

- A noite passada recebi a notícia de Pool de que o Severn está muito próximo da cidade, e continua a chover torrencialmente no País de Gales. A montante, para lá de Montford, os prados estão submersos, e a maior quantidade continua a descer, e depressa. Aconselho a mudar tudo o que é valioso... não se pode correr riscos com as provisões, com o transporte ameaçado. - Em período de cheias, a cidade, com excepção da incrustação de casas de pescadores e outros artífices ao longo da margem do rio, e dos jardins ao lado das muralhas, seria bastante segura, mas Foregate depressa poderia estar submerso, e partes do enclave da abadia situavam-se na zona mais baixa, ameaçadas de todos os lados pelo próprio rio, sendo o regato Meole puxado para trás pelo peso da água, e a represa aumentada pela pressão de ambos. - Emprestar-vos-ei alguns homens, mas precisareis de levar alguns dos habitantes da margem para a cidade.

- Temos mãos suficientes, podemos fazer a mudança sozinhos - disse o abade. - Os meus agradecimentos pelo aviso. Pensais que será uma cheia grave?

- Ainda não há maneira de saber, mas tereis tempo para vos preparardes. Se pretendeis carregar aquela madeira para Longner esta noite, é melhor levardes a vossa carroça pela Feira dos Cavalos. O nível ali está bastante seguro, e podereis entrar e sair do vosso estábulo e do palheiro pelos portões do cemitério.

- Seria conveniente - disse Radulfus - que os homens de Herluin conseguissem levar o seu carregamento amanhã, e dirigirem-se para casa. - Levantou-se para ir dar instruções aos criados para o trabalho pendente, e Hugh, pela primeira vez, dirigiu-se para a porta sem procurar o irmão Cadfael antes de sair. Mas aconteceu que Cadfael vinha a contornar a sebe do jardim com pressa considerável, mesmo a tempo de se cruzar com o amigo, que vinha em sentido inverso. O regato Meole estava a subir, e a represa a aumentar.

- Ah! - exclamou Cadfael. - Andavas à minha procura, não? O abade está avisado?

- Está, e podes parar para recuperar o fôlego - disse Hugh, refreando a sua própria corrida para colocar um braço em volta dos ombros de Cadfael. - Não que saibamos o que podemos esperar, ainda não. Pode ser menos grave do que tememos, mas é melhor estarmos prevenidos. A parte mais baixa da cidade está inundada. Acompanha-me até ao portão, pois quase não te vi desde o Natal.

- Não demorará muito - tranquilizou-o Cadfael, sem fôlego. - Sobe depressa, desce depressa. Dois ou três dias a andar na água, mais tempo para limpar depois disso, mas já fizemos tudo isso antes.

- É melhor teres à mão os remédios que poderão ser necessários, e guardá-los num andar superior, na enfermaria. Demasiada água, e até tu estarás numa cama, doente.

- Já estive a guardá-los - garantiu-lhe Cadfael. - Agora vou falar com Edmund. Graças a Deus, Aline e Giles estão secos, lá em cima em Santa Maria. Está tudo bem com eles?

- Muito bem, mas há muito tempo que não vais fazer uma visita ao teu afilhado. - O cavalo de Hugh estava amarrado junto ao portão; ele pegou no freio. - Vai em breve. Quando o Severn voltar para o seu leito.

- Irei. Saudações para ela, e pede desculpas ao rapaz por mim. Hugh montou, e afastou-se pela estrada para procurar e conferenciar com o preboste de Foregate; e Cadfael aconchegou o hábito e dirigiu-se para a enfermaria. Mais tarde haveria coisas de valor para transferir para zonas mais elevadas, mas o seu primeiro dever era certificar-se de que tinha todos os remédios que poderiam ser necessários num local facilmente acessível, longe das águas que estavam a subir lentamente do inchado regato Meole de um lado, e da represa congestionada do outro.

Nessa manhã, a Missa Solene foi celebrada como sempre, reverentemente e sem pressas, mas o cabido foi uma questão de minutos, dedicado essencialmente a atribuir todas as tarefas necessárias a grupos apropriados de irmãos, e a garantir um trabalho ordeiro e decoroso. Primeiro, embrulhar todos os valores que poderiam ter de ser levados por escadas e colocados em sótãos, e por enquanto deixá-los já protegidos, onde estavam. Não havia necessidade de transferi-los antes de a subida das águas o tornar essencial. Havia coisas para ser içadas dos pontos mais baixos do enclave muito antes de a cheia chegar à igreja propriamente dita.

Como o pátio do estábulo se situava numa zona baixa da propriedade, mudaram os cavalos para o celeiro da abadia e para o palheiro junto ao terreno da Feira de Cavalos, onde havia forragem suficiente armazenada e não era preciso carregar nenhuma dos palheiros dentro do enclave, onde tudo estava armazenado em segurança. Nem sequer o Severn na cheia de Primavera, após fortes nevões e chuva torrencial, tinha chegado alguma vez aos armazéns mais elevados, e nunca chegaria; havia terrenos baixos mais do que suficientes ao longo do seu curso por onde se espalhar. Em alguns lugares ficava com mais de uma milha de comprimento, em acres de prado inundado, antes de invadir o coro. Sabia-se que, ao longo dos anos, a nave fora atravessada com uma jangada, uma vez até com um pequeno barco. Era o pior que podiam recear. Por isso embrulharam todas as arcas e cofres que guardavam os paramentos, o prato das esmolas, as cruzes e os candelabros e os acessórios dos altares, e as preciosas relíquias pequenas do tesouro. E embrulharam cuidadosamente o relicário embutido em prata de Santa Winifred em cortinas velhas e gastas, mas deixaram-na no altar até ficar claro que teria de ser transportado para um refúgio mais elevado. Se isso se tornasse necessário, esta seria de longe a pior cheia de que Cadfael tinha memória; e se alguma vez durante este dia ameaçasse o pior, ela teria de ser removida, algo que nunca acontecera desde que fora trazida para aquele lugar.

Cadfael não quis comer ao meio-dia, e enquanto o resto dos habitantes da casa se alimentavam à pressa, ele foi ajoelhar-se diante do altar da santa, como por vezes fazia em silêncio, demasiado cheio de recordações para rezar, embora parecesse haver, no entanto, um diálogo em progresso. Se alguma alma bondosa entre os santos o conhecia bem, era Winifred, a sua jovem rapariga galesa, que não estava aqui, mas em segurança e contente na sua terra galesa em Gwytherin. Ninguém sabia a não ser a senhora, o seu servo e dedicado Cadfael, que lhe dera o descanso lá, e Hugh Beringar, a quem o segredo fora confiado mais tarde. Aqui em Inglaterra, mais ninguém; mas no seu País de Gales, na sua Gwytherin, não era segredo, mas um dogma da fé galesa que nunca precisava de ser mencionado. Ela continuava com eles; estava tudo bem.

Assim, não era o descanso dela, não o dela, que estava ameaçado agora, apenas o repouso inquieto de um jovem que tinha cometido um crime de homicídio em busca dos seus sonhos mal orientados, ganância pela abadia de Shrewsbury, ganância pela sua própria promoção. A morte dele proporcionara a Winifred a paz para permanecer onde o seu coração se prendia ao solo amado. Isso, pelo menos, podia quase ser contado com expiação dos pecados dele. Pois ela não retirara a sua bênção, porque um pecador jazia no caixão preparado para ela, e fora encomendado em seu nome. Onde ele estava, e ela não, ela fizera milagres de graça.

- Geneth... Cariad! - disse Cadfael em silêncio. - Rapariga, querida, ele está no purgatório há tempo suficiente? Podeis tirá-lo do seu calvário?

Durante a tarde, a subida gradual do regato e do rio pareceu abrandar e manter-se constante, embora não houvesse seguramente um declínio. Começaram a pensar que o perigo passaria. Depois, ao fim da tarde, o caudal principal da água do País de Gales desceu rapidamente num tumulto de espuma enlameada, ramos partidos, e bastantes carcassas de ovelhas apanhadas e afogadas em pastos demasiado baixos para as preservar. A rolar e a saltar na corrente, árvores acumularam-se debaixo da ponte e fizeram subir ainda mais a água túrgida. Todas as almas no enclave se uniram ansiosamente, e ajudaram a retirar os bens preciosos para um refúgio mais elevado, enquanto o regato e o rio e a represa avançavam gulosamente para todas as zonas mais baixas do pátio e do cemitério, e trepavam os degraus das portas oeste e sul, transformando o recinto dos claustros num lago baixo e lamacento.

Os paramentos, acessórios, prato das esmolas, cruzes e todo o tesouro foram transportados para os dois aposentos por cima do alpendre norte, onde Cynric, o bedel, vivia e o padre Boniface se paramentava. Os relicários que continham as relíquias mais pequenas saíiam pelas portas do cemitério para o sótão por cima do celeiro da Feira dos Cavalos. Um dia que nunca tinha tido muita claridade declinou para um sombrio lusco-fusco, e caía uma chuva miudinha, persistente e deprimente, que se colava às pálpebras e pestanas e lábios, aumentando o desconforto.

Duas carroças de Longner tinham trazido o carregamento prometido de madeira para a reconstrução, e esta começou a ser transferida para a carroça maior da abadia para a viagem de regresso a Ramsey. O cofre que continha as oferendas de Shrewsbury para a causa ainda se encontrava no altar da capela de Nossa Senhora, com a chave na fechadura, pronto para ser entregue ao criado Nicol para ser transportado em segurança no dia seguinte. Aquele altar situava-se a uma altura suficiente para sobreviver a todas as cheias, a não ser que assumissem proporções bíblicas. As carroças de Longner tinham trazido um terceiro ajudante voluntário, um pastor do lugarejo de Preston, nas redondezas. Mas os três mal tinham começado a transferir a carga quando foram interrompidos agitadamente pelo irmão Richard para ajudarem a retirar da igreja, ou a colocar num local mais seguro dentro das suas paredes, alguns dos tesouros ameaçados da abadia. Irmãos e hóspedes estavam a efectuar a mesma tarefa um pouco confusa praticamente na escuridão.

No espaço de uma hora, a maior parte da protecção necessária estava terminada, e os hóspedes começaram a retirar-se para lugares mais altos e mais secos, antes de a água em ascensão lhes chegar aos joelhos. Dentro da nave tudo ficou em silêncio, apenas o leve bater de água agitada contra os pilares enquanto algum homem robusto subia, agradecido, para o conforto superior da ala de hóspedes. O criado de Rémy, Bénezet, foi o último a ir, com botas até aos joelhos, e bem protegido contra a chuva.

As carroças de Longner e os ajudantes voltaram à transferência da madeira; mas um pequeno irmão, coberto e agitado, estendeu uma mão para deter o último deles, o pastor de Preston. - Amigo, há mais uma coisa aqui para ir na carroça para Ramsey. Dai-me uma ajuda com ela.

Nessa altura já todas as luzes se tinham extinguido, com excepção das luzes do altar. O pastor deixou-se conduzir pela mão, e tacteou o caminho até uma extremidade de um fardo comprido e fino, bem embrulhado em panos. A única luz do altar lançou uma luminosidade amarelada no interior do capuz Beneditino quando se endireitaram, e revelou fugazmente um rosto sério e suave, e fugiu com a corrente de ar vinda da porta da sacristia. Juntos, carregaram o fardo para fora da igreja por entre as campas dos abades até ao local onde a carroça da abadia estava parada do lado de fora dos pesados portões duplos. Os dois homens de Longner estavam na sua carroça, a passar troncos para a parte de trás, para os transferirem mais facilmente entre os dois para a carroça maior de transporte, e a escuridão caiu sobre todos, densa com o começo de um nevoeiro húmido e pegajoso. O fardo embrulhado foi içado para a carroça, e cuidadosamente alinhado ao lado da madeira já carregada. Quando o jovem irmão endireitou as costas, sacudiu as mãos, e se retirou rapidamente para o portão aberto, os dois carroceiros já tinham levado outra carga de madeira para a carroça, e estavam de novo na deles para levar a seguinte. A última prega do embrulho exterior, um brilho momentâneo de bordado dourado agora gasto e puído, desapareceu sob a pilha da madeira de Longner.

Algures dentro do cemitério, e a retirar-se para a escuridão da igreja, uma voz leve agradeceu-lhes e abençoou-os, e desejou-lhe boa-noite.

 

                                         Capítulo três

De manhã, imediatamente após a Missa Solene, a carroça emprestada partiu para Ramsey. O cofre do altar foi confiado aos cuidados de Nicol, e embora um dos seus companheiros de Ramsey fosse continuar a viagem com Herluin para Worcester, a adição de três artesãos à procura de trabalho ao grupo que ia para casa ofereceu uma guarda tranquilizadora para os valores que transportavam. A madeira estava bem presa, a parelha de quatro cavalos passara a noite confortavelmente no estábulo da Feira dos Cavalos, acima do nível da cheia, e estava pronta para a viagem. Iriam para esta, saindo por Saint Giles, e depois de se afastarem dos campos alagados e de passarem a ponte em Atcham estariam longe do rio, e em estradas boas, abertas e muito usadas. Perto do seu destino, tendo em conta que os malfeitores de Geoffrey de Mandeville deviam agora andar escondidos, talvez tivessem ocasião de se regozijarem por levarem três fortes rapazes de Shropshire, todos hábeis de mãos.

A carroça afastou-se ao longo de Foregate. Estariam alguns dias na estrada, mas pelo menos em regiões mais afastadas das montanhas de Gales, que tinham lançado um peso tão grande de água de degelo para as terras baixas depois dos fortes nevões de Inverno.

Aproximadamente uma hora depois, o sub-prior Herluin também partiu, acompanhado por Tutilo e pelo terceiro criado laico, para voltarem para sudeste em Saint Giles. Possivelmente, Herluin ainda não tinha percebido que as cheias, que estava grato por deixar para trás aqui, poderiam segui-lo para jusante e ultrapassá-lo triunfalmente em Worcester. A velocidade a que a água das cheias viajava podia ser errática em alguns invernos; podia estar até à frente dele quando chegasse aos campos planos abaixo da cidade.

Rémy de Pertuis não fez qualquer preparativo para partir. Até o andar mais baixo dos aposentos de hóspedes se mantinha bastante seco e aconchegante, pois fora erguido sobre uma cripta profunda e com acesso através de um lance de escadas, por isso ficou a curar a garganta inflamada num calor e conforto relativos. O seu melhor cavalo, o seu cavalo de montar, continuava coxo segundo o seu criado, Bénezet, que tinha a seu cargo os cavalos, e atravessava todos os dias, impassivelmente, a parte inundada do pátio para tratar deles na Feira dos Cavalos. O pátio dos estábulos do enclave estava inundado quase até à altura dos joelhos, e poderia manter-se assim por mais alguns dias. Bénezet recomendou uma estada mais prolongada ali, e, aparentemente, o seu senhor, pensando nas possíveis inconveniências no caminho para norte, para Chester, com o Severn a montante e o incalculável Dee, não fizera qualquer objecção. Estava seco e alimentado e em segurança onde se encontrava. E a chuva parecia estar a afastar-se. A oeste, as nuvens começavam a clarear, e apenas um ou dois aguaceiros pontuais marcavam a previsível calma da rotina diária.

O horário foi teimosamente cumprido apesar das dificuldades. O coro mantinha-se pouco acima do nível das águas, e só podia ser alcançado sem molhar os pés através das escadas nocturnas desde o dormitório, e o chão da casa do cabido quase não estava coberto no primeiro e segundo dia, e no terceiro viu-se que retinha apenas as linhas escuras e húmidas entre as lajes. Foi o primeiro sinal de que o rio tinha reafirmado os seus poderes, e estava de novo a carregar o seu grande peso de águas. Passaram mais dois dias antes de a mudança ser perceptível na corrente rápida do regato e no recuo da cheia para o seu leito, afundando-se gradualmente na erva saturada e deixando um rasto de destroços para marcar o declínio. A represa diminuiu lentamente, arrebatando turfa e folhas das zonas mais baixas dos jardins que tinha invadido. Mesmo ao longo do lado do Severn, sob as muralhas da cidade, o nível descia de dia para dia, desistindo da orla de pequenas casas e de cabanas de pescadores e de abrigos para barcos e deixando tudo manchado de lama e repleto de lixo de ramos e arbustos.

Uma semana depois, regato e rio e represa tinham voltado aos seus domínios, cheios mas ainda a descer gradualmente. Afinal de contas, a marca da água deixada na nave não chegara mais alto do que o cimo do segundo degrau do altar de Santa Winifred.

- Nunca foi verdadeiramente necessário retirá-la - disse o prior Robert, a observar a marca e a abanar a cabeça. – Devíamos ter tido mais fé. Seguramente, ela é bem capaz de tomar conta de si e do seu rebanho. Só precisava de ordenar, e as águas teriam descido.

Não obstante, uma morada húmida, pegajosa e fria, e suja de lama e lixo, não era um local apropriado para ter uma santa. Puseram mãos ao trabalho sem se queixarem, a varrer e a polir e a lavar as poças deixadas em cada irregularidade das lajes do chão. Trouxeram as pedras fanais, as três, para a nave, encheram todas as suas cavidades com azeite, e acenderam-nas para secar a humidade que ainda pairava e para aquecer o ar. Essências florais acrescentadas ao azeite lutaram com valentia contra o fedor do rio. Criptas, despensas, celeiros e estábulos também precisariam de cuidados, mas a igreja era a primeira prioridade. Quando estivesse novamente pronta para os receber e albergar, todos os tesouros poderiam ser recolocados nos seus lugares dentro da igreja.

O abade Radulfus marcou a purificação do local sagrado com uma missa de acção de graças. Depois, começaram a trazer dos seus santuários mais elevados os acessórios dos altares, as arcas de paramentos e o prato das esmolas, os candelabros, recém polidos, os frontais e os quadros, os relicários mais pequenos. Foi aceite sem disputa que tudo tinha de estar no seu lugar e imaculado antes de a maior graça e ornamento da abadia de São Pedro e São Paulo ser trazida com toda a pompa e circunstância para o lugar que lhe pertencia por direito, recém-varrido e embelezado para a receber.

- Agora - disse o prior Robert, endireitando-se alegremente em toda a sua majestosa altura - vamos colocar Santa Winifred no seu altar. Ela foi levada, como todos os que estão aqui presentes sabem, para a sala superior por cima do alpendre norte. - A pequena porta exterior ao canto do alpendre, e a escada em espiral no interior, muito difíceis para o transporte até de um pequeno caixão, tinham permanecido acessíveis até ao ponto mais alto da cheia, e ela fora bem protegida contra qualquer estrago no transporte. - Vamos - declarou Robert - em devoção e alegria, e tragamo-la de volta para a sua missão e bênção entre nós.

"Ele teve sempre", pensou Cadfael, enquanto o seguia resignadamente pela porta estreita e recuada e pelas escadas traiçoeiras, "esta convicção de que é proprietário da rapariga, porque acredita... não, Deus tenha misericórdia dele, pobre alma, ele sabe erradamente, mas com certeza!... que a trouxe para cá. Deus permita que nunca descubra a verdade, que ela está muito longe no lugar que escolheu, e a sua conivência com o orgulho que ele tem nela é apenas a piedade de uma rapariga de bom coração para com uma criança idiota."

Cynric, o bedel da paróquia do padre Boniface, tinha disponibilizado a sua pequena habitação por cima do alpendre para a guarda dos tesouros da igreja enquanto a cheia durasse. Dentro em breve voltaria a tomar posse do local; um homem alto, magro e calado, com o rosto aguçado, uma figura que inspirava temor ao comum dos mortais, mas totalmente aceite pelos inocentes, pois as crianças de Foregate, e os seus inseparáveis seguidores, os cães, vinham confiantemente à sua mão, e sentavam-se e meditavam alegremente nos degraus com ele quando estava tempo de Verão. O seu pequeno quarto estava agora vazio de tudo a não ser da sua última e mais preciosa residente. O caixão, embrulhado e amarrado com cordas, foi então erguido com toda a reverência, e cuidadosamente manipulado pelo espaço apertado de uma escada em espiral.

Na nave, tinham colocado cavaletes para pousá-la, enquanto soltavam o revestimento de panos que tinham usado para proteger o relicário de danos. Os panos soltaram-se um após o outro e foram pousados de lado, e Cadfael, que estava a observar, teve a impressão de que com a remoção de cada um a forma enfaixada, a diminuir, assumia uma forma demasiado rígida e rectangular para condizer com a que ele tinha devotamente na ideia. Mas a última cobertura era suficientemente grossa para camuflar as delicadezas de forma que ele conhecia tão bem. O prior Robert estendeu uma mão com cerimoniosa reverência para agarrar a última dobra, e puxou-a para trás para destapar o que estava por baixo.

E soltou um guincho abafado que emergiu com um efeito surpreendente de garganta tão augusta, embora não tivesse sido alto. Deu um passo para trás, grande e inseguro, e depois avançou abruptamente de novo e arrancou o pano, para expor à vista de todos a realidade inexplicável e ofensiva que tinham manuseado com tanto cuidado desde o seu lugar seguro. Não o relicário embutido em prata de Santa Winifred, mas um tronco de madeira, mais pequeno e mais curto que o caixão que tinha representado, provavelmente, leve o bastante para ser manuseado por um único homem, e não novo, pois tinha secado e envelhecido ao ponto de estar em condições para ser utilizado.

Todo o cuidado e reverência tinham sido desperdiçados. Estivesse Santa Winifred onde estivesse, não estava seguramente ali.

Após o silêncio espantado e embasbacado, explodiram exclamações e confusão de todos os lados, atraindo ao local outros que tinham ouvido o grito estrangulado de consternação, e tinham deixado as suas tarefas para vir e olhar e espantar-se. O prior Robert estava paralisado como uma estátua ultrajada, com o pano apertado nas duas mãos, a olhar para o tronco ofensivo, e por uma vez completamente mudo. Foi a sua sombra obsequiosa que levantou o fardo do protesto por ele.

- Isto é algum terrível engano - balbuciou o irmão Jerome, a torcer as mãos uma na outra. - Na confusão... e ficou escuro antes de acabarmos... Alguém confundiu, alguém a levou para outro lado. Encontrá-la-emos, em segurança, num dos sótãos.

- E isto? - inquiriu o prior Robert fulminantemente, a apontar um dedo ameaçador para a ofensa que jazia diante deles. - Assim embrulhado, com tanto cuidado como tivemos com ela? Não há engano! Não foi um erro cometido inocentemente! Alguém fez isto deliberadamente para enganar! Isto foi colocado no lugar dela, para ser manuseado e cuidado no seu lugar. E agora onde... onde está ela?

Alguma perturbação no ar, algum vento de alarme, tinham sido já captados, e chegado ao grande pátio, e minuto a minuto mais mirones de boca aberta se reuniam, irmãos tresmalhados que se encontravam a efectuar limpezas no pátio da lavoura e nos estábulos, hóspedes com bons ouvidos que saíram dos seus aposentos, um par de meninos de escola com olhos muito abertos e curiosos que foram corridos pelo irmão Paul com menos indulgência do que era habitual.

- Quem esteve com ela da última vez? - perguntou o irmão Cadfael razoavelmente. - Alguém... mais do que uma pessoa... a levou até aos aposentos de Cynric. Alguma dessas pessoas se encontra aqui?

O irmão Rhun abriu caminho pelo grupo de irmãos curiosos e assustados, o mais jovem entre eles, o protegido especial da sua santa, e o seu servo mais devoto, como todos os homens sabiam.

- Fui eu, juntamente com o irmão Urien, que a amarrámos em segurança. Mas, para meu desgosto, eu não estava aqui quando ela foi removida do seu lugar.

Uma figura alta salientou-se acima das cabeças dos irmãos mais próximos, a esticar-se para ver o que causava todo aquele reboliço.

- Essa era a carga daquele altar? - perguntou Bénezet, e avançou para olhar mais de perto. - O relicário, o caixão da santa? E agora isto...? Mas eu ajudei a levá-lo para os aposentos do bedel. Foi uma das últimas coisas que transportámos, ao fim da tarde. Eu estava a ajudar, e um dos irmãos... ouvi chamarem-lhe irmão Matthew... chamou-me para dar uma mão. E obedeci. Levámo-la pelas escadas e deixámo-la em segurança. - Olhou à sua volta à procura de confirmação, mas o irmão Matthew, o despenseiro, não estava ali para falar. - Ele dir-vos-á - disse Bénezet, confiante. - E isto... um tronco de madeira? Foi com isto que tivemos tanto cuidado?

- Olha para o pano - disse Cadfael, abrindo-o apressadamente diante dos olhos do homem e estendendo-o bem. - O invólucro exterior. Viste-o claramente quando tiveste o fardo nas tuas mãos? É o mesmo? - Por acaso, era um pano de lã escocesa, com um padrão regular de flores de quatro pétalas num azul pálido; muitos daquele género entravam nas casas inglesas através do mercado de Shrewsbury. Estava puído em alguns sítios, mas tinha sido tecido de forma sólida e pesada, e reforçado nas pontas com linho.

- O mesmo - disse Bénezet sem hesitação.

- Tens a certeza? Já era quase noite, dizes. O altar ainda estava iluminado?

- Tenho a certeza. - Os lábios compridos de Bénezet proferiram a sua certeza como uma flecha veloz. - Vi perfeitamente o padrão. Foi isto que levantámos e transportámos, naquela noite, e quem podia saber o que estava dentro dos panos?

O irmão Rhun soltou um som pequeno e lamentoso, mais um soluço do que um grito, e avançou quase temeroso para tocar e sentir, com medo de confiar nos seus olhos, por muito jovens e sãos e honestos que pudessem ser.

- Mas não é o mesmo - disse num sussurro emudecido - em que eu e o irmão Urien a embrulhámos, mais cedo naquele mesmo dia, antes do meio-dia. Deixámo-la pronta no seu altar, com um cobertor liso em volta, e uma toalha de altar velha e coçada esticada por cima. O irmão Richard deixou-nos usá-la, porque se adequava à santidade dela. Era uma toalha linda, à qual foi dispensado grande amor no bordado. Era a sua cobertura. Esta não é de forma alguma a mesma. O que este bom homem carregou daqui para o lugar mais alto a pensar que era Santa Winifred, não era essa doce senhora, mas este tronco, esta zombaria. Padre prior, onde está a nossa santa? Que aconteceu a Santa Winifred?

O prior Robert lançou um olhar autoritário para lá dele, para o objecto ridículo libertado da sua mortalha, para os irmãos assustados, e para o rapaz sofredor e acusador, branco como a chama de uma vela. Rhun tinha ficado imponente, belo e ágil graças ao milagre de Santa Winifred, e não descansaria, não deixaria nenhum dos seus superiores descansar, enquanto ela estivesse perdida para si.

- Deixai tudo como está - disse o prior Robert, com autoridade - e parti, todos vós. Palavra alguma deve ser dita, nada feito, até termos levado este problema ao padre abade, que é quem tem poder para decidir o que fazer.

- Não há a possibilidade de um simples erro - disse Cadfael, na sala de estar do abade, nessa noite. - O irmão Matthew está tão seguro como aquele rapaz, Bénezet, do que transportaram, ou pelo menos do padrão do pano que envolvia o objecto. E o irmão Rhun e o irmão Urien estão igualmente seguros em relação ao que levaram para a embrulhar e cobrir. Um novo fardo foi substituído pelo primeiro no altar, e levado para um lugar seguro de boa-fé, sem qualquer culpa para os que ajudaram.

- Nenhuma - disse Radulfus. - O jovem ofereceu-se com toda a bondade. O seu mérito é incontestável. Mas como aconteceu isto? Quem poderia desejar uma coisa destas? Quem executou, se o desejava? Pensa, irmão Cadfael! Havia cheia, havia vigilância mas esperança durante o dia, havia necessidade urgente à noite. Os homens preparam-se para uma ameaça súbita e estranha, mas enquanto ela se mantém afastada eles não acreditam. E quando ela se materializa, tudo pode ser tratado com calma e fé, como deveria ser? Na escuridão, na confusão, os homens fracos fazem coisas disparatadas. Não continua a ser possível que tudo isto seja um engano... talvez uma partida estúpida e maliciosa?

- Nunca tão estúpida - disse Cadfael com firmeza -, a ponto de revestir um tronco de madeira para condizer com a massa e peso daquele relicário. Houve um objectivo aqui. O objectivo de humilhar esta casa, sim, talvez, embora eu não consiga perceber porquê, ou quem teria um ressentimento tão vil. Mas um objectivo, seguramente.

Estavam os dois sozinhos, já que Cadfael tinha voltado para confirmar o testemunho de Bénezet de acordo com as declarações do irmão Matthew, que levara a parte de cima do relicário pelas escadas, e prendera os dedos no fio de linho emaranhado na bainha. O prior Robert tinha contado a sua história com imenso ardor, e deixara o fardo, segundo Cadfael suspeitava com considerável gratidão, nas mãos do seu superior.

- E este tronco - disse Radulfus, concentrando-se muito nos pormenores -, não pertencia ao carregamento de Longner?

- Longner mandou alguma madeira seca, mas não de carvalho. O resto era madeira miúda. Não, isto já foi cortado há alguns anos. Está seco e podia ser usado para passar, pelo menos aproximadamente, pelo peso do relicário. Não é nenhum mistério, na extremidade sul da cripta por baixo do refeitório existe uma pequena pilha de madeira que foi ali deixada depois da última construção nos celeiros. Eu fui ver - disse Cadfael. - Há um lugar de onde foi retirado um tronco como este. As superfícies mostram o espaço que ficou vazio.

- E foi tirado recentemente? - perguntou Radulfus, alerta.

- Foi sim, Padre Abade.

- Então isto foi deliberado - disse Radulfus lentamente. - Planeado e premeditado, como disseste. Difícil de acreditar. E no entanto não consigo perceber como poderia ter acontecido por acaso, por qualquer combinação absurda de circunstâncias. Dizes que Urien e Rhun a prepararam antes do meio-dia. Ao fim da tarde o que estava no altar dela, pronto para ser levado para outro lado, era este simples tronco. Durante o espaço de tempo entre as duas acções, a nossa santa foi retirada, e substituída pelo outro fardo. Com que objectivo, com que maldade em mente? Pensa, Cadfael! Nestes poucos dias de cheia quase ninguém entrou e saiu do nosso enclave, certamente ninguém pode ter levado um fardo tão visível. O relicário deve estar escondido algures no interior das nossas paredes. No mínimo, antes de procurarmos no exterior, cada canto desta casa e todos os seus edifícios exteriores têm de ser revistados.

A procura de Santa Winifred continuou durante dois dias, ocupando todo o tempo entre os serviços religiosos, e como se a honra de todos os que viviam dentro daquelas paredes estivesse impugnada na sua perda, até os hóspedes e todos os regulares de confiança da paróquia da Santa Cruz caminharam penosamente pela lama que ainda não secara para irem ajudar nas buscas. Até Rémy de Pertuis, esquecendo a fragilidade da sua garganta, foi com Bénezet procurar em todos os cantos do estábulo da Feira dos Cavalos e no sótão por cima dele, de onde as relíquias trasladadas de São Elerius e certos tesouros menores já tinham sido retirados. Não parecia apropriado a rapariga Daalny misturar-se com os irmãos durante o dia, mas observava com um interesse inesgotável dos degraus da ala dos hóspedes os caçadores a emergirem de uma porta após outra, de um pátio de lavoura para um pátio de estábulos, do dormitório pelas escadas exteriores que eram usadas durante o dia, para o recinto do claustro, de novo para o exterior através do escritório, a atravessarem para a enfermaria, e sempre de mãos vazias.

Todos os que tinham ajudado na noite da cheia, quando a necessidade se tornou urgente, contaram o que sabiam, e a soma do que sabiam abarcava os movimentos apressados da maior parte do tesouro da igreja, e seguia o seu rasto até aos lugares onde tinha ficado, mas não lançou qualquer luz sobre o que tinha acontecido ao relicário enfaixado de Santa Winifred entre o meio-dia e a noite do dia em questão. No final do segundo dia, até o prior Robert, rígido de ultraje, teve de reconhecer a derrota.

- Ela não está aqui - disse ele. - Não no interior destas paredes, não aqui em Foregate. Se se soubesse alguma coisa dela lá, eles ter-nos-iam dito.

- Sem dúvida - concordou o abade sombriamente -, ela foi para mais longe. Não há possibilidade de engano ou confusão. Foi efectuada uma troca, com a intenção de enganar. E, no entanto, quem deixou os nossos portões durante estes dias? Com excepção dos nossos irmãos Herluin e Tutilo, que com toda a certeza não levaram nada a não ser o que tinham trazido, o mínimo que um homem precisa quando anda em viagem.

- Houve a carroça - disse Cadfael - que partiu para Ramsey. Fez-se silêncio, enquanto olhavam uns para os outros com apreensão, calculando, inquietos, as perigosas possibilidades que se abriam à sua frente.

- Será possível? - aventurou o irmão Richard, o sub-prior, quase esperançoso. - Na escuridão e confusão? Alguma ordem mal compreendida? Poderá ter sido colocada na carroça por engano?

- Não - respondeu Cadfael, cortando frontalmente aquela consideração. - Se ela foi retirada do seu altar, então foi colocada noutro lado qualquer com um objectivo deliberado. No entanto, sim, a carroça partiu na manhã seguinte, e ela pode ter ido com ela. Mas não por acaso, não por engano.

- Então é um roubo sacrílego! - exclamou Robert. - Uma ofensa contra as leis de Deus e do reino, e deve ser castigada com todo o rigor.

- Não devemos dizer uma coisa dessas - reprovou Radulfus, erguendo uma mão dominadora - até termos interrogado todos os homens que estiveram presentes naquele dia e que possam ter alguma coisa a acrescentar ao que sabemos. E ainda não fizemos isso. O sub-prior Herluin e o irmão Tutilo estavam connosco nessa altura, e, tanto quanto sei, Tutilo esteve a ajudar a remover os acessórios do altar até à noite. E não havia outros que vieram para ajudar? Devíamos falar com cada pessoa que pode ter visto alguma coisa relevante, antes de gritarmos roubo.

- Os carroceiros de Eudo Blount que vieram com a lenha - afirmou Richard - deixaram a carga e entraram para nos ajudar, até o trabalho ficar concluído, antes de acabarem de transferir a lenha da carroça de Longner. Não deveríamos perguntar-lhes? Por muito escuro que já estivesse na altura, eles podem ter reparado em alguma coisa que seja útil para a nossa investigação.

- Não negligenciaremos nada - disse o abade. - Sei que o padre Herluin e o irmão Tutilo voltarão aqui para devolver os nossos cavalos, mas isso pode demorar alguns dias, e não devemos atrasar-nos. Robert, eles deverão estar agora em Worcester. Quereis ir ter com eles e ouvir o relato que podem dar-vos desse dia?

- De muito boa vontade - disse Robert, ardentemente. - Mas, Padre, se isto se tornar seriamente um caso de roubo, não deveríamos confiá-lo ao xerife, e ver se ele pensa que será prudente um homem da sua guarnição acompanhar-me? No fim, poderá ser tanto para a justiça do rei como para a nossa, e, como dizeis, o tempo é precioso.

- Tendes razão - concordou Radulfus. - Falarei com Hugh Beringar. E quanto aos homens de Longner, iremos ouvir o que têm para dizer.

- Se me autorizardes - disse Cadfael -, eu encarregar-me-ei disso. - Não desejava ver alguém com o espírito do prior Robert entrar na casa decente de Eudo Blount e investigar de uma forma que sugerisse sinistras suspeitas de duplicidade e roubo.

- Faz isso, irmão Cadfael, se quiseres. Tu conheces as pessoas melhor do que qualquer um de nós, elas falarão contigo livremente. Temos de a encontrar - disse o abade Radulfus sombriamente -, e assim faremos. Amanhã, Hugh Beringar saberá o que aconteceu, e fará o que considerar adequado.

Hugh saiu da conferência com o abade meia hora depois do final da Prima.

- Bom - disse ele, afundando-se no banco que estava encostado à parede de madeira da oficina de Cadfael -, parece que desta vez te encontras numa situação bastante estranha. Como é que perdeste a vossa suposta santa? E que farás, meu amigo, se alguém, algures, decidir abrir a tampa daquele caixão muito bonito?

- Por que é que alguém faria uma coisa dessas? - disse Cadfael, mas nada confiante.

- Tendo em conta a curiosidade humana, da qual deverias saber mais do que eu - disse Hugh, sorridente -, por que não? Digamos que a coisa vai parar a um sítio onde ninguém sabe o que é, ou o que significa, que maneira melhor haverá para descobrir o que têm entre mãos? Tu serias o primeiro a quebrar os selos.

- Eu fui o primeiro - disse Cadfael, descuidadamente, uma vez que não era preciso estar alerta, pois Hugh sabia exactamente o que estava no relicário de Santa Winifred. - E também, espero, o último. Hugh, duvido que estejas a encarar este assunto com a seriedade que ele merece.

- Acho difícil - concedeu Hugh - não achar engraçado. Mas podes estar seguro de que preservarei o teu segredo, se puder. Estou interessado. Todos os meus perturbadores da paz locais parecem estar fechados em casa até à Primavera, por isso posso ir até Worcester. Até na companhia de Robert poderá ser interessante. E manterei um olho atento aos teus interesses o melhor que puder. Que pensas desta perda? Alguém conspirou para vos roubar, ou é apenas uma trapalhada confusa causada pela cheia?

- Não - disse Cadfael com segurança, e virou-se da prancha onde estava a preparar trociscos para estômagos nauseados na enfermaria. - Não é uma trapalhada. Uma mente muito clara tirou aquele relicário do altar, e embrulhou e colocou um tronco de lenha da cripta no seu lugar. Para que ambos pudessem ser removidos longe da vista e do pensamento, possivelmente durante vários dias, como de facto aconteceu. Um a deixar o caminho aberto para que o outro fosse retirado e não pudesse ser recuperado. Pelo menos imediatamente - acrescentou com firmeza -, pois havemos de recuperá-lo.

Hugh estava a olhar para ele, com o brilho da braseira reflectido nos olhos, com os lábios torcidos e o sobrolho franzido de uma forma que Cadfael se recordava de há muito, do tempo em que se tinham conhecido, quando nenhum deles soubera ao certo se o outro era amigo ou inimigo, e no entanto tinham sido atraídos um para o outro numa contenda meio séria, meio irrequieta para descobrir.

- Sabes - disse Hugh suavemente - que estás a falar daquele relicário perdido... há já alguns anos que falas nele nesses termos... como se ele contivesse verdadeiramente os ossos da senhora galesa. "Ela", dizes, nunca "aquilo", nem ainda mais verdadeiramente "ele". E tu sabes, melhor do que ninguém, que a deixaste a descansar lá em Gwytherin. Poderá ela estar em dois lados ao mesmo tempo?

- Alguma essência dela pode certamente - disse Cadfael -, pois ela fez milagres aqui entre nós. Esteve naquele caixão durante três dias, por que não poderia ter-lhe conferido o poder da sua graça? Ela terá de estar limitada pelo tempo e pelo lugar? Digo-te, Hugh, por vezes pergunto a mim mesmo o que seria encontrado no interior, se aquela tampa alguma vez fosse levantada. Embora eu próprio - acrescentou ele pesarosamente - reze com devoção para que isso nunca venha a acontecer.

- Acho que é o melhor que podes fazer - concordou Hugh. - Imagina o turbilhão, se alguém, algures, quebrar os selos que tu reparaste tão cuidadosamente, e soltar a tampa, para encontrar o cadáver de um jovem de aproximadamente vinte e quatro anos, ao invés das ossadas de uma santa virgem. E ainda por cima nu como veio ao mundo! Estarias bem arranjado! - Ele levantou-se,

a rir, mas mesmo assim um pouco obliquamente, pois a possibilidade existia certamente, e ainda podia transformar-se num desastre. - Tenho de ir tratar de todos os preparativos. O prior Robert pretend partir logo a seguir ao jantar. - Ao passar, deu um abraço rápido a Cadfael, como forma de o encorajar, e abanou-o. - Nunca temas, tu és um dos favoritos dela, e ela cuida dos seus... sem esquecer que até agora te saíste muito bem a cuidar de ti.

- O estranho, Hugh - disse Cadfael, inesperadamente, quando Hugh estava a chegar à porta -, é que estou preocupado e com quase tanta ansiedade por causa do pobre Columbanus.

- Pobre Columbanus? - ecoou Hugh, voltando-se para o olhar com intrigado divertimento. - Cadfael, tu nunca cessas de me surpreender. Pobre Columbanus, de facto! Um assassino pela calada, e tudo para a sua própria glória, não para a de Shrewsbury, e certamente não para a de Winifred.

- Eu sei! Mas acabou como o perdedor. E morto! E agora... afastado de qualquer descanso que lhe era concedido num altar sossegado aqui em casa, levado para um sítio estranho onde não conhece ninguém, amigo ou inimigo. E talvez - disse Cadfael, a abanar a cabeça ao pensar no pecador extraviado - se esperem milagres dele, e ele não pode fazer nenhum. Não seria muito difícil sentir um pouco de pena dele.

Cadfael foi para Longner logo que a refeição do meio-dia terminou, e encontrou o jovem senhor do feudo na sua forja dentro da paliçada, a supervisionar pessoalmente a forja de uma nova lâmina de ferro para o arado. Êudo Blount era um lavrador inato, um homem grande, cândido e louro, com uma aparência mais adequada para o serviço das armas do que o seu irmão mais novo, mas um homem para quem o solo, e as culturas e o gado bem tratado seriam sempre uma realização suficiente. Criaria filhos à sua imagem, e a terra daria graças por eles. Os filhos mais novos tinham de arranjar a sua própria fortuna.

- Perdestes a Santa Winifred? - disse Eudo, embasbacado, quando ouviu qual era a missão de Cadfael. - Como diabo pudestes perdê-la? Não é uma coisa que possa ser dobrada e enfiada numa bolsa quando ninguém está a olhar. E quereis falar com Gregory e Lambert? Seguramente, não supondes que eles a querem para alguma coisa, mesmo que tivessem tido uma carroça na Feira dos Cavalos! Lá não têm queixas dos meus homens, pois não?

- Absolutamente nenhuma! - disse Cadfael acaloradamente. - Mas, apenas por acaso, eles podem ter visto alguma coisa que nós fomos cegos para perceber. Eles deram uma mão quando isso foi necessário, e nós ficámos profundamente agradecidos. Mas não adianta olharmos para longe antes de termos procurado bem em casa, e antes de nos termos certificado de que nenhum idiota demasiado zeloso colocou a senhora num qualquer lugar seguro e a perdeu. Perguntámos a todas as almas dentro daquelas paredes, e se não consultássemos estes dois últimos homens, poderíamos ficar a um passo de uma resposta simples.

- Perguntai o que quiserdes - disse Eudo simplesmente. - Podeis encontrá-los a ambos no estábulo ou na cocheira. E gostaria que obtivésseis a vossa resposta simples, mas duvido. Eles levaram a madeira para lá, carregaram-na, e voltaram para casa, e recordo-me de Gregory me ter contado o que estava a acontecer na igreja, e a altura que a água atingiu na nave. Mas mais nada para além disso. No entanto, experimentai!

Seguro no meio dos seus, Eudo não sentiu necessidade de ver ou escutar o que poderia descobrir-se, e voltou para a forja, e o barulho do martelo do ferreiro recomeçou a ouvir-se e seguiu Cadfael pelo pátio até à porta da cocheira, que estava aberta de par em par.

Estavam ambos no interior, a empurrar a pequena carroça pelo varal para um canto. O calor do cavalo que tinham acabado de desaparelhar ainda pairava no ar à volta deles. Eram ambos homens entroncados, musculosos, e marcados pela vida exterior em todas as estações, com uma diferença de uns bons vinte anos entre eles, de tal forma que poderiam ser pai e filho. A maior parte dos homens destas aldeias locais, presos ao solo pela condição de servos feudais mas também por aptidão, casando normalmente num raio de muito poucas milhas, tinham tendência para ser parecidos uns com os outros e tinham uma forte lealdade de clã. A ascendência galesa mantinha-os baixos, fortes e duráveis, e de espírito independente.

Cumprimentaram-no educadamente, sem surpresa; há um ou dois anos que ele era uma visita ocasional, e transformara-se numa visita bem-vinda. Mas quando desvendou o que queria deles, abanaram as cabeças em dúvida, e sentaram-se sem pressa no varal da carroça para reflectir.

- Levámos a carroça antes de escurecer - disse então o mais velho, semicerrando os olhos para pensar na semana de trabalho e lazer que passara -, mas estava um dia terrivelmente escuro mesmo ao meio-dia. Tínhamos começado a transferir a carga para a carroça da abadia quando o sub-prior se aproximou por entre as campas e parou ao portão do cemitério, e disse, rapazes, dai-nos uma ajuda para guardar os bens de valor em locais altos e secos, pois a água está a subir depressa.

- O subprior Richard? - perguntou Cadfael. - Tendes a certeza de que era ele?

- A certeza absoluta, que a ele conheço-o, e na altura não estava muito escuro. Lambert aqui dir-vos-á o mesmo. E nós entrámos, e pusemos mãos ao trabalho, a empilhar os quadros e a tirar as arcas como ele nos dizia, e a colocá-las onde nos mandavam, no sótão sobre o celeiro, e algumas sobre o alpendre nos aposentos de Cynric. Lá dentro estava escuro, e todos os irmãos transportavam apressadamente cofres e candelabros e cruzes, e metade das lamparinas ficaram sem azeite, ou foram apagadas pelas portas abertas. Logo que a nave pareceu vazia nós saímos, e voltámos para o carregamento de madeira.

- Aldhelm voltou lá dentro - disse o jovem Lambert, que até então não tinha feito mais do que abanar a cabeça em sinal de assentimento.

- Aldhelm? - perguntou Cadfael.

- Ele foi connosco para nos ajudar - explicou Gregory. - Tem uma leira em Preston, e trabalha com as ovelhas na casa senhorial de Upton.

Assim sendo, ainda era preciso falar com mais um antes de o trabalho poder ser dado por terminado. "E não hoje", pensou Cadfael, a calcular as horas que ainda lhe restavam.

- Esse Aldhelm andou dentro e fora da igreja como vós? E voltou no último momento?

- Um dos irmãos agarrou-o pela manga e pediu-lhe que fosse ajudar a transportar uma última coisa - disse Gregory com indiferença. - Nessa altura nós já estávamos na carroça a mudar troncos, a única coisa que sei é que alguém o chamou, e ele voltou para trás. Não demorou mais do que alguns momentos. Quando, entre os dois, levámos a carga seguinte para a carroça da abadia, ele estava junto à roda para nos ajudar a içá-la e a arrumá-la. E o monge estava a dirigir-se para a igreja novamente. Desejou-nos boa noite.

- Mas ele tinha vindo para a rua com o vosso homem? - insistiu Cadfael.

- Na altura já estávamos mais folgados, tudo o que importava estava suficientemente alto para ficar em segurança e seco até o rio descer. Como era uma alma delicada, saiu para nos agradecer e abençoar... por que não?

Por que não, de facto, quando homens honestos não pediam recompensa para além dessa?

- Não vistes - perguntou Cadfael delicadamente - se entre os dois trouxeram alguma coisa para colocar na carroça? Antes de ele vos dar a sua bênção?

Olharam um para o outro sombriamente, e abanaram a cabeça.

- Nós estávamos a mudar troncos para a parte de trás, para ser mais fácil descê-los. Ouvimo-los chegar. Tínhamos os braços cheios, a segurar madeira. Quando a colocámos na carroça, Aldhelm estava lá em cima para nos ajudar a içá-la, e o irmão dirigia-se de novo para o cemitério. Não, que eu tenha visto não trouxeram nada.

- Eu também não vi nada - disse Lambert.

- E poderíeis, algum de vós, dar um nome a este monge que o chamou?

- Não - disseram ambos em uníssono; e Gregory acrescentou delicadamente: - Irmão, na altura já estava muito escuro. E eu só sei os nomes de alguns, daqueles que todos os homens conhecem.

Na verdade, os monges são irmãos tratados pelo nome apenas por aqueles que vivem com eles; com vocação para serem irmãos de todos os homens, fora do convento não têm nome. Sem dúvida que, num certo sentido, era uma pena.

- Tão escuro - disse Cadfael, fazendo a sua última pergunta - que não conseguiríeis reconhecê-lo se o vísseis novamente? Não pelo rosto, ou figura, ou andar, ou porte? Nada marcante nele?

- Irmão - disse Gregory, pacientemente -, ele estava bem tapado por causa da chuva, e preto a desaparecer na escuridão. E o seu rosto nunca foi sequer visto.

Cadfael suspirou e agradeceu-lhes, e estava a preparar-se para voltar pelos campos enlameados quando Lambert disse, quebrando o seu silêncio habitual e inacessível:

- Mas Aldhelm pode tê-lo visto.

O dia já ia muito longo, se queria voltar antes das Vésperas. Para chegar à minúscula aldeola de Preston tinha de se desviar apenas um pouco mais de uma milha do seu caminho, mas se esse Aldhelm trabalhava com as ovelhas em Upton, a esta hora poderia ainda estar lá, e não na sua cabana, na sua leira de terra. Aquele interrogatório teria de esperar. Cadfael percorreu os bosques de Longner e através' ou a comprida encosta de prados por cima do rio que continuava a baixar, dirigindo-se para casa. O baixio já devia estar novamente transitável, mas abominavelmente enlameado e malcheiroso, e a barcaça era mais agradável e também mais rápida. O barqueiro, uma alma taciturna, deixou-o na outra margem com algum tempo de sobra, por isso ele abrandou um pouco o passo para recuperar o fôlego. Ao seu lado havia uma franja de bosque, antes de se aproximar das primeiras vielas e cabanas de Foregate; bosque aberto e coberto de vegetação rasteira sobre o cume, e depois as árvores juntavam-se sombriamente, e o carreiro estreitava. Teria de ser feito um desbaste ali, para desimpedir o caminho para os cavaleiros. Mesmo àquela hora, em que ainda não estava escuro mas o céu estava repleto de pesadas nuvens, um homem tinha de se esforçar muito para ver o seu caminho e evitar troncos salientes. Um lugar bom para uma emboscada e para violência secreta, e para todas as espécies de crimes. Foi o manto de nuvens carregadas e a triste calma do dia que lhe provocaram tais pensamentos, e mesmo enquanto duraram ele não acreditou neles. No entanto, havia maldade no ar, pois Santa Winifred tinha desaparecido, ou o símbolo que ela deixara com ele e abençoara para ele desaparecera, e já não havia equilíbrio no seu mundo. Estranho, já que ele sabia onde ela se encontrava, e poderia mandar-lhe mensagens para lá, seguramente com maior garantia do que para o caixão que não a continha. Mas fora daquele mesmo caixão que recebera sempre as suas respostas, e agora o vento que devia trazer-lhe a voz dela de Gwytherin estava mudo.

Cadfael emergiu em Foregate pela Feira dos Cavalos, um pouco zangado consigo mesmo por se permitir ser levado a pensamentos imaginativos que iam contra a sua natureza, e dirigiu-se para a guarita do portão numa pressa irritada de voltar para um mundo real onde tinha trabalho concreto para fazer. Certamente, teria de procurar Aldhelm de Preston, mas entre ele e essa tarefa, e tão importante como ela, estavam alguns homens doentes, uma série de jovens confusos e perturbados, e o seu simples dever de respeitar a Ordem que tinha escolhido.

Não havia muitas pessoas na rua em Foregate. O tempo continuava frio e a escuridão do dia levara as pessoas a correrem para casa, sem perda de tempo, logo que o dia de trabalho chegara ao fim. Algumas jardas à sua frente dois vultos caminhavam juntos, e um deles coxeava muito. Cadfael teve a vaga impressão de que já tinha visto aqueles ombros largos e aquela cabeça desgrenhada antes, e não há muito tempo, mas o andar coxo não encaixava. O outro era de constituição mais magra, e mais jovem. Caminhavam com as cabeças atiradas para a frente e com os ombros para baixo, como homens cansados após uma longa caminhada e com pressa de chegar ao seu destino e resolver o que tinham para resolver. Cadfael não ficou muito surpreendido quando eles viraram deliberadamente para a guarita do portão da abadia, e entraram com reconhecimento no grande pátio com uma força renovada no andar. "Mais dois para a ala dos hóspedes", pensou Cadfael, ele próprio a aproximar-se do portão, "e vai saber-lhes muito bem um lugar perto da lareira e uma refeição e uma bebida."

Eles estavam à porta da casa do porteiro quando Cadfael entrou no pátio, e o porteiro acabara de sair para os receber. A luz ainda não tinha desaparecido a ponto de Cadfael não conseguir ver, e maravilhar-se, com a forma como o rosto do porteiro, com a sua habitual expressão de boas-vindas e delicada interrogação, de repente se transformou numa expressão boquiaberta de espanto e preocupação, e as palavras prontas na sua boca se transformaram num grito abafado.

- Mestre James! Como é isso... vós aqui? Eu pensava, céus - disse ele, estarrecido -, que vos aconteceu na estrada?

Cadfael parou, sobressaltado, a não mais de dez passos das Vésperas. Virou-se apressadamente para se aproximar daquela confrontação inesperada, e para observar o homem coxo com mais atenção.

"Mestre James de Betton? O carpinteiro chefe de Herluin?" Não havia dúvida de que era o mesmo que partira com a carroça cheia de madeira para Ramsey, há mais de uma semana, mas agora estava a coxear e a pé, e de volta ao sítio de onde partira, e sujo e magoado não apenas da estrada. E o companheiro, o mais velho dos dois pedreiros que tinham partido na esperança de encontrar trabalho estável em Ramsey, ali ao lado dele, com a roupa rasgada e um pano amarrado na cabeça, e um malar negro de uma pancada.

- O que nos aconteceu na estrada! - repetiu o mestre carpinteiro pesarosamente. - Tudo o que há de pior, quase homicídio. Roubados por assassinos e ladrões. A carroça foi levada, a madeira foi levada, os cavalos foram levados... roubados, todos os paus e todos os animais, e só pela graça de Deus nenhum dos homens foi morto. Por amor de Deus, deixai-nos entrar e sentarmo-nos. Aqui o Martin tem a cabeça partida, mas quis voltar comigo...

- Entrai! - disse Cadfael, com um braço em volta dos ombros do homem. - Entrai e aquecei-vos, e o irmão porteiro vai buscar algum vinho para vós, enquanto eu vou contar ao padre abade o que aconteceu. Voltarei para junto de vós num instante, e tratarei a cabeça do rapaz. Agora não vos preocupeis com nada! Louvai o Senhor por estardes de volta em segurança! Nem todas as esmolas de Herluin teriam podido comprar a vossa vida.

 

                                   Capítulo quatro

A viagem correu bastante bem - disse mestre James de Betton, na sala de visitas apainelada do abade, uma hora mais tarde - até chegarmos à floresta, depois de Eaton. A sul de Leicester os bosques são densos, mas actualmente estão bem cuidados junto às estradas. E tínhamos cinco rapazes fortes na carroça, nunca pensámos que teríamos problemas que não poderíamos resolver. Um par de malfeitores em fuga, escondidos nos arbustos à procura de uma presa, nunca se teriam atrevido a mostrar-se e a tentar a sua sorte connosco. Não, estes eram homens muito diferentes. Eram onze ou doze, com punhais e mocas, e dois tinham espadas. Devem ter-nos acompanhado durante algum tempo na sombra, a avaliar-nos, e tinham dois arqueiros à frente, um de cada lado do caminho. Alguém lhes assobiou para aparecerem quando chegámos à parte mais estreita, e eles empunharam os arcos e as flechas e gritaram-nos para que parássemos. Roger de Ramsey ia a conduzir, e é hábil com os cavalos e com as carroças, mas que hipótese tinha com o par de armas apontado a si? Diz que ainda pensou em chicotear os cavalos e atropelá-los, mas teria sido inútil pois eles podiam disparar muito mais depressa do que nós poderíamos aproximar-nos deles. E depois atiraram-se a nós dos dois lados.

- Agradeço a Deus - disse o abade Radulfus fervorosamente - que vós tenhais vivido para contar a história. E todos, dizeis, todos os vossos companheiros estão vivos? A perda é irreparável, mas as vossas vidas têm um valor maior.

- Padre - disse mestre James -, não há um de nós que não tenha marcas da luta. Não os deixámos dominarem-nos facilmente. Aqui o Martin levou uma pancada que o fez perder os sentidos e foi atirado para os arbustos. E Roger brandiu o chicote à sua volta e deixou a sua marca em dois dos bandidos antes de eles o terem derrubado e usado a tira de couro para o prender. Mas éramos cinco contra mais do dobro, e eles eram vilãos armados com a disposição de matar. O que eles mais queriam era os cavalos, vimos que apenas três deles já estavam montados, e os outros eram obrigados a andar a pé, e a carroça também seria bem-vinda, embora tivessem uma, mas creio que estava danificada. Bateram-nos e afastaram-nos, e partiram com a parelha de cavalos e com a carroça a grande velocidade para o interior da floresta, por um trilho que se dirigia para sul. Toda a carga desapareceu. E quando eu corri atrás, e o jovem Payne foi atrás de mim, atiraram-nos uma flecha que me roçou o ombro... podeis ver o rasgão. Não tivemos outro remédio a não ser voltar para trás, e ir buscar Martin e Roger. Nicol lutou tanto como qualquer um de nós, embora seja mais velho, e manteve a chave do cofre em segurança, mas eles atiraram-no para fora da carroça, e o cofre também foi levado, pois estava escondido no meio da madeira miúda. Que mais poderíamos ter feito? Nunca esperámos encontrar um bando armado na floresta, e tão perto de Leicester.

- Vós fizestes o que era esperado de qualquer homem - disse o abade com firmeza. - Só lamento que tenhais sido sujeitos a esta situação, e regozijo-me profundamente por terdes saído dela sem maiores danos. Descansai aqui um dia ou dois e deixai que tratemos dos vossos ferimentos antes de regressarem a vossas casas. Pergunto a mim mesmo quem poderão ser esses bandidos que andam em tão grande número e tão fortemente armados. Que aparência tinham... indigentes e maus, ou selvagens com menos desculpa pela selvajaria?

- Padre - disse mestre James ansiosamente -, nunca antes vi pobres diabos a viverem de forma selvagem com bons justilhos de couro e botas fortes, e punhais dignos da guarda de um barão.

- E dirigiram-se para sul? - perguntou Cadfael, a reflectir sobre este bando armado tão bem equipado em tudo menos em cavalos.

- Sudoeste - corrigiu o jovem Martin. - E ao que tudo indicava com uma pressa terrível.

- Com pressa para fugirem do alcance do conde de Leicester - arriscou Cadfael. - Se ele conseguisse pôr as mãos neles, seriam castigados sem demora e com toda a severidade. Pergunto-me se não fariam parte da horda que Geoffrey de Mandeville reuniu à sua volta, à procura de paragens mais seguras para se instalarem, agora que o rei é novamente senhor dos Pântanos?

Eles ainda devem continuar espalhados em todas as direcções, e perseguidos por todo o lado. Seguramente, não quereriam ficar nas terras de Leicester.

Aquelas palavras suscitaram um murmúrio de concordância a todos. Nenhum malfeitor no seu perfeito juízo quereria instalar-se e dedicar-se ao seu trabalho predador em território controlado por um magnata tão activo e poderoso como Robert Beaumont, conde de Leicester. Era o mais novo dos irmãos gémeos Beaumont, filhos do velho Robert, que fora um dos pilares mais fiéis da governação firme do velho rei Henrique, e eles, por sua vez, tinham sido um suporte igualmente forte para o rei Stephen. O pai falecera com a posse do condado de Leicester em Inglaterra, Beaumont, Brionne e Pontaudemer na Normandia, e o condado de Meulan em França; e por ocasião da sua morte, o gémeo mais velho, Waleran, herdara as terras normandas e francesas, e o mais novo, Robert, o título e honra ingleses.

- Ele não é seguramente homem para tolerar ladrões e bandidos nas suas terras - disse o abade. - Pode ainda conseguir capturar esses ladrões antes de eles conseguirem escapar ao seu pulso forte. Talvez ainda seja possível recuperar alguma coisa. Mas o mais importante neste momento é saber o que aconteceu aos vossos companheiros, mestre James? Dizeis que estão todos vivos. Onde estão eles agora?

- Ora, meu senhor, quando ficámos sozinhos... e penso que eles não teriam partido tão apressadamente se não tivessem deixado nenhum de nós vivo para contar a história... primeiro cuidámos dos piores ferimentos, e deliberámos, e decidimos que tínhamos de levar a notícia para Ramsey, e também aqui para Shrewsbury. E Nicol, sabendo que nessa altura o subprior Herluin estaria em Worcester, disse que iria para lá para lhe relatar o que nos tinha acontecido. Combinámos que Roger iria para Ramsey, e o jovem Payne decidiu acompanhá-lo, como tinha dito que faria. Martin teria feito o mesmo, mas como eu não andava bem ele não me deixou empreender a viagem para casa sozinho. E é aqui em casa que pretendo ficar, pois posso dizer-vos que, depois daquela confusão, perdi o gosto por viajar.

- Não vos censuro - concordou o abade secamente. - Então, neste momento as vossas notícias já devem ter chegado tanto a Ramsey como a Worcester, se não houve mais emboscadas pelo caminho, Deus nos livre! E Hugh Beringar talvez já esteja em Worcester, e saberá o que aconteceu. Se puder ser feita alguma coisa para descobrir a nossa carroça e os cavalos emprestados, bem! Se não, pelo menos a carga mais preciosa, as vidas de cinco homens, salvaram-se, Deus seja louvado!

Até agora, Cadfael tinha-se abstido de contar as suas novidades devido à urgência muito maior da notícia trazida por aqueles abalados sobreviventes vindos das florestas do condado de Leicester. Mas achou que chegara o momento de falar.

- Padre abade, voltei de Longner sem grandes progressos, pois nenhum dos jovens que trouxeram o carregamento de madeira tinha alguma coisa importante para dizer. Mas mesmo assim tenho a sensação de que mais uma coisa de um valor imenso deve ter sido levada naquela carroça. Não vejo outra maneira de o relicário de Santa Winifred ter saído do enclave.

O abade olhou-o de forma prolongada e penetrante, e por fim concluiu:

- Vós sois solenemente zeloso. E na verdade compreendo a força do que dizeis. Já falastes com todas as pessoas que estiveram envolvidas no trabalho daquela tarde?

- Não, Padre, ainda falta falar com um, um jovem de uma aldeola da vizinhança que veio ajudar os carroceiros. Mas com esses já falei, e eles dizem que este terceiro homem foi chamado por um dos irmãos para voltar à igreja, no final da tarde, para um último trabalho, depois do qual o irmão saiu com ele para lhes agradecer a todos, e para lhes desejar uma boa noite. Eles não viram nada ser colocado na carroça que ia para Ramsey. Mas estavam ocupados e não prestavam atenção a nada a não ser ao seu trabalho. É uma impressão bastante vaga de que algo proibido foi então carregado a coberto da escuridão. Mas não me sai do pensamento, porque não vejo outra hipótese.

- E ides investigá-la? - perguntou o abade.

- Sairei de novo para procurar este jovem Aldhelm, se autorizardes.

- Temos de o fazer - disse Radulfus. - Um dos irmãos, dizeis, chamou o jovem, e depois voltou com ele. Souberam dizer qual era o seu nome?

- Não, nem conseguiriam reconhecê-lo se voltassem a vê-lo. Estava escuro, e ele estava bem tapado para se proteger da chuva. E, muito provavelmente, completamente inocente. Mas darei o último passo da investigação, e perguntarei ao último homem.

- Temos de fazer o que tem de ser feito - disse Radulfus pesadamente - para recuperarmos o que se perdeu. Se fracassarmos, fracassamos. Mas temos de tentar. - E para os dois viajantes acabados de regressar: - Onde é que a emboscada aconteceu ao certo?

- Perto de uma aldeia chamada Ullesthorpe, a algumas milhas de Leicester - disse o mestre James de Betton.

Os dois homens estavam agora abatidos, devido à longa e laboriosa caminhada para casa, e sonolentos por causa do vinho aquecido com canela que tinham bebido à refeição. Radulfus percebeu quando devia dar por terminada a conversa.

- Ide agora para o vosso descanso bem merecido, e deixai tudo a cargo de Deus e dos santos, que não nos voltaram as costas.

Se Hugh e o prior Robert não estivessem bem montados, e o idoso mas resoluto criado de Ramsey não tivesse sido obrigado a ir a pé, não poderiam ter chegado ao priorado da catedral de Worcester com um dia de intervalo uns dos outros. Desde o desastroso encontro perto de Ullesthorpe, Nicol tinha tido cinco dias para caminhar com dificuldade pelo campo para ir ao encontro do sub-prior Herluin e fazer o seu relato. Era um homem resoluto, até obstinado, e não seria detido por algumas nódoas negras nem entregaria a sua carga sem luta. Se fosse possível perseguir os bandidos, Nicol pretendia exigir que isso fosse feito à autoridade que mandasse por aquelas paragens.

Hugh e o prior Robert tinham chegado ao priorado já a tarde ia avançada, prestaram os seus respeitos ao prior, assistiram às Vésperas para reverenciar os santos da fundação, os Santos Oswald e Wulstan, e confidenciaram a Herluin e aos seus companheiros a perda, ou pelo menos o extravio, do relicário de Santa Winifred; com uma observação atenta, pelo menos da parte de Hugh, da forma como a notícia era recebida. Mas não encontrou qualquer falha na reacção de Herluin, que revelou natural espanto e preocupação, mas não excessivos. Demasiadas exclamações e protestos teriam suscitado alguma dúvida em relação à sua sinceridade, mas ficou claro que Herluin estava convencido de que não era nada pior do que alguma estupidez confusa entre demasiados ajudantes em grande pânico e com demasiada pressa, e que o que estava perdido seria encontrado logo que todos se acalmassem e suspendessem a busca durante algum tempo para reflectir. Impressionante foi também ele ter declarado imediatamente a sua intenção de regressar a Shrewsbury, para ajudar a esclarecer a confusão, embora parecesse contar com a sua autoridade natural e com a sua capacidade de liderança para produzir a ordem a partir do caos, e não tivesse nenhuma ideia prática em mente. Ele próprio não tinha nada para acrescentar ao que já se sabia. Não participara nos trabalhos apressados no interior da igreja, e mantivera-se abrigado com dignidade nos aposentos do abade, que continuavam altos e secos. Não, não sabia de ninguém que pudesse ter profanado Santa Winifred. A última vez que vira o relicário dela fora na missa matinal.

Tutilo, embasbacado e mudo, abanou a cabeça, ainda com a auréola de caracóis compridos, e abriu muito os olhos cor de âmbar ao ouvir aquela notícia tão inquietante. Quando obteve autorização para falar, disse que tinha ido para a igreja ajudar, e que obedecera simplesmente às ordens que lhe haviam sido dadas, e não fazia ideia de onde poderia estar o caixão da santa naquele momento.

- Isto não pode ficar impune - declarou Herluin no seu tom mais majestoso. - Amanhã voltaremos convosco para Shrewsbury. Ela não pode estar longe. Tem de ser encontrada.

- Amanhã depois da missa - disse o prior Robert, a marcar com firmeza a sua liderança na qualidade de representante de Shrewsbury - partiremos.

E assim teria sido, não fora a chegada de Nicol.

Os cavalos estavam aparelhados e à espera, as despedidas ao prior e aos irmãos já estavam feitas, e Hugh preparava-se para pegar no freio, quando Nicol chegou a coxear penosamente à guarita do portão, sujo e ferido e apoiado numa bengala que tinha feito para si mesmo na floresta. Herluin viu-o, e proferiu um grito sem palavras, mais de aborrecimento do que de surpresa ou alarme, pois naquela altura o criado já devia estar em Ramsey, e a carga entregue e em segurança. O seu aparecimento inesperado ali, fosse qual fosse o motivo, não augurava nada de bom.

- Nicol! - exclamou Herluin, suprimindo a primeira exasperação, por esta ou qualquer contrariedade nos seus planos. - Que fazes aqui, homem? Por que não estás em Ramsey? Pensei que podia confiar absolutamente em ti para levares a tua carga para casa sem problemas. Que aconteceu? Onde deixaste a carroça? E os teus companheiros, onde estão eles?

Nicol respirou fundo e contou-lhe.

- Padre, sofremos uma emboscada nos bosques, a sul de Leicester. Nós éramos cinco e eles uma dúzia, com mocas e punhais, e dois arqueiros entre eles. O que eles queriam era os cavalos e a carroça, e foi o que levaram, apesar de termos feito tudo o que estava ao nosso alcance para os impedir. Estavam a fugir, e com pressa, se não ter-nos-iam morto a todos. Pelo menos um homem do grupo deles estava ferido, e tinham de andar depressa. Escorraçaram-nos para os arbustos, e seguiram para a floresta com a carroça e a parelha de cavalos e a carga, e deixaram-nos para coxearmos a pé para onde calhasse. E foi o que aconteceu - disse ele, e calou a boca abruptamente, confrontando Herluin com o olhar de pedra de um idoso provocado e pronto para lutar.

A carroça da abadia desaparecida, uma parelha de cavalos desaparecida, a madeira de Longner desaparecida, e, o pior de tudo, a pequena arca do tesouro de Ramsey para a reconstrução, perdida para um bando de foras-da-lei na estrada! O prior Robert respirou audivelmente, o sub-prior Herluin soltou um gemido de amarga perda, e começou a atirar a sua indignação à cara de Nicol.

- Não pudeste fazer melhor do que isso? Todo o meu trabalho desperdiçado! Pensei que podia confiar em ti, que Ramsey podia confiar em ti...

Hugh pousou uma mão no ombro forte do súb-prior para o refrear, e interrompeu o seu lamento de forma muito pouco cerimoniosa.

- Algum dos teus homens ficou ferido com gravidade?

- Nenhum a ponto de não poder fazer o seu caminho a pé. Como eu fiz o meu - disse Nicol com firmeza -, todas estas milhas, para vos trazer a notícia o mais depressa possível.

- E fez muito bem - disse Hugh. - Deus seja louvado por ninguém ter sido assassinado. E para onde se dirigiram eles, uma vez que te deixaram vir para aqui sozinho?

- Roger e o jovem pedreiro foram juntos para Ramsey. E o mestre carpinteiro e o outro rapaz voltaram para Shrewsbury. Neste momento já lá devem estar, se não tiveram mais problemas pelo caminho.

- E onde foi essa emboscada? A sul de Leicester, disseste? Poderias levar-nos lá? Mas não - disse Hugh num tom decidido, a observar o homem. Era idoso, já com mais de cinquenta anos, e desgastado e cansado de uma persistente e laboriosa viagem a pé.

- Não, precisas de descansar. Diz-me o nome de alguma aldeia perto, e nós descobriremos os vestígios. Aqui estamos nós, e prontos para partir. Tanto para Leicester como para Shrewsbury.

- Foi na floresta, não longe de Ullesthorpe - disse Nicol. - Mas eles já fugiram há muito tempo. Eu contei-vos, eles precisavam da carroça e dos cavalos, pois estavam em fuga de algum sítio que se tinha tornado hostil, e iam com a pressa do diabo.

- Se precisavam tão desesperadamente da carroça e dos cavalos - disse Hugh -, uma coisa é certa, não quereriam um grande carregamento de madeira para os atrasar. Logo que estivessem longe de vós, seguramente livrar-se-iam daquele peso morto, içariam a parte de cima da carroça e despejariam a carga. Se o vosso pequeno tesouro estava bem escondido no meio da madeira, padre Herluin, talvez ainda seja possível recuperá-lo. - "E se mais alguma coisa tiver sido escondida na carroça no último momento, quem sabe se não podemos recuperá-la também."

Herluin tinha-se iluminado e recuperara maravilhosamente a sua dignidade ao pensar que poderia reaver o que tinha perdido. Nicol também se iluminou perceptivelmente, embora mais com a esperança de se vingar dos demónios que o tinham atirado para fora da carroça, e ameaçado os seus companheiros com aço e flechas.

- Pretendeis ir lá à procura deles? - questionou, resplandecente. - Então, senhor, de bom grado vos acompanharei. Eu reconhecerei o local, e levar-vos-ei lá directamente. O padre Herluin veio com três cavalos de Shrewsbury. O seu homem que volte para lá, e deixai-me ficar com o terceiro cavalo e levar-vos pelo caminho mais rápido para Ullesthorpe. Dai-me um momento para molhar a garganta e comer alguma coisa, e estou pronto!

- Cairás para a beira da estrada - disse Hugh, a rir de uma veemência que compreendia bem.

- Não eu, senhor! Deixai-me pôr as mãos naquele bando terrível, e estarei em melhor forma do que qualquer outra pessoa no mundo. Não toleraria ser posto de lado! Esta era a minha missão, e tenho umas contas para ajustar. Mantive a chave em segurança, mas não tive tempo de atirar o cofre para os arbustos antes de eu próprio ter sido atirado para lá, empurrado para o meio dos espinheiros, e com arranhões suficientes para o atestar. Não me deixaríeis para trás, pois não?

- Por nada deste mundo! - exclamou Hugh, com sinceridade.

- Faz-me jeito um homem voluntarioso perto de mim. Vai então rapidamente, come e bebe. Deixaremos o rapaz de Ramsey e levar-te-emos como guia.

O corregedor de Ullesthorpe era um homem circunspecto de quarenta e cinco anos, nervoso e despachado, e hábil a defender não apenas a sua posição como também os interesses da aldeia. Confrontado com um grupo onde o poder clerical era dominante, olhou no entanto pensativamente para Hugh Beringar e dirigiu-se antes à justiça secular.

- É bastante verdade, meu senhor! Encontrámos o local há alguns dias. Soubemos que esses foras-da-lei tinham passado pelos bosques, embora nunca se tenham aproximado das aldeias, e depois um mestre carpinteiro e o seu companheiro vieram até nós e contaram-nos o que lhes tinha acontecido, e fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que eles ficassem em condições de partir para Shrewsbury. Eu raciocinei como vós, meu senhor, que se livrariam da carga, pois esta serviria apenas para atrapalhá-los. Levar-vos-ei ao local. Fica a algumas milhas daqui, no interior da floresta.

Não acrescentou mais nada até chegarem a uma zona de bosque denso, cruzado apenas por um trilho largo, onde profundas marcas de rodas ainda se viam aqui e ali no terreno húmido, mesmo passados tantos dias. Os saqueadores tinham simplesmente levado a carroça para uma pequena mata relativamente aberta, cortado a última corda fina e puxado a carroça. Hugh não ficou surpreendido ao constatar que a pilha já não era o monte original deixado cair sem ordem, e que tinha sido remexida e a maior parte da madeira seca retirada, deixando os arbustos esmagados à vista. Aldeões parcimoniosos tinham escolhido a melhor para seu uso, presente ou futuro. Se tivessem tempo, o resto da madeira verde também encontraria uma boa casa. O corregedor, subserviente ao lado de Hugh, olhou-o de través, e disse, insinuantemente:

- Não pensareis mal de bons homens de família que levam o que Deus lhes manda e dão graças por isso?

- Não obstante, isto era propriedade da Abadia de Ramsey - referiu Herluin, mas com uma resignação controlada.

- Ora, Padre, mas apenas algumas pessoas, aqueles que falaram com os rapazes de Shrewsbury, sabiam. Os primeiros a chegar levaram lenha cortada dos bosques há alguns anos, foi sem dúvida um presente dos céus. Porquê deixar a madeira a apodrecer? Eles nunca viram a carroça nem os homens que a trouxeram para aqui. E o conde concede-nos o direito de apanhar madeira caída, e esta já tinha caído há muito.

- Melhor a remendar um telhado do que aqui caída - disse Hugh com um encolher de ombros. - Não podem ser censurados.

- A pilha de troncos, vasculhada e escolhida há muitos dias, tinha-se espalhado pelo trilho do bosque e para a erva crescida e matagal entre as árvores. Seguiram o seu rasto, procurando no meio dos restos, e Nicol, que se tinha afastado um pouco, soltou inesperadamente um grito e, mergulhando no meio dos arbustos, ergueu e brandiu diante dos olhos de todos o pequeno cofre que guardara o tesouro de Herluin. Arrombado, com a tampa arrancada, a caixa continha uma mão cheia de pedras e algumas folhas mortas que caíram quando ele a voltou ao contrário e a abanou pesarosamente.

- Vedes? Vedes? Eles nunca me tiraram a chave, nunca teriam conseguido, mas isso não foi impedimento. Um punhal a fazer pressão sob a tampa, junto à fechadura... E todas as esmolas valiosas e toda a boa vontade perdidas para bandidos e vagabundos!

- Eu não esperava outra coisa - disse Herluin, amargamente, e pegou na caixa partida para observar o estrago. - Bom, sobrevivemos a coisas muito piores, e sobreviveremos também a esta perda. Momentos houve em que pensei que a nossa casa estava perdida para sempre. Isto é apenas um percalço no caminho e, apesar de tudo, cumpriremos os nossos objectivos.

"No entanto, as possibilidades de recuperar estas oferendas específicas são muito remotas", reflectiu Hugh. Todas as esmolas de Shrewsbury, quer dadas de coração ou por consciência, todas as vaidades de que Donata abdicara, entregues sem pena, tudo perdido para os bandidos fugitivos, e não havia maneira de saber a que distância já se encontravam agora.

- Então isto é tudo - disse o prior Robert, entristecido.

- Meu senhor... - O corregedor aproximou-se mais do ombro de Hugh e inclinou-se para o ouvido deste em confidência.

- Meu senhor, há mais uma coisa que foi encontrada no meio dos troncos. Estava bem escondido por baixo deles, ou os bandidos tê-lo-iam encontrado quando descarregaram a madeira, ou então as primeiras pessoas que vieram buscar madeira tê-lo-iam visto.

Mas por acaso estava bem tapado, e só apareceu quando eu me encontrava aqui para ver. No momento em que foi desembrulhado, eu percebi que não devíamos envolver-nos com aquilo. Já tinha conseguido atrair a atenção de todos, e todos os olhos estavam pregados nele, Herluin e Robert irresistivelmente tentados a esperar contra coda a esperança, mas muito cautelosos para não sofrerem uma desilusão, Nicol interessado mas desconcertado, pois nada lhe tinha sido confidenciado sobre o desaparecimento do relicário de Santa Winifred, nem sobre a possibilidade de ter estado a bordo da sua carroça, e ter sido roubado com tudo o resto. Tutilo estava um pouco afastado, mantendo-se modestamente afastado enquanto os seus superiores conferenciavam. Até tinha suprimido, como podia fazer sempre que queria, o brilho dos olhos cor de âmbar.

- E que foi essa coisa que encontrastes? - perguntou Hugh cautelosamente.

- Um caixão, meu senhor, a avaliar pelo formato. Não muito grande, se é que se trata realmente de um caixão; quem quer que esteja dentro dele era pequeno e magro. Ornamentado com prata, muito castamente. Eu percebi que era suficientemente precioso para ser perigoso. Tomei-o a meu cargo para que ficasse em segurança.

- E que fizestes com esse caixão? - perguntou Robert, e começou a resplandecer com a promessa de um triunfo.

- Mandei que fosse levado ao meu senhor, uma vez que foi encontrado no seu território. Não queria correr o risco de que algum homem da minha aldeia ou das redondezas fosse acusado de roubar uma coisa de valor. O conde Robert estava e está a residir na sua casa senhorial de Huncote - disse o corregedor - , algumas milhas mais perto de Leicester. Levámos o caixão para lá, e contámos-lhe como o havíamos descoberto, e ainda se encontra no seu átrio. Podereis encontrá-lo bastante seguro com ele.

- Deus seja louvado, pois foi maravilhosamente misericordioso connosco! - suspirou o prior Robert, extasiado. - Estou plenamente convencido de que encontrámos a santa que chorávamos por pensarmos que estava perdida.

Hugh foi visitado pela visão momentânea do rosto do irmão Cadfael, se ele pudesse ter estado presente para apreciar a ironia. Porém, tanto virgem como pecador não arrependido tinham de se enquadrar dentro do limite da humanidade. Talvez, afinal de contas, Cadfael tivesse tido razão ao falar com tanta simplicidade no "pobre Columbanus". "Se ao menos", pensou Hugh, entre a diversão e a ansiedade, "se ao menos a senhora tiver sido suficientemente bondosa e suficientemente discreta para manter a tampa do seu relicário bem fechada, talvez consigamos emergir de toda esta situação sem escândalo." De qualquer maneira, não havia forma de fugir ao passo seguinte.

- Muito bem! - disse Hugh, filosoficamente. - Então iremos a Huncote, e falaremos com o conde.

Huncote era uma aldeia bonita e compacta. Havia um próspero moinho, e os campos do domínio eram grandes e verdes, a terra de cultivo bem tratada. Situava-se perto da extremidade da floresta, e agrupava-se de perto em volta da casa senhorial e do seu pátio murado. A casa não era grande, mas construída em pedra, com uma torre baixa tão sólida como a torre central de um castelo. Lá dentro, os pálidos desconhecidos que entravam naquele momento foram imediatamente observados, e abordados com uma prontidão e eficiência que se devia provavelmente ao facto de o conde se encontrar naquela residência. Moços de estrebaria apareceram imediatamente, e apressados, para pegar nos freios, e um pagem bem vestido desceu as escadas principais para saudar os recém-chegados e descobrir o que os trazia ali, mas foi mandado embora com um aceno por um criado mais velho que tinha saído dos estábulos. O aparecimento de três Beneditinos, dois deles obviamente veneráveis, e acompanhados por dois convidados laicos, um dos quais era um servo e o outro com uma autoridade igual à dos membros do clero, mas claramente secular, motivou uma saudação de boas-vindas ao mesmo tempo cortês e calorosa. Aqui seria oferecida toda a hospitalidade a todos aqueles que vinham, mas apenas a cordialidade ficava reservada para as visitas de cerimónia.

Num país ainda dividido entre dois rivais que lutavam pela soberania, e atormentado por inúmeros senhores independentes mais interessados em criar reinos seus, os homens sensatos cumpriam os seus deveres de hospitalidade e abriam as suas casas a todos, mas esperavam até examinar as credenciais antes de abrirem os seus espíritos.

- Meu senhor, reverendos senhores - disse o criado -, sois muito bem-vindos. Eu sou o camareiro da casa senhorial de Huncote do meu senhor Robert de Beaumont. Como poderei servir a Ordem Beneditina e aqueles que viajam em sua companhia? Tendes assuntos para tratar aqui?

- Se o conde Robert está em casa, e fizer o favor de nos receber - disse Hugh -, temos de facto assuntos para tratar aqui. Vimos por causa de algo que desapareceu da abadia de Shrewsbury, e que foi encontrado, segundo nos disseram, nos bosques do conde. Trata-se do relicário de uma santa. O teu senhor pode até achar divertido, bem como esclarecedor, pois deve ter-se interrogado sobre o que lhe foi deixado em casa.

- Eu sou o prior de Shrewsbury - disse Robert com cerimoniosa dignidade, mas foi olhado apenas por breves segundos. O camareiro era idoso, experiente e inteligente, e embora fosse apenas guarda de uma das propriedades mais pequenas da honra enorme e internacional de Leicester, pelo brilho astuto do seu olhar era um homem de confiança do seu senhor, e sabia tudo acerca do misterioso e elaborado caixão que fora tão estranhamente abandonado na floresta a seguir a Ullesthorpe.

- Eu sou o xerife do rei Stephen em Shropshire - disse Hugh - e procuro a santa perdida. Se o teu senhor a tem em segurança, obterá as orações de todos os irmãos de Shrewsbury, e de metade do País de Gales.

- Uma ou duas orações extra não fazem mal nenhum a um homem - disse o camareiro, visivelmente mais comunicativo. - Entrai, irmãos, e sede bem-vindos. Robin vai mostrar-lhes o caminho. Os vossos animais serão tratados.

O rapaz, que teria talvez dezasseis anos, atrevido e cheio de vida, tinha aguardado ordens e ouviu com ouvidos atentos e olhos brilhantes quando a missão dos recém chegados foi mencionada. Era sem dúvida um filho mais novo de um dos rendeiros de Leicester, colocado por um pai zeloso num lugar onde poderia progredir facilmente. E, pelos seus modos, Hugh chegou à conclusão de que, tendo em conta o porte do rapaz, Leicester não era um senhor muito duro. O rapaz subiu a escadaria à frente deles, com o queixo no ombro, a observá-los atentamente.

- O meu senhor veio da cidade para cá quando ouviu falar nos foras-da-lei que atravessavam os seus domínios, mas desde então nunca ninguém conseguiu avistá-los. Neste momento, já estarão muito longe. Ele apreciará a diversão, se tiverdes uma história curiosa para contar. Ele deixou a sua condessa em Leicester.

- E o relicário está aqui? - perguntou o prior Robert, ansioso para ouvir as suas melhores esperanças confirmadas.

- Se é do que se trata, Padre, sim, está aqui.

- E não sofreu estragos?

- Penso que não - disse o rapaz, ansioso para agradar. - Mas não o vi de perto. Sei que o conde admirou os ornamentos de prata.

Deixou-os num salão apainelado do outro lado do átrio, e foi informar o seu senhor de que tinha visitas inesperadas; e não mais de cinco minutos depois, a porta do aposento abriu-se para dar entrada ao senhor de metade do condado de Leicester, de uma boa parte dos condados de Warwick e de Northampton, e de uma grande honra na Normandia que lhe fora conferida pelo casamento com a herdeira de Breteuil.

Era a primeira vez que Hugh o via, e encarou aquele encontro com um interesse vivo mas cauteloso. Robert Beaumont, conde de Leicester como o seu pai antes de si, era um homem com não mais de quarenta anos, de compleição robusta e estatura mediana, de cabelos escuros e olhos mais escuros ainda, com vestuário rico mas sombrio, e com o porte autoritário pouco evidente, nada realçado, pois ali não havia necessidade. Tinha o rosto barbeado, ao estilo normando, deixando à vista um rosto de testa alta e ossos fortes e bem modelado, um maxilar elegante, e uma boca cheia e firme, com lábios compridos e móveis, e ligeiramente inclinados para cima nas extremidades para condizer com uma certa centelha instável nos olhos. A simetria do seu corpo e a suavidade dos seus movimentos eram desequilibradas pela ligeira protuberância que levantava um ombro e o desalinhava do outro. Não era um grande defeito, mas perturbava insistentemente os olhos das pessoas que o viam pela primeira vez.

- Senhor xerife, reverendos cavalheiros - disse o conde -, vindes em boa hora, se Robin relatou a vossa missão correctamente, pois confesso que me senti tentado a levantar a tampa do que me trouxeram de Ullesthorpe. Teria sido uma pena partir aqueles selos tão bonitos, ainda bem que contive a minha mão.

"Também acho", pensou Hugh, fervorosamente, "e Cadfael também será da mesma opinião." A voz do conde era baixa e grossa, agradável ao ouvido, e a notícia que ele tinha comunicado ainda mais agradável. O prior Robert enterneceu-se e tornou-se de imediato gracioso e loquaz. Na presença de um magnata normando de tamanho poder e dignidade este outro normando, Robert, embora fosse monástico por opção, voltou à sua hereditariedade, e floresceu como se estivesse a ver-se a um espelho.

- Senhor, em nome de Shrewsbury, tanto abadia como cidade, tenho de dizer-lhe como estamos gratos por Santa Winifred ter caído em mãos tão nobres como as vossas. Quase poderia dizer-se que ela conduziu os acontecimentos de forma miraculosa, protegendo-se e aos seus devotos mesmo no meio de tantos perigos.

- De facto, quase poderia dizer-se isso! - declarou o conde Robert, e os lábios eloquentes e sensíveis curvaram-se num sorriso gradual e pensativo. - Se os santos podem garantir à sua vontade os desejos que tiverem, parece que a senhora achou bem voltar-se para mim. Sinto-me profundamente honrado. Agora vinde, e vereis como a alojei, e que nenhum mal ou insulto lhe foi perpetrado. Eu mostro-vos o caminho. Tendes de pernoitar aqui esta noite pelo menos, e podereis ficar o tempo que quiserdes. Ao jantar contar-me-eis toda a história, e veremos o que tem de ser feito agora, para lhe agradar.

A sua mesa era farta, a recepção aberta e generosa, dificilmente poderiam ter chegado a pastos mais ricos depois de todos aqueles tormentos; e no entanto, Hugh manteve-se curiosamente alerta durante toda a refeição, como se esperasse que algo imprevisto acontecesse a qualquer momento, e que desviasse bruscamente os acontecimentos para um rumo insensato, precisamente quando o prior Robert, pelo menos, começava a acreditar que os seus problemas tinham chegado ao fim. Não era tanto um sentimento de inquietação, mas mais de expectativa, de antecipação quase prazenteira. Tentador especular sobre o que poderia possivelmente complicar agora a missão?

O conde tinha apenas um pequeno grupo consigo em Huncote, mas mesmo assim eram dez na mesa principal, e todos homens, já que a condessa e as suas aias tinham ficado em Leicester. O conde Robert sentou os dois dignitários do clero do seu lado esquerdo e direito, e Hugh ficou ao lado de Herluin. Nicol tinha-se recolhido para o seu devido lugar entre os criados, e Tutilo, silencioso e apagado no meio de companhia tão distinta, estava ao fundo, na companhia dos escrivães e dos capelães, e mesmo aí tinha muito cuidado com o que dizia. Há alturas em que é preferível sermos ouvintes, e muito atentos.

- Uma história verdadeiramente estranha - disse o conde, depois de ter escutado com lisonjeira concentração toda a história de como Shrewsbury tinha ficado com a Santa Winifred, desde a sua trasladação triunfante de Gwytherin para um altar na abadia, e o seu inexplicável desaparecimento durante a cheia. - Pois parece que foi retirada do seu próprio altar sem intervenção humana... ou pelo menos não encontrastes nenhuma. E dizeis-me que ela já fez milagres. É possível - reflectiu o conde, apelando deferentemente à instrução mais profunda do prior Robert em questões sagradas - que por algum propósito beneficente muito íntimo ela se tenha transferido milagrosamente do lugar onde foi colocada? Poderá ela ter pensado que seria adequado efectuar alguma bênção noutro lado? Ou sentiu alguma desafeição pelo lugar onde estava? - Aquelas palavras levaram o prior a endireitar-se rigidamente e a empalidecer, embora as perguntas tivessem sido feitas de forma simultaneamente reverente e séria, até desaprovadora. - Se me imiscuo com demasiada presunção em locais sagrados, reprovai-me - pediu o conde, com a doçura submissa de um noviço recente.

Hugh pensou que havia poucas ou nenhumas hipóteses de isso acontecer, escutando e observando com um prazer que lhe recordava algumas das suas primeiras trocas de palavras com o irmão Cadfael, experimentais, a ripostar a um truque com outro truque e a uma farpa com outra farpa, e a apalpar caminho em pequenos campos de batalha para uma amizade duradoura. O prior poderia talvez suspeitar de que estava a ser arreliado, pois não era parvo, mas nunca se atreveria certamente a desafiar ou provocar um magnata da envergadura de Robert Beaumont. E, de qualquer maneira, o outro Beneditino austero tinha mordido o isco. O semblante magro de Herluin assumiu uma expressão de ansiedade calculista, embora cautelosa.

- Senhor - disse ele, contendo o que poderia ter-se transformado facilmente num brilho de triunfo -, até um laico pode sentir-se inspirado para falar profeticamente. O meu irmão prior testemunhou pessoalmente os poderes divinos da santa, e diz claramente que não se descobriu qualquer homem que declarasse ter levado o relicário. Será de mais pensar que a própria Santa Winifred tenha removido as suas relíquias para a carroça que ia partir para Ramsey? Ramsey, tão vergonhosamente pilhado e devastado por vilãos ímpios? Onde seria ela mais honrada e necessária? Onde fazer mais maravilhas por uma casa tão grosseiramente ultrajada? Pois é agora certo que ela deixou Shrewsbury na carroça que voltava com oferendas dos devotos para a nossa abadia tão necessitada e atormentada. Se a intenção dela era ir para lá com bênçãos, atrever-nos-emos a contestar os seus desejos?

Tinha-os prendido pelos chifres, dois orgulhosos veados machos com as cabeças baixas e olhos arregalados, a recuperar energias para o golpe que atiraria com um deles para fora do concurso. Mas o conde insinuou uma mão repressora, embora sem dar qualquer indicação de que tinha percebido o choque iminente.

- Não é minha intenção fazer qualquer reivindicação, quem sou eu para interpretar esses mistérios? Pois Shrewsbury trouxe a senhora do País de Gales, e em Shrewsbury ela fez maravilhas, nunca renunciando à devoção que eles tinham por ela. Eu procuro orientação, nunca me atreveria a oferecê-la em assuntos deste género. Mencionei uma possibilidade. Se algum homem interferiu nos seus movimentos, o que digo cai por terra, porque nesse caso fica tudo claro. Mas até sabermos...

- Temos todos os motivos para acreditar - disse o prior Robert, terrível na sua indignação argentina - que a santa fez da nossa abadia a sua morada. Nunca falhámos em devoção. O seu dia tem sido celebrado todos os anos com a maior reverência, e o dia da sua trasladação tem sido especialmente abençoado. O nosso irmão mais obediente e virtuoso foi curado por ela de um problema na perna que o fazia coxear, e desde então tem sido seu escudeiro e servo particular. Não acredito que ela alguma vez nos deixasse de livre vontade.

- Oh, nunca com a deliberação de vos prejudicar - protestou Herluin -, mas por compaixão por uma casa monástica levada à ruína não poderia ela sentir-se obrigada a salvá-la? Confiando na vossa generosidade para respeitar a necessidade, e acrescentar às vossas almas já dotadas o poder e a graça que ela podia conceder? Pois é certo que ela saiu do enclave com os meus homens, e com eles seguiu pela estrada que vai para Ramsey. Por que seria assim, se ela não tivesse qualquer desejo de se separar de vós, e nenhum de vir habitar connosco?

- Ainda não está provado - declarou o prior Robert, concentrando-se nos aspectos puramente factuais do caso - que homens... e homens pecadores, pois se aconteceu dessa forma foi roubo sacrílego!... não participaram na remoção da santa dos nossos cuidados. Em Shrewsbury, o nosso senhor abade deu ordens para que procurássemos todos os homens que vieram ajudar-nos quando o rio entrou na igreja. Não sabemos o que foi descoberto e que depoimentos foram feitos. Lá, a verdade pode já ser conhecida neste momento. Aqui, seguramente não é.

O conde tinha-se sentado bem para trás no meio dos crispados defensores, absolvendo-se de todas as responsabilidades excepto a de manter a paz e a harmonia no seu salão. Os seus modos eram calmos, solidários com ambas as partes, interessado em que fosse feita justiça a ambos, e que ficassem satisfeitos.

- Reverendos padres - disse ele calmamente -, segundo me parece, de qualquer maneira é vossa intenção voltarem juntos para Shrewsbury. Que impede que adieis toda a discussão até chegardes lá, e souberdes o que foi descoberto na vossa ausência? Nessa altura, tudo poderá ficar claro. E se isso falhar, e continuar a não haver mão aparente de homem na remoção, então será tempo de considerar um julgamento racional. Não agora! Ainda não!

Eles aceitaram a sugestão com alívio cauteloso mas sem entusiasmo, pelo menos como um meio de adiar as hostilidades.

- É verdade! - declarou o prior Robert, embora ainda com bastante frieza. - Não podemos antecipar. Eles terão feito tudo o que estiver ao seu alcance para desvendar a verdade. Esperemos até sabermos o que foi apurado.

- Eu rezei à santa para que nos ajudasse no nosso apuro - insistiu Herluin - enquanto estava lá convosco. É seguramente concebível que ela tenha ouvido e tenha tido piedade de nós... Mas tendes razão, precisamos de ter paciência até sabermos mais pormenores deste caso.

"Existe um pouco de travessura nisto", pensou Hugh, satisfeito por ser um observador e ter a melhor visão do jogo, "mas nenhuma malícia. Ele está a divertir-se numa altura do ano que é bastante maçadora, e em que está aqui sem a companhia das mulheres, mas é tão hábil a apaziguar a tempestade como a incentivá-la. Ora, que mais pode ele fazer para passar um serão agradável e divertir os seus hóspedes? Pelo menos, um deles", admitiu ele com alguma culpa, e recordou a si mesmo que ainda tinha de levar aqueles dois padres ambiciosos para Shrewsbury sem um banho de sangue.

- Há ainda um pequeno facto que nos escapou - disse o conde, quase apologeticamente. - Eu detestaria criar mais dificuldades, mas não posso deixar de seguir uma linha de pensamento até à sua conclusão lógica. Se Santa Winifred concebeu e decretou de facto a sua partida na carroça para Ramsey, e se os planos dos santos não podem ser desfeitos pelos homens, então, seguramente, ela também deve ter desejado tudo o que aconteceu depois... a emboscada dos foras-da-lei, o roubo da carroça e da parelha de cavalos, o abandono da carga, e, com ela, do relicário, para ser encontrado pelos meus feitores, e ser trazido até aqui para me ser entregue. Em resumo, não parece óbvio?... para a trazer finalmente para onde ela repousa agora. Se ela pretendesse ir para Ramsey, não teria havido qualquer emboscada, teria ido sem impedimentos. Mas veio para cá, para ficar sob os meus cuidados. É impossível dizer que o primeiro passo foi dado por vontade dela, e não estender isso ao que se seguiu, sob pena de se perder a razão.

Os seus dois vizinhos à mesa estavam a olhar para ele com uma expressão de choque e alarme, completamente sem palavras, e isso era uma verdadeira proeza. O conde olhou para um e para o outro com um sorriso desarmante.

- Percebeis a minha posição. Se os irmãos em Shrewsbury tiverem descoberto os bandidos que retiraram a santa do seu lugar, então não existe qualquer contenda entre nenhum de nós. Mas se não descobriram quem foi, então eu tenho uma pretensão lógica. Cavalheiros, por nada neste mundo eu julgaria numa causa em que sou uma parte no meio de três. Submeto-me de bom grado a um tribunal mais imparcial. Se partis para Shrewsbury amanhã, Santa Winifred deverá acompanhar-vos. E eu contribuirei para a escolta indo convosco.

 

                                         Capítulo cinco

O irmão Cadfael tinha feito uma viagem para o lugarejo de Preston à procura do jovem Aldhelm, mas fora informado de que ele estava nos terrenos junto ao rio, na casa senhorial de Upton, ocupado com os partos das ovelhas, pois a estação tinha sido complicada com a necessidade de resgatar à pressa algumas ovelhas da água a subir, e os pastores estavam a trabalhar todas as horas do dia. Na segunda tentativa, Cadfael dirigiu-se directamente para Upton, para saber onde poderia encontrar o pastor mais jovem da propriedade, e partiu corajosamente para percorrer a milha que o separava de um rebanho alto e seco acima dos prados alagados. Aldhelm levantou-se da turfa em que um cordeiro novo e vacilante estava também a tentar levantar-se, empurrado pela ovelha trémula. O pastor era um fulano de membros magros, só cotovelos e joelhos, mas apesar disso rápido e hábil. Tinha um rosto franco e bem disposto e uma cabeça com uma espessa cabeleira ruiva. Chamado para ir ajudar a salvar os tesouros da igreja, tinha feito o que lhe haviam pedido sem curiosidade, mas nada se tinha apagado da sua memória boa e segura, logo que compreendeu o que lhe estava a ser pedido.

- Sim, irmão, eu estava lá. Fui dar uma ajuda a Gregory e a Lambert com a madeira, e o irmão Richard chamou-nos para ajudar a mudar as coisas. Havia outro tipo a ajudar como nós, alguém da ala de hóspedes, a tirar as coisas dos altares. Parecia conhecer o local, e o que era necessário. Eu fiz o que me pediram.

- E alguém te pediu, quase ao fim da tarde, para o ajudares a levar um grande embrulho para a carroça com a madeira? - perguntou Cadfael, directamente mas sem grande expectativa, e tremeu ao ouvir a resposta simples.

- Sim, pediu. Disse que era para ir na carroça, e colocámo-lo no meio dos troncos, bem escondido. Foi protegido para não sofrer quaisquer danos.

Tinha sofrido bastantes danos, mas ele não deveria saber isso.

- Os dois rapazes de Longner não se aperceberam - disse Cadfael. - Como foi possível?

- Ora, na altura já estava muito escuro, e a chover, e eles estavam ocupados a puxar os troncos para a ponta da carroça de Longner, para facilitar a transferência para a outra carroça. Podem muito bem não ter reparado. Nunca me ocorreu comentar o assunto, era o que o irmão queria, apenas mais uma coisa para mudar. Presumi que ele sabia o que estava a fazer, e nós não tínhamos nada a ver com os assuntos da abadia.

Era certamente verdade que o irmão em questão sabia muito bem o que estava a fazer, e restavam poucas dúvidas sobre quem devia ser, mas não podia ser acusado sem testemunhas.

- Como era ele, este irmão? Já tinhas falado com ele antes, na igreja?

- Não. Ele saiu a correr e levou-me pela manga na escuridão. Estava a chover e tinha o capuz puxado sobre a cabeça. Um irmão Beneditino, certamente, é tudo o que sei. Não muito alto, menos do que eu. Pela voz, um homem novo. Que mais posso dizer-vos? No entanto, se o visse poderia reconhecê-lo - disse, seguro.

- Viste-o uma vez na escuridão, e coberto com o capuz? E conseguirias reconhecê-lo se voltasses a encontrá-lo?

- Podia, sem dúvida. Voltei com ele para levar essa carga, e a lamparina do altar ainda estava acesa. Vi o seu rosto de perto, com a luz a incidir nele. Descrever um homem por palavras é difícil porque fica parecido com muitos - disse Aldhelm -, mas levai-me para vê-lo e escolhê-lo-ei em cem.

- Eu encontrei-o - disse Cadfael, relatando o resultado da sua investigação em privado com o abade Radulfus -, e ele diz que reconhecerá o homem.

- Ele tem a certeza?

- Tem a certeza. E eu estou persuadido de que ele fala verdade. É o único que viu o rosto do monge, junto à lamparina do altar quando ergueram o relicário. Isso quer dizer que o viu de perto e com clareza, com a luz a bater directamente no capuz. Os outros estavam lá fora, no escuro e à chuva. Sim, penso que ele pode falar com certeza.

- E ele virá? - perguntou Radulfus.

- Ele virá, mas nas suas condições. Tem um patrão, e trabalho para fazer, e ainda estão a decorrer os partos das ovelhas. Enquanto uma das suas ovelhas estiver em apuros, ele não sairá de lá. Mas quando o mandar buscar, à noite, quando o dia de trabalho estiver terminado, ele virá. Não pode ser já - disse Cadfael -, só quando eles voltarem de Worcester. Mas ele virá no dia em que eu mandar chamá-lo.

- Bom! - disse Radulfus, mas não muito satisfeito. - Uma vez que não nos resta outra opção. - O facto de que não valia a pena elaborar sobre como seria inútil mandar chamar já a testemunha, foi aceite por ambos sem palavras. - E, Cadfael, mesmo quando chegar o dia não vamos anunciar no cabido. Que ninguém saiba antecipadamente, para ficar com medo ou espalhar boatos. Que isto seja feito o mais sensatamente possível, com o mínimo de prejuízo para qualquer pessoa, até para o culpado.

- Se ela voltar, incólume e inalterada - disse Cadfael -, isto pode passar sem prejuízo nem desgraça para ninguém. Ela' também tem de ser tida em consideração, não temo por ela. - E de repente ocorreu-lhe como Hugh tivera razão ao dizer que ele, Cadfael, falava por instinto deste relicário oco, tão bom como se estivesse vazio, como se na verdade contivesse a maravilha cujo nome tinha. E que saudades tinha dela, sem o símbolo indigno que ela se dignara tornar merecedor.

Fazendo jus a esta autenticidade, até do símbolo, ela voltou no dia seguinte, com uma escolta nobre.

O irmão Cadfael estava a sair a porta da enfermaria a meio da manhã, depois de reabastecer as prateleiras do armário de remédios do irmão Edmund, quando eles apareceram ao portão, diante dos seus olhos. Não simplesmente Hugh, o prior Robert e os dois emissários de Ramsey com o seu criado laico, que na verdade parecia estar desaparecido, mas um grupo aumentado pela adição de dois criados ou escudeiros, fosse qual fosse o seu estatuto exacto, e uma personagem compacta em evidência, que cavalgava discretamente ao lado de Hugh, atrás dos dois priores, e no entanto dominava a procissão sem qualquer esforço ou gesto da sua parte. As suas vestes de montar eram ricas mas de cores escuras, o cavalo que montava estava mais ornamentado nos arreios do que o cavaleiro nas roupas, e era um ruano muito bonito. E atrás dele, numa carruagem estreita puxada por um cavalo, vinha o relicário de Santa Winifred, decentemente aninhado em tecidos bordados.

Foi maravilhoso ver como o grande pátio se encheu, como se a notícia do seu regresso tivesse sido soprada pelo vento. O irmão Denis saiu da ala dos hóspedes, o irmão Paul da sala de aulas, com dois dos seus rapazes a espreitar por detrás da sua batina, dois noviços e dois moços de estrebaria do pátio dos estábulos, e meia dúzia de irmãos ocupados em várias tarefas diferentes, todos apareceram no local quase antes de o porteiro sair do seu compartimento a correr para saudar o prior Robert, o xerife e os hóspedes.

Tutilo, que vinha modestamente no fim do cortejo, escorregou da sela e correu para segurar o estribo de Herluin, como um delicado pagem, quando o seu superior desceu. O noviço modelo, um pouco assíduo de mais, talvez, para estar bem consigo mesmo. E se aquilo de que Cadfael suspeitava fosse realmente verdade, ele tinha agora bons motivos para se comportar o melhor possível. Aparentemente, o relicário desaparecido estava de volta ao seu lugar, e fora encontrada uma testemunha que poderia e iria confirmar exactamente como é que ele se tinha evaporado. E embora Tutilo ainda não soubesse o que o esperava, não podia, no entanto, ter a certeza de que aquele regresso aparentemente jubiloso seria o fim do caso. Esperançoso mas ansioso, a fazer figas para ter sorte, seria totalmente virtuoso até o último perigo ter passado, e ele próprio continuasse anónimo e invisível. Podia até rezar fervorosamente a Santa Winifred para que esta o protegesse, tinha o descaramento inocente para isso.

Cadfael não podia deixar de sentir alguma pena de uma pessoa cuja acção dúbia mas arrojada tinha dado uma volta de trezentos e sessenta graus, e agora o ameaçava com desgraça e castigo; tanto mais que o próprio Cadfael se tinha livrado de uma exposição possivelmente semelhante. A tampa do relicário, com a sua cobertura de prata gravada à vista, sem dúvida para ser reconhecida instantaneamente ao entrar no pátio, ainda estava devidamente selada. Ninguém lhe mexera, ninguém vira o corpo no seu interior. Cadfael podia respirar de novo.

Nos seus domínios, o prior Robert encarregou-se de tudo. Os irmãos excitados ergueram o relicário, e transportaram-no para a igreja, para o seu altar, e Tutilo seguiu-os devotamente.

Os escudeiros e os noviços levaram os cavalos e puxaram a pequena carruagem para o pátio da granja para os guardar. Robert, Herluin, Hugh e o desconhecido partiram na direcção dos aposentos do abade, onde Radulfus já se encontrava à porta para os receber.

Embora este novo hóspede fosse desconhecido; certamente Cadfael nunca o vira antes, não foi um grande problema descobrir quem seria, mesmo que a sua presença ali fosse um mistério. A emboscada ocorrera perto de Leicester. Aqui estava claramente um magnata de poder e estatuto consideráveis, para quê especular mais sobre o seu nome? E Cadfael não deixara de reparar na elevação do ombro defeituoso, visível agora que ele estava de costas como um alto distinto, embora não suficientemente grave para desfigurar aquele corpo bem proporcionado. Era do conhecimento de toda a gente que o gémeo Beaumont mais novo era um homem marcado. Chamavam-lhe Robert Bossu, Robert o Corcunda, e, supostamente, ele não se importava com a alcunha.

Mas que fazia Robert Bossu ali? Já tinham entrado todos para os aposentos do abade, e o acaso que o levara a visitar a abadia em breve seria sabido. E o que Hugh tinha a dizer ao padre Radulfus em breve seria contado ao irmão Cadfael. Só tinha de esperar até que aquela conferência de poderes sagrados e seculares terminasse.

Entretanto, recordou a si mesmo que, uma vez que o grupo estava reunido, seria bom mandar o moço de recados do padre Boniface à procura de Aldhelm em Upton, no meio do seu gado, e pedir-lhe que viesse à abadia quando o seu dia de trabalho terminasse, para escolher o misterioso Beneditino entre um grupo que agora estava completo.

Fez-se silêncio na oficina de Cadfael, no herbário, depois de Hugh lhe contar toda a história da odisseia de Santa Winifred, e como, e com que disposição, Robert Beaumont entrara na disputa pela sua posse.

- Ele está decidido? - perguntou então Cadfael.

- Parcialmente. Está a brincar, a passar a época maçadora em que não há virtualmente nenhuma luta e muito poucas intrigas... e, embora, não queira nenhuma, está muito inquieto por não ter nada para fazer. Sem distracções, com a difícil tarefa de proteger os interesses do irmão aqui, tal como Waleran está a proteger os de Robert na Normandia o melhor possível, este gosta de pôr a raposa no meio das galinhas, especialmente no meio de dois galispos tão aguerridos e importantes como o vosso prior e Herluin, o enviado de Ramsey. Não há malícia nisso - disse Hugh tolerantemente. - Devo censurar-lhe a diversão? No meu tempo, eu teria feito a mesma coisa.

- Mas ele afirma que tem o direito de reivindicar o relicário?

- Enquanto isso o divertir, e ele não tiver mais nada para fazer. Santo Deus, foram eles próprios que lhe meteram isso na cabeça! Quase poderia dizer-se, diz Robert... o nosso Robert, tenho de o chamar assim?... que ela tem estado a conduzir as coisas pessoalmente! É verdade, diz o outro Robert, e eu vi a semente cair em solo fértil, e foi ali que ele a fez crescer desde então. Mas não te preocupes com ele, ele nunca vai forçar o assunto a ponto de humilhar qualquer um deles, e muito menos o abade Radulfus, que reconhece como seu igual.

- Mal se nota - disse Cadfael, pensativo, mudando surpreendentemente de assunto.

- O quê?

- A marreca. Robert o Corcunda! Eu já tinha ouvido o nome, quem não ouviu? Robert e Waleran de Beaumont parecem ter-se separado nestes últimos anos, gémeos ou não. O mais velho já está na Normandia há quatro anos, Stephen já quase não pode contar com ele como o fiel apoiante que ele era.

- E não conta - concordou Hugh secamente. - Stephen sabe reconhecer quando perdeu um homem de confiança. É mais do que provável que compreenda bem a razão, e dificilmente poderá dizer que é culpa de alguém. Os dois irmãos têm terras tanto aqui em Inglaterra como na Normandia, e desde que Geoffrey de Anjou se proclamou senhor da Normandia, em nome do seu filho, todos os homens que apoiam Stephen temem pelas suas propriedades lá, e devem sentir-se tentados a mudar de lado para manter o apoio de Anjou. As terras francesas e normandas são as que mais interessam a Waleran, por isso não admira que tenha ido para lá para se tornar, pelo menos, aceite por Geoffrey e não correr o risco de ser desalojado. É mais do que as terras. Ele ficou com as posses francesas, as de maior honra, quando o pai de ambos faleceu, é conde de Meulan, e a sua descendência tem direito ao título. Sem Meulan ele não teria um título. A herança de Robert foram as terras inglesas. Breteuil só se tornou sua pelo casamento, o seu lugar é aqui. Por isso, Waleran vai para onde estão as suas raízes, para impedir que elas sejam arrancadas, mesmo que tenha de prestar homenagem a Anjou pelo solo onde estão firmemente há gerações. Não sei ao certo onde está o seu coração. Agora deve obediência a Anjou, mas faz o menos possível para o ajudar e o menos possível para prejudicar Stephen, protegendo os seus interesses e os do seu irmão lá, enquanto Robert faz o mesmo por ele aqui. Mantêm-se à distância de toda a acção existente. Não admira! - disse Hugh. - É também uma questão de pura cautela. O caos já se mantém há demasiado tempo.

- Nunca é fácil - disse Cadfael, sentenciosamente - servir dois senhores... mesmo quando existem dois irmãos para partilhar a tarefa.

- Há outros com as mesmas ansiedades - declarou Hugh.

- Haverá mais agora, com uma causa em ascensão aqui e outra lá. Mas temos um problema muito nosso aqui, Hugh, e, mesmo que o conde esteja apenas a divertir-se, podes ter a certeza de que Herluin não está. Se eu tivesse sabido - disse Cadfael, duvidoso - que ias trazê-la de volta sã e salva, sem grandes danos, talvez não tivesse andado tão ocupado a tentar perceber como é que ela desapareceu.

- Duvido que tivesses tido outra hipótese - disse Hugh, compreensivamente -, e seguramente não tens nenhuma agora.

- Nenhuma! Mandei chamar o rapaz que está na casa senhorial de Upton, como disse a Radulfus que faria, e ele estará cá antes das Completas, e a verdade será seguramente apurada. Todos nós sabemos agora como o relicário foi roubado e levado para longe, e só falta o testemunho deste rapaz para dar um rosto e um nome ao ladrão. Um corpo pequeno e uma voz jovem, diz Aldhelm, que foi levado a ajudar, e viu o seu rosto de perto. Quase não é necessária confirmação - admitiu Cadfael -, mas a justiça tem de se fazer com absoluta certeza. Herluin não é pequeno nem jovem. E por que é que um irmão de Shrewsbury quereria ver a nossa melhor padroeira ser levada numa carroça para Ramsey? Depois de o método ser desvendado, como foi hoje, quem poderia ser senão Tutilo?

- Um rapaz arrojado! - comentou Hugh, incapaz de suprimir um sorriso de apreciação. - Será desperdiçado num hábito de monge. E, se queres saber a minha opinião, duvido que Herluin tivesse levantado alguma objecção a um roubo bem sucedido, mas vai querer o couro do seu noviço mais jovem agora que se revelou um fracasso. - Levantou-se para sair, esticando os membros ainda um pouco rígidos da longa viagem a cavalo. - Estou longe de casa. Não sou preciso aqui até esse Aldhelm ter desempenhado o seu papel e apontado o dedo para o teu Tutilo, como presumo que tens a certeza de que acontecerá antes de a noite chegar ao fim. Eu preferia não estar aqui. Se houver alguma coisa para eu fazer, que espere até amanhã.

Cadfael só o acompanhou até ao herbário, pois ainda tinha que fazer ali. O irmão Winfrid, grande e jovem e robusto, estava apoiado na sua pá na ponta do canteiro de vegetais, e a olhar para uma figura diminuta que percorria a curva da sebe de buxo em direcção ao grande pátio.

- Que estava o irmão Jerome a fazer, escondido atrás da tua oficina? - perguntou o irmão Winfrid quando veio arrumar as ferramentas na altura em que a luz começou a falhar.

- Estava? - disse Cadfael, distraído, a triturar ervas num almofariz para um xarope. - Nunca apareceu.

- Não, nem era essa a sua intenção - disse Winfrid com a sua franqueza habitual. - Suponho que queria saber o que o xerife tinha para te dizer. Esteve alguns minutos do lado de fora da porta, até vos ouvir mexerem-se para sair, e depois partiu apressadamente. Duvido que tenha ouvido algo de bom sobre si mesmo.

- Não pode ter ouvido absolutamente nada sobre si mesmo - disse Cadfael, satisfeito. - E também não ouviu nada que possa ser-lhe útil.

Rémy de Pertuis tinha tomado a decisão de partir naquele dia, mas a chegada do conde de Leicester levou-o a pensar duas vezes, e a cancelar a ordem que dera a Bénezet e a Daalny para começarem a fazer as malas. Não seria agora prudente ficar mais alguns dias para examinar as possibilidades sugeridas por este magnata que tinha aparecido tão providencialmente? Rémy não conhecia pessoalmente Ranulf, conde de Chester, e não sabia ao certo qual o tipo de recepção que teria no norte. Por outro lado, todos os rumores o levavam a acreditar que Robert de Beaumont era um homem culto, e provavelmente apreciador de música. Pelo menos estava ali, alojado na mesma ala de hóspedes, a tomar as refeições à mesma mesa. Porquê abandonar uma oportunidade presente e prometedora, para ir atrás de uma oportunidade distante e não provada?

Assim, Rémy dedicou-se a explorar a situação, e dispôs-se a agradar, e os seus dons e encantos, quando se esforçava, eram consideráveis. Bénezet estava ao seu serviço há tempo suficiente para saber qual era o seu papel na operação que tinham em mãos sem precisar que lhe dissessem nada. Insinuou-se aos escudeiros do conde na zona dos estábulos, e manteve os ouvidos atentos a quaisquer menções reveladoras dos gostos de Robert Bossu, do seu temperamento e interesses, e o que descobriu foi encorajador. Um patrono daqueles garantir-lhes-ia uma protecção completa, uma vida de relativo luxo, e um emprego muito agradável. Bénezet voltava para a ala dos hóspedes com a sua compilação quando observou o irmão Jerome a rodear a sebe de buxo do lado do jardim, de cabeça baixa e com muita pressa. Bénezet também ficou com a impressão de que ele estava um pouco excitado, e com pressa de confidenciar a alguém o que lhe ia no pensamento. Havia apenas uma pessoa a quem Jerome falaria com tanto fervor; Bénezet, naturalmente curioso em relação a qualquer coisa que pudesse ser-lhe útil ou lucrativo, não era avesso a desviar-se do seu caminho para descobrir algumas migalhas de informações úteis. Abrandou o passo para observar para onde ia Jerome, e seguiu-o sem pressa para o claustro.

O prior Robert estava a arrumar um livro no armário ao fundo do scriptorium. Jerome dirigiu-se para ele, tenso e apressado com a notícia. Bénezet esgueirou-se para um compartimento reservado para leitura, o mais perto que conseguiu chegar sem ser notado, e fez-se invisível nas sombras. Uma altura conveniente, com a luz a diminuir, pois todos os irmãos que se ocupavam a copiar ou a ler tinham abandonado os seus livros por aquele dia, deixando o prior a verificar se tudo estava decentemente guardado exactamente onde devia estar. Na calmaria do lusco-fusco as vozes eram transportadas, e Jerome estava excitado, e Robert não era homem para baixar a voz, que gostava de ouvir. Bénezet tinha descoberto que se podiam encontrar migalhas de vantagem nos sítios mais inesperados.

- Padre prior - disse o irmão Jerome, entre o aborrecimento e a satisfação -, chegou uma coisa ao meu conhecimento que penso que devereis saber. Parece que há um homem que ajudou a transportar o relicário de Santa Winifred para a carroça que ia para Ramsey, com toda a inocência, já que lhe foi pedido por um irmão da Ordem, com o hábito vestido. Ele disse que pode reconhecer o homem, e vem cá esta noite para fazer a identificação. Por que é que nós não fomos informados do que estava a passar-se, Padre?

- Eu sei o que se passa - disse o prior, e fechou a porta do armário sobre a devoção e sabedoria no interior. - O senhor abade contou-me. Não foi tornado público porque teria sido um aviso ao culpado.

- Mas, Padre, vedes o que isto significa? Foi a maldade dos homens que a retirou dos nossos cuidados. E eu já ouvi um nome ser dado ao ladrão ímpio que se atreveu a perturbá-la. Ouvi o irmão Cadfael referir-se a ele. O aparentemente inocente, o noviço de Ramsey, Tutilo.

- Isso não me foi dito - reflectiu Robert, com uma dignidade ligeiramente afrontada. - Sem dúvida porque o abade se recusa a acusar um homem até uma testemunha apresentar uma prova concreta da culpa do criminoso. Só nos resta esperar até à noite, e teremos essa prova.

- Mas, Padre, poderemos acreditar que algum homem é tão malvado? Que penitência poderá expiar? Seguramente, o raio de luz do céu devia ter caído sobre ele e tê-lo destruído quando estava a cometer o crime.

- O castigo pode tardar - disse o prior Robert, e voltou-se para sair do escritório, com a sua agitada sombra colada aos calcanhares. - Mas será certo. Apenas mais algumas horas, e o malfeitor será castigado como merece.

Os murmúrios vingativos e insatisfeitos do irmão Jerome seguiram-no até à porta sul, e para o gelo da noite. Bénezet deixou-o ir, e sentou-se durante alguns momentos a reflectir sobre o que tinha ouvido, antes de se levantar calmamente e voltar, pensativo, para a ala dos hóspedes. Aguardava-o um serão descansado; tanto ele como Daalny tinham sido dispensados de todos os serviços, pois Rémy ia jantar com o abade e com o conde, os primeiros frutos da sua campanha em busca de lugar e posição. Não precisava de criado para o servir, e embora pudesse haver música antes de o serão terminar, uma cantora do sexo feminino não era o mais adequado para fazer parte da diversão nos aposentos do abade. Estavam ambos livres para fazerem o que quisessem.

- Tenho uma coisa para te dizer - disse ele, ao encontrar Daalny de sobrolho franzido a afinar uma rabeca à luz de um dos archotes do átrio. - Esta noite está planeada uma caçada que, na minha opinião, o teu Tutilo faria bem em evitar. - E contou-lhe o que ouvira. - Se fazes o favor, conta-lhe tudo - disse ele cordialmente -, e ele que desapareça. Talvez só adie um dia, mas até um dia é espaço para respirar, e calculo que ele é suficientemente inteligente para inventar uma história plausível, quando souber o que o espera, ou para persuadir esta testemunha a contar uma história diferente. Por que desejaria ao rapaz um mal pior do que aquele em que ele já se meteu?

- Ele não é o meu Tutilo - disse Daalny. Mas pousou a rabeca nos joelhos, e ergueu os olhos para Bénezet com uma expressão muito pensativa. - É verdade o que dizes?

- Porque não havia de ser? Ouviste todas as idas e vindas que houve, este é o fim delas. E aqui és livre como um pássaro, para variar, desde que voltes para a tua gaiola a tempo. Faz o que quiseres, mas eu contar-lhe-ia a ameaça que paira sobre ele. Quanto a mim, vou esticar as pernas na cidade, enquanto posso. Não direi nada, nem saberei nada.

- Ele não é o meu Tutilo - repetiu ela, quase absorta, ainda a ponderar.

- Pela forma como evita olhar para ti, poderia ser, se tu o quisesses - disse Bénezet, a sorrir. - Mas deixa-o em apuros, se quiseres.

Não era o que ela queria, e ele sabia bem. Tutilo seria avisado do que o esperava no final das Vésperas, se não antes.

O sub-prior Herluin dirigia-se para o jantar com o abade Radulfus e com o distinto hóspede nos seus aposentos, muito gratificado com o convite, quando foi confrontado no meio do pátio por um humilde peticionário sob a forma de Tutilo, muito delicado e servil, a pedir-lhe autorização para visitar Lady Donata, em Longner.

- Padre, a senhora pede para eu ir tocar para ela, como fiz antes. Tenho a vossa permissão para ir?

Herluin estava bastante distraído a pensar no jantar que se avizinhava, e na organização dos argumentos do caso de Santa Winifred. Não tinha sido avisado de quaisquer suspeitas desagradáveis, nem da ameaça de uma testemunha ocular que viria fazer o seu depoimento nessa mesma noite. Tutilo obteve a sua autorização com uma facilidade quase indiferente. Saiu pela casa do porteiro, abertamente, e seguiu pela estrada ao longo de Foregate, para o caso de alguém reparar e verificar que ele tinha partido na direcção certa. Não ia longe, de maneira nenhuma para Longner, mas queria afastar-se o suficiente para estar ausente quando o perigo imediato o ameaçasse. Não era simplório a ponto de pensar que o perigo terminaria quando Aldhelm voltasse para casa, frustrado, mas teria de resolver o que se seguisse quando chegasse o momento. O mal daquele dia já era suficiente, e ele tinha bastante confiança no seu engenho.

A notícia de que o pássaro que desejava com toda a sua força enredar tinha fugido para uma distância segura chegou aos ouvidos do irmão Jerome por caminhos tortuosos. Ficou doente de raiva. Claramente, não ia ser feita justiça, nem mesmo no céu. O diabo estava a cuidar muito eficazmente dos seus.

Devia ter adoecido com o seu próprio veneno, pois desapareceu no resto da noite. Não pode dizer-se que a sua ausência foi sentida. O prior Robert só estava consciente da sua sombra quando tinha alguma tarefa para ele fazer, ou necessitava da sua presença obsequiosa para restaurar o equilíbrio quando alguém tinha conseguido arranhar a sua dignidade de prior. A maior parte dos irmãos estavam demasiado conscientes dele, mas na sua ausência descontraíram, deram graças e esqueceram-no; e os noviços e os alunos da escola evitavam a todo o custo estar perto dele, sempre que possível. Só na hora das Completas o seu não aparecimento causou surpresa, comentários e por fim inquietação, pois, por muitos defeitos que pudesse ter, era inflexível no cumprimento dos seus deveres. O sub-prior Robert, uma alma bondosa até para com aqueles de quem não gostava especialmente, ficou ansioso, foi procurar a ovelha tresmalhada, e encontrou-o na sua cama no dormitório, pálido e a tremer, a dizer que estava doente e com um aspecto atormentado, pálido e frio.

Uma vez que ele tinha tendência para ser dispéptico nas melhores alturas, ninguém ficou muito surpreendido, excepto, talvez, com a gravidade do ataque. O irmão Cadfael levou-lhe uma bebida quente, e um remédio para acalmar o estômago, e deixaram-no sossegado para que pudesse dormir.

Essa foi a última sensação moderada do serão, pois a última, ainda para vir, não poderia certamente ser descrita como moderada, e ocorreu pouco depois da meia-noite. A meia hora que se seguiu às Completas pareceu declinar para um anticlímax total. Pois o jovem da casa senhorial de Upton, a testemunha ansiosamente aguardada que iria, por fim, desvendar a verdade, não apareceu.

Os hóspedes do abade dispersaram decorosamente. Rémy e o conde Robert em amistosa companhia para a ala de hóspedes, onde Bénezet já tinha regressado do serão na cidade, a tempo de ajudar o patrão, e os dois escudeiros do conde estavam preparados e à espera do seu senhor. Daalny estava a sacudir e a pentear os cabelos pretos longos e compridos nos aposentos das senhoras, e a escutar a tagarelice da viúva de um mercador de Wem, que aproveitara uma noite de hospedagem na abadia a caminho de Wenlock, para o parto da filha. Tudo no interior das paredes estava a preparar-se para o sono.

Mas Aldhelm não veio. E Tutilo também não regressou da visita à senhora de Longner.

Como a ordem das práticas religiosas era imutável, independentemente de quem estivesse doente ou ausente, a campainha para as Matinas soou no dormitório como acontecia sempre à meia-noite, e os irmãos levantaram-se e desceram sonolentamente as escadas nocturnas para a igreja. Cadfael, que conseguia dormir ou acordar consoante a sua vontade, sentira sempre a sonolência especial dos serviços nocturnos, e a vastidão carregada da abóbada escurecida, onde o candelabro descia e desaparecia em distâncias sublimes que podiam ou não estender-se até ao infinito. Também o silêncio tinha uma dimensão acrescida de silêncio cósmico nas horas da meia-noite, e cada ruído que perturbava os sons ordeiros da adoração parecia provocar trepidação nas fundações da terra. "Assim", pensou, na pausa para meditação e oração entre as Matinas e as Laudes, quando ouviu o chiar abafado e breve dos gonzos da porta sul do claustro. A sua audição era mais apurada do que a da maior parte dos presentes, e ainda não estava deteriorada pelos anos; provavelmente, poucos dos outros tinham ouvido. No entanto, alguém tinha entrado por aquela porta, muito devagar, e estava agora imóvel do lado de dentro, sem saber se devia avançar para o coro e interromper o segundo serviço do dia. E, momentos depois, uma voz daquele canto, baixa e pouco clara, juntou-se muito suavemente aos responsos.

Quando se levantaram dos bancos depois das Laudes, e se aproximaram das escadas nocturnas para voltarem para as suas camas, uma figura pequena, de hábito, que se encontrava de joelhos levantou-se para os enfrentar, e colocou-se muito cuidadosamente na luz que havia, mas com resignada resolução, como alguém que esperava uma recepção gelada, mas estava decidido a suportá-la e sobreviver a ela. O hábito de Tutilo brilhava na altura dos ombros com a chuva fina e silenciosa de Primavera, que começara a cair a meio da tarde, os seus caracóis estavam húmidos e emaranhados, e a mão que passou pela cabeça para os pentear para trás deixou uma mancha escura. Os seus olhos estavam muito abertos e a espreitar de uma concha apática de choque e o seu rosto, onde a mão não o tinha tocado, estava muito pálido.

Ao vê-lo, Herluin, que estava ao lado do prior Robert, começou a avançar com uma exclamação áspera e explosiva de exasperação, ira e desnorteamento, mas antes de poder recuperar o fôlego e vociferar as enraivecidas censuras que indubitavelmente pretendia dizer, Tutilo conseguiu encontrar palavras, poucas e enérgicas, para se adiantar a qualquer outra elocução.

- Padre, lamento chegar tão tarde, mas não tive alternativa. Era vital ir primeiro à cidade, ao castelo, onde a notícia devia ser dada em primeiro lugar, e foi o que fiz. Padre, quando voltava para casa, no caminho da barcaça e pelos bosques, encontrei um homem morto. Assassinado... Padre - disse ele, mostrando a mão que tinha passado pela testa. - Falo do que sei, do que ficou claro mesmo na noite escura. Toquei-lhe... a sua cabeça está desfeita!

 

                                       Capítulo Seis

Quando viu as mãos à luz, estremeceu e afastou-as de si, para evitar que elas tocassem em qualquer outra parte da sua pessoa ou hábito, pois a direita estava tingida com sangue seco na palma e entre os dedos, e os dedos da esquerda estavam manchados nas pontas, como se tivessem tocado em roupas manchadas. Não quis nem conseguiu pormenorizar a notícia antes de se lavar, e torcia uma mão na outra como se quisesse arrancar a sua pele conspurcada juntamente com o sangue. Quando, por fim, ficou a sós nos aposentos do abade com Radulfus, o prior Robert, Herluin e o irmão Cadfael, cuja presença o próprio Tutilo solicitou, começou a contar a sua história sem artifícios.

- Eu voltava pelo carreiro da barcaça, pelo bosque, e tropecei nele no local onde as árvores são mais densas. Ele jazia com as pernas atravessadas no caminho, e eu caí de joelhos ao lado dele. Estava escuro como breu, mas é possível seguir o carreiro pela ténue linha de céu entre os ramos. Mas no chão não se vê nada a não ser escuridão. Apalpei à minha volta, e senti a rótula de um joelho, e tecido. Pensei que ele estava embriagado, mas ele não proferiu nenhum som e não se mexeu. Tacteei da coxa até à anca, e inclinei-me mais para ele onde julguei que estava o seu rosto, mas nunca ouvi uma respiração nem um sinal de vida. Deus me ajude, pus a mão na ruína da sua cabeça, e depois percebi que ele estava morto. E não por acidente! Senti o osso esmagado.

- Fazes alguma ideia de quem poderá ser esse homem? - perguntou o abade, num tom de voz baixo e suave.

- Não, Padre. Estava escuro de mais. Não havia maneira de saber, sem archote ou lanterna. E, inicialmente, fiquei completamente transtornado. Mas depois pensei que era um assunto para o xerife, e que a Igreja se mantém longe de todos os casos de derramamento de sangue. Por isso, fui para a cidade, e contei o que tinha acontecido no castelo, e o senhor Beringar colocou um guarda no local até o dia nascer. O que eu podia dizer, disse, e o resto tem de esperar pela luz do dia. E, Padre, ele pediu... o senhor xerife pediu... para que informásseis também o irmão Cadfael, e quando a manhã chegar, se permitirdes, eu devo levá-lo ao local, para nos encontrarmos ali com o xerife. Foi por isso que pedi que ele assistisse a esta conversa. E de bom grado mostrarei o local amanhã, e, se ele tiver alguma pergunta para me fazer agora, responderei o melhor que souber. Pois ele disse... Hugh Beringar disse... que o irmão Cadfael entende de feridas, pois foi um homem de armas durante muitos anos.

Nessa altura já estava quase sem fôlego e esgotado, mas soltou um suspiro profundo por ter tirado o peso dos ombros.

- Se o local está guardado - disse Cadfael, fitando o olhar inquisidor do abade -, o que quer que tenha para nos dizer poderá esperar até o dia nascer. Penso que talvez seja preferível não especularmos antecipadamente. É capaz de ser muito fácil seguirmos por um caminho errado. Só te perguntaria, Tutilo, a que horas saíste de Longner?

Tutilo começou a tremer, e levou um momento inesperadamente longo a pensar antes de responder:

- Era tarde, já passava das Completas, quando voltei.

- E não encontraste ninguém no caminho de regresso?

- Não deste lado da barcaça.

- Eu penso - disse Radulfus - que devíamos esperar, e não falar sobre o assunto até o local ter sido examinado à luz do dia, e a alma infeliz ser conhecida. Agora, basta! Vai para a tua cama, Tutilo, e que Deus te dê a graça do sono. Quando nos levantarmos para a Prima, então será tempo para ver e considerar, antes de tentarmos interpretar.

"Mas apesar de tudo isso", pensou Cadfael, de novo na sua cama mas sem vontade de dormir, "quantos de nós cinco, um que falou e quatro que ouvimos, fecharão um olho de novo esta noite? E dos três de nós que sabíamos que vinha um jovem a caminho da abadia por aquele carreiro durante a noite, quantos deram já o salto em frente para dar um nome a esta vítima anónima, e começaram a ver certas razões que tornariam conveniente para alguém que ele nunca chegasse até nós? Radulfus? Não lhe escaparia uma possibilidade tão simples, mas podia e iria refrear-se de a considerar e de a aprofundar antes de se saber mais. O prior Robert? Bem, justiça lhe seja feita, o prior Robert quase não disse uma palavra hoje, esperará até ter provas antes de acusar qualquer homem, mas é suficientemente inteligente para juntar todos estes pequenos nadas e fazer alguma coisa deles. E eu? Deve ter sido a pensar tanto em mim como em qualquer outro que fiz aquele aviso: pode ser muito fácil seguir um caminho errado! E Deus sabe que, uma vez seguido, é demasiado difícil voltar para trás e procurar de novo a pista que nos escapou."

"Vejamos, então, o que temos: Aldhelm... Deus queira que neste momento esteja em casa, esquecido e profundamente adormecido!... devia vir identificar o seu homem ontem à noite. Os irmãos não tinham sido informados, apenas Radulfus, o prior Robert, Hugh e eu sabíamos, e podemos esquecer o rapaz de Cynric, que faz os recados fielmente, mas quase não compreende a natureza do que diz, e esquece a sua missão logo que esta terminou e ele foi recompensado. Herluin não foi informado, e tenho a certeza de que não sabia. E, que eu saiba, Tutilo também não. porém, é estranho que nessa mesma noite Tutilo tenha sido mandado chamar a Longner. Teria sido chamado? Isso poderá ser confirmado ou refutado, não é problemático. Digamos que, de alguma maneira, soube da vinda de Aldhelm, embora ao fugir estivesse apenas a adiar o reconhecimento, não a evitá-lo, pois teria de acabar por reaparecer. Sim, mas digamos que ele reaparecia, e Aldhelm nunca aparecia. Não apenas nessa noite, mas nunca."

Pormenor atrás de pormenor edificaram-se numa possibilidade formidável, na qual, no entanto, não acreditava. Era melhor adiar as reflexões até ter visto pessoalmente o lugar onde o crime tinha sido cometido, e a vítima que o tinha sofrido.

A luz do princípio da manhã, filtrada de má vontade entre as árvores quase nuas e entre a amálgama de vegetação rasteira, chegava muito ténue à tira estreita do carreiro, uma tira de um castanho húmido de folhas em putrefacção e afloramentos ocasionais de pedra, riscadas com sombras como os degraus de uma escada onde as árvores velhas tinham deixado os troncos espaçados e finos. O sol ainda não estava acima dos bancos de nuvens a este, e a luz era incolor e amorfa devido à chuva fina da noite, mas suficientemente clara para mostrar o que tinha feito Tutilo cair de joelhos na escuridão, e no entanto não pudera ser visto.

O corpo estava atravessado diagonalmente no carreiro, como ele tinha dito, não completamente estendido, com o rosto e o peito para baixo, antes apoiado sobre o ombro direito, mas com o braço direito atirado para trás, e o esquerdo estendido ao lado do corpo, solto das pregas da tosca capa com capuz que ele usava. O capuz tinha deslizado da cabeça quando ele caíra, e estava amontoado no pescoço. Tinha caído e jazia com a face direita colada às folhas molhadas. O lado esquerdo da cabeça, que estava à vista, era uma massa deformada de sangue seco, uma crosta escura, a ruína em que Tutilo tinha tocado à noite, e que lhe tinha provocado uma agonia de horror.

Agora parecia bastante controlado, mantendo-se um pouco afastado junto à orla de arbustos, a olhar com firmeza para o que a noite lhe tinha escondido, com as pálpebras um pouco descidas sobre o dourado intenso dos olhos, e a boca muito apertada, a única traição do esforço com que ele mantinha a sua imobilidade e calma. Levantara-se muito cedo, de uma cama onde provavelmente não chegara a dormir, e indicara o caminho para aquele local no meio da zona mais densa do bosque sem uma única palavra para além da saudação sussurrada da manhã, e da resposta obediente a algum comentário que lhe fosse dirigido. Não era de admirar, se o seu relato fosse verdadeiro, e seria ainda menos surpreendente se estivesse a ser obrigado a voltar a um local sobre o qual tinha mentido; mentido à lei, mentido aos seus superiores na Ordem que ele tinha escolhido de livre vontade.

No chão, encostado à terra, o rosto, pelo menos a maior parte, estava intacto. Cadfael ajoelhou-se junto à cabeça esborrachada e fez deslizar suavemente uma mão sob a face direita, para voltar o rosto um pouco para cima para ser visto.

- Podes dar-lhe um nome? - perguntou Hugh, de pé ao lado dele. A questão foi dirigida a Tutilo, e não podia ser evitada; mas não houve qualquer tentativa de fuga. Tutilo disse de imediato, num tom de voz calmo e ponderado:

- Não sei o seu nome.

Surpreendente, mas quase de certeza verdade; aqueles poucos momentos no final de uma tarde caótica nunca tinham permitido a utilização de nomes. Ele tinha sido tão anónimo para Aldhelm como Aldhelm fora para ele.

- Mas conheces o homem?

- Já o vi - disse Tutilo. - Ele ajudou-nos quando a igreja ficou inundada.

- Chama-se Aldhelm - disse Cadfael em voz baixa, e levantou-se, deixando o rosto sujo afundar-se novamente na cama de folhas. - Vinha ter connosco a noite passada, mas nunca chegou à abadia. - Se o rapaz não sabia antes, que fosse dito agora. Ele escutou e não esboçou qualquer reacção. Tinha-se fechado em si mesmo, e não ia ser fácil voltar a trazê-lo para o exterior.

- Bem, vejamos o que há para ver - disse Hugh sem preâmbulos, e voltou as costas à figura magra e submissa que se mantinha tão cautelosamente à parte do acontecimento que ele próprio tinha comunicado. - Ele percorria este carreiro vindo da barcaça, e foi atacado ao passar aqui. Vede como caiu! Uma jarda ou mais para trás... aqui, onde a vegetação é espessa, alguém lhe bateu por detrás e para a esquerda... aqui, no lado esquerdo do carreiro, numa emboscada.

- Assim parece - declarou Cadfael, e observou os arbustos que se amontoavam junto ao carreiro. - A sua passagem provocaria um ruído suficiente entre a folhagem para esconder o movimento súbito de outro homem no meio dos ramos. Caiu exactamente na posição em que se encontra agora. Vês algum sinal, Hugh, de que ele tenha voltado a mexer-se? - Pois o chão em volta, com a sua camada de folhas caídas no último Outono ensopadas e pisadas numa polpa macia, não evidenciava qualquer perturbação, e estava húmido, escuro e liso, sem marcas de quaisquer convulsões de pés ou braços, nem de passos do atacante à volta da sua vítima.

- Enquanto ele estava atordoado - disse Hugh -, o trabalho foi concluído. Não houve luta, nem defesa.

Num tom de voz inseguro e abafado, Tutilo aventurou, da protecção sombria do seu capuz:

- Estava a chover.

- Pois estava - disse Cadfael. - Não me esqueci disso. Ele devia ter o capuz na cabeça. Isto... foi feito mais tarde, quando ele estava caído.

O rapaz continuou imóvel, a olhar para o cadáver. Apenas a curva subtil de um maxilar e as pálpebras descidas e uma ponta de sobrancelha se viam nas sombras do capuz. Havia lágrimas nas pestanas compridas, efeminadas.

- Posso tapar-lhe o rosto, Irmão?

- Ainda não - respondeu Cadfael. - Preciso de o observar mais minuciosamente antes de o levarmos connosco. - Dois dos sargentos de Hugh esperavam impassivelmente no carreiro, com uma padiola para o transportar para o castelo ou para a abadia, consoante as ordens de Hugh. Da sua distância judiciosa, observavam em silêncio, com um interesse relativo. Já tinham visto mortes violentas antes.

- Faz o que for preciso - disse Hugh. - A moca ou bastão que foi usado para o crime foi seguramente levado com o homem que o usou, mas se o cadáver do pobre infeliz puder dizer-nos alguma coisa, vamos descobrir antes de o removermos.

Cadfael ajoelhou-se atrás dos ombros do homem morto, e olhou de perto para a ferida indentada, em que pontos brancos de osso se viam no meio do sangue seco. O crânio estava partido acima e abaixo da têmpora esquerda, com o que parecia ter sido um único golpe, embora não pudesse ter a certeza. Um bastão com um cabo pesado e arredondado podia ter feito aquele tipo de estragos, mas a cratera que abrira era francamente grande, e denteada, não regular. Cadfael pegou cuidadosamente na ponta do capuz, e virou-o no pulso. Tinha uma costura na parte de trás, e ao passar as pontas dos dedos pelo tecido encontrou uma pequena parte a meio que estava peganhenta e a endurecer, e tirou os dedos manchados de sangue. Muito pouco sangue, seguramente do primeiro golpe que derrubara a vítima através do capuz e tudo. E isto era na nuca, e apenas a parte central da ferida tinha algum sangue. Endireitou as pregas, e passou os dedos pela cabeleira de espessos cabelos castanho-avermelhados do jovem morto, desde a testa até à curvatura da nuca, onde aquela costura ajudara seguramente a quebrar a força do golpe. Encontrou uma escoriação que tinha vertido uma pequena crosta de sangue nos cabelos grossos e que estava quase seca. Ali, o crânio não estava partido por baixo da pele.

- O golpe que o derrubou não foi muito forte - disse Cadfael. - não poderia tê-lo deixado inconsciente durante muito tempo, se não lhe tivessem feito mais nada. O que foi feito depois, foi feito rapidamente, antes de ele poder recuperar os sentidos. Ele nunca teria morrido disto. E, no entanto, o que se seguiu foi frio, deliberado e final. Um homem embriagado numa rixa podia ter feito isto.

- Cumpriu a sua finalidade - disse Hugh sombriamente. - Deixou-o à mercê do inimigo. Sem pressa! Teve tempo de sobra para avaliar a situação e terminar o trabalho.

Cadfael endireitou as pregas duras do capuz, e sacudiu alguns fragmentos com aspecto de penugem que se encontravam no meio delas. Esfregou-os nas palmas das mãos, lascas de madeira seca e apodrecida. Sem dúvida que haveria muita naquela mata crescida e não tratada, mesmo depois de ter sido desbastada para o lume pelos rapazinhos de Foregate. Mas por que estavam no capuz de Aldhelm? Passou as mãos pelos ombros da capa, e não encontrou mais daquelas lascas minúsculas. Ergueu a ponta do capuz, e pousou-o suavemente sobre a cabeça esmagada, escondendo o rosto. Atrás de si sentiu, mais do que ouviu, a inspiração profunda de Tutilo, e sentiu o estremecimento que o atravessou.

- Esperai mais alguns momentos. Vejamos se o assassino deixou alguma pista, se ficou aqui durante algum tempo à espera do seu homem. - Pois ali estava o melhor esconderijo em todo o caminho desde a barcaça até Foregate. Recordou-se de que o caminho tinha duas bifurcações, separando-o quando descia da crista de vegetação rasteira fronteira ao rio. Uma parte do caminho ia directamente para a Feira dos Cavalos, a outra, aquela em que se encontravam, desembocava a meio de Foregate, quase à vista da casa do porteiro da abadia. Devia ter sido por esta que Tutilo partira para Longner, e fora por esta que regressara, para tropeçar naquela terrível descoberta pelo caminho. Se, é claro, ele tinha estado mais perto de Longner, nessa noite, do que aquele lugar desastroso.

Cadfael recuou para medir de novo o ângulo em que o cadáver jazia, e os poucos passos atrás do caminho onde o atacante devia ter estado escondido. Vegetação espessa, a estalar com ramos e galhos secos e com lenha morta no meio; procurou pontas partidas, e encontrou-as.

- Aqui! - Avançou lateralmente pela cortina de arbustos, para um espaço estreito entre as árvores, onde crescia uma erva fina, salpicada de folhas mortas e a brilhar com a chuva nocturna. Piso macio, muito pisado há poucas horas por pés inquietos e sempre a mexer-se incessantemente. Nada mais, com excepção de um ramo partido atirado para detrás dos arbustos, e ao lado dele a mancha na erva que indicava o local onde estivera antes. Cadfael debruçou-se e pegou nele, e a extremidade mais grossa, partida e pendurada, libertou restos flutuantes de flocos quando ele a agarrou. Suficientemente grosso e suficientemente pesado, mas quebradiço.

- Foi aqui que ele esperou. Durante algum tempo, a avaliar pela forma como pisou a erva. E isto, foi a arma que arranjou. Foi com isto que desferiu o primeiro golpe, e partiu-o com a pancada.

Hugh olhou para o ramo, e mordeu o lábio, pensativo.

- Mas não o segundo golpe, seguramente. Não com isto! Ter-se-ia desfeito em lascas muito antes de causar aqueles estragos.

- Não, ele atirou o pau para os arbustos quando este se partiu na sua mão. E procurou rapidamente algo mais letal? Pois é claro que, se alguma vez pensou fazer isto, veio sem nenhuma arma. - "Talvez até tenha vindo sem a intenção de matar", pensou Cadfael, e deu mais um passo, "uma vez que não vinha preparado." - Esperai! Vejamos o que se oferecia.

Pois a arma, fosse ela qual fosse, não poderia ter sido encontrada longe, não houvera tempo para isso. Alguns minutos, e Aldhelm estaria a acordar e a levantar-se. Cadfael começou a subir a colina ao longo da berma do carreiro, a espreitar para os arbustos, e depois desceu pelo outro lado. Aqui e ali, a pedra calcária que emergia da urze e da erva mais acima rasgava a erva e o húmus com manchas pedregosas, que se abriram por vezes em pequenos seixos partidos, aninhados na turfa e no musgo. Cadfael desceu algumas jardas da colina. O atacante tinha-se escondido do lado esquerdo do caminho, por isso procurou primeiro daquele lado. Alguns passos abaixo do lugar onde o corpo jazia, e cerca de uma jarda para o interior dos arbustos, havia um monte de pedras soltas no meio das quais crescia erva e líquen, e que aparentemente não eram mexidas há um ano ou mais; até algo no contorno claro da pedra de cima o fazer olhar com mais atenção. Não estava presa à de baixo por um bom enchimento de terra e pelas ervas que prendiam todas as outras, embora estivesse alinhada com precisão para preencher o espaço que, seguramente, tinha ocupado durante um ano ou mais. Cadfael inclinou-se e pegou-lhe com ambas as mãos, e ergueu-a, e ela saiu do lugar onde estivera sem um rasto de erva nem uma ponta de musgo. Isto porque já tinha sido desenraizada e recolocada durante a noite.

- Não - disse Cadfael, em voz baixa, apenas para si -, eu não esperava uma coisa destas. Nunca pensei que encontraríamos uma mente tão perversa.

- Isto? - disse Hugh, observando a pedra atentamente. Era grande e pesada, e eram precisas duas mãos para a suportar.

Por cima estava lisa da exposição, por baixo continha líquen e musgo; mas quando Cadfael a virou do outro lado era tosca e clara, e algumas pontas estavam sujas com uma crosta escura, que ainda não tinha secado. - Aquilo é sangue - declarou Hugh, sem qualquer dúvida.

- Aquilo é sangue - corroborou Cadfael. - Depois de cometido o crime, já não havia pressa. Ele teve tempo para pensar, e raciocinar. Tudo frio, frio e deliberado. Voltou a colocar a pedra onde a encontrara, cuidadosamente alinhada. As raízes pequenas e destruídas que a tinham prendido não pôde repará-las, mas quem repararia numa coisa dessas? Agora fizemos tudo o que havia a fazer aqui, Hugh. Só nos falta reunir as peças e pensar que tipo de homem pode ser este.

- Podemos levar o pobre desgraçado? - perguntou Hugh.

- Posso levá-lo para casa, para a abadia? Gostaria de o observar mais uma vez, e mais atentamente. Creio que ele vivia sozinho, sem família. Falaremos com o seu padre em Upton. E esta pedra... - Era pesada para ele, soube-lhe bem pousá-la durante algum tempo. - Leva-a com ele.

E durante todo aquele tempo o rapaz estivera por perto, calado, mas a escutar todas as palavras que eram ditas à sua volta. As lágrimas nas suas pestanas, que tinham brilhado com os primeiros raios do sol nascente, estavam agora secas, e a boca estava fechada numa linha rígida. Quando os homens de Hugh ergueram o corpo de Aldhelm para a padiola, e seguiram pelo carreiro em direcção a Foregate, Tutilo integrou-se na pequena procissão triste como um enlutado, e percorreu todo o caminho ém silêncio com eles, sem tirar os olhos do corpo amortalhado. ( - Ele não se vai embora? – perguntou Hugh ao ouvido de Cadfael, enquanto caminhavam.

- Ele não se vai embora. Eu tratarei disso. Ele tem um superior difícil para servir, e não tem outro lugar para onde ir.

- E que pensas dele?

- Não me atrevo a analisá-lo - disse Cadfael. - Ele escorrega-me por entre os dedos. Mas tempos houve em que dizia o mesmo de ti - acrescentou, e achou graça quando ouviu Hugh rir, embora apenas por breves instantes e muito baixo. - Eu sei! Foi mútuo. Mas vê como acabaram as coisas.

- Ele veio contar-me a história imediatamente - disse Hugh, a raciocinar em voz baixa para ser ouvido apenas por Cadfael.

Parecia muito abalado e chocado, mas lúcido. Não perdeu tempo, o corpo ainda estava quente, só não respirava, por isso deixámos tudo como estava até o dia nascer. Este rapaz comportou-se como um homem que se tivesse deparado inesperadamente com o cadáver de um homem assassinado. Melhor, talvez, do que a maioria teria conseguido.

- Que pode ser a medida da sua qualidade - disse Cadfael com firmeza -, ou da sua astúcia. É válido para uma hipótese e para a outra. E quem poderá distinguir?

- Não é frequente - disse Hugh com um sorriso pesaroso - eu ter de te ouvir a fazer o papel de advogado do diabo, quando se trata de um jovem em sarilhos. Bom, mantém-no sob a tua custódia, e nós empregaremos o nosso tempo a decidir se o condenamos ou absolvemos.

O corpo de Aldhelm estava na capela mortuária, no seu ataúde, com as pernas esticadas, o corpo composto, os olhos fechados, amortalhado e indiferente, depois de ter dito tudo o que Cadfael conseguiu induzi-lo a dizer. Nem todos os fragmentos claros na testa esmagada se tinham revelado pedaços de osso. Havia bastantes fragmentos de pedra calcária e salpicos de pó para provar uma vez mais a utilização que tinha sido dada à pedra. Um pano de linho estava enrolado no rosto do jovem. Junto ao peito dele, Cadfael e Tutilo confrontaram-se.

O rapaz estava muito pálido, e abatido de exaustão. Cadfael tinha-o mantido deliberadamente consigo, quando Hugh saíra para relatar ao abade Radulfus o que fora encontrado e o que havia sido feito. Sempre mudo, Tutilo fora buscar e transportara água e panos, fora buscar velas e acendera-as, suportando de boa vontade a presença da morte. Agora não havia mais nada para fazer, e ele estava imóvel.

- Compreendes - disse Cadfael, fitando os olhos cansados, de um dourado profundo mesmo à luz das velas - por que é que este homem vinha para cá? Sabes que o que talvez... segundo ele próprio garantira... pudesse dizer, quando visse todos os irmãos da Ordem, aqui nesta casa?

Os lábios de Tutilo moveram-se, dizendo quase sem um som:

- Sim, sei.

- Sabes de que forma o relicário de Santa Winifred foi levado daqui.

Isso é agora do conhecimento de todos os homens. Sabes que havia um irmão da Ordem que conspirou para a sua partida e pediu a Aldhelm que o ajudasse. E que se pretendia que ela chegasse a Ramsey, não que se perdesse no caminho. Achas que a justiça procurará entre os irmãos de Shrewsbury, de quem ela foi roubada? Ou antes entre os dois da casa que ficava a ganhar? E um em especial?

Tutilo enfrentou-o com olhos firmes, mas não proferiu uma única palavra.

- E aqui jaz Aldhelm, que poderia ter dado um rosto e um nome a esse irmão, sem qualquer sombra de dúvida. O problema é que já não tem uma voz para falar. E tu estavas fora, na mesma estrada, na estrada para a barcaça, para Preston, por onde ele viria, e para Longner, onde havias sido chamado, quando ele morreu.

Tutilo não confirmou nem negou.

- Filho - disse Cadfael -, sabes, não é verdade, o que vai ser dito?

- Sim - confirmou Tutilo, abrindo por fim os lábios. - Sei.

- Será dito e aceite como verdade que ficaste à espera de Aldhelm e o mataste, para que ele nunca pudesse apontar-te um dedo.

Tutilo não protestou dizendo que fora ele a comunicar o crime, a chamar as autoridades, a desencadear a caça ao assassino. Desviou os olhos por alguns instantes para o rosto coberto de Aldhelm, e ergueu-os de novo para fitar frontalmente os olhos de Cadfael.

- Mas - disse ele por fim - não será dito. Não poderão dizer isso. Pois eu irei ter com o senhor abade e com o padre Herluin, e contarei o que fiz. Não será preciso ninguém a não ser eu próprio para me apontar o dedo. Responderei pelo que fiz, más não por um crime que não cometi.

- Criança - disse Cadfael, após um silêncio prolongado e pensativo -, não te enganes pensando que isso calará todas as bocas. Não faltarão aqueles que dirão que avaliaste as tuas hipóteses, sabendo que já eras suspeito, e de dois males escolhestes o menor. Quem não preferiria responder a roubo e fraude dentro da alçada da Igreja, a arriscar o pescoço no nariz do xerife por homicídio? Quer fales quer mantenhas silêncio, não terás um caminho fácil à tua frente.

- Não importa! - disse Tutilo. - Se mereço penitência, que ela caia sobre mim. Quer seja castigado ou fique livre, seja qual for o custo, não deixarei que se diga que matei um homem decente para o impedir de me acusar. E se mesmo assim continuarem a deturpar as coisas para a minha desonra, que mais posso fazer? Ajudai-me a chegar à presença do senhor abade, irmão Cadfael! Se pedirdes uma audiência para mim, ele ouvir-me-á. Perguntai se o padre Herluin poderá estar presente, agora, enquanto o xerife está cá. Não pode esperar até ao cabido de amanhã.

Ele tinha tomado uma decisão, e de repente estava ansioso para pô-la em prática: e, na opinião de Cadfael, era o melhor caminho que ele podia seguir. A verdade, se é que podia prever-se a verdade nesta criatura subtil, mesmo em circunstâncias de desespero, podia lançar luz em mais do que uma direcção.

- Se é verdadeiramente o que queres - disse ele. - Mas cuidado para não te defenderes antes de te acusarem. Diz o que tens para dizer, sem exclamações, e o abade Radulfus escutará, isso posso prometer-te.

Gostaria de poder dizer sinceramente o mesmo em relação ao sub-prior Herluin. E Tutilo talvez estivesse a desejar o mesmo, pois de repente, no meio da sua mais solene determinação, torceu a boca num sorriso seco e apreensivo, que desapareceu num instante.

- Vinde comigo agora - disse.

Na sala de visitas do abade, Tutilo teve uma audiência maior do que Cadfael tinha pedido, mas não se opôs, ou pelo menos assim pareceu, talvez porque atenuaria a recepção gelada que podia esperar de Herluin. Hugh ainda se encontrava lá, e era bastante natural que o conde Robert fosse chamado para a conversa por uma questão de cortesia, já que estava em causa a lei da terra e o decreto do rei Stephen. Herluin estava presente a pedido de Tutilo, uma vez que, no fundo, não podia evitar, e o prior Robert não seria ignorado se Herluin fosse admitido. Era preferível confrontá-los a todos, e deixá-los pensarem o que quisessem.

- Padre Abade... Padre Herluin... senhores... - Tutilo ocupou firmemente o seu lugar, juntou as mãos e olhou para cada um deles, como se estivesse a observar um painel de juizes. - Tenho de dizer que já devia ter-vos contado isto, uma vez que está relacionado com o assunto que nos interessa agora a todos os que estamos aqui. É sabido que o relicário de Santa Winifred foi levado na carroça que foi carregada com a madeira para Ramsey, mas ninguém demonstrou como isto aconteceu. A coisa foi feita por mim. Confesso. Retirei o relicário do seu altar, depois de ele ter sido bem embrulhado - para que a sua remoção para um lugar mais elevado se fizesse em segurança. Coloquei um tronco em bom estado no seu lugar, para que fosse levado pelas escadas. E à noite pedi a um dos jovens que estavam a ajudar-nos, um que tinha vindo com os carroceiros, para me ajudar a carregar a santa para a carroça, para que fosse para Ramsey para ajudar e socorrer a nossa casa maltratada. Esta é toda a verdade. Ninguém esteve envolvido a não ser eu. Não investigueis mais, porque eu estou aqui para declarar o que fiz, e para defender o meu acto.

Herluin tinha aberto a boca e inspirara profundamente para atropelar o seu presunçoso noviço com a torrente de palavras indignadas, mas depois conteve a respiração antes de o abade o impedir de falar com uma mão peremptória. Pois insultar aquele rapaz perturbado naquele momento seria prejudicar qualquer pretensão que Ramsey pudesse ter à disputa pela qual o arrojado infeliz tivera um gesto tão perigoso. Que não poderia uma santa milagreira fazer pela glória futura de Ramsey? E o assunto ainda estava muito vivo, pois ali ao seu lado, a escutar atentamente e com um pequeno sorriso, encontrava-se o conde de Leicester, que, quer a sério ou por brincadeira, estava a reclamar o mesmo trofeu. Não, não devia dizer nada ainda, não antes de as coisas ficarem mais claras. Tinha de deixar as opções em aberto. Tinha de se inclinar graciosamente perante o gesto de contenção do abade Radulfus, e de manter a boca fechada.

- Fazes bem, pelo menos, em confessar - declarou Radulfus brandamente. - Como nos informaste a noite passada, e o senhor xerife nos confirmou subsequentemente, para nossa infinita pena, e seguramente para a tua, o jovem que iludiste está agora morto, aqui no interior das nossas paredes, e estará ao nosso cuidado para os ritos que lhe são devidos. Teria sido melhor, não teria, se tivesses falado antes, e lhe tivesses poupado a viagem que foi a sua morte?

A pouca cor que havia no rosto de Tutilo exauriu-se lentamente e deixou-o pálido e mudo. Quando conseguiu fazer as cordas vocais tensas falar, disse num suspiro rouco:

- Padre, a culpa é minha. Mas eu não podia saber! Mesmo agora, não consigo compreender!

Ao pensar no assunto mais tarde, Cadfael chegou à conclusão de que fora naquele momento que tivera a certeza de que Tutilo não tinha assassinado, que nunca lhe tinha passado pela cabeça que o seu delito estivesse a colocar outra alma em perigo de vida.

- O que está feito, está feito - disse o abade neutralmente. - Falas em defender o teu acto. Se achas que é defensável, continua. Estamos aqui para escutar.

Tutilo engoliu em seco, e recobrou forças, endireitando os ombros bem modelados.

- Padre, aquilo que não posso justificar suficientemente posso pelo menos explicar. Vim para cá com o padre Herluin, a chorar os tormentos de Ramsey, e a sonhar fazer algo grandioso para beneficiar a restauração da nossa casa. Ouvi falar nos milagres de Santa Winifred, e nos muitos peregrinos e ricas oferendas que ela trouxe a Shrewsbury, e desejei encontrar uma padroeira que desse vida nova a Ramsey. Rezei para que ela intercedesse por nós, e nos mostrasse a sua graça, e ocorreu-me que ela me ouvira, e que queria fazer-nos bem. Pareceu-me, Padre, que ela estava interessada em nós, e desejava visitar-nos. E comecei a sentir com muita intensidade que tinha de lhe fazer a vontade.

A cor tinha-lhe voltado às faces, queimando os ossos salientes, um pouco agitado, um pouco febril. Cadfael observou-o e ficou em dúvida. Tinha-se convencido, ou conseguia provocar esse êxtase quando queria para convencer outros? Ou, como qualquer outro pecador humano, estava a construir desesperadamente uma armadura de simplicidade sobre as suas astúcias perversas? O pecador detectado pode imaginar todos os géneros de véus para cobrir a sua nudez.

- Eu planeei e fiz o que já vos contei - disse Tutilo, inesperadamente conciso e seco. - Senti que não estava a fazer mal. Acreditei que estava a seguir ordens, e obedeci fielmente. Mas lamento amargamente ter precisado da ajuda de outro homem sem que ele soubesse o que estava a fazer.

- Na ignorância - disse o abade - do perigo que corria.

- Reconheço isso - disse Tutilo, muito direito e com os olhos muito abertos. - Lamento. Deus me perdoe o que fiz!

- Em devido tempo - disse Radulfus, com um interesse perseverante - Ele poderá perdoar. Não nos compete imiscuir-mo-nos nisso. Quanto a nós, temos a nossa história, temos uma santa que voltou para nós de uma forma estranha, e temos aqueles que foram amigos dela nessa viagem, e que podem acreditar, como tu acreditas, que a senhora estava a controlar o seu destino, e a escolher os seus amigos e os seus protegidos. Mas antes de nos debruçarmos sobre esse assunto, temos aqui um homem assassinado. Nem Deus nem os seus santos tolerarão um homicídio. Este jovem Aldhelm clama para que façamos justiça. Se sabeis alguma coisa que possa lançar alguma luz sobre esta morte, falai agora.

- Padre - disse Tutilo, ficando extremamente pálido -, juro pela minha fé que nunca lhe fiz nem teria feito algum mal, nem sei de ninguém que precisasse de lhe desejar mal. É verdade que ele vos podia ter dito o que eu vos contei agora. Nunca foi uma questão que me atemorizasse tanto a ponto de tentar silenciá-lo. Ele ajudou-me! Ele ajudou-a! Eu teria dito que sim quando ele apontasse para mim. Como estava com um pouco de medo, tentei manter tudo em segredo. Mas agora não há segredos.

- No entanto, tu és o único homem - insistiu o abade, impiedoso, mas sem incutir à sugestão um tom de acusação - que se sabe ter alguma razão para recear a vinda dele aqui e o que ele podia dizer. O que decidiste agora dizer-nos não pode desfazer essa verdade, nem absolver-te dela. Até se saber mais sobre a sua morte, penso que deves ficar nesta abadia, sob a minha custódia. A única acusação que pode ser feita contra ti neste momento, é a de roubo da nossa casa, independentemente da leitura que possa ter. Isso deixa-te sob a minha alçada. Creio que o senhor xerife poderá ter alguma coisa a dizer em relação a isso.

- Não tenho nada a objectar - disse Hugh prontamente. - Confio-o ao vosso cuidado, Padre Abade.

Herluin não tinha dito uma única palavra a favor ou contra. Estava a reflectir em silêncio sobre as opções que lhe restavam, e até agora não lhe pareciam totalmente irremediáveis. O rapaz disparatado podia ter cometido erros potencialmente desastrosos, mas tinha preservado a base da sua pretensão. A Santa tinha desejado! Como é que a casa beneficiada podia provar o contrário? Ela tinha-se ido embora, apenas a maldade dos homens frustrara a sua viagem.

- Pedi ao irmão Vitalis para chamar os porteiros para o levarem - disse o abade. - E, irmão Cadfael, leva-o para a sua cela, e se fazes o favor volta para junto de nós.

 

                                       Capítulo Sete

Ao entrar na sala de visitas do abade, tornou-se evidente para Cadfael que se a batalha não tinha começado já, trombetas de guerra estavam seguramente a ser afinadas para o início. Radulfus mantinha a sua calma judiciosa, e a grande testa do conde era suave e benigna, embora não houvesse maneira de adivinhar o que se passava na mente altamente inteligente por detrás dela; mas o prior Robert e o sub-prior Herluin estavam sentados muito direitos, com a coluna tensa e os rostos longos e distintos fechados numa máscara de aço, não olhavam directamente um para o outro e mantinham um olhar distante, e a aparência de considerar com magistral indiferença a situação com que se confrontavam.

- Deixando de lado o caso de homicídio - disse Herluin -, para o qual ainda nos faltam provas, seguramente a história dele é credível. Tratou-se de um roubo sagrado. Ele estava a fazer o que a santa desejava.

- Não me parece fácil - disse o abade Radulfus, com um tom gélido inequívoco na voz - deixar de lado o caso de homicídio. É mais importante do que todos os outros assuntos. Que podeis dizer deste rapaz, Hugh? Ele contou-nos agora o que tinha receado que o homem morto pudesse dizer-nos. Isso deixa-o sem motivo para matar.

- Não - disse Hugh. - Ele tinha motivo, como ele próprio admitiu, e não conhecemos mais ninguém que tivesse. É possível que ele tenha assassinado, mas depois de cometer o crime procurou esconder o que tinha feito. É possível... não digo mais do que isto. Ele veio imediatamente ter connosco ao castelo, e contou-nos como tinha encontrado o corpo, e não há dúvida de que estava profundamente abalado e agitado, como seria plausível, culpado ou inocente. Hoje devo dizer que ele se comportou totalmente de acordo com a inocência, comovido, piedoso, paciente na espera. Se tudo isso foi encenado, para disfarçar a culpa, então ele é profundamente arrojado, inteligente e perverso para a sua idade. Mas - acrescentou torcidamente -, eu estou convencido de que ele é assim, e pode muito bem ter tido a audácia de fingir daquela maneira.

- Mas, nesse caso - disse Radulfus, a franzir pensativamente o sobrolho -, por que é que foi depois ter comigo, e confessou precisamente aquilo de que a testemunha poderia tê-lo acusado?

- Porque ainda não se tinha apercebido plenamente de que continuaria a ser suspeito, e de que agora seria suspeito de homicídio. Num caso destes é preferível aceitar as penalidades que a Igreja possa impor, por muito duras que sejam, por roubo e fraude, do que cair nas malhas da lei secular, a minha lei - disse Hugh com firmeza -, onde o homicídio é punido com a forca. Se ao submeter-se a uma culpa pudesse evitar todas as suspeitas em relação à pior... ele é bastante engenhoso, suponho, para fazer a escolha e bastante resistente para se submeter a ela. O padre Herluin devia conhecê-lo melhor do que nós.

Mas nessa altura Cadfael já tinha a certeza de que Herluin não conhecia o seu Tutilo, provavelmente nunca tivera uma ideia clara do que se passava nas mentes dos seus noviços, porque não lhes prestava atenção. A declaração de Hugh, talvez intencionalmente, colocara-o numa posição difícil. Ele gostaria de se distanciar e a Ramsey, horrorizados, de qualquer possibilidade de terem dado guarida a um assassino, mas enquanto se mantinha a possibilidade de lucrarem com um roubo, sagrado ou profano, ele quereria manter a aparência de valorizar e acreditar no ladrão.

- O irmão Tutilo nunca esteve ao meu cuidado específico antes desta viagem - disse ele cuidadosamente -, mas eu achei sempre que ele é totalmente dedicado à nossa casa de Ramsey. Ele diz que teve as suas orientações em oração e adoração à santa, e eu tenho todos os motivos para acreditar nele. São conhecidas inspirações sagradas desse tipo. Seria presunçoso desprezá-las.

- Estamos a falar de homicídio - disse Radulfus com austeridade. - Com toda a honestidade, embora me repugne dizer que qualquer homem é capaz de matar, não me atrevo a dizer que qualquer homem é totalmente incapaz de o fazer. O rapaz estava presente naquele carreiro, segundo as suas próprias declarações e acções, e tinha, embora depois pudesse lamentar o acto, motivo para se livrar de um homem que podia acusá-lo.

Isto na medida em que existia uma testemunha contra ele. Em abono dele, deve dizer-se que foi imediatamente comunicar a morte às autoridades, e depois voltou para junto de nós e contou de novo a mesma história. Não vos parece que se a culpa tivesse sido dele, ele poderia ter vindo directamente para casa sem proferir uma palavra, e deixar que outro encontrasse o morto e desse o alarme?

- Também podíamos reflectir - disse o prior Robert terminantemente - sobre o seu estado. O xerife disse que ele estava muito agitado. Não é fácil mostrar-se calmo e inabalado, depois de um acto daqueles.

- Ou depois da descoberta de um acto daqueles - disse Hugh com imparcialidade.

- Seja qual for a verdade - disse o conde com segurança -, tende-lo nas vossas mãos, só precisais de esperar, e se ele tiver de facto mais e pior para dizer, talvez consigais fazer o próprio rapaz confessar. Tenho as minhas dúvidas de que seja muito difícil arrancar-lhe uma confissão depois de estar muito tempo preso. Se ele não acrescentar nada, passadas algumas semanas, podeis ficar certos de que ele não tem nada para acrescentar.

"Aquilo podia muito bem ser sensato", pensou Cadfael, a escutar respeitosamente. "Que poderia ser mais debilitante para o jovem, que poderia ser mais duro de suportar com constância, do que estar fechado numa estreita cela de pedra, fechado à chave, apenas com um catre estreito, uma mesa de leitura minúscula e um crucifixo na parede como companhia, e a largura de meia dúzia de lajes de pedra para se exercitar? Embora Tutilo tivesse entrado nela há apenas meia hora, com aparente alívio e prazer, e até tivesse ouvido a chave rodar na fechadura sem um estremecimento. A cama era dádiva suficiente. Por muito estreita e dura que fosse, chegava para ele, e era uma enorme bênção. Mas deixassem-no lá sozinho e preso por dez dias, e sim, se nessa altura ele ainda tivesse alguns segredos, contá-los-ia em troca do ar do grande pátio, e da música do Ofício.

- Não tenho tempo para ficar aqui à espera - disse Herluin. - A minha missão é levar de volta para Ramsey todas as esmolas que conseguir recolher, pelo menos com a boa vontade de Worcester e Evesham. E a menos que seja feita uma acusação secular contra Tutilo, tenho de o levar comigo. Se ele pecou contra a lei da Igreja ou contra os Regulamentos da Ordem, compete a Ramsey discipliná-lo. O seu abade deve encarregar-se de o castigar.

Mas com a permissão de todos os presentes, contrario a vossa opinião, Padre Abade, de que ele cometeu uma ofensa ao remover o relicário de Santa Winifred. Repito que se tratou de um roubo sagrado, perpetrado por dever e reverência. A própria santa lhe deu instruções para que o fizesse. Se assim não fosse, ela nunca teria permitido que ele a levasse.

- Tremo por ter de vos contrariar - declarou Robert Bossu na mais doce e mais razoável das vozes -, mas tenho de observar que ela não deixou que ele a levasse. A carroça que a transportava foi desviada e roubada por vagabundos nas florestas dos meus domínios, e foi nas minhas terras que ela veio descansar.

- Essa intervenção foi concretizada pela malícia de homens maus - disse Herluin, irritado e com uma expressão feroz no olhar.

- Mas vós reconhecestes que o poder dessa santa pode frustrar e frustrará a malícia dos homens maus. Se não considerou adequado impedir os seus actos, deve ser porque eles serviam os seus desígnios. Deixou passar o rapto de Shrewsbury, deixou passar o roubo dos malfeitores. Veio descansar nos meus bosques, e para o santuário da minha casa foi levada. De acordo com o vosso raciocínio, padre, tudo isto, se é que alguma coisa, teve de ser alcançado através da sua vontade.

- Eu lembraria a ambos - disse o abade suavemente -, que se a Santa Winifred tem estado sempre a cumprir os seus desejos, e a impô-los aos mortais, está de novo no seu altar, na nossa igreja. Este deve ser, então, o fim que toda esta distracção pretendia. E ela está onde deseja estar.

O conde sorriu, um sorriso de uma subtileza e encanto extraordinários.

- Não, Padre Abade, pois este último passo foi diferente. Ela está aqui de novo porque eu, com uma pretensão minha para apresentar, e com interesse noutra pretensão, para ser absolutamente franco, a trouxe de volta para Shrewsbury, de onde ela iniciou esta controversa odisseia, para que ela própria pudesse escolher onde desejava descansar. Ela nunca mostrou qualquer disposição de sair da minha capela, onde o seu repouso era respeitado. Voluntariamente, eu trouxe-a comigo. No entanto, não desisto da minha reivindicação. Ela veio ter comigo. Eu recebi-a bem. Se for de sua vontade, levá-la-ei comigo para casa e providenciarei um altar tão rico como o vosso.

- Vossa senhoria - declarou o prior Robert, tenso de resistência e ultraje -, o vosso argumento não vencerá. Embora os santos possam usar-nos até a nós, criaturas fracas, para os seus desígnios, então seguramente podem com mais graças usar a boa vontade onde a encontram. O facto de a terdes trazido para aqui, para a casa que ela escolheu, não vos dá mais direito a ela do que o que nós temos, embora vos dê um crédito infinito. Santa Winifred está feliz aqui há mais de sete anos, e foi para esta casa que regressou. Não a deixará agora.

- No entanto, deixou claro ao irmão Tutilo - retorquiu Herluin, irritando-se por sua vez - que tinha sentido compaixão por Ramsey, uma abadia tão maltratada, e desejava beneficiar-nos no nosso infortúnio. Não podeis ignorar que ela desejou partir e que partiu para ir em nosso auxílio.

- Estamos os três decididos - disse o conde, com grande serenidade e consideração. - Não deveríamos submeter a decisão a algum assessor neutro e obedecer à sua decisão?

Fez-se um silêncio profundo e carregado. Depois Radulfus disse, com composta autoridade:

- Já temos um assessor. Deixai que Santa Winifred declare abertamente a sua vontade. Ela foi uma senhora muito culta no fim da sua vida. Interpretou as Escrituras para as suas freiras, vai interpretá-las agora para os seus discípulos. Na consagração de cada bispo, o prognóstico do seu ministério é feito colocando os Evangelhos sobre os seus ombros, e abrindo o livro para ler a frase que aparece. Levaremos a sortes Biblicae para cima do relicário da santa, e não duvideis de que ela julgará com clareza. Porquê delegar a qualquer outra pessoa a escolha que é dela por direito?

Quebrando o longo silêncio enquanto todos digeriam esta opinião e se reajustavam a uma sugestão tão inesperada, o conde disse com evidente satisfação... na verdade, como pareceu a Cadfael, a transbordar de contentamento:

- Concordo! Não poderia haver um processo mais justo. Padre Abade, concedei-nos os dias de hoje e de amanhã para colocarmos os nossos pensamentos em ordem, para examinarmos as nossas reivindicações e reflectirmos e rezarmos apenas pelo que nos é devido. E que essas sortes sejam tiradas no terceiro dia. Apresentaremos os nossos pedidos à senhora, e aceitaremos o veredicto que ela nos oferecer.

- Esclarece-me - disse Hugh uma hora mais tarde, na oficina de Cadfael, no herbário. - Não sou versado nos costumes dos bispos e arcebispos. Exactamente como é que essas sortes Biblicae que Radulfus tem em mente vão ser interpretadas? Oh, certamente conheço a prática comum de ler o futuro abrindo o Evangelho ao acaso, e pousando o dedo na página, mas como é esta utilização oficial na consagração de um novo bispo? Seguramente, já é demasiado tarde para a sorte mudar para melhor, se a palavra for contra ele.

Cadfael retirou uma panela que fervia lentamente na grelha ao lado da sua braseira, pousou-a no chão de terra para arrefecer, e acrescentou duas turfas para abafar a chama, antes de se endireitar com alguma cautela, e sentar-se ao lado do amigo.

- Eu próprio nunca assisti a uma consagração desse tipo - disse ele. - Os bispos mantêm-na no seio do seu círculo. Maravilha-me como os resultados nunca se sabem, mas acabam por se saber. Ou alguém os inventa, é claro. Por vezes, sinto que são demasiado exactos para serem verdadeiros. Mas sim, são efectuados como o abade Radulfus disse, e muito solenemente, segundo me disseram. O livro dos Evangelhos é pousado sobre os ombros do bispo recém escolhido, e aberto ao acaso, e um dedo é colocado na página...

- Por quem? - perguntou Hugh, pondo o dedo na falha fatal.

- Ora, isso foi coisa que nunca me ocorreu perguntar. Seguramente, pelo arcebispo ou bispo que está a oficiar. Embora, obviamente, pudesse ser amigo ou inimigo do novo homem. Confio que agem com honestidade, mas quem sabe? Má ou boa, essa frase é o prognóstico do futuro ministério do bispo. Por vezes, bastante apto. Ao bom bispo Wulstan de Worcester saiu: "Acautelai-vos bem com o Israelita, em quem não há artimanha." Alguns não tiveram tanta sorte. Sabes, Hugh, quais foram as sortes mandadas a Roger de Salisbúria, que desagradou a Stephen há não muitos anos e morreu em desgraça? "Amarrai-lhe as mãos e os pés, e atirai-o para as profundezas longínquas."

- É difícil acreditar! - exclamou Hugh, erguendo uma sobrancelha céptica. - Ninguém pensou em associar-lhe isso depois da sua queda? Pergunto a mim mesmo qual foi a reacção do céu a Henry de Winchester quando ascendeu ao bispado? Até a mim ocorrem algumas frases que se aproximariam de mais do seu calcanhar-de-Aquiles para o gosto dele.

- Creio - disse Cadfael -, que foi alguma coisa de Mateus, relacionada com os últimos dias quando os últimos falsos profetas se multiplicaram entre nós. Algo do género de que se algum homem gritasse: Aqui está Cristo! não acrediteis nele. Mas pode-se fazer muito com a interpretação.

- Esse será o ponto crucial desta vez - disse Hugh, perspicaz -, a menos que os Evangelhos falem com toda a clareza, e não possam ser mal interpretados. Por que supões que o abade sugeriu esta solução? Sem dúvida que pode ser manipulada de forma a dar as respostas certas. Mas não, suspeito, com Radulfus a mandar. Ele está tão seguro da justiça divina?

Cadfael já tinha estado a reflectir sobre o mesmo assunto, e só podia concluir que o abade tinha de facto fé absoluta de que os Evangelhos justificariam Shrewsbury na posse da sua santa. Nunca deixava de se encantar com a ironia de esperar milagres de um relicário em que os seus ossos só tinham estado durante três dias e noites, antes de serem reverentemente devolvidos à terra galesa onde ela nascera; e era ainda mais espantosa a infinita misericórdia que transmitira graça apesar de todas aquelas milhas de distância, perdoara a presença de um pobre pecador humano no caixão que ela tinha abandonado, e deixara o esplendor do milagre pairar, invisível, sobre o seu altar, imprevisível, acessível, uma sombra travessa onde dava e onde negava, tal como os assuntos milagrosos parecem ser, pelo menos ao olhar humano. Ela não estava ali, nunca estivera, nunca no que restava da sua carne frágil; no entanto, consentira certamente que a sua essência fosse trazida para ali, e manifestara a sua presença com mercês assombrosas.

- Sim - disse Cadfael -, eu penso que ele confia que Winifred fará o que é certo. Estou convencido de que ele sabe que, no fundo, ela nunca nos deixou, e nunca deixará.

Cadfael voltou para a sua oficina depois do jantar, para fazer a última ronda da noite, abafar a braseira para arder lentamente até de manhã, e certificar-se de que todos os frascos estavam tapados e todas as garrafas e boiões devidamente enrolhados. Não esperava visitas àquela hora, e girou sobre os calcanhares, surpreendido, quando a porta atrás de si se abriu suavemente, quase sorrateiramente, e a rapariga Daalny entrou. O brilho amarelo da sua pequena candeia de azeite mostrou-a em trajes nada habituais, os cabelos pretos presos numa fita encarnada, com caracóis artisticamente soltos nas têmporas, o vestido comprido de um azul mais escuro e brilhante que os seus olhos, e uma faixa dourada entrançada à volta das ancas. Ela era muito rápida; percebeu o olhar que a varreu da cabeça aos pés, e riu-se.

- As minhas roupas boas para quando ele recebe. Estive a cantar para sua senhoria de Leicester. Agora eles estão a falar de possibilidades pessoais, por isso escapuli-me. Já não sentirão a minha falta. Penso que Rémy irá acompanhar Robert Bossu para Leicester, se jogar bem os seus trunfos. E eu já vos disse que ele é um bom músico. Leicester não sairá a perder.

- Ele necessita de novo dos meus medicamentos? - perguntou Cadfael num tom prático.

- Não. E eu também não. - Estava inquieta, a mover-se intranquila pela cabana como da outra vez que ali tinha estado, curiosa mas preocupada, e lenta para abordar o assunto que a trouxera ali. - Bénezet anda a dizer que Tutilo foi preso por homicídio. Diz que Tutilo matou o homem que enganou para que o ajudasse a roubar a vossa santa. Isso não pode ser verdade - disse ela com certeza absoluta. - Não há maldade nem violência em Tutilo. Ele sonha. Não faz.

- Fez mais do que sonhar quando roubou a nossa santa - referiu Cadfael razoavelmente.

- Ele sonhou com isso antes de o fazer. Oh, sim, ele pode ter roubado, isso é um assunto completamente diferente. Desejava dar ao seu mosteiro um presente maravilhoso, cumprir as suas visões e ser valorizado e louvado. Duvido que roubasse para si próprio, mas para Ramsey, sim, seguramente roubaria. Estava até a começar a sonhar libertar-me da minha escravidão - disse ela, tolerante, e sorriu com a alegria resignada de quem era experiente para além da inocente compreensão de Tutilo. - Mas agora tende-lo algures fechado à chave, e sem boas perspectivas, aconteça o que acontecer. Se a vossa santa vai ficar aqui agora, então mesmo que Tutilo escape à lei do xerife, mesmo que Herluin o leve para Ramsey, vão fazê-lo pagar pelo pecado que cometeu e não conseguiu concretizar com sucesso. Vão obrigá-lo a passar fome e vão flagelá-lo. E se a coisa correr pelo outro lado, e ele for considerado culpado de homicídio, vão enforcá-lo. - Tinha chegado, finalmente, ao que queria saber. - Onde o pusestes? Eu sei que ele está prisioneiro.

- Está na primeira cela da penitenciária, junto ao corredor da enfermaria - disse Cadfael. - Só há duas, pois geralmente temos poucos infractores. Pelo menos a porta trancada, destinada a prendê-lo, também prende os seus inimigos do lado de fora, se é que ele tem algum inimigo. Fui vê-lo há meia hora, e ele está profundamente adormecido, e todas as aparências indicam que vai dormir até amanhã, depois da Prima.

- Porque não tem qualquer peso na consciência - atirou Daalny triunfalmente -, exactamente como eu disse.

- Eu não diria que ele nos contou sempre toda a verdade - disse Cadfael suavemente -, se isso conta para a sua consciência. Mas não lhe condeno o descanso, pobre criança, pois ele precisa.

Ela ignorou aquelas palavras sem lhes prestar muita atenção, e franziu os lábios grandes.

- Claro que ele mente muito bem, faz parte das suas fantasias. Teríeis de estar muito seguro dele e de vós para saber quando ele está a mentir, e quando está a dizer a verdade. Um mentiroso conhece outro! - concordou ela, desafiadora, fitando os olhos intrigados de Cadfael. - Eu própria tive de ser uma boa mentirosa para manter a cabeça à tona da água durante todo este tempo. Ele também. Mas matar? Não, isso está muito para além das capacidades dele.

E continuava sem vontade de se ir embora, a andar pela cabana, a tocar com dedos compridos as prateleiras de recipientes, esticando-se para tocar nos molhos de ervas pendurados por cima da cabeça, mantendo-se de perfil voltado para ele. Ela queria saber mais, mas não sabia bem como perguntar, ou melhor, como descobrir o que precisava sem perguntar.

- Eles vão dar-lhe de comer, não vão? Não podeis deixar um homem passar fome. Quem cuidará dele. Sois vós?

- Não - respondeu Cadfael pacientemente. - Os porteiros levar-lhe-ão a comida. Mas eu posso visitá-lo. Posso, e vou. Rapariga, se lhe desejas bem, deixa-o onde está.

- Tenho pouca escolha! - disse Daalny amargamente. Porém, não com amargura excessiva, pensou Cadfael. Antes para apresentar a aparência de resignação do que para aceitá-la. Ela estava a começar a sonhar, e os seus sonhos levá-la-iam a agir. Só precisava de observar os movimentos do porteiro no dia seguinte para saber as alturas em que visitava o prisioneiro, e espiar onde eram penduradas, lado a lado na casa do porteiro, as chaves da cela.

E o País de Gales não ficava longe, e em qualquer llys de um príncipe naquele país, pequeno ou grande, uma voz como a de Tutilo, uma mão tão hábil nas cordas, encontraria facilmente abrigo. Mas fugir com a desconfiança de homicídio pendente sobre ele, e com a ameaça sempre presente de perseguição e captura? Não, era muito melhor ficar ali sentado e culpar o demónio. Pois Cadfael tinha a certeza de que Tutilo nunca tinha sido violento com qualquer homem, e não devia ficar marcado com essa desonra para a vida inteira.

Daalny continuava sem pressa de se ir embora, como se quisesse dizer ou perguntar mais alguma coisa, o seu minúsculo rosto oval muito atento e os olhos semivelados mas muito inteligentes atrás de compridas pestanas escuras. Depois, voltou-se e saiu muito calmamente. Da soleira da porta, disse:

- Boa noite, Irmão! - sem voltar a cabeça, e fechou a porta depois de sair.

Na altura Cadfael pensou pouco no assunto, concluindo que ela não estava apreensiva a ponto de tentar realmente transformar o seu sonho indignado em acção. Mas no dia seguinte reconsiderou, quando a viu a vigiar o corredor do porteiro a partir do refeitório antes do meio-dia, e a segui-lo com os olhos quando ele apareceu entre a enfermaria e a sala de aulas, onde as duas pequenas celas de pedra estavam construídas no ângulo da parede, perto da portinhola que dava acesso ao moinho e à represa. Quando ele desapareceu, ela atravessou o grande pátio para a casa do porteiro, atravessou a porta aberta, aparentemente sem olhar em volta, e ficou durante alguns minutos no portão, a olhar para Foregate, antes de voltar para trás e dirigir-se para a ala dos hóspedes. A placa que continha as chaves a cargo do porteiro estava pendurada do lado de dentro da porta, e ela tinha uma visão suficientemente apurada para ver o prego que estava vazio, e a companheira da chave ausente mesmo ao lado. Semelhantes em tamanho e aparência geral, mas não no denteado que as fazia funcionar.

E até mesmo esta vigilância discreta podia apenas fazer parte da sua fantasia. Talvez nunca tentasse transformá-la em realidade. No entanto, antes da tarde Cadfael falou com o porteiro. Ela não poderia dar qualquer passo antes do lusco-fusco ou até da escuridão; não havia necessidade de observar a passagem do almoço de Tutilo, pois agora já sabia qual a chave de que precisava. Só era preciso que o porteiro a recolocasse no prego errado antes de ir para as Completas, e lhe deixasse a gémea inútil.

Não a vigiou; não havia necessidade, e estava quase completamente convencido de que não aconteceria nada. A posição dela era tão vulnerável que não se atreveria. Assim, o dia passou normalmente, com o ritual imutável de trabalho e leitura, estudo e oração pontuado pelo passar regular das horas. Cadfael efectuou as suas tarefas ainda mais assiduamente porque uma parte da sua mente estava noutro lado, e sentia esta ausência como culpa, embora a sua preocupação se prendesse com um caso sério de justiça, culpa e inocência. Tinha de existir uma forma de ilibar Tutilo de um opróbrio que não merecia, independentemente das penalizações que pudesse merecer pelas suas verdadeiras ofensas. Aqui no enclave, a prisão significava também protecção de uma ameaça secular; a Igreja cuidava dos seus, até dos seus delinquentes. Uma vez no exterior, a menos que fosse ilibado de todas as suspeitas, seria um fugitivo, sujeito a todos os rigores da lei, e o próprio acto de fuga seria uma prova contra ele. Não, ele tinha de permanecer ali até poder sair sem mácula.

Eram quase horas das Completas quando Cadfael saiu do jardim após a última ronda da tarde, e viu cavaleiros a entrarem o portão. Sulien Blount, num cavalo castrado malhado, conduzindo um garrano castanho pela rédea, já aparelhado para montar, e atrás dele dois escudeiros de serviço. A esta hora, ao lusco-fusco, era uma invasão inesperada. Cadfael foi recebê-los quando Sulien desmontou para falar apressadamente com o porteiro. Apenas um assunto de muita urgência teria trazido mensageiros de Longner àquela hora tão tardia.

- Que é, Sulien? Que te traz aqui a esta hora? Sulien virou-se para ele, aliviado.

- Cadfael, tenho um pedido para fazer ao abade. Ou talvez precisemos de que interceda por nós junto do sub-prior de Ramsey, nada menos... A minha mãe pede a presença daquele jovem músico dele, Tutilo, o que já tocou e cantou para ela antes, e a ajudou a dormir. Ela gostou dele, e ele dela. Desta vez será um sono mais longo, Cadfael. Ela não vai passar desta noite. E há uma coisa que quer e precisa de fazer... eu não questionei. E vós também não o faríeis, se pudésseis vê-la...

- O rapaz que pretendes está preso - disse Cadfael, consternado. - E suspeito de crimes quando a senhora mandou chamá-lo, há duas noites. Ela está tão perto do fim? O abade dificilmente poderá deixá-lo ir vê-la a menos que tenha garantias do seu regresso.

- Eu sei - declarou Sulien. - Hugh Beringar esteve connosco, eu sei o que se passa. Mas sob escolta... Podeis ver que tomaremos conta dele, e o traremos de volta amarrado, se preciso for. Pelo menos perguntai! Dizei a Radulfus que é o último pedido que ela lhe faz. A misericórdia da morte demorou a chegar, mas juro-vos que agora é o fim. Ele conhece toda a história dela, vai escutar-vos!

- Espera - disse Cadfael -, eu vou perguntar-lhe.

- Mas, Cadfael... há duas noites? Não, não mandámos chamá-lo há duas noites.

Bem, não era muito surpreendente. Cadfael já andava há algum tempo a pensar nessa possibilidade. Não, fora demasiado apto, demasiado oportuno. Ele descobrira o que o esperava, e saíra do local durante o tempo necessário, esperara, para escapar ao julgamento. Agora, não fazia diferença.

- Não, não importa, já tinha percebido - disse ele. - Espera aqui por mim!

O abade Radulfus estava sozinho na sua sala de estar apainelada. Escutou este último pedido com o sobrolho carregado e olhos pensativos. E depois de ouvir, disse sombriamente:

- Já era mais que tempo de ela ir. Como podemos negar-lhe um pedido? Dizes que eles têm guardas suficientes para impedir uma fuga? Sim, deixa-o ir.

- E o padre Herluin? Não deveríeis pedir-lhe autorização também a ele?

- Não. Tutilo está dentro da minha casa e ao meu cuidado. Eu dou-lhe autorização. Vai pessoalmente, Cadfael, e entrega-o a eles. Se ela tem tão pouco tempo, não percamos nenhum.

Cadfael voltou rapidamente para a casa do porteiro.

- Ele virá. Temos a autorização do abade. Espera que eu vou buscar o rapaz.

Ficou pouco surpreendido quando foi buscar a chave do seu prego na casa do porteiro e constatou que o prego do lado também estava vazio. Tudo estava a acontecer agora com uma certeza distante, como se fosse um sonho. Afinal de contas, Daalny tinha agido; devia ter tirado a segunda chave durante as Vésperas, do prego onde ao meio-dia vira o porteiro pendurar a primeira, mas tivera de esperar pela quase escuridão antes de a usar. Agora seria o seu tempo de eleição, numa altura em que os irmãos estariam reunidos na igreja para as Completas. Cadfael deixou os mensageiros de Longner a esperar ansiosamente do lado de dentro do portão, e virou rapidamente a esquina da sala de aulas para as celas penitenciárias, onde sombras mais profundas enchiam já o corredor estreito para a portinhola na parede do enclave, e para o moinho e represa do outro lado.

E ela estava lá. Ele sentiu a sua presença imediatamente, embora ela fosse apenas mais uma sombra esguia muito encostada à funda soleira da porta da cela. Ouviu a chave a rodar inutilmente no denteado da fechadura que não era a sua, e a sua respiração vexada, furiosa, enquanto lutava para a fazer entrar onde ela não servia. Ouviu-a bater os pés numa raiva frustrada, e ranger os dentes, demasiado concentrada para se aperceber da aproximação dele até ele esticar um braço para desviá-la, com bastante delicadeza.

- Não adianta, criança! - disse. - Dá-me licença!

Ela soltou um grito abafado de desespero, e afastou-se furiosamente do aperto dele. Não vinha qualquer som do interior da cela, embora a pequena candeia do prisioneiro estivesse acesa, como se via pelo brilho que passava pela janela alta, com grades.

- Agora espera! - disse Cadfael. - Tens uma mensagem para transmitir aqui, e eu também. Vamos tratar disso. - Inclinou-se para pegar na chave errada, que saíra da fechadura e lhe caíra da mão quando ela começara a afastar-se. - Vem, e eu deixo-te entrar.

A chave certa rodou suavemente na pesada fechadura, e Cadfael abriu a porta. Tutilo estava de pé, voltado para eles, direito e rígido, o rosto uma chama estreita e pálida, os olhos cor de âmbar muito abertos e assustados. Ele não fazia ideia dos planos dela, não sabia o que esperar agora, por que é que aquela porta trancada se abrira naquele momento, ao fim do dia, depois de todas as visitas autorizadas terem terminado.

- Diz o que vieste aqui dizer-lhe - disse Cadfael. - Mas depressa. Não percas tempo, pois eu não tenho nenhum para perder, e ele também não.

Daalny ficou tensa e perdida por um momento, antes de se atirar pela porta aberta, como se temesse que a porta fosse fechada de novo antes de ela poder impedir, apesar de Cadfael não se ter mexido. Tutilo estava a olhar, embasbacado, para um e para o outro, sem perceber, quase sem os reconhecer.

- Tutilo - disse ela, em voz baixa e urgente -, vem embora agora. Passas a portinhola, e estás livre. Ninguém te verá, quando estiveres fora destas muralhas. Estão todos nas Completas. Vai, depressa, enquanto há tempo. Vai para oeste, para o País de Gales. Não fiques aqui à espera de seres transformado num bode expiatório, vai, agora... depressa!

Tutilo despertou com um estremecimento e um susto, e chamas douradas brilharam nos seus olhos.

- Livre? Que fizeste? Daalny, eles vão voltar-se para ti... - Virou-se para olhar para Cadfael, tenso e a tremer, sem saber se estava perante um amigo ou um inimigo. - Não compreendo!

- Foi isso que ela veio dizer-te - declarou Cadfael. - Eu também tenho uma mensagem para ti. Sulien Blount está aqui com um cavalo para ti, e implora a tua presença junto da sua mãe, agora, imediatamente, pois Lady Donata está a morrer, e pede para te ver novamente, e ouvir-te, antes de falecer.

Tutilo assumiu uma imobilidade marmórea. As chamas amarelas escureceram e suavizaram-se no brilho puro de uma fogueira. Os seus lábios moveram-se, dizendo o nome em silêncio: "Donata?"

- Vai. Agora! - ordenou Daalny, perdida a raiva agora que tinha um adversário que não podia ser ignorado. - Atrevi-me a fazer isto por ti, como te atreves agora a desprezar o meu acto? Vai, enquanto há tempo. Ele é apenas um e nós somos dois. Ele não pode impedir!

- Eu não impediria - disse Cadfael. - É ele que tem de escolher.

- A morrer? - disse Tutilo, aclarando a voz, calmo e pesaroso. - De verdade, ela está a morrer?

- E a chamar por ti - declarou Cadfael. - Como disseste que fez há duas noites. Mas esta noite é verdade, e esta noite será a última vez.

- Tu ouviste - disse Daalny, inquieta mais imóvel. - A porta está aberta. Ele diz que não impedirá. Escolhe, então! Eu fiz a minha parte.

Tutilo não pareceu ouvi-la.

- Eu usei-a! - disse, lamentavelmente abalado. E a Cadfael perguntou, duvidoso: - E Herluin deixa-me ir?

- Não Herluin, mas o abade deixa-te ir. Se me deres a tua palavra de honra que regressarás, e sob escolta.

De repente Tutilo segurou Daalny com as duas mãos, com pesarosa suavidade, e desviou-a da porta. Ergueu uma mão com um ardor abrupto, convulsivo, e acariciou-lhe a face, dedos compridos percorreram-na eloquentemente desde a têmpora até ao queixo num gesto de impotente desculpa.

- Ela quer-me - disse suavemente. - Tenho de ir para junto dela.

 

                                   Capítulo Oito

Daalny esqueceu a ira e deixou de implorar logo que a escolha foi feita, e feita de tal maneira que soube que não seria alterada. Seguiu até à esquina da sala de aulas e ficou a observar em silêncio enquanto Tutilo montava, e o pequeno grupo saiu o portão e virou para Foregate. O caminho mais largo da Feira dos Cavalos era melhor para cavalgar; não teriam de passar pelo carreiro estreito onde ele tropeçara no cadáver de Aldhelm.

O sino para as Completas tocou, o tempo que ela dera a si própria para o ajudar a fugir pela portinhola, para um mundo ao qual ele começava, talvez, a lamentar não se ter entregue, mas que talvez se tivesse revelado nada hospitaleiro para um noviço Beneditino em fuga. Fosse como fosse, seria todavia melhor, pelo menos ela assim pensara, pôr vinte milhas e uma fronteira entre ele e um enforcamento. Agora estava pensativa, com o som dos sinos nos ouvidos, a reflectir. E quando Cadfael voltou lentamente para junto de si no pátio vazio, ficou no caminho dele de olhos abertos, a enfrentá-lo com gravidade como se conseguisse penetrar nos recessos mais recônditos da mente dele.

- Também não acreditais que ele cometeu aquele crime - disse ela com certeza. - Sabeis que ele nunca fez mal àquele pobre pastor. Teríeis realmente ficado de lado e permitido que ele fugisse?

- Se ele tivesse escolhido esse caminho - disse Cadfael -, sim. Mas sabia que ele não o faria. A escolha era dele. Ele escolheu. E agora vou para as Completas.

- Esperarei na vossa oficina - disse Daalny. - Tenho de falar convosco. Agora que tenho a certeza, agora contar-vos-ei tudo o que sei. Mesmo que nada prove seja o que for, mesmo assim podereis ver alguma coisa que eu não vi. Ele precisa de uma inteligência maior do que a minha, e duas pessoas a apoiá-lo será melhor do que uma.

- Pergunto a mim mesmo agora - disse Cadfael, a observar o seu rosto magro, inteligente e decidido -, se querias aquele jovem para ti, ou se é apenas bondade desinteressada. - Ela olhou para ele, e sorriu lentamente. - Bem, eu já volto - disse ele. - Também preciso de uma segunda opinião. Se estiver frio lá dentro, podes usar o fole na braseira. Tenho turfas suficientes para a abafar novamente antes de sairmos da oficina.

No ar fechado da cabana, com odor a madeira, com ervas a baloiçar por cima da cabeça e o calor que se erguia da braseira, ela sentou-se inclinada para o brilho, a luz a emoldurar-lhe as maçãs do rosto altas e as sobrancelhas finas por baixo dos cabelos pretos, encaracolados.

- Sabeis agora - disse ela - que ele não foi mandado chamar a Longner naquela noite. Era uma história plausível, mas o que ele queria era ter um motivo para estar noutro lugar, para não estar aqui quando o pastor chegasse. Não teria sido o fim de tudo, mas adiaria o pior, e Tutilo raramente pensa para além do momento presente. Se conseguisse evitar o encontro com o pobre homem por alguns dias, esta contenda pelos ossos da santa seria resolvida, um dia ou outro, e Herluin partiria para mais uma das suas viagens, e levaria Tutilo consigo. Não que isso lhe prometa uma grande vida - acrescentou ela, espetando um lábio duvidoso -, agora que ele está a ultrapassar a sua santidade. Se os destinos bíblicos se virarem contra ele, Herluin descarregará todo o aborrecimento e vergonha em Tutilo, com usura. Sabeis isso tão bem como eu. Estes monásticos são como nascem, vingativos. Se vêm ao mundo duros e frios, acabam ainda mais duros e mais frios, se vêm generosos e doces, tornam-se cada vez mais generosos e mais doces. Ou são uma coisa ou a outra. E no preciso momento em que Tutilo começava a despertar para onde pertence, e para aquilo que nasceu - disse ela, veementemente. - Bem, foi isso. Ele mentiu em relação a Longner para ficar longe daqui durante todo o serão. Agora tem uma dívida para com a senhora, e vai pagá-la.

- É mais do que uma dívida - disse Cadfael. - Aquela senhora conquistou-o a primeira vez que ele pousou os olhos nela. Teria ido para junto dela independentemente do peso que pudesses pôr no outro prato da balança. E o que estás a dizer-me é que ele sabia muito bem que Aldhelm vinha aqui naquela noite.

Como é que soube? Nunca foi comunicado aos irmãos. Apenas o abade e eu sabíamos, embora ele pudesse ter sentido que devia contar ao prior Robert.

- Ele soube - disse ela com simplicidade - porque eu lhe disse.

- E como é que soubeste?

Ela ergueu os olhos bruscamente, e ficou alerta.

- Sim, é verdade, poucas pessoas sabiam. Foi bastante por acaso. Bénezet ouviu o prior Robert e o irmão Jerome a falarem no assunto, e veio contar-me. Sabia que eu avisaria Tutilo, creio que queria que o fizesse. Ele sabia - disse Daalny - que eu gostava de Tutilo.

As palavras mais simples e mais sóbrias são as melhores para expressar sentimentos complexos e imoderados. Ela dissera mais do que tinha consciência.

- E ele? - disse Cadfael, com cuidado desinteresse.

Mas ela não era assim tão simples. As mulheres nunca são simples, e ela era uma mulher que experimentara mais da vida do que os seus anos podiam abarcar.

- Ele quase não sabe o que sente - disse ela -, por mim ou seja pelo que for. O vento empurra-o. Ele vê um sonho esplêndido, e atira-se de cabeça. O sonho monástico está agora a desvanecer-se. Eu sei que tem esplendor, mas não para ele. E ele não é homem para continuar nele só para ter paz e calma bem-aventurança.

- Diz-me, então - pediu Cadfael calmamente -, o que aconteceu naquela noite, depois de ele ter pedido e obtido autorização para ir a Longner.

- Eu teria contado imediatamente - disse ela pesarosamente -, mas não o teria ajudado. Pois não restavam quaisquer dúvidas de que ele estava naquele caminho, que encontrou a pobre alma morta, que correu para o castelo, como um homem honesto, e contou ao xerife o que tinha encontrado. O que eu posso dizer não muda isso. Mas se conseguirdes encontrar um grão de bom trigo no que tenho para dizer, por amor de Deus encontrai-o e mostrai-mo, pois escapou-me.

- Conta-me - pediu Cadfael.

- Combinámos os dois - disse ela -, e foi a primeira vez que nos encontrámos fora daquelas muralhas. Ele saiu e seguiu o carreiro que segue pela cumeeira para a barcaça. Eu escapuli-me pelos portões duplos do cemitério para a Feira dos Cavalos, e fomos para o sótão por cima do estábulo. Naquela altura o postigo das portas principais ainda estava destrancado, depois de terem trazido os cavalos a seguir à cheia. Foi mais de uma semana antes de o pátio do estábulo secar completamente. E foi ali que estivemos juntos, até ouvirmos o sino para as Completas. Pensámos que nessa altura ele já teria vindo e ido embora. Tão tarde, e a noite estava escura.

- E a chover - lembrou-lhe Cadfael.

- Isso também. Não era uma noite para andar na estrada. Pensámos que já teria ido para casa, e que seria suficientemente esperto para não fazer outra viagem em vão.

- E que fizestes durante todo esse tempo? - perguntou Cadfael.

Ela sorriu tristemente.

- Conversámos. Sentámo-nos juntos no feno para nos mantermos quentes, e conversámos. Da vocação que ele abraçou livremente, e de eu ter nascido escrava e sem nenhuma alternativa, e, no fim, comentámos como éramos parecidos - disse ela duramente. - Eu nasci na armadilha, ele caminhou para ela para evitar outro género de servidão, de olhos abertos, mas sem olhar para onde ia. E agora que está amarrado de pés e mãos tem grandes planos para me libertar.

- Tu também lhe ofereceste a liberdade esta noite. Bem, e depois? Ouviram o sino das Completas, e pensaram que era seguro regressar. Então como é que ele veio sozinho pelo caminho da barcaça?

- Não nos atrevemos a voltar juntos. Ele podia ser visto a regressar, e era preciso que voltasse pelo caminho que teria tomado para Longner. Eu entrei sorrateiramente pelo portão do cemitério, como tinha saído, e ele foi pelas árvores para o carreiro que tinha percorrido para ir ter comigo. Não teríamos podido voltar juntos. Ele renunciou às mulheres - disse ela com um sorriso amargo -, e eu não posso ter contactos com homens.

- Ele ainda não tomou os votos finais - disse Cadfael. - Porém, é uma pena ter ido sozinho. Se duas pessoas tivessem encontrado um homem morto, poderiam falar uma pela outra.

- Nós os dois? - disse ela, a olhar, e soltou uma breve gargalhada. - Não teriam acreditado em nós... uma escrava e um noviço próximo dos seus votos finais sozinhos no meio da noite e acabados de dar uma cambalhota no feno? Teriam dito que conspirámos juntos para matar o homem. E agora, suponho - disse ela, passando da amargura para uma tristeza composta -, já vos contei tudo, e não vos contei nada. Mas é toda a verdade. Tutilo pode ser um bom mentiroso e um bom ladrão, mas na maioria das acusações é tão inocente como um bebé. Até rezámos as orações da noite juntos quando o sino soou. Quem vai acreditar nisso?

Cadfael acreditava, mas podia imaginar o rosto de Herluin se a pergunta lhe tivesse sido feita a ele.

- Pelo menos, disseste-me - disse ele, pensativo - que havia mais pessoas que estavam a par de que Aldhelm viria por aquele caminho do que apenas os poucos que sabiam quando tudo começou. Se Bénezet ouviu Jerome a contar o que sabia, pergunto a mim mesmo quantas mais pessoas souberam antes de anoitecer? O prior Robert sabe ser discreto, mas Jerome?... Duvido. E Bénezet não poderia ter passado todos os seus conhecimentos para Rémy, como fez contigo? Tudo o que o criado descobre pode ser lucrativo para o patrão. E o que Rémy ouve pode muito bem ser contado ao patrono que ele está a cortejar. Oh, não, eu não diria que esta hora foi totalmente perdida. Significa que tenho muito que pensar. Vai para a tua cama agora, criança, e esquece as preocupações durante algum tempo.

- E se Tutilo nunca voltar de Longner? - perguntou ela, indecisa entre esperança e medo.

- Não percas tempo a pensar nisso - disse Cadfael. - Ele voltará.

Trouxeram Tutilo de volta muito antes da Prima, na luz esbranquiçada de uma madrugada clara e calma. Março tinha entrado mais cordeiro do que leão, havia anémonas nos bosques, e as primeiras prímulas, não queimadas pelo gelo, não quebradas nem atoladas pela chuva, começavam a abrir. Os dois homens de Longner, que tinham vindo um de cada lado do menestrel emprestado, trouxeram-no até à casa do portão, e esperaram em silêncio que ele desmontasse. As despedidas que trocaram, quando pegaram na rédea do cavalo e se voltaram para regressar a casa, foram discretas e contidas, mas claramente amistosas. O mais velho dos dois inclinou-se na sela para lhe dar uma pancada amigável no ombro, e disse-lhe uma ou duas palavras ao ouvido, antes de se afastarem a trote por Foregate em direcção à Feira dos Cavalos.

Nessa altura, Cadfael já estava acordado e no campo há mais de uma hora, pois precisava de sossego, e preenchera o tempo a passear pelas bermas das suas leiras de ervilhas e pela margem da represa do moinho para apanhar as flores brancas do espinheiro negro, no momento em que abriam e na melhor altura para infusões, para fazer uma purga suave para os idosos na enfermaria, que já não podiam fazer os exercícios extenuantes que antes tinham mantido os seus corpos em boa forma. Uma planta muito boa, o espinheiro negro, boa para quase tudo o que afligia os interiores de um homem, desde que o rebento e a flor e o fruto preto amargo fossem apanhados no momento certo. Também eram bons nas sebes, para manter o gado bovino e as ovelhas longe dos locais plantados.

De vez em quando interrompia o seu trabalho para voltar ao grande pátio para ver se Tutilo regressava. Tinha uma sacola cheia das pequenas flores brancas quando fez a viagem pela sétima vez, e viu os três cavaleiros passarem pela casa do porteiro. Deixou-se ficar escondido a ver Tutilo desmontar, separar-se amistosamente dos seus guardas, e dirigir-se, abatido, para a porta da casa do porteiro, como se ele próprio fosse buscar a chave e entregar-se respeitosamente ao seu cativeiro.

Caminhava com um passo um pouco incerto, e com a cabeça loura debruçada sobre algo que trazia nos braços. Uma vez, tropeçou nas pedras. A luz, a clarear e a aumentar para o dourado pálido das prímulas onde os seus raios oblíquos chegavam, ainda deixava a casa do porteiro e o pátio dentro dos portões na escuridão, e Tutilo mantinha o olhar nas pedras e caminhava com cuidado, como se não conseguisse ver bem o caminho. Cadfael foi ao encontro dele, e o porteiro, que ouvira o ruído da chegada e veio para a porta do seu alojamento, parou à soleira da porta, e deixou Cadfael, na qualidade de mais velho na casa, encarregar-se do prisioneiro recém-chegado.

Tutilo não ergueu o olhar até estarem muito próximos, e depois piscou os olhos e espreitou como se tivesse dificuldade em reconhecer até mesmo um rosto muito familiar. Tinha os olhos raiados de vermelho, o brilho dourado embotado por uma noite sem dormir, e talvez também de chorar. O fardo que ele carregava com uma ternura tão curiosa era uma sacola de pele macia, com um objecto rígido no interior, que lhe enchia os braços e estava ciosamente encostado ao coração, com as tiras de fechar a sacola enroladas num pulso por uma questão de segurança, como se tivesse pavor de o perder. Olhou para Cadfael por cima do seu tesouro, e chispas pequenas e cautelosas brilharam nos seus olhos, e evidenciaram ansiedade e dor quase imediatamente. Num tom de voz insípido e gelado, disse:

- Ela morreu. Sem um estremecimento ou um gemido. Pensei que tinha adormecido com o meu canto. Continuei... o silêncio poderia perturbar o seu descanso...

- Fizeste bem - disse Cadfael. - Ela esperou muito tempo pelo descanso. Agora, nada pode perturbá-lo.

- Voltei logo que me pareceu correcto. Não quis deixá-la sem me despedir devidamente. Ela foi bondosa para mim. - Não estava a referir-se a senhora para criado ou patrona para protegido. Houvera outro tipo de bondade entre eles, benéfica para ambos. - Estava com receio de que pensásseis que eu não ia voltar. Mas o padre disse que ela não podia viver até de manhã, por isso não pude deixá-la.

- Não havia pressa - disse Cadfael. - Eu sabia que virias. Tens fome? Entra em casa e senta-te um pouco, e vamos arranjar-te de comer e de beber.

- Não... eles deram-me de comer. Ter-me-iam arranjado uma cama, mas não fazia parte da combinação que eu ficasse depois de já não ser necessário. Eu cumpri o acordo. - Foi acometido por um bocejo inesperado que lhe deixou os olhos cheios de água. - Agora, preciso da minha cama - disse ele, trémulo.

A única cama que ele podia reclamar naquele momento era a da sua cela penitenciária, mas dirigiu-se para ela, ansioso, contente por ter uma porta trancada entre ele e o mundo. Cadfael tirou a chave ao porteiro, que estava ali perto com alguma ansiedade, mas aliviado ao ver um delinquente por quem poderia ser responsabilizado regressar docilmente para a sua prisão. Cadfael acompanhou Tutilo para a cela, e observou-o a dirigir-se, agradecido, para o catre estreito. O rapaz sentou-se por um momento, pousando o fardo a seu lado com uma espécie de suavidade acariciadora.

- Ficai um pouco - disse o rapaz, por fim. - Vós conhecíei-la bem. Eu cheguei tarde. Como é que ela teve forças para olhar para mim, tão atormentada como estava? - Ele não queria resposta, e de qualquer maneira não podia haver nenhuma. Mas por que não haveria uma mulher que estava a morrer cedo de mais para os seus anos e tarde de mais para seu conforto apreciar a visita inesperada da juventude e da frescura e da beleza, embora imperfeita, e ainda mais pela sua vulnerabilidade e impotência num mundo nada complacente com os fracos.

- Proporcionaste-lhe um prazer intenso. O que ela conheceu mais intimamente nos últimos anos foi dor intensa. Creio que ela te viu muito claramente, melhor do que algumas pessoas que vivem ao teu lado e que parecem cegas. Melhor, talvez, do que tu próprio vês.

- A minha vista é tão boa como precisa de ser - declarou Tutilo. - Eu sei o que sou. Ninguém precisa de ser um anjo para cantar como um. Não há qualquer virtude nisso. Tinham trazido a harpa para o quarto, para mim, com cordas novas. Pensei que seria muito alto para ela, ali entre paredes fechadas, mas era o seu desejo. Conheceste-la, Cadfael, quando ela era mais jovem, e forte, e bela? Toquei durante algum tempo, e depois aproximei-me para olhar para ela, porque estava tão imóvel que pensei que adormecera, mas ela tinha os olhos completamente abertos, e tinha cor, muito rosada, na parte superior das faces. Não parecia tão magra e velha, e os seus lábios estavam vermelhos e cheios, e curvados, como num sorriso mas não exactamente um sorriso. Tive a certeza de que ela me reconheceu, mas nunca falou, nunca, ao longo de toda a noite. Eu cantei para ela, alguns dos hinos da Virgem, e depois, não sei porquê, mas não havia ninguém para me dizer para fazer, nem para não fazer, e foi a forma como senti ela levar-me, embora estivesse completamente imóvel, e a ficar mais jovem porque já não tinha dor... cantei cantigas de amor. E ela ficou contente. Só tive de olhar para ela, e percebi que estava contente. E por vezes a esposa do jovem senhor entrava sorrateiramente e sentava-se a escutar, e trazia-me de beber, e outras vezes a senhora com quem o irmão mais novo vai casar. O padre deles já a tinha absolvido. Na madrugada, aproximadamente às três horas, ela deve ter morrido, mas eu não sabia... Pensei que ela tinha adormecido verdadeiramente, até que a jovem entrou e me disse.

- Tinha adormecido verdadeiramente - disse Cadfael. - E se os teus cânticos a acompanharam no escuro, ela teve uma boa passagem. Não temos que lamentar nada. Ela esperou este fim pacientemente.

- Não foi isso que me arrasou - disse Tutilo com simplicidade. - Mas vede o que se seguiu. Vede o que eu trouxe comigo.

Abriu a boca do saco de pele que estava a seu lado e enfiou a mão para tirar com extremo cuidado o mesmo saltério que tocara no quarto de Donata, a caixa de ressonância polida e as cordas esticadas a brilhar como novas. Uma tecla partida tinha sido substituída por outra nova, e tinha três cordas novas de tripa. Pousou-o a seu lado, e acariciou as cordas, criando uma difusão de som argentino.

- Ela deu-mo. Depois de ter falecido, e de termos rezado por ela, o filho, o mais novo, trouxe-mo, todo arranjado como vedes, e disse que ela desejara que fosse para mim, pois um músico sem um instrumento é um guerreiro sem arma nem armadura. Ele contou-me tudo o que ela disse quando lho confiou para que mo entregasse. Ela disse que um trovador só precisa de três coisas, um instrumento, um cavalo e o amor de uma mulher, e desejava dar-me o primeiro, mas eu teria de arranjar os outros dois. Até mandou penas novas para mim, e algumas de reserva.

A sua voz foi ficando mais baixa e infantil de assombro e os seus olhos marejaram-se de lágrimas, ao recordar para descrever aquela adivinhação brincalhona que ainda poderia prever um futuro muito longe do claustro, que de qualquer maneira começava já a perder o encanto visionário para ele. Ela podia muito bem ter razão. Ela tinha-o visto não como um ser espiritual, mas como um corpo vigoroso e jovem, cheio de potencialidades não testadas. E os moribundos, e talvez ainda mais, as moribundas, revelavam-se de vez em quando oráculos formidáveis.

Longe do dormitório, do outro lado do pátio, soou o sino para a Prima. Cadfael pegou no saltério com todo o respeito, e pousou-o em segurança na pequena mesa de orações.

- Tenho de ir. E tu, se seguires o meu conselho, vais dormir, e esquecer tudo o resto, enquanto nós vamos tentar as sortes Biblicae. Fizeste bem à senhora, e ela fez-te bem a ti. Com a sua graça, e algumas orações que nós rezemos por ti, dificilmente poderás ir amaldiçoado.

- Oh, sim - disse Tutilo, com os olhos cansados dilatados. – É hoje, não é? Tinha-me esquecido. - A sombra momentânea tocou-o, mas não o intimidou; de certa forma, ele tinha ultrapassado o medo por si próprio.

- E agora podes esquecer novamente - disse Cadfael firmemente.

- Tu, mais do que ninguém, devias ter fé na santa pela qual te meteste neste apuro. Deita-te e dorme descansado, e acredita em Santa Winifred. Não pensaste que nesta altura ela já deve estar farta de se sentir tratada como um osso entre três cães? E se há algum tempo te confiou os seus pensamentos, achas que não pode deixá-los bem claros para nós, hoje, em público? Dorme a manhã inteira, e deixa-a dispor de todos nós.

Na meia hora entre o cabido e a Missa Solene, quando Cadfael estava ocupado a escolher a sua safra de rebentos de espinheiro negro na oficina, a tirar espinhos ocasionais e fragmentos de galhos escuros e duros, Hugh veio partilhar as respigas dos seus próprios trabalhos. Eram bastante magras, mas pelo menos o barqueiro pudera dar-lhe uma informação que talvez viesse a revelar-se útil.

- Naquela noite ele nem sequer se aproximou de Longner. Nunca atravessou o rio. Tu sabes isso, suponho? Não, mas o outro pobre infeliz atravessou, e o barqueiro recorda-se de quando foi. Parece que o padre da paróquia de Upton tem um criado que visita a família do irmão em Preston uma vez por semana, e nessa noite aquele homem percorreu a estrada de Upton até Preston juntamente com Aldhelm, que trabalha na propriedade, e vive na aldeia mais próxima. Um pastor nunca pode ter a certeza da hora a que o seu dia de trabalho vai terminar, mas o criado do padre sai de Upton logo que acabam as Vésperas, e foi o que fez desta vez. Diz que deve ter sido um pouco antes da sexta hora que Aldhelm se separou dele em Preston, para se dirigir para o barco. Dali, a travessia e a distância que ele tinha percorrido no carreiro, até ao lugar onde foi encontrado, não demorariam mais de meia hora - menos, se ele andasse depressa, e estava a chover, por isso não demoraria mais do que o necessário. Parece-me que ele foi apanhado e morto cerca de um quarto de hora ou meia hora depois das seis. Dificilmente depois disso. Ora, se o teu rapaz pudesse dizer-nos exactamente onde estava, enquanto era suposto estar em Longner, e melhor ainda, se nos trouxesse uma testemunha para confirmar a sua história, isso ilibá-lo-ia do crime.

Cadfael voltou-se para ele e olhou-o longamente, pensativo, e algumas pétalas brancas que tinham flutuado e ousado no tecido grosso da sua manga apanharam a corrente de ar da porta e flutuaram novamente, livres, e seguiram a corrente para a luz do sol pálida e clara.

- Hugh, se o que dizes é verdade, então espero que possa resultar em algo de bom. Pois, embora duvide de que ele esteja preparado para o reconhecer já, sei de outra pessoa que pode testemunhar e testemunhará que os dois estiveram juntos até ouvirem o sino para as Completas, que teria sido quase uma hora depois da que tens em mente, e ainda é preciso acrescentar uma caminhada de quinze minutos desde o sítio onde se encontrava. Mas uma vez que não se coaduna com a sua vocação, e talvez não traga nada de bom... para a outra pessoa... nenhum deles deve estar ansioso para contar abertamente, para todos ouvirem. Ao teu ouvido, com alguma persuasão, talvez ambos sussurrem.

- Onde está o rapaz agora? - perguntou Hugh, a reflectir. - Preso na penitenciária?

- E profundamente adormecido, calculo. Não estiveste em Longner a noite passada, Hugh? Não, ou ele ter-me-ia dito. Então, provavelmente, não soubeste que ele foi mandado chamar a noite passada, pouco antes das Completas, para ir para junto de Donata, por seu desejo expresso. E Radulfus deu-lhe autorização, sob escolta. Ela faleceu, Hugh. Deus e os santos lembraram-se dela, por fim.

- Não - disse Hugh -, não sabia disso. - Sentou-se em silêncio por um longo momento, a recordar como nos últimos anos se relacionara com Donata Blount e com a família desta. Não havia nada para lamentar, não, antes para gratidão e para dar graças. - Sem dúvida que a notícia já deve estar à minha espera na guarnição - disse ele. - E ela mandou chamar Tutilo?

- Achas estranho? - perguntou Cadfael brandamente.

- Fico desapontado quando as criaturas humanas não conseguem fazer algo estranho. Não, a única coisa estranha em tudo isto é aqueles dois terem sequer trocado um aperto de mãos. Qualquer pessoa teria dito que a coisa mais provável do mundo era aqueles dois nunca se verem, e muito menos conhecerem-se. Depois de se conhecerem, sim, todas as coisas eram possíveis. E ela está morta. Na presença dele?

- Ele pensou que ela tinha adormecido com a sua música - disse Cadfael. - E tinha. Ele tinha gostado, e ela também. Quando não há nada em jogo, também não há barreiras. Nada para os unir, e nada para os dividir. E esta manhã ele chegou, arrasado com a experiência, desgostoso e maravilhado, porque ela lhe ofereceu o saltério com que ele tocou para ela, e lhe mandou uma mensagem tirada directamente dos romances de trovadores. Voltou de bom grado para a sua cela, e espero que durma até todo este assunto que temos em mãos fique concluído e resolvido depois da Missa. E Que Deus e Santa Winifred nos conduzam a um bom fim!

- Ah, isso! - disse Hugh, e esboçou um sorriso algo misterioso. - Esta sortes não é uma forma bastante perigosa de decidir um assunto? Parece-me que não é nada difícil de trapacear. Houve uma altura, segundo as tuas próprias palavras, que tu trapaceaste... por uma boa causa, é claro!

- Eu trapaceei para impedir um roubo, não para conseguir um - disse Cadfael. - Nunca enganei a Santa Winifred, nem ela será enganada agora. Ela não me sobrecarregará com mais do que é o meu dever, e também não deixará aquele rapaz pagar por um crime que tenho a certeza que não cometeu. Ela sabe aquilo de que precisamos e o que merecemos. Reparará os males e reconciliará as zangas, quando considerar que é o momento certo.

- E sem qualquer ajuda minha - concluiu Hugh, e levantou-se, a rir. - Vou-me embora e deixo-vos com a vossa tarefa, mais vale estar noutro lado enquanto vocês, monges, resolvem o vosso problema. Mas quando ele acordar... pobre rapaz, não quero perturbá-lo!... temos de trocar umas palavras com o vosso canário.

Cadfael foi para a igreja antes da Missa Solene, inquieto apesar de todas as suas declarações de fé, e culposamente penitente pela sua inquietação, uma contorção dupla da mente. De qualquer maneira, não havia tempo para fazer a sua infusão antes da verificação dos pesos e medidas: deixou os rebentos de espinheiro negro, limpos de todos os espinhos e galhos, à espera do seu regresso num recipiente limpo, e protegidos de quaisquer partículas flutuantes de pó por um pano de linho. Ainda tinha algumas pétalas agarradas às mangas, apanhadas no tecido grosso. Tinha outras na tonsura grisalha, caídas dos ramos mais altos quando o vento os abanava. À distância, esta neve de Primavera trouxe à sua lembrança outras Primaveras, e rebentos tardios, parecidos com estes mas diferentes, quando os espinheiros-alvares abriam numa doçura inebriante, afogando os sentidos.

Mais quatro ou cinco semanas, e essa neve maior embranqueceria as sebes. O cheiro de plantas crescidas e verdes estava já no ar, esquivo mas constante, como a ondulação secreta da água, o sussurro da água de Fevereiro, agora quase silenciado.

Mais por instinto do que por desígnio, deu por si junto ao altar de Santa Winifred, e ajoelhou-se para se aproximar dela, pousando cuidadosamente os joelhos perros no degrau mais baixo do seu altar elevado. Não proferiu qualquer palavra, embora as pensasse no seu íntimo, na língua galesa, que fora nativa dela como era dele. No lugar a que pertencia e onde desejava estar, ela mandaria. O que lhe pedia era orientação no caso da morte de um jovem, de um jovem puro que apascentava ovelhas com suavidade e cuidado, como ovelhas de Deus, e nunca merecera morrer de repente, antes da sua hora, embora o amor de Deus pudesse ter posto uma mão segura por baixo dele quando ele caíra, e pudesse tê-lo erguido para a luz. E outro jovem suspeito de uma coisa muito para além do seu alcance, que não devia sofrer uma morte igualmente injusta.

Nunca duvidou de que ela estava a escutá-lo. Não voltaria as costas a um suplicante. Mas não estava tão seguro em relação ao espírito com que estaria a escutá-lo, tendo em conta tudo o que acontecera. Cadfael dirigiu as suas orações para ela com resignada humildade, mas sempre em bom galês do norte, o galês de Gwynedd. Ela podia estar indignada, mas mesmo assim seria justa.

Quando se ergueu, apoiando-se na beira do altar, forrado de novo em celebração do seu regresso, e na expectativa da sua continuação ali, não a deixou imediatamente. A calma que se sentia ali era ao mesmo tempo agradável e ominosa, como o sussurro antes da batalha. E os Evangelhos, não o grande livro iluminado, mas um mais pequeno e mais resistente, concebido para resistir a dedos demasiado astutos pelo seu menor uso e páginas mais leves, já se encontrava em cima do relicário revestido a prata, colocado num lugar central com precisão correcta e reverente. Pousou a mão nele, e centrou todas as suas orações para orientação e iluminação com o toque dos dedos, e de repente decidiu abri-lo. "Rapariga, mostra-me o caminho agora, pois tenho uma criança para cuidar. Um mentiroso e um ladrão e um tratante, mas foi o que este mundo fez dele, e pode ser tão doce como falso. E não um assassino, embora possa ser muitas outras coisas.

Duvido que tenha feito mal a uma única alma nos seus vinte e poucos anos. Diz-me uma palavra, uma palavra esclarecedora, para o libertar da sua gaiola."

O livro dos destinos já estava ali à sua frente. Quase sem pensar conscientemente, pousou ambas as mãos nele, ergueu-o, e abriu-o. Fechou os olhos quando o pousou no seu lugar, pressionando-o sobre a mão esquerda, e colocou o dedo indicador da mão direita na página exposta.

Inesperadamente consciente do que tinha feito, manteve-se muito quieto, sem mexer um único dedo, acima de tudo não aquele dedo indicador, enquanto abria os olhos e olhava para onde este apontava.

Estava no Apóstolo Mateus, no décimo capítulo, e o dedo ardente, a carregar tanto que amarrotava a folha, estava pousado no Versículo 21.

Cadfael tinha aprendido latim tarde, mas aquela frase era bastante simples:

"[...] e o irmão entregará o irmão à morte."

Ele ficou a olhar para as palavras, e no começo não fizeram o menor sentido, para além da menção agourenta da morte, e morte intencional, não o fim calmo de uma vida como o falecimento de Donata. O irmão entregará o irmão à morte... Fazia parte da profecia da desintegração e do caos que se esperava nos últimos dias; dentro desse contexto não passava de uma imagem numa cena mais alargada, mas aqui estava tudo, era uma resposta. Para quem era há muitos anos membro de uma irmandade, as palavras eram significativas. Não um desconhecido, não um inimigo, mas um irmão a trair um irmão.

E de repente foi visitado por uma breve visão de um jovem a percorrer rapidamente um pequeno caminho de um bosque numa noite escura, no meio de uma chuva penetrante, com uma capa castanho-escura sobre o corpo e o capuz bem aconchegado na cabeça. O vulto passou, e não passou de um vulto, tenuemente divisado sob o céu escuro que se via no meio das árvores: mas o vulto era familiar, um homem encapuçado, amortalhado em tecido volumoso. Ou um homem escondido por um hábito preto de monge? Nessas condições, qual seria a diferença?

Foi como se uma porta se tivesse aberto diante de si e lhe tivesse mostrado uma luz fraca mas positiva. Um irmão entregue à morte... E se aquilo fosse verdade, e se a vítima pretendida fosse outra, não Aldhelm? Ninguém a não ser Tutilo tivera motivos para temer o testemunho de Aldhelm, e Tutilo, embora tivesse estado fora do enclave naquela noite, negava firmemente qualquer ataque ao jovem, e pequenos pontos começavam a corroborar a sua versão dos acontecimentos. E Tutilo era de facto um irmão, e estava ausente naquela noite, e esperava-se que viesse por aquele caminho. E em corpulência, e idade, sim, a caminhar para se livrar o mais depressa possível da chuva, podia muito bem assemelhar-se bastante à silhueta que Aldhelm apresentaria, para um assassino que estivesse à espera.

De facto, um irmão entregue à morte, se outro homem não tivesse seguido por aquela estrada antes dele. Mas quanto ao outro, ao que planeara a morte? Se o significado daquele oráculo fosse o que parecia, a palavra "irmão" tinha seguramente um duplo significado monástico. Um irmão daquela casa, ou pelo menos da Ordem Beneditina. Cadfael não conhecia nenhuma para além de Tutilo que tivesse saído do enclave naquela noite, mas um homem que pretendesse cometer um acto daquele género dificilmente apregoaria a sua intenção ou deixaria alguém perceber que se tinha ausentado. Alguém dentro da Ordem que odiava Tutilo o suficiente para tentar assassiná-lo? O prior Robert talvez não tivesse ficado muito desgostoso se Tutilo tivesse sido castigado pela ofensa ultrajante com a vida, mas o prior Robert tinha estado a jantar com o abade e diversas outras testemunhas naquela noite, e de qualquer maneira dificilmente poderia ser imaginado emboscado no meio de um bosque molhado para abater o delinquente com as suas mãos elegantes. Herluin poderia ter contra o rapaz o facto de ele ter desgraçado Ramsey não tanto por tentar um roubo, mas por ter falhado, mas Herluin também tinha estado na festa do abade. E, no entanto, o oráculo tinha-se cravado na mente de Cadfael como um espinho dos arbustos de espinheiro negro, e não se desprenderia.

Foi para o seu banco com as palavras a ecoar vezes sem conta no seu ouvido interior: "e o irmão entregará o irmão à morte". Precisou de toda a sua força de vontade e concentração para banir o som daquelas palavras, e dedicar-se de alma e coração à celebração da missa.

 

                                   Capítulo Nove

No fim da missa, depois de as crianças serem dispensadas para os seus estudos com o irmão Paul, e apenas com os monges do coro por testemunhas espantadas, o abade Radulfus rezou uma oração rápida e prática para pedir orientação, e aproximou-se do altar de Santa Winifred. - Com todo o respeito - disse o conde Robert, mantendo-se cortesmente afastado, e no tom de voz mais suave e razoável possível -, como poderemos determinar quem deverá ser o primeiro a tentar a sorte? Existe alguma regra que devamos seguir?

- Estamos aqui para perguntar - respondeu o abade com simplicidade. - Perguntemos do princípio ao fim, da contenção à resolução, e não avancemos pedidos nem reservas da nossa parte. Concordámos. Cumpramos o acordo. Perguntarei sobre a ordem de procedimentos, e depois deixo a causa de Shrewsbury ao prior Robert, que fez a viagem para o País de Gales para encontrar Santa Winifred, e trouxe as suas relíquias para cá. Se algum de vós tem alguma coisa a objectar, que nomeie quem quiser. O padre Boniface não se recusaria a fazer-nos esse serviço, se lho pedirdes.

Ninguém teve qualquer objecção a fazer, até Robert Bossu resolver falar, muito amigavelmente, para esboçar um consentimento de outra forma expresso em silêncio.

- Padre Abade, se fordes vós a prosseguir, então estamos todos satisfeitos.

Radulfus subiu os três degraus baixos, e com ambas as mãos abriu os Evangelhos, com os olhos fixos acima, na cruz, para não poder calcular onde o seu dedo pousaria na página aberta.

- Aproximai-vos - disse ele -, e confirmai pessoalmente que não houve fraude. Vede as palavras, para que constateis que o que leio em voz alta é o que as sortes me enviaram.

Sem hesitar, Herluin veio espreitar avidamente. O conde Robert deixou-se ficar tranquilamente onde estava, e afastou com um gesto a necessidade de confirmação.

O abade Radulfus baixou os olhos para o local onde o seu dedo indicador estava pousado, e transmitiu sem emoção:

- Estou no Evangelho de São Mateus, no vigésimo capítulo. E a frase diz: "Os últimos serão os primeiros, e os primeiros os últimos."

"Não há como contestar isso", pensou Cadfael, a olhar com alguma ansiedade do seu lugar retirado. Quando muito, era bastante suspeito que a primeira análise produzisse uma resposta tão apta; os prognósticos dos bispos eram muitas vezes conhecidos por serem extremamente ambíguos. Se tivesse sido outro que não Radulfus a testar as águas, Radulfus na sua rectidão inflexível, quase se poderia ter suspeitado... Mas isso significaria limitar ou duvidar do alcance do poder da santa. Ela que podia chamar um jovem aleijado para si e apoiá-lo com a sua divina graça enquanto ele largava as muletas nos degraus do seu altar, porquê duvidar de que ela podia virar as folhas de um Evangelho, e guiar um dedo fiel para as palavras que a sua vontade requeria?

- Parece - declarou o conde Robert, após um momento de silêncio delicado em deferência para qualquer outra pessoa que pudesse desejar falar - que, na qualidade de último a chegar, este veredicto coloca-me como primeiro nas listas. É essa a sua interpretação, Padre?

- O significado parece bastante óbvio - disse Radulfus; fechou cuidadosamente os Evangelhos, alinhou o livro escrupulosamente ao centro do relicário, e desceu os degraus para ficar bem afastado. - Prossegui, senhor.

- Que Deus e Santa Winifred disponham! - disse o conde, e subiu sem pressa, para ficar um momento, imóvel, antes de abrir o livro com gestos lentos e hieráticos que podiam ser vistos claramente por todos, com a lombada entre as mãos compridas e musculosas, os polegares a encontrarem-se para separar as páginas. Abrindo completamente o livro, ele pousou por instantes as palmas das mãos nas páginas escolhidas, e depois deixou o dedo pairar mais um momento antes de tocar. Não tinha olhado para baixo nem passado a ponta de um dedo pelos cantos das folhas, para determinar em que ponto do livro se encontrava a página. Existem formas de tentar manipular até as sortes Biblicae, mas ele evitara-as meticulosa e demonstrativamente. "Ele nunca está ansioso", reflectiu Cadfael com certeza, "e usar artifícios estragaria a sua diversão. Ele está interessado em espicaçar o prior Robert e o sub-prior Herluin para que eles se irritem um com o outro com faces escarlates e gargantas a destilar raiva."

O conde leu em voz alta, traduzindo para o vernáculo tão fluentemente como qualquer membro do clero:

- "Procurar-me-eis, e não me encontrareis; e onde estou, não podeis vir." - Levantou os olhos, pensativo. - É São João, capítulo dezassete e versículo cinquenta e quatro. Padre Abade, aqui está um dito estranho, pois ela veio ter comigo quando eu não a esperava, quando não sabia nada dela. Foi ela que me encontrou. E aqui está seguramente uma charada difícil de interpretar, e onde ela está eu não posso ir, se aqui ela está de facto, e aqui estou eu ao seu lado. Como decifrais isto?

Cadfael teria podido esclarecê-lo, mas manteve a boca muito bem calada, embora tivesse sido interessante responder à pergunta, e ouvir a reacção daquele homem subtil. Era até tentador, pois ali estava um homem que teria apreciado toda a ironia. Robert Bossu tinha seguido a disputa até Shrewsbury em busca de diversão numa época de frustração e inacção, e era uma pena que tivesse de lhe ser negada a melhor parte da piada que era muito mais do que simplesmente uma piada. Isso teria de ser partilhado apenas com Hugh, que conhecia o melhor e o pior do seu amigo Cadfael. Não, havia mais alguém que sabia tudo. Seguramente, de vez em quando Santa Winifred lembrava-se e sorria, no seu sono tranquilo em Gwytherin, até se ria quando se erguia para estender os raios de sol da sua graça para erguer um rapaz aleijado ali em Shrewsbury.

E de certa forma esta resposta, como a primeira, foi surpreendentemente apropriada, brandindo uma verdade secreta e um paradoxo diante de um homem que os teria apreciado ao máximo, mas a quem o segredo não podia ser confiado. Se a vontade dela fosse atormentar e surpreender, então por que não exercer a sua suave vingança?

- Eu estou como vossa senhoria - disse o abade, e sorriu. - Escuto e procuro compreender. Talvez precisemos de esperar até tudo ter sido respondido antes de podermos ter esperança de sermos iluminados. Continuamos, e esperamos a revelação?

- De bom grado! - exclamou o conde, e voltou-se para descer os três degraus, com as pontas do manto carmim a rodopiar à sua volta. Daquele ângulo, a descer com as velas do altar atrás de si, o ombro elevado e o alto por baixo mal quebravam a simetria de um corpo maravilhosamente compacto e com um porte admirável. Retirou-se imediatamente para uma distância graciosa, para não perturbar de forma alguma a privacidade e compostura do contendor seguinte, e os seus dois jovens escudeiros, bem treinados para serem igualmente discretos no serviço, colocaram-se em silêncio um de cada lado do conde.

"Se ele joga jogos para passar o tempo de tédio", pensou Cadfael, "joga-os com regras nobres, até os que inventa a seu bel-prazer. Hugh gostou dele desde o primeiro momento; e eu também gosto dele, gosto bastante dele." E, sem querer, começou a reflectir sobre a estranheza das relações humanas. "Que tem um homem como este", surpreendeu-se, "a ver com o nosso Stephen barulhento, impetuoso, cândido, que se atira às coisas como umtouro enraivecido? E também, agora que os vejo neste momento com tanta clareza, que tem Hugh a ver também com o rei? Não devem todas as almas pensantes estar a ficar horrivelmente cansadas desta longa contenção que não faz progressos, que desperdiça homens e culturas e o próprio bem-estar da terra? Cansadas não apenas de Stephen, mas também, talvez ainda mais, desta senhora que enfia os dentes no império e não o solta. Algures, deve haver um herdeiro mais promissor, um sinal de um sol capaz de dispersar dúvidas como nevoeiros matinais, e fazer desaparecer da nossa vista tanto o rei como a imperatriz, com toda a confusão, caos e desperdício que eles trouxeram para esta terra." - Padre Herluin - disse Radulfus -, quereis experimentar? Herluin avançou para o altar com grande lentidão, como se aqueles poucos passos, e a subida dos três degraus, devessem ser utilizados em pleno para orar, e para uma concentração ardente neste único esforço que realizaria ou desfaria para si uma ambição querida. No seu rosto cavado, comprido e pálido, os olhos ardiam sombriamente, como brasas meio consumidas. Apesar da ansiedade que sentia, quando chegou o momento do teste ele hesitou em tocar, e pousou as mãos no livro por duas ou três vezes, apenas para as afastar novamente do contacto. Um estudo interessante, este, das técnicas variadas com que homens diferentes se aproximavam do momento da verdade. Robert Bossu tinha colocado o livro com vivacidade entre as palmas das mãos abertas, separara as páginas com ambos os polegares, abrira-as completamente, e pousara o dedo onde o acaso o levara. Quando por fim tocou, Herluin tocou como se o pergaminho fino pudesse queimá-lo, tímida e convulsivamente, e mesmo quando tinha o livro aberto, para o melhor ou para o pior, agonizou alguns momentos sobre onde escolher na página, passando do retro para o verso e de novo para trás antes de parar. Depois de se comprometer, respirou fundo, e espreitou para ver o que o destino tinha escolhido para si. Engoliu em seco e ficou em silêncio.

- Lede! - pediu Radulfus delicadamente.

Não havia outro remédio. Tinha a voz alterada, mas falou com clareza, talvez até um pouco mais alto do que seria natural porque lhe era muito difícil dizer as palavras.

- É o décimo terceiro capítulo de São Lucas, versículo vinte e sete. "Digo-vos, não vos conheço, de onde vieram. Afastai-vos de mim, trabalhadores da iniquidade..." - Levantou a cabeça, o rosto pálido de afronta, e fechou firmemente o livro antes de olhar em volta para os semblantes cuidadosamente respeitosos que o rodeavam como as estacas de uma vedação, uma barreira para a qual encontrou a única saída digna, às custas de outra pessoa. - Fui vergonhosamente enganado e iludido. Ela mostra a minha falta, o erro de ter confiado num mentiroso e num ladrão. Não foi pela vontade dela, com a sua ordem, que o irmão Tutilo... atrevo-me ainda a chamar-lhe irmão?... a roubou, e pior, nas trevas da sua ofensa levou outra alma inocente para o pecado, se não para a morte. O seu crime não é só de roubo mas também de blasfémia, pois desde o princípio mentiu impiamente, dizendo que tinha tido uma revelação da santa, e desde então escondeu a sua ofensa com uma mentira atrás da outra. Agora ela deu-me a conhecer claramente a infâmia, e mostrou que em toda esta deambulação desde o rapto ela já tinha tomado a decisão de voltar para este lugar de onde foi roubada. Padre Abade, retiro-me com pesar e humildade. A piedade que ela pode ter sentido por Ramsey e pelos seus padecimentos, ele caluniou e roubou, e não temos quaisquer direitos nesta contenda. Reconheço com lágrimas, e imploro o perdão da santa!

Para si próprio! Certamente não para o rapaz infortunado que naquele momento dormia numa cela estreita. Pouco perdão haveria para ele se Herluin fizesse a sua vontade. Tutilo pagaria cada tormento desta humilhação, tal como estava agora a pagar todas as partículas de culpa, para melhor demarcar Herluin, inocente e devoto, apenas velhacamente enganado, sem nada de que arrepender-se a não ser a sua fé demasiado profunda.

- Esperai! - disse o abade Radulfus. - Não façais ainda julgamentos. É tão possível uma pessoa enganar-se a si própria como enganar outras. Nenhum homem deve ser condenado na primeira ira. E a santa ainda não nos falou de Shrewsbury.

"É bem verdade", reflectiu Cadfael, "pois ela pode muito bem ter algumas censuras a fazer-nos, não menos do que a Ramsey. E se ela escolher este momento e este público para tornar conhecido que só nos visita por pura caridade, que o que jaz no seu bonito relicário é na realidade o corpo do jovem que assassinou para a garantir para Shrewsbury, e morreu ele próprio por acidente, em circunstâncias que tornaram vital que desaparecesse? Uma ofensa pior do que Tutilo cometera numa causa semelhante, para a conseguir para Ramsey." Ao voltar a colocá-la reverentemente na sepultura de onde ele a tinha tirado, e ao selar o assassino no caixão abandonado que se destinava a ela, Cadfael estivera e ainda estava convencido de que tinha feito a vontade dela, ao repô-la no lugar de descanso que ela desejava. Mas não seria possível que Tutilo tivesse acreditado com a mesma sinceridade?

Uma das venturas, a santa tinha acabado de condenar. Agora a outra ia ser posta à prova! Felizmente para o prior Robert, pelo menos naquele momento aproximava-se numa inocência absoluta. "Mas eu", pensou Cadfael, atormentado, "posso estar prestes a pagar plenamente por todos os meus pecados."

Bem, era justo!

O prior Robert podia ter algumas dúvidas em relação ao seu valor, embora essa fosse uma fraqueza à qual ele raramente sucumbia. Subiu os degraus do altar com grande solenidade, e uniu as mãos diante do rosto para um convulsivo momento final de oração, com os olhos fechados. Na verdade, manteve os olhos fechados enquanto abria os Evangelhos, e plantava o comprido dedo indicador às cegas na página. A avaliar pelo tamanho da pausa que se seguiu, antes de ele abrir os olhos e olhar, confuso para ver o que o destino lhe reservara, passou por algum receio devoto do seu merecimento. Quem esperaria que o pilar da casa abanasse?

O equilíbrio foi restaurado imediatamente. Robert endireitou a sua impressionante cabeça prateada, e uma onda de cor triunfal subiu desde a garganta alta e coloriu-lhe as faces. Numa voz que hesitava entre a exultação e o temor, leu em voz alta:

- São João, décimo quinto capítulo e décimo sexto versículo: "Tu não me escolheste, mas eu escolhi-te."

A toda a volta da assembleia de irmãos à espera e a observar com a respiração suspensa, o grande estremecimento e suspiro passou como uma rabanada de vento, ou a formação de uma onda na margem, e depois, como o desaparecimento de uma onda em espuma, desintegrada num murmúrio sussurrado e inquieto, os irmãos mexeram-se, acotovelaram-se, tremeram de alívio e com uma sugestão de emoção histérica entre o riso e as lágrimas. O abade Radulfus endireitou-se instantaneamente numa rígida autoridade, e ergueu uma mão moderadora para acalmar a tempestade incipiente.

- Silêncio! Respeitai este lugar sagrado, e aceitai todos os destinos com compostura, como os homens devem fazer. Padre Prior, descei para junto de nós agora. Tudo o que era preciso já foi feito.

O prior Robert ainda estava tão cego que quase tropeçou nos degraus, mas recompôs-se com aristocrática dignidade e quando chegou às lajes do chão já assumira novamente a sua personalidade oficial de complacência. Se a experiência de temor religioso deixara algum efeito permanente era coisa que teria de ser verificada com o tempo. Cadfael pensou que provavelmente não deixaria. De qualquer maneira, tinha deixado um efeito temporário forte na sua complacência mais cautelosa mas igualmente humana. Durante algum tempo andaria com pés de lã, por temer a indignação e o esquecimento da pequena santa galesa.

- Padre - disse o prior Robert, e a sua voz já tinha de novo toda a ressonância calculada e melíflua -, cumpri fielmente a tarefa que me foi confiada. Agora, estes destinos podem ser interpretados.

Oh, sim, era ele próprio de novo, traria a sua glória consigo enquanto ela tivesse algum brilho. Mas pelo menos, naqueles poucos momentos, tinha-se mostrado tão humano como qualquer outro homem. Todos aqueles que tinham visto, não esqueceriam jamais.

- Padre Abade - disse o conde, delicadamente. - Eu retiro todas as pretensões. Interrogo-me mesmo sobre como posso estar aqui na sua virginal companhia, e podeis dizer-me que nunca mais poderei voltar ao lugar onde ela se encontra. Embora deva confessar que, provavelmente, existe uma história aqui que eu gostaria muito de ouvir. - Sim, ele era muito rápido, percebeu Cadfael, o paradoxo era um prazer para ele. - O terreno é vosso, até ao fim - disse Robert Bossu com sinceridade. - Claramente, esta senhora abençoada trouxe-se para casa de novo sem ajuda minha nem de qualquer outra pessoa. Dou-vos a alegria dela! E por nada neste mundo me imiscuiria nos seus planos, embora sinta um grande orgulho por ela ter acedido a visitar-me durante algum tempo. Com a vossa permissão, em acção de graças farei um donativo.

- Penso - disse Radulfus - que Santa Winifred ficaria agradecida se decidísseis fazer o vosso donativo, em honra dela, à abadia de Ramsey. Somos todos irmãos da mesma Ordem. E mesmo que ela tenha sido tirada daqui por acção de erros e ofensas humanos, tenho a certeza de que não ficará com ressentimentos por uma casa-irmã que se encontra num momento de aflição.

Cadfael pensou que estavam ambos a falar naqueles termos pomposos e cerimoniosos para amenizar os primeiros momentos amargos, e para darem ao sub-prior Herluin tempo para dominar o seu desgosto, e conseguir uma retirada airosa. Ele já tinha engolido o pior da sua bílis, embora num trago que quase o sufocara. Era capaz de reconhecer a derrota com decente civilidade. Mas nada, nada poderia agora suavizar a sua mente contra aquele pobre jovem que esperava a penitência em segurança atrás de uma porta trancada.

- Sinto vergonha - disse Herluin, tenso - por mim e pela minha abadia, por termos alimentado e albergado e confiado num aspirante muito falso à irmandade. Atrevo-me a desculpar a minha abadia. Não posso desculpar-me a mim próprio. Seguramente, devia estar mais bem armado contra os embustes do diabo. Confesso que fui cego e tolo, mas nunca desejei mal a esta casa, e humilho-me no reconhecimento do mal feito, e peço perdão. Sua senhoria de Leicester também falou por mim. O terreno é vosso, padre abade. Recebei toda a sua honra e todas as suas vantagens. Existiam formas de uma pessoa se humilhar... embora o prior Robert talvez tivesse conseguido fazê-lo com mais graciosidade se as coisas tivessem corrido de outra maneira!... como um meio de se exaltar. Aqueles dois eram parecidos, embora Robert, de nascimento mais nobre, tivesse um domínio mais completo, e talvez bastante menos malícia ardente quando levavam a melhor sobre ele.

- Se estais todos satisfeitos - disse Radulfus, considerando que aquelas trocas de palavras não estavam a tornar-se meramente maçadoras, mas também verbosas -, gostaria de encerrar esta assembleia com uma oração, e depois dispersar.

Ainda estavam de joelhos após o último Ámen, quando se levantou uma rabanada súbita de vento, soprando pela nave do altar em direcção ao coro, como se tivesse entrado pela porta sul, embora não tivessem ouvido barulho do ferrolho a ser levantado nem da porta a chiar. Todos sentiram, e como o ar ainda estava impregnado de profecia e contenção, todos se sobressaltaram e escutaram com atenção, e vários abriram os olhos para olhar em volta à procura da origem daquele vento abrupto vindo do mundo exterior. O irmão Rhun, o devoto cavaleiro de Santa Winifred, voltou a bonita cabeça instantaneamente para olhar para o altar, pois o seu primeiro cuidado zeloso estava sempre ao serviço e adoração da santa. E no silêncio, em voz alta e nítida, exclamou:

- Padre, olhai para o altar! As páginas dos Evangelhos estão a virar-se!

O prior Robert, que descia do seu lugar elevado ainda cego, com o triunfo a rodopiar à sua volta em nuvens de glória, tinha deixado o Evangelho aberto onde a sua vitória fora escrita, São João, o último dos evangelistas, numa parte avançada do manuscrito. Todos os olhos se abriram então para observar, e na verdade as páginas do livro estavam a recuar, lentamente, de forma hesitante, ficando direitas para deslizar para a frente, por vezes uma única folha, por vezes um sopro mais forte que virava várias ao mesmo tempo, quase como se fossem levantadas e guiadas por dedos, que as passavam à pressa. Os Evangelhos estavam a voltar para trás, a sair de São João para entrar em São Lucas, de São Lucas para São Marcos... e para lá dele... Estavam todos a olhar, fascinados, mal reparando, mal compreendendo, que o vento abrupto da porta sul caíra numa imobilidade total, e mesmo assim, folha após folha, agora lenta e deliberadamente, as folhas continuavam a ser viradas. Erguiam-se, ficavam quase paralisadas, e gradualmente desciam e iam para junto do monte dos últimos livros do Evangelho.

Pois naquele momento deviam estar em São Mateus. E foi então que o ritmo abrandou, foi-se erguendo folha por folha, que ficava erecta e depois descia lentamente. A última a voltar-se instalou-se levemente, não completamente pousada sobre as companheiras, mas depois imobilizou-se, e não se sentiu um único sopro do vento que tinha voltado as páginas.

Durante alguns momentos, ninguém se mexeu. Depois, o abade Radulfus levantou-se e dirigiu-se para o altar. O que o ar espontâneo escrevera devia ter um significado mais do que natural. Não tocou, mas ficou a olhar para a página.

- Vinde, alguns de vós. Que haja mais testemunhas do que eu próprio.

Instantes depois, o prior Robert estava no fundo dos degraus, suficientemente alto para ver e ler sem subir. Cadfael aproximou-se pelo outro lado. Herluin conteve-se, demasiado mergulhado no seu próprio turbilhão de pensamentos para estar muito preocupado com mais maravilhas, mas o conde acercou-se numa curiosidade cândida, esticando-se para ver as páginas abertas. Do lado esquerdo, a folha estava ligeiramente levantada, a mexer um pouco devido às suas tensões, pois agora não soprava vento nenhum. A página da direita estava imóvel, e na parte interior encontravam-se algumas pétalas brancas, e um único rebento duro de espinheiro negro, com a flor branca a desabrochar da casca escura.

- Eu não toquei - declarou Radulfus -, pois não fui eu nem ninguém aqui que perguntou. Aceito o presságio como uma graça. E aceito este rebento como o dedo da verdade assim manifestada. Aponta-me para o versículo numerado como o vigésimo primeiro, e a frase é: "E o irmão entregará o irmão à morte."

Fez-se um silêncio prolongado e temeroso. O prior Robert estendeu uma mão reverente para tocar na fila minúscula de pétalas soltas, e no rebento em flor que se tinha alojado na lombada.

- Padre Abade, não estivestes connosco em Gwythrin, se não teríeis reconhecido esta maravilha. Quando a abençoada santa nos visitou ali na igreja, como antes em visão, veio com uma chuva de pétalas de espinheiro-alvar. A estação ainda não está suficientemente avançada para as flores do espinheiro alvar, mas estas... mas ela manda estas no seu lugar, uma vez mais como testemunhas da sua pureza. É um sinal directo de Santa Winifred. Estamos obrigados pelo nosso cargo a ter em atenção o que ela nos confiar.

Um estremecimento e um murmúrio percorreu os irmãos que observavam, e aproximaram-se suavemente do milagre. Algures no meio deles, alguém respirou funda e dolorosamente como um soluço, apressadamente suprimido.

- É uma questão de interpretação - disse Radulfus gravemente. - Como poderemos compreender este oráculo?

- Fala de morte - disse o conde, prático. - E houve uma morte. A ameaça dessa morte paira, segundo percebi, sobre um jovem irmão da vossa Ordem. A sombra paira sobre todos. Este oráculo fala de um irmão como o instrumento de morte, que se encaixa no caso tal como é conhecido neste momento. Mas fala igualmente de um irmão como vítima. A vítima não foi um irmão. Como deve isto ser interpretado?

- Se ela apontou realmente o caminho - disse o abade com firmeza -, não podemos deixar de segui-lo. "Irmão", diz ela, e se acreditarmos na sua palavra, foi a morte de um irmão que foi planeada por um irmão. O significado que essa palavra tem no interior destas paredes, a santa conhece-o tão bem como nós. Se alguém entre nós tem um pensamento para partilhar sobre este assunto extremamente urgente, que fale agora.

No silêncio inquieto, enquanto os irmãos olhavam ansiosamente uns para os outros, e se interrogavam, e procuravam ou fugiam dos olhos do vizinho, o irmão Cadfael disse:

- Irmão Abade, tenho pensamentos para partilhar que nunca me visitaram até esta manhã, mas estão a tornar-se muito relevantes agora. A noite do homicídio estava escura, não apenas por causa da hora, mas também por causa do tempo, pois as nuvens estavam baixas, e caía uma chuva miudinha. O sítio onde o corpo de Aldhelm foi encontrado situa-se numa zona densamente arborizada, não podada, num carreiro estreito, onde a única luz viria do céu aberto por cima do trilho. O suficiente para revelar um vulto, uma forma, a um homem que estivesse à espera, e com olhos acostumados à escuridão. E o vulto que Aldhelm apresentaria era o de um homem que se adivinhava jovem devido ao passo e ritmo, com uma capa acastanhada chegada ao corpo para se proteger da chuva, e com o capuz bicudo colocado sobre a cabeça.

Padre, como se pode isso distinguir, em tais condições, de um irmão Beneditino com um hábito escuro e capuz, se ele for jovem e estiver a caminhar rapidamente para sair da chuva?

- Se te compreendi bem - disse Radulfus, depois de ter perscrutado o rosto de Cadfael, e encontrado nele uma ansiedade muito séria -, estás a dizer que o jovem foi atacado por engano, por ter sido confundido com um irmão Beneditino.

- Coaduna-se com o que está escrito na sorte - disse Cadfael.

- E com a obscuridade da noite, garanto-te. Estás também a sugerir que o alvo pretendido era o irmão Tutilo? Que ele não era o caçador, mas a presa?

- Padre, esse pensamento não me sai da cabeça. Em aparência física e idade os dois são bastante parecidos. E como todos os homens sabem, ele estava ausente do enclave naquela noite, com autorização, embora possa tê-la conseguido através da mentira. Sabia-se que regressaria por aquele caminho... ou, pelo menos, segundo o que nos tinha feito crer a todos, e, Padre, admita-se, ele tinha feito muito para arranjar inimigos nesta casa.

- Irmão a voltar-se contra irmão... - disse o abade, sombriamente. - Bem, somos todos homens falíveis como o resto da humanidade, e o ódio e a maldade não estão fora do nosso alcance.

Mas, então, como justificas este segundo e mortífero irmão? Nessa noite, ninguém saiu do enclave para fazer um recado.

- Ninguém que nós saibamos. Mas não é difícil - disse Cadfael - passar despercebido durante algum tempo. Há maneiras de entrar e sair para quem está determinado a passar.

O abade fitou-o sem um sorriso; tinha sempre um controlo absoluto sobre as suas emoções. Apesar disso, não aconteciam muitas coisas naquela casa que Radulfus não soubesse. Tempos houvera em que Cadfael saíra e voltara de noite, sem passar pelo portão, para tratar de assuntos urgentes que achava serem justificação para a ausência. Dos instrumentos das boas acções listados na Regra de São Benedito, logo a seguir ao amor a Deus vinha o amor pela humanidade, e Cadfael reverenciava a Regra acima das normas pormenorizadas e meticulosas.

- Sem dúvida que podes falar pela longa experiência - disse o abade. - Certamente, isso é verdade. Porém, não conhecemos mais nenhum dissidente nessa noite. A menos que tenhas um conhecimento que eu não possuo.

- Não, Padre, não tenho nenhum.

- Se posso atrever-me - disse o conde Robert, desaprovadoramente -, por que não pedirmos ao oráculo que falou de dois irmãos que nos envie mais um sinal? Seguramente, temos o dever de seguir esta pista o melhor possível. Poderá ser demasiado pedir um nome, mas existem outros meios, como esta abençoada senhora nos mostrou, de deixar todas as coisas claras.

Gradualmente, quase furtivamente, todos os irmãos se levantaram dos bancos e se reuniram num círculo à volta daquele altar e do grupo que conversava aos seus pés. Não se aproximaram muito, mas ficaram a uma distância em que podiam ouvir tudo o que era dito. E algures no meio deles, embora não se pudesse localizar facilmente, havia um centro de inquietação desesperada mas controlada, uma inquietação que fazia o ar dentro do coro estremecer, com uma vibração rápida de intranquilidade e medo, como um batimento cardíaco no pânico esvoaçante das asas de um pássaro. Cadfael sentiu-o, mas pensou que não era mais do que a tensão das sortes. E aquilo era o suficiente. Ele próprio estava a começar a ter uma dor, como se estivesse a ser esticado na roda, e o pior ainda estava para vir. Já era mais do que tempo de acabar com aquilo, e libertar todas aquelas almas sobrecarregadas para o ar húmido, gelado e calmante do princípio de Março.

- Se de alguma maneira todos os irmãos são acusados por esta última frase - disse o conde Robert, esperançoso -, são eles, os filhos mais humildes da casa, que têm mais direito de pedir um nome. Se achardes adequado, Padre Abade, deixar que um deles apele a um julgamento. De que outra forma poderão os outros ser justificados? A justiça é sem dúvida devida aos inocentes, com um direito ainda mais forte do que o castigo aos culpados.

Cadfael pensou que se ele ainda estava a divertir-se, estava a fazê-lo com a dignidade eloquente dos arcebispos e de todos os juizes do rei. A brincar ou a sério, um homem assim não gostaria de deixar este mistério humano e mais do que humano por resolver. Empurrá-lo-ia e induzi-lo-ia o mais que pudesse para um fim. E tinha um bom ouvinte no prior Robert, seu homónimo. Agora que o prior tinha a garantia de conservar a sua santa, juntamente com todo o brilho proveniente de ter sido ele a descobri-la e trasladá-la, queria tudo resolvido e terminado, e aqueles visitantes incómodos de Ramsey fora dos seus domínios, antes de causarem mais algum mal.

- Padre - disse ele, insinuante -, isso é certo e justo. Podemos fazê-lo?

- Muito bem - declarou Radulfus. - Nas vossas mãos!

O prior voltou-se para percorrer com os olhos a fila silenciosa de monges, que o observavam de olhos abertos de antecipação e temor. O nome que chamou foi o nome inevitável. Até franziu a testa por ter de procurar o seu acólito.

- Irmão Jerome, peço-te que faças esta experiência em nome de todos. Avança e faz o teste.

Realmente, onde estava o irmão Jerome, e por que é que não se tinha ouvido uma palavra sua nem fora visto durante todo aquele tempo? Quando, até agora, tinha ele estado longe das saias do hábito do prior Robert, à espera com lisonja pronta e obsequioso assentimento de todas as palavras que saíam dos lábios do seu patrono. Agora que pensava no assunto, Cadfael chegou à conclusão de que nos últimos dias Jerome tinha sido visto e ouvido menos do que era habitual, desde a noite em que ele o descobrira na cama, a tremer e mal disposto com dores de barriga e de cabeça, e só conseguira dormir com o tónico estomacal e os xaropes de Cadfael.

Um movimento furtivo perturbou as filas de trás de irmãos reunidos, e mostrou o irmão Jerome a sair do seu recolhimento pouco habitual, avançando pelas filas sem pressa, quase com relutância. Encaminhou-se para a frente com a cabeça caída e os braços muito apertados ao corpo, como se sentisse um arrepio mortal à sua volta. Tinha o rosto pálido e atormentado, e os olhos, quando os ergueu, estavam inflamados. Parecia doente e mirrado. "Eu devia ter tido o cuidado de acompanhar a doença", pensou Cadfael, comovido, "mas pensei que ele, mais do que ninguém, não deixaria de ter todo o tratamento de que necessitava."

Era a única coisa que tinha em mente quando o prior Robert, espantado e desagradado com o que lhe parecia uma aceitação muito contrariada de um dever que devia ter sido honroso para o recipiente, acenou imperiosamente a Jerome para que se aproximasse do altar.

- Vinde, estamos à espera. Abri com fé.

O abade tinha retirado cuidadosamente as pétalas de espinheiro negro da lombada, e fechara os Evangelhos. Desviou-se para abrir caminho para Jerome subir.

Jerome chegou ao fundo dos degraus e parou ali, contrariado, antes, como um cavalo assustado, respirou fundo e tentou subir, e depois ergueu os braços para tapar a cabeça, caiu de joelhos com um grito lastimável, sufocante, e curvou-se para a pedra dos degraus. Sob os ombros curvados e os braços apertados emergiu uma voz num uivo tartamudeante como o que um lobo teria soltado para a noite à procura de companhia para acabar com a sua solidão.

- Não me atrevo... não me atrevo... Ela fulminava-me se me atrevesse... não há necessidade, eu entrego-me, confesso o meu pecado terrível! Saí atrás do ladrão, esperei que ele regressasse, e Deus tenha piedade de mim, matei aquele homem inocente!

 

                               Capítulo Dez

Na quietude horrorizada que se seguiu, o prior Robert, com a mão autoritária ainda erguida e completamente paralisada, ficou momentaneamente transformado em pedra, o seu rosto tornou-se uma máscara de profunda incredulidade. Que uma criatura sua caísse em pecado mortal, e de um tipo violento, era bastante surpreendente, mas que aquele dócil mortal alguma vez empreendesse uma acção pessoal de qualquer espécie revelou-se um choque ainda maior. O mesmo aconteceu com o irmão Cadfael, embora para ele fosse igualmente um choque de esclarecimento. Aquela pobre alma, pálido e ofegante na cama depois de vomitar desesperadamente, doente e acabrunhado desde essa altura, com a mente e o espírito gastos e ulcerados pela enormidade do que tinha feito, Jerome era pela primeira vez completamente digno de pena.

O irmão Rhun, o mais jovem e mais fresco e a pérola do rebanho, fez o que a sua natureza pedia, sem pedir autorização, e ajoelhou-se ao lado de Jerome, rodeando-lhe os ombros trémulos com um braço protector, e erguendo o infortunado penitente para o seu abraço antes de erguer os olhos, confiante, para o rosto do abade.

- Padre, independentemente de tudo o mais, ele está doente. Deixai-me ficar!

- Cuidai dos vossos - disse Radulfus, baixando os olhos para o par com um rosto quase tão branco como o do prior -, que é o que eu tenho de fazer. Jerome - disse, com autoridade absoluta e de aço -, olha para cima e enfrenta-me.

Agora era já demasiado tarde para levar a confissão para a privacidade, mesmo que tivesse sido essa a vontade do abade, pois ela tinha sido feita diante de todos os irmãos, e na qualidade de membros de um corpo tinham o direito de partilhar a cura de tudo o que era curável aqui. Mantiveram-se no seu lugar, mudos e atentos, embora não se tivessem aproximado mais. O semicírculo tinha-se organizado quase num círculo.

Jerome tinha escutado, e ficou um pouco mais calmo com o tom. A voz de comando levou-o a fazer um esforço. Tinha libertado a primeira carga, que era a pior, e logo que levantou a cabeça e tentou pôr-se de joelhos, o braço de Rhun ergueu-o e apoiou-o. Apareceu um rosto distorcido, que se congelou gradualmente em feições humanas.

- Padre, eu obedeço - disse Jerome. - Quero confessar. Quero penitenciar-me. Cometi um pecado muito grave.

- Penitência na confissão - disse o abade - é o começo da sabedoria. Faça a graça o que fizer, não pode seguir a negação. Conta-nos o que fizeste, e como aconteceu.

O recital pouco satisfatório prosseguiu durante algum tempo, e Jerome, piedosamente pequeno e encolhido e infeliz, apoiava-se no braço flexível e generoso de Rhun, com aquele rosto radiante e silencioso a seu lado, que realçava as diferenças flagrantes. A variedade de humanidade é aterradoramente múltipla.

- Padre, quando se tornou conhecido que as relíquias de Santa Winifred tinham sido carregadas com a madeira para Ramsey, quando já não havia dúvida da forma como ela tinha ido para lá... pois sabíamos, cada um de nós, que não havia qualquer dúvida, pois quem mais poderia ter sido?... nesse momento fiquei inflamado de raiva contra o ladrão que se atrevera a cometer um sacrilégio tão grande contra ela, e uma ofensa tão grave contra a nossa casa. E quando ouvi dizer que ele tinha pedido e obtido autorização para ir a Longner naquela noite, temi que pudesse escapar-nos, quer por ausência, quer mesmo pela fuga, ao perceber que a justiça ainda podia deitar-lhe a mão. Não podia suportar a ideia de ele ir em liberdade. Confesso, odiei-o! Mas, padre, nunca foi minha intenção matar, quando me esgueirei para fora do enclave sozinho, e fui esperar por ele no caminho pelo qual sabia que ele tinha de voltar. Nunca pretendi ser violento. Quase nem sei o que pretendia fazer... confrontá-lo, acusá-lo, dizer-lhe que o fogo do inferno o esperava no dia do Juízo Final se ele não confessasse o seu pecado e pagasse agora o preço.

Fez uma pausa e respirou penosamente, e o abade perguntou:

- Foste de mãos vazias? - Uma pergunta pertinente, embora Jerome, transtornado, não a tivesse compreendido.

- Claro, Padre! Que quereria eu levar comigo?

- Não importa! Continuai.

- Padre, que mais pode haver? Quando o ouvi passar pelos arbustos, pensei que só podia ser Tutilo. Nunca soube por que estrada viria o outro homem; tanto quanto sabia, ele já tinha estado na abadia e já voltara para casa, e tudo isso em vão, como o ladrão pretendia. E este... vinha tão alegre, a andar na escuridão, a assobiar canções profanas. Ofensa atrás de ofensa, tão descontraidamente... não consegui suportar. Peguei num ramo partido, e quando ele passou atingi-o na cabeça. Derrubei-o - gemeu Jerome -, e ele caiu no caminho, e o capuz caiu da sua cabeça. Ele nunca mais voltou a mexer-se! Eu aproximei-me, ajoelhei-me, e foi então que vi o seu rosto. Mesmo no escuro, vi o suficiente. Aquele não era o meu inimigo, não era o inimigo da santa, não era o ladrão! E eu matara-o! Então, fugi... mal disposto e a tremer, fugi dele e escondi-me, mas ele tem-me perseguido desde aquele momento. Confesso o meu grande pecado, arrependo-me amargamente, lamento o dia e a hora em que levantei um pau contra um homem inocente. Mas sou o seu assassino!

Curvou-se para a frente, para os seus braços, e escondeu o rosto. Sons abafados emergiram entre os soluços dilacerantes, mas não articulou mais nenhuma palavra. E Cadfael, que abrira a boca para continuar a história no ponto onde aquele infeliz vingador tinha parado, fechou rapidamente os lábios e fez silêncio. Seguramente, Jerome tinha contado tudo o que sabia, e se o fardo que carregava era ainda maior do que o que fizera, mesmo assim podia continuar a carregá-lo um pouco mais. "O irmão entregará o irmão à morte" podia considerar-se verdadeiro para Jerome, pois embora não o tivesse morto tinha na verdade entregue Aldhelm à morte. Mas se o que se tinha seguido era também obra de um irmão, então o assassino podia estar ali presente. Não importava! Deixá-lo ir contente, satisfeito por esta solução oferecida em terrível boa fé por Jerome ter sido aceite sem reservas por todos, e a pensar que estava bastante seguro. Os homens que acreditam estar livres de todos os perigos podem tornar-se descuidados, e dar um passo insensato que pode traí-los. Em privado, sim, apenas ao ouvido do abade, a verdade tinha de ser dita. Jerome tinha cometido um pecado, mas não se tratava de um pecado tão grande como ele e todos ali acreditavam. Ele que pagasse plenamente a sua falta, mas não pelo crime mais frio e mais vil de outra pessoa.

- É uma confissão muito sombria e terrível - declarou o abade Radulfus, lenta e pesadamente. - Não é fácil de compreender nem de avaliar, e, valha-me Deus, impossível de remediar. Preciso, e seguramente todos os que se encontram aqui presentes também precisam, de tempo para rezar muito e para reflectir profundamente, antes de poder começar a fazer o bem ou a justiça como é devido. Para além do mais, isto é um assunto que está para além do meu poder, pois trata-se de homicídio, e a justiça do rei tem o direito de saber, e até de deter imediatamente, o assassino confesso de um crime.

Jerome já não oferecia qualquer resistência, independentemente de tudo o que dissessem ou fizessem contra ele. Vazio e esgotado, submetia-se a tudo. A inquietação e consternação que instalara entre os irmãos continuaria a ecoar durante algum tempo, embora ele que a causara se tivesse recolhido num estado de apatia e exaustão.

- Padre - disse ele suavemente -, aceito qualquer penitência que me seja imposta. Não quero uma absolvição fácil. O meu desejo é pagar plenamente por todos os meus pecados.

Ninguém podia duvidar da sua infelicidade extrema naquele momento. Quando Rhun, na sua bondade, ofereceu um braço para o levantar da sua posição de joelhos, ele ficou pesadamente imóvel, preso à sua humildade desesperada.

- Padre, deixai-me ir daqui. Deixai-me ficar isolado e escondido dos olhares dos homens...

- Terás solidão - disse o abade -, mas proíbo o desespero. É demasiado cedo para conselho ou julgamento, mas nunca cedo de mais nem tarde de mais para rezar, se a penitência é sentida com verdade. - E para o prior, disse, sem tirar os olhos da criatura destroçada nas lajes do chão, como um pássaro esmagado e estropiado: - Ocupai-vos dele. Arranjai-lhe alojamento. E agora ide, todos vós, ganhai coragem e prossegui os vossos deveres. Em todos os tempos, em todas as circunstâncias, os nossos votos continuam a ser um vínculo.

O prior Robert, ainda pesadamente calado e chocado para além da sua habitual dignidade estudada, levou o seu abalado servidor para a segunda das duas celas penitenciárias; e era a primeira vez, tanto quanto Cadfael conseguia lembrar-se, de que estavam ambas ocupadas ao mesmo tempo. O sub-prior Richard, um homem decente, confortável e plácido, liderou as outras filas para os seus afazeres normais, e pouco depois para o refeitório, para o jantar, e graças à sua calma levemente estúpida já tinha acalmado o seu rebanho para um apetite perfeitamente normal quando foram lavar as mãos antes da refeição.

Sensatamente, Herluin tinha-se abstido de se envolver no assunto, uma vez que se destinava a restaurar parcialmente o valor de Ramsey e implicava o profundo embaraço de Shrewsbury. Aceitaria de bom grado o donativo prometido pelo conde, e retirar-se-ia discretamente para o seu mosteiro, embora o que faria a Tutilo quando o tivesse lá à sua mercê fosse difícil de pensar. Ele não era homem de esquecer e perdoar.

Quanto à retirada do campo de batalha de Robert Bossu, aquele homem inquieto, consciencioso, subtil e eficiente, fora um modelo de consideração e tacto, como sempre, com uma palavra discreta ao abade Radulfus, e um olhar penetrante aos dois escudeiros, que o compreendiam no erguer de uma sobrancelha ou no esboçar de um sorriso. Ele sabia quando usar o seu estatuto, e quando e como abafar o seu brilho e tornar-se discreto no meio de uma multidão.

O irmão Cadfael esperou pela oportunidade de se aproximar do ombro do abade, quando este abandonava o coro.

- Padre, uma palavra! Há mais a acrescentar a esta história, embora não publicamente, talvez, ainda não!

- Ele não mentiu, e não assassinou? - disse o abade, sem voltar a cabeça. A sua voz era sombria, mas não se ouviu mais longe do que o ouvido de Cadfael.

- Nem uma coisa, nem a outra, padre, se aquilo em que acredito é verdade. Ele contou tudo o que sabe, e tudo o que pensa saber, e tenho a certeza de que não escondeu nada. Mas existem coisas que ele não sabe, e o conhecimento melhorará de certa forma um caso que ainda está bastante misterioso. Concedei-me uma audiência privada, e depois julgai o que deve ser feito.

Radulfus tinha parado a meio de um passo, embora continuasse sem olhar para trás. Observou os últimos irmãos a sair, ainda assombrados e calados, pelo claustro, e seguiu com um olhar o rodopiar das vestes carmesim de Robert Bossu a cruzar o pátio com os dois escudeiros atrás.

- Dizeis que ainda só ouvimos metade... e a metade que falta ouvir é a pior? O jovem tem um caixão decente, o seu padre vai levá-lo hoje para Upton, para ser enterrado no meio dos seus. Eu não gostaria de adiar a sua partida.

- Não há necessidade - disse Cadfael. - Ele já me disse tudo o que tem para dizer. Por nada deste mundo o impediria de ter o seu descanso. Mas o que tenho a acrescentar, embora tivesse obtido a prova no cadáver, e no lugar onde ele foi encontrado, preciso agora de compreender claramente. Tudo o que vi foi visto também por Hugh Beringar, mas depois do que veio à luz esta manhã esses pormenores encaixam-se no seu lugar.

- Nesse caso - disse Radulfus, após alguma reflexão -, antes de avançarmos mais, penso que Hugh devia vir ter connosco. Preciso do seu conselho, da mesma forma que ele talvez precise do teu e do meu. A coisa aconteceu fora das nossas paredes, e não se encontra dentro da minha jurisdição, embora o criminoso possa estar. A Igreja e o Estado têm de se respeitar e auxiliar mutuamente, mesmo nestes tempos de cisão e tristeza. Pois, embora sejamos dois, a justiça deve ser uma. Cadfael, podes ir à cidade e pedir a Hugh que venha aqui esta tarde para falar comigo? Depois, ouviremos o que tens para dizer.

- Irei da melhor vontade - disse Cadfael.

- E como - perguntou Hugh sentado à mesa do meio-dia - devemos encarar este capítulo de milagres que estiveram a desvendar esta manhã? É suposto eu acreditar que todas as respostas foram dadas tão claramente, como se tivessem andado a procurar nos Evangelhos e tivessem marcado todos os lugares para armadilhar cada inquiridor? Tens a certeza de que isso não foi feito?

Cadfael abanou a cabeça de modo decisivo.

- Eu não desafio a minha santa. Agi com lealdade, e juro que o mesmo fizeram todos os outros, pois não havia nenhuma marca, nenhuma folha marcada, quando peguei no livro antes de qualquer outra pessoa se aproximar. Abri-o, e obtive a minha resposta, e ela fez-me pensar melhor e ver claramente onde antes tinha sido cego. E não sei como justificar o que aconteceu, a menos que tenha sido ela a falar.

- E todos os oráculos que se seguiram? Ramsey não só rejeitado como denunciado... Seguramente, foi um pouco duro para Herluin! E quanto ao conde Robert, a santa condescendeu em brincar com ele com um paradoxo! Bom, só posso dizer que foi bastante justo, e é uma pena que ele não tenha a chave de que necessita para interpretá-lo, pois dar-lhe-ia prazer. E depois, para Shrewsbury... "Tu não me escolheste, mas eu escolhi-te." Vejo isso como um aviso e não como um reconhecimento, ela escolheu-te a ti, e pode muito bem abandonar-te, se lhe aprouver, e é bom que te acauteles no futuro, pois ela talvez não suporte outro turbilhão que venha perturbar a sua ordem estabelecida. Dirigido especialmente ao prior Robert, arriscaria eu, que pensa realmente que a escolheu e se comporta como se fosse seu proprietário. Espero que ele tenha percebido a alusão.

- Duvido - disse Cadfael. - Usou a frase como se fosse um halo.

- E depois, finalmente, Cadfael, as folhas voltarem-se sozinhas, e abrirem de novo no mesmo lugar. Demasiados milagres para uma manhã!

- Os milagres - declarou Cadfael, algo sentencioso - podem ser simplesmente manipulação divina de circunstâncias normais. Por que não? Quanto ao último oráculo, os Evangelhos foram deixados abertos, e um vento soprou da porta sul e voltou as páginas, passando de São João para São Mateus. É verdade que ninguém entrou, mas penso que alguém deve ter erguido o ferrolho e entreaberto a porta, e depois voltou a fechá-la de novo, ao ouvir as vozes no interior e não querendo interromper. Não há dúvidas em relação ao vento, todos o sentiram. E depois, parou naquele sítio porque havia algumas pétalas e fragmentos do espinheiro negro que eu tinha andado a apanhar caídos na lombada, caídos da minha manga ou dos meus cabelos quando fechei o livro. Uma obstrução tão ligeira não foi o bastante para afectar as sortes, quando eles estavam a abrir o livro com cerimónia, com ambas as mãos a separar as folhas e um dedo a apontar para a frase. Mas quando o vento voltou as folhas, as flores do espinheiro negro foram o bastante para parar o movimento naquele sítio. E, no entanto, poderemos dizer que foi um acaso? E agora que penso no que aconteceu - disse Cadfael, a abanar a cabeça entre a dúvida e a convicção -, aquele vento parou antes sequer de a página cair. Observei a última página a voltar-se, e ela parou antes de descer. O ar por cima do altar estava bastante parado. As chamas das velas estavam direitas, nunca tremeluziram.

Durante aquele colóquio, Aline tinha estado sentada a escutar todas as palavras atentamente, mas sem contribuir com nenhuma sua.

Cadfael pensou que ela tinha algo distante e misterioso, como se parte do seu ser fosse levado para um lugar privado e agradável, mesmo enquanto os seus olhos azuis olhavam para o marido e para o amigo com grande inteligência, seguindo o argumento com uma espécie de afecto indulgente e divertido, apropriado para uma matriarca a observar os seus filhos.

- A minha senhora - declarou Hugh, captando o olhar dela e esboçando um sorriso resignado -, a minha senhora, como sempre, está a troçar de nós os dois.

- Não - disse Aline, de repente séria -, só que o passo entre as coisas perfeitamente normais e as milagrosas parece-me tão pequeno, quase acidental, que me pergunto por que é que vos surpreende, ou por que vos dais ao trabalho de discorrer sobre ele. Se fosse razoável, não poderia ser milagroso, pois não?

Na sala de estar do abade encontraram não apenas Radulfus, mas também Robert de Leicester à espera deles. Logo que as saudações de cortesia terminaram, o conde, muito educado, considerou que seria delicado retirar-se.

- Tendes assuntos para tratar aqui que fogem à minha alçada e competência, e não desejo complicar as coisas para vós. O senhor abade teve a bondade de me confidenciar o que considerou apropriado, uma vez que eu fui testemunha do que ocorreu esta manhã, mas agora tendes causa para averiguar mais, segundo compreendo. Perdi o pequeno direito que tinha de reivindicar a santa - disse Robert Bossu, com um sorriso rasgado e um encolher do seu ombro alto -, e devia estar a preparar-me para partir.

- Senhor - disse Hugh com sinceridade -, a paz do rei, como está e como conseguimos mantê-la, diz-vos muito respeito, e a vossa experiência é maior do que a minha. Se o senhor abade concordar, espero que fiqueis e nos ajudeis com o benefício da vossa opinião. Existem assuntos para considerar relacionados com homicídio. Diz respeito a todos os homens, que têm uma vida para manter ou para perder.

- Ficai connosco! - exclamou Radulfus. - Hugh tem razão, precisamos de todos os bons conselhos que pudermos obter.

- E eu tenho tanta curiosidade em mim como qualquer outra pessoa - concedeu o conde, e voltou a sentar-se de boa vontade.

- O abade diz-me que há mais a acrescentar ao que testemunhámos aqui esta manhã. Presumo, senhor, que fostes informado até onde esta odisseia nos leva ainda?

- Cadfael contou-me - disse Hugh - como correram as sortes, e a confissão do irmão Jerome. Garantiu-me que nós os dois, pelo que ele e eu vimos no local, podemos ir mais além do que aquilo que o próprio Jerome sabe.

Cadfael instalou-se ao lado de Hugh no banco almofadado que estava encostado a uma das paredes apaineladas da sala de visitas do abade. Do outro lado da janela a luz ainda estava forte e clara, pois os dias começavam a crescer. A Primavera não estava longe quando os aglomerados espinhosos de espinheiros negros ao longo dos promontórios se transformavam de branco em preto, como montes de neve.

- O irmão Jerome contou a verdade, toda a verdade como a conhece, mas não é a verdade completa. Vós viste-lo, ele não estava em condições para esconder o que quer que fosse, nem o fez. Recordai, Padre, o que ele contou como ficou à espera. É verdade, nós encontrámos o local, um recanto recuado nos arbustos junto ao carreiro, onde ele andou, inquieto, e pisou a erva. Contou como pegou num ramo caído, quando o jovem apareceu no caminho, e lhe bateu com ele, e ele caiu sem sentidos, e o capuz escorregou da sua cabeça. Tudo verdade, nós descobrimos... Hugh corroborará o que estou a dizer... o ramo caído onde ele o deixou. Estava parcialmente apodrecido, mas bastante forte e pesado para entorpecer. E o corpo estava caído como Jerome descreveu, atravessado no caminho, com o capuz caído para trás da cabeça e do rosto. E Jerome diz que ao aperceber-se do que tinha feito, e acreditando que cometera um homicídio, fugiu e veio para cá esconder-se. Foi o que fez, e estava realmente doente, pois o irmão Richard encontrou-o pálido e a tremer na cama, quando ele faltou às Completas. Mas ele nunca disse nada a não ser que estava doente, como de facto era verdade, e eu dei-lhe remédios. Agora, em confissão, ele falou apenas num golpe, e eu estou convencido de que ele bateu apenas uma vez.

- Certamente - disse Radulfus, a franzir o sobrolho pensativamente - ele não falou de mais nenhum ataque. Não creio que estivesse a esconder alguma coisa.

- Não, Padre, eu também não. Ele tem andado a arrastar-se à nossa volta como um homem muito doente desde aquela noite, horrorizado com o acto que cometeu. Ora, esse golpe é confirmado pelo exame que eu fiz à cabeça de Aldhelm. A nuca estava manchada com um pouco de sangue, e no tecido tosco de lã encontrei fragmentos de madeira do ramo partido. O golpe que sofreu na nuca poderia deixá-lo inconsciente durante um curto período de tempo, mas certamente não lhe tinha partido o crânio, e não podia tê-lo morto. Que dizes, Hugh?

- Digo que a cabeça podia ter-lhe doído muito depois - respondeu Hugh de imediato -, mas nada pior. Mais, não o teria deixado inconsciente por mais de um quarto de hora, no máximo. O pior que Jerome podia fazer, talvez, mas não o suficiente para fazer tanto mal à sua vítima.

- Eu digo o mesmo. E ele diz que bateu, foi verificar de perto e percebeu o seu erro, e fugiu do local. E eu acredito nele.

- Duvido que lhe restasse coragem para mentir - disse o conde. - Eu diria que nunca foi um vilão muito arrojado, e hoje estava muito assustado em relação ao veredicto do Evangelho. Porém, tinha a certeza de que tinha morto.

- Fugiu naquele terror - disse Cadfael -, e a seguir ouviu dizer que Tutilo encontrara um homem morto. Que outra coisa podia Jerome pensar?

- E apesar das dúvidas - lembrou-lhes o abade -, não devíamos estar a pensar o mesmo? Tendo ele iniciado um acto tão terrível, como podemos ter a certeza de que, afinal de contas, não ficou e acabou o que pretendia fazer?

- Não podemos ter a certeza. Não podemos ter a certeza absoluta. Não antes de estarmos seguros de tudo, e todos os pormenores serem conhecidos. Mas estou convencido de que ele nos contou a verdade, até ao ponto em que conhece a verdade. Pois o que aconteceu a seguir foi muito diferente. Hugh lembrar-se-á, e confirmará tudo o que tenho para dizer.

- Lembro-me de tudo bem de mais - disse Hugh.

- Alguns passos mais abaixo do caminho encontrámos uma pilha de pedras que se encontravam ali há muito tempo e à volta das quais tinham crescido musgos e líquenes. Há pedras calcárias salientes no cume, mais acima, e em alguns sítios caem pela fina camada de terra e até para o meio das árvores mais abaixo. Neste monte, a pedra de cima, embora tivesse sido cuidadosamente recolocada no seu leito, mostrava os selos de musgo crescido perturbados e partidos. Era pesada, precisei das duas mãos para lhe pegar. No lado de baixo, irregular, havia sangue. Bastante escondido quando a pedra estava no seu lugar, mas presente. Trouxemos a pedra connosco para cá para a examinarmos com mais cuidado. Foi seguramente a arma do crime. Assim como o sangue de Aldhelm estava a escurecer na pedra, também fragmentos de líquen e de pó da pedra estavam alojados nas feridas de Aldhelm. Tinha o crânio esmagado, e a pedra foi friamente recolocada no monte. A menos que se olhasse com atenção, parecia intocada. Dentro de aproximadamente uma semana, o tempo e as plantas teriam selado novamente todas as pontas soltas que teriam traído a sua utilização. Pergunto a mim mesmo se Jerome seria capaz de uma coisa dessas? Levantar uma pedra pesada, bater com ela na cabeça de um homem que jazia sem sentidos, e depois recolocar a pedra friamente no lugar onde ela estava antes? Surpreende-me como é que ele conseguiu forças para bater com força suficiente para atordoar, e para partir o ramo na pancada, embora este estivesse parcialmente apodrecido. Lembrai-vos de que ele diz que então, em temor do que tinha feito, foi espreitar a sua vítima, e descobriu que tinha atacado o homem errado. Com Aldhelm, não tinha desavenças. E não esqueçais também que ninguém o tinha visto, naquele momento ninguém sabia que ele tinha saído do enclave. Fez o que qualquer homem timorato em pânico teria feito, fugiu e escondeu-se no interior da comunidade, onde era conhecido e respeitado, e ninguém teria adivinhado que ele tentara tal façanha.

- Então, estais a dizer claramente - disse o conde Robert, atento e calmo - que existiram dois assassinos, pelo menos em intenção, e que este infeliz irmão, quando percebeu que tinha atingido o homem errado, não tinha qualquer motivo neste mundo para lhe desejar mais mal.

- É nisso que acredito - confirmou Cadfael.

- E vós, senhor xerife?

- Por tudo o que conheço de Jerome - declarou Hugh -, é essa a leitura que faço do que aconteceu.

- Então, seguindo o mesmo raciocínio - disse o conde -, estais a dizer que o homem que terminou o trabalho tinha motivo para querer Aldhelm removido do mundo, antes de chegar ao portão da abadia. Não Tutilo, mas Aldhelm. Este conhecia o seu homem, e certificou-se de que ele nunca chegaria. Pois o capuz do pastor escorregou quando ele caiu. Desta vez não foi um engano, ele foi conhecido, e morto não no lugar de outro, mas por ser quem era.

Fez-se um silêncio breve, profundo, enquanto olhavam uns para os outros e pesavam as possibilidades. Depois, o abade Radulfus disse lentamente:

- É lógico. O rosto ficou então exposto, embora Jerome tivesse de se ajoelhar e olhar de perto, pois a noite estava escura. Mas se ele conseguiu distinguir e reconhecer, o outro também o poderia fazer.

- Há outro ponto - disse Hugh. - Duvido que Aldhelm tivesse ficado inconsciente durante mais de um quarto de hora devido àquela pancada na cabeça. Quem quer que o tenha morto, fê-lo nesse espaço de tempo, pois ele não se tinha mexido. Não havia vestígios de movimento. Se o seu corpo se mexeu quando foi atacado de novo, e fatalmente, não teve mais do que uma convulsão momentânea. O assassino devia estar por perto. Talvez tenha testemunhado o primeiro ataque. Certamente, chegou ao local muito pouco tempo depois. - E perguntou bruscamente: - Padre, mandastes soltar Tutilo?

- Ainda não - disse Radulfus, sem surpresa. O que Hugh queria dizer era bastante claro. - Talvez seja melhor não termos pressa. Tendes razão ao lembrar-nos. Tutilo percorreu aquele mesmo caminho e encontrou o homem morto. A menos... a menos que naquele momento ele ainda estivesse vivo. Sim, pode ter sido Tutilo a terminar o serviço que Jerome tinha começado.

- Ele disse-me - declarou Hugh -, como penso que vos disse a vós, que na escuridão não percebeu quem era o homem morto. Se o assassino tivesse estado lá antes dele, seria verdade. Mesmo à luz do dia não conseguimos perceber quem era antes de Cadfael ter voltado todo o seu rosto para a luz. Ele contou-vos, Padre Abade, como pôs a mão no lado esquerdo desfeito da cabeça do morto. Tudo isso, tudo nele, o seu comportamento, a sua voz, o frio do horror que ele sentia, pois tremeu enquanto falava no assunto, tudo me pareceu verdadeiro. E no entanto também pode ser verdade que ele chegou minutos depois da fuga de Jerome, encontrou o homem atordoado, debruçou-se sobre ele e reconheceu-o, pois nessa altura o reconhecimento era possível, e matou-o, e só depois pensou numa maneira de escapar à suspeita, e foi a correr para a cidade, à minha procura.

- Nenhum dos dois me parece um caso provável - disse o conde, pensativo - de esmagar a cabeça de outro homem com uma pedra, embora seja imprevisível o que qualquer homem pode fazer em situações extremas. Mas ter depois o discernimento e o sangue frio para recolocar a pedra no seu lugar e disfarçar as pistas... isso estaria para além do alcance da maioria de nós. Bem, tende-los a ambos sob custódia, não há pressa.

- É uma questão de tempo - disse Cadfael. - Tu disseste-me, Hugh, que o criado do padre de Upton contou como se tinha separado de Aldhelm em Preston, e como Aldhelm foi para a barcaça.

- Separaram-se aproximadamente às seis horas - confirmou Hugh, com segurança. - Dali, barcaça e tudo, até ao lugar onde sofreu a emboscada, demoraria, no máximo, meia hora. O barqueiro declara o mesmo. Às seis e meia, no máximo, ele chegou ao local onde morreu. Se me puderes mostrar claramente onde esteve Tutilo até depois dessa hora, podemos riscá-lo da lista e esquecê-lo.

 

                                           Capítulo Onze

- Até agora não tive a oportunidade - disse Robert Bossu - de aprofundar o vosso conhecimento. Mas devo dizer-vos... se não sabeis já, pois parece-me que pouco vos escapa, e vedes através das pessoas tão bem como uma floresta ao luar... que o nome de Hugh Beringar não passa despercebido a homens de consciência. Como poderia, quando o tesouro público está num caos a maior parte do tempo, e os funcionários da chancelaria não estão em contacto com a maior parte da terra? Quantos condados, quantos xerifes, supõe, pagam os seus impostos anuais regularmente e a tempo e horas? O vosso é conhecido por nunca estar em falta, e o vosso condado desfruta pelo menos de uma espécie de paz, um homem pode esperar viajar até à feira da Abadia em segurança e os vossos tribunais conseguem manter as estradas relativamente livres daquilo a que nós chamamos, modestamente, maus costumes. Para além do mais, conseguis manter uma relação amistosa com Owain Gwynedd, segundo sei, mesmo que Powys se irrite de vez em quando.

- Eu estudo e treino para manter o meu lugar - declarou Hugh com um sorriso.

- Vós estudais e treinais para manter o vosso condado a funcionar o mais calmamente possível - disse o conde. - Assim fazem todos os homens de consciência, mas contra a corrente.

Estavam sentados no apartamento do conde, na ala de hóspedes, voltados um para o outro e separados por uma pequena mesa, a beber vinho, e uma porta com cortina fechada e amortalhada contra o mundo. Robert Bossu estava bem servido. O seus escudeiros responderam prontamente ao seu chamado, e entraram sem fazer barulho e com uma garrafa e copos nas mãos limpas, e não pareciam temê-lo, mas antes sentir orgulho em igualar o seu porte e serenidade; mas, apesar de tudo isso, ele mandou-os sair antes de começar a fazer confidências a um homem que era quase desconhecido, e Hugh não teve dúvidas de que eles faziam o que ele ordenava e se mantinham onde não pudessem ouvir a sua conversa, embora suficientemente perto para responderem imediatamente, se ele chamasse.

- Eu gosto de ordem - declarou Hugh -, e tenho preferência por manter o meu povo vivo e inteiro, sempre que possível, embora já tenhais visto que isso nem sempre pode ser feito. Detesto desperdício. Desperdício de vidas, desperdício de tempo que poderia ser lucrativo, desperdício da terra que podia ser fértil. Já tivemos mais do que o suficiente das três situações. Se tento, pelo menos, mantê-las longe do meu cargo, é caso de espantar?

- Eu devo dar valor à vossa opinião - disse o conde com deliberação. - Aquilo que dizeis aqui, eu já disse antes de vós. Agora, vedes algum fim? Quantos mais anos destes avanços e retrocessos que acabam sempre num beco sem saída? Vós sois um homem de Stephen. Eu também. Homens tão honrados como nós seguem a imperatriz. Envolvemo-nos nisto sem pensar muito, mas digo-vos, Hugh, que está a chegar o momento em que os homens serão obrigados a pensar, em ambos os lados, antes de o desperdício os ter perdido a todos, e nenhum homem poder já erguer uma lança.

- E vós e eu estamos a conservar o que podemos para esse dia? - inquiriu Hugh, com as sobrancelhas erguidas e uma boca pesarosa.

- Oh, ainda vai demorar alguns anos, mas esse dia chegará. Tem de chegar. Havia algum vestígio de sentido quando começámos, quando Stephen tinha a Normandia e também a Inglaterra, e a vitória estava à vista. Mas há mais de quatro anos tudo mudou, quando Geoffrey de Anjou entrou à força na Normandia e pôs o seu passado em cheque, mesmo que o tivesse feito em defesa do direito da mulher e do nome do filho.

- Sim - concordou Hugh, terminantemente -, no ano em que o conde de Meulan nos deixou, para proteger o seu direito na Normandia fazendo um acordo com Geoffrey e reconhecendo-o como suserano em lugar de Stephen.

- Que mais - perguntou Robert, imperturbado e sem indignação, até com um sorriso torcido - podia o meu irmão fazer? O seu direito e o seu título estão lá. Ele é Waleran, conde de Meulan; por muito que goste dos seus títulos em Inglaterra, a sua linhagem e identidade estão lá. Nem sequer na Normandia, embora a maior parte da sua herança esteja na Normandia. Mas o nome, o nome está na própria França, ele deve vassalagem ao rei de França por isso, e agora a Geoffrey de Anjou devido à maior parte da sua herança. Abandone ele o que abandonar, não poderá viver sem a raiz e o sangue do seu nome. Eu sou o mais sortudo dos dois, Hugh. Herdei as terras e títulos ingleses de meu pai, posso firmar as minhas raízes aqui, e aqui ficar. Na verdade, a minha esposa trouxe-me Breteuil, mas é a parte que menos me interessa, como o título de Worcester do meu irmão é o que menos lhe interessa a ele. Assim, ele está lá, e repudiado como um vira-casacas a favor de Maud, enquanto eu estou aqui, e sou considerado um homem leal a Stephen. E que diferença vedes entre nós os dois, Hugh? Irmãos gémeos, que parentesco mais próximo poderá haver?

- Nenhum - disse Hugh, e ficou em silêncio durante alguns instantes, a pesar e a ponderar a cuidadosa selecção de palavras. - Compreendo muito bem - disse ele então - que, com a Normandia perdida, se seguia isto. Para outros, além dos irmãos Beaumont. Não existe um único homem entre nós que não fizesse algumas concessões para proteger este direito enraizado e a herança dos seus filhos. Podemos considerar que o vosso irmão é agora um homem de Anjou, e no entanto fará o menor mal possível a Stephen, e dará a Geoffrey muito pouco apoio activo. E vós, que ficastes aqui e sois ainda um homem de Stephen, mantereis a vossa lealdade, mas o mais discretamente possível, evitando qualquer acção contra o bando de Anjou da mesma forma que Waleran evita acções contra Stephen. E ali ele glosará a vossa aliança continuada e protegerá as vossas terras e interesses, como vós fazeis aqui pela dele. A divisão entre vós não é divisão nenhuma. É uma aproximação que unirá os interesses de muitos outros como vós. Não na causa de Stephen, não na causa da imperatriz e do seu filho.

- Na causa da sanidade - disse o conde terminantemente. E estudou Hugh com um interesse forte e crítico, e sorriu. - Vós também sentistes. Isto transformou-se numa guerra que não pode ser vencida nem perdida. A vitória e a derrota tornaram-se igualmente impossíveis. Infelizmente, podem passar diversos anos antes que a maioria dos homens comece a compreender. Nós, que estamos a tentar montar dois cavalos, já sabemos.

- Se não podemos vencer nem perder - disse Hugh -, tem de haver outra maneira. Nenhuma terra pode continuar eternamente num empate caótico entre duas forças exaustas, sem governo, enquanto dois grupos de velhos desorientados se valem dos seus magros ganhos e olham, impotentes, uns para os outros, incapazes de erguer uma mão para desferir o coup de grâce.

Robert Bossu contemplou aquele resumo e as pontas dos seus dedos com uma gravidade pensativa, e depois ergueu um olhar penetrante, e os seus olhos, que tinham chispas de roxo ardente no seu negrume, fitaram o olhar firme de Hugh com uma atenção apreciadora. - Gosto do vosso diagnóstico. Já dura há demasiado tempo, e ainda vai continuar durante alguns anos, não vos iludais. Mas não há maneira de terminar dessa forma, excepto com a morte de todos os velhos, e não de ferimentos, de estagnação, de velhice e desgosto. Eu preferia não esperar que me acontecesse uma coisa dessas.

- Nem eu! - disse Hugh sinceramente. - E, no entanto - perguntou, com uma sobrancelha inquisidoramente erguida para fitar aquele olhar inteligente e imperial -, que faz um homem razoável enquanto suporta a espera o melhor possível?

- Cultiva o seu chão, guarda os seus rebanhos, remenda as suas vedações e afia a sua espada - disse Robert Bossu.

- Recebe os seus rendimentos? - sugeriu Hugh. - E paga os seus impostos?

- Ambos. Até ao último tostão. E guarda, Hugh... guarda os seus projectos só para si. Mesmo enquanto termos como traidor e vira-casacas são brandidos como flechas à procura de alvos ao acaso. Vós tendes mais experiência. Eu adorava Stephen. Ainda adoro. Mas não gosto deste nada ruinoso que ele e o primo criaram entre eles.

A tarde estava a escurecer para dar lugar aos primeiros sinais de lusco-fusco. Em breve chegaria a hora do sino das Vésperas. Hugh esvaziou o copo e pousou-o em cima da mesa.

- Bom, é melhor ir cuidar do meu rebanho, se posso contar com os dois prisioneiros do abade como responsabilidade minha. Aquilo que temos em mãos continua a ser um homicídio. E vós, sua senhoria? Suponho que partireis para a vossa região? Não vivemos tempos em que um homem possa dar-se ao luxo de voltar as costas durante mais do que alguns dias.

- Detesto ter de ir sem saber o final - admitiu o conde, a preparar-se para soltar uma gargalhada autodepreciativa. - Eu sei que o homicídio não é brincadeira, mas estes dois vossos prisioneiros... Conseguis acreditar que qualquer um deles é capaz de matar? Oh, eu sei que quem vê caras não vê corações, e que lidais com eles o melhor possível. Quanto a mim, sim, dentro de um dia ou dois tenho de me preparar e partir. Estou contente - disse ele, erguendo-se quando Hugh se levantou - por ter-vos conhecido. Oh, e obtive outros ganhos, pois Rémy e os seus servos vêm comigo. Existe espaço na minha casa para tão bom poeta e fazedor de canções. Sorte a minha tê-lo conhecido antes de ele partir para o norte, para Chester. Sorte a dele, também, pois teria desperdiçado a sua eloquência ali. Ranulf tem coisas em mente que são mais sérias do que a música, mesmo que tenha uma nota de música em si, coisa que duvido.

Hugh preparou-se para sair, e não foi pressionado para ficar, embora o conde o tivesse acompanhado formalmente alguns passos em direcção à porta do átrio. Ele tinha dito o que sem dúvida queria dizer a todos os homens que detinham autoridade, embora limitada, depois de os ter avaliado e gostado deles e respeitado o que tinha encontrado. Tinha sementes para plantar, e andava a seleccionar o solo onde elas poderiam nascer e florescer. Quando chegou ao cimo das escadas, Hugh ouviu a voz atrás de si proferir com uma ênfase leve mas impressionante:

- Hugh! Tende isso em mente!

Hugh e Cadfael vieram juntos da cela de Tutilo, e refugiaram-se no herbário ao lusco-fusco, depois das Vésperas, para considerar o pouco que tinham conseguido obter dele; e foi muito pouco, mas fortemente consistente com o que tinha afirmado desde o começo. O rapaz tinha os olhos inchados e estava tonto de sono, e se sentia grande ansiedade em relação ao seu destino, ainda estava demasiado entorpecido para ser capaz de apreciar as muitas armadilhas que o esperavam em todos os caminhos. Nem uma palavra de Daalny; em relação a ela, estava fortemente alerta. Sentou-se no seu catre estreito, languidamente composto, perto da resignação, e respondeu às perguntas sem pausas suspeitas, escutando com o queixo caído e olhos espantados quando Cadfael lhe contou como os Evangelhos tinham restituído Santa Winifred a Shrewsbury, e como o irmão Jerome tinha balbuciado a sua surpreendente confissão antes de ser acusado pelo céu.

- Eu? - gaguejou Tutilo, incrédulo. - A vítima pretendida era eu? - E por um instante riu-se em voz alta com o absurdo da ideia de Jerome como assassino, e ele próprio no papel de vítima, e depois, numa mudança súbita e violenta, ficou horrorizado consigo mesmo e levou as duas mãos ao rosto, como se quisesse apagar as próprias marcas do riso. - E a pobre alma desamparada, e alguém... Oh, Deus, como pôde algum homem... - E depois, compreendendo inesperadamente as conclusões, ergueu-se instantaneamente para refutar:

- Oh, não, isso não! Não foi Jerome, isso é impossível. - Bastante seguro, a declarar a sua certeza com muita firmeza, ele que tinha encontrado os destroços de um homem. - Não, é claro que não podem e não vão acreditar nisso. - Não estava a protestar, não estava a exclamar, mas a declarar outra certeza. Nessa altura já estava completamente acordado e desperto, os olhos dourados muito abertos e a fitar os interrogadores, tanto o monástico como o secular, com confiança. Como homens inteligentes e sensíveis que eram ambos, não podiam certamente acreditar que Jerome, por muito mesquinho e malicioso que aquele pequeno ser pudesse ser, pudesse ter esmagado a cabeça de um homem inconsciente com uma pedra pesada.

- Uma vez que não estavas em Longner - disse Hugh - para onde foste naquela noite, para voltares por aquele mesmo caminho?

- Fui para longe daqui, para estar longe da vista e do pensamento - disse Tutilo ardentemente. - Estive no sótão do estábulo da Feira dos Cavalos até ouvir o sino para as Completas, e depois fui quase até à barcaça, para ser visto a regressar pelo caminho de Longner, se alguém reparasse em mim.

- Sozinho? - perguntou Hugh.

- É claro que estive sozinho. - Mentiu alegremente e com firmeza. Não vale a pena mentir a não ser que a mentira seja dita com convicção.

E aquilo era tudo o que se obteria dele. Não, não tinha encontrado ninguém, nem à ida nem à vinda, que pudesse confirmar os seus movimentos. Tinha contado todo o lado pior do que tinha feito, e não parecia grandemente preocupado com o resto. Fecharam de novo a porta à chave depois de saírem da cela, recolocaram a chave no seu lugar na casa do porteiro, e retiraram-se para a privacidade do herbário onde atiçaram a braseira e cortaram a escuridão cada vez mais densa da noite.

- E agora - disse Cadfael - penso que serei perdoado se te contar o resto do que ele fez naquela noite, a parte de que ele não quis falar.

Hugh recostou-se contra a parede de madeira e disse calmamente:

- Eu devia ter sabido que tu terias o direito de entrar onde mais ninguém pode. Que é que ele não me contou?

- Ele também não me contou. Eu soube por outra pessoa, e sem autorização para contar a mais ninguém, nem sequer a ti, mas acho que ela vai achar que tenho justificação para o fazer. A rapariga Daalny... já a viste por aí, mas ela mantém-se discretamente afastada no interior destas paredes...

- A cantora de Rémy - disse Hugh -, aquela rapariga pequena da Provença.

- Da Irlanda, para ser mais exacto. Mas sim, é essa. A mãe foi posta à venda em Bristol, uma preciosidade estrangeira. Esta nasceu escrava. O negócio ainda se mantém, e os sermões do bispo Wulstan não o tornaram ilegal, apenas mal visto. Parece-me que neste momento o nosso santo ladrão está entre entusiasmos, sem saber ao certo se quer ser um santo ou um cavaleiro errante. Agora sonha em libertar a única escrava que encontrará provavelmente por estas paragens, embora duvide de que ele tenha percebido que ela é uma rapariga, e bonita, e que já o tem debaixo de olho.

- Estás a dizer-me - perguntou Hugh, começando a resplandecer de diversão - que ele esteve com ela naquela noite?

- Esteve, e não admite porque o senhor dela dá grande valor à sua voz, e vive no pavor permanente de que ela possa escapar-lhe por entre os dedos. O que aconteceu foi que o criado que viaja com eles ouviu algures que Aldhelm vinha a caminho da abadia para identificar o irmão que lhe tinha pedido ajuda, e contou a Daalny, sabendo muito bem que ela própria tinha o rapaz debaixo de olho. Ela avisou-o, ele inventou a história de que tinha sido mandado chamar a Longner, e conseguiu obter autorização de Herluin, que não sabia nada sobre Aldhelm ser esperado na abadia. Tutilo saiu pelo portão, como um homem honesto, e seguiu pelo caminho de Foregate para a barcaça, mas desviou para a Feira dos Cavalos e escondeu-se no sótão por cima do nosso estábulo, exactamente como diz. E ela esgueirou-se pelo portão grande do cemitério, e foi encontrar-se com ele lá. Esperaram até ouvirem o toque do sino para as Completas, e depois separaram-se e seguiram pelos mesmos caminhos por onde tinham ido. É o que ela diz, e que ele não dirá, para ela não ter problemas.

- Então eles passaram todo o serão ocupados no meio da palha, como tantos rapazes e raparigas antes deles - disse Hugh, e soltou uma gargalhada.

- Foi o que fizeram, por assim dizer, mas não como esses pares. Não foi bem assim. Pois ela diz que conversaram. Nada mais. E aqueles dois tinham muito que conversar, e poucas oportunidades para o fazer até então. Foi a primeira vez que estiveram juntos do lado de fora destas paredes. Mesmo assim, duvido que tenham ido ao cerne do que deviam dizer. Pois, acredita em mim, Hugh, ela já imprimiu a sua marca nele, e ele, embora possa ainda não saber, está profundamente dominado por ela. Segundo ela, quando ouviram o sino para as Completas, rezaram juntos as orações nocturnas.

- E acreditas nela?

- Se assim não fosse, por que mo diria? - disse Cadfael com simplicidade. - Ela não tinha nada para me provar. Contou-me de livre vontade, e não tinha necessidade de acrescentar uma única palavra.

- Bom, se é verdade - disse Hugh, muito sério -, fala por ele. Coincide com a hora a que ele veio ter connosco ao castelo, e coloca-o uma hora depois de Aldhelm naquele caminho. Mas percebes tão bem como eu que a palavra da rapariga dificilmente será tomada mais a sério como prova do que a dele, se as coisas estiverem assim entre os dois. Por muito inocente que esse encontro possa ter sido.

- Já pensaste - perguntou Cadfael sombriamente - que Herluin quererá seguramente voltar para casa, agora que perdeu a sua aposta? E ele é o superior de Tutilo, e certamente quererá levá-lo consigo. E segundo a minha opinião, tendo em conta o estado em que o caso se encontra, tem todo o direito a fazê-lo. Se o tivesses prendido no castelo por acções suspeitas, as coisas seriam diferentes. Mas ele está aqui na prisão da Igreja, e sabes como a Igreja se agarra aos seus. Entre uma condenação secular por homicídio e uma clerical por roubo e fraude, é provável que o rapaz prefira a última. Mas entre a tua custódia e a de Herluin, francamente, eu preferiria que ele estivesse a teu cargo. Mas Herluin nunca o libertará de boa vontade. A pobre criança fez o seu prior ter esperança de ganhar uma santa que opera milagres, e depois não conseguiu ser bem sucedido, e provocou uma reprimenda e grande humilhação. Vai pagar por isso dez vezes, quando Herluin o apanhar em casa. Não sei, mas preferia vê-lo acusado de um crime de que é inocente, e levado para a tua prisão, do que ser arrastado para uma penitência infinita pelo delito de que ele próprio se confessa culpado.

Hugh estava a sorrir, um pouco retorcidamente, e a olhar para Cadfael por cima do ombro com pesarosa afeição.

- É melhor ir trabalhar o dia ou dois que me resta, e encontrar o homem que realmente cometeu o homicídio, já que estás tão certo de que não foi este rapaz. Seguramente, vão partir todos juntos, pois Rémy e o seu grupo vão trabalhar para Robert Bossu, e o caminho que Herluin vai tomar para casa é pela mesma estrada até Leicester... foi por isso que a carroça foi assaltada lá, e tudo isto começou... assim sendo, ele seria louco se dispensasse uma escolta segura e não pedisse para viajar com o conde, se na verdade o conde não o convidar antes de ele ter oportunidade de pedir. Talvez consiga adiar a partida de Robert por dois dias, mas não mais do que isso.

Levantou-se e esticou-se. Tinha sido um dia repleto de acontecimentos, com muitos mistérios apresentados e nenhum solucionado. Tinha conseguido uma hora ou duas na companhia de Aline, e uma brincadeira com o tirano Giles de cinco anos, antes de o rapaz ter sido levado para a cama por Constance, a sua dedicada escrava. Que as considerações menores, e já agora também as grandes, ficassem suspensas até ao dia seguinte.

- E de que responsabilidades especiais queria ele falar contigo em particular esta tarde? - perguntou Cadfael quando o amigo se voltou para a porta.

- Da necessidade - disse Hugh, voltando-se para trás e pesando as palavras com cuidado - de todos os homens inteligentes envolvidos nesta contenção sem solução começarem a procurar um meio de acabar com as facções, já que nenhuma delas tem a menor esperança de vencer. A coisa está a tornar-se muito simples: como sair de uma fossa antes de o esterco nos chegar ao queixo. Podes pensar nisso, Cadfael, enquanto dizes uma palavra ao ouvido de Deus durante as Completas.

Cadfael nunca conseguiu ter a certeza absoluta do que o levou a pedir emprestada a chave de novo depois das Completas, e ir fazer uma visita tardia a Tutilo. Podia ter sido o som da voz leve e pura que vinha do interior da cela, e que ouviu de uma maneira arrepiante do outro lado do pátio quando saiu do último Serviço naquela noite. Via-se uma tira de luz fraca na janela alta com grades; o prisioneiro ainda não tinha apagado a sua pequena candeia. Cantava muito baixinho, pois não queria que ninguém o ouvisse lá fora, mas o tom era tão pungentemente verdadeiro no centro da nota como uma flecha no dourado de um alvo, que era transportada na imobilidade do lusco-fusco para os cantos mais remotos do pátio, e fez Cadfael parar a meio de um passo, profundamente comovido com a sua beleza. O rapaz estava um pouco fora do tempo: ainda estava a cantar o fecho do Serviço. Nada tão maravilhoso tinha sido ouvido no coro da igreja. Anselm era um chantre excelente, e há muito tempo, quando era jovem, devia ter cantado assim: mas Anselm, apesar de todas as suas capacidades, estava velho, e esta era uma voz sem idade que podia pertencer a uma criança ou a um anjo. "Bendita seja a condição humana", pensou Cadfael, "que nos permite a nós, criaturas deterioradas e falíveis, que não são anjos nem crianças, produzir sons como estes, que pertencem a outro mundo. Misericórdias não procuradas, graça não merecida!"

Bom, podia ser um sinal. Ou, então, o que o fez ir buscar a chave à casa do porteiro podia ter sido simplesmente a sensação de que tinha de fazer mais um esforço para arrancar alguma coisa útil ao rapaz antes de ir dormir, alguma coisa que pudesse indicar um caminho em frente, talvez alguma coisa de que Tutilo nem se tivesse apercebido de que sabia. Ou, pensou Cadfael depois, podia ter sido uma forte cotovelada nas costelas dada por Santa Winifred, a estender a sua graça de um pensamento desde a sua campa em Gwytherin, depois de ter perdoado o jovem desavergonhado que tivera o excelente gosto de a desejar, tal como tinha perdoado o velho desavergonhado que tivera a presunção de supor que estava a interpretar a sua vontade, tão impudentemente, há tantos anos. Fosse o que fosse, dirigiu-se para a casa do porteiro, com a beleza arrebatadora e agonizante de Tutilo a segui-lo durante todo o caminho. O irmão porteiro entregou-lhe a chave sem perguntas; na sua solidão, Tutilo mostrara todos os sinais de resignação e satisfação, como se gostasse da paz e sossego para pensar no seu estado actual e nas perspectivas futuras. Independentemente dos motivos complexos que se tivessem combinado para levar Tutilo para o claustro, não havia nada de falso em relação à sua fé; se não tinha feito mal, estava certo de que não lhe aconteceria mal nenhum. Ou então, é claro, sendo o rapaz que era, estava a convencer todas as pessoas à sua volta a acreditarem na sua docilidade, até deixarem de o observar atentamente, e deixarem-no sair da armadilha como uma enguia. Com Tutilo, nunca se podia ter a certeza absoluta. Daalny tinha razão. Era preciso conhecê-lo muito bem, para saber quando ele estava a mentir e quando estava a falar verdade.

Tutilo ainda estava de joelhos diante da cruz pequena e simples da parede da cela, e não olhou em volta imediatamente quando a chave rodou na fechadura, e a porta se abriu nas suas costas. Tinha parado de cantar, e olhava pensativamente para a frente, com os olhos muito abertos, e o rosto plácido e abstraído. Voltou-se quando a porta se fechou pesadamente, e ao ver Cadfael esboçou um sorriso bastante triste e sentou-se no seu catre. Pareceu levemente surpreendido, mas não fez qualquer comentário, submissamente à espera de ouvir o que queriam agora dele, e sem apreensão, porque fora Cadfael quem viera.

- Não, nada - disse Cadfael com um suspiro, respondendo ao olhar. - Apenas uma esperança torturante de que o facto de teres falado connosco há pouco possa ter dado um novo rumo à conversa. Que tivesses recordado alguma pequena coisa que possa ser útil.

Tutilo abanou a cabeça lentamente, com boa vontade mas sem novidades.

- Não, não me lembro de nada que não vos tenha dito. E tudo o que vos disse é verdade.

- Oh, não duvido de ti - disse Cadfael, resignado. - No entanto, não esqueças. O pormenor mais insignificante, algo que pensas que não tem importância, pode ser o grão que faz o peso. Não importa, deixa as tuas ideias assentar, algo poderá ocorrer-te. - Olhou em volta da cela branca, vazia. - Estás suficientemente quente aqui?

- Depois de estar debaixo das cobertas, bastante quente - disse Tutilo. - Já dormi em camas mais duras e com mais frio muitas vezes.

- E não falta nada? Alguma pequena coisa que possa fazer por ti?

- De acordo com a Regra, nem devíeis oferecer - disse Tutilo, e de repente esboçou um sorriso resplandecente. - Mas sim, talvez haja uma coisa lícita que posso pedir, até para meu próprio bem. Tenho mantido as horas, aqui sozinho, mas por vezes há bocados de que me esqueço. E, para além disso, sinto a falta de ler o livro para passar o tempo. Até o padre Herluin aprovaria. Podíeis trazer-me um breviário?

- Que aconteceu ao teu? - perguntou Cadfael, surpreendido.

- Eu sei que tinhas um, um pequeno e fino. - O pergaminho fino tinha sido dobrado muitas vezes e as folhas estavam amachu-cadas. - Precisas de bons olhos para aquela letra minúscula, mas os teus olhos são suficientemente jovens para serem bons.

- Perdi-o - disse Tutilo. - Tinha-o na missa, um dia antes de ser preso aqui, mas onde o deixei ou o perdi, não sei. Sinto a falta dele, mas não consigo descobrir o que fiz com ele.

- Tinha-lo no dia em que Aldhelm devia vir para cá? No dia... antes, na noite... em que o encontraste?

- É o último de que me lembro, e posso tê-lo deixado cair da sacola ou tê-lo perdido algures no meio das árvores no escuro, é disso que tenho receio. Naquela noite, não estava em condições de prestar muita atenção - disse, tristemente -, depois de o ter encontrado. Quando corri pelo caminho e atravessei o rio para a cidade, podia tê-lo perdido em qualquer lado. Neste momento, pode estar no fundo do Severn. Gostaria de o ter - disse, seriamente -, e levanto-me para a Matina e para as Laudes à noite. A sério!

- Vou deixar-te o meu - disse Cadfael. - Bom, o melhor é dormires, se vais levantar-te como nós à meia-noite. Mantém a lamparina acesa até essa altura, se quiseres, tem azeite suficiente.

- Tinha verificado o pequeno recipiente com a ponta de um dedo.

- Boa noite, filho!

- Não vos esqueçais de fechar a porta - disse Tutilo atrás dele, e riu sem uma ponta de amargura.

Ela estava no canto mais escuro, magra e imóvel e erecta, encostada às pedras da parede da cela, quando Cadfael virou a esquina. O brilho ténue da candeia de Tutilo através das grades altas, acima dela, incidia no seu rosto como não mais do que a luz fraca de um pirilampo, conjurando da escuridão profunda a máscara espectral de um rosto, oval, esquivo, com austeras feições cavadas, mas a luz que se escoava da janela ocidental da igreja, pouco menos intensa, incidia sobre o brilho forte e latente dos seus olhos, e sobre alguns pontos de brilho que eram fios de prata bordados junto às costuras laterais das suas vestes. Ela tinha vestido as suas roupas melhores, pois estivera a cantar para Robert Bossu. Uma presença esguia, imóvel e intensa na imobilidade da noite. Daalny, rainha de Partholan, uma semideusa do paraíso ocidental.

- Ouvi as vossas vozes - disse ela, a sua própria voz apenas um sussurro; os sussurros ouvem-se melhor do que frases proferidas em voz baixa. - Não podia chamá-lo, alguém poderia ouvir. Que vai acontecer-lhe, Cadfael?

- Espero - disse Cadfael - que não lhe aconteça muito mal.

- Se ficar muito tempo em cativeiro - declarou ela - vai deixar de cantar. E depois morrerá. E depois de amanhã partimos com o conde para Leicester. Eu já recebi ordens de Rémy, amanhã tenho de começar a guardar os instrumentos para serem transportados em segurança, e na manhã seguinte partimos. Bénezet deve estar a cuidar de todos os cavalos, e a exercitar o de Rémy para ter a certeza de que a ferida sarou bem. E vamos. E ele fica. A mercê de quem?

- De Deus - respondeu Cadfael com firmeza -, e com a intercessão dos santos. Pelo menos de uma santa, pois ela acotovelou-me com a semente de uma ideia. Agora vai para a tua cama, e mantém a esperança, pois ainda nada acabou.

- E que é que ganho com isso? - replicou ela. - Podíamos provar dez vezes que ele não cometeu homicídio, mas mesmo assim ele seria arrastado para Ramsey, e eles vão vingar-se dele, não tanto por ser um ladrão mas por o seu roubo ter resultado mal. No grupo do conde metade do caminho, e com uma escolta demasiado forte para poder fugir. - Baixou os olhos ardentes para a grande mão escura em que Cadfael tinha a chave, e de repente sorriu. - Agora sei qual é a chave certa - disse.

- Pode ser trocada para o prego errado - disse Cadfael, calmamente.

- Mesmo assim, reconhecê-la-ia. Só existem duas semelhantes em tamanho e formato, e lembro-me bem do padrão do denteado da errada. Não voltarei a cometer o mesmo erro.

Preparava-se para lhe dizer para não interferir e confiar na justiça divina, mas depois teve uma súbita visão da justiça divina como a Igreja por vezes a aplicava, de boa-fé, mas de uma forma pavorosa, com toda a tacanhez e desumanidade virtuosa de mentes cegas e surdas perante a variedade infinita da humanidade, os seus defeitos, e aspirações, e necessidades, e esquecidos de todos os lembretes do Evangelho referentes aos publicanos e aos pecadores. E pensou em rouxinóis em gaiolas, a definhar sem ar para fazer vibrar as suas cordas vocais, sem alma para cantar, e percebeu que podiam muito bem morrer. Metade da humanidade estava aqui nesta rapariga magra e morena ao seu lado, e essa metade da humanidade tinha o seu direito a pensar, a determinar e a imiscuir-se, não menos do que a metade masculina. Afinal de contas, eram igualmente responsáveis pela continuação da humanidade. Não havia um único arcebispo nem um único abade no mundo que não tivesse uma mãe de carne e osso, e tivesse sido gerado numa cópula ardente.

Ela faria o que achasse melhor, e ele também. Depois de recolocar a chave no seu lugar, ele não era responsável pela vigilância das chaves.

- Bem, bem! - disse Cadfael com um suspiro. - Deixa-o sossegado esta noite. Deixa todas as coisas como estão. Quem sabe se os céus amanhã não estarão muito mais claros?

Deixou-a então, e percorreu o pátio para a casa do porteiro, para devolver a chave ao irmão porteiro. Atrás dele, Daalny disse suavemente:

- Boa noite! - O seu tom era calmo, cortês e alheado, não prometendo nada, não confidenciando nada, uma saudação neutra da escuridão.

E que tinha ele em concreto daquele último regresso instintivo para interrogar o rapaz uma vez mais, na esperança de alguma recordação súbita que desvendasse a verdade como se estivesse a abrir as portadas numa manhã de Verão? Apenas uma pequena coisa: Tutilo tinha perdido o seu breviário, algures, não sabia quando, no dia do crime. Com meia milha de bosque e duzentas ou trezentas jardas de vielas de Foregate, e a corrida apressada para a cidade e depois para a abadia, se fora apenas isso. Um breviário pode ser recopiado. E no entanto, se aquilo era tudo, por que é que sentira Santa Winifred a abaná-lo impacientemente no ombro e a sussurrar-lhe ao ouvido que ele sabia muito bem onde começar a procurar, e que era melhor fazê-lo de manhã, pois o tempo estava a esgotar-se?

 

                                  Capítulo Doze

Cadfael levantou-se muito antes da Prima, abrindo os olhos para um lusco-fusco matinal com a promessa cinzento-prateada de céu limpo e uma calmaria sem vento, e com a consciência de uma tarefa já decidida e à espera de ser completada. Mais valia fazer o empreendimento servir dois objectivos. Foi primeiro à sua oficina, para seleccionar os remédios que podiam estar em falta no hospital de Saint Giles, no fim de Foregate; essencialmente unguentos e loções para erupções cutâneas, pois os vagabundos que vinham refugiar-se ali chegavam normalmente a sofrer dos males provenientes de uma vida de fome e pouco asseio, muitas vezes não por culpa deles. Os problemas do frio não eram menos graves, especialmente entre os idosos, cujo ar chiava e arranhava nos seus pulmões como folhas secas por deambularem pelas estradas. Com a sacola já abastecida, olhou em volta para ver os trabalhos que necessitavam de mais atenção, e marcou tarefas suficientes para manter o irmão Winfrid ocupado durante as horas de trabalho da manhã.

Depois da Prima, deixou Winfrid a cavar alegremente uma leira para plantar couves mais tarde, e foi pedir uma chave ao porteiro. A seguir à esquina oriental da parede das celas, no extremo mais afastado da Feira dos Cavalos e a meio caminho de Saint Giles, situava-se o grande celeiro e estábulo, com sótão, para onde os cavalos tinham sido transferidos do estábulo do pátio no interior do recinto da abadia durante a cheia. Fora naquela parte da estrada que a carroça de Longner estivera à espera, enquanto os carroceiros se esforçavam para salvar os tesouros da igreja, e fora ali que Tutilo saíra pelos portões do cemitério para puxar Aldhelm pela manga, e o tornara cúmplice involuntário daquele roubo sacrílego. E ali, na noite da morte de Aldhelm, segundo Daalny, ela e Tutilo haviam-se refugiado na palha do sótão, para ele evitar ter de encarar a testemunha e admitir o crime, e não se atrevera a voltar até ouvirem o sino para as Completas. Nessa altura o perigo já tinha realmente passado, pois o jovem inocente estava morto.

Cadfael abriu as portas principais, e deixou uma parte aberta. Na penumbra com odor a palha da sala inferior situavam-se os estábulos para os cavalos, embora nenhum deles estivesse ocupado. Nas vendas de gado sazonais haveria muitos criadores da região a guardar os seus animais ali, mas nesta época o local era pouco usado. Praticamente no meio da sala comprida, uma escada de madeira dava acesso a um alçapão por onde se entrava para um sótão. Cadfael subiu-a, tirou o ferrolho do alçapão e desviou-o para o lado, e entrou numa sala superior iluminada por duas janelas estreitas e sem portadas. Alguns barris alinhavam-se contra a parede do fundo, uma série de ferramentas no canto mais próximo, e ainda havia grandes quantidades de feno, pois as culturas de erva tinham sido boas dois anos seguidos.

Eles tinham deixado a sua marca no feno empilhado. Não havia dúvida de que duas pessoas tinham estado ali recentemente, os dois ninhos acolhedores e fundos viam-se claramente. Mas quem eles eram, foi o que levou Cadfael a parar durante alguns momentos em interessada contemplação. Suficientemente próximos para se consolarem e aquecerem, mas no entanto claramente separados, e tão bem preservados que podiam ter sido feitos deliberadamente. Não houvera ali uma arrebatada cópula rústica, apenas dois pequenos pecadores ansiosos, escondidos das partidas do destino por uma noite, mesmo que o golpe tivesse de cair no dia seguinte. Deviam ter estado sentados muito quietos, para evitar até o barulho da palha à volta dos pés.

Cadfael olhou à sua volta, em busca da pequena coisa estranha que tinha vindo procurar, sem qualquer garantia de que estaria ali, apenas uma convicção íntima de que um dedo benevolente lhe tinha indicado aquele lugar. Mal tinha começado a procurar quando descobriu o que viera procurar, pois o canto do sólido quadrado de madeira desviara-o algumas polegadas, e escondera-o parcialmente. Um livro fino, encadernado em pele tosca, com os cantos muito gastos de tanto ser transportado e usado, e pela fricção de duras sacolas. O rapaz devia tê-lo pousado quando se preparavam para sair, para ter as mãos livres para ajudar Daalny a descer a escada, e concentrara-se tanto para colocar o alçapão no lugar que se esquecera de pegar no livro.

Cadfael pegou-lhe e ergueu-o, agradecido. Havia uma tira de palha amarela a marcar uma página, e o sítio que marcava era o ofício das Completas. Ali no escuro não conseguiriam lê-lo, mas de qualquer maneira Tutilo saberia o texto de cor, e aquele gesto era simplesmente uma pequena celebração para provar que tinham cumprido as horas fielmente. Cadfael pensou que seria fácil afeiçoar-se àquele malandro dotado, por vezes uma afeição divertida, muitas vezes exasperada, mas no entanto afeição. Para além, é claro, daquela voz angélica tão generosamente concedida a quem não era certamente um anjo.

Estava muito quieto, a um ou dois passos do alçapão aberto, quando ouviu um pequeno som lá em baixo. A porta tinha sido deixado aberta, qualquer pessoa podia ter entrado, mas não tinha ouvido passos. O que ele tinha ouvido fora um ligeiro raspar de cerâmica tosca contra cerâmica tosca, barro mal cozido, uma tampa pesada a ser erguida de um grande contentor de armazenamento. A fricção de um pequeno movimento de içar fez um ruído breve e desagradável que ecoou de forma estranha, e o fez ranger os dentes. Alguém tinha tirado a tampa do contentor de milho. Fora cheio quando os cavalos tinham sido retirados, e não teria sido esvaziado novamente, em caso de maior necessidade, uma vez que os rios ainda corriam um pouco cheios, e a estação ainda não era completamente segura. E, uma vez mais, o barulho ligeiramente diferente mas ainda desagradável da tampa a ser recolocada. Foi muito suave, um toque minúsculo, mas ele ouviu-o.

Mexeu-se cuidadosamente, para poder olhar pelo alçapão, e alguém lá em baixo, ao ouvi-lo, cumprimentou-o alegremente:

- Estais aí, irmão? Está tudo bem! Vim buscar uma coisa de que me esqueci quando mudámos os cavalos. - Pés pisaram a palha do chão, agora com ruído, e Bénezet, o criado de Rémy, ficou à vista, a sorrir amigavelmente para o sótão, e a brandir um freio que mostrava reflexos de decoração dourada no freio e na rédea. - Do meu senhor Rémy! Andei a passear o seu cavalo pela primeira vez desde que ele ficou coxo, e trouxe-o para aqui aparelhado, e deixei ficar isto. Vamos precisar dele amanhã. Estamos a arrumar as nossas coisas.

- Já ouvi dizer - declarou Cadfael. - E partis com uma escolta segura. - Guardou o breviário no hábito, pois deixara a sacola lá embaixo, passou cuidadosamente pelo alçapão e começou a descer a escada. Bénezet esperou por ele, a baloiçar o freio.

- Lembrei-me a tempo onde o tinha deixado - disse ele, a passar um polegar pelas decorações gravadas em relevo no freio e na rédea. - Perguntei ao porteiro, e ele disse-me que o irmão Cadfael tinha levado a chave e que estaria aqui, por isso vim buscar isto enquanto o estábulo estava aberto. Se estais despachado, irmão, podemos sair juntos.

- Ainda tenho de ir a Saint Giles - disse Cadfael, e voltou-se para pegar na sacola. - Eu fecho a porta, se não tens mais que fazer aqui, e vou para o hospital.

- Não, estou despachado - disse Bénezet. - Só precisava disto. Ainda bem que me lembrei, se não os melhores arreios de Rémy teriam ficado a baloiçar naquele ancinho, e eu teria de os pagar do meu salário e com a minha pele.

Despediu-se rapidamente, seguiu para a esquina, e avançou para a estrada a direito de Foregate, sem olhar para trás. Nunca tinha olhado para o cesto de milho que se encontrava no seu nicho sombrio. Mas ele tinha tirado o freio do último cesto de milho. Pelo menos, fizera questão de deixar isso claro.

Cadfael dirigiu-se para o contentor de milho e levantou a tampa. Havia grãos espalhados na borda, e no chão em volta. Não era uma grande quantidade, mas estavam ali à vista. Mergulhou os dois braços no cereal escorregadio, e procurou no fundo até os dedos tocarem a base, e os grãos deslizarem, frios, pelas suas mãos, e não encontrou nada estranho. Não estava a esconder uma coisa, mas a retirá-la; e, fosse o que fosse, tinha uma natureza e formato calculados para trazer apenas alguns grãos consigo quando emergisse. O freio tê-los-ia feito deslizar de novo para a ânfora. Alguma coisa com pregas que prendesse os grãos? Tecido?

Ou sentira simplesmente curiosidade de saber quanto cereal ainda havia no interior? Uma simples curiosidade? De vez em quando, as pessoas fazem coisas estranhas e inconsequentes, divergindo sem motivo do que está a ocupá-las no momento. Coisas estranhas e inconsequentes são por vezes extremamente significativas. Cadfael sacudiu-se, fechou a grande porta à chave, e dirigiu-se para Saint Giles.

Quando voltou com a sacola vazia, havia uma actividade importante mas sem pressas no grande pátio, a azáfama natural antes de uma partida. Não havia pressa, tinham o dia inteiro para se preparar. Os dois escudeiros de Robert Bossu andavam para trás e para a frente na ala de hóspedes, a reunir as roupas e o equipamento de que o seu senhor precisaria na viagem. Ele viajava com pouca bagagem, mas gostava de um serviço meticuloso, e obtinha-o, por norma, sem ter de se dar ao trabalho de dizer o que quer que fosse. O criado Nicol e o seu companheiro mais jovem, o que tinha ficado para voltar de Worcester para Shrewsbury a pé, e fizera o percurso rapidamente, tinha muito pouco que fazer para se preparar, pois desta vez as esmolas que tinham reunido para a sua casa seriam levadas na carruagem da bagagem do conde Robert, a mesma que trouxera o relicário de Santa Winifred para casa, e seria agora a carruagem para as bagagens de todos, enquanto o cavalo de carga do conde providenciaria um transporte digno para o sub-prior Herluin. Robert Bossu era generoso em pequenas atenções para com Herluin, o que era muito reconfortante para a sua dignidade.

E o terceiro dos três grupos agora reunidos para a viagem era o que tinha, talvez, os preparativos mais complicados para fazer. Daalny desceu cuidadosamente os degraus da ala de hóspedes com um bonito órgão portátil nas mãos, com o pescoço elegante esticado para espreitar pelos lados do seu fardo para ver a ponta de cada degrau, pois os instrumentos de Rémy eram talvez mais preciosos do que a própria cantora. O órgão tinha um estojo feito especialmente para o proteger, mas era muito volumoso, e como o espaço no interior estava limitado, o estojo tinha sido guardado no estábulo. Daalny atravessou o pátio, segurando o instrumento como se tivesse uma criança no braço e a apertá-lo cuidadosamente com a mão livre, pois para ela era um objecto de amor tão grande como para o patrão. Ergueu os olhos para Cadfael, quando ele chegou junto dela, e brindou-o com um sorriso circunspecto, como se seleccionasse e suprimisse mentalmente os tópicos que podiam surgir com aquele companheiro, mas que seria melhor evitar.

- Tu trazes a carga mais pesada - disse Cadfael. - Deixa-me levá-lo.

Ela sorriu mais calorosamente, mas abanou a cabeça.

- Eu sou a responsável, sou eu que o levo ou que o deixo cair. Mas não é assim tão pesado, apenas volumoso. A caixa está ali dentro. De couro, macia, almofadada. Podeis ajudar-me a colocá-lo no interior, se quiserdes. São precisas duas pessoas, uma para segurar a caixa bem aberta.

Ele entrou com ela no pátio do estábulo, e segurou obedientemente a tampa levantada do estojo para ela pousar o pequeno órgão no interior. Ela fechou a tampa do estojo, e apertou as tiras que a mantinham segura. À volta deles, os jovens escudeiros do conde faziam eficientemente o seu serviço com a agilidade e graça prazenteira da juventude, e no extremo mais afastado do pátio Bénezet estava a limpar selas e arreios, e a dispor o seu trabalho num suporte de madeira, onde os xairéis estavam estendidos a uma pálida luz do sol que começava já a ter um grau surpreendente de calor. O freio ornamentado de Rémy encontrava-se num gancho ao lado dele.

- O teu senhor gosta de arreios bonitos - disse Cadfael, e apontou. Ela seguiu o olhar dele impassivelmente.

- Oh, aquilo! Não pertence a Rémy, mas a Bénezet. Nem vale a pena perguntar onde é que ele arranjou aquele freio. Já pensei muitas vezes que o roubou algures, mas ele mantém a boca calada, é melhor não perguntar.

Cadfael digeriu aquilo sem comentários. Para quê uma mentira tão escusada? Não tinha nenhum objectivo detectável, que ele visse, por isso era em si causa para mais reflexão. Talvez Bénezet pensasse que era sensato atribuir a posse de um bem tão precioso ao seu senhor, para evitar curiosidade em relação a como a obtivera. Daalny acabara de sugerir isso mesmo. Levou o assunto um pouco mais longe, num tom muito casual.

- Ele não tem muito cuidado com ela. Tinha-a deixado no celeiro da Feira dos Cavalos todo este tempo desde a cheia. Só foi buscá-la esta manhã.

Desta vez ela voltou a cabeça, de repente atenta, e as mãos pararam na última tira.

- Ele disse-vos isso? Ele passou meia hora a limpar e a polir aquele freio hoje de manhã cedo. Nunca saiu daqui, vi-o uma dúzia de vezes.

Os seus olhos eram grandes, brilhantes e rápidos a especular. Cadfael não queria que ela começasse a pensar demais; ela já estava mais profundamente envolvida do que ele gostaria, e era bastante imprudente para se precipitar numa acção insensata naquele extremo, quando estava prestes a ser levada para Leicester, sem nada resolvido e nada ganho. Era de longe preferível mantê-la longe daquilo, se era de alguma maneira possível. Mas ela era muito inteligente; já tinha detectado a discrepância. Cadfael encolheu os ombros e disse, indiferente:

- Devo tê-lo compreendido mal. Ele esteve lá a meio da manhã, com ela na mão. Eu pensei que ele tinha ido lá buscá-la, pois estava no estábulo de lá. Achei que pertencia a Rémy.

- Bom, é lógico que pensásseis - concordou ela. - Eu própria tenho perguntado a mim mesma como a teria ele conseguido. Algures na Provença, muito provavelmente. Mas honestamente? Duvido. - O brilho dos seus olhos estreitou-se no rosto de Cadfael. Ela não se voltou para observar Bénezet, ainda não. - Que estava ele a fazer na Feira dos Cavalos? - O seu tom era casualmente curioso, como se nem a pergunta nem a resposta lhe interessassem muito, mas o brilho dos seus olhos negava-o.

- Como posso eu saber? - disse Cadfael. - Eu estava no sótão quando ele entrou. Talvez tivesse apenas ficado curioso ao ver a porta aberta.

Era uma distracção a que ela não conseguia resistir. Os seus olhos arredondaram-se avidamente, um pouco receosos de esperar demasiado.

- E que estáveis vós a fazer no sótão?

- Andava à procura de provas daquilo que me disseste - declarou Cadfael. - E encontrei. Sabias que Tutilo se esqueceu do breviário lá depois das Completas?

Ela disse:

- Não! - Quase inaudivelmente, num sopro suave, esperançoso.

- Ontem à noite, pediu-me o meu emprestado. Não fazia ideia onde perdera o dele, mas eu pensei num lugar, pelo menos, onde valeria a pena procurá-lo. E sim, estava lá, e marcado nas Completas. Dificilmente será uma testemunha ocular, Daalny, mas é uma boa prova. E estou à espera de o pôr nas mãos de Hugh Beringar.

- Vai servir para o libertar? - perguntou ela no mesmo sussurro extasiado.

- No que diz respeito a Hugh, pode muito bem servir. Mas o superior de Tutilo aqui é Herluin, e ele não pode ser ultrapassado.

- Ele precisa de saber? - perguntou ela, furiosamente.

- Não toda a verdade, se Hugh vir com os meus olhos. Que existem provas bastante concludentes de que o rapaz nunca cometeu um homicídio, sim, isso ele vai saber, mas não precisa de saber onde estiveram nem o que fizeram, vocês os dois, nessa noite.

- Não fizemos mal algum - disse ela, exultante e com desprezo de um mundo onde se via mal em tudo, e onde ela conhecia mal suficiente, mas desprezava a maior parte dele e não tinha interesse em nenhum. - O abade não pode decidir contra Herluin? Este é o domínio dele, não de Ramsey.

- O abade vai cumprir a Regra. Ele não pode continuar a deter o rapaz aqui e privar Ramsey, tal como não poderia abandonar um dos seus. Espera! Vejamos se até Herluin pode ser persuadido a abrir a porta ao rapaz. - Não especulou sobre o que poderia acontecer então, embora lhe parecesse que a ardente vocação de Tutilo arrefecera para um ponto em que poderia desaparecer da vista e da mente quando comparada com o encanto de libertar a rainha de Partholan da escravidão. Ah, bom! mais valia tirar as mãos da relha do arado e ocupá-las com uma tarefa mais decente, do que persistir, e fazer sulcos cada vez mais estreitos com o arado até tudo o que era secular ser anátema, e tudo o que era humano estar condenado a reprovação.

- Dai-me notícias - pediu Daalny, muito séria, com um olhar majestosamente exigente.

Só quando Cadfael saiu de junto dela, para vigiar o portão à espera da chegada de Hugh, é que ela olhou para Bénezet. Por que se daria ele ao trabalho de contar mentiras desnecessárias? É verdade que preferiria que as pessoas pensassem que um freio invulgarmente bom pertencia ao seu senhor e não a si, se tinha motivos para estar preocupado com curiosidade lisonjeadora mas inconveniente. Mas para quê dar uma explicação se nenhuma lhe tinha sido pedida? Por que gastaria palavras com mentiras desnecessárias um homem que era extremamente calado e era extremamente frugal em palavras? E, mais interessante ainda, seguramente ele não tinha ido até à Feira dos Cavalos para recuperar aquele freio, quer fosse seu ou de Rémy. Era a desculpa, não o motivo. Então por que é que fora lá? Para ir buscar outra coisa qualquer? Alguma coisa que não tinha sido de maneira nenhuma esquecida, mas deliberadamente deixada ali? No dia seguinte partiriam para Leicester. Se ele tinha algo escondido ali, algo que não podia correr o risco de mostrar, tinha de ir buscá-lo hoje.

Para além do mais, se aquilo fosse verdade, o que tinha estado escondido desde a noite da cheia, quando o caos entrara na igreja com a água do rio, quando tudo o que era vulnerável no interior estava a ser retirado, quando o roubo engenhoso de Tutilo fora cometido - oh, ela tinha percebido isso - e a raiz de crescimento lento mas certa do homicídio fora semeada? Homicídio do qual Tutilo não era culpado. Homicídio de que outra pessoa era culpada. Uma pessoa que tinha motivo para recear o que Aldhelm pudesse ter para dizer sobre aquela noite, quando a sua memória fosse espicaçada? Que outro motivo poderia alguém ter tido para assassinar um jovem inofensivo, um pastor de uma casa senhorial a algumas milhas de distância?

Daalny continuou o seu trabalho sem pressa, uma vez que não pretendia sair do pátio do estábulo enquanto Bénezet se encontrasse ali. Tinha de voltar à ala dos hóspedes para ir buscar os instrumentos mais pequenos, mas perdeu o menor tempo possível com isso, e colocou-se depois num local onde podia ver Bénezet enquanto os guardava nas caixas e os arrumava com cuidado. O escudeiro mais jovem do conde, interessado, veio examinar o ud sarraceno que voltara com o pai de Rémy da Cruzada, e a presença dele proporcionou um disfarce bem-vindo para a vigilância que ela estava a exercer sobre o colega de trabalho, e atrasou o seu trabalho de arrumação das bagagens, que de outra forma estaria terminado dentro de aproximadamente uma hora, e não a deixaria com uma boa desculpa para ficar ali. As flautas e pífaros transportavam-se facilmente; a rabeca e a mandora tinham as suas caixas almofadadas de protecção, embora o arco da rabeca tivesse de ser guardado com cuidado.

O meio-dia estava a aproximar-se. Os jovens criados do conde Robert empilharam toda a sua bagagem muito direita, pronta para ser carregada no dia seguinte, e foram cuidar do bem-estar do seu senhor no interior, e servir o jantar. Daalny amarrou a última tira, e colocou o alforge que continha as flautas ao lado dos alforges mais pesados.

- Estes estão prontos. Já acabaste de arranjar os arreios?

Ele tinha trazido uma das suas malas, e já a tinha meio cheia, com uma braçada de roupas dobradas no interior. Ela pensou que ele devia ter arrumado o que estava por baixo enquanto ela fora à ala de hóspedes buscar a rabeca e a mandora. Quando ele se voltou de costas, ela apalpou o saco macio de pele com o pé, e algo no interior fez o mais leve e claro dos sons, o tilintar de moeda contra moeda, muito rápido, como se a profundidade do movimento de arrumar fosse quase impossível. Mas não existe nada com um som exactamente igual àquele. Ele voltou a cabeça rapidamente, mas ela olhou-o com uma expressão impávida e serena, e manteve a sua posição como se não tivesse ouvido nada, e disse com grande compostura:

- Vem jantar. Ele já deve estar à mesa com Robert Bossu e desta vez não tens de o servir.

Hugh escutou a história de Cadfael, e foi rodando o pequeno breviário nas mãos com um sorriso leve, retorcido, entre o divertimento e a exasperação.

- Eu posso responder e responderei pelo meu condado, mas aqui dentro não tenho quaisquer poderes, como tu sabes muito bem. Aceito que o rapaz nunca cometeu um homicídio, na verdade nunca estive muito convencido de que o tivesse feito. Isto é prova suficiente para mim em relação a essa acusação, mas se fosse a ti esconderia as circunstâncias até de Radulfus, e ainda mais de Herluin. É melhor não apareceres nisto. Podias sentir que tinhas de contar o último pormenor ao abade, mas eu duvido de que até ele conseguisse libertar o pobre rapaz neste caso. Encontrar-se com uma rapariga numa meda de palha seria um motivo excelente para Herluin o castigar ainda mais, se alguma vez soubesse a história. Uma acusação pior do que o roubo sacrílego... em todo o caso, pior do que se tivesse sido bem sucedido. Vou ilibá-lo de homicídio, mesmo sem conseguir provar que foi outra pessoa, mas não posso prometer mais do que isso.

- Deixo tudo a teu cargo - disse Cadfael, resignado. - Faz o que achares mais certo. Deus sabe que o tempo é curto. Amanhã vão todos embora.

- Bem, pelo menos - disse Hugh, levantando-se - Robert Bossu, com toda a herança Beaumont na Normandia e em Inglaterra com que preocupar-se, dificilmente estará muito interessado em servir de carcereiro a um noviço insignificante com um inferno clerical à sua espera no fim da viagem. Eu não ficaria muito surpreendido se ele deixasse uma porta destrancada algures durante o caminho, e fingisse não ver, ou até indicasse que as buscas deviam fazer-se na direcção contrária. Há muita Inglaterra entre esta abadia e Ramsey. - Ergueu o breviário; a palha amarela ainda marcava o lugar onde Tutilo recitara o Ofício e partilhara as orações nocturnas com Daalny. - Devolve-lhe isto. Ele vai precisar.

E foi para a sua audiência com Radulfus, enquanto Cadfael se sentava a pensar um pouco taciturnamente, com o livro gasto nas mãos. Não sabia bem por que é que se preocupava tanto com aquele pequeno insensato que tentara roubar a santa de Shrewsbury, e dera início a uma série de acontecimentos desagradáveis que tinham provocado sofrimento, problemas e dificuldades a vários homens decentes, e custara a vida a um. Nada disso, é claro, Tutilo tinha cometido ou pretendido realmente, mas ele era sinónimo de sarilhos, e continuaria a ser enquanto estivesse num lugar que não era o seu. Até a sua devoção demasiado ardente mas genuína não era do tipo que se adequava à disciplina de uma irmandade monástica. Bem, pelo menos Hugh deixaria claro que o rapaz não era um assassino, independentemente de outras acusações que pudessem recair sobre ele, e o seu roubo extremamente empreendedor não era grave a ponto de recair sobre a jurisdição do xerife do rei. Quanto ao resto, se acontecesse o pior, o rapaz tinha de fazer o que qualquer recalcitrante taco quadrado fazia diante de um buraco redondo. Tinha de sobreviver à sua penitência, resignar-se com o seu destino, e contentar-se em viver subjugado e deformado, mas seguro. Um rouxinol engaiolado. Embora, é claro, ainda houvesse Daalny. Dai-me notícias, pedira ela. E sim, ele dar-lhe-ia notícias. Do melhor e do pior.

Na sala de visitas do abade, Hugh apresentou o seu veredicto em poucas palavras. Se não ia dizer tudo, o melhor era falar o menos possível.

- Vim dizer-vos, senhor abade, que não tenho qualquer acusação a fazer contra o noviço Tutilo. Tenho agora provas suficientes para ter a certeza de que ele não cometeu o crime. A lei de que eu sou o garante deixou de ter interesse nele. Menos - acrescentou calmamente - o interesse comum de lhe desejar boa sorte.

- Encontrastes o assassino noutro lado? - perguntou Radulfus.

- Não, não posso dizer isso. Mas agora tenho a certeza de que não é Tutilo. O que ele fez naquela noite, quando veio imediatamente contar-me o sucedido, foi bem feito, e o que podia fazer mais no dia seguinte, fê-lo sem queixas. A minha lei não apresenta qualquer queixa dele.

- Mas a minha tem de apresentar - disse Radulfus. - Roubar não é uma ofensa leve, mas é pior ter envolvido outra pessoa no roubo, e ter colocado a sua vida em perigo. Tem a seu favor o facto de ter confessado, e de ter sentido remorsos por ter envolvido aquele infeliz jovem nos seus planos. Ele tem dons que ainda pode usar para a glória de Deus. Mas há uma dívida para pagar. - Reflectiu durante alguns instantes com o silêncio atento de Hugh, e depois disse: - Posso saber que testemunha é que vos apareceu? Uma vez que não descobristes o culpado, deve ser por isso que estais certo da inocência deste rapaz.

- Ele deu a desculpa de ter sido chamado a Longner - declarou Hugh prontamente - para poder escapulir-se e esconder-se até o perigo passar e a testemunha partir, pelo menos naquela noite. Duvido que tenha olhado para a frente, a única coisa que queria evitar era a ameaça imediata. Sei aonde se escondeu. Foi no sótão do estábulo da abadia na Feira dos Cavalos, e existem provas razoáveis de que não saiu de lá até ouvir o sino das Completas. Nessa altura, Aldhelm já estava morto.

- E há outra voz que confirme essas horas?

- Há - disse Hugh, e não avançou mais nada.

- Bem - disse Radulfus, recostando-se no seu assento com um suspiro -, e ele só está nas minhas mãos por acaso, e eu não posso, mesmo que quisesse, ignorar a sua ofensa nem suavizar o seu castigo. O sub-prior Herluin vai levá-lo para Ramsey, para o seu abade, e enquanto estiver sob o meu tecto tenho de respeitar o direito de Ramsey, e mantê-lo preso em segurança até ele sair da minha casa.

- Ele não estava curioso, não fez perguntas - comunicou Hugh a Cadfael no herbário; a sua voz era apreciativa e divertida. - Aceitou a minha garantia de que estava convencido de que Tutilo não tinha cometido um homicídio nem quebrara a lei da terra, pelo menos nenhuma fora do seio da Igreja, e isso foi o suficiente para ele. Afinal de contas, amanhã vai estar livre de toda esta confusão, tem o seu próprio delinquente para se preocupar. Jerome vai precisar de muita absolvição. Mas o abade não fará aquilo que, como abade desta abadia, suponho que poderia fazer, deixar o nosso excomungado voltar aos serviços esta última noite. Ele tem razão, é claro. Depois de saírem os nossos portões, deixa de ser da responsabilidade de Shrewsbury, mas até então Radulfus é forçado a agir por Ramsey e pela sua própria casa. Um irmão deve comportar-se correctamente com outro irmão...

Mesmo que o deteste. Eu próprio sinto alguma pena, mas Tutilo permanece na sua cela. Oficialmente, de qualquer maneira - acrescentou ele com um sorriso pensativo. - Nem sequer as tuas recaídas, desde que só ofendam a Igreja, me diriam respeito.

- Em algumas ocasiões disseram - declarou Cadfael, e deixou os seus pensamentos vaguearem carinhosamente por certas recordações que lhe trouxeram um brilho nostálgico ao olhar. - Há muito tempo que não cavalgamos juntos de noite.

- Ainda bem para os teus ossos velhos - disse Hugh, e olhou-o com uma expressão de rapazinho travesso. - Fica contente, dorme na tua cama, e deixa pequenos bandidos espertos como o teu Tutilo suar pelos seus pecados, e esperarem o seu tempo de ser perdoados. Tanto quanto sabemos, o abade de Ramsey é uma alma boa e humana, um apoio suave para pequenos pecadores como tu. E talvez tenha bom ouvido musical. Isso seria bom. Se o libertares e o deixares solto na noite agora, como viverá ele, sem roupas, sem comida, sem dinheiro?

Cadfael reconheceu que era bastante verdade. Ele arranjar-se-ia, sem dúvida, mas com alguns riscos. Roupas roubadas do estendal de uma mulher qualquer, um ovo ou dois de um galinheiro, algumas moedas pedidas a viajantes na estrada com uma canção, mais algumas mendigadas num mercado - mas nenhuma parede de pedra a prendê-lo, e nenhuma porta fechada à chave, nenhum homem mais velho e nada caridoso a pregar-lhe sermões intermináveis pelos seus pecados imperdoáveis, nenhuma exclusão para a solidão terrível da excomunhão, banido da refeição comunal e do oratório, proibido de comunicar com os companheiros, e se algum fosse arrojado e bondoso a ponto de lhe oferecer uma palavra de consolo ficaria sujeito ao mesmo destino frio.

- Mesmo assim - declarou Hugh, a reflectir - existe justificação na Regra para deixar todas as portas abertas. Depois de tudo ser feito pelo incorrigível, que diz a Regra? "Se o irmão infiel te deixar, deixa-o ir."

Cadfael acompanhou-o até à casa do porteiro quando a tarde comprida estava a acalmar e a arrefecer para dar lugar à hora calma antes das Vésperas, com o trabalho diário concluído. Quando lhe entregara a testemunha muda que era o breviário de Tutilo, não tinha falado sobre o freio de Bénezet, e sobre a visita que este fizera ao estábulo da Feira dos Cavalos. Como não havia certeza, nem nada de significativo para oferecer, hesitava em adiantar uma simples suspeita sem provas concretas contra qualquer homem. E, no entanto, estava com medo de deixar passar alguma possibilidade de mais descobertas. Ficar na dúvida permanente é pior do que um conhecimento não desejado.

- Vens cá amanhã - perguntou ao portão -, para te despedires do grupo do conde? Ainda não ouvi nada sobre a hora a que sua senhoria pretende partir, mas vão querer aproveitar a luz ao máximo.

- Ele vai assistir à primeira missa antes de partir - disse Hugh. - Foi o que me informaram. Eu virei despedir-me dele.

- Hugh... traz três ou quatro homens contigo. Os suficientes para manter o portão guardado se houver alguma tentativa de fuga. Não em número suficiente para comentários ou alarme.

Hugh parou bruscamente, e ficou a observá-lo com atenção por cima do ombro.

- Isso não é para o pequeno irmãozinho - disse, com certeza. - Tens outra presa em mente?

- Hugh, juro que não sei nada que valha a pena contar-te, e se alguém se aventurar a dar um passo errado e fazer figura de grande tolo, que esse alguém seja eu. Mas vem cá! Uma pena a flutuar ao vento é mais substancial do que o que eu tenho, neste momento. Talvez ainda consiga descobrir mais. Mas não faças nada até amanhã. Na presença de Robert Bossu temos uma autoridade formidável a apoiar-nos. Se eu me aventurar, e fizer asneira ao apontar o dedo a um homem inocente, não será muito importante. Mas não quero chamar assassino a um homem sem ter provas concretas. Deixa-me tratar do assunto à minha maneira, e que todos os outros durmam descansados.

Hugh estava dividido entre pressioná-lo para saber todos os pormenores do que ele pretendia fazer, e para que ele lhe dissesse que pena a flutuar ao vento é que estava a perturbá-lo; mas pensou melhor. Ele e três ou quatro bons homens reunidos para assistir à partida do distinto hóspede, e dois bons escudeiros ao lado do seu formidável senhor - com uma guarda assim, que podia acontecer? E Cadfael era uma ajuda forte e com prática, mesmo sem um grupo atrás de si.

- Como achares melhor - disse Hugh, mas pensativo e preocupado. - Nós estaremos aqui, e preparados para interpretar os teus sinais. Numa altura destas, eu já devia estar letrado e fluente neles.

O seu cavalo preferido, com manchas cinzentas e muito magro, estava amarrado ao portão. Ele montou, e seguiu pela estrada em direcção à ponte que dava acesso à cidade. O ar estava muito calmo, e havia luz suficiente para se reflectir suavemente na superfície da represa. Cadfael observou o seu amigo até os cascos distantes fazerem um som oco na primeira parte da ponte, e depois voltou-se para o grande pátio quando o sino para as Vésperas soou.

O jovem irmão que estava encarregue de alimentar os prisioneiros naquela ocasião estava a regressar das celas deles para recolocar as chaves no seu lugar na casa do porteiro, antes de seguir, ao lado do irmão porteiro, para a igreja, para as Vésperas. Cadfael seguiu sem pressa, e com os ouvidos atentos, pois havia sem dúvida uma pessoa escondida nas sombras no ângulo do pilar do portão, muito encostada à parede. Ela era sensata, não lhe desejou boa noite, embora estivesse consciente da presença dele. Na verdade, estava ali, perto e imóvel, a observá-lo a despedir-se de Hugh ao portão. Não podia dizer-se que ele a tinha visto realmente, nem ouvido qualquer som ou movimento; tinha tido todo o cuidado para que isso não acontecesse.

Nas Vésperas, fez uma curta oração pelo pobre e infeliz irmão Jerome, mergulhado no seu próprio veneno, e abalado num coração não totalmente empedernido. Jerome seria levado para o oratório na altura própria, subjugado e humilhado, e prostrar-se-ia na soleira do coro até o abade considerar que tinha pago pela sua ofensa. Talvez até conseguisse emergir assustadamente limpo do seu velho eu. Era pedir muito, mas por vezes acontecem milagres.

Tutilo estava sentado na beira do seu catre, a escutar as orações incessantes e histéricas do irmão Jerome na cela ao lado da sua. Chegavam-lhe abafadas pela pedra, não como palavras distintas mas como lamentos fúnebres tão chorosos que Tutilo sentiu pena do homem que tinha tentado, se não matá-lo, pelo menos feri-lo. Devido à insistência desta ladainha nos ouvidos, Tutilo não ouviu o som que a chave fez, a rodar suavemente na fechadura, e a porta abriu-se com um cuidado tão extremo, com medo de que chiasse, que ele só voltou a cabeça quando uma voz abafada atrás de si disse:

- Tutilo!

Daalny estava emoldurada na porta. A noite atrás de si ainda estava luminosa com a última luz armazenada nas paredes pálidas em frente, e com um céu salpicado de estrelas que ainda eram quase invisíveis, num azul suave pouco mais escuro do que o seu brilho prateado. Ela entrou, apressada mas em silêncio, até ter fechado a porta atrás de si, pois no interior da cela a pequena lamparina estava acesa, e uma tira denunciadora de luz a escapar pela soleira da porta poderia fazer com que os descobrissem imediatamente. Ela olhou para ele e franziu o sobrolho, pois pareceu-lhe que ele estava um pouco pálido e desencorajado, e não era assim que pensava nele nem era assim que o queria.

- Fala baixo - avisou ela. - Se conseguimos ouvi-lo, ele também pode ouvir-nos. Rápido, tens de ir. Desta vez tens de ir. É a última oportunidade. Amanhã partimos, todos nós. Herluin vai levar-te de volta para Ramsey, para uma escravidão pior do que a minha, se depender dele.

Tutilo levantou-se lentamente, a olhar para ela. Tinha demorado um longo e assombrado momento a sair do mundo infeliz das orações frenéticas do irmão Jerome, e a perceber que a porta se tinha aberto realmente para ela entrar, que ela estava mesmo ali à sua frente, urgente, tangível, com os cabelos pretos soltos pelos ombros, e os olhos como ardentes chamas azuis no oval translúcido do seu rosto.

- Vai, agora, depressa - disse ela. - Eu mostro-te o caminho. Pela portinhola para o moinho. Vai para oeste, para o País de Gales.

- Ir? - disse Tutilo como um homem num sonho, a apalpar o caminho num mundo desconhecido e improvável. E de repente iluminou-se, como se se tivesse incendiado com o brilho dela. - Não - disse -, não irei para lado nenhum sem ti.

- Louco! - disse ela, impacientemente. - Não tens escolha. Se não te mexes, vais para Ramsey, e o mais provável é que vás amarrado depois de passarem por Leicester e de se separarem de Robert Bossu. Queres voltar para ser flagelado e para passar fome e para ser atormentado e para morrer cedo? Nunca devias ter voado para aquele refúgio, para ti é uma gaiola. É melhor ires sem nada para o País de Gales, e levares a tua voz e o teu saltério contigo, e eles reconhecerão um dom de Deus, e aceitar-te-ão. Depressa, vem, não desperdices o que fiz.

Ela tinha pegado no saltério, que estava em cima da mesa de orações guardado no seu saco de pele, e colocou-o nos braços dele, e ao tocar-lhe ele apertou-o contra o coração, e ficou a olhá-la por cima dele com olhos dourados, brilhantes. Abriu os lábios, ela pensou que ele ia protestar de novo e, para o impedir, colocou a palma da mão sobre a boca dele, e com a outra mão puxou-o desesperadamente para a porta.

- Não, não digas nada, limita-te a ir. É melhor ires sozinho! Que podias fazer com uma escrava fugida a tolher-te os passos, a prejudicar-te? Ele não vai libertar-me, a lei não vai libertar-me. Eu sou propriedade, tu és livre. Ordeno-te, Tutilo! Vai!

De repente o aço elástico voltou à coluna dele, e a audácia arrebatadora ao seu rosto, e ele seguiu-a, já sem hesitações, marcando o passo à porta, e pelo corredor sombrio. A chave foi de novo rodada na fechadura, e sentiu o ar nocturno frio e perfumado com folhas jovens em volta. Não houve palavras à despedida, o silêncio era muito melhor. Ela fê-lo sair pela portinhola na parede, para fora do recinto da abadia, e fechou a porta que os separava. E ele ficou com o escuro brilho peltre que escudava a represa à sua frente, e o caminho para Foregate, e para a esquerda, pouco antes da ponte que dava acesso à cidade, a estrada estreita que o levaria para oeste em direcção ao País de Gales.

Sem um único olhar para trás, Daalny voltou para o grande pátio. Tinha uma coisa para fazer na manhã seguinte de que ele nada sabia, uma coisa que, se fosse bem sucedida, acabaria com a perseguição e o deixaria livre. A lei secular podia mover-se à vontade até no reino dividido. A lei canónica não tinha a mesma mobilidade. Uma meia prova empalidece perante a prova irrefutável de culpa e inocência.

Ouviu as vozes ainda a cantar no coro, por isso aproveitou para entrar novamente na cela dele e apagar a pequena candeia. Era melhor e mais seguro que se pensasse que ele tinha ido para a cama, e que dormiria a noite inteira.

 

                                           Capítulo treze

A manhã da partida amanheceu húmida e sem vento, o sol velado, e todas as coisas verdes pareciam ainda mais verdes naquela luz suave e amorfa. Mais tarde, o véu diminuiria e desapareceria, e o sol avançaria no seu brilho esquivo de Primavera. Um bom dia para voltar para casa a cavalo. Daalny saiu para o grande pátio de uma cama onde não pregara olho, e dirigiu-se para a Prima, pois necessitava de todas as suas forças para fazer o que tinha de fazer, e a oração e a paz no interior da nave poderiam fortalecer a sua coragem para agir. Pois parecia-lhe que mais ninguém sabia, nem sequer suspeitava, do que ela suspeitava, por isso não havia mais ninguém para agir.

E no entanto podia estar enganada. O tilintar de moedas, o peso de um embrulho sólido a mexer-se contra a pressão do seu pé com aquele som suave e metálico - que provava aquilo? Mesmo quando lhe acrescentou as estranhas circunstâncias que o irmão Cadfael tinha relatado, a mentira sobre o freio de Rémy ter ficado esquecido na parte da frente do estábulo. Todavia, ele tinha mentido, e que assunto tinha, portanto, a tratar naquele lugar, a menos que tivesse ido buscar algo secreto que lhe pertencia - ou, é claro, a outra pessoa, e por que é que a escondera?

Bem, Tutilo tinha fugido, e ela esperava que naquele momento já estivesse longe, para oeste. Os Beneditinos não tinham grande influência no País de Gales, onde se mantinha teimosamente o Cristianismo menos organizado da Igreja Celta, embora o ritual Romano tivesse prevalecido. Eles aceitariam um noviço fugido, ainda mais quando o ouvissem cantar e tocar; arranjar-lhe-iam um patrono e uma harpa, e tirar-lhe-iam os hábitos e dar-lhe-iam boas roupas como pagamento da sua música. E ela, por muito que lhe custasse, afastaria dele a última sombra de suspeita de homicídio, para que aonde quer que ele fosse pudesse ir como um homem livre e ilibado. E quanto aos seus pecados mais pequenos, ser-lhe-iam perdoados.

Sentira dor ao vê-lo partir, mas não ligaria, nem lamentaria que ele a tivesse deixado, embora ele tivesse dito precipitadamente que não iria a lado algum sem ela. Agora, tudo o que importava para tornar o que ia fazer completo era que ele nunca mais fosse recapturado, que nunca fosse sujeito a estreitas paredes de pedra que lhe cortassem as asas, ou que lhe atrofiassem as cordas vocais até que estas se silenciassem.

Durante todo o serviço rezou orações sem palavras por ele, e esperou e escutou o primeiro grito a denunciar a sua ausência. Este só se fez ouvir depois de o irmão porteiro ter ido levar o pão e a cerveja fraca do pequeno-almoço ao irmão Jerome, e voltar para ir buscar uma refeição semelhante para Tutilo, e mesmo então quase não foi um grito, já que o irmão porteiro não era um homem de exclamações, e tinha dificuldade em reconhecer uma crise, mesmo quando tropeçava nela. Saiu rapidamente da cela, tirou uma mão da bandeja de madeira que transportava para fechar a porta à chave, e depois, recordando-se de que não havia ninguém lá dentro para ser preciso tomar precauções, não só a deixou destrancada como a abriu completamente. A vigiar cautelosamente aquele lado do pátio a partir da porta da ala de hóspedes, inexplicavelmente Daalny achou que a reacção do monge era perfeitamente lógica. O mesmo pensou Cadfael, que saiu nesse momento para o jardim. Mas devido a esta ausência de surpresa do guardião, competia a outra pessoa qualquer colmatar essa deficiência. Daalny esgueirou-se para os seus preparativos no interior, e deixou-os a resolver o assunto como quisessem.

- Ele desapareceu! - disse o irmão porteiro. - Mas como é isso possível?

Era uma pergunta séria, não um protesto. Olhou para a chave grande e pesada que tinha na bandeja, e de novo para a porta aberta, e franziu as densas sobrancelhas grisalhas.

- Desapareceu? - disse Cadfael, muito honrosamente surpreendido. - Como pode ele ter desaparecido, e a porta estar fechada à chave, e a chave na vossa casa?

- Olhai por vós próprio - disse o porteiro. - A menos que o diabo lhe tenha indicado o caminho, então outra pessoa roubou esta chave à noite com um propósito e o soltou no mundo. A cela estava vazia como a bolsa de um pobre, e a cama quase intocada. Ele já deve estar bastante longe. O sub-prior Herluin vai ficar desnorteado quando souber. Neste momento, está a tomar o pequeno-almoço com o abade, acho que é melhor ir estragar-lhe a digestão das papas de aveia. - Não parecia muito preocupado com essa perspectiva, mas também não estava exactamente ansioso para dar a notícia.

- Eu próprio tenho de ir lá - disse Cadfael, e não disse uma grande mentira porque acabara de conceber a intenção. - Larga a bandeja e vem comigo, eu entro à frente e dou a notícia.

- Nunca percebi - observou o porteiro - que tivesses queda para o martírio. Mas vai à frente e dá a notícia. E eu vou atrás de ti. Graças a Deus, sua senhoria está preparada para sair hoje, e se quiserem ter uma viagem segura, Herluin e os seus companheiros serão insensatos se perderem a oportunidade para perseguirem um rapaz escorregadio como aquele, que ainda por cima já leva uma noite de avanço. Estaremos livres de todos eles antes do meio-dia. - E afastou-se descontraidamente para se livrar da bandeja. Não sabia se devia devolver a chave ao chaveiro, mas acabou por levá-la consigo, como uma espécie de prova para atestar o que tinha acontecido, e seguiu Cadfael para os aposentos do abade, mas sem pressa.

Herluin recebeu a notícia de uma forma muito diferente. Levantou-se da mesa do abade, perturbado com a perda, despojado agora não só do seu tesouro reunido a pouco e pouco ali em Shrewsbury, mas também da sua vingança, enraivecido para além de todas as medidas por ter de regressar a Ramsey praticamente de mãos vazias. Durante um curto espaço de tempo, embora ele próprio não soubesse a história toda, tinha estado a caminho de casa com um sucesso triunfal, com dádivas generosas para a reconstrução, e a bênção incomensurável de uma santa milagrosa. Tudo desaparecera agora, e o culpado escapulira-se por entre os seus dedos, por isso restava-lhe voltar para casa com um fracasso manifesto, magramente recompensado pelas suas viagens, e com um noviço em falta, talvez não com um comportamento exemplar, mas valioso pela voz, e, portanto, também lucrativo.

- Ele tem de ser perseguido! - disse Herluin, a morder cada palavra com dentes raivosos e irregulares tal era a fúria que sentia. - E, Padre Abade, seguramente o guarda que deixastes a vigiar o cativeiro foi extremamente negligente, se não como poderia uma pessoa não autorizada ter-se apoderado da chave da cela?

Eu devia ter cuidado pessoalmente do assunto e não confiá-lo a outros. Mas ele tem de ser perseguido e capturado. Tem acusações para responder, ofensas para expiar. O delinquente não pode ser deixado ir sem castigo.

O abade, evidentemente e fortemente desagradado, embora não houvesse maneira de saber se esse estado de espírito se devia ao prisioneiro em fuga, aos seus guardas descuidados ou àquele vingador fulminante provado do seu bode expiatório, disse acidamente:

- Ele pode ser procurado no interior dos meus domínios, certamente. A minha autoridade não presume a perseguição de homens no mundo exterior para serem castigados.

O conde Robert, que era igualmente convidado à mesa do abade naquela última manhã, mas que até agora tinha permanecido calmamente sentado no seu lugar, sem proferir uma única palavra, a olhar com curiosidade e em silêncio de rosto para rosto sem omitir Cadfael, que disparara o seu raio disruptivo sem expressão e na mais impávida das vozes, para ser vigorosamente apoiado pelo porteiro, ainda a segurar a chave que devia ter sido tirada do prego durante as Vésperas, pelo menos assim pensava, e recolocada no seu lugar antes de o ofício terminar. Como nunca se tinha ouvido falar de tamanha interferência com as ordens do abade ali naquele chão monástico, não tinha tomado quaisquer precauções, embora o local estivesse vigiado a maior parte do tempo, e todas as chaves sob o olhar do vigilante, e bastante seguras. O porteiro desculpou-se valentemente. A sua missão era certificar-se de que os prisioneiros eram alimentados de forma condigna, embora austera; o seu encarceramento e o julgamento dos seus actos competia às autoridades.

- Mas ainda recai sobre ele uma suspeita de homicídio - exclamou Herluin, agressivamente triunfante enquanto recordava a acusação secular. - Não podemos deixar que escape a isso. A lei do rei tem o dever de apanhar o criminoso, mesmo que a Igreja não tenha.

- Estais enganado - disse Radulfus, severamente paciente. - O xerife já me garantiu, ontem, que está satisfeito com as provas que tem e que atestam que o irmão Tutilo não matou o jovem Aldhelm. A lei secular não tem qualquer acusação para apresentar contra ele. Apenas a Igreja pode acusá-lo, e a Igreja não tem sargentos para mandar procurar os seus fracassos pela província.

A palavra "fracasso" tinha imprimido uma cor muito forte no rosto de Herluin, como se sentisse pessoalmente culpado por ter sido incapaz de controlar melhor os seus subordinados. Cadfael duvidava de que tivesse sido aquele o sentido da frase do abade. Era mais provável Radulfus fazer essa acusação a si mesmo do que fazer a mesma acusação a outra pessoa. Mesmo agora, o significado podia ser esse. Mas Herluin assumia como seus, embora negasse energicamente, todos os fracassos que tinham minado a sua dignidade e autoridade, e ameaçavam mandá-lo para casa humilhado e com necessidade de tolerância e consolo.

- Pode ser, Padre Abade - disse ele, rigidamente erecto e com uma profecia trágica - que neste caso a Igreja tenha de se examinar atentamente, pois se não consegue lutar contra os malfeitores onde quer que eles se encontrem, a sua autoridade pode cair em descrédito. Seguramente, a batalha contra o mal, dentro ou fora do nosso território, é uma Cruzada tão nobre como a contenção na Terra Santa. Não abona em nosso favor ficarmos de parte e deixarmos o malfeitor ir em liberdade. Este homem desertou da sua irmandade e abandonou os seus votos. Tem de ser trazido de volta para responder pelos seus actos.

- Se o considerais uma criatura tão caída em desgraça - disse o abade friamente -, devíeis observar o que a Regra tem a dizer de um caso assim, no vigésimo oitavo capítulo, onde está escrito: "Afastai os homens malvados do vosso seio."

- Mas nós não o afastámos - persistiu Herluin, ainda incandescente de raiva -, ele não esperou pelo julgamento nem respondeu pelas suas ofensas, mas fugiu em segredo durante a noite, para nossa derrota.

- Mesmo assim - murmurou Cadfael como se estivesse a falar sozinho mas muito audivelmente, incapaz de resistir à tentação -, no mesmo capítulo a Regra ordena-nos: "Se o irmão sem fé vos abandonar, deixai-o ir."

O abade Radulfus olhou-o rispidamente, não completamente aprovador; e Robert Bossu resplandeceu naquele seu sorriso breve, privado e enervante, que desaparecia antes que qualquer alvo a que se destinasse pudesse tomá-lo como uma ofensa.

- Eu sou responsável perante o meu abade - disse Herluin, desviando o argumento para um canal diferente - pelo noviço confiado à minha guarda, tenho pelo menos o dever de o procurar o melhor que estiver ao meu alcance.

- Receio - disse Robert Bossu com uma doçura inquietante - que o tempo seja demasiado curto até para isso. Se decidirdes ficar e prosseguir esta busca, temo que sejais obrigado a retomar a vossa viagem em circunstâncias menos favoráveis. Logo que a primeira missa terminar nós preparamo-nos e partimos. Seríeis sensato, tanto mais que agora tendes menos um homem, em aproveitar os nossos números e viajar connosco.

- Se vossa senhoria pudesse adiar a viagem por dois dias...

- Começou Herluin, a tremer.

- Lamento, mas não posso. Tenho problemas pessoais que requerem a minha presença - disse o conde, exasperantemente gentil e delicado. - Especialmente se alguns bandidos e vagabundos como os que atacaram a vossa carroça ainda estiverem a sair dos Pântanos para estradas mais seguras através das minhas terras. Já é mais do que tempo de regressar. Perdi a minha pretensão a Santa Winifred, mas não lamento, pois afinal de contas, fui eu quem a trouxe, por isso, mesmo que ela tenha fugido de mim, eu devo ter feito toda a sua vontade, e haverá com certeza uma pequena bênção por isso em desconto dos meus pecados. Porém, agora sou necessário mais perto de casa. Quando a missa terminar - disse o conde Robert com firmeza, e começou a levantar-se, pois estava quase na hora -, aconselho-vos a juntar-se a nós, padre Herluin, e a fazer o que São Benedito manda, deixar ir o irmão sem fé.

A missa de despedida começou cedo e foi activamente conduzida, pois o conde, depois de se preparar para a partida, passou de algum modo o ardor da sua disposição a todos os que o rodeavam. Quando saíram para a primeira luz do sol, a azáfama do carregamento e da aparelhagem dos cavalos começou imediatamente. Nicol, o criado e o seu companheiro de Ramsey saíram para o pátio, para ajudar um Herluin rabugento e taciturno, ainda muito contrariado por abandonar a sua ovelha tresmalhada, mas ainda mais relutante em ficar, e perder a oportunidade de uma passagem segura e confortável até meio caminho de casa, pelo menos, e provavelmente uma montada para o resto do caminho, já que Robert Bossu sabia ser generoso com os homens da igreja, mesmo com um de quem cordialmente não gostava.

Os lacaios vieram dos estábulos com a carruagem estreita que transportara o relicário de Santa Winifred de volta para a sua casa. Desprovida agora dos tecidos bordados que a tinham embelezado quando transportava a santa, serviria agora como carroça de carga para as bagagens de todo o grupo. Carregada com os pertences do conde, e com os dos escudeiros, as esmolas conseguidas por Herluin em Worcester e Evesham, e a maior parte dos instrumentos e bens de Rémy, que eram bastante compactos, ainda podia acomodar Nicol e o companheiro, sem ser uma carga demasiado pesada para o cavalo. O cavalo de carga que tinha transportado a bagagem do conde na viagem para a abadia estava agora livre para transportar Herluin.

Os dois jovens escudeiros conduziram os cavalos aparelhados desde o pátio dos estábulos, e Bénezet seguia com a montada de Rémy e o seu próprio cavalo, e um jovem noviço trazia o garrano forte de Daalny. O portão já estava aberto de par em par para a passagem do grupo. Tudo fora feito com competente velocidade. A observar de um canto do claustro, Cadfael mantinha um olho ansiosamente no portão aberto, pois as coisas tinham acontecido um pouco rapidamente de mais. Ainda era cedo para esperar Hugh e os seus soldados, mas sem dúvida que as despedidas formais demorariam algum tempo, e por enquanto os principais ainda não tinham aparecido. Com toda a probabilidade, o conde não pensaria em partir antes de se despedir de Hugh.

Os irmãos tinham dispersado respeitosamente para as suas tarefas, mas de cada vez que se aproximavam do grande pátio tinham tendência para ficar um pouco mais do que era estritamente necessário, para contemplar o grupo de escudeiros e cavalos que andavam impacientes pelas lajes, prontos e ansiosos para se porem a caminho. Os meninos foram enxotados para a sua lição matinal, mas provavelmente o irmão Paul deixá-los-ia sair no momento da partida.

Daalny, com uma capa e os cabelos descobertos, saiu da ala de hóspedes e desceu os degraus para se juntar ao grupo lá em baixo. Tinha observado os alforges equilibrados no dorso do cavalo, e sabia qual o que tinha os segredos dele pela esfoladela na frente, por baixo das fivelas. Observou-o atentamente, como Cadfael estava a observá-la. O rosto dela estava pálido; mas estava sempre pálido, ela tinha a pele tão branca como magnólia, mas agora com a palidez acrescida da tensão sobre os ossos finos e imaculados. Tinha os olhos semicerrados, mas brilhantemente fixos sob as longas pestanas escuras. Cadfael observou os sinais da sua tensão e dor, e eles perturbaram-no, mas não sabia bem como interpretá-los. Ela tinha feito o que decidira fazer, mandara Tutilo para um mundo mais adequado para ele do que o claustro. Conformar-se com o seu inevitável mundo diário sem ele, depois daquela breve fantasia, devia custar-lhe horrores, mas não havia remédio. Ao fazer os seus planos, esquecera-se de pensar que ela podia ter ainda planos para um objectivo final, a única coisa que ainda lhe faltava fazer.

Um dos jovens escudeiros tinha voltado à ala de hóspedes para comunicar que estava tudo pronto, e para levar a capa e as luvas, ou o que ainda faltava levar para o seu senhor e para o novo dependente do senhor, que tinha um estatuto, sem dúvida, algures entre a alta burguesia, muito acima dos criados, mas não era tão reverenciado como com tocadores de harpa do País de Gales. E naquele momento apareceram à soleira da porta, e o abade Radulfus, pontual em todas as cerimónias, emergiu do jardim dos seus aposentos, entre as roseiras ainda irregulares e compridas, no mesmo momento, com o prior atrás, e veio cumprimentar os hóspedes que estavam de partida.

O conde estava simples e elegante como sempre nas suas roupas de cores escuras e tecidos bons, com uma cota carmesim cortada razoavelmente curta para montar, e um manto de montar azul-escuro acinzentado aberto até à anca à frente e atrás. Raramente cobria a cabeça, a menos que estivesse vento, chuva ou neve, mas o capuz caía sobre o ombro mais alto e compunha-o, escondendo o defeito; embora fosse difícil acreditar que ele alguma vez prestava atenção a tal problema, pois a deficiência nunca o embaraçava nem dificultava a fluência dos seus movimentos. Ao lado do conde vinha Rémy de Pertuis muito inchado, a soprar conversa espirituosa ao ouvido do patrono. Desceram os degraus juntos, e o escudeiro seguiu-os com a capa do patrão no braço. Lá embaixo, o grupo estava completo, pois o abade e o prior esperavam ao lado dos cavalos.

- Senhor - disse o conde -, agora que chegou a altura, parto com grande pena. A vossa hospitalidade foi generosa, e temo muito pouco merecida, uma vez que vim com pretensões à vossa santa. Mas estou contente porque, entre muitos que a cobiçam, a senhora sabe como escolher os mais adequados e melhores. Espero ter a vossa bênção para a viagem.

- De todo o coração - disse Radulfus. - Tive muito prazer e proveito na vossa companhia, sua senhoria, e espero desfrutar dela novamente quando o tempo permitir.

O grupo, que por momentos teve o aspecto formal da separação imediata, começou a dissolver-se na civilidade geral das visitas que, no último momento, sentem relutância em partir, e demoram-se com muitas coisas de última hora ainda para dizer. O prior Robert estava no seu espírito mais normando e patrício, e até na sua disposição mais benigna, uma vez que, por fim, os acontecimentos se tinham resolvido bem; certamente, era improvável que deixasse ir um conde normando sem exercer um último momento a sua eloquência e encanto. Lá estava Herluin, com uma disposição não muito expansiva mas nada disposto a ser deixado de fora das cortesias, e Rémy, deliciado com a sua mudança de sorte, a lançar os seus sorrisos resplandecentes imparcialmente sobre todos. Cadfael, que tinha uma longa experiência em partidas daquele género, estava seguro de que demoraria mais de um quarto de hora até que alguém pusesse o pé no estribo e montasse.

Daalny, sem tal certeza, pensava que tudo se desenrolaria rapidamente. Não podia dar-se ao luxo de esperar, e chegar à conclusão de que tinha esperado de mais. Tinha-se fortalecido para o acto, e temia que pudesse não ter tempo para dizer o que tinha para dizer.

- Padre Abade... vossa senhoria Robert, posso dizer uma palavra? Antes de deixarmos este lugar, tenho uma coisa que tem de ser dita, pois está relacionada com roubo, e talvez até esteja relacionada com homicídio. Imploro a vossas senhorias que me oiçam, e que ajam da maneira certa, pois é demasiado para mim, e não me atrevo a deixar passar e esquecer o que sei.

Todos ouviram, e todos os olhos se voltaram para ela. Fez-se silêncio, de curiosidade, de surpresa, de desaprovação por a mais insignificante de todas as pessoas presentes se atrever a pedir uma audiência naquele momento, a céu aberto, e em público. Porém, estranhamente, ninguém lhe fez sinal para se afastar nem lhe fez ver com uma expressão severa que devia calar-se e ser humilde. Ela viu o abade e o conde a olharem-na com grande interesse contido, e fez-lhes uma profunda reverência para que partilhassem entre os dois. Até agora, não tinha dito nada que fizesse qualquer homem temer ou inquietar-se pela sua pessoa, nem sequer Bénezet, que tinha um braço sobre o pescoço do cavalo, e o alforge a fazer pressão contra o corpo. Ainda não tinha apontado a lança que detinha em seu poder, mas Cadfael compreendeu o objectivo dela e ficou abismado.

- Padre, posso falar?

Eram os domínios do abade. O conde deixou que ele respondesse.

- Penso - disse Radulfus - que deves. Disseste duas palavras que nos têm dado que pensar nesses últimos dias, roubo e homicídio. Se tens alguma coisa a dizer com respeito a isto, temos de escutar.

Um pouco afastado e com os olhos postos ansiosamente no portão, e a rezar para que Hugh entrasse naquele momento, imediatamente, com três ou quatro homens fortes atrás, Cadfael lançou um olhar inquieto a Bénezet. O homem não se tinha mexido, e embora o seu rosto estampasse apenas uma máscara de curiosidade interessada mas impessoal, muito como os outros, os olhos intensamente fixos no rosto de Daalny estavam apontados como as pontas de dois punhais, e a sua imobilidade parecia agora deliberada e objectiva, um cão de caça preparado para a corrida.

"Se ao menos", pensou Cadfael, "se ao menos eu a tivesse avisado! Eu devia ter sabido que ela podia fazer coisas terríveis por uma causa que valesse a pena. Foi o que lhe disse sobre o freio que a colocou na pista? Ela nunca deu qualquer sinal, mas eu devia ter sabido. E agora ela desferiu o seu golpe cedo de mais. Que ela seja lógica, que ela seja lenta a chegar ao cerne da questão, que recorde tudo o que aconteceu antes, e chegue à sua conclusão gradualmente agora que conseguiu o que queria." Mas o tempo não estava do lado dela. Até a missa tinha terminado cedo. Hugh chegaria à hora combinada, e mesmo assim seria tarde de mais.

- Padre, sabeis do roubo de Tutilo, na noite em que a água da cheia entrou na igreja, e agora, depois, quando Aldhelm disse que podia reconhecer o ladrão, e foi assassinado a caminho daqui para fazer o que prometera, a razão não podia encontrar ninguém a não ser Tutilo que tivesse alguma coisa para esconder, e de qualquer maneira para temer a sua vinda, e impedi-la por meio de um crime.

Ela esperou que ele concordasse com o que tinha dito até então, e o abade disse, neutralmente:

- Foi o que pensámos, e assim o dissemos. Parecia evidente. Certamente, não sabíamos de mais ninguém.

- Mas, padre, eu tenho motivos para acreditar que havia outra pessoa.

Ainda não tinha dito o seu nome, mas ele percebeu. Não havia dúvida de que ele estava agora a olhar na direcção do portão, e a mexer-se ligeiramente, com cuidado para não chamar a atenção sobre a sua pessoa, mas num esforço furtivo para sair gradualmente do anel de homens e cavalos que o rodeavam. Mas os dois escudeiros de Robert Bossu estavam perto, obrigando-o a manter-se no meio do grupo, e ele não conseguia sair.

- Acredito - declarou ela - que existe uma pessoa entre nós que escondeu no seu alforge bens que não lhe pertencem. Acredito que foram roubados na mesma noite da cheia, quando tudo estava um caos na igreja. Não sei se Aldhelm podia ter falado nisso, mas mesmo que tivesse visto, não era o bastante? Se estou a acusar um homem inocente, como posso estar - disse Daalny com grande ferocidade - redimir-me-ei como me for ordenado. Mas procurai e verificai, Padre. - E depois voltou-se para olhar para Bénezet, com o rosto tão embranquecido que parecia uma chama branca; voltou-se e apontou. E ele foi tão apertado no círculo que só com violência poderia soltar-se; e a violência traí-lo-ia de imediato, e ele ainda não tinha chegado ao limite da sua capacidade de resistência.

- No alforge do lado dele, tem alguma coisa que está a esconder desde que a cheia inundou a igreja. Se a tivesse recebido honestamente, ou se já fosse sua, não precisaria de a esconder. Vossa senhoria, Padre Abade, fazei-me esta justiça, e se eu estiver errada fazei-lhe justiça também a ele. Revistai, e vede!

Pareceu que por um instante Bénezet pensou rir-se da acusação, ignorando-a com um encolher de ombros, dizendo com desprezo que ela estava a mentir. Depois recompôs-se convulsivamente, instado a uma reacção por todos os olhares pousados nele. Era fatalmente tarde para gritar a ira da inocência. Também ele tinha falhado desta vez, e com esse fracasso todas as possibilidades que lhe restavam.

- Estás louca? É uma mentira maldosa, eu não tenho nada aqui a não ser o que me pertence. Senhor, falai por mim! Alguma vez tivestes motivo para pensar mal de mim? Por que se voltaria ela para mim com semelhante acusação?

- Eu tive sempre confiança em Bénezet - disse Rémy, bastante resoluto e a falar por si, mas não muito à vontade.

- Não posso acreditar que tenha roubado. E que é que desapareceu? Nada, que eu tenha conhecimento. Quem sabe de alguma coisa que tenha sido perdida desde a cheia? Eu não sei de nada.

- Não houve qualquer queixa - concordou o abade, a franzir o sobrolho e hesitante.

- Existe um meio simples - declarou Daalny, implacavelmente - de provar ou não. Abri o alforge! Se ele não tem nada a esconder, que prove isso mesmo e me envergonhe! Se eu não estou com medo, por que haveria ele de estar?

- Com medo? - chispou Bénezet. - De tamanha calúnia? O que está na minha bagagem é meu, e eu não devo nenhuma resposta a qualquer acusação falsa que tu me faças. Não, não mostrarei as minhas pobres posses para satisfazer a tua malícia. Não faço ideia por que proferes tais mentiras contra mim. Que mal te fiz eu? Mas desperdiças as tuas mentiras, o meu senhor conhece-me bem.

- Serias sensato em abrir, e deixar que a tua virtude seja vista por todos - disse o conde Robert com fria autoridade -, já que nem todos aqui temos um conhecimento tão seguro da tua pessoa. Se ela mente, desmascara a sua mentira. - Tinha olhado um instante para os seus jovens criados, e erguido uma sobrancelha autoritária. Eles deram um passo em frente, aproximando-se mais de Bénezet, os rostos impassíveis, mas os olhos atentos.

- Há uma coisa aqui que é devida a um homem morto - disse o abade Radulfus -, uma vez que esta rapariga nos recordou uma coisa muito preciosa que foi roubada. Se for de facto um assunto que poderá lançar luz sobre aquele crime, e levantar a sombra de dúvida de todos a não ser do culpado, penso que temos o dever de investigar. Dá cá o teu alforge.

- Não! - ele apertou-o contra a parte lateral do corpo com um braço protector. - Não vale a pena, humilhação... Eu não fiz mal nenhum, por que deveria submeter-me a tamanha indignidade?

- Tirem-lho - disse Robert Bossu.

Bénezet lançou um olhar selvagem e vibrante à sua volta quando os dois escudeiros o cercaram e colocaram mãos fortes, não nele, mas no freio e no alforge. Não havia esperança de saltar para a sela e libertar-se do círculo fechado, mas os jovens tinham largado os freios dos seus cavalos para o encurralar, e um dos cavalos que ficou solto aproximou-se mais algumas jardas do portão, mantendo-se docilmente afastado do grupo agitado no centro do pátio. Bénezet tirou as mãos dos seus ganhos com um soluço de fúria, deu ao seu surpreendido animal um pontapé na barriga que o levou a escoicear e a mergulhar com um relincho indignado, e a sair do ringue que o prendia. O grupo dispersou, fugindo dos coices, e Bénezet agarrou no freio do cavalo que estava à espera, e sem usar os estribos saltou e sentou-se na sela.

Ninguém estava suficientemente perto para agarrar na rédea nem nos estribos. Ele montou e afastou-se antes de alguém conseguir montar, voltando as costas à confusão de cavalos a fugir e homens a gritar. Seguiu, não directamente para o portão, mas de lado numa curva rápida, onde Daalny tinha começado a recuar de um perigo para se colocar no caminho de outro. Ele tinha desembainhado o seu pequeno punhal e empunhava-o.

Ela só percebeu a intenção dele no último instante, quando ele estava praticamente em cima dela. Ele não proferiu qualquer som, mas Cadfael, a correr freneticamente para a arrancar de debaixo dos cascos voadores, viu claramente o rosto do cavaleiro, e ela também, o semblante antes impassível convulsionado numa máscara de ódio e raiva, com os lábios apertados como um lobo em dificuldades. Não podia perder tempo a derrubá-la com o cavalo, isso atrasá-lo-ia demasiado. Inclinou-se de lado na sela a toda a velocidade, e o punhal rasgou a manga dela desde o ombro e fez uma longa arranhadela no braço. Ela desequilibrou-se para trás e caiu pesadamente nas lajes, e Bénezet desapareceu, saindo pelo portão já a galope, e virando para a cidade.

Hugh Beringar, o seu delegado e três dos seus agentes desciam naquele momento pelo tabuleiro da ponte. Bénezet viu-os, parou bruscamente, e desviou o cavalo para a estrada estreita que virava para a esquerda entre a represa e o rio, para sudoeste e para as bordas da Floresta Comprida, para se esconder e seguir para o País de Gales pelo caminho mais rápido.

Os cavaleiros vindos da cidade demoraram a compreender as inferências, mas um cavaleiro a sair a galope do pátio da abadia para a ponte, e depois parar ao vê-los e virar para uma estrada secundária à mesma velocidade assustadora, era um fenómeno para ser ponderado, se não seguido, e Hugh gritou:

- Sigam-no! - antes mesmo de o escudeiro mais jovem sair a correr do portão para Foregate, a gritar:

- Detende-o! Ele é suspeito de roubo!

- Trazei-o de volta! - ordenou Hugh, e os seus oficiais viraram prontamente para a estrada secundária, e puseram os cavalos a galope atrás do fugitivo.

Daalny tinha-se levantado antes de Cadfael poder alcançá-la, e voltou-se e correu às cegas para longe do turbilhão no pátio, do terror doentio que se inclinara para ela da sela com uma raiva assassina, e da reacção esmagadora depois da crise, que a deixou a tremer agora que o pior tinha passado. Pois aquilo era certo. Por que outro motivo fugiria ele para salvar a pele antes sequer de o seu alforge ser aberto? No entanto, ela nem sequer sabia o que ele tinha escondido lá, mas sabia que devia ser terrível. Correu para a igreja como um pássaro que volta para o ninho. Eles que fizessem o resto, o seu papel terminara. Agora não duvidava de que seria suficiente. Sentou-se nos degraus do altar de Santa Winifred, onde tudo começara e tudo acabara, e inclinou a cabeça para trás para descansar contra a pedra.

Cadfael tinha-a seguido para o interior da igreja, mas parou ao vê-la ali sentada, de olhos abertos e imóvel, com a cabeça esticada e direita como se estivesse a ouvir uma voz, ou uma recordação. Depois do caos, aquela calma e silêncio eram assombrosos. Ela sentira isso ao entrar, Cadfael sentiu o mesmo ao vê-la tão arrebatada.

Aproximou-se dela suavemente, e falou num tom igualmente suave, e por um momento não soube se ela o ouviria, pois estava concentrada em algo mais distante.

- Ele feriu-te. É melhor deixares-me ver.

- É um arranhão - retorquiu ela, indiferente; mas deixou-o arregaçar a manga solta quase até ao ombro, onde tinha um rasgão de um palmo. A pele mal tinha sido rompida, havia apenas uma linha branca, salpicada em dois ou três sítios como uma minúscula jóia de sangue. - Nada! não vai infectar.

- Deste um tombo muito feio. Eu nunca pensei que ele se atirasse a ti daquela maneira. Falaste cedo de mais, eu queria poupar-te essa necessidade.

- Achei que ele não conseguia amar nem odiar - disse Daalny sem grande interesse. - Nunca o vi comovido até hoje. Ele conseguiu fugir?

Ele não podia responder, pois não parara para ver.

- Eu estou muito bem - disse ela com firmeza -, e está tudo bem comigo.

Voltai para ver o que ainda há para fazer. Pedi-lhes... pedi-lhes que me deixem aqui sozinha durante algum tempo. Preciso deste lugar. Preciso desta certeza.

- Tê-la-ás - disse Cadfael, e deixou-a, pois ela tinha controlo absoluto sobre si e sobre os seus pensamentos, palavras e actos como talvez nunca tivera antes. Ele voltou-se para trás à porta, para a ver uma última vez, e ela estava majestosamente sentada nos degraus do altar, com as mãos pousadas na pedra ao lado do corpo, semiabertas, como se tivessem a insígnia da realeza. Havia a ténue curva de um sorriso nos seus lábios, privado e solitário, e no entanto teve a ilusão... seria uma ilusão?... de que ela não estava sozinha.

Tinham tirado o alforge da sela e levaram-no para a casa do porteiro, já que era o sítio mais próximo onde uma mesa sólida oferecia uma superfície hospitaleira para despejar o seu conteúdo. Havia seis pessoas reunidas junto à mesa quando Cadfael se juntou a eles para fazer sete: o abade Radulfus, o prior Robert, o sub-prior Herluin, Robert Bossu, Rémy de Pertuis e Hugh Beringar, acabado de desmontar no interior do portão, e muito sucintamente informado sobre o que se tinha passado ali. Foi Hugh, a convite silencioso do conde, que tirou do alforge o modesto equipamento pessoal de um bom criado, roupas dobradas, navalha de barba, pincéis, um bom cinto, um par de luvas gastas mas bem feitas. No fundo, mas a ocupar metade do espaço, Hugh puxou por uma abertura atada com um cordel e pousou em cima da mesa um saco de pele macia que emitiu o tilintar inconfundível de moedas a bater umas nas outras, enquanto era colocado sobre a mesa e ficava imóvel e enigmático diante dos olhos de todos.

Pelo menos uma coisa já não era segredo. Três dos presentes reconheceram-no imediatamente. Ao ouvirem o grito que escapou de Herluin até os criados, reunidos avidamente na soleira da porta, Nicol e os escudeiros, e o humilde laico de Ramsey, contiveram a respiração em antecipação e aproximaram-se.

- Santo Deus! - disse Herluin num suspiro maravilhado. - Eu conheço isto! Isto estava no cofre que se destinava a Ramsey, no altar de Nossa Senhora, quando a cheia chegou. Mas como é possível? Foi colocado na carroça com o carregamento de madeira.

Encontrámos o cofre em Ullesthorpe, arrombado e vazio, tudo roubado...

Hugh abriu os cordões do saco, virou a boca para cima da mesa e deixou sair uma chuva tilintante de moedas de prata, e no meio do tilintar e do brilho, um pouco mais volumosos e os últimos a sair, certos ornamentos brilhantes: uma gargantilha de ouro, duas pulseiras iguais, um colar de ouro com pedras preciosas toscamente engastadas, e dois anéis, um o selo maciço de um homem, o outro uma aliança de ouro larga, muito gravada. Por último, apareceu uma grande e elaborada pregadeira, para apertar uma capa, em ouro avermelhado, um belo trabalho saxónico.

Todos ficaram a olhar, e demoraram a acreditar e compreender.

- Também conheço estes - declarou Radulfus lentamente. - Vi a pregadeira uma vez na capa de Lady Donata. A aliança simples era a que usava sempre.

- Ela doou-os a Ramsey antes da sua morte - disse Herluin, em voz baixa, maravilhado com o que parecia quase um milagre.

- Tudo isto estava no cofre que deixei a cargo de Nicol quando ele partiu com a carroça para Ramsey. O cofre foi encontrado, arrombado e esvaziado...

- Eu recordo-me bem - disse Nicol, em voz rouca, da porta.

- Levei a chave escondida, mas eles tinham arrombado a fechadura, levado o tesouro e atirado a caixa fora... Pelo menos foi isso que pensámos!

Era o que todos tinham pensado. Toda aquela boa vontade, todos aqueles donativos para um mosteiro devastado, estavam no seu cofre no altar de Nossa Senhora na noite da cheia, bastante elevado para estar a salvo da maior cheia. A salvo do rio, mas não de ladrões que vinham com o pretexto de ajudar a preservar as coisas sagradas, enquanto aproveitavam a oportunidade para se servir do que se encontrava tentadoramente à sua disposição. A chave estava na fechadura, naquela altura não havia necessidade de arrombá-la. Seria bastante fácil tirar o saco de pele, substituí-lo pelo que estivesse à mão, trapos e pedras, para representar o peso que tinha sido removido. Voltar a fechar o cofre, e deixá-lo ali para ser transferido para a carroça ao cuidado de Nicol. E depois, pensou Cadfael, com os olhos pregados na última caridade de Donata, esconder o saque em local seguro, algures num lugar afastado, até chegar o momento de partir de Shrewsbury. Algures num lugar afastado, onde mesmo que fosse descoberto não poderia ser associado a um nome; mas onde estava era improvável que fosse descoberto. Bénezet tinha ajudado a retirar os cavalos dos estábulos baixos dentro dos muros da abadia. Não demoraria nada a enfiar o seu tesouro no fundo de um contentor cheio de milho, recém abastecido para os poucos dias de estada dos cavalos. Era pouco provável que ficassem tempo suficiente para expor o objecto estranho por baixo do milho. Estaria mais seguro ali do que na ala de hóspedes, por onde passavam viajantes para pernoitar, onde havia pouca, se alguma, privacidade. Até os ladrões podem ser roubados, e vizinhos curiosos conseguiam encontrar coisas que estavam escondidas.

- Elas nunca saíram de Shrewsbury! - disse Hugh, a olhar para a pilha de prata e ouro. - Padre Herluin, parece que Deus e os santos vos restauraram o que vos pertence.

- Mas não podemos esquecer - disse Robert Bossu secamente - que também temos de agradecer àquela vossa rapariga, Rémy. Ela provou que tinha razão em relação ao roubo. Não estamos a esquecer-nos dela? Espero que ele não a tenha ferido. Onde está ela agora?

- Ela está na igreja - disse Cadfael -, e pede para lhe permitirdes algum tempo sozinha antes da partida. Não tem mais que um arranhão, no que diz respeito ao corpo, pode viajar e pode montar, mas do que o seu espírito precisa é de um pouco de sossego.

- Esperaremos até ela estar pronta - disse o conde. - Confesso que gostaria de ver o fim disto, Hugh. Se os vossos companheiros trouxerem o ladrão vivo, tanto melhor, pois ele roubou-me, de passagem, um bom cavalo. Ele tem muitas contas a dar.

- Mais - disse Cadfael sombriamente - do que simples roubo.

Ele tinha desviado a pilha de roupas que tapavam o saque de Bénezet, e enfiou uma mão nas profundezas do alforge, e ali estava uma peça de vestuário dobrada que continuava no fundo do saco, enfiada por baixo de tudo. Desdobrou-a nas mãos, uma camisa de linho, limpa de pregas depois de ter sido lavada, e olhou para o punho de uma manga, virando-o entre os dedos com atenção fixa. Bénezet era um homem muito auto-suficiente, muito meticuloso no tratamento das suas coisas, sem necessidade de uma mulher para lavar e limpar para ele. Mas não suficientemente rico para poder livrar-se de uma camisa, embora tivesse tido bastantes oportunidades, fechado ali dentro de paredes monásticas ao serviço do seu patrão, enquanto Rémy prosseguia a sua busca de um patronato. Lavara-a e guardara-a no fundo de todas as suas coisas, para esperar pelo próximo uso a milhas de distância dali e semanas mais tarde. Mas há manchas que não saem com facilidade. Cadfael estendeu a manga para debaixo do olhar intrigado de Hugh, e o conde Robert inclinou-se para pegar na segunda manga. Cerca de um palmo a partir da bainha estavam ambas levemente salpicadas com pequenas manchas redondas, não mais do que uma auréola cor-de-rosa clara, com um cor-de-rosa ainda mais ténue no interior. Mas Cadfael já tinha visto nódoas semelhantes antes, bastantes vezes para as reconhecer. E pensou que Robert Bossu também.

- Isto é sangue - disse o conde.

- É o sangue de Aldhelm - disse Cadfael. - Nessa noite choveu. Bénezet estaria a usar uma capa, a lã preta e grossa absorve o sangue, e tenho a certeza de que foi cuidadoso. Mas...

Mas uma pedra irregular, erguida com ambas as mãos e atirada contra a cabeça de um homem sem sentidos, faça-se como se fizer, com a maior discrição, e sem grande pressa, sem interferências de ninguém, deve mesmo assim ameaçar pelo menos as mãos e os pulsos do assassino com vestígios indeléveis. O pior ficara preso debaixo da pedra, e pingara depois para a erva, mas aqueles salpicos leves tinham marcado a pele e o tecido. E, a menos que seja lavado imediatamente, é difícil apagar do linho as pequenas sombras que traem.

- Lembro-me - disse Rémy, assombrado e semi-incrédulo, completamente esquecido de si próprio - de que era vosso convidado nessa noite, Padre Abade, e que ele ficou com a noite livre para tratar dos seus assuntos. Disse que ia à cidade.

- Foi ele que disse à rapariga que Aldhelm era esperado - declarou Cadfael -, e foi ela que avisou Tutilo para que se mantivesse longe daqui. Por isso Bénezet sabia da necessidade, se havia necessidade para ele. Mas como poderia ter a certeza? Era suficiente que Aldhelm, quando lhe fosse pedido que recordasse com clareza, pudesse recordar de mais aquilo que vira em inocência. E, assim, está morto em inocência. E Bénezet foi o seu assassino. E Bénezet nunca saberá, nem nós, se o assassinou em vão.

Alan Herbard, o delegado em exercício de Hugh, chegou ao portão uma hora antes do meio-dia.

O grupo estava a reagrupar-se para a partida, depois do generoso adiamento do conde Robert por causa de Daalny, e foi pedido a Cadfael, autonomeado guardião dos seus interesses, por bons motivos, que fizesse o favor de ir chamá-la para que se juntasse ao grupo, se naquela altura já estivesse suficientemente recuperada. Também houvera tempo para os outros assimilarem, o melhor possível, a enchente de revelações e choques que tinham contribuído para diminuir o seu número e mudar diversas vidas. O sub-prior Herluin tinha perdido um noviço e a sua vingança por abusos fortemente sentidos, mas recuperara os tesouros que pensara estarem perdidos para sempre, e a sua disposição, apesar dos pecados e mortes e violência, tinha melhorado desde o seu rosto furioso da manhã para uma quase benevolência. Rémy perdera um criado, mas garantira o seu futuro com um patrono muito influente: um criado substitui-se facilmente, mas a entrada na casa de um dos condes mais importantes da terra é um prémio para a vida inteira. Rémy não estava disposto a queixar-se. Nem sequer tinha perdido o cavalo com o homem, pois o animal roubado pertencia ao escudeiro de Robert Bossu. O ruano calmo e velho de Bénezet, aliviado dos alforges, esperava agora imperturbavelmente por outro cavaleiro. Nicol podia montar, e deixar que o companheiro conduzisse a carroça. Tudo estava a encaixar-se nas rotinas normais da vida, embora estas se tivessem desviado do seu curso até agora.

E de repente ali estava Alan Herbard ao portão, a desmontar, curioso e um pouco temeroso de se aproximar de Hugh naquela companhia tão ilustre.

- Temos o homem, senhor. Eu vim à frente para vos comunicar. Eles trazem-no mais atrás. Para onde quereis que seja levado? Não houve tempo para saber por que é que ele fugiu, e de que é acusado.

- É acusado de homicídio - disse Hugh. - Leva-o em segurança para o castelo e prende-o, e eu vou para lá logo que for possível. Fostes rápidos. Ele não pode ter ido longe. Que aconteceu?

- Ele levou-nos uma milha ou mais para dentro da Floresta Comprida, e estávamos a aproximar-nos dele quando saiu da estrada para tentar despistar-nos no meio da floresta densa. Acho que começaram um salto, e o cavalo se recusou, pois ouvimo-lo praguejar, e depois o cavalo relinchou e recuou. Creio que ele usou o punhal...

O escudeiro tinha-se aproximado para ouvir o que acontecera à sua montada. Indignado, disse:

- Conradin nunca suportaria isso.

- Eles estavam bastante longe, só conseguíamos segui-los pelos sons. Mas creio que ele recuou, e atirou com o fulano contra um tronco baixo, pois quando o apanhámos ele estava no chão, meio atordoado, debaixo de uma árvore. Está a coxear de uma perna, mas não está partida. Estava tonto, e não nos deu trabalho.

- Mas ainda pode dar - disse Hugh, a avisar.

- Will não é um aprendiz, vai mantê-lo bem preso. Mas o cavalo - disse Alan, um pouco apologético em relação a esse ponto -, não conseguimos apanhá-lo. Já tinha desaparecido antes de chegarmos ao local, e apesar de todas as buscas que nos atrevemos a fazer com o homem para guardar, não conseguimos encontrá-lo por perto, nem sequer ouvir nada à nossa frente. Sem cavaleiro, chegará muito longe antes de se recompor do susto e parar.

- E o meu equipamento perdido com ele - disse o desafortunado proprietário com um esgar, mas riu no momento seguinte.

- Vossa senhoria, ficareis a dever-me roupas novas se ele tiver desaparecido e nunca mais voltar.

- Amanhã faremos uma busca cuidada - prometeu Alan. - Havemos de encontrá-lo. Mas primeiro irei prender o assassino.

Fez uma vénia ao abade e ao conde, voltou a montar ao portão e desapareceu. Todos ficaram a olhar uns para os outros como pessoas acabadas de acordar, que por instantes não sabem se o que estão a contemplar é realidade ou sonho.

- Está bem acabado - disse Robert Bossu. - Se este for o fim!

- E voltou um olhar grave e pensativo para o abade. - Parece que vivemos esta despedida duas vezes, Padre, mas desta vez é verdade, temos de ir. Espero que voltemos a encontrar-nos numa ocasião mais feliz, mas agora ficareis satisfeito por ver-nos a todos longe da vossa vista e dos vossos pensamentos, com todos os problemas que vos trouxemos. A vossa casa ficará mais em paz sem a nossa presença. - E para Cadfael disse, voltando-se para pegar no freio do cavalo: - Fazeis o favor de perguntar à senhora se se sente capaz de se juntar a nós? Está mais do que na hora de nos metermos à estrada.

Ele só esteve ausente alguns momentos, e emergiu pela porta sul e atravessou o claustro sozinho.

- Ela desapareceu - disse o irmão Cadfael, num tom calmo e com o rosto inexpressivo. - Não está ninguém na igreja a não ser Cynric, o bedel do padre Boniface, e ele não viu ninguém entrar ou sair na última meia hora.

Mais tarde, perguntava ocasionalmente a si mesmo se Robert Bossu esperara que isso acontecesse. Era um homem de uma subtileza muito perigosa, e sabia apreciar a subtileza nas outras pessoas, e ver mais num homem ao conhecê-lo superficialmente do que a maioria das pessoas. E também não era avesso de todo a soltar gatos no meio de pombos. Mas não, provavelmente não. Não a conhecia há tempo suficiente para isso. Se ela alguma vez tivesse chegado à sua casa em Leicester, e estivesse sob a sua observação durante algumas semanas, ele tê-la-ia conhecido muito bem, e seria muito capaz de avaliar as suas potencialidades noutros campos para além da música. Mas pelo menos não constituía grande surpresa para ele. Não foi ele, mas Rémy de Pertuis, que soltou o grito de dor:

- Não! Ela não pode ter desaparecido. Para onde iria? Ela é minha! Tendes a certeza? Não, ela deve estar lá, não tivestes tempo para procurá-la...

- Deixei-a lá há mais de uma hora - disse Cadfael simplesmente -, junto ao altar de Santa Winifred. Ela não está lá agora. Vede com os vossos próprios olhos. Cynric encontrou a igreja vazia quando foi preparar o altar.

- Ela fugiu de mim! - lamentou-se Rémy, muito pálido e abalado, não simplesmente a protestar pela perda do seu bem mais valioso, e certamente não a lamentar uma criatura que amava profundamente. Para ele, ela não passava de uma voz, mas ele era um verdadeiro Provençal e um verdadeiro músico, e uma voz era o mais puro ouro para ele, um tesouro mais valioso do que rubis. Possuí-la era possuir esse instrumento, a única coisa nela a que dava valor. Não havia falsidade alguma no seu desgosto e consternação. - Ela não pode ir. Tenho de procurá-la. Ela é minha, eu comprei-a.

Vossa senhoria, adiai a partida até eu conseguir encontrá-la. Ela não pode estar longe. Mais dois dias... um dia...

- Outra busca? Outra frustração? - disse o conde, e abanou a cabeça, decidido. - Oh, não! Já tive sonhos desses, nunca levaram a um fim, apenas barreira atrás de barreira, recuo atrás de recuo. Ela era de facto, e é, um bem muito precioso, Rémy, uma voz maravilhosa e umas mãos leves e hábeis no organeto e nas cordas. Mas já estou sem fazer nada há muito tempo, e se quereis a minha aliança é melhor virdes comigo agora, e esquecer que pagastes dinheiro por uma coisa que não tem preço. Nunca é lucrativo. Existem outras tão dotadas como ela, tereis os meios para as encontrar e eu garanto que as manterei satisfeitas.

Ele estava a falar a sério, e Rémy sabia. Teve uma grande luta interior para escolher entre a sua cantora e a sua segurança futura, mas no fim nunca teve dúvida. Cadfael viu-o engolir em seco e quase sufocar com o esforço, e naquele momento quase sentiu pena dele. Mas com um patrono tão poderoso, tão culto e durável como Robert de Beaumont, Rémy de Pertuis dificilmente poderia inspirar pena durante muito tempo.

Antes de desistir, olhou em volta, atentamente, à procura de um agente de confiança no meio daquele grupo.

- Senhor Abade, ou vós, senhor xerife... não gostaria de a saber sozinha e a passar necessidades, nunca. Se ela reaparecer, se souberdes dela, imploro-vos que me comuniquem, e eu mandarei buscá-la. Ela será sempre bem-vinda junto de mim.

Era bastante verdade, e de maneira nenhuma porque era valiosa para ele devido à sua voz. Provavelmente, nunca tinha percebido até agora que ela era mais do que um bem, que era uma criatura humana por direito próprio, e podia passar fome, até morrer de inanição, cair vítima de vilãos na estrada, sofrer de mil maneiras diferentes. Era como a fuga de uma freira desde a infância, a aventurar-se de repente num mundo terrível que não dava tréguas a ninguém. Então, pelo menos, podia pensar nela, vendo-a inteira no instante em que ela desaparecera da sua vista. Como ele a conhecia mal!

- Bem, vossa senhoria, eu fiz o que podia. Estou pronto.

Tinham partido, todos eles, seguindo ao longo de Foregate em direcção a Saint Giles, Robert de Beaumont, conde de Leicester, a cavalgar lado a lado com o sub-prior Herluin de Ramsey, que recuperara o bom humor com a recuperação dos frutos do seu trabalho em Shrewsbury, e gratificado por estar a viajar na companhia de um nobre de tamanha envergadura; os dois escudeiros de Robert seguiam atrás, o mais jovem um pouco arreliado por ter de se haver com uma montada que não conhecia, mas contente por ir para casa; o criado de meia-idade de Herluin conduzia a carroça das bagagens, e Nicol, a fechar o cortejo ia bastante satisfeito por ir montado ao invés de ir a pé. Dentro da igreja, o som dos cascos dos cavalos ainda era audível até chegarem à ponta do enclave, e virarem para a Feira dos Cavalos. Depois fez-se um silêncio agradecido, tempo para respirar e reflectir. O abade Radulfus e o prior Robert foram tratar dos seus assuntos, e os irmãos voltaram para as suas tarefas. Estava terminado.

- Bem - disse Cadfael, pensativo, inclinando a cabeça com familiaridade para Santa Winifred -, um patife cativante, e inofensivo, mas não para o claustro, assim como não servia para a servidão, por isso para quê lamentar-se? Ramsey estará muito bem sem ele, e a rainha de Partholan já não é escrava. É verdade que perdeu as suas coisas, mas provavelmente tê-las-ia rejeitado. Ela disse-me que não possuía nada, Hugh, nem sequer as roupas que vestia. Agora vai gostar de saber que roubou apenas as poucas coisas que traz vestidas.

- E o rapaz - disse Hugh - roubou apenas uma rapariga. - E acrescentou, olhando de relance para o rosto satisfeito de Cadfael: - Sabias que ele estava lá, quando a seguiste para o interior da igreja?

- Juro-te, Hugh, que não vi nada, nem ouvi nada. Nem sequer aconteceu nada que me tivesse levado a pensar nele. Mas sim, sabia que ele estava lá. E ela também, desde o momento em que entrou. Foi quase como se me tivesse sido falado ao ouvido: sai discretamente. Não digas nada. Todas as coisas ficarão bem. Afinal de contas, ela não estava a pedir muito. Um pouco de tempo sozinha. E a porta da igreja está sempre aberta.

- Achas - perguntou Hugh, quando seguiram juntos para a porta sul e para o claustro - que Aldhelm poderia ter revelado alguma coisa contra Bénezet?

- Quem sabe? A possibilidade bastava.

Saíram para a luz forte do princípio da tarde, mas depois do turbilhão e da intensidade, aquela imobilidade e calma que tinham ficado falavam mais de noite e da lassidão encantadora do descanso depois do trabalho e da calmaria depois da tempestade.

- Era fácil gostar do rapaz - disse Cadfael -, mas perigoso, sendo tamanha cabeça-no-ar. Mais vale termo-nos visto livres dele agora do que mais tarde. Ele foi sem dúvida um ladrão, embora não em proveito próprio, e igualmente mentiroso quando sentia que era necessário. Mas foi verdadeiramente bondoso com Donata. O que fez por ela foi feito sem um único pensamento de recompensa, e por um coração sem mácula.

Não havia ninguém no grande pátio quando se voltaram para a casa do porteiro. Um espaço ultimamente a pulsar de ira e agitação permanecia sem pessoas, como se um criador menor se tivesse desesperado com o mundo que havia feito, e o tivesse derrubado para uma segunda tentativa.

- E pensaste - disse Hugh - que aqueles dois seguem seguramente para sudoeste pela estrada que Bénezet tomou? Para sul, para o lugar onde ela atravessa o velho trilho romano, e depois para oeste, direito como uma lança, para o País de Gales. Com a sorte dos santos, ou do próprio diabo, pode ser que encontrem aquele cavalo perdido, ali na floresta, e não deixem nada para Alan encontrar amanhã.

- E os alforges daquele infeliz rapaz ainda se encontram na sela - percebeu Cadfael, e iluminou-se com a ideia. - Faziam-lhe jeito umas roupas mais seculares do que o hábito e o capuz, e tanto quanto me recordo eles são mais ou menos do mesmo tamanho.

- Não me digas mais nada - disse Hugh apressadamente.

- Encontrar não é roubar. - E quando pararam junto ao portão, onde o cavalo de Hugh estava amarrado, Cadfael disse, muito sério: - Donata compreendeu-o melhor do que qualquer um de nós. Disse-lhe qual seria o seu futuro, de uma forma ligeira, mas sensatamente. Um trovador, disse ela, precisa de três coisas, e três coisas apenas, um instrumento, um cavalo e uma donzela para amar. A primeira deu-lha, as outras teria de as arranjar. Agora, talvez tenha encontrado as três. 

 

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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