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CADFAEL 21 / A Penitência do Irmão Cadfael
CADFAEL 21 / A Penitência do Irmão Cadfael

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O mensageiro do Conde de Leicester atravessou a ponte sobre o Severn e entrou na cidade de Shrewsbury um pouco depois das doze horas de um dos primeiros dias de Novembro, trazendo no seu alforge notícias dos últimos três meses. Muitas delas já eram conhecidas, pelo menos em linhas gerais, mas o serviço de estafeta de Robert Beaumont, oriundo de Londres, funcionava melhor do que qualquer outra coisa que o xerife de Shropshire pudesse desejar e, num único encontro com este jovem oficial, o conde identificara-o como um dos que mantinham uma relativa sanidade mental naquele mundo louco da guerra civil que há tantos anos mutilava a Inglaterra e que esgotava ambos os lados, tanto o rei como a imperatriz, sem, infelizmente, levar qualquer deles a enfrentar a realidade. Homens competentes como Hugh Beringar, considerava o Conde Robert, mereciam ser informados, em preparação para o dia em que a razão finalmente prevalecesse e pusesse termo a uma guerra tão ruinosa. E, no ano do Senhor de 1145, que estava quase a chegar ao fim, acontecimentos caóticos pareceram conter uma promessa, embora ainda ténue, de que os dois primos que lutavam pelo trono abandonariam a força e procurariam uma forma de resolver a sua disputa.

O rapaz que trouxe as mensagens do conde já tinha feito esta viagem uma vez e conhecia o caminho, pelo que atravessou a ponte, subiu a curva do Wyle e, passando pela Cruz Alta, chegou aos portões do castelo. O distintivo do conde abriu-lhe as portas sem qualquer impedimento. Hugh saiu da armaria e entrou ao pátio interior, sacudindo as mãos, com o cabelo escuro despenteado pelo vento que soprava através da arcada, e levou o mensageiro para dentro, para saber as notícias.

 

 

 

 

 

 

- Está a levantar-se uma ligeira brisa - disse o rapaz, colocando o conteúdo do seu saco em cima da mesa da antecâmara da casa do porteiro - que faz com que o meu senhor se ponha a farejar o ar. Mas cautelosamente, pois é a primeira vez que ele detectou uma agitação assim, e ela poderá facilmente desaparecer por si só. E ela tem muito a ver com o que está a acontecer no Oriente, bem como com toda esta cedência de castelos no vale do Tamisa. Desde que Edessa caiu nas mãos dos infiéis, no Natal do ano passado, que toda a cristandade se sente inquieta com o reino de Jerusalém. Estão a começar a falar numa nova Cruzada, e aqui no país há, em ambos os lados, lordes que não estão nada satisfeitos com o que se passa, e que talvez acolham bem a Cruz como um santuário para as suas almas. Eu trouxe-lhe as suas cartas oficiais - disse ele rapidamente, entregando-as a Hugh -, mas antes de me ir embora vou dar-lhe uma ideia geral do seu conteúdo, e depois poderá lê-las calmamente, pois ainda não foi fixada uma data. Eu tenho que regressar hoje mesmo. Tenho que passar por Coventry no caminho de regresso.

- Então é melhor comer e beber qualquer coisa agora, enquanto conversamos - disse Hugh, mandando vir o que era necessário. Conversaram sobre os complicados problemas da Inglaterra que se tinham deslocado em desconcertantes direcções durante os meses de Verão e agora, com o Inverno prestes a impedir qualquer outra acção, talvez, pelo menos, se desemaranhassem e abrissem um caminho que pudesse ser seguido com alguma esperança de êxito. - Não está a querer dizer que Robert Beaumont está a pensar em alistar-se numa Cruzada? Já me disseram que em Claraval estão a ser feitos sermões arrebatadores que serão difíceis de resistir.

- Não - disse o jovem com um breve sorriso -, todas as preocupações do meu senhor se centram aqui no país. Mas toda esta intranquilidade no mundo cristão está a levar os bispos a pensar em impor a ordem aqui, antes de partirem para resolver os problemas do Outremer. Falam em fazer mais uma tentativa para levar o rei e a imperatriz a conversarem de modo a encontrarem uma forma de sair deste impasse. Já deve ter ouvido dizer que o conde de Chester solicitou e obteve um encontro com o rei Stephen e lhe jurou fidelidade? Um pouco tarde, e não foi nada fácil, mas o rei ficou muito satisfeito. Nós já tínhamos conhecimento disso antes de eles se encontrarem em Stanford, há cerca de uma semana, pois há já algum tempo que o Conde Ranulf estava a preparar o terreno namorando os barões que guardavam ressentimentos antigos, tentando ser aceite por eles. Perto do seu castelo de Mountsorrel há terras que são desde há alguns anos alvo de disputa entre ele e o meu senhor. Chester fez algumas concessões a esse respeito. Quem quiser mudar de partido tem que amolecer, não apenas o rei, mas também os que o rodeiam. Por isso Stanford não constituiu surpresa, e Chester reconciliou-se com o rei e foi aceite. E certamente que já tem conhecimento do que se passou com Faringdon e Cricklade, e de como Philip FitzRobert, apesar do pai e da imperatriz, foi ter com Stephen, ainda por cima com um castelo forte em cada uma das mãos.

- Isso - disse Hugh -, é algo que nunca hei-de compreender. O próprio filho de Gloucester, e Gloucester tem sido sempre, praticamente sozinho, o suporte da imperatriz, e agora o seu próprio filho vira-se contra ele para se juntar ao rei. E sem meios-termos. Agora ele luta por Stephen com tanto vigor como lutava por Maud.

- E lembre-se que a irmã de Philip é a mulher de Ranulf de Chester - fez notar o mensageiro - e que estas duas mudanças se combinam. Só Deus sabe qual destes factores arrastou o outro consigo, ou o que está por detrás de tudo isto. Mas estes são os factos. O rei tem mais dois aliados e uma mão cheia de castelos muito respeitável.

- E eu diria que sem qualquer vontade de fazer concessões, nem sequer aos bispos - observou Hugh com astúcia. - É muito mais provável que se sinta novamente encorajado a acreditar que terá uma vitória absoluta. Duvido que consigam sentá-lo à mesa do conselho.

- Nunca subestime Roger de Clinton - disse o escudeiro de Leicester, sorrindo. - Ele propôs Coventry como local do encontro, e Stephen praticamente que concordou em vir. Ambos os lados estão já a emitir salvo-condutos. Coventry é um bom centro para todos, Chester pode utilizar Mountsorrel para oferecer hospitalidade e fazer amizades, e o priorado tem alojamento suficiente para todos. Oh, vai haver uma reunião! Se vai resultar nalguma coisa, é outra questão. Não vai agradar a todos, e haverá aqueles que farão o possível para a estragar. Philip FitzRobert será um deles. Oh, ele virá, quanto mais não seja para enfrentar o pai e mostrar que não se arrepende de nada, mas ele virá para destruir, não para apaziguar. Bem, o meu senhor quer que esteja lá, a falar em nome do seu condado. Vai estar presente? Ele sabe qual é a sua opinião - disse o jovem num tom ligeiro - ou pelo menos pensa que sabe. O senhor faz parte da sua lista de esperanças. O que me diz?

U - Ele que me mande dizer qual é o dia - disse Hugh vigorosamente - que eu estarei lá.

- Óptimo. Eu dir-lhe-ei isso. E, quanto ao resto, já deve saber que foi apenas a meia dúzia de comandantes, com Brien de Soulis à cabeça, que traiu Faringdon ao rei e fez prisioneiros todos os cavaleiros da guarnição que se recusaram a mudar de partido. O rei entregou-os a alguns dos seus próprios seguidores, para lucrar com o seu resgate. O meu senhor conseguiu arranjar algures uma lista dos que foram assim distribuídos, dos que foram oferecidos para resgate e daqueles cuja liberdade já foi comprada. Ele manda-lhe aqui uma cópia, para o caso de quaisquer nomes entre eles, captores ou cativos, lhe dizerem respeito. Se alguma coisa resultar da reunião de Coventry, a situação deles será discutida, e não existe a certeza sobre quem detém os últimos.

- Duvido que haja alguns que eu conheça - disse Hugh, pegando, pensativo, no pergaminho selado. - Todas essas guarnições ao longo do Tamisa estão, por assim dizer, a mil milhas de distância de nós. Só ouvimos dizer que elas caíram ou que mudaram de partido um mês depois de isso ter acontecido. Mas agradeça ao Conde Robert a sua cortesia e diga-lhe que espero vê-lo no priorado de Coventry quando chegar o dia.

Ele só quebrou o selo da carta de Robert Beaumont depois de o mensageiro ter partido em direcção a Coventry, para falar com o bispo Roger de Clinton no seu caminho de regresso a Leicester. Embora Lichfield mantivesse o estatuto de catedral, nos anos mais recentes o bispo tinha feito de Coventry a principal sede da sua diocese, e a sé era imparcialmente referida por qualquer dos dois nomes. O bispo era também abade titular do mosteiro beneditino da cidade, e o chefe dos monges ali detinha o título de prior, mas era mitrado como um abade. Dois anos antes apenas, a paz do priorado tinha sido tristemente perturbada, e os monges afastados temporariamente das suas instalações, mas tinham sido firmemente reinstalados antes do final do ano, e era pouco provável que voltassem a ser expulsos.

Nunca se deve subestimar Roger de Clinton, dissera o escudeiro de Beaumont, sem dúvida repetindo as palavras do seu poderoso amo. Hugh já nutria um saudável respeito pelo bispo. E se um prelado da sua estatura, preocupado com o perigo que a cristandade corria, conseguia atrair para si um magnata como o Conde de Leicester, bem como outros de qualidade e bom senso semelhantes, de qualquer das facções ou de ambas, então certamente que algo de bom resultaria de tudo aquilo. Hugh desenrolou as mensagens do conde com uma sensação de cautelosa esperança e começou a ler o breve resumo no seu interior e a lista de nomes sonantes.

O súbito e violento rompimento entre Robert, conde de Gloucester, meio-irmão e defensor da Imperatriz Maud, e Philip, o seu filho mais novo, no calor do pino do Verão, tinha espantado toda a Inglaterra e ainda não fora adequadamente explicado e compreendido. No confuso mas perigoso e explosivo campo de batalha do vale do Tamisa, Philip, o castelão de Cricklade, pertencente à imperatriz, tinha sido alvo de ferozes ataques por parte dos homens do rei estacionados em Oxford e Malmesbury e, para aliviar a pressão, tinha suplicado ao seu pai que viesse escolher um local para outro castelo, a fim de tentar quebrar as comunicações entre os dois fortes reais e colocá-los, por sua vez, na defensiva. E o Conde Robert tinha seleccionado Faringdon, construído o seu castelo e colocado ali uma guarnição. Mas o rei, assim que teve conhecimento disso, sitiou o local com um forte exército. Philip tinha enviado de Cricklade súplica após súplica ao pai para que este lhe enviasse reforços o mais depressa possível, a fim de não perder o bem de que ainda mal usufruíra e que era potencialmente valioso para a guarnição, sob o comando do seu filho, sujeita a uma forte pressão. Mas Gloucester não lhe dera ouvidos e não enviara auxílio. E, subitamente, começou a constar no sul que o castelão de Faringdon, Brien de Soulis e os seus ajudantes mais próximos no interior do castelo tinham, sem conhecimento do resto da guarnição, feito um pacto secreto com os sitiantes, para deixarem entrar os homens do rei durante a noite e entregar-lhes Faringdon, com todos os seus combatentes. Os que aceitaram essa ordem juntaram-se às forças de Stephen, tal como fez a maior parte dos homens ao ver que os seus líderes os tinham entregado. Os que se mantiveram fiéis à imperatriz foram desarmados e feitos prisioneiros. As vítimas tinham sido distribuídas pelos seguidores do rei, para serem alvo de resgate. E assim que isso foi feito, Philip FitzRobert, o filho do grande conde, apesar de ter jurado fidelidade e dos seus laços de sangue, também tinha entregue Cricklade ao rei, e desta vez inteiro, com toda a sua armaria e todos os seus homens intactos. Muitos pensaram que fora a sua vontade, se não a sua mão, que entregara as chaves de Faringdon, pois sabia-se que, em todos os conselhos, Brien de Soulis era tão próximo de Philip como se eles fossem irmãos gémeos. E, a partir desse momento, Philip tinha também mudado de partido e lutado contra o pai com a mesma ferocidade com que lutara por ele.

Mas, quanto ao motivo, este era difícil de compreender. Ele amava a irmã, que era casada com o Conde Ranulf de Chester, e Ranulf estava a tentar cair novamente nas boas graças do rei e gostaria de levar consigo outro poderoso familiar, para assegurar que era bem-vindo. Mas seria isso suficiente? E Philip tinha pedido por Faringdon e esperava ansiosamente pelo apoio que ele traria aos seus próprios soldados, e acabara por vê-lo abandonado à sua sorte, apesar dos insistentes pedidos de auxílio. Mas, mesmo assim, seria isso suficiente? Certamente que é necessário um enorme azedume para que um homem, após anos de lealdade e devoção, atraiçoe o seu próprio sangue.

Mas ele fizera-o. E ali, nas mãos de Hugh, estava a história das suas primeiras vítimas, cerca de trinta jovens de elevada posição social, cavaleiros e escudeiros distribuídos pelos apoiantes do rei, os quais, na melhor das hipóteses, iram pagar caro a sua liberdade, ou apodreceriam no cativeiro se tivessem caído nas mãos erradas e fossem suficientemente odiados.

O escrivão de Robert Beaumont tinha anotado o nome do captor, quando este era conhecido, ao lado do do cativo, e assinalara aqueles cuja liberdade já tinha sido comprada pelos seus familiares. Ninguém mais iria provavelmente pagar uma quantia exorbitante pela compra de um jovem cavalheiro armado ainda sem qualquer distinção. Um ou dois ambiciosos partidários da imperatriz, não tendo qualquer protector, talvez estiolassem em masmorras obscuras, a não ser que a projectada conferência de Coventry produzisse um acordo sensato que insistisse na sua libertação.

No final do pergaminho, depois de muitos nomes que lhe eram desconhecidos, Hugh encontrou um que conhecia.

“Sabe-se que se encontrava entre os que foram dominados e desarmados, desconhece-se quem o detêm ou onde. Foi oferecido um resgate por ele. Laurence d'Angers tem estado a fazer perguntas sobre o seu paradeiro, sem qualquer resultado: Olivier de Bretagne.”

Hugh atravessou a cidade com as notícias, a fim de conversar com o Abade Radulfus sobre aquela súbita oportunidade de pôr termo a oito anos de guerra civil. Só o tempo diria se os bispos iriam permitir que a voz do clero monástico tivesse a mesma força; as relações entre os dois braços da Igreja não eram invariavelmente cordiais, embora Roger de Clinton certamente prezasse o abade de Shrewsbury. Mas quer fosse ou não convidado para a conferência quando chegasse a altura, Radulfus precisava de se preparar para o êxito ou para o fracasso, e de estar pronto para agir de acordo com as circunstâncias. E havia ainda outra pessoa na abadia de S. Pedro e S. Paulo que tinha todo o direito de conhecer o conteúdo da carta de Robert Beaumont.

O irmão Cadfael estava no meio do seu herbário murado, olhando pensativamente em volta para o aspecto outonal do seu agradável jardim, onde tudo crescia fino, vigoroso e sombrio. A maior parte das folhas tinham caído, os caules estavam escuros e cerrados como dedos descarnados a agarrar com força o resto do Verão, todas as fragrâncias se reuniam num odor de velhice e declínio, ainda doce, mas com a doçura do fim das colheitas e do início da decomposição. Ainda não estava muito frio, ainda havia ouro na suave melancolia de Novembro, nas folhas que caíam e na oblíqua luz âmbar. As maçãs estavam todas armazenadas no sótão, o milho estava moído, o feno há muito que fora empilhado, os carneiros tinham sido postos a pastar no restolho. Era altura de fazer uma pausa, de olhar em volta, para ter a certeza de que estavam protegidos contra o Inverno, de que nada tinha sido negligenciado, nenhuma cerca ficara por reparar.

Ele nunca sentira tamanha consciência da particularidade e função do mês de Novembro, da sua maturação e da sua silenciosa tristeza. O ano não prossegue em linha recta através das estações, mas sim num círculo que leva o mundo e o homem de volta à obscuridade e ao mistério em que ambos começaram, e do qual uma nova época de sementeiras e uma nova geração estavam prestes a começar. Os velhos, pensou Cadfael, acreditam nesse novo início, mas só experimentam o fim. É possível que Deus me esteja a fazer lembrar que me estou a aproximar do meu Novembro. Bem, porque é que me hei-de lamentar? Novembro tem beleza, viu as colheitas armazenadas nos celeiros, preparou até a semente para o ano seguinte. Não há necessidade de ficar perturbado com o facto de não me ser permitido ficar para o semear, outra pessoa o fará. Assim, vai, satisfeito, para a terra com as folhas húmidas, suaves, esqueléticas, com a fragilidade de uma teia de aranha, com a pele de homens muito velhos que fica ferida e manchada com o mero toque da brisa e floresce em manchas castanhas, tal como as folhas se transformam em ouro a apodrecer. As cores do fim do Outono são as cores do pôr-do-sol: o adeus ao ano e o adeus ao dia. E da vida do homem? Bem, se esta terminar num toque de ouro, não é um mau final.

Ao sair dos aposentos do abade, dividido entre a pressa de comunicar o que sabia e a relutância em dar notícias que só podiam ser perturbadoras, Hugh encontrou o seu amigo imóvel no meio do seu pequeno e amado reino, a olhar mais para o interior da sua própria mente do que para as plantas de Outono que se espraiavam à sua volta. Quando Hugh lhe colocou a mão no ombro, ele voltou, sobressaltado, para o mundo exterior e emergiu lentamente de um lugar secreto, bem no fundo de si.

- Deus abençoe o trabalho - disse Hugh, pegando-lhe pelos braços -, se foi feito algum aqui esta tarde. Pensei que tivesses criado raízes.

- Eu estava a reflectir sobre a natureza circular da vida humana - disse Cadfael, quase em tom de desculpa - e sobre as estações do ano e as horas do dia. Não te ouvi chegar. Não estava à espera de te ver hoje.

- E não me terias visto se os informadores de Robert Bossu tivessem andado menos ocupados. Vem para dentro - disse Hugh -, que eu conto-te o que se passa. Há uma questão que diz respeito a todos os bons homens da igreja, e acabei de informar Radulfus. Mas há também uma notícia que te interessará. Tal como - admitiu ele, abrindo a porta da oficina de Cadfael com um enorme suspiro - me interessa a mim.

- Tiveste notícias de Leicester? - Cadfael olhou-o pensativamente da soleira da porta. - O Conde Robert Bossu mantém-se em contacto contigo? Se ele conserva essa estrada aberta, é porque te considera um dos seus esperançosos, Hugh. O que fez ele agora?

- Não foi tanto ele, embora ele esteja metido no assunto até ao pescoço, quer acredite ou não. Não, os bispos é que deram o primeiro passo, mas haverá vozes de ambos os lados, como a de Leicester, a apoiar os seus esforços.

Hugh sentou-se ao pé dele, debaixo dos ondulantes ramos pendurados de ervas aromáticas a secar, ao longo das traves, na corrente de ar oriunda da porta aberta, e falou-lhe sobre a possível reunião em Coventry, sobre os salvo-condutos que já estavam a ser emitidos por ambos os lados e sobre as perspectivas de, pelo menos, um êxito parcial.

- Só Deus sabe se um deles irá ceder um milímetro. Stephen está feliz por ter Chester do seu lado, bem como o filho de

Gloucester, mas Maud sabe que os seus homens asseguraram o domínio da Normandia e que isso irá influenciar alguns dos nossos barões que têm lá terras a salvaguardar, bem como cá. Eu imagino que cada vez mais homens sensatos continuarão a jurar fidelidade, mas fazendo o mínimo de movimentos marciais que conseguirem.

- Mas vamos tentar. Roger de Clinton pode ser um poderoso persuasor quando está empenhado, e neste momento ele está muito empenhado, pois a sua verdadeira presa é o Atabeg Zenghi em Mosul, e o seu objectivo é recuperar Edessa. E Henry de WinI ] chester certamente que acrescentará o seu peso à balança. Quem sabe? Já preveni o abade - disse Hugh num tom de dúvida -, mas duvido que os bispos recorram ao braço monástico. Eles preferem manter o controlo das rédeas.

- E como é que isto, por mais bem-vindo e ambíguo que seja, tem a ver comigo? - perguntou Cadfael.

- Espera, há mais. - Ele estava a prosseguir cuidadosamente, pois as notícias eram melindrosas. Observou ansiosamente o rosto de Cadfael enquanto perguntava: - Recordas-te do que aconteceu no Verão no novo castelo de Faringdon, de Robert de Gloucester? Quando o filho mais novo de Gloucester virou a casaca, e o seu castelão entregou o castelo ao rei?

- Recordo-me - disse Cadfael. - Os homens de armas não tiveram outra opção a não ser acompanhá-lo na mudança de partido, e os seus comandantes selaram a rendição. E Philip entregou Cricklade, completamente intacto.

- Mas muitos dos cavaleiros de Faringdon - disse Hugh lentamente -, recusaram-se a trair a imperatriz e foram dominados e desarmados. Stephen entregou-os a vários aliados seus, novos e velhos, mas desconfio que os novos foram favorecidos e ficaram com os melhores, para ficarem presos, por gratidão, à sua nova lealdade. Bem, Leicester tem estado a utilizar eficazmente os seus agentes à volta de Oxford e Malmesbury para conseguir obter uma lista dos que foram feitos prisioneiros e descobrir a quem foram entregues. Alguns já foram comprados, muito rapidamente. Alguns ainda estão à venda e por preços suficientemente elevados para serem lucrativos. Mas existe um nome que se sabe que estava lá e que consta da lista sem qualquer referência a quem o detém, e que nunca mais foi visto nem se sabe nada dele desde que Faringdon caiu. Eu duvido que o nome signifique alguma coisa para Robert Bossu, mais do que os outros. Mas para mim significa, Cadfael. - Ele tinha a atenção total do seu amigo; o tom da sua voz, cuidadosamente moderado, era mais um aviso do que uma garantia de tranquilidade. - E significará também para ti.

- Não foi oferecido para resgate - disse Cadfael avaliando, por sua vez, as possibilidades com cautelosa moderação - e mantido em grande segredo. Isso significa uma animosidade invulgar. Esse será certamente um preço elevado. Mesmo que ele aceite um preço.

- E de modo a pagar o que possa ser pedido - disse Hugh com um ar pesaroso -, Laurence d'Angers, segundo o agente de Leicester disse, tem andado a perguntar por ele, sem qualquer resultado. Esse nome deve ser conhecido do conde, embora os nomes dos seus seguidores não sejam. Lamento muito trazer-te esta notícia. Olivier de Bretagne estava em Faringdon. E agora Olivier de Bretagne foi feito prisioneiro, e só Deus sabe onde ele está.

Depois do silêncio, de uma pausa para respirar e pensar e da reorganização mútua das preocupações imediatas que os atormentavam, Cadfael disse simplesmente:

- Ele é um jovem como os outros. Tem consciência dos riscos. Aceita-os de olhos abertos. O que há a dizer por um mais do que pelos outros?

- Mas este é um risco, suponho, que ele não poderia ter previsto. Que o próprio filho de Gloucester se virasse contra o pai! E um risco que Olivier, não tendo qualquer concepção de traição, não estava nada preparado para enfrentar. Eu não sei, Cadfael, há quanto tempo ele estava na guarnição, nem que ambiente reinava entre os jovens cavaleiros que lá se encontravam. Parece que muitos deles estavam ao lado de Olivier. Mal a construção do castelo terminou, Philip encheu-o de homens para que fosse bem defendido, e, quando foi cercado, Robert não levantou um dedo para o salvar. Isto provocou bastante azedume. Mas Leicester vai continuar a tentar encontrá-los a todos, até ao último homem. E se nos encontrarmos todos em Coventry em breve, pelo menos poderá haver um acordo sobre uma libertação de prisioneiros de ambos os lados. Todos nós, homens de boa vontade de ambas as facções, estaremos a fazer pressão nesse sentido.

- Olivier lavra a sua própria terra e corta as suas próprias ligaduras - disse Cadfael, olhando para longe, para o oriente, para a seca, para a areia, para o sol e para o mar cintilante ao longo do reino franco da Palestina, agora ameaçado e prestes a recorrer às armas. O mundo lendário de Outremer, que outrora lhe fora familiar, onde Olivier de Bretagne tinha escolhido, na juventude, a fé do seu pai desconhecido. - Eu duvido - disse Cadfael lentamente - que qualquer prisão o possa manter durante muito tempo. Ainda bem que me contaste, Hugh. Se receberes mais notícias, diz-me.

Mas a voz, pensou Hugh quando deixou o amigo, não era a de um homem plenamente confiante num desfecho feliz, nem a expressão do rosto era a de alguém que tivesse uma fé absoluta e estivesse disposto a aguardar calmamente, deixando tudo a cargo de Olivier ou de Deus.

Quando Hugh se foi embora, com problemas seus suficientes para o manterem totalmente ocupado, tendo cumprido fielmente o seu dever de amizade, Cadfael abafou a braseira com turfa, fechou a oficina e dirigiu-se à igreja. Ainda faltava uma hora para as Vésperas. O Irmão Winfred ainda estava a cavar metodicamente um canteiro liberto de feijões, para permitir que a geada do Inverno que se aproximava o esboroasse e purificasse. Um fino véu de folhas amarelecidas ainda estava preso às árvores, e as rosas eram altas, com pequenos botões a formar-se nas pontas, botões que nunca abririam.

No vasto e sombrio silêncio da igreja, Cadfael fez uma vénia cordial em frente do altar de Santa Winifred, como se estivesse a saudar um amigo íntimo mas reverenciado, mas hesitou em sobrecarregá-la com uma preocupação destinada a outro homem e que ela talvez tivesse dificuldade em compreender. Era verdade que Olivier era meio galês, mas isso, ao pé de tudo o que era apaixonadamente sírio no seu rosto, pensamentos e princípios, talvez fosse ainda mais confuso para ela. Assim, a única oração que lhe rezou foi feita sem palavras, no coração, oferecendo afecto num jorro de ternura como fumo de incenso. Ela tinha-lhe perdoado tanta coisa, e nunca o excluíra. E nesse mesmo ano ela fora vítima de inundações, perigos e discórdia, tendo regressado em segurança para um merecido descanso. Porque é que havia de perturbar a doçura desse descanso com um problema que só a ele pertencia?

Assim, ele levou o seu problema para o altar principal, directamente para a origem de toda a força, de todo o poder, de toda a fidelidade e, desta vez, não se contentou em ajoelhar-se, mas prostrou-se em cruz nas lajes frias, como um pecador a apresentar o seu corpo para expiação no final da penitência, embora a ofensa que ele tinha em mente ainda não tivesse sido cometida e, com grande compaixão e compreensão por parte do seu superior, talvez não fosse necessária. Mesmo assim, declarou as suas intenções com toda a sinceridade e pediu compreensão, mais do que perdão. Com a testa fria contra a pedra, renunciou às palavras para apresentar a sua compulsão e deixou que os pensamentos expressassem a necessidade que o tornava lúcido, mas incapaz de falar. Tenho que o fazer, seja com uma bênção, seja com uma proibição. Porque o facto de eu ser abençoado ou banido não tem qualquer importância, desde que o que eu tenho que fazer seja bem feito.

No final das Vésperas, ele pediu uma audiência ao Abade Radulfus e foi recebido. Sentaram-se os dois na sala privada.

- Pai, creio que Hugh Beringar vos informou de tudo o que ele soube pelas cartas do Conde de Leicester. Ele também vos falou sobre a sorte dos cavaleiros de Faringdon que se recusaram a abandonar a imperatriz?

- Falou - disse Radulfus. - Eu vi a lista de nomes e sei o que lhes aconteceu. Espero que nessa reunião proposta para Coventry se chegue pelo menos a um acordo sobre uma libertação geral dos prisioneiros, mesmo que não se consiga mais nada.

- Pai, eu gostaria de partilhar a vossa confiança, mas receio que nenhum deles tenha em mente ceder. Mas deveis ter reparado no nome de Olivier de Bretagne, que não foi localizado e de quem não se sabe nada desde que Faringdon caiu. O senhor dele está disposto a pagar o seu resgate, mas não lhe foi dada essa oportunidade. Pai, eu tenho que vos contar algumas coisas a respeito desse jovem, coisas que sei que Hugh não vos deve ter contado.

- Eu conheci esse homem - recordou-lhe Radulfus, sorrindo -, quando ele esteve cá há quatro anos, na altura da translação de Santa Winifred, à procura de um escudeiro que desaparecera depois da conferência de Winchester. Eu não me esqueci dele.

- Mas há uma coisa que ainda desconheceis - disse Cadfael -, embora eu talvez vos devesse ter contado há muito tempo, quando ele tocou a minha vida pela primeira vez. Eu não pensei que houvesse necessidade disso, pois não esperava que o meu compromisso para com este local pudesse ser alterado de qualquer modo. Também não imaginei que fosse voltar a vê-lo, nem que ele viesse a precisar de mim. Mas agora parece correcto que tudo fique claro. Pai - disse Cadfael simplesmente -, Olivier de Bretagne é meu filho.

Fez-se um silêncio surpreendentemente sereno e suave. Quer se encontrem no seio da Igreja, quer fora dela, os homens continuam a ser homens, vulneráveis e falíveis. Radulfus sentia o respeito do homem sensato pela perfeição, mas não tinha grandes esperanças de alguma vez se vir a deparar com ela.

- Quando cheguei à Palestina - disse Cadfael, recordando sem arrependimento -, eu tinha dezoito anos, conheci uma jovem viúva em Antioquia e apaixonei-me por ela. Muitos anos depois, quando voltei para embarcar em Saint Symeon, para regressar a casa, encontrei-a novamente e estive com ela até o barco estar pronto para partir. Deixei-lhe um filho, cuja existência eu desconhecia até ele ter vindo à procura de duas crianças perdidas depois do saque de Worcester. Senti-me satisfeito e orgulhoso dele, e com bons motivos. O Pai conheceu-o durante algum tempo, quando ele veio a segunda vez. Podeis julgar se eu tinha ou não motivo para me alegrar com ele.

- Tinhas um bom motivo - disse Radulfus rapidamente. - Independentemente do modo como foi concebido, ele honrou o seu nascimento. Não me atrevo a censurar-te. Não tinhas ainda feito os votos, eras jovem e estavas longe de casa, e o homem é fraco. Sem dúvida que há muito te confessaste e arrependeste.

- Confessei - disse Cadfael bruscamente -, sim, quando soube que a tinha deixado grávida e sem amigos, mas isso não foi há muito tempo. Mas se me arrependi? Não, duvido que alguma vez me tenha arrependido de a ter amado, pois ela merecia bem o amor de qualquer homem. E lembrai-vos, Pai, que eu sou galês, e que em Gales não há filhos ilegítimos a não ser aqueles cujos pais se recusam a assumir a paternidade. Imaginai se eu ia alguma vez negar esse direito a um ser tão inteligente e corajoso. A melhor coisa que eu alguma vez fiz foi trazê-lo a um mundo em que poucos se lhe podem comparar.

- Por mais admirável que o fruto possa ser - disse o abade secamente -, isso não justifica orgulharmo-nos de um pecado, nem chamar qualquer outro nome ao pecado. Mas também não serve de nada julgar agora um pecado cometido há cerca de trinta anos. Desde que fizeste os teus votos que raramente tenho tido motivo para te repreender, para além das pequenas faltas de paciência e de diligência do dia a dia, a que todos nós estamos sujeitos. Por conseguinte, vamos tentar revolver os problemas com que nos confrontamos agora. Porque eu acho que tens qualquer coisa a pedir-me em relação a Olivier de Bretagne.

- Pai - disse Cadfael, escolhendo as palavras com gravidade e deliberação -, podeis censurar-me por eu imaginar que a paternidade me impõe um dever sempre que um filho meu se veja confrontado com problemas ou dificuldades. Mas eu acredito que tenho esse dever, e o meu coração não consegue esquecer isso. Sinto-me obrigado a ir procurar o meu filho e a libertá-lo, quando o encontrar. Peço a vossa concordância e autorização.

- E eu - disse Radulfus franzindo o sobrolho, não tanto de desagrado, mas mais de profunda concentração -, coloco-te a opinião oposta do que é agora o teu dever. Os teus votos ligam-te a esta casa. Foi de livre vontade que abandonaste o mundo e todos os laços que te ligavam a ele. Não podes despojar-te deles como se fosse um casaco.

-Eu fiz os meus votos de boa fé - disse Cadfael -, não sabendo na altura que havia um ser no mundo por cuja existência eu era responsável. Os meus votos absolveram-me de todos os outros laços. Os meus votos cortaram todas as outras relações pessoais. Mas esta não! Não sei se eu teria abandonado o mundo se soubesse que o mundo continha a minha semente viva, nem vós, Pai, podereis tentar responder a essa pergunta. Mas ele está vivo, e fui eu que o fiz. Ele encontra-se em cativeiro, e eu estou livre. Ele pode estar em perigo, e eu estou em segurança. Pai, pode o criador abandonar o mais humilde dos seus seres? Pode um homem virar as costas ao seu sangue em perigo? Não é a própria procriação o assumir de um voto secreto e inviolável? Quer soubesse quer não, antes de eu ser um irmão era um pai.

Desta vez, o silêncio foi mais gelado e mais distante, e durou mais tempo. E então, o abade disse num tom inexpressivo:

- Pede o que vieste cá pedir. Fala claramente.

- Peço a vossa autorização e a vossa bênção - disse Cadfael -, para ir com Hugh Beringar assistir a essa Conferência de Coventry, para perguntar ao rei e à imperatriz onde está detido o meu filho e, com a ajuda de Deus e deles, vê-lo em liberdade.

- E depois? - perguntou Radulfus. - Se não obtiveres ajuda ali?

- Então prosseguirei a minha busca através de todos os meios, até o encontrar e libertar.

O abade olhou-o com firmeza, reconhecendo na voz um eco muito distante no tempo e no espaço, contendo o aço que tinha ficado embotado e embainhado desde que conhecera aquele irmão mais velho. O rosto moreno e de traços fortes, maltratado pelo tempo, profundamente vincado pelo desgaste de sessenta e cinco anos, a fitá-lo com os olhos abertos, bem separados, de uma fisionomia outonal, deixou-o penetrar no interior da mente. Após anos de submissão voluntária às exigências da comunidade, Cadfael estava subitamente firme e distante, novamente só. Radulfus reconheceu a sua determinação.

- E, se eu proibir - disse ele num tom de certeza -, tu vais à mesma.

- Sob o olhar de Deus, e com o devido respeito por vós, Pai, vou, sim.

- Então eu não proíbo - disse Radulfus. - O meu cargo é conservar todo o meu rebanho. Se um se perder, os restantes noventa e nove também sofrem. Dou-te autorização para ires com Hugh assistir a essa reunião do conselho, e rezo para que dela resulte algo de bom. Mas quando a reunião terminar, quer saibas o que precisas de saber quer não, a autorização para te ausentares termina. Vai com Hugh e volta com Hugh. Se fores mais longe e demorares mais tempo, então vais como senhor de ti próprio, não meu. Sem a minha autorização nem a minha bênção.

- Sem as vossas orações? - perguntou Cadfael.

- Eu disse isso?

- Pai - disse Cadfael -, está escrito nas Regras que o irmão que tomou uma decisão errada e deixou o mosteiro pode ser recebido de novo, até mesmo uma terceira vez, por um preço. Até mesmo a penitência termina quando o Pai disser: Basta.

 

A data do conselho de Coventry foi marcada para o último dia de Novembro. Antes dessa data, tinha havido várias provas de que as perspectivas de acordo e paz não eram, de modo algum, desejadas por todos, e de que havia poderosos interesses empenhados em arruiná-la. Philip FitzRobert tinha prendido e feito prisioneiro Reginald FitzRoy, outro dos meios-irmãos da imperatriz e Conde da Cornualha, embora o conde, que estava ao serviço da imperatriz, fosse seu parente e tivesse um salvo-conduto do rei. O facto de Stephen, quando soube, ter ordenado a libertação do conde e ter sido pronta e correctamente obedecido, não diminuiu o mau presságio.

- Se é esse o seu modo de pensar - disse Cadfael a Hugh no dia em que ouviram falar no assunto -, ele nunca irá a Coventry.

- Ah, mas irá - disse Hugh. - Ele irá deixar cair todos os tipos de cardos debaixo dos pés de todos os que falarem sobre paz. Isso é melhor e mais eficaz dentro do que fora. Daquilo que eu sei sobre ele, uma vez que ficou tão zangado com o pai, virá enfrentá-lo cara a cara. Oh, Philip estará lá. - Ele olhou atentamente para o amigo. Era um rosto que, em geral, ele conseguia ler claramente, mas a sua gravidade sombria punha-o agora pouco à vontade. -E tu? Tencionas realmente ir comigo? Correndo o risco de ires demasiado longe para poderes voltar? Tu sabes que eu teria todo o gosto em tratar da tua incumbência por ti. Se for possível saber alguma coisa sobre Olivier, eu descobri-lo-ei. Não há necessidade de pôr em risco aquilo que eu sei que prezas tanto como a própria vida.

- A vida de Olivier - disse Cadfael - ainda tem mais de metade do seu percurso a percorrer, com a graça de Deus, e tem mais valor do que os meus anos exaustos. E tu tens o teu próprio dever a cumprir, tal como eu tenho o meu. Sim, eu vou. Ele sabe isso. Ele não promete nada nem ameaça nada. Ele disse que, se eu for para além de Coventry, estarei por minha própria conta, mas não disse o que faria se estivesse no meu lugar. E uma vez que eu não vou a seu pedido, irei sem qualquer ajuda da sua parte, se tu me arranjares um cavalo e uma capa, e puseres comida na minha sacola.

- E uma espada e uma enxerga da sala da guarda depois - disse Hugh pondo de parte a solenidade -, se o mosteiro te expulsar. Depois de termos recuperado Olivier, claro.

A simples referência ao nome fez surgir perante os olhos de Cadfael o primeiro relance que tivera do seu filho desconhecido, visto por cima do ombro de uma rapariga através do postigo aberto do portão do priorado de Bromfield, na neve de um Inverno cruel. Um rosto comprido, magro mas suave, testa larga, com um nariz fino e uma boca em arco, orgulhosa e vívida, com os olhos negros e dourados de um falcão e cabelo preto azulado. Cor de azeitona dourada, esculpido num belo bronze, muito belo. O filho de Mariam tinha o rosto de Mariam e fazia jus à sua memória. Tinha catorze anos quando deixara Antioquia depois dos rituais funerários da mãe e fora para Jerusalém para se juntar à fé do pai, que ele só vira através dos olhos de Mariam. Tinha agora trinta anos, ou estava lá perto. Talvez ele próprio já fosse pai, através da rapariga Ermina Hugonin que ele guiara até Bromfield através da neve. A família nobre dela tinha visto o seu valor e tinham-lha dado em casamento. Agora ela e, possivelmente, o seu neto, sentia a sua ausência. Isso era impensável, e ele não podia encarregar mais ninguém de resolver o assunto.

- Bem - disse Hugh -, não será a primeira vez que eu e tu viajamos juntos. Apronta-te, então, ainda tens três dias para resolver os diferendos com Deus e com Radulfus. E, pelo menos, vou-te arranjar o melhor cavalo dos estábulos do castelo, em vez de uma mula da abadia.

No interior do enclave havia sentimentos mistos entre os irmãos a respeito do empreendimento de Cadfael, levado a cabo com apenas uma autorização parcial e limitada e sem qualquer promessa de submissão aos termos concedidos. O Prior Robert tinha comunicado no capítulo as condições precisas estipuladas para a ausência de Cadfael, limitada à duração da conferência de Coventry, e tinha dado ênfase a essa rígida condição, como se pensasse que ela já estava ameaçada. Ele não tinha grande culpa, pois a insinuação estava contida nas instruções incompletas do abade. Quando ao motivo por que a sua viagem fora autorizada, embora com relutância, não tinha havido qualquer explicação. A confidência de Cadfael era entre Cadfael e Radulfus.

A curiosidade insatisfeita tinha dado as piores interpretações aos factos que tinham sido tornados públicos. Houve uma sensação de choque, olhos magoados viraram-se silenciosamente para um irmão que já era quase um renegado. Havia receio nas reacções de alguns que eram monges desde a infância, e ciúme entre outros que tinham vindo mais tarde e que, por vezes, se sentiam desconfortáveis na sua reclusão. Embora o Irmão Edmund, o enfermeiro, ele próprio um oblato aos quatro anos, tivesse aceitado com lealdade o que o intrigava no seu irmão e estivesse preocupado apenas com o facto de perder o seu farmacêutico durante algum tempo. E o Irmão Anselmo, o chantre, que reagia a poucas perturbações para além de uma nota desafinada ou uma dor de garganta entre as suas melhores vozes, aceitava todos os outros acontecimentos com a mais completa serenidade, pensava sempre o melhor, desejava sorte a todos os homens e desistia de se preocupar.

O Prior Robert reprovava qualquer desvio às Regras rígidas e há anos que discordava do que ele considerava serem privilégios concedidos ao Irmão Cadfael, a liberdade de ele se mover entre os habitantes de Foregate e da cidade quando havia uma doença a ser combatida. E tinha havido uma altura em que o capelão, o Irmão Jerome, se teria empenhado a deitar achas na fogueira do ressentimento do prior, mas o Irmão Jerome tinha sofrido um choque que demolira a satisfação com a sua própria imagem, e emergira de uma longa penitência privado do seu cargo de confessor dos noviços e reduzido a uma surpreendente humildade. De momento, pelo menos, ele era de um convívio muito mais fácil e menos vociferante a condenar os erros dos outros. Sem dúvida que, com o tempo, ele recuperaria a sua beatice normal mas, naquela ocasião, Cadfael foi poupado a qualquer censura.

Assim, a disputa mais difícil que Cadfael teve que travar foi, afinal, consigo próprio. Ele tinha, de facto, feito os votos e, quando pensava em abandonar o campo que escolhera, sentia os laços com que eles o prendiam ficar mais apertados. Ao apresentar o seu caso ao abade, ele limitara-se a dizer a verdade. Tudo fora feito e dito abertamente. Mas será que isso o absolvia? O Irmão Edmund e o Irmão Winfrid teriam que manter a sua oficina, preparar os medicamentos, fornecer o hospital dos leprosos em S. Giles, tratar do herbário, fazer não só o seu próprio trabalho, mas também o dele.

Tudo isso, se o seu afastamento persistisse para além do tempo que lhe fora atribuído. Ao pensar nessa possibilidade, ele sabia que estava à espera de que isso acontecesse. Assim, a decisão, antes sequer de ele ter passado os portões, continha em si a gravidade da vida e morte.

Mas, mesmo assim, ele sabia que prosseguiria.

Na manhã combinada, Hugh veio buscá-lo imediatamente após a hora de Prima, acompanhado por três dos seus oficiais, todos com boas montadas, e trazendo um cavalo para Cadfael. Hugh reparou, com satisfação, que os olhos gravemente preocupados do seu amigo se animaram perceptivelmente com uma expressão de aprovação ao ver um belo ruano alto, quase da altura do cavalo cinzento de Hugh, com um passo brioso, um olhar arrogante e uma lista branca estreita ao longo do aristocrático nariz. Envergando uma capa e botas, Cadfael apertou os alforges à sua frente e montou com alguma rigidez, mas com um prazer óbvio. Por consideração para com ele, Hugh absteve-se de oferecer ajuda. Sessenta e seis é uma idade que merece respeito e deferência por parte dos jovens, mas os que atingem essa idade nem sempre gostam de ser recordados desse facto.

Quando passaram o portão, não havia ninguém a observá-los abertamente, embora pudesse haver olhos fixos neles oriundos do claustro ou da enfermaria, ou até mesmo dos aposentos do abade. Era melhor seguir a rotina regular do dia como se aquele dia fosse igual a qualquer outro, e ninguém duvidasse de que o irmão que partia iria regressar na altura devida e retomar os seus deveres como antes. E se a paz voltasse para casa com ele, seria ainda mais bem-vindo.

Uma vez passada S. Giles, com a cidade e Foregate atrás deles e a cadeia de colinas escarpadas de Wrekin à sua frente, o coração de Cadfael sentiu-se mais leve, resignado, aberto, sem quaisquer ressentimentos, a tudo o que viesse. Havia consolações. Com Dezembro à porta, os campos ainda estavam verdes, o tempo estava ameno, não havia vento, ele tinha um bom cavalo debaixo de si, e montar ao lado de Hugh era um prazer cheio de memórias partilhadas. A estrada era ampla e segura, e o caminho que seguiriam era familiar a ambos, pelo menos até à floresta de Chenet, e Hugh tinha partido três dias antes o conselho se reunir formalmente.

- Vamos seguir calmamente - disse ele - e chegaremos lá cedo. Gostaria de ter uma palavra com Robert Bossu antes de ser dita alguma coisa oficialmente. Talvez até encontremos Ranulf de Chester quando pernoitarmos em Lichfield. Ouvi dizer que ele tinha alguns conselhos de última hora para dizer ao ouvido do seu meio-irmão de Lincoln. William está a tomar conta dos bens de ambos no norte enquanto Ranulf veio ao conselho em Coventry.

- Ele fará bem em não fazer alarde dos seus êxitos - disse Cadfael num tom pensativo. - Deve estar a reunir-se um grande número dos seus inimigos.

- Oh, ele ainda anda a fazer-lhes a corte. Durante estas últimas semanas, ele distribuiu sensatamente várias concessões a barões a quem, no ano passado, roubara terras e privilégios. Mudar de partido - disse Hugh com cinismo -, tem custos. O rei é apenas o primeiro que ele tem que seduzir, e o rei tende a receber aliados de olhos fechados e braços abertos, e a dar em vez de receber. Os que sempre o apoiaram e viram Ranulf desprezá-lo não irão sair tão baratos. Alguns deles aceitarão os doces que ele oferecer, mas abster-se-ão de entregar a mercadoria que ele pensa que está a comprar. Se eu fosse a Ranulf, portar-me-ia com muita humildade durante cerca de um ano.

Ao fim da tarde, quando entraram no recinto das salas de convidados da diocese de Lichfield, havia bastante animação e viam-se várias divisas de nobres entre os cavalariços e os criados que ocupavam os alojamentos comuns onde os soldados de Hugh descansaram. Mas não havia nenhum de Chester. Ou Ranulf tinha seguido por outro caminho, talvez directamente da casa do seu meio-irmão em Lincoln, ou ia já à frente deles e estava de volta ao seu castelo de Mountsorrel, perto de Leicester, a fazer planos para o conselho. Para ele, não era tanto uma tentativa de fazer a paz, como uma oportunidade de garantir a sua aceitação no que ele imaginava que seria o lado vencedor numa vitória total.

Antes das Completas, Cadfael saiu para o frio do crepúsculo e virou para sul, para o local onde as superfícies lustrosas dos tanques da igreja brilhavam com uma soturna luz de chumbo na planura, e o espaço recentemente desbravado em que a igreja saxónica fora erguida parecia ainda uma cicatriz difícil de sarar. Dando continuidade ao trabalho nas fundações iniciado anos antes, Roger de Clinton tinha aprovado a escolha de um local mais distante e estável para um peso projectado muito superior ao que S. Chad, o primeiro bispo, alguma vez imaginara. Cadfael virou na orla do terreno sagrado, abençoado pelo ministério de um dos prelados mais meigos e mais amados, e olhou para trás, para o volume maciço da nova catedral de pedra, cuja construção mal terminara, se é que a sua ornamentação e ampliação alguma vez chegaria ao fim. O longo telhado da nave e a torre central quadrada recortavam-se, como uma lâmina, de encontro ao céu mais pálido.

O coro era pequeno e terminava numa abside. Pelas janelas altas do extremo ocidental, abertas em paredes robustas como as de uma fortaleza, passavam alguns raios oblíquos de luz. Invisíveis sob essas paredes, ainda havia marcas do alojamento dos pedreiros e cicatrizes da pedra e da madeira armazenadas, bem como uma pilha de pedra de cantaria no local de onde as bancadas de trabalho tinham sido retiradas. Agora, o homem que tinha construído aquele castelo a Deus estava muito preocupado com a Cristandade e os seus pensamentos já se encontravam longe, na Terra Santa.

A luz trémula cintilava na orla do tanque quando Cadfael voltou para trás, para assistir às Completas. Quando entrou no recinto, encontrou-se novamente entre homens, figuras sombrias que passaram várias vezes por ele e lhe falaram com cortesia, mas não tinham rostos reconhecíveis na escuridão que se avolumava. Cónegos, acólitos, membros do coro, hóspedes do alojamento comum e do salão, devotos habitantes da cidade que chegavam para o ofício religioso do fim de tarde, desejando terminar o dia da melhor maneira. Ele sentiu-se cercado por uma enorme nuvem de testemunhas, e não tinha a menor importância que a alma de todas elas estivesse concentrada noutros problemas e o ignorasse completamente. Tantas necessidades ardentes juntas certamente que abalariam os céus.

No interior da enorme nave, algumas figuras fantasmagóricas moviam-se silenciosamente na penumbra, ocupadas com as tarefas da igreja. Ainda era cedo, apenas as lamparinas dos altares brilhavam como pequenos olhos vermelhos, embora um diácono estivesse a acender as velas no coro e, uma após outra, as chamas se elevassem no ar parado.

De pé, em frente de um altar lateral, onde as velas tinham acabado de ser acendidas, estava um jovem inconfundivelmente secular. Não estava armado, mas o cinto que usava mostrava a bela bainha para a espada e para o punhal, e o seu casaco escuro, embora semelhante ao de um assalariado, era de um bom tecido e tinha um excelente corte. Era um jovem forte que estava imóvel e olhava fixamente para a cruz, com uma expressão tão ansiosa e insistente que certamente que estava a rezar, gravemente absorto. Ele estava de lado, pelo que Cadfael não conseguia ver-lhe o rosto, e seguramente que não se recordava de ter visto o homem antes. No entanto, parecia haver algo curiosamente familiar no corpo entroncado e no movimento da sua cabeça, como se ele projectasse o queixo em direcção ao Deus a quem suplicava e com quem argumentava, como se este fosse um seu igual a quem ele tivesse o direito de pedir ajuda para uma causa importante.

Cadfael deslocou-se um pouco para ver o perfil imóvel e, nesse mesmo momento, a chama deve ter atingido um fio puído e uma das velas flamejou subitamente e lançou uma luz abrupta sobre o rosto do jovem. Durou apenas um instante, pois ele ergueu a mão e esmagou o fio entre o dedo médio e o polegar, e a chama baixou e tornou-se novamente regular. Um perfil forte, inteligente, com um nariz recto e um queixo firme, um jovem de nascimento nobre e bem consciente do seu valor. Cadfael deve ter feito um pequeno movimento na orla do campo de visão do rapaz quando a chama flamejou, pois subitamente ele virou-se e mostrou o rosto inteiro, ainda cheio de juventude à volta das faces e dos olhos sinceros, olhos castanhos bem afastados por baixo de uma testa larga e uma espessa cabeleira castanha.

O olhar espantado com que ele fitou Cadfael foi rápida e cortesmente desviado. Ao regressar ao seu silencioso diálogo com o seu criador, o jovem ficou subitamente tenso e virou-se novamente, desta vez para olhar tão ingénua e abertamente como uma criança. Ele abriu aboca para falar, esboçou um sorriso ansioso, retraiu-se momentaneamente, invadido pela dúvida, depois decidiu-se.

- Irmão Cadfael? É o Irmão?

Cadfael pestanejou e voltou a olhar, mas ficou a saber o mesmo.

- Não se pode ter esquecido - disse o jovem num tom alegre, seguro de não ser facilmente esquecido. - O Irmão levou-me a Bromfield. Faz agora seis anos. Olivier veio buscar-me, a mim e a Ermina. Eu mudei, claro que mudei, mas o Irmão não mudou... está exactamente na mesma.

À luz das velas, agora firme e clara entre eles, os seis anos dissolveram-se como neblina, e Cadfael reconheceu naquele jovem forte e entroncado a criança forte e entroncada que conhecera na floresta entre Stoke e Bromfield num Dezembro rigoroso, e que ajudara a chegar são e salvo a Gloucester, acompanhado pela irmã. Nessa altura, ele tinha treze anos, agora tinha quase dezanove, e era tão vivo, seguro de si e ousado como prometera vir a ser nesse primeiro encontro.

-Yves? Yves Hugonin! Ah, agora estou a ver... Afinal, não estás assim tão mudado. Mas o que fazes aqui? Pensei que estivesses algures a oeste, em Gloucester ou Bristol.

- Eu fui a Norfolk ao serviço da imperatriz, falar com o conde. Ele já deve ir a caminho de Coventry. Ela precisa de se fazer rodear pelos seus aliados, e Hugh Bigod tem mais peso junto dos barões do que a maioria deles.

- E vais juntar-te ao grupo dela lá?-perguntou Cadfael, muito satisfeito. - Podemos ir juntos. Estás cá sozinho? Então já não estás sozinho, pois é uma alegria voltar a ver-te, e com tão bom aspecto. Eu estou cá com o Hugh, e ele ficará tão satisfeito de te ver quanto eu.

- Mas como é que - perguntou Yves, radiante - conseguiu vir até cá? - Ele segurava Cadfael com as duas mãos, apertando-as calorosamente. - Eu sei que da última vez o mandaram chamar para salvar um homem ferido, mas que artes utilizou para o deixarem vir a uma conferência de Estado como esta? Embora, se houvesse mais homens iguais a si, e todos eles delegados-acrescentou ele num tom pesaroso - talvez houvesse mais esperança de um acordo. Estou muito satisfeito de o ver, mas como é que conseguiu?

- Tenho autorização para estar ausente até ao fim da conferência - disse Cadfael.

- Com que fundamento? Não é fácil convencer os abades.

- O meu, permite-me um tempo limitado, mas marca um período que eu não posso infringir - disse Cadfael. - Tive autorização para ir à reunião de Coventry por um motivo, procurar saber notícias de um dos prisioneiros de Faringdon. No local em que os príncipes estão reunidos, certamente que terei notícias dele.

Ele não tinha mencionado qualquer nome, mas o rapaz tinha ficado tão intensamente rígido que todos os traços do seu rosto jovem ficaram tensos e adquiriram uma enorme maturidade. Ele ainda estava a crescer, ainda não estava plenamente formado, mas já havia dentro de si um homem a arder como um fogo ateado, quando dominado por uma emoção.

- Eu acho que andamos em busca do mesmo - disse ele. - Se está à procura de Olivier de Bretagne, eu também estou. Eu sei que ele estava em Faringdon, sei, tal como todos os que o conheciam sabem, que ele nunca alteraria a sua fidelidade, e sei que o esconderam de modo a estar fora do nosso alcance. Ele já foi meu campeão e meu salvador, agora é meu irmão, a minha irmã vai ter um filho dele. Mais próximo de mim do que a minha própria pele e tão caro como o meu sangue, como é que poderei descansar - disse Yves - até saber o que lhe fizeram e conseguir tirá-lo do cativeiro?

- Eu estive com ele, até terem colocado a guarnição em Faringdon - disse Yves. - Estive com ele desde que comecei a empunhar armas, e nunca quis separar-me dele, e ele, na sua generosidade, manteve-me perto de si. Desde que ele e a minha irmã se casaram que ele tem sido um pai e um irmão para mim. Agora Ermina está sozinha em Gloucester, e grávida.

Sentaram-se os três num banco por baixo de um dos archotes do salão dos convidados, Hugh, Cadfael e o rapaz, no último silêncio da noite depois das Completas, rodeados por recordações a pairar na semi-obscuridade que a luz dos archotes não conseguia alcançar. Yves tinha feito a sua busca sozinho desde que a queda de Faringdon tinha atirado o seu amigo para o limbo, sem resgate, sem constar das listas, só Deus sabia onde ele estava. Era um alívio agora abrir o seu coração e falar sobre tudo o que sabia ou adivinhava aos que, como ele, gostavam de Olivier de Bretagne. Os três juntos certamente que fariam mais do que uma pessoa só.

- Quando a construção de Faringdon terminou, Robert de Gloucester levou as suas forças consigo e deixou o campo livre para o filho, e Philip nomeou Brien de Soulis castelão de Faringdon e deu-lhe uma guarnição forte, retirada de várias bases. Olivier estava entre eles. Nessa altura, eu encontrava-me em Gloucester, senão teria ido com ele; mas eu estava em missão da imperatriz, e esta manteve-me junto dela. A maior parte dos membros da sua casa ainda se encontravam em Devizes, e estávamos poucos com ela. Depois ouvimos dizer que o rei Stephen tinha trazido um grande exército para sitiar o novo castelo e aliviar a pressão sobre Oxford e Malmesbury. E o que soubemos a seguir foi que Philip estava a enviar mensageiros ao pai, uns atrás dos outros, para que trouxesse reforços para salvar Faringdon. Mas ele nunca o fez. Porquê? - perguntou Yves num tom de desespero. - Porque é que ele não o fez? Só Deus sabe! Estaria ele doente? Estará ainda doente? Eu compreendo que ele estivesse muito cansado, mas ficar inactivo nesse momento, quando era mais necessário!

- Pelo que eu ouvi dizer - disse Hugh -, Faringdon estava bem defendido. Guarnecido recentemente, bem abastecido. Mesmo sem Robert, certamente que teria podido resistir. O meu rei, por muito que eu goste dele, não é conhecido pela sua tenacidade nos cercos. Ele ter-se-ia cansado e avançado para outro local. Um forte recentemente abastecido demora muito a ser vencido pela fome.

- Ele podia ter resistido - disse Yves com tristeza. - Não havia necessidade de se ter rendido, isso foi feito intencional e premeditadamente. Se Philip estava ou não envolvido no plano, isso é algo que só Philip sabe. Porque o que aconteceu certamente que aconteceu sem a sua presença, mas se foi contra a sua vontade é outra questão. De Soulis é uma pessoa reservada. Seja como for, houve conivência entre os líderes que tinham forças no interior e os sitiantes no exterior, e subitamente a guarnição foi chamada a testemunhar que todos os seus seis comandantes tinham chegado a acordo para efectuar a rendição do castelo, e foi mostrado aos seus homens o acordo feito e selado pelos seis, e talvez eles tivessem aceite o que os seus senhores tinham decidido. E isso deixou os cavaleiros e os escudeiros sem apoio, sujeitos a serem desarmados e feitos prisioneiros, a não ser que também aceitassem o acordo. As forças do rei já se encontravam no interior dos portões. Trinta jovens foram entregues, como pagamento, aos aliados de Stephen e desapareceram. Alguns já reapareceram, tendo os seus familiares e amigos comprado a sua liberdade. Mas Olivier não.

- Isso sabemos nós - disse Hugh. - O conde de Leicester tem a lista completa. Ninguém propôs o resgate de Olivier. Ninguém disse quem o tem, embora alguém deva saber.

- O meu tio Lawrence tem perguntado por todo o lado - concordou Yves -, mas não consegue saber nada. E ele está a ficar mais velho, e é necessário em Devizes, onde ela tem agora a corte. Mas eu tenciono falar abertamente no assunto em Coventry e obter uma resposta. Eles não podem negar-ma.

Cadfael, que escutava em silêncio, abanou um pouco a cabeça, quase num gesto de ternura pela confiança tão inocente. O rei e imperatriz, com a vitória absoluta, ainda que imaginada, quase à vista, dariam provavelmente menos prioridade a uma questão de simples justiça individual do que aquele rapaz supunha. Ele era jovem, inocente, de nascimento nobre, e tinha a serena consciência do seu direito a ser tratado com justiça e cortesia. Ainda iria ter alguns rudes despertares antes de estar plenamente armado contra o mundo e contra o diabo.

- E depois - disse Yves, com azedume -, Philip entregou Cricklade inteiro ao rei Stephen, ele próprio, a sua guarnição, armas, armaduras e tudo mais. Não consigo imaginar o que o terá levado a fazê-lo. Estou farto de pensar, de tentar imaginar por que motivo o fez, o que o levou a isso. Seria uma simples reflexão de que estava a cada vez mais no lado perdedor e que a mudança poderia melhor a sua fortuna? A sangue-frio? Ou a sangue muito quente, ressentido contra o pai por este ter deixado Faringdon entregue à sua sorte? Foi ele que traiu Faringdon? Este foi entregue em cumprimento de ordens suas? Não consigo imaginar o que ele estaria a pensar.

- Mas, pelo menos, tu já o viste - disse Hugh - e estiveste ao seu serviço. Eu nunca lhe pus a vista em cima. Mesmo que não consigas justificar o que ele fez, embora tenhas servido a seu lado, deves ter alguma opinião sobre ele, como um homem tem sobre outro que é seu aliado. Que idade terá ele? Certamente que mal terá dez anos mais do que tu.

Yves afastou impacientemente a perplexidade que o dominava e reflectiu durante algum tempo.

- Cerca de trinta anos. William, o herdeiro de Robert, deve ser alguns anos mais velho. Philip é um homem sossegado... tinha os seus momentos taciturnos, mas era um bom oficial. Se alguma vez pensasse em responder a uma pergunta dessas, eu diria que gostava dele. Nunca acreditaria que ele seria um vira-casacas... certamente que nunca por lucro ou medo...

-Esquece isso-disse Cadfael, apaziguador, vendo que o rapaz insistia precisamente naquilo que não conseguia compreender. -Aqui estamos nós três, nada interessados em que Olivier continue sem ser resgatado. Esperemos por Coventry, e vejamos o que conseguiremos descobrir lá.

Partiram para Coventry a meio da tarde do dia seguinte, um belo dia fresco com raios de sol pouco quentes. Durante algum tempo, o prazer da viagem tinha distraído Yves da sua obsessão, animado os seus olhos e colocado cor nas suas faces. Ao aproximarem-se da cidade pelo lado norte, encontraram as defesas antigas do conde Leofric, ainda de madeira mas suficientemente resistentes, e o emaranhado de ruas no interior bem pavimentadas e cuidadas desde que os bispos tinham feito desta cidade a base principal da sua sé. Embora gostasse mais de Lichfield, Roger de Clinton tinha continuado esta prática pois, naqueles tempos perturbados, Coventry estava mais próxima do centro da desavença e mais sujeita aos ataques esporádicos de exércitos rivais, e ele não era homem para se manter afastado do perigo quando este atacava o seu rebanho.

E certamente que a sua temível presença tinha conferido à cidade alguma protecção mas, apesar disso, viam-se algumas cicatrizes e estragos ao longo das ruas, bem como, ocasionalmente,, um espaço vazio no local em que uma casa tinha sido destruída até aos seus alicerces e ainda não fora substituída. Num país que, há já alguns anos, era disputado pelas armas por dois primos muito pouco fraternos, não era de admirar que inimigos privados e vizinhos igualmente cobiçosos se juntassem para saquear por sua própria conta, independentemente de qualquer das facções. Até mesmo o pequeno castelo de madeira do conde de Chester mostrava algumas cicatrizes, não sendo adequado para alojar o tipo de séquito que ele tencionava trazer à mesa da conferência, muito menos para receber o rei recentemente apaziguado com quem se reconciliara. Ele preferiria a distância discreta de Mountsorrel para continuar a cortejá-lo.

A cidade estava dividida entre dois senhores, a metade do prior e a metade do conde e, de tempos a tempos, ouviam-se alguns resmungos e expressões de descontentamento sobre os diferentes privilégios de que cada uma delas gozava, mas havia uma assembleia partilhada e reconhecida pelos habitantes da cidade e, de um modo geral, eles conviviam com razoável cordialidade. Em Inglaterra, havia poucas cidades mais prósperas e nenhuma delas tão esforçada e atenta às oportunidades. Isso era patente na azáfama das ruas. Comerciantes e lojistas estavam atarefados a colocar a sua mercadoria da forma mais aliciante, a fim de atrair o olhar da nobreza reunida. Era duvidoso que estivessem à espera que a reunião demorasse muito ou que produzisse qualquer avanço em direcção à paz, mas negócio é negócio e, quando os condes e os barões se reuniam, havia dinheiro a ganhar.

Havia flâmulas ilustres a esvoaçar nas frentes das casas e belas librés a passar a cavalo na direcção dos portões do priorado e das casas de repouso para peregrinos. Coventry possuía as relíquias do seu próprio Santo Osburg, bem como um braço de Santo Agostinho e muitas outras relíquias menores, e prosperava com os seus peregrinos desde que fora fundada, há mais de cem anos. Este actual ajuntamento de ricos e poderosos, pensou Cadfael observando os testemunhos da sua presença por todo o lado, não iria certamente, por uma questão de reputação, partir sem dar uma recompensa lucrativa pela recepção que lhes tinha sido feita e pela hospitalidade da igreja.

Seguiram tranquilamente através do ruído e da azáfama das ruas e, muito antes de terem chegado ao portão do Priorado de Santa Maria, Yves tinha começado a mostrar entusiasmo, animado pelo ambiente de excitação e esperança que fazia com que a cidade tivesse um ar acolhedor e que a possibilidade de reconciliação parecesse um pouco mais próxima. Ele dizia o nome das insígnias e das bandeiras desconhecidas que eles encontravam no caminho e trocava saudações com pessoas do seu próprio partido e estatuto social, jovens ao serviço dos seguidores fiéis da imperatriz.

- Hugh Bigod apressou-se a vir de Norfolk, ele chegou cá antes de nós... Aqueles são alguns dos seus homens. E ali, estão a ver aquele homem no cavalo preto? É Reginald FitzRoy, meio-irmão da imperatriz, o mais novo, aquele que Philip prendeu há menos de um mês e que o rei o obrigou a libertar. Gostaria de saber - disse Yves - como é que Philip se atreveu a tocar-lhe, com a mão de Robert sempre a protegê-lo, pois eles mostram-se muito fraternais um com o outro. Mas, justiça lhe seja feita, Stephen joga com lealdade. Ele concedeu salvo-condutos e honrou-os.

Tinham chegado ao portão largo do enclave do priorado e virado para o enorme pátio cheio de cor e movimento. Os poucos irmãos beneditinos que ali viviam e que estavam a fazer o possível por levar a cabo as suas tarefas e cumprir o horário do dia sentiam-se totalmente perdidos no meio da multidão dos magnatas visitantes e dos seus servidores, alguns a chegar, outros a sair para ver a cidade ou visitar conhecidos, cavalariços a ir e vir com cavalos nervosos e tensos no meio de tanta gente, escudeiros a tirar as selas e a descarregar a bagagem dos seus senhores. Hugh, ao entrar, afastou-se para o lado para deixar passar um cavaleiro alto, com um traje esplêndido e uma boa escolta, que acabara de montar para prosseguir caminho.

- Roger de Hereford - disse Yves, com um ar satisfeito -, o novo conde. Foi o pai dele que foi morto num acidente de caça, há dois anos. E o homem que está a olhar para trás, ali dos degraus, é o administrador da imperatriz, Humphrey de Bohun. Ela já deve ter chegado...

Ele interrompeu-se abruptamente e ficou rígido, com a boca aberta, sem terminar a frase, e de olhos fixos, numa expressão de incredulidade. Cadfael, seguindo a direcção do olhar do rapaz, viu um homem a descer os degraus de pedra do salão dos convivas no outro lado da rua. Durante algum tempo, foi a única figura na escada larga e bem visível acima da multidão que se movia abaixo dele. Era um homem muito apresentável, magro, que se movimentava com uma arrogância elegante, de cabeça loura descoberta e uma capa curta a balouçar de um ombro. Devia ter cerca de trinta e cinco anos e mostrava-se bem seguro do seu valor. Ele chegou às pedras do pátio e a multidão abriu-se para o deixar passar, como se reconhecesse o valor que ele atribuía a si próprio. Mas não havia seguramente nada ali que fizesse com que Yves parasse e ficasse a olhar, contraindo as sobrancelhas numa expressão de animosidade.

- Ele? - disse Yves por entre os dentes. - Como é que ele se atreve a mostrar a cara aqui? - E subitamente o seu gelo derreteu-se em fogo e, num salto, desmontou e lançou-se para o caminho do desconhecido, com a espada desembainhada e erguida num gesto de desafio, fazendo com que os cavalariços e os cavalos se afastassem do seu caminho. O tom da sua voz era alto e duro.

- Tu, De Soulis! Traidor da tua causa e dos teus camaradas! Como é que te atreves a aparecer no meio de homens honestos?

Durante um instante de choque, todas as outras vozes no interior do pátio se calaram. No instante seguinte, todas as vozes se ergueram num clamor de alarme, protesto e indignação. E ao mesmo tempo que o primeiro embate levava as pessoas a fugir do vórtice, uma reacção imediata levou muitos para o seu interior, para tentar impedir o conflito. Mas De Soulis tinha dado meia volta para enfrentar o autor do desafio e tinha a espada desembainhada na mão, a descrever círculos à sua volta para ter espaço para se defender. E de seguida, eles começaram a lutar, com o aço a bater estridentemente no aço.

 

Hugh desmontou com um salto, atirando as rédeas do seu cavalo a um cavalariço, e mergulhou no anel de gente assustada que rodeava os dois adversários, fora do alcance das espadas. Cadfael seguiu-o com uma paciência resignada mas sem pressa, uma vez que pouco mais poderia fazer do que Hugh para pôr termo ao distúrbio. A disputa não poderia durar tempo suficiente para ser mortal, havia demasiados poderes, tanto reais como clericais, a residir ali para permitir que algo tão inconveniente acontecesse e, pelo barulho que agora ecoava de todos os lados, de parede a parede, à volta do pátio, todos esses poderes estariam presentes e loquazes dentro de minutos.

No entanto, depois de os seus pés terem penetrado apressadamente na multidão, avançou até onde pôde, não fosse surgir uma oportunidade de agarrar numa manga e retirar um dos combatentes para fora de perigo. Se aquele era realmente De Soulis, o renegado de Faringdon, ele tinha uma dúzia de anos de vantagem sobre Yves e mostrava ser demasiado activo e com demasiada prática com a espada. A experiência vê-se. Cadfael avançou vigorosamente, vagamente consciente de uma enorme voz a gritar atrás dele, algures ao portão, bem como do lampejo de cores brilhantes acima dele à porta do salão de hóspedes, mas estava tão preocupado em atravessar o círculo, que não reparou na mais eficaz intervenção de todas até esta ter sido lançada sem qualquer aviso por cima do seu ombro esquerdo, cruzando os ares até ao círculo do duelo.

Um enorme bastão passou vigorosamente por ele, afastando os corpos para abrir caminho. Um braço comprido seguiu-o, bem como um corpo longo, magro e vigoroso, e a prata lampejou na ponta do bastão, batendo nas espadas e empurrando-as para cima, magoando as mãos que as seguravam. Yves largou a sua, e a lâmina tiniu e ecoou no empedrado do chão. De Soulis conseguiu segurar a sua com uma estocada, mas o cabo tremeu-lhe na mão, e ele deu um salto para trás, fora do alcance do pesado engaste de prata na ponta do bastão que estava agora no meio deles. Fez-se silêncio.

- Ergam as vossas armas - disse o bispo Roger de Clinton, sem sequer erguer a voz. - Deviam ter vergonha de desembainhar armas no interior deste recinto. Estão a colocar as vossas almas em perigo. O nosso objectivo aqui é a paz.

Os adversários estavam parados, ofegantes, Yves corado e ainda meio rebelde, De Soulis a olhar para o seu atacante com um sorriso gélido e olhos semicerrados.

- Meu senhor - disse ele, num tom cortês -, eu não tinha intenção de cometer qualquer ofensa até este precipitado jovem me atacar. Sem qualquer motivo que eu consiga imaginar, pois nunca o vira antes. - Ele embainhou calmamente a espada, com um gesto de reverência deliberadamente cerimonioso na direcção do bispo. - Ele chega aqui vindo da rua, um desconhecido, e começa a insultar-me como um arruaceiro. Desembainhei a espada para salvar a minha cabeça.

- Ele sabe muito bem - exclamou Yves, inflamado - porque é que eu lhe chamo vira-casaca, renegado, traidor de homens melhores. Há valorosos cavaleiros em masmorras de castelos por causa dele.

- Silêncio! - disse o bispo, sendo imediatamente obedecido. - Quaisquer que sejam as vossas brigas, elas não têm lugar no interior destas muralhas. Nós estamos aqui para resolver todas essas divisões entre homens honrados. Apanha a tua espada. Embainha-a! Não voltem a desembainhá-la neste terreno sagrado. Qualquer que seja a provocação! Ordeno-vos, em nome da Igreja! E aqui estão aqueles que vos ordenarão o mesmo, como vossos soberanos e senhores.

A potente voz que tinha gritado ordens quando passara o portão e se deparara com aquele desagradável espectáculo tinha avançado para o círculo subitamente emudecido, na forma de um homem grande, louro, autoritário e muito zangado. Cadfael reconheceu-o de imediato de uma reunião ocorrida anos antes no acampamento que cercava Shrewsbury, embora os anos entretanto decorridos tivessem semeado alguns fios de cinza no seu cabelo louro e rugas de ansiedade e preocupação no seu belo rosto. O rei Stephen, rapidamente inflamado, rapidamente apaziguado, corajoso, impetuoso mas inconstante, um homem bom e generoso que passara todos os dias do seu reino numa guerra destrutiva.

E, nesse mesmo momento, Cadfael compreendeu que aquele lampejo de cores garridas à porta do salão dos hóspedes era, devia ser, a mulher que desafiava a soberania de Stephen. Alta e muito direita contra a semiobscuridade do interior do salão, esplendidamente vestida e na sua orgulhosa plenitude, ali estava a única descendente legítima viva do velho rei Henrique, Imperatriz Maud pelo primeiro casamento, condessa de Anjou pelo segundo, a Rainha não coroada dos Ingleses.

Ela não se dignou a descer até eles e deixou-se ficar imóvel, a observar a cena com um olhar desinteressado e ligeiramente desdenhoso, apenas inclinando a cabeça para reconhecer a reverência do rei. Ela era muito bela, com o cabelo escuro e farto debaixo da rede dourada da touca, os olhos grandes e directos, tão perturbadores como o olhar directo de um santo bizantino num mosaico, e igualmente indiferentes. Já tinha mais de quarenta anos, mas era resistente como o mármore.

- Não digam nada, nenhum dos dois - disse o rei, destacando-se acima dos transgressores, até mesmo do bispo, que era considerado alto pela maior parte dos homens -, pois não vos escutaremos. Aqui estão sujeitos à disciplina da Igreja, e é bom que o reconheçam. Guardem as vossas brigas para outra altura e outro local ou, melhor ainda, esqueçam-nas para sempre. Não há lugar para elas aqui. Senhor bispo, dai as vossas ordens agora sobre a questão de andar armado, e anunciai-as formalmente quando presidirdes à reunião no salão amanhã. Proibi todas as armas, se quiserdes, ou estabelecei regras rígidas sobre o seu uso, e certificar-me-ei de que quem transgredir as regras será severamente castigado.

- Eu não me atreveria a privar qualquer homem do direito de andar armado - disse o bispo com firmeza. - Eu posso, com uma justificação plena, tomar medidas para regulamentar o seu uso no interior destas muralhas e durante estas importantes conversações. Algumas espadas podem ser usadas na cidade como é habitual, alguns homens poderão sentir-se incompletos sem a sua espada. - A sua figura vigorosa e o rosto aquilino poderiam pertencer tanto a um guerreiro como a um bispo. E não se dizia a seu respeito que ele estava decidido a desempenhar mais do que um papel passivo na defesa do reino cristão de Jerusalém? - No interior destas muralhas - disse ele lentamente -, as espadas não devem ser desembainhadas. E no interior do salão, durante as reuniões, nem sequer devem ser usadas, mas sim deixadas nos aposentos. E não deve ser usada qualquer arma nos gabinetes da Igreja. Qualquer que seja o desfecho, nenhum homem deve desafiar outro homem com uma arma, qualquer que seja o motivo, até os que aqui estão reunidos se terem novamente separado. Isto satisfaz Vossa Graça?

- Satisfaz - disse Stephen. - Isso serve bem. Os cavalheiros devem tê-lo em mente e obedecer.-Os seus luminosos olhos azuis percorreram-nos enquanto lhes fazia o aviso impessoal. Nenhum dos rostos significava alguma coisa para ele, nem sequer sabia a que facção eles pertenciam. Provavelmente nunca vira nenhum deles antes e esqueceria os seus rostos assim que lhes virasse as costas.

- Então, colocarei a mesma questão à dama - disse Roger de Clinton-e anunciarei estas regras quando nos reunirmos amanhã.

- Fazei isso, com a minha aquiescência! - disse o rei num tom vigoroso, afastando-se na direcção do cavalariço que segurava o seu cavalo junto do portão.

A dama, reparou Cadfael ao olhar novamente para a porta do salão dos hóspedes, já tinha retirado a sua altiva e desdenhosa presença da cena e recolhido aos seus aposentos no interior.

Yves, furioso, seguiu em silêncio para o alojamento deles, situado numa das casas para peregrinos existentes no interior do recinto, sentindo, por um lado, a vergonha de rapaz por ter sido repreendido em público e, por outro, a ira séria de homem por ter sido obrigado a abandonar uma briga.

- Não fiques aborrecido - argumentou sensatamente Hugh, indulgente para com o rapaz mas tendo em consideração o homem. - De Soulis, se aquele era, de facto, De Soulis, também levou um puxão de orelhas. Não se pode negar que foste tu que começaste, mas ele não se importaria nada de te cuspir em cima, se conseguisse fazê-lo. Agora provocaste a tua própria privação. Devias ter sabido que a Igreja não iria gostar que fossem desembainhadas armas aqui no seu terreno.

- Eu sabia isso - admitiu Yves com relutância -, mas não parei para pensar. Quando o vi, a passear como se estivesse no seu castelo... Nunca imaginei que ele apareceria cá. Meu Deus, o que ela deve ter sentido ao vê-lo tão descarado e ao recordar o mal que ele lhe fez. Ela concedeu-lhe favores, deu-lhe um cargo!

- Ela também deu um cargo a Philip - disse Hugh com firmeza. - Vais atacá-lo quando ele entrar na sala da conferência?

- Philip é outra questão - disse Yves, exaltado. - Ele entregou Cricklade, é verdade, isso nós sabemos, mas toda essa guarnição foi de livre vontade. Julga que eu não sei que poderá haver bons motivos para um homem alterar a sua fidelidade? Motivos honestos? Pensa que é fácil servi-la? Eu já a vi ser fria e insolente até mesmo para com o Conde Robert, vi-a mal disposta a tratá-lo como um servo da gleba. E ele era a sua única força, suportando tudo por causa dela!

Ele pareceu momentaneamente atormentado por uma dor de que Cadfael já suspeitava. A Dama dos Ingleses era galante, bela, estava a lutar mais pelos direitos do seu jovem filho do que pelos seus próprios direitos. Todos aqueles jovens inocentes que a seguiam estavam um pouco apaixonados por ela, queriam que ela fosse perfeita e viravam, indignados, as costas a todos os indícios de que ela não era santa, mas, nos seus corações doridos, sabiam muito bem que ela era arrogante e vingativa, e não conseguiam escapar à dor. Este, pelo menos, tinha ido ao ponto de dizer a verdade sobre o que sabia a respeito dela- Mas este De Soulis - disse Yves, voltando ao assunto com animosidade-conspirou furtivamente para deixar o inimigo entrar em Faringdon e vendeu todos aqueles cavaleiros e escudeiros honrados que se recusaram a apoiá-lo. E entre eles estava Olivier! Se ele tivesse sido honesto na sua própria escolha, teria permitido que eles fizessem a sua, ter-lhes-ia aberto os portões, permitindo que eles pegassem em armas honrosamente, lutando novamente contra ele a partir de outra base. Não, ele vendeu-os. Ele vendeu Olivier. Isso eu não posso perdoar.

- Tem paciência - disse o Irmão Cadfael -, até sabermos o que precisamos de saber, onde havemos de o procurar. Não te zangues com ninguém, pois quem sabe qual deles poderá dar-nos uma resposta? - E, quando obtivermos essa resposta, pensou ele olhando com um ar tolerante para a testa franzida e para o maxilar rígido de Yves, as vinganças talvez tenham terminado, por terem deixado de ter significado.

- Eu não tenho outra opção agora a não ser manter a paz - disse Yves, num tom ressentido mas resignado. Mesmo assim, ele ainda estava pensativo quando um noviço do priorado foi à procura dele, chamando-o à presença da irnperatriz. Com toda a inocência, o jovem irmão chamou-lhe Condessa de Anjou. Ela não teria gostado. Depois da morte do seu primeiro marido, já idoso, ela insistiu em manter o título de imperatriz. O rebaixamento a mera condessa, devido ao estatuto social do seu segundo marido, tinha-lhe desagradado muito.

Obedecendo ao chamamento, Yves partiu, dividido entre o prazer e a ansiedade, meio à espera de ser repreendido devido à desagradável cena ocorrida no pátio principal. Ela nunca lhe manifestara o seu desagrado mas, pelo menos uma vez, ele presenciara o seu vexatório efeito noutros. No entanto, quando queria, ela conseguia encantar os pássaros nas árvores e, durante a sua breve estadia na casa dela, ele tivera momentos ocasionais de felicidade.

Desta vez, uma das damas estava à espera dele à porta dos aposentos da imperatriz na nova casa de hóspedes do prior, uma rapariga muito bonita que tinha adquirido traços da segurança e da ousadia de sua ama. Ela observou Yves de cima a baixo com um olhar rápido e demorou algum tempo a sorrir, como se ele tivesse que passar um teste antes de ser aceite. Mas o sorriso, quando apareceu, indicou que ela o considerava um pouco mais do que meramente aceitável. Foi pena ele mal ter reparado.

- Ela está à vossa espera. Parece que o conde de Norfolk o recomendou. Entrai. - E, atravessando a ombreira da porta, ela baixou discretamente os olhos e fez uma vénia profunda com uma graça experiente. - Madame, Messire Hugonin!

A imperatriz estava sentada numa cadeira parecida com uma banca empilhada de almofadas, com o cabelo solto da touca, caído sobre o ombro numa trança pesada e lustrosa. Envergava um vestido solto de veludo azul escuro, contra o qual brilhava a sua pele branca de marfim. A luz das velas era generosa para com ela, e o seu porte fora sempre o de uma rainha, ainda que uma rainha não coroada. Yves levou um joelho ao chão com um fervor natural e ficou à espera.

- Deixai-nos! - disse Maud, sem olhar sequer para a rapariga nem para a dama mais velha que estava de pé junto dela. E depois de elas terem saído, disse: - Aproxima-te mais! Aqui há demasiados ouvidos à escuta atrás de demasiadas portas. Mais perto! Deixa-me olhar para ti.

Ele ficou de pé, um pouco nervoso, a ser observado longa e pensativamente, e os enormes olhos bizantinos percorreram-no lentamente, como a primeira carícia da faca da tosquia.

- Norfolk disse-me que desempenhaste bem a tua missão - disse ela finalmente. - Como um verdadeiro diplomata. É verdade que eu tinha algumas dúvidas sobre ele, mas ele está cá. Reparei que havia pouco de diplomata em ti esta tarde no pátio.

Yves sentiu-se corar até à raiz dos cabelos, mas, com uma mão erguida e um sorriso tranquilo, ela calou qualquer protesto e desculpa que ele estivesse prestes a murmurar.

- Não, não digas nada! Eu admirei a tua lealdade e o teu espírito, embora não possa elogiar-te a discrição.

- Eu fui um tolo - disse ele. - Tenho consciência disso.

- Então, isso será resolvido rapidamente - disse a imperatriz -, porque, neste momento, eu estou, oficialmente, a censurar-te pela loucura e a repetir-te as ordens do bispo, uma vez que foste tu o agressor, para que domines o teu ressentimento. Por uma questão de aparências, tal como Stephen está certamente a repreender o outro tolo. Bem, agora que me compreendeste, já sabes que não podes causar qualquer afronta pública ou ferimento a qualquer homem no interior destas muralhas. Com isso acordado entre nós, podes ir-te embora.

Um tanto confuso, ele fez a sua vénia e virou-se para a porta fechada. Atrás de si, a voz incisiva e suave disse claramente:

- Mesmo assim, tenho que confessar que não me causaria grande desgosto ver Brien de Soulis morto aos meus pés.

Yves saiu, aturdido, com a suave voz felina a persegui-lo até ter fechado a porta atrás de si. E ali, a alguns metros de distância, com as mãos cruzadas, a aguardar pacientemente que a sua ama a chamasse, a dama mais velha virou para ele o rosto oval e moreno e os olhos indiferentes, não perguntando nada, não dizendo nada. Sem dúvida que ela já tinha visto demasiados jovens emergir daquela presença imperial, em muitos estados de mortificação, euforia, devoção e desespero, e abstinha-se, tal como agora fizera, de os fazer saber que conseguia ler os sinais. Ele dominou-se e retirou-se o mais composto que conseguiu, passando por ela com uma mesura um tanto rígida. Só depois de ter saído do pátio escuro, rodeado pela frialdade do crepúsculo de Novembro, é que parou para respirar fundo e recordar, com assustadora nitidez, todas as palavras que tinham sido ditas naquele breve encontro.

Teria a dama de companhia da imperatriz ouvido as palavras de despedida? Ela poderia tê-las ouvido, ou parte delas, quando a porta se abriu para ele sair? E ter-lhes-ia ela, mesmo por um instante, dado a mesma interpretação que ele? Não, isso era seguramente impossível! Ele lembrou-se agora de quem ela era, mais íntima da sua ama do que qualquer outra: viúva de um cavaleiro do séquito do conde de Surrey, ela própria uma De Redvers, oriunda de um ramo menor da família de Baldwin De Redvers, o conde de Devon da imperatriz. Impecavelmente nobre, habilitada a servir uma imperatriz. E suficientemente velha e sábia para ser uma depositária segura dos segredos de uma imperatriz. Talvez até mesmo demasiado sábia para escutar o que ouvira! Mas se ela tivesse apanhado as últimas palavras, como é que as teria entendido?

Atravessou lentamente o pátio, ouvindo de novo a voz suave, insistente. Não, era ele que estava a deturpar o sentido das palavras. Certamente que ela estava apenas a expressar amargamente um ódio perfeitamente natural por um homem que a tinha traído. Que outra coisa se poderia esperar dela? Não, ela não estava sequer a sugerir um curso de acção, muito menos a ordená-lo. Dizem-se essas coisas no calor do momento, para o ar vazio, não intencionalmente.

No entanto, ela tinha-lhe dado deliberadamente instruções: "Não podes causar qualquer afronta pública ou ferimento..." E depois, "Mesmo assim, tenho que confessar que não me causaria grande desgosto... E, com estas palavras, podes ir-te embora. Yves Hugonin! Tu és suficientemente inteligente para compreender o que eu quero dizer."

Impossível! Ele estava a julgá-la mal, era ele que tinha uma mente perversa, deturpara as palavras delas. E ele tinha que esquecer completamente aquela indignidade.

Não disse nada a Hugh nem a Cadfael, teria sentido vergonha de mexer abertamente na ferida. Reagiu com um sorriso esforçado às palavras brincalhonas de Hugh:

- Bem, pelo menos ela não te comeu! - E recusou-se a falar mais no assunto. Mas nem sequer as Completas, cheias de solenidade no meio de bispos e magnatas a prepararem-se para a conferência do dia seguinte, conseguiu aquietar o desassossego da sua mente.

Os soberanos e a nobreza de Inglaterra reuniram-se na casa do capítulo do Priorado de Santa Maria depois da missa solene. Três bispos presidiam, Winchester, Ely e Roger de Clinton de Coventry e Lichfield. Todos os três tinham, inevitavelmente, preferências partidárias por um ou outro dos adversários mas, ao que parecia, tinham feito um esforço genuíno para pôr de parte todos os interesses desse tipo e para se concentrar, com uma oração profunda, na tentativa de garantir um acordo. O Irmão Cadfael, à procura de um lugar no exterior da porta aberta de onde os observadores pudessem pelo menos ver alguma coisa e ouvir as trocas de palavras no interior, considerou um aviso contra qualquer grande optimismo o facto de os presentes tenderem a agrupar-se defensivamente junto dos seus, a imperatriz e os seus aliados num dos lados, formando uma sólida linha de batalha, e o rei Stephen e os seus magnatas e xerifes no outro. Uma tendência tão marcante para se juntarem como se estivessem a preparar para uma batalha não augurava nada de bom, por mais que os amigos de ambos os lados se pudessem reunir livremente fora da casa do capítulo. Lá estava Hugh, ombro a ombro com o conde de Leicester e só a quatro ou cinco lugares do assento do rei, e Yves do outro lado, ao serviço de Hugh Bigod, conde de Norfolk, que o tinha elogiado à imperatriz pela missão bem desempenhada. Uma vez libertos daquela importante reunião, eles juntar-se-iam tão naturalmente como as mãos direitas e esquerda num trabalho a ser feito; ali dentro, estavam em campos opostos.

Cadfael observou as fileiras dos grandes do reino com intensa curiosidade, pois nunca tinha visto a maior parte deles. Ele já conhecia Leicester: Robert Beaumont, seguro no seu condado desde os catorze anos, inteligente e espirituoso, um dos poucos, talvez, que estavam a trabalhar nos bastidores com vista a um compromisso justo e sensato. Chamavam-lhe Robert Bossu, Robert o Corcunda devido a um ombro deformado, embora a deficiência não o estorvasse em acção e mal afectasse a simetria do seu corpo. Ao lado dele estava William Martel, o administrador do rei que tinha coberto a retirada de Stephen alguns anos antes em Wilton, tendo ele próprio sido feito prisioneiro. Stephen comprara a sua liberdade com um valioso castelo. Junto dele estava William de Ypres, o chefe dos flamengos do rei, e, a seguir a ele, Cadfael, esticando o pescoço e espreitando pela porta entre as cabeças de outros igualmente atentos, mal conseguia ver Nigel, bispo de Ely, recentemente reconciliado com o rei após ter estado caído em desgraça durante alguns anos, e sem dúvida desejoso de manter o lugar que recuperara entre os eleitos.

No outro lado, Cadfael via o homem que era o coração e a alma da causa da imperatriz, Robert, conde de Gloucester, sempre ao lado da sua meia-irmã, quer ali, quer a combater por ela no campo de batalha. Era um homem de cinquenta anos, entroncado, de roupa e equipamentos simples, com salpicos cinzentos no cabelo castanho e rugas de cansaço no rosto atraente. Também havia fios cinzentos na sua pequena barba, acentuando as linhas fortes do queixo com duas riscas de prata. O seu filho e herdeiro, William, estava de pé ao seu lado. O filho mais novo, Philip, se ali estivesse, estaria sentado no lado oposto. Este era entroncado como o pai e era parecido com ele. Humphrey de Bohun estava ao lado deles, bem como Roger de Hereford. Cadfael não conseguia ver mais além.

Mas ele conseguia ouvir vozes, identificando até alguns cujos tons ele ouvira antes, em raras ocasiões. O bispo de Clinton abriu a sessão dando as boas-vindas a todos os presentes à casa de que ele era abade titular e bispo, declarando, tal como prometera, a proibição do uso de armas naquela sala ou, em quaisquer circunstâncias, nos serviços religiosos. Seguidamente, ele deu a palavra, para o discurso de abertura, a Henry de Blois, o irmão mais novo do rei Stephen e bispo de Winchester. Cadfael nunca ouvira aquela voz forte, imperiosa, embora os efeitos das suas declarações há anos afectassem as vidas dos ingleses, tanto seculares como monásticos.

Não era a primeira vez que Henry de Blois tentava fazer com que o irmão e a prima se sentassem para chegar a um compromisso que poria, pelo menos, termo a uma guerra activa, mesmo que isso significasse manter um reino dividido e fortificado, sempre em perigo de erupções locais. Até então, ele não tivera qualquer êxito. Mas, quaisquer que fossem as suas expectativas actuais, ele fazia mais aquela tentativa com o mesmo vigor e força. Ele delineou para a sua audiência o quadro deplorável de um país devastado e debilitado por uma guerra sem sentido, ao longo de anos de luta sem ganhos positivos para qualquer das facções, e uma perda total para o povo comum. Ele retratou uma batalha que não podia ser vencida nem perdida por qualquer das facções, mas apenas seria resolvida tomando decisões a que ambas ficassem obrigadas. Ele foi eloquente, incisivo e breve. E eles ouviram; mas eles sempre tinham ouvido, e ou nunca tinham realmente escutado, ou não tinham compreendido, ou nunca tinham acreditado nele. Por vezes, eles tinham vacilado e alterado a sua fidelidade, e todos o sabiam. Agora ele desafiava os dois combatentes com igual aspereza. Quando terminou, apelando, com a sua cadência crescente, para uma resposta, houve um breve silêncio que continha uma curiosa sugestão de que duas presenças cobiçosas estavam a manobrá-lo para tirar vantagem dele. Não havia ali um bom augúrio!

Foi a imperatriz que aceitou o desafio, e a sua voz alta e cortante elevou-se no ar. Stephen, pensou Cadfael, deixara para ela a abertura da arena, não por uma questão de política, como se poderá supor, uma vez que o primeiro a falar é o primeiro a ser esquecido, mas devido ao seu incorrigível cavalheirismo para com todas as mulheres, até mesmo aquela mulher. Ela estava a afirmar, por enquanto com cautelosa brandura, o seu direito a ser escutada naquela ou em qualquer outra reunião que pretendesse falar em nome de Inglaterra. Naquele primeiro teste, ela evitou revelar todas as suas melhores armas e voltou a falar, muito circunspectamente, da lamentável perda que o Rei Henrique sofrera com a morte, alguns anos antes, no naufrágio do White Ship ao largo de Barfleur, do único filho legítimo que lhe restava, fazendo dela a incontestável herdeira do reino. Um estatuto que ele tivera o cuidado de garantir enquanto fora vivo, convocando todos os seus grandes senhores para ouvir o seu testamento e jurar fidelidade à sua futura rainha. O que eles tinham feito, tendo mais tarde mudado de ideias e recusado a reconhecer uma mulher como soberana, tendo aceitado Stephen sem grande relutância quando ele se moveu rápida e decididamente, instalando-se no trono e assumindo a coroa. A pequena semente que tinha proliferado em todo aquele caos.

Eles falaram, e Cadfael escutou. Com a sua vulnerável sinceridade habitual, Stephen afirmou o seu direito à coroa e à coroação, mas também se absteve de provocar ira. Algumas vozes vigorosamente calmas lembraram os que estavam mais abaixo nas hierarquias e que tinham que suportar o fardo mais pesado. Robert Bossu, evitando aquele apelo raramente tido em conta, referiu claramente a idiotice económica de continuar a desperdiçar os recursos do país, e alguns dos seus jovens seguidores, entre os quais se encontrava Hugh, ecoaram e reforçaram o seu argumento fazendo referência aos seus próprios condados. Foram lançadas, de um lado para o outro, palavras suficientes para encher uma bíblia, mas os vocábulos "acordo", "compromisso", "razão" e "paz" não foram mencionados com grande frequência. A sessão estava prestes a terminar quando foi inesperadamente levantada uma questão menor.

Yves tinha escolhido aquele momento. Ele aguardou até Roger de Clinton, depois de olhar para as fileiras que tinham ficado silenciosas, se ter levantado para dar por terminada aquela primeira sessão, aliviado, talvez até mesmo encorajado, por ela ter decorrido sem qualquer rancor aparente. A voz de Yves ergueu-se súbita mas tranquilamente, com uma tranquilidade reverente. Desta vez ele tinha um domínio pleno de si próprio. Cadfael mudou, inutilmente, de posição, para tentar vê-lo, e uniu as mãos, rezando para que aquela calma sobrevivesse.

- Meus senhores, Vossa Graça...

O bispo afastou-se cortesmente e deixou-o falar.

- Meus senhores, se me for permitido levantar uma questão, com toda a humildade...

Esta última qualidade que os jovens impetuosos podiam declarar sentir mas, pelo menos, ele estava a tentar.

- Existem algumas relevantes questões menores que talvez conduzam à reconciliação, se puderem ser resolvidas agora. Até mesmo um acordo sobre um pormenor seguramente tenderá para um acordo sobre questões mais importantes. Há prisioneiros em ambos os lados. Num momento em que temos tréguas com este objectivo, não seria justo e correcto declarar uma libertação geral?

Dos partidários de ambas as facções ergueu-se um murmúrio que se transformou num rosnado. Não, nenhum deles concordaria com isso, colocar nas fileiras dos adversários bons soldados actualmente desarmados e com os quais não era necessário contar. A imperatriz pôs de lado a ideia com um gesto da mão.

- Essas são questões a ser tratadas nos termos da paz - disse ela - e não prioridades.

O rei que, desta vez, concordava em não concordar, disse com firmeza:

- Nós estamos cá, em primeiro lugar, para chegar a acordo sobre a questão principal. Esta é uma questão a ser discutida e negociada depois.

- Senhor bispo - disse Yves, fixando-se sensatamente no único aliado que ele sabia que se preocuparia com a causa dos cativos - se essa troca tem que ser adiada, posso, pelo menos, pedir informações sobre determinados cavaleiros e escudeiros feitos prisioneiros em Faringdon neste último Verão? Há alguns deles de quem se desconhecem os nomes dos captores. Não deveriam os seus amigos e familiares que desejem resgatá-los ter pelo menos essa oportunidade?

- Se a sua detenção teve por objectivo o lucro - disse o bispo, com um leve tom de desagrado na voz -, certamente que quem os detém será o primeiro a oferecê-los para obter um ganho. Está a dizer que isso não foi feito?

- Não em todos os casos, meu senhor. Eu creio - disse Yves claramente - que alguns estão detidos não por uma questão de dinheiro mas por ódio, como vingança pessoal por qualquer ofensa real ou imaginária. Há muitas hostilidades privadas causadas pela rivalidade entre facções.

O rei mexeu-se impacientemente na cadeira e repetiu em voz alta:

- Nós não temos nada a ver com hostilidades privadas. Aqui, isso é irrelevante. O que é o destino de um homem ao pé do destino do reino?

- O destino de cada um dos homens é o destino do reino - exclamou Yves com ousadia.-Se for cometida uma injustiça contra um deles, é uma injustiça a mais. A injúria afecta todos, e o reino inteiro sofre.

O bispo ergueu as mãos autoritárias acima do barulho das muitas vozes aos gritos, a tentar, cada uma delas, falar mais alto que as outras.

- Silêncio! Quer estes sejam ou não a altura e o local certo, o que este jovem diz é verdade. Uma lei justa deve aplicar-se a todos.

- E, dirigindo-se a Yves, que se mantinha de pé, apreensivo mas decidido, acrescentou: - Eu julgo que tu tens um caso particular em mente. Alguém que foi feito prisioneiro depois da queda de Faringdon.

- Sim, meu senhor. E mantido em segredo. Não foi pedido qualquer resgate, nem os seus amigos, nem o meu tio, que é o seu senhor, sabe onde perguntar que preço é exigido por ele. Se Vossa Graça me dissesse simplesmente onde ele está...

- Não fui eu pessoalmente que distribuí os meus prisioneiros - exclamou o rei, num tom mais alto e impaciente, devido tanto ao facto de querer almoçar, supôs Cadfael, como por não ter qualquer verdadeiro interesse pelo que estava a atrasá-lo. Era um comportamento característico dele. Depois de obter um grande número de trofeus valiosos, ele atirava-os aos seus gananciosos apoiantes e afastava-se das negociações, deixando-os a discutir sobre a distribuição dos despojos. - Eu conheci muito poucos e não me lembro de quaisquer nomes. Encarreguei o meu castelão de os distribuir equitativamente.

Yves pegou-lhe ansiosamente na palavra, antes de a questão perder a sua pertinência.

- Vossa Graça, o vosso castelão de Faringdon está aqui presente. Tendei a generosidade de lhe pedirdes que me dê uma resposta. - E ele fez a pergunta antes de esta poder ser proibida: - Onde está Olivier de Bretagne e quem o detém?

Ele manteve o tom de voz lento e calmo mas, mesmo assim, atirou o nome como se fosse uma lança, não na direcção do rei, mas sim ao rosto de De Soulis através do espaço que dividia as facções. Ele precisava da tolerância de Stephen para obter uma resposta. Stephen podia dar ordens quando todos os outros só podiam pedir. E a paciência de Stephen estava a esgotar-se, não tanto em relação ao persistente escudeiro, mas sim com todo o processo daquela sessão demasiado longa.

- É um pedido razoável - disse o bispo ainda com um tom cortante na voz.

- Em nome de Deus - concordou o rei explosivamente -, digam ao rapaz o que ele quer saber, e acabemos com o assunto.

A voz de De Soulis elevou-se num tom de suave e pronta obediência de entre as fileiras menores do rei, bem fora do campo de visão de Cadfael, e tão modestamente afastada da proeminência que parecia distante.

- Vossa Graça, eu fá-lo-ia com todo o gosto, se soubesse a resposta. Em Faringdon, eu não exigi nada para mim próprio. Retirei-me do conselho e deixei tudo a cargo dos cavaleiros da guarnição. Aqueles que voltaram a jurar fidelidade a Vossa Graça, claro - disse ele com uma doçura ácida. - Nunca fiz quaisquer perguntas sobre o que eles decidiram e, tirando os que foram oferecidos para resgate e devidamente resgatados, desconheço o paradeiro de quaisquer outros. Os escrivães poderão ter feito uma lista. Se o fizeram, nunca pedi para a ver.

Muito antes de ele ter terminado, a ferroada intencional contra os homens da guarnição de Faringdon que tinham permanecido leais à sua causa já tinha provocado um ameaçador rosnado de raiva entre os seguidores da imperatriz, bem como um movimento ondulante ao longo das fileiras que sugeria que as armas poderiam estar a ser desembainhadas se não tivessem sido proibidas no interior do salão. A voz de Yves, ripostando com uma ira controlada mas veemente, fez surgir um rugido entre os apoiantes do rei.

- Vossa Graça, ele mente! Ele esteve lá o tempo todo, ele deu todas as ordens. Ele mente descaradamente.

Mais um momento, e teria havido uma batalha, mesmo sem outras armas que não fossem as armas dos punhos, dos pés e dos dentes do homem comum. Mas o bispo de Winchester tinha-se erguido com indignada majestade e secundara a exigência atroadora de Roger de Clinton para que se fizesse ordem e silêncio, o rei e a imperatriz puseram-se de pé emitindo faíscas ameaçadoras, e o barulho diminuiu gradualmente, embora o odor acre a raiva e ódio se mantivesse no ar trémulo.

- Encerremos esta sessão - disse o bispo de Clinton num tom sombrio, quando o silêncio e a calma se mantiveram durante alguns desconfortáveis minutos -, sem mais palavras acaloradas que não devem ter lugar aqui. Reunir-nos-emos de novo à tarde e recomendo-vos a todos que venhais com uma disposição melhor e mais cristã, e que, além disso, depois dessa reunião, qualquer que seja o seu resultado, os que sentem verdadeiramente o que as vossas bocas disseram, que vieram cá procurar a paz, assistam às Vésperas, desarmados, cheios de boa-vontade para com todos e sem qualquer inimizade em relação a quem quer que seja, para rezar por essa paz.

 

- Ele está a mentir - repetiu Yves, ainda corado e com um ar zangado à mesa frugal do priorado, mas, mesmo assim, a comer como um rapaz esfomeado. - Ele não abandonou o conselho nem por um momento. Conseguem imaginá-lo a renunciar a um prémio para si próprio, ou a ficar satisfeito com algo que não seja o melhor? Ele sabe muito bem quem detém Olivier. Mas se Stephen não consegue obrigá-lo a falar... ou não quer!... como é que qualquer outro homem o há-de fazer?

- Até mesmo um mentiroso - reflectiu Hugh judiciosamente -, pois eu admito que ele provavelmente o seja!, pode dizer a verdade de vez em quando. Pois eu digo-te uma coisa, parece haver muito pouca gente, se é que há alguém, que sabe o que aconteceu a Olivier. Eu tenho andado a investigar onde posso, mas sem qualquer sucesso, e sei que Cadfael tem mantido os ouvidos atentos entre os irmãos. Melhor ainda, eu acredito que o bispo, depois de ter ouvido o que ouviu de ti esta manhã, irá fazer a sua própria investigação.

- Se eu fosse a ti - disse Cadfael, num tom de profunda reflexão -, manteria este assunto fora da casa do capítulo. Certamente que o rei e a imperatriz terão que tomar posição, e nenhum deles gostará de ser importunado insistentemente para que descubra o destino de um escudeiro, quando a sua própria sorte está em risco. Indaga por aí. Vê se há outros que estiveram em Faringdon. Eu falarei com o prior. Até mesmo os ouvidos monásticos conseguem apanhar os rumores que circulam, tão depressa como quaisquer outros, e melhor ainda por eles próprios se manterem silenciosos.

Mas Yves continuava a remoer sombriamente o assunto e não desistia.

- De Soulis sabe, e eu hei-de fazer com que me diga, nem que tenha que lhe arrancar a informação do seu coração traiçoeiro. Oh, não diga nada! - disse ele, fazendo sinal a Cadfael para que não dissesse o que tinha na ponta da língua. - Eu sei que aqui não posso fazer nada, que não lhe posso tocar.

Então por que motivo, pensou Cadfael, é que ele fala no que é óbvio com tanta ênfase e, ao mesmo tempo, num tom tão calmo, como se estivesse a lembrar algo a si próprio, mais do que a tranquilizar outra pessoa? E porque é que o seu olhar normalmente franco, se virava dubiamente para dentro, olhando para trás, com uma expressão cansada, para algo mal compreendido e infinitamente perturbador?

- Tanto eu como ele teremos que deixar o território da igreja em breve - disse Yves, sacudindo abruptamente o seu tom taciturno - e depois não há nada que impeça que me defronte com ele, armado, e lhe arranque a verdade da carne.

O irmão Cadfael atravessou a multidão reunida no pátio e dirigiu-se à igreja do priorado. Os suseranos ainda não teriam deixado a mesa alta para retomar as discussões que tinham tão poucas probabilidades de produzir resultados proveitosos; ele tinha tempo para se retirar para um canto tranquilo e isolar-se do mundo durante algum tempo. Mas os cantos tranquilos eram poucos, até mesmo na igreja. Grupos de partidários de menor estatuto também tinham considerado conveniente reunir-se em locais onde pudessem conferenciar sem ser escutados, e tinham as cabeças juntas no abrigo dos altares e nos recantos do claustro. Os membros do clero visitantes passeavam pela nave e pelo coro, observando a decoração dos altares, e alguns irmãos, regressando às suas tarefas após meia hora de descanso, passavam silenciosamente por entre os desconhecidos.

Havia uma rapariga de pé em frente do altar-mor, com as mãos cruzadas com modéstia e de olhos baixos. A rezar? Cadfael teve dúvidas. A lamparina do altar lançava uma luz clara, rosada, sobre o seu sorriso leve e confiante, e o homem que estava junto do seu ombro estava a falar-lhe muito discreta e respeitosamente ao ouvido, mas com algo do mesmo sorriso íntimo na curva dos seus lábios. Ah, bem! Uma rapariga jovem no meio de tantos jovens atraentes, sendo virtualmente a única do seu sexo e idade naquela reunião masculina, poderia bem deleitar-se nos seus privilégios enquanto estes durassem, e explorar as suas oportunidades. Cadfael já a tinha visto antes, seguindo alegremente a imperatriz para a missa nessa manhã, transportando o missal imperial e um belo xaile de lã para o caso de a dama sentir frio naquela enorme caverna de pedra, antes do final do serviço religioso. Segundo lhe tinham dito, era sobrinha da dama de companhia mais velha. E essas três, uma pertencente à realeza, as outras duas oriundas das fileiras dos barões, eram as únicas mulheres presentes naquele recinto em que se encontrava toda a nobreza do país. Isso era suficiente para dar a volta à cabeça de qualquer rapariga. Embora, pela sua pose e postura, bem como pela segurança com que ela ouvia e não dava qualquer resposta, Cadfael calculasse que esta não faria facilmente concessões, nem perderia de vista as suas vantagens reais. Ela escutaria e esboçaria um sorriso, e talvez até sugerisse a possibilidade de ir mais longe, mas o seu equilíbrio estava seguro. Com cem ou mais jovens ali para ver e admirar, e para a lisonjearem com agradáveis atenções, não era provável que o primeiro e o mais ousado fosse muito longe antes de os outros mostrarem os seus atributos. Ela era suficientemente jovem para se divertir com o jogo, e suficientemente astuta para lhe sobreviver incólume.

Agora ela tinha-se lembrado da hora que se aproximava e das exigências das suas tarefas, e deu meia volta para se ir embora, para acompanhar novamente a sua ama à casa do capítulo. Moveu-se com um ar decidido, caminhando com a rapidez suficiente para indicar que tanto lhe fazia que o rapaz que a cortejava a seguisse ou não, mas não de modo a deixá-lo para trás. Até esse momento, Cadfael não tinha reconhecido o homem. O primeiro e o mais ousado - sim, ele certamente o seria. A cabeça loura, o passo elegante, seguro, o sorriso subtil, meio condescendente, de Brien de Soulis seguiu a rapariga até ao exterior da igreja com uma compostura arrogante, aparentemente tão seguro de que não havia pressa, de que ela viria ao seu encontro quando ele decidisse, como ela estava certa de que poderia brincar com ele e descartá-lo. E qual das duas arrogantes criaturas iria prevalecer era um tema para séria especulação.

Cadfael sentiu-se suficientemente curioso para os seguir até ao pátio. A dama de companhia mais velha tinha saído do salão dos convidados à procura da sobrinha. Ela observou os dois com uma expressão impassível em que não era visível qualquer emoção, depois virou-se e voltou a entrar no salão, olhando para trás para indicar à rapariga que deveria segui-la. De Soulis parou para fazer uma vénia às duas e retirou-se tranquilamente na direcção da casa do capítulo. E Cadfael voltou para o pátio do claustro e atravessou pensativamente o relvado branqueado pelo Inverno.

A dama de companhia da imperatriz não podia certamente aprovar as brincadeiras da sua sobrinha, por mais limitadas que elas fossem, com o traidor e renegado da imperatriz. Ela teria a preocupação de avisar a rapariga sobre uma tolice dessas. Ou talvez ela conhecesse bem a sua familiar e não visse qualquer motivo para preocupação, sabendo bem que ela era uma jovem astuta que não faria nada para comprometer o seu prometedor futuro como membro da casa da imperatriz.

Bem, era melhor ele concentrar-se em assuntos mais importantes do que a sorte de raparigas que nunca vira antes. Eram quase horas para as facções adversárias se reunirem de novo. E quantos deles, de qualquer dos lados, estavam genuinamente interessados na busca da paz? Quantos procuravam a vitória total através das armas?

Quando Cadfael conseguiu chegar o mais próximo possível da porta da casa do capítulo, pareceu-lhe que o bispo De Clinton tinha cedido a presidência da sessão ao bispo de Winchester, talvez na esperança de que um prelado tão poderoso exercesse maior influência nas mentes obstinadas devido ao seu sangue real, bem como ao prestígio de ter sido recentemente nomeado para o cargo de núncio papal no reino de Inglaterra. O bispo Henry estava a pôr-se de pé para abrir a sessão quando passos apressados e um pedido brusco mas delicado para deixar passar sobressaltou a multidão de observadores e fez abrir alas, deixando entrar para o centro da casa do capítulo um homem alto, ainda com a capa e as botas de montar. Atrás dele, no pátio, um cavalariço conduzia o cavalo de que ele acabara de desmontar, e o ruído dos cascos afastou-se lentamente na direcção dos estábulos. O animal seguia agora a passo após uma longa cavalgada, e o cavaleiro estava coberto pela poeira das estradas secas pelo vento.

O recém-chegado atravessou o espaço no meio dos membros das duas facções com uma passada longa, silenciosa, fazendo uma vénia ao bispo que presidia à sessão e que a recebeu com o sobrolho franzido numa expressão de interrogação e uma ligeiríssima e severa inclinação da cabeça, e baixou-se para beijar a mão do rei, tudo isso sem, por um momento, comprometer a sua dignidade. O rei sorriu-lhe, manifestando abertamente o seu apreço por ele.

- Vossa Graça, peço desculpas por ter chegado tarde. Tive trabalho a fazer antes de deixar Malmesbury. - Ele falava em voz baixa, mas num tom claro. - Meus senhores, perdoai-me por estar sujo da viagem. Eu tinha esperança de comparecer a esta assembleia com melhor aspecto, mas cheguei demasiado tarde para atrasar ainda mais os trabalhos.

Os seus modos para com os bispos eram meticulosamente corteses. Não disse nada à imperatriz, mas fez-lhe uma vénia tão delicada e com uma expressão tão distante, que a sua arrogância era óbvia. Passou pelo pai sem um olhar e, ao dar meia volta, fitou-o com uma expressão firme e distante, como se nunca o tivesse visto antes.

Aquele era certamente Philip FitzRobert, o filho mais novo do conde de Gloucester. Havia até uma semelhança entre eles, embora tivessem uma estrutura física diferente. Este homem não era entroncado, mas sim alto e musculoso, de movimentos bruscos mas graciosos, e moreno. Acima das pinceladas gémeas das sobrancelhas pretas, a testa elevava-se, arrogante, até ao cabelo espesso e ondulado e, abaixo delas, os olhos eram como fogueiras abafadas, reprimidos mas cheios de vida. No entanto, a parecença estava lá, acentuada pelos lábios grandes e ardentes e pelo queixo forte. Era a imagem transportada, em extremos, para uma geração posterior. O que seria considerado constância no pai seria mais verdadeiramente apelidado de teimosia no filho.

A sua chegada, ao que pareceu, lançou na assembleia um curioso constrangimento que só poderia ser aliviado por iniciativa sua. Ele fez um esforço para os libertar da tensão momentânea com um gesto de desculpas feito com a mão e com a cabeça, em deferência para com os bispos.

- Meus senhores, peço-vos que prossigam, pois que eu me retirarei. - E ele recuou até às fileiras dos homens do rei Stephen, misturando-se com os que estavam mais atrás. Mesmo assim, a sua presença era quase palpável no ar, endireitando colunas e fazendo com que, à sua volta, as orelhas se espetassem e os cabelos da nuca se eriçassem. Muitos dos presentes tinham dito que ele não se atreveria a aparecer no local onde se encontravam o pai que ele desrespeitara e a dama a quem ele jurara fidelidade e que traíra. Parecia que, afinal, havia muito pouco que este homem não se atrevesse a fazer, e não havia muito que ele não conseguisse levar a cabo com uma compostura rígida, demasiado autoritária para ser levianamente considerada desfaçatez.

Até mesmo o bispo de Winchester tinha ficado um pouco desconcertado, mas a hesitação durou apenas um instante, e a voz imponente elevou-se com autoridade, chamando-os peremptoriamente à oração e à consideração dos graves assuntos que ali os tinham levado.

Por enquanto, os principais interessados não tinham feito nada a não ser afirmar, com cautela, as bases das suas pretensões ao trono. Era altura de fazer com que eles dissessem algo mais sobre até onde estavam preparados para ir no que dizia respeito a reconhecerem as pretensões um do outro. O bispo Henry dirigiu-se muito circunspectamente à imperatriz. Ele tinha uma longa experiência de tentar manipulá-la e bater com a cabeça contra a inexpugnável muralha da sua teimosia. Acima de tudo, era preciso evitar referir-se a ela como duquesa de Anjou. Embora o título fosse exacto, ela considerava-o depreciativo do seu estatuto de filha do rei e consorte de um imperador.

- Minha senhora - disse o bispo num tom grave -, tendes noção da necessidade e da urgência. Há demasiado tempo que este reino sofre de desavenças e, sem reconciliação, não será possível sarar as feridas. Os primos reais deveriam ser capazes de se unir em harmonia. Peço-vos que sondeis o vosso coração e falai, dai indicações ao vosso povo de qual o caminho que devemos seguir de hoje em diante e a partir deste local, para pôr termo ao desperdício de vida e de terras.

- Eu já passei anos a reflectir - disse a imperatriz num tom enérgico - sobre estas questões, e parece-me que a verdade é clara e que nenhuma forma de a ver a poderá alterar, nenhum argumento poderá fazer com que ela deixe de ser verdadeira. A situação é exactamente a mesma que era quando o meu pai morreu. Ele era o rei indiscutível, incontestado, e, após a perda de um irmão, eu fiquei a única filha viva do meu pai pela sua mulher legal, Mathilda, a sua rainha, ela própria filha do rei dos escoceses. Não há um homem aqui presente que não saiba isto. Não há um homem em Inglaterra que se atreva a negá-lo. Por conseguinte, como poderia haver outro herdeiro deste reino quando o rei meu pai morreu?

Nem uma palavra, claro, reflectiu Cadfael, esforçando-se por ouvir no exterior da porta, sobre a cerca de uma dúzia de filhos de outras mulheres que o rei deixara espalhados pelo reino. Eles não contavam, nem sequer o melhor de todos eles que estava, paciente e firme, ao pé dela, e que, se a sua linhagem estivesse de acordo com a lei e os costumes normandos, teria mais direito ao trono que aqueles dois rivais reais. Em Gales, ele teria tido os seus direitos como filho mais velho do seu pai, e o mais autêntico.

- No entanto, para ter a certeza - prosseguiu orgulhosamente a voz autoritária -, o próprio rei meu pai abordou a questão da sucessão nove anos antes da sua morte, na sua corte de Natal, e pediu a todos os senhores do seu reino que fizessem um juramento solene de que me aceitariam a mim, descendente de catorze reis, como sua herdeira e sua rainha depois dele. E todos eles o fizeram. Senhor bispo, o primeiro a fazer o juramento foi William de Corbeil, na altura Arcebispo de Cantuária. O meu tio, o rei dos escoceses, foi o segundo, e o terceiro que me jurou fidelidade - disse ela, erguendo a voz e afiando-a como um punhal - foi Stephen, o meu primo, que agora veio até cá com um argumento de realeza contra mim.

Nessa altura, uma dúzia de vozes, depreciativas e ansiosas de um lado, em ira atroadora do outro, começaram a murmurar. O bispo disse com firmeza, em voz alta:

- Este não é o lugar para recordar todos os maus actos do passado. Tem havido bastantes, não todos de um só lado. Neste momento, nós estamos onde esses erros e traições, qualquer que seja a sua origem, nos deixaram, e é de onde estamos que temos que avançar, não temos outra opção. O que temos que compreender é o que tem que ser feito agora para desfazer os males que puderem ser desfeitos. O que for aqui dito deverá ser dito tendo isto em mente, não por vingança por coisas do passado longínquo.

- Eu só peço que a verdade seja reconhecida como verdade - disse ela num tom inflexível. - Sou, legalmente, a rainha de Inglaterra por direito hereditário, por decreto real do meu pai e pelos juramentos solenes de todos os seus senhores em como me aceitariam e reconheceriam. Mesmo que eu quisesse, não conseguiria alterar o meu estatuto e, tão certo como Deus estar a ver-me, não o farei. O facto de os meus direitos me serem negados não altera nada. Eu não renunciei a eles.

- Não podeis renunciar àquilo que não possuís - escarneceu uma voz das últimas fileiras dos apoiantes de Stephen. E houve de imediato meia dúzia de cada lado a gritar provocações, insultos e palavras de troça, até Stephen ter batido com o punho nos braços da cadeira e ter dado um grito a impor a ordem, mais alto ainda do que o pedido indignado do bispo.

- A minha prima imperial tem o direito de falar - proclamou ele com firmeza - e de dizer abertamente o que pensa. Pela minha parte, eu também tenho alguma coisa a dizer sobre esses símbolos que, mais do que decretar ou predizer soberania, conferem-na e confirmam-na. Para que a condessa de Anjou herde a coroa a que ela diz ter direito por herança, seria necessário privar-me daquilo que eu já possuo. Que possuo por ter sido coroado, por ter sido consagrado, por ter sido ungido. Quanto à aceitação que lhe foi prometida, eu cheguei, pedi, ganhei honestamente. Não é possível lavar o óleo que me consagrou. Esse é o direito em virtude do qual eu reivindico aquilo que possuo. E não renunciarei àquilo que possuo. Não renunciarei, de modo algum, a qualquer parte daquilo que conquistei. Não faço concessões, absolutamente nenhumas.

E, depois de as duas partes terem falado, uma a justificar os seus direitos através do sangue, a outra através do reconhecimento e investidura, tanto secular como clerical, de que serviria dizer mais alguma coisa? No entanto, eles tentaram. Durante algum tempo, foi a vez das vozes moderadas que não insistiram no perdão e no amor fraternal e entre primos, de apresentaram os factos nus e crus: se o impasse, as contendas e o desperdício continuassem, disse Robert Bossu com uma ênfase fria e clara, chegaria uma altura em que não haveria nada que valesse a pena anexar ou conservar, apenas uma desolação no meio da qual o vencedor, se o sobrevivente assim se considerasse, se poderia sentar sobre cinzas e pó. Mas essas palavras também foram ignoradas. A imperatriz, confiante no seu conhecimento de que o marido e o filho controlavam toda a Normandia e de que a maior parte daqueles senhores ingleses tinham terras lá a proteger e, para conseguirem fazê-lo, tinham que manter a fidelidade que os prendia à casa de Anjou, sentia-se igualmente segura da eventual vitória em Inglaterra. E Stephen, sabendo que a sua estrela estava em fase ascendente em Inglaterra, com todas as brilhantes vitórias desse ano, sentia-se igualmente certo de que o resto lhe iria parar às mãos e estava disposto a arriscar o que pudesse acontecer no outro lado do mar, deixando isso para resolver mais tarde.

As vozes da razão estavam a falar, como habitualmente, para ouvidos moucos. Os discursos eram pouco mais do que uma troca de acusações e contra-acusações. Henry de Winchester manteve corajosamente o equilíbrio e evitou o conflito real, mas não conseguiu fazer mais do que isso. E houve muitos, reparou Cadfael, que escutavam com um ar severo mas não diziam absolutamente nada. Nem uma palavra de Robert de Gloucester, nem uma palavra do seu filho e inimigo, Philip FitzRobert. Mutuamente cépticos, eles abstiveram-se de desperdiçar fôlego e esforço, em qualquer das direcções.

- Isto não vai dar em nada - disse Robert Bossu num tom resignado ao ouvido de Hugh Beringar quando as duas monódias se transformaram numa triste trenode. - Não aqui. E não para já, não. É assim que isto irá finalmente terminar, numa desolação ainda maior. Mas não, por enquanto ainda não vai acabar.

Quando a estéril sessão foi finalmente encerrada, foi-lhes pedido que, pelo menos, passassem a última noite juntos num ambiente de tolerância mútua e que assistissem juntos aos ofícios religiosos das Vésperas e das Completas antes de partirem na manhã seguinte para os seus diferentes caminhos. Alguns, que não estavam muito longe de casa, deixaram o priorado nessa mesma tarde, não querendo desperdiçar mais tempo e talvez até satisfeitos por nada ter resultado das horas já perdidas. Quando a maior parte dos homens ainda está a sonhar com a vitória total, os poucos que ficariam satisfeitos com um compromisso não têm qualquer peso. No entanto, no fim, tal como Robert Bossu dissera, era assim que as coisas se passariam, não poderia haver outro desfecho. Nenhum dos lados conseguiria alguma vez ganhar, nenhum lado perderia. E eles acabariam por se fartar de desperdiçar o seu tempo, as suas vidas e o seu país.

Mas não ali. Não para já.

Cadfael saiu para o silêncio do crepúsculo e viu a imperatriz atravessar o pátio em direcção aos seus aposentos, com a figura magra e idosa de Jovetta de Montors ao seu lado e a rapariga Isabeau, um ou dois passos atrás, seguindo-as recatadamente. Antes das Vésperas, havia uma hora para descansar e pensar. A dama contentar-se-ia provavelmente com os serviços do seu próprio capelão em vez de assistir ao ofício religioso na igreja do priorado a não ser, claro, que decidisse fazer uma derradeira e esplêndida aparição de Estado, reivindicando o seu direito legítimo antes de sacudir o pó do compromisso e de regressar ao campo de batalha.

Porque é para aí, pensou Cadfael com tristeza, que todos eles se dirigem, depois deste reagrupamento de ideias e ressentimentos. Vai haver mais cercos, ataques e pilhagens, durante aquela pausa eles terão até armazenado reservas de fôlego, energia e ódio. Durante algum tempo, as fogueiras serão novamente ateadas, embora, com o virar de um novo ano, o cansaço se venha provavelmente a instalar de novo. E eu não estou mais perto de saber onde é que o meu filho está prisioneiro, muito menos como efectuar a longa viagem para o libertar.

Não foi à procura de Yves nem de Hugh, e entrou sozinho na igreja. No interior, havia agora cantos tranquilos suficientes para todas as almas que desejassem uma solidão sagrada e o silêncio da presença de Deus. Quando entrava em qualquer igreja que não fosse a sua, ele sentia a falta, por um momento, do pequeno altar de pedra e do relicário entalhado em que Santa Winifred não estava e, ao mesmo tempo, estava. Só de olhar para ele sentia um pequeno fogo vivo a atear-se no seu coração. Ali, ele tinha que renunciar a essa pequena consolação e submeter-se a uma bênção pouco familiar. Mesmo assim, havia ali uma resposta a todas as necessidades.

Encontrou um lugar pouco iluminado num canto de um transepto, numa estreita elevação de pedra que tinha espaço à justa para ele se sentar, e deixou-se ficar ali, pacientemente imóvel, de olhos fechados, para melhor evocar o suave rosto moreno e os olhos espantosos, preto dentro de ouro, do filho de Miriam. Outros homens geravam filhos, tinham o prazer de os ver em bebés e na infância, depois a alegria de os ver crescer e atingir a idade adulta. Ele tinha tido apenas o homem crescido e maravilhoso, lançado na sua vida idosa como a aparição de uma visão angélica, igualmente súbita e ofuscante. E isso em apenas dois breves relances, arbitrariamente concedidos e retirados. E ele tinha-se sentido feliz e grato por isso, como sendo algo mais do que ele merecia. Quando Olivier se movia em liberdade, intrépido e abençoado pelo mundo, o seu pai não precisava de mais nada. Mas Olivier no cativeiro, roubado ao mundo, escondido da luz, era algo que ele não conseguia suportar. O vazio escuro onde ele estivera era uma ofensa contra a verdade.

Ele não soube quanto tempo estivera sentado em silêncio, longe de tudo, contemplando aquele doloroso vazio, sem dar pelas poucas pessoas que entravam e saíam da nave. No interior do transepto tinha ficado mais escuro, e a sua imobilidade tornara-o invisível ao homem que entrara vindo do suave crepúsculo do claustro para a solidão sombria que escolhera. Ele não ouvira passos. Saiu, sobressaltado, do seu recolhimento quando um corpo passou por ele, chocando com o braço e o joelho, e uma mão estendeu-se apressadamente para o seu ombro para segurar os dois. Não houve qualquer exclamação. Um minuto de silêncio enquanto os olhos do desconhecido se adaptavam à obscuridade do interior, depois uma voz baixa disse:

- Peço desculpa, irmão. Não o tinha visto.

- Eu não estava interessado em ser visto - disse Cadfael.

- Tem havido ocasiões - concordou a voz, sem surpresa em que eu tenho sentido o mesmo.

A mão em cima do ombro de Cadfael espalhou os dedos compridos, vigorosos, com força na sua carne e retirou-se. Ele abriu os olhos e viu, ao seu lado, uma figura magra, escura, um rosto oval, aquilino, com maçãs do rosto salientes, a olhar para ele com uma expressão impessoal e um ar grave e ligeiramente enervante. Olhos vivos e atentos observaram-no sem pressa, sem reticências, sem compaixão. Confrontado com um simples homem que não era seu aliado nem seu inimigo, Philip FitzRobert observava-o com uma espécie de percepção curiosa, mas profunda, a que era difícil escapar.

- Há sofrimento, irmão, até mesmo aqui, no regaço da Igreja?

- Em todo o lado há sofrimento - respondeu Cadfael -, tanto cá dentro como lá fora. Existem poucos esconderijos. É a natureza do mundo.

- Eu já senti isso - disse Philip, afastando-se um pouco, mas sem se ir embora, nem o libertando dos seus penetrantes e altivos olhos escuros. Ele era, ao seu modo severo, um homem atraente e jovem, demasiado jovem para controlar totalmente a sua poderosa mente. Ainda não tinha trinta anos, a idade de Olivier, e, na semiobscuridade, parecia um reflexo enevoado de Olivier. - Que o sofrimento seja apagado da sua memória, irmão - disse Philip -, quando os estranhos abandonarem este local e, pelo menos, o deixarem em paz. Do mesmo modo que nós seremos apagados da memória quando os cascos dos cavalos deixarem de se ouvir.

- Que Deus o ouça - disse Cadfael, sabendo que isso não aconteceria.

Philip deu meia volta e afastou-se dele, penetrando na luz um pouco mais clara da nave, e as velas iluminaram um jovem gracioso, de passo leve; deu a volta ao coro e subiu até ao altar principal. E Cadfael ficou a pensar por que motivo, naquele momento de estranha camaradagem em que fora erroneamente tomado por um irmão daquela casa, ele não perguntara cara a cara ao filho de Gloucester quem tinha Olivier de Bretagne em seu poder; interrogando-se também se se calara porque aquele não era o momento nem o local certo, ou porque tivera medo da resposta.

As Completas, o último ofício religioso do dia, que deveriam ter significado a conclusão de um ciclo de oração e o reconhecimento dos esforços e dos feitos do dia, por mais imperfeitos e humildes que estes tivessem sido, significou naquela noite uma última ostentação de orgulho e a exibição de um rival contra o outro. Se, por enquanto, não conseguiam triunfar no campo de batalha, cada um deles tentaria, pelo menos, exceder o outro em resplendor e devoção. A Igreja talvez beneficiasse com a exuberância das suas esmolas. O reino certamente que não ganharia nada.

A imperatriz, afinal, não estava disposta a deixar nem mesmo aquele último campo para o seu rival. Ela entrou com um esplendor sombrio, acompanhada, não pelas suas damas de companhia, mas sim pelo mais novo e mais belo escudeiro da sua casa, e seguida pelos seus barões mais poderosos, deixando que a plebe se aglomerasse e preenchesse os últimos cantos escuros da nave. O seu traje azul escuro e dourado tinha o brilho sombrio e duro das armaduras, o que talvez tivesse sido propositado, e ela tinha excluído as mulheres do séquito, considerando-as irrelevantes numa batalha em que ela era igual a qualquer homem, e em que mulher nenhuma se lhe podia comparar. Ela preferia esquecer a competente e heróica rainha de Stephen que dominava sem rival no sudeste, mantendo inviolável o coração e a origem da soberania do marido.

E Stephen chegou, com um passo vigoroso, descontraidamente sumptuoso, com a altiva cabeça loura descoberta, um rei da cabeça aos pés. Ranulf de Chester, todo ele sorrisos complacentes, mantinha-se possessivamente ao seu lado direito, como se tivesse adquirido esse direito através de uma nomeação real recentemente concebida e especialmente criada para um novo e valioso aliado. À esquerda estava William Martel, o seu administrador, e Robert de Vere, o condestável, seguia atrás, a um passo mais lento. A lealdade antiga e demonstrada não precisa de beija-mãos. Só alguns minutos depois, observou Cadfael do seu distante canto escuro do coro, é que Philip FitzRobert saiu, sem pressa, do local onde estivera a meditar e ocupou o seu lugar entre os apoiantes do rei; ele também não se preocupou em garantir que o rei reparava na sua presença e deixou-se ficar entre as fileiras da retaguarda. A discrição e o retraimento não o diminuíam.

Cadfael procurou Hugh e viu-o no meio dos homens do conde de Leicester, que tinha reunido à sua volta alguns dos jovens mais firmes e fiáveis. Mas não viu Yves. Quando o ofício religioso começou, havia tanta gente na igreja que os retardatários teriam dificuldade em encontrar um canto na nave ou no pórtico. Os rostos retrocediam numa obscuridade salpicada. As janelas estavam a escurecer, expulsando o mundo exterior do que se passava ali dentro. E parecia que os bispos tinham aceite, com tristeza, o fracasso dos seus esforços para obterem alguma esperança de paz, pois havia um tom de solenidade no discurso de despedida que Roger dirigiu à congregação.

- E eu suplico-vos, utilizai bem esta noite antes de dispersardes e retomardes a guerra e a contenda. Fostes aqui chamados para reflectir sobre as enfermidades do país, e embora, de momento, tenhais desistido de qualquer cura, não podereis sacudir das vossas almas o fardo do sofrimento da Inglaterra. Utilizai esta noite para continuar a rezar e para meditar e, se mudardes de ideias, sabei que não é demasiado tarde para o dizer e mudar as ideias dos outros. Vós que conduzis... e também nós a quem Deus confiou o bem-estar das almas... nenhum de nós poderá escapar à culpa se espoliarmos e ignorarmos os nossos deveres para com os homens entregues ao nosso cuidado. Vão em paz e reflictam sobre estas questões.

A última bênção soou como um aviso, e a abóbada ecoou a voz sonora e veemente do bispo como pequenos trovões distantes da ira de Deus. Mas nem o rei nem a imperatriz se deixariam impressionar grandemente. É certo que os ecos os mantiveram imóveis nos seus lugares até os membros do clero terem quase chegado à porta da sacristia, mas eles esqueceriam todos os avisos assim que saíssem da igreja, tal como fariam todos os guerreiros à sua volta.

Alguns dos retardatários tinham-se retirado silenciosamente para permitir a saída ordeira dos monges e a partida dos príncipes. Eles saíram em direcção ao pórtico sul, ao crepúsculo profundo do claustro e ao frio do anoitecer. E algures entre os primeiros, a alguns metros da arcada norte, ouviu-se um grito agudo e o som de alguém a tropeçar e a ser amparado quando estava prestes a cair. Não foi um grito suficientemente alto para se ouvir no interior da igreja, apenas uma exclamação de espanto, mas o grito de alarme e consternação que se lhe seguiu no momento seguinte foi ouvido até na santidade do coro. E a mesma voz ergueu-se num tom urgente, suplicando:

- Ajudem aqui! Tragam archotes! Alguém se magoou... Há um homem caído no chão...

Os bispos ouviram, recuaram do limiar da sacristia e ficaram imóveis durante um instante, de ouvidos atentos, antes de se dirigirem apressadamente para a porta sul. Os que estavam mais próximos desta já tinham obstruído a porta na sua pressa de sair e irrompiam em todas as direcções como sementes de uma vagem deiscente, à medida que a pressão atrás deles os expulsava para a noite. Mas o congestionamento abriu-se miraculosamente como o Mar Vermelho quando Stephen avançou, sem sequer dar precedência à imperatriz, embora esta não viesse muito atrás dele, arrastada pelo ímpeto da sua passagem. Ela emergiu, excitada e indignada, mas em silêncio, e Stephen falou num tom alto e peremptório.

- Luz! Depressa! Estais surdos? - E ele seguiu ao longo da arcada norte do claustro, em direcção ao alarme que agora se transformara em silêncio. A obscuridade debaixo da abóbada fê-lo parar o tempo suficiente para que aparecesse alguém com um archote a arder, até uma rajada de vento, vinda com o frio do anoitecer, fazer com que uma chama lambesse os dedos que o seguravam, e estes largaram-na com um grito, fazendo-a crepitar contra as lajes.

O irmão Cadfael, consciente do agreste vento da noite, tinha posto de parte a ideia das velas, mas recordou-se de que vira uma lanterna de chifre no pórtico e levou um dos castiçais consigo para o ir buscar e acender. Um dos monges estava ao lado dele com um archote arrancado ao seu suporte, e um dos jovens de Leicester tinha-se apoderado de um dos braseiros de ferro do pátio exterior, com o seu comprido poste. Dirigiram-se os dois para o ajuntamento na arcada norte do claustro, e abriram caminho para lançar luz sobre a causa do clamor.

Nas lajes nuas no exterior do terceiro recanto da arcada estava um homem estendido sobre o seu lado direito, com os joelhos ligeiramente encolhidos, uma madeixa espessa de cabelo castanho claro a esconder-lhe o rosto e os braços caídos desamparadamente sobre as pedras. A roupa escura assinalava o seu estatuto social, e havia uma arma embainhada sobre a anca esquerda, com a ponta no interior da ombreira do recanto, e os dedos dos pés a tocar no limiar. E, inclinado sobre ele, a pôr-se de pé, Yves Hugonin olhava para eles com uma expressão de choque e perplexidade nos olhos e no rosto pálido.

- Eu tropecei nele no escuro. Ele está ferido...

Ele olhou para a sua própria mão, e havia sangue nos seus dedos. O homem que se encontrava aos seus pés estava mais quieto do que qualquer ser vivo deveria estar, e o rei, a imperatriz e metade da nobreza do país olhavam para ele, imóveis, fascinados. Seguidamente, Stephen inclinou-se e colocou uma mão sobre o ombro curvado, rolou o corpo e colocou-o de costas, virando para a luz dos archotes um rosto que tinha agora uma expressão fixa de espanto, os olhos semiabertos e um peito largo desfigurado por uma mancha de sangue que se espalhava e escurecia lentamente perante os seus olhos.

Atrás do ombro de Stephen, ouviu-se um grito mudo, baixo, rigidamente controlado e duro, tão breve quanto assustador. E Philip FitzRobert abriu também caminho por entre a multidão e ajoelhou-se junto do corpo imóvel, baixando-se para colocar uma mão sobre a carne ainda quente da testa e da garganta, levantar uma pálpebra e olhar para um olho que não manifestou qualquer reacção à luz ou à escuridão e, seguidamente, de um modo igualmente brusco, quase violento, fechar as duas pálpebras. Ele ergueu a vista por cima do corpo morto de Brien de Soulis e lançou um olhar sombrio a Yves.

- Trespassaste-lhe o coração, e ele nem sequer tinha desembainhado a espada! Todos nós sabemos que o odiavas, não é verdade? Conforme ouvi dizer a outros que viram, atacaste-o assim que aqui entraste. A tua ira contra ele depois disso, essa eu vi com os meus próprios olhos. Vossa Graça, tendes aqui um assassínio! Um assassínio, senhores bispos, num local sagrado, durante a oração a Deus! Prendam este homem para que a lei o julgue, ou permitam-me que o desafie e tire a sua vida em compensação pela vida que ele tirou.

 

A voz cortante e o olhar feroz fizeram Yves vacilar e dar um passo atrás, soltando uma pequena exclamação de choque e incredulidade. Sentindo-se protegido pelo seu estatuto e privilégio, não lhe ocorrera que se tinha colocado em risco de ser alvo de tais suspeitas. Ficou a olhar, de boca aberta, e, pobre inocente, sentiu-se até tentado a esboçar um sorriso de incredulidade, quase uma gargalhada, antes de se aperceber da verdade. Nesse momento, ficou mais branco que a sua camisa e, ao lançar um olhar desvairado em volta, reconheceu a mesma convicção numa dúzia de pares que o rodeavam. Respirou fundo e conseguiu finalmente falar.

- Eu? Julgai que eu... ? Eu saí agora mesmo da igreja. Tropecei nele. Ele estava ali caído tal como o vedes...

- Há sangue na tua mão - disse Philip por entre os dentes cerrados. - E há uma boa razão para teres sangue nas tuas mãos! Quem mais? Tu estavas perto do corpo dele, e não havia mais ninguém por aí a não ser tu. E tu guardavas-lhe rancor, como toda a gente aqui sabe.

- Eu encontrei-o assim - protestou Yves vigorosamente. - Ajoelhei-me para lhe tocar, sim, estava escuro, eu não sabia se ele estava vivo ou morto. Dei um grito quando tropecei nele. Vocês ouviram-me. Pedi que viessem, que trouxessem luz, para o ajudar, se é que era possível dar-lhe alguma ajuda...

- Que melhor maneira - perguntou Philip num tom de azedume - de pareceres inocente do que chamares apressadamente testemunhas? Ias a fugir, não tiveste tempo de desaparecer deixando o teu homem caído no chão, morto. Este era um homem meu, meu oficial, eu prezava-o muito! E, se houver justiça, vais pagar o seu preço.

- Estou a dizer-vos que tinha acabado de sair da igreja e tropecei nele. Cheguei tarde, estava mesmo à porta. - Nessa altura, ele já tinha tomado consciência da difícil situação em que se encontrava, e a sua voz era enérgica, argumentativa e decidida. - Deve haver alguém aqui que esteve ao meu lado na igreja, pessoas que chegaram atrasadas como eu. Elas podem testemunhar que eu acabara de entrar no claustro. De Soulis tem uma espada! Eu estou armado? Usai os vossos olhos! Não tenho qualquer espada, punhal, não trago arma nenhuma! As armas estão proibidas a todos os que assistem às cerimónias religiosas. Eu vim assistir às Completas e deixei a minha espada nos meus aposentos. Como é que eu podia tê-lo morto?

- Estás a mentir - disse Philip, de pé junto do corpo do seu amigo. - Não acredito que tenhas estado dentro da igreja. Há alguém aqui a falar em tua defesa? Não ouço ninguém. Enquanto estivemos lá dentro tiveste tempo suficiente, mais do que suficiente, para limpar a tua lâmina e levá-la para os teus aposentos, enquanto esperavas que o ofício terminasse, para então nos chamares e nos levares a encontrá-lo morto, contigo desarmado e a dizer que um inimigo desconhecido o matou. Foste tu, inimigo conhecido! Ninguém duvida que esta seja obra tua, tem forçosamente que ser.

Cadfael, encurralado no meio de tanta gente apinhada, não conseguia abrir caminho na direcção do rei e da imperatriz, nem fazer-se ouvir acima do clamor de uma dúzia de vozes que já discutia no claustro. No meio das cabeças de pescoço esticado, ele conseguia ver o rosto implacável de Philip, iluminado pela luz do archote. Sem dúvida que algures entre a algazarra da exaltação e da consternação dos adversários, as vozes dos bispos estavam erguidas a chamar à razão e a pedir silêncio, mas sem qualquer resultado, sem sequer serem ouvidas. Foi necessário o grito autoritário de Stephen para penetrar no barulho e abafar todos os outros sons.

- Silêncio! Parai com o barulho!

E o silêncio caiu, esmagador, como uma pedra. Por um instante, todo o movimento cessou e todos sustiveram a respiração. Foi apenas um momento, depois, quase furtivamente, pés arrastaram-se, mangas tocaram-se, inspirou-se sofregamente e até mesmo os comentários foram retomados em tons baixos e murmúrios sibilantes, mas Stephen tinha o seu campo e ocupou-o autoritariamente.

- Agora vamos pensar um pouco antes de acusarmos ou ilibarmos qualquer homem. E, antes de mais, que alguém que sabe do assunto se certifique de que este homem já não pode ser ajudado, senão seremos todos culpados da sua morte. Um rapaz que caiu em cima dele no escuro, quer ele próprio tenha desferido o golpe ou não, não pode certamente dar um veredicto de médico. William, certifica-te.

William Martel, com experiência de muitos anos de mortes provocadas por lâminas de aço ao longo de muitas campanhas, ajoelhou-se ao lado do corpo e virou-o pelo ombro de modo a ele ficar estendido, expondo à luz do archote o peito ensanguentado, o casaco rasgado e o ferimento estreito a jorrar sangue. Ele descerrou uma pálpebra e reparou no olhar fixo.

- Está morto. Com o coração trespassado, certamente. Não se pode fazer nada por ele.

- Há quanto tempo? - perguntou o rei secamente.

- Não é possível saber. Mas muito recentemente.

- Durante as Completas? - O ofício religioso não era muito comprido, embora, naquela noite fatídica, se tivesse arrastado um pouco para além do habitual.

- Eu vi-o vivo - disse Martel -, minutos antes de termos entrado. Pensei que ele nos tivesse seguido. Não reparei se ele estava armado.

- Por conseguinte, se se provar que este jovem esteve lá dentro durante toda a cerimónia religiosa - disse o rei num tom pragmático -, ele não pode ser culpado do assassínio. Não foi uma luta em pé de igualdade, porque De Soulis não teve tempo de pegar na espada. Assassínio.

Uma mão agarrou suavemente na manga de Cadfael. Hugh tinha conseguido atravessar discretamente a multidão para chegar ao pé dele. Ele murmurou, num tom de urgência, ao ouvido de Cadfael:

- Podes falar em defesa dele? Ele estava lá dentro? Viste-o?

- Quem me dera tê-lo visto! Ele diz que chegou mais tarde. Eu estava muito à frente no coro. A igreja estava cheia, os últimos ficaram apertados entre as portas. - Em cantos sem iluminação, e provavelmente com poucos ou nenhuns conhecidos por perto que os reconhecessem ou falassem com eles. Era muito fácil não ser notado, e uma razão convincente para que Yves fosse um dos primeiros a sair para o claustro, tropeçando num homem morto. O facto de, quando caiu, o seu primeiro grito ter sido uma simples exclamação de alarme sem palavras devia falar a seu favor. Só um minuto mais tarde é que ele dissera o motivo por que tinha gritado.

- Não importa! - disse Hugh em voz baixa. – Stephen identificou a questão certa. Certamente que alguém saberá. E, se tudo o mais falhar, a imperatriz nunca permitirá que Philip FitzRobert ponha um dedo em cima de qualquer homem seu. Não por causa da morte de um homem que ela detesta! Olha para ela! Cadfael teve de esticar o pescoço e de se deslocar um pouco para o fazer pois, embora ela fosse alta para mulher, estava rodeada de homens muito mais altos. Mas, uma vez descoberta, ela era claramente visível sob a luz do archote, com o rosto composto e severo, mas com os olhos grandes a brilhar com uma insinuação de felicidade e os cantos dos lábios repuxados numa sombra austera de um sorriso exultante. Não, ela não tinha qualquer motivo para chorar a morte do homem que tinha atraiçoado Faringdon, nem para sentir compaixão pela dor e ira do seu senhor e protector que tinha entregue o seu castelo de Cricklade ao inimigo. E, enquanto Cadfael a observava, ela virou um pouco a cabeça e olhou atentamente para Yves Hugonin, e as subtis sombras que tocavam os cantos dos seus lábios ficaram mais profundas e, por um momento, o sorriso tornou-se óbvio. Não voltou a mover-se, por enquanto não o faria. As outras testemunhas que fizessem tudo por ela, se isso fosse possível. Não havia necessidade de despender esforços a não ser que fossem necessários. Ela tinha o seu meio-irmão, Roger de Hereford, de um lado, e Hugh Bigod do outro, força suficiente para impedir qualquer tentativa de acção contra um protegido seu.

- Falai! - disse Stephen, olhando em volta para os rostos atentos, agora circunspectos e imóveis, que olhavam de soslaio para os seus vizinhos, observando o rosto exaltado do rei. - Se alguém aqui puder dizer que viu este homem no interior da igreja durante as Completas, então fale e diga-o, aja correctamente para com ele. Ele diz que veio desarmado, como era seu dever, para orar a Deus, e que esteve connosco até ao fim do ofício religioso. Quem confirma o que ele diz?

Ninguém se moveu, para além de se virar para observar a reacção dos outros. Ninguém falou. Fez-se silêncio.

- Como Vossa Graça está a ver - disse finalmente Philip, quebrando o prolongado silêncio -, não há ninguém disposto a confirmar o que ele diz. E não há ninguém que acredite nele.

- Não existe qualquer prova de que ele esteja a mentir - disse Roger de Clinton. - Acontece demasiadas vezes a verdade não ter testemunhas e ninguém acreditar nela. Não estou a dizer que se tenha provado que ele diz a verdade, mas também não se provou que esteja a mentir. Não temos aqui o testemunho de todos os homens que vieram às Completas esta noite. Mesmo que tivéssemos, isso não seria uma prova segura de que ele está a mentir. Mas se um só homem dissesse "Eu estive ao lado dele perto da porta até ter sido rezada a última oração, e saímos para deixar a porta livre", nesse caso, a verdade seria óbvia. Vossa Graça, temos que investigar melhor.

- Não há tempo - disse o rei, franzindo o sobrolho. - Amanhã deixamos Coventry. Para quê demorar mais? Já foi tudo dito.

De regresso ao campo de batalha, pensou Cadfael, perdendo, por um momento, a esperança no seu semelhante, cujo fogo tinha sido ateado por aquela pausa.

- No interior destas muralhas - disse Roger de Clinton, exaltado -, eu proíbo a violência mesmo em paga da violência, e mesmo fora destas muralhas eu peço-vos que renuncieis a todas as vinganças. Se não puder haver uma investigação adequada de acordo com a justiça, então até mesmo os culpados entre nós devem ir em liberdade.

- Não necessariamente - disse Philip num tom sombrio. - Eu exijo um preço em sangue pelo meu homem. Se sua Graça pretende justiça, então permiti que este homem fique agrilhoado aqui, que os guardas da cidade o observem e detenham para julgamento. É desta forma que se aplica a justiça neste país, não é verdade? Então utilizai-a! Entreguem-no à justiça, é tão certo como a morte que ele infringiu a lei, e deve uma morte por uma morte. Como podeis duvidar disso? Quem mais esteve aqui? Quem teve uma discussão tão acesa com Brien de Soulis ou tinha um ressentimento tão amargo contra ele? E nós encontrámo-lo de pé junto do homem morto, sem mais ninguém por perto, e ainda duvideis?

E, de facto, pareceu a Cadfael que a azeda convicção de Philip estava a transmitir-se até mesmo ao rei. Stephen não tinha grande motivo para acreditar nos protestos de inocência, contra todas as aparências, de um jovem desconhecido, um jovem dedicado à causa oposta e suspeito de o privar de um útil guerreiro que recentemente lhe prestara um notável serviço. Ele hesitou, visivelmente desejoso de transferir o fardo para outros ombros e de partir novamente para se dedicar aos seus assuntos marciais.

A sugestão de que não estava a manter devidamente a lei nos seus domínios impelia-o a entregar Yves às autoridades seculares e lavar as suas mãos do assunto.

- Eu tenho uma coisa a dizer a esse respeito - disse a imperatriz lentamente, erguendo a voz para se fazer ouvir claramente. - Esta conferência foi convocada tendo em conta a questão dos salvo-condutos de ambos os lados, para que nos pudéssemos reunir sem medo. Independentemente do que possa ter acontecido aqui, isso não pode quebrar esse acordo. Eu vim cá com várias pessoas no meu séquito e partirei amanhã com o mesmo número, pois todos eles estavam cobertos por salvo-condutos, e contra os quais, seja este jovem escudeiro seja qualquer outro, não foi provado qualquer crime. Se lhe tocarem, fá-lo-ão ilegalmente. Se o prenderem, terão cometido perjúrio e uma indignidade. Partimos amanhã, tantos como viemos.

Ela moveu-se com um ar decidido, afastando os que estavam no caminho e entendeu a mão imperiosamente para Yves. A sua manga roçou desdenhosamente no braço de Philip, ao mesmo tempo que o rapaz pálido obedecia ao seu gesto e dava meia volta para ir com ela para onde ela o mandasse. As fileiras recuaram e abriram-se à sua frente. Cadfael viu-a virar-se para sorrir para o seu acompanhante, e ficou espantado com o facto de o rosto do rapaz olhar para ela com uma expressão vazia de gratidão, veneração ou alegria.

Ele regressou aos aposentos deles meia hora depois. Ela não lhe permitiu percorrer aquela curta distância sem um guarda, com receio de que Philip ou qualquer outro inimigo tentasse vingar-se enquanto ele estivesse ali ao seu alcance. Embora o interesse dela, reflectiu Yves com tristeza, não fosse provavelmente durar muito. Ela protegê-lo-ia ciosamente do perigo até todo o séquito se encontrar em segurança na estrada de regresso a Gloucester, depois esquecer-se-ia dele. Era a si própria que ela queria demonstrar que tinha poder para o manter incólume. A dívida que tinha para com ele, ou que acreditava que tinha, ficava assim amplamente paga. Ele não tinha qualquer importância duradoura.

E, no entanto, o toque vital da mão dela na dele, a conduzi-lo desdenhosamente para fora do círculo dos seus inimigos, só podia incendiar o sangue dele. Mesmo que ele o sentisse novamente congelar ao recordar-se do que ela acreditava a respeito dele, daquilo por que ela lhe atribuía valor. De todos os que acreditavam que ele tinha assassinado Brien de Soulis, a imperatriz Maud era quem estava mais convencida. Recordou-se da voz suave que ainda o perseguia, dando ordens subtis através de rodeios. Ele era um jovem leal, argila nas mãos dela, cegamente dedicado à imperatriz como todos eles, e não havia nada que ela não lhe pedisse, por mais indirectamente que o fizesse, que não seria compreendido e obedecido. E claro que ele o negaria, até mesmo a ela. Ele sabia qual era o seu dever. A morte de De Soulis era um assunto que não deveria ser referido, que nunca deveria ser admitido.

Nessa noite foram-lhe feitas poucas perguntas, até mesmo pelos seus amigos; sobretudo pelos seus amigos. Eles não tinham a certeza de que ele estivesse em segurança e mantiveram-se perto dele, não o deixando longe na sua vista até ele se encontrar na protectora companhia da escolta da imperatriz na manhã seguinte, de partida para Gloucester.

Ele arrumou os seus poucos pertences antes de dormir.

- Tenho que ir - disse ele, sem acrescentar nada que explicasse o tom de relutância na sua voz. - E não estamos mais perto de descobrir o que fizeram com o Olivier.

- Eu ainda não dei por encerrado esse assunto - disse Cadfael. - Mas, quanto a ti, é melhor ires-te embora daqui e esquecer.

- Com esta sombra a pairar sobre o meu nome? - respondeu Yves com amargura.

- Eu também ainda não dei isso por terminado. A verdade acabará por ser conhecida. É difícil enterrar a verdade para sempre. Uma vez que certamente não foste tu quem matou Brien de Soulis, há algures entre nós um homem que o fez, e quem descobrir o seu nome retirará a sombra do teu. Se é que, de facto, há alguém que realmente acredite que sejas culpado.

- Oh, sim - disse Yves com um sorriso irónico e doloroso. - Há, sim. Pelo menos uma pessoa!

Mas foi o mais perto que ele esteve de atribuir um nome a essa pessoa, e Cadfael não insistiu.

De manhã, partiram todos, grupo após grupo. Philip FitzRobert foi-se embora, sozinho como viera, antes de o sino tocar para a Hora Prima, sem se despedir. O rei Stephen esperou para assistir à missa antes de reunir todos os seus barões à sua volta e seguir rapidamente para Oxford. Alguns lordes do Norte partiram para as suas terras para as colocar em segurança, antes de concentrarem a sua atenção no rei ou na imperatriz. Esta partiu para Gloucester a meio da manhã, tendo-se deixado ficar para trás, para se certificar de que o seu rival deixava a cidade antes dela e não aproveitava aquela oportunidade para recrutar apoios nas costas dela.

Yves tinha ido sozinho à igreja quando o grupo começou a reunir-se, e Cadfael, seguindo-o a uma distância discreta, encontrou-o ajoelhado junto de um altar do transepto, evitando que as suas devoções privadas fossem notadas. Foi o ar de infelicidade estampado no rosto do rapaz que levou Cadfael a pôr de parte a discrição e a aproximar-se. Yves ouviu-o aproximar-se e virou-se para ele com um pequeno sorriso pálido e pôs-se rapidamente de pé.

- Estou pronto.

A mão que se apoiou no genuflexório tinha um anel que Cadfael nunca vira antes. Era uma aliança de ouro, nada de espectacular, e tão pequena que tinha que ser usada no dedo mindinho do rapaz. O tipo de objecto que uma mulher daria a um pajem como recompensa por um serviço especial. Yves viu os olhos de Cadfael poisarem nele e começou instintivamente a retirá-lo do seu campo de visão, mas mudou de ideias e deixou-o ficar. Baixou os olhos, para olhar para a fina aliança com um rosto inexpressivo.

- Ela deu-te isso? - perguntou Cadfael, apercebendo-se de que lhe era permitido fazer a pergunta, até mesmo que Yves esperava que a fizesse.

Meio resignado, meio grato, Yves respondeu simplesmente:

- Deu - acrescentando de seguida: - Eu tentei recusar.

- Não o usaste ontem à noite - disse Cadfael.

- Não. Mas agora ela estará a contar... eu não sou suficientemente corajoso - disse Yves num tom irónico - para a enfrentar e deitá-lo fora. A meio caminho de Gloucester ela ter-se-á esquecido de mim e depois poderei dá-lo a um santuário... ou a um pedinte que encontre pelo caminho.

- Porquê? - perguntou Cadfael, sondando deliberadamente aquela ferida óbvia. - Foi por serviços prestados?

Yves virou a cabeça com um movimento brusco de dor e começou a dirigir-se para a porta. Ao longe, ele disse, parecendo sufocar nas palavras:

- Foi imerecido. - E acrescentou, num tom mais suave: - Não fiz nada para o merecer.

Eles tinham partido, os últimos dos cintilantes cortesãos e comandantes do exército, os reis e os fazedores de reis, e os dois bispos visitantes, Nigel de Ely, de regresso à sua própria diocese, Henry de Blois que ia acompanhar o seu real irmão até Oxford, antes de seguir para a sua própria diocese de Winchester. Tinham partido sem que nada tivesse ficado decidido, nada resolvido, com a paz tão distante como sempre. E na capela mortuária havia um homem morto à espera de ser colocado num caixão e sepultado onde quer que a sua família, se é que ele tinha família, desejasse enterrá-lo. No pátio principal reinava uma calma ainda maior do que a habitual, uma vez que o tráfego comum entre a cidade e o priorado ainda não tinha sido retomado após a partida das duas cortes de um país dividido.

- Fica mais um ou dois dias - pediu Cadfael a Hugh. - Faz-me esse favor pois, se eu voltar contigo, estou a obedecer às condições. Deus sabe que, se eu puder, irei manter os limites que me foram impostos. Até mesmo um dia poderá dizer-me o que eu quero saber.

- Depois de o rei, a imperatriz e os seus séquitos terem negado saber onde poderá estar Olivier? - fez notar suavemente Hugh.

-Mesmo assim. Havia alguns aqui que sabiam - disse Cadfael num tom de certeza. - Mas, Hugh, também há a questão do Yves. É verdade que a imperatriz estendeu a sua capa sobre ele e o levou consigo são e salvo, mas será isso suficiente? Ele não terá paz até se saber quem fez o que ele certamente não fez. Dá-me mais alguns dias, e deixa-me pelo menos pensar um pouco sobre esta morte. Eu pedi aos irmãos aqui que me comunicassem qualquer coisa que eles pudessem ter ouvido dizer sobre a rendição de Faringdon. Dá-me tempo, pelo menos para eu ter a certeza de que a palavra se espalhou, e para ter uma resposta se algum homem aqui tiver uma resposta para me dar.

- Eu posso prolongar a minha ausência por um dia ou dias - concordou Hugh num tom de dúvida. - E, de facto, eu detestaria voltar sem ti. Acho boa ideia tranquilizar o rapaz e atribuir a culpa a quem ela pertence. Se - acrescentou ele com um esboço de sorriso -, se é que se pode puder culpar alguém por ter removido De Soulis do inundo. Não, não digas nada! Eu sei! Um assassinato é um assassinato, uma maldição tanto para quem mata como para quem morre, e não podemos ficar-lhe indiferente, seja quem for o morto. Queres vê-lo outra vez? Uma punhalada precisa, frontal, não houve emboscada de trás. Mas estava escuro lá dentro. Um espadachim experiente que estivesse à espera dele e estivesse habituado a ver no escuro não teria qualquer dificuldade.

Cadfael reflectiu.

-Sim, vamos dar outra vista de olhos ao homem. E os seus pertences? Ainda estão a cargo do prior? Achas que podíamos perguntar?

- O bispo talvez permitisse. Ele não está mais satisfeito de ter um assassino no seu recinto do que tu.

Brien de Soulis estava deitado sobre uma pedra da capela, coberto por um lençol de linho mas ainda não amortalhado, e o seu caixão ainda se encontrava nas mãos dos carpinteiros. Parecia que tinha sido deixado dinheiro para um funeral nobre. Teria sido um gesto de Philip?

Cadfael puxou o lençol para trás para destapar o corpo até à ferida, agora um mero corte preto azulado, com as orlas com pequenas nervuras, um golpe com o comprimento de uma unha. O corpo, sem quaisquer outras marcas, era musculoso e gracioso, o rosto mantinha o seu desdenhoso aspecto atraente, mas estava frio e duro como o alabastro.

- Não foi uma espada que fez isto - disse Cadfael num tom seguro. - O fluxo do sangue escondeu tudo quando ele foi encontrado. Mas isto foi feito por um punhal, nem sequer muito comprido, mas suficientemente comprido. Não penetrou muito fundo no coração. E fino, muito fino. O cabo não deixou qualquer marca. Foi mergulhado e retirado rapidamente, suficientemente depressa para o assassino se conseguir retirar antes de a ferida começar a sangrar, não ficando, portanto, sujo de sangue. Não vale a pena procurar roupa manchada, um corte assim tão pequeno não se abre e jorra como uma fonte. Quando começou a fluir rapidamente, o assassino já se tinha ido embora.

- E não ficou para ter a certeza de que fizera o trabalho bem feito? - perguntou Hugh.

- Ele teve a certeza. Agiu de uma forma muito calma, muito decidida, muito eficaz. - Cadfael cobriu novamente o rosto imóvel como a pedra. -Aqui não há mais nada. Vamos ver outra vez o local onde aconteceu?

Passaram pela porta sul e emergiram na arcada norte do claustro. O corpo tinha estado caído no exterior do terceiro recanto, com os dedos dos pés no limiar. No local em que o sangue passara através do seu lado direito e sujara as lajes, ainda era visível uma leve mancha cor-de-rosa, com o comprimento de uma mão. Alguém a tinha limpo, mas ainda se via a forma.

- Sim, aqui - disse Hugh. - Mesmo que tivesse havido luta, as pedras não mostram qualquer marca, mas calculo que não tenha havido. Ele foi apanhado completamente de surpresa.

Sentaram-se os dois no recanto para reflectir sobre o alinhamento da cena.

- Ele foi atingido pela frente - disse Cadfael - e, quando o punhal foi retirado, caiu para a frente, do recanto para a arcada. Certamente que estava ali à espera. De alguém. Ele próprio trazia uma espada e um punhal, por isso o seu destino não eram as Completas. Se ele ia encontrar-se com alguém aqui em privado, era com certeza alguém em quem ele confiava, alguém que ele não punha em causa, senão como é que ele conseguiu chegar tão perto dele? Se fosse o Yves... e nós sabemos que não era... De Soulis teria desembainhado a espada antes de o rapaz se aproximar. A hostilidade óbvia entre aqueles dois não era a história toda. Devia haver cinquenta homens no interior destas paredes que detestavam o homem pelo que ele fez em Faringdon. Alguns dos que lá estavam e escaparam a tempo, muitos outros do séquito da imperatriz que não estavam lá mas, mesmo assim, não lhe perdoaram a traição. Ele seria cauteloso com qualquer homem desconhecido que o confrontasse, e confiaria nos homens da sua própria facção e com ideias semelhantes.

- E a respeito deste ele enganou-se fatalmente - disse Hugh.

- Como é que a traição podia estar preparada para a contra-traição? Ele atraiçoou a imperatriz, agora um dos seus atraiçoou-o a ele. Ele foi tão enganado como ela foi por ele. É assim a vida.

- Suponho - disse Hugh lançando um ar grave ao seu amigo - que podemos acreditar e, de facto, acreditamos que tudo o que Yves disse é verdade? Eu faço-o de bom grado apenas porque o conheço. Mas não devíamos ter em conta como tudo isto deve parecer aos olhos dos que não o conhecem?

- Podemos fazê-lo - respondeu Cadfael com veemência - e continuar a ter a certeza. É verdade que ninguém o viu entre os últimos a entrar na igreja, mas isso é bem possível. Ele disse que chegou tarde e que não falou com ninguém porque o ofício religioso já tinha começado. Ele ficou num canto escuro mesmo à entrada da porta, daí que, no fim, fosse um dos primeiros a sair, para desimpedir o caminho. Ouvimo-lo gritar, primeiro foi apenas uma exclamação de surpresa quando tropeçou, depois foi o alarme. Se ele não tivesse, de facto, assistido às Completas e tivesse tempo para agir calmamente quando quase todos estavam dentro da igreja, porque é que ele havia de gritar? Para dissimular, como Philip o acusou, para parecer inocente? Yves é inteligente, mas não é dissimulado. E, se não havia ninguém atrás dele no claustro, ele teve tempo suficiente para se esgueirar e deixar que outra pessoa encontrasse o morto. Ele não estava armado, a sua espada foi encontrada, tal como ele disse, nos seus aposentos, e não tinha qualquer indício de ter estado ensanguentada. Ele tivera, disse Philip, todo o tempo de duração das Completas para a sujar de sangue, limpar e voltar a colocá-la nos seus aposentos. Mas eu vi a lâmina e não encontrei qualquer vestígios de sangue. Não, se ele tivesse o tempo das Completas à sua disposição, ele nunca teria dado o alarme, teria tido o cuidado de estar noutro local quando o morto fosse encontrado, e entre testemunhas, bem longe do primeiro clamor.

- E se ele estivesse a sair da igreja como ele diz, então não teve tempo para encontrar De Soulis e matá-lo, sem ter uma espada nem um punhal consigo.

- Obviamente. E eu penso que sabes, tal como eu sei, que a morte aconteceu antes, embora seja difícil dizer quanto tempo antes. Ele tinha tido tempo para sangrar, ainda é possível ver a poça que se formou debaixo dele. Não, não precisas de ter dúvidas. O que sabemos a respeito do nosso rapaz está certo.

- E o resto desta grande casa - disse Hugh em tom de reflexão -, estava quase todo na igreja. Não necessariamente todos, porém. E, como tu dizes, ele tinha inimigos aqui, pelo menos um mais discreto que Yves, e mais mortífero.

- E alguém-reflectiu Cadfael num tom sombrio - com quem ele não tinha necessidade de ser cauteloso. Alguém que podia aproximar-se muito dele sem levantar suspeitas, alguém de quem ele estava à espera, pois certamente que ele estava aqui, neste recanto, e avançou à vontade quando o outro chegou, e foi apunhalado aqui mesmo à entrada.

Hugh reconstituiu em silêncio o ângulo da queda, o modo como o corpo caíra, a orla da sinistra mancha de sangue, e não conseguiu encontrar qualquer falha no modo como Cadfael descrevera o encontro. Nos seus bem-intencionados esforços para unir, reconciliados, todo o poder, força e paixão de ambos os lados da disputa, os bispos tinham conseguido trazer também para o interior das muralhas um enorme caldeirão de ódio, maldade e possibilidades infinitas de mais traição.

- Mais intrigas, mais conjuras para ficarem em vantagem - disse Hugh, num tom de resignação. - Se os dois se iam encontrar aqui em segredo enquanto os barões estavam a rezar, seguramente que o objectivo desse encontro não era nada de bom. Que mais podemos fazer aqui? Disseste que querias ver os pertences que De Soulis deixou? Anda, vamos falar com o bispo.

- Os bens do homem - disse o bispo -, que ele cá tinha estão aqui ao meu cuidado, e estou a aguardar instruções do irmão dele que está em Worcester sobre as providências para o seu funeral. Não tenho dúvidas de que o seu irmão se encarregará disso. Mas se pensam que examinar as suas coisas nos pode dar uma indicação sobre como ele morreu, sim, certamente que devemos pelo menos tentar. Não podemos negligenciar quaisquer meios de descobrir a verdade. Estão plenamente convencidos - acrescentou ele num tom ansioso-de que o jovem que nos chamou para junto do corpo não é culpado da morte?

- Excelência - disse Hugh -, de tudo o que eu sei a respeito dele, ele é incapaz de mentir ou de agir sub-repticiamente. Vossa Excelência viu com os vossos próprios olhos no dia em que cá chegámos como ele saltou da sela e se dirigiu ao seu inimigo, cara a cara. Essa é mais a sua forma de agir. Ele também não tinha qualquer arma consigo. Vossa Excelência, não podeis conhecê-lo tão bem como nós, mas tanto eu como o irmão Cadfael temos a certeza a respeito dele.

- Em todo o caso - concordou o bispo -, não faz mal nenhum ver se, na bagagem do homem, há alguma coisa, carta ou qualquer outro indício, que nos diga algo sobre os seus movimentos quando saísse daqui, ou qualquer empreendimento que ele tivesse entre mãos. Muito bem! Os alforges estão aqui na sala dos paramentos.

Havia também um cavalo nos estábulos, um bom cavalo à espera de ser entregue, tal como tudo o resto, a um De Soulis mais novo, de Worcester. O bispo desapertou as correias do primeiro alforge com as suas próprias mãos e içou-o para um banco.

- Um dos irmãos arrumou as coisas e trouxe-as do salão de hóspedes, onde ele estava alojado, para aqui. Podem vê-las. - Ele ficou a observar, como era seu dever, uma vez que agora era responsável por tudo que acontecia àqueles despojos.

Os objectos pessoais de Brien de Soulis espalhados no banco perante os seus olhos, manuseados escrupulosamente por serem os bens de outro homem, eram espartanos e metódicos. Mudas de camisa e meias, os meios compactos de higiene de um cavalheiro, uma bolsa bem recheada. Era óbvio que ele viajava com pouca bagagem e que era um homem organizado. Uma bolsa de cabedal no segundo alforge continha uma caixa com sílex e isca, lacre e um sinete. Um homem com bens que viajasse para longe certamente que não iria sem o seu selo pessoal. Hugh segurou-o na mão, para o bispo o examinar. O sinete, bem delineado, era um cisne com um pescoço arqueado virado para a esquerda e emoldurado por dois ramos de chorão.

- Esse é dele - confirmou Hugh. - Vimo-lo na fivela do cinto da espada quando carregámos o corpo. Mas gravado em relevo e virado para o outro lado, claro. E isto é tudo.

- Não - disse Cadfael, com a mão a percorrer as costuras do saco vazio. - Há uma coisa pequena aqui no fundo. - Ele retirou-a e observou-a junto da luz. - Outro sinete! Porque é que um homem havia de levar dois sinetes numa viagem?

Sim, porquê? Arriscar-se a levar dois, se, de facto, tivessem sido feitos dois, era arriscar-se a que um lhe fosse roubado ou a perdê-lo, com todas as horríveis possibilidades de ele cair nas mãos de um inimigo ou de um vigarista e de ser utilizado de muitas formas proveitosas, com o consequente prejuízo para o seu proprietário.

- Não é o mesmo - disse Hugh subitamente, levando-o para junto da janela para o observar mais cuidadosamente. - Um lagarto... parecido com um pequeno dragão... não, uma salamandra, pois está num ninho de pequenas chamas pontiagudas. Não tem moldura, apenas uma única linha na orla. Gravação profunda... pouco usado. Nunca vi este. Conhece-o, Excelência?

O bispo examinou-o e abanou a cabeça.

- Não, é-me desconhecido. Por que motivo um homem levaria consigo o sinete pessoal de outro homem? Anão ser que lhe tenha sido entregue como procurador do seu proprietário, para colocar num documento na sua ausência?

-Certamente que não aqui - disse Hugh secamente -, porque aqui não houve documentos para selar, para nosso mal não houve nenhum acordo sobre qualquer assunto. Cadfael, consegues ver algum significado nisto?

- De todos os bens de um homem - respondeu Cadfael -, o sinete é aquele de que ele menos probabilidades tem de se separar. Este objecto contém em si a sua autorização, a sua honra, a sua reputação. Se o confiasse a um amigo de confiança, ele seria guardado num lugar seguro, e não deixado, desprezado, num canto de um alforge. Sim, Hugh, eu gostaria muito de saber a quem ele pertence e como chegou às mãos de De Soulis. A sua história recente não mostrou que ele fosse um homem em quem os seus conhecidos devessem depositar grande confiança ou que merecesse ser nomeado, de ânimo leve, procurador da honra de outro homem.

Ele hesitou, virando o pequeno artefacto nos dedos. Era um círculo com o diâmetro do seu polegar, com um cabo de madeira escura envernizada que se encaixava bem na palma da mão. A gravura era bem feita e precisa, com as pequenas chamas convencionais bem delineadas. A cabeça, com a boca aberta e a língua de fora, estava virada para a esquerda. O positivo ficaria virado para a direita. Imagens espelhadas, rostos secretos de seres reais, com significados terríveis. Pareceu a Cadfael que as chamas ascendentes do fogo que rodeava a salamandra crestavam os dedos que lhes tocavam, pedido para ser reconhecidos e compreendidos.

-Senhor bispo-disse ele lentamente -, posso levar este sinete? Prometo devolver-lho, a não ser que encontre o seu verdadeiro dono. Na minha mais profunda consciência, preciso dele. Ou, se isso não me for permitido, posso desenhá-lo pormenorizadamente, para ter referência?

O bispo lançou-lhe um olhar longo e penetrante, depois disse lentamente:

- Pelo menos não fará mal fazeres uma cópia. Mas terás poucas oportunidades para investigar mais esta morte, ou o paradeiro dos prisioneiros que procuras se, conforme suponho, vais regressar a casa, em Shrewsbury, agora que a conferência terminou.

- Não tenho a certeza, senhor bispo - disse Cadfael -, se irei para casa.

 

- Tu sabes, não sabes - disse Hugh num tom muito grave quando, ao crepúsculo, saíam juntos das Completas - que, se fores mais longe, eu não

posso ir contigo. Eu tenho o meu trabalho a fazer. Se virar as costas a Madog ap Meredudd durante muitos mais dias, ele vai voltar a lançar olhares cobiçosos a Oswestry. Ele nunca deixou de a querer. Deus sabe que eu detestaria voltar sem ti. E tu sabes, melhor que ninguém, que estarás a arrancar a tua vida pelas raízes se não voltares a tempo.

- E se eu não encontrar o meu filho - disse Cadfael num tom suave e razoável -, a minha vida não vale nada. Não, não te preocupes comigo, Hugh. Uma pessoa sozinha nesta tarefa pode fazer tanto como um grupo de homens armados, talvez até mais. E se eu não encontrei aqui quaisquer vestígios, o que me resta senão ir até onde ele serviu, onde ele foi atraiçoado e feito prisioneiro? Alguém lá deve saber o que lhe aconteceu. Em Faringdon haverá ecos, pegadas, pistas a seguir, e eu encontrá-los-ei.

Numa folha de pergaminho do scriptorium ele fez cuidadosamente os seus desenhos, com meticulosa precisão, um em tamanho real, outro ampliado de modo a que todos os pormenores do sinete da salamandra fossem bem visíveis. Não havia qualquer divisa ou legenda, apenas o pequeno lagarto no seu ninho de fogo. Certamente que isso tinha, de algum modo, a ver com a rendição de Faringdon e, se a sua linguagem pudesse ser interpretada, tinha algo a dizer sobre a morte de Brien de Soulis.

Hugh procurou, sem grande à vontade, algo que contribuísse para resolver os dois enigmas que estavam a conduzir o seu amigo para um exílio involuntário, mas não conseguiu dar uma grande ajuda. À falta de melhor, ele arriscou:

-Já pensaste, Cadfael, que, de todos os que poderão ter odiado De Soulis, nenhum deles tinha melhor motivo do que a imperatriz? E se ela sugeriu a um jovem apaixonado por ela que o matasse? Ela tem uma quantidade de admiradores à sua disposição. Podia ser.

- Tanto quanto eu saiba - disse Cadfael num tom grave -, assim foi. Lembras-te que ela mandou chamar Yves naquela primeira noite, depois de ter visto o rapaz atacar De Soulis? Imagino que ela tenha aceite o presságio e lhe tenha sugerido um trabalho que ele poderia fazer por ela, num local um pouco mais privado, talvez, do que o da primeira tentativa.

- Não! - exclamou Hugh, chocado e ficando imóvel. - Estás a querer dizer-me que Yves?

- Não, não é nada disso! - garantiu-lhe Cadfael num tom reprovador. - Oh, ele compreendeu o que ela queria dizer, ou eu receio que ele tenha compreendido, embora ele se tenha amaldiçoado por acreditar que era essa a intenção dela. Ele não o fez, claro que não! Até mesmo ela podia ter tido a sensatez de não o insinuar, a um inocente como ele! Mas ele não é estúpido! Ele compreendeu-a!

- Mas ela não podia ter escolhido outro para fazer o trabalho? - sugeriu Hugh, mais animado.

- Não, podes esquecer essa possibilidade. Porque ela está convencida de que Yves percebeu a insinuação e a libertou do seu inimigo. Não, a solução não está aí.

- Como assim? - perguntou Hugh, picado. - Como é que sabes tanto?

- Porque ela o recompensou com um anel de ouro. Não é um grande presente, mas é um gesto de reconhecimento. Ele tentou recusá-lo, mas não teve coragem suficiente, pobre rapaz. Oh, nunca foi dito nada claramente, e claro que ele negaria tudo, ela evitaria até que ele falasse. O rapaz sente-se desnorteado com mulheres assim. Ele está decidido a livrar-se do presente assim que o puder fazer em segurança. A gratidão dela pode não durar muito, isso ele sabe. Mas não, ela não contratou outro assassino, ela tinha a certeza de que não precisava de mais nenhum.

- Isso não pode ter exactamente contribuído para a felicidade dele - disse Hugh com um sorriso amargo. - E também não nos ajudou nada a tirar-lhe o peso de cima.

Tinham chegado à porta dos seus aposentos. No alto, o céu estava limpo e frio, as estrelas eram aos milhares mas infinitesimais no início da noite. Era a última noite ali, pois Hugh tinha deveres em casa que não podiam aguardar.

- Cadfael, pensa bem no que vais fazer. Eu sei, e tu também sabes, o que estás a arriscar. Esta não é uma simples questão de ir e vir. No local onde vais intrometer-te, um homem pode desaparecer e nunca mais voltar. Volta comigo, que eu pedirei a Robert Bossu que prossiga esta busca até ao fim.

- Não há tempo - disse Cadfael. - Eu penso, Hugh, que não há só uma alma, que há mais vidas do que a do meu filho a serem salvas; o tempo é muito pouco e o perigo está muito próximo. E se eu voltar para trás agora, não haverá ninguém para ser o eixo central sobre o qual a roda de todas as fortunas gira, seja ela o demónio ou o anjo. Mas sim, eu pensarei bem antes de me deixares. Veremos o que a manhã nos traz.

O que a manhã trouxe, no momento em que os membros da casa emergiam da missa, foi um cavaleiro cheio de pó num cavalo a espumar, a chegar meio a galope vindo da rua e a parar desajeitadamente no empedrado do pátio. O cavalo ficou parado com a cabeça caída e os flancos ofegantes, exalando vapor para o ar frio da geada e a pingar espuma dos lábios enrolados para as pedras. O cavaleiro agarrou o arção com os punhos rígidos e desmontou atabalhoadamente, quase caindo ao chão, esticou as pernas que fraquejavam e endireitou-se, apoiado no cavalo.

- Sua Excelência, senhor bispo... - Ele não conseguiu soltar a mão para fazer a vénia devida e deixou-se ficar agarrado ao seu suporte, inclinando a cabeça o mais baixo e mais respeitosamente que conseguiu. - A minha ama, a imperatriz, mandou-me comunicar-vos que está em segurança em Gloucester, com todo o seu séquito, com excepção de um homem. Meu senhor, houve traição na estrada...

- Recupera o fôlego, até mesmo as más notícias podem esperar - disse Roger de Clinton, dando uma ordem a quem decidisse obedecer. - Tragam uma bebida... aqueçam vinho para ele, mas tragam cerveja agora. E alguns de vocês ajudem-no a ir para dentro e tomem conta do pobre animal, antes que ele desfaleça.

Num instante, houve uma mão a segurar nas rédeas. Alguém correu para ir buscar vinho. O próprio bispo fez o mensageiro apoiar o braço direito no seu ombro para o manter de pé.

- Anda, vamos levar-te para dentro, para descansares.

No terceiro recanto do claustro, o mensageiro encostou-se à parede e respirou fundo. Hugh, ágil e jovem, recordando-se de algumas longas e duras cavalgadas que ele próprio já fizera, pôs-se de joelhos e, com mãos experientes, desapertou as fivelas para o aliviar das pesadas botas de montar.

- Meu senhor, mudámos de montadas em Evesham e fizemos um bom tempo até estarmos razoavelmente perto de Gloucester, cavalgando até já depois do crepúsculo, para chegarmos quando a noite caísse. Perto de Deerhurst, na floresta, depois de a nossa companhia ter passado (porque eu estava com a retaguarda), um bando armado surgiu por trás e isolou um dos nossos homens antes de nos apercebermos disso e desapareceu com ele no escuro.

- Que homem é esse? - perguntou Cadfael, ficando tenso.

- Como é que ele se chama?

- Um dos escudeiros, Yves Hugonin. O que trocou palavras duras com De Soulis, que morreu. Meu senhor, nada é mais certo do que ele ter sido levado por homens de FitzRobert, sob suspeita de ter morto De Soulis. Eles consideram-no culpado, embora a imperatriz não tivesse permitido que lhe tocassem.

- E não foram em perseguição deles? - perguntou o bispo, franzindo o sobrolho.

-Fomos, durante algum tempo, mas eles estavam frescos e numa floresta que conheciam bem. Não voltámos a vê-los. E quando alguns foram à frente informar a nossa ama, ela mandou um de nós voltar para trás para vos comunicar. Nós estávamos protegidos por um salvo-conduto, isto foi traição, depois de uma reunião daquelas.

- Mandaremos informar o rei - disse o bispo num tom firme.

- Ele ordenará a libertação deste homem, tal como fez antes, quando FitzRobert prendeu o conde da Cornualha. Nessa altura, ele obedeceu, e voltará a obedecer, independentemente do seu próprio rancor.

Mas, interrogou-se Cadfael, será que neste caso Stephen iria levantar um dedo por um homem com cuja culpa ele não concordara nem discordara, só tendo permitido que ele partisse com um salvo-conduto devido à insistência da imperatriz. Ele não era um aliado valioso, apenas um rapaz inexperiente do lado oposto. Não, Yves ficaria à espera que a imperatriz o libertasse. Ele tinha saído dali sob a sua asa, competia-lhe a ela protegê-lo. E até onde iria ela por Yves? Não tão longe que se prejudicasse a si própria perdendo tempo e prerrogativas. O infame serviço que ele supostamente lhe prestara tinha sido reconhecido e recompensado, ela não lhe devia nada. E ele tinha-se retirado deliberadamente para a cauda do seu cortejo, para que ela não o visse e se esquecesse dele.

-Eu penso que eles tinham um cavaleiro disfarçado, a cavalgar ao nosso lado durante parte do caminho - disse o mensageiro -, para se certificarem de que teriam o homem que queriam, antes de atacarem. Terminou tudo num instante, numa curva do caminho em que as árvores ficam mais cerradas.

- E perto de Deerhurst? - perguntou Cadfael. - Essas já são terras de FitzRobert? A que distância ficam os castelos dele? Ele saiu daqui cedo, a tempo de preparar a sua emboscada. Pensou nisso desde o início, para o caso de os seus planos saírem gorados aqui.

- Devem ser cerca de vinte milhas até Cricklade, mais até Faringdon. Mas o seu novo castelo de Greenhamsted, o que ele tomou a Robert Musard algumas semanas atrás, fica ainda mais perto. A menos de dez milhas de Gloucester.

- Tens a certeza - perguntou Hugh, hesitando um pouco e olhando ansiosamente para Cadfael-de que o levaram prisioneiro?

- Não existe qualquer dúvida - respondeu o mensageiro, num tom brusco e cansado -; eles queriam-no inteiro e foi tudo feito muito rapidamente. Não, hoje em dia eles vão ter mais cuidado com o sangue que derramam. Os homens de um lado têm familiares no outro que poderão sentir-se ofendidos e causar problemas. Não, estejam tranquilos a esse respeito, não houve qualquer morte.

O mensageiro tinha ido para os aposentos do prior comer e descansar, o bispo para o próprio palácio preparar cartas para dar a notícia, nomeadamente a Oxford e Malmesbury, na região em que a emboscada tivera lugar. Ele tinha dúvidas que Stephen se desse ao trabalho de intervir neste caso, mas certamente que alguém transmitiria a notícia ao tio do rapaz em Devizes, que tinha algum peso junto da imperatriz. Pelo menos era preciso tentar tudo.

-Agora-disse Cadfael, observando o rosto sombrio e frustrado de Hugh após um longo silêncio -, tenho dois reféns para libertar. Se pedi um sinal, já o tenho. E agora não existe qualquer dúvida na minha mente sobre o que devo fazer.

- E eu não posso ir contigo - disse Hugh.

-Tens um condado a preservar. Basta um de nós faltar à palavra. Mas posso ficar com o teu esplêndido cavalo, Hugh?

- Se me prometeres levá-lo de volta são e salvo, e contigo na sela - disse Hugh.

Despediram-se no interior do portão do priorado. Hugh tomou a direcção noroeste, para regressar pelas mesmas estradas por que tinham vindo, Cadfael seguiu para sul. Abraçaram-se por um instante antes de montarem mas, depois de terem passado o portão para a rua e de se terem separado, avançaram rapidamente, sem olhar para trás. A cada jarda, o fino fio que os unia estendia-se e ficava ainda mais fino, quase ao ponto de se partir, tornando-se uma fibra, um cabelo, um filamento de uma teia de aranha, mas sem se quebrar.

Durante as primeiras etapas da viagem, Cadfael cavalgou a um ritmo constante, mal se apercebendo do que o rodeava, totalmente absorto no esforço de aceitar a quebra de outro cordão que se partira assim que ele virara para sul em vez de seguir em direcção a casa. Foi como o rompimento de uma constrição apertada que, embora provocasse dor, prendia a vida em segurança dentro de si; e a abrupta remoção da restrição era uma mistura de terror e alívio, ambos intensos. O à-vontade de se encontrar solto no mundo veio primeiro, e só gradualmente é que o horror da libertação surgiu e o dominou. Porque ele era um apóstata, tinha-se exilado sabendo perfeitamente bem o que estava a fazer. E agora a sua única justificação tinha que ser a libertação, tanto de Yves como de Olivier. E se ele falhasse nisso, tinha desbaratado até mesmo a sua abjuração. Serás senhor de ti próprio, dissera Radulfus, deixarás de ser um homem meu. Teria renunciado aos votos, abandonado os irmãos, rejeitado o céu.

A primeira coisa a fazer era reconhecer que isso acontecera, a segunda era aceitar o sucedido. Depois disso, podia continuar a cavalgar tranquilamente e ser senhor de si próprio, como fora na primeira metade da sua vida em que apenas raramente sentira a falta de mais alguma coisa, até ter encontrado a comunidade e se ter sentido plenamente realizado ao entregar-se a ela. Durante algum tempo, talvez durante todo o que lhe restava, a vida podia ser novamente vivida nesses termos, e teria que o ser.

Assim, nessa altura, ele conseguiu olhar de novo em volta, prestar atenção ao caminho e concentrar-se na tarefa que tinha pela frente.

Perto de Deerhurst, eles tinham-se aproximado e isolado Yves dos seus companheiros. E, na verdade, não havia qualquer prova de quem o raptara; mas Philip FitzRobert, que era o único que se sabia que guardava um enorme rancor ao rapaz e que era manifestamente um homem empenhado em vingar-se, tinha três castelos e muitos seguidores naquela região e podia ter efectuado um ataque daqueles com toda a impunidade, seguro do seu poder. Desse modo, eles não teriam que se arriscar a ir muito longe com o seu prisioneiro, até mesmo após o cair da noite; mais tarde, se necessário, levá-lo-iam para um dos castelos, longe da vista e longe do coração, o mais rápida e secretamente possível. Greenhamsted, dissera o mensageiro da imperatriz, era o mais próximo. Cadfael não conhecia bem a região, mas tinha interrogado o mensageiro sobre a localização das terras. Deerhurst ficava algumas milhas a norte de Gloucester, Greenhamsted situava-se a cerca da mesma distância, a sudeste. La Musarderie, era o que o mensageiro tinha chamado ao castelo, o nome da família a quem ele pertencera desde o tempo de Guilherme. Em Deerhurst havia um priorado estrangeiro que pertencia a St. Denis, de Paris, e, se ele pernoitasse lá, talvez conseguisse obter algumas informações locais. As pessoas do campo estavam atentas aos feitos desonestos dos senhores locais, especialmente em tempo de guerra civil. Eles viam-se obrigados a isso, para sua própria protecção.

De acordo com os registos, havia um castelo em La Musarderie desde que o rei Guilherme dera a aldeia a Hascoit Musard algum tempo antes de o cadastro de Domesday ter sido efectuado. Isso proporcionara bastante tempo para ele ser construído em pedra, depois da primeira construção de madeira que fora erguida apressadamente para assegurar a posse. Faringdon tinha sido construído nalgumas semanas no Verão, e cercado quase antes de estar terminado. Trincheiras e madeira, na altura não havia outra possibilidade, embora obviamente que tinha havido o cuidado de fazer com que ele fosse o mais resistente possível. E Cricklade, qualquer que fosse a situação das suas defesas, não ficava tão próximo do local em que Yves fora raptado como Greenhamsted. Bem, ele veria se alguém em Deerhurst poderia esclarecê-lo sobre qualquer daquelas questões. Cavalgou continuamente, tinha tencionado viajar até tarde e estar bem longe antes do anoitecer. Não comeu e disse as orações da tércia e da sexta na sela. Numa ocasião, encontrou no caminho um mercador a cavalo com o seu bufarinheiro, e seguiram juntos durante algumas milhas, mantendo uma conversa que entrou por um ouvido de Cadfael e saiu pelo outro, pontuada pelos seus cordiais mas esporádicos murmúrios a indicar que estava a ouvir, ao mesmo tempo que a sua mente estava ocupada com os campos de acção ainda desconhecidos que o aguardavam no vale do Tamisa, por onde passavam as linhas de batalha. Quando se aproximavam de Stratford, o mercador e o seu homem viraram na direcção da cidade, e Cadfael prosseguiu mais uma vez sozinho, trocando ocasionalmente saudações com outros viajantes que seguiam pela estrada muito movimentada e relativamente segura.

Ao escurecer, chegou a Evesham e subitamente ocorreu-lhe, com um sobressalto, que partira do princípio de que ia ser bem recebido como um irmão da Ordem, ele que não tinha direito a qualquer privilégio ali, ele que tinha deliberadamente quebrado o seu voto de obediência, sabendo muito bem o que fazia. Apóstata e auto-exilado, ele não tinha sequer direito ao hábito que envergava, a não ser por caridade, para cobrir a sua nudez.

Reservou para si próprio uma enxerga na sala comum, alegando que a sua viagem era de penitência e que não merecia estar entre os monges do coro até ele ter terminado, o que foi o mais próximo da verdade que ele desejava chegar. O hospitaleiro, gravemente cortês, não insistiu para que dissesse mais do que ele estava disposto a confidenciar, mas fez-lhe a vontade, pôs à sua disposição um confessor se ele precisasse e deixou-o a conduzir o cavalo para o estábulo para tratar dele antes de ele próprio descansar. Durante as Vésperas e as Completas, Cadfael escolheu um canto obscuro da nave de onde pudesse ver o altar principal. Ele não tinha sido excomungado, excepto no seu próprio juízo. Ainda não.

Mas, durante todo o ofício religioso, ele sentiu dentro de si um paradoxo impossível, um vazio que pesava mais do que a pedra.

Na tarde seguinte, atravessou a floresta que ladeava o vale de Gloucester. Todos aqueles condados do centro de Inglaterra lhe pareceram muito arborizados e cheios de caça, uma enorme e abundante zona de caça. E, naqueles bosques específicos, Philip FitzRobert tinha caçado um homem. Mais uma perda desesperada para a corajosa rapariga que estava agora sozinha em Gloucester, ainda por cima grávida.

Ele tinha passado por Tewkesbury, do seu lado direito, seguindo a estrada mais directa para Gloucester, tal como a imperatriz e o seu séquito teriam feito. Os troços de floresta eram em caminhos bons, largos, que se estreitavam apenas nalguns troços curtos, utilizando o terreno plano. Numa curva em que as árvores se fechavam, dissera o mensageiro. Ao aproximar-se do fim da viagem, a imperatriz teria apressado o passo para chegar antes de escurecer, e eles haviam tido cavalos frescos em Evesham. A retaguarda tinha ficado um pouco para trás. Era bastante fácil aproximarem-se de ambos os lados e isolarem um único homem. Algures ali, e duas noites depois, até mesmo os vestígios deixados por vários cavaleiros apressados estariam a desaparecer.

O bosque mais cerrado dava para o lado sul do caminho, deixando a luz penetrar através das árvores para enriquecer a erva e as plantas selvagens por baixo delas, e alguém tinha escolhido aquele local para fazer uma cabana. Esta ficava situada no meio das árvores, a algumas jardas do caminho, e tinha uma cerca baixa de madeira à sua volta e um estábulo mais adiante. Cadfael ouviu uma vaca mugir num tom muito satisfeito e reparou que um pequeno espaço num dos lados tinha sido limpo de qualquer pedaço de madeira grande que tivesse contido, para permitir uma modesta capoeira. O dono da casa estava a cavar no interior da sua cerca e, ao ouvir o ruído suave de cascos no caminho, endireitou-se e ficou a olhar, vigilante. Ao ver um irmão beneditino, descontraiu visivelmente os ombros, soltou um pouco as mãos que agarravam o cabo da pá e gritou uma saudação através das cerca de doze jardas que os distanciavam.

- Bom dia para si, irmão!

- Deus abençoe o trabalho! - disse Cadfael, parando o cavalo e virando no meio das árvores para se aproximar. O homem poisou a pá e sacudiu as mãos, interrompendo de bom grado o seu trabalho para conversar com um inofensivo transeunte. Era um sujeito entroncado, compacto, com um rosto moreno enrugado como uma noz e olhos azuis vivos, bem estabelecido na sua propriedade no meio do bosque e aparentemente solitário, pois não havia sinal de qualquer outro ser humano no jardim nem no interior da cabana. - Tem um verdadeiro eremitério aqui - disse Cadfael. - Não anseia por vezes por um pouco de companhia?

- Oh, eu gosto do sossego. E, quando me canso dele, tenho um filho casado que vive em Hardwicke, a menos de uma milha, e as crianças vêm cá nos dias santos. Eu tenho as minhas alturas em que preciso de companhia, mas gosto da vida da floresta. Aonde vai, irmão? Vai anoitecer daqui a pouco.

- Irei pedir alojamento em Deerhurst - disse Cadfael placidamente. - Então nunca teve problemas, amigo, com homens transviados que também gostam da vida da floresta, mas não por bons motivos como os seus?

- Eu sou um homem que trabalha com as mãos - disse o aldeão num tom confiante. - Os fora-da-lei não andam atrás de uma presa modesta como eu. Passam por aqui com bastante frequência proveitos muito maiores. Não que existam muitos problemas desse tipo. A cobertura aqui é boa, mas estreita. Há zonas de caça melhores.

- Isso depende da presa - disse Cadfael, observando-o atentamente. - Duas noites atrás, penso que teve cá um óptimo grupo que ia a caminho de Gloucester. Por volta desta altura do dia, talvez uma hora depois do anoitecer. Ouviu-os passar?

O homem tinha ficado tenso e ficou a olhar para Cadfael, semi-cerrando os olhos pensativamente, já cauteloso, mas não, pensou Cadfael, com a sua pergunta nem com quem a fazia.

- Eu vi-os passar - disse ele num tom inexpressivo. - Foi uma agitação que não passaria despercebida a um homem sensato. Na altura, eu não sabia quem vinha aí. Agora eu sei. A imperatriz, ela que era tudo excepto rainha, regressava a Gloucester com os seus homens, vinda da corte dos bispos de Coventry. Nada de bom acontece a homens como eu quando as saias dela ou a fímbria do manto do rei Stephen roçam por nós. Vimo-los passar, e damos graças a Deus quando se vão embora.

- E eles passaram em paz? - perguntou Cadfael. - Ou havia outros por aí, a preparar-lhes uma emboscada? Houve luta? Ou algum tipo de alarme nessa noite?

- Irmão - disse o homem lentamente -, qual é o seu interesse nestes assuntos? Quando homens armados passam por aqui, eu mantenho-me dentro de casa e deixo em paz os que me deixam em paz. Sim, houve uma espécie de clamor... não aqui, um pouco ali atrás, eu não vi, só ouvi. Gritos e um estrondo súbito no meio das árvores, mas ao fim de poucos minutos tudo estava terminado. E depois veio um homem a galope atrás do grupo, gritando notícias, e mais tarde houve outro que voltou apressadamente para trás pelo mesmo caminho. Irmão, se sabe mais sobre isto do que aquilo que eu ouvi, porque me está a fazer perguntas?

- E na manhã seguinte, à luz do dia - disse Cadfael -, foi ver o local onde ocorreu o ataque? E que vestígios encontrou lá? Quantos homens, calcula? E por onde foram eles depois?

- Eles tinham estado escondidos à espera - disse o homem -, muito pacientemente, a maior parte no lado sul do trilho, mas alguns a norte. Os seus cavalos tinham pisado a erva no meio das árvores. Eu diria pelo menos uma dúzia. E, quando tudo terminou, o que quer que tenha sido feito, eles reuniram-se e cavalgaram velozmente para sul. Há um trilho ali. Arbustos partidos e desfeitos quando eles passaram.

- Em direcção a sul? - perguntou Cadfael.

- E apressadamente. Homens que conheciam o caminho suficientemente bem para se apressarem, até mesmo no escuro. E agora que lhe contei o que ouvi e vi... e se não fosse o seu hábito, eu teria mantido a boca fechada... diga-me o que tem a ver com estas surpresas nocturnas.

-Tanto quanto eu saiba-disse Cadfael, consentindo numa curiosidade tão prática e urgente como a daquele homem -, os que atacaram a retaguarda da imperatriz e partiram apressadamente em direcção a sul sequestraram e levaram consigo prisioneiro um jovem meu conhecido que não fez nada de mal a não ser incorrer no ódio de Philip FitzRobert. E eu quero descobrir para onde o levaram e libertá-lo.

- O filho de Gloucester, é? Nesta região, é ele quem manda, é verdade, e ele tem esconderijos por todo o lado. Mas, irmão - disse o aldeão, estarrecido -, entrar em La Musarderie e confrontar Philip FitzRobert é o mesmo que enfrentar o próprio demónio.

- La Musarderie? É lá que ele está? - repetiu Cadfael.

- É o que se diz. E já lá tem um ou dois reféns e, se houver mais um desde a escaramuça que aqui teve lugar, tem tantas probabilidades de o libertar como a ascender vivo ao céu. Pense bem antes de se aventurar.

- Pensarei, amigo. E que viva aqui seguro de todos os homens armados. Reze de vez em quando por todos os prisioneiros e cativos, que estará a cumprir a sua quota-parte.

Ali, no meio das árvores, a luz estava a desaparecer perceptivelmente. Era melhor ele continuar a viagem para Deerhurst. Pelo menos tinha uma pequena informação para o ajudar a prosseguir caminho. Já lá estavam um ou dois reféns. E o próprio Philip se tinha instalado lá. E onde quer que ele estivesse, certamente que levaria consigo o seu perverso tesouro de azedume e ódio, e acumularia as suas vinganças.

Cadfael estava prestes a virar novamente o cavalo para o trilho quando pensou em mais uma coisa que precisava saber, pelo que tirou do bolso do hábito a folha de pergaminho enrolada e desenrolou-a sobre a coxa de modo a mostrar o desenho do sinete com a salamandra.

- Alguma vez viu esta insígnia, bandeira, arreio ou sinete? Eu estou a tentar encontrar o seu dono.

O homem observou-o atentamente, mas abanou a cabeça.

- Eu não sei nada sobre insígnias e divisas dos nobres, tirando as de alguns que vivem perto. Não, nunca o vi. Mas, se vai para Deerhurst, há um irmão na casa que estuda essas coisas e que se orgulha de conhecer as divisas de todos os condes e barões do país. Certamente que ele conseguirá identificar este.

Ele emergiu do crepúsculo do bosque para a luz do dia nos extensos prados que ladeavam o mesmo Severn que deixara para trás em Shrewsbury, mas que ali tinha o dobro da largura e corria com uma força pesada e escura. E ali, a brilhar através das árvores não muito distantes da água via-se a pedra creme prateada da torre da igreja, um sólido edifício saxónico, baixo e robusto como a torre de menagem de um castelo. Quando ele se aproximou, pôde ver a longa linha do telhado da nave, uma abside na extremidade leste, com uma base semicircular e uma parte superior facetada. Uma casa muito, muito antiga, construída há séculos e dotada pelo Confessor e por este dedicado a São Denis. O Confessor sempre fora mais normando do que inglês nas suas simpatias.

Mais uma vez, Cadfael aproximou-se quase com relutância de um ambiente beneditino semelhante ao que tinha sido o seu lar durante tantos anos, sentindo que não o merecia e que não possuía qualquer direito de ali estar. Mas, para conseguir investigar e ficar a saber o que queria, a sua consciência teria que suportar a impostura. Quando tudo terminasse, se ele sobrevivesse, repararia o logro.

O porteiro que o deixou entrar no pátio era um homem de saudável meia-idade, redondo e amável, orgulhoso da sua casa e encantado por mostrar as belezas da sua igreja. Estavam a ser efectuadas obras a sul do coro, tinha sido colocado um cubículo de pedreiro de encontro à parede da abside e empilhada pedra de cantaria para construção. A luz estava a desaparecer, e dois pedreiros e os seus trabalhadores estavam a cobrir a bancada e a pousar as suas ferramentas. O porteiro apontou afectuosamente para os alicerces das paredes, explicando as adições a serem feitas.

- Aqui, nós estamos a construir outra capela sudeste, e outra para a equilibrar no lado norte. O nosso mestre pedreiro é um homem local, e os trabalhos da igreja são o seu orgulho. É um bom homem! Ele dá trabalho a alguns infelizes que outros mestres talvez considerassem pouco lucrativos. Está a ver aquele trabalhador coxo de uma perna? Ficou assim em resultado de um ferimento. Até recentemente, ele era soldado, mas agora é inútil para o seu senhor, e o mestre Bernard aceitou-o e nunca teve motivos para se arrepender, porque o homem trabalha bem e muito.

O trabalhador, que coxeava muito da perna esquerda, certamente devido a uma fractura mal soldada, era um belo homem forte, muito ágil apesar da sua deficiência. Provavelmente com cerca de trinta anos, com mãos grandes e capazes, e braços compridos. Ele recuou educadamente para os deixar passar e depois acabou de cobrir a madeira empilhada debaixo da parede e seguiu o mestre pedreiro que se dirigia ao portão exterior.

Por enquanto, não tinha havido nada mais rigoroso do que geadas ligeiras, caso contrário o trabalho de construção teria parado e as paredes teriam sido cobertas com turfa, urze e palha, a aguardar a Primavera.

- Haverá trabalho para eles no interior quando o Inverno chegar - disse o porteiro. - Venha ver.

No interior da igreja do priorado de Deerhurst ainda não havia qualquer marca do estilo normando, era tudo saxão, e as primeiras paredes da nave tinham séculos. Só depois de ter mostrado todas as coisas interessantes e belas da igreja ao visitante é que o porteiro entregou Cadfael ao hospitaleiro, para que lhe fosse atribuída uma cama e ele fosse recebido pela comunidade ao jantar servido no refeitório.

Antes das Completas, ele perguntou pelo irmão estudioso que conhecia as divisas e as librés das casas nobres da Inglaterra e mostrou-lhe os desenhos que tinha feito em Coventry. O irmão Eadwin examinou-os e abanou a cabeça.

- Não, eu nunca vi esse. Entre os barões há algumas famílias cujos membros e ramos utilizam várias variações pessoais. Esse certamente que não é um dos mais proeminentes. Nunca o vi.

Nem, ao que pareceu, o prior, nem qualquer dos irmãos. Eles observaram os desenhos, mas não conseguiram atribuir um nome de família ou um local à insígnia.

- Se ela pertencer a esta região - disse o irmão Eadwin, desejoso de ajudar -, talvez mais facilmente encontre a resposta na aldeia do que aqui. Para além das famílias de estatuto elevado, há neste condado algumas boas famílias, mas menores. Como é que ele foi parar às suas mãos, irmão?

- Estava na bagagem de um morto - disse Cadfael -, mas não era seu. E o bispo de Coventry tem agora o original, até conseguirmos descobrir o seu dono e devolvê-lo. - Ele enrolou a folha de pergaminho e voltou a atar o cordão à sua volta. - Não tem importância. O bispo irá investigar.

Assistiu às Completas com os irmãos, mais preocupado com a dor e a culpa do exílio daquele mundo monástico que se impusera a si próprio, do que com a responsabilidade que tinha assumido voluntariamente no mundo secular. O ofício religioso reconfortou-o e recebeu com gratidão o silêncio que lhe seguiu. Afastou de si todos os pensamentos até ao dia seguinte e descansou, tranquilo, até adormecer.

Mesmo assim, na manhã seguinte, depois da missa, quando os operários tinham já destapado o seu material para mais um dia de trabalho, ele recordou-se da descrição que o porteiro fizera do mestre Bernard como sendo um homem local, e pensou que valia a pena desenrolar os seus desenhos em cima da pedra de cantaria empilhada e chamar o pedreiro para que ele os examinasse e desse a sua opinião. Os pedreiros são por vezes chamados a trabalhar, não só em igrejas, como também em casas senhoriais, celeiros e quintas, utilizando divisas e insígnias nos seus próprios mistérios, pelo que poderão reparar nelas noutro local.

O pedreiro chegou, olhou rapidamente e disse de imediato:

- Não, não a conheço. - Ele examinou o desenho com alguma indiferença, mas abanou a cabeça com um ar decidido: - Não, eu nunca vi esta.

Dois dos trabalhadores, empurrando um carrinho de mão carregado, tinham parado por um momento ao passar, para espreitar, com curiosidade, para a folha que o seu mestre estava a examinar. O homem coxo, apoiado na sua perna direita boa, levantou os olhos do pergaminho e observou o rosto de Cadfael durante um longo momento antes de eles prosseguirem o seu caminho, sorriu e encolheu os ombros quando Cadfael retribuiu directamente o olhar.

- Não é, portanto, uma casa local - disse Cadfael num tom resignado.

- Nenhuma que eu conheça, e eu tenho trabalhado na maior parte das casas senhoriais da região.-O pedreiro abanou novamente a cabeça, enquanto Cadfael voltava a enrolar o pergaminho e o colocava de novo dentro do seu hábito. - É importante?

- Pode ser. Ela há-de ser conhecida algures.

Parecia que ele tinha feito tudo o que podia ser feito ali. Ainda nem sequer tinha pensado em qual seria o seu passo seguinte, quanto mais tomado uma decisão. Segundo todas as indicações, Philip estaria em La Musarderie, para onde provavelmente os seus homens tinham levado Yves prisioneiro, e onde, de acordo com o homem do bosque, já tinha outro refém, ou mais do que um. O argumento de que um homem de paixões tão fortes estaria onde os seus ódios o prendiam pareceu ainda mais convincente a Cadfael. Não havia qualquer dúvida de que Philip considerava que Yves era culpado. Por conseguinte, se fosse possível convencê-lo de que estava a julgar mal o rapaz, as suas intenções poderiam ser alteradas. Ele era um homem inteligente, e era possível fazer-lhe ver a razão.

Cadfael levou o seu problema consigo para a igreja durante a tércia e disse as orações em privado num canto tranquilo. Estava a abrir os olhos e a dar meia volta para se ir embora quando sentiu uma mão pousar-lhe suavemente na manga.

- Irmão...

Apesar de desajeitado, o homem coxo conseguia mover-se silenciosamente sobre as lajes nos seus coçados sapatos de feltro. O seu rosto pálido, sob uma farta cabeleira castanha, estava sério e sombrio.

-O irmão está à procura do homem que utiliza um determinado sinete nos seus documentos. Eu vi o seu desenho. - Ele tinha uma voz baixa, adequada a confidências.

- Ando, de facto, à procura dele - concordou Cadfael com tristeza -, mas parece que ninguém aqui me pode ajudar. O seu mestre não reconhece o sinete como pertencente a qualquer homem que ele conheça.

- Não - disse simplesmente o homem coxo. - Mas eu reconheço-o.

 

Cadfael tinha aberto a boca, desejoso de fazer mais perguntas, aproveitando aquela oportunidade imprevista, mas recordou-se de que o homem estava a trabalhar, dependia da boa vontade do seu mestre e tivera sorte em encontrar um patrão assim. -Vão dar pela sua falta - disse ele rapidamente. - Não quero que seja repreendido. Quando estará livre?

-A hora sexta, nós descansamos e comemos o almoço. Dá tempo suficiente - disse o coxo, com um breve sorriso. - Eu estava com medo que se fosse embora antes de lhe conseguir contar o que sei.

- Não vou a lado nenhum - disse Cadfael fervorosamente. - Onde? Aqui? Diga em que sítio, que eu estarei à espera.

- No último recanto da arcada, ao lado de onde nós estamos a trabalhar. - Com a pedra de cantaria empilhada e toda a madeira pelas costas, reflectiu Cadfael, e uma boa perspectiva de quem entrasse no claustro. Este, por qualquer motivo, desconfiança natural ou uma cautela bem fundamentada, protegia bem as costas e mantinha a língua aferrolhada.

- Nunca conta nada a ninguém?-perguntou Cadfael, fitando os olhos cinzentos que o olhavam com um ar sincero.

- Aconteceram demasiadas coisas nesta região para que uma pessoa possa ser tagarela. Uma palavra ao ouvido errado pode ser uma faca nas costas erradas. Sem ofensa para o seu hábito, irmão. Graças a Deus que ainda há homens bons. - E ele deu meia volta e regressou, a coxear, ao mundo exterior e ao seu trabalho na obra de Deus.

No calor relativo do meio-dia, sentaram-se os dois no último recanto da arcada norte do claustro, de onde podiam ver toda a arcada do pátio. Depois de um Outono quase sem chuva, a erva estava seca e amarela, mas o céu estava nublado e pesado, anunciando uma mudança.

- O meu nome - disse o homem coxo - é Forthred. Sou de Todenham, que fica perto da casa de Deerhurst. Estive ao serviço da imperatriz sob Brien de Soulis, e estive em Faringdon com as forças dele durante as poucas semanas em que o castelo defendeu a causa. Foi lá que eu vi o sinete que tem aí no desenho. Vi-o ser colocado duas vezes em documentos que ele testemunhou. Não há possibilidade de engano. A terceira vez que o vi foi no acordo que eles redigiram e selaram quando entregaram Faringdon ao rei.

- Isso foi feito com tanta solenidade? - perguntou Cadfael, surpreendido. - Eu pensava que eles simplesmente tinham deixado os sitiantes entrar durante a noite.

- Foi o que fizeram, mas já tinham o seu acordo pronto para nos mostrarem, aos homens da guarnição, demonstrando que todos os seis comandantes com seguidores entre nós tinham aceite a mudança e que nos comprometiam, juntamente com eles. Duvido que, se não fosse isso, eles tivessem conseguido o seu intento. A recusa de um ou dois dos melhores, e os seus homens teriam resistido, e o rei Stephen teria pago um preço elevado por Faringdon. Não, tudo foi planeado e combinado com antecedência.

- Seis comandantes com as suas próprias companhias - disse Cadfael, pensativo -, e todos sob o comando de De Soulis?

- Assim foi. E cerca de trinta cavaleiros ou escudeiros novos sem seguidores, apenas com as suas armas.

- Desses, nós temos conhecimento. A maior parte recusou-se a virar a casaca e foram feitos prisioneiros pelos homens do rei. Mas os seis que tinham homens seus concordaram e colocaram os seus sinetes na rendição?

- Todos eles. De outro modo, não teria sido tão fácil. Entre os soldados comuns, a fidelidade é para com os seus líderes. Eles vão onde os seus comandantes vão. Se faltasse um sinete no pergaminho teria havido problemas. Um em particular, e teria havido uma batalha. Um que tinha mais prestígio entre nós e que era de quem mais gostávamos e em quem tínhamos mais confiança.

Ao falar nesse homem preferido e altamente considerado, havia algo na sua voz que transmitia muito mais do que as suas palavras. Cadfael tocou na folha de pergaminho enrolada.

- Este?

- Exactamente - disse Forthred e, por um momento, não disse mais nada, ficando calado a observar a relva do pátio com olhos que olhavam mais para dentro do que para fora.

- E ele, tal como os outros, selou a rendição com o seu sinete?

- O seu sinete, este sinete, certamente que estava lá. Eu vi-o com os meus próprios olhos. De outro modo, não teria acreditado.

- E como é que ele se chama?

- Chama-se Geoffrey FitzClare, e é filho de Richard de Clare que foi conde de Hertford, e o conde actual, Gilbert, é seu meio-irmão. Um filho ilegítimo da casa de Clare. Por vezes, estes filhos ilegítimos são melhores que os legítimos. Embora, tanto quanto eu saiba, Gilbert também seja um bom homem. Pelo menos, ao que parece, ele e o seu meio-irmão sempre se respeitaram e gostaram um do outro, embora todos os Clare estejam ao lado de Stephen e este irmão acidental tenha escolhido a imperatriz. Eles foram criados juntos, pois o conde Richard levou o seu bastardo para casa quase recém-nascido, e a avó tomou conta dele, e eles trataram-no bem e estabeleceram-no na vida quando ele cresceu. É esse o homem cujo sinete tem consigo ou, pelo, menos, o desenho dele. - Ele não perguntara a Cadfael onde é que o encontrara para o poder desenhar.

- E onde se poderá encontrar esse Geoffrey agora? - perguntou Cadfael. - Se ele, juntamente com os outros, jurou fidelidade a Stephen, bem como a dos seus homens, será que ele ainda está em Faringdon com a guarnição?

- Certamente que está em Faringdon - disse o homem coxo, com um tom de aço da voz baixa -, mas não com a guarnição. No dia a seguir à rendição, trouxeram-no para o castelo numa padiola, após uma queda do cavalo. Ele morreu antes do anoitecer. Está sepultado no cemitério de Faringdon. Já não precisa do sinete.

O silêncio que caiu entre eles pairou no ar, como uma respiração suspensa, sobre os sentidos de Cadfael, antes de os ecos se formarem, ecos, não das palavras que tinham sido proferidas, mas das que não tinham sido ditas e que nunca precisariam de o ser. Havia entre eles uma compreensão que não necessitava de uma forma ritual. Certamente que um homem precisava de manter a língua aferrolhada, um homem que tinha coisas perigosas a contar, já que era aleijado e que, mesmo assim, era obrigado a viver perto de homens poderosos que tinham coisas a esconder. Forthred tinha ido longe ao confiar até no hábito beneditino, e não devia ser obrigado a dizer abertamente o que já transmitira claramente através da insinuação.

E, no entanto, ele ainda nem sequer sabia como é que Cadfael se vira da posse do sinete.

- Fale-me - disse Cadfael cuidadosamente - sobre esses poucos dias, como é que as coisas aconteceram. A sequência dos acontecimentos é muito importante.

- Bem, nós estávamos em dificuldades, isso é verdade, era um Verão quente e tínhamos pouca água, tendo em conta que tínhamos uma guarnição forte. E, de Cricklade, Philip tinha pedido repetidas vezes reforços ao pai, sem obter qualquer resposta. E, uma manhã, havia no castelo oficiais do rei que tinham sido admitidos durante a noite, e Brien de Soulis pediu-nos que não resistíssemos e mostrou-nos o acordo selado, para que todos o víssemos, o seu próprio sinete e os outros cinco, o comando de toda a guarnição com excepto dos jovens que tinham trazido para a defesa apenas a sua perícia no manejo das armas. E os que não concordaram com a mudança de fidelidade foram feitos prisioneiros, como todos sabem. E os homens de armas... pouco podiam fazer, uma vez que os nossos senhores já nos tinham comprometido.

- E o sinete de Geoffrey estava lá juntamente com os outros?

- O sinete estava lá - disse simplesmente Forthred. - Ele não estava.

Não, isso tinha começado a ser óbvio. Mas sem dúvida que esse facto tinha sido adequadamente justificado.

- Disseram-nos que ele havia partido para Cricklade durante a noite, para contar a Philip FitzRobert o que tinha sido feito. Mas, antes de partir, ele tinha aposto o seu sinete no acordo. Primeiro entre iguais, ele tinha-o posto ali, com a sua própria mão.

E sem ele não teria havido uma passagem tão fácil da imperatriz para o rei. Sem o seu consentimento, os seus homens e outros teriam tomado posição em seu apoio, e teria havido uma batalha.

- E no dia seguinte? - perguntou Cadfael.

- No dia seguinte, ele não voltou. E eles começaram a ficar ansiosos, tal como todos nós - disse Forthred com uma voz inexpressiva -, e De Soulis e outros dois que eram mais próximos dele partiram, seguindo pelo caminho que ele teria tomado. E ao crepúsculo eles trouxeram-no de volta numa padiola, embrulhado numa capa. Tinham-no encontrado na floresta, disseram eles, ele tinha caído do cavalo e estava gravemente ferido, e o animal tinha sido trazido de volta sem cavaleiro. E durante a noite ele morreu.

E durante a noite ele morreu. Mas em que noite, pensou Cadfael, sentindo a mesma ardente e amarga convicção do homem sentado ao seu lado. Um homem morto pode ser facilmente levado para um local secreto numa noite, a noite da traição em que ele se recusara a participar, e trazido de volta publicamente na noite seguinte como tendo perdido a vida num acidente trágico.

- E ele foi sepultado em Faringdon - disse Forthred. - Não nos mostraram o corpo.

- Ele tinha mulher ou filhos? - perguntou Cadfael.

- Não, não tinha. De Soulis enviou um mensageiro informar os Clare sobre a sua morte, uma vez que Faringdon pertencia agora à facção deles. Eles mandaram dizer missas por ele com toda a boa fé. Ele não tinha qualquer briga com a casa de Clare.

- Tenho uma ideia preocupante de que há mais a dizer - disse Cadfael cautelosamente.-Por conseguinte, pouco tempo depois... como é que se feriu?

Um sorriso sombrio atravessou o rosto tranquilo do homem coxo.

-Numa queda. Tive uma queda perigosa. Da torre de menagem para o fosso. Eu não gostava tanto do meu novo serviço como do antigo, mas não foi sensato mostrá-lo. Como é que eles souberam? Como é que eles sabem sempre? Havia sempre alguém entre mim e o portão. Eu estava a descer pela muralha quando alguém cortou a corda.

- E deixaram-no lá ferido, sem o socorrer?

- Porque não? Era mais um acidente, eles acontecem aos dois e aos três. Mas eu consegui rastejar até ficar sob cobertura, e ali houve uns homens pobres e decentes que me encontraram. O osso soldou mal, mas estou vivo.

Havia dívidas monstruosas a serem pagas um dia, o valor de uma vida, o preço de um corpo deliberada e friamente estropiado. Cadfael sentiu subitamente recair sobre si próprio o peso de uma dívida, uma vez que aquele homem confiara corajosamente nele e fizera-lhe confidências. Ele tinha uma informação que, ao seu modo perverso e inadequado, poderia, pelo menos, constituir uma prova de que a justiça, embora indirecta e atrasada, acaba por chegar.

- Tenho uma coisa a contar-lhe, Forthred, que não me perguntou. Este sinete, que foi utilizado para confirmar uma traição, está agora nas mãos do bispo de Coventry. E quanto ao modo como ele lá chegou, foi na bagagem de um homem que assistiu à conferência e foi ali morto, ninguém sabe por quem. Ele tinha o seu próprio sinete consigo, isso não tem nada de estranho. Mas tinha também este outro, do qual eu fiz estes desenhos. O sinete de Geoffrey FitzRichard de Clare foi de Faringdon para Coventry nos alforges de Brien de Soulís, e Brien de Soulis está morto em Coventry com um punhal espetado no coração.

Ao fundo da arcada do claustro, o mestre pedreiro passou, de regresso ao trabalho. Forthred levantou-se lentamente para o seguir, e o seu sorriso, triste mas aliviado, brilhou exultantemente por um instante, sendo seguidamente reprimido e velado pela sua normal e impassível indiferença.

- Deus não é cego nem surdo - disse ele, em voz baixa -, não, nem se esquece. Bendito seja! - E ele saiu para a arcada vazia e atravessou a turfa do pátio a coxear pesadamente, e Cadfael seguiu-o com o olhar.

A partir desse momento, já não havia qualquer motivo para ficar ali nem mais uma hora e ele não tinha qualquer dúvida sobre para onde teria que ir. Foi à procura do hospitaleiro, despediu-se e dirigiu-se ao estábulo para selar o cavalo. Por enquanto, ainda não pensara no que faria quando chegasse a Greenhamsted. Mas havia mais de uma maneira de entrar num castelo e, por vezes, a mais simples era a melhor. Especialmente para um homem que renunciara às armas e fizera votos que lhe proibiam a violência e duplicidade. A verdade é um amo difícil e custoso de servir, mas simplifica todos os problemas. E até mesmo um apóstata pode considerar honroso manter os votos que ainda não quebrou.

O belo e jovem ruano castanho de Hugh ficou satisfeito por estar novamente em movimento e saiu da sua baia a dançar, com a luz a dar um brilho prateado ao pêlo luzidio. Partiram de Deerhurst em direcção a sul. Tinha cerca de quinze milhas a percorrer, calculou Cadfael, e seria sensato passar longe de Gloucester, deixando esta cidade à direita. Uma nuvem pesada tornava a tarde abafada; seria um prazer cavalgar velozmente.

Subiram dos vastos prados do vale até à orla da região montanhosa, por entre as aldeias de borregos onde os comerciantes de lã encontravam alguns dos melhores velos. Já se encontravam à beira do campo de batalha mais activo, e a agricultura local não tinha ficado exactamente incólume, mas a maior parte da luta era travada por meio de ataques esporádicos das guarnições dos castelos, cada uma das facções a atormentar a outra, numa série de trocas nociva. Fora isto que levara à construção de Faringdon, concebido para desempenhar um papel fundamental para a imperatriz, e agora equilibrando as linhas do rei Stephen e mantendo abertas as comunicações entre Malmesbury e Oxford. O rei já estava um tanto cansado da guerra, pensou Cadfael, mas ainda destilava veneno. O conde Robert Bossu tinha razão, no fim eles tinham que chegar a um acordo, porque nenhum deles era capaz de infligir uma derrota ao outro.

Uma vez compreendido esse facto, perguntou Cadfael a si próprio, será que ele poderia constituir um bom motivo para mudar de partido e transferir todos os poderes e armas para a outra facção? Reflectindo, por exemplo: há nove anos que eu luto pela imperatriz, e sei que não estamos um passo mais próximos de obter uma vitória que possa devolver a ordem e um governo a este país. Será que a outra facção, se eu me transferir para ela e levar outros comigo, pode fazer o que nós não conseguimos, resolver a questão e abandonar as armas? Qualquer coisa para pôr termo a este interminável desperdício. Sim, talvez pareça que merece a pena tentar. Mas o partidarismo devia ter dado total e dolorosamente lugar à exaustão para se chegar à desesperante conclusão de que qualquer forma de pôr termo à anarquia seria melhor do que nenhuma.

Depois, o que poderia haver para além dessa etapa, quando a nova aliança se mostrasse tão ruinosa, incompetente e enfurece-dora como a antiga? Apenas uma desilusão total com as duas facções e a retirada para gastar as últimas energias que restassem em algo que valesse mais a pena.

A estrada de montanha por que Cadfael seguia era agora plana e estendia-se em linha recta à sua frente, como uma seta apontada para a lonjura. As aldeias ali eram prósperas devido ao comércio da lã, mas ficavam distantes umas das outras e, de um modo geral, estavam afastadas da estrada. Ele viu-se obrigado a fazer um desvio para encontrar uma casa que lhe desse orientações, e o aldeão que o veio saudar olhou-o atentamente quando ele perguntou onde ficava La Musarderie.

- O irmão não é desta região, pois não? Provavelmente não sabe que ele mudou de mãos. Se quer falar com os Musard, não irá encontrá-los. Robert Musard foi apanhado numa emboscada há semanas, meses atrás, e teve que entregar o seu castelo ao filho do conde de Gloucester que jurou recentemente fidelidade ao rei Stephen.

- Foi o que eu ouvi dizer - disse Cadfael. - Mas encarregueilll

- me de levar a cabo uma missão aqui e tenho que a cumprir. Suponho que essa alteração não é bem vista na região. O homem encolheu os ombros.

- Ele deixa a igreja e a aldeia em paz, desde que nem o padre nem o bailio lhe façam frente. Mas os Musard estão cá desde que o primeiro rei Guilherme deu o senhorio ao bisavô deste, e ninguém está a contar que a mudança seja para melhor. Por isso, irmão, se tem mesmo que lá ir, vá com cuidado. Ele terá conhecimento da presença de qualquer desconhecido antes sequer de este se aproximar das suas muralhas.

- Ele não vai recear qualquer feito de armas da minha parte - disse Cadfael. - E eu estarei preparado para o que receio dele. E obrigado, amigo, pelo aviso. Agora, por onde devo ir?

- Volte para a estrada - aconselhou o aldeão encolhendo os ombros perante a persistência dele, provavelmente malfadada - e siga em frente durante cerca de uma milha. Ali há um trilho à direita que o levará a Winstone. Atravesse o rio no baixio, suba pelo bosque do outro lado e, quando já não houver árvores, irá ver o castelo à sua frente, ele fica bem alto. A aldeia fica ainda mais alta, no cume mais adiante - disse ele. - Vá com cuidado, e volte são e salvo. - Com a graça de Deus, espero que assim seja - disse Cadfael, agradecendo-lhe e virando o cavalo para voltar para a estrada.

Há várias maneiras de entrar num castelo, reflectiu ele enquanto atravessava a aldeia de Winstone. O mais simples, para um homem só, sem um exército nem quaisquer meios de coerção, era ir até ao portão e pedir que o deixassem entrar. É óbvio que eu não estou armado, em breve será noite, uma noite fria, e a hospitalidade é um dever sagrado. A nobreza, particularmente, tem o dever de oferecer alojamento aos clérigos e monges que dele necessitem. Vejamos, por conseguinte, até onde se estende a nobreza de Philip FitzRobert.

E seguindo a mesma sequência de pensamento: se quiseres falar com o castelão, o meio mais óbvio é pedires para o fazer; e a história mais inabalável que te permitirá ser levado à sua presença é a verdade. Ele tem dois homens detidos - seguramente que agora isso já é uma certeza -, dois homens a quem ele não deseja nada de bom. Tu queres libertá-los incólumes, e tens bons argumentos para que ele reconsidere as suas intenções em relação a eles. Nada podia ser mais simples. Porque é que hás-de complicar as coisas pondo-te com rodeios?

Depois de Winstone, a estrada seguia praticamente para oeste e transformava-se gradualmente num trilho, se bem que um trilho bem visível e bastante utilizado. De terras esparsamente arborizadas e charneca, ele mergulhava quase abruptamente numa floresta densa, e começava a descer, íngreme, em ziguezagues sinuosos por entre as árvores, até um vale profundo. Ouviu a água a correr lá em baixo, não uma corrente forte, mas sim o gorgolejo de um pequeno rio num leito pedregoso; ao fim de algum tempo, chegou a um declive estreito com as orlas cobertas de erva e a uma língua de gravilha ainda mais estreita que ia ter à água, assinalando a passagem do baixio. No outro lado, o trilho era quase tão íngreme como o que ele descera, e árvores antigas escondiam tudo o que o aguardava mais adiante.

Atravessou e começou a subir, saindo do vale. Subitamente, por entre as árvores, viu luz e ar, e emergiu da floresta para terra desbravada, despida até de arbustos, e à sua frente, acima dele, num promontório plano a talvez meia milha de distância, erguia-se o castelo de La Musarderie.

Ele tivera razão, quatro gerações da mesma família numa posse incontestada tinha dado tempo para construir em pedra local, ampliar e fortalecer. As primeiras cercas, feitas apressadamente de madeira setenta e cinco anos antes, para estabelecer e assegurar a posse, há muito que tinham desaparecido. Havia agora um volume imponente, uma muralha com ameias, torres gémeas baixas e robustas a ladear o portão que surgia em frente de quem se aproximasse vindo de leste, e os cumes dentados de outras torres que rodeavam a alta torre de menagem no interior. Para além dele, o terreno íngreme continuava a subir em dobras e níveis complexos até chegar a um longo cume no alto, onde Cadfael conseguiu distinguir, acima das árvores, o topo de um campanário e o declive ocasional de um telhado, assinalando a igreja de Greenhamsted. Uma estrada empedrada, recta e sem qualquer cobertura subia até aos portões do castelo. Ninguém conseguia aproximar-se de La Musarderie sem ser visto. À sua volta, todo o terreno tinha sido limpo de árvores e arbustos.

Cadfael iniciou a subida com determinação, desejoso de ser visto, à espera que o interrogassem. Philip FitzRobert não toleraria qualquer serviço menos eficiente. Muito antes de ele se aproximar, eles já estavam alertados. Ouviu uma corneta tocar no interior. As enormes portas duplas estavam fechadas. Suficientemente tarde para estar já tudo encerrado, mas havia um postigo aberto, suficientemente alto e largo para deixar entrar um homem a cavalo, até mesmo um homem a galope que estivesse a ser perseguido, e suficientemente fácil e leve para poder ser fechado e trancado depois de ele entrar. Nas torres gémeas que ladeavam o portão havia seteiras de onde poderia ser lançado um ataque duplo contra quaisquer perseguidores. Cadfael deu a sua aprovação, com os seus instintos a recordar recontros há muito ocorridos mas não esquecidos.

Por mais inocentemente que um portão assim seja aberto, um homem aproxima-se dele com discrição, mantendo as mãos bem à vista e não se apressando nem hesitando. Cadfael percorreu as últimas jardas e esperou no exterior, embora não tivesse aparecido ninguém a recebê-lo nem a obstruir-lhe o caminho. Chamou através do postigo aberto:

- A paz esteja com todos no interior! - e avançou para a liça, sem esperar por resposta.

No arco escuro, abobadado, do portão, havia homens de ambos os lados e, quando ele entrou no pátio, apareceram mais dois, prontos para lhe segurar as rédeas e as esporas, sem se mostrarem apressados nem ameaçadores, mas sim vigilantes.

- E com quem venha em paz - disse o oficial da guarda, saindo da sala da guarda a sorrir, ainda que pouco abertamente. - Como sem dúvida é o seu caso, irmão. O seu hábito fala por si.

- E fala a verdade - disse Cadfael.

- E o que faz por estas partes? - perguntou o sargento. - E qual é o seu destino?

- É este, La Musarderie - respondeu Cadfael directamente -, se me der alojamento durante algum tempo, até eu falar com o seu senhor. Não tenho mais nenhum assunto a tratar. Vim pedir uma audiência a Philip FitzRobert, e disseram-me que ele estava cá. Conforme for conveniente a si e a ele, quando ele achar por bem. Eu esperarei o tempo que for necessário.

- É mensageiro de outra pessoa? - perguntou o sargento, levemente curioso. - Ele acabou de regressar de uma reunião de bispos, o irmão veio falar em nome do seu?

- De certo modo, sim - admitiu Cadfael. - Mas também em meu próprio nome. Se tiver a bondade de lhe transmitir o meu pedido, sem dúvida que ele lhe dirá o que pensa.

Eles rodearam-no, mas a uma distância aceitável, curiosos e vigilantes, sorrindo ligeiramente, enquanto o seu sargento reflectia calmamente sobre o que deveria pensar dele e o que iria fazer com ele. A liça não era muito grande, mas o espaço vazio à volta das muralhas do castelo compensava isso. Do caminho da ronda ao longo da muralha, a vista devia ser suficientemente ampla para que o alarme sobre qualquer força armada que se aproximasse pudesse ser dado com bastante antecedência, proporcionando, ao mesmo tempo, um campo mortífero para os arqueiros que a guarnição teria certamente em grande número. A incrustação de despensas, armarias e aposentos exíguos à volta da muralha era sobretudo de madeira. Os incêndios, reflectiu Cadfael, poderiam ser uma ameaça mas, mesmo assim, uma ameaça limitada. O salão, a torre de menagem, as torres e a cortina do torreão eram todos de pedra. Ele perguntou a si próprio por que motivo estava a examinar o local como um objectivo numa batalha, um forte a ser tomado. Talvez, para ele, o viesse a ser, mas não desse modo.

- Apeie-se e seja bem-vindo, irmão - disse o sargento num tom amável. - Nós nunca nos recusamos a acolher homens com o seu hábito. Quando ao nosso senhor, vai ter que aguardar um pouco, pois neste momento está a montar lá fora, mas ele vai ter conhecimento do seu pedido, não receie. Deixe que o Peter leve o seu cavalo, depois ele levar-lhe-á os alforges aos seus aposentos.

- Eu trato do meu próprio cavalo - disse Cadfael tranquilamente, observando a precaução de saber onde poderia encontrá-lo se necessário; embora o sargento estivesse tão seguro de ter apenas um simples mensageiro monástico nas mãos, que não havia necessidade de desconfiar que ele o fosse enganar. - Eu próprio já fui guerreiro, há muitos anos. O hábito, uma vez adquirido, nunca se perde.

- É verdade - disse o sargento num tom indulgente, fazendo a vontade ao velho guerreiro. - Então o Peter vai-lhe mostrar os estábulos e, quando terminar, encontrará alguém no salão que atenderá às suas necessidades. Se já foi guerreiro, deve estar habituado ao alojamento de soldados.

- E satisfaz-me plenamente - concordou Cadfael, conduzindo o seu cavalo atrás do cavalariço, contente por se encontrar dentro das praças. Também não lhe escapou nenhuma das provas de que Philip mantinha uma casa vigilante e bem gerida. Recordando a presença morena e cortês que vira por breves instantes em privado na igreja do priorado de Coventry, ele não estava à espera de nada menos que isso. Todas as praças dos castelos têm uma vida própria variada que decorre sem alvoroço na enfermaria, padaria, armaria, despensa e oficinas, obedecendo a duas disciplinas paralelas, uma militar e uma doméstica. Ali na região da guerra, por mais incoerentes que os perigos pudessem ser, o lado doméstico da vida do castelo de La Musarderie parecia ter sido reduzido ao mínimo, e quase não havia mulheres. O administrador de Philip tinha possivelmente uma mulher algures, a tomar conta das criadas que ali houvesse, mas a vida no interior do castelo era totalmente militar e austeramente masculina, funcionando com uma eficiência implacável que provinha seguramente do seu senhor. Philip era solteiro e não tinha filhos, e estava totalmente absorvido no demoníaco conflito a que ninguém parecia conseguir pôr termo. O seu castelo reflectia a sua obsessão.

Havia suficiente actividade humana no pátio e nos estábulos, os homens andavam de um lado para o outro ocupados com os seus afazeres, sem pressa mas entusiasticamente, e ouvia-se uma babel de vozes tão constante como o zumbido num cortiço. O cavalariço Peter era afável e falador e ajudou Cadfael a tirar a sela e a descarregar o cavalo, escová-lo, dar-lhe água e instalá-lo numa baia, e, terminado isto, indicou-lhe onde ficava o salão. O funcionário do administrador, que o recebeu com apenas uma surpresa momentânea e um encolher de ombros aquiescente, como se estivesse a receber um visitante inesperado mas inofensivo, ofereceu-lhe uma cama e disse-lhe onde poderia encontrar a capela, pois já tinha passado a hora das Vésperas, e ele precisava de uma pausa para agradecer as bênçãos actuais e invocar ajuda para contendas futuras. Um beneditino idoso a precisar de abrigo para pernoitar, o que havia nesse facto que pudesse suscitar o interesse de alguém durante mais de um momento, mesmo quando os hóspedes voluntários eram poucos e espaçados?

A capela ficava no centro da torre de menagem, e ele perguntou a si próprio se o deixariam entrar lá sozinho, sem ser vigiado. A guarnição de Philip não hesitara em permitir a um monge o acesso às defesas centrais do castelo, eles até o tinham alojado no interior da torre de menagem, e não podia existir outro motivo para essa confiança que não fosse a simples confiança na sua integridade e a reverência pelo seu hábito. Isto levou-o a reflectir melhor sobre os seus próprios motivos e métodos, e a confirmar que a melhor abordagem era a directa. Não havia outra forma de agir a não ser avançar directamente, quer para o êxito, quer para o fracasso.

Na capela fria, de pedra, ele fez as suas devoções atrasadas com grande gravidade, ajoelhado à frente de um altar austeramente ornado e iluminado apenas por uma pequena lamparina. A abóbada no alto desaparecia na escuridão, e o frio aguçou-lhe a mente ao mesmo tempo que lhe enrijecia a carne. Meu Deus, como é que me hei-de aproximar, como é que posso estar à altura de um homem assim? Um homem que, ao despir um manto, se expôs à censura e à condenação e, ao vestir outro, apenas cobriu as suas feridas, não as sarou. Eu não sei o que pensar deste Philip.

Estava a levantar-se quando ouviu ao longe, vindo do pátio exterior, o ruído de cascos no empedrado, um pequeno som agudo. Apenas um cavalo; apenas um homem, como ele próprio, sem medo de cavalgar para o exterior ou o interior de um castelo, numa região em que os castelos eram trofeus a ser tomados à mínima oportunidade, e prisões a ser evitadas a todo o custo. Um momento depois, Cadfael ouviu o cavalo a ser conduzido para o estábulo, pisando as pedras com passos lentos que desapareceram no silêncio. Ele deu meia volta e saiu da capela, passando entre as salas da guarda e os portões da torre de menagem, onde o crepúsculo pairava, pálido, de encontro aos pilares negros do portal. Emergiu para o que parecia, por contraste, quase luz do dia, e deu por si a cruzar o caminho de Philip FitzRobert que acabara de desmontar após a sua cavalgada e estava a atravessar o pátio em direcção ao salão, despindo o manto e colocando-o sobre um dos braços enquanto andava. Eles encontraram-se e pararam, com dois ou três metros de distância entre si, observando-se mutuamente.

O vento que se levantava de noite tinha despenteado o cabelo preto de Philip, pois ele cavalgara de cabeça descoberta. As madeixas curtas caíam-lhe sobre a testa alta e faziam com que ele franzisse o sobrolho enquanto olhava. Vestia roupa preta muito simples, sem qualquer ornamento. A sua distinção era o seu porte. Fisicamente, em movimento ou parado, ele possuía uma elegância alongada e uma tensão como um arco retesado.

- Disseram-me que tinha um hóspede - disse ele, semi-cerrando os olhos castanhos escuros. - Irmão, julgo que já o vi antes.

-Eu estive em Coventry - disse Cadfael -, entre muitos outros. Embora não possa dizer se reparou em mim.

Houve um breve silêncio, e nenhum deles se mexeu.

- O irmão esteve presente - disse então Philip -, esteve próximo, mas não falou. Eu lembro-me, o irmão estava perto quando encontrámos De Soulis morto.

- Estava - disse Cadfael.

- E agora veio ter comigo. Para falar comigo. Foi o que me disseram. Em nome de quem?

- Em nome da justiça e da verdade - disse Cadfael -, pelo menos na minha opinião. Em nome de mim próprio e de alguns de quem sou advogado. E, em última instância, meu senhor, até mesmo em vosso nome.

Os olhos semicerrados, para apurar a vista através da luz que desaparecia, observaram-no por um momento, sem, aparentemente, encontrar qualquer falta na ousadia do seu modo de falar.

- Terei tempo para o ouvir após o jantar - disse Philip, no mesmo tom cortês que nem a curiosidade afectara. - Venha ter comigo quando eu sair do salão. Qualquer homem da casa lhe dirá onde poderá encontrar-me. E, se desejar, pode ajudar o meu capelão nas Completas. Eu respeito o seu hábito.

- Não posso fazer isso - disse Cadfael claramente. - Não sou padre. E agora nem sequer posso reclamar os plenos direitos deste hábito. Eu estou ausente sem autorização do meu abade. Quebrei o meu cordão. Sou apóstata.

- A sério?! - disse Philip, fitando-o com firmeza durante um longo momento, com a curiosidade desperta e, ao mesmo tempo, contida. Depois, disse abruptamente: - Mesmo assim, venha! - e deu meia volta, afastando-se na direcção do salão.

 

No salão de Philip FitzRobert o serviço era espartano e os presentes eram exclusivamente homens. Ele presidia à mesa alta entre os seus cavaleiros, e os jovens do seu séquito comportavam-se com confiante sinceridade, em que não havia temor mas sim, segundo todas as aparências, um desejo de cumprir o seu dever. Ele comeu frugalmente e bebeu pouco, falou livremente com os seus iguais e delicadamente com os criados. E Cadfael, do seu lugar ao lado do capelão numa mesa mais baixa, observou-o e perguntou a si próprio o que se passaria por trás da testa altiva e dos olhos castanhos profundos como fogos a arderem lentamente, e de tudo o que nele era misterioso, se não ameaçador.

Ele levantou-se da mesa cedo, deixando que os homens da guarnição continuassem à mesa à vontade e, depois de ele ter saído, o comportamento tornou-se mais descontraído, a cerveja e o vinho rodaram mais, e alguns dos que sabiam fazer música foram buscar os seus instrumentos para animar a noite. Sem dúvida que estaria montada uma guarda forte e que todos os portões estariam fechados e trancados. Musard, segundo tinha relatado o capelão, tinha feito a tolice de ir à caça e caíra na emboscada de Philip, tendo sido obrigado a entregar o seu castelo para recuperar a liberdade e também, possivelmente, para se manter vivo, embora fosse mais provável que as ameaças contra a vida a fim de obter posse de um forte não passassem, de facto, de ameaças, deparando-se muitas vezes com uma atitude de obstinado desafio, mesmo quando já havia cordas à volta do pescoço e carrascos prontos, na certeza de que eles não se atreveriam a cumpri-las. A lealdade entre famílias e os complexos casamentos no seio delas tinham impedido muitas dessas tentativas. Mas Musard não tinha um familiar poderoso ao lado de Stephen mais importante para o rei do que Philip e sentira-se menos confiante na sua segurança e cedera. Era pouco provável que isso alguma vez acontecesse a Philip. Ele parecia não recear homem nenhum, mas também nunca permitiria que os portões ficassem destrancados nem deixaria de colocar boas sentinelas nas muralhas.

- Eu fui chamado à presença do vosso amo - disse Cadfael -, depois de ele se ter retirado do salão. Pode indicar-me o caminho? Eu penso que ele não é homem que goste de ficar à espera quando marcou a hora.

O capelão era velho e experiente, e já nada o surpreendia. Em todo o caso, nada do que o seu castelão fizesse, nada que ele negasse, nada que ele concedesse, nenhum príncipe menor que ele rejeitasse, nenhum humilde monge em viagem que recebesse parecia motivar surpresa. Haveria certamente razão bastante para tudo e essa razão, quer fosse ou não compreensível, não seria posta em causa.

O velho padre encolheu os ombros e levantou-se da mesa para o conduzir para o exterior do salão.

- Normalmente, ele deita-se cedo. Então ele marcou-lhe uma hora, foi? É privilegiado. Mas ele é hospitaleiro para qualquer beneditino, ou para quem venha em nome da igreja.

Cadfael recusou-se a falar sobre esse assunto. Ali sabia-se que ele viera da conferência de Coventry e provavelmente supunha-se que tinha mais exortações do seu bispo a insinuar ao ouvido de Philip. Deixá-los pensar isso; assim, a sua presença ali seria muito satisfatoriamente justificada. Mas entre ele e Philip não poderia haver fingimentos.

- É aqui. Ele vive quase como um padre - comentou o capelão -, aqui no frio da torre de menagem, perto da capela, não nos confortáveis aposentos soalheiros. - Havia uma passagem estreita de pedra iluminada apenas por um pequeno archote fumarento num suporte colocado na parede. A porta de que se aproximaram era estreita e estava aberta. Quando o capelão bateu, uma voz no interior disse:

- Entre!

Cadfael entrou num quarto pequeno e austero, janelas altas com um único arco ogival através do qual se via o céu finamente polvilhado de estrelas. Estavam num piso elevado, suficientemente alto para se encontrarem acima da cortina do torreão neste lado resguardado. Por baixo da janela, uma vela grande ardia em cima de uma mesa pesada e, atrás da mesa, estava Philip, sentado num banco largo com enormes braços esculpidos, com as costas contra as tapeçarias escuras penduradas na parede. Ele ergueu a vista do livro aberto à sua frente. O facto de ele ser letrado não constituiu surpresa. Ele levaria todas as faculdades que possuía até ao limite.

- Entre, irmão, e feche a porta.

A sua voz era baixa, e o seu rosto, iluminado de lado pela vela junto do seu cotovelo esquerdo, era claramente delineado em planos de luz e ravinas de sombra, cavidades profundas por baixo de maçãs do rosto salientes, e na incrustação de marfim dos pensativos olhos escuros. Cadfael ficou admirado ao ver como ele era jovem, da idade do próprio Olivier. Havia algo de Olivier até no seu rosto límpido, altivo, naquele momento imóvel com uma gravidade perscrutadora que pairou sobre Cadfael em continuada especulação.

- Tinha algo a dizer-me. Sente-se, irmão, e fale livremente. Eu estou a ouvir.

Um movimento da sua mão indicou o banco de madeira colocado junto do seu lado direito e coberto com pele de borrego. Cadfael teria preferido ter ficado de pé, a olhar directamente para ele, mas obedeceu ao gesto, e o contacto dos olhos não foi quebrado. Philip também se tinha virado, mantendo o seu olhar firme.

- Agora, o que é que pretende de mim?

- Eu pretendo a liberdade de dois homens que, segundo creio, detém prisioneiros - respondeu Cadfael.

- Diga os nomes deles - disse Philip -, que eu lhe direi se tem razão.

-O nome do primeiro é Olivier de Bretagne. E o nome do segundo é Yves Hugonin.

- Sim - disse Philip sem hesitar e sem qualquer alteração no tom baixo da sua voz. - Estão ambos presos às minhas ordens.

- Aqui, em La Musarderie?

- Sim. Eles estão cá. Agora diga-me por que razão eu deveria libertá-los.

- Existem motivos para que um homem justo leve o meu pedido a sério - disse Cadfael. - Olivier de Bretagne, imagino eu pelo que sei a respeito dele, recusou-se a virar a casaca quando vós entregastes Faringdon ao rei. Houve vários homens que se mantiveram ao lado dele e que se recusaram a seguir-vos. Foram todos dominados e feitos prisioneiros, e detidos, para resgate, na posse daqueles a quem foram entregues como dádiva do rei. Isto é do conhecimento geral. Por que motivo não foi Olivier de Bretagne oferecido para resgate? Porque é que não se fez saber quem o detém?

-Eu disse-lhe a si, agora-disse Philip com um pequeno sorriso seco. - Continue.

-Muito bem! É verdade que só agora vos perguntei, e que agora não negastes. É justo que o caso dele seja diferente? Há quem gostaria de comprar a sua liberdade.

-Por mais elevado que seja o preço pedido?-perguntou Philip.

- Dizei qual é, que eu farei com que ele seja angariado e pago. Fez-se uma longa pausa, enquanto Philip o fitava com os olhos brilhantes abertos, por enquanto indecifráveis, e tão imóvel que nem um único cabelo da sua cabeça estremecia.

- Uma vida, talvez - disse ele de seguida, muito suavemente. - Outra vida no lugar da dele para apodrecer sozinho aqui como ele irá apodrecer.

- Aceitai a minha - disse Cadfael.

No arco ogival da janela alta, as nuvens tinham tapado a débil luz das estrelas, e as pedras da parede eram agora mais pálidas do que a noite lá fora.

- A sua - disse Philip suave e lentamente. Não era uma pergunta, nem uma exclamação, ele estava apenas a dizer a palavra para si próprio como se estivesse a gravá-la no metal inflexível da sua mente. - Que satisfação me daria a sua vida? Que tenho eu contra si que me causasse prazer destruí-lo?

- E o que tendes contra ele? Que prazer amargo sentirias ao destruí-lo? O que é que ele alguma vez vos fez a não ser manter-se leal à sua causa quando vós abandonastes a vossa? Ou quando ele pensou que o fez - corrigiu-se Cadfael -, porque digo-vos uma coisa, eu não sei como interpretar tudo o que vós fizestes, e ele, como muito bem sei, estaria menos preparado para olhar, não uma, mas duas, três ou mais vezes antes de julgar.

Não, não serviria de nada protestar. O desprezo veemente de Olivier teria constituído ofensa suficiente. Ele teria enfrentando Philip com o seu enorme orgulho, censurando-o com veemência, como se a imagem reflectida de Philip se insurgisse contra ele próprio. Talvez a única forma de esquecer aquela ferida mortal tivesse sido enterrar o acusador, colocando-o longe da sua vista e da sua memória.

- O senhor prezava-o! - disse Cadfael, esclarecido e sem receio.

- Prezava-o - repetiu Philip, não considerando a afirmação incorrecta. - Não foi a primeira vez que fui desobedecido, rejeitado, menosprezado e ignorado por alguns dos que eu mais prezava. Não há nada de novo nisso. Leva algum tempo até chegarmos ao ponto de nos desligarmos do último e avançarmos sozinhos. Mas agora, já que me fez uma oferta, porque é que o irmão me há-de oferecer, me oferece os seus ossos velhos para apodrecerem no lugar dele? O que é Olivier de Bretagne para si?

- É meu filho - respondeu Cadfael.

No longo, profundo silêncio que se seguiu, Philip soltou finalmente a respiração que sustivera num prolongado e suave suspiro. O acorde sensível que soara entre eles era complexo e doloroso, e ecoava timidamente na cabeça. Porque Philip também tinha um pai, agora separado dele num gesto de rejeição mútua, irreconciliável. Mas havia, claro, o irmão mais velho, William, o herdeiro de Robert. Fora aí que o corte começara? Sempre próximo, sempre amado, sempre suficiente, e este outro filho ignorado, as suas necessidades e desejos satisfeitos com tanta indiferença como tinham sido as suas súplicas por Faringdon? Isso poderia constituir parte da causa da ira de Philip, mas seguramente que não era tudo. Não era assim tão simples.

- Os pais sentem assim tanta preocupação pelos filhos? - perguntou ele secamente. -Acha que o meu levantaria um dedo para me libertar da prisão?

- Pelo que eu sei, e vós sabeis também - disse Cadfael com firmeza -, ele fá-lo-ia. Vós não precisais. Olivier precisa, e merece que o trateis melhor.

- Está a incorrer num erro - disse Philip num tom indiferente. - Não fui eu que o abandonei primeiro. Ele abandonou-me, e eu aceitei o seu juízo. Se aquela foi uma medida de decisão de uma das partes para pôr termo a este abominável desperdício, o que pode um homem fazer senão colocar o seu peso no outro prato da balança? E se isso for igualmente ineficaz e falhar amargamente? Quanto mais pode este pobre país suportar?

Ele estava a falar quase nos mesmos termos que o conde de Leicester e, no entanto, a sua solução era muito diferente. Robert Bossu estava a tentar juntar as mentes mais sensatas e mais moderadas de ambas as facções para que se chegasse a um compromisso que poria termo à guerra através de um acordo. Philip não via outra possibilidade a não ser terminar a contenda com uma vitória total e, após oitos anos de desperdício, não lhe interessava muito qual das facções triunfasse, desde que o triunfo devolvesse à Inglaterra algo que se assemelhasse à lei e à normalidade. E, do mesmo modo que Philip era apodado de traidor e vira-casacas, também Robert Bossu o seria um dia quando retirasse as suas forças da batalha para obrigar o rei a ceder. Mas ele e outros como ele poderiam ser, mesmo assim, os salvadores de uma terra atormentada.

- Estais a falar agora do rei e da imperatriz - disse Cadfael -, e eu compreendo o que dizeis, melhor do que compreendi até este momento. Mas eu estou a falar do meu filho Olivier. Estou a oferecer-vos um preço por ele, o preço que indicastes. Se estavas a falar a sério, aceitai-o. Independentemente do que eu possa pensar de vós, acho que não voltareis atrás nos vossos acordos, bons ou maus.

- Espere! - disse Philip, erguendo uma mão, num gesto de tolerância. - Eu disse: talvez uma vida. Não fico comprometido por uma declaração tão condicional. E, perdoe-me, irmão, velho como é, considerar-se-ia uma troca justa pela juventude e força dele? Apelou para mim como um homem justo, e é como tal que me dirijo a si.

- Eu estou a ver o desequilíbrio - disse Cadfael. Não em idade, beleza e vigor, por mais gritante que a discrepância fosse, mas na emoção da confiança e afecto que nunca poderia ser adequadamente paga pela suave estima que este homem sentia agora pelo seu interlocutor. No momento do teste definitivo, seguramente que aqueles dois amigos não tinham conseguido pensar da mesma maneira, e a expectativa de que estariam de acordo tinha sido tão absoluta, que se deu uma desintegração que nunca poderia ser perdoada. - Mesmo assim, ofereci-vos o que pedistes, é tudo o que tenho para vos oferecer. Não posso subir a minha parada. Não tenho nada mais para dar. Agora, sê sincero e admiti que é mais do que estáveis à espera.

- É mais - concordou Philip. - Eu penso, irmão, que tem que me dar tempo. O irmão foi uma surpresa para mim. Como é que havia de saber que Olivier tinha um pai assim? E se eu lhe fizesse perguntas sobre este filho seu que tem um pai tão estranho, duvido que não me dissesse.

- Eu creio que diria - disse Cadfael.

Os olhos escuros brilharam com um interesse divertido.

- Faz confidências assim com tanta facilidade?

- Não a toda a gente - disse Cadfael, vendo as faíscas transformarem-se num brilho constante. E mais uma vez fez-se silêncio, mas mais leve do que os anteriores.

-Deixemos este assunto por agora-disse Philip abruptamente. - Ele fica por resolver, mas não esquecido. O irmão veio em nome de dois homens. Fale-me do segundo. Tem coisas a argumentar a favor de Yves Hugonin.

- O que eu tenho a argumentar a favor de Yves Hugonin - disse Cadfael - é que ele não teve nada a ver com a morte de Brien de Soulis. Enganaste-vos completamente a respeito dele. Em primeiro lugar, porque eu o conheço, conheço-o desde criança, é o tipo de pessoa que vai directamente aos seus objectivos como uma flecha, como qualquer outro homem. Eu vi-o, como vós não tivestes oportunidade de fazer, eu vi-o quando ele passou a porta do priorado em Coventry e viu Brien de Soulis armado, cheio de bravata, lhe chamou vira-casacas e traidor, e levou a mão ao punho da espada para lutar com ele, mas cara a cara, na frente de muitas testemunhas. Se ele tivesse matado, teria sido ao seu modo, não à espreita em locais escuros, numa emboscada com uma lâmina nua. Agora, pensai na noite em que o homem morreu. Yves Hugonin diz que chegou tarde às Completas, já depois de o ofício religioso ter começado, e que se deixou ficar no último canto escuro no interior da porta, tendo, por conseguinte, sido o primeiro a sair para deixar o caminho livre para os príncipes. Ele diz que tropeçou no corpo de De Soulis no escuro e que se ajoelhou para ver se o homem estava magoado, e que gritou a pedir luz. E, assim, foi visto por toda a gente com sangue nas mãos. Tudo isto é manifestamente verdade, independentemente de tudo o mais de que o possa acusar. Porque dizeis que ele nunca esteve na igreja, mas que tinha morto De Soulis, limpo a espada e a tinha colocado inocentemente nos seus aposentos, onde ela deveria estar, e regressado a tempo de dar ele próprio o alarme junto do morto. Mas se isso fosse verdade, porque é que ele haveria de nos chamar? Porque é que ficaria ao pé do corpo? Porque não estaria noutro lado qualquer, junto dos seus companheiros, rodeado por pessoas que pudessem servir de testemunhas da sua inocência?

- Mas podia ter sido assim - disse Philip, implacavelmente. - Homens com um tempo limitado para apagar os seus vestígios nem sempre escolhem o caminho mais infalível. Que objecções tem ao que eu acredito?

- Várias coisas. Em primeiro lugar, nessa mesma noite eu examinei a espada de Yves, e esta estava embainhada e colocada onde ele dissera. Não é fácil limpar vestígios de sangue de uma lâmina estriada, e eu tenho experiência disso. Não encontrei nenhuma mancha nela. Em segundo lugar, depois de se terem ido embora, eu pedi autorização ao bispo para observar o corpo de De Soulis. A ferida não foi feita por uma espada, não há espadas assim tão finas. Um punhal fino, afiado, suficientemente comprido para atingir o coração. E um golpe firme, rápido, o punhal penetrou profundamente e foi retirado antes de De Soulis começar a sangrar. O fluxo de sangue veio mais tarde, quando ele já estava caído no chão, a marca do seu corpo ficou delineada nas lajes por baixo dele. E agora, em terceiro lugar, dizei-me como é que o seu inimigo declarado se podia ter aproximado tanto dele, tendo De Soulis a espada e o punhal à mão. Ele teria desembainhado a espada assim que visse o seu inimigo aproximar-se, muito antes de ficar ao alcance do punhal. Isto faz sentido ou não?

- Faz bastante sentido - concordou Philip.

- Vai até ao cerne da questão. Brien de Soulis estava armado, ele não tinha qualquer intenção de assistir às Completas, pois tinha outro compromisso nessa noite. Aguardou num recanto do claustro e avançou para a arcada quando ouviu o seu homem aproximar-se. Era um momento sossegado, com toda a gente na igreja, uma boa altura para uma conversa privada sem testemunhas. Não com um inimigo declarado, mas sim com um amigo, alguém de confiança, alguém que podia dirigir-se confiantemente a ele, alguém de cujas más intenções ele não tinha a mínima suspeita e que o apunhalou no coração. E que se foi embora deixando-o caído no chão para que um jovem tolo tropeçasse nele e anunciasse, com um grito, o que tinha descoberto, colocando uma corda à volta do seu próprio pescoço.

- O seu pescoço - disse Philip secamente - ainda está intacto. Ainda não decidi o que fazer com ele.

- E eu não estou a facilitar a vossa decisão, suponho. Porque o que eu estou a dizer é a verdade e, quer queirais quer não, não podeis deixar de o reconhecer. E tenho mais para vos contar, e embora o que eu tenho a dizer não retire a Yves Hugonin todos os motivos para odiar Brien de Soulis, abre a porta a muitos outros homens que possam ter uma razão melhor para o odiar ainda mais. Mesmo entre alguns que ele tivesse anteriormente considerado seus amigos.

- Continue - disse Philip serenamente. -Ainda estou a ouvir.

-Depois de vos terdes ido embora, juntámos tudo o que pertencia a De Soulis, sob supervisão do bispo, para enviar para o irmão dele. Conforme seria de esperar, ele tinha consigo o seu sinete pessoal. Conheceis a insígnia?

- Conheço. O cisne e os ramos de chorão.

- Mas encontrámos também outro sinete, com outra insígnia. Também conheceis esta divisa? - Ele tinha retirado a folha de pergaminho enrolada do peito do hábito e inclinou-se para a estender em cima da mesa, entre as longas mãos musculosas de Philip. - O original está com o bispo. Conhecei-lo?

- Sim, já o vi - disse Philip com cuidadosa indiferença. - Um dos comandantes de De Soulis da guarnição de Faringdon usava-o. Conheci esse homem, embora não muito bem. Tinha uma boa companhia recrutada por ele próprio. Geoffrey FitzClare, meio-irmão de Gilbert de Clare de Hertford, o lado errado dos lençóis.

- Então suponho que deveis ter ouvido dizer que Geoffrey FitzClare caiu do cavalo e morreu da queda, no dia em que Faringdon se rendeu. Disseram que ele saíra de Cricklade durante a noite, depois de ter aposto o seu sinete à rendição, como todos os outros comandantes que tinham os seus seguidores no interior do castelo. Ele não regressou. De Soulis e outros foram à procura dele no dia seguinte e trouxeram-no de volta numa padiola. Antes do anoitecer, disseram à guarnição que ele tinha morrido.

- Isso eu sei - disse Philip, pela primeira vez com uma voz tensa e cautelosa. - Um grande azar. Ele nunca chegou a falar comigo. Só ouvi falar no assunto depois.

- Não estáveis à espera dele? Não tinhas mandado chamá-lo? Philip estava agora a franzir o sobrolho, e as suas sobrancelhas uniam-se por cima dos olhos profundos.

- Não. Não havia necessidade. De Soulis tinha plenos poderes. Há algo mais sobre isto. O que pretende dizer?

-Quero dizer que foi muito conveniente que ele tivesse morrido de um acidente, no dia a seguir ao seu sinete ter sido acrescentado ao acordo que entregava Faringdon ao rei Stephen. Que é possível que ele não tenha, de facto, morrido durante a noite e que tenha sido outra mão a colocar o seu sinete no acordo. Pois há quem jure, e eu falei com um desses homens, que Geoffrey FitzClare nunca teria concordado com a rendição se tivesse voz para gritar e conseguisse erguer a mão para a impedir. E se a voz e a mão se tivessem erguido contra ela, os seus homens no interior, e talvez mais outros, teriam combatido ao seu lado, e Farindgon nunca teria sido tomado.

- Está a dizer-me - disse Philip, pensativo - que a sua morte não foi um acidente. E que foi outro, não ele, quem apôs aquele sinete à rendição, juntamente com os outros. Depois de o homem ter morrido.

- É isso o que eu estou a dizer. Uma vez que ele próprio não o teria aposto, nem o colocaria noutras mãos enquanto fosse vivo. E o seu consentimento era essencial para convencer a guarnição. Eu penso que ele morreu assim que o assunto foi abordado e ele o condenou. Não havia tempo a perder.

- No entanto, eles saíram à procura dele no dia seguinte e levaram-no de volta a Faringdon às claras, em frente da guarnição.

- Numa padiola, embrulhado em mantos. Sem dúvida que os seus homens o viram passar, viram claramente o rosto reconhecível. Mas nunca o viram perto. Nunca lhes mostraram o corpo depois de lhes dizerem que ele tinha morrido. Um homem morto durante a noite pode facilmente ser levado e escondido em qualquer lado, e trazido de volta às claras no dia seguinte. A porta de trás que estava aberta para deixar entrar os negociadores do rei podia muito bem ter servido para levar o corpo de FitzClare para o exterior, para um esconderijo no bosque. De que outro modo, com que outro objectivo - disse Cadfael pesadamente - iria o sinete de FitzClare com Brien de Soulis para Coventry e seria encontrado no seu alforge lá?

Philip levantou-se abruptamente, deu a volta à mesa e começou a andar de um lado para o outro do aposento. Deslocava-se em silêncio, com uma espécie de violência contida, como se a sua mente estivesse a obrigar o corpo a mover-se, a única forma de aliviar o seu tumulto interior. Ele atravessava o quarto como um gato à procura de uma presa e acabou por parar, finalmente, com os punhos cerrados apoiados na pesada arca situada no canto mais escuro, com as costas viradas para Cadfael e para a origem da luz. A sua imobilidade era tão tensa como o seu movimento, e ele permaneceu em silêncio durante longos momentos. Quando se virou, era óbvio, pela compostura do seu rosto, que se tinha reconciliado com tudo o que ouvira.

- Eu não sabia nada disso. Se for verdade, como o meu sangue me diz que é verdade, eu não tive nada a ver com o assunto, nem nunca o teria permitido.

- Eu nunca pensei isso - disse Cadfael. - Eu não sei nem vou perguntar se a rendição se efectuou para cumprir os vossos desejos - não, as suas ordens! - mas não, não estáveis lá, o que quer que tenha sido feito foi feito às ordens de Brien de Soulis-Talvez pelo próprio De Soulis. Não seria fácil conseguir que outros quatro comandantes fossem cúmplices do assassínio, pondo em risco os seus seguidores. Era melhor afastá-lo do caminho e dizer que ele tinha sido enviado para conversar convosco em Cricklade, enquanto um ou dois que não tivessem objecções a recorrer ao assassínio levavam secretamente para fora do castelo um homem morto e o cavalo que ele teria supostamente montado na sua missão nocturna. E primeiro o sinete dele foi aposto no pergaminho. Não, independentemente do que eu possa pensar que sejais capaz de fazer, nunca vos julguei cúmplice de um assassínio. Mas FitzClare está morto, e De Soulis está morto, e vós não tendes, creio eu, o motivo que julgáveis ter para lamentar ou vingar a sua morte. Nem qualquer razão para acusar da sua morte um jovem declarada e honestamente seu inimigo. Havia muitos mais homens em Faringdon que gostariam bastante de vingar o assassinato de FitzClare. Quem sabe se alguns deles não estariam presentes em Coventry? Ele era muito estimado e bem servido. E nem todos os seus seguidores acreditaram no que lhes foi dito sobre a sua morte.

- De Soulis estaria tão pronto para os enfrentar como para enfrentar Hugonin - disse Philip.

-Julgueis que eles se denunciaram como inimigos? Não, quem quer que tenha decidido aproximar-se dele teve o cuidado de não fazer qualquer aviso. Mas Yves já tinha gritado bem alto a sua raiva e inimizade perante o mundo. Não, vós sabeis que ele nunca se deixaria ficar ao alcance de uma espada, quanto mais uma faca pequena. Libertai Yves Hugonin - disse Cadfael -, e prendei-me a mim, em vez do meu filho.

Philip voltou lentamente para o seu lugar à mesa, sentou-se e, ao ver que o livro que estivera a ler ainda estava aberto, fechou-o silenciosamente. Pousou a cabeça nas mãos compridas e fixou novamente os seus olhos no rosto de Cadfael.

- Sim - disse ele, mais para si próprio do que para Cadfael -, sim, há a questão do seu filho Olivier. Não nos podemos esquecer do Olivier. - Mas a sua voz não era tranquilizadora. – Vejamos se o homem que eu conheço, de quem eu tinha uma boa opinião, é o mesmo que o filho que o irmão conhece. Ele nunca me falou de um pai.

- Ele não sabe mais do que a mãe dele lhe disse, quando ele era criança. Eu não lhe disse nada. Do seu pai, ele sabe apenas uma lenda demasiado amável, demasiado colorida pelo afecto.

- Se as minhas perguntas forem demasiado íntimas, pode recusar-se a responder. Mas sinto que preciso de saber. Um filho do claustro?

- Não - respondeu Cadfael -, um filho de uma Cruzada. A mãe dele vivia e morreu em Antioquia. Eu só soube que ela teve um filho meu quando o encontrei aqui em Inglaterra e ele falou nela, referiu datas e não me deixou quaisquer dúvidas. O claustro veio mais tarde.

- A Cruzada! - repetiu Philip. Os seus olhos arderam em tons de ouro. Ele semicerrou-os e observou com curiosidade a tonsura grisalha e o rosto enrugado de Cadfael. - A Cruzada que construiu um reino cristão em Jerusalém? Esteve lá? De todas as batalhas, essa foi certamente a mais valorosa.

- A mais fácil de justificar, talvez - concordou Cadfael num tom de tristeza. - Eu não diria mais do que isso.

O olhar vivo, penetrante, continuou a pesar, medir e reflectir-se, com uma emoção súbita, a olhar para longe através de Cadfael, para além do famoso Mediterrâneo, para os lendários reinos frâncios de Ou tremer. Desde a queda de Edessa que a cristandade se sentia apreensiva quanto às esperanças e temores a respeito de Jerusalém, e papas e abades estavam a despertar do seu sono para pensar na capital sitiada, erguendo as suas vozes como clarins a chamar à defesa da igreja. Philip ainda não era tão velho que não pudesse sentir-se incitado pelo som da trombeta.

- Como é que veio a conhecê-lo cá, se não sabia da existência dele? E só uma vez?

- Duas e, com a graça de Deus, haverá uma terceira - respondeu Cadfael vigorosamente, contando-lhe, muito resumidamente, as circunstâncias desses dois encontros.

- E ele ainda não sabe que é pai dele? Nunca lhe disse?

-Não havia necessidade de ele saber. Não há qualquer vergonha nesse facto, mas também não há orgulho. O caminho dele está nobremente traçado, porque é que eu havia de provocar qualquer tremor que o desvie ou perturbe?

-Não lhe pede nada, não quer nada dele?-O perigoso azedume estava de volta à voz de Philip, rouca com a dor de tudo que esperara do seu próprio pai e não recebera. Um amor demasiado intenso, pervertido num ódio demasiado intenso, corroía todos os seus pensamentos sobre a angustiante relação entre pais e filhos, demasiado próximos e demasiado distantes, nunca equilibrados.

- Ele não me deve nada - disse Cadfael. - Nada, a não ser a amizade e o afecto que possamos sentir um pelo outro, granjeado através da livre vontade e da confiança merecida, não através do sangue.

- E, no entanto, é através do sangue - disse Philip em voz baixa - que imagina que lhe deve tanto, até mesmo uma vida. Irmão, eu penso que está a dizer-me uma coisa que eu aprendi demasiado bem, embora tenha levado anos a dominar esse conhecimento. Nós nascemos dos pais que merecemos, e eles geram os filhos que merecem. Nós somos a nossa própria penitência e a deles. A primeira guerra assassina do mundo, segundo nos dizem, foi entre dois irmãos, mas a mais longa e a mais dolorosa é entre pais e filhos. Agora oferece-me o pai em troca do filho, e não está a oferecer-me nada que eu queira nem precise, e faz-me a oferta numa moeda que eu não posso gastar. Como é que eu poderia descarregar a minha raiva em si? Eu respeito-o, estimo-o, até há coisas que me poderia pedir que eu lhe daria de boa vontade. Mas não lhe darei o Olivier.

Estava a mandá-lo embora. Não haveria mais conversa entre eles nessa noite. Da capela, o sino tocou para as Completas e ecoou, surdo, ao longo dos corredores.

 

Cadfael levantou-se à meia-noite, tendo acordado até mesmo sem o sino das Matinas devido ao longo hábito e, uma vez acordado, lembrou-se que estava alojado numa pequena cela próxima da capela. Isso fê-lo reflectir, embora anteriormente não tivesse pensado que esse facto talvez tivesse implicações profundas. Ele tinha confessado abertamente a sua apostasia a Philip, e, mesmo assim, Philip tinha-o alojado ali, uma cortesia que poderia ser dispensada a um clérigo visitante. E, estando tão perto e tendo sido alojado tão amavelmente ali, porque é que ele não haveria de, pelo menos, dizer as Matinas e as Laudes em frente do altar? Embora tivesse renunciado aos seus direitos e privilégios, não tinha renegado a sua fé, nem a tinha comprometido.

O próprio acto de se ajoelhar sozinho, no frio e na austeridade da pedra, e de dizer as palavras familiares quase em silêncio proporcionou-lhe mais conforto e tranquilidade do que ele estava à espera. Se a graça não estava perto dele, por que motivo se levantaria ele tão limpo das dúvidas e ansiedades do dia, e apenas com as incertezas do amanhã a ensombrá-lo?

Estava a retirar-se, encontrando-se a um ou dois passos da porta aberta que não fechara, não fosse ela ranger e acordar os outros, quando alguém que estava acordado, silencioso como ele, o viu. A luz fraca mostrou-os bastante claramente um ao outro.

- Para um apóstata - disse Philip em voz baixa -, o irmão respeita fielmente as horas. - Ele vestia um roupão com pele por cima da nudez e estava descalço na pedra. - Oh, não, não me incomodou. Eu fiquei a pé até tarde. Pode culpar-se por isso, se quiser.

- Até mesmo um apóstata pode agarrar-se às orlas da graça - disse Cadfael. - Mas desculpai ter-vos impedido de dormir.

- Poderá haver nisso algo melhor do que dor para si - disse Philip. - Voltaremos a conversar amanhã. Espero que tenha tudo o que precisa aqui e que a cama seja pelo menos tão macia como a do dormitório em casa? Segundo me dizem, não há grande diferença entre a cama de um soldado e a de um monge. Desde que me tornei adulto que só experimentei apenas uma.

Isso era, de facto, verdade, pois antes de fazer vinte anos já ele pegara em armas para apoiar o pai naquela interminável contenda.

- Eu conheço as duas - disse Cadfael - e não me queixo de nenhuma.

- Foi o que me disseram, segundo me recordo, em Coventry. Pessoas que o conheciam. Como eu não conhecia... não nessa altura - disse Philip, apertando melhor o roupão de encontro ao corpo. - Eu também estive a conversar com Deus - disse ele, passando por Cadfael e entrando na sua capela. - Venha ter comigo depois da missa.

- Desta vez, não é atrás de uma porta fechada - disse Philip pegando no braço de Cadfael quando saíam da missa -, mas publicamente no salão. Não, não precisa de dizer nada, já fez a sua parte. Eu estive a pensar em tudo o que me disse a respeito de Brien de Soulis e de Yves Hugonin, e se uma questão, culpada ou não, não ficou provada, a outra também clama para ser ignorada. Deixemos Brien de Soulis descansar o melhor que puder, é demasiado tarde para o acusar, pelo menos aqui. Mas Hugonin... não, as dúvidas são demasiado grandes. Já não o acuso, não me atrevo a fazê-lo. Venha, venha vê-lo ser posto em liberdade e partir para ir ter com a sua própria facção, ou para onde ele quiser.

No salão de La Musarderie, as mesas desmontáveis e os bancos tinham sido retirados, deixando o enorme espaço vazio, e a lareira central avivada e cuidada, pois o Inverno estava a começar a fazer-se sentir com geadas nocturnas e, apesar da protecção do vale profundo do rio, os ventos penetravam através de todos os postigos e seteiras. Ali reunidos, os oficiais de Philip olharam-no com rostos inexpressivos quando ele entrou, e um grupo de guerreiros manteve-se à distância, atento, a aguardar as suas ordens.

- Mestre de armas - disse Philip -, ide buscar Yves Hugonin à cela. Levai o ferreiro convosco e cortai-lhe as correntes. Foi-me dado a saber que eu, com toda a probabilidade, me enganei ao julgá-lo culpado da morte de De Soulis. Pelo menos, eu tenho dúvidas suficientes para o libertar e ilibar de todas as ofensas contra mim. Ide buscá-lo e trazei-o cá.

Eles foram sem qualquer lhesitação e com uma espécie de presteza indiferente que era natural naqueles homens que o serviam. Não havia medo na sua diligência incondicional. Quem o temesse ter-se-ia afastado dele e partido para outro local.

- Não me destes oportunidade de vos agradecer - disse Cadfael ao ouvido de Philip.

- Esta não é uma ocasiã o para gratidão. Se me disse a verdade, é minha obrigação. Por vezes, sou demasiado precipitado, mas não ignoro intencionalmente a verdade. - E dirigindo-se a alguns dos homens que estavam parados à porta, acrescentou: - Mandem selar o cavalo dele e encham os alforges. Não, isso pode esperar um pouco. Ele pode demorar algum tempo a arranjar-se, e os nossos hóspedes devem partir bem alimentados e apresentáveis.

Eles foram cumprir as suas ordens, aquecer água e levá-la para um aposento vazio, e colocar ali o alforge que tinha sido tirado do cavalo quando Yves fora trazido como prisioneiro. Assim, só mais de meia hora depois é que o rapaz foi levado para o salão, à presença do seu captor. Ali, ele parou, admirado, ao ver o irmão Cadfael ao lado de Philip.

- Está aqui alguém que diz que eu me enganei a teu respeito -disse Philip francamente - e eu comecei a partilhar a sua opinião. Comunico-te que és livre de te ires embora, de agora em diante não és meu inimigo e, até onde a minha jurisdição se estende, ninguém deverá incomodar-te.

Yves olhou de um para outro e ficou sem saber o que dizer, ainda atordoado por ter sido tão Subitamente retirado da prisão e trazido para a luz. Ele estivera prisioneiro durante tão pouco tempo que os sinais do cativeiro mal eram visíveis. Tinha os pulsos magoados dos ferros, mas só se via uma fina linha azul e, ou tinha estado alojado num local asseado e seco, ou tinha vestido roupa limpa. O cabelo, ainda húmido, encaracolava-se à volta da sua cabeça, quando secasse seria macio como o de uma criança. Mas havia sombras de ira e desconfiança no seu rosto rígido quando olhou para Philip.

- Ganhou-o justamente - disse Philip num tom de indiferença, sorrindo um pouco do olhar sombrio do rapaz. -Abrace-o!

Perplexo e desconfiado, Yves ficou tenso ao sentir as mãos de Cadfael nos seus ombros, mas descontraiu-se logo e, trémulo, inclinou o rosto corado e ainda meio relutante para receber o beijo. Com voz vacilante, perguntou:

- O que é que fez? O que o trouxe cá? Não devia ter-me seguido. -Não faças perguntas!-disse Cadfael, afastando-o com firmeza.

- Não há necessidade! Aceita o que te é oferecido e alegra-te. Não há qualquer logro.

- Ele disse que o irmão me ganhou. - Yves virou-se para Philip, de sobrolho franzido, pronto para explodir. - O que é que ele fez? Como é que ele conseguiu que me libertasses? O que é que ele ofereceu por mim?

- É verdade que o irmão Cadfael veio oferecer uma vida - disse Philip, friamente. - Mas não por ti. Ele argumentou a teu favor, meu amigo, não foi pago qualquer preço. Nem pedido.

- É verdade - disse Cadfael.

Yves olhou de um para outro, indeciso entre a crença num e a descrença noutro.

- Não por mim - disse ele lentamente. - É verdade, então, deve ser verdade. O Olivier está cá! Quem havia de ser?

- O Olivier está cá - concordou Philip tranquilamente, acrescentando num tom definitivo - e fica cá.

- Não tendes esse direito. - Yves estava agora demasiado preocupado e solene para ficar zangado. - O que tínheis contra mim era, pelo menos, credível. Contra ele, não tendes qualquer justificação. Deixai-o ir-se embora agora. Prendei-me se quiserdes, mas libertai o Olivier.

- Serei eu a julgar - disse Philip, franzindo o sobrolho, mas com uma voz tão tranquila como antes - se tenho motivo de queixa contra Olivier de Bretagne. Quanto a ti, o teu cavalo está selado e abastecido, podes ir para onde quiseres, voltar para a tua imperatriz sem nenhum impedimento da parte de qualquer homem meu. O portão será aberto para ti. Podes ir.

A forma seca como o mandou embora fez subir um rubor às faces limpas, macias, de Yves e, por um momento, Cadfael receou pela maturidade que o jovem recentemente alcançara. De que servia continuar a protestar quando a situação colocava tudo fora do seu alcance, com excepção duma obediência digna? Alguns meses antes, na perigosa confusão da transição de rapaz para homem, ele talvez tivesse explodido numa ineficaz raiva. Mas algures sob as torres de La Musarderie, Yves tinha acabado de crescer. Ele confrontou o seu adversário com um rosto controlado e uma postura cortês.

- Deixai-me, pelo menos, perguntar - disse ele - quais são as vossas intenções a respeito do irmão Cadfael. Ele também é prisioneiro?

- Comigo, o irmão Cadfael está em segurança. Não precisas de temer por ele. Mas, de momento, eu gostaria de ter a sua companhia e penso que ele não ma recusará. Ele é livre de se ir embora quando quiser, ou de ficar o tempo que quiser. Ele pode dizer as suas orações tão fielmente na minha capela como em Shrewsbury. E ele, de facto, di-las - disse Philip com um breve sorriso, recordando-se do encontro nocturno -, até mesmo as Matinas da meia-noite. Deixa o irmão Cadfael decidir por si.

- Eu ainda tenho assuntos a tratar aqui - disse Cadfael, fitando o rapaz nos olhos ansiosos que se abriram muito para apreender mais significados do que as meras palavras transmitiam.

- Então, eu vou-me embora - disse ele. - Mas digo-vos já, Philip FitzRobert, que voltarei em armas para vir buscar Olivier de Bretagne.

- Faz isso - disse Philip -, mas depois não te queixes da recepção.

Ele partiu, sem olhar para trás. Uma mão no freio, um pé no estribo, um salto leve para a sela, as rédeas reunidas numa mão e os calcanhares sem esporas premidos contra os flancos malhados do cavalo. As fileiras de soldados curiosos, servos e criados abriram-se para o deixar passar, e ele passou o portão e pisou a estrada que descia na direcção da orla de árvores do vale do rio lá em baixo. Ali, ele atravessá-lo-ia e voltaria a subir através do bosque cerrado que rodeava Greenhamsted. Yves partiu pelo mesmo caminho por que Cadfael chegara, em direcção à enorme estrada recta que os romanos tinham construído há muito tempo e que atravessava o planalto dos Cotswolds como uma flecha; quando lá chegasse, ele viraria para a esquerda, na direcção de Gloucester, de regresso aos seus deveres.

Cadfael não foi até ao portão para o ver partir. O último relance que teve dele foi à saída, recortado contra um céu sombrio, com as costas direitas como uma lança, antes de os portões serem fechados e trancados atrás dele.

- Ele está a falar a sério - disse Cadfael, em jeito de aviso. Porque há jovens que dizem coisas que não sentem realmente, e os que não sabem reconhecer a diferença podem vir a arrepender-se. - Ele vai voltar.

- Eu sei - disse Philip. - Eu não lhe levo a mal o seu floreio, mesmo que não seja mais do que um floreio.

- É mais. Não desdenhai dele.

- Nem pensar! Ele virá, e nós veremos. Depende da dimensão das forças que ela tem agora em Gloucester, e de o meu pai estar ou não com ela. - Ele falou do pai com muita frieza, calculando apenas, na sua mente competente, as possíveis forças reunidas contra ele.

Os homens da guarnição tinham dispersado para as suas várias tarefas. Um vento vindo do pátio trazia até eles o odor a pão quente e fresco transportado da padaria em tabuleiros, doce como o cravinho, bem como o ruído metálico de martelos oriundo da armaria.

- Porque é que desejais manter a minha companhia? - perguntou Cadfael. - Eu é que tinha um assunto não resolvido a tratar convosco, não vós comigo.

Philip despertou das suas reflexões e dos seus pensamentos e ponderou a pergunta, olhando atentamente para o perguntador.

- Porque é que decidiu ficar? Eu disse-lhe que se podia ir embora quando quisesse.

- Conheceis a resposta a essa pergunta - respondeu Cadfael pacientemente. - Eu não conheço a resposta à minha pergunta. O que pretendeis de mim?

- Eu próprio não tenho a certeza - admitiu Philip com um sorriso irónico. - Alguma indicação clara sobre a sua mente, talvez. O irmão interessa-me mais do que a maior parte das pessoas.

Se isso fosse um elogio, era um elogio que Cadfael poderia ter retribuído com veemente sinceridade. Uma indicação clara sobre a mente daquele homem talvez fosse uma revelação. Compreender o filho talvez até ajudasse a compreender o pai. Se Yves encontrasse Robert de Gloucester na cidade com a imperatriz, será que ele iria incitá-la a atacar Philip com um azedume semelhante ao de Philip, ou tentaria resfriar a animosidade dela para poupar o filho?

- Espero - disse Philip - que, enquanto cá estiver, utilize a minha casa como se estivesse em sua casa. Se lhe faltar alguma coisa, peça.

-Falta-me uma coisa.-Ele colocou-se directamente no caminho de Philip, para que este o visse e ouvisse claramente e, se necessário, lhe recusasse, olhos nos olhos, o que lhe ia pedir. - O meu filho é-me negado. Dai-me autorização para o ver.

Philip respondeu simplesmente.

- Não. - Sem ênfase nem necessidade de ênfase.

- Disseste-me que eu podia utilizar a vossa casa como se fosse minha. Estais agora a colocar restrições aos locais por onde eu posso andar no interior destas muralhas?

- Não, nenhuma. Pode ir onde quiser, abrir todas as portas que não estejam trancadas. Poderá encontrá-lo, mas não poderá entrar para junto dele - disse Philip num tom de indiferença -, e ele não poderá sair.

No início do crepúsculo, antes das Vésperas, Philip fazia a ronda do seu forte, certificando-se de que todas as sentinelas se encontravam nos seus postos e que todas as defesas estavam seguras. No lado ocidental, onde o terreno se elevava, íngreme, na direcção da aldeia situada no cume da montanha, a muralha era reforçada por uma sacada larga de madeira que sobressaía do cimo, uma vez que aquele era o lado do qual o inimigo se poderia aproximar mais facilmente para atacar as muralhas com bombardas ou canhoneiras. Philip percorreu a sacada para verificar se todos os alçapões construídos no chão para permitir o ataque de cima a quaisquer sitiantes que chegassem perto da muralha sem expor os defensores aos tiros dos arqueiros estavam desimpedidos de todos os obstáculos e que através deles se via o chão limpo de arbustos e árvores. É verdade que a própria sacada poderia ser atingida. Ele teria preferido substituir a madeira por pedra, mas sentia-se grato por Musard ter, pelo menos, proporcionado aquele bem temporário. A enorme videira que subia a parede no lado leste, revestindo um canto em que se projectava uma torre, tinha sido autorizada a ficar, mas a aproximação por esse lado implicava uma subida íngreme em terreno que não oferecia qualquer cobertura e não constituía grande ameaça.

Naquele lado mais elevado, ele tinha também limpo uma grande faixa da colina, de modo a que as armas de cerco utilizadas ao longo do espinhaço, para permanecerem sob cobertura, tinham que ficar distantes e, a não ser que o ataque fosse efectuado com armas pesadas, as muralhas de La Musarderie estariam seguras.

Os vigias das torres, seguros da sua competência e da deles próprios, respeitados e respeitadores, sentiam-se à vontade ao pé dele. Muitos dos homens da sua guarnição estavam ao seu serviço há vários anos e tinham vindo de Cricklade com ele. Faringdon tinha sido uma coisa diferente, uma guarnição nova reunida a partir de várias bases, pelo que ele tinha menos motivos para esperar uma confiança e compreensão absolutas da parte deles. No entanto, tinha sido o homem por quem mais afecto sentia e em quem mais confiara, aquele de quem ele esperara mais compreensão, que se tinha virado contra ele com um desprezo incompreensível e liderara os discordantes contra ele. Uma falha de linguagem? Uma falha algures no contacto das mentes? De visão? De leitura das etapas da descida para o desespero? Uma falha de amor. Isso, certamente.

Philip olhou da muralha para as praças do castelo, onde os archotes começavam a arder em chamas resinosas no crepúsculo cada vez mais profundo. Por cima das torres daquele lado ocidental as nuvens eram carregadas, talvez de neve, e as sentinelas na muralha envolviam-se nas suas capas e protegiam-se, impassíveis, contra o vento agreste. Naquele momento, o rapaz tolo e corajoso já deveria ter chegado a Gloucester, se, de facto, era esse o seu destino.

Philip recordou a simplicidade altiva de Yves com um leve sorriso de apreço. Não, o beneditino tinha quase certamente razão a respeito dele. Era um disparate imaginar que uma pessoa assim fosse capaz de matar às escondidas. Ele parecia uma cópia menor do outro, todo ele coragem e fidelidade; não havia espaço para uma mente perturbada que pudesse procurar um caminho através do labirinto da destruição por meios menos gloriosos do que espada. Branco no branco por um lado, preto no preto pelo outro e, em parte alguma, se viam aquelas sombras cinzentas pouco espectaculares que coloram a maior parte dos mortais. Bem, se alguns de nós, almas matizadas e estropiadas, puderem, de algum modo, abrir caminho para o futuro para os valentes e desdenhosos inocentes, por que motivo isso há-de ser levado a mal? Mas porque será tão difícil alcançar a resignação que devia acompanhar esse sentimento? As queimaduras nunca são fáceis de suportar.

A actividade da praça lá em baixo, habitual e eficiente, encerrava La Musarderie por essa noite, viam-se figuras escorçadas a deslocar-se dos edifícios situados sob a parede para o salão e para a torre de menagem, uma pequena fogueira de luz vermelha oriunda do forno do ferreiro reflectida nas pedras no exterior da forja. Duas figuras de saias escuras passaram a porta da torre de menagem. O capelão e o monge beneditino juntos, dirigindo-se às Vésperas. Era um homem interessante, aquele beneditino de Shrewsbury, um irmão que censurava a sua própria irmandade, que não era padre mas era pai, e que, na sua juventude, tinha enfrentado o seu próprio pai, pois sem dúvida que ele tinha sido gerado do mesmo modo que todos os outros homens. E, agora, ele próprio era pai há mais de vinte anos sem o saber, até se ter deparado com a revelação do seu filho na pujança da masculinidade, sem nenhum dos esforços, frustrações e ansiedades que contribuem para a maturidade de um homem. E um homem como ele, perfeito e completo, com excepção do salvador fermento de dúvida sobre si próprio que mantém um homem humilde. E eu próprio não tenho demonstrado muito disso, pensou Philip ironicamente.

Bem, eram horas. Dirigiu-se às estreitas escadas de pedra que desciam do caminho da ronda e juntou-se-lhes nas Vésperas.

Eram poucos a assistir ao ofício religioso nessa noite, uma vez que a guarda tinha sido reforçada e os ferreiros ainda estavam a trabalhar na forja e na armaria. Philip escutou quando o irmão beneditino de Shrewsbury leu o salmo. Era o dia de S. Nicolau, o sexto dia de Dezembro.

"Eu estou entre aqueles que descem ao abismo; não tenho mais forças:

"Mandaste-me para o abismo mais fundo, na escuridão, nas profundezas..."

Até mesmo aqui ele fala nisso, pensou Philip, aceitando o augúrio. No entanto o salmo era o daquele dia, não fora escolhido por Cadfael.

"Tu afastaste o meu conhecido, levaste-o para longe de mim; fizeste de mim uma abominação para eles. Estou fechado e não posso comparecer."

Como é fácil ser persuadido que Deus coloca intencionalmente palavras no ofício do dia, para que a boca apropriada as profira. Era outro modo de ler a sorte. Mas eu, pensou Philip, entre o arrependimento e o desafio, não acredito nisso. Todo este mundo caótico avança desajeitadamente através do acaso.

"Vais mostrar as tuas maravilhas aos homens sepultados? Os mortos irão erguer-se para te louvar?"

Então?, desafiou Philip em silêncio. Será que irão?

Depois do jantar no salão, Philip retirou-se sozinho para os seus aposentos, pegou nas suas chaves mais privadas e saiu da torre de menagem, dirigindo-se à torre do canto nordeste da muralha. Caía uma neve fina, ainda não eram flocos, embora polvilhasse levemente o empedrado de branco. De manhã, ela teria desaparecido. A sentinela na torre assinalou a passagem da figura alta a atravessar o pátio e ficou imóvel, conhecendo o homem e o seu propósito. Há algumas semanas que isso não acontecia. Havia um nome que tinha sido banido das palavras, mas não do pensamento. O que o teria feito lembrar naquela noite particular, especulou a sentinela, mas sem excessiva curiosidade.

A porta estreita e alta ao fundo da torre abriu-se com a primeira chave. Um espadachim com um arqueiro no terceiro degrau das escadas atrás de si, a apontar por cima da sua cabeça, conseguiria defendê-la contra um exército. Havia um pequeno tição a arder num recanto da parede no interior, lançando luz sobre o poço das escadas que descia em espiral. Até mesmo os ventiladores que se erguiam, inclinados, para a luz, dois níveis abaixo, através da espessa pedra das paredes, davam só para o pátio fechado e densamente povoado, não para o mundo exterior. Mesmo que um homem conseguisse libertar-se das correntes e enfiar-se dolorosamente no estreito ventilador, ele emergiria novamente na prisão. Ali não havia fuga possível.

No nível inferior, Philip introduziu a segunda chave na fechadura de outra porta, estreita e baixa. Ela funcionou tão eficiente e silenciosamente como tudo o que o servia. Não se deu ao trabalho de a fechar à chave atrás de si quando entrou.

Aquela cela inferior tinha sido escavada da pedra até mais de metade da altura das paredes unidas apenas pela pedra no alto, e era suficientemente espaçosa para que um captor cauteloso, se alguma vez lá entrasse, pudesse manter-se bem fora do alcance de um prisioneiro a ferros. O frio no interior era intenso mas seco. O poço que subia até uma grelha aberta na parede da torre no interior da praça provocava uma corrente de ar frio que percorria a cela. Num suporte situado na parede de pedra, uma enorme vela ardia bem, longe da corrente de ar e ao alcance da saliência de pedra em que estava colocada a cama do prisioneiro. Junto do suporte havia uma vela nova pronta, pois a actual estava perto do fim.

E em cima da cama, rigidamente erecto ao ouvir a chave na fechadura e de olhos postos na porta como dardos, estava Olivier de Bretagne.

- Não há uma saudação para mim? - perguntou Philip. A vela estremeceu pela primeira vez na contracorrente de ar que entrara com ele. Ele observou-a e fechou cuidadosamente a porta atrás de si. - E depois de tanto tempo? Tenho-te abandonado.

- Oh, seja bem-vindo - disse Olivier, friamente delicado. Os tons das duas vozes, um pouco complicadas por um eco imediato e, ao mesmo tempo, distante, combinavam e, ao mesmo tempo, entrechocavam-se. O eco fazia com que houvesse uma enervante terceira pessoa na cela, um ouvinte e comentador. - Lamento não ter nada para vos oferecer, meu senhor, mas sem dúvida que já deveis ter jantado.

- E tu? - perguntou Philip, sorrindo ligeiramente. - Eu vejo as bandejas voltar vazias. Tem sido tranquilizador para mim ver que não perdeste o apetite. Seria uma desilusão se alguma vez perdesses a vontade de manter todos os teus poderes intactos, para o dia em que me vais matar. Não, não digas nada, não é preciso, eu reconheço o teu direito, mas ainda não estou pronto. Está quieto, deixa-me olhar para ti.

Ele observou longamente, com grave atenção, e, durante todo esse tempo, os olhos tranquilos, grandes, redondos, com íris douradas e ferozes como as de um falcão, devolveram-lhe o olhar com firmeza. Olivier era magro, mas era a magreza irrequieta da energia confinada, não derivada de qualquer privação corporal, e animada com o intolerável vivacidade da frustração, da ira e do ódio. Era, tinha sido desde o princípio, uma perda mútua, a raiva e a angústia era igual, ambos se sentiam consternados e amargos. Até mesmo nisso se combinavam, formando um par perfeito. E Olivier estava limpo, decentemente vestido, a sua cama estava bem provida, e a sua dignidade discretamente preservada pelo recipiente de pedra e pelo balde de cabedal para as suas necessidades físicas, e a vela que lhe dava luz ou escuridão conforme quisesse. Ele tinha até meios para voltar a acendê-la ao lado da enxerga, sílex e isca numa caixa de madeira. O fogo é uma prenda perigosa, mas porque não? Não é possível pegar fogo à pedra, e nenhum homem no seu perfeito juízo que estivesse encarcerado em pedra iria deitar fogo à sua própria cama ou a tudo o mais que pudesse arder no interior da cela, incluindo ele próprio. E Olivier estava quase demasiado são de espírito, tanto assim que ele só conseguia ver através dos seus rígidos padrões imaculados e nunca chegava ao ponto de compreender as esperanças, o desespero e as tristes artimanhas imperfeitas com as quais pessoas mais vulneráveis reagem a um mundo cruel.

A prisão, o ressentimento e a paciência forçada só tinham polido e aperfeiçoado a beleza dele, acentuado as feições irrequietas, a pele macia lustrosa como marfim. O cabelo preto, brilhante, emoldurava-lhe as têmporas e as faces cavadas como mãos preto-azuladas afectuosas mas estranhas, cheias de tensão. Ele mergulhava diariamente na água que lhe traziam, como um nadador no mar, empenhado em estar imaculado sempre que o seu inimigo o viesse ver, nunca recusando, nunca se submetendo, nunca suplicando. Isso acima de tudo.

Do oriente, pensou Philip enquanto o observava, dessa mãe síria, ele devia ter trazido dentro de si aquela qualidade que não enferrujaria, não apodreceria nem se submeteria, de modo algum, à profanação. Ou teria ela sido, afinal, herdada do monge galês que deixei fora deste encontro? Que união devia ter sido, para gerar um filho assim.

- Estou assim tão mudado? - perguntou Olivier retribuindo o olhar fixo. Quando se movia, as correntes repicavam ligeiramente. Ele tinha as mãos livres, mas à volta dos seus tornozelos havia aros finos de aço que o prendiam, através de uma corrente de um tamanho generoso, a um anel da parede situado ao lado da enxerga. Conhecendo o seu engenho e a sua índole, Philip não corria riscos. Mesmo que conseguissem entrar ali homens que o ajudassem, eles teriam muito trabalho para conseguir libertá-lo da prisão. Não havia qualquer vontade de o desfigurar ou desonrar, apenas uma vontade absoluta de o manter isolado do mundo, uma posse solitária à qual não poderia ser atribuído qualquer preço.

- Não estás mudado - disse Philip, aproximando-se mais, ficando à distância de um braço do prisioneiro. Olivier tinha umas belas mãos, elegantes, grandes e musculosas; uma vez presas a uma garganta, não seria fácil uma pessoa libertar-se. Talvez a tentação e a provocação tivessem sido mais irresistíveis se as mãos estivessem acorrentadas. Uma corrente fina à volta de uma garganta teria estrangulado de uma forma ainda mais eficiente.

Mas Olivier não se moveu. Desde o irreparável rompimento de Faringdon que Philip o tinha tentado deste modo por mais de uma vez, sem nunca conseguir inflamá-lo. A sua própria morte, claro, ter-se-ia provavelmente seguido. Mas não havia forma de saber se fora propriamente isso que o reprimira.

- Alterado, não. - E, no entanto, Philip observava-o com um novo e intenso interesse, à procura dos elementos subtis daqueles dois seres díspares que tinham dado origem àquela arrogante excelência. - Eu tenho um hóspede no meu salão, Olivier, que veio pedir por ti. Estou a saber coisas sobre ti que acho que não sabes. Pode ser altura de saberes.

Olivier olhou para ele com um rosto imóvel e hostil, e não disse nada. O facto de o procurarem não constituía surpresa, ele sabia que tinha o seu valor, e haveria certamente pessoas ansiosas por libertá-lo. Mais surpreendente era o facto de alguns deles, através do raciocínio ou da sorte, terem seguido o seu rasto até àquele local. Se Laurence d'Angers tivesse, de facto, enviado alguém para inquirir sobre o seu escudeiro desaparecido, era um arco retesado num torneio. E a seta não atingiria o alvo.

- Na realidade - disse Philip -, eu tenho duas pessoas aqui igualmente preocupadas com o teu destino. Mandei um deles embora de mãos vazias, mas ele diz que voltará em armas para te vir buscar. E não tenho motivo para duvidar que o faça. É um jovem familiar teu, Yves Hugonin.

- O Yves? - Olivier ficou tenso, encrespando-se. - O Yves esteve aqui? Como pode isso ser? O que é que o trouxe cá?

- Ele foi convidado a vir. Receio que um pouco bruscamente. Mas não te preocupes, ele partiu tão inteiro como quando chegou e, nesta altura, já deve estar em Gloucester, a reunir um exército para te vir tirar do cativeiro. Durante algum tempo - acrescentou Philip -, pensei que tinha motivo para estar zangado com ele, mas descobri que estava enganado. E mesmo que não estivesse, a causa, afinal de contas, não tinha qualquer valor.

- Jurai? Ele voltou ileso para junto dos seus? Não, retiro o que disse - disse Olivier num tom veemente. - Eu sei que não mentis.

- Nunca, pelo menos a ti. Ele está bem e em segurança e, por tua causa, detesta-me com todo o seu coração. E o outro... eu disse-te que havia duas pessoas... o outro é um monge beneditino de Shrewsbury, e ele ainda está aqui em La Musarderie, de sua livre vontade. Chama-se Cadfael.

Olivier pôs-se de pé, extremamente confuso. Os seus lábios moveram-se, repetindo o nome familiar, mas totalmente inesperado. Quando conseguiu falar, não foi muito coerente.

- Como é que ele pode estar cá? Um irmão que vive num mosteiro... não, eles não vão a lado nenhum, a não ser que lhes seja ordenado... os seus votos não permitem. E porquê aqui? Por minha causa... ? Não, é impossível!

- O que é que sabes a respeito dele? Os votos dele... sim, ele declarou-se apóstata, ausentou-se sem autorização. Por uma boa causa. Por ti. Faz-me justiça, foste tu que disseste que eu não mentia. Eu vi este irmão em Coventry. Ele estava lá à procura de notícias tuas, tal como o jovem. Com que artes ele seguiu o teu rasto até aqui, não sei bem, mas fê-lo, e veio libertar-te. Eu pensei que devesses saber.

- É um homem que eu venero - disse Olivier. - Estive duas vezes com ele e fiquei grato por isso. Mas ele não me deve absolutamente nada.

- Foi o que eu pensei e já lho disse - concordou Philip. - Mas ele não é da mesma opinião. Veio ter comigo com toda a franqueza, a pedir o que queria. Tu. Ele disse que havia pessoas que gostariam de comprar a tua liberdade e, quando eu perguntei, por que preço?... ele respondeu-me que dissesse qual era, que ele se certificaria de que ele seria pago.

-Não compreendo nada disto - disse Olivier, perplexo.-Não entendo.

-E eu disse-lhe: "Uma vida, talvez." E ele disse "Tomai a minha!" Olivier sentou-se lentamente nos cobertores da cama, perdido entre a realidade invernosa actual e as recordações que lhe vieram à mente, frescas como a Primavera. Um irmão beneditino, com hábito e tonsura, que o tratara como um filho. Estavam os dois no priorado de Bromfield, à espera da meia noite e das Matinas, a desenhar mapas no chão para mostrar o caminho através do qual Olivier conseguiria tirar os seus homens em segurança do território de Stephen, para regressar a Gloucester. Na última vez, estavam debaixo dos sussurrantes e aromáticos molhos de ervas pendurados das traves da oficina de Cadfael quando, antes de se ir embora, Olivier, sem pensar, tinha oferecido a face para o beijo adequado entre familiares próximos, e tinha-o retribuído alegremente.

- E depois eu perguntei-lhe: "Porque é que há-de oferecer-me os seus ossos velhos para apodrecerem no lugar dele? O que é Olivier de Bretagne para si?" E ele respondeu: "É meu filho."

Após um longo silêncio, a vela moribunda estremeceu subitamente, a cera derretida escorreu, a mecha pendeu para o lado do líquido e afundou-se numa última chama azulada. Philip inclinou a vela nova de modo a apanhar a centelha que desaparecia na escuridão que os envolvia e apagou o que restava dela, colocando a nova luz sobre os restos da velha. O rosto de Olivier, escondido por um momento na semi-obscuridade, iluminou-se lentamente à medida que a chama crescia e se tornava constante. Ele estava absolutamente imóvel, e os seus olhos abertos de espanto alongavam-se para o infinito.

- É verdade? - perguntou ele quase sem som, mas não a Philip, que não mentia. - Ele nunca me disse. Porque é que ele nunca me disse?

- Ele encontrou-te já montado, lançado e a cavalgar alto. Um pai aparecido de repente a agarrar-te no braço poderia desequilibrar-te. Ele deixou as coisas como estavam. Desde que permanecesses na ignorância, não lhe devias nada. - Philip tinha recuado um ou dois passos na direcção da porta, com a chave na mão, mas parou um momento para corrigir a última frase. - Nada, diz ele, a não ser o que é ganho justamente na relação entre dois homens. Porque até saberes, isso era tudo o que eram. Não será tão fácil entre pai e filho, isso eu sei. As dívidas proliferam e os preços estabelecidos são muito elevados.

- No entanto, ele veio oferecer tudo por mim - disse Olivier lutando, quase zangado, com aquele paradoxo.-Sem autorização, exilado, abandonando a sua vocação, a sua tranquilidade, a sua paz de espírito, oferecendo a sua vida. Ele enganou-me! - disse ele, mortificado.

-Deixo-te a meditar no assunto - disse Philip, da porta aberta. - Tens a noite para reflectir, se tiveres dificuldade em dormir. Ele saiu silenciosamente, fechou a porta e deu a volta à chave.

 

Ao descer a estrada aberta, Yves manteve o seu desdenhoso retraimento apenas enquanto pôde ser visto do portão e do caminho da ronda. Uma vez em segurança, sob cobertura, procurou umm lugar de onde pudesse olhar por entre as árvores] para o perfil de pedra do castelo. Daquele local baixo, ele parecia formidavelmente alto e sólido, no entanto não era um forte assim tão fantástico. Tinha uma boa guarnição e estava bem defendido, no entanto, com forças suficientes seria possível tomá-lo. Philip tinha-o obtido por um preço baixo, apanhando o seu senhor longe das suas próprias terras, por meio de uma emboscada, e obrigando-o a entregá-lo sob ameaças. O cerco não serviria de grande coisa ali. Obrigar uma guarnição bem abastecida a render-se pela fome demora muito tempo. A melhor opção seria um assalto total com todas as forças disponíveis, e um desfecho rápido.

Entretanto, as florestas rodeavam o local por todos os lados, e nem mesmo o terreno desbravado afastava as muralhas o suficiente para que, ao longe, a excelente visão de Yves registasse pormenores, declives e até mesmo pontos fracos, se Philip tivesse deixado alguns. Se ele conseguisse levar para Gloucester algumas observações úteis consigo, tanto melhor, e valia bem a pena perder uma hora ou duas na inspecção.

Olhou demoradamente para a entrada principal, pois até aí ele apenas vira o interior de uma cela situada debaixo de uma das torres, uma vez que fora levado para lá com uma capa enrolada à volta da cabeça e os braços atados. As torres que ladeavam a casa do portão proporcionavam um campo aberto para arqueiros protegerem o portão e os lados direito e esquerdo das torres seguintes, ao longo da muralha. Nesta face, a sacada não tinha sido continuada, pois uma aproximação por essa encosta acima seria a mais difícil de manter. Yves deu meia volta com o cavalo sob a espessa cobertura das árvores, para dar a volta ao castelo na direcção contrária ao movimento aparente do Sol. Esse caminho acabaria por levá-lo à colina perto da aldeia, com o caminho livre para o percurso mais rápido até Gloucester.

Através das orlas do bosque ele tinha uma visão clara das torres mais a norte, bem como do troço de muralha mais adiante. No canto entre elas, uma enorme planta em espiral, escurecida agora na sua hibernação de Inverno e despida de folhas, trepava até às ameias, onde começava a sacada. Era uma videira muito antiga, robusta como uma árvore. Quando tinha a sua folhagem, pensou ele, poderia tapar parcialmente pelo menos uma seteira. Não havia grande risco em deixá-la lá. Com cuidado e de noite, poderia permitir a subida de um homem, mas não mais do que um, e até mesmo o primeiro estaria a arriscar a vida. Havia uma sentinela na muralha, a percorrer o espaço entre as torres. Ele viu o brilho da luz no aço. Mesmo assim, convinha tê-la em conta. Perguntou a si próprio qual das quatro gerações de Musard tinham plantado a videira. Séculos antes, já os romanos tinham tido vinhas naqueles contados fronteiriços.

Ao longo das muralhas havia, ao todo, quatro torres, para além das torres gémeas da casa do portão, e uma sentinela em todos os caminhos da ronda entre elas. Ao dar a volta ao castelo, Yves teve, por vezes, que recuar um pouco mais para o meio das árvores, mas prosseguiu cuidadosamente a sua inspecção, à procura de possíveis pontos fracos, mas não encontrou nenhum. Quando examinou a última torre, já estava a um nível muito mais elevado do que o próprio castelo, e a aproximar-se das primeiras casas da aldeia. Depois daquela última subida, o terreno transformava-se no planalto de Cotswold, largo e plano acima do resto do mundo, com enormes estradas rectas, campos extensos e aldeias abastadas, cheias de carneiros. Ali, a pouca distância do cume, seria o local ideal para utilizar catapultas. E aqui seria o melhor lugar para lançar um grupo de homens para fazer minas ou com aríetes, numa rápida corrida pela colina abaixo, de modo a chegarem à muralha ao anoitecer. No sopé daquela última torre, havia pedras de uma cor diferente, como se ela tivesse sido alvo de reparações. Se fosse possível penetrá-la com um aríete, os disparos talvez conseguissem derrubar parte da torre.

Pelo menos toma nota dessa possibilidade. Não havia mais nada a fazer ali. Ele conhecia agora o relevo do terreno e seria capaz de o relatar com exactidão. Deixou as casas da aldeia para trás e virou para leste no primeiro trilho prometedor, chegando à estrada que seguia para nordeste, para Gloucester, e para sudeste, para Cirencester.

Ao fim da tarde entrou na cidade pelo portão leste. As ruas pareceram-lhe mais movimentadas e mais apinhadas do que alguma vez as vira e, antes de ter chegado ao Cruzeiro, já tinha distinguido, no meio da multidão, as divisas ou a libré de alguns dos mais poderosos apoiantes da imperatriz, entre eles o meio-irmão mais novo dela, Reginald FitzRoy, Baldwin de Redvers, conde de Devon, Patrick de Salisbury, Humphrey de Bohun, e John FitzGilbert, o marechal. Ele estava à espera de ver os funcionários da corte por perto, mas supunha que os partidários que viviam mais longe já teriam, nessa altura, dispersado para as suas terras. O seu coração alegrou-se com o feliz presságio. Depois do fracasso dos esforços dos bispos em prol da paz, todos os que seguiam para sul e para oeste deviam ter feito uma paragem para se reunirem novamente ali, a fim de tomarem decisões e de reflectirem sobre a melhor forma de aproveitar o tempo antes de os seus inimigos os interceptarem. Ela tinha um exército reunido ali, com forças suficientes para ameaçar fortes melhores do que La Musarderie. E ali no castelo ela tinha máquinas de assalto que eram, ao mesmo tempo, suficientemente leves para serem deslocadas com rapidez), e suficientemente pesadas para perfurar uma parede, quando usadas com eficácia; e tinha a mais poderosa de todas as armas, a inabalável lealdade de Robert de Gloucester, que enfrentaria e desarmaria o filho renegado, reivindicando, com o seu sangue, o sangue de Philip e tornando-o indefeso.

Era certo que Philip tinha lutado pelo rei Stephen tão implacavelmente como lutara pela imperatriz, mas nunca frente a frente com o pai que tinha abandonado. A maior atrocidade, a única que tinha sido excluída naquela guerra civil era a morte de familiares próximos, e quem podia ser mais próximo do que pai e filho? Chamavam-lhe guerra fratricida, e isso era precisamente o que ela não era. Quando Robert se identificasse aos portões de La Musarderie e exigisse a rendição, colocando a sua própria vida em risco, Philip teria que ceder. Ou mesmo que, por uma questão de orgulho, ele lutasse, teria que o fazer com pouco empenho, evitando sempre o confronto com o seu próprio progenitor. Amado ou odiado, aquele era o laço mais sagrado e indissolúvel que unia os homens. Nada o podia quebrar.

Ele tinha que ir contar a sua história directamente ao conde de Gloucester e confiar que ele saberia como levar a missão a cabo. Assim, ao chegar ao Cruzeiro, afastou-se da abadia e virou para o castelo, ao longo de um movimentado e populoso portão sul, em direcção ao rio e aos prados que, apesar do Inverno, ainda estavam verdes. Naquele lado da cidade, o enorme volume cinzento do castelo erguia-se acima das ruas, e, no outro, ficava acima do molhe, da costa e das águas da cor de aço. A imperatriz preferia ter um pouco mais de conforto sempre que possível, e ter-se-ia certamente instalado, bem como às suas damas, nos aposentos para hóspedes da abadia. O conde Robert contentava-se com os aposentos mais sóbrios do castelo, junto dos seus homens. Pela azáfama e abundância de homens armados e librés nobres que se via na cidade, um número considerável de outros locais devia ter sido requisitado, temporariamente, para alojar as forças reunidas. Ainda bem, assim havia ali forças mais do que suficientes para tomar facilmente de assalto La Musarderie.

Yves sonhava ardentemente em subir pela enorme videira e permanecer escondido no interior o tempo suficiente para encontrar uma poterna que pudesse ser aberta ou uma sentinela que pudesse ser dominada e despojada das chaves. Quanto menos luta houvesse, melhor, menos tempo seria desperdiçado, menos destruição haveria a reparar e menos rancores haveria a esquecer mais tarde. Entre facção e facção, entre pai e filho. Poderia até haver uma reconciliação.

Antes de chegar aos portões, Yves começou a ser saudado por homens como ele, escudeiros de um nobre ou outro que, espantados por verem a vítima de Philip FitzRobert chegar alegremente a cavalo como se nunca tivesse caído nas mãos daquele perigoso inimigo. Ele retribuiu de bom grado as saudações, mas fez-lhes ver que não queria demorar-se. Só quando entrou na praça exterior do castelo e se aproximou da casa da guarda é que puxou pelas rédeas e parou para fazer perguntas. Mesmo assim, não desmontou; inclinou-se na sela e inquiriu, um pouco ofegante devido à excitação da mensagem que trazia, bem como com o prazer de estar de novo entre amigos.

- O conde de Gloucester? Onde poderei encontrá-lo? Tenho notícias que devo comunicar-lhe rapidamente.

O oficial da guarda tinha vindo cá fora ver quem chegara e olhou, espantado, para ele. Um escudeiro do séquito do conde de Devon gritou alto do meio das diversas actividades que decorriam mais adiante na praça e veio a correr pegar-lhe nas rédeas.

- Yves? Estás livre? Como é que fugiste? Ouvimos dizer que te sequestraram, nunca pensámos ver-te de volta tão cedo.

- Ou voltar a ver-me? - disse Yves com uma gargalhada, já capaz de falar despreocupadamente sobre essa possibilidade, agora que o perigo tinha passado. - Não, estou livre para te atormentar durante mais algum tempo. Contar-te-ei tudo mais tarde. Agora preciso de encontrar rapidamente o conde Robert.

- Não vai encontrá-lo cá - disse a sentinela. - Ele está em Hereford com o conde Roger. Não se sabe ainda quando deverá regressar. O que é assim tão urgente?

- Não está cá? - repetiu Yves, desanimado.

- Se é assim tão importante - disse rapidamente o oficial -, é melhor ir dar as notícias a Sua Graça, à própria imperatriz, que está na abadia. Se está ao seu serviço há muito tempo, devia saber que ela não gosta de ser passada ao lado, nem sequer em favor do irmão. Ela não lhe vai agradecer se ficar a saber as notícias por outra pessoa, quando as trouxe bem frescas.

Isso era exactamente o que Yves tinha grande relutância em fazer. O agrado ou o desagrado dela eram igualmente assustadores e a serem evitados de igual modo. Sem dúvida que ela ainda estava convencida de que, após uma clara sugestão da sua parte, ele lhe prestara um serviço terrível.

Além disso, ele tinha sido a infeliz causa de alguma perturbação no seu regresso a Gloucester e, como consequência, causara-lhe alguns problemas que ela certamente não lhe iria agradecer. E se ela procurasse o seu anel no dedo mindinho dele e não o encontrasse, isso não iria exactamente contar a favor dele. Yves admitiu a si próprio que tinha medo de a enfrentar e afastou, indignado, esse pensamento.

- Ela está na abadia com as suas aias^. Se eu fosse a si, iria para lá o mais depressa possível - disse a sentinela astutamente. - Ela ficou bastante perturbada quando foi sequestrado, vá mostrar o seu rosto para a tranquilizar, pelo menos a esse respeito.

- Eu aconselhar-te-ia a fazê-lo - concordou o escudeiro com um sorriso bem-humorado e dando uma enorme palmada nas costas de Yves. - Despacha isso e vem descansar. É bom ver-te, temos andado preocupados contigo.

- FitzGilbert está com ela? - perguntou Yves. Se Robert de Gloucester não estava lá, pelo menos ele preferia falar com o marechal a falar sozinho com a dama, e era o marechal que teria que falar com a imperatriz sobre o modo como deveriam tirar partido daquela oportunidade.

-Estão também Bohun e o tio real dela, da Escócia. O seu conselho mais próximo, mais ninguém.

Yves recusou a breve e inevitável demora, deu meia volta com o cavalo para regressar ao portão sul e ao Cruzeiro e, por conseguinte, ao enclave da abadia onde a imperatriz tinha a sua corte. Era uma pena Gloucester não estar lá. Seguramente que isso significava um atraso. Ela não agiria sozinha, sem os conselhos e o apoio do irmão, e Olivier estava encarcerado há tempo suficiente. Mas faz o melhor que podes. Ela tinha meios para agir, a cidade estava a abarrotar de soldados. Se não tivesse um grande exército, ela podia bem reunir voluntários para tentar fazer o que poderia ser feito furtivamente. Yves não punha em causa a sua coragem e bravura, mas tinha demasiadas dúvidas sobre a sua competência e capacidade de comando.

Ele entrou no pátio da abadia e atravessou-o para chegar aos aposentos dos hóspedes, por entre uma enorme azáfama. Havia ali uma discreta restrição ao porte de armas e à presença de homens armados mas, apesar disso, havia tantos guerreiros como monges no interior do recinto, sem armaduras nem espadas, mas inconfundivelmente marciais. A presença de uma sentinela nas escadas que iam dar à enorme porta do salão indicava que todo o edifício tinha sido ocupado por Maud, e que os simples mortais só se aproximavam dela depois de terem demonstrado a validade do assunto que os trazia ali.

- Yves Hugonin. Estou ao serviço da casa da imperatriz. O meu senhor e tio é Laurence d'Angers, o seu exército está agora em Devizes. Preciso de falar com Sua Graça. Tenho um relatório a fazer-lhe. Eu fui primeiro ao castelo, mas disseram-me que a encontraria aqui.

- És tu? - perguntou a sentinela, semicerrando os olhos para o observar mais atentamente. - Eu lembro-me, és o que foi separado do seu séquito, no regresso de Coventry. E desde essa altura que não tivemos mais notícias tuas. Ao que parece, as coisas correram melhor do que receávamos. Bem, de qualquer modo, ela ficará satisfeita por te ver vivo e de saúde. Hoje em dia, nem todos são bem vindos. Entra para o salão, que eu mando um pajem comunicar-lhe.

Havia outros no salão à espera de serem chamados à presença dela, entre eles mais de um senhor, além dos comerciantes da cidade que tinham favores a pedir ou mercadorias para venda. Enquanto mantivesse a sua corte ali, com uma casa substancial à sua volta, ela era uma fonte de lucro e prosperidade para Gloucester, e os seus exércitos residentes uma protecção segura.

Ela fê-los esperar durante algum tempo. Ao fim de meia hora, a porta dos seus aposentos abriu-se, e uma rapariga saiu por ela, chamou dois nomes e acompanhou dois lordes menores, se não à presença da imperatriz, pelo menos à sua antecâmara. Yves reconheceu a jovem ousada, segura de si própria, que o tinha sujeitado a um escrutínio rigoroso em Coventry antes de decidir que ele servia. Cabelo escuro, com um brilho ruivo nos caracóis, e olhos vivos cor de avelã esverdeada que resumiam os homens em relances rápidos e os catalogavam implacavelmente, rejeitando, ao que parecia, todos os que tinham mais de trinta anos. Ela própria devia ter dezanove anos, a mesma idade de Yves. Quando chamou, observou e dispensou os dois lordes menores que tinha vindo chamar, ela não deixou de lançar a Yves um longo olhar que não era totalmente de rejeição, mas ele estava a pensar noutras coisas e não reparou. Ela já tinha saído com os lordes quando ele se recordou de onde a vira pela primeira vez. Provavelmente uma favorita entre as damas de companhia reais; certamente que tinha adoptado algumas das características da sua ama.

Passou-se mais meia hora, e um ou dois homens da cidade tinham desistido e saído do salão antes de ela voltar para vir buscar Yves.

- Sua Graça ainda está no conselho, mas entrai e sentai-vos, que ela mandar-vos-á chamar em breve.

Ele seguiu-a ao longo de um pequeno corredor e entraram numa sala grande, clara, onde três raparigas estavam sentadas a um canto com bordados no colo, a conversar em voz baixa porque havia apenas uma porta encortinada entre elas e o conselho imperial. De vez em quando, elas davam um ponto ou dois, mas com muito pouco entusiasmo. A sua presença ali era necessária, mas não precisava de ser laboriosa. Ficaram imediatamente mais interessadas em Yves, quando este entrou, sobretudo porque o rosto dele era grave, preocupado, e não manifesrou qualquer interesse particular por elas. Ele foi recebido com um breve silêncio, depois elas retomaram a sua conversa privada em voz baixa, com uma circunspecção confidencial que sugeria que ele figurava nela. O seu guia deixou-o ali e entrou sozinha na sala interior.

Havia uma mulher mais velha sentada num banco almofadado junto da parede, afastada da tagarelice das raparigas. Tinha um livro no colo, mas a luz ia diminuindo à medida que a tarde chegava ao fim, e ela tinha parado de ler. A imperatriz precisava de ter algumas damas letradas à sua volta, e esta parecia ser um membro essencial do seu séquito. Ele também se recordava dela, de Coventry. Tia e sobrinha, tinham-lhe dito, as únicas damas de companhia que Maud tinha levado consigo para aquela assembleia masculina. Ela levantou os olhos para ele e reconheceu-o. Sorriu e fez um pequeno gesto com a mão que era claramente um convite para que se aproximasse.

-Yves Hugonin? És realmente tu? Oh, como é bom ver-te aqui, vivo e de boa saúde. E em liberdade! Ouvi dizer que te tínhamos perdido. A maior parte de nós só teve conhecimento da patifaria depois de termos chegado a Gloucester.

Ela estava perfeitamente serena, na verdade ele não conseguia imaginá-la a perder a calma. No entanto, por um momento, ele ficou espantado com a admiração e a alegria manifestadas nos seus olhos quando ela o reconheceu. Ela tinha os olhos sem ilusões da meia-idade, experientes, rodeados de rugas, imunes à maior parte das surpresas mas, naquele clarão de alegre espanto, eles adquiriam um brilho e uma profundidade que o comoveram. Era importante para ela que ele tivesse regressado inesperadamente a Gloucester, em liberdade e ileso.

- Senta-te! Aproveita, esperar por uma audiência aqui é cansativo. Estou muito contente por te ver vivo e de boa saúde - disse ela. - Quando deixaste Coventry connosco sem que ninguém tentasse impedir-te, eu pensei que os problemas tinham terminado e que ninguém se atreveria a voltar a acusar-te de teres cometido qualquer delito. Foi uma circunstância muito infeliz terem desconfiado de ti. Mas Sua Graça defendeu com firmeza a tua inocência, e eu pensei que o assunto tivesse ficado encerrado. E depois aquele ataque... Só soubemos no dia seguinte. Como é que escapaste dele? E ele mostrou ter um rancor tão grande contra ti que tememos pela tua vida.

- Eu não escapei dele - respondeu honestamente Yves, sentindo-se infantilmente diminuído por ter de o admitir. Teria sido muito agradável ter fugido de La Musarderie através do seu próprio engenho e temeridade. Mas, nesse caso, ele nem sequer teria sabido que o irmão Cadfael estava lá dentro, nem teria tido a certeza de que Olivier se encontrava preso ali e não teria declarado a sua decisão e lançado o desafio de voltar em armas para o ir buscar. Isso era mais importante do que a sua própria auto-estima. - Eu fui libertado por Philip FitzRobert. Na verdade, ele mandou-me embora! Ele ilibou-me de qualquer papel na morte de De Soulis, e eu não tenho qualquer utilidade para ele.

- Isso só abona a favor dele - disse Jovetta de Montors. - Ele acalmou e escutou a voz da razão.

Yves não disse que Philip tinha tido algum encorajamento nessa escuta. Mesmo assim, o facto de ele reconhecer que mudara de ideias e de ter agido em conformidade, abonava, de facto, a seu favor.

- Ele acreditava realmente que eu tinha cometido o assassínio - disse Yves, fazendo justiça ao inimigo, embora ainda com alguma relutância. - E ele prezava De Soulis. Mas tenho outras discórdias com ele que não serão tão facilmente resolvidas.-Ele olhou atentamente para o perfil pálido ao seu lado, a testa alta sob o cabelo branco entrançado, o nariz direito e fino, a elegante e fina linha do maxilar e, sobretudo, o modo firme, cheio e sensível como os seus lábios se juntavam durante os seus silêncios, contendo, numa reticência digna, o que ela aprendera ao longo dos mais de cinquenta anos da sua vida. - Nunca acreditou que eu fosse um assassino? - perguntou, surpreendido consigo próprio ao sentir que ansiava pela resposta certa.

Ela virou-se para ele, de olhos bem abertos e respondeu com um ar grave:

- Não - disse ela -, nunca!

A porta da câmara de audiências abriu-se, e a rapariga Isabeau saiu com um redemoinho de saias brocadas e manteve-a aberta.

- Sua Graça vai recebê-lo agora - disse ela, acrescentando em voz baixa: - Mandaram-me embora. Estão a falar de estratégia. Entre devagarinho.

Havia quatro pessoas na sala, para além de quatro escrivães que estavam a juntar os instrumentos do seu ofício, bem como as folhas de pergaminho espalhadas sobre a mesa grande. Sempre que a imperatriz mudava de local de habitação havia cartas régias a redigir, terras e títulos a distribuir para comprar favores, recompensas menores a serem dadas aos que as mereciam e pequenos subornos aos que poderiam vir a ser úteis no futuro, os inevitáveis frutos do partidarismo e da disputa. Os escrivães do rei Stephen estavam ocupados com um trabalho semelhante. Mas estes tinham terminado o seu trabalho daquele dia e, depois de terem limpo a mesa de todos os sinais da sua profissão, saíram por uma outra porta e fecharam-na silenciosamente atrás de si.

A imperatriz tinha afastado o seu banco grande de braços para trás, para permitir que os escrivães pudessem dar a volta à mesa. Ela estava calada, com as mãos sobre os braços largos, esculpidos, do banco, não a agarrá-los, mas simplesmente pousada no tecido brocado, excepcionalmente em repouso. O seu farto cabelo brilhante estava penteado em duas tranças entretecidas com cordões de fio de ouro que lhe caíam sobre os ombros e pousavam sobre o peito do corpete roxo, movendo-se e estremecendo ao ritmo da sua respiração descontraída como se tivessem vida própria. Ela tinha um ar ligeiramente cansado, e um pouco como se se tivesse zangado recentemente, mas estava a começar a pôr de parte os aborrecimentos das questões de Estado e a emergir da má disposição. Atrás da sua sombria magnificência, a parede estava coberta de tapeçarias, e os bancos adornados com almofadas e luxuosas cobertas. Ela tinha trazido a sua própria mobília consigo, a fim de criar esta sala de audiências, a maior e mais clara que a abadia podia oferecer.

Os três que, de momento, constituíam o seu conselho mais chegado tinham-se levantado da mesa quando a última carta régia ficou pronta para ser copiada e assinada pelas testemunhas, e afastaram-se alguns passos após uma longa sessão. Ao lado de uma janela cada vez mais escura estava o rei David da Escócia, a respirar o ar frio, meio de costas para a sua sobrinha imperial. Durante a maior parte dos anos daquela longa guerra, ele estivera ao seu lado com uma firme lealdade familiar, mas também com um olho astuto no seu próprio destino e no do seu país. A luta em Inglaterra não era uma má notícia para um monarca cujo objectivo principal era ganhar influência em Northumbria e empurrar a sua própria fronteira para sul, até ao Tees. Competente, idoso e taciturno, um homem grande e ainda atraente apesar do grisalho do cabelo e da barba, ele estava a endireitar os ombros largos depois de ter estado sentado inclinado sobre pergaminhos enfadonhos e mapas complicados, e não virou a cabeça para ver que outro peticionário tinha sido admitido tão tarde.

Os outros dois, sentados um de cada lado da imperatriz, hesitaram; Humphrey de Bohun, o seu administrador, e John FitzGilbert, o seu marechal. Eram ambos mais novos, os sustentáculos da sua casa pessoal, enquanto os seus paladinos mais espectaculares exibiam os seus feitos de armas sob a luz mais brilhante da celebridade. Yves tinha visto algumas vezes aqueles dois durante as poucas semanas em que fizera parte do séquito da imperatriz e respeitava-os como homens práticos em quem os seus companheiros podiam confiar. Agora eles viraram-se para ele com um ar preocupado, mas cordial. Maud, por seu lado, demorou um longo momento a recordar as circunstâncias que o tinham obrigado a estar ausente, e fê-lo franzindo subitamente a testa, como se ele fosse culpado de lhe ter causado problemas.

Yves avançou alguns passos e fez uma vénia profunda.

- Madame, eu estou de regresso aos meus deveres, e não sem notícias. Posso falar livremente?

- Eu recordo-me - disse ela lentamente, sacudindo a sua abstracção. - Não soubemos nada a teu respeito desde que te perdemos, ao início da noite, na estrada que atravessa a floresta perto de Deerhurst. Estou satisfeita por te ver são e salvo. Nós atribuímos a tua captura a FitzRobert. É verdade? Onde estiveste seu prisioneiro, e como é que te libertaste? - Ela mostrou-se mais animada mas não, pensou ele, grandemente preocupada. Os maus tratos infligidos a um escudeiro, até mesmo a sua morte, não teria adicionado muito ao que ela já tinha contra Philip FitzRobert. Ao mencionar o nome dele, os seus olhos tinham começado a arder em pequenas chamas erectas.

- Minha senhora, eu fui levado para La Musarderie, em Green-hamsted, o castelo que ele tomou aos Musard há alguns meses. Não posso dizer que me tenha libertado devido a qualquer esforço da minha parte, ele libertou-me de livre vontade. Ele realmente acreditava que eu tinha morto o seu homem De Soulis. - O seu rosto corou ao recordar o que ela tinha acreditado e continuava a acreditar a respeito dele, e ele evitou tentar imaginar a divertida aprovação com que ela ouvia a discreta referência a essa morte. Provavelmente ela não estivera à espera de uma subtileza tão grande da parte dele. Talvez até tivesse havido alguns momentos em que se ela sentira pouco à vontade com a reaparição dele e tivesse culpado Philip por esse embaraço, por não ter morto o seu prisioneiro. - Mas ele já não acredita nisso - prosseguiu Yves, resumindo o que, afinal de contas, deixara de ter qualquer importância. - Ele libertou-me. Por mim, não tenho quaisquer queixas, não fui maltratado, tendo em conta a acusação que ele me fazia.

-Estiveste acorrentado-disse De Bohun, observando os pulsos do rapaz.

- Estive. Dada a situação, não há nada de estranho nisso. Mas, minha senhora, meus senhores, eu descobri que ele tem Olivier de Bretagne, o marido da minha irmã, nas masmorras desse mesmo castelo, e tem-no lá desde Faringdon, e não atenderá a nenhum pedido para o libertar, nem o oferece para resgate. Há muita gente que gostaria de comprar a sua liberdade, mas ele não aceita preço nenhum por Olivier. E, minha senhora, embora La Musarderie seja um castelo forte, eu acredito que as forças que aqui estão conseguiriam tomá-lo de assalto, tão rapidamente que eles não teriam tempo para pedir reforços aos seus outros fortes.

- Por causa de um único prisioneiro?-perguntou a imperatriz. - Esse poderá ser, de facto, um preço muito elevado e, mesmo assim, poderá não o libertar. Nós temos em mente planos mais importantes do que o bem-estar de um homem.

- Olivier tem sido um homem muito útil à nossa causa - insistiu Yves com veemência, evitando, mesmo a tempo, provocá-la dizendo "a sua causa". Teria parecido uma censura, e isso era algo que nem os mais próximos e mais respeitados se atreveriam a fazer. - Meus senhores - apelou ele -, conheceis o seu carácter, testemunhastes a sua bravura. É uma injustiça ele estar preso em segredo quando todos os outros de Farindgon foram honrosamente oferecidos para resgate, como é hábito. E ganhar-se-ia mais do que um homem, ganhar-se-ia um bom castelo, se avançarmos com rapidez suficiente podemos tê-lo intacto, quase incólume, e arrecadar uma enorme quantidade de armas e armaduras.

- Um trofeu bastante razoável - concordou o marechal num tom pensativo -, se pudesse ser feito de surpresa. Mas, se assim não for, não valerá a pena sofrermos perdas pesadas. Eu não conheço bem o terreno. Tu conheces? Não podes ter visto muito, de uma cela subterrânea.

- Meu senhor - disse Yves com entusiasmo. - Antes de vir para cá, dei a volta ao castelo. Podia desenhar-vos um mapa. A toda a volta há terreno desmoitado, mas este não vai para além do alcance das flechas, e se conseguirmos levar máquinas para a colina situada acima...

- Não! - disse secamente a imperatriz. - Eu não vou agir por causa de um prisioneiro, o risco é demasiado grande, e há muito pouco a lucrar. Foi um atrevimento da tua parte pedires-me uma coisa dessas. O marido da tua irmã tem que esperar, temos outros assuntos mais importantes entre mãos e não posso dar-me ao luxo de me desviar deles por causa de um infeliz cavaleiro que se tornou odiado. Não, não vou agir.

- Nesse caso, minha senhora, concedeis-me autorização para tentar reunir um exército menor e fazer a tentativa por outros meios? Porque eu disse a Philip FitzRobert, disse-lhe na cara, jurei que voltaria em armas para ir buscar o Olivier. Eu disse-o, tenho que o cumprir, e cumprirei. Há alguns homens que teriam todo o gosto em ir comigo - disse Yves, corado e num tom veemente - se nos autorizardes.

Ele não soube o que tinha dito para a excitar, mas agora ela estava a debruçar-se sobre a mesa, agarrando os braços curvos do seu banco, com o rosto de marfim subitamente animado.

- Espera! O que é que disseste? Na cara! Tu disseste-lhe na cara? Ele estava lá esta manhã, pessoalmente? Eu não tinha compreendido isso. Ele deu ordens... isso poderia ter sido feito de qualquer dos seus castelos. Há dias ouvimos dizer que ele tinha regressado a Cricklade.

-Não, não é verdade. Ele está em La Musarderie. Não faz tenções de sair de lá. - Disso, Yves tinha a certeza. Philip tinha decidido manter o irmão Cadfael consigo e o irmão Cadfael tinha decidido ficar, sem dúvida por causa de Olivier. Não, ele não tinha quaisquer planos imediatos para deixar Greenhamsted. Philip estava lá, à espera que Yves regressasse em armas. E agora Yves compreendeu o funcionamento da mente dela, ou pensou que compreendeu. Ela julgara que o seu odiado inimigo se encontrava em Cricklade e, para chegar até ele, teria que levar os seus exércitos bem para sudeste, para o anel de fortes de Stephen, rodeado por Bampton, Faringdon, Purton, Malmesbury, todos prontos para destacar companhias para a repelir ou, pior ainda, para a cercar e transformar os sitiantes em sitiados. Mas a distância até Greenhamsted era menos de metade e, se se agisse com determinação, o castelo poderia ser tomado e ocupado com uma nova guarnição antes da chegada das forças de Stephen. Era uma situação muito diferente, uma situação que fazia com que os seus olhos brilhassem e que as madeixas de cabelo que escapavam das tranças estremecessem e se enrolassem com a intensidade da sua resolução e emoção.

- Ele está, portanto, ao nosso alcance - disse ela, animada com a perspectiva de vingança. - Ele está ao nosso alcance, e eu vou apanhá-lo! Mesmo que tenhamos que usar todos os homens e todas as máquinas de cerco, valerá a pena.

Valeria a pena para apanhar um homem que ela detestava, não para libertar um homem que a tinha servido fielmente e que perdera a sua liberdade por ela. Yves sentiu o sangue gelar de apreensão. Mas o que poderia ela fazer com Philip quando o tivesse em seu poder, a não ser entregá-lo ao pai, que talvez o encarcerasse, mas não lhe faria mal. Uma vez dominado e conquistado o seu traidor, ela cansar-se-ia do seu próprio ódio. Nada de pior poderia acontecer. Talvez até houvesse uma reconciliação quando pai e filho fossem obrigados a encontrar-se. Nessa altura, eles poderiam chegar a um entendimento ou destruir-se um ao outro.

- Eu vou apanhá-lo - disse a imperatriz, lenta e veementemente - e ele vai ajoelhar-se aos meus pés em frente da sua própria guarnição prisioneira. E depois - disse ela num tom feroz -, ele será enforcado.

Yves ficou sem respiração, num uivo surdo de consternação e incredulidade. Inspirou ar para recuperar a voz para protestar, mas não conseguiu dizer uma única palavra. Porque ela não podia estar a falar a sério. O filho do seu irmão, um filho revoltado talvez, mas, mesmo assim, era do seu sangue, seu familiar próximo e neto de um rei. Seria estilhaçar o único escrúpulo que tinha impedido que aquela guerra fosse um banho de sangue total, algo que não devia ser quebrado. Um familiar poderia provocar, trapacear, enganar, vencer um familiar, mas não matá-lo. E, no entanto, havia no rosto dela uma resolução férrea, ardente e jubilosa; ela estava, de facto, a falar a sério, e fá-lo-ia sem remorsos, sem parar para reconsiderar.

O rei David tinha abandonado bruscamente a sua desinteressada contemplação do mundo a escurecer no exterior da janela e olhou, primeiro para a sobrinha, e seguidamente para o marechal e para o administrador, que lhe retribuíram o olhar, reconhecendo e confirmando o seu alarme. Até mesmo o rei hesitou em dizer abertamente o que lhe ia na mente; ele tinha uma longa experiência da reacção da imperatriz a qualquer indício de censura e, embora não tivesse exactamente medo dos seus ataques de raiva, ele conhecia a sua persistência e obstinação, bem como a inutilidade de as tentar controlar, uma vez desencadeadas. Foi com uma voz extremamente razoável e suave que ele disse:

- Isso será sensato? Apesar das ofensas que ele cometeu e dos teus indubitáveis direitos, neste momento talvez valesse a pena agires com calma. Poderias libertar-te de um inimigo, mas certamente que se levantaria mais uma dúzia contra ti. Depois de se falar sobre a paz, essa seria uma forma se assegurar a continuação da guerra, com mais azedume do que nunca.

- E o conde - acrescentou o administrador num tom enfático - não está aqui para ser consultado.

Não, pensou Yves, subitamente esclarecido, é por esse preciso motivo que ela vai agir esta noite mesmo, pôr em marcha os preparativos para deslocar as máquinas de cerco que pudessem ser transportadas rapidamente, reunir todos os homens que conseguisse, abandonar todos os outros planos, tudo para tomar La Musarderie de assalto antes de o conde de Gloucester saber o que se estava a passar. E ela fá-lo-á. Ela tem a audácia e a ingratidão. Ela mandaria enforcar Philip e colocaria o conde Robert perante um facto consumado e um filho morto. Ela atrever-se-ia a fazê-lo! E depois, que terrível desintegração se seguiria, destruindo primeiro a própria causa dela. Mas isso não a incomoda, desde que consiga pôr uma corda à volta do pescoço daquele inimigo.

- Minha senhora - exclamou ele, despedaçando a cautelosa moderação do rei David -, não podeis fazer isso! Eu propus-vos um bom castelo e a libertação de um soldado honroso para juntar às vossas fileiras, não vos propus uma morte que o conde Robert chorará até ao fim da vida. Prendei-o, sim, entregai-o ao conde, prisioneiro, deixai-os resolver os problemas entre si. Isso é agir com lealdade. Mas isto... isto é algo que não deveis nem podereis fazer!

Ela pôs-se de pé, furiosa mas controlada, pois Yves era apenas uma insolência menor a ser ignorada e não esmagada e, naquele momento, ele ainda lhe era útil. Ele já a tinha visto inflamar-se assim para descompor outros infelizes, agora o fogo chamuscou-o a ele e, mesmo sentindo uma ira devoradora, Yves retraiu-se.

- Estás a dizer-me o que eu posso e não posso fazer, garoto? A tua função é obedecer, e vais obedecer, senão saberás o que é uma masmorra pior e grilhões mais pesados do que os que já conheceste. Marechal, chamai Salisbury, Reginald e Redvers imediatamente e mandai os artilheiros reunir as catapultas, todas as que puderem ser deslocadas rapidamente. Eles partirão antes de nós, amanhã ao meio-dia quero a vanguarda já na estrada e o exército principal a reunir-se. Eu quero o meu traidor morto dentro de poucos dias, não descansarei enquanto não o vir a balouçar de uma corda. Procurai homens que conheçam bem, tanto as estradas como Greenhamsted, vamos precisar deles. E tu - ela virou os seus olhos chamejantes para Yves -, espera na antecâmara até seres chamado. Disseste que conseguias desenhar-nos mapas de La Musar-derie, agora vais demonstrá-lo. Desenha-os! Se conheces alguns pontos fracos, anota-os. Dá graças a Deus por eu te ter deixado em liberdade e ileso, e toma nota, se não cumprires o que prometeste, outro galo cantará. Agora, vai-te embora, sai da minha frente!

 

Por conseguinte, agora não havia nada a fazer excepto prosseguir com o que já fora feito e não podia ser desfeito, tirar o maior partido possível da situação e tentar, por todos os meios à sua disposição, evitar o pior. Nada se tinha alterado na sua determinação de voltar a La Musarderie e de tomar parte, até ao limite, na batalha para libertar Olivier. Ele faria tudo o que lhe fosse possível para impelir o ataque. Durante a noite, tinha passado algumas horas a desenhar o mapa do castelo e do terreno desde o cume da colina até ao rio, e fizera o possível por calcular a dimensão do terreno desmoitado à volta do forte e a distância que as máquinas de cerco teriam que alcançar. Ele tinha até indicado a cortina do torreão em que, de acordo com as suas observações, tinha sido danificado e reparado, e por onde talvez fosse possível abrir uma brecha. A imperatriz podia ficar com o castelo assim que Olivier tivesse saído do cativeiro em segurança, mas não teria, se ele o pudesse impedir, o direito de matar o castelão. Contestada por outros mais ousados e mais ilustres que ele, ela tinha argumentado veementemente que o conde Robert se sentia tão afrontado pela traição do Philip como ela própria e não hesitaria em concordar com a morte. Mas, mesmo assim, ela estava com uma enorme pressa em avançar antes que as suas intenções chegassem aos ouvidos do irmão. Não que ela tivesse medo de Robert ou estivesse disposta a reconhecer que não conseguia fazer nada de eficaz sem ele. Em diversas ocasiões, ela tinha-o humilhado em público de uma forma tão arrogante e implacável como faria com qualquer outro. Não, o seu objectivo era apresentar-lhe uma morte já levada a cabo, sem argumentação nem redenção possíveis, um acto inconfundível e absoluto por parte dela, a afirmação da sua supremacia. Porque certamente que durante todos aqueles anos, quando ela o tinha utilizado e confiado nele, ela também tinha tido ciúmes dele e invejava a sua primazia. Após o fim do conselho, Yves dormiu as poucas horas que lhe restaram em cima de um banco do salão escuro, enrolado na sua capa sem a mínima noção de como iria impedir a vingança da imperatriz. Não se tratava simplesmente do facto de um acto daqueles ir perturbar e alienar metade dos seus seguidores e fazer desembainhar todas as espadas que não estivessem já desembainhadas e ensanguentadas, prolongando e envenenando aquela guerra que, apesar de tudo, ainda não tinha sido, até então, infiltrada pelo veneno. A questão era também que ele, embora ainda não tivesse tido ocasião para sondar os seus motivos depois de um dia como aquele, não desejava a morte de Philip. Este era um homem intimidante, introvertido, difícil de conhecer, mas de quem ele, noutras circunstâncias, teria gostado. Um homem de quem Olivier tinha gostado, mas que também não compreendia.

Yves dormiu um sono intermitente até uma hora antes de amanhecer. E, nas horas sombrias da manhã, ele aprontou-se e seguiu com o corpo principal do exército da imperatriz, sob o comando de John FitzGilbert, para o assalto a La Musarderie.

A disposição das forças de cerco à volta do castelo foi deixada a cargo do marechal, e o marechal entendia da sua profissão e conseguiu dispor os seus artilheiros e as catapultas em posição ao longo da colina, sem fazerem barulho nem agitação suficientes para chegarem aos ouvidos das sentinelas nas muralhas, e colocar as suas companhias em sítios estratégicos sob cobertura ao longo de todo o local, desde a margem do rio até às orlas das aldeias no alto, onde a imperatriz e as suas mulheres se tinham apoderado da casa do padre, preferindo não enfrentar os rigores de um acampamento. A operação poderia ter sido muito mais difícil e o segredo poderia ter sido revelado antes do final do dia se os aldeões de Greenhamsted não tivessem sido bem tratados pelos Musard, pelo que não tinham agora vontade absolutamente nenhuma de mandar avisar o actual castelão de La Musarderie. A sua complacência relativamente à actual ocupação ser-lhes-ia útil junto de uma facção, a que tinha aparecido no meio deles com uma força convincente. Eles mantinham-se calmos, deixavam-se ficar circunspectamente sentados no meio dos soldados invasores e aguardavam os acontecimentos.

A dispersão dos homens prosseguiu até ao anoitecer, e as primeiras fogueiras do acampamento no cume, insuficientemente cobertas e apagadas, alertaram as sentinelas na muralha. Uma ronda de sentinelas descobriu várias faíscas semelhantes dispersas por entre as árvores à volta do perímetro do terreno desmoitado.

- Ele trouxe o exército dela inteiro para nos atacar - disse Philip num tom inexpressivo a Cadfael, no cimo da torre sul, enquanto observava os minúsculos pontos brilhantes que denunciavam o anel de sitiantes. - Um rapaz que cumpre a sua palavra! Foi um puro acaso ela ter à sua volta em Gloucester um conselho de condes, com todas as suas companhias, quando eu passaria bem sem eles. Bem, eu convidei-o para o festim. Estou tão pronto como alguma vez estarei, numa posição de tão grande inferioridade. Amanhã veremos. Pelo menos, estamos avisados. - Virando-se para o seu hóspede monástico, acrescentou muito delicadamente: - Se desejar ir-se embora, pode fazê-lo à vontade, agora, enquanto há tempo. Eles respeitá-lo-ão e recebê-lo-ão bem.

- Agradeço a amável oferta - disse Cadfael num tom formal igualmente calmo -, mas não saio daqui sem o meu filho.

Quando escureceu completamente, e o céu abafado por nuvens baixas ocultava a lua e as estrelas, Yves deixou o seu posto e dirigiu-se para norte. Não iria acontecer nada nessa noite. Com uma demonstração de força tão grande, seria certamente exigida a rendição em vez de começar a desfazer um valioso bem em pedaços. Ao amanhecer, então. Ele tinha aquela noite para estabelecer contacto, se pudesse.

Yves tinha uma excelente memória. Conseguia repetir, tintim por tintim, o que Philip dissera sobre o seu inesperado hóspede: "Ele pode dizer as suas orações tão fielmente na minha capela como em Shrewsbury. E ele fá-lo, até mesmo as Matinas da meia-noite." Além disso, Yves sabia onde deveria estar a capela pois, quando o foram buscar à cela para o levarem da torre de menagem para o salão, ele vira o capelão emergir de um corredor de pedra escuro, com o missal na mão. Algures ao longo desse corredor, Cadfael deveria estar também nessa noite, se Deus quisesse, a dizer as suas orações solitárias antes da batalha. Nessa noite, especialmente, ele não deixaria de rezar.

A escuridão era uma enorme bênção. Mesmo assim, coberto por uma capa preta e silencioso, o movimento poderia ser perceptível devido a um estremecimento no escuro, ou à simples deslocação do ar. E a encosta nua que ele tinha que atravessar parecia-lhe naquele momento ter milhas de comprimento. Mas até mesmo uma colina despida de arbustos pode ondular, formando ravinas de sombra que seriam suficientemente fundas para proporcionar um caminho das árvores até à muralha e ao canto sombrio debaixo da torre norte onde estava a enorme videira. Até mesmo uma inclinação no chão pode oferecer algum tipo de abrigo na gradação da sombra. Ele gostaria de conseguir ver a cabeça da sentinela que percorria o troço da muralha entre aquelas duas torres, mas a distância era demasiado grande para isso. Depois de metade do caminho, talvez houvesse uma diferença entre o volume sólido e o céu, o suficiente para mostrar os contornos das torres e das ameias, embora sem pormenores, talvez até o movimento da cabeça contra o espaço quando a sentinela patrulhasse o seu troço de caminho de ronda. Não servia de nada desejar um grau de visibilidade maior, isso só significaria que ele também poderia ser visto.

Enrolou-se na capa pesada e avançou, afastando-se das árvores. Do interior dos pátios, um leve reflexo da luz dos archotes lá em baixo formava uma aura ligeiramente perceptível sob a espessa cobertura das nuvens. Ele fixou os olhos nela e avançou nessa direcção, com os pés a tactear o chão invisível, desempenhando a função dos olhos como fazem com os cegos. Ele caminhava a um passo constante, e não havia vento para fazer esvoaçar a capa e o cabelo, tornando-se palpável, mesmo ao longe.

O volume negro de encontro ao céu surgiu mais próximo. Os seus ouvidos começaram a captar pequenos sons que emanavam do interior, ou de sentinelas nas muralhas quando rendiam a guarda. E a dado momento houve uma chama súbita de archote e uma voz a chamar, quando alguém subiu da praça até à muralha, e Yves estendeu-se no chão, tapou-se da cabeça aos pés com a capa e ficou em silêncio onde tudo era silencioso à sua volta, e imóvel onde nada se movia, para o caso de os dois lá em cima olharem da troneira e, através de um sinal infinitesimal, detectarem a aproximação de um ser vivo. Mas o homem com o archote desceu novamente as escadas, e o momento passou.

Yves levantou-se cautelosamente e ficou imóvel por um momento, para respirar à vontade e olhar para a frente, antes de retomar o seu andamento silencioso. E agora ele estava suficientemente próximo para conseguir distinguir, na medida em que o movimento torna perceptível o invisível até mesmo no escuro, a passagem da cabeça da sentinela quando esta percorria o troço de muralha entre as suas torres. Ali no canto da torre começava a sacada; ele tinha-a observado novamente antes de escurecer e tinha reparado como os enormes ramos da videira estendiam os braços confusos, agarrando a galeria de madeira que se projectava da pedra. Seria possível subir para a galeria enquanto a ronda da sentinela a levava na outra direcção. E depois?

Yves tinha vindo desarmado. Uma espada e um punhal têm pouca utilidade para trepar videiras ou muralhas de castelo, e ele não tinha a intenção de atacar a sentinela de Philip. A única coisa que ele queria era entrar e sair sem ser detectado e deixar o aviso do que viera fazer, em nome de qualquer frágil oportunidade de reconciliação e paz que permanecesse viva após o encontro de Coventry. E a forma como ele o faria, bem ou mal, dependeria forçosamente do acaso e do seu próprio engenho.

A sentinela na muralha estava a afastar-se na direcção da torre mais adiante. Yves aproveitou a oportunidade e correu, atravessando o terreno acidentado. Deixou-se cair, com uma sensação de alívio, sob a muralha e esgueirou-se ao longo dela até chegar ao canto, por baixo da confusão de ramos. Naquele local, a sacada lá no alto não constituía uma ameaça para ele, mas sim uma protecção. Ainda devia faltar quase uma hora para a meia-noite; podia respirar tranquilamente durante alguns minutos e procurar escutar os passos lá em cima, muito sumidos mesmo quando se aproximavam daquele ponto, desaparecendo completamente assim que a sentinela dava meia volta.

Tinha que deixar a capa para trás, subir com ela seria difícil e possivelmente perigoso, mas a roupa que ele vestira por baixo dela era igualmente preta. Deixou os passos fazer o percurso duas vezes por cima dele, para medir a distância, pois, cada vez que a sentinela voltasse para trás, ele teria que ficar imóvel. Na terceira vez, quando o som desapareceu, procurou um ramo a que se pudesse agarrar com firmeza e começou a trepar.

A videira, quase sem folhas, não se mexia muito nem sussurrava, e os ramos eram torcidos e cheios de nós, mas muito fortes. Durante a subida, por várias vezes ele teve que suspender todo o movimento e ficar pendurado enquanto a sentinela lá em cima parava por alguns instantes para olhar para o terreno desmoitado, como devia ter feito regularmente o tempo todo. Yves estava a dirigir-se ao abrigo precário da cortina do torreão. E, uma vez, ao procurar um apoio na pedra arredondada da torre, enfiou uma mão numa seteira e viu uma pequena luz no interior, reflectida através de uma porta entreaberta; recuou para o canto da muralha, receoso de que alguém o tivesse visto. Mas tudo permaneceu silencioso e, quando espreitou cautelosamente para dentro, não conseguiu ver nada a não ser a aresta daquela porta interior e a orla de luz. Se também houvesse uma porta aberta da ronda da guarda para a torre...

Eles deviam ter começado a mover armas durante o dia, assim que se aperceberam do perigo, e o lugar das catapultas ligeiras e das bestas era nas muralhas e nas torres. E àquela hora já estariam certamente empilhados pedras e ferro para as catapultas, bem como as flechas e os dardos para as bestas...

Yves esperou antes de voltar a mover-se e rezou para que corresse tudo bem.

As torres de La Musarderie sobressaíam apenas um pouco para além das muralhas de ameias, e a videira tinha crescido acima do nível da sacada, ainda agarrada à pedra. Ele chegou à forte barreira de madeira antes de se ter apercebido e ficou imóvel a espreitar por cima dela para a galeria. Desta vez, ele estava a três passos da sentinela quando o homem chegou ao limite da sua ronda e deu novamente meia volta. Yves deixou-o chegar a metade do caminho antes de se atrever a estender a mão para o corrimão sólido onde a sacada começava e saltou para a galeria. Foi preciso aguardar mais um pouco até conseguir trepar para o caminho de ronda. Deitou-se debaixo de um dos merlões e deixou que os passos passassem por ele e voltassem mais uma vez para trás. Depois atravessou cautelosamente a troneira para o sólido piso de pedra e virou para a torre. Ao lado desta, a guarnição tinha estado, de facto, a empilhar projécteis para as máquinas de defesa, mas a porta estava bem fechada e não cedeu quando ele a empurrou. Eles não tinham tido necessidade de utilizar a torre para trazer a carga para cima, havia um monta-cargas que ia do bailéu até ao chão lá em baixo e, por cima dele, a extremidade de uma das escadas ia do bailéu à parede. Só havia uma coisa a fazer antes de a sentinela dar meia volta, no fim da ronda. Yves desceu os primeiros degraus apressadamente e depois pendurou-se do parapeito com as mãos e desceu devagar, degrau a degrau, balouçando precariamente no espaço vazio.

Ainda estava pendurado quando a sentinela passou e voltou a passar, depois prosseguiu a dolorosa descida até chegar a um canto da praça, felizmente remoto e escuro. Ainda havia luz e som na armaria distante, e figuras sombrias atravessavam silenciosamente a praça, indo do salão para a despensa e da oficina do ferreiro para a armaria. La Musarderie ainda não se apercebera do número de soldados do exército inimigo e preparava-se calma e eficientemente para o cerco. Yves saltou os últimos degraus das escadas e encostou-se bem à parede para avaliar a sua situação.

A torre de menagem não estava longe, mas ficava demasiado distante para se arriscar a correr de um modo que levantasse suspeitas. Dominando-se, saiu do esconderijo e atravessou a praça com um passo rápido, decidido, como outras figuras faziam na escuridão. Num local em que tudo era familiar, eles estavam a poupar os archotes, e a única coisa que ele tinha que fazer era desviar o rosto de qualquer fonte de luz e dar a impressão de que se dirigia algures para tratar de um assunto muito importante para a guarnição. Se passasse perto de alguém, ele teria que se limitar a murmurar uma palavra, pois ia tão absorvido na sua missão que não lhe sobrava atenção para mais nada. E isso não teria sido mentira. Mas chegou à porta aberta e entrou sem que lhe dirigissem palavra, e soltou um grande suspiro por ter chegado até ali são e salvo.

Seguia cautelosamente ao longo do estreito corredor lajeado quando o capelão emergiu subitamente de uma porta mais à frente e veio em direcção a ele, segurando na mão um pequeno frasco de óleo com que acabara de encher a lamparina do altar. Não havia tempo para escapar, e ter tentado fazê-lo seria despertar a atenção até mesmo do velho cansado. Yves encostou-se respeitosamente à parede e fez uma vénia profunda quando ele passou. Olhos míopes olharam-no suavemente, e uma voz resignada mas tranquila abençoou-o. Ele ficou a tremer, quase envergonhado, mas considerou aquilo um bom presságio. O velho tinha-lhe até mostrado onde ficava a capela e indicara-lhe o altar. Ele entrou, humilde e grato, e ajoelhou-se para dar graças por uma dúzia de favores não merecidos que lhe tinham sido concedidos até aí. Até se esqueceu de ter cuidado, de estar pronto para ficar de sobreaviso ao ouvir qualquer som, de se preocupar com a sua sorte ou de pensar em como alguma vez iria voltar a sair dali. Ele estava onde tinha decidido ir. E Cadfael não o desiludiria.

A capela era alta, acanhada e muito fria, mas a sua austeridade tinha sido suavizada um pouco pelas grossas tapeçarias de lã que revestiam as paredes e pela cortina que cobria o lado interior da porta. Era possível um homem esconder-se no canto pouco iluminado em que as dobras da cortina e a tapeçaria se encontravam. Só se alguém fechasse completamente a porta atrás de si é que a presença estranha se arriscaria a ser detectada. Yves instalou-se ali, sacudiu as dobras para se cobrir e ficou à espera.

Desde que era hóspede de La Musarderie que Cadfael acordava e se levantava à meia-noite, devido, em grande parte, ao hábito, mas também à necessidade de, pelo menos, se agarrar à memória da sua vocação e do lugar a que o seu coração pertencia. Se não voltasse a vê-lo, era ainda mais importante não quebrar esse laço enquanto fosse vivo. O facto de o poder fazer sozinho era também uma parte solene da sua consolação, em conformidade com as regras monásticas. O capelão efectuava todos os ofícios religiosos que competiam a um padre secular, mas não cumpria as horas beneditinas. Só uma vez, quando Philip tivera também uma palavra a dizer a Deus é que Cadfael tivera que partilhar a capela com alguém.

Nessa noite, ele viera cedo, sem necessidade de acordar. A maior parte da guarnição de La Musarderie pouco dormiria. Disse as orações e continuou de joelhos, embrenhado em pensamentos sombrios, mais do que em orações privadas. Todas as orações que poderia rezar por Olivier já tinham sido rezadas, ouvidas e repetidas vezes sem conta na sua mente, para que Deus se lembrasse. E tudo o que ele poderia pedir para si próprio parecia irrelevante naquela hora em que o dia chegava ao fim com todas as ansiedades por resolver e os problemas do dia seguinte ainda não tinham sido previstos, nem necessitavam de o ser.

Quando se levantou e virou na direcção da porta, viu as dobras da cortina atrás dela estremecer. Uma mão emergiu da orla, afastando o tecido pesado para o lado. Cadfael não emitiu qualquer som nem se moveu quando Yves surgiu à sua frente, sujo e despenteado da subida, com um gesto urgente e olhos dilatados a pedir cautela e silêncio. Por um momento, ficaram imóveis, a olhar um para o outro. Depois Cadfael colocou uma mão aberta no peito de Yves, empurrou-o suavemente para o esconderijo e meteu a cabeça fora da porta para olhar para ambos os lados do corredor. O quarto de Philip ficava perto, mas era pouco provável que ele lá estivesse naquela noite. Ali nada se movia, e a cela estreita de Cadfael ficava a menos de dez metros de distância. Agarrou no pulso de Yves e puxou-o rapidamente ao longo do corredor para aquele santuário e fechou a porta. Durante um momento abraçaram-se e ficaram tensos, à escuta, mas estava tudo silencioso.

- Fala baixo - disse então Cadfael - que estaremos seguros. O capelão dorme aqui perto. - As paredes, até mesmo aquelas paredes interiores, eram muito grossas.-Agora, o que é que estás aqui a fazer? E como é que cá entraste? - Ele ainda estava a agarrar no pulso do rapaz, com tanta força que o magoava. Soltou-o e sentou o inesperado visitante na cama, segurando-o pelos ombros, como se ao tocá-lo o mantivesse inviolável. - Isto foi uma loucura! O que podes fazer aqui? E eu fiquei muito satisfeito ao saber que estavas em liberdade, aconteça o que acontecer.

- Eu subi pela vinha - disse Yves, num murmúrio. - E tenho que voltar pelo mesmo caminho, a não ser que conheça algum melhor. - Ele estava a tremer um pouco, como reacção. Cadfael sentiu-o vibrar entre as suas mãos, como um arco a ficar gradualmente imóvel depois do disparo. - Não será muito difícil... se for possível distrair a sentinela enquanto chego à galeria. Mas isso pode esperar, Cadfael, eu tinha que arranjar maneira de conseguir falar consigo. Ele tem que ter conhecimento das intenções dela...

- Ele? - perguntou Cadfael abruptamente. - Philip?

- Philip, quem havia de ser? Ele tem que saber o que poderá vir a enfrentar. Ela... a imperatriz... ela tem meia dúzia de barões consigo, estavam todos reunidos em Gloucester e tinham todos os seus exércitos lá. Salisbury, Redvers de Devon, FitzRoy, Bohun, o rei dos escoceses, todos eles, o maior exército que ela teve à sua disposição durante este último ano ou mais. E ela tenciona usar tudo contra este local. Pode custar-lhe caro, mas ela quer conquistá-lo, e rapidamente, antes que Gloucester saiba o que se está a passar.

- Gloucester? - disse Cadfael num tom de incredulidade. - Mas ela precisa dele, não consegue fazer nada sem ele. Ainda mais porque este é filho dele, revoltoso ou não.

-Não! - disse Yves com veemência. - Por esse mesmo motivo ela quer mantê-lo em Hereford, na ignorância, até tudo estar terminado. Cadfael, ela tenciona enforcar Philip e acabar com ele. Ela jurou fazê-lo, e fá-lo-á. Quando Robert souber, a única coisa que lhe restará será um corpo para sepultar.

- Ela não se atreveria! - disse Cadfael num tom sibilante.

- Ela atrever-se-á. Eu vi-a, ouvi-a! Está decidida a matar, e esta é a sua oportunidade. Já tem os dentes cravados na garganta dele, e duvido que o próprio Robert conseguisse fazê-lo largar a presa, mas ela não tenciona dar-lhe essa oportunidade. Estará tudo terminado antes de ele saber alguma coisa.

- Ela está louca! - disse Cadfael. Tirou as mãos dos ombros do rapaz e ficou a olhar para a longa procissão de excessos e atrocidades que se seguiriam àquela morte: todas as lealdades que restavam desfeitas, todos os laços familiares desintegrados, as últimas réstias de esperança de reconciliação e sanidade despedaçadas. - Ele abandoná-la-ia. Ele talvez até se virasse contra ela.-E isso, de facto, talvez pusesse termo a tudo e provocasse, pela força, a resolução do conflito que não fora possível conseguir através de um acordo. Mas não, ele não seria capaz de lhe tocar, limitar-se-ia a retirar-se do campo de batalha com o seu luto e a sua dor, e deixaria a outros a tarefa de provocar a sua queda. Uma tarefa mais longa, e uma agonia mais demorada e mais profunda para o país disputado, empurrado de um lado para o outro até ao desespero final.

- Eu sei - disse Yves. - Ela está a destruir a sua própria causa e a condenar a este caos permanente todos nós, de ambos os lados, e Deus sabe, todas as pobres almas que só querem semear e ceifar os seus campos, comprar e vender e criar os seus filhos em paz. Eu tentei dizer-lhe isso, cara a cara, e ela criticou-me severamente. Ela não escuta ninguém. Por isso eu tive que vir.

E não apenas para tentar evitar uma política desastrosa, pensou Cadfael, mas também porque aquela morte iminente era para ele uma ofensa e tinha que ser evitada como o acto bárbaro que era. Yves não queria a morte de Philip FitzRobert. Ele tinha voltado em armas para libertar Olivier, seguramente, e defenderia essa intenção até ao seu último sopro, mas não seria conivente com a vingança feroz da dama a quem jurara fidelidade.

- Vieste ter comigo - disse Cadfael. - Agora que aqui estás, o que queres de mim?

- Avise-o - disse Yves simplesmente. - Conte-lhe o que ela tenciona fazer com ele, faça-o acreditar, porque ela nunca voltará atrás. Pelo menos faça-o saber toda a verdade, antes de ele ter que responder às exigências dela. Ela preferiria tomar e ocupar o castelo intacto a destruí-lo mas, se for necessário, destruí-lo-á. É possível que ele possa fazer um acordo que o mantenha vivo, se abandonar La Musarderie. - Mas nem mesmo o rapaz acreditava que isso fosse alguma vez acontecer, e Cadfael sabia que nunca aconteceria. - Pelo menos conte-lhe a verdade. Depois a decisão é dele.

- Eu certificar-me-ei - disse Cadfael - de que ele não tem quaisquer dúvidas sobre o que está em causa.

- E ele acreditará em si - disse Yves, parecendo curiosamente satisfeito. Ele espreguiçou-se e suspirou, inclinando a cabeça para trás contra a parede. -Agora é melhor pensar na melhor maneira de sair daqui.

Nessa altura, eles já estavam habituados a Cadfael, e ele era aceite em La Musarderie como um ser inofensivo, tolerado pelo castelão e respeitável como o seu hábito dizia que era. Ele misturava-se com os outros, andava pelo castelo conforme queria e falava com quem lhe apetecesse. Isso ajudou Yves a sair do castelo pelo mesmo caminho por que tinha entrado.

A melhor forma de não ser notado, disse Cadfael, era caminhar como se tivesse todo o direito e uma razão legítima para se dirigir para onde era visto a dirigir-se, sem um ar furtivo. Isso seria arriscado à luz do dia, obviamente, mesmo entre uma guarnição numerosa com jovens razoavelmente semelhantes, mas era perfeitamente válido na escuridão, ao atravessar praças ainda menos iluminadas do que habitualmente, para evitar proporcionar ao inimigo estimativas dos preparativos para a defesa.

Yves e Cadfael atravessaram juntos a praça até ao fundo das escadas que iam dar ao caminho de ronda num passo casual e lento, Yves obedecendo confiantemente às ordens e dissolvendo-se no canto escuro para se encostar à muralha, enquanto Cadfael subia as escadas e se inclinava sobre a troneira entre os merlões da muralha e espreitava na direcção dos clarões das fogueiras dispersas, no meio das árvores. A sentinela, ao chegar ao fim da sua patrulha, deixou-se ficar inclinada ao lado dele e, durante um momento, partilhou as suas especulações; quando retomou a sua marcha de volta à torre distante, Cadfael foi com ele. Yves, à escuta lá em baixo, ouviu as duas vozes baixas afastar-se gradualmente. Assim que achou que estavam suficientemente distantes, subiu rapidamente as escadas, atravessou a troneira e deitou-se no chão da sacada debaixo de um merlão. Ele estava ao fundo da galeria, os ramos pretos nodosos e as gavinhas retorcidas da videira inclinavam-se sobre ele, mas não se atreveu a levantar-se e içar-se para o meio deles antes de a sentinela ter dado mais uma volta e ter-se afastado novamente, deixando Cadfael a descer para a praça para se ir deitar durante o que restava da noite.

Por cima da cabeça de Yves, a voz familiar disse muito suavemente:

- Ele já está longe. Vai agora!

Yves levantou-se, içou-se sobre o parapeito, introduziu-se no meio das espirais da videira e começou a descer cautelosamente em direcção ao chão lá muito em baixo. E Cadfael, depois de o rapaz desaparecer e de os ramos terem deixado de tremer e de sussurrar, desceu os degraus para o pátio, e foi à procura de Philip.

Philip tinha feito a ronda das suas defesas sozinho e considerara-as tão completas como conseguiria torná-las com os meios ao seu dispor. Este ataque tinha vindo ao fim de pouco tempo, o jovem Hugonin devia ter sido invulgarmente persuasivo, e a imperatriz devia possuir um número inusitadamente elevado de homens e armas, caso contrário ele teria tido mais tempo para se preparar. Não fazia mal, a questão seria decidida mais cedo.

Quando Cadfael o encontrou, ele estava no caminho de ronda por cima do portão, a olhar para a estrada através da qual, de manhã cedo, o primeiro interpelador se aproximaria, sob uma bandeira de tréguas. - O irmão aqui? - disse ele, virando um rosto ligeiramente surpreendido. - Eu julgava que já estava a dormir há horas.

- Esta não é uma noite para dormir - replicou Cadfael -, até que tudo que é preciso ser feito esteja feito. E há mais uma coisa que é necessária, e eu estou aqui para me certificar de que é feita. Meu senhor Philip, tenho que vos comunicar, pedindo-vos que leveis esta informação a sério, pois ela é grave, que a imperatriz pretende a vossa morte. Yves Hugonin trouxe todo este exército contra vós para libertar o seu amigo e familiar. Mas ela não! Ela está cá, nem sequer para tomar um castelo, embora tenha que fazer isso primeiro. Ela está aqui para apanhar um homem. E, quando o tiver, ela tenciona enforcá-lo.

Fez-se silêncio. Philip ficou a olhar para leste, de onde viria a primeira claridade do dia, antes do amanhecer. Finalmente, ele disse em voz baixa:

- Eu nunca tive dúvidas quanto às intenções dela. Diga-me, irmão, essa também é a intenção do meu pai a meu respeito?

- O vosso pai não está cá em armas - disse Cadfael. - Ele não sabe que o exército dela se deslocou, e ela terá o cuidado de garantir que ele não descubra até tudo ter terminado. O vosso pai está em Hereford com o conde Roger. Desta vez, ela agiu sem ele. Por um bom motivo. Ela vê o seu inimigo principal ao seu alcance. Ela está aqui para vos destruir. E uma vez que ela se esforçou tanto para vos ocultar isto - disse Cadfael, num suave tom inexpressivo - parece que, de qualquer modo, ela não está, de forma alguma, segura da opinião dele sobre vós.

Um segundo silêncio caiu entre eles. Depois Philip disse, sem virar a cabeça:

- Eu conhecia-a suficientemente bem para não ficar surpreendido. Eu não estava à espera de nada melhor, se alguma vez chegasse a este ponto. Quando me virei para o rei, eu ignorei-a, isso é verdade, embora seja menos verdade, ou apenas uma verdade parcial, que eu me tenha voltado contra ela. Ela era ineficaz, esse é o cerne da questão. E aqui, se não na Normandia, Stephen estava e está em ascendência. Se ele puder vencer, o que ela não conseguia fazer, e pôr termo a este caos e desperdício, então que se virem tantas casacas quanto as necessárias para que isso aconteça. Qualquer desfecho que deixe os homens viver, tratar dos seus campos e percorrer as estradas para vender as suas mercadorias em segurança é preferível aos direitos e aos triunfos de qualquer monarca. O meu pai - disse ele - determinou o caminho que eu segui. A mim, tanto me faz Stephen como Maud, desde que alguém consiga impor a ordem. Mas eu compreendo a raiva dela. Entendo todo o seu rancor contra mim. Ela tem o direito de me odiar, e eu aceito o seu ódio.

Era a primeira vez que ele falava tão livre e serenamente, sem pena nem arrependimento.

- Se acreditastes no que eu disse - disse Cadfael -, que ela pretende a vossa morte vergonhosa, a minha missão está cumprida. Se conheceis toda a verdade, podeis preparar-te para a enfrentar. Ela tem em vista um ganho, bem como a vingança. Se quiserdes, podeis negociar.

- Há coisas que eu não negoceio - disse Philip, virando a cabeça e sorrindo.

- Então escutai-me durante mais um momento – disse Cadfael. - Falastes sobre a imperatriz. Agora falai-me de Oli-vier.

A cabeça morena voltou a virar-se abruptamente. Philip ficou calado, a olhar para leste, onde não havia nada para ver, a não ser que a sua própria mente povoasse a escuridão.

- Então falarei eu dele - disse Cadfael. - Eu conheço o meu filho. Ele tem uma natureza mais simples que a vossa, exigistes demasiado dele. Eu penso que partilhastes muitos momentos perigosos com ele, que acabaram por confiar um no outro e por nutrir uma estima recíproca. E quando mudastes de rumo e ele não conseguiu ir convosco, a ruptura entre vós foi duplamente amarga, pois cada um de vós sentiu que o outro o tinha decepcionado. A única coisa que ele via era traição, e o que vistes foi uma ausência de compreensão que era o mesmo que uma traição.

- Essa é a sua história, irmão - disse Philip recuperando a serenidade.

- Há nela uma ponta tão afiada como num punhal - disse Cadfael. - Compreendeis o ressentimento da imperatriz. Porque é que não estendes a mesma justiça ao meu filho?

Philip não deu resposta, mas ele também não precisava de resposta. Já sabia qual era. Olivier tinha sido muito amado. A imperatriz nunca o fora.

 

A embaixada esperada chegou ao amanhecer, e foi o marechal que a trouxe. O grupo saiu do bosque e tomou a estrada aberta de modo a serem vistos assim que deixaram a cobertura: um cavaleiro com uma bandeira branca à frente, depois FitzGilbert com três oficiais atrás dele, sem cota de malha nem armas à vista, para indicar claramente que, naquele momento, eles não constituíam qualquer ameaça nem estavam à espera de ser atacados. Philip, acordado do seu breve sono assim que eles foram avistados, dirigiu-se ao caminho de ronda por cima do portão, no meio das duas torres, para os receber.

Cadfael, lá em baixo no pátio junto da porta do salão, ouviu a troca de palavras. O silêncio no interior das muralhas foi como a calmaria antes da tempestade, quando todos os homens pararam, imóveis, para ouvir mais distintamente; mais do que o medo, percorreu-os um frémito de excitação, muitas vezes experimentado e agora habitual, quase desejado.

- FitzRobert - chamou o marechal, parando a algumas jardas dos portões fechados, para olhar melhor para o homem com quem falava - abre os teus portões a Sua Graça, a imperatriz, e recebe o seu enviado.

- Cumpre a tua missão daí-disse Philip. - Eu ouço-te muito bem.

- Nesse caso, comunico-te - disse FitzGilbert vigorosamente - que este teu castelo está cercado por um forte exército. Ninguém poderá vir em teu socorro, e nenhum dos teus homens conseguirá sair a não ser com a concordância de Sua Graça. Não tenhas ilusões, não conseguirás resistir ao assalto que te podemos fazer, podemos e faremos, se fores teimoso.

- Faz a tua proposta - disse Philip, imperturbável. - Eu tenho trabalho a fazer, se tu não tens.

FitzGilbert estava demasiado habituado aos estratagemas da guerra civil para ficar desconcertado com qualquer tom em que lhe falassem.

- Muito bem, a dama a quem juraste fidelidade, a imperatriz, ordena-te que entregues imediatamente este castelo, caso contrário ela tomá-lo-á de assalto. Entrega-o intacto, ou cai juntamente com ele.

- E sob que condições? - perguntou Philip secamente. - Diz-me quais são as condições.

- Rendição incondicional! Tens que te submeter, bem como tudo o que aqui deténs, à vontade de Sua Graça.

- Eu não submeteria à vontade de Sua Graça um cão que alguma vez lhe tenha ladrado - disse Philip. - Sob condições razoáveis, eu talvez considere a proposta. Mas, mesmo assim, John, eu exigiria a tua garantia a sustentar a dela.

- Não haverá negociação - disse o marechal secamente. - Rende-te, ou paga o preço.

- Diz à imperatriz - retorquiu Philip - que os seus próprios custos talvez sejam elevados. Nós não nos vendemos barato.

O marechal encolheu os ombros e deu meia volta com o cavalo, para descer a encosta.

- Não digas que não foste avisado! - gritou ele por cima do ombro, seguindo em direcção às árvores com o seu arauto à frente e os oficiais atrás.

Depois disso, não tiveram que esperar muito. O assalto começou com uma saraivada de flechas sobre todas as orlas de pontos protegidos à volta do castelo. As muralhas estavam ao alcance de um bom arqueiro, e quem, insensatamente, se mostrasse numa troneira seria um alvo fácil; mas pareceu a Cadfael, que estava no topo da torre sudoeste, a mais próxima da aldeia situada no cimo da colina, que os atacantes estavam a ser muito pródigos com as setas, sobretudo para intimidar, pois não tinham receio de que as flechas lhes faltassem. Os defensores preocupavam-se mais com o desperdício e disparavam apenas quando detectavam um possível alvo não protegido. Se gastassem a sua reserva de setas, não haveria maneira de a repor. Eles estavam a poupar as bestas, as setas e os dardos que elas disparavam, para um ataque em massa. Contra uma companhia, eles dificilmente falhariam alvos, mas contra um homem em movimento os seus disparos seriam desperdiçados, e eles não podiam dar-se ao luxo de desperdiçar. As máquinas pequenas, parecidas com enormes arcos, estavam firmes nas troneiras, quatro naquele lado sudoeste, onde um ataque com um elevado número de homens seria mais provável, e mais duas colocadas a leste e oeste.

Catapultas só tinham duas, e não possuíam alvos para elas, a não ser que o marechal fosse suficientemente insensato para ordenar um assalto em massa. Eram eles que tinham que temer o ataque das máquinas de cerco mas, em caso de necessidade, pedras atiradas sobre um grupo de homens a correr para chegar às muralhas poderiam provocar brechas desastrosas nas fileiras e tornar essa forma de acção demasiado dispendiosa para prosseguir com ela.

Durante as primeiras horas, a actividade era quase confusa, mas um ou dois dos arqueiros atacantes tinham encontrado um alvo. Por enquanto, eram apenas ferimentos ligeiros sofridos por um jovem descuidado que se mostrara por um momento no meio dos merlões. E sem dúvida que alguns dos experientes arqueiros em cima das muralhas também tinham provocado sangue entre as orlas das árvores na colina. Por enquanto, eles agiam com toda a cautela.

Depois, a primeira pedra caiu de encontro à cortina do torreão por baixo da sacada e fez ricochete sem provocar mais danos do que algumas lascas de pedra a voar, e as máquinas de cerco foram levadas para a orla da zona sob cobertura e começaram a bombardear as defesas. Elas tinham encontrado o seu alvo, pedra após pedra pesada lançada através do ar batia contra a muralha, ao fundo, concentrando-se naquela torre, onde Yves tinha detectado sinais de danos e reparações anteriores. Aquilo, pensou Cadfael, prosseguiria durante o dia, e antes do anoitecer eles talvez conseguissem fazer chegar um aríete junto da parede e completar o trabalho de abrir uma brecha. Entretanto, eles tinham perdido um dos seus artilheiros que, no seu entusiasmo, se tinha aventurado a expor-se. Cadfael tinha-o visto a ser arrastado novamente para debaixo das árvores.

Ele olhou para a colina que escondia a aldeia de Greenhamsted, tentando detectar algum movimento no meio das árvores ou relances de máquinas escondidas. Aquele era um campo de batalha em que ele não devia tomar parte. Nada o ligava a qualquer dos sitiantes ou sitiados, a não ser o facto de serem homens como ele e poderem sangrar. E era de longe preferível ele tornar-se útil da única forma que aqui se justificava. Mas, mesmo enquanto seguia ao longo do caminho de ronda, indo de merlão em merlão como um soldado experiente com a devida consideração pela sua própria pele, ele deu por si a aprovar o modo como Philip utilizava os arqueiros e as bestas, bem como a forma prática como a sua guarnição se ocupava da defesa.

Lá em baixo, no salão, o capelão e o idoso administrador estavam a tratar dos ferimentos menores, cortes infligidos por lascas de pedra cuspidas pelo ataque à muralha, e um ou outro ferimento provocado por flechas quando um braço ou um ombro tinha ficado exposto, na ponta dos merlões protectores. Não havia nada de mais grave. Ainda não. Cadfael sabia perfeitamente que dentro de pouco tempo passaria a haver. Juntou-se à força de socorro e retirou algum consolo do facto de, durante algumas horas, ter tido pouco que fazer. Mas, antes do meio-dia, tornou-se claro que FitzGilbert tinha ordens para atacar La Musarderie com todos os meios de assalto à sua disposição, de modo a garantir um desfecho rápido.

Já tinha sido efectuado um ataque frontal à casa do portão, sob cobertura do impacto continuado das pedras lançadas contra a parte inferior da torre oeste, mas as bestas montadas por cima do portão cortavam, com os seus dardos, uma faixa através das fileiras de atacantes, e estes eram obrigados a recuar de novo, arrastando os seus feridos consigo. Mas o alarme tinha desviado alguma atenção do ataque principal e bastantes defensores tinham-se deslocado para defender as torres do portão. Os sitiantes no cimo da colina aproveitaram a oportunidade para retirar a catapulta mais pesada de debaixo das árvores, fazendo-a avançar e lançando as pedras mais pesadas e caixas de fragmentos de ferro contra as defesas, elevando a pontaria de modo a golpear a sacada de madeira, muito mais vulnerável do que a pedra sólida da muralha. No interior, Cadfael sentiu o salão estremecer a cada impacto, e o ar vibrar como uma trovoada iminente. Se os atacantes elevassem mais a sua mira e começassem a lançar projécteis sobre os edifícios no interior do pátio, dentro em breve eles talvez tivessem que transferir as suas actividades e os poucos feridos para a solidez da torre de menagem.

Um jovem arqueiro apareceu a balancear um braço dilacerado dentro de uma manga ensanguentada e ficou sentado, a suar e a respirar ofegantemente, enquanto o tecido era rasgado e afastado do ferimento, e o golpe limpo e tratado.

-É o braço com que disparo-disse ele com um esgar.-Mesmo assim, ainda consigo soltar a besta, se outro homem a retesar. Um grande troço da sacada está todo estilhaçado, quase perdemos uma catapulta que ia tombando quando o parapeito cedeu, mas conseguimos içá-la por cima da troneira. Inclinei-me demasiado e aconteceu-me isto. Os arqueiros de Bohun têm boa pontaria.

O passo seguinte, pensou Cadfael, colocando a ligadura à volta do braço ferido, será disparar flechas a arder para a madeira desfeita da sacada. O raio de acção, como este rapaz ficou a saber à sua própria custa, está bem ao alcance das suas capacidades, e praticamente não há vento que as possa desviar; na realidade, a julgar por esta calmaria e pela sensação do ar, vai haver muita geada, e toda aquela madeira estará seca como uma mecha.

- Eles ainda não tentaram chegar à parede por baixo dela?

- Ainda não. - O jovem dobrou agilmente o braço ligado, fez uma careta e ignorou a dor, levantando-se para regressar às suas tarefas. - Certamente que eles estão com pressa, mas não tanta como isso. Talvez tentem antes do anoitecer.

Ao crepúsculo, sob um céu sem lua e com nuvens baixas pesadas, Cadfael saiu para a praça, subiu até ao caminho de ronda na muralha e espreitou para o troço de sacada estilhaçado que, no ângulo entre a torre e a cortina do torreão, se inclinava para fora como um indivíduo embriagado. No interior do bosque em volta via-se o clarão fraco das fogueiras e, de vez em quando, quando flamejavam, elas mostravam os contornos das monstruosas formas pretas que eram as máquinas de assalto. A distância reduzia-as a brinquedos enganosos, mas não diminuía a sua ameaça. Mas, por um momento, houve calma, quase silêncio. Ao longo da muralha, os defensores emergiram cautelosamente do abrigo dos merlões e olharam na direcção da colina e da aldeia acima dela. Estava demasiado escuro para os arqueiros, a não ser que alguém oferecesse um alvo irresistível e aparecesse iluminado por um archote.

Nessa altura, já tinham os primeiros mortos, deitados no chão de pedra frio da capela e nos corredores da torre de menagem. Não era possível enterrá-los.

Cadfael percorreu o troço de muralha entre as torres, por entre homens vigilantes e imóveis na luz do crepúsculo, e viu Philip ao fundo, no local em que os destroços da sacada se tinham soltado do ângulo da torre. Escuro contra o escuro, ainda com a cota de malha vestida, ele estava a observar a orla das árvores, a localizar o clarão das fogueiras e as catapultas que a imperatriz trouxera para usar contra si.

- Não vos haveis esquecido - disse Cadfael, perto dele - do que eu vos disse? Porque eu disse-vos a verdade absoluta.

-Não-respondeu Philip sem virar a cabeça -, não me esqueci.

- E acreditais?

-Acredito-disse ele com um sorriso.-Nunca duvidei. Tenho isso em mente agora. Se Deus impedir a imperatriz, haverá providências a tomar para os que restarão. - Em seguida, virou a cabeça e olhou de frente para Cadfael, ainda a sorrir. - Não deseja a minha morte?

- Não - disse Cadfael -, não desejo a vossa morte.

Uma das minúsculas fogueiras ao longe, que não era maior do que uma primeira faísca do sílex, transformou-se subitamente num luminoso clarão vermelho e criou à sua volta uma sombra de movimento violento, uma pequena espiral de caos mal perceptível, na noite e no bosque, onde os ramos chamejaram num fino rendilhado, e voltou a desaparecer. Algo se elevou na escuridão a silvar e a arder, um temível cometa com uma cauda de chamas. Um dos jovens arqueiros, situado a dez jardas de onde Cadfael se encontrava, olhou para cima, fascinado, um mero rapaz, pouco habituado a cercos. Philip soltou um grito de alarme e aviso, atirou-se como uma lança disparada, agarrou o rapaz pela cintura e puxou-o para trás consigo, para o interior do abrigo que a torre lhe proporcionava. Caíram os três juntos, tal como havia homens a deixar-se cair debaixo de todos os merlões ao longo da muralha e a comprimir-se contra o ângulo formado pela muralha e pelo caminho de ronda. Cuspindo faíscas e clarões de líquido em chamas, o cometa atingiu o centro da sacada danificada e explodiu, lançando alcatrão a arder de um extremo ao outro das madeiras descaídas e salpicando o caminho de ronda através de todas as troneiras. A madeira estilhaçada pegou imediatamente fogo e começou a arder, com as chamas e saltar das tábuas partidas e do parapeito despedaçado ao longo da muralha.

Philip pôs-se de pé, segurando no rapaz.

- Estás bem? Consegues andar? Vai lá abaixo, não interessa combatê-lo. Vai buscar machados!

Haveria queimaduras e coisas piores para tratar mais tarde, mas agora aquilo era mais urgente. O jovem desceu apressadamente para a praça, e Philip, baixando-se sob a protecção da muralha, percorreu a correr o troço a arder, levantando os seus homens, mandando os que estavam mais feridos refugiar-se lá em baixo e procurar ajuda. Ali, a sacada teria que ser deitada abaixo antes que o fogo alastrasse para o interior, espalhando-se à madeira das torres e cuspindo alcatrão derretido para a praça. Cadfael desceu os degraus com um jovem a gemer nos seus braços, cuidando dele degrau a degrau, embrulhando-o com o seu próprio escapulário para abafar a roupa que ardia lentamente e o cheiro a carne chamuscada. Havia outros lá em baixo à espera dele, bem como outros como ele, para os levar para um lugar protegido. Cadfael hesitou, quase desejando voltar para cima. No caminho de ronda, Philip estava a golpear a madeira a arder no meio das sentinelas que restavam, andando com dificuldade por entre as poças de alcatrão a arder para chegar às traves já despedaçadas que ainda se mantinham presas ao seu suporte na parede.

Não, ele não pertencia à guarnição, não tinha qualquer direito de tomar parte naquela contenda, pondo-se ao lado de qualquer das partes. Era melhor ir ver o que podia fazer pelos queimados.

Talvez meia hora depois, de entre as enxergas no salão, com o cheiro a lã e a carne queimada nas suas narinas, ouviu a madeira da sacada libertar-se e cair, rangendo quando os últimos filamentos se separaram, flamejando com um rugido tumultuoso enquanto caíam, soprados pelo seu voo, até se imobilizarem contra as pedras debaixo da torre, numa série de colapsos crepitantes.

Philip desceu algum tempo depois, preto até à testa e cheio de sede por ter estado a respirar fumo, mas ficou apenas o tempo suficiente para ver como estavam os feridos. Ele próprio tinha algumas queimaduras, mas não lhes atribuiu muita importância.

- Eles vão tentar abrir uma brecha na muralha antes do amanhecer - disse ele.

- Ela ainda estará demasiado quente - contrapôs Cadfael, sem parar de untar um braço gravemente queimado.

-Eles arriscarão. Não passa de madeira, bastarão algumas horas do frio da noite. E eles querem um desfecho rápido. Arriscarão.

- Sem um abrigo? Eles não podem ter trazido de Gloucester um abrigo de madeira resistente e completo, suficientemente comprido para alojar e cobrir uma equipa de homens e um aríete - supôs Cadfael.

- Eles devem ter passado a maior parte do dia a construir um. Eles têm muita madeira. E com metade da sacada caída naquele lado, seremos vulneráveis. - Philip ajeitou a sua cota de malha sobre um ombro magoado e chamuscado e voltou para o caminho de ronda para ficar de vigia durante a noite. E Cadfael, respirando profundamente no meio dos feridos, adivinhou que a meia-noite se aproximava e fez uma breve mas fervorosa oração das Matinas.

Antes do amanhecer, o assalto veio, sem a protecção que um abrigo lhes teria proporcionado, mas essa desvantagem era compensada pelo ímpeto adicional da velocidade. Um grupo numeroso saiu do bosque e desceu a colina a correr, em direcção à parede, e embora as bestas montadas tivessem feito alguns sulcos nas suas fileiras, eles chegaram à base da torre, ao lado dos restos do fogo ainda incandescentes. Do salão, Cadfael ouviu o som do aríete a bater na pedra e sentiu o chão tremer com as pancadas. E agora, uma vez que já não tinham a sacada, os defensores viam-se obrigados a expor-se para atirar pedras por cima das troneiras e deitar óleo e acendalhas para reacender o fogo. Cadfael não fazia a mínima ideia de como a batalha estaria a decorrer; ele estava mais do que suficientemente ocupado ali. De manhã, o lugar-tenente de Philip, um cavaleiro da fronteira oriundo de perto de Berkeley chamado Guy Camville, tocou-lhe no ombro, despertando-o quando ele quase dormitava de exaustão, e disse-lhe que se retirasse para a tranquilidade relativa da torre de menagem, para dormir algumas horas, enquanto era possível.

- Já fez o suficiente, irmão - disse ele cordialmente -, numa guerra em que não tem qualquer responsabilidade.

- Nenhum de nós fez o suficiente - disse Cadfael num tom triste, pondo-se de pé, aturdido. - Pelo menos nunca na direcção certa.

O aríete foi retirado, e o grupo de assalto retirou-se com ele, antes do nascer do dia, mas, nessa altura, eles já tinham aberto uma brecha, não na cortina do torreão, mas sim na base da torre. Levar a cabo um novo ataque em pleno dia, sem cobertura, teria um custo demasiado elevado, mas, naquele momento, os sitiantes estariam certamente a construir um abrigo para proteger o assalto seguinte e, se fossem capazes de levar ramos de árvores e matagal para o interior, talvez conseguissem, por meio do fogo, abrir caminho até à praça. No entanto, não sem adiar a sua própria entrada até a passagem estar suficientemente fria para se arriscarem a avançar. O tempo era a única coisa que não tinham em quantidade suficiente. Philip colocou as suas próprias catapultas ao longo da ameaçada muralha sudoeste e pô-las a bombardear a orla do bosque, para impedir a construção do abrigo e reduzir o número dos seus inimigos, ou para os obrigar a ficar sob cobertura até à noite.

Cadfael observou tudo, tratou dos feridos juntamente com todos os homens que podiam ser dispensados dos seus deveres e previu um desfecho para muito em breve. As probabilidades contra eles eram demasiado elevadas. As armas gastas ali dentro não podiam ser substituídas: nem um único dardo, nem uma única pedra. A imperatriz tinha estradas desimpedidas e muitas carroças para a manter abastecida. Ninguém sabia isso melhor do que Philip. No decurso normal daquela guerra incoerente, ela não teria concentrado toda aquela fúria, dispendiosa em homens e meios, num único castelo como La Musarderie. Ela tinha apenas uma justificação para os gastos, sem ter em conta o que gastava: o seu inimigo mais odiado estava lá dentro. Nenhum preço era demasiado elevado para provocar a morte dele. Ele também sabia isso melhor do que ninguém, nem era necessário dizer-lhe. No entanto, Cadfael estava contente por Yves ter arriscado a sua liberdade, e possivelmente a sua vida, para trazer o aviso que ele tinha transmitido fielmente.

Enquanto os atacantes esperavam pela noite para completar a brecha e os defensores tentavam fechá-la, todas as máquinas de cerco retomaram o seu monótono assalto, desta vez dividindo os seus mísseis entre o fundo da torre e um novo alvo, elevando a sua trajectória de modo a enviar pedras, fragmentos de ferro e barricas de alcatrão por cima da muralha, para a praça. Por duas vezes, houve telhados que pegaram fogo, mas os incêndios foram extintos sem grandes danos. Os arqueiros em cima das muralhas tinham começado a seleccionar as suas presas com cuidado, evitando gastar desnecessariamente setas de uma reserva cada vez menor. Os artilheiros que manuseavam as máquinas de cerco eram o seu alvo principal e, de vez em quando, um bom atirador conseguia provocar uma pausa. Mas havia tantos homens experientes que todas as perdas eram rapidamente substituídas.

Eles começaram a abafar os fogos nos telhados no interior da cortina do torreão e deslocaram os feridos para a torre de menagem, mais segura. Tinham que pensar, não só nos homens, como nos cavalos. Se os estábulos pegassem fogo, eles teriam que alojar os animais no salão. O pátio fervilhava de actividade, inevitavelmente ao ar livre, embora os projécteis continuassem a voar por cima da muralha e estar ao ar livre fosse uma forma de morrer.

Foi no escuro que Philip emergiu da torre danificada, tendo feito tudo o que era possível fazer contra o inevitável assalto nocturno; a brecha tinha sido novamente barricada, a torre propriamente dita selada, fechada e trancada. Se o inimigo entrasse por ali, pelo menos durante algumas horas não tomaria posse de mais nada. Philip apareceu finalmente, com o aprendiz de armeiro ao seu lado para ir buscar material para a tarefa de colocar ferro na brecha da muralha. O armeiro e um dos seus ferreiros tinham subido ao caminho de ronda, para se certificarem de que não seria fácil penetrar por ali. O rapaz saiu com a mão de Philip a segurar-lhe no braço e foi impedido de desatar imediatamente a correr para a porta da torre de menagem. Eles aguardaram debaixo da muralha por um momento, depois atravessaram com um passo rápido.

Estavam a meio do caminho quando Philip ouviu, tal como todos ouviram, o uivo, o assobio no ar quando o que foi talvez o último projéctil do dia foi lançado por cima da muralha e caiu, negro, desastrado e assassino, no empedrado a algumas jardas deles. Antes mesmo de o míssil ter atingido as pedras, Philip já tinha pegado no rapaz, dera meia volta sem ter tido tempo de fugir e atirara-se ao chão, com o rapaz de barriga para baixo debaixo dele.

O enorme caixote de madeira desengonçado caiu nesse momento, lançando flechas, bocados de ferro retorcidos, brasas, pedaços de cota de malha rasgada, em todas as direcções, num raio de trinta jardas. Os homens cansados da guarnição recuaram para junto das muralhas à sua volta, encolhendo-se até o último impacto que fez vibrar os muros da praça se ter desfeito no silêncio.

Philip FitzRobert ficou imóvel, deitado no empedrado, com a cabeça e o corpo distorcidos por dois pedaços de ferro da oferta da imperatriz. Debaixo dele, ileso, o aterrorizado rapaz ofegava e comprimia-se contra o chão, tentando respirar.

Pegaram nele e no rapaz a tremer, quase a chorar, e levaram-no para a torre de menagem, para o seu quarto austero, deitaram-no na cama, tiraram-lhe a cota de malha com alguma dificuldade e despiram-no para observar os seus ferimentos. Cadfael, que chegara tarde, foi conduzido imediatamente para junto da cama. Já estavam habituados a ele e ao à-vontade com que o seu senhor o aceitara, sabiam alguma coisa sobre os seus talentos e tinham gostado da prontidão com que ele os utilizara quando qualquer membro da casa se tinha ferido. Ele deixou-se ficar ao lado do médico da guarnição, a olhar para o corpo magro e musculoso, agora desfigurado por uma ferida no lado esquerdo, e para o incisivo rosto moreno que acabara de ser lavado, para limpar o sangue. Um bocado de ferro de uma fornalha atingira-o e partira-lhe certamente pelo menos duas costelas, e uma ponta de flecha velha tinha atravessado o cabelo escuro e estava presa ao lado esquerdo da cabeça, com a ponta espetada na fronte. Levaram algum tempo a retirá-la sem provocar danos maiores e, mesmo depois de a terem tirado, não era possível saber se o crânio estava partido ou não. Ligaram-lhe o corpo, mas não muito apertado, preocupados com a respiração curta que indicava lesões internas. Ele encontrava-se muito para além da dor. Limparam cuidadosamente o ferimento da cabeça e ligaram-no. As suas pálpebras fechadas nunca se abriram e nem um músculo do seu rosto se retesou.

- Ele vai viver? - murmurou o rapaz, à porta, a tremer.

- Se Deus quiser - disse o capelão, mandando o rapaz embora, mas não de um modo desagradável é acompanhando-o durante alguns passos com uma mão em cima do seu ombro, ao mesmo tempo que lhe murmurava palavras de esperança. Mas, naquelas circunstâncias, pensou Cadfael com tristeza, recordando o destino que aguardava aquele homem recto e teimoso se Deus o fizesse sobreviver àqueles ferimentos, qual de nós quereria estar no lugar de Deus, e como é que qualquer de nós, homens, suportaria tomar uma decisão em qualquer dos sentidos, vida ou morte?

Guy Camville entrou, sentindo o pesado fardo da liderança, fez algumas perguntas, observou o repouso impenetrável de Philip, abanou a cabeça e foi-se embora, disposto a desempenhar a tarefa a seu cargo o melhor possível. Pois aquela noite poderia ser bem crítica.

- Mandem-me dizer se ele recuperar os sentidos - disse Camville, saindo para defender a torre danificada e impedir o assalto inevitável. Com bastantes homens fora da batalha, competia agora aos mais velhos e aos que tinham apenas ferimentos ligeiros tratar dos feridos mais graves. Cadfael sentou-se ao lado da cama de Philip, escutando a respiração curta e dolorosa que ainda não conseguia quebrar o desmaio e trazê-lo de volta ao mundo. Tinham-no embrulhado bem para o proteger do frio, com medo que a febre se seguisse. Cadfael humedeceu os lábios fechados e a testa magoada por baixo das ligaduras. Até mesmo assim indefeso, o rosto magro e altivo tinha um ar grave e tranquilo, como os mortos por vezes têm.

Perto da meia-noite, as pálpebras de Philip estremeceram, e as sobrancelhas uniram-se. A respiração tornou-se mais profunda, e subitamente ele emitiu um silvo, indicando que a dor tinha regressado. Cadfael humedeceu os lábios abertos com vinho, e eles moveram-se, sedentos, e aceitaram sofregamente o gesto. Passado algum tempo, Philip abriu os olhos e olhou em volta com um ar vago, apercebendo-se lentamente das formas do seu próprio quarto e do homem sentado ao seu lado. Ele tinha recuperado os sentidos e, pela expressão dos seus olhos, também a memória.

Abriu os lábios e perguntou primeiro, numa voz baixa mas clara:

- O rapaz... ele ficou ferido?

- Está são e salvo-respondeu Cadfael, baixando-se para ouvir e ser ouvido.

Ele mostrou ter compreendido com um leve movimento da cabeça e ficou em silêncio por um momento. Depois disse:

- Chamem Camville. Tenho assuntos a resolver.

Ele estava a usar parcimoniosamente a fala, a dizer muito em poucas palavras; e, enquanto esperava, fechou os lábios e os olhos e poupou a lucidez da mente e a força que lhe restava no corpo. Cadfael sentiu a força com que ele controlava e zelava pelos seus poderes, e receou a queda que pudesse seguir-se. Mas não seria para já, não antes de estar tudo em ordem.

Guy Camville veio apressadamente e encontrou o seu senhor consciente e acordado, e relatou rapidamente o que ele mais desejava ouvir.

- A torre está a aguentar-se. Ainda não lhe conseguiram abrir uma brecha, mas eles estão debaixo da muralha e montaram um abrigo para o aríete.

Philip reuniu visivelmente as suas forças e puxou o seu substituto pelo pulso para junto da cama.

- Guy, tu ficas no comando. Não haverá tréguas. Não é La Musarderie que ela quer. Ela quer-me a mim. Se me tiver em seu poder, ela chegará a acordo. A primeira luz do dia... faz sinal com a bandeira a FitzGilbert, indicando que queres falar com ele. Obtém as melhores condições que puderes e rende-te a ela. Se me tiver em seu poder, ela deixará a guarnição sair com honra. Leva-os em segurança para Cricklade. Ela não vos perseguirá. Ela já terá o que pretende.

Camville exclamou, num protesto vigoroso:

- Não!

- Mas eu digo que sim, e ainda sou eu que mando aqui. Tira os meus homens do caminho dela, antes que ela os mate para me deitar a mão.

- Mas isso significa que a tua vida... - começou Camville a dizer, abalado e triste.

- Tem juízo, homem! A minha vida não vale a morte de um dos que estão cá dentro, quanto mais a de todos. Eu já estou a um pequeno passo da morte, não tenho de que me queixar. Tenho sido a causa da morte de homens que eu estimava, poupa-me mais sangue sobre a minha cabeça antes de partir! À primeira luz do dia, Guy! Assim que uma bandeira for visível.

E agora não era possível dizer-lhe que não. Ele estava a ser sincero, falava sensata e vigorosamente, e Camville ficou calado. Só depois de ele se ter ido embora, chocado mas convencido, é que Philip pareceu encolher-se na cama como se, com a premência, tivesse ficado sem ar e sem tendões. Desatou a transpirar profusamente, e Cadfael limpou-lhe o suor da testa e de cima do lábio, e verteu-lhe gotas de vinho para a boca. Durante algum tempo, houve silêncio, só quebrado pela respiração rouca que parecia ter-se tornado ao mesmo tempo mais fácil e menos profunda. Depois num mero fio de voz, ele disse, muito nitidamente:

- Irmão Cadfael?

- Sim, estou aqui.

- Só mais uma coisa, e terminarei. O armário ali... abra-o. Cadfael obedeceu sem questionar, embora sem compreender.

O que era urgente já tinha sido feito. Philip tinha libertado a sua guarnição de qualquer associação com o seu próprio destino. Mas a sua mente tinha que ser aliviada do que quer que ainda lhe pesasse.

- Três chaves... no interior, penduradas debaixo da fechadura. Tire-as.

Três chaves num aro, variando entre grande e elaborada, e pequena, tosca e simples. Cadfael pegou nelas e fechou o armário.

- E agora? - Ele levou-as até junto da cama e ficou à espera. - Dizei-me o que quererdes, que eu irei buscar.

-A torre noroeste - disse claramente a voz espectral. - Dois lances de escada abaixo do chão, a segunda chave. A terceira abre as correntes. - Os olhos pretos, inteligentes, de Philip observavam com firmeza o rosto de Cadfael. - Talvez fosse bom deixá-lo lá até ela entrar. Eu não quero que ele seja acusado de nada do que ela tem contra mim. Mas vá vê-lo agora, ou assim que quiser. Vá ter com o seu filho.

 

Cadfael não se mexeu até o capelão ter vindo substituí-lo à beira da cama. Por duas vezes o doente abriu os olhos agora afundados em covas azuladas no rosto magro e ficou a observá-lo, imóvel, com as chaves na mão, mas não manifestou a sua admiração ou reprovação, e não disse mais nada. O seu papel estava cumprido. O papel de Cadfael podia ser deixado a cargo de Cadfael. E, gradualmente, Philip mergulhou de novo sob a superfície do consciente, uma vez que não tinha mais assuntos a resolver. Pelo menos, assuntos cuja resolução dependesse de si. O que ainda estivesse mal devia ser deixado a cargo de Deus.

Cadfael observou-o ansiosamente, reparando nas covas por baixo das maçãs do rosto, na testa cada vez mais branca, na tensão dos lábios cerrados e, mais tarde, no suor abundante. Era uma vida forte, persistente, que não era fácil de extinguir. Os ferimentos poderiam pôr-lhe termo, mas não seria para já. E seguramente que antes do meio-dia do dia seguinte FitzGilbert estaria em La Musarderie, e Philip seria seu prisioneiro. Mesmo que a imperatriz adiasse a sua entrada por mais um ou dois dias, de modo a que fossem preparados aposentos para a receber, a tranquilidade não poderia durar mais. Ela seria implacável. Ele tinha-a ignorado, ela iria exigir um castigo exemplar. Até mesmo um homem que não consegue ter-se de pé e mal está vivo pode ser içado uma ou duas jardas numa corda, como exemplo para todos os outros.

Ainda havia, portanto, assuntos vitais a pôr em ordem, como é adequado perante uma morte iminente. E com a instigação de Deus, quem deveria tomar providências?

Quando o capelão o veio substituir na vigília, Cadfael pegou nas chaves e saiu da calma relativa da torre de menagem para o fragor da batalha na praça. Inevitavelmente, os sitiantes tinham prosseguido o assalto no mesmo local que já tinham enfraquecido, e desta vez com um abrigo construído apressadamente para proteger o aríete e os homens que o manejavam. O ritmo surdo do aríete fazia estremecer o chão debaixo dos pés e era penetrado constantemente pelo som irregular das pedras e do ferro a serem lançados da sacada danificada no alto e das troneiras ao longo do caminho de ronda para o telhado de madeira do abrigo. As súbitas vibrações suaves dos arcos e o silvo das flechas raramente se ouviam a sulcar o ar lá em cima. Os arqueiros eram agora menos úteis.

De muralha a muralha, o rugido do aço e das vozes subia em ondas de eco da base da torre danificada, em redor da torre de menagem e morria quase no silêncio debaixo da outra torre, a torre noroeste debaixo da qual Olivier se encontrava, acorrentado. Mas ali onde se travava a batalha corpo a corpo, uma massa de soldados, lanceiros, espadachins e soldados com piques ondulava à volta e no interior da base da torre danificada. Acima das cabeças deles, emolduradas pelas formas grotescas que restavam da barbacã despedaçada, Cadfael conseguia ver espaços fracturados de céu, mais claros do que o negro opaco da pedra e tingidos pela luz das chamas que restavam. A muralha interior já tinha sido perfurada, e a porta e a cantaria à sua volta estavam caídas na praça, no meio dos defensores. Não era uma fenda muito grande, e parecia que o assalto tinha sido repelido e que a brecha tinha sido preenchida com homens e armas mas, mesmo assim, sempre era uma fenda. Se, no dia seguinte, o castelo se ia render, não valia a pena repará-la, mas valia a pena continuar a defendê-la para evitar mais mortes. Philip tinha agido de acordo com o cargo que ocupava. Estava a libertar o maior número possível de vidas da situação que tinha criado, à custa apenas da sua própria vida.

Continuava a ser boa política agarrar-se às paredes enquanto se deslocava pela praça, embora de noite a chuva de mísseis tivesse cessado e apenas ocasionalmente uma seta de fogo fosse lançada por cima da muralha para tentar incendiar o telhado. Cadfael deu a volta à torre de menagem e chegou ao canto nordeste da praça, que estava quase deserto, onde apenas havia homens nas muralhas e na sacada, e até mesmo muito do barulho junto da brecha parecia estranhamente distante. As chaves tinham ficado quentes na sua mão, e o ar da noite não estava muito frio. No dia seguinte, depois da rendição, eles talvez conseguissem enterrar os seus mortos e dar descanso aos numerosos feridos.

A primeira porta estreita ao fundo da torre abriu-se sem sequer ranger. Dois lances de escada abaixo, dissera Philip. Cadfael desceu. Havia um archote num suporte a meio da escada em espiral; nada ficara esquecido ali, nem mesmo sob a tensão do cerco. À porta da cela, ele hesitou, respirando fundo. Não havia qualquer som vindo do interior, as paredes eram demasiado grossas; e não havia qualquer som vindo do exterior, apenas a luz da chama trémula a pulsar silenciosamente.

Quando meteu a chave na fechadura, a sua mão tremeu, e subitamente teve medo. Não de encontrar um farrapo de homem destroçado na cela; há muito que deixara de ter qualquer receio nesse sentido. Ele tinha medo de ter atingido o objectivo da sua viagem e de lhe restar apenas a depressão depois da façanha, e de o regresso a casa ser uma interminável e laboriosa descida para uma longa escuridão, terminando apenas em perda.

Foi o mais próximo que ele alguma vez estivera do desespero, mas a sensação durou apenas um momento. Quanto introduziu a chave na fechadura, ela desapareceu, e o seu coração elevou-se e encheu-lhe a garganta como uma onda a quebrar-se na areia. Abriu a porta resolutamente e viu-se frente e frente com Olivier, que estava ao fundo da cela.

O prisioneiro tinha-se posto de pé num salto ao ouvir o primeiro movimento da porta da sua prisão, à espera de se ver confrontado com o único visitante que tivera até então, para além do carcereiro que tratava dele, e ficou perplexo com aquela inesperada aparição. Através do poço de ventilação inclinado que descia da praça para a cela, ele devia ter ouvido o clamor da batalha, sentindo-se atormentado com a sua própria inutilidade, perguntando a si próprio o que estaria a acontecer lá em cima. O olhar que estava fixo na porta foi subitamente suavizado e abalado pela perplexidade; seguidamente, o seu rosto ficou imóvel, atento e cauteloso. Ele acreditou no que viu; ele fora avisado. Mas não compreendeu. A expressão dos seus olhos grandes, dourados, não era de boas vindas nem de repulsa; ainda não. As correntes à volta dos seus tornozelos tinham caído ao chão com um estrondo e estavam paradas.

Ele estava mais rijo, mais magro, desanimadamente radioso, quase incandescente de energia frustrada e reprimida. A vela em cima da sua prateleira de pedra lançava uma luz oblíqua sobre ele, delineando todos os traços do seu rosto e fazendo brilhar as íris dos seus olhos, dilatadas de dúvida e espanto. Limpo, bem barbeado, absolutamente nada desfigurado. Ele estivera deitado na cama quando ouvira a chave na fechadura; o seu cabelo preto agarrava-se às faces morenas, lançando sombras azuis nas covas por baixo dos ossos salientes. Cadfael nunca o vira tão belo, nem sequer no primeiro dia em que tinha visto de relance, através do portão aberto do priorado de Bromfield, o seu rosto colado ao do da rapariga que era agora sua mulher. Philip tinha respeitado, apreciado e preservado aquela elegância de corpo e mente, embora esta se tivesse virado irrevogavelmente contra ele.

Cadfael deu um longo passo em frente em direcção à luz, sem ter a certeza de que ele o via nitidamente. A cela era muito mais espaçosa do que ele estava à espera, tinha um armário baixo a um canto escuro, e havia peças de roupa em cima dele.

- Olivier? - disse ele num tom hesitante. - Conheces-me?

- Conheço-o - disse Olivier, em voz baixa. - Ensinaram-me a conhecê-lo. É o meu pai. - O seu olhar desviou-se do rosto de Cadfael para a porta aberta, e seguidamente para as chaves na mão de Cadfael. - Tem havido combates-prosseguiu ele, esforçando-se por tirar sentido de todos aqueles factores caóticos à sua volta. - O que aconteceu? Ele morreu?

Ele. Philip. Quem mais lhe poderia ter dito? E agora ele perguntava imediatamente pelo seu ex-amigo, supondo, imaginou Cadfael, que apenas após a sua morte aquelas chaves poderiam ficar em poder de outra mãos. Mas a voz que interrogava não continha qualquer ansiedade ou satisfação, apenas uma finalidade inexpressiva, como alguém que aceita o que não pode ser alterado. Como era estranho, pensou Cadfael, observando o seu filho com uma intensidade dolorida, que aquele ser complexo fosse, desde o início, transparente para o homem que o gerara.

- Não - disse ele suavemente -, ele não morreu. Ele deu-mas.

Deu alguns passos em frente, quase cautelosamente, como se receasse assustar uma ave, fazendo-a levantar voo, e com igual cautela, abriu os braços para abraçar o seu filho. Ao primeiro contacto, o corpo rígido descontraiu-se e retribuiu calorosamente o seu abraço.

- É verdade! - disse Olivier, espantado. - Mas claro que é verdade! Ele nunca mente. E o pai sabia? Porque é que nunca me disse?

- Porque é que havia de interromper a vida de um homem a meio do caminho, quando ele já avança com nobreza a caminho da glória? Um sopro de um vento contrário poderia ter-te desviado do caminho. - Cadfael segurou-o com ambas as mãos para o olhar de perto e beijou a encovada face oval que se inclinou para ele. - O único pai de que precisaste recebeste tu do que a tua mãe te contou, melhor do que a verdade. Mas agora sabes a verdade, e eu estou contente. Anda, senta-te aqui e deixa-me tirar-te esses grilhões. Ele ajoelhou-se ao lado da cama para meter a última chave no aro à volta dos tornozelos, e ouviu-se novamente o estrépito dissonante das correntes quando ele abriu as algemas e retirou os grilhões, deixando cair as correntes junto da parede de pedra. E durante todo esse tempo, os olhos dourados ficaram pousados no seu rosto, com intensa concentração, em busca de lampejos que confirmassem a continuidade do sangue que os unia. E, após um momento, Olivier começou a questionar, não a verdade daquela intrigante descoberta, mas sim as circunstâncias que a rodeavam, e a espantosa gama de possibilidades que ela abria.

- Como é que soube? O que é que eu disse ou fiz que o levou a reconhecer-me?

- Disseste o nome da tua mãe - disse Cadfael -, e a época e o local estava certos. E depois viraste o rosto, e eu vi-a em ti.

- E nunca me disse uma única palavra! Eu comentei uma vez com Hugh Beringar que o irmão me tratava como um filho. E eu estava tão cego que nem pestanejei quando o disse. Quando ele me disse que estava cá, eu disse que não podia ser verdade, pois o irmão não podia sair da abadia a não ser que recebesse ordens nesse sentido. Apóstata, disse ele, ele está aqui para te libertar. Eu fiquei furioso! - disse Olivier, procurando na memória e reconhecendo a sua dor ilógica. - Eu disse que o pai me tinha enganado! Não devia ter abandonado, por minha causa, tudo aquilo que tinha valor para si, tornando-se um exilado e um pecador, oferecendo a sua vida. Teria sido justo lançar sobre mim o fardo de uma dívida tão terrível? Eu não poderia pagá-la. A única coisa que senti foi o mal que isso me faria. Agora estou arrependido! Estou realmente arrependido! Mas já aprendi a minha lição.

- Não existe qualquer dívida - disse Cadfael, levantando-se. - Entre nós é impossível haver qualquer tipo de contas ou regateio.

- Eu sei! Eu sei! Eu senti-me tão ultrapassado que o meu orgulho ficou ferido. Mas isso desapareceu. - Olivier pôs-se de pé, esticou as pernas compridas e começou a andar de um lado para o outro da cela. - Não há nada que eu não aceite de si com gratidão, mesmo que nunca me seja possível fazer o que for necessário fazer por si. Mas eu espero que venha a ser, e em breve.

- Quem sabe? - disse Cadfael. - Há uma coisa que eu quero agora, se conseguisse saber como lá chegar.

- Há? - Olivier afastou apressadamente as suas próprias preocupações. - Diga-me o que é! - Ele voltou para a cama e fez Cadfael sentar-se ao seu lado. - Conte-me o que é que se está a passar aqui. Disse-me que ele não morreu... Philip. Ele deu-lhe as chaves? - Parecia-lhe uma coisa apenas possível de um leito de morte. - E quem está a sitiar este local? Eu sei que ele fez bastantes inimigos, mas isto deve ser um exército a alvejar as paredes.

-É o exército da dama a quem juraste fidelidade-disse Cadfael com tristeza. - E mais forte do que habitualmente, uma vez que ela foi acompanhada até Gloucester por alguns dos seus condes e barões. Yves, quando foi libertado, foi a Gloucester incitá-la a vir salvar-te, e ela veio, mas não por tua causa. O rapaz disse-lhe que Philip estava cá. Ela jurou, demasiado publicamente para poder desistir mesmo que quisesse, e eu duvido que queira, tomar o seu castelo, apanhá-lo e enforcá-lo das suas próprias torres, em frente dos seus próprios homens. Não, ela não vai desistir. Ela está decidida a apanhá-lo, humilhá-lo e enforcá-lo. E eu estou igualmente decidido - disse Cadfael sem rodeios - a impedir que ela o faça, embora não saiba ainda como o farei.

- Ela não pode fazer isso - disse Olivier, horrorizado. - Seria uma loucura. Certamente que tem consciência disso? Um acto desses faria com que todos os homens capazes do país, se já tivessem pousado as armas, se apressassem a pegar novamente nelas e a ir para o campo de batalha. - Os piores de nós, de ambos os lados, hesitariam em matar um homem que tivessem derrotado e capturado. Como pode saber que é verdade, que ela jurou fazer isso?

- Eu soube por Yves, que estava lá e ouviu, e não existe a menor dúvida. Ela estava a falar a sério. Ela odeia Philip pelo que considera ser a traição dele.

- Foi traição - disse Olivier, mas mais comedidamente do que Cadfael esperara.

- Segundo todas as regras, foi. Mas também foi mais do que simplesmente traição, por mais excessivo que tenha sido o acto. Não falta muito tempo - disse Cadfael pesadamente - para que alguns dos melhores entre nós, de ambos os lados da contenda, sejam acusados de traição pelo mesmo motivo. Eles podem não passar a lutar pelo outro lado, mas deixar as espadas embainhadas e recusar-se a continuar a matar poderá igualmente ser considerado traição. Independente do crime de que ele possa ser acusado, ela quer tê-lo ao seu alcance e tenciona provocar a sua morte. E eu estou decidido a que ela não se apodere dele.

Olivier reflectiu por um momento, mordendo os nós dos dedos e franzindo a testa. Depois disse:

- Seria bom, para ela mais do que para qualquer outra pessoa, que alguém a impedisse. - Ele virou o seu olhar preocupado para Cadfael. - Não me disse tudo. Há algo mais. Como tem decorrido o ataque? Eles já abriram uma brecha? - A utilização da palavra "eles" poderia dever-se simplesmente ao facto de ele se encontrar impedido de participar na batalha e não poder lutar ao lado dos outros pela causa que escolhera, mas pareceu colocá-lo a uma distância ainda maior dos sitiantes. Cadfael quase ouvira o "nós", em confronto com o "eles".

-Ainda não. Fizeram uma brecha numa torre mas não entraram, pelo menos ainda não tinham entrado quando eu desci - corrigiu ele escrupulosamente. - Philip recusou render-se, mas ele sabe o que ela tenciona fazer com ele...

- Como é que ele sabe? - perguntou Olivier.

-Ele sabe porque eu lhe disse. Yves trouxe a mensagem, correndo riscos. Sem correr qualquer risco, eu transmiti-a. Mas eu acho que ele já sabia. Ele disse que se Deus, por qualquer acaso, decidisse deter a imperatriz por mais algum tempo, ele teria que pensar nos homens da sua guarnição. Já o fez. Entregou o comando de La Musarderie ao seu delegado Camville e deu-lhe autorização... não, deu-lhe ordens!... para que tentasse obter as melhores condições possíveis para a guarnição, e que entregasse o castelo. E amanhã isso será feito.

- Mas ele não iria... - começou Olivier a dizer, exclamando abruptamente: - Disse que ele não está morto!

- Não, ele não está morto, mas está gravemente ferido. Não estou a dizer que ele vai morrer dos ferimentos, embora isso possa acontecer. Estou a dizer que ele não morrerá dos ferimentos a tempo de escapar a ser arrastado, qualquer que seja o seu estado de saúde, para a forca da imperatriz, quando ela entrar em La Musarderie. Ele concordou em morrer coberto de vergonha para conseguir a libertação dos seus homens. Se tiver Philip, ela não quererá saber deles. Ficará com o castelo e com as armas, e deixará os homens partir com vida.

- Ele concordou com isso? - perguntou Olivier, em voz baixa.

- Ele deu ordens nesse sentido.

- E o seu estado de saúde? Os seus ferimentos?

- Ele tem costelas partidas e receio que algumas lesões internas provocadas pelos ossos partidos. E ferimentos na cabeça. Eles atiraram uma caixa com pedaços de ferro, pontas de setas partidas e cinza das fornalhas. Ele estava perto quando ela caiu e estoirou. Tem um ferimento grave na cabeça, causado por um pedaço de seta. Ele recuperou os sentidos o tempo suficiente para dar as suas ordens, fê-lo claramente e será obedecido. Amanhã, quando eles entrarem, ele será prisioneiro dela. O seu único prisioneiro, porque FitzGilbert, se concordar com as condições, irá manter a sua palavra.

- E o estado de saúde é grave? Ele não consegue montar? Não consegue sequer pôr-se de pé e andar? Mas, mesmo que ele conseguisse, de que serviria? - perguntou Olivier num tom de impotência. - Depois de ter comprado a liberdade deles, ele não se iria embora deixando o seu preço por pagar. Nunca de sua livre vontade. Eu conheço-o! Mas um homem tão doente, e à mercê dela... Ela não seria capaz! - disse Olivier vigorosamente e, olhando por cima do ombro para o rosto de Cadfael, terminou num tom de dúvida:-Seria?

- Ele atingiu-a no coração, que é onde está o seu orgulho. Sim, receio que seria. Mas quando o deixei para vir ter contigo, Philip estava outra vez inconsciente, e acho que ele poderá ficar assim durante muitas horas, até mesmo dias. O maior perigo vem do ferimento na cabeça.

-Acha que podemos movê-lo sem ele saber? Mas eles rodeiam-nos por todos os lados, não será fácil sair daqui. Eu não conheço bem este castelo. Haverá uma porta secreta que possa servir? E depois seria necessária uma carroça. Conheço algumas pessoas na aldeia - disse Olivier -, mas elas poderão não ser amigas de Philip. Mas no moinho de Winstone conhecem-me, e eles têm carroças. Agora, enquanto ainda estiver escuro, haverá algum local por onde se possa sair? Porque se houver tréguas, de manhã eles passarão a estar menos vigilantes. Talvez ainda seja possível fazer alguma coisa.

- Há uma saída no local em que fizeram a brecha na torre - disse Cadfael. - Eu vi o céu através dela. Mas eles ainda estão lá fora com o aríete, e só a força das armas os mantém no exterior. Se um homem da guarnição tentasse esgueirar-se por ali, seria uma maneira de morrer rapidamente. Mesmo que eles se retirassem, ele não poderia ir com eles.

- Mas eu posso!-Olivier pôs-se de pé, entusiasmado.-Porque não? Eu sou um deles. Eles sabem que eu mantive a minha fidelidade. Eu tenho a divisa dela no cinto da espada, e as cores dela no meu manto e na minha capa. Poderá haver alguns lá que me conhecem. - Ele atravessou a cela até ao armário e tirou de lá a capa que cobria a espada, a bainha e o casaco leve de cota de malha, fazendo tinir os anéis.

- Está a ver? Todos os meus arreios, tudo o que veio comigo quando fui arrastado para fora de Faringdon, e vêem-se nitidamente os leões de Anjou que o velho rei deu a Geoffrey quando casou a sua filha com ele, assinalando-me como pertencente a ela. Ele não tiraria o mais insignificante dos bens de outro homem, embora pudesse matar o homem. Com a cota de malha e armado, no escuro, quem é que me vai distinguir de qualquer dos outros sitiantes no exterior das muralhas? Se me fizerem perguntas, posso responder abertamente que consegui fugir no meio do tumulto. Se não, posso manter-me calado e dirigir-me para o moinho. Reinold ajudar-me-á a conseguir uma carroça emprestada. Mas será dia antes de conseguir chegar cá com ela. - Ele calou-se, franzindo a testa. - Como é que conseguiremos explicá-la?

- Se estás a falar a sério - disse Cadfael, entusiasmado -, podemos tentar qualquer coisa. Quando houver tréguas, poderá haver movimento de entradas e saídas, bem como trocas comerciais com a aldeia. Tanto quanto eu saiba, poderá haver homens locais cá dentro, alguns feridos e até mesmo os mortos, e os seus familiares irão certamente querer ter notícias deles, quando o caminho estiver desimpedido.

Olivier começou a andar de um lado para o outro da cela, pensativo.

- Onde está a imperatriz agora?

- Ela montou a sua corte na aldeia, segundo dizem. Duvido que ela cá apareça por mais um dia ou dois dias; irá precisar de alguma pompa e de uma entrada majestosa. Mas, mesmo assim, o único tempo que temos é o resto desta noite e as primeiras horas de tréguas, enquanto ainda reinar a confusão e não houver uma vigilância apertada.

- Então temos que fazer com que isso seja suficiente - disse Olivier. - E digamos que corre tudo bem... Para onde é que quer que o leve? Para ter os cuidados de que ele precisa?

Cadfael já tinha pensado nisso, embora na altura sem grande esperança de conseguir fazê-lo.

- Há uma casa de monges agostinhos em Cirencester. Eu lembro-me que o prior de Haughmond se corresponde regularmente com um dos cónegos de lá, e eles têm uma boa reputação como médicos. E com eles o santuário seria inviolável. Mas ela fica a dez milhas ou mais de distância.

- Mas a estrada é melhor e mais rápida - disse Olivier, entusiasmado com o plano -, não teríamos que passar perto da aldeia. Assim que atravessássemos Winstone, seguiríamos directamente para Cirencester. Agora, como é que o tiramos do castelo e o mantemos vivo?

- Talvez como um homem morto - disse Cadfael lentamente. - A primeira tarefa, quando os portões se abrirem, será levar os mortos e prepará-los para serem sepultados. Nós sabemos quantos deveriam ser, mas FitzGilbert não sabe. E se, entre eles, houver um homem de Winstone amortalhado, os seus familiares poderão muito bem vir buscá-lo com uma carroça.

Com os olhos ardentes fixos no rosto de Cadfael, Olivier fez a última pergunta, expressando o último receio:

- E se ele recuperar os sentidos, como poderá acontecer, o que faremos?

- Nesse caso - respondeu Cadfael -, pelo menos levá-lo-ei para a capela, e colocá-la-emos a ela e a qualquer outro sob excomunhão da Igreja se se atrever a violar o santuário. Mas posso fazer mais coisas. Aqui eu não tenho medicamentos que possam pôr um homem a dormir durante horas. E mesmo que tivesse... tu disseste que te tinha enganado colocando-te em dívida para comigo sem o teu conhecimento. Ele poderia acusar-me de o ter obrigado a fugir desonradamente a uma dívida. Eu não tenho coragem de fazer isso a Philip.

- Não - concordou Olivier, sorrindo subitamente. -Assim, é melhor fazermos as coisas com êxito enquanto ele está sem sentidos. Mesmo que possamos estar a abusar dos nossos direitos, mas discutiremos isso depois. E se eu vou, é melhor ir depressa. Desta vez, meu pai, quer ser meu escudeiro e ajudar-me a preparar-me?

Ele vestiu a cota de malha, a fim de se passar por mais um dos sitiantes agrupados no exterior das muralhas que se afastara durante alguns minutos para se preparar para voltar a atacar, e por cima dela a capa de linho com os leões de Anjou bem à vista. Cadfael colocou o cinto da espada à volta dos rins do filho e, por um momento, teve o mundo nos seus braços.

O manto era necessário no interior das muralhas para esconder o brasão de Geoffrey, pois ninguém, a não ser Cadfael, sabia que Philip tinha libertado o seu prisioneiro, e algum guerreiro zeloso poderia atacar primeiro e fazer perguntas depois. É verdade que ele tinha no ombro a águia imperial a que a imperatriz nunca consentira em renunciar após a morte do seu primeiro marido, mas a insígnia era escura e discreta no manto escuro, e ninguém repararia nela. Se conseguisse infiltrar-se no meio dos defensores na obscuridade e na confusão que reinava no interior da torre, Olivier teria que retirar o manto antes de tentar misturar-se com os atacantes, para que, até mesmo de noite, os leões fossem bem visíveis no linho claro e fossem reconhecidos.

- Embora eu prefira passar sem ser reconhecido - admitiu Olivier, endireitando os ombros sob o peso da malha e ajustando o cinto à volta das ancas. - Preciso de todos os momentos desta noite, sem perder tempo com perguntas e justificações. Bem, meu pai, vamos tentar?

Cadfael fechou a porta à chave atrás deles, e eles subiram as escadas em espiral. A porta exterior, Cadfael colocou uma mão no braço de Olivier e espreitou cautelosamente para a praça, mas no abrigo da torre de menagem estava tudo tranquilo e apenas se viam, quase como fantasmas, os movimentos das sentinelas na muralha.

- Fica ao pé de mim. Vamos seguir ao longo da parede até estamos no meio deles. Depois aproveita a oportunidade quando ela te surgir. A melhor ocasião será quando o próximo ataque vier e eles se dirigirem todos para a torre para a defender. E sem despedidas! Vai, e que Deus te acompanhe!

- Não será uma despedida - disse Olivier. Cadfael sentiu-o tenso e trémulo atrás de si, confiante, quase alegre. Após a longa prisão, a sua energia frustrada ansiava por libertação. - Irá ver-me amanhã, quer sob a minha própria forma quer sob qualquer outra. Eu protegi-o muitas vezes, e ele a mim. Esta é mais uma vez, com a ajuda de Deus e a sua, prestar-lhe-ei o mesmo serviço, quer ele queira quer não.

Cadfael fechou também a porta da torre, deixando tudo como devia estar. Atravessaram a praça para a torre de menagem e deram a volta na sombra dela para chegarem à torre ameaçada, no outro lado. Até mesmo ali o clamor da batalha se tinha transformado num irregular murmúrio de recuo entre investidas, e até isso era num tom baixo, para manter o ouvido atento e pronto para o ataque seguinte. Eles moviam-se, agitados, como o mar em movimento, diziam algumas palavras uns aos outros em voz baixa e mantinham os olhos fixos nas fileiras da frente, preenchendo a brecha irregular na base da torre. O chão estava cheio de fragmentos de cantaria e detritos, mas o buraco ainda não era tão grande que ameaçasse o colapso da torre. A luz dos archotes que ainda estavam a arder e o pálido brilho no céu no exterior da muralha, no local em que o fogo tinha queimado metade do tecto do abrigo, deixavam o pátio quase envolto em escuridão.

Um grito de aviso súbito oriundo do interior da torre, ecoado pelas fileiras no interior da praça anunciou o assalto seguinte. A massa de homens avançou, muito junta, para fechar a brecha com os seus corpos. Na orla do ajuntamento, Cadfael sentiu o momento em que Olivier se afastou dele como se arrancasse a sua própria carne e se misturou, ágil, rápida e silenciosamente com os homens da guarnição, desaparecendo num instante.

Mesmo assim, Cadfael recuou apenas o suficiente para sair do caminho dos soldados e esperou pacientemente que o assalto fosse repelido como sucedera com o anterior. O inimigo não chegou à praça. Certamente que houve combates no interior da torre, mas os atacantes não foram mais além. Foi necessária mais de meia hora para os expulsar totalmente e para os colocar a uma distância segura das muralhas mas, depois disso, voltou a fazer-se uma calma estranha e tensa e, com ela, alguns dos que tinham lutado nas fileiras da frente recuaram um pouco para respirar em segurança até ao ataque seguinte. Mas não Olivier. Ele ou estava algures na torre danificada, ou tinha saído para o tumulto da noite com os invasores repelidos e, com a ajuda de Deus, encontrava-se a caminho da protecção do bosque e dali para um local onde pudesse atravessar o rio e emergir na estrada que ia ter ao moinho de Winstone.

Cadfael voltou para o aposento onde estava Philip, com o capelão a dormitar suavemente ao seu lado. A respiração de Philip mal levantava o lençol em cima do seu peito e, mesmo assim, fazia-o num ritmo breve e rápido. Tinha o rosto branco como a cal, mas estava imperturbavelmente calmo, sem vincos de dor na testa nem nos lábios. Ele estava para além da consciência de questões tão triviais como perigo, ira ou medo. Oxalá Deus o mantivesse assim durante mais algum tempo, impedindo o mal iminente.

Teria necessidade de ajuda para transportar o corpo em direcção à paz, juntamente com os outros, mas teria que ser alguém que o fizesse com toda a inocência. Por um momento, Cadfael pensou em pedir ao padre, mas abandonou a ideia assim que ela lhe ocorreu. Não podia envolver aquele velho cansado num empreendimento que poderia provocar o desagrado mortal da imperatriz, colocando-o ao alcance da sua raiva implacável. O que havia a fazer tinha que ser feito de tal modo que ninguém mais pudesse acarretar com a culpa ou sentir que cometera uma traição.

Mas agora não havia nada a fazer a não ser ficar quieto e rezar, à espera de ser chamado para agir. Cadfael sentou-se a um canto do aposento e ficou a ver o velho a dormitar, e o ferido a afastar-se para algo muito mais profundo do que o sono. Ainda estava ali sentado, imóvel, quando ouviu o som das trombetas a chamar a atenção das forças invasoras para as bandeiras brancas a esvoaçar das torres de La Musarderie à primeira claridade da madrugada.

FitzGilbert chegou a cavalo da aldeia, cerimoniosamente acompanhado, e falou com Guy Camville em frente do portão. O irmão Cadfael tinha saído para a praça para ouvir os termos da conversa e não ficou surpreendido quando as primeiras palavras que o marechal proferiu, num tom brusco e urgente, foram:

- Onde está Philip FitzRobert? - Era óbvio que tinha recebido ordens.

-O meu senhor-disse Camville da muralha por cima do portão - está ferido e autorizou-me a negociar convosco a rendição do castelo. Peço-vos que trateis a guarnição com justeza e honra. Com condições razoáveis, La Musarderie será entregue à imperatriz, mas nós não estamos tão aflitos que aceitemos um tratamento vergonhoso ou pouco generoso. Temos feridos e temos mortos. Peço que tenhamos tréguas a partir deste momento. Nós abrir-vos-emos os portões agora, para que possais ver que estamos dispostos a cumprir as tréguas e a pousar todas as armas. Se achardes que estamos a agir de boa fé, concedei-nos a manhã até ao meio-dia para podermos restaurar alguma ordem aqui dentro, tratar dos nossos feridos e levar os nossos mortos para o exterior, a fim de serem sepultados.

- Até agora, os pedidos são justos - disse o marechal num tom, brusco. - E depois?

- Não somos nós os atacantes - disse Camville, igualmente ríspido - e combatemos de acordo com o nosso juramento de lealdade, como devem fazer os homens que juraram fidelidade. Eu peço que seja permitida à guarnição marchar para o exterior ao meio-dia e partir sem qualquer impedimento, e que possamos levar connosco todos os feridos que estejam em condições de suportar a marcha. Quanto àqueles que têm ferimentos mais graves, peço que sejam tratados o melhor possível, e nós sepultaremos os nossos mortos.

- E se as vossas condições não nos agradarem? - perguntou FitzGilbert. Mas, pelo tom complacente da sua voz, era óbvio que ele estava satisfeito por obter, sem grande esforço nem perda de tempo, tudo o que o exército da imperatriz viera conquistar. Os soldados ali dentro teriam sido apenas mais algumas bocas para alimentar, e um risco constante se as coisas corressem mal. Era uma satisfação vê-los partir.

- Nesse caso, voltareis para trás de mãos a abanar - disse Camville ousadamente -, que nós lutaremos até ao último homem e até à última seta, e far-vos-emos pagar caro por uma ruína que poderíeis ter recebido intacta se tivésseis decidido bem.

- Deixareis cá todas as vossas armas - disse o marechal -, até mesmo as armas pessoais. E deixareis todas as máquinas intactas.

Camville, encorajado por aquela indicação de assentimento, fez uma objecção simbólica que não era para ser tomada a sério, e retirou-a quando ela foi rejeitada.

- Muito bem, partiremos desarmados.

- Até agora, tudo bem! Permitiremos a vossa retirada. Todos excepto um. Philip FitzRobert fica cá.

- Eu acho que concordastes, meu senhor - disse Camville - que os feridos que não podem ir connosco serão tratados adequadamente. Julgo que não abrireis excepções? Eu disse-vos que o meu senhor está ferido.

- No caso de FitzRobert, não dei quaisquer garantias - disse o marechal, picado. - Ou o entregam incondicionalmente à imperatriz, ou não haverá acordo.

- Nesse caso - disse Camville -, já recebi instruções do meu senhor Philip, e é em obediência às ordens dele, e não às vossas, FitzGilbert, que o deixo aqui à vossa mercê.

Durante um longo momento, fez-se um demorado silêncio. Mas o marechal já tinha uma grande experiência de adaptação aos embaraços endémicos da guerra civil.

- Muito bem! Confirmarei as tréguas, tal como já ordenei uma pausa na acção. Estejam prontos para marchar para o exterior ao meio-dia, e podereis partir sem quaisquer impedimentos. Mas eu vou colocar um grupo de sentinelas no exterior dos portões até ao meio-dia, altura em que entraremos oficialmente, e elas vigiarão tudo e todos os homens que levarem convosco. Eles assegurar-se-ão de que cumpris as condições estabelecidas.

- Eu cumpro os meus acordos - disse Camville secamente.

- Nesse caso, não voltaremos a atacar. Agora abri-me o portão, deixai-me ver em que estado vão deixar as coisas aí dentro.

O que ele queria dizer, calculou Cadfael, era que ele queria ver se Philip estava ferido e impossibilitado de se mover, e não iria escapar-se por entre os dedos da imperatriz. Cadfael compreendeu a insinuação e voltou apressadamente para o quarto, para lá estar quando FitzGilbert chegasse, o que ele fez muito prontamente. Quando Camville e o marechal entraram, o padre e o monge estavam junto da cama, um de cada lado. A respiração pouco profunda de Philip tinha começado a provocar um som áspero na garganta e no peito. Os olhos ainda estavam fechados, e as pálpebras arqueadas tinham uma palidez de alabastro.

FitzGilbert aproximou-se e ficou a olhar para o rosto de Philip durante bastante tempo. Cadfael não conseguiu determinar se o seu sentimento era de satisfação ou de pena. Depois, num tom de indiferença, disse:

- Bem... - e, encolhendo os ombros, deu abruptamente meia volta. Ouviram os seus passos a ecoar ao longo dos corredores de pedra, até à praça. Ele partiu seguro de que o inimigo principal da imperatriz não conseguia sequer erguer uma mão para afastar o nó da forca, quanto mais levantar-se da cama e partir a cavalo para longe da sua vingança.

Depois da partida do marechal e de as trombetas terem parado de trocar os seus sinais peremptórios através do campo que separava os dois exércitos, Cadfael respirou fundo e virou-se para o capelão de Philip.

- As coisas já não poderão piorar. Terminou. O padre esteve de vigia toda a noite. Vá descansar. Eu ficarei com ele agora.

 

Sozinho com Philip, Cadfael procurou cobertores de lã na arca e no armário para proteger o seu doente do frio e da oscilação das estradas, e embrulhou-o num lençol, com apenas um pedaço de tecido fino a tapar-lhe o rosto, para ele ter ar. Mais um morto pronto para ser sepultado; e agora, a única coisa que faltava fazer era levá-lo para a capela para junto dos outros, ou colocá-lo entre os primeiros a serem deitados na erva, no exterior, onde vários soldados estavam a cavar uma vala comum. Era difícil saber qual das opções era a mais arriscada. Cadfael tinha fechado a porta à chave enquanto fazia os seus preparativos e hesitava em abri-la tão cedo, mas do interior ele não conseguia saber o que se passava. Nessa altura, já deviam estar a meio da manhã, e a guarnição estaria a preparar-se para a retirada. E FitzGilbert, na sua rápida visita para avaliar os danos no interior do castelo, devia ter tomado nota do estado perigoso de uma das torres e iria trazer rapidamente pedreiros para tornar as paredes seguras, mesmo que fosse necessário aguardar pelas reparações mais completas.

Cadfael deu a volta à chave e abriu a porta o suficiente para espreitar pelo corredor. Dois jovens da guarnição passaram por ele em direcção à porta exterior da torre de menagem transportando uma das compridas portadas das janelas que davam para o interior, com um corpo amortalhado estendido sobre ela. Já tinha começado, e rapidamente. Os carregadores já não usavam armas, pois as armas já estavam todas empilhadas na armaria, mas pelo menos as suas vidas estavam seguras. Eles tratavam os homens menos afortunados com respeito e tristeza. E, depois daquele par, surgiu um dos oficiais da guarda do marechal a conversar, num tom autoritário e volúvel, com um operário obviamente oriundo da aldeia, vestido com um gibão de cabedal.

-Vão precisar de colocar suportes de madeira debaixo daquela parede assim que eu puder trazê-los para cá - estava ele a dizer quando passaram. - A pedra pode esperar. Mantenha os seus homens afastados do local por onde entrou, que à tarde eu terei os meus rapazes aqui com suportes.

Quando ele passou, o vento cheirava a madeira; havia muita madeira à volta de Greenhamsted. A cantaria oscilante da torre danificada, tanto da parede interior como da exterior, em breve estaria novamente estável, à espera dos pedreiros. E, pelo som, pensou Cadfael, é melhor eu ir até lá antes de eles chegarem, pois algures no meio dos detritos poderá haver uma capa com a águia imperial no ombro, e aquilo de que eu menos preciso neste momento é de ter os oficiais da imperatriz a fazer demasiadas perguntas. É verdade que a capa poderia ter pertencido a um dos sitiantes que tivesse conseguido penetrar no interior, mas era pouco provável que ele estivesse a manejar o aríete com a capa a estorvá-lo. Quanto menos um homem se puser a questionar, melhor.

De momento, porém, o problema dele estava ali, e ele precisava de outro par de mãos, e precisava delas naquele momento, antes que aparecessem mais testemunhas. O oficial tinha acompanhado o mestre construtor até à porta da torre de menagem. Cadfael ouviu-o regressar e saiu para o corredor, deixando a porta aberta atrás de si. O seu hábito dava-lhe, de qualquer modo, uma espécie de direito de tratar dos mortos e, possivelmente, de pedir ajuda no trabalho.

- Sir, por favor - disse ele educadamente -, importa-se de me dar uma ajuda com mais um aqui? Não conseguimos levá-lo para a capela.

O oficial tinha cerca de cinquenta anos, sendo suficientemente velho para ser tolerante para com irmãos beneditinos, e suficientemente amável para conceder alguns minutos do seu tempo quando tinha pouco trabalho para fazer a não ser ver os outros trabalhar, e satisfeito por não ter que combater mais por causa de La Musarderie. Ele olhou para Cadfael, espreitou sem curiosidade pela porta aberta e encolheu os ombros. O quarto era suficientemente espartano e suficientemente frio para não ser identificado, à primeira vista, como o aposento do castelão. Na visita que fizera ao salão e aos alojamentos, ele tinha visto outros mais ricos e mais confortáveis.

- Diga uma oração por um soldado decente - disse ele -, que eu sou o homem de quem precisa, irmão. Se eu alguma vez precisar, espero que alguém faça o mesmo por mim.

- Ámen! - disse Cadfael. - E eu não me esquecerei de si no próximo serviço religioso. - E isso era verdade, tendo em conta o que ele estava a pedir.

Assim, foi um dos homens da imperatriz que se aproximou da cabeceira da cama e se inclinou para pegar no corpo ligado pelos ombros. E, durante todo esse tempo, Philip permanecia deitado como se estivesse realmente morto e, por mais que tentasse resistir ao pensamento, Cadfael não podia deixar de reflectir que ele talvez morresse antes de sair de dentro daquelas muralhas. A imobilidade de um corpo que perdeu os sentidos e em que apenas um fio de respiração assinala a fronteira que ainda não foi atravessada assemelha-se muito à imobilidade que ocorre depois de a alma ter abandonado o corpo. Este pensamento provocou nele uma estranha dor pessoal, como se fosse ele e não Robert de Gloucester quem tivesse perdido um filho; mas ele afastou o pensamento e recusou-se a acreditar nisso.

- Leve também a enxerga - disse ele. - Iremos buscá-la mais tarde se puder ser utilizada, mas ele sangrou, e não há falta de palha.

O homem levantou o seu lado do catre com tanta leveza como se estivessem a transportar uma criança. Cadfael pegou na parte dos pés, e eles saíram para o corredor, por um momento segurando na enxerga apenas com uma mão enquanto ele fechava a porta. Que Deus não permitisse que fossem descobertos acidentalmente demasiado cedo! Mas demorar algum tempo a fechar à chave um quarto vazio seria motivo para uma suspeita imediata.

Atravessaram a praça movimentada e saíram pela casa do portão para a luz cinzenta de Dezembro; a sentinela no exterior deixou-os passar com um ar de indiferença. Eles não estavam interessados nos mortos; só estavam ali para garantir que, quando a guarnição partisse, esta não levasse consigo quaisquer armas ou equipamento de valor, e talvez para se certificar de que Philip FitzRobert não se fazia passar por um dos feridos. A pouca distância da estrada havia um local plano onde estava a ser aberta a vala comum e, ao lado, o terreno em que estavam a ser colocados os mortos, lado a lado.

Entre o local em que aquela triste actividade se desenrolava e a orla do bosque, vários habitantes da aldeia, talvez até vindos de mais longe, tinham-se reunido para observar o que se passava, curiosos mas distantes. Os homens comuns não sentiam grande amor por qualquer das facções, mas, para já, o perigo já tinha passado. Talvez um Musard ainda voltasse a Greenhamsted. Quatro gerações tinham tornado a família aceitável aos olhos dos vizinhos.

Uma carroça puxada por dois cavalos subiu a encosta, vinda do vale do rio, e seguiu ao longo da estrada, na direcção da casa do portão. O condutor era um homem entroncado, de barba, com cerca de cinquenta anos, com uma capa escura de tecido grosseiro e um capuz verde, mas todas as cores estavam levemente desbotadas e enfarinhadas devido ao facto de ter passado longos anos a moer cereais. O rapaz atrás dele, um jovem alto com calças e meias do campo, tinha um pedaço de serapilheira à volta dos ombros e a extremidade aberta de uma saca por cima da cabeça. Cadfael viu-os aproximar-se e deu graças a Deus.

Ao ver o trabalho que estava a decorrer no prado, a fila de corpos amortalhados, o último de quais acabara de ser colocado ao lado dos outros, e o capelão a caminhar aos tropeções, com um ar triste e desconsolado, atrás dele, o condutor da carroça ignorou as sentinelas ao portão, fez os cavalos dar meia volta e dirigiu-se directamente para o local da sepultura. Ali, ele desceu rapidamente da carroça; o rapaz desceu atrás dele e ficou à espera com os cavalos. Foi a Cadfael que o moleiro se dirigiu, numa voz suficientemente alta para chegar também aos ouvidos do capelão.

- Irmão, havia um sobrinho meu a servir aqui sob as ordens de Camville, e eu gostaria de saber como ele está, por causa da mãe. Ouvimos dizer que havia mortos e muitos mais feridos. Posso saber notícias dele?

Ele tinha baixado a voz e aproximara-se. O seu rosto parecia de pedra e não denunciava qualquer emoção.

- Antes de prosseguir, afaste da sua mente o pior - disse Cadfael fitando os olhos astutos sem qualquer cor definida, mas vivos e inteligentes. O capelão estava parado a alguma distância, a conversar com o oficial da guarda de FitzGilbert. - Percorra a fila comigo e certifique-se de que nenhum destes aqui é o seu homem. E vá devagar - disse Cadfael em voz baixa. Qualquer pressa poderia denunciá-los. Percorreram a fila juntos, falando em voz baixa, baixando-se aqui e ali para destapar muito rapidamente um rosto e, em cada uma das vezes, o moleiro abanou a cabeça.

- Eu já não o vejo há algum tempo, mas hei-de reconhecê-lo.

- Ele falava descontraidamente, inventando um familiar não tão longe da verdade, não tão próximo que fosse uma perda irreparável ou profundamente chorado, mas, mesmo assim, ligado a ele por laços de sangue, não devendo, portanto, ser abandonado.

- Ele tem trinta anos, é moreno, um homem que maneja bem um varapau ou um arco. Também não é pessoa para fugir à luta. Ele estaria bem no meio dela, ao pé dos melhores.

Tinham chegado à enxerga de palha em que Philip estava deitado, tão quieto e calado que, por um momento, o coração de Cadfael teve dúvidas, depois apercebeu-se gradualmente do estremecimento súbito e do som da respiração.

- Ele está aqui!

O moleiro tinha reconhecido, não o homem, mas sim o momento. Ele parou, tenso, recuando um passo, depois inclinou-se rapidamente, com Cadfael a encobrir o logro, e fingiu puxar para trás o tecido que tapava o rosto de Philip, mas sem lhe tocar. Ficou nessa posição, inclinado sobre o corpo, durante um longo momento, como se quisesse ter a certeza, antes de voltar a erguer-se lentamente e dizer claramente:

- É ele! Este é o filho da nossa Nan.

Engenhoso, parecendo quase tão exasperado como triste, e resignando-se rapidamente, devido à longa experiência de um país a viver em desordem, em que a morte surgia inesperadamente e escolhia e levava as suas presas a seu bel-prazer.

- Eu devia ter sabido que ele nunca chegaria a velho. Nunca foi pessoa para se afastar dos sítios em que o fogo era mais quente. Bem, o que é que se há-de fazer? Não é possível trazê-los de volta.

O coveiro mais próximo tinha-se endireitado para descansar um pouco e olhou-o com um ar de compaixão.

- É duro para um homem encontrar os seus familiares assim. Gostaria de o levar consigo para o sepultar ao pé dos seus antepassados? Eles talvez o permitam. É melhor do que enterrá-lo no meio destes todos, sem sequer um nome.

A sua conversa semi-audível tinha despertado a atenção das sentinelas. O seu oficial estava a olhar na direcção deles e, dentro de pouco tempo, pensou Cadfael, talvez fosse ter com eles. Era melhor anteciparem-se, aproximando-se dele com toda a história pronta.

- Se é esse o seu desejo, eu peço-lhe - prontificou-se ele. - Tomar conta do pobre rapaz seria um gesto cristão. - E ele começou a andar com um passo decidido na direcção do portão, com o moleiro atrás de si. Ao vê-los aproximar-se, o oficial parou e ficou à espera.

- Sir - disse Cadfael -, este é o moleiro de Winstone, do outro lado do rio, que encontrou um familiar, o filho da sua irmã, entre os nossos mortos, e que pede autorização para levar o corpo do rapaz, a fim de ser sepultado entre os seus.

- Ai é?-A sentinela olhou o peticionário de cima a baixo, mas num relance muito rápido, perdendo o interesse por um incidente tão comum. Ele reflectiu por um momento e encolheu os ombros. - Porque não? Um a mais ou a menos... Era bom que conseguíssemos tirá-los todos daqui de uma vez. Sim, levem o rapaz. Aqui ou em qualquer outro lugar, ele nunca mais vai voltar a derramar sangue.

O moleiro de Winstone levou a mão à testa com um ar muito respeitoso e agradeceu apropriadamente. Se havia um tom infinitesimal de ironia na sua gratidão, ninguém reparou. Ele voltou, imperturbável, para a sua carroça. O jovem alto coberto de serapilheira tinha trazido a carroça para mais perto. Pegaram os dois na enxerga em que Philip estava deitado e, bem à vista das sentinelas do marechal, colocaram-na cuidadosamente na carroça. Cadfael, que entretanto segurava nas rédeas dos cavalos, ergueu a vista apenas uma vez para a sombra do capuz de serapilheira que o jovem usava e para os profundos olhos pretos, dourados à volta das pupilas, que o olharam com afecto e alegria, prometendo êxito. Não foram proferidas quaisquer palavras. Olivier sentou-se na carroça e apoiou a cabeceira da enxerga fina nos seus joelhos. E o moleiro de Winstone subiu também e virou os cavalos na direcção do rio, desceu a encosta verde sem olhar para trás, sem se apressar, o retrato de um homem decente que tinha cumprido um dever inevitável e que não tinha que se justificar perante ninguém.

Ao meio-dia, FitzGilbert apareceu ao portão, seguido por uma companhia, para ver a guarnição marchar para o exterior e abandonar La Musarderie. Eles tinham colocado alguns feridos a cavalo, aqueles que conseguiam montar mas não conseguiriam manter a marcha durante muito tempo, e posto os restantes nas carroças que possuíam, e puseram estas no meio da companhia, de modo a terem homens saudáveis em ambos os flancos, em caso de necessidade. Cadfael tinha pensado a tempo em estabelecer a posse do belo ruano castanho que Hugh lhe emprestara e que ficara dentro dos estábulos para manter a sua reivindicação, para o caso de lhe fazerem perguntas. Hugh cortar-me-ia uma das orelhas se eu permitisse que o levassem mesmo debaixo do meu nariz. Assim, só ao fim da tarde, quando a retaguarda estava a passar pelos vencedores que os observavam, é que ele presenciou a retirada de La Musarderie.

À medida que passavam, todas as fileiras eram atentamente vigiadas de ambos os lados, e as carroças eram obrigadas a parar para serem revistadas, à procura de arcos, espadas e lanças escondidas, mas Camville, com uma expressão de desagrado pela desconfiança, observava sem fazer qualquer comentário, e só protestava quando alguns dos feridos eram tratados com demasiada aspereza para o seu gosto. Quando tudo terminou, ele conduziu a sua guarnição para leste, atravessou o rio e Winstone até à estrada romana, dirigindo-se, muito provavelmente, para Cricklade, que estava seguro de uma ameaça imediata e era o centro de um círculo de outros castelos em posse do rei, Bampton, Faringdon, Purton e Malmesbury, pelos quais os seus guerreiros e feridos poderiam ser confortavelmente distribuídos. Olivier e o moleiro de Winstone tinham seguido o mesmo caminho, mas não tinham um longo caminho a percorrer, talvez umas doze milhas.

E agora Cadfael ainda tinha coisas a fazer. Ele só poderia partir depois de os restantes feridos, demasiado fracos ou doentes para ir com os seus camaradas, serem entregues aos cuidados do marechal. Cadfael também achava que não devia partir antes de o pior da ira da imperatriz ter passado, e de ninguém ali correr o risco de morrer em retribuição pela morte que lhe fora roubada.

Daí a minutos todas as suas companhias principais estariam a entrar. Elas encheriam os estábulos e os aposentos praticamente vazios, apoderar-se-iam do seu trofeu de armas e instalar-se-iam no castelo. Cadfael voltou para a praça antes deles. Passando cautelosamente por entre pedras e detritos das muralhas, ele encontrou a capa dobrada enfiada num buraco da cantaria, para onde Olivier a tinha atirado no momento antes de sair para a noite, para o meio dos sitiantes. A divisa da águia imperial ainda estava presa ao ombro. Cadfael enrolou-a e levou-a consigo para a sua cela. Quase lhe parecia que ela continha ainda um vestígio do calor do corpo de Olivier.

Antes de escurecer já todos eles tinham entrado, todos excepto a casa pessoal da imperatriz, e os seus criados já estavam ocupados com tapeçarias e almofadas, a fim de tornar os aposentos menos espartanos e mais apropriados para uma dama imperial. O salão já estava novamente habitável e tinha o mesmo aspecto de sempre, e os cozinheiros e os criados dedicavam-se a alimentar e alojar uma guarnição, tão filosoficamente como tinham feito com a outra. A torre danificada tinha sido segura com pontaletes de madeira, e fora lá colocada uma sentinela para impedir os incautos de ali entrarem, arriscando-se a perder a vida.

E ainda ninguém abrira a porta do quarto de Philip e vira que estava vazio. Nem ninguém tinha tido tempo para comentar que o hóspede beneditino que fora visto sentado junto do homem ferido tinha andado pela praça e estado no cemitério durante as últimas três horas, o mesmo sucedendo com o capelão.

Até esse momento, tinham estado todos demasiado ocupados para se interrogarem sobre quem estava junto dele durante a ausência de Cadfael e do capelão. Era uma questão em que Cadfael ainda não pensara, e agora que o assunto mais urgente tinha sido resolvido, ocorreu-lhe que, por consideração pelos restantes membros da casa de Philip, teria que ser ele a efectuar a descoberta. Mas de preferência com uma testemunha.

Quase uma hora antes das Vésperas, dirigiu-se às cozinhas e solicitou um pouco de vinho e um balde de cabedal com água quente para o seu enfermo, e pediu a ajuda de um moço de cozinha para levar o pesado balde. Atravessaram a praça e entraram na torre de menagem.

- Quando saí de perto dele, há algumas horas, para ir ao cemitério - disse ele quando entraram no corredor -, ele estava com febre. Talvez consigamos fazê-la baixar se o lavarmos e lhe dermos um pouco de vinho. Podes dispensar-me alguns minutos para ajudar a levantá-lo e virá-lo?

O moço de cozinha, um jovem gigante possuidor de uma enorme cabeleira, com a boca firmemente fechada e o rosto igualmente pouco comunicativo, desconhecendo e não tendo ainda testado o poder dos novos senhores, olhou de lado, por cima do ombro, para Cadfael, fez um juízo inteligente do que viu e murmurou distintamente por entre lábios imóveis:

- Se lhe quer bem, irmão, é melhor deixá-lo ir.

- Como tu lhe queres? - perguntou Cadfael de um modo semelhante. Era uma pequena habilidade que por vezes era útil.

Não houve resposta, mas ele não precisava nem estava à espera de nenhuma. - Coragem! Quando chegar a altura, conta o que viste. Chegaram à porta do quarto vazio. Cadfael abriu-a, com o jarro de vinho na mão. Até mesmo na obscuridade se via a cama desarrumada e vazia, as cobertas caídas desordenadamente, o quarto sombrio e espartano. Cadfael esteve tentado a deixar cair o jarro num convincente gesto de espanto e alarme, mas pensou que, de um modo geral, os irmãos beneditinos não reagem a crises súbitas deixando cair coisas, muito menos jarros de vinho e, além disso, ele tinha confiança suficiente no seu companheiro ocasional para não ter necessidade de fingir. Entre os criados de Philip, havia certamente alguns que se alegrariam com a sua libertação.

Por conseguinte, nenhum deles soltou qualquer exclamação. Pelo contrário, ficaram calados e satisfeitos. O olhar que trocaram foi eloquente, mas não se atreveram a proferir quaisquer palavras, não fossem ouvidos inconvenientes passar perto.

- Vem! - disse Cadfael, com energia. - Temos que relatar isto. Traz o balde - acrescentou ele num tom autoritário. - São os pormenores que fazem com que a história pareça verdadeira.

Ele foi à frente, num passo apressado, com o jarro de vinho na mão e o moço da cozinha a galopar atrás, entornando a água do balde a cada passo. À porta do salão, Cadfael quase correu para os braços de um dos cavaleiros de Bohun e contou a notícia, ofegante.

- O senhor marechal... ele está? Preciso de falar com ele. Viemos agora mesmo do quarto de FitzRobert. Ele não está lá. A cama está vazia, e o homem desapareceu.

Perante o marechal, o administrador e meia dúzia de condes e barões reunidos no salão, era uma história impressionante que provocou um satisfatório alvoroço de fúria, exasperação e desconfiança; satisfatório porque também era inútil. Cadfael mostrou-se loquaz e desanimado, e o moço de cozinha teve senso suficiente para apresentar um retrato de idiota consternação.

- Meus senhores, eu deixei-o antes do meio-dia para ir ajudar o capelão com os mortos. Eu só estou aqui por acaso, pois tinha pedido alojamento por algumas noites, mas possuo alguns conhecimentos de medicina e estava disposto a tratar dele e a medicá-lo o melhor que podia. Quando o deixei, ele ainda se encontrava inconsciente, tal como estivera a maior parte do tempo desde que foi ferido. Eu pensei que era seguro deixá-lo sozinho. Bem, meu senhor, vistes por vós próprio esta manhã... Mas quando voltei para junto dele... - Ele abanou a cabeça num gesto de incredulidade. - Mas como podia ter acontecido? Ele estava profundamente inconsciente. Fui à despensa buscar vinho, bem como água quente para o lavar, e pedi a este rapaz que me fosse dar uma ajuda a levantá-lo. E ele desapareceu! Ele não conseguia sequer levantar-se sozinho, juro. Mas ele desapareceu. Este homem dir-vos-á.

O moço de cozinha acenou a cabeça em sinal afirmativo durante tanto tempo e com tanto vigor que o seu cabelo lhe caiu sobre o rosto.

- É a pura verdade, sire! A cama está vazia, o quarto está vazio. Ele desapareceu.

- Mandai verificar por vós próprio, meu senhor - disse Cadfael. - Não há qualquer engano.

- Desapareceu! - explodiu o marechal. - Como é que ele pode ter desaparecido? A porta não ficou fechada à chave quando saiu de perto dele? Não ficou ninguém a vigiá-lo?

- Meu senhor, eu não vi motivo para tal - disse Cadfael, ofendido. - Já vos disse que ele não se conseguia mexer. E eu não sou criado da casa e não tinha recebido quaisquer ordens, o meu papel foi voluntário e tinha como intenção a cura.

- Ninguém põe isso em dúvida, irmão - disse o marechal secamente -, mas certamente que houve alguma falha nos seus cuidados se o deixou sozinho durante algumas horas. E no seu talento como médico, se julgou que alguém tão activo estava mortalmente doente e incapaz de se mexer.

- Podeis perguntar ao capelão - disse Cadfael. - Ele dir-vos-á o mesmo. O homem estava inconsciente e à beira da morte.

- E sem dúvida que o irmão acredita em milagres - disse Bohun, num tom de desdém.

- Isso eu não vou negar. E tenho bons motivos para o fazer. Podeis todos reflectir sobre isso - concordou Cadfael, solícito.

- Vá perguntar à sentinela do portão - ordenou o marechal, dirigindo-se abruptamente a um dos seus oficiais - se algum homem parecido com FitzRobert saiu por lá no meio dos feridos.

- Não passou nenhum - disse Bohun num tom de certeza mas, mesmo assim, mandou três dos seus homens confirmar a rigorosidade da vigilância.

- Venha comigo, irmão. Vamos ver o milagre. - E ele começou a atravessar a praça, seguido por uma cauda de cometa formada por subordinados ansiosos e, atrás deles, Cadfael e o moço de cozinha, agora com o balde praticamente vazio.

A porta estava escancarada, tal como a tinham deixado, e o quarto era tão modesto e espartano que mal era necessário passar a ombreira da porta para ver que não havia ninguém lá dentro. A pilha de cobertores disfarçava o facto de a enxerga de palha ter sido removida, e ninguém se deu ao trabalho de mexer nos cobertores em desordem, pois era óbvio que o que quer que estivesse por baixo deles não era seguramente o corpo de um homem.

- Ele não pode estar longe - disse o marechal, dando meia volta com um ar tão ameaçador como se tivesse encontrado uma prova. - Ainda deve estar cá dentro, não pode ter passado ninguém pelas sentinelas. Expulsaremos todos os ratos de todos os cantos deste castelo, mas havemos de o encontrar. - E, ao fim de poucos minutos, todos os que o rodeavam tinham já dispersado em todas as direcções. Cadfael e o moço de cozinha trocaram um olhar que continha a sua própria eloquência, mas não se atreveram a falar. O moço de cozinha, exteriormente impassível mas satisfeito interiormente, partiu sem pressa para a cozinha, e Cadfael, sentindo-se aliviado, liberto da tensão, recordou-se das Vésperas e refugiou-se na capela.

A busca de Philip foi efectuada com todo o vigor e minuciosidade que o marechal ordenara e, no entanto, quando ela terminou, Cadfael não conseguiu deixar de perguntar a si próprio se FitzGilbert não se sentia um tanto aliviado com o desaparecimento do prisioneiro. Não por pena de Philip, talvez nem sequer por não concordar com uma vingança tão feroz, mas porque ele tinha bom senso suficiente para compreender que o acto planeado teria redobrado e prolongado a matança e tornado a causa da imperatriz um anátema até mesmo para os que melhor a tinham servido. O marechal procedeu à busca com energia, até mesmo com aparente convicção; e, depois de ela ter terminado em fracasso, uma clemência inesperada, ele ainda tinha que dar a notícia à sua dama imperial nessa mesma noite, antes de ela fazer a sua majestosa entrada em La Musarderie. O pior do veneno dela ter-se-ia gasto naqueles que nem ela se atrevia a humilhar e destruir, antes de a imperatriz se encontrar no meio de pobres seres sacrificáveis e à sua mercê.

O cansado capelão de Philip oficiou as Vésperas aos tropeções, e Cadfael fez o possível por se concentrar na oração. Algures entre aquele local e Cirencester, talvez já em segurança na abadia agostiniana, Olivier deveria estar a tratar e a tomar conta do seu captor agora transformado em prisioneiro, amigo transformado em inimigo - independentemente do nome atribuído à relação entre eles, quanto mais ela se alterava, mais forte e inviolável se tornava. Desde que permanecessem em contacto, cada um deles protegeria o outro contra o mundo, mesmo que não conseguissem compreender-se um ao outro.

Eu também não compreendo, pensou Cadfael, mas não preciso de o fazer. Eu confio, respeito e amo. No entanto, eu abandonei e deixei para trás aquilo em que mais confio, que mais respeito e amo, e não sei se alguma vez poderei voltar para lá. A tentativa é tudo. O meu filho está livre, inteiro, nas mãos de Deus, eu libertei-o, e ele libertou o seu amigo, e são eles que têm que reparar a ruptura que permanece entre eles. Não precisam de mim. E eu tenho necessidades, oh, meu Deus, restam-me poucos anos, e a minha dívida cresceu, transformando-se de uma colina numa montanha, e o meu coração quer voltar para casa.

- Que as nossas abstinências sejam aceitáveis para vós, Senhor, suplicamo-Vos: e, através da expiação dos nossos pecados, tornai-nos merecedores da Vossa graça...

Sim, ámen! Afinal de contas, a longa viagem até cá foi abençoada. Se a longa viagem de regresso a casa for cansativa e terminar em rejeição, será que devo criticar o preço?

A imperatriz entrou em La Musarderie no dia seguinte, taciturna e extremamente mal disposta, embora, nessa altura, ela já se tivesse controlado. A testa franzida desanuviou-se um pouco quando ela viu o trofeu que tinha ganho, após o que se dispôs, com relutância, a ignorar o que tinha perdido.

Cadfael viu-a chegar e admitiu que ela, a cavalo ou a pé, era uma figura régia. Mesmo zangada, tinha uma beleza duradoura, alta e autoritária. Quando decidia encantar, ela podia ser irresistível, como fora para muitos rapazes como Yves, até sentirem o aguilhão do seu aço.

Ela chegou magnificamente vestida, montada num cavalo nobre, com uma companhia atrás de si e cavaleiros a flanquearem-na, bem como às mulheres da sua corte. Cadfael lembrou-se das duas damas de companhia que tinham estado com ela em Coventry e tinham permanecido junto dela em Gloucester. A mais velha, com cerca de sessenta anos e viúva há muito tempo, era uma mulher alta, elegante, com vestígios de uma graciosidade juvenil que tinha perdurado muito para além da sua plenitude, mas estava agora a ficar um pouco angular e magra, e o seu cabelo era quase branco. A rapariga Isabeau, sua sobrinha, apesar dos muitos anos que as separavam, era muito parecida com a tia, tão parecida que era provavelmente um retrato do que Jovetta de Montors tinha sido em nova. E era um retrato atraente e cheio de energia. Vários jovens atraentes tinham-na admirado em Coventry.

As mulheres pararam no pátio, e FitzGilbert e meia dúzia dos seus melhores homens disputaram a honra de as ajudar a descer da sela e de as acompanhar aos aposentos que tinham sido preparados para elas. La Musarderie tinha agora uma castelã no lugar do seu castelão.

E onde estava agora esse castelão, e como estava ele? Se Philip tivesse sobrevivido à viagem, certamente que viveria. E Olivier. Enquanto houvesse dúvidas, Olivier não sairia de perto dele.

Entretanto, ali estava Yves a desmontar e a conduzir o seu cavalo para os estábulos; assim que estivesse livre, ele iria à procura de Cadfael. Havia notícias a comunicar, e Yves estava ansioso por conhecê-las.

Sentaram-se os dois na cama estreita da cela de Cadfael, como já tinham feito antes, contando um ao outro tudo o que tinha acontecido desde que se tinham separado ao lado dos ramos da videira, com a sentinela a menos de vinte metros.

- Eu ouvi dizer ontem, claro - disse Yves, corado de espanto e entusiasmo -, que Philip tinha desaparecido, que se tinha evaporado como a névoa. Mas como foi isso possível? Se ele estava tão gravemente ferido e não se conseguia ter de pé...? Ela foi poupada a romper com o conde, e... e pior ainda... Salvou-se muita coisa. Mas como? - Ele era um tanto incoerente na sua gratidão por tais bênçãos, mas ficou sério quando começou a falar de Olivier. - E, Cadfael, o que aconteceu a Olivier? Eu estava à espera de o ver entre os outros no salão. Perguntei ao administrador de Bohun pelos prisioneiros, e ele respondeu que não havia prisioneiros nenhuns. Onde é que ele poderá estar? Philip disse-nos que ele estava cá.

- E Philip não mente - disse Cadfael, repetindo o que era claramente um artigo de fé entre os que conheciam Philip, até mesmo os seus inimigos. - Não, é verdade, ele não mente. Ele disse-nos a verdade. Olivier estava cá, no fundo de uma das torres. E quanto a onde está ele agora, se tudo correu bem, e porque é que não havia de correr? (ele tem amigos nesta região!) ele deve estar agora em Cirencester, na abadia dos agostinhos.

- O irmão ajudou-o a libertar-se, antes mesmo da rendição? Mas, nesse caso, porque é que ele se foi embora? Porque é que havia de se ir embora quando FitzGilbert e a imperatriz já estavam perto do portão? A sua própria gente?

- Eu não o salvei - disse Cadfael pacientemente. - Quando ficou ferido e soube que talvez viesse a morrer, Philip pensou na sua guarnição e deu ordens a Camville para que conseguisse as melhores condições possíveis para eles, pelo menos vida e liberdade, e para que entregasse o castelo.

- Sabendo que não haveria misericórdia para ele próprio? - perguntou Yves.

- Sabendo o que ela tencionava fazer-lhe, como tu me disseste - disse Cadfael-e sabendo que, para lhe deitar a mão, ela deixaria partir todos os outros. Sim. Além disso, ele também pensou em Olivier. Deu-me as chaves e mandou-me libertá-lo. E foi o que eu fiz e, juntamente com Olivier, espero, enviei Philip FitzRobert em segurança para junto dos monges de Cirencester onde, com a graça de Deus, tenho esperança que ele recupere dos seus ferimentos.

- Mas como? Como é que conseguiu levá-lo para fora do portão, com as sentinelas já de guarda lá fora? E ele? Ele alguma vez consentiria nisso?

- Ele não teve qualquer opção - disse Cadfael. - Ele esteve consciente o tempo suficiente para oferecer a sua vida em troca das vidas dos seus homens. Ele estava profundamente inconsciente quando o amortalhei e levei para fora, no meio dos mortos. Oh, nessa altura não foi Olivier. Foi um dos homens do marechal que me ajudou a levá-lo. Olivier tinha-se escapado durante a noite, quando os sitiantes se afastaram, para ir buscar uma carroça ao moinho e, mesmo debaixo do nariz das sentinelas, ele e o moleiro de Winstone vieram reclamar o corpo de um familiar e foram autorizados a levá-lo.

- Quem me dera ter estado ao pé de si - disse Yves num tom reverente.

- Meu filho, ainda bem que não estavas. Tu já tinhas feito a tua parte, e eu dei graças a Deus por um de vós ter saído são e salvo deste jogo perigoso. Agora já não interessa, correu tudo bem e, se mandei Olivier embora, tenho-te a ti por hoje, pelo menos. Evitou-se o pior. Nesta vida, isso é muitas vezes o melhor que se pode dizer, e temos que o aceitar como sendo suficiente. - Ele sentiu-se subitamente muito cansado, mesmo naquele momento de libertação e alegria.

- Olivier vai voltar - disse Yves, feliz, ao seu lado - e Ermina está em Gloucester à espera dele e de si. Nessa altura, ela já deve estar no fim do tempo. O irmão poderá vir a ter outro afilhado. - Ele ainda não sabia que a criança seria ainda mais próxima do que isso, unida a eles por laços de sangue, bem como pelos da alma. - O irmão já veio tão longe, devia ir para casa connosco, ficar connosco alguns dias, num lugar onde é muito estimado. Que pecado há nisso?

Mas Cadfael abanou a cabeça, relutante mas resolutamente.

- Não, eu não posso fazer isso. Quando deixei Coventry, eu violei o meu voto de obediência ao meu abade, que já me tinha concedido uma graça generosa. Agora eu já fiz aquilo por que abandonei a minha vocação, com excepção talvez de uma pequena tarefa e, se demorar ainda mais tempo, trair-me-ei a mim próprio como já traí a minha Ordem, o meu abade e os meus irmãos. Certamente que um dia voltaremos a encontrar-nos todos. Mas eu tenho uma obrigação a cumprir e uma penitência a fazer. Amanhã, Yves, quer os portões de Shrewsbury se voltem a abrir para mim ou não, eu vou para casa.

 

À primeira luz do dia, Cadfael reuniu os seus poucos haveres e apresentou-se ao marechal. Num estabelecimento militar recentemente em disputa, era aconselhável comunicar a sua partida e poder invocar a autoridade do castelão no caso de alguém lhe fazer perguntas.

- Meu senhor, agora que o caminho está livre, eu tenho que voltar para a minha abadia. Eu tenho um cavalo cá, os cavalariços são testemunhas de que tenho direito a ele, embora ele pertença aos estábulos do castelo de Shrewsbury. Dais-me autorização para partir?

- À vontade - disse o marechal. - E que Deus o acompanhe. Tendo obtido a autorização, Cadfael fez a última visita à capela de La Musarderie. Ele encontrava-se muito longe do local em que ansiava por estar, e não havia qualquer certeza de viver até voltar a entrar lá de novo, pois ninguém pode saber o dia ou a hora em que a sua vida lhe será retirada. E mesmo que ele chegasse vivo até lá, talvez não fosse recebido. Pode não ser fácil voltar a unir o fio que nos une a um lugar, uma vez esticado ao ponto de se partir. Cadfael fez o seu pedido com humildade, se bem que não exactamente com resignação, e ficou de joelhos durante algum tempo com os olhos fechados, recordando coisas bem feitas e coisas menos bem feitas, mas lembrando com a maior gratidão e felicidade a imagem do seu filho disfarçado de rapaz do campo, a cuidar do seu inimigo dentro na carroça do moleiro. Abençoado paradoxo, pois eles não eram inimigos. Eles tinham feito tudo para o serem, mas não tinham conseguido manter a inimizade. Era melhor não sondar o insondável.

Estava a pôr-se de pé, um pouco dorido do ar frio e da dureza das lajes do chão, quando ouviu passos ligeiros à porta, e esta se abriu um pouco mais. A presença de mulheres no castelo já tinha provocado algumas alterações na decoração da capela, tais como a colocação de uma toalha de altar bordada e a adição de um genuflexório almofadado de verde para a imperatriz. Agora a sua dama de companhia entrou com um candelabro de prata em cada mão e estava a dirigir-se ao altar quando viu Cadfael. Ela cumprimentou-o inclinando ligeiramente a cabeça e sorriu. Tinha o cabelo coberto por uma rede de gaze que conferia um brilho prateado à grinalda já imaculada da sua própria prata.

-Bom dia, irmão-disse Jovetta de Montors, parando ao passar por ele e olhando-o mais atentamente. - Eu já vos vi antes, irmão, não vi? O irmão esteve na reunião de Coventry.

- Estive, sim, minha senhora - disse Cadfael.

- Eu lembro-me - disse ela com um suspiro. - Foi uma pena ela não resultar em nada. Foi algum assunto decorrente daquela reunião que vos trouxe tão longe de casa? Porque eu julgo ter-vos ouvido dizer que éreis da abadia de Shrewsbury.

- De certo modo, foi - respondeu Cadfael -, sim.

- E havei-lo resolvido? - Ela aproximou-se do altar, colocou os candelabros em ambas as extremidades, baixou-se para procurar velas para eles numa caixa junto da parede e uma mecha de enxofre para as acender com a chama de uma pequena lamparina que brilhava em frente da cruz central.

- Em parte - disse ele - sim, resolvi-o.

- Apenas em parte?

- Houve outra questão que não ficou resolvida, mas que agora é menos importante do que pensámos na altura. Deveis lembrar-vos do jovem que foi acusado de assassínio, em Coventry?

Ele aproximou-se mais dela, e ela virou para ele um rosto claro, pálido, com olhos azuis escuros grandes, directos.

- Sim, lembro-me. Ele já foi ilibado dessa suspeita. Eu falei com ele quando ele chegou a Gloucester, e contou-nos que Philip FitzRobert chegara à conclusão de que não fora ele e libertara-o. Fiquei contente. Eu pensei que estava tudo terminado quando a imperatriz conseguiu que ele saísse de lá em segurança, e só depois de chegarmos a Gloucester é que soube que Philip o capturara na estrada. Depois, ao fim de alguns dias, ele veio dar o alarme sobre este castelo. Eu sabia - disse ela - que ele não era culpado.

Ela colocou as velas nos candelabros e os candelabros em cima do altar, recuando um pouco com a cabeça inclinada para avaliar a distância a que estavam um do outro. A mecha de enxofre crepitou na pequena chama vermelha e ardeu, lançando uma luz brilhante sobre a mão esquerda magra raiada de veias. Ela acendeu cuidadosamente as velas e, com a mecha ainda na mão, ficou a ver as chamas crescer. No dedo indicador ela usava um anel com uma gravação funda. Embora a pedra negra fosse pequena, o desenho gravado brilhou à luz, em fino pormenor. A pequena salamandra no seu ninho de chamas estilizadas estava virada para o lado oposto mas, depois de se ter visto o seu complemento positivo, era inconfundível.

Cadfael não disse nada, mas ela ficou subitamente imóvel, não fazendo qualquer movimento para retirar o anel da luz que incidia sobre ele e fazia brilhar todas as suas linhas. Depois, ela virou-se para ele e o seu olhar seguiu o dele, depois pousou novamente no rosto de Cadfael.

- Eu sabia - disse ela de novo - que ele não era culpado. Não tinha qualquer dúvida. E penso que o irmão também não. Mas eu tinha motivos para isso. O que fez com que o irmão tivesse tanta certeza?

Ele repetiu, falando cautelosamente, todas as razões por que Brien de Soulis devia ter morrido às mãos de alguém que ele conhecia e em quem confiava, alguém que conseguiria aproximar-se dele sem levantar suspeitas, o que Yves Hugonin, depois da sua franca hostilidade, não poderia fazer. Alguém que não poderia representar uma ameaça, um homem em quem ele depositava total confiança.

- Ou uma mulher - disse Jovetta de Montors.

Ela disse-o num tom bastante suave e razoável, como se estivesse a propor uma possibilidade óbvia, mas sem insistência.

Ele nunca tinha pensado nisso. Naquela assembleia quase totalmente masculina, com apenas três mulheres presentes, e todas elas sob a cobertura de inviolabilidade da imperatriz, isso nunca lhe ocorrera. É verdade que a jovem estava certamente disposta a jogar um jogo arriscado com De Soulis, mas sem qualquer intenção de permitir que ele fosse demasiado longe. Cadfael duvidava que ela tivesse sequer marcado um encontro; e, no entanto...

- Oh, não - disse Jovetta de Montors -, não a Isabeau. Ela não sabe de nada. A única coisa que ela fez foi uma meia promessa... o suficiente para ele achar que valia a pena testá-la. Ela não tinha a mínima intenção de se encontrar com ele. Mas, na obscuridade e com um manto com capuz, não há grande diferença entre uma velha e uma jovem. Eu julgo - disse ela com simpatia e um sorriso, - que não vos estou a dizer nada que não saibais já. Mas eu não permitiria que o jovem sofresse.

- Só agora é que fiquei a saber isto - disse Cadfael -, podeis crer. Só agora, e devido a esse vosso brasão. O mesmo brasão que foi colocado na rendição de Faringdon, em nome de Geoffrey FitzClare. Que já estava morto. E agora De Soulis, que o tinha posto lá, que o matou para o pôr lá, também está morto, e Geoffrey FitzClare está vingado. - E, pensou ele, porque é que havia de remexer nas cinzas?

- Não me haveis perguntado - disse ela - o que era Geoffrey FitzClare para mim.

Cadfael não respondeu.

- Ele era meu filho - disse ela. - O meu único filho, nascido de uma ligação fora de um casamento sem filhos, e que eu perdi assim que ele nasceu. Foi há muito tempo, depois de o velho rei ter conquistado a Normandia e de se ter instalado lá, até o rei Luís ocupar o trono francês e a guerra ter recomeçado de novo. O rei Henrique passou lá mais de dois anos a defender a sua conquista, e as forças de Warrenne estiveram com ele. O meu marido era um homem de Warrenne. Dois anos longe! O amor não pede autorização, e eu sentia-me só, e Richard de Clare era amável. Quando chegou a altura, eu fui bem servida e secreta, e Richard portou-se bem para com os seus. Aubrey nunca soube, nem ninguém. Richard reconheceu o rapaz como seu e recebeu-o no seio da sua família. Mas Richard não estava vivo para vingar o filho, quando isso foi necessário. Coube-me a mim ocupar o seu lugar.

A sua voz era calma, não gabando nem defendendo o que fizera. E quando viu o olhar de Cadfael fixo na salamandra no seu banho de fogo, ela sorriu.

- Foi a única coisa que ele recebeu de mim. Veio dos antepassados do meu pai, mas tinha caído quase em desuso. Poucas pessoas o conhecem. Pedi a Richard que lho desse para que ele o usasse como o seu próprio sinete, e isso foi feito. Ele foi motivo de honra para ambos. O seu irmão Gilbert sempre pensou bem dele. Embora estivessem em lados opostos nesta triste contenda, eles eram bons amigos. Os Clare sepultaram Geoffrey como sendo um dos seus, e um homem estimado. Eles não sabem o que eu sei sobre o modo como ele morreu. Que vós irmão, suponho, também sabeis.

- Sim - disse Cadfael, fitando-a nos olhos -, eu sei.

- Então não há necessidade de explicar o que quer que seja - disse ela simplesmente, virando-se para endireitar uma vela no seu suporte e levar consigo a mexa de enxofre apagada. - Mas se alguém acusar o rapaz da morte desse homem, podeis falar.

- Senhora, dissestes - recordou-lhe Cadfael - que mais ninguém sabia. Nem sequer o vosso filho?

Por um momento, ela olhou para trás enquanto se dirigia à porta da capela, fitou-o com a profunda serenidade dos seus olhos e sorriu:

- Agora ele já sabe - disse ela.

Na capela de La Musarderie aqueles dois separaram-se, e certamente que nunca mais se viriam a encontrar.

Cadfael dirigiu-se ao estábulo e encontrou Yves, um tanto desolado, já a selar o ruano castanho, insistindo em acompanhar o seu amigo até ao baixio do rio. Não havia necessidade de se preocupar com Yves, a sombra mais escura tinha sido retirada de cima dele, restava apenas uma leve desilusão por não conseguir levar Cadfael para casa consigo, e o choque da decepção que o tornaria cauteloso com os favores da imperatriz durante algum tempo, mas não desviava a forte lealdade à causa dela. As contundentes complexidades que perturbam a maior parte dos seres humanos não eram para aquela corajosa simplicidade. Ele desceu a estrada ao lado do ruano, entrou no bosque que escondia o baixio, falou sobre Ermine, sobre Olivier e sobre a criança que ia nascer e, minuto a minuto, o seu estado de espírito foi-se desanuviando, ao pensar que em breve estariam novamente juntos.

- Ele pode já lá estar, antes mesmo de eu conseguir autorização para ir ter com ela. Ele está realmente bem? Não lhe aconteceu nada de mal?

-Não encontrarás qualquer alteração nele - prometeu Cadfael vigorosamente. - Ele está como sempre esteve e também não procurará ver qualquer mudança em ti. Entre nós três - disse ele, reconfortando-se a si próprio, mais do que ao rapaz -, talvez, afinal, não nos tenhamos saído muito mal.

Mas ele tinha à sua frente uma longa, longa viagem de regresso a casa.

No baixio, separaram-se. Yves esticou o pescoço, inclinando uma face macia, e Cadfael baixou-se para o beijar.

-Volta para trás agora, não fiques a ver-me partir. Haverá outras ocasiões.

Cadfael atravessou o baixio, subiu o trilho verde que atravessava o bosque no outro lado e seguiu para leste através da aldeia de Winstone, na direcção da grande estrada. Mas, quando lá chegou, não virou para a esquerda, para Tewkesbury e para as estradas que iam dar a casa, mas sim para a direita, na direcção de Cirencester. Ele tinha mais uma pequena tarefa a cumprir; ou talvez ele estivesse simplesmente a agarrar-se, através da esperança, à convicção de que algo de bom que excedesse todas as expectativas razoáveis e que servisse de justificação para o seu atraso pudesse ter emergido da sua apostasia.

Ele cavalgou ao longo da grande estrada do planalto de Cotswold, através de aguaceiros intermitentes e sob um céu baixo de chumbo, pouco convidativo a pensamentos alegres. As cores do Inverno, esbranquiçadas e esbatidas, cobriam a paisagem como um cobertor de névoa cinzenta. A viagem não proporcionava grande alegria, e havia poucas pessoas para saudar ao longo do caminho. Tanto os homens como os carneiros preferiam o abrigo da cabana e do redil.

Chegou a Cirencester ao fim da tarde, uma cidade que ele não conhecia, excepto pela sua reputação como uma cidade muito antiga em que os romanos tinham deixado os seus famosos vestígios e que, devido a um forte e astuto comércio de lã, tinha continuado independente e próspera desde então. Teve que parar para perguntar o caminho para a abadia agostiniana mas, quando a encontrou, não havia engano possível nem qualquer dúvida sobre a sua florescente situação. O velho rei Henrique tinha-a reconstruído sobre as ruínas de uma casa de cónegos seculares mais antiga mas muito pobremente dotada e a desfazer-se lentamente, mas os agostinhos tinham feito dela um sucesso, e a bela casa do portão, o pátio espaçoso e a esplêndida igreja proclamavam o seu zelo e eficiência. A casa reanimada só tinha cerca de trinta anos, mas prometia vir a ser a mais importante da sua ordem no reino.

Ao chegar ao portão, Cadfael desmontou e conduziu o cavalo pelas rédeas para o interior, até à casa do porteiro. Depois dos incontroláveis acasos do cerco e da desolada solidão das estradas, aquela tranquilidade ordeira fazia-lhe bem ao espírito. Ali, todas as coisas eram ordenadas e regulamentadas, ali toda a gente tinha um propósito e uma regra, não tinha quaisquer dúvidas sobre o seu valor, e todas as horas e todas as coisas tinham uma função essencial ao funcionamento do todo. Era como na sua casa, para onde o impelia o coração.

- Eu sou um irmão da abadia beneditina de S. Pedro e S. Paulo de Shrewsbury - disse Cadfael num tom humilde - e tenho estado nesta região devido aos combates em Greenhamsted, onde estava alojado quando o castelo foi sitiado. Posso falar com o enfermeiro?

O porteiro era um calmo e redondo homem idoso, com um olhar frio e distante, pouco disposto, à primeira vista, a acolher um beneditino. Ele perguntou secamente:

- Procura alojamento para pernoitar, irmão?

- Não - respondeu Cadfael. - A minha missão cá pode ser breve, eu estou a caminho da minha abadia. Não precisa de se preocupar comigo. Mas eu enviei para cá, sob custódia de outro homem, Philip FitzRobert, gravemente ferido em Greenhamsted e em perigo de vida. Eu gostaria que o enfermeiro me dissesse como ele está. Ou se ainda está vivo - acrescentou ele, subitamente abalado. - Eu tratei dele lá, preciso de saber.

À menção do nome Philip FitzRobert, os frios e reservados olhos cinzentos que não se tinham entusiasmado com a referência à ordem beneditina ou à abadia de Shrewsbury abriram-se muito. Quer fosse amado ou detestado ali, ou simplesmente suportado como uma complicação inevitável, a mão do seu pai cobria-o e podia abrir portas fechadas e guardadas. Não admirava que a casa mantivesse uma vigilância tão rígida sobre os seus domínios.

- Vou chamar o irmão enfermeiro - disse o porteiro.

O enfermeiro, um homem enérgico, amável, com pouco mais de trinta anos, apareceu ao fim de muito pouco tempo. Ele olhou Cadfael de cima a baixo com um olhar rápido e acenou a cabeça em sinal de aprovação.

- Ele disse que o irmão viria. O jovem descreveu-o bem, irmão, eu tê-lo-ia reconhecido entre muitos. É bem-vindo aqui. Ele falou-nos sobre o que aconteceu em La Musarderie e sobre a ameaça que recaía sobre o nosso hóspede.

- Então eles chegaram cá a tempo - disse Cadfael com um enorme suspiro.

- Muito a tempo. Vieram numa carroça de moleiro, mas não foi um moleiro que a conduziu ao longo das últimas milhas. Um trabalhador tem de tomar conta do seu negócio e da sua família - disse o enfermeiro -, sobretudo se arriscou mais, talvez, do que devia. Parece que não apanharam qualquer susto. De qualquer modo, a carroça foi devolvida, e ficou tudo tranquilo.

- Espero que assim continue - disse Cadfael fervorosamente.

- Ele é um bom homem.

- Graças a Deus, irmão - disse o enfermeiro num tom alegre -, ainda há, tal como sempre houve e sempre haverá, mais homens bons do que maus neste mundo, e a sua causa prevalecerá.

- E Philip? Está vivo? - perguntou ele com o coração mais apertado do que esperara e sustendo a respiração.

- Vivo e consciente. Até mesmo em recuperação, embora a recuperação possa ser lenta. Mas sim, ele viverá e será de novo um homem saudável. Venha ver!

No exterior da cortina parcialmente corrida que isolava uma cela lateral da enfermaria estava sentado um cónego da ordem jovem, muito compenetrado e sério, a ler um livro grande que tinha em cima do colo. Era um homem entroncado com um rosto suave mas um físico impressionante, cuja cabeça se levantou e cujos olhos se voltaram, vigilantes, ao som de passos a aproximar-se. Ao ver o enfermeiro com o segundo irmão de hábito ao seu lado, ele baixou imediatamente o olhar para o livro, com um rosto impassível. Cadfael aprovou. Os agostinhos estavam dispostos a proteger tanto os seus privilégios como os seus doentes.

- Uma mera precaução - disse o enfermeiro tranquilamente. - Talvez já não seja necessário, mas é melhor estarmos seguros.

- Duvido que alguém ainda o persiga - disse Cadfael.

- Mesmo assim... - o enfermeiro encolheu os ombros e levou uma mão à cortina para a abrir. - Mais vale prevenir que remediar! Entre, irmão. Ele está plenamente consciente, irá reconhecê-lo.

Cadfael entrou na cela, e as dobras da cortina oscilaram atrás dele. A única cama que existia no quarto estreito tinha sido levantada, para ser mais fácil tratar do doente. Philip estava deitado, apoiado em almofadas, um pouco virado para o lado, para poupar as costelas partidas enquanto elas solidificavam. O seu rosto, embora mais pálido e mais magro do que quando estava de saúde, patenteava uma total e admirável serenidade, livre de toda a tensão. Por cima das ligaduras que envolviam o ferimento da cabeça, o cabelo preto caiu em caracóis sobre a almofada quando ele se virou para ver quem tinha entrado. Os seus olhos, nas suas covas azuladas, não manifestaram qualquer surpresa.

- Irmão Cadfael! - A voz era bastante forte e clara. - Sim, eu quase que estava à sua espera. Mas o irmão tinha uma tarefa mais importante. Porque é que não está já a algumas milhas de casa? Eu mereço o atraso?

Cadfael não respondeu directamente. Aproximou-se da cama e olhou-o, sentindo-se invadido pela gratidão e alegria.

-Agora que vejo que estais vivo, irei para casa o mais depressa possível. Dizem-me que ireis ficar tal e qual como novo.

- Tal e qual - concordou Philip com um sorriso triste. - Não melhor! Tanto o pai como o filho podem ter perdido o seu tempo. Oh, não receie, eu não tenho qualquer objecção a ter sido arrancado à forca, mesmo contra minha vontade. Não vos acusarei, como ele fez: "Ele enganou-me!" Já que aqui está, sente-se ao pé de mim, irmão. Apenas uns momentos. Como vê, eu vou ficar bom, e aquilo de que precisa está noutro local.

Cadfael sentou-se no banco ao lado da cama. Este aproximou-lhes os rostos, e eles observaram-se atentamente.

- Estou a ver - disse Cadfael - que sabeis quem vos trouxe para cá.

- Uma vez, apenas uma vez e por um instante, abri os olhos e vi-lhe o rosto. Na carroça, na estrada. Perdi novamente os sentidos antes de conseguir falar, é possível que ele não se tenha apercebido. Mas sim, eu sei. Tal pai, tal filho. Bem, vocês os dois tomaram posse da minha vida. Agora diga-me o que eu devo fazer com ela.

- Ainda é vossa - disse Cadfael. - Usai-a como melhor vos provier. Eu penso que a conheceis tão bem como a maior parte dos homens.

- Ah, mas esta não é a vida que eu tinha anteriormente. Eu consenti em morrer, lembra-se? O que eu tenho agora é uma dádiva sua, quer isso lhe agrade ou não, meu amigo. Nestes últimos dias, eu tive tempo - disse Philip suavemente - para recordar tudo o que aconteceu antes de eu morrer. Foi um disparate pensar - acrescentou ele lentamente - que passar de uma nulidade para outra conseguia resolver qualquer coisa. Agora que lutei de ambos os lados sem qualquer êxito, reconheço o meu erro. Não há salvação na imperatriz nem no rei. Assim, que destino tem em mente para mim, irmão Cadfael? Ou que tem Olivier de Bretagne em mente para mim?

- Ou Deus, talvez - disse Cadfael.

- Deus, certamente! Mas ele tem os seus mensageiros entre nós, sem dúvida que haverá presságios para eu ler. - O seu sorriso não continha qualquer ironia. - Eu esgotei as minhas esperanças de ambos os lados, aqui entre os príncipes. Para onde é que eu poderei ir agora? - Ele não estava à procura de resposta, ainda não. Erguer-se daquela cama seria para ele como um nascimento; seria a altura de descobrir o que fazer com a dádiva. - Agora, uma vez que há outros homens no mundo além de nós, diga-me como correram as coisas, irmão, depois de me ter mandado embora.

E Cadfael instalou-se confortavelmente no banco e contou-lhe o que tinha acontecido à sua guarnição, como ela fora autorizada a sair do castelo com a sua honra e a sua liberdade, ainda que sem as armas, e levando os feridos consigo. Philip tinha comprado as vidas da maior parte dos seus homens, mesmo que o pagamento, afinal, nunca lhe tivesse sido exigido. Ele tinha sido oferecido de boa-fé.

Nenhum deles ouviu o barulho de casacos no pátio, nem o tilintar dos arreios, nem os passos rápidos no empedrado; a cela ficava demasiado distante dos muros exteriores para que qualquer aviso chegasse até eles. Só quando o corredor lá fora ecoou com o som de botas a pisar o chão é que Cadfael se endireitou e se interrompeu a meio da frase, momentaneamente alarmado. Mas não, o guardião no exterior da cortina não se movera. A sua visão era clara até ao fundo do corredor, e o que ele viu dirigir-se a eles não o inquietou. Ele simplesmente se levantou e se afastou para o lado para dar passagem aos que aproximavam.

A cortina foi abruptamente empurrada para trás pela mão vigorosa de Olivier, e ele viu o seu rosto luminoso, viu Olivier envolto num brilho heráldico que ardia em silêncio e fez parar no limiar, com a respiração suspensa, meio de felicidade, meio de medo pelo acto ousado que levara a cabo. Os seus olhos cruzaram-se com os de Philip e fitaram-no com uma expressão de esperança, e a sua boca curvou-se num leve sorriso. Ele deu um passo ao lado, sem entrar no quarto, e afastou completamente a cortina; Philip olhou para além dele.

Por um momento, o prato da balança oscilou entre o triunfo e o repúdio, depois, embora Philip permanecesse imóvel e calado, não dando qualquer sinal, Olivier soube que o seu esforço não fora em vão.

Cadfael pôs-se de pé e recuou para um canto do quarto quando Robert, conde de Gloucester, entrou. Um homem sempre sereno, entroncado, habituado a ser paciente, até mesmo naquela situação o seu rosto estava tranquilo e inexpressivo quando se aproximou da cama e olhou para o seu filho mais novo. O capuz caía-lhe, em dobras, sobre os ombros, e os salpicos cinzentos no grosso cabelo castanho e os fios gémeos de prata na barba curta reflectiram a luz que restava no quarto com um brilho húmido de chuva. Ele desapertou o fecho da capa, retirou-a de cima dos ombros e, puxando o banco para mais perto da cama, sentou-se tão calmamente como se tivesse acabado de chegar a casa, sem quaisquer tensões nem razões de queixa a ameaçar a forma como iria ser recebido.

- Sir - disse Philip, deliberadamente formal, numa voz fina e distante -, seu filho e criado.

O conde inclinou-se e beijou o rosto do filho; nada que perturbasse até mesmo a mais frágil das tranquilidades, foi um simples beijo de saudação entre pai e filho. E Cadfael, passando discreta e silenciosamente por eles, saiu para o corredor, para os braços do seu próprio filho.

Assim, tudo que tivera que ser feito estava feito. Homem nenhum, nem sequer a imperatriz, se atreveria a tocar no que Robert de Gloucester tinha abençoado. Saíram juntos, satisfeitos, para o pátio, e Cadfael foi buscar o seu cavalo ao estábulo pois, apesar da aproximação do crepúsculo, ele sentia-se obrigado a percorrer algum caminho de regresso antes de ser completamente escuro; nessa altura, ele procuraria um alojamento modesto algures no meio dos redis, para passar a noite.

- E eu irei consigo - disse Olivier -, pois o nosso caminho é o mesmo até Gloucester. Partilharemos a palha no sótão de alguém. Ou, se chegarmos a Winstone, o moleiro dar-nos-á guarida.

- Eu pensava - disse Cadfael, admirado - que já estivesses em Gloucester com Ermina, como, de facto, devias estar neste momento.

- Oh, eu fui vê-la. Como poderia não o fazer? Beijei-a - disse Olivier - e ela viu por si própria que ninguém me fizera mal, por isso deixou-me prosseguir o meu caminho. Fui à procura de Robert em Hereford. E ele veio comigo, como eu sabia que faria. Sangue é sangue, e não há sangue mais chegado que o deles. E agora está feito, e eu posso ir para casa.

Cavalgaram juntos durante dois dias e dormiram duas noites perto um do outro, embrulhados nas suas capas, a primeira noite na cabana de um pastor próximo de Bagedon, a segunda no hospitaleiro moinho de Cowley; e, no terceiro dia, ainda cedo, chegaram a Gloucester. E em Gloucester, eles separaram-se.

Yves teria argumentado e insistido na sensatez de pernoitar ali e de passar algumas horas preciosas com pessoas que o amavam. Olivier limitou-se a olhar para ele e a aguardar resignadamente a sua decisão.

- Não - disse Cadfael, abanando a cabeça com tristeza -, porque a tua casa é aqui, sim, mas a minha não. Eu já prevariquei demasiado. Não me atrevo a piorar as coisas. Não me peças.

E Olivier não pediu. Em vez disso, ele acompanhou Cadfael até à orla norte da cidade, onde a estrada seguia para noroeste, para a distante Leominster. Ainda tinha uma boa metade de um dia e um plácido céu cinzento sem vento. Poderia avançar algumas milhas antes do anoitecer.

- Deus não permita que eu me intrometa entre si e aquilo de que necessita para reconfortar o seu coração - disse Olivier -, mesmo que, ao conter-me, o meu fique despedaçado. Vá em segurança e não receie por mim. Haverá outra ocasião. Se não vier ter comigo, irei eu ter consigo.

- Queira Deus que assim seja! - disse Cadfael, tomando o rosto do filho nas mãos e beijando-o. Como poderia Deus não estar satisfeito com pessoas como Olivier? Se, de facto, houvesse mais no mundo como ele.

Eles tinham desmontado para se despedir. Olivier segurou no estribo para Cadfael voltar a montar e agarrou nas rédeas durante um momento.

- Recomende-me a Deus e vá com Deus!

Cadfael inclinou-se e fez uma cruz na testa larga e lisa.

- Quando o meu neto nascer - disse ele -, manda-me dizer.

 

O longo caminho para casa estendeu-se, cansativo e frustrante, milha após milha, hora após hora e dia após dia. O Inverno, que até então escondera o seu pior, com apenas um desanimador véu de neve que cedo se derreteu e se desvaneceu, começou a manifestar-se numa caprichosa alternância de neve que o cegava, chuvas torrenciais, estradas inundadas e baixios demasiado cheios para que fosse possível atravessá-los sem perigo. Houve tantos obstáculos a superar, que ele demorou três dias a chegar a Leominster e, quando lá chegou, sentiu-se obrigado a permanecer duas noites no priorado para descansar o cavalo de Hugh.

A partir dali, as coisas tornaram-se um pouco mais fáceis, embora não mais alegres pois, embora a neve e a geada tivessem deixado de cair, persistia uma chuva miudinha. Ao quarto dia, chegou às terras de Lacy e Mortimer, perto de Ludlow, e perante os seus olhos elevaram-se, reconfortantes, contornos conhecidos. Mas o fio que o puxava para casa apertava-lhe e dilacerava-lhe dolorosamente o coração, e ele continuava sem saber se havia um lugar à espera dele no único local em que poderia sentir-se em paz. Eu pequei, dizia ele para si próprio todas as noites antes de dormir. Renunciei à minha casa e à ordem a que jurei fidelidade. Repudiei as ordens do abade a quem jurei obediência. Fui atrás dos meus próprios desejos e, apesar de esses desejos terem tido a ver com a libertação do meu filho, foi um pecado preferi-los ao dever que tinha livremente assumido como meu. E, se eu fosse fazer tudo de novo, será que agiria de forma diferente? Não, faria a mesma coisa. Eu voltaria a fazer o mesmo mil vezes. E continuaria a ser um pecado.

Todos nós somos pecadores, em diversos graus. É bom reconhecer e aceitar esse peso. Talvez até nos seja exigido reconhecer e aceitar esse facto sem vergonha nem arrependimento. Se descobrirmos que temos que continuar a dizer: Sim, eu faria o mesmo outra vez, estamos a fazer um juízo que outros talvez condenem. Mas como é que sabemos que Deus o condenará? Os seus juízos são insondáveis. O que será dito no dia do Juízo Final a Jovetta de Montors, que também fez o seu juízo quando matou para vingar o filho, pois não havia um pai vivo que tirasse esse fardo de cima dos seus ombros? Também ela colocou o amor pelo filho antes da lei do país ou dos mandamentos da Igreja. E será que ela também diria: "Voltaria a fazê-lo"? Sim, certamente que diria. Se o pecado for um pecado do qual, com toda a nossa vontade de agir bem, não nos podemos arrepender, poderá ele ser verdadeiramente um pecado?

Era tudo demasiado profundo para ele. Debateu-se com as perguntas noite após noite, até adormecer de cansaço. No fim, não havia nada a fazer a não ser assumir claramente o que tinha feito, sem vergonha nem arrependimento, e dizer: Aqui estou eu, é isto o que eu sou. Agora fazei comigo o que considerardes apropriado. É esse o vosso direito. O meu é assumir o meu acto e pagar o preço.

Um homem faz o que tem a fazer, e paga por isso. Por isso, no fim, todas as coisas são simples.

No quinto dia da sua viagem penitencial ele chegou a terras familiares e queridas, no meio da longa cadeia de montanhas a sul e oeste do condado. Talvez ele devesse ter parado mais uma vez para descansar, mas não suportou a ideia de parar quando estava tão perto e prosseguiu mesmo depois de escurecer. Quando chegou a Saint Giles já passava da meia noite mas, nessa altura, os seus olhos já estavam habituados ao escuro, e as formas familiares do hospital e da igreja recortavam-se, nítidas, contra o céu límpido, sem nuvens, hesitante à beira da geada. Ele não tinha qualquer forma de saber exactamente que horas eram, mas o imenso silêncio pertencia à noite avançada. Com o frio da madrugada, até mesmo as furtivas criaturas da noite tinham abandonado as suas ocupações nocturnas e ficado confortavelmente em casa. Ele tinha Foregate toda para si e, enquanto a atravessava, saudou reverentemente todos os passos.

Agora, quer ele próprio tivesse ou não o direito de permanecer ali, eles, por uma questão de caridade, tinham que levar o cavalo cansado de Hugh para dentro e abrigá-lo nos estábulos até poderem devolvê-lo ao castelo. Se os portões largos que davam do recinto da feira dos cavalos para o cemitério não estivessem trancados, Cadfael teria entrado no recinto e chegado aos estábulos sem ter que dar a volta até à casa do portão, mas ele sabia que eles estariam bem fechados. Não fazia mal, ele tinha o comprimento do muro do enclave para percorrer passo a passo como as contas de um terço, cheio de gratidão, desde o canto do recinto da feira dos cavalos até aos portões, com o vulto amado da igreja à sua esquerda, no interior do muro, a irradiar calor na noite de Inverno, uma bênção ao longo de todo o caminho.

O interior estava silencioso e o coro encontrava-se às escuras, caso contrário, ele teria conseguido detectar a luz reflectida nas janelas superiores. A hora das Matinas e das Laudes já tinha passado, e apenas as lamparinas do altar estavam a arder. Os irmãos deviam estar todos novamente nas suas camas, para dormirem até se levantarem para a Hora Prima, ao amanhecer. Ainda bem! Assim, ele teria tempo para se preparar.

O silêncio e a escuridão da casa do portão perturbaram-no de uma forma estranha, como se não estivesse lá ninguém nem houvesse forma de entrar, como se não apenas os portões, mas também a igreja, a Ordem e a casa no interior estivessem fechadas para ele. Foi com algum esforço que puxou o sino e perturbou o silêncio. Teve que esperar alguns minutos para que o porteiro acordasse, mas o primeiro som sumido de pés calçados com sandálias a arrastar-se no interior e o ruído da tranca foram como música aos seus ouvidos.

O postigo abriu-se, e o Irmão Porteiro, com o cabelo à volta da tonsura despenteado e espetado da almofada, a face direita vincada das dobras da fronha, e os olhos ensonados, inclinou-se sobre a abertura, para ver que tipo de viajante tocava àquela hora. Tudo era familiar, vulgar e benigno, uma promessa do calor da irmandade no interior do recinto, se ao menos o faltoso fosse autorizado a voltar a entrar lá.

- Anda na estrada até muito tarde, amigo - disse o porteiro, olhando da sombra do homem para a sombra do cavalo e soprando uma ligeira névoa para o ar frio.

- Ou cedo - disse Cadfael. - Não me reconheces, irmão? Quer fosse porque reconhecera a voz conhecida, quer porque identificara a forma do hábito quando a visão se tornou mais nítida, o porteiro disse imediatamente o seu nome.

- Cadfael? És mesmo tu? Pensávamos que te tínhamos perdido. E agora, de repente, apareceste outra vez aqui à porta! Não estávamos à tua espera.

- Eu sei - disse Cadfael com tristeza. - Vamos aguardar pelo que o abade tem a dizer sobre o meu futuro. Mas, pelo menos, deixa-me entrar para tratar deste pobre animal que montei demasiado tempo. Ele pertence ao castelo mas, se eu puder colocá-lo num estábulo e tratar dele por esta noite, ele poderá voltar tranquilamente para casa amanhã, independentemente do que for decidido a meu respeito. Não te preocupes com mais nada. Eu não preciso de uma cama. Abre a porta, deixa-me levá-lo para dentro e volta para a cama.

- Eu não estava a pensar em não te deixar entrar - disse o porteiro -, mas a esta hora demoro um pouco a acordar. - Ele estava a tentar meter a chave na fechadura do portão principal e a levantar metade da tranca. - Podes dormir aqui, se quiseres, quando acabares de tratar do cavalo.

O cansado ruano castanho pisou delicadamente as pedras com pequenos sons repicados. O pesado portão fechou-se atrás deles, e a chave deu meia volta na fechadura.

-Vai dormir - disse Cadfael. - Eu vou demorar algum tempo com ele. O resto fica para amanhã de manhã. Tenho algumas palavras a dizer a Deus e a Santa Winifred que me manterão ocupado na igreja o resto da noite. - E acrescentou quase involuntariamente: - Eles já me tinham riscado como um mau pagador?

- Não - disse o porteiro com veemência. - Nada disso! Mas eles não estavam à espera que ele voltasse. A partir do momento em que Hugh regressara de Coventry sem ele, os que eram seus amigos deviam ter-lhe dito adeus, os que lhe eram menos próximos ou nem sequer eram seus amigos deviam ter encolhido os ombros e tê-lo esquecido. O Irmão Winfrid devia ter-se sentido abandonado e traído no herbário.

- Isso foi muito amável da vossa parte - disse Cadfael com um suspiro, conduzindo o cavalo cansado para os estábulos.

No calor da baia com o chão coberto de palha, ele não se apressou. Era agradável estar ali a tratar do animal, sentido os movimentos dos seus vizinhos satisfeitos, nas outras baias. Pelo menos um ser ali era bem recebido ao regressar. Cadfael continuou a escová-lo durante mais tempo do que era necessário, encostando a cabeça a uma espádua reluzente. Quase adormeceu, mas ainda não podia dar-se ao luxo de dormir. Afastou-se com relutância do calor do corpo do cavalo e saiu novamente para o frio, atravessando o pátio até ao claustro e à porta sul da igreja.

Se lá fora se fazia sentir o frio cortante da geada, o que se sentia no interior da nave quase completamente envolta em escuridão e totalmente silenciosa era o frio pesado e solene da pedra. Parecia a morte, se não fosse o brilho vermelho dourado da lamparina no altar principal. Mais adiante, no coro, ardiam duas velas de altar. Deixou-se ficar de pé na solidão da nave e olhou para o interior. Durante os serviços religiosos nocturnos, ele sempre se sentira misteriosamente ampliado de modo a preencher todos os cantos, todas as frinchas da abóbada alta a que a luz não chegava, como se a alma largasse os limites do corpo, aquela casca de um homem a envelhecer, não, de um velho, sujeito a todos os males que os homens herdam. Agora ele já não tinha verdadeiramente direito a subir o pequeno degrau que o levaria ao paraíso monástico. O seu lugar inferior era ali, entre os laicos, mas isso não o afligia; ele já conhecera, entre os mais humildes, espíritos superiores a arcebispos e com uma honra tão absoluta como os condes. Só que a necessidade daquela paz e serviços comunais doía-lhe dentro de si como uma ferida mortal.

Deitou-se de barriga para baixo, com o cabelo comprido a roçar o degrau baixo que ia dar ao coro, a testa encostada ao frio das lajes e os pêlos absurdos da tonsura por barbear a picar como espinhos. Abriu bem os braços, agarrando as orlas irregulares do pavimento como os homens prestes a afogar-se se agarram às algas flutuantes. Rezou, sem palavras coerentes, por aqueles que se debatiam entre o que estava certo e o que era conveniente, entre o dever e a consciência, entre os afectos da terra e as abnegações do céu; por Jovetta de Montors, pelo seu filho, friamente assassinado para deixar o caminho livre para um golpe; por Robert Bossu e por todos os que trabalhavam para a paz através de repetidas ondas de desilusão e desalento; pelos jovens que não tinham uma orientação clara sobre que caminho a seguir, e pelos velhos que tinham tentado e abandonado tudo; por Olivier, Yves e jovens como eles que, na sua desdenhosa e implacável pureza desprezavam as manipulações de almas mais subtis; por Cadfael, que já fora um irmão da casa beneditina de S. Pedro e S. Paulo de Shrewsbury, que tinha feito o que tivera que ser feito, e agora estava à espera de pagar por isso.

Não dormiu, mas, algumas horas antes do amanhecer, algo semelhante a um sonho surgiu na sua mente atenta e desperta como se o sol estivesse a nascer antes da hora; um calor como o de uma manhã de Maio cheia de flores de pirliteiros e uma rapariga loura como uma prímula e de cabelo comprido, a caminhar, descalça e sorridente, sobre a erva. Uma vez que não tinha sido absolvido, ele não podia ou não queria ir ter com ela ao seu altar no interior do coro mas, por um momento, teve a maravilhosa ilusão de que ela se tinha erguido para vir ter com ele. O pé branco dela poisou no degrau ao lado da cabeça dele, e ela estava a inclinar-se para lhe tocar com a sua mão branca quando o pequeno sino do dormitório tocou para acordar os irmãos para a Hora Prima.

O abade Radulfus levantou-se mais cedo do que era habitual e entrou na igreja antes dos membros da sua casa. Um sol frio mas vermelho como o sangue tinha acabado de elevar a sua orla acima do horizonte a oriente, enquanto a ocidente as estrelas ainda permaneciam num céu cujos tons variavam entre cinzento em baixo e preto azulado no zénite. Ele entrou pela porta sul e viu um monge de hábito imóvel, deitado como uma cruz à entrada do coro.

O abade parou e ficou a olhar durante um longo momento, depois avançou até junto do homem deitado de barriga para baixo e fitou-o com um rosto imóvel e sombrio. O cabelo castanho à volta da tonsura estava mais comprido do que era apropriado. Parecia até, pensou ele, conter mais cabelos brancos do que na última vez que ele olhara para o rosto agora tão resolutamente escondido dele.

- Tu - disse ele. Não foi uma exclamação, ele pretendia simplesmente mostrar que o reconhecia, sem qualquer implicação de aceitação ou rejeição. E, após um momento, acrescentou: - Atrasaste-te. As notícias chegaram antes de ti. O mundo continua a mudar.

Cadfael virou a cabeça, encostando a face à pedra, e disse apenas:

- Pai! - sem pedir nada, sem prometer nada, sem se arrepender de nada.

- Alguns dos que viajaram alguns dias antes de ti - disse Radulfus num tom de reflexão -, devem ter encontrado um tempo melhor e mudas de cavalo ao longo do caminho. Hugh traz-me todas as notícias que chegam ao castelo. O conde de Gloucester e o filho reconciliaram-se. Houve soldados em risco de perder a vida que foram poupados. Embora possamos ainda não ter paz pelo menos todas as mercês deste género são uma promessa de graça. - A sua voz era baixa, ponderada e pensativa. Cadfael ainda não erguera a vista para olhar para o seu rosto. – Philip FitzRobert, ainda doente - acrescentou Radulfus -, renunciou às guerras entre reis e imperatrizes e tomou a cruz.

Cadfael inspirou fundo e recordou-se. Quando se estava decepcionado com príncipes, esse era um caminho a seguir. Embora ainda houvesse príncipes deste mundo a tratar e maltratar a causa da cristandade do mesmo modo que maltratavam a causa da Inglaterra. O que tornava ainda mais desejável a ordem e a tranquilidade no interior de um mosteiro, onde a batalha do céu e da terra era travada sem derramamento de sangue, com as armas da mente e da alma. - Basta! - disse o Abade Radulfus. - Levanta-te e vai com os teus irmãos para o coro.

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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