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CADFAEL 5 / A Feira de S. Pedro
CADFAEL 5 / A Feira de S. Pedro

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Tudo começou no habitual capítulo diário na abadia beneditina de S. Pedro e S. Paulo, em Shrewsbury, no dia 30 de Julho do ano do Senhor de 1139. Sendo aquele dia a véspera da véspera de S. Pedro ad Vincula, festa de importância solene e lucrativa para a casa de sua invocação, a rotina do encontro matinal foi totalmente devotada às providências necessárias para uma adequada celebração, e as questões de somenos ficaram pendentes.

A casa, dada a sua devoção completa, tinha dois santos, mas havia tendência para negligenciar S. Paulo, por vezes mesmo omitido de documentos oficiais, ou tão abreviado que quase desaparecia. Tempo é dinheiro, e os copistas acham aborrecido inscrever o título por extenso, talvez umas vinte vezes em cada carta. Tinham tido de modificar o seu comportamento, todavia, desde que o abade Radulfus assumira o comando desta nave claustral, pois era homem que não contemporizava com tratamentos apressados e queria todos os seus subordinados tão meticulosos como ele próprio.

 

 

 

 

 

 

O irmão Cadfael saíra antes de Primax para a sua estufa, onde observava apavoradamente o florescimento das suas papoilas orientais e avaliava o tempo que faltaria para poder colher as sementes. A estação estival encontrava-se no seu ponto mais alto, prometendo ricas colheitas, pois a Primavera fora tépida e húmida, depois de profusos nevões logo no princípio da época, e Junho e Julho quentes e ensolarados, com a compensação de alguns aguaceiros para manter as folhas frescas e os botões frutíferos. A colheita do feno decorria e era abundante, os cereais pareciam maduros para a foice. Logo que a feira anual terminasse, começaria a ceifa. O domínio odorífero de Cadfael, orvalhado pela aurora e já a aquecer para a ébria doçura do Sol subindo no céu, enchia-lhe os sentidos de um prazer perante o qual a Igreja ascética por vezes franzia o cenho, descobrindo um tudo-nada de indefinivelmente pecaminoso, num puro deleite. Havia ocasiões em que o jovem irmão Mark, que trabalhava com ele em tão agradável campo, sentia dever confessar a sua alegria como um pecado, e aceitar com mansidão uma penitência apropriada. Ainda era muito novo, pelo que o seu comportamento tinha desculpa. O irmão Cadfael tinha mais senso, e nenhum daqueles escrúpulos. Os múltiplos dons de Deus existem para nos deliciarmos; não chegar a sentir alegria seria ingratidão.

Tendo trabalhado duas horas antes de Primax, e não tendo qualquer cargo relacionado com a feira da abadia, que congraçava todas as atenções, Cadfael cabeceava, como era seu hábito, por detrás de um pilar protector, no canto menos iluminado da casa do capítulo, em perfeitas condições de voltar ao estado de vigília se alguma interpelação inesperada lhe fosse dirigida, e perfeitamente capaz de responder coerentemente ao que só parcialmente tivesse ouvido. Era monge havia dezasseis anos, por sua própria opção bem pensada, que nunca lamentara, depois de uma vida muito aventurosa, e que também nunca lamentara, e estava virtualmente fora do alcance de qualquer surpresa. Tinha 59 anos, um mundo de experiências armazenado em si, e continuava tão forte como um texugo - segundo o irmão Mark, igualmente quase tão cambado, mas o irmão Mark era um ser privilegiado. Cadfael dormitava tão silenciosamente como uma flor fechada à noite, e quase nunca ressonava; dentro da regra beneditina, e em perfeita concordância com ela, criara a sua própria disciplina diária, que correspondia admiravelmente às suas necessidades.

É provável que estivesse a dormir profundamente quando o dispenseiro da granja, com as desculpas apropriadas, se aventurou a entrar na casa do capítulo e ficou de pé, à espera de que o abade o autorizasse a falar. Estava indubitavelmente acordado quando o dispenseiro informou:

- Reverência, no salão encontra-se o preboste do burgo, com uma delegação da Guilda dos Mercadores, a pedir uma audiência. Dizem que a questão é importante.

O abade Radulfus deixou que as suas sobrancelhas aceradas subissem um pouco de nível e indicou delicadamente que os anciãos do burgo podiam ser recebidos imediatamente. As relações entre a cidade de Shrewsbury, de um lado do rio, e a abadia, do outro, embora nunca tivessem sido propriamente cordiais - seria contar com muito, quando os seus interesses colidiam tão frequentemente -, eram sempre correctas, e as escaramuças conduzidas com prudente cortesia. Se ao abade cheirou a luta, não o demonstrou.

“Seja como for”, pensou Cadfael, observando-lhe o rosto extremamente vincado e sagaz, “tem uma ideia bastante precisa acerca dos motivos da presença deles aqui.

Os notáveis da Guilda entraram na casa do capítulo formando uma sólida falange, nada menos de dez, oriundos de metade das artes e ofícios da cidade, e precedidos pelo preboste. O mestre Geoffrey Corviser, cujo nome correspondia à profissão, era um homem alto, bem proporcionado e vigoroso, que ainda não fizera os 50 anos e se apresentava bem barbeado e com modos vivos e dignos. Fazia dos melhores sapatos e botas de Inglaterra, e estava plenamente consciente da sua excelência e do seu próprio valor. Para esta ocasião, vestira a sua melhor indumentária e, mesmo sem a toga comprida, que teria sido um purgatório com o calor do Verão, tinha uma figura imponente, o que era claro corresponder aos seus intentos. Alguns dos que se agrupavam atrás dele eram bem conhecidos de Cadfael: Edric Flesher, chefe dos carniceiros de Shrewsbury, Martin Bellecote, mestre-carpinteiro, Reginald of Aston, cuteleiro - todos homens de meios. O abade Radulfus não os conhecia, por enquanto. Estava em funções havia apenas meio ano, enviado de Londres para aperfeiçoar o zelo de uma casa provincial que se deixara desleixar um pouco, e tinha muito que aprender acerca dos homens da raia, o que ele próprio, que não sendo parvo nenhum, bem sabia.

- Sede bem-vindos, cavalheiros - disse suavemente o abade. - Falai livremente, sereis atentamente escutados.

Os dez fizeram as suas reverências com gravidade, afastaram resolutamente os pés e ficaram plantados como um esquadrão de batalha, de olhos alerta e juízos reservados. O abade concentrava sobre eles uma atenção cortês, com um efeito muito semelhante. Nos seus interlúdios na missão de pastor, Cadfael observara uma vez dois carneiros a trocarem olhares semelhantes antes de se defrontarem com as cabeças.

- Senhor abade - começou o preboste -, como sabeis, a Feira de S. Pedro começa depois de amanhã e dura três dias. É da feira que vimos falar. Conheceis as condições. Durante todo esse tempo todas as lojas da cidade têm de permanecer encerradas, e nada pode ser vendido para além de cerveja e vinho. E cerveja e vinho são vendidos livremente aqui, no terreno da feira e também à entrada da abadia, pelo que ninguém do burgo pode ganhar a vida com esse comércio. Durante três dias, os mais movimentados do ano, em que podíamos obter lucros com direitos de passagem de carros, cavalos e homens através da cidade para chegarem à feira, não podemos cobrar quaisquer encargos, nem de portagem nem de peagem. Todos os direitos pertencem exclusivamente à abadia. As mercadorias que sobem o Severn por barco atracam ao vosso ancoradouro e pagam-vos os direitos. Nós nada recebemos. E por este privilégio não pagam mais de trinta e oito xelins, para obter os quais ainda temos de nos dar ao trabalho de embargar as rendas dos vossos locatários no burgo.

- Não mais de trinta e oito xelins! - repetiu o abade Radulfus, e elevou as sobrancelhas grisalhas, da cor do ferro, um pouco mais, mantendo sempre aparência civilizada e voz suave. - A soma foi estabelecida como sendo justa. E não por nós. Os termos do contrato são vossos conhecidos há muitos anos, creio.

- Assim é, e muitas vezes os temos considerado bastante penosos, mas os acordos têm de ser respeitados, e nunca nos queixámos. Contudo, sejam os anos maus ou bons, a soma nunca foi aumentada. E é muito duro para uma cidade tão pressionada como a nossa o está actualmente a ser, perder três dias de comércio e os melhores direitos de passagem de todo o ano. No Verão passado, como deveis saber, embora não estivésseis entre nós, Shrewsbury foi cercada durante mais de um mês, acabando por ser tomada de assalto, com grandes danos nas muralhas e grandes maus tratos nas ruas, e, apesar de todos os nossos esforços, ainda são necessárias muitas reparações, o que é um trabalho dispendioso, depois de todas as perdas do Verão passado. Nem metade das delapidações está reparada e, nestes tempos perturbados, quem sabe quando podemos voltar a ser atacados? O próprio tráfego para a vossa feira passará pelas nossas ruas, aumentando-lhes o uso, enquanto nós nada obteremos para ajudar a reparar os nossos prejuízos.

- Vamos ao que importa, Mestre Preboste - interveio o abade no mesmo tom tranquilo. - Viestes fazer-nos um pedido. Dizei sem rodeios. - Reverendo Abade, assim o farei! Pensamos... e falo em nome de toda a guilda de mercadores e do conselho de Shrewsbury... que num ano assim temos toda a razão em pedir que a abadia nos pague uma quota mais elevada para realizar a feira ou, o que seria muito melhor, ponha de lado uma proporção dos direitos pagos na feira pelas mercadorias, quer transportadas a cavalo, quer em carro ou por barco, a ser entregue ao burgo e gasta na restauração das muralhas. Vós beneficiais da protecção que a cidade vos oferece; deveis, pensamos, participar na manutenção das defesas. Um décimo dos lucros seria bem recebido e ficaríamos muito gratos. Não se trata de uma exigência, afirmamo-lo com todo o respeito, mas sim de uma súplica. Cremos, porém, que a concessão de um décimo não seria mais que justa.

O abade Radulfus permaneceu sentado, muito direito, magro e superior, considerando gravemente a falange de fortes burgueses à sua frente:

- É essa a opinião de todos vós? Edric Flesher falou sem rodeios:

- É. E também de toda a gente da cidade. Há muitos que se exprimiriam mais impetuosamente do que mestre Corviser o fez. Mas confiamos na vossa solidariedade e esperamos a vossa resposta.

O ligeiro movimento que percorreu a casa do capítulo foi como um grande suspiro cauteloso. A maior parte dos monges tinha os olhos fixos, muito abertos e ansiosos; os mais novos mexiam-se e sussurravam, mas com muita prudência. O prior Robert Pennant, que esperara ser abade por aquela altura, e ficara amargamente desiludido ao ver a promoção de um estranho ultrapassá-lo, mantinha uma calma ascética e um silêncio de prata, parecia mover os lábios em oração e deitava olhares de lado ao seu superior, por entre as pestanas cor de marfim que mantinha semicerradas, desejando que ele cometesse um erro irremediável, ao mesmo tempo que fingia lamentar e abençoar. O velho irmão Heribert, até recentemente abade da casa e agora degradado para as fileiras, dormitava num canto sossegado, sorrindo docemente, grato por estar em descanso.

- Estamos a considerar, pois claro - acabou Radulfus por pronunciar, suavemente e sem pressa -, o que colocais como uma disputa entre os direitos do burgo e os direitos desta casa. Em tal pendência, deve o julgamento ser vosso, ou meu? Decerto que não!

É necessário um juiz desinteressado. Devo recordar-vos que houve uma decisão assim, durante o último semestre, depois do cerco de que vos queixais. No início do ano, Sua Graça o rei Estêvão confirmou-nos a nossa antiga carta, com todas as suas concessões em terras, direitos e privilégios, tal como os detínhamos anteriormente. Também nos confirmou o direito a esta feira de três dias pela festa do nosso patrono S. Pedro, com a mesma quota que antes pagávamos e nas mesmas condições. Imaginais que ele teria sancionado uma tal concessão se não a considerasse justa?

- A dizer com franqueza o que suponho - afirmou o preboste, acaloradamente -, nem por um momento foi que a ideia de justiça entrasse na questão. Não murmuro contra o que Sua Graça decidiu fazer, mas é evidente que considerou Shrewsbury um burgo hostil, e muito provavelmente ainda o considera, porque FitzAIan, que está agora refugiado em França, pôs uma guarnição no castelo e aguentou-o durante mais de um mês contra ele. Mas nós, os habitantes da cidade, pouco pudemos dizer sobre o assunto e pouco poderíamos ter feito! O castelo declarou-se pela imperatriz Maud, e nós temos de suportar as consequências, enquanto FitzAian se pôs ao largo, seguro e inalcançável. Reverendo Abade, isso será justiça?

- Estais a afirmar que Sua Graça, ao confirmar a abadia nos seus direitos, está a vingar-se do burgo? - indagou o abade com suave e perigosa gentileza.

- Estou a dizer que ele nunca dirigiu um pensamento para o burgo, nem um olhar para os seus sofrimentos, de contrário poderia ter feito alguma concessão.

- Ah! Então esta vossa súplica não deveria antes ser dirigida a Lorde Gilbert Prestcote, que é alcaide do rei e com certeza lhe merece atenção, em vez de nos ser dirigida a nós?

- Já o foi, embora não quanto à feira. Não compete ao alcaide alienar parte do que foi concedido à abadia. Só vós, Reverendo Padre, o podeis fazer - disse Geoffrey Corviser vivamente. Começava a tornar-se claro que o preboste sabia evitar as armadilhas das palavras tão bem como o abade.

- E que resposta obtivestes do alcaide?

- Ele nada fará por nós até as suas próprias muralhas do castelo estarem reparadas. Promete-nos o empréstimo da mão-de-obra quando esse trabalho estiver terminado, mas mão-de-obra nós podemos fornecer, é de dinheiro e materiais que necesssitamos, e decorrerá um ano ou mais antes de ele poder destacar meia dúzia de homens para aquilo de que precisamos. Sendo assim, Reverendo Padre, surpreende-vos que consideremos a feira um encargo?

- No entanto, nós também temos as nossas necessidades, tão urgentes para nós como as vossas para vós - afirmou o abade, depois de um momento de silêncio meditativo. - E devo recordar-vos que as nossas terras e possessões daqui ficam fora das muralhas do burgo, e mesmo fora da curva do rio, duas protecções de que vós dispondes e nós não partilhamos. Será então lícito pedir-nos que paguemos encargos referentes àquilo que não se nos aplica?

- Nem todas as vossas possessões - replicou o preboste. - Dentro do burgo há uns trinta ou mais domínios vossos, onde vivem rendeiros cujos filhos têm de patinhar nas valetas de ruas em mau estado, tal como os nossos, e cujos cavalos partem patas onde o pavimento está danificado, tal como os nossos.

- Os nossos rendeiros são por nós tratados com equidade, e as suas rendas estabelecidas com ponderação, sendo essas as questões por que somos responsáveis. Mas não o podemos ser pelas delapidações do burgo, como o somos pelo que se passa aqui nas nossas próprias terras. Não - disse o abade, erguendo peremptoriamente a voz quando o preboste fez menção de voltar a argumentar -, não digais mais nada! Ouvimos e compreendemos a vossa situação, que não deixa de nos impressionar. Mas a Feira de S. Pedro é um direito sagrado concedido a esta casa em termos que não fomos nós a elaborar; trata-se de um direito que não me é inerente como homem, mas sim inerente a esta casa, e eu, na minha administração passageira, não detenho a autoridade de alterar ou mitigar esses termos nos mínimos pormenores. Seria uma ofensa contra Sua Graça o rei, que confirmou a carta, e contra os meus sucessores, pois poderia ser tomado e citado como precedente em anos futuros. Não, não alienarei qualquer parte dos lucros da feira em vosso benefício, não aumentarei a quota que vos pagamos por ela, não partilharei em qualquer proporção os direitos sobre as mercadorias e os lugares de venda. Todos pertencem aqui e todos devem ser aqui recolhidos, de acordo com a carta. - Viu meia dúzia de bocas abrirem-se, para protestarem contra despedida tão sumária, e erguendo-se do seu lugar, muito alto e direito, com frieza na voz e no olhar. - Este capítulo está encerrado, - concluiu.

Havia um ou dois de entre os membros da delegação que teriam continuado a insistir, mas Geoffrey Corviser tinha uma noção mais adequada da sua própria dignidade e da da cidade, e uma ideia mais subtil do que poderia impressionar ou não aquele homem tão seguro de si e austero. Fez ao abade uma reverência profunda e abrupta, rodou nos calcanhares e saiu a passos largos da casa do capítulo; então os seus companheiros derrotados recuperaram o autodomínio e marcharam com igual altivez atrás dele.

Já estavam a ser montadas tendas no grande triângulo da feira de cavalos e a todo o compartimento da frontaria abacial, desde a ponte até à esquina onde terminavam os terrenos delimitados e a estrada virava à direita em direcção a Saint Giles e à estrada real para Londres. A jusante da ponte havia um ancoradouro de madeira recém-erigido, onde começava o longo trecho da margem ocupado pelas principais hortas e pomares da abadia, a rica planície conhecida como Gaye. Pelo rio, por estrada, a pé pelas florestas e atravessando a fronteira do País de Gales, mercadores de todas as espécies começavam a dirigir-se para Shrewsbury. E para os domínios da abadia afluía toda a nobreza do condado e também dos condados adjacentes, infanções, cavaleiros, latifundiários com as esposas e filhas, para se instalarem nas hospedarias superlotadas durante os três dias da feira anual. Os bens de subsistência eram cultivados, criados, fermentados, tecidos ou fiados por eles ao longo de todo o ano, mas uma vez em cada ano iam comprar os tecidos de luxo, os bons vinhos, os frutos raros e conservados, os trabalhos em ouro e prata, todos os tesouros que apareciam na festa de S. Pedro ad Vincula, e desapareciam três dias depois. A estas grandes feiras deslocavam-se mercadores até da Flandres e da Alemanha, armadores com vinhos franceses, tosquiadores com velos de lã galesa e algibebes com roupa feita: mantos, gibões, calções, a moda dos grandes centros levada até ao campo. Não eram muitos os vendedores já chegados, a maior parte apareceria no dia seguinte, véspera da festa, e instalaria as tendas durante a longa noite de Verão, estando a postos para começar as vendas logo de manhã cedo. Mas os compradores já chegavam em números significativos, interessados em assegurar boas camas para a sua permanência.

Quando o irmão Cadfael regressou da ribeira Meole e das suas hortas a fim de participar nas Vésperas, depois de uma tarde de trabalho intenso e interessante, o grande salão fervilhava de visitantes, servos e aios, e o trânsito de entrada e saída dos estábulos constituía um fluxo incessante. Parou uns minutos a observar o espectáculo, e o irmão Mark, ao seu lado, corava, de olhos fixos, encandeados pelo jogo de cores e pelo brilho dos movimentos à luz do Sol.

- Sim - comentou Cadfael, vendo com desapego filosófico o que o irmão Mark contemplava excitado e com admiração -, este mundo e o outro vão estar cá, quer para comprar quer para vender. - E fitou atentamente o seu jovem amigo, pois o rapaz pouco vira do mundo antes de entrar na ordem, tendo sido lá metido aos dezasseis anos, sem lhe perguntarem a opinião, por um tio avarento que o sustentava de má vontade, mesmo a troco de trabalho pesado, e só recentemente fizera votos definitivos. - Vês ali qualquer coisa que te tente a voltar para o mundo secular?

- Não - respondeu o irmão Mark, pronta e serenamente. - Mas posso olhar e apreciar, tal como faço na estufa quando as papoilas estão em flor. Não é de censurar que os homens tentem pôr nos seus próprios artefactos as cores e formas que Deus deu aos Seus.

Sem dúvida havia alguns dos mais encantadores artefactos de Deus entre a multidão de visitantes que se movimentava nos terrenos da abadia e junto dos estábulos, jovens tão brilhantes e vistosas como as papoilas, e ainda mais bonitas por estarem na expectativa, ansiosas por que tudo lhe corresse o melhor possível na sua grande saída do ano. Algumas cavalgavam os seus próprios póneis, outras usavam selas de senhora atrás de maridos ou criados, e até havia uma liteira que transportava uma viúva importante do Sul do condado.

- Nunca tinha visto tanto movimento aqui - disse Mark, observando-o com prazer.

- Ainda não assististe a uma feira a sério. No ano passado a cidade esteve cercada durante todo o mês de Julho e parte de Agosto, o que não entusiasmou nem compradores nem vendedores a virem a Shrewsbury para os seus negócios. Tive dúvidas até quanto a este ano, mas parece que o comércio está, de novo, em pleno movimento, e a nossa fidalguia mais sedenta que nunca pelo que lhe faltou no ano passado. Estou em crer que será uma feira lucrativa!

- E não poderíamos ter dispensado uma dízima para ajudar a reparar o burgo? - inquiriu Mark.

- Tens tendência, criança, para fazer perguntas mais embaraçosas. Entendo perfeitamente o que estava no espírito do preboste, pois ele o exprimiu por completo. Mas não estou de modo nenhum tão seguro quanto a saber o que ia na mente do abade, nem garanto que ele tenha expressado metade disso. É um homem difícil de entender!

Mark deixara de ouvir. Os seus olhos seguiam um cavaleiro que acabara de entrar os portões e encaminhava delicadamente o cavalo para os estábulos, por entre a multidão em movimento. Três criados em póneis de pêlo eriçado seguiam-no de perto, e um deles tinha uma besta pendurada na sela. Nestes tempos perigosos, até aqui em regiões sumariamente pacificadas tão pouco tempo antes, nenhum cavalheiro empreenderia uma longa viagem sem tomar precauções em relação à sua própria defesa, e o alcance de um tiro de besta é maior que o da espada. Este jovem também usava espada e parecia saber manejá-la, mas não descurara fazer-se acompanhar dum arqueiro por razões de segurança.

Era o senhor que atraía o olhar de Mark. Talvez lhe faltasse um ou dois anos para os 30, tendo ultrapassado as incertezas da primeira juventude - se é que alguma vez as sentira -, e encontrava-se na sua época mais resplandecente. Belamente equipado, elegantemente montado num brilhante baio escuro, cavalgava com a negligente facilidade de pessoa acostumada a cavalos quase de nascença. Devido ao calor do Verão, libertara-se da sua pequena cota de montar, que trazia a tiracolo, e vinha com a camisa aberta sobre o peito magro mas musculoso, onde lhe pendia uma cruz num fio de ouro. O corpo assim exposto em simples camisa de linho e calções escuros era alto, liso e orgulhoso do seu donaire, e a cabeça que o sobrepujava recebia plenamente a luz sobre o rosto sorridente e animado, bem proporcionado em redor dos grandes olhos escuros de comando e com um halo de cabelo louro-escuro que faria caracóis se crescesse um pouco mais. Aproximou-se e passou, e os olhos de Mark seguiram-no, ao mesmo tempo tranquilos e pensativos, mas sem sombra de inveja:

- Deve ser agradável - comentou meditativamente - ser-se feito de modo a dar prazer a quem nos contempla. Acha que ele se apercebe dos seus dons?

O próprio Mark era bastante pequeno, devido à subalimentação desde a infância, o seu rosto não tinha qualquer beleza e o cabelo que lhe rodeava a tonsura era espetado e cor de palha. Não que alguma vez se detivesse a olhar-se ao espelho, ou desse por ser possuidor de um par de grandes olhos cinzentos de uma claridade tão imaculada que a beleza vulgar se desvanecia perante eles. Nem Cadfael lhe ia recordar tais vantagens.

- Pelo que costuma acontecer no mundo - disse ele alegremente -, é provável que o seu espírito não consiga abarcar nem mais para a frente nem mais para trás que a extensão das suas belas pestanas. Mas concordo contigo que é agradável de ver. Porém, a mente dura mais. Alegra-te por teres uma que não se gastará com facilidade. Agora vamos embora, que tudo isto se vai manter assim até depois da ceia.

Esta última palavra levou os pensamentos do irmão Mark para outro campo muito agradável. Tivera fome toda a sua vida, até entrar para aquela casa, e continuava a ter o hábito da fome, pelo que a comida, não menos que a beleza, constituía para ele um prazer sem mácula. Acompanhou de boa vontade Cadfael em direcção a Vésperas e à ceia que se seguiria. Foi Cadfael que se deteve subitamente, quando uma voz aguda e alegre o chamou pelo nome, o que o fez rodar com prazer a cabeça nessa direcção.

Uma senhora magra, jovem, graciosa, com uma grande trança de cabelo dourado, cara oval cheia de vivacidade e olhos como íris ao crepúsculo, purpurinos e claros. O seu corpo, como o irmão Mark viu ao primeiro olhar surpreendido, embora ainda pouco cheio e com movimentos dignos, estava cingido muito acima e notava-se que se arredondava abaixo do cinto. Estava lá dentro uma vida. Ele não era tão inocente que não reconhecesse os sinais. Devia baixar os olhos, e quis fazê-lo, mas não pôde; ela brilhava tanto que se parecia com todas as imagens da Virgem da Visitação que ele já vira. E esta visão estendia ambas as mãos para o irmão Cadfael e chamava-o pelo nome. O irmão Mark baixou a cabeça contra vontade e prosseguiu solitário o seu caminho.

- Filha - exclamou calorosamente o irmão Cadfael, apertando com prazer as mãos estendidas -, floresces como uma rosa! E ele não me tinha dito nada!

- Ele não te vê desde o Inverno - disse ela, com um sorriso que lhe fazia covinhas nas faces, ao mesmo tempo que corava -, e nessa altura não sabíamos. Então não era mais do que um sonho. E eu não te via desde o nosso casamento.

- E estás feliz? E ele?

- Oh, Cadfael, como podes perguntar?! - Não teria sido necessário: o resplendor que o irmão Mark reconhecera não ofuscava menos Cadfael. - Hugh está cá, mas teve de ir primeiro ao alcaide. Com certeza vai perguntar por ti antes do Terço. Eu vim comprar um berço, um belo berço esculpido para o nosso filho. E uma colcha galesa, em boa lã quentinha, ou talvez de pele de carneiro. E lãs cuidadosamente fiadas, para lhe tecer as roupinhas.

- E tens passado bem? A criança não te causa perturbações?

- Perturbações? - exclamou ela, de olhos muito abertos e sorridente. - Não tive um momento de indisposição, só de alegria. Oh, irmão Cadfael - continuou, desatando a rir -, como pode um monge deste convento fazer perguntas tão sábias? Não terás algures um filho teu? Quase estou em crer que sim! Sabes demasiado acerca de nós, as mulheres!

- Segundo suponho - redarguiu Cadfael cautelosamente -, nasci de uma, como todos nós. Até os abades e os arcebispos vêm ao mundo da mesma maneira.

- Mas estou a demorar - disse ela arrependida. - São horas de Vésperas, e eu também vou. Tenho tantas graças a dar, nunca há tempo que chegue. Reza uma oração pelo nosso filho! - Apertou-lhe ambas as mãos e afastou-se agilmente por entre a multidão, dirigindo-se para a hospedaria. Nascera Aline Siward, agora era Aline Beringar, esposa do alcaide adjunto da Shropshire, Hugh Beringar de Maesbury, perto de Oswestry. Estavam casados havia um ano, tendo Cadfael sido um grande amigo desse casamento, pelo que se sentia agora engrandecido e realizado com a sua felicidade. Continuou a dirigir-se para a igreja, cheio de contentamento com a tarde, a sua própria disposição e as perspectivas para os dias que se seguiriam.

Quando emergiu do refeitório depois da ceia, para um fim de tarde ainda cheio de luzes róseas e ambarinas, o pátio estava tão animado como ao meio-dia, e ainda havia recém-chegados a entrar os portões. No claustro, Hugh Beringar estava sentado com todo o à-vontade, à espera dele; era um jovem franzino, ágil, moreno, de feições esguias e expressão enigmática. Tinha um rosto formidável, impossível de decifrar por quem não lhe conhecesse a linguagem. Felizmente, Cadfael conhecia-a e decifrou-a com toda a confiança.

- Se não perdeste a tua astúcia - disse o jovem, levantando-se preguiçosamente - nem encontraste quem te ultrapassasse neste teu novo abade, com certeza arranjas uma boa desculpa para faltares à colação... e uma pinga de bom vinho para partilhares com um amigo.

- Melhor que uma desculpa - retorquiu imediatamente Cadfael -, tenho uma razão conhecida. Tem havido problemas na granja com a diarreia dos vitelos e têm urgência numa mezinha feita por mim. E com certeza te arranjo uma pinga melhor que cerveja fraca.

Podemos sentar-nos do lado de fora do gabinete, com a noite quente que vai estar. Mas não serás um marido negligente - reprovou, enquanto acertava amigavelmente o passo a caminho dos jardins -, abandonando a tua senhora a favor de um velho compincha do copo?

- A minha senhora - disse Hugh, pesaroso - é que me abandonou completamente! Uma jovem grávida basta que mostre o nariz na hospedaria para ser imediatamente arrastada por um enxame de damas mais velhas, todas arrulhando como pombos e enchendo-a de conselhos de toda a ordem, da dieta à magia das parteiras. Aline está em conferência com todas elas, a ouvir pormenores de todos os seus partos e a tomar nota de todas as suas recomendações. E como eu não sei fiar, nem tecer, nem coser, fui banido. - Parecia muito complacente quanto ao assunto e, plenamente consciente disso, riu alto. - Mas ela disse-me que te tinha visto e que não precisaste de que te dissesse fosse o que fosse. Que tal te pareceu?

- Radiosa! - disse Cadfael. - Em pleno florescimento, e mais bonita que nunca.

No jardim, protegido do lado do sol em declínio pela sebe alta, os pesados odores do dia pairavam como um feitiço. Instalaram-se num banco sob o beiral do gabinete de Cadfael, com uma caneca de vinho entre eles.

- Tenho de pôr a minha mezinha a fermentar - informou Cadfael. - Podes falar enquanto o faço, ouvir-te-ei lá dentro e voltarei para aqui assim que esteja preparada. Que notícias há do mundo exterior? Parece-te que o rei Estêvão já está seguro no trono?

Beringar meditou silenciosamente nisso durante uns momentos, escutando com agrado os sons suaves dos movimentos de Cadfael dentro da cabana:

- Com todo o Oeste a manter-se a favor da imperatriz, mesmo que prudentemente, duvido. Agora nada está em movimento, mas é uma calma de mau agoiro. Sabes que o conde Roberto de Gloucester está na Normandia com a imperatriz?

- Foi o que ouvimos dizer. Não é para admirar: é seu meio-irmão, gosta dela, segundo dizem, e não é homem de invejas.

- Um homem bom - concordou Hugh, fazendo justiça com generosidade a um oponente -, um dos poucos em qualquer dos lados que não está com avidez pelo que ele próprio possa obter. O Oeste, por muito calmo que esteja de momento, fará o que Roberto disser. Não acredito que ele adie indefinidamente. Mesmo fora do Oeste, tem parentes e influência. Consta que ele e Maud, do seu refúgio em França, continuam calmamente a trabalhar no sentido de reunirem poderosos aliados, onde quer que vejam sinais de esperança. Se isso for verdade, esta guerra civil não estará de modo nenhum terminada. Com a promessa de apoio suficiente, a causa da senhora manifestar-se-á mais cedo ou mais tarde.

- Roberto tem filhas casadas por aí - comentou Cadfael pensativamente -, e todas com homens de posição. Uma com o conde de Chester, estou lembrado. Se alguns dessa categoria se declararem pela imperatriz, podes muito bem ter uma guerra de monta em mãos.

A expressão de Beringar tornou-se pensativa, mas acabou por afastar a ideia com um encolher de ombros. O conde Ranulf de Chester era de facto um dos mais poderosos homens do reino, virtualmente ele próprio rei de um imenso domínio onde só imperava a sua justiça, e nenhuma outra. Mas, precisamente por essa razão, havia menos probabilidades de sentir desejo de se declarar por qualquer dos lados em luta pelo trono. Ele próprio supremo, e sem correr o risco de alguma vez ver ameaçadas as suas possessões quer por Maud quer por Estêvão, podia dar-se ao luxo de se manter imóvel, de olhos fitos nos seus próprios limites, não apenas com a intenção de os preservar intactos, mas antes de os estender. Uma terra em luta consigo própria proporciona oportunidades, além de ameaças:

- Não vai ser fácil persuadir Ranulf, parente ou não. Ele está muito bem assim e, se tomar uma atitude, será por nela ver proveito e aumento de poder para si próprio, vindo a imperatriz num segundo lugar muito afastado. Não é homem que arrisque seja o que for por qualquer causa que não seja a sua própria.

Cadfael saiu da cabana para se sentar ao seu lado, respirando com gratidão o ar fresco do fim do dia, pois lá dentro tinha o seu pequeno braseiro aceso, por debaixo da mistura que tinha de ferver a fogo lento:

- Assim está melhor! Agora enche-me uma taça, Hugh, que estou mais que preparado para ela. - E, depois de um longo trago que o satisfez, disse pensativamente: - Houve receio de que este confuso estado de coisas pudessse arruinar a feira também este ano, mas parece que o comércio continua em movimento enquanto os barões se escondem nos seus castelos. As perspectivas são excelentes, afinal.

- Para a abadia, talvez - concedeu Hugh. - O burgo está menos satisfeito com as probabilidades, por tudo o que ouvimos na passagem. Este teu novo abade está mesmo à procura de conflito com os burgueses.

- Ah, já sabes disso? - Cadfael contou como decorrera a discussão, para o caso de o amigo só ter ouvido a versão de um lado.

- Têm razão para procurar aliviar as suas contrariedades, não há dúvida. Mas ele também tem para o recusar, e faz finca-pé nos seus direitos. Não há hipótese de rodear o caso legalmente, pois ele não está a apoderar-se de mais do que lhe é concedido. E também não se contenta com menos! - acrescentou com um suspiro.

- Os ânimos estão a aquecer na cidade - avisou Beringar a sério.

- Não garanto que não venham ainda a ter problemas. Duvido que o preboste tenha exagerado a necessidade deles. O que corre no burgo é que isto pode ser a lei mas não é a justiça. Mas como vão as coisas contigo? Como te tens dado com a nova administração?

- Ouvirás murmúrios até dentro das nossas paredes - admitiu Cadfael -, se tiveres os ouvidos atentos. Mas por mim não tenho razão de queixa. Ele é um homem duro, mas justo, e pelo menos tão duro consigo próprio como com os outros. Estávamos mimados e relaxados com Heribert, e a nova barbela refreou-nos consideravelmente, mas é tudo. Tenho muita confiança no homem. Castigará onde vir erros, mas apoiará os seus contra qualquer poder, se forem ameaçados sem culpa. É um homem que eu gostaria de ter ao meu lado em qualquer batalha.

- Mas limita a lealdade aos seus? - interrogou Beringar astutamente, erguendo uma fina sobrancelha negra.

- Vivemos num mundo em contendas - disse o irmão Cadfael, que vivera mais de metade da sua vida onde as batalhas eram mais renhidas. - Quem diz que a paz seria boa para nós? Ainda não conheço suficientemente bem o homem para saber o que lhe vai no espírito. Não lhe tenho encontrado limitações, mas os seus votos são para com a sua vocação e esta casa. Demos-lhe espaço e tempo, Hugh, e veremos o que se segue. Já houve tempo em que estive na dúvida, ou mais, em relação a ti! - A sua voz revelou a surpresa do pensamento que o fez sorrir. - Mas não foi por muito! - Em breve terei também a medida de Radulfus. Passa-me a caneca, rapaz, e depois tenho de ir mexer a mezinha dos vitelos. Quanto tempo temos ainda até ao Terço?

 

 

                                                   Capítulo 2

 

No dia 31 de Julho os vendedores chegaram em cheio, pela estrada e pelo rio. A partir do meio-dia a feira de cavalos estava demarcada em lotes para barracas e tendas, e os ecónomos da abadia de serviço a guiarem os marchantes e mercadores até aos seus lugares, assim como a receberem os direitos devidos pelas mercadorias que transportavam: meio dinheiro pelo modesto carregamento transportado por um homem, um dinheiro pelo carregamento de um cavalo, de dois a quatro dinheiros pelo de um carro, dependendo do tamanho e da capacidade, e propinas mais elevadas, em proporção, pelos bens descarregados pelas barcaças de rio que acostavam ao cais temporário ao longo do Gaye. Todo o comprimento da frontaria ressoava e cintilava de movimento, cor e conversas, o celeiro e o estábulo que a abadia possuía extra-muros estavam cheios, crianças e cães corriam pelo meio das tendas e por entre as rodas dos carros, excitados e barulhentos.

A disciplina das devoções diárias intramuros não fora abrandada, mas, entre os ofícios, um certo ar de alegria festiva entrara com os hóspedes, e noviços e pupilos estavam autorizados a vaguear e a olhar sem penalidades. O abade Radulfus mantinha-se afastado, como competia à sua dignidade, e deixava a superintendência das funções e a recolha das contribuições aos seus ecónomos leigos, mas apesar disso sabia bem o que se estava a passar e tinha medidas em mente para tratar de qualquer emergência. Assim que lhe foi comunicada a chegada do primeiro mercador flamengo, juntamente com a informação de que falava francês, destacou o irmão Mathew, que vivera alguns anos da juventude na Flandres e falava fluentemente o flamengo, para tratar de quaisquer problemas que pudessem surgir. Se apareciam mercadores de tecidos finos, havia boas razões para lhes proporcionar todas as facilidades, pois eram visitantes que davam lucro. O facto de empreenderem tão longa viagem a partir dos portos de East Anglia onde desembarcavam, e de acharem valer a pena alugarem carros ou cavalos para a peregrinação por terra, dava a medida da importância da feira de Shrewsbury.

Claro que os galeses estariam com certeza presentes em número significativo, mas a maioria seria constituída por habitantes locais, que tinham um pé em cada lado da fronteira e sabiam o inglês suficiente para não precisarem de intérpretes. Foi surpresa para o irmão Cadfael ser interceptado uma vez mais ao sair do refeitório depois da ceia, desta vez pelo ecónomo da granja, preocupado e sem fôlego por andar tão atarefado, e que lhe disse ser necessária a sua presença no embarcadouro, para se ocupar de uma pessoa que só falava galês, homem importante, a dar-se ares e que não se deixava despachar com a ajuda suspeita de um galês da região, que no dia seguinte podia muito bem entrar em competição com ele:

- O prior Robert dispensa-o pelo tempo que for necessário. É um indivíduo de nome Rhodri ap Huw, de Mold. Subiu o Dee com um grande carregamento, que depois fez transportar para Vrnwy e o Severn, o que lhe deve ter custado bom dinheiro.

- Que tipo de mercadorias? - perguntou Cadfael, enquanto se dirigiam juntos para a portaria. O seu interesse fora imediato e caloroso. Nada lhe podia ter agradado mais que uma boa desculpa para estar entre o ruído e a azáfama que prosseguiam ao longo da frontaria.

- Principalmente o que parece muito boa lã. E também mel e hidromel. E pareceu-me ver uns molhos de peles... talvez da Irlanda, se ele fez comércio pelo Dee. E eis o homem em pessoa.

Rhodri ap Huw estava de pé, sólido como uma rocha, na plataforma de madeira do ancoradouro, junto da sua barcaça atracada, e deixava passar em redor as marés de actividade humana. O rio corria verde e calmo, atingindo um bom nível para a plena época estival; até barcos de maior calado que o habitual tinham conseguido passar sem acidente e estavam a descarregar e a desenfardar por todos os lados. O galês observava, medindo os fardos dos outros com os astutos olhos escuros semicerrados e avaliando o que via. Parecia ter uns 50 anos, e o seu ar era tão seguro e experiente que surpreendia não ter aprendido inglês. Não era alto, mas espadaúdo e possante, com as maçãs do rosto marcadamente galesas isoladas entre as espessas cabeleira e barba, negras e eriçadas. O vestuário, embora simples e de trabalho, era de excelente tecido e bom corte. Viu o ecónomo dirigir-se apressadamente para ele, sendo evidente que tinha cumprido à letra os seus desejos, e grandes dentes brancos brilharam de satisfação no mais espesso da barba negra.

- Aqui estou, mestre Rhodri - cumprimentou Cadfael alegremente -, para lhe fazer companhia na sua própria língua. O meu nome é Cadfael, ao seu serviço para tudo o que seja preciso.

- E bem-vindo sois, irmão Cadfael - correspondeu Rhodri ap Huw calorosamente. - Espero que me perdoareis afastar-vos das vossas devoções...

- Faço melhor. Agradeço-vos! Seria uma pena perder toda esta azáfama; agrada-me ter de vez em quando uns vislumbres do mundo.

Olhos agudos e a pestanejarem observaram-no da cabeça aos pés num rápido relance:

- Sereis do Norte, parece-me. Mold é a minha terra de origem.

- Perto de Trefriw nasci eu.

- Homem de Gwynedd. Mas que viu mais mundo que Trefriw, pela aparência, irmão. Como eu. Bem, aqui estão os meus dois homens, prontos para descarregarem e transportarem as minhas mercadorias, antes de enviar parte da carga rio abaixo, até Bridgnorth, onde tenho venda de hidromel. Vamos tratar primeiro de pôr os bens em terra?

O ecónomo convidou-os a escolher um lugar em qualquer ponto que o mestre Rhodri considerasse adequado, depois de ter visto o terreno, e deixou-os a supervisionar a descarga. Os dois ágeis barqueiros galeses de Rhodri entregaram-se vivamente ao trabalho, erguendo os pesados molhos de peles e os sacos de lã com a facilidade de conhecedores e empilhando-os no embarcadouro, e Rhodri e Cadfael dedicaram-se com prazer à observação da animada cena que os rodeava; o que muitos dos burgueses e dos hóspedes da abadia estavam igualmente a fazer. Num belo fim de tarde de Verão, a melhor distracção consistia em debruçarem-se do parapeito da ponte ou passearem pelo caminho verdejante do Gaye, contemplando um movimento anual que era um dos seus pontos altos. Que alguns burgueses olhassem com expressões duras e resmungassem uns para os outros em voz baixa e aborrecida também não era caso para grande admiração. A confrontação da véspera tinha sido comunicada por toda a cidade: sabiam que tinham sido despedidos de mãos vazias.

- Notável - comentou Rhodri, afastando as pesadas pernas sobre as tábuas que rangiam - como as duas metades da Inglaterra se encontram no comércio, enquanto se apartam em todos os outros campos. Mostre-se a um homem onde se pode fazer dinheiro, e ele lá estará. Se os barões e os reis tivessem o mesmo bom senso, o país podia estar em paz e lucrar belamente com isso.

- Todavia, creio - disse Cadfael secamente - que haverá fortes contendas aqui até entre comerciantes, antes de os três dias chegarem ao seu termo. Há muitas maneiras de cortar cabeças.

- Bem, todos os homens sensatos andam armados, com as armas que melhor sabem manejar, também isso não é mais que bom senso. Mas convivemos, convivemos melhor do que os príncipes conseguem. Embora lhe conceda - disse pesadamente - que os príncipes fazem bom uso destas ocasiões, se virmos bem. Não há melhor lugar que uma das vossas grandes feiras para troca de notícias e pontos de vista sem se tornar notório, ou para tramar conspirações e estratagemas, ou para encontros a que não se desejaria dar publicidade. Não há lugar mais solitário que em pleno mercado!

- Numa terra dividida- concordou Cadfael pensativamente - pode muito bem ser que tenha razão.

- Por exemplo- olhe um pouco para a esquerda, mas não se vire. Vê aquele tipo magro e bem vestido, cuidadosamente barbeado e com andar afectado? Veio ver quem chega pela água! Pode ter a certeza de que, se ele se dignou vir até cá, veio cedo, já tem o expositor montado e recheado para estar livre a fim de nos observar e aos restantes. É Euan of Shotwick, luveiro e homem importante na corte do conde Ranulf de Chester, posso garantir-lhe.

- Devido à perícia no seu ofício? - quis saber Cadfael secamente, observando com interesse a figura magra, enfadada e convencida.

- Nisso e noutros campos, irmão. Euan of Shotwick é um dos mais espertos informadores do conde Ranulf, que nele tem muita confiança, e, se se instalou aqui tão longe como Shrewsbury, pode muito bem ser com mais objectivos para além do simples comércio. E ali do outro lado, veja, aquela grande barcaça que se está a preparar para acostar... a jusante de nós. Vê-lhe a configuração? Aposto mil marcos em como foi construída em Bristol! Vinda directamente do território ocidental e da cidade que o rei não conseguiu capturar o ano passado e que desde então tem deixado em sossego.

Sobre a superfície em lento movimento do Severn, com o seu verde agora prateado pelos raios do sol-poente, a barcaça ladeava a margem relvada, dirigindo-se para a extremidade do pontão. Impunha-se pela opulência e graciosidade, tendo sido expressamente construída para cortar as águas como barcos com metade da sua capacidade, sem deixar de ser facilmente manobrável e de manter um bom ritmo. Tinha um único mastro e uma cabina fechada, que parecia muito limpa, à popa, estando a ser empurrada à vara por três tripulantes, com movimentos seguros e fáceis, enquanto aguardavam um lugar vago para atracar. “Vinte dinheiros, com toda a probabilidade”, pensou Cadfael, “para ela poder descarregar e partir!"

- Feita para transportar vinho e transportá-lo com segurança - disse Rhodri ap Huw fitando o barco com calculadores olhos semicerrados. - Alguns dos melhores vinhos de França vão para Bristol, devem vendê-los bem tão a norte como aqui. Conheço bem aquela armação!

Um número considerável de mirones, quer reconhecendo o tipo de construção e armação quer não, manifestou suficiente curiosidade para descer da ponte e da estrada a fim de seguir a acostagem do barco de Bristol. Era suficientemente notável entre os outros meios de transporte para atrair todos os olhares. Cadfael avistou umas caras conhecidas, de pescoços estendidos, no meio da multidão: a mulher de Edric Flesher, Petronilla, a criada de Aline Beringar, Constance, encostadas ao parapeito da ponte, um dos ecónomos da abadia, esquecendo os seus deveres, de olhos fixos; e de súbito a luz do Sol bateu numa cabeça cujo cabelo dourado-escuro estava cortado curto, e um jovem surgiu a correr com ligeireza da estrada, para se deter na encosta relvada que se projectava sobre o embarcadouro a observar com admiração o barco de Bristol a deslizar, pronto para ser amarrado. O pequeno senhor cuja beleza serena despertara a prudente admiração de Mark estava evidentemente tão intrigado como o mais maltrapilho dos pedintes da frontaria.

Os dois galeses já tinham por esta altura completado a sua descarga e aguardavam ordens, e Rhodri ap Huw não era homem que deixasse o seu interesse pelos assuntos de outros homens interferir com o seu próprio.

- Vão levar o seu tempo a descarregar - disse com vivacidade. - Vamos escolher um bom lugar para a minha instalação enquanto o campo está aberto?

Cadfael conduziu-o ao longo da frontaria, onde já estavam a ser montadas diversas barracas.

- Deve preferir um sítio na própria feira de cavalos, onde se encontram todas as estradas, suponho.

- Ah, os meus clientes encontram-me onde quer que esteja - afirmou Rhodri com presunção; mas mesmo assim não deixou de manter o olhar atento a todas as possibilidades e não se apressou a seleccionar um lugar, mesmo depois de terem percorrido todo o comprimento da frontaria e chegado ao grande triângulo aberto da feira de cavalos. Os servidores da abadia tinham instalado um certo número de cabinas mais elaboradas, que podiam ser fechadas e trancadas, proporcionando instalação aos seus utentes, e que eram arrendadas. Outros comerciantes traziam as suas próprias tendas de armar e instalações ligeiras, enquanto os pequenos vendedores do campo chegariam todas as manhãs cedo e exporiam os seus produtos no chão seco, ou num capacho tecido, enchendo todos os espaços deixados vazios. Para Rhodri só o melhor era suficientemente bom. Decidiu-se por uma forte cabina perto do celeiro e do estábulo da abadia, onde todos os compradores que viessem passar um dia podiam deixar os seus animais, e nessa altura não lhes passariam despercebidas as mercadorias dos expositores mais próximos.

- Esta serve muito bem. Um dos meus rapazes passa cá as noites. - O mais velho tinha-os seguido, equilibrando com facilidade o primeiro carregamento sobre os ombros, enquanto o outro permanecera no embarcadouro a guardar a mercadoria lá empilhada. Agora começou a arrumar o que trouxera, e Rhodri e Cadfael partiram de novo em direcção ao rio, para enviarem o companheiro ter com ele. De caminho interceptaram um dos ecónomos, informaram-no da localização escolhida e acordaram a renda. O dever imediato do irmão Cadfael estava cumprido, mas ele continuava interessado na azáfama crescente na estrada e junto do Severn, como qualquer homem que só visse aquilo uma vez por ano, e ainda podia dispor de algum tempo antes do Terço. Também era agradável estar a falar galês, tão raramente tinha essa oportunidade dentro daqueles muros.

Chegaram ao ponto em que o caminho se desviava da estrada para descer em direcção à beira-rio e deparou-se-lhes uma cena cheia de vida. O barco de Bristol estava atracado e os três tripulantes começavam a içar os cascos de vinho para o embarcadouro, enquanto um possante e idoso cavalheiro corado, vestido com um comprido manto de corte moderno e com capuz retorcido de modo a formar um chapéu complicado, agitava as mangas largas a apontar, a fazer sinais e a dar ordens a torto e a direito. O rosto era carnudo mas poderoso, redondo e colérico, com sobrancelhas hirsutas como tojo e bochechas azuladas. Movia-se com surpreendente agilidade e rapidez, e era evidente que se considerava um homem de importância, e esperava que os outros o reconhecessem como tal assim que o vissem.

- Bem me tinha parecido que podia ser ele! - exclamou Rhodri ap Huw, agradado com a sua própria agudeza e com o conhecimento que evidenciava de temas muito vastos. - Thomas of Bristol, é como lhe chamam, um dos maiores importadores de vinho para esse porto, e negoceia em pequenas quantidades com mercadorias de luxo vindas do Levante: doces, especiarias e guloseimas. Os venezianos trazem-nas de Chipre e da Síria. Caras e lucrativas! As senhoras pagam elevados preços por coisas que as vizinhas não tenham! Que disse eu? O dinheiro reúne-os. Quer tenham voz por Estêvão quer pela imperatriz, virão acotovelar-se na vossa feira, irmão.

- Pelo aspecto dele - comentou Cadfael -, é homem importante na cidade de Bristol.

- Pois é, e mais diria em muito boas relações com Roberto de Gloucester, mas negócios são negócios e seria preciso mais que o simples temor de se aventurar em território inimigo para o manter em casa, quando há bom dinheiro a ganhar.

Tinham-se virado para começarem a descer para a margem do rio quando se aperceberam de um crescente murmúrio de excitação entre as pessoas que observavam da ponte, e de cabeças que se voltavam para olharem na direcção das portas do burgo, do outro lado do rio. À luz do fim do dia, muito inclinada para oeste, lançava sombras profundas sob um dos parapeitos e até meio da ponte, mas por cima pairava uma ligeira nuvem de fino pó em movimento, tremeluzindo aos raios do sol-poente e avançando para a margem da abadia. Um apertado grupo de jovens tornou-se visível, abrindo caminho a passo vivo por entre os mirones que passeavam, como um pequeno exército determinado em marcha. Todos os outros passavam agradavelmente o tempo livre do fim do dia, aqueles dirigiam-se a qualquer lado, resolutos e apressados, pressa talvez tanto mais agressiva quanto temessem perder a decisão. Poderiam ser uns vinte e cinco, todos homens e todos jovens. Cadfael conhecia alguns deles: o filho de Martin Bellecote, Edwy, estava lá, o jornaleiro de Edric Flesher e descendente de meia dúzia de misteres respeitados na cidade; à cabeça avançava o próprio filho do preboste, o jovem Philip Corviser, de queixo beligerante espetado e a fazer oscilar as mãos de punhos fechados ao ritmo da sua passada larga. Tinham um ar muito grave e muito duro, e as pessoas ficavam a olhar para eles surpresas e intrigadas e reagrupando-se com mais cautela depois de terem passado, para observarem o que iria acontecer.

- Se esta não é uma face da batalha - disse Rhodri ap Huw, alerta, vendo os rostos jovens e sérios quando ainda se encontravam a uma distância segura -, eu nunca a vi. Já tinha ouvido que a vossa casa tem uma divergência de opiniões com o burgo. Vou pôr todas as minhas mercadorias em segurança, bem arrumadas e trancadas, antes de soarem as trombetas. - Arregaçou as mangas e, com a ligeireza de um esquilo, já tinha descido o caminho até ao embarcadouro e estava a içar os seus preciosos vasos de mel para longe do perigo, enquanto Cadfael continuava de olhos pensativamente fixos à beira da estrada. Os instintos do mercador, pensou, justificavam-se plenamente. Os mais velhos da cidade tinham feito a sua petição e sido despedidos de mãos vazias. A julgar pelas suas expressões, as personalidades mais jovens e exaltadas da cidade de Shrewsbury tinham resolvido tomar medidas mais radicais. Uma observação rápida assegurou-lhe que não estavam armados; tanto quanto conseguia ver, nem um cajado havia entre eles. Mas a face era indubitavelmente a face da batalha, e as trombetas estavam prestes a soar.

 

 

                                                               Capítulo 3

 

A falange que avançava chegou ao fim da ponte detendo-se não mais que um momento, enquanto o seu chefe dirigia olhares calculadores para a frente, ao longo da frontaria agora povoada de pequenas tendas, e para baixo, para o embarcadouro, e dava uma ordem repentina. Então, talvez com dez dos mais fortes atrás, virou-se e mergulhou pelo caminho que levava ao rio, enquanto os restantes marchavam em frente com denodo. Os burgueses interessados, igualmente mudos e lestos, dividiram-se em grupos partidários e seguiram ambos os contingentes. Nem um perderia voluntariamente o que se ia passar. Cadfael, com mais sobriedade, fitou as fileiras que passavam e viu confirmada a sua crença de que tinham as mais sérias intenções: não havia nem uma moca entre eles, e duvidava mesmo que algum usasse armas brancas. Nada neles era belicoso, a não ser os rostos. Além disso, conhecia-os quase todos: nenhum era mau por natureza. Mesmo assim, voltou-se para os seguir caminho abaixo, não verdadeiramente descansado. O rebento Corviser era conhecido pelo seu feitio tempestuoso, esperto, cheio de ideias estouvadas e suspeitas, metade do tempo embrenhado em combates com os mais velhos, e ocasionalmente capaz de beber bastante mais do que podia aguentar na fase da vida em que se encontrava. Contudo, naquele dia não estivera a beber: tinha o espírito ocupado por coisas muito mais urgentes.

O irmão Cadfael suspirou, descendo o caminho para a margem meio contrariado. Os jovens atrevidos são muito dados a aventurarem-se para além do ponto em que a experiência recua. E quanto mais vivaços forem mais probabilidades têm de sair feridos.

Não ficou nada surpreendido ao verificar que Rhodri ap Huw, aquele tão experiente viajante, desaparecera do cais juntamente com o seu segundo carregador e todas as mercadorias. O próprio Rhodri não estaria longe, uma vez que visse os seus bens a caminho de serem trancados na cabina da feira de cavalos. Quereria observar tudo o que se passasse, e tomar as suas disposições em conformidade, mas não estaria à vista e sim onde pudesse partir livremente, se lhe parecesse melhor. Mas havia meia dúzia de barcos de diversos tamanhos ocupados a descarregar, dominando-os todos a nobre barcaça de Thomas of Bristol, que ouviu a súbita onda de pés a caminhar com urgência pela vereda e virou-se para deitar um olhar imperioso para esse lado, antes de voltar ao seu trabalho de supervisionar o desembarque das mercadorias. A fila de cascos e fardos sobre as pranchas era impressionante. Os jovens que surgiam junto ao rio não podiam deixar de avaliar com precisão as forças que enfrentavam:

- Cavalheiros... - Philip Corviser chamou-os a todos em voz alta, detendo-se de pernas abertas em frente de Thomas of Bristol. A sua voz era sonora; ouvia-se bem e comandou a atenção de comerciantes menos importantes, que deixaram o que estavam a fazer. - Cavalheiros, peço-vos que me escuteis pois todos sois cidadãos, seja qual for a cidade, tal como eu sou de Shrewsbury, e cada um de vós se preocupa com a sua própria cidade como eu me preocupo com a minha! Estais aqui a pagar rendas e direitos à abadia, enquanto a abadia nega qualquer auxílio à cidade. E nós temos muito mais necessidade que a abadia de uma parte do que trazeis.

Inalou com força, pois esgotara o seu primeiro fôlego. Era um rapaz desajeitado, ainda não em pleno comando dos seus membros muito desenvolvidos, pois mal completara os 20 anos e terminara o crescimento. Vestido com garbo, mas com os sapatos gastos, observou Cadfael - prova do velho ditado de que “em casa de ferreiro, espeto de pau”! Tinha uma espessa cabeleira de um ruivo-escuro, e o rosto decente e simpático, agora pálido de entusiasmo sob o bronzeado estival. Um bom e destro trabalhador, constava, quando não andava atrás de qualquer causa polémica. Agora tinha mesmo uma causa, Deus abençoasse o rapaz: estava a despejar para aqueles homens de negócios de cabeças duras todos os argumentos que o pai tinha usado com o abade no capítulo, o mais a sério possível. E-o Céu lhe ensinasse a ter juízo! - até com esperanças de os convencer!

- Se a abadia olha com desinteresse os problemas do burgo, deveis alinhar com ela? Estamos aqui para vos contar a nossa versão da história, e para apelar para vós como homens que também têm de suportar as dificuldades das vossas próprias regiões, e talvez já tenham visto aí o que a guerra e o cerco podem fazer a muralhas e pavimentos. Não é razoável que solicitemos uma parte dos lucros da feira? A abadia não sofreu prejuízos no ano passado, o que aconteceu à cidade. Se eles não aceitam privar-se de algo para o bem comum, dirigimo-nos a vós, que não tendes semelhante protecção das dificuldades do mundo e haveis de vos solidarizar com quem as partilha.

Estavam a começar a perder o interesse, a encolher ombros, a regressar às descargas. Ele ergueu a voz num apelo:

- Só pedimos que retenham um décimo dos direitos que pagam à abadia e o entreguem à cidade, para obras de reparação das muralhas e pavimentos. Se todos vos unirdes, que podem os ecónomos da abadia contra vós? Não é necessário que os vossos custos ultrapassem o que teríeis de pagar em qualquer caso, e teremos algo mais parecido com a justiça. Que dizeis? Ajudar-nos-eis?

Não o fariam! O murmúrio de indiferença e troça nem precisava de palavras. Quê, introduzir um desafio ao que estava estabelecido por carta-patente, sem terem nada a ganhar com isso? Por que haviam de se arriscar? Voltaram ao trabalho, afastando-o da ideia com um encolher de ombros. Os jovens que se encontravam atrás dele estabeleceram entre si um contra-murmúrio, ainda controlado, mas com a ira a aumentar de intensidade. E Thomas of Bristol, poderoso e com desprezo, abanou o punho fechado no rosto do orador e disse impacientemente:

- Afasta-te, rapaz, estás a incomodar os teus superiores! Com que então pagar um décimo à cidade!? Os direitos da abadia não estão estabelecidos por lei? E podes dizer-me, atrever-vos-eis a tal, que esta não vos paga a propina exigida pela carta-patente? Se tendes uma queixa de que estejam a falhar no cumprimento da lei, levai-a ao alcaide, a quem compete, e não nos incomodeis com os vossos disparates. Agora ide-vos embora e deixai os homens honestos continuarem com o seu trabalho.

O jovem enfureceu-se:

- Os homens de Shrewsbury são tão honestos como o senhor, embora façam menos alarde disso. Aqui a honestidade nunca é posta em causa! E não é disparate que a nossa cidade tenha as muralhas e as ruas escalavradas, enquanto a abadia e a estrada que lhe dá acesso escaparam a esses prejuízos. Não, mas escutai...

O mercador virou-lhe as costas largas e arqueadas, com um efeito desdenhoso, afastando-se majestosamente para ir buscar o bordão que encostara aos seus barris empilhados e indicar aos seus homens que continuassem com o trabalho. Philip seguiu-o indignado, pois o acto constituíra uma afronta deliberada, como se um mosquito, um simples aborrecimento persistente, tivesse sido arredado:

- Senhor mercador - chamou vivamente. - Só mais uma palavra! - E, para o deter, pousou a mão na manga finamente pregueada de Thomas.

Eram duas pessoas coléricas, e podiam ter chegado a vias de facto, na melhor das hipóteses, mais cedo ou mais tarde, mas a impressão de Cadfael foi de que Thomas ficara muito surpreendido por sentir o braço agarrado e acreditara que estava prestes a sofrer uma agressão. Fosse qual fosse a causa, rodou sobre si próprio e desferiu um golpe cego com o bordão que segurava. O rapaz levantou o braço, mas demasiado tarde para proteger eficazmente a cabeça. Todo o peso do golpe lhe recaiu sobre o antebraço e a têmpora, derrubando-o sobre a plataforma do embarcadouro, com sangue a escorrer-lhe de um corte sobre o ouvido.

Foi o fim de todo o protesto pacífico e digno, e foi também a declaração de guerra. Muitas coisas aconteceram instantaneamente. Philip caíra sem um grito, ficando meio atordoado, mas alguém gritara, um guincho de protesto, logo engolido no berro de ira dos jovens do burgo. Dois correram para o seu chefe caído, mas os restantes, gritando por vingança, precipitaram-se para enfrentar os comerciantes igualmente despertos e envolveram-se alegremente em luta com estes. Num momento, as mercadorias recém-desembarcadas estavam a ser içadas e atiradas ao rio, e um dos atacantes em breve as seguiu, com uma chapada mais ruidosa. Felizmente, quem vivia sempre junto ao Severn costumava aprender a nadar ainda antes de aprender a andar, e o jovem não ficou em perigo de se afogar. Quando conseguiu içar-se para a margem e voltar à luta já esta progredia ao longo do rio.

Alguns dos cidadãos de cabeça mais fria tinham-se aproximado, embora cautelosamente, para tentarem separar os combatentes e convencer os jovens furiosos a serem mais sensatos; e um ou dois, os menos cautelosos, tinham acabado por receber os golpes destinados ao inimigo, o que acontece normalmente a quem tenta estabelecer a paz onde ninguém está inclinado para ela.

Cadfael precipitara-se para o embarcadouro juntamente com os restantes, tencionando evitar o que poderia muito bem ser segundo e fatal golpe, a julgar pela aparência congestionada do mercador e pelo bordão em riste. Mas alguém chegou antes dele. Uma jovem trepara freneticamente da minúscula cabina da barcaça, arrebanhara as saias e saltara para terra, a tempo de se agarrar com toda a sua força ao braço trémulo e implorar em tom agitado:

- Tio, não, por favor, não! Ele não fez violência nenhuma! O tio é que o feriu com gravidade!

Os olhos castanhos de Philip Corviser, que durante todo aquele tempo se tinham mantido abertos mas sem ver, piscaram furiosamente ao som de voz tão inesperada. Ergueu-se trémulo sobre os joelhos, lembrou-se do ferimento e do ataque e reuniu os membros desconexos e as faculdades para se pôr em pé e entrar na batalha. Não que os seus esforços pudessem ter sido muito eficazes: as pernas cediam debaixo dele enquanto tentava levantar-se, e segurava a cabeça entre as mãos como se pudesse cair ao menor abanão. Mas foi a visão da jovem que o fez parar. Lá estava ela, agarrada ao braço do mercador e a suplicar-lhe angelicamente ao ouvido, em tons que teriam feito esfriar um dragão, ao mesmo tempo que os seus olhos dilatados, ansiosos e compassivos recaíam sobre Philip. E chamava “tio”, ao velho demónio! A vingança de Philip foi posta fora do seu alcance num momento, mas ele mal sentiu a dor dessa privação, a julgar pela forma como o seu rosto ferido e furioso se transformou. Oscilando sobre um joelho, ainda entontecido, fitava a jovem como um peregrino poderia fitar uma visão miraculosa, ou um viajante perdido a Estrela Polar.

Ela merecia bem ser fitada, rapariguinha duns 18 ou 19 anos, de braços e cabeça descobertos, com duas grandes tranças de cabelo negro-azulado a oscilarem-lhe até à cintura e, enquadrada por elas, uma cara redonda e infantil, toda rosas e neve, iluminada por dois pestanudos olhos azul-escuros, de momento enormes de alarme e preocupação. Não admirava que o simples som da sua voz conseguisse domar tão formidável tio, pois a visão dela detivera e prendera a atenção dos dois jovens que se tinham precipitado para salvar e vingar o seu chefe e que agora estavam envergonhados, de bocas abertas e inofensivos.

Foi então que a luta no embarcadouro, que se tornara uma refrega desesperadamente confusa, se desviou, baqueando ao longo das pranchas e fazendo desmoronar a pilha de barris mais pequenos, que rolaram estrepitosamente em todas as direcções. Cadfael agarrou o jovem Corviser por baixo dos braços, pô-lo de pé e afastou-o do perigo, atirando-o literalmente para os braços dos amigos, a fim de que o protegessem, pois continuava estonteado. Um casco a rolar bateu nos pés de Thomas, levantando-o do chão, e a jovem, atirada para o lado na queda, oscilou perigosamente à beira do cais.

Uma figura ágil passou por Cadfael como uma flecha com cabeleira loura, saltou outro casco que rolava com a ligeireza de um veado e o seu braço comprido trouxe-a de regresso à segurança. A graça e destreza quase insolentes eram tão familiares como o cabelo dourado. Cadfael contentou-se em ajudar Thomas a erguer-se e a afastar-se do perigo, e não ficou particularmente surpreendido, feito isso, por verificar que o braço comprido continuava a envolver galantemente a cintura da jovem. Esta também não estava com pressa de se libertar. De facto, fixava o rosto sorridente, simpático e tranquilizador do seu salvador de olhos muito abertos, com uma expressão parecida com a de Philip Corviser ao fitá-la.

- Pronto, está em perfeita segurança! Mas deixe-me ajudá-la a regressar a bordo; é melhor lá ficar algum tempo, e o seu tio também. É o que lhe aconselho, meu caro senhor - disse com toda a seriedade. - Ninguém o desafiará mais. Com esta senhora a seu lado, ninguém pode ser tão pouco cavalheiro - completou, com os olhos arregalados de cândida admiração. O creme da pele clara da jovem tornou-se todo róseo.

Thomas of Bristol sacudiu-se com as mãos ligeiramente trémulas, pois era um homem grande e caíra com todo o seu peso:

- Agradeço-lhe calorosamente a ajuda, meu caro senhor. A si também, irmão. Mas os meus vinhos... as minhas mercadorias...

- Deixai-as connosco. O que puder ser salvo sê-lo-á. Ficai a salvo a bordo e esperai. Isto não pode continuar, a lei perseguirá em breve estes loucos jovens turbulentos. Metade anda pela frontaria a derrubar tendas e acossar os ecónomos da abadia. Dentro de pouco tempo estarão na cadeia da cidade, com as cabeças doridas e a desejarem ter tido mais juízo do que desencadearem uma luta com o abade de um mosteiro beneditino.

O seu olhar recaía em Cadfael, que estava ocupado a endireitar e recuperar cascos fugitivos, e ainda ao alcance da voz dele. Cadfael sentiu-se atraído com companheirismo

pelo plano de mestre do jovem, talvez para lhe dar segurança e garantia de respeitabilidade.

Os olhos deste eram algo travessos, embora a expressão do rosto mantivesse uma decente gravidade. O monge beneditino mais próximo estava a ser objecto de uma ligeira troça como representante da sua ordem.

- O meu nome - dizia jovialmente o salvador - é Ivo Corbière, do senhorio de Stanton Cobbold, neste condado, apesar de a parte mais importante das minhas honras ficar em Cheshire. Se me permitir, é com todo o gosto que lhe ofereço o meu auxílio... - Então já tirara o braço da cintura da jovem, com decoro mas relutância, continuando no entanto a abraçá-la e lisonjeá-la com o olhar; ela tinha plena consciência disso, e não lhe desagradava. - Lá está! - exclamou Corbière triunfantemente, quando um assobio agudo se fez ouvir, com origem num jovem debruçado no parapeito da ponte, mesmo por cima deles. - Agora vejam-nos procurar esconderijos! O vigia já viu os homens do alcaide saírem para pôr fim ao tumulto.

A avaliação dele era perfeitamente correcta. Meia dúzia de cabeças ergueram-se vivamente ao ouvirem o som, observaram o braço a acenar com urgência, e meia dúzia de jovens desgrenhados libertaram-se apressadamente da luta, largaram o quer que tivessem nas mãos e fugiram velozmente em diversas direcções, uns ao longo de Gaye, para os abrigos da margem, outros subindo a encosta para o emaranhado de estreitas vielas por detrás da frontaria, um por debaixo do arco da ponte, para emergir a montante sem mais danos para além dos pés molhados. Momentos depois o estrondo de cascos ressoou sobre a ponte, e meia dúzia dos homens do alcaide desceu a trote para o embarcadouro, enquanto o resto da companhia passava em direcção à feira de cavalos.

- É como se já tivesse acabado! - disse Ivo Corbière alegremente. - Irmão, ajuda-me a remar? Suponho que conheça este rio melhor do que eu, e há bens ganhos com dificuldade por muitos homens a flutuar por aí, muitos dos quais podem ser salvos.

Não pediu licença a ninguém; já escolhera o barco mais pequeno e manejável dos que oscilavam junto ao cais e atravessara as pranchas e descera para ele quase antes de os homens do alcaide terem conduzido as suas montadas para junto dos combatentes, que continuavam embrenhados em luta, e terem começado a pegar nos conhecidos da terra pelos cabelos. O irmão Cadfael seguiu-o. Com o Terço a não mais de dez minutos, pelo seu relógio mental, devia ter-se escapado e deixado a expedição de salvamento àquele jovem convencido e dominador, mas fora ali enviado para ajudar um cliente da feira da abadia, e não era possível argumentar que continuava a tratar do mesmo assunto? Estava no barco emprestado, com um remo na mão e os olhos no casco mais próximo, a flutuar nas águas brilhantes, iluminadas pelo sol-poente, antes de ter encontrado a resposta; e isso já era resposta suficiente.

O ruído não tardou a desvanecer-se. Todos os que tinham ficado estavam ocupados a pescar fardos e maços do rio, a perseguir alguns pela corrente até buracos onde se tivessem depositado, a abandonar pequenas coisas demasiado molhadas e vulneráveis para serem salvas, a tomar nota de pequenas perdas e a calcular os lucros ainda possíveis depois do pagamento de propinas, alugueres e direitos. Afinal, os prejuízos não eram exagerados, podiam muito bem ser suportados. Ao longo da frontaria as tendas estavam a ser endireitadas e as mercadorias expostas de novo. Era duvidoso que o pandemónio tivesse alguma vez chegado à feira dos cavalos, onde os grandes mercadores desfaziam os seus fardos. Nos confins pedregosos do castelo e da cadeia da cidade, com certeza que cerca de uma dúzia de jovens burgueses estava a cuidar das feridas no físico e no orgulho, perguntando-se como o seu protesto nobre e desinteressado se desintegrara numa tal confusão. Quanto a Philip Corviser, ninguém sabia para onde fora recuperar, uma vez liberto dos devotos que o tinham ajudado a abandonar o cais, ainda tonto. A breve aventura terminara, sem custos demasiado elevados. Nem sequer o alcaide, Gilbert Prestcote, ia ser muito rígido com aqueles jovens de Shrewsbury, bem intencionados mas mal aconselhados.

- Cavalheiros - dizia Thomas of Bristol, mais à vontade e expansivo -, não vos posso agradecer o suficiente por tão generoso auxílio. Não, os cascos não terão sofrido qualquer dano. Quem compra os meus vinhos armazena-os bem acondicionados durante bastante tempo antes de abrir os tonéis, pelo que as suas qualidades não serão prejudicadas. Os doces com açúcar, graças sejam dadas, ainda não tinham sido descarregados. Não, não sofri verdadeiros danos. E aqui esta criança está em grande dívida para convosco. Vem, minha filha, não te escondas aí dentro, apresenta os teus respeitos a tão bons amigos! Deixai-me apresentar-vos a minha sobrinha Emma, filha da minha irmã, Emma Vernold, herdeira do pai, que foi um mestre-pedreiro da nossa cidade, e também minha, pois não tenho outros parentes. Emma, minha querida, podes servir o vinho!

A jovem aproveitara bem o intervalo. Apareceu então com as tranças enroladas dentro de uma rede dourada, sobre o pescoço, e com uma elegante túnica de linho bordado sobre o vestido simples. “Não”, pensou Cadfael, “em minha honra!” Era mais do que tempo de ele se despedir e voltar aos seus deveres. Faltara ao Terço a favor da recuperação de bens das águas, e ainda teria de passar cerca de uma hora no seu laboratório antes de poder recolher ao leito. Ninguém iria cedo para a cama naquela noite, porém. Thomas of Bristol não era homem que deixasse a supervisão da sua cabina e a disposição das mercadorias a outros, por maior confiança que tivesse nos seus três servos; não tardaria a partir para a feira de cavalos, para ver tudo guardado em segurança, de acordo com os seus desejos e a postos para o dia seguinte. E, se lhe parecesse apropriado deixar aqueles dois belos jovens ali juntos até ao seu regresso, o problema era dele. A menção do senhorio de Stanton Cobbold, e como a menor parte das honras de Corbière, ainda por cima, fizera o seu efeito. De facto não teria havido verdadeira necessidade daquela cuidadosa menção da presumível futura riqueza de Dona Emma; mas os tios e tutores conscienciosos têm de estar sempre alerta para encontrar bons casamentos para as suas pupilas, e aquele jovem já ficara fascinado pelo rosto dela ainda antes de ouvir falar da sua fortuna. Não era caso para admirar, sendo ela uma bela rapariga para quaisquer padrões de beleza.

O irmão Cadfael desculpou-se por não se demorar, despediu-se dos presentes desejando-lhes uma boa noite e encaminhou-se devagar para a portaria. Na estrada em frente havia muita gente em actividade, mas em paz. A ordem fora restaurada, e a Feira de S. Pedro podia abrir no dia seguinte sem mais distúrbios.

 

 

                                                           Capítulo 4

 

Hugh Beringar regressou de uma última patrulha ao longo da frontaria muito depois das dez horas, quando todos os irmãos cumpridores deviam estar profundamente adormecidos no dormitório. Não ficou de modo nenhum surpreendido ao descobrir que Cadfael não estava. Encontraram-se no grande pátio, vindo Cadfael de fechar o seu laboratório na estufa. Ainda estava uma clara luminosidade crepuscular, com o brilho deixado a oeste pelo sol-posto.

- Ouvi dizer que estiveste no mais renhido daquilo tudo - disse Hugh, espreguiçando-se e bocejando. - Alguma vez te conheci sem estares onde a luta fosse mais renhida? Jovens loucos, que esperavam conseguir onde os mais velhos haviam falhado?! E depois perderam o tino como perderam, e arruinaram a sua posição até junto de quem tinha simpatia por eles! Agora os senhores terão de pagar multas, e a terra perderá mais por esta noite do que se propôs ganhar. Cadfael, não tenho prazer nenhum em meter na prisão rapazes decentes mas tontos. Fiquei com a boca amarga por isso. Agora mais te vale ficar acordado até Matinas.

- Aline deve estar à tua espera - objectou Cadfael.

- Aline, bendito seja o seu bom senso, deve estar a dormir profundamente, pois eu ainda tenho de ir ao castelo relatar esta perturbação. Sou capaz de lá passar a noite. Vem contar-me como tudo isso deu para o torto, uma vez que me disseram ter começado no cais, onde tu estavas.

Cadfael acompanhou-o de boa vontade. Sentaram-se na antessala da portaria, e o guarda-portão, habituado a tais actividades nocturnas quando o ajudante do alcaide do condado se alojava no mosteiro, levou-lhes vinho, inquiriu delicadamente sobre os progressos das investigações e deixou-os em colóquio.

- Quantos prendeste? - indagou Cadfael, depois de ter relatado o que se passara junto ao rio.

- Dezassete. E deviam ter sido dezoito - confessou Hugh, aborrecido -, se não tivesse agarrado no rapaz de Bellecote, Edwy, sem testemunhas, metendo-lhe medo com Deus e mandando-o para casa com um tabefe. Ainda nem dezasseis anos tem! Mas suficientemente esperto para saber muito bem no que se metia, o diabinho! Eu não devia ter feito o que fiz.

- O pai foi um dos delegados de ontem - informou Cadfael - e ele é um filho leal, ao mesmo tempo que audaz. Ainda bem que o deixaste ir para casa. E o jovem Corviser?

- Não, não lhe pusemos a mão, embora uma dúzia de testemunhas afirme que ele era o cabecilha e que capitaneou toda a empresa. Mas alguma vez há-de ter de ir para casa, e não entra em liberdade as portas do burgo. Nem pensar!

- Ele chegou a discursar como um doutor - disse Cadfael a sério - e não esboçou o mínimo gesto de ameaça. Quando foi derrubado é que os rapazes bravos pegaram o freio nos dentes e atacaram às cegas. Eu vi! O homem que o atingiu fê-lo à toa, alarmado, garanto-te, mas sem causa.

- Acredito no teu testemunho e agirei em conformidade. Mas ele é que conduziu o ataque, e acabará com os restantes, como deve ser, uma vez que nos criou o problema a todos. Os pais hão-de pagar-lhes as fianças, a todos - comentou Hugh pesadamente, passando os dedos compridos sobre as pálpebras fatigadas. - Pareço-te, Cadfael, estar a transformar-me horrivelmente num funcionário da coroa? Não gostaria nada disso!

- Não - respondeu Cadfael judiciosamente -, ainda não muito. Continuas com brilho no olhar e subtileza no espírito. Por enquanto passas!

- Simpático da tua parte! E afirmas que esse mercador de Bristol derrubou o tolo do rapaz sem provocação?

- Imaginou a provocação. O rapaz tentou detê-lo por trás, pondo-lhe a mão no braço, sem má intenção, mas o homem assustou-se. Segurava um bordão, virou-se e desferiu o golpe. Derrubou-o como a uma rês! Duvido que o rapaz ficasse com forças para desmanchar uma armação de tripé, depois daquilo. Tanto quanto sei, até pode ter caído desmaiado algures, a menos que os amigos tenham tomado conta dele.

Hugh olhou-o por sobre a mesa de três pés em que eles próprios apoiavam os cotovelos e sorriu: - Se alguma vez precisar de advogado, venho a correr ter contigo. Bem, conheço o rapaz, tem a língua afiada e dá com ela nos dentes com demasiada liberdade, o seu temperamento é exaltado e o coração generoso, e deixa que ambos se sobreponham ao bom senso... se insistirem em que tem algum!

O porteiro leigo assomou à entrada da sala com a sua coroa careca, morena, e o rosto redondo, corado:

- Senhor, está uma dama aqui ao portão com um problema e pede para lhe dar uma palavra. Uma Dona Emma Vernold, sobrinha do mercador Thomas of Bristol. Recebe-a?

Eles fitaram-se de um lado ao outro da tábua, com sobrancelhas erguidas e olhos surpresos:

- O mesmo homem? - interrogou Beringar, espantado.

- O mesmo homem, indubitavelmente! E amesma jovem! Mas a confusão tinha terminado. Que poderá ela querer aqui a esta hora, e que estará o tio a fazer, para a deixar aventurar-se livremente durante a noite?

- O melhor é descobrirmos - disse Hugh, resignado. - A senhora que entre, se é comigo que quer falar.

- Primeiro perguntou por um hóspede de cá, Ivo Corbière, mas sei que esse ainda anda na rua a ver os preparativos. E, quando mencionei que vós estáveis aqui, ela pediu para vos dar uma palavra. Feliz por encontrar a lei aqui, e acordada, aparentemente.

- Então convide-a a entrar. Cadfael, fica, se não te importas, ela já falou contigo e pode gostar de ver uma cara conhecida.

Emma Vernold entrou com pressa, todavia também com hesitação, insegura naquele sítio desconhecido, e esboçou uma vénia:

- Senhor, peço-vos que me perdoeis por vos incomodar tão tarde... - Viu o irmão Cadfael e quase sorriu de alívio, embora continuasse preocupada. - Sou Emma Vernold, vim com o meu tio, Thomas of Bristol, e temos o nosso alojamento a bordo da barcaça dele, junto da ponte. E este é um homem do meu tio, Gregory. - Era o mais novo dos três que a serviam, um tipo desajeitado, magro mas com ar de ter força, dos seus 20 anos.

Beringar pegou-lhe na mão e levou-a até um assento, junto da mesa:

- Estou aqui para a servir o melhor que puder. Qual é o seu problema?

- Senhor, o meu tio foi verificar o arranjo da sua cabina na feira de cavalos, não muito depois de este bom irmão nos ter deixado.

Deve ter ouvido tudo o que se passou lá em baixo! O meu tio foi ter com os seus dois outros homens, que já lá estavam a trabalhar, e deixou só Gregory comigo. Mas isso foi há quase duas horas, e ainda não voltou.

- Deve ter trazido muita mercadoria com ele - sugeriu Hugh razoavelmente. - É preciso tempo para arrumar as coisas da melhor maneira, e suponho que o seu tio goste das coisas bem feitas.

- Oh, sim, claro. Mas não é só a demora. Os dois homens que estavam com ele eram o jornaleiro Roger Dod e o carregador Warin, e Warin dorme na cabina para tomar conta da mercadoria. Roger voltou para a barcaça há uma hora e ficou surpreendido por não encontrar lá o meu tio, que disse ter saído da cabina muito antes dele. Pensámos que talvez tivesse encontrado alguém conhecido no caminho e parasse a conversar, pelo que esperámos algum tempo, mas ele sempre sem chegar. E agora venho da cabina, onde fui com Gregory para ver se por acaso ele lá voltara por qualquer razão, talvez por se ter esquecido de alguma coisa. Mas não, e Warin diz, tal como Roger, que o meu tio saiu primeiro, tencionando ir directamente para junto de mim, por já ser tarde. Nunca gostou... não gosta - emendou, empalidecendo - que eu fique sozinha com os homens, sem a companhia dele. - Os seus olhos eram firmes e claros, mas o lábio tremia-lhe, e havia uma ligeira sugestão de inquietude até na absoluta firmeza do seu olhar.

"Sabe que é bonita", pensou Cadfael, "e tem razão em se precaver. Até pode ser que um deles, Roger Dod, o mais privilegiado dos três, se calhar, tenha um fraquinho por ela, e ela o saiba, também, e não tenha nenhum fraco por ele, e, com razão ou sem ela, não se sinta bem perto dele, sem a presença do seu guardião."

- E tem a certeza de que ele não regressou por outro caminho - perguntou Hugh - enquanto foram à procura à cabina?

- Voltámos lá. Roger ficou à espera, por isso mesmo, mas não, ele não regressou. Perguntei aos que ainda estavam a trabalhar na frontaria se tinham visto um homem assim, mas ninguém me soube dizer nada. Então pensei que talvez... - Virou-se para Cadfael como num apelo. - O jovem cavalheiro que foi tão simpático esta tarde... está aqui alojado na hospedaria, segundo nos disse. Pensei que talvez o meu tio o tivesse encontrado no caminho de regresso e se demorasse... E ele, pelo menos, conhece-o e poderia dizer-me se o tinha visto. Mas ainda não regressou, pelo que me disseram.

- Então ele saiu do embarcadouro antes do seu tio? – quis saber Cadfael. O jovem parecera muito bem instalado para passar uma agradável hora, ou duas, na companhia da senhora, mas talvez o formidável tio dela tivesse forma de fazer compreender até a senhores de respeitáveis honras que a sobrinha só devia ser abordada quando ele estivesse presente para a vigiar.

Emma corou, mas sem desviar os olhos; olhos que se via serem pensativos, resolutos e inteligentes, apesar de incrustados naquele rosto infantil, todo leite e rosas:

- Pouco depois de si, irmão. Ele foi correcto e cortês sob todos os aspectos. Pensei vir perguntar por ele, como pessoa em quem poderia confiar.

- Vou pedir ao porteiro que esteja atento à chegada dele - ofereceu-se Cadfael - e o traga cá quando regressar. Até a feira de cavalos já deve estar a caminho da cama, e ele vai precisar de dormir se quiser procurar amanhã as melhores pechinchas, que suponho seja o que veio cá fazer. Que dizes, Hugh?

- Boa ideia - concordou este. - Faz isso e providenciaremos no sentido de procurar mestre Thomas, embora eu esteja confiante em que nada de mal se passa com ele, apesar de todo este atraso. É véspera de uma feira - disse, sorrindo tranquilizadoramente para a jovem - e há contactos a estabelecer, clientes já a percorrer o terreno... Um homem pode esquecer-se do sono, com a mente entregue ao negócio.

O irmão Cadfael ouviu-a suspirar:

- Ah, sim! - A esperança e gratidão eram genuínas.

Ele foi pedir ao porteiro que interceptasse Ivo Corbière à chegada. Não podia tê-lo feito em melhor altura, pois este vinha precisamente a entrar. O portão principal já estava fechado, só a poterna permanecia aberta, e a inclinação da cabeça dourada a passar apanhou a luz da tocha pendurada por cima e brilhou como um pequeno sol. De cabeça descoberta, com a cota pendurada num ombro devido ao calor daquela última noite de Julho, Ivo Corbière arrastava-se para a cama quase contra vontade, com uma reserva de energia ainda por gastar. A camisa de linho branco como a neve era visível na noite circundante como algo fantasmagórico. Ele assobiava uma melodia de rua, que, pela cadência, mais parecia parisiense que originária de Londres. Bebera com certeza muito, mas não ultrapassara a sua medida, nem sequer lá chegara. Ficou atento à primeira palavra:

- Quê, o irmão? Fora da cama antes de Matinas? - Embora o seu riso suave fosse amável, apressou-se a pôr-lhe termo ao sentir que algo exigia gravidade. - Procurava-me? Aconteceu alguma coisa pior? Santo Deus, o velho não matou o tonto do rapaz, não?

- Nada tão terrível - respondeu Cadfael. - Mas há aqui uma pessoa na portaria que veio à sua procura, com uma pergunta.

Andou pela rua e pelo terreno da feira todo este tempo?

- Dei a volta completa - confirmou Ivo, aguçando a atenção. - Tenho em Cheshire um novo solar cheio de correntes de ar para mobilar. Procuro lãs e tapeçarias flamengas. Porquê?

- Viu, enquanto por lá andava, mestre Thomas of Bristol? Em qualquer altura, desde que saiu da barcaça dele, ao princípio da noite?

- Não - disse Ivo, pensativo, e fitou atentamente o monge, à luz difusa e doce do estio, uma hora antes da meia-noite. - Que se passa? O homem tornou bem claro, tem prática, o que não é para admirar!, que a sua menina só era visitada na sua presença e com sua autorização, o que não levo a mal, porque ela é ouro, com ou sem o ouro dele. Respeitei-o por isso, e parti. Porquê? Que se segue?

- Venha ver - convidou Cadfael simplesmente, e precedeu-o no interior.

O jovem piscou os olhos perante a súbita claridade, e abriu-os muito ao ver Emma. Era discutível qual parecia mais perturbado. A jovem ergueu-se, estendendo as mãos e quase as retirando em seguida. O homem saltou solicitamente ao encontro dessas mãos:

- Sra. Vernold! A esta hora? Devia... - Por essa altura já se apercebera de quem estava presente e de que havia urgência. - Que aconteceu? - perguntou, e olhou para Beringar.

Vivamente, este contou-lhe. Cadfael não foi muito surpreendido por ver que Corbière ficava mais aliviado que preocupado. Ali estava uma jovem inexperiente, a enervar-se com demasiada facilidade por ficar sozinha mais uma hora do que contava, enquanto sem dúvida o tio, de facto muito viajado e experiente, e bem capaz de tomar conta de si próprio, não estava nada em apuros, mas apenas ocupado a divertir-se na companhia de algum colega, ou a avaliar as mercadorias e condição dos rivais.

- Nada de mal lhe deve ter acontecido - disse Corbière alegremente, com um sorriso tranquilizador para Emma, que continuou, apesar de tudo, com o olhar grave e ansioso. Não era parva, reflectiu Cadfael, observando-a, e conhecia o tio melhor que qualquer outra pessoa ali podia afirmar conhecê-lo. - Vai ver, ele regressa quando muito bem entender e fica surpreendido por a encontrar tão preocupada por sua causa.

Ela queria acreditar, mas os seus olhos diziam que não podia ter a certeza:

- Esperava que o tivesse voltado a encontrar - explicou -, ou que pelo menos o tivesse visto.

- Desejaria que assim fosse - retorquiu ele. - Teria tido o prazer de a sossegar. Mas não o vi.

- Parece-me - interveio Beringar - que isto é agora da minha alçada. Ainda tenho aqui entre muros meia dúzia de homens. Vamos procurar mestre Thomas. Entretanto, a hora é tardia e a senhora não deve andar a vaguear de noite. O melhor será o seu criado voltar à barcaça, enquanto a senhora, se quiser ter a bondade, pode muito bem reunir-se a minha mulher, aqui na hospedaria. A criada dela, Constance, preparar-lhe-á um lugar e arranjar-lhe-á tudo o que for preciso para passar a noite. - Era imposssível saber se notara a inquietação de Emma quanto a voltar à barcaça com tanta agudeza como Cadfael, ou se estava simplesmente a colocá-la sob a custódia mais próxima, e melhor; mas ela recebeu a proposta com tanta vivacidade e agradeceu-lha tão fervorosamente que o alívio sentido era indubitável. - Então venha - disse ele suavemente -, acompanho-a até ficar aos cuidados de Constance, e depois pode deixar a busca por nossa conta.

- E eu - afirmou Corbière, enfiando-se entusiasticamente nas mangas da cota - auxiliar-vos-ei na procura, se me aceitardes.

Passaram a pente fino todo o comprimento da frontaria: Beringar com os seus seis homens de armas, Ivo Corbière, tão enérgico e acordado como ao meio-dia, e o irmão Cadfael, que não tinha nenhuma razão legítima para ir com eles, para além de lhe puxar o pé e de ser manifestamente absurdo ir para a cama àquela hora, quando em qualquer caso teria de se levantar novamente à meia-noite, para Matinas. Se isso era desculpa suficiente para partilhar uma bebida com Beringar, também o era para tomar parte na busca de Thomas of Bristol. “Na realidade”, pensava Cadfael, abanando a cabeça perante os acontecimentos drásticos da noite, “não estarei descansado enquanto não revir aquelas faces carnudas e azuladas e não ouvir aquela voz alta e segura de si.” Corbière podia afastar com um encolher de ombros o não regresso do mercador como mero afastamento trivial dos seus hábitos, o que todos os homens fazem de vez em quando, e em qualquer outra altura Cadfael teria concordado com ele; mas demasiadas coisas tinham acontecido desde o meio-dia, muitas pessoas tinham sido apanhadas em acções vergonhosas que não correspondiam às suas personalidades, paixões em demasia se tinham soltado para se tratar dum dia vulgar. Até era possível que alguém se tivesse afastado tanto do seu comportamento habitual que cometesse uma violência deliberada pela calada da noite, para vingar o que fora feito aberta e impulsivamente durante o dia. Mas que Deus não o permitisse!

Começaram por se assegurar de que não havia palavra nem sinal no embarcadouro. Não, Thomas não aparecera nem mandara dizer nada, e as investigações de Roger Dod entre os outros comerciantes que se encontravam ao longo da margem, até onde ele se atrevera a afastar-se da propriedade que guardava, não tinham tido como resultado a obtenção de notícias do seu senhor.

Era um jovem corpulento e bem constituído, com cerca de 30 anos, este Roger Dod, e muito bem apessoado, se não tivesse maneiras tão abruptas e retraídas. Com certeza estaria também ansioso. Respondeu às perguntas de Hugh em tão poucas palavras quanto possível e mordeu o lábio na incerteza ao ouvir que a sobrinha do patrão estava agora alojada na hospedaria abacial. Gostaria de ir ajudá-los na busca, mas era responsável pelos bens do seu senhor e teria de responder pela sua segurança quando ele regressasse. Ficou na barcaça e mandou o mudo e sonolentamente ressentido Gregory conduzi-los directamente à cabina que mestre Thomas alugara. O sargento de Beringar, com três homens, ficou para trás, para se encaminhar gradualmente ao longo da frontaria, no encalço deles, a interrogar todos os tendeiros ainda acordados, enquanto os restantes seguiam o carregador até ao terreno da feira. O grande espaço aberto estava por esta altura meio adormecido, mas ainda tremeluziam tochas e braseiros ocasionais, e murmuravam vozes em surdina. Durante estes três dias do ano transformava-se numa cidadezinha compacta, ocupada e populosa, para desaparecer de novo ao quarto dia.

Thomas escolhera uma grande cabina, quase ao centro do terreno triangular. As suas mercadorias estavam bem arrumadas no interior, e o guarda acordado vigiando o terreno, pouco à vontade, bendizendo a chegada dos representantes da autoridade. Warin era um homem de meia-idade, coriáceo, claramente havia muitos anos no seu actual serviço e provavelmente da máxima confiança dentro dos seus limites, mas sem habilidade para alguma vez atingir a posição agora detida por Roger Dod.

- Não, meu senhor - disse com ansiedade -, nem mais uma palavra desde então, e tenho estado sempre de guarda. Ele pôs-se a caminho da barcaça um bom quarto de hora antes de Roger partir. Tínhamos tudo arrumado a seu gosto, ele ia bem satisfeito. Caíra não muito tempo antes, sabeis disso?, e estava contente, diria eu, por poder ir meter-se na cama. Porque afinal ele já não é novo, como eu também não, e tem mais peso. - E partiu daqui por que caminho?

- Ora, a direito para a estrada, mesmo por aqui. Suponho que tenha seguido pela frontaria.

Por detrás do ombro de Cadfael, uma voz conhecida, rica, cheia e alegremente conhecedora, disse em galês:

- Então, então, irmão, fora tão tarde? E em companhia da lei! Que pode o ajudante do alcaide do condado querer com o guarda de Thomas of Bristol a esta hora? Afinal sempre andam na peugada de todos os próximos de Gloucester? E eu a proclamar que o comércio estava acima da anarquia! - Olhos semicerrados piscaram para Cadfael à luz das tochas dispersas e das estrelas muito distantes num perfeito céu estival. Rhodri ap Huw ria baixo e forte da sua própria graça trocista e ameaçadora agudeza de entendimento.

- Tem o olhar amigavelmente atento ao próximo? - disse Cadfael, com uma aprovação inocente. - Vejo que conseguiu salvar todas as suas mercadorias sem uma beliscadura.

- Quando me cheira a esturro tenho o bom senso de me afastar - afirmou Rhodri ap Huw peremptório. - Que aconteceu a Thomas of Bristol? Não foi tão rápido a cheirar, ao que parece. Podia ter solto as amarras, afastando-se para o meio do rio até a agitação passar, e estaria tão em segurança como nas terras a ocidente.

- Viu-o ser derrubado? - indagou Cadfael falaciosamente; mas Rhodri não se deixou apanhar.

- Vi-o derrubar o outro jovem tonto - disse, e sorriu. - Porquê, sofreu algum desaire depois de eu ter saído de lá? E de quem andais à procura? De Thomas ou do rapaz? - E fitou com visível interesse os homens do alcaide a procurarem nas traseiras das barracas e por debaixo das armações, seguindo-os depois curioso enquanto regressavam à estrada. Era evidente que nada de importante se poderia passar naquela feira sem que Rhodri ap Huw estivesse presente ou fosse rápida e minuciosamente informado. E por que não fazer uso da sua perspicácia?

- A sobrinha de Thomas está numa aflição, porque ele não voltou à barcaça. Isso pode querer dizer muita coisa, ou nada, mas agora já passou tanto tempo que os homens dele também estão a ficar preocupados. Viu-o sair da cabina?

- Vi. Pode ter sido há umas duas horas. E o jornaleiro saiu pouco tempo depois. Um homem razoavelmente corpulento, para se perder assim, daqui até ao rio... E não há notícias dele em parte nenhuma desde então?

- Não de que tivéssemos conhecimento, ou tenhamos probabilidades de ter, sem interrogar todos os comerciantes e ociosos em toda esta confusão. E os mais sensatos já estão a dormir, como preparação para amanhã.

Tinham chegado à frontaria e virado em direcção à cidade, e Rhodri continuava a caminhar amigavelmente ao lado de Cadfael, dedicando-se a espreitar nos espaços escuros entre as tendas, tal como os homens do alcaide faziam. As luzes e as fogueiras eram menos ali, as tendas mais modestas, e a quietude da noite impunha-se sonolentamente. À esquerda, sob o muro da abadia, alinhavam-se umas cabinas compactas mas seguras. A primeira, embora completamente fechada e trancada para a noite, deixava ver por uma greta a luz de uma vela acesa no interior. Rhodri enfiou um cotovelo de peso entre as costelas de Cadfael:

- Euan of Shotwick! Nunca ninguém o atingirá pelas costas: gosta de um canto, encostado a dois muros, se possível. Viaja sozinho com um cavalo de carga, traz uma arma e também sabe fazer uso dela. Uma alma solitária por não confiar em ninguém. O seu próprio carregador... felizmente as mercadorias são leves para o valor que têm... e o seu próprio guarda.

Ivo Corbière demorara-se, tendo-se afastado para o lado, para os espaços entre as tendas, algumas das quais, naquele lanço, continuavam por ocupar, à espera dos comerciantes locais, que chegariam com a aurora. A escuridão consequente abrandava-lhes a busca, e o jovem, nada avesso a passar a noite sem dormir, e provavelmente encorajado pela recordação dos brilhantes olhos de Emma, era incansável e eficiente. Até Cadfael e Rhodri ap Huw iam uns metros à frente dele quando o ouviram exclamar em voz alta e imperiosa:

- Santo Deus, que é isto aqui? Beringar, volte aqui!

O tom foi suficiente para os levar a correr de volta. Corbière saíra da estrada, procurando na escuridão entre tripés amontoados e toldos de lona inclinados, mas, quando os restantes espreitaram, a luz das estrelas foi suficiente para os olhos a ela habituados verem o mesmo que ele vira: debaixo de uma leve armação de madeira e tela esticada saíam dois pés com botas, imóveis, de dedos espetados para o céu. Por um momento todos fitaram sem falar, silenciados pela surpresa, pois a dizer a verdade ninguém acreditara que o mercador pudesse ter sofrido qualquer percalço, como todos concordaram mais tarde. Em seguida Beringar pegou na armação, afastou-a dos tripés a que estava encostada e, difusa e grande na escuridão, viram a longa forma de um homem, dos joelhos para cima enrolada numa capa que lhe escondia a cara. Não havia movimento, nem qualquer som audível.

O sargento inclinou-se com o único archote que tinham levado, Beringar estendeu a mão para as pregas da capa e começou a afastá-las da cabeça e ombros que cobriam. O movimento do tecido soltou uma poderosa onda de um cheiro que o fez deter-se e fungar suspeitosamente. Também perturbou o corpo, que emitiu um enorme ronco, e mais uma onda de respiração a cheirar a álcool.

- Bêbedo como um cacho e sem acordo - comentou Beringar, aliviado. - E não, suponho, o homem que procuramos. Pelo estado em que se encontra, este tipo já aqui deve estar há umas horas e, se recuperar a consciência a tempo de se arrastar antes da alvorada, será milagre. Vamos deitar-lhe uma olhadela. - Foi menos cauteloso a afastar a capa, mas o ébrio deixou que o sacudissem e arrastassem pelos pés sem mais que uns resmungos de incómodo e recaiu no sono a ressonar assim que o soltaram. O archote iluminou com a sua luz amarela e resinosa uma cabeça eriçada de cabelos escuros, um par de ombros largos dentro de um gibão de cabedal e um rosto que podia ser agudo, vivo e até simpático quando estivesse acordado e sóbrio, mas que agora parecia inchado e idiota, com a boca aberta a babar-se e os olhos avermelhados.

Corbière fitou-o mais de perto e soltou uma exclamação e uma praga:

- Fowler! Diabos o levem! É assim que me obedece? Por Deus, hei-de fazê-lo suar as estopinhas! - Encheu a mão com a espessa cabeleira castanha e abanou furiosamente o tipo, mas não obteve dele mais de um grande ronco, a abertura parcial de uma vista vidrada e uma murmuração sem palavras, que se desvaneceu de novo assim que foi largado, com desagrado e sem gentileza, de regresso à relva. - Este malandro embriagado é meu... o meu falcoeiro e arqueiro, Turstan Fowler - afirmou Ivo amargamente, e deu um pontapé nas costelas do dorminhoco, mas sem brutalidade. De que serviria? O homem não recobra a consciência nas horas mais próximas, e o que sofresse depois seria a recompensa bem merecida. - Apetece-me pô-lo a arrefecer no rio! Não lhe dei autorização para sair dos limites da abadia e, pelo seu aspecto, tem andado por fora a beber... Santo Deus, que cheiro, que bebida mais asquerosa será?... desde que virei as costas.

- Uma coisa é certa: - disse Hugh, divertido - ele não está em condições de voltar a pé para a cama. Uma vez que é seu, que quer que lhe façamos? Não aconselho a deixá-lo aqui. Se tiver alguma coisa de valor, nem que sejam só os calções, pode já não ter quando chegar a manhã. Há-de haver rapinadores por aí a horas mortas, nenhuma feira lhes escapa.

Ivo recuou e baixou os olhos com desagrado para o culpado sem sentidos:

- Se me emprestar dois dos seus homens e nos deixar usar uma prancha destas, transportamo-lo e atiramo-lo para uma das celas de castigo da abadia, para se libertar da sua imundície a dormir na pedra, o que é um castigo bem merecido. Se o deixarmos lá sem comer durante todo o dia de amanhã, pode ser que ganhe juízo. Para a próxima, mando-o chicotear!

Içaram o dorminhoco para uma prancha, onde ele se esparrinhou uma vez mais com exasperante à-vontade, ressonando todo o caminho com tanto prazer que os que o transportavam sentiam a tentação de o deixar cair a intervalos, como forma de se recompensarem do trabalho que estavam a ter. Cadfael, Beringar e os restantes membros do grupo ficaram a vê-los afastarem-se, algo divertidos, mas com a sua missão ainda por cumprir.

- Ora, ora! - comentou Rhodri ap Huw baixinho, ao ouvido de Cadfael. - Afinal Euan of Shotwick está a interessar-se moderadamente pelos acontecimentos da noite!

Cadfael virou-se para olhar e, na cabina entaipada contra o muro, abrira-se indubitavelmente uma portinhola e, contra a pálida luz de uma vela, uma cabeça estava debruçada em perfil, voltada para o lado onde eles se encontravam. Reconheceu o nariz alto e altaneiro e a inclinação enganosamente débil dos ombros estreitos, antes de a portinhola ser outra vez puxada e o luveiro desaparecer.

Prosseguiram tenazmente a busca, metro a metro, durante todo o caminho de regresso à beira-rio, onde Roger Dod os esperava a exalar ansiedade, mas não encontraram vestígios de Thomas of Bristol.

No dia seguinte um barco tardio subindo o Severn a partir de Buildwas e atracando à ponte por volta das nove da manhã, atrasou a sua descarga de loiça para pedir que primeiro fosse enviada uma mensagem ao alcaide, pois tinham outra carga a bordo, retirada de uma enseada perto de Atcham e que seria da exclusiva alçada do alcaide. Gilbert Prestcote, ocupado com outros assuntos, enviou do castelo o seu próprio sargento, com ordens para primeiro se apresentar a Hugh Beringar, na abadia.

A carga em questão, que o oleiro tinha de entregar, estava enrolada numa vela no fundo do barco e vertia água pelas pranchas, onde deixava uma mancha escura. O barqueiro desenrolou a cobertura e revelou à vista de Beringar o corpo de um homem possante, de 50 a 55 anos, carnudo, com cabelo ralo a esbranquiçar, barba hirsuta nas faces azuladas e um descair pastoso de gorduras devido à morte. Mestre Thomas of Bristol, despido do seu complicado capuz, do seu manto, dos seus anéis e da sua dignidade, tão nu como no dia em que nascera.

- Vimos a sua brancura aos tombos pela margem - explicou o oleiro, baixando os olhos para o homem tirado das águas - e aproximámo-nos para o trazer, pobre diabo. Posso mostrar-vos onde, deste lado dos baixios e da ilha de Atcham. Achámos melhor trazê-lo para cá, como faríamos a um afogado. Mas este - disse muito conciso - não se afogou.

Não, Thomas of Bristol não se afogara. Isso já era evidente pelo próprio facto de ter sido despojado de tudo o que tinha, e dificilmente por suas próprias mãos ou vontade. Mas também, e ainda com mais certeza, pela incrivelmente estreita ferida sob a omoplata esquerda, branqueada e fechada pela água do rio, onde uma adaga muito fina e estreita o trespassara penetrando até ao coração.

 

 

                     O primeiro dia da feira

 

 

                                                       Capítulo 1

 

O primeiro dia da Feira de S. Pedro estava em pleno e o barulho alegre e intencional de vozes a regatear, a bisbilhotar e a apregoar mercadorias ultrapassava o muro para a grande cerca e entrava pela portaria, como música de Verão de uma enorme colmeia de abelhas em dia de Sol. O som seguiu Hugh Beringar de regresso ao apartamento na hospedaria onde a mulher e Emma Vernold estavam muito agradavelmente a comparar as virtudes de diversas lãs, e a criada Constance, fiandeira de muito mérito, passava os dedos criticamente pelas amostras e dava os seus conselhos.

Sobre esta cena doméstica, que fizera reaparecer a cor nas faces de Emma e a animação na sua voz, o rosto sombrio de Hugh produziu uma nuvem instantânea. Não havia tempo para chegar à notícia dando voltas, nem lhe parecia que esta jovem lhe agradecesse os rodeios:

- Sra. Vernold, as notícias que trago são más, o que lamento profundamente. Deus sabe que não esperara isto. O seu tio foi encontrado. Um barco que esta manhã cedo subia o rio desde Buildwas tirou o corpo das águas.

A cor refulgiu-lhe das faces. Ficou com os olhos assustados e desorientados fitando cegamente em frente. O sustentáculo da sua vida fora-lhe repentinamente arrancado e por um momento pareceu que perdera todo o equilíbrio e podia de facto cair por falta dele. Mas, depois de ter inspirado profundamente e formando sem som a palavra “Morto!”, tornou-se claro que estava de novo firme sobre os seus próprios pés e sem qualquer perigo de cair. Os seus olhos, uma vez passados os momentâneos pânico e vertigem, fixaram Hugh frontalmente e sem qualquer apelo:

- Afogado? - disse. - Mas ele nadava bem, foi criado junto ao rio. E quando bebia, o que era raro, fazia-o com moderação. Não acredito que pudesse cair ao Severn e afogar-se. Não por si! - garantiu, e os seus olhos, já grandes, ainda se dilataram mais.

- É melhor sentar-se - convidou Hugh, delicadamente -, pois temos de falar um pouco, e depois vou deixá-la com Aline, porque evidentemente agora tem de continuar aqui ao nosso cuidado. Não, ele não se afogou, nem encontrou a morte por si só. Mestre Thomas foi apunhalado por trás, despojado de tudo e posto no rio depois de morto.

- Quer dizer - inquiriu ela em voz baixa e precisa, mas bastante firme - que foi vítima de uma cilada e morto por simples gatunos, pelo que tinha consigo? Pelos anéis, manto e sapatos?

- É o que salta à mente. Agora não há estradas em Inglaterra que possam ser consideradas seguras, e nenhuma grande feira que não tenha o seu provável submundo de parasitas, capazes de matar por uns dinheiros.

- O meu tio não era um homem tímido. No seu tempo rechaçou mais de um ataque, e nunca desistiu de uma viagem por temer pela vida. Depois de todos estes anos - pronunciou ela com a voz a doer de protesto -, por que havia de cair agora vítima de tal escumalha? Todavia, que outra coisa pode ser?

- Há pessoas que recordam - disse Hugh - ter havido um incidente desagradável no embarcadouro ontem ao fim do dia, e de ter sido exercida violência sobre um certo número de mercadores que estavam a descarregar mercadorias e a instalar tendas para a feira. É do conhecimento comum que houve descontentamento entre o burgo e os comerciantes, dos quais mestre Thomas talvez fosse o mais influente. Envolveu-se acerbamente com o jovem que conduzia a incursão. Um ataque perpetrado por vingança, de noite, talvez em ébria fúria, podia terminar mortalmente, quer fosse essa a intenção quer não.

- Nesse caso teria sido abandonado onde caísse - disse Emma com agudeza. - O seu atacante só pensaria em se afastar sem ser visto. Aqueles homens irados não eram ladrões, só burgueses com um agravo. O agravo podia torná-los assassinos, mas não creio que os tornasse ladrões.

Hugh estava a começar a sentir um considerável respeito por aquela jovem, o que Aline, pelo seu silêncio distanciado e rosto atento, já aprendera a sentir.

- Não posso dizer que não concorde consigo nisso - admitiu. - Mas podia muito bem ocorrer a um jovem tornado assassino quase por acidente disfarçar o seu crime como vulgar homicídio em emboscada para roubo. Isto abre um campo tão vasto... Vinte jovens amargamente ofendidos e irados com o seu tio pelo desprezo dele podiam perder-se entre um milhar de desconhecidos, e até serem os mais improváveis suspeitos entre eles, se isto passar por homicídio casual para roubo.

Mesmo na desagradável novidade da sua privação, este pensamento perturbou-a. Mordeu um lábio hesitante:

- Pensa que pode ter sido um desses jovens? Ou mais de um, um grupo? Que arderam no seu despeito até o seguirem na escuridão e o apanharem desta forma?

- Está a ser tanto pensado como dito - confessou Hugh -, por muitas pessoas que testemunharam o que se passou junto ao rio.

- Mas os homens do alcaide - lembrou ela, franzindo-se - com certeza já tinham apanhado muitos desses jovens muito antes de o meu tio ir para o terreno da feira. Estando já na prisão, não lhe podiam ter feito mal.

- É verdade em relação à maior parte deles. Mas o que os chefiava não foi apanhado até às horas mortas da madrugada, quando regressou a cambalear às portas do burgo, onde era aguardado. Agora está numa cela do castelo, como os seus companheiros, mas ainda se encontrava em liberdade muito depois de a falta de mestre Thomas ter sido notada por si, e recaem sobre ele fortes suspeitas desta morte. Todo o grupo comparecerá esta tarde perante o alcaide. Os outros suponho que sejam libertados sob fiança dos pais, para responderem mais tarde às acusações. Mas, quanto a Philip Corviser, duvido muito que lhe aconteça o mesmo. Vai precisar de ter melhores respostas do que conseguiu dar quando o apanharam.

- Esta tarde! - pronunciou Emma como um eco. - Então eu também devo estar presente. Assisti ao início desta confusão. O alcaide tem de ouvir igualmente o meu testemunho, em especial se a morte do meu tio está em causa. Havia outras pessoas: mestre Corbière e o irmão da abadia, aquele que conheceis bem... - Estarão presentes, e ainda outros. Com certeza que o seu testemunho seria valioso, mas pedir-lho numa altura destas...

- Prefiro! - disse ela com firmeza. - Quero o assassino do meu tio preso, se de facto ele foi assassinado, mas peço que nenhum inocente seja precipitadamente acusado. Não sei... Não teria pensado que ele parecesse assassino... Gostaria de dizer o que de facto sei. É o meu dever.

Beringar dirigiu à esposa um olhar de relance, a pedir opinião, e Aline correspondeu-lhe com um sorriso e o mais ligeiro dos acenos.

- Se está decidida a isso - concordou ele, tranquilizado -, pedirei ao irmão Cadfael que a acompanhe. Quanto ao resto, não precisa de preocupar-se com a sua situação. Será necessário que fique aqui até esta questão ser analisada, mas claro que permanecerá na companhia de Aline e terá todo o auxílio possível em qualquer decisão que tenha de tomar.

- Gostaria - disse Emma - de levar o corpo do meu tio na barcaça, de regresso a Bristol, para aí ser enterrado. - Até então não pensara que desta vez não teria protector no barco, só Roger Dod, cuja devoção muda mas vigilante e ciumenta era mais do que ela podia suportar, Warin, que teria o cuidado de não dar por nada que lhe pudesse causar problemas, e o pobre Gregory, que era forte e capaz de corpo mas muito fraco de espírito. Inspirou vivamente, mordeu um lábio incerto e a sombra voltou-lhe aos olhos. - Pelo menos, enviá-lo de regresso... O seu procurador lá tomará conta dos seus negócios e dos meus.

- Já falei com o prior. O abade Radulfus autoriza o uso de uma capela da abadia: o corpo do seu tio pode lá repousar quando for trazido do castelo, e serão feitos todos os preparativos necessários para que seja colocado decentemente num caixão. Peça o que quiser, tudo estará ao seu dispor. Tenho de convocar o seu jornaleiro para também estar presente no castelo, esta tarde. Como deseja que ele se comporte no que se refere à feira? Transmitir-lhe-ei todas as instruções que quiser dar-lhe.

Ela acenou com compreensão, sendo visível que se preparava novamente para enfrentar um mundo de negócios diários astutos, que não haviam cessado com o fim de uma vida.

- Se quiser ter a bondade de lho comunicar - disse -, o meu desejo é que continue o comércio dos três dias de feira como se o seu senhor ainda a ele presidisse. O meu tio não gostaria de se afastar do seu comportamento habitual por qualquer perigo ou perda, e eu farei o mesmo em seu nome. - E de súbito, tão livre e simplesmente como uma criança, desatou por fim a chorar.

Depois de Hugh ter partido para tratar dos seus assuntos, e Constance se ter afastado a um aceno de Aline, as duas mulheres ficaram sentadas em silêncio até Emma parar de chorar, o que fez tão de repente como começara. Chorou, como algumas mulheres têm o dom de fazer, sem desfigurar no mínimo a sua própria beleza e sem se preocupar que isso acontecesse ou não. A maior parte perde essa faculdade ao chegar ao fim da infância. Ela secou os olhos e ergueu-os a direito para Aline, que a fitava com a mesma firmeza e uma serenidade que oferecia conforto sem o impor.

- Deve pensar - disse Emma - que eu não tinha uma afeição profunda pelo meu tio. E de facto nem eu própria sei se assim'não seria. Contudo amava-o, não era só lealdade e gratidão, embora fossem fáceis. Ele era um homem difícil, diziam as pessoas, difícil de satisfazer e difícil nos seus negócios. Mas para mim não era difícil. Só a aproximação era difícil. Não era culpa dele, nem minha.

- Creio - disse Aline suavemente, uma vez que estava a ser convidada a uma aproximação - que o amava tanto quanto ele lho permitia. Quando ele podia permitir-lho. Há homens que não têm esse dom.

- Sim. Mas eu teria gostado de o amar mais. Teria feito tudo para lhe agradar. Mesmo agora, quero fazer tudo o que ele teria desejado. Vamos manter a cabina aberta enquanto durar a feira e tentar obter tão bons resultados como ele teria obtido. Tudo o que ele tinha em mãos quero ver feito adequadamente. - A voz dela era resoluta, quase ansiosa. Mestre Thomas teria certamente aprovado a postura do seu queixo e o brilho dos seus olhos. - Aline, não serei um incómodo para si, ficando cá? Eu... Os homens do meu tio... há um que gosta demasiado de mim...

- Bem me tinha parecido - comentou Aline. - Tenho muito gosto na sua presença aqui, e não nos vamos separar até poder partir em segurança de regresso a Bristol e à sua casa. Não que ache completamente censurável que o jovem goste de si, bem vistas as coisas - acrescentou, com um sorriso.

- Não, mas eu não consigo gostar dele o suficiente. Além disso, o meu tio nunca teria permitido que eu estivesse na barcaça sem ser na sua companhia. E agora tenho deveres - disse Emma, levantando com determinação a cabeça e fitando de frente e com desafio o futuro incerto. - Tenho de tratar da encomenda de um bom caixão para ele, para a viagem de regresso. Deve haver um mestre-carpinteiro algures na cidade!

- Há. À direita, subindo por Wyle, mais ou menos a meio, mestre Martin Bellecote. Bom homem e bom artífice. O filho estava entre aqueles terríveis amotinados, consta-me - disse Aline, e sorriu indulgentemente à ideia, formando covinhas nas faces -, mas o mesmo aconteceu com metade dos jovens prometedores do burgo. Vou consigo à loja de Martin.

- Não - redarguiu Emma firmemente. - Vai ser tudo aborrecido e demorado na audiência do alcaide, e Aline não deve cansar-se. E além disso tem de comprar as suas lãs de qualidade, antes de as melhores serem vendidas. E o irmão Cadfael... é esse o nome?... mostrar-me-á onde fica a loja. Deve saber.

- Há muito pouco para saber acerca deste domínio e do burgo de Shrewsbury - concordou Aline com convicção - que o irmão Cadfael não saiba.

Cadfael recebeu sem dificuldade a dispensa do abade para assistir à audiência no castelo e escoltar a hóspede da abadia que se encontrava de luto. Ninguém podia evadir-se ao cumprimento dos deveres cívicos, tanto os seculares como os monges. Radulfus já mostrara ser simultaneamente um disciplinador austero, mas justo e um homem de negócio astuto e de vontade férrea. Devia a promoção abacial tanto ao rei como ao legado do papa, e valorizava e temia a ordem do reino pelo menos tão vivamente como o estado dos seus próprios encargos espirituais. Por conseguinte interessava-lhe a colaboração dos poucos entre os irmãos que partilhavam a sua vasta experiência de questões exteriores aos claustros.

- Esta morte - disse, fechado a sós com Cadfael, depois da partida de Beringar - ensombra a nossa casa e a nossa feira. Uma tal carga não pode ser passada para outros ombros. Peço-lhe um relatório completo do que se passar nessa audiência. Foi a mim que os burgueses da cidade pediram uma contribuição que eu não podia conceder. Sobre mim cai o peso do ressentimento que levou os mais jovens a acções disparatadas. Faltou-lhes paciência e discernimento, e são censuráveis, mas isso não me absolve. Se a morte do homem foi provocada pelo meu acto, mesmo não podendo eu ter agido de outra maneira, devo sabê-lo, pois tenho de responder por ela, tão seguramente como o homem que o matou.

- Comunicar-lhe-ei tudo o que eu próprio vir e ouvir, Reverendo Abade - prometeu Cadfael.

- Desejo saber igualmente tudo o que pense, irmão. Viu parte do que aconteceu ontem entre o homem morto e o jovem vivo. É possível que tenha dado origem a uma morte como esta? Apunhalado pelas costas? Não costuma ser o método da fúria.

- Não costuma. - Cadfael vira muitas mortes na fúria da batalha, mas também sabia de raivas alimentadas e inflamadas até mortes em ciladas, com a ira tão ardente como antes, mas azedada pela reflexão. - No entanto, é possível. Mas há outras possibilidades. Pode de facto ser o que a princípio pareça mero homicídio violento para roubar as roupas do corpo e os anéis dos dedos, pilhagem oportuna na noite, quando por acaso não havia ninguém perto. Acontecem coisas dessas quando há homens reunidos e dinheiro a mudar de mãos.

- É verdade - concordou Radulfus, fria e tristemente. - O velho mal está sempre connosco.

- Por outro lado, o homem tinha muita importância na sua actividade e na sua região, e podia ter inimigos. O ódio, a inveja, a rivalidade são motivos até tão poderosos como o lucro. E numa grande feira como a nossa os inimigos podem encontrar-se longe das terras onde as suas querelas são conhecidas e onde os seus actos poderiam ser reconhecidos com demasiada precisão. Assassinar é mais fácil e mais tentador longe de casa.

- É outra vez verdade - disse o abade. - Há mais?

- Há. Há a questão da jovem, sobrinha e herdeira do morto. É de grande beleza - afirmou Cadfael simplesmente, sustentando o seu direito de reconhecer e celebrar até a beleza das mulheres, embora tivesse renunciado voluntariamente à sua posse - e há três homens ao serviço do tio, fechados com ela numa barcaça. Só um deles talvez com idade suficiente para atribuir mais valor ao seu sossego. Um creio que simplório de Deus, mas nem por isso cego ou destituído de impulsos carnais. E um completo, capaz, homem sob todos os aspectos e escravizado por ela. E este foi o que saiu da cabina no terreno da feira depois do patrão, uns dizem que um quarto de hora depois, outros que um pouco mais tarde. Deus não permita que, por isso, eu aponte o dedo a um homem honesto. Porém, estamos a falar de possibilidades. E não falaremos mais delas até, ou a menos, que se tornem mais do que possibilidades.

- É essa também a minha opinião - concordou o abade Radulfus, mexendo-se e quase sorrindo. Fitou Cadfael firme e longamente. - Ide e testemunhai, irmão, conforme sois intimado, e depois voltai a falar comigo. Confiarei no vosso relatório.

Emma não podia deixar de ter o mesmo vestido e túnica da noite anterior, o vestido azul-escuro como os seus olhos, mas a túnica bordada com muitas cores sobre linho branqueado. A única concessão que podia fazer ao luto consistia em ter atado a sua grande cabeleira, e impedi-la de ser vista, dentro de uma touca emprestada. Mesmo assim constituía uma nobre figura de luto. Na severa moldura branca, o seu rosto redondo e juvenil ganhava em força concentrada e significado o que perdia em pura graça. Tinha um aspecto de gravidade simples, como uma lança em repouso. O irmão Cadfael ainda não conseguia ver claramente qual o alvo da lança.

Quando o avistou a aproximar-se, ela fitou-o com grato reconhecimento, como o homem por detrás da lança poderia ter olhado em redor, para as caras fixas e partidárias dos seus amigos, antes do ataque, mas não alterou o foco das suas intenções mais íntimas, que ficava para além do que ele podia seguir.

- Irmão Cadfael... é este o nome, não é verdade? É galês, com certeza. Foi muito simpático ontem. Lady Beringar diz que me indicará onde encontrar o mestre carpinteiro. Tenho de encomendar o caixão do meu tio, para o levar de regresso a Bristol. - Estava muito calma, embora continuasse tão simples e directa como uma criança. - Temos tempo, antes de nos apresentarmos no castelo?

- Fica em caminho - informou Cadfael calmamente. - Só precisa de dizer a Martin Bellecote o que deseja. O que quer que peça, ele fará a preceito.

- Todos estão a ser muito simpáticos - disse ela conspícua como uma menina bem educada a agradecer como lhe tivessem ensinado. - Onde está agora o corpo do meu tio? Devo ser eu própria a ocupar-me dele, é o meu dever.

- Isso ainda não pode fazer - comunicou-lhe Cadfael. - O alcaide tem-no no castelo, precisa de ver ele próprio o corpo e de mandar o físico observá-lo igualmente. Quanto a si, não vai ter de se preocupar com isso, o abade já deu as suas ordens. O seu tio será trazido com todas as honras para repousar aqui na igreja, e os irmãos prepará-lo-ão para ser enterrado. Penso que ele talvez desejasse, se lho pudesse dizer agora, que deixasse isso tudo a nosso cargo. Os cuidados que ele tinha consigo chegariam até aqui, e a sua obediência não lho poderia negar.

Cadfael vira o morto e desejava ardentemente que ela não tivesse a mesma experiência. Contudo, não era só por ela que o desejava. O homem que ela respeitara e admirara na sua dignidade monumental, em vida, tinha o direito de ser preservado não menos decorosamente na morte.

Cadfael encontrara o único argumento que a podia desviar da sua determinação absoluta em se ocupar de tudo, não fugindo a nada. Ela pensou seriamente na questão, enquanto saíam pela portaria, lado a lado, e Cadfael soube pela expressão do seu rosto qual o momento exacto em que aceitou a sugestão dele.

- Mas ele acreditava que eu devia assumir por completo a minha posição, mesmo nos negócios. Desejava que viajasse com ele e aprendesse as suas noções de comércio. Esta é a terceira viagem dessas que faço com ele. - A frase recordou-lhe que também tinha de ser a última. - Pelo menos - pronunciou com hesitação - poderei dar dinheiro para serem rezadas missas por ele, aqui onde morreu? Era um homem muito devoto, penso que gostaria disso.

Bem, as suas reservas de dinheiro talvez fossem agora bem mais vastas do que as suas reservas de paz de espírito tinham probabilidade de alguma vez serem. Podia dar-se ao luxo de comprar um pouco de consolação, e as orações nunca se perdem.

- Isso pode certamente fazer.

- Morreu sem os Sacramentos - disse ela, num repentino sofrimento irado contra o assassino que o privara da confissão e absolvição.

- Não foi por culpa dele. Acontece a muitas pessoas. Aconteceu a santos, martirizados sem aviso. Deus tem conhecimento de tudo, sem precisar de palavras ou gestos. É para a alma que enfrenta a morte que a falta de confissão é dolorosa. A alma que já passou para além reconhece essa dor como vaidade inútil. A penitência está no coração, não nas palavras pronunciadas.

Já estavam então na estrada, virando à esquerda, em direcção ao brilho reflectido do rio, entre as suas margens verdejantes e a ponte de pedra sobre ele, que conduzia à levadiça e esta às portas do burgo. Emma erguera a cabeça e fitava o irmão Cadfael ombro a ombro, com uma ligeira cor a tingir-lhe as faces cremes e um brilho, como centelha de luz do rio, nos olhos. Ele não a vira sorrir até àquele momento, e mesmo então foi um sorriso muito vago, mas nem por isso menos belo:

- Ele era um homem bom, sabe, irmão Cadfael - afirmou ela com seriedade. - Não era fácil para tontos, ou maus trabalhadores, ou pessoas que ludibriassem, mas era um homem bom. Bom para mim! E honrava os seus compromissos, e foi leal para com o seu senhor... - Entusiasmara-se, apesar da suavidade da sua voz e da simplicidade da defesa que dele fazia; era quase como se tivesse estado prestes a dizer: “Leal para com o seu senhor até à morte!” Tinha em si aquele ar elevado e heróico, a ser levado muito a sério, mesmo no seu rosto infantil.

- Tudo o que - interveio Cadfael alegremente - Deus sabe e não precisam que lho digam. E nunca se esqueça de que tem uma vida para viver, e ele quereria que lhe fizesse justiça, fazendo justiça a si própria.

- Ah, sim! - exclamou Emma, ardentemente, e pela primeira vez pousou a mão com confiança na manga dele. - É isso que quero! É a principal coisa que tenho em mente!

 

 

                                                               Capítulo 2

 

Na loja de Martin Bellecote, à saída da curva da rua ascendente chamada Wyle, que levava ao centro do burgo, ela soube exactamente o que queria para o seu morto, e encomendou-o com clareza; mais, soube avaliar a clareza correspondente e a franqueza do mestre carpinteiro, e ainda teve tempo para se distrair agradavelmente com a invasão das crianças mais pequenas, que gostaram do seu aspecto e vieram sem peias conversar e mirá-la. Quanto ao delinquente Edwy, enviado para casa na véspera depois da reprimenda de Hugh Beringar, trabalhava, falsamente humilde, com uma plaina num canto da loja, mas não estava tão domado que não dirigisse olhares inquiridores com os seus brilhantes olhos cor de avelã à jovem, e uma piscadela descarada ao irmão Cadfael, quando Emma não estava a reparar.

No caminho através da cidade, subindo a rua íngreme até à Cruz Alta e descendo a inclinação mais suave que levava à rampa de acesso à entrada do castelo, ela manteve um silêncio pensativo, pondo em ordem as suas recordações. A sombra da porta a cair sobre o seu rosto sério, cortando a luz do Sol, fez que dilatasse os olhos de espanto, mas o trânsito calmo, passando a vigia, já não lembrava cerco e batalha, sendo antes fácil e rápido, com os burgueses a entrar e a sair livremente, com os seus pedidos e queixas. O alcaide era um cavaleiro de espírito forte, taciturno, capaz, que já ultrapassara os 50 anos e adquirira uma vasta experiência tanto na guerra como no funcionalismo, podendo ser violento a esmagar desordens, mas considerado justo nas questões do dia-a-dia. Embora não tivesse concedido aos homens bons do burgo muito auxílio para repararem as delapidações devidas ao cerco, também não permitira que fossem maltratados nem sujeitos a tributos exagerados para restaurar o castelo dos danos sofridos. Do grande pátio eram visíveis uma torre ainda entaipada por andaimes de madeira e uma parede escorada por contrafortes também de madeira. Emma fixava tudo, de olhos muito abertos.

Havia outros a percorrer o mesmo caminho que eles: pais ansiosos por afiançarem os filhos, dois dos ecónomos da abadia que tinham sido atacados na refrega, testemunhas da ponte e do embarcadouro, todos a serem conduzidos através do pátio interior para um frio salão empedrado, com tapeçarias cinzentas. Cadfael arranjou a Emma um lugar num banco encostado à parede, onde ela se sentou a olhar em redor com ansiedade mas vivo interesse:

- Olhe, ali está mestre Corbière!

Este vinha mesmo a entrar, e de momento não podia prestar atenção a não ser à figura corcovada que se arrastava à sua frente; de olhos turvos mas já plenamente consciente, avançando silenciosamente com medo do seu senhor irado, Turstan Fowler tornava a sua forma possante tão pequena e despercebida quanto possível e enchia-se de paciência até a tempestade se dissipar. E que teria ele de fazer ali?, interrogava-se Cadfael. Não estivera no embarcadouro e, pelo estado em que fora encontrado perto da meia-noite, as suas recordações da véspera deviam ser muito vagas, em qualquer caso. Contudo, devia ter alguma coisa a dizer quanto à questão, ou Corbière não o teria levado ali. Pela sua disposição da noite anterior, pretendia deixá-lo fechado todo o dia, para o ensinar a ter mais juízo.

- É este o alcaide? - sussurrou Emma.

Gilbert Prestcote entrara, com alguns homens de leis ao seu lado, para o aconselharem nos assuntos legais. Não se tratava de um julgamento, mas dependia dele que os provocadores do tumulto fossem para casa, comprometendo-se eles próprios e os seus pais a comparecer perante o tribunal formal, ou fossem mantidos na prisão até lá. O alcaide era um homem alto e magro, erecto e vigoroso, com uma barbicha negra aparada em ponta e olhar vivo e atemorizador. Sentou-se sem cerimónia, e um beleguim entregou-lhe a lista de nomes dos que se encontravam presos. O seu erguer de sobrancelhas ao ver que se tratava de um elevado número foi de mau agouro:

- Todos estes foram apanhados no tumulto? - Estendeu o rolo sobre a mesa e franziu a testa a fitá-lo. - Muito bem! Há ainda a questão mais grave da morte de mestre Thomas of Bristol. Até que horas temos conhecimento de estar mestre Thomas vivo e bem?

- Segundo o seu jornaleiro e o seu vigilante, deixou a cabina na feira de cavalos, tencionando regressar à barcaça, mais de uma hora depois do toque do Terço. É a última informação que temos. O primeiro homem, Roger Dod, está aqui para testemunhar que a hora ultrapassava as nove e um quarto da noite, e o vigilante confirma.

- Bastante tarde - disse o alcaide, pensativo. - A luta já terminara então, e a frontaria e o terreno da feira estavam calmos. Hugh, indique-me aqui todos os que então já se encontravam presos. Seja qual for a sua culpa por danos em mercadorias e equipamentos, não podem ter participado no assassínio.

Hugh inclinou-se sobre o ombro dele e passou rapidamente a mão pelo pergaminho:

- Foi um recontro vivo, mas breve. Dominámo-lo muito rapidamente, nem chegaram a todo o comprimento da frontaria. Este homem foi apanhado em último, talvez tão tarde como as dez horas, mas numa taberna e muito embriagado, e a taberneira garante que já lá estava havia mais de uma hora. É uma testemunha digna de crédito, pois ficou satisfeita por se ver livre dele. Mas este está ilibado do homicídio. O seguinte rastejou até à ponte um pouco mais tarde e reconheceu ter participado na refrega, mas deixámo-lo ir para casa, pois é muito coxo e há testemunhas de todos os seus movimentos desde antes das nove. Está cá para responder pela sua parte no ajuntamento, conforme prometeu. Penso que pode com segurança riscá-lo de qualquer outra acusação.

- Não deixa senão um - comentou Prestcote, e levantou com vivacidade os olhos para o rosto de Beringar.

- Assim é - confirmou Hugh, e não se comprometeu com mais nenhuma afirmação.

- Muito bem! Mande entrar todos os restantes, mas mantenha-o à parte. Tratemos separadamente destas duas questões e dediquemos primeiro a nossa atenção à menor.

Para o espaço isolado por uma corda a um dos lados do salão, os homens do alcaide arrebanharam os prisioneiros, uma longa fila de jovens sombriamente acanhados, agora feridos, desgrenhados e lamentando a sua sorte, mas mantendo acesas as brasas de um ressentimento genuíno. Havia entre eles alguns gibões rasgados, um ou dois olhos negros e sinais de narizes sangrados e contusões na cabeça, além de que uma noite sobre o empedrado mal varrido das celas não fizeram bem nenhum às suas melhores roupas, vestidas para uma batalha digna, tal como os cavaleiros se revestem de armaduras cerimoniais. Haveria mães indignadas a repreender amargamente enquanto esfregassem e remendassem, ou, aqui e ali, uma jovem esposa a fazer o sermão em nome de todas as mulheres. Os réus alinharam-se com ar inflexível, cerraram os maxilares e prepararam-se para sofrer o que se seguisse.

Prestcote foi muito cuidadoso. Era evidente estar preocupado com o mal mais sério e pouco disposto a fulminar exageradamente os culpados da discórdia cívica, que afinal causara comparativamente poucos danos. Portanto, embora chamasse cada réu em separado e o fizesse responder pela sua própria participação no tumulto, tratou rápida e razoavelmente do caso. Quase todos confessaram abertamente a sua participação, insistiram em que a intenção fora inteiramente legal e pacífica e que a desordem posterior não fora intencional nem provocada por eles. Alguns testemunharam ter estado com Philip Corviser no embarcadouro e contaram como ele fora atacado, assim se desencadeando o tumulto subsequente. Só um aqui e ali tentou provar que não fizera nada que se parecesse com derrubar um tripé de um expositor, nem sequer atravessara o Severn para o lado da abadia durante aquela tarde. E esses poucos já estavam profundamente comprometidos por testemunhos de burgueses respeitadores da lei.

Pais agitados, mais vingativos que protectores, avançaram para reclamar cada um dos heróis abatidos, garantindo a presença no tribunal formal e oferecendo-se para pagarem a respectiva caução. O garoto coxo ouviu um sermão superficial e foi libertado sem qualquer pena. Dois, que tinham sido particularmente teimosos na afirmação de que se encontravam noutro lado na altura e estavam a ser injustamente acusados, foram mandados regressar à prisão por mais um dia ou dois, para reconsiderarem a natureza da verdade.

- Muito bem! - exclamou Prestcote, sacudindo as mãos com irritação. - Evacuai o salão, deixando apenas quem tiver depoimentos a fazer quanto a mestre Thomas of Bristol. E trazei Philip Corviser.

A fila de jovens desaparecera, empurrada para fora e conduzida para longe por famílias fiéis mas exasperadas. Em casa teriam de se sentar a tratar as equimoses nas cabeças e nos orgulhos, enquanto os pais os insultariam e as mulheres da casa precipitariam sobre eles todo o temor e preocupações sofridos por sua causa. Emma ficou com os olhos húmidos de simpatia a ver desaparecer o último, que era arrastado para fora por uma orelha pela mãe baixinha, metade do tamanho dele, e hiante como um gaio. Pobre rapaz, não precisava de mais castigos, já estava a afundar-se em mortificação.

Ela virou-se e ali, onde os companheiros dele tinham estado mas cruelmente só no meio da parede de pedra, encontrava-se Philip Corviser.

Agarrava a corda com ambas as mãos e estava rigidamente erecto, o pescoço hirto como uma lança, apesar de parecer que a sua carne corria o risco de se derreter e soltar dos ossos, tão pálido se encontrava. A extrema palidez, que Cadfael sabia ser provocada pelo vinho verde, a que não está habituado, no dia seguinte ao abuso do seu consumo, Emma quase de certeza tomou como fruto de ferimentos graves e grande angústia de espírito. Ela própria empalideceu por reflexo, fitando-o compassivamente, embora não lhe fosse nada e só o tivesse visto derrubado e com medo de não voltar a erguer-se.

Apesar de todos os seus esforços, ele constituía uma figura lastimosa. A sua melhor cota estava rota e suja e, pior, tinha manchas de sangue sob o ouvido esquerdo e de vomitado no saio. Uniu com galanteria mas alguma incerteza as pernas, que quase se recusavam a obedecer-lhe, e o seu rosto inofensivo e bronzeado, agora por barbear e cor de cinza, corou até um rubor inconveniente e inesperado quando avistou o pai, à espera, com grave paciência entre os espectadores. Não voltou a olhar para aquele lado, mantendo antes os confusos olhos castanhos fixos no alcaide.

Reconheceu o seu nome em voz demasiado alta, num desafio nervoso, e concordou quanto à hora e lugar da sua prisão. Sim, estava muito ébrio e confuso quanto aos seus movimentos, e até quanto às circunstâncias da sua prisão, mas sim, tentaria responder com verdade às acusações que lhe fossem feitas.

Havia diversas testemunhas a atestar que Philip fora originador e chefe de todo o barulho que terminara tão tristemente. Estivera na vanguarda durante a travessia da ponte pelos jovens irados, fizera o sinal que enviara alguns membros do grupo ao longo da frontaria, enquanto ele próprio conduzia uns tantos até à beira-rio e entrava em acerba discussão com os mercadores que aí descarregavam os seus produtos. Até aí todos os relatos correspondiam, mas a partir daí variavam radicalmente. Alguns punham os jovens a começar imediatamente a atirar mercadorias ao rio, e tinham a certeza de Philip ter estado no auge da batalha. Um ou dois dos mercadores prejudicados alegaram com grande indignação que ele atacara mestre Thomas, e assim começara todo o tumulto.

Como todos queriam ter uma palavra a dizer, Hugh Beringar reservara para o fim as suas testemunhas preferidas.

- Senhor, quanto à cena junto do rio, temos aqui a sobrinha de mestre Thomas e dois homens que intervieram e depois ajudaram a salvar muito do que tinha sido lançado ao rio: Ivo Corbière, de Stanton Cobbold, e o irmão Cadfael, da abadia, que estava a ajudar um comerciante de fala galesa. Não houve quem estivesse mais próximo dos acontecimentos. Ouvireis a Sra. Vernold?

Philip não se apercebera até esse momento de que ela estava presente. A sua menção fê-lo olhar desorientadamente em torno e, ao vê-la avançar timidamente para ficar de pé em frente da mesa do alcaide, corou profunda e dolorosamente, com um rubor que lhe subiu como uma vaga do colarinho rasgado até ao cabelo castanho-acobreado. Afastou os olhos dela, desejando, pensou Cadfael, que o chão se abrisse e o engolisse. Não teria tido tanta importância parecer um objecto de lástima para os outros, mas perante ela ficou furioso e envergonhado. Nem sequer a ideia da mortificação do pai o podia ter desanimado tanto. Emma, depois de um relance rápido mas de bastante compreensão, também afastara o seu olhar. Só fitava o alcaide, que correspondeu a esse olhar directo com preocupação e pesar:

- Era necessário submeter a Sra. Vernold a este incómodo numa altura tal? Minha senhora, podia muito bem ter-lhe sido poupada a comparência aqui, o Sr. Corbière e o bom irmão teriam sido testemunhas suficientes.

- Desejei vir - afirmou Emma, com a voz fraca mas firme. - Na verdade não fui pressionada, foi uma decisão que eu própria tomei.

- Muito bem, se é esse o seu desejo... Ouviu estas diferentes versões do que aconteceu. Parece haver poucas divergências até estes perturbadores da paz descerem para o embarcadouro. Diga-me então o que se passou seguidamente.

- É verdade que aquele jovem era o chefe. Penso que se dirigiu ao meu tio porque ele parecia ser o mais importante dos mercadores então presentes, mas falou alto, para ser ouvido por todos os restantes. Não posso dizer que tenha pronunciado ameaças, só afirmou que o burgo sofria um agravo e a abadia não pagava o suficiente pelo privilégio da feira, e pediu que nós, que vínhamos aqui negociar, reconhecêssemos os direitos da cidade e lhe pagássemos um dízimo dos nossos arrendamentos e direitos, em vez de pagarmos tudo à abadia. Como é natural, o meu tio não concordou, antes defendeu com firmeza a letra da carta-patente, eordenou aos jovens que saíssem do seu caminho. E quando ele, o prisioneiro aqui presente, quis continuar a discutir, o meu tio virou-lhe as costas e deixou de lhe ligar importância com um encolher de ombros. Então o jovem pousou-lhe uma das mãos no braço, querendo detê-lo ainda, e o meu tio, que segurava o seu bordão, voltou-se e atingiu-o, pensando, suponho, que ele tencionava atacá-lo ou feri-lo.

- E não era o caso? - A voz do alcaide indicava alguma surpresa.

Ela dirigiu um breve olhar ao prisioneiro, e outro ao irmão Cadfael, procurando o seu apoio, e pensou um momento:

- Não, não creio. Ele começava a estar irritado, mas não dissera nenhuma palavra inconveniente nem fizera qualquer movimento ameaçador. E o meu tio, com certeza alarmado, bateu com força. Derrubou-o e ele ficou desmaiado. - Desta vez virou-se mesmo e fitou seriamente Philip, descobrindo que este a fixava de olhos muito abertos. - Como pode ver, ficou marcado. Na têmpora esquerda. - Sangue seco acamara o espesso cabelo castanho.

- E ele tentou então retaliar? - inquiriu Prestcote.

- Como? - disse ela com simplicidade. - Estava mais que atordoado, não se podia levantar sem ajuda. E então todos os outros começaram a lutar e a atirar coisas ao rio. O irmão Cadfael aproximou-se, ajudou-o a pôr-se em pé, entregou-o aos amigos e eles levaram-no. Tenho a certeza de que não poderia andar sem auxílio. Creio que não sabia o que estava a fazer, nem como ficara naquele estado.

- Nessa altura talvez não - concordou Prestcote, raciocinando correctamente. - Mas mais tarde, algo recuperado e, como ele próprio admitiu, muito embriagado, pode bem ter meditado numa vingança.

- Não posso dizer nada quanto a isso. O meu tio estava disposto a bater-lhe outra vez, e poderia tê-lo ferido gravemente se eu o não tivesse impedido. Não é essa a sua índole - proclamou ela firmemente -, não era nada característico dele, mas estava em fúria e confuso. O irmão Cadfael confirmará o que eu disse.

- Em todos os aspectos - interveio o irmão Cadfael. - É um relato perfeitamente equilibrado e justo.

- Sr. Corbière?

- Não tenho nada a acrescentar - disse Ivo - ao que a Sra. Vernold tão admiravelmente vos contou. Vi o prisioneiro ser ajudado a afastar-se pelos seus companheiros, e do que foi feito dele posteriormente não tenho conhecimento. Mas está aqui um dos meus homens, Turstan Fowler, que diz tê-lo visto ao fim do serão, a beber numa taberna na esquina da feira dos cavalos. Devo dizer - acrescentou Ivo com desgosto resignado - que as suas próprias recordações dos acontecimentos da noite devem ser tão confusas como as do prisioneiro, pois apanhámo-lo depois das onze, bêbedo como um cacho e, pelo aspecto, já estava há algum tempo nesse estado. Fiz que passasse a noite numa cela da abadia. Mas afirma já ter a cabeça desanuviada e saber o que viu e ouviu. Achei melhor que ele próprio fizesse aqui as suas declarações.

O arqueiro aproximou-se, de lado, com aspecto sombrio e a olhar para cima por entre espessas pestanas e olhos franzidos, como se a cabeça ainda lhe andasse à roda.

- Bem, que afirma saber, amigo? - perguntou Prestcote, olhando-o atentamente.

- Meu senhor, eu nem sequer devia estar fora dos muros da abadia, ontem à noite, o meu Sr. Corbière dera-me ordem de permanecer no interior. Mas sabia que ele passaria o serão a percorrer o terreiro, por isso aventurei-me. Bebi de mais na taberna de Wat, no canto norte da feira de cavalos. E este tipo estava lá, a beber tanto que podia competir comigo, e eu já estou habituado e aguento a maior parte das vezes. A casa estava cheia, deve haver mais quem vos possa dizer o mesmo. Ele estava a tratar da cabeça magoada e a cuspir fogo contra o homem que lha magoara. Jurava que inverteria os papéis antes de a noite acabar. E é tudo, meu senhor.

- A que horas foi isso? - indagou Prestcote.

- Bem, meu senhor, eu ainda estava firme nos pés e lúcido de espírito, o que de certeza deixei de estar mais tarde. Deve ter sido mais ou menos a meio entre as oito e as nove horas. Eu devia ter aguentado a bebida suficientemente bem se não tivesse passado da cerveja para o vinho e depois para uma forte aguardente, e foi esta que me deitou abaixo, senão teria regressado antes do meu senhor e escapado a uma noite na pedra.

- Foi bem merecida - disse Prestcote secamente. - Então foi dormir para descarregar... quando?

- Bom, perto das nove, suponho, meu senhor, e fiquei nas profundas logo a seguir. À bofe, não me lembro onde, embora recorde a estalagem. Podem dizer-vos onde me encontraram aqueles que me encontraram.

Nesta altura ocorreu abruptamente ao irmão Cadfael que por pura casualidade todo o interrogatório, desde que fora dada entrada a Philip, estava a ser conduzido sem que uma única vez tivesse sido mencionado o facto de naquele momento mestre Thomas estar morto na capela do castelo. Era verdade que o alcaide se dirigira a Emma em tom de pesar e consideração apropriado ao seu estado de órfã recente e a ausência do tio podia ser razão suficiente por si própria, embora, em vista da importância dos seus negócios na feira e do facto de Emma se lhe ter referido pelo menos uma vez no presente, uma pessoa completamente ignorante da sua morte dificilmente pudesse tirar qualquer conclusão destes indícios, a menos que tivesse um raciocínio perfeito. Ora Philip estivera toda a noite numa cela de prisão, fora arrastado para fora apenas para enfrentar aquela audiência e além disso ainda se encontrava doente e entorpecido pela bebida, pela cabeça partida e pela angústia, portanto, em estado nada adequado para extrair todas as inferências daquilo que ouvia. Ninguém lhe armara deliberadamente uma ratoeira, mas esta nem por isso deixava de lá estar, e poderia ser esclarecedor activá-la.

- Então essas ameaças que ouviu contra mestre Thomas - comentou Prestcote - podem ter sido pronunciadas a apenas uma hora, provavelmente menos, do momento em que o mercador deixou a sua cabina na feira para regressar sozinho à barcaça. A última informação que temos referente a ele.

Era aproximar-se da mola que activaria a ratoeira, mas que ainda não a soltaria. O rosto de Philip continuava tenso, resignado e surpreso, como se estivessem a falar galês e ele nada entendesse. O irmão Cadfael soltou a mola; era mais que tempo.

- A última informação que temos referente a ele vivo - disse claramente.

A palavra podia ter sido uma lâmina a penetrar, das mais finas que mal se sentem por um momento e depois arrastam consigo a dor e a ferida. A cabeça de Philip ergueu-se com um esticão, a boca abriu-se-lhe, os olhos magoados arredondaram-se numa compreensão horrorizada.

- Mas deve ser lembrado - continuou Cadfael rapidamente - que não sabemos a hora a que morreu. Um corpo tirado da água pode nela ter entrado em qualquer altura durante a noite, depois de todos os cativos estarem na prisão, e todos os homens honestos na cama.

Já estava. Esperara resolver a questão da culpa e da inocência, pelo menos a seu contento, mas continuava a não ter a certeza absoluta de o rapaz não saber já a verdade. E se ele só se tivesse mantido calado a ouvir as vozes ambíguas, na dúvida se o cadáver de mestre Thomas já fora encontrado? Pela aparência, se tivesse contribuído para essa morte, era melhor actor que qualquer dos saltimbancos que ao fim do dia exerciam o seu mister entre a multidão. A sua palidez passara da cor de farinha mal amassada para a de gélido mármore, tentou falar, engoliu palavras titubeantes, inspirou pesadamente, endireitou as costas e voltou para o alcaide os grandes olhos chocados. Pela aparência... - mas as aparências podem iludir, se a necessidade for suficientemente grande.

- Meu senhor - suplicou Philip aflito, quando recuperou a voz -, isto é verdade? Mestre Thomas of Bristol está morto?

- Sendo ou não do teu conhecimento - disse Prestcote secamente -, e não me precipito a ajuizar, é verdade. O mercador está morto. O nosso principal objectivo aqui e agora consiste em apurar como morreu.

- Tirado da água, disse o monge. Afogou-se?

- Isso, se o souberes, podes dizer-no-lo. Abruptamente, o prisioneiro virou as costas ao alcaide, inspirou de novo profundamente, olhou a direito para Emma e a partir daí mal tirou os olhos dela, mesmo quando Prestcote se lhe dirigia. O único julgamento que lhe interessava era o dela.

- Minha senhora, juro-lhe que não maltratei o seu tio nem o voltei a ver depois de me terem levado do embarcadouro. Não sei o que lhe aconteceu, e Deus sabe quanto lamento a sua perda. Nada no mundo me faria tocar-lhe, mesmo que nos tivéssemos reencontrado e discutido de novo, sabendo que era seu parente.

- No entanto, foste ouvido a ameaçar maltratá-lo - interveio o alcaide.

- Pode ser. Não posso beber, foi disparate meu tentar sequer essa cura. Não recordo nada do que disse, não duvido de que tenham sido loucuras e inconveniências. Estava ferido e amargurado. O que me propusera fazer era honesto, mas descambou. Tudo fora em vão. Porém, se me exprimi com violência, não a pratiquei. Nunca mais vi o homem. Quando fiquei mal disposto com o vinho, saí da taberna, desci até à margem, longe dos barcos, e deitei-me aí até conseguir arrastar-me de regresso ao burgo.

Reconheço que os meus actos deram origem a problemas e tudo o que foi dito contra mim, tudo excepto isto. Perante Deus, que é minha testemunha, garanto-lhe que não causei qualquer dano a seu tio. Fale, e diga que acredita em mim!

Emma fitou-o, de lábios entreabertos e olhos consternados, incapaz de lhe dizer sim ou não. Como poderia ela saber o que era verdade e o que era mentira?

- Deixa-a - ordenou o alcaide com vivacidade. - É connosco que tens de tratar. Esta questão tem de ser sondada mais profundamente do que até agora foi possível. Nada está provado, mas és gravemente suspeito, e sou eu que tenho de determinar o que há-de ser feito de ti.

- Senhor - aventurou-se o preboste, que até então se mantivera no mais completo silêncio, contra todas as tentações -, estou preparado para pagar caução pelo meu filho, seja qual for o montante estabelecido por vós, e garanto que ele ficará ao vosso dispor para julgamento e em quaisquer outras alturas anteriores em que desejardes interrogá-lo. A minha honra nunca foi posta em dúvida, e o meu filho, independentemente de tudo o resto, é conhecido como homem de palavra e, se fizer aqui um juramento, ser-lhe-á fiel, mesmo sem que eu a isso o obrigue. Peço a Vossa Senhoria que liberte o meu filho sob minha fiança.

- De modo nenhum - disse Prestcote decididamente. - O assunto é demasiado grave. Ele fica bem trancado.

- Senhor, se assim ordenardes, ele ficará trancado, mas deixai que seja em casa. A mãe...

- Não! Não digais mais nada, deveis saber que é impossível. Ele fica aqui sob custódia.

- Não há nada contra ele quanto a esta morte - interveio Corbière generosamente -, por enquanto, quero eu dizer, a não ser o testemunho do meu vilão, referente às suas ameaças. E os ladrões rondam tão grandes ajuntamentos como as feiras e, se puderem apanhar um homem longe dos seus semelhantes, matam-o pela roupa que traz vestida. Decerto o facto de o corpo ter sido despojado concorda melhor com um desses crimes oportunistas, por lucro! A vingança não tem nada para se alimentar numa trouxa de roupa. O acto é tudo.

- É verdade - concordou Prestcote. - Mas supondo que um homem tivesse morto debaixo de fúria, talvez simplesmente por ter ido demasiado longe num assalto cuja intenção fosse apenas de ferir, poderia ter a presença de espírito suficiente para despojar a sua vítima, fazendo que parecesse acto de ladrões vulgares, desviando assim a atenção de si próprio. Ainda há muito trabalho a empreender neste caso, mas entretanto Corviser tem de permanecer detido. Não estaria a cumprir o meu dever se o libertasse, mesmo a vosso cargo, Mestre Preboste. - E o alcaide ordenou, com um movimento da mão: - Levem-no!

Philip foi lento a mexer-se, até o cabo de uma lança o atingir nada suavemente nas costelas. Mesmo então, manteve o queixo sobre o ombro enquanto dava uns passos, com os olhos desesperadamente fixos no rosto perturbado e em dúvida de Emma:

- Não lhe toquei - garantiu, a ser puxado à força em direcção à porta por onde os guardas o haviam trazido. - Peço-vos que me acrediteis! - Saiu então, e a audiência estava terminada.

Saindo para o átrio exterior, detiveram-se a inspirar sofregamente, libertos da sombria opressão da sala de audiências. Roger Dod rondava, com os olhos famintos pousados em Emma:

- Senhora, devo escoltar-vos de regresso à barcaça? Ou quer que eu volte directamente para a cabina? Mandei Gregory ir para lá ajudar Warin, enquanto eu tinha de estar ausente, mas o negócio estava a aumentar vivamente, e eles já devem estar sobrecarregados. Se é isso que deseja... Que façamos a feira como ele a teria feito?

- É isso que desejo - confirmou ela com firmeza. - Que tudo se faça como ele teria feito. Regresse directamente à feira de cavalos, Roger. Por enquanto vou ficar na abadia com Lady Beringar, e o irmão Cadfael acompanha-me até lá.

O jornaleiro demorou-se um pouco, mas deixou-os e já não olhou para trás. Todavia, a simples visão das suas costas robustas, rígidas e sabidas recordava a intensidade do rosto moreno e dos olhos ardentes e amargos. Emma viu-o afastar-se e soltou um suspiro de desânimo:

- Tenho a certeza de que é bom homem, sei que é bom servo e há muitos anos se mantém fiel ao meu tio. Também o seria para comigo, à sua maneira. E respeito-o, é o meu dever! Penso que poderia gostar dele, se ao menos não quisesse que o amasse.

- Não é problema novo - consolou-a Cadfael. - A flecha é disparada. Atinge um e não o outro. O afastamento é a única cura.

- Também acho - disse Emma fervorosamente. - Irmão Cadfael, tenho de ir à barcaça para trazer mais roupa e coisas de que preciso. Acompanha-me?

Ele compreendeu que o momento era oportuno. Tanto Warin como Gregory estavam a atender os clientes na cabina, e Roger dirigia-se ao seu encontro. A barcaça pairaria inocentemente junto do embarcadouro, sem ter a bordo nenhum homem que lhe perturbasse a paz. Só um monge da abadia que não lha perturbava minimamente:

- Tudo o que quiserdes - concordou ele. - Tenho autorização para vos ajudar em tudo o que for necessário.

Quase contara que Ivo Corbière fosse ter com ela assim que saíssem do salão, mas tal não aconteceu. Passou pela mente de Cadfael que também ela contara com isso. Contudo, talvez o jovem tivesse decidido não valer a pena constituir um trio com a senhora desejada e um acompanhante monástico, que tinha claramente o seu mandado e não consentiria em ser desalojado. Cadfael compreendia esse ponto de vista e admirava uma tal discreção e paciência. Ainda haveria dois dias de feira, e os terrenos da abadia não eram tão vastos que os seus hóspedes não pudessem encontrar-se uma dúzia de vezes ao dia. Por acaso ou por combinação!

Emma seguiu em silêncio pelo caminho de regresso através do burgo. Nada teve a dizer até emergirem da sombra da porta de novo para a plena luz do Sol, sobre a brilhante curva do rio. Então comentou subitamente:

- Foi simpático da parte de Ivo falar tão razoavelmente a favor do jovem. - E no mesmo instante, enquanto Cadfael lhe deitava um olhar de lado para vislumbrar o que quer que estivesse por detrás das palavras, corou tão intensamente quanto o infeliz jovem Philip corara ao vê-la testemunhar a sua vergonha.

- Fez sentido - disse Cadfael, amavelmente cego. - Suspeitas pode haver, mas prova não há nenhuma, por enquanto. E a menina deu-lhe um exemplo de generosidade que ele não podia deixar de admirar.

O rubor não aumentou, mas já era tão vivo como uma rosa. No seu rosto ebúrneo e sedoso, tão jovem e límpido, era tocante e ficava bem.

- Oh, não! - exclamou ela. - Eu só contei simplesmente a verdade. Não podia fazer outra coisa. - O que, uma vez mais, era a verdade simples, pois nada na sua vida, até então, lhe corrompera a valorosa pureza. Cadfael começara a sentir uma forte amizade por esta jovem órfã, que suportava o seu fardo sem timidez ou queixas e ainda tinha o coração aberto para os pesos dos outros.

Tive pena do pai dele - afirmou. - Um homem tão decente e respeitado, ser assim repelido. E falou da mulher... deve estar fora de si com a preocupação, pobre senhora.

Tinham passado a ponte e virado para o caminho verdejante, quase completamente repisado naquela época movimentada e quente, que descia para a beira-rio e as grandes hortas e pomares de Gaye. A barcaça deserta de mestre Thomas encontrava-se abrigada junto da margem luxuriante do outro lado do embarcadouro, bem atracada. Um ou dois carregadores afadigavam-se ao longo das pranchas, indo buscar novos fornecimentos aos barcos, pondo-os aos ombros e levando-os para cima, para reabastecer tendas com muita procura. A beira-rio, iluminada pelo sol, estava radiantemente verde e azul, e quase silenciosa, se exceptuarmos os sons estivais de abelhas ebriamente ocupadas entre as últimas flores de Verão que cresciam entre as ervas. Quase deserta, se exceptuarmos um pescador solitário num barquito à sombra da ponte; um pescador à vontade, bem constituído, apenas em camisa e calção, com espessos caracóis negros e negra barba emaranhada. Rhodri ap Huw confiava claramente no seu servo para obter lucros no trato com os clientes ingleses, ou então já esgotara toda a mercadoria que trouxera consigo. Parecia sonolento, feliz, quase eterno, a arrastar o isco ao sabor da corrente, sob o arco da ponte, com um ocasional golpe de pulso para corrigir o seu percurso. Embora com toda a probabilidade os olhos vivos sob as pálpebras sonolentas não perdessem nada do que se passava à sua volta. Tinha o dom, parecia, de estar em todo o lado, mas em todo o lado desinteressado e benevolente.

- Vou ser rápida - garantiu Emma, com um pé no lado da barcaça. - Ontem à noite Constance emprestou-me tudo de que precisei, mas não posso continuar a mendigar. Quer ter a bondade de vir a bordo, irmão? É bem-vindo! Lamento não ser exemplar a receber. - Os lábios tremiam-lhe. Ele soube o instante em que o seu pensamento voltara ao tio, que jazia nu e morto no castelo, um homem que ela reverenciara, de quem dependera e que talvez tivesse sentido como eterno na sua solidez e autoconfiança. - Ele teria desejado que lhe oferecesse vinho, o vinho que tinha recusado ontem à noite.

- Só por falta de tempo - disse Cadfael placidamente, e saltou com ligeireza para o convés baixo da barcaça. - Vá buscar o que precisa, minha filha, eu espero por si.

O espaço a bordo estava bem organizado, a cabina à popa era baixa mas ocupava toda a largura do casco e, embora Emma tivesse de inclinar a cabeça cuidada para poder entrar e descer ao nível inferior lá dentro, ela e o tio teriam tido espaço para dormirem. Pouco de sobra, no entanto o suficiente, e nada nem ninguém suspeito poderia lá entrar. Mas arriscado, de facto, faltando-lhe o seu protector natural e com outros três homens muito perto, no convés. E um deles profunda e desesperadamente apaixonado. Os tios talvez não reparem em olhares como os seus, quando se trata dos próprios subordinados.

Ela estava de volta, aparecendo de repente à entrada baixa. Os seus olhos tinham novamente a expressão de choque e alarme, mas agora contido e dominado. A voz era serena e baixa ao dizer:

- Esteve cá alguém! Alguém estranho! Alguém mexeu em tudo o que deixámos a bordo, remexeu a minha roupa interior, e a do meu tio também, virou todas as tábuas ou coberturas. Não estou a sonhar, irmão Cadfael! É verdade! O nosso barco foi revistado enquanto ficou sem ninguém. Venha ver!

Foi sem malícia que ele perguntou no mesmo instante:

- Levaram alguma coisa?

Ainda dominada pela sua descoberta e descuidadamente honesta, Emma respondeu:

- Não!

 

 

                                                     Capítulo 3

 

Tudo o que se encontrava no barco, e especialmente tudo o que se encontrava no pequeno camarote, pareceu a Cadfael imaculadamente arrumado, mas nem por issso duvidou do que ela dissera. Uma jovem que fazia assim a sua terceira viagem, e ficara habituada a aproveitar o melhor possível o diminuto espaço, saberia exactamente onde tinha tudo dobrado e arrumado, e a simples alteração de uma prega, um canto amarrotado dentro da sua arquinha sob o beliche seria o suficiente para a alertar e trair a intervenção de mão estranha. Mas a própria tentativa de reconstituição perfeita era surpreendente. Implicava que o intruso tivera muito tempo ao seu dispor, enquanto toda a tripulação estivera ausente. Porém, ela dissera confiadamente que nada fora roubado.

- Tem a certeza? Teve pouco tempo para examinar tudo o que aqui está. É melhor verificar tudo antes de comunicarmos isto a Hugh Beringar.

- Tem de ser? - indagou ela, um pouco surpreendida até, pensou Cadfael, um pouco desanimada. - Não havendo prejuízos? Já estão assoberbados com outras questões.

- Mas não vê, minha filha, que isto vem em sequência directa do que se passou antes? O seu tio morto e agora a barcaça dele revistada...

- Mas com certeza não há relação - comentou ela imediatamente. - Isto é trabalho de algum ladrão vulgar.

- Um ladrão vulgar que não levou nada? - inquiriu Cadfael. - Onde há tantas coisas que valia apena levar!?

- Talvez fosse interrompido... - Mas a voz desvaneceu-se-lhe em silêncio, nem a si própria conseguia convencer.

- É o que lhe parece? Acho que deve ter percorrido sossegadamente todos os seus pertences, para lhe deixar tudo tão arrumado. E só se afastou quando ficou satisfeito.

Mas satisfeito com quê? O que desejava não estava ali? Emma mordeu o lábio na dúvida e olhou pensativamente em redor:

- Bom, se temos de participar... Tem razão, falei cedo de mais, talvez deva ver tudo. Não vale a pena ter só metade da história para lhe contar.

Instalou-se metodicamente a tirar todas as peças de roupa e equipamento de ambas as arcas, pousando-as em cima das camas, desdobrando mesmo as que mostravam, pelo menos aos seus olhos, os mais evidentes sinais de terem sido mexidas e voltando a dobrá-las a seu modo. No fim, inclinou-se para trás, sentou-se sobre os calcanhares e ergueu os olhos para Cadfael, franzindo-os pensativamente:

- Sim, foram tiradas umas coisas, mas tão astuciosamente... Pequenas coisas, por cuja falta nunca daria até chegarmos a casa. Falta-me um cinto, com fivela de ouro. E uma corrente de prata. E um par de luvas bordadas a ouro. Se não tivesse desconfiado quando aqui entrei, nem teria dado pela falta deles, pois não tencionava usar nenhum. Para que queria luvas em Agosto? Comprei-as em Gloucester, quando vínhamos a subir o rio.

- E das coisas do seu tio?

- Creio que não falta nada. Se tivesse deixado aqui alguns dinheiros... de facto agora não estão cá nenhuns, mas o cofre está na cabina da feira. Nunca transportava valores em viagens como esta, à excepção dos anéis com que andava sempre. Eu própria não teria aqui bugigangas tão caras, se as não tivesse comprado recentemente.

- Então parece - comentou Cadfael - que quem aproveitou a oportunidade de vir audaciosamente a bordo ver o que poderia levar teve a esperteza de se apoderar só de pequenas coisas, que podia esconder na manga ou na bolsa. Faz sentido. Por mais naturalmente que se comportasse, teria toda a probabilidade de despertar curiosidade se fosse para terra com os braços carregados dos mantos e camisas do seu tio.

- E temos de incomodar Hugh Beringar e o alcaide com uma perda tão trivial? - interrogou-se Emma, espetando um lábio duvidoso. - Parece lamentável, quando ele tem tantas questões mais graves para resolver. E, como vê, isto foi só uma apropriação vulgar, ordinária, porque o barco ficou algum tempo sem ninguém. Pequenas criaturas de rapina têm olhos para oportunidades destas.

- Mas temos mesmo de comunicar - insistiu Cadfael firmemente. - Deixemos a lei ajuizar se isto tem algo a ver com a morte do seu tio ou não. Não podemos ser nós a decidir. Procure o que precisa de levar consigo e depois vamos juntos ter com ele, se o conseguirmos encontrar a esta hora.

Emma reuniu um vestido e túnica lavados, meias, camisas e outros mistérios semelhantes de que as jovens precisam, com uma compostura que Cadfael achou simultaneamente admirável e surpreendente. A descoberta da invasão da sua propriedade surpreendera-a e perturbara-a no momento, mas rápida e calmamente se habituara à ideia e parecia perfeitamente indiferente à perda dos seus adornos. Ele estava precisamente a considerar como era estranha a ansiedade dela em descoligar este incidente da morte do tio, quando ela própria, com inocência perversa e impensada, restabeleceu a união:

- Bem, em todo o caso - disse Emma, constituindo cuidadosamente a trouxa com a saia do vestido e levantando-se com agilidade sobre os joelhos -, ninguém pode atrever-se a dizer que o filho do preboste foi o autor disto. Está em segurança numa cela do castelo e o próprio alcaide pode ser sua testemunha desta vez.

Hugh Beringar libertara-se dos seus deveres para partilhar pelo menos a refeição da noite com a esposa. Felizmente o primeiro dia da feira decorrera até então sem mais incidentes, nem desordens, nem discussões, nem acusações de batota ou exagero nos preços, nem cortes de garganta ou cortes de preços, como se o tumulto da tarde anterior e o seu resultado mortal tivessem purificado e suavizado até os prevaricadores habituais. O comércio florescia, as rendas e os direitos proporcionavam elevados rendimentos à abadia, e as vendas pareciam ir prolongar-se pacificamente pela noite fora.

- E comprei lã fiada - dizia Aline, encantada com as compras do dia - e tecido de lã muito bom, tão macio... apalpa lá! E Constance escolheu dois belos velos do mercador galês de Cadfael; quer ser ela própria a cardá-los e fiá-los para o bebé. E mudei de opinião quanto ao berço, pois não vi nada na feira que se compare com o que Martin Bellecote pode fazer. Vou encomendar-lho.

- A jovem ainda não voltou? - Quis saber Hugh, meio surpreendido. - Saiu do castelo bem antes de mim.

- Deve ter ido buscar coisas à barcaça. Ontem à noite, como sabes, não trouxe nada com ela. E também ia à loja de Bellecote encomendar o caixão para o tio.

- Isso já tinha feito de caminho - informou Hugh -, pois Martin foi ao castelo por causa do assunto antes de eu de lá sair. Hão-de trazer o corpo aqui para a capela antes de escurecer. - Acrescentou com apreço: - Moça de ideias arrumadas, a nossa Emma, assim como corajosa. Não consentiu que aquele rapaz tonto do Corviser fosse considerado o atacante, mesmo em benefício do tio. O conto foi o mais directo possível: ele começou com civismo, foi bruscamente recebido, cometeu o erro de pousar a mão no velho e foi derrubado como uma rês.

- E que diz ele próprio? - Aline ergueu atentamente o olhar do fuso com material macio que estava a acariciar amorosamente.

- Que não voltou a pôr os olhos em mestre Thomas e não sabe mais acerca da sua morte do que tu ou eu. Mas há aquele falcoeiro de Corbière, que afirma ter ele estado a espumar contra o velho na taberna de Wat, já o serão ia adiantado. Quem sabe?! O carneiro mais dócil do rebanho, mas não é essa a reputação dele!, pode ser levado a lutar quando estimulado, mas o punhal nas costas, de certa forma... disso duvido. Não tinha qualquer arma quando foi detido à porta. Teremos de perguntar a todos os seus companheiros se lhe viram alguma coisa dessas.

- Cá está Emma - disss Aline, olhando para a porta, por detrás dele.

A jovem entrou vivamente com a sua trouxa e o irmão Cadfael ao lado:

- Peço desculpa por ter demorado tanto tempo - disse Emma -, mas houve uma razão. Aconteceu algo de desagradável... oh, não é muito grave, não houve grandes prejuízos, mas o irmão Cadfael diz que temos de lhe contar.

Cadfael absteve-se de insistir, recuou em silêncio e deixou-a contar à sua maneira, e foi maneira bem simples, como se não tivessse grande interesse na perda que estava a comunicar. Apesar de tudo, descreveu palavra por palavra as peças de adorno como lhas descrevera a ele e entrou em mais pormenores quanto aos seus ornamentos.

- Não desejava incomodá-los com o roubo de tais bagatelas. Como posso preocupar-me com a perda de um cinto e umas luvas quando perdi o que era mais importante? Mas o irmão Cadfael insistiu, por isso contei-lhe.

- O irmão Cadfael teve toda a razão - confirmou Hugh incisivamente. - Surpreendê-la-á, minha filha, saber que não tivemos uma única queixa de práticas irregulares, furtos ou quaisquer outros males durante todo este dia e relativamente a qualquer outro comerciante da feira? Todavia, uma ameaça segue-se a outra no que se refere ao negócio do seu tio. Pode ser realmente um acaso? Não haverá alguém aqui sem interesse em qualquer outro, mas demasiado nele?

- Sabia que iria pensar isso - comentou ela, suspirando desencorajadamente. - Mas foi só por acaso que a nossa barcaça foi deixada sem ninguém toda esta tarde, por causa de o Roger ser preciso com todos nós no castelo. Duvido que houvesse lá mais algum barco sem vigilância. E os ladrões vulgares têm a vista aguçada para tais pormenores. Aproveitam tudo o que podem.

Tratava-se de uma observação rigorosa e ela não era claramente rapariga que desperdiçasse um argumento que lhe pudesse ser útil. Cadfael manteve-se calado. Teria ocasião de discutir o assunto com Hugh Beringar, mas não naquela altura. As perguntas que precisavam de resposta não seriam feitas a Emma. De que serviria? Ela nascera com toda a inteligência e, por força das circunstâncias, estava a aprender a cada momento. Mas por que estaria ela tão ansiosa por fazer passar como trivial aquela busca entre os seus bens, e sem qualquer relação com o assassínio de mestre Thomas? E por que afirmara confiadamente, sob a primeira impressão da descoberta, e de facto sem ter tido tempo para observar o campo em pormenor, que nada fora levado? Como se, desdenhando a invasão, tivesse boas razões para saber que fora ineficaz!?

“E contudo”, pensava Cadfael, estudando o rosto redondo e resoluto e os olhos claros com que ela correspondia à fixidez investigadora de Hugh, “seria capaz de jurar que esta jovem é boa e honesta, nada aldrabona ou mentirosa."

- Não vão precisar de mim - disse em voz alta. - Emma pode contar-te tudo. São quase horas de Véspera e ainda tenho de ir falar com o abade. Temos tempo depois, Hugh, a seguir à ceia.

O abade Radulfus era um bom ouvinte. Nem uma vez interrompeu com comentários ou perguntas, enquanto o irmão Cadfael lhe relatava tudo o que se passara na audiência do alcaide e a posterior descoberta inesperada na barcaça. No fim, deixou-se ficar uns momentos em silêncio, a meditar no que ouvira.

- Então agora temos um acto ilegal de que o acusado não pode de modo nenhum ser culpado, seja qual for a verdade quanto ao outro. Que lhe parece? Isto vai contribuir para enfraquecer a suspeita que pende sobre ele, mesmo quanto à acusação de homicídio?

- Enfraquece - afirmou Cadfael -, mas não pode ilibá-lo. É possível que seja verdade, como a Sra. Vernold acredita, que as duas coisas não estejam de forma nenhuma ligadas, sendo o furto da barcaça um simples aproveitamento de oportunidade, por falta de guarda. No entanto, dois ataques assim, à vida e aos bens do mesmo homem, parecem ter um objectivo metódico e não se tratar de mera casualidade.

- E a jovem é agora hóspede nas nossas instalações - disse Radulfus -, sendo a sua segurança da nossa responsabilidade. Dois ataques à vida e aos bens do mesmo homem, afirmou o irmão. E se houver mais? Se um inimigo astuto persegue um objectivo especial, pode não acabar com o assalto desta tarde, como não acabou com a morte do mercador. A jovem está a cargo do ajudante do alcaide, e não poderia encontrar-se em melhores mãos. Mas, tal como eles, é hóspede sob o nosso tecto. Não quero que os irmãos da nossa comunidade sejam desviados das suas devoções e deveres, nem a harmonia dos nossos ofícios abalada, não gostaria que estas questões fossem faladas senão entre o irmão e eu, e, claro, no que for necessário para cooperar com a lei. Mas o irmão Cadfael já está envolvido, sabe como o caso se encontra. Está disposto a manter-se atento ao que se seguir e a vigiar os nossos hóspedes? Ponho os interesses da abadia nas suas mãos. Não negligencie os seus deveres de devoção a não ser que seja absolutamente necessário, mas dou-lhe autorização para entrar e sair livremente e ausentar-se dos ofícios se tiver de ser. Quando a feira acabar, os nossos salões esvaziar-se-ão, os nossos mercadores rendeiros partirão. Deixará então de ser nossa responsabilidade proteger os justos ou impedir o mal que os ameaça, proveniente dos injustos. Mas, enquanto estiverem aqui, façamos o que pudermos.

- Cumprirei os vossos desejos, padre - afirmou Cadfael -, o melhor que puder.

Foi para Vésperas com o coração pesado e a mente aflita mas, apesar de tudo isso, satisfeito com o encargo do abade. Era em qualquer caso impossível deixar de se preocupar com um nó tão enredado, uma vez que se lhe deparara, mesmo não tendo em conta o temor natural que sentia pelo que pudesse acontecer à jovem, e era inegável que a regra beneditina, escrupulosamente observada, limitava a mobilidade durante grande parte do dia.

Entretanto, afastou as questões de Emma Vernold dos seus pensamentos, com uma luta que lhe devia ter merecido crédito no Céu, e entregou-se o melhor que pôde à observância adequada de Vésperas. E depois da ceia encaminhou-se para o claustro, não ficando surpreendido por lá encontrar Hugh Beringar à sua espera. Sentaram-se juntos num canto onde a brisa do fim da tarde se enrolava muito suave e gratamente em seu redor e a vista para o jardim era toda de erva esmeralda, pedras cinzento-claras e céu azul a desfazer-se em verde, por entre um canteiro de roseiras bravas carregadas de rosas tardias de aroma embriagadoramente suave.

- Há novidades na tua cara - disse Cadfael, fitando cuidadosamente o amigo. - Como se não tivéssemos tido o suficiente para um dia!

- E que pensarás tu disto? - interrogou-se Hugh. - Há menos de uma hora, um rapaz que estava a pescar no Severn pescou um embrulho de roupa molhada. Quase lhe partiu a linha, pelo que ele o deixou mergulhar outra vez, mas teve a curiosidade de puxá-lo para a margem até poder agarrá-lo com segurança. Um bom manto de espessa lã, feito para um homem grande e também com dinheiro para gastar. - Fitou os olhos brilhantes e interessados de Cadfael, mais para compararem certezas que para se interrogarem. - Sim, que outra coisa podia ser? Nem incomodámos Emma... quem teria coragem!? Ela está a desenhar para Aline um padrão para bainha bordada em traje de criança, um padrão que recebeu de França. Entendem-se como irmãs. Não, fomos buscar Roger Dod para o identificar. É de facto o manto de mestre Thomas. Agora andamos a varar as margens à procura da camisa e dos calções. Para qualquer ladrão vagabundo aquele manto valia um mês de actividade.

- Portanto, nenhum sanguessuga dessas o teria deitado fora - comentou Cadfael.

- Nunca!

- Também lhe foram tirados anéis dos dedos. Mas suponho que os anéis fossem demasiado bons para deitar fora, mesmo para provar que foi um assassínio por ódio e não para obter lucro. Os anéis afundar-se-iam, mesmo que atirados ao Severn. Então para quê atirá-los?

- Como de costume - afirmou Hugh, elevando as finas sobrancelhas negras -, estás mais à minha frente que ao meu lado. Aparentemente, foi uma morte por vingança pessoal. Então, enquanto estamos a examinar o caso, Ivo Corbière assinala muito sensatamente que um assassino com essa intenção não se deteria a despojar o corpo e a lançá-lo no rio, antes o deixaria onde caísse e se afastaria o mais depressa possível. “A vingança”, diz ele com toda a razão, “não tem nada para se alimentar numa trouxa de roupa. O acto é tudo!” Isso fez que o meu alcaide observasse que a mesma ideia podia muito bem ter ocorrido ao assassino, fazendo que ele despojasse a sua vítima por essa mesma razão, para enganar a lei. Agora pescámos no rio o manto do morto. E onde é que isso nos deixa, a ti e a mim, meu amigo?

- Divididos, em dois ou mais - respondeu Cadfael troçando do seu próprio desânimo. - Se o manto nunca tivesse sido encontrado, a noção de roubo vulgar ter-se-ia mantido e reflectido em favor do jovem Corviser. Será possível que o que foi dito na audiência do alcaide pusesse pela primeira vez essa ideia no espírito de alguém, levando-o a desfazer-se do manto onde tivesse probabilidades de ser encontrado? Há uma pessoa a quem conviria muito que o caso contra o teu prisioneiro se reforçasse: o próprio assassino. Supondo que aquele tonto não seja o assassino, naturalmente.

- É verdade, meio caso pode vir a parecer quase completo somando-lhe mais um testemunho. Mas que idiota seria o teu homem para deitar fora o manto como prova de que o assassínio não fora para roubar, fazendo assim recair novamente as suspeitas sobre Philip Corviser, e depois esgueirar-se para bordo da barcaça e roubar, quando Philip Corviser está numa cela do castelo e manifestamente impossibilitado de ser o autor disso.

- Ah, mas ele nunca imaginou que o roubo seria descoberto antes de a barcaça regressar a Bristol, pelo menos não antes de o caminho estar quase feito. Digo-te, eu não vi vestígios de mão estranha em lado nenhum, nem entre as mercadorias armazenadas no convés nem entre os bens guardados no camarote, e a própria Emma garantiu que não teria dado pela falta das coisas antes de voltar para casa. Foram compradas nesta viagem, ela não tencionava usá-las. Não foi roubado nada de óbvio, ela já tinha chegado quase ao fundo da arca quando deu por que aqueles adornos tinham desaparecido. Se não fosse a sua vista aguçada para a arrumação esmerada, nem teria sabido que o barco fora visitado.

- O roubo porém aponta para dois velhacos diferentes e dois crimes diferentes - lembrou Hugh com um sorriso forçado -, como Emma insiste em acreditar. Se o ódio foi a força por detrás da morte do homem, porquê rebaixar-se depois a surripiar-lhe coisas? Mas tu acreditas que as duas coisas estão absolutamente separadas? Creio que não!

- Estranhos acasos se acotovelam, por vezes, neste mundo. Não arrumes definitivamente a hipótese, ainda pode vir a corresponder à verdade. Mas não posso deixar de acreditar que a mesma mão está por detrás de ambos os acontecimentos, e o mesmo objectivo, que não é nem roubo nem ódio, ou a morte lhe teria posto fim.

- Mas, Cadfael, em nome do Céu, que objectivo, que exigiu a morte de um homem, pode ter obtido satisfação posterior com o roubo de um par de luvas, um cinto e uma corrente?

O irmão Cadfael abanou desconsoladamente a cabeça e não teve resposta, pelo menos nenhuma que já estivesse preparado para dar:

- A minha cabeça anda à roda, Hugh. Mas tenho a negra suspeita de que talvez nem tudo tenha acabado. O abade Radulfus encarregou-me de prestar atenção ao assunto, em nome da abadia, e autorizou-me a entrar e sair conforme me parecer conveniente para esse fim. Está no fundo da sua mente que, se houver uma conspiração maligna contra o mercador de Bristol, a sua sobrinha pode não estar, também, absolutamente segura. Se Aline a puder manter ao seu lado, tanto melhor. Mas eu manterei igualmente uma certa vigilância sobre ela. - Pôs-se em pé, a bocejar. - Agora tenho de ir ao Terço. Se amanhã tiver de desleixar os meus deveres, ao menos terei acabado bem o dia de hoje.

- Reza por uma noite calma - pediu Hugh, erguendo-se com ele -, pois não temos homens para fazer patrulhas durante as horas mortas. Vou dar mais uma volta pela Frontaria, com o meu sargento, até à feira de cavalos, e depois vou para a cama. Na noite passada mal a vi!

A noite de 1 de Agosto, dia de abertura da Feira de S. Pedro, estava cálida, nítida e muito calma. Os comerciantes ao longo da Frontaria mantiveram as bancas pela noite dentro, pois a noite estava tão convidativa que muitos clientes ainda andavam por fora a apreçar e regatear. Os guardas do alcaide retiraram-se para o burgo, e até os servidores da abadia, que ficaram para manter a paz se ela fosse ameaçada, tiveram pouco que fazer. Já passava da meia-noite quando as últimas lamparinas e tochas foram extintas e o silêncio nocturno desceu sobre a feira de cavalos.

A barcaça de mestre Thomas oscilava suavemente com o movimento do rio, O próprio mestre Thomas jazia numa capela da abadia, decentemente amortalhado, e, na sua oficina no burgo, Martin Bellecote, o mestre carpinteiro, trabalhava até tarde no caixão especial, forrado a chumbo, que Emma lhe encomendara. E, numa cela estreita e empoeirada do castelo, Philip Corviser virava-se, revirava-se e alimentava os seus incómodos num fino colchão de palha, sem poder dormir por o importunar a recordação do rosto duvidoso e compassivo de Emma.

 

 

                     O segundo dia da feira

 

 

                                                         Capítulo 1

 

O segundo dia da feira amanheceu brilhantemente, o Sol dourado nascia, uma ligeira neblina pairava sobre o rio como um véu flutuante. Roger Dod ergueu-se com a alvorada, abanou Gregory para o acordar, enrolou a sua esteira, lavou-se no rio e fez uma rápida refeição de pão e cerveja, antes de se pôr a caminho para a cabina do seu senhor. A todo o comprimento da estrada, os negociantes estavam a desenvencilhar-se das suas capas, bocejando e espreguiçando-se, e a expor as suas mercadorias, a postos para o trabalho do dia. De passagem, Roger trocou cumprimentos com alguns deles. Onde tanta gente se reunia em tão pouco espaço, até um homem severo e calado não podia deixar de travar conhecimento com alguns dos seus semelhantes.

O primeiro vislumbre da cabina de mestre Thomas, entre os movimentos atarefados dos seus vizinhos, pôs rugas na testa de Roger e uma praga entre dentes, pois os taipais continuavam cerrados. Tudo trancado, e o sol já subia! Warin devia estar profundamente adormecido lá dentro. Roger bateu às tábuas da frente, que já deviam àquela hora ter sido convenientemente descidas sobre os suportes e ornamentadas com os bens para venda. Não recebeu resposta do interior.

- Warin! - berrou. - Diabos te levem, levanta-te e deixa-me entrar!

Não houve resposta, salvo que alguns dos visinhos se viraram com curiosidade, para ouvir e observar, abandonando as suas próprias actividades para prestarem atenção àquele barulho inesperado.

- Warin! - vociferou Roger, batendo novamente e com vigor. - Porco preguiçoso, que te aconteceu?

- Já estava admirado - comentou o mercador de tecidos do lado, detendo-se com uma peça de flanela nos braços. - Ainda não houve sinais dele. Tem um sono pesado, o seu guarda!

- Espere aí! - O armeiro do outro lado inclinou-se numa excitação sobre o ombro de Roger e apalpou a borda da porta de madeira. - Lascas, vê? - Junto da tranca as tábuas tinham umas tiras mais claras, que quase passavam despercebidas, e a um impulso da sua mão a porta cedeu para se abrir numa tira de escuridão. - Não é preciso bater, a entrada está aberta. Uma faca foi usada aqui! - esclareceu o armeiro, e fez-se um silêncio momentâneo.

- Queira Deus que só tenha sido usada aqui! - disse Roger num murmúrio aterrado, e empurrou a porta para a abrir completamente. Já então tinha uma dúzia de homens atrás; até o galês Rhodri ap Huw viera rodopiando pesadamente entre as bancas para se lhes juntar, os vivos olhos negros a pestanejar na espessura do cabelo e da barba, embora ninguém se detivesse a considerar que concluiria ele de tudo aquilo, visto que não falava inglês.

Da escuridão interior brotou o odor cálido de madeira, vinho e doces, e um ligeiro e estranho som, como o arfar de um mudo. Roger foi impelido para a frente, para a obscuridade, pelos ansiosos auxiliares que se amontoavam nas suas costas, todos boquiabertos de curiosidade. Os fardos amontoados e os pequenos barris de vinho tomaram forma gradualmente, depois de breve cegueira provocada por entrar naquele sítio escuro indo da luz do Sol. Tudo estava em ordem e à mão, tal como fora deixado na noite anterior, e de Warin não havia sinais, até que Rhodri ap Huw, sempre prático, destrancou o painel da frente e o baixou, e o brilho da manhã entrou a jorros.

Estendido e encostado ao fundo da mesma parede da frente, onde Rhodri quase lhe deve ter posto os pés em cima, Warin jazia enrolado na sua própria capa e atado pelos cotovelos, joelhos e tornozelos com cordas tão apertadas que mal se podia contorcer o suficiente para fazer restolhar as pregas do tecido. Tinha um saco enfiado na cabeça e uma tira de linho arrastava-lhe as fibras ásperas para a boca e estava atada atrás do pescoço. Procurava responder quando o seu nome era chamado, e pelo menos essas sacudidelas limitadas e roncos abafados tornavam evidente que estava vivo.

Roger soltou um inarticulado grito de alarme e indignação e caiu de joelhos, atirando-se primeiro à faixa de linho que comprimia o saco. O tecido áspero estava molhado de saliva à frente, e a boca lá dentro devia estar empastada e seca com as fibras encordoadas, mas pelo menos o pobre diabo podia respirar, e os seus roncos estrangulados estavam a tentar formar palavras muito antes de o linho ser desapertado, permitindo-lhe cuspir a mordaça. Ainda dentro do saco, a sua desagradável voz rouca exigiu saber com irritação:

- Onde é que se demoraram tanto? E eu quase morto!

Uns pares de mãos prestáveis já por essa altura se ocupavam dos outros liames, tanto mais zelosamente quanto o tinham ouvido falar, e de facto queixar-se, em tom tão tranquilizadoramente robusto. Warin emergiu gradualmente das suas faixas, desenrolado da capa tão sem cerimónia que acabou de cara no chão e ainda incoerentemente confuso. Endireitou-se indignado, mas tão agilmente que logo se viu não ter ossos partidos, nem feridas dolorosas, nem sequer sofrido demasiado com cãimbras devidas às cordas apertadas. Ergueu o olhar de sob o emaranhado cabelo grisalho, meio na defensiva, meio acusador, fitando o círculo dos seus salvadores como se tivessem sido eles os responsáveis pelas horas que passara tão aflito:

- Mais vale tarde que nunca! - exclamou com azedume, e escarrou, deixando sair fibras de burel. - Por que se demoraram tanto? Está toda a gente surda? Passei metade da noite aqui aos pontapés!

Meia dúzia de mãos estenderam-se prazenteiramente para o porem de pé e sentarem docemente num barril de vinho. Roger afastou-se um pouco e deixou-os satisfazer a curiosidade, enquanto troçava acerbamente do colega: “Não houve prejuízos, nem um arranhão no velho idiota! À primeira ameaça encolhera-se como um trapo enroscado."

- Por amor de Deus, que te aconteceu? Tinhas a cabina trancada. Como pôde um homem arrombar isto sem tu dares por isso? Há outros mercadores que dormem aqui com os seus produtos, só tinhas de chamar.

- Nem todos - interveio lealmente o mercador de tecidos. - Eu próprio durmo numa taberna, e o mesmo fazem muitos outros. Se o seu homem estivesse a dormir profundamente, o que é muito provável, com tudo fechado para a noite...

- Foi muito depois da meia-noite - disse Warin, esfregando penosamente os tornozelos magoados. - Sei porque ouvi o toque das Matinas, por cima do muro, antes de adormecer. Depois não ouvi mais nenhum som, até acordar com aquele capuz a ser-me enfiado pela cabeça. Meteram-me à força o pano na boca. Não cheguei a ver caras ou formas, enrolaram-me como um fardo de lã e deixaram-me atado.

- E nem sequer soltaste um grito!? - comentou Roger amargamente. - Quantos eram? Um ou mais?

Warin estava desconcertado, e hesitou, inclinando-se para um lado e para outro:

- creio que dois. Não tenho a certeza...

- Estavas encapuçado mas podias ouvir. Falaram um com o outro?

- Sim, agora recordo-me de uns sussurros. Não que conseguisse apanhar palavras. Sim, eram dois. Mexeram nos barris e nos fardos, isso sei...

- Durante quanto tempo? Não deviam atrever-se a fazê-lo à pressa, pois as coisas poderiam cair e despertar o terreno da feira - disse com razão o armeiro. - Quanto tempo cá ficaram?

Warin foi vago, e de facto, para um homem vendado e amarrado durante a noite, o tempo devia prolongar-se como um fio enredado:

- Podia ter sido uma hora.

- Tempo suficiente para encontrar o que cá estivesse de maior valor - afirmou o armeiro, e olhou para Roger Dod com um encolher dos ombros largos. - É melhor olhar em volta, rapaz, e ver o que falta. Não vale a pena preocupar-se com coisas tão pesadas como barris de vinho, para esses teriam precisado de uma carroça, e uma carroça às horas mortas de certeza que teria despertado alguém. Foi por algo pequeno e precioso que cá vieram.

Mas Roger já virara as costas ao seu companheiro libertado e escavava freneticamente entre os fardos e caixas empilhadas ao longo daparede:

- O cofre do meu amigo! Escondi-o aqui atrás, longe das vistas... Graças a Deus que ontem à noite tinha levado comigo para a barcaça a maior parte dos ganhos do dia, e os tenho lá trancados em segurança, mas mesmo assim ainda tinha ficado uma boa maquia. E todas as contas e pergaminhos...

Com a pressa, atirava para o lado caixas e sacos de especiarias, que perfumavam o ar, e afastava do caminho cofrezinhos de madeira com doces de leste, idos através de Veneza e da Gasconha e que valeriam elevados preços em qualquer lado.

- Aqui, encostado à parede...

As suas mãos mergulharam inutilmente, ele ficou de olhos desanimados. Pusera à vista as tábuas da cabina; as mercadorias tinham ficado empilhadas dos dois lados e, no meio, nada de mestre Thomas desaparecera.

O irmão Cadfael aproveitara as horas matutinas para trabalhar uma ou duas com o irmão Mark na estufa, enquanto não tinha razões para temer qualquer ameaça a Emma, pois ela ainda estaria com certeza a dormir na hospedaria, com Constance, e fora do alcance de qualquer mal. A manhã estava clara e ensolarada, a neblina erguia-se do rio, atravessada pelo ouro do sol, e Mark cantava alegremente enquanto arrancava as ervas daninhas, e escutava com atenção e serenidade as instruções de Cadfael em todos os pormenores do trabalho do dia:

- Pois posso ter de deixar tudo nas tuas mãos. E sei que posso mesmo, com toda a segurança, se tiver de me ausentar.

- Estou bem ensinado - garantiu o irmão Mark, com o seu sorriso grave, por detrás do qual a pequena centelha de travessura só era visível a Cadfael, que fora o primeiro a descobri-la e alimentá-la. - Sei no que mexer e o que deixar bem sossegado na oficina.

- Quem me dera poder estar tão seguro do meu papel fora dela - comentou Cadfael tristonho. - Há misturas entre nós que precisam de um toque tão seguro, meu filho, e onde mexer ou onde deixar estar perturba-me e não é pouco. Caminho no fio da navalha e a queda pode ser desastrosa para qualquer dos lados. Conheço as minhas ervas. Têm propriedades fixas e seguem regras sagradas. As criaturas humanas não são assim. E nem sequer consigo desejar que o fossem. Não poria de parte um escrúpulo da sua complexidade, seria uma perda lamentável.

Eram horas de irem para o ofício de Primax. O irmão Mark inclinou-se para passar as mãos pela água da pipa que mantinham a aquecer durante o dia, para estar tépida para as ervas quando regassem ao fim da tarde.

- Foi o estar consigo que me fez saber que quero ser padre - disse, desvendando o seu pensamento tão abertamente como sempre na companhia de Cadfael.

- Nunca senti essa vocação - redarguiu Cadfael, distraído, espírito perdido noutros assuntos.

- Eu sei. Foi a única coisa que faltou. Vamos andando? Saíam do ofício de Primax, e os servos leigos já se juntavam para a sua missa matutina, quando Roger Dod surgiu à entrada, caminhando dificilmente, sem fôlego, e podendo ler-se-lhe claramente na cara que havia problema.

- Quê, mais alguma coisa? - suspirou Cadfael, e apressou-se para o interceptar antes de ele chegar à hospedaria. Subitamente consciente daquela figura quadrada e robusta a aproximar-se com clara intenção, Roger parou e voltou a cara ansiosa. O seu sobrolho tornou-se menos carregado ao reconhecer o mesmo monge que acompanhara o ajudante do alcaide na vã procura de mestre Thomas, na véspera de S. Pedro.

- Ah, é o irmão, ainda bem! Hugh Beringar estará lá dentro? Tenho de falar com ele. Estamos cercados! Ontem a barcaça, agora a cabina, e Deus sabe o que está ainda para vir, e o que será de nós antes de conseguirmos ir embora deste sítio maldito. Os livros do meu senhor desapareceram: dinheiro, cofre e tudo! Que pensará a Sra. Emma? Preferia ficar eu próprio com a cabeça partida, se tal fosse necessário, a falhar assim perante ela!

- Que conversa é essa de cabeças partidas? - inquiriu Cadfael alarmado. - De quem? Está a dizer-me que agora houve ladrões a atacarem a vossa cabina?

- Durante a noite! E o cofre desapareceu, e Warin ficou atado de pés e mãos e com a boca cheia de pano, e ninguém ouviu um som enquanto fizeram isso. Encontrámo-lo há mais de meia hora...

- Venha! - disse Cadfael, agarrando-o pela manga e pondo-se a caminho da hospedaria a toda a velocidade. - Havemos de encontrar Hugh Beringar. Conte a sua história uma vez, e acalme-se!

Nos apartamentos de Aline, as senhoras tinham acabado de sair da cama e Hugh estava sentado a tomar uma refeição matutina, em camisa e calções, descalço, quando Cadfael bateu à porta e enfiou cautelosamente a cabeça para dentro:

- Peço desculpa, Hugh, mas há novidades. Podemos entrar? Hugh deitou-lhe uma olhadela, reconheceu o fim do seu descanso e convidou-os resignadamente a entrarem.

- Aqui está um que tem uma história para contar - informou Cadfael. - Acaba de chegar da feira de cavalos.

À vista de Roger, Emma pôs-se de pé com espanto e alarme, desaparecendo-lhe dos olhos a suave frescura assombrada do sono, e das faces as cores da manhã. O seu cabelo negro, ainda não entrançado, pendia-lhe até aos ombros como cortina brilhante, a camisa solta não tinha cinto e os pés estavam descalços:

- Roger, que é? Que aconteceu agora?

- Mais roubo e maldade, patroa, e Deus sabe que não consigo ver a razão para todos os patifes do condado nos terem escolhido como presa. - Roger inspirou profundamente e com dificuldade, lançando-se imediatamente nas suas queixas: - Esta manhã vou para a banca como de costume e encontro tudo fechado, e nem um som ou palavra do interior, apesar de todos os meus gritos e pancadas, e então vêm alguns vizinhos, surpreendidos, e um vê que a barra de dentro foi levantada com uma faca... e faca maravilhosamente fina deve ter sido. E entrámos e encontrámos Warin enrolado como bagagem na sua própria capa, e bem atado, e com a boca cheia de pano... um saco enfiado pela cabeça, bom para sufocar...

- Oh, não! - exalou Emma num murmúrio horrorizado, e comprimiu intensamente o punho fechado contra os lábios trémulos. - Oh, pobre Warin! Ele não está... oh, morto, não...?!

Roger deu saída a um ronco de desprezo:

- Não ele! Vivo e são como um pêro, a não ser pela rigidez provocada pelas cordas. Como podia dormir tão profundamente que não ouvisse mexer na tranca nem sequer desse por a porta ser aberta, não faço ideia. Mas, se ouviu, teve o cuidado de não dar trabalho aos ladrões. Sabe que Warin não é nenhum herói. Diz que só acordou quando foi abanado para lhe meterem o saco pela cabeça, e não viu caras nem formas, embora pense que eram dois, porque houve sussurros. Mas o mais provável é que os tenha ouvido chegar mas decidisse fingir que não, com medo que lhe enfiassem um punhal nas costelas.

A cor de Emma reavivara-se para rosa. Inspirou profundamente com gratidão:

- Mas está são? Não sofreu nada? - Encontrou o olhar de compreensão de Aline e riu tremulamente de alívio: - Sei que ele não é valente. Ainda bem que não é! Nem muito esperto ou trabalhador, sequer, mas conheço-o desde pequena, costumava fazer-me brinquedos e apitos de salgueiro. Graças a Deus que não sofreu nada!

- Nem um arranhão! Quem me dera - disse Roger, com os olhos ardentes de zelo perante a infantil beleza matinal dela, ainda não adornada nem precisando de adornos -, quem me dera ter ficado lá eu próprio de guarda, não teriam feito o assalto incólumes, nem lhes seria entregue tudo de bandeja.

- Mas neste caso podias ter sido morto, Roger. Ainda bem que não estavas lá. De certeza que terias dado luta e sofrido por isso. Quê? contra dois e tu sem estares armado? Oh, não, não quero nenhum homem ferido para proteger os meus bens.

- Que se seguiu? - indagou Hugh concisamente, enfiando os pés nos sapatos e estendendo a mão para o gibão. - Deixou-o lá a tomar conta da banca? Está em condições disso?

- Como o senhor ou eu. Quando para lá voltar mando-o vir ter comigo para contar a sua própria história.

- Não é preciso, vou consigo para ver o local e os prejuízos. Acabe a história. Dificilmente se terão ido embora de mãos vazias. Que desapareceu com eles?

Roger dirigiu a Emma um olhar devotado, humilde e a pedir desculpa:

- Infeliz dia, senhora, o cofre do meu senhor desapareceu com eles!

O irmão Cadfael estava a observar o rosto de Emma tão atentamente como o seu desesperado admirador, e pareceu-lhe que, com o prazer de saber que o seu velho servidor sobrevivera aos maus tratos, ficara imune a todos os outros golpes. A perda do cofre recebeu ela com firme serenidade. Naquele ambiente, defendida de quaisquer manifestações demasiado ardorosas da paixão dele, foi até ao ponto de confortar Roger. Uma rapariga de coração bondoso, que não gostava de ver nenhum dos seus desanimado com a sua competência ou com o respeito próprio:

- Não deves sentir isso tão intensamente - disse ela com calor. - Como o poderias ter impedido? Não há nenhuma culpa que te seja atribuível.

- Ontem à noite levei a maior parte do dinheiro comigo para a barcaça - alegou Roger convicto. - Está seguro e trancado, lá não houve mais intrusos. Mas os livros de contas de mestre Thomas, e alguns pergaminhos de valor, e cartas-patente...

- Desses haverá cópias - disse Emma firmemente. - E, o que é mais, se levaram o cofre supondo que estivesse cheio de dinheiro, guardarão o que lá estiver e muito provavelmente vão abandonar o cofre e os pergaminhos, pois que uso poderão dar a eles? Talvez recuperemos a maior parte, verás.

Não apenas uma rapariga bondosa, mas também rapariga de juízo e fortaleza, que suportava nobremente as suas perdas. Cadfael olhou para Hugh, mas um sobrolho vivaz indicava uma admiração ligeiramente céptica.

- Nada está perdido - continuou Emma com a mesma firmeza -, pelo menos com tanto valor que se possa comparar com uma vida. Uma vez que Warin está são e salvo, não posso ficar triste.

- No entanto - pronunciou Hugh com deliberação -, pode ser conveniente que um sargento da abadia monte guarda à sua cabina até a feira acabar. Pois parece que todas as infelicidades que deviam com justiça ser partilhadas entre todos os clientes da abadia estão a cair exclusivamente sobre si. Posso pedir ao prior Robert que trate disso?

Ela olhou por um momento para baixo, prudente e pensativa, e depois voltou a erguer os olhos profundamente azuis, grandes e claros como o céu, e um pouco mais inocentes do que se tivessem acabado de abrir para o mundo:

- É muito amável da sua parte - agradeceu -, mas decerto já tudo nos foi feito. Não creio que seja necessário proporcionar-nos guarda agora.

Hugh foi ter com Cadfael ao seu laboratório-oficina, depois da refeição do meio-dia, deixando Emma a cargo de Aline, serviu-se de uma botija de vinho do depósito particular de Cadfael e instalou-se no banco por debaixo do alpendre, do lado da sombra. A fragrância das ervas pairava como uma carga soporífera no ar do espaço limitado pelos ramos entretecidos, e fê-lo bocejar contra sua vontade e disposição, que era de conversa séria. Ali encontravam-se bem longe do mundo exterior, com o sussurro atarefado do mercado a vogar até eles só à distância e agradavelmente, como a música de trabalho das abelhas do irmão Bernard. E o irmão Mark, retirando as ervas daninhas dos canteiros com as suas mãos delicadas e apixonadas, de hábito arregaçado até aos joelhos, não constituía qualquer incómodo para a sua solidão.

- Uma criatura diferente - comentou o irmão Cadfael, fitando-o com afeição desinteressada. - Meu sacerdote, meu substituto. Tinha de arranjar maneira de fugir ao destino que me cercava. Ali vai o cordeiro para o sacrifício, o melhor do rebanho.

- Um dia ele ouvirá a tua confissão - afirmou Hugh, observando Mark a arrancar ervas daninhas com tanta delicadeza que parecia ter pena delas - e serás um homem perdido, pois ele ficará com conhecimento de todas as tuas evasivas. - Sorveu um pouco de vinho, fê-lo deslizar pensativamente pela boca, engoliu-o e ficou um momento a saboreá-lo. - O tal Warin tinha pouco a acrescentar - informou então. - Que me dizes agora? Isto não pode ser acaso.

- Não - concordou Cadfael, escorando a porta do laboratório para a manter aberta e deixar entrar ar, e indo sentar-se ao lado do amigo -, não pode ser acaso. O homem é morto, despido, a sua barcaça objecto de busca, a sua cabina objecto de busca. Nenhuma outra pessoa além dele, nesta feira onde há várias igualmente ricas, sofreu qualquer ataque ou qualquer perda. Não, aqui nada foi feito por acaso.

- O quê, então? Explica-te. A moça afirmou terem sido roubadas coisas da barcaça. Agora algo de concreto, um cofre, a única coisa transportável que se encontrava na cabina e se poderia confiadamente supor que contivesse valores, é claramente roubada neste último assalto. Se não se trata de simples roubo, de que se trata então? Diz-me!

- De fases de uma pesquisa - disse Cadfael. - Acho que está em movimento uma caça a qualquer coisa. Não sei o quê, mas algo único, pequeno e precioso, que estava, ou se pensou que estivesse, na posse de Mestre Thomas. Na noite em que cá chegou, foi assassinado e o seu corpo despojado. A primeira busca. E infrutífera, pois no dia seguinte a sua barcaça foi visitada e revistada. A segunda busca.

- Não totalmente infrutífera dessa vez - comentou Beringar secamente -, pois sabemos pela pessoa mais digna de crédito, não é verdade?, que quem fez essa visita saiu mais rico em três coisas: uma corrente de prata, um cinto com fivela de ouro e um par de luvas bordadas a ouro.

- Hum! - Cadfael torceu o nariz castanho duvidosamente entre um dedo e o polegar, e olhou de lado para o jovem.

- Ora, vamos! - invectivou Hugh com indulgência, fazendo brilhar o seu súbito sorriso. - Posso não tropeçar nestas subtilezas tão rapidamente como tu, mas desde que te conheço tenho tido de manter o juízo bem apurado. A senhora tem um espírito audaz e excelente memória, e eu não tenho a mínima esperança de conseguir que ela cometa um erro em qualquer pormenor do bordado das luvas perdidas mas, apesar de tudo isso, duvido que alguma vez tivessem existido.

- Podes - sugeriu Cadfael, embora sem muita esperança - tentar perguntar-lhe abertamente o que ela está a esconder.

- Já o fiz! - confessou Hugh sorrindo sem alegria. - Abriu para mim os seus grandes olhos feridos e não me percebeu! Não sabe nada, não está a esconder nada, não tem nada para contar além do que já contou, e cada palavra dessas é verdadeira. Mas, apesar de tudo isso, e por mais angelicamente que seja, a moça está a mentir. Que é que te caiu no goto e te fez ter o mesmo choque antes de me ocorrer a mim?

- Teria um grande desgosto - afirmou Cadfael lentamente - se algo do que disse ou fiz te levou a pensar mal da jovem, pois eu não o penso.

- Eu também não, não temas. Mas julgo que pode estar a meter-se onde faria melhor não tocar, e gostaria, como tu e o abade Radulfus, que nenhum mal lhe acontecesse enquanto está sob os nossos cuidados. E depois também não. Gosto bastante dela.

- Quando fomos juntos à barcaça - contou Cadfael -, e ela não passou mais de um minuto no interior antes de exclamar que alguém lá estivera, a remexer em todas as suas coisas, nem por um momento duvidei de que estivesse a falar verdade. As mulheres sabem como deixam as coisas, basta uma dobra mal feita para trair mão estranha, e ela ficou mesmo chocada e surpreendida, não foi a fingir. Também não mentiu no momento seguinte, quando lhe perguntei se alguma coisa tinha sido levada e, sem se deter a pensar, ela respondeu: “Não!” Um não absoluto, diria mesmo triunfante. Não lhe liguei, na altura, antes insisti em que visse atentamente e se certificasse. Quando lhe disse que teria de participar o caso, voltou a pensar e deu-se ao trabalho de descobrir que de facto tinham sido roubadas umas coisas. Penso que lamentou ter começado por se manifestar mas, se a lei tivesse de ter conhecimento do assunto, assegurar-se-ia de que fosse aceite como furto trivial por um vulgar carteirista. A verdade foi o que ela revelou sem peias, com o seu “não” algo trocista. Depois esforçou-se por contrariar o efeito mantido e, para quem não é mentirosa por natureza, fê-lo bem. Mas, apesar de tudo isso, penso, como tu, que essas suas coisinhas bonitas nunca existiram, ou nunca estiveram a bordo da barcaça.

- Continua de pé a questão - concluiu Hugh, meditando - de saber por que estava ela logo tão certa de nada lhe ter sido levado.

- Porque - disse Cadfael simplesmente - sabia o que o ladrão devia ter ido procurar, e sabia que o não tinha encontrado, porque sabia que não estava lá para ser encontrado. A segunda busca também foi em vão. O que quer que fosse não estava na pessoa de mestre Thomas, que era claramente o sítio mais provável, nem estava na sua barcaça.

- Daí esta terceira busca! Então agora adivinha para mim, Cadfael, se esta terceira tentativa foi bem sucedida ou não. O cofre do mercador desapareceu... de novo um sítio lógico para guardar algo tão precioso. Será o fim da série?

Cadfael abanou enfaticamente a cabeça:

- Esta tentativa não teve melhor resultado que as outras - disse com toda a certeza. - Podes ficar ciente.

- Como podes estar tão seguro disso? - interrogou Hugh com curiosidade.

- Viste tudo o que eu vi. Ela não ligou um chavo à perda do cofre! Assim que soube que o homem, Warin, não estava ferido, recebeu tudo o resto com bastante calma. O quer que o desconhecido procure, ela sabia que não estava na barcaça, e sabia que não estava na cabina. E só consigo pensar numa razão para ela saber tão bem onde não está, e consiste em saber igualmente bem onde está.

- Então a próxima possibilidade que o inimigo considerará -

afirmou Hugh com convicção - é onde ela estiver... na sua pessoa ou em algum esconderijo de que só ela tem conhecimento. Bem, manteremos um olhar vigilante sobre Emma, entre nós dois. Não - continuou Hugh reflexivamente - não consigo imaginar mal nela, mas também não consigo imaginar como pode estar envolvida em algo tão mau que já provocou morte, violência e roubo, nem por que razão, se sabe que está em perigo e necessitada de ajuda, não o declara e solicita-a. Aline já tentou tudo o que pôde para lhe atrair as confidências, e a jovem permanece toda doçura e gratidão, mas não se descai com uma palavra sobre qualquer fardo que possa transportar consigo. E conhece Aline, ela extrai confidências sem sequer fazer perguntas exploratórias, e quem lhe conseguir resistir está para além do nosso alcance...

- Agrada-me ver em ti um marido tão admirador - comentou Cadfael, aprovadoramente.

- E deve agradar-te, já que começaste por ser tu a atirar-me a donzela para os braços. O melhor que tens a fazer agora é preocupares-te com o tipo de pai que irei ser! E podes fazer uma oração por mim, quanto a isso, de alguma das vezes em que estejas de joelhos. Não, a sério, Cadfael... estou preocupado com a pequena. Aline gosta dela, o que é boa recomendação. E ela parece gostar de Aline... não, mais do que gostar! Porém, nunca baixa os véus. Quando parece mais amiga da minha muito amigável senhora, está também com mais cuidado em não deixar escapar uma palavra desprevenida acerca da sua própria situação.

O irmão Cadfael não viu aí nenhum paradoxo:

- E assim deve ser, Hugh - disse gravemente. - Se se sente em perigo, a última coisa que fará será arrastar consigo alguém que admire e de quem goste. Por todos os meios ao seu alcance, e penso que é uma rapariga inteligente e cheia de recursos, manterá os amigos afastados de qualquer participação no que quer que esteja envolvida.

Beringar meditava longa e sombriamente, apertando a cabeça vazia.

- Bom, tudo o que podemos fazer é cercá-la com tão completa vigilância que fique livre de qualquer ameaça que possa ser feita contra ela.

Não lhe ocorrera, só agora se estava a insinuar nos pensamentos de Cadfael, que o próximo passo decisivo poderia provir da própria Emma, mais do que ser dado contra ela. Uma peça deste mistério, aparentemente a peça vital, detinha-a ela nas mãos; se algum uso lhe fosse dado, poderia muito bem ser por decisão dela.

Hugh pôs de lado a botija e levantou-se, sacudindo da cota o pó estival:

- Entretanto o alcaide foi deixado com um homicídio entre mãos e digo-te, Cadfael, essa questão parece agora menos que nunca a vingança ébria de um jovem ofendido do burgo... embora, para dizer a verdade, essa versão nunca tenha parecido muito convincente, apesar de não a podermos descartar imediatamente.

- Decerto agora já há bons fundamentos para deixar o preboste afiançar o seu rapaz e levá-lo para casa?! - disse Cadfael, encorajado. - De todos os jovens desta terra, Philip deve ser o mais isento de qualquer suspeita em relação a este último crime, tal como também em relação à razia na barcaça. O carcereiro que o mantém fechado à chave pode testemunhar onde ele tem estado todo este tempo, e jurar que nunca de lá saiu.

- Vou agora ao castelo - informou Hugh. - Não posso responder pelo alcaide, mas não vou deixar de lhe falar no assunto, e ao preboste também. Vale bem a pena tentar.

Baixou os olhos, abanou repentinamente a sua preocupação e, com um súbito sorriso travesso, passou os dedos de uma das mãos pelo tufo emaranhado de cabelos grisalhos que rodeavam a tonsura bronzeada de Cadfael, deixando-o espetado como um espinheiro, bateu com um dedo na abóboda acastanhada do meio e partiu com o seu habitual passo ligeiro e aspecto despreocupado, que os ingénuos tomavam erradamente por traço de homem frívolo. O mais provável era ele só se permitir a essas gracinhas estritamente com amigos, quando estava ocupado em coisa mais séria que a habitual.

Cadfael ficou a vê-lo afastar-se, a acamar distraidamente a crista guerreira que Hugh erguera. Pareceu-lhe ser melhor pôr-se também em movimento e transmitir os encargos dali ao irmão Mark, até ao fim do dia. Não convinha deixar Emma sem ser vigiada o mínimo espaço de tempo, e Aline, para comprazer o solícito marido, consentira em fazer uma sesta de uma ou duas horas, para bem da criança. Netos por procuração, reflectiu Cadfael, podiam ser uma recompensa rara e agradável por uma juventude celibatária. Quanto à velhice, ainda não começara a pensar nela; sem dúvida teria as suas compensações.

 

 

                                                           Capítulo 2

 

- A pesar de tudo o que disse - cismava Emma em voz alta, dando belos pontos num debrum de linho para touca de bebé, à luz do Sol alto que entrava pela janela do quarto de Aline -, tenho pena de ter ficado sem aquelas luvas. Uma pelica tão boa... maleável e negra, e uma riqueza de ouro no bordado... Nunca tinha comprado nenhumas tão caras. - Chegou ao fim da costura e cortou cuidadosamente o fio com uma tesoura. - Dizem que há um luveiro muito bom com banca na feira - comentou, alisando o trabalho. - Pensei ir ver a sua mercadoria, pode ser que tenha algumas tão boas como as que perdi. Contaram-me que é muito conhecido em Chester e que a condessa é cliente dele. Talvez vá passear pela frontaria esta tarde, para ver o que ele tem. Com todos estes problemas, quase que ainda nem vi nada da feira.

- Boa ideia - concordou Aline. - Com um dia tão bom, não devemos passá-lo aqui fechadas em casa. Vou contigo.

- Oh, não, não deve - protestou Emma, solícita. - Nem fez a sua sesta. Não precisa de me fazer companhia numa distância tão curta. Incomodar-me-ia se se cansasse por minha causa.

- Oh, que disparate! - exclamou Aline, alegremente. - Sou tão saudável que rebento se não tiver nada que fazer. Constance e Hugh é que querem transformar-me numa inválida, só porque estou no melhor e mais feliz estado de uma mulher. Ora Hugh foi ter com o alcaide, e Constance foi visitar uma prima dela que vive em Wyle, portanto quem se vai ralar? Enfio os sapatos e vamos. Gostaria de comprar uma caixa desses frutos açucarados que o teu tio trouxe do Leste. Faremos também isso.

Parecia que Emma tinha, afinal, perdido o gosto pela expedição. Continuou sentada, afagando o debrum bordado que acabara, e fitou o linho já cortado para o centro:

- Não sei... Talvez devesse acabar isto. Depois de amanhã pode já não haver oportunidade, e não gostaria de o deixar para outra pessoa acabar. Quanto aos frutos cristalizados, pedirei a Roger que lhe traga uma caixa, quando ele cá voltar logo ao serão a dizer como correu o dia. Amanhã já cá estarão.

- É muito simpático da tua parte - agradeceu Aline, não deixando todavia de calçar os sapatos -, mas ele não pode experimentar um par de luvas por ti, nem escolher com os teus olhos. Portanto, vamos lá nós próprias ver. Não demora muito.

Emma continuava sentada, hesitante, mas, se numa tentativa verdadeira de se decidir ou à procura de uma forma de se livrar duma situação difícil, era o que Aline não sabia ao certo.

- Oh, não, não devo! Como posso entregar-me a tais vaidades numa altura destas?! Estou envergonhada por ter chegado a pensar nisso. O meu tio morto, e eu aqui ansiosa por bagatelas para me enfeitar. Não, não serei tão superficial. Deixe-me ao menos continuar com o meu trabalho para a criança, em vez de pensar só nos meus próprios adornos. - E pegou no linho cortado. Aline notou que a mão que o segurava tremia um pouco, e ficou a pensar se devia insistir. Era evidente que a jovem queria ir por diante com um objectivo próprio, mas não o faria se não pudesse ser sozinha.

“E sozinha”, disse Aline firmemente para consigo, “é que não sairá, se eu o puder impedir."

- Bem - disse em tom dúbio -, se está tão decidida a fazer penitência, não serei eu que represente o papel de demónio tentador. E fico a ganhar: os teus pontos são tão perfeitos que nunca os conseguiria igualar. Quem te ensinou tão bem? - Descalçou os sapatos de fina pelica e sentou-se outra vez. Pelo menos ficara a saber qualquer coisa, e agora era melhor não insistir. Emma recebeu com entusiasmo a mudança de assunto. Da sua infância falava livremente.

- A minha mãe não era uma bordadora famosa. Começou a ensinar-me mal consegui pegar numa agulha, mas morreu quando eu tinha oito anos, e o tio Thomas levou-me para casa dele. Tínhamos uma governanta, uma senhora flamenga que casara com um marinheiro de Bristol e enviuvara quando o barco dele se perdera; foi quem me ensinou tudo o que sabia, embora eu nunca conseguisse igualar os seus trabalhos. Ela costumava fazer toalhas de altar e paramentos eclesiásticos, coisas lindas...

“Portanto um simples par de boas luvas pretas”, pensou Aline, “seria suficientemente bom para ti em qualquer altura, uma vez que o poderias enfeitar a teu gosto. E quem consegue fazer essas coisas com arte, raramente prefere o trabalho de outros."

Não era difícil manter Emma a falar mas, apesar disso, Aline não podia deixar de se interrogar sobre o que iria no espírito da moça e sobre quando, e com que esperteza, faria a próxima tentativa de se evadir sozinha para tratar do seu misterioso assunto. Mas acabou por verificar que não teria valido a pena preocupar-se, pois ao fim da tarde veio um irmão leigo da portaria anunciar que Martin Bellecote trouxera o caixão de mestre Thomas e desejava autorização para prosseguir com o seu trabalho. Emma ergueu-se instantaneamente, pousando a costura, com o rosto pálido e concentrado. A haver algo de seguro, seria que nenhum outro assunto, por mais urgente, a afastaria da igreja até o tio jazer decentemente no seu caixão, selado para a viagem de regresso, e até terem sido ditas orações pelo repouso da sua alma, assim como mais tarde não deixaria de participar na primeira missa por sua intenção. O quer que tivesse sido para outros, fora tio, pai e amigo para esta parente órfã, e nenhuma reverência, nenhum tributo seriam omitidos das suas exéquias.

- Vou eu própria - disse Emma. - Tenho de me despedir dele. - Ainda não o vira, depois de morto, mas os irmãos, há muito experientes nas suaves artes que reconciliam a morte com a vida, teriam feito tudo para que ela o pudesse recordar sem aflição.

- Queres que vá contigo? - ofereceu-se Aline.

- É muito simpático da tua parte, mas prefiro ir sozinha. Aline seguiu-a até ao pátio e ficou a ver a pequena procissão atravessar para o claustro, com Emma a caminhar ao lado do carrinho de mão em que Martin e o filho transportavam o caixão. Quando ergueram esse peso e o transportaram aos ombros pela porta sul da igreja, com Emma atrás, Aline ficou uns minutos a olhar em torno. Àquela hora a maior parte dos hóspedes e muitos dos irmãos leigos estavam fora, na feira, só os irmãos prosseguiam as suas tarefas como habitualmente. Pelo largo portão da distante cavalariça via o jovem lacaio de Ivo Corbière a esfregar um pónei, e o arqueiro Turstan Fowler sentado num cepo, a assobiar enquanto dava lustro a uma sela. Sóbrio e recuperado da sua orgia, era um tipo bem constituído e de aspecto agradável, a expressão aberta de quem não tem uma única preocupação neste mundo. Era evidente ter sido há muito perdoado e regressado aos favores do seu amo.

O irmão Cadfael, vindo dos jardins, viu-a ainda de olhar pensativamente posto na igreja. Ela sorriu ao avistá-lo:

- Martin trouxe o caixão. Estão lá dentro, ela não vai pensar em mais nada, por agora. Mas, Cadfael, ela tenciona escapulir-se de todos nós assim que puder. Já tentou. Queria ver, disse, se o luveiro que está na feira tem luvas que substitua as que perdeu. Mas, quando eu disse que ia com ela, não, isso já não servia, desistiu da ideia.

- Luvas! - murmurou o irmão Cadfael, esfregando pensativamente o queixo! - Estranho, pensando bem, que sejam luvas que ela tem em mente, em pleno Verão.

Aline não estava em condições de seguir aquela linha de pensamento, pelo que tomou apenas o seu significado superficial:

- Porquê estranho? Sabemos que lhe roubaram umas, e estamos aqui numa das poucas feiras onde se podem comprar mercadorias raras, pelo que a sequência é perfeitamente natural. Mas claro que o luveiro é só uma desculpa à mão.

Cadfael nada mais disse por então, mas afastou-se muito pensativo na direcção do claustro. O estranho não era que a jovem quisesse substituir, enquanto a oportunidade se lhe deparava, umas luvas perdidas, mas sim que, quando subitamente confrontada com a necessidade de fazer passar por simples roubo um assalto que sabia ser algo muito diferente, um dos artigos que afirmara ter perdido fosse tão inapropriado para a estação que se sentira obrigada a justificar-se aduzindo que o comprara recentemente em Gloucester, durante a viagem. Porquê luvas? A menos que já as tivesse em mente por outra razão. Luvas? Ou luveiros?

Na capela do transepto, Martin Bellecote e o filho colocaram o pesado caixão sobre uma mesa, e reverentemente depositaram nele o corpo de mestre Thomas of Bristol. Emma ficou durante longo tempo de olhos baixos para o rosto sem vida do tio, sem chorar ou dizer fosse o que fosse. Não seria doloroso, notou ela, recordá-lo assim, digno e remoto na morte, com os ossos das faces, testa e maxilar mais fortemente delineados que em vida, a carne antes rosada agora contraída e pálida, numa austeridade de cera. Agora, no último momento, queria dar-lhe algo que ele levasse consigo para a sepultura, e apercebeu-se de que, perante os golpes sucessivos dos últimos dois dias, não conseguira pensar com clareza suficiente para estar pronta para a despedida. Não o facto da morte, mas a absoluta necessidade de alguma ternura cerimonial, isolada dos ritos públicos, pareceu-lhe repentinamente de uma importância aflitiva.

- Cubro-o? - indagou Martin Bellecote suavemente.

Até um som tão suave a fez estremecer. Olhou em redor quase alheada. O homem grande, simpático e calmo aguardava as ordens dela sem impaciência. O rapaz sério e silencioso observava-a com enormes olhos cor de avelã. Com os seus quatro anos de superioridade em relação a ele, Emma considerou se uma criatura tão jovem devia estar a fazer aquele trabalho, até compreender que os seus olhos estavam mais preocupados com a pessoa dela, viva, que com o morto, e que a seiva vigorosa que nele fluía se dirigia para a luz e para a vida, como para o Sol, e só reconhecia a sombra em virtude da claridade vizinha. Isso estava certo e era bom.

- Não, espere só um momento - pediu. - Volto já!

Saiu rapidamente para a luz do Sol e procurou em volta o caminho que levava aos jardins. As linhas verdes de uma sebe e as coroas de árvores lá dentro atraíram-na, até que chegou a uma alameda onde tinham sido plantadas flores. Os irmãos eram bons horticultores, que tinham boas razões para atribuir grande valor aos produtos alimentícios, mas também tinham tempo para rosas. Escolheu o arbusto que florescia como nenhum outro, com pétalas amarelo-pálido a desvanecer-se em cor-de-rosa nas pontas, e colheu uma única flor. Não em botão, nem sequer o único globo perfeito, mas uma flor bem aberta, que tinha acabado de ultrapassar a plenitude mas ainda estava perfeita. Levou-a consigo, apressadamente, para a igreja. Ele não era novo, nem sequer estava no auge, mas já no Outono da vida; era a rosa que lhe convinha.

O irmão Cadfael vira-a ir, viu-a voltar e seguiu-a até à capela, mas manteve-se à distância, nas sombras. Ela levou a sua flor única e colocou-a no caixão, junto do coração do morto.

- Cubra-o agora - disse, e recuou o suficiente para os deixar trabalhar em paz. Quando acabaram, agradeceu-lhes, e eles afastaram-se, deixando-a ali, como era claramente o seu desejo. O mesmo, e com igual silêncio, fez o irmão Cadfael.

Emma permaneceu de joelhos nas pedras do transepto, inconsciente do desconforto, durante muito tempo, sempre com os olhos bem abertos para o caixão fechado, sobre a mesa, frente ao altar. Jazer assim na igreja de uma grande abadia, ter uma missa especial cantada para si e depois ser levado para a terra num caixão soberbo para aí ser sepultado ainda com mais ritos, decerto era glorioso, e ele teria gostado. Tudo devia ser feito de acordo com os seus gostos. Tudo! Assim, ficaria satisfeito com ela.

Emma sabia quais eram os seus deveres: rezou orações por ele, muitas orações, porque felizmente a forma estava estabelecida e o seu espírito podia vaguear enquanto os lábios pronunciavam as palavras adequadas. Faria o que ele queria que fosse feito, o que quase lhe confidenciara, e a mais ninguém. Terminaria a tarefa dele, que assim poderia descansar satisfeito. E depois... mal olhara para além, mas havia uma grande brisa perfumada a percorrer-lhe o espírito, a dizer-lhe que era nova e bonita, e rica, para além de tudo o mais, e que os rapazes como o filho do carpinteiro a olhavam com interesse e agrado. Outros jovens, também, de menos verdes anos...

Ergueu-se por fim, alisou as saias amarrotadas e caminhou vivamente para fora da capela, para a nave da igreja, e aí, ao rodear o cacho de pilares de pedra na esquina do cruzeiro, ficou frente a frente com Ivo Corbière.

Ele estivera à espera, em silêncio e imóvel, naquela esquina sombria, evitando mesmo pôr os pés na capela até a vigília de Emma ter terminado, e a presteza com que ela lhe pusera subitamente fim quase a lançara nos seus braços. Emma soltou um gritinho de espanto, e ele estendeu as mãos firmes para a segurar, não tendo depois pressa de a soltar. Naquele sítio sombrio, a sua cabeça de ouro apresentava-se escurecida até ao tom do bronze, e o rosto, inclinado solicitamente para ela, estava tão dourado pelo Verão que quase tinha o brilho do mesmo metal precioso:

- Asssustei-a? Peço desculpa! Não queria perturbá-la. Disseram-me na portaria que o carpinteiro tinha vindo e já se tinha ido embora, e que Emma continuava aqui. Pensei que, se esperasse com paciência, poderia falar consigo. Se não insisti com as minhas atenções até agora - disse seriamente - não foi por não pensar em si Constantemente!

Ela tinha os olhos levantados para o rosto dele com uma admiração encantada, que nunca se teria permitido em plena luz, e esqueceu-se completamente de fazer qualquer movimento que o afastasse. As mãos dele deslizaram-lhe pelo antebraço, mas detiveram-se nas mãos, e o toque, por mútuo consentimento, estreitou-se.

- Quase dois dias desde que falei consigo pela última vez! - exclamou ele. - É uma eternidade, e eu fi-lo contrariado, mas estava com bons amigos, e eu não tinha o direito... Mas agora que a tenho, deixe-me mantê-la uma hora na minha companhia! Venha passear nos jardins. Duvido que já os tenha visto.

Saíram juntos para a luz do Sol, atravessaram o claustro e chegaram ao bulício e movimento do pátio central. Eram quase horas de Vésperas, tendo já passado a calmaria da tarde, e os irmãos reuniam-se gradualmente dos seus trabalhos dispersos, enquanto os hóspedes regressavam do terreno da feira e da beira-rio. Era gratificante atravessar aquele local populoso pelo braço de um nobre, senhor de modestas honras espalhadas por Cheshire e Shropshire. Para a filha de artífices e mercadores, muito gratificante! Sentaram-se num banco de pedra do jardim, no lado da sebe de ramos entretecidos em que batia o sol, com a pesada fragrância dos jardins do irmão Cadfael a vogar até eles em embriagadores remoinhos levados pela brisa suave.

- Vai ter de tomar disposições penosas - disse Corbière seriamente. - Se houver alguma coisa que eu possa tratar por si, diga-me. Terei todo o prazer em a ajudar. Vai levá-lo de regresso a Bristol para lá ser sepultado?

- É o que ele teria desejado. Será rezada missa por ele de manhã e depois levá-lo-emos até à barcaça, para a viagem de regresso. Os irmãos têm sido para mim a delicadeza personificada.

- E a Emma? Também vai regressar com a barcaça?

Ela hesitou, mas por que não haveria de confiar nele? Era atencioso, delicado e de rápida compreensão:

- Não, seria... imprudente. Enquanto o meu tio era vivo, estava tudo muito bem, mas sem ele não pode ser. Um dos nossos homens... Não posso dizer mal dele, pois não fez mal nenhum, mas... Gosta demasiado de mim. É melhor não viajarmos juntos. Mas também não o quero insultar, dando-lhe a saber que não confio inteiramente nele. Disse-lhe que tenho de cá ficar uns dias, que posso ser precisa se o alcaide tiver mais perguntas para fazer ou se se descobrir mais qualquer coisa acerca da morte do meu tio.

- Mas então - disse Ivo, ardorosamente preocupado - e a sua própria viagem de regresso? Como vai fazê-la?

- Ficarei com Lady Beringar até encontrarmos um grupo que ofereça segurança e vá para sul, e de que façam parte senhoras. Hugh Beringar aconselhar-me-á. Tenho dinheiro para poder pagar as minhas despesas. Cá me hei-de arranjar.

Ele fitou-a longa e seriamente, até que a sua gravidade se desfez num sorriso:

- Entre tantas pessoas a querer-lhe bem, com certeza chegará a casa sem acidentes. Eu próprio pensarei no assunto, para além de todos os outros. Mas agora esqueçamos, para meu benefício, que tem de haver uma partida, e aproveitemos ao máximo as horas, enquanto ainda cá está. - Levantou-se e pegou-lhe na mão para a erguer também. - Esqueça as Vésperas, esqueça que somos hóspedes de uma abadia, esqueça a feira e os negócios dela e tudo o que essas coisas poderão exigir de si no futuro. Pense só que é Verão, está um glorioso fim de tarde, é jovem, tem amigos... Venha comigo até para além dos pesqueiros, até à ribeira. São tudo terrenos da abadia, eu não a levaria para lá deles.

Ela acompanhou-o com gratidão, sentindo na sua a mão fresca e cheia de vida dele. Junto à ribeira, por debaixo dos campos da abadia, estava calmo, fresco e luminoso, com a luz a cintilar na água e pássaros a debicar e cantar, e no prazer do momento ela quase esqueceu tudo o que pesava sobre si, tão sagrado e tão deprimente. Ivo foi respeitoso e gentil e não insistiu demasiado com ela, antes, quando Emma lamentou serem horas de regressar, com medo de que Aline estivesse preocupada, acompanhou-a todo o caminho, sempre com a mão firmemente retida na sua, e apresentou-se escrupulosamente perante Aline, para que a actual tutora de Emma o estudasse, aceitasse e aprovasse. O que de facto aconteceu.

Tudo se passou encantadora e delicadamente. Tornou-se excelente companhia durante o tempo que convinha a uma primeira visita, solicitou e correspondeu a todas as graciosas perguntas de Aline e retirou-se muito antes de poder ser considerado a mais.

- Então esse é o jovem que foi tão útil e cavalheiresco quando começou o tumulto - comentou Aline, depois de ele se ter ido embora. - Sabes, Emma, creio que tens ali um sério admirador. - Um cortejador ganho, pensou ela, podia ser uma feliz contrapartida para esquecer a perda de uma tutora. - É de muito boas famílias - disse Aline Siward que por direito próprio levara dois senhorios ao marido pelo casamento, mas não via diferença entre a sua convidada e ela própria, ignorando inocentemente as normas por igual orgulhosas e honrosas dos que tinham nascido nas artes e no comércio em vez da terra. - Os Corbière são parentes distantes do próprio conde Ranulf de Chester. E parece um jovem extremamente digno de estima.

- Mas não da minha classe - retorquiu Emma, tão perspicaz e prudente como parecia desgostosa. - Sou filha de um pedreiro e sobrinha de um mercador. Não é provável que um senhor da terra corteje uma pessoa como eu.

- Mas não é uma pessoa como tu que está em causa - redarguiu Aline com toda a razão. - És tu!

O irmão Cadfael olhou em sua volta, ao fim do serão, depois do ofício de Completas, viu tudo em equilíbrio seguro, com Emma bem instalada na hospedaria e Beringar já regressado. Foi gratamente para a cama ao mesmo tempo que os outros irmãos, por uma vez como devia ser, e dormiu contente até o sino tocar para o acordar para Matinas. Os irmãos seguiram em fila, descendo as escadas da noite e entrando na igreja, no silêncio da meia-noite, para começarem os ofícios do novo dia. À fraca luz das velas do altar, tomaram os seus lugares... e começara o terceiro dia da Feira de S. Pedro. O terceiro e último.

Cadfael levantava-se sempre para Matinas e Laudes sem sono nem contrariado, antes um pouco mais acordado que em qualquer outra altura, como se os seus sentidos fossem estimulados por um sentimento de separação da comunidade ali reunida até um grau impossível à luz do dia. A fraqueza da luz, a solidez das sombras que a rodeavam, as vozes abafadas, a ausência de fiéis leigos, tudo contribuía para aquela sensação de estar abrigado num porto fechado, onde todos os que o acompanhavam eram da sua própria carne, sangue e espírito, responsáveis por ele como ele por todos os outros, até por aqueles em relação aos quais, durante o dia activo e árduo, não conseguia sentir amor, e a primeira adoração da noite era o combustível para a energia do dia seguinte.

Portanto as sombras tinham para ele limites nítidos, as formas dos pilares, capitéis e arcos ressoavam como vibrantes notas de música, tanto a vista como o ouvido observavam com sensibilidade aumentada, os pormenores tinham uma insistência palpitante. O perfil do irmão Mark contra a luz das velas era penetrantemente nítido. Uma nota desafinada, por algum irmão idoso e ensonado, picava como uma abelha. E a simples mancha pálida sob a mesa que suportava o caixão de mestre Thomas era como um buraco na realidade, algo que não podia lá estar. No entanto, lá permanecia. Foi ao princípio de Laudes que lhe chamou a atenção, e depois disso não mais se pôde libertar. Para onde quer que olhasse, por mais que prendesse a vista no altar, continuava a vislumbrá-la pelo canto do olho.

No fim de Laudes, quando a procissão silenciosa começou a desfilar de novo para as escadas da noite e para o dormitório, Cadfael afastou-se para o lado, baixou-se e pegou no pontinho que o estivera a perturbar. Era uma única pétala de uma rosa, de cor indistinta àquela luz, mas pálida e mais intensa na ponta. Soube imediatamente o que era e, com aquela clareza da meia-noite em si, soube como lá fora parar.

De facto, felizmente vira Emma levar a sua rosa escolhida e depositá-la no caixão. Se assim não fora, aquela pétala não lhe teria dito nada. Como vira, disse-lhe tudo. Com cuidado e cerimonial hieráticos, à maneira dos jovens quando comovidos, ela trouxera a sua oferenda em cálice formado por ambas as mãos, e nem uma folha, nem um grão de pólen amarelo, do seu centro aberto, caíra no chão.

Fosse quem fosse, na busca tão tenaz de algo que supunha na posse de mestre Thomas, depois de procurar na sua pessoa, na sua barcaça e na sua cabina, não se detivera perante o sacrilégio de procurar no seu caixão. Entre Completas e Matinas, ele fora aberto e fechado outra vez; e uma única pétala da rosa fanada que se encontrava no interior se soltara e caíra sem que se desse por isso, como testemunho da blasfémia.

 

 

                           O terceiro dia da feira

 

 

                                                           Capítulo 1

 

Emma levantou-se ao nascer do Sol, esgueirou-se para fora da grande cama que partilhava com Constance, vestiu-se silenciosa e cuidadosamente, mas, mesmo assim, a sensação do movimento, mais que qualquer som, perturbou o sono da criada e fê-la abrir os olhos, imediatamente alerta e inteligente.

Emma levou um dedo aos lábios deitando um olhar significativo para a porta por detrás da qual Hugh e Aline dormiam ainda:

- Chiu! - murmurou. - Só vou à igreja para o ofício de Primax. Não quero acordar ninguém.

Constance encolheu os ombros na almofada, ergueu um pouco as sobrancelhas e acenou a sua concordância. Hoje haveria a missa pelo tio morto, e depois a transferência do seu caixão para a barcaça que o levaria de regresso à sua terra. Não era de admirar que a jovem estivesse disposta a transformar aquele dia num exercício penitencial, pelo repouso da alma do tio e mérito da sua própria.

- Não vai sair sozinha, pois não?

- Vou directamente para a igreja - prometeu Emma muito séria.

Constance voltou a acenar, e as suas pálpebras começaram a fechar-se. Adormeceu antes de Emma fechar a porta muito delicadamente e se esgueirar em direcção ao pátio.

O irmão Cadfael levantou-se para Primax como os restantes, mas deixou a sua cela antes dos companheiros e foi aconselhar-se com a única autoridade a quem podia confiar a sua última descoberta. Uma tal violação recaía sob a alçada do abade, e só ele tinha o direito de ser informado em primeiro lugar.

Com a porta da austera cela do abade fechada sobre eles, ficaram claramente à vontade um com o outro, dois homens que se entendiam e diziam sem rebuço o que tivessem a dizer. A pétala da rosa, um pouco murcha e gasta, mas com os seus tons amarelo e cor-de-rosa ainda sedosamente brilhantes, repousava na palma da mão do abade como uma lágrima dourada:

- Tem a certeza de que isto não pode ter caído quando a nossa pupila transportou a sua oferenda? Foi uma dádiva gentil - comentou Radulfus.

- Nem um grão de poeira caiu. Ela transportou-a como um cálice de vinho, com ambas as mãos. Vi todos os seus movimentos. Ainda não vi o caixão à luz do dia, mas não duvido de que tenha sido tratado com tanta competência que tenha exactamente o mesmo aspecto de quando o mestre carpinteiro o fechou. Não obstante, foi aberto e fechado de novo.

- Acredito no que me diz - disse o abade simplesmente. - Isto é uma infâmia.

- Assim é - concordou Cadfael, e ficou à espera.

- E não sabe o nome do responsável por uma coisa destas?

- Ainda não.

- Nem dizer se conseguiu os seus intentos? O que Deus não permita!

- Não, Reverendo Padre! Mas Deus não o permitirá.

- Dedique todas as suas forças a este caso - disse Radulfus, e meditou por algum tempo em silêncio. - Depois afirmou: - Temos um dever para com a lei. Faça o que for melhor nesse capítulo, pois consta-me que tem boas relações com o ajudante do alcaide. Quanto à afronta à Igreja, à nossa casa, ao nosso morto e à sua herdeira, compete-me ler nas entrelinhas. Haverá missa esta manhã pelo morto. O rito sagrado limpará toda a vileza do seu falecimento e do seu caixão. Quanto à jovem, deixai-a permanecer em paz, o que é legítimo, pois o seu ente querido está na mão de Deus, nenhuma violência foi praticada sobre a sua alma.

O irmão Cadfael respondeu com sentida gratidão:

- Ela descansará melhor se nada souber. É boa rapariga, o seu desgosto deve dispor de todas as consolações.

- Trate disso, irmão, conforme puder. São quase horas de Primax.

Cadfael dirigia-se rápido da cela do abade para o claustro quando viu Emma entrar nele à sua frente, e abrandou o andamento para ele próprio passar despercebido, enquanto observava o que ela iria fazer. Naquele dia entre todos, Emma tinha direito a todas as oportunidades de oração e meditação, mas também tinha uma preocupação secular própria e muito privada, pelo que era impossível prever qual das duas necessidades pretendia satisfazer com aquele zelo madrugador.

Pela porta sul entrou Emma, e atrás de si, com a mesma discreção, entrou o irmão Cadfael. Os monges já se encontravam nos seus cadeirais, e todos concentrados no altar. A jovem rodeou silenciosamente a nave, como se procurasse aí um lugar retirado, onde pudesse estar isolada; mas, em vez de virar para a direita, continuou o seu passo rápido e silencioso em direcção à porta ocidental, a porta paroquial, que dava para a frontaria, fora das muralhas do convento. Excepto em épocas de violência, como o cerco de Shrewsbury no ano anterior, nunca era fechada.

Entrando por uma porta e saindo por outra, estava livre, por algum tempo, para ir onde quisesse, e podia voltar pelo mesmo caminho, uma inocente de regresso à igreja.

As sandálias do irmão Cadfael seguiram-na silenciosamente pelo pavimento de tijolo, mantendo-se bem para trás, para o caso de ela olhar nessa direcção, embora ali dentro ele tivesse quase a certeza de que o não faria. A grande porta paroquial nem aldraba tinha, pelo que ela só precisou de deslocá-la um pouco, passando facilmente a sua magreza e, como estivesse voltada para oeste, não entrou qualquer luz que a traísse. Cadfael deu-lhe um momento para virar à direita ou à esquerda ao sair da porta, embora estivesse certo de que seria à direita, em direcção ao terreno da feira. Que havia ela de ter de fazer para os lados do rio e do burgo?

Ela estava bem à vista quando ele se esgueirou por uma abertura da porta, rodeou a esquina do pórtico ocidental e olhou para a frontaria. Agora não se apressava, antes seguia o ritmo dos primeiros compradores, que passeavam pela estrada, detendo-se em bancas já com movimento, tocando nas mercadorias, discutindo preços. O último dia da feira era habitualmente o de mais intensa actividade. Havia pechinchas a aproveitar próximo do fecho, e preços reduzidos. Havia movimento por todo o lado, mesmo a esta hora, mas o ritmo dos compradores que seguiam a pé não era apressado. Emma adaptou o seu, como se pertencesse ao mesmo grupo, mas, apesar disso, dirigia-se a determinado sítio, com um objectivo. Cadfael seguiu-a a respeitosa distância.

Só uma vez ela falou com alguém, e nessa altura escolheu o dono de uma das bancas maiores, parecendo que pediu indicações, pois o homem voltou-se e apontou para mais longe, na mesma rua e do lado do muro da abadia. Ela agradeceu e seguiu na direcção indicada, agora a passo acelerado. Poucas dúvidas poderiam restar de que sempre soubera com quem pretendia ir ter; parecia era não ter sabido exactamente onde encontrar essa pessoa. Agora sabia-o. Por esta altura todos os principais mercadores aqui reunidos sabiam onde se encontrar uns aos outros.

Emma detivera-se, quase ao fundo da frontaria, onde meia dúzia de cabinas se encostavam à muralha da abadia. Parecia ter chegado ao seu destino, mas estava agora hesitante, de olhos fitos e um pouco desamparados, como se o que enfrentava a surpreendesse e intrigasse. Cadfael aproximou-se. Ela franzia-se, na dúvida, perante a última das cabinas, num canto entre contraforte e muro. Cadfael reconheceu-a: um rosto magro e desconfiado espreitara de lá por uma abertura , enquanto os homens do alcaide tinham içado Turstan Fowler para uma tábua, transportando-o para uma cela da abadia, na véspera da feira. A cabina de Euan of Shotwick: lá surgiam elas novamente, as luvas imaginárias, tão sentidamente descritas, tão rapidamente roubadas!

E Emma não sabia que fazer, pois a cabina encontrava-se bem trancada, com todos os painéis encerrados, enquanto o comércio era activo a toda a sua volta. Ela virou-se para o vizinho mais próximo, claramente a interrogá-lo, e o homem olhou, encolheu os ombros e abanou a cabeça. Que sabia ele? Não havia ali sinais de vida desde a noite anterior, talvez o luveiro tivesse esgotado a sua mercadoria e partido.

Cadfael aproximou-se ainda mais. Sob a austera touca branca, em tão profundo contraste com a moldura do cabelo negro-azulado, o jovem perfil de Emma parecia ainda mais terno e vulnerável. Ela ignorava completamente o rumo a seguir. Avançou uns passos e ergueu a mão, como se fosse bater ao taipal encerrado, mas logo hesitou e recuou. Do outro lado da rua, um musculoso talhante deixou a sua banca, deu-lhe uma pancadinha amável no ombro e bateu vigorosamente em vez dela, ficando depois um momento à escuta. Mas não houve qualquer movimento interior.

Uma manápula abateu-se pesadamente sobre as costas de Cadfael e a voz cavernosa de Rhodri ap Huw ressoou-lhe ao ouvido em galês:

- Então que é isto? O mestre Euan não abriu para fazer negócio? Não contava assistir a tal! Nunca antes o tinha visto perder uma oportunidade de venda, ou qualquer outra coisa para sua vantagem.

- A banca está abandonada - afirmou Cadfael. - O homem pode já ter partido.

- Não ele! Estava lá depois da meia-noite, pois dei uma volta por aqui para respirar o ar puro antes de ir para a minha hospedaria, e nessa altura havia luz acesa lá dentro. - Não provinha agora nenhum brilho do interior, embora os raios do Sol em oblíquo o pudessem empalidecer até se tornar invisível. Mas não, também não era assim. As fendas entre o taipal e a estrutura estavam na mais completa escuridão.

Era tudo muito parecido com o que Roger Dod encontrara noutra cabina, apenas um dia antes. Mas aí havia uma tranca no interior, e a aldraba fora levantada com um punhal. Aqui havia uma fechadura, a ser accionada de dentro ou de fora, e a chave não se encontrava à vista.

- Não gosto disto - comentou Rhodri ap Huw, e avançou para experimentar a porta, que encontrou, como era de esperar, trancada, e espreitar com os olhos tortos pelo grande buraco da fechadura. - A chave não está do lado de dentro - informou rapidamente por cima do ombro e voltou a espreitar. - Não há lá movimento nenhum. - Então já tinha Cadfael mesmo atrás de si, e três ou quatro outros se aproximavam. - Dêem espaço!

Rhodri enfiou os dedos de ambas as mãos na fenda da porta, encostou um dos seus grandes pés à parede de madeira e puxou com toda a força, com os ombros quadrados quase unidos num grande esforço. A madeira estalou em redor da fechadura, com pequenos fragmentos a voarem como partículas de pó, e a porta abriu-se. Rhodri oscilou, recuperou o equilíbrio em recuo e foi o primeiro a passar pela abertura, mas Cadfael seguiu-os com suficiente rapidez para se assegurar de que o galês não tocava em nada do interior. Estenderam juntos o pescoço para a escuridão, ao lado um do outro.

A banca do luveiro estava num caos, as prateleiras esvaziadas e as mercadorias espalhadas pelo chão como sementes. Numa esteira de palha, encostada à parede do fundo, estava caída a sua capa, e ao lado, num castiçal de ferro, uma vela apagada desfazia-se em pregas de sebo. Levaram alguns segundos a habituarem os olhos à luz difusa e a verem claro. Enredado no conjunto, atirado ao chão, de cintos, cinturões, luvas, bolsas e alforges, Euan of Shotwick jazia de costas, com os joelhos levantados e um saco áspero meio enfiado pela cara esguia e a cabeça grisalha. Sob a bainha do capuz, a boca de lábios finos estava aberta num ricto de dor, com grandes dentes brancos à mostra, e o ângulo em que a cabeça se encontrava tinha a sugestão horrível de um fantoche de madeira partido.

Cadfael virou-se e abriu o taipal da cabina, deixando entrar a luz da manhã. Baixou-se para tocar no pescoço contorcido e na face encovada.

- Frio - esclareceu Rhodri, por detrás dele, não tentando verificar a sua asserção, que mesmo assim correspondia à verdade. A carne de Euan estava a gelar. - Está morto - disse Rhodri chãmente.

- Há horas - confirmou Cadfael.

Na tensão do momento, esquecera-se de Emma, mas o grito que ela soltou fê-lo rodar sobre si próprio com pressa e desânimo. Ela esgueirara-se, aflita, para espreitar por cima dos ombros dos vizinhos, e parara, com os olhos fixos e muito abertos, os pequenos punhos fechados e esmagados contra a boca.

- Oh, não! - sussurrou. - Morto não! Também ele não... Cadfael tomou-a nos braços e impeliu-a fisicamente à sua frente para fora das cabinas, acotovelando os mirones de bocas abertas para os afastar do caminho.

- Volte para a abadia! Não deve ficar aqui. Volte antes que dêem pela sua falta e deixe isto comigo. - Ficou na dúvida sobre se ela teria escutado o seu rápido murmúrio ao ouvido; Emma tremia e estava branca como o leite, os olhos azuis fixos e dilatados devido ao choque. Cadfael olhou em torno, procurando com urgência alguém a quem pudesse confiá-la em segurança, pois não lhe parecia que a devesse deixar regressar sozinha, e contudo também não queria abandonar aquele cenário antes de Beringar lá chegar para tomar conta do assunto, ou ao menos um dos sargentos do alcaide. O súbito grito de reconhecimento alarmado proveniente da retaguarda da multidão que se reunia foi um som muito bem recebido.

- Emma! Emma! - Ivo Corbière aproximou-se, abrindo caminho sem cerimónia por entre o aglomerado, como uma repentina e veemente ventania numa seara, arremetendo contra as hastes que, de pé, a pudessem fazer abrandar. Ela virou-se ao ouvir o seu nome, e uma centelha de vida voltou a iluminar-lhe os olhos. Com gratidão, Cadfael atirou-a para os braços do jovem, que os estendeu com a máxima ansiedade a fim de a receber. - Por amor de Deus, que lhe aconteceu? Que...? - O olhar dele passou do rosto atónito de Emma para o de Cadfael, e para além deles, para a porta aberta, com o painel lascado. Por cima da cabeça dela os seus lábios desenharam em silêncio para Cadfael: - Outra vez? Outro?

- Leve-a de regresso - pediu Cadfael, concisamente. - Tome conta dela. E diga a Hugh Beringar que venha cá. Temos ali dentro um assunto para o alcaide.

Durante todo o caminho de volta ao longo da frontaria, Corbière manteve o braço em redor dela, dominou as suas longas passadas para seguir o seu ritmo e foi sempre a sussurrar-lhe ao ouvido palavras calmantes e carinhosas, enquanto Emma, até quase terem chegado à porta ocidental da igreja, não disse absolutamente nada, limitando-se a caminhar com docilidade ao lado dele, com uma consciência distante do som embalador e do toque reconfortante. Então, de súbito, disse:

- Está morto. Vi-o, sei que está.

- Só o vislumbrou. - Ivo tentou consolá-la. - Pode não ser assim.

- Não - insistiu Emma. - Sei que o homem está morto. Como pôde acontecer? Porquê?

- Há sempre actos destes em qualquer lado: roubos, violência, maldade. É triste, mas não é novo. - Os dedos dele comprimiram-lhe calorosamente a mão. - Não é culpa sua e, infelizmente, não há nada que a Emma ou eu possamos fazer. Quem me dera poder fazê-la esquecer o que viu. No entanto, com o tempo esquecerá.

- Não - garantiu ela. - Nunca esquecerei isto.

Fora sua intenção regressar pela igreja, donde saíra, mas agora já não tinha importância. Tanto quanto lhe pudesse interessar a ele ou a qualquer outra pessoa, saíra simplesmente cedo para comprar luvas, ou pelo menos para ver o que o luveiro tinha à venda. Entrou com Ivo pela portaria. Quando ele chegou à hospedaria com Emma ternamente pelo braço, já ela recuperara a compostura. Tinha novamente um pouco de cor nas faces e vivacidade na voz, apesar de o tom indicar que a vida era dolorosa:

- Agora já estou recomposta, Ivo - afirmou. - Não precisa de se incomodar mais por minha causa. Direi a Hugh Beringar que a presença dele é necessária.

- O irmão Cadfael confiou-a a mim - disse Ivo com autoridade suave e convicta - e a Emma não me rejeitou. Cumprirei a minha missão à letra. Como espero - continuou, sorrindo - desempenhar quaisquer outras que de futuro a Emma me queira confiar.

Hugh Beringar chegou com quatro homens do alcaide, dispersou a multidão, que pairava na expectativa em volta da cabina de Euan of Shotwick, e escutou os relatos produzidos pelos detentores de bancas nas proximidades, pelo talhante do outro lado da rua e por Rhodri ap Huw, cujas frases Cadfael traduziu uma a uma. Sem pressa de se afastar, pois, conforme informou, o seu olhar servidor regressara com o barco de Bridgnorth e tinha competência para se encarregar das mercadorias que ainda havia para vender, o galês não mostrou qualquer desejo inconveniente de se demorar, uma vez prestado o seu testemunho. Imperturbável e a tudo atento, afastou-se calmamente à primeira indicação de que a lei mais nada tinha a ver com ele. Outros, mais persistentes, permaneciam em redor da cabina, formando um círculo silencioso e observador, mas eram mantidos à distância e nada podiam ouvir. Beringar encostou a porta. Os taipais abertos davam luz suficiente.

- Posso tomar o relato do homem como justo e verdadeiro? - indagou Hugh, deitando um olhar para as costas de Rhodri, que se afastava. O galês não relanceava os olhos para trás, a sua segurança era absoluta.

- À letra, para tudo o que aconteceu aqui desde que entrei em cena. É um excelente observador, pouco lhe escapa do que lhe diz respeito, ou pode dizer respeito, e do que não diz. É negociante, também, o seu comércio aqui não é pretexto. Mas pode ser que apenas vejamos parte dos seus negócios.

Agora, só eles os dois estavam lá dentro: os dois vivos, e o morto. Permaneciam de pé, um de cada lado deste, e recuados para evitarem pisar o corpo ou a confusão de artigos de couro que o rodeava.

- Diz que havia aqui uma luz por entre as tabuinhas depois da meia-noite - comentou Beringar. - Ora agora a vela está apagada, não extinta. E se ele fechava a porta à chave antes de encerrar a cabina para a noite...

- Era o que faria - interrompeu Cadfael. - O que Rhodri dele conta soa a verdadeiro: um homem completo em si próprio, que não confiava em ninguém, capaz de se bater a si mesmo, até agora. Teria fechado a porta à chave.

- Então também a abriu, para deixar entrar o seu assassino. A fechadura não tinha sido forçada antes, segundo viste. Por que haveria um homem cauteloso de abrir a porta a qualquer pessoa, a horas mortas?

- Porque estava à espera de alguém - concluiu Cadfael -, embora não da pessoa que veio. Porque, pode ser, estivera à espera de alguém todos estes três dias, e sentiu alívio quando a mensagem esperada chegou por fim.

- Tanto alívio que deixou de ser cauteloso? Dada a avaliação que o teu galês dele faz, duvido.

- Eu também - concordou Cadfael -, a menos que houvesse uma palavra particular, que ele esperasse, que fosse sabida e dita. Um nome, talvez. Pois sabes, Hugh, creio que ele já estava bem consciente de que a pessoa que esperara lhe entregasse a mensagem nunca iria bater à sua porta à noite ou parar na rua durante o dia para passar algum tempo na sua companhia.

- Referes-te - completou Hugh - a Thomas of Bristol, que está morto.

- Quem mais? Quantas estranhas coincidências podem reunir-se, todas contra o que é provável, ou mesmo possível? Um mercador é morto, a sua barcaça revistada, a sua cabina revistada e depois, santo Deus, o seu caixão! Ainda não tive tempo, Hugh, de te falar deste último caso. - Contou-o então. Tinha a pétala da rosa no peitoral do seu hábito, embrulhada numa tira de linho; continuava tão eloquente como dantes. - Podes confiar nos meus olhos, sei que não caiu anteriormente, sei que esteve no caixão com ele. Agora a sobrinha desse mesmo homem arranja maneira de vir a ocultas à banca deste luveiro, só para o encontrar morto como o tio. E uma longa lista de ataques a tudo o que se relaciona com Thomas of Bristol. Ora, como o tesouro desconhecido nem sequer foi encontrado no seu caixão, para regressar em segurança a Bristol em virtude de não ter sido entregue, o sítio a revistar em seguida era este... onde mestre Thomas o devia ter entregue.

- Teriam de ter prévio conhecimento disso.

- Ou boas razões para desconfiar.

- Pelo teu testemunho - disse Hugh, meditabundo -, o caixão foi aberto e fechado entre Completas e Matinas. Antes da meia-noite. Quando dirias, Cadfael, a tua experiência é maior do que a minha, quando dirias que este homem morreu?

- Às primeiras horas do dia. Antes de terminar a segunda hora depois da meia-noite calculo que já estivesse morto. Depois do caixão, parece que foram forçados a concluir que, de algum modo, apesar de toda a vigilância que tinham exercido sobre mestre Thomas desde a sua chegada, e de terem dado cabo dele antes mesmo de a feira começar, porém, de algum modo, ele ou alguém em seu nome devia ter-se esgueirado por entre as malhas da sua rede e entregue a preciosa encomenda. Este pobre diabo com certeza abriu a porta ontem à noite a alguém que supôs ter negócios com ele. A menção de um nome privilegiado... uma senha... Deixou entrar o seu assassino, todavia o que esperara era o que lhe fora prometido.

- Então ainda agora - concluiu Hugh com agudeza -, com dois homicídios a pesarem sobre eles, não têm o que queriam. Este pensou que lho traziam. Eles confiavam em que o encontrariam aqui. E nem um nem outros o tinham. Ambos estavam enganados. - Ficou a cismar, com o punho castanho agarrado ao maxilar e as sobrancelhas negras baixas, numa solenidade desacostumada. - E Emma veio aqui... a ocultas.

- É verdade. Nem todos os homens - disse Cadfael - vêem as mulheres como tu ou eu. A maior parte dos teus companheiros e dos meus nunca sonharia olhar na direcção de uma mulher para encontrar à mão algo de importância. Especialmente tratando-se de uma simples criança, mal acabada de crescer. Não antes de todos os outros caminhos estarem encerrados e de serem forçados a reparar numa mulher, lá, no âmago da questão. Que por acaso talvez fosse o que procurassem.

- E que agora se traiu - comentou Hugh, sombriamente. - Bem, ao menos chegou a salvo à hospedaria, graças a Corbière. Deixei-a com Aline, muito agitada, apesar de toda a sua força de vontade, e hoje não dará um passo sem ser vigiada. Isso posso prometer. Entre nós creio que podemos tomar conta de Emma. Agora vejamos se este pobre diabo tem alguma coisa para nos dizer que não saibamos já.

Baixou-se e afastou o áspero saco que tapava metade da cara do luveiro, da sobrancelha num lado ao maxilar do outro. Uma ferida aberta no cabelo grisalho, sobre a têmpora esquerda, indicava um golpe destro assim que a porta fora aberta ao seu visitante, com a intenção de o atordoar, provavelmente, até poder ser embuçado no saco e amordaçado como Warin. Aqui era caso de conseguir entrar e enfrentar um homem perfeitamente acordado, não um timorato adormecido.

- Muito parecido com o outro - disse Cadfael -, e duvido que tencionassem matar. Mas este não era assim tão fácil de pôr fora de combate. Resistiu. E tem o pescoço partido. Pelo aspecto, um deu-lhe a volta para lhe pôr a venda por trás e, como ele resistisse, tentou com demasiada força fazê-lo recuar puxando-o por ela. Este homem era vigoroso e ágil, mas os seus ossos estavam a envelhecer e provaram ser demasiado frágeis para o aguentar. Suponho que não tivesse sido intencional. Tê-lo-íamos descoberto bem amarrado, mas vivo, como Warin, se ele não tivesse lutado. Uma vez que se aperceberam de que estava morto, fizeram a busca à pressa e deixaram tudo como calhou.

Beringar afastou para o lado a complicação de cintos, correias e luvas que cobria o chão e o corpo. O braço direito de Euan estava tapado do cotovelo para baixo pelo tecido do seu próprio manto, afastado a pontapé do caminho dos intrusos, na sua busca. Quando as pregas foram afastadas, Hugh soltou um assobio de surpresa, pois na mão do morto encontrava-se um punhal comprido, com a lâmina nua estriada e ornamentada perto do punho com dourados. No cinto, meio escondida agora pela anca direita, a bainha estava vazia.

- Homem prevenido! E, vê aqui, marcou um deles para nós! - Havia sangue na ponta da lâmina em estrias de uns três dedos de largo, duas finas linhas cor-de-rosa a secarem para negro.

- Rhodri ap Huw disse dele - lembrou Cadfael - que era um ser solitário que não confiava em ninguém, nem no seu próprio carregador e no seu próprio vigilante. Disse que usava uma arma e sabia utilizá-la. - Ajoelhou junto do corpo, afastou os despojos que ainda o rodeavam e verificou com os olhos e as mãos, da cabeça aos pés. - Vais mandá-lo para o castelo, suponho, ou para a abadia, e observá-lo com mais cuidado, mas creio que o único sangue que perdeu é o deste lenho na fronte. O da adaga não é dele.

- Se ao menos pudéssemos dizer de quem é com a mesma facilidade! - exclamou Hugh secamente, sentando-se sobre os calcanhares com a agilidade dos jovens, do outro lado do corpo. O irmão Cadfael ajeitou os joelhos que estalavam de velhice sobre as tábuas duras e invejou-o momentaneamente. O jovem ergueu o braço que começava a ficar rígido e experimentou a força dos dedos enclavinhados. - Estava bem agarrado! - Precisou de algum esforço para conseguir abrir suficientemente o punho enclavinhado de modo a fazer deslizar o cabo do punhal. À luz que entrava pelo taipal aberto algo brilhou brevemente, oscilando na ponta da lâmina, e desapareceu de novo, como as partículas de poeira aparecem e desaparecem, em dourado, à brilhante luz do Sol. Também havia o que a princípio pareceu ser uma fina incrustação de sangue a orlar o aço de um dos lados.

Cadfael exclamou, inclinando-se para apontar:

- Um cabelo louro... Lá está outra vez! - O brilho intermitente enrolava-se e oscilava à medida que Hugh rodava o punhal na mão.

- Não é um cabelo, é um fio fininho e amarelado. Fio de linho que não foi branqueado. Esta estria arrancou uma tira de pano e o sangue colou-a. Olha!

Uma simples tirinha de tecido castanho, era o que era, a orlar a estria que a prendera. Estreita como um bocadinho de relva mas, quando Cadfael a segurou cuidadosamente por uma ponta e puxou, estendeu-se a todo o comprimento da sua mão. A cor, embora desfigurada pelo sangue seco, mostrava-se claramente num dos lados: castanho-avermelhado, muito claro; e na ponta flutuava alegremente o comprido fiozinho de linho, enrolado como um cabelo encaracolado.

- Um golpe do comprimento da mão - disse Cadfael - e a terminar numa bainha, pois decerto este fio a cosia, e a adaga arrancou um comprimento de linha. - Semicerrou os olhos e meditou, imaginando Euan de frente para a porta ao abri-la, o golpe instantâneo que não conseguiu dominá-lo, e depois o rápido puxar do punhal e o ataque com ele. Quase cara a cara e corpo a corpo, um homem destro e o coração do seu atacante como alvo à vista. - Fez pontaria ao coração - afirmou com convicção. - Eu teria feito o mesmo, pelo menos em tempos. O outro homem com certeza se esgueirou por trás e desviou o golpe, mas o alvo era esse. Alguém, algures, tem a cota rasgada. Pode ser no peito, do lado esquerdo, ou na manga. Os braços do homem estariam levantados, procurando agarrá-lo. Diria a manga esquerda, rasgada desde a costura até meio caminho do cotovelo. A linha de coser foi apanhada primeiro e arrancou um comprimento de pontos.

Hugh considerou respeitosamente o que acabara de ouvir e não encontrou erros.

- Que pensas? Um grande arranhão? Não foi a pingar sangue até à porta. Não deve ter sido tanto que desse muito trabalho a estancar.

- A manga do gibão conteve-o. Provavelmente só um raspão, mas comprido. Será visível.

- Se soubéssemos onde procurar...! - Hugh soltou uma breve gargalhada à ideia de enviar homens por aquele mercado a abarrotar, para pedirem a todos os homens que arregaçassem a manga esquerda e mostrassem o braço. - Muito simples! Em todo o caso, não vejo razão para tu, eu e todos os homens que possa dispensar e em quem confie, não mantermos os olhos abertos durante todo o resto do dia para uma manga rasgada... ou remendada há pouco tempo.

Pôs-se em pé e virou-se para chamar, através do taipal aberto, o guarda mais próximo:

- Bom, vamos retirá-lo daqui e fazermos o que pudermos. Uma palavrinha com o teu Rhodri ap Huw não seria para desperdiçar, e calculo que consigas extrair mais dele na sua própria língua do que eu em segunda mão. Se ele conhece tão bem este homem, espicaça-o para que fale e depois vai contar-me o que tiveres ficado a saber.

- É o que vou fazer - concordou Cadfael, erguendo-se com dificuldade de sobre os joelhos.

- Eu tenho de ir primeiro ao castelo, informar do que encontrámos. Numa coisa vou insistir desta vez - disse Hugh. - O alcaide não se dispunha a ouvir atentamente ontem à noite, mas depois disto, terá de soltar o jovem Corviser sob fiança do pai, assim como os restantes. Seria preciso um homem mais cabeçudo que Prestcote para acreditar que o garoto teve alguma coisa a ver com a primeira morte, depois do cortejo de ofensas que se seguiram enquanto tem estado na prisão. Há-de jantar hoje em casa.

Rhodri não estava meramente disposto a passar uma hora a verter os frutos da sua sabedoria e experiência nos ouvidos do irmão Cadfael, revolvia essa ideia na mente, assim que o cadáver de Euan of Shotwick foi retirado, e a cabina encerrada, com um dos homens do alcaide a fazer guarda. Apesar de sempre presente, tinha o dom da discreção, até decidir ser indiscreto, e então podia surgir da direcção mais inesperada, com um ar tão casual como se apenas o acaso o tivesse guiado.

- Com certeza já esgotou todas as mercadorias que trouxe - comentou Cadfael, encontrando-o assim entre bancas, claramente despreocupado dos negócios.

- Os produtos de qualidade são reconhecidos em toda a parte - disse Rhodri, com os olhos vivos a piscarem alegremente. - Os meus rapazes estão a despachar os últimos boiões de mel, e a lã já se foi há muito. Mas tenho lá uma garrafa a meio, se aceitar partilhar um copo a esta hora. Hidromel, não vinho, mas deve gostar, sendo também galês.

Sentaram-se em armações amontoadas, já livres do seu uso anual pela retirada de pequenos comerciantes que tinham esgotado as suas mercadorias, e colocaram a garrafa entre eles.

- Que é? - perguntou Cadfael com um gesto de cabeça para a cabina sob vigilância - que conclui da questão desta manhã? Depois de tudo o que se passou anteriormente!? Parece-lhe que temos mais aves de rapina para este lado que de costume? Talvez se tenham assustado e deixado os condados em que ainda há guerra, e nós é que ficámos com todo o seu peso.

Rhodri abanou a cabeça desgrenhada e fez brilhar num sorriso os seus grandes dentes brancos, no meio do cabelo espesso:

- Por mim diria que tiveram uma feira mais pacífica e bem comportada do que seria de esperar... à parte as desgraças de apenas dois mercadores. Ah, esta noite é a última, e haverá algumas rixas de ébrios e uma ou duas desordens, aposto, mas que há de extraordinário nisso? Mas não foi o acaso que desempenhou qualquer papel no que aconteceu a Thomas of Bristol. O acaso nunca persegue um único homem durante três dias no meio de centenas dos seus semelhantes, sem sequer tocar num deles.

- Mais do que tocou em Euan of Shotwick - observou Cadfael secamente.

- Não o acaso! Pense, irmão! Os olhos e os ouvidos do conde de Chester vêm a uma feira em Shropshire e são mortos. Thomas of Bristol, de uma cidade que tem voz pelo conde Roberto de Gloucester, vem à mesma feira e é morto na própria noite da sua chegada. E, depois de morto, tudo o que trouxe consigo é virado do avesso, mas para surpresa pouco é roubado, pelo que ouvi dizer. - E era verdade que ouvia a maior parte do que se dizia no raio de uma milha em torno de si, mas pelo menos não mencionou o facto de o caixão de mestre Thomas ter sido violado. Ou isso não lhe chegara aos ouvidos, e nunca chegaria, ou então fora o primeiro a saber e seria o último a alguma vez o admitir. A porta paroquial estava sempre aberta, não era preciso ir ao pátio principal nem passar pela portaria. - Algo que Thomas trouxe para Shrewsbury é de flagrante interesse para alguém, parece-me, e esse alguém não conseguiu obtê-lo do homem, da barraca ou da cabina. E o que acontece a seguir é que Euan of Shotwick também é morto de noite e todos os seus pertences revistados. Eu não garantiria que nada tivesse sido roubado. Podem ter aprendido o suficiente para aproveitarem. Os haveres dele são pequenos e transportáveis. Porque haviam de desprezar alguns ganhos por fora? Mas, apesar de tudo isso... Não, dois homens de lados opostos de um país dividido a encontrarem-se a meio caminho por importantes negócios particulares? Pode ser! Um homem de Gloucester e o homem de Chester.

- E de quem - interrogou-se Cadfael em voz alta - seria o terceiro homem?

- O terceiro?

- Que se interessou tanto pelos outros dois que estes morreram por isso. De quem seria ele?

- Ora, há outras facções, e cada uma delas precisa dos seus informadores. Há o partido do rei... Podiam bem sentir um forte interesse se vissem um homem de Gloucester e outro de Chester participando na mesma feira, a meio caminho. E não só o rei... Há outros que se consideram reis nos seus próprios domínios, além de Chester, e esses também precisam de saber as intenções deste, e irão longe para as contrariar, se ameaçarem os seus próprios proventos. E ainda há a Igreja, irmão, se aceitar esta referência sem ofensa para os beneditinos. Pois já deve ter ouvido que o rei tratou muito duramente alguns dos seus bispos nestas últimas semanas, irritando todos os tipos de clérigos, e transformou o seu próprio irmão e melhor aliado, o bispo Henrique de Winchester, que ainda por cima é legado do papa, em inimigo encarniçado. O próprio bispo Henrique podia bem ter a ver com o que aqui se passou, embora eu duvide que pudesse ter tido conhecimento a tempo do que se estivesse a tramar, pois nunca saí do Sul. Mas Lincoln, ou Worcester... todos esses senhores precisam de saber o que se passa, e há sempre muitos rufias dispostos a serem contratados por homens de influência, que ficam inviolavelmente instalados nos seus domínios enquanto eles fazem o trabalho.

“E o mesmo”, pensou Cadfael, “pode acontecer com homens ricos, que fiquem aqui inviolavelmente instalados nas suas bancas, bem à vista de centenas de outros, enquanto os seus rufias contratados fazem o trabalho sujo. E este galês escuro está a expor tudo claramente para que eu veja, e até se delicia com isso!” Cadfael sabia quando estava a ser deliberadamente gozado! Do que não podia ter a certeza era se se tratava do capricho de um homem impoluto mas malicioso ou do desporto do culpado, tirando prazer da sua própria imunidade e esperteza. Os olhos negros cintilavam e os dentes brancos brilhavam. E porquê regatear-lhe a satisfação, se algo de útil ainda dela pudesse ser extraído? Além de que o seu hidromel era excelente!

- Deve - disse Cadfael pensativamente - haver cá mais gente de Cheshire, até íntimos da corte de Ranulf. Vós mesmo, por exemplo, não vindes de muito longe e tendes muitos conhecimentos dessa região, dos homens de lá e das suas intenções. Se tiverdes razão, quem quer que cometeu estes actos soube exactamente onde procurar o que queria, uma vez convencido de que já não se encontrava entre os haveres de Thomas of Bristol. Ora, como foram capazes de escolher, digamos, entre Euan of Shotwick e vós? Como exemplo, claro! Sem ofensa!

- Ofensa nenhuma! - replicou Rhodri calorosamente. - Ora, benza-o Deus! A única razão que eu próprio conheço consiste em eu ser eu próprio e saber que não estou ao serviço de Ranulf de Chester. Mas o irmão não pode saber isso, não com toda a certeza, e o mesmo acontece com as outras pessoas. Há um pequeno senão, claro... Thomas of Bristol, suponho, não falaria galês.

- E vós não falais inglês - suspirou Cadfael. - Tinha-me esquecido!

- Houve um viajante do Sul, de perto de Gloucester, que passou a noite na corte de Ranulf há menos de um mês - reflectiu Rhodri, pestanejando de satisfação perante a sua própria omnisciência -, um jogral recebido com favores excepcionais, pois foi chamado para cantar uma ou duas estrofes em particular a Ranulf e à sua senhora, depois de se terem retirado do salão. Se o conde Ranulf tem ouvido para a música, foi a primeira vez que tal ouvi. Decerto um lais francês não chegaria para o atrair à causa do sogro. Quereria conhecer as perspectivas de êxito e o que poderia lucrar com isso. - Dirigiu a Cadfael um sorriso radioso por cima do ombro e serviu o resto do hidromel. - À sua saúde, irmão! Pelo menos está livre da ânsia de lucro. Muitas vezes tenho perguntado a mim próprio se existe uma paixão suficientemente forte para a substituir. Eu ainda continuo no mundo, compreende?

- Penso que pode existir - afirmou Cadfael suavemente. - Pela verdade, talvez! Ou pela justiça?

 

 

                                                     Capítulo 2

 

O carcereiro abriu a porta da cela de Philip pouco antes do meio-día e afastou-se para deixar entrar o preboste. Pai e filho fitaram-se rigidamente e, embora Geoffrey Corviser continuasse a parecer tremendamente severo, e Philip obstinado e provocador, o pai não deixou de ficar mais brando e o filho mais seguro. No fundo, entendiam-se perfeitamente.

- És solto sob caução da minha parte - informou o preboste concisamente. - A acusação não é retirada, por enquanto, mas confia-se que comparecerás quando fores notificado, e, até lá, espero obter de ti algum trabalho de jeito.

- Posso ir para casa consigo? - Philip parecia confuso; nada sabia do que se estava a passar no exterior e não se encontrava preparado para esta deliberação abrupta. Escovou-se apressadamente, bem consciente de que não estava apresentável para atravessar o burgo ao lado do preboste. - Que os fez mudar de ideias? Foi descoberto o responsável pelo assassínio? - Isso ilibá-lo-ia completamente aos olhos de Emma, sem ficarem dúvidas.

- Qual assassínio? - retrucou o pai. - Deixa lá, por agora, já vais saber quando estivermos fora daqui.

- Sim, mexa-se, rapaz - aconselhou o bem humorado guarda, fazendo tilintar as chaves -, antes que eles voltem a mudar de ideias. À velocidade a que as coisas estão a acontecer na feira deste ano, pode encontrar a porta novamente fechada antes de conseguir passar.

Philip seguiu pensativamente o pai para fora do castelo. Ao chegar à barbacã, a luz do meio-dia caiu sobre ele, quente e ofuscante, e o céu estava de um azul-brilhante e intenso, como os olhos de Emma quando ela os abria com ansiedade ou susto. Era impossível não se sentir bem disposto, fossem quais fossem as reprimendas que ainda o esperassem em casa; e a esperança e a resistência da juventude floresciam nele, enquanto o pai lhe narrava com brusquidão tudo o que acontecera enquanto o filho se desgastava na prisão sem notícias.

- Então, houve dois assaltos ao barco e à banca da Sra. Vernold, com mercadorias roubadas e homens atacados? - Tinha-se esquecido por completo da sua própria aparência desleixada, caminhava a passos largos em direcção a casa, de cabeça erguida e rosto animado e beligerante, de facto com um aspecto muito semelhante ao de quando comandara a sua expedição mal sucedida através da ponte, na véspera da feira. - E ninguém foi apanhado por isso? Nada foi feito? Então, ela própria pode estar em perigo! - A indignação apressou-lhe o passo. - Por amor de Deus, que anda o alcaide a fazer?

- Tem bastante com que se ocupar a dispersar multidões inconvenientes constituídas por ti e outros que tais - lembrou-lhe o pai com desembaraço, mas nem um rubor conseguiu provocar no seu rebento entusiasmado. - Mas, já que queres saber, a Sra. Vernold está na hospedaria da abadia, em segurança, aos cuidados de Hugh Beringar e da esposa. Fazias melhor em te preocupares com os teus próprios problemas, meu rapaz, e em teres cuidado com os teus passos, pois ainda não estás em segurança.

- Que fiz eu de tão mal? Só avancei um pouco mais do que o pai na véspera. - Nem sequer pareceu ofendido por ser julgado com dureza, apenas produziu distraidamente a sua breve defesa, com o espírito por completo ocupado pela jovem. - Mesmo na hospedaria pode não estar fora de alcance, se isto tudo for uma conjura organizada contra o tio e toda a sua família. - Pela morte de mais um comerciante na feira demonstrou pouco interesse, embora fosse chocante, pois lhe pareceu mal poder ter a ver com o vingativo catálogo de ofensas contra mestre Thomas e todos os seus pertences. - Ela falou tão justamente... - disse. - Não consentiu que me acusassem de mais do que eu fiz.

- É verdade! Foi uma boa honesta e testemunha, não há que negar. Mas agora não é da tua conta, está bem protegida. É na tua mãe que precisas de pensar agora, ela tem andado numa aflição por tua causa durante todo este tempo, e agora que procuram noutras direcções o responsável do crime, sempre de olho em ti, contudo, não te esqueças!, é provável que abrande um pouco. De uma forma ou de outra, vais ter um acolhimento caloroso.

Philip estava muito para além de se preocupar com isso; no entanto, assim que entrou na casa por detrás da loja de sapateiro, recebeu efectivamente um acolhimento caloroso, não de uma forma ou de outra, mas de ambas ao mesmo tempo. A Sra. Corviser, que era alta, bonita e volúvel, olhou de junto do fogão, soltou um guincho abafado, deixou cair a concha e arremeteu como um navio a todo o pano, para o abraçar, abanar, franzir o nariz ao cheiro de prisão que ele trazia, ralhar-lhe por ter maltratado a sua melhor cota e os seus melhores calções, dar uma bofetadinha por rir da tirada dela, compadecer-se pela ferida seca na têmpora, e exigir que se sentasse imediatamente e a deixasse cortar o cabelo que aderia ao sangue coagulado e lavar a ferida. De longe o mais fácil era submeter-se a tudo e deixá-la falar até se cansar.

- Os sarilhos e vergonha em que nos meteste, as dores de cabeça que me custaste, miserável, não mereces que te dê de comer, nem que lave e cosa a tua roupa. O filho do preboste na prisão, imagina como ficámos humilhados! Não tens vergonha?

Estava a limpar com uma esponja o sangue coagulado e sentiu alívio ao ver que a cicatriz remanescente era insignificante. Mas como ele replicasse alegremente: “Não, mãe!”, puxou-lhe vigorosamente o cabelo.

- Então devias ter, meu vadio! Pronto, isto é uma coisa de nada. Agora espero que te dediques ao trabalho e compenses de todos os sarilhos em que nos meteste, em vez de vagueares pelo burgo a incitar os filhos dos outros para o mal com as tuas ideias loucas...

- Eram as mesmas ideias que o pai e todos os mercadores da guilda tinham, devia ter ralhado com eles, mãe. E pergunte aos que usam sapatos feitos por mim se o meu trabalho é defeituoso. - De facto era muito bom trabalhador, o que ela teria asseverado valentemente se tivesse sido outra pessoa a pôr em dúvida a sua diligência e habilidade. Philip abraçou-a impulsivamente, beijou-lhe a face, e ela afastou-o impacientemente, com o que mais parecia uma palmada que uma carícia.

- Põe-te a andar e não me venhas apaparicar enquanto não estiveres livre da acusação pior e não tiveres pago a multa pelo tumulto. Agora vem jantar!

Foi um excelente jantar, como os que ela preparava para festas e dias santos. Depois, em vez de largar a roupa que usara dia e noite na cela, fez cuidadosamente a barba, arranjou uma trouxa com o seu segundo melhor fato e saiu de casa com ela debaixo do braço.

- Agora onde é que vais? - Inevitavelmente, ela exigiu saber.

- Ao rio, para nadar e ficar outra vez limpo. - Tinham uma horta a montante, por debaixo da muralha da cidade, tal como muitos outros burgueses, para cultivarem os seus próprios frutos e vegetais, e aí havia uma cabana e relva, onde ele podia secar ao sol. Fora onde aprendera a nadar, pouco depois de ter aprendido a andar. Não disse onde ia depois. Era uma pena ter de se apresentar com o seu segundo melhor gibão, mas com o calor estival talvez nem precisasse de o vestir; em camisa e calções quase todos os homens ficam iguais, desde que a camisa seja de bom linho e bem lavada.

A água nem sequer estava fria no baixio arenoso junto à horta, mas, depois da refeição, ele não ficou lá muito tempo nem nadou para maiores profundidades. Todavia, era bom sentir-se ele próprio outra vez, limpo até da recordação do seu fracasso e queda. Havia um sítio muito calmo junto à margem, onde a água pairava quase imóvel, mostrando-lhe um bom reflexo da cara e da espessa cabeleira castanho-arruivada, que ele penteou e alisou com os dedos. Vestiu-se tão cuidadosamente como se tinha penteado, voltou para a ponte e atravessou-a para o lado da abadia. O agravo do burgo, que tivera em mente da última vez que ali passara, estava como que esquecido; agora tinha outro assunto importante a tratar na margem do Severn, onde ficava a abadia.

- Está aqui um - anunciou Constance, chegando do pátio com um sorrisinho particular nos lábios - que pede para falar com a Sra. Vernold. E até é um jovem que não tem nada má figura, embora ainda um pouco fraco de pernas. Falou com muita delicadeza.

Emma levantara rapidamente os olhos à menção de um jovem; agora que avançara no sentido de aceitar o que acontecera e habituar-se a um desastre que afinal não provocara, começara a lembrar-se das palavras usadas por Ivo, a que quase não prestara atenção, chocada e confusa como se encontrava, mas que agora eram significativas e acalentadoras:

- O Sr. Corbière?

- Não, desta vez não. Este não conheço, mas diz que se chama Philip Corviser.

- Conheço eu - disse Aline, e sorriu por cima da sua costura. - É o filho do preboste, Emma, o rapaz que defendeste na audiência do alcaide. Hugh tinha dito que prometeria a sua libertação hoje. Se houver alguém que possa dizer não ter feito mal nenhum, nem a ti nem a mais ninguém, nestes dois últimos dias, será ele essa pessoa. Queres recebê-lo? Seria gentil.

Emma quase o tinha esquecido, até o nome, mas recordou a súplica que lhe fizera para que acreditasse nele. Tantas coisas tinham acontecido entretanto... Lembrava-se agora dele, desleixado, ferido e manchado, doentiamente pálido depois da embriaguez, mas sempre com uma dignidade desesperante:

- Sim, já me recordo. Claro que o recebo.

Philip entrou na sala atrás de Constance. Acabado de sair do rio, com o cabelo húmido a encaracolar-se-lhe espessamente na cabeça, barbeado, corado e extremamente sério, mas sem as maneiras agressivas que ela lhe vira da primeira vez, era uma pessoa muito diferente do prisioneiro humilhado da audiência. O último olhar que lhe lançara, de queixo sobre o ombro, ao ser arrastado para fora... sim, viu aí a semelhança. Ele fez uma vénia a Aline e depois outra a Emma:

- Minha senhora, fui solto sob fiança do meu pai. Vim expressar os meus agradecimentos a Dona Emma por ter falado de mim com tanta justiça, quando eu não tinha o direito de esperar boa vontade da parte dela.

- Agrada-me vê-lo livre, Philip - afirmou Aline serenamente -, e sem danos aparentes. Gostará de falar com Emma a sós, atrevo-me a supor, e uma companhia diferente da minha pode ser boa para ela, pois aqui só falamos de bebés. - Pôs-se em pé, dobrando a costura com cuidado, para manter a agulha à vista enquanto a transportava. - Constance e eu vamos sentar-nos à porta da hospedaria, a apanhar sol. A luz de lá é melhor, e eu não sou tão boa com a agulha como a Emma. Podem ficar aqui sem serem incomodados.

À sua saída eles viram um raio de Sol entrado pela porta aberta cintilar-lhe no cabelo louro penteado no alto, antes de Constance a seguir e fechar a porta. Os dois ficaram a fitar-se com gravidade.

- A primeira coisa que eu queria fazer com a liberdade - disse Philip - era tornar a vê-la e agradecer-lhe o que fez por mim. É o que estou a fazer, de todo o meu coração. Houve alguns que lá testemunharam que me conheciam quase desde sempre, e de certeza não tinham nada contra mim, mas disseram que eu tinha sido o primeiro a atacar e que tinha feito todo o tipo de coisas que eu sabia não ter feito. Mas vós, que tínheis sofrido em consequência dos meus actos, embora Deus saiba que nunca o desejei, contastes a verdade absoluta. Foi preciso um coração generoso e um espírito justo para fazer tanto por um desconhecido que não tínheis motivos para amar. - Não escolhera a palavra, ela surgira naturalmente na frase vulgar, mas, quando a ouviu, um rubor subiu-lhe como fogo à cara, para ser ligeiramente reflectido na dela no momento seguinte. - Tudo o que fiz foi contar a verdade do que tinha visto - disse ela. - Era o que todos devíamos fazer, não é virtude mas sim obrigação. Foi uma vergonha outros não o terem feito. As pessoas não pensam no que dizem, nem se preocupam em esclarecer bem o que viram. Mas isso já passou. Estou muito satisfeita por o terem deixado sair. Fiquei contente quando Hugh Beringar disse que teriam de o fazer, tendo em conta o que tem estado a acontecer, e de que Philip não pode de modo nenhum ser culpado. Mas talvez não tenha ouvido...

- Sim ouvi. O meu pai contou-me. - Philip sentou-se ao seu lado, no lugar deixado vago por Aline, e inclinou-se seriamente para ela. - Tem de haver uma intenção muito má contra si e os seus. Doutra forma, como justificar tantos ataques? Emma, temo por si... Temo que haja perigos a ameaçá-la até a si. Lamento a sua perda e todas as aflições que tem sofrido. Desejaria que houvesse algo em que a pudesse servir.

- Oh, mas não precisa de se incomodar por minha causa - disse ela. - Como vê, estou nas melhores e mais gentis mãos possível. Amanhã a feira terá terminado e Hugh Beringar e Aline ajudar-me-ão a encontrar maneira segura de regressar a casa.

- Amanhã? - perguntou ele, desanimado.

- Pode não ser amanhã. Roger Dod levará amanhã a barcaça a descer o rio, mas pode ser que eu tenha de ficar mais um dia ou dois. Temos de encontrar um grupo que vá para Sul, passando por Gloucester, para me conduzir em segurança, e com outras senhoras para me acompanharem. Pode levar um dia ou dois.

Até um dia ou dois seria ouro; mas depois disso ela teria desaparecido e talvez nunca mais a voltasse a ver. Mesmo assim, confrontado com esta causa de infelicidade para si, só podia pensar nela. Não conseguia libertar-se da sensação de que algo a ameaçava:

- Em apenas dois dias veja quantas coisas más aconteceram, e sempre perto de si; que mais não poderá ainda acontecer em mais um dia ou dois? Quem me dera que neste momento estivesse em segurança na sua casa - exclamou apaixonadamente -, embora Deus saiba que preferia perder a mão direita a deixar de a ver. - Ele nem sequer dera por que essa mesma mão direita se apoderara da esquerda dela e a apertava com força. - Pelo menos arranje-me uma forma de a servir antes de regressar. Se mais nada puder ser, ao menos diga-me que sabe nunca eu ter feito mal ao seu tio...

- Oh, sim - respondeu ela calorosamente -, isso posso fazer, com a melhor das boas vontades. Nunca acreditei verdadeiramente que o tivesse feito. Não é pessoa para isso, para matar um homem à traição. Nunca o pensei. Mas continuamos sem saber quem o fez! Oh, não me interprete mal, tenho a certeza em relação a si. Mas gostaria que o mundo tivesse disso a demonstração clara, para seu bem.

Foi dito com muita beleza e sinceridade, e ele recebeu-o de coração grato, mas foi dito por companheirismo generoso, e nada mais profundo, do que ele teve a certeza vexatória, ao mesmo tempo que ao menos se congratulava com a gentileza demonstrada para consigo.

- Para meu, também - continuou ela com honestidade -, e para o da justiça. Não está certo que um vil assassino lhe escape, e perturba-me que a morte do meu tio não seja punida.

“Arranje-me uma forma de a servir”, dissera ele; talvez ela já a tivesse arranjado. Nada havia que não estivesse disposto a empreender por ela; ter-se-ia deitado no limiar de qualquer compartimento onde se encontrasse, como um cão de guarda, se tal fosse necessário, mas não o era, ela estava ao cuidado do próprio ajudante do alcaide e de sua esposa, que a protegeriam até a verem em segurança a caminho de casa. Mas quando falou do desconhecido que espetara um punhal nas costas do tio os seus grandes olhos incendiaram-se com o irado azul das safiras e o seu rosto ficou da cor do mármore e tenso. A sua queixa era o encargo dele. Ainda faria algo por ela.

- Emma - começou num murmúrio, e inspirou para se embrenhar com a profundidade de um oceano.

A porta abriu-se, apesar de nenhum deles ter ouvido bater; Constance pôs a cabeça dentro da sala:

- O Sr. Corbière espera para a ver, quando estiver livre - disse, e retirou-se deixando a porta entreaberta. Evidentemente que o Sr. Corbière não devia ser deixado muito tempo à espera.

Philip pôs-se em pé. À menção daquele nome, os olhos de Emma tinham-se inflamado como estrelas distantes, esquecendo-se dele:

Talvez se lembre - disse, dispensando ainda a Philip um pouco da sua atenção - do jovem senhor que nos veio auxiliar no embarcadouro, juntamente com o irmão Cadfael. Tem sido muito gentil comigo.

Philip lembrava-se, de facto, embora os seus sentidos na altura matraqueados tivessem visto tudo distorcido: um pequeno senhor magro, elegante, seguro de si, que saltara por cima de uma pipa a rolar para agarrar Emma à beira da água, e mais tarde, para lhe fazer justiça, aparecera na audiência do alcaide e confirmara a honesta versão dela, apesar de também ter apresentado o seu falcoeiro a testemunhar as ameaças idiotas a que Philip dera livre curso, sob o efeito do álcool, ao fim desse mesmo dia. Testemunho que o jovem não pusera em causa por se saber incapaz de ideias claras ou recordações inegáveis. Lembrou-se da sua desprezível figura e sentiu uma dor aguda ao pensar nisso. E o jovem senhor, com a sua brilhante cabeleira loura e destreza atlética, mostrara-se tão admirável por contraste.

- Despeço-me - disse Philip, e deixou que a mão dela escorregasse por entre a sua, embora com relutância e sofrimento. - Para a viagem, e para sempre, desejo que tudo lhe corra bem.

- Desejo-lhe o mesmo a si - correspondeu ela e, com crueldade inconsciente, acrescentou: - Importa-se de pedir ao Sr. Corbière que entre?

Nunca até então na vida fora exigido a Philip que se revelasse em toda a sua estatura, física e mental. A partida foi efectuada com uma dignidade que ele não sonhara conseguir e, ao encontrar Corbière frente a frente no corredor, indicou-lhe efectivamente que entrasse, a convite de Dona Emma, com muita delicadeza e amabilidade, ao mesmo tempo que no íntimo o ciúme o queimava. Ivo agradeceu-lhe com simpatia e, embora o olhasse dos pés à cabeça, fê-lo com interesse e respeito, e sem aparentemente recordar tê-lo alguma vez visto em circunstâncias menos aceitáveis.

Ninguém teria suspeitado, pensou Philip, marchando para o pátio ensolarado, que um sapateiro e um senhor da terra se haviam acabado de cruzar. “Bom, ele pode ter diversos domínios em Cheshire e um em Shropshire, ser parente distante do conde Ranulf, e bem recebido na sua corte. Mas eu tenho algo que posso tentar fazer por ela, tenho um mister tão honroso como o nobre sangue dele e, se for bem sucedido, quer ela venha até mim quer não, ela nunca me esquecerá.”

O irmão Cadfael entrou pela portaria depois de umas horas de buscas infrutíferas pela feira e pela margem. Entre centenas de homens ocupados nos seus assuntos, a procura de uma manga rasgada, ou com remendo recente e apressado, é muito parecida com a de uma agulha num palheiro. O seu problema era não saber doutra maneira de proceder. Além disso, o tempo quente continuava e a maior parte dos que andavam pelas ruas e nas bancas faziam-no em mangas de camisa. Havia aí um ponto a considerar, reflectiu. O punhal do luveiro extraíra sangue, portanto chegara à pele, mas nenhum fio de linho branco ou cru viera agarrado à tira de pano castanho. Se o intruso tivesse camisa vestida, teria as mangas arregaçadas, pelo que ela não sofrera qualquer dano e podia agora tapar o arranhão ou, se a ferida o exigisse, a ligadura. Cadfael voltava para tratar das poucas coisas para as quais era necessária a sua presença no laboratório e para estar a postos para Vésperas a tempo, mais por não saber como prosseguir do que por qualquer outra razão. Um interlúdio de calma e meditação poderia proporcionar-lhe novas ideias.

No pátio, o seu caminho em direcção ao jardim cruzou o de Philip, que seguia da hospedaria para a portaria. Imerso nos seus próprios pensamentos, o jovem quase passava sem reparar, mas de repente deteve-se e virou-se para olhar para trás:

- Irmão Cadfael! - Este rodou sobre os calcanhares para o encarar, tendo sido arrancado a uma preocupação igualmente profunda. - É o senhor! - exclamou Philip. - Foi o irmão que me defendeu, depois de Emma, na audiência do alcaide. E reconheci-vos então como o que me tinha ido ajudar a pôr em pé e escapar, quando os sargentos puseram termo à luta no cais. Não cheguei a ter a oportunidade de lhe agradecer, irmão, mas faço-o agora.

- Temo que a minha acção não tenha servido para toda a noite - comentou Cadfael com amarga ironia, contemplando o jovem espigado com olhar atento, e aprovando o que via. Quer fosse com o tempo gasto em introspecção na cadeia, quer, ainda mais salutarmente, a pensar em Emma, Philip crescera muito em muito pouco tempo. - Gosto de te ver outra vez entre nós, e nada pior.

- Ainda não estou ilibado - informou Philip. - A acusação continua de pé, mesmo a de homicídio não foi retirada.

- Então está coxa - afirmou Cadfael calorosamente - e pode cair a qualquer momento. Não ouviste que houve outra morte?

- Disseram-me, e mais violência, também. Mas com certeza que esta última não tem relação com as restantes? Até ela, tudo era maldade contra mestre Thomas. Este homem era um estranho, e de Chester. - Pousou ansiosamente a mão na manga de Cadfael. - Irmão, dispense-me uns minutos. Eu não estava bem consciente naquela noite, agora preciso de saber... tudo o que fiz, tudo o que me foi feito. Quero reconstituir todos os minutos de um serão que por mim mal consigo distinguir.

- E não admira, depois daquela pancada na cabeça. Vem sentar-te no jardim, lá temos sossego. - Levou o jovem pelo braço, indicou-lhe o caminho pela arcada que cortava a sebe entrelaçada e sentou-o no mesmo banco em que Emma e Ivo tinham estado juntos na véspera, o que Philip ignorava. - Ora então que tens em mente? Não me admira que a tua memória esteja toldada. Tens aí um bom e sólido crânio, e felizmente que também uma espessa cabeleira, de contrário terias sido retirado numa tábua.

Philip franziu-se na dúvida, fitando a distância, por entre as rosas, hesitou sobre quanto havia de dizer e quanto guardar penosamente para si próprio, encontrou o olhar confortavelmente paciente do irmão Cadfael e saiu-se com:

- Vinha agora mesmo de junto de Emma. Sei que está sob melhor protecção do que eu lhe poderia proporcionar, mas descobri uma coisa, pelo menos, que ainda pode ser feita por ela. Ela quer e precisa de ver o homem que lhe matou o tio entregue à justiça. E eu pretendo encontrá-lo.

- Também o alcaide, também todos os seus homens - disse Cadfael -, mas até agora tiveram pouco êxito. - No entanto, não falou com desaprovação ou desencorajamento, antes muito pensativamente. - Também eu, já agora, mas não tenho tido melhores resultados. Mais um espírito a sondar a questão até pode ser o espírito que descubra a verdade. Por que não? Mas como irás proceder?

- Bom, se conseguir provar, provar!, que não fui eu, talvez também depare com alguma coisa que me conduza ao homem que o fez. Pelo menos posso começar por tentar seguir o que me aconteceu naquela noite. Não só para minha própria defesa - afirmou com convicção -, mas porque me parece que dei cobertura ao acto pelo que tinha começado e quem quer que o praticou pode ter-me tido em mente, e à minha rixa, agradando-lhe a abertura que lhe proporcionei, por saber que, quando o homicídio surgisse da noite, o primeiro nome que ocorreria aos espíritos seria o meu. Portanto, quem quer que possa ser, deve ter seguido as minhas entradas e saídas, de contrário eu não lhe poderia ser útil. Se eu tivesse estado sempre com dez amigos, teria ficado fora de causa, e o alcaide teria começado imediatamente a procurar noutro lado. Mas eu estava embriagado, mal disposto e isolei-me durante muito tempo ao pé do rio, até aí sei. Tempo suficiente para poder ser verdade. E o assassino soube-o.

Está bem pensado - concordou Cadfael aprovadoramente.

- Que tencionas então fazer?

- Começar pela beira-rio, onde apanhei a pancada na cabeça, e seguir o meu próprio rasto até esclarecer o que agora não está nada claro. Lembro-me do que aconteceu lá, até o irmão me arrastar para longe do caminho dos homens do alcaide, e depois de ser empurrado entre dois outros, mas as minhas pernas eram manteiga e tinha a mente toldada, e nem sequer me consigo recordar de quem eram. Podia começar por eles, se o irmão os conhecesse.

- Um deles era o jornaleiro de Edric Flesher - informou Cadfael.

- O outro já vi, embora não lhe saiba o nome, é um rapaz grande, robusto, com o dobro da tua largura e o cabelo da cor do linho...

- John Norreys! - Philip fez estalar os dedos. - Parece que me lembro dele mais tarde, já durante a noite. É quanto basta, vou começar por eles e descobrir onde me deixaram e como... ou onde corri com eles, porque o posso ter feito, não era boa companhia para ninguém. - Levantou-se, pendurando o gibão num ombro. - Vou desenredar a meada de toda essa noite, se puder.

- Bom rapaz! - exclamou Cadfael, calorosamente. - Desejo-te êxito, de todo o meu coração. E se vais seguir o teu caminho por algumas das tabernas da frontaria, como parece que fizeste nessa noite, mantém os olhos abertos em meu benefício, está bem? Se conseguires encontrar o teu assassino, pode ser muito bem que encontres o meu. - Cuidadosa e enfaticamente, disse-lhe o que procurar. - Um braço a erguer uma caneca ou estendido em cima de uma mesa pode mostrar-te o que procuro. A manga esquerda rasgada num comprimento de mão a partir do punho de um gibão castanho-avermelhado, cosido com fio de linho mais claro. Será do lado de dentro do braço. Ou, onde os braços estiverem nus, procura o longo arranhão que a lâmina produziu ao rasgar a manga, ou a ligadura que talvez o cubra se ainda sangrar. Mas, se o encontrares, não o desafies nem lhe digas nada, vem só trazer-me, se puderes, o nome dele e onde o reencontrar.

- Esse foi o assassino do luveiro? - indagou Philip, que seguira os pormenores com graves acenos da sua cabeça morena. - Pensa que possa ser um e o mesmo?

- Se não o mesmo, bem conhecidos um do outro, e ambos no mesmo conluio. Encontrando um, estaremos muito perto do outro.

- Estarei atento, em qualquer caso - garantiu Philip, e afastou-se a passos largos e decididos em direcção à portaria, a fim de iniciar a sua investigação.

 

 

                                                     Capítulo 3

 

Mais tarde, o irmão Cadfael meditou muitas vezes sobre o que se seguiu, interrogando-se sobre se a oração poderá ter até um efeito retrospectivo sobre os acontecimentos, além de influenciar o futuro. O que acontecera já acontecera, mas teria encontrado a mesma situação se não tivesse ido directamente para a igreja, quando Philip o deixou, com o impulso apaixonado de se entregar à oração no caminho dos seus esforços, que lhe pareciam tão improdutivos? Era um problema teológico muito delicado e complexo, nunca, tanto quanto ele sabia, antes levantado ou, se o fora, nenhum teólogo se atrevera a escrever sobre o assunto, provavelmente com medo de ser acusado de heresia.

Não obstante, foi avassalado pela urgente necessidade, visto que perdera alguns ofícios durante o dia, de repor os seus próprios esforços vãos perante olhos que tudo viam e mãos que podiam abrir todas as portas. Escolheu a capela do transepto, da qual o caixão de mestre Thomas fora retirado nessa manhã, com a santidade recuperada pela missa cantada por ele. Tinha agora tempo de se ajoelhar e esperar, tendo-se ocupado até então em esforços ansiosos, como um homem que luta por escalar uma montanha ao mesmo tempo que sabe haver uma força que poderia obrigar a montanha a inclinar-se. Rezou uma oração a pedir paciência e humildade, depois pôs isso de lado e rezou por Emma, pela alma de mestre Thomas, pela criança que deveria nascer a Aline e Hugh, pelo jovem Philip e pelos pais que o haviam recuperado, por todos os que sofriam injustiças e maus tratos, e por vezes esqueciam ter um recurso para além do alcaide.

Então era mais que tempo de se erguer de sobre os joelhos e ir dedicar-se ao seu principal dever, ali, por muito que questões mais violentas reclamassem a sua atenção. Supervisionava o herbário e a manufactura dele decorrente havia dezasseis anos, e confiava-se nos seus remédios muito para além dos muros da abadia; e, apesar de o irmão Mark ser o mais dedicado e menos queixoso dos ajudantes, era indelicado deixá-lo por tão longo tempo com tanta responsabilidade. Cadfael apressou-se em direcção ao laboratório, com o coração mais leve por ter transferido as suas preocupações para ombros mais largos, tal como o irmão Mark ficaria feliz por fazer à chegada do seu patrono.

A pesada fragrância do prado pairava por sobre toda a terra circundante, depois de tantas horas de sol e calor, como uma bênção particular, dirigida aos sentidos e não à alma. Sob os beirais do laboratório, os ramos de folhas penduradas a secar oscilavam produzindo sons graves e agudos, como ninhos de pássaros a piarem, por acção de ondas de ar quente, a que mal se poderia chamar vento. As próprias madeiras da cabana, oleadas para não estalarem, respiravam calor perfumado.

- Acabei de preparar o bálsamo para úlceras - disse o irmão Mark, fazendo o relatório devido e com a consciência feliz de ter produzido bom trabalho. - E colhi todas as papoilas que estavam maduras, mas ainda não lhes retirei as sementes, pensei que deviam secar ao sol por mais um dia ou dois.

Cadfael comprimiu uma das cabeças entre os dedos e cumprimentou-o por ter ajuizado bem:

- E a água de angélica para a enfermaria?

- O irmão Edmund mandou buscá-la há meia hora. Tinha-a pronta. E tive um doente - contou o irmão Mark, ocupado a arrumar numa prateleira os pratinhos de barro que usava para escolher sementes -, mais cedo, pouco depois do jantar. Um cavalariço com um braço rasgado. Disse que tinha sido por um prego nos estábulos, a tirar uma sela para baixo, embora a mim parecesse um golpe com lâmina. Não estava nada limpo, limpei-lho e tratei-o com o seu unguento de amor de hortelão. Ontem à noite estiveram a jogar aos dados lá em cima no sótão, atrevo-me a supor que tivesse chegado a briga e que alguém o atingisse. Dificilmente o admitiria. - O irmão Mark sacudiu as mãos e virou-se com um sorriso para anunciar o fim da sua intendência. - E é tudo. Uma tarde calma, não precisava de se ter preocupado. - À vista da cara de Cadfael, as suas sobrancelhas ergueram-se comicamente e perguntou surpreendido: - Por que está assim de olhos fixos? Com certeza não houve nada naquilo que eu disse que o fizesse abri-los assim tanto!

“E à boca também”, pensou Cadfael, e fechou-a enquanto reflectia na estranheza do esforço humano e nas súbitas recompensas que recaem sobre quem as não merece. Talvez não naquele caso, uma vez que recaíra sobre o irmão Mark, cuja humildade não fazia quaisquer exigências.

- Qual dos braços estava rasgado? - quis saber, intrigando ainda mais o irmão Mark, que naturalmente não podia imaginar por que razão isso era importante.

- O esquerdo. Daqui, do extremo do pulso, pelo lado de dentro do antebraço. Quase até ao cotovelo. Porquê?

- Tinha o gibão vestido?

- Não quando o vi - disse Mark, sorrindo perante o absurdo daquele interrogatório. - Mas tinha-o por cima do braço são. Isso é importante?

- Mais do que possas pensar! Mas saberás, mais tarde, não estou a brincar contigo. De que cor era o gibão? E viste a manga que devia tapar o braço ferido?

- Vi. Ofereci-me para lha coser... tinha pouco que fazer na altura. Mas ele disse que já a tinha remendado, e era verdade, muito toscamente, e com linha preta. Eu podia tê-lo feito melhor; o original era de fio de linho cru. A cor? Castanho-encarniçado, muito semelhante ao que é usado pela maior parte dos cavalariços e homens de armas, mas de bom pano.

- Conhecias o homem? Não era nenhum dos nossos próprios servidores da abadia?

- Não, era homem de um dos hóspedes - respondeu o irmão Mark, paciente na sua estupefacção. - “Nem uma palavra ao seu senhor!”, disse ele. Era um dos cavalariços de Ivo Corbière, o mais velho, o tipo grosseiro e de barba.

O próprio Gilbert Prestcote, sem escolta e a pé, dera durante a tarde uma volta pelo terreno da feira, para verificar a paz pública com os seus próprios olhos, e estava no pátio da abadia, prestes a regressar ao burgo mas entretanto conferenciando com Hugh Beringar, quando Cadfael chegou apressadamente do jardim com as suas novidades. Quando terminou a sua simples narrativa, eles olharam-no, e um ao outro, com expressões vazias e circunspectas.

- Neste momento Corbière está lá dentro - informou Hugh - e, pelo que Aline me contou, está lá há mais de uma hora. Emma tem-no encantado, duvido que ele tenha pensado noutra coisa nestes dois últimos dias. Os seus homens têm andado à vontade, fazendo o que lhes apetece, desde que o trabalho apareça. Pode ser esse o responsável.

- O seu senhor tem o direito de ser informado - afirmou Prestcote. - A negligência invade as casas quando se está num país dividido e os senhores desprezam a lei. Nada foi dito ou feito que possa alarmar esse tipo, presumo. Ele não tem qualquer razão para tentar seja o que for, não é verdade? E com certeza tem em grande conta a protecção de um nome como Corbière.

- Nada foi dito a não ser a vós - garantiu Cadfael. - E o homem pode ter contado a verdade.

- O pedaço de pano - informou Hugh - tenho-o eu aqui. Deve ser possível verificar se é do mesmo gibão ou não.

- Peça a Corbière que venha aqui - disse o alcaide.

Hugh foi, ele próprio, uma vez que Ivo era visitado nos seus apartamentos. Enquanto esperavam num silêncio de tensão, dois dos homens de armas da abadia entraram pela portaria com os arcos distendidos, e Turstan Fowler no meio com a sua besta, todos três corados, bem dispostos e nas melhores relações. No último dia da feira costumava haver concursos de muitas espécies, de luta, de tiro ao alvo nos prados ribeirinhos, em que os arcos competiam com as bestas, embora aqueles fossem habitualmente os de Gales, disparados junto do peito e não das orelhas. A arma de metro e oitenta era conhecida, mas uma raridade. Também havia corridas, e justas na esplanada do castelo. O comércio e o desporto eram bons companheiros, e proporcionavam bons lucros especialmente às tabernas, onde os vencedores depressa se separavam dos seus ganhos e os vencidos se consolavam das perdas.

Aqueles três estavam embrenhados numa discussão amigável, trocando graçolas pelo meio; cada um parecia estar a louvar os méritos da sua própria arma. Não tinham percorrido mais de metade do pátio quando Hugh surgiu da hospedaria com Ivo ao seu lado. Este viu o seu arqueiro a atravessar em direcção aos estábulos e fez-lhe um sinal imperioso para que se detivesse.

As funções de Turstan não tinham deixado de ser desempenhadas escrupulosamente desde a sua desastrosa queda em desgraça logo no primeiro serão; sendo-lhe indicado que permanecesse a distância de poder ser chamado, obedeceu sem tergiversar e continuou a divertir-se com os seus rivais. Devia ter-se saído bem no tiro, pois pareciam estar a discutir a besta, e ele colocou um pé no estribo metálico e puxou a corda para a posição de alerta, demonstrando-lhes que pouco perdia em velocidade relativamente às suas armas instantâneas. Sem dúvida a disputa entre velocidade e alcance prosseguiria enquanto ambas as armas sobrevivessem. Cadfael manuseara-as a ambas no seu tempo, assim como o arco oriental, a espada e a lança de cavaleiro. Mesmo naquele grave momento não deixou de deitar um prolongado olhar de lado para a amigável argumentação que se desenrolava a uma vintena de passos de distância.

Então Ivo chegou junto deles, mas abalado nas suas habituais confiança e graça. O rosto estava tenso, os olhos escuros, grandes e interrogativos, sob as sobrancelhas douradas orgulhosamente erguidas e os caracóis louros que tudo sobrepujavam:

- O senhor deseja falar comigo? Hugh não foi específico, mas presumi que se tratava de uma questão urgente.

- É uma questão que se refere a um dos seus homens - esclareceu o alcaide.

- Um dos meus homens? - Abanou duvidosamente a cabeça e mordeu o lábio. - Não sei de nada... Não desde que Turstan se embriagou até nem dar acordo de si, e desde então tem-se penitenciado e permanecido aqui perto; mesmo nessa altura, não prejudicou mais ninguém a não ser ele próprio, o bronco. Mas todos têm autorização para sair, uma vez feito o seu trabalho. A feira é um prazer para toda a gente. Que se passou de mal com os meus homens?

Competia ao alcaide pô-lo ao corrente. Ivo empalideceu, visivelmente, enquanto escutava, com o seu róseo bronzeado a tornar-se amarelo.

- Então, o meu homem é suspeito do homicídio por que eu dei de passagem... Santo Deus, hoje mesmo, de manhã! Para que saibam, o seu nome é Ewald, vem de um domínio em Cheshire e os seus antepassados eram do Norte, mas nunca antes tinha demonstrado más tendências, apesar de ser um homem moroso e fazer poucos amigos. Isto custa-me muito. Fui eu que o trouxe para cá.

- Pode resolver o assunto - disse Prestcote.

- Pois posso. - A boca contraiu-se-lhe. - E é o que farei! Tinha marcado mais ou menos esta hora para cavalgar, o meu cavalo tem tido muito pouco exercício aqui, e amanhã transportar-me-á na viagem de regresso. Ewald é o cavalariço que trata dele. Por esta altura deve estar no estábulo a pôr-lhe a sela. Querem que o mande chamar? Deve estar à espera de ser chamado. Não! – Interrompeu a sua própria oferta, contraindo o cenho. - Não o vou mandar chamar, vou eu próprio buscá-lo. Se enviasse Turstan, que está ali, poderia suspeitar-se de que um servo se pusesse ao lado de outro servo e o avisasse. Não vos parece que ele nos tem estado a observar durante este tempo? E este colóquio não tem o aspecto de simples conversa entre nós, pois não?

Decerto que não. Turstan, a fazer oscilar a besta em riste, perdera o interesse em esclarecer os seus rivais, e estes, sentindo que se estava a passar algo que lhes não dizia respeito, estavam a afastar-se, embora deitando discretos olhares para trás até desaparecerem no pátio da granja.

- Vou eu próprio - decidiu Ivo, e afastou-se a passos largos em direcção às cavalariças. Turstan, hesitante, deixou-o passar, pois não lhe foi dirigida qualquer palavra dita de passagem, mas depois voltou-se e apressou-se a segui-lo, interrogando-o ansiosamente. Fê-lo por breve espaço, e eles viram Ivo virar a cabeça e atirar-lhe ordens apressadas. Parecendo ter sido objecto de uma reprimenda, Turstan recuou e voltou para trás, em direcção à portaria, sem saber que fazer.

Passaram uns minutos antes de ouvirem o ruído vivo de cascos ressoando nas pedras do pátio, com leveza e vivacidade. Então, o baio alto e escuro, com o brilho do cobre e nervoso por falta de movimento, surgiu a caracolear o cavalariço robusto e barbudo a segurar-lhe as rédeas, precedido por Ivo a cerca de um metro de distância.

- Aqui está o meu homem, Ewald - disse ele concisamente, e recuou, notando que Cadfael se postava entre eles e o portão aberto. Turstan Fowler aproximou-se discretamente, centímetro a centímetro, e em silêncio, os olhos atentos e passeando de um rosto para outro à procura de compreensão. Ewald manteve-se a segurar as rédeas, os olhos inseguros a semicerrarem-se perante a expressão nada reveladora de Prestcote. Quando o cavalo, ansioso por acção, se remexeu e abanou a cabeça, o criado estendeu a mão esquerda até ao outro lado para segurar as rédeas e fez deslizar a direita até ao pescoço brilhante, acarinhando-o por rotina, mas sem, por um instante, alterar o foco do seu olhar.

- O meu senhor diz que Vossa Senhoria tem uma coisa para me perguntar - disse em voz lenta e ressentida.

Sob o antebraço esquerdo era claramente visível o remendo na manga, com o tecido repuxado entre grandes pontos, e a ponta do fio de linho tremulava ao sol e à brisa como um mosquito a dançar.

- Dispa o gibão - ordenou o alcaide. E, como o homem ficasse de boca aberta de espanto, verdadeiro ou fingido, intimou: - Nada de palavras! Faça o que lhe digo!

Lentamente, Ewald esgueirou-se para fora do gibão, desajeitadamente, porque tinha dificuldade em manter as rédeas agarradas. O cavalo sentia que lhe fora prometido ar e exercício, e esforçava-se por atingir o portão, caminho para o que desejava. Já fizera mover todo o grupo, à excepção de Cadfael, que permanecia mudo e à parte, um pouco mais perto da saída.

- Levante a manga. A esquerda.

O homem deitou em redor um olhar selvagem, depois baixou a cabeça como um touro, contraiu os maxilares e fez o que lhe mandavam, com o braço direito a passar pelas rédeas, enquanto enrolava o rude tecido caseiro até ao cotovelo. O irmão Mark tinha ligado a ferida com uma tira de linho limpo sobre o curativo. A própria limpeza da ligadura era ofuscante.

- Feriu-se, Ewald? - indagou Prestcote, calmo e sério.

“É agora a oportunidade”, pensou Cadfael, “se tiver inteligência suficientemente rápida, de mudar a história, afirmando que recebeu uma facada numa simples rixa, mas que contou uma mentira ao irmão Mark para encobrir a sua loucura.” Mas não, o homem não parou para pensar; tinha a sua história e confiava que ela ainda o poderia proteger. Contudo, se Mark, ao tratar da ferida, distinguira um golpe de um rasgão, o mesmo ocorreu a Gilbert Prestcote a um simples relance.

- Aconteceu num prego dos estábulos, meu senhor, ao tirar a sela para baixo.

- Rasgando ao mesmo tempo a manga? Era um prego muito saído, Ewald. O tecido que usa é forte. - Virou-se abruptamente para Hugh Beringar: - Tem a tira de pano?

Hugh retirou da bolsa um bocado de pergaminho dobrado e abriu-o para revelar a insignificante tira de tecido, que mais parecia uma erva seca, dobrada pelas fibras a apodrecer na ponta. Só a oscilante gavinha de fio de linho mostrava o que realmente era, mas foi o suficiente. Ewald recuou um passo, tão vivamente que o cavalo se afastou uns metros em direcção à entrada, e ele teve de se voltar e usar ambas as mãos para dominar e acalmar o animal. Ivo foi obrigado a saltar apressadamente para trás, a fim de evitar os cascos dançantes.

- Passe para cá o seu gibão - ordenou Prestcote, quando o baio ficou de novo acalmado e disposto a permanecer parado, embora com relutância.

O cavalariço desviou o olhar do minúsculo objecto que reconhecera para o rosto calmo mas inflexível do alcaide, hesitou por apenas um momento e logo fez o que lhe era mandado, com efeitos violentos. Levou o braço atrás para adquirir impulso, atirou-lhes o pesado gibão à cara, e num salto ficou em cima do baio na sela. Ambos os calcanhares penetraram nos lados lustrosos, e um grande grito sobre as orelhas em riste fez que o cavalo se precipitasse como uma lança atirada através da portaria.

Não havia mais ninguém no caminho a não ser Ivo. O cavalariço dirigiu o baio para ele, em linha recta. O jovem pulou para o lado, mas deu um salto de tigre para agarrar as rédeas, quando o cavalo passou a galope, e conseguiu-o, sendo arrastado por um momento, até que o servo o pontapeou maldosamente, quebrando a fraca prisão e atirando Ivo para fora do caminho de tal modo que ele caiu pesadamente e rolou sob os pés do alcaide e de Hugh, que entretanto se precipitavam atrás do fugitivo. Saindo o portão e rodando para a direita, Ewald seguiu em galope frenético pela frontaria, e não havia ninguém montado em condições de lhe mover perseguição, nem desta vez o alcaide tinha escolta ou arqueiros.

Mas Ivo Corbière tinha. Turstan Fowler correra para o ajudar a pôr-se em pé, mas Ivo acenou-lhe que saísse para a rua e, erguendo-se do chão, sem fôlego e com o rosto arranhado e furioso, seguiu-o a coxear. O pequeno grupo ficou no meio da estrada, impotente, sem poder persegui-lo. Ele matara, mas escaparia e, a algumas milhas de Shrewbury, poderia desaparecer na floresta ficando em segurança, uma raposa no seu covil.

Em voz meio abafada de raiva, Ivo exclamou:

- Deita-o abaixo!

A besta de Turstan continuava armada e a postos, e Turstan estava habituado a cumprir imediatamente as suas ordens. A seta estava fora do seu cinto, colocada e solta num instante, o ruído e vibração do seu voo fez que as cabeças se virassem e baixassem e as mulheres gritassem ao longo da frontaria.

Ewald, que ia muito inclinado sobre o pescoço do cavalo, agitou-se súbita e violentamente, e endireitou-se, atirando a cabeça para cima. As mãos afrouxaram o domínio das rédeas e os braços penderam-lhe para ambos os lados. Pareceu ficar por um momento suspenso no ar, depois oscilou pesadamente para um lado e escorregou lentamente da sela. O baio, surpreendido e chocado, continuou a correr loucamente, espalhando os assustados vendedores e compradores de ambos os lados, mas o seu galope era agora incerto, e ele estava confuso por tão repentina leveza. Não iria longe. Alguém o deteria, acalmaria e levaria de regresso.

Quanto ao cavalariço Ewald, estava morto antes mesmo de o primeiro dos horrorizados comerciantes chegar junto dele, morto, provavelmente, antes mesmo de tocar o chão.

 

 

                                               Capítulo 4

 

- Era meu vilão - dizia Ivo energicamente, na sala da portaria para onde tinham levado o corpo e onde o tinham depositado -, e eu gozo do poder de justiça privada sobre os meus, e este era réu de morte. Não preciso de argumentos de defesa, nem para mim próprio nem para o meu arqueiro, que nada mais fez que obedecer à minha ordem. Agora já todos vimos que a ferida deste homem não é rasgão de prego mas sim golpe de adaga, e o pedaço de pano que tiraste da lâmina do luveiro corresponde, sem dúvida, a esta manga. Alguém tem dúvidas no espírito de que ele era um assassino?

Ninguém tinha. Cadfael estava lá com eles na sala, por insistência de Hugh, e não tinha qualquer dúvida. Aquele era o homem que Euan of Shotwick marcara, antes de ele próprio morrer. Além disso, tinham sido encontrados dinheiro e algumas mercadorias de Euan of Shotwick entre os parcos haveres que Ewald abandonara na fuga; o seu alforge continha uma bolsa de bom cabedal cheia de moedas e dois pares de luvas de senhora, talvez prendas para a esposa ou irmã. Aquele era indubitavelmente um assassino. Era evidente que Turstan, que o abatera, não se considerava nada de semelhante, o que também não aconteceria a qualquer dos arqueiros de Prestcote que tivesse recebido ordem de disparar. Turstan encarara impassivelmente toda a questão, como não tendo nada com ela para além do dever para com o seu senhor, e fora cear com apetite imperturbável.

- Fui eu que o trouxe para cá - dizia Ivo amargamente, limpando manchas de sangue da face arranhada. - Ele ofendeu a minha honra, tanto quanto a lei do país. Tinha o direito de me vingar.

- Não vale a pena preocupar-se - garantiu-lhe Prestcote concisamente. - Poupou ao condado um julgamento e um enforcamento, o que é benéfico, e não sei se o próprio desgraçado não preferiria esta saída. Foi um tiro formidável, e esse seu homem é bem valioso. Nunca pensei que se pudesse ser tão preciso àquela distância.

Ivo encolheu os ombros.

- Eu conhecia a qualidade de Turstan, de contrário não teria dito o que disse, pois poria em risco quer o meu cavalo quer qualquer uma das centenas de pessoas que andavam a tratar inofensivamente dos seus assuntos na frontaria. Não posso dizer que esperava a morte...

- Só há uma razão para lamentar - interrompeu o alcaide. Se ele teve cúmplices, agora já não pode ser obrigado a denunciá-los. E você diz, Beringar, que eram provavelmente dois?

- Não duvida, espero - disse Ivo -, que nem Turstan nem o meu jovem servo Arald participaram com ele nestes roubos!?

Ambos tinham sido interrogados, ele insistira nisso. Turstan constituíra um modelo de virtude desde a sua única queda, o mais novo era um rapaz do campo de cara límpida, e ambos tinham feito amigos entre os outros servos, sendo benquistos. Ewald fora moroso e taciturno, e mantivera-se à parte, pelo que a revelação da sua vileza não surpreendeu grandemente os seus companheiros.

- Ainda há a questão dos outros crimes. Que lhe parece? Terá sido este o autor de todos?

- Não consigo tirar da ideia - disse Hugh lentamente - que a morte de mestre Thomas foi obra de um só homem. E, sem razão ou prova, por simples intuição, não acredito que fosse este. Quanto ao resto... não sei! Dois, disse o vigia do mercador, mas não tenho a certeza de ele não ter aumentado o número para desculpar a sua própria falta de coragem... ou o seu bom senso, conforme se encarar a questão. Só um, por certo, entraria na barcaça em plena luz do dia, sem dúvida à pressa, como se lá fosse fazer algo, buscar ou entregar qualquer coisa. Onde houve dois, este foi decerto um deles. Quanto à identidade do outro, continuamos às escuras.

Depois do ofício de Completas, Cadfael foi relatar ao abade Radulfus tudo o que sucedera. O alcaide já fizera a necessária visita de cortesia para informar o abade, mas, apesar disso, Radulfus contaria que o seu próprio observador acreditado lhe levasse outro ponto de vista, mais preocupado com a reputação e os padrões de um mosteiro beneditino. Numa ordem que considerava a moderação em todas as coisas como o terreno da santidade, estavam a acontecer coisas imoderadas.

Radulfus escutou tudo num silêncio contido, e era impossível descobrir pela sua expressão se deplorava ou aprovava tão sumária justiça.

- A violência nunca pode ser senão feia - comentou pensativamente -, mas vivemos num mundo tão feio e violento quanto belo e bom. Acima de tudo, duas coisas me preocupam, e uma delas pode parecer-lhe, irmão, trivial. Esta morte, o derramamento deste sangue teve lugar fora dos nossos muros. Por isso, estou grato. O irmão viveu tanto dentro como fora, o que deve ser aceite e suportado é para si o mesmo, dentro ou fora. Mas há aqui muitos que não têm os seus conhecimentos, e por eles, e pela paz que lutamos por preservar aqui como refúgio para outros além de nós, a santidade deste lugar fica melhor se não for manchada. E a segunda coisa importar-lhe-á tão profundamente a si como a mim: esse homem era culpado? Há a certeza de ele próprio ter assassinado?

- Há - garantiu o irmão Cadfael, escolhendo as palavras com cuidado -, há a certeza de que esteve envolvido no assassínio, com toda a probabilidade pelo menos com um outro homem.

- Então, por mais dura que tenha sido, foi feita justiça. - Apercebeu-se do peso de silêncio de Cadfael e ergueu vivamente o olhar. - Não está satisfeito com essa interpretação?

- Com a interpretação de que o homem tomou parte no assassínio, sim, estou satisfeito. As provas são claras. Mas que é a justiça? Se foram dois, e um suportou tudo, e o outro vai em paz, isso é justiça? Tenho no meu íntimo a certeza de que há mais, mais que ainda não conhecemos.

- E amanhã toda esta gente vai partir para os seus negócios, para as suas casas e lojas, onde quer que sejam. O culpado e os inocentes em igualdade de circunstâncias. Não pode ser essa a vontade de Deus - disse o abade, e meditou um pouco em silêncio. - Todavia, pode ser a vontade de Deus que o assunto deixe de estar nas nossas mãos. Continue a sua vigilância, irmão, até ao dia de amanhã. Depois disso, outros, algures, terão de suportar o fardo.

O irmão Mark estava sentado na beira do catre, na sua cela do dormitório, os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça nas mãos, e sentia-se triste. Desde criança que tivera uma vida dura, as privações, a brutalidade e o sofrimento eram seus conhecidos como companheiros íntimos até chegar àquele retiro, a princípio de má vontade. Mas a morte era demasiado monstruosa e negra para ele, surgindo assim, instantânea, no terror, e sem a possibilidade de salvação. Viver maltratado, mal alimentado, sem descanso no trabalho, não deixava de ser vida, com um céu por cima, e árvores, flores e pássaros em redor, e cores, estações, beleza. A vida, mesmo assim vivida, era amiga. A morte era estranha.

- Criança, ela está sempre connosco - disse Cadfael, com paciência, ao seu lado. - No Verão passado, noventa e cinco homens morreram aqui no burgo, e nenhum deles tinha assassinado. Por terem escolhido o lado errado, morreram. Ela recai sobre mulheres inocentes, na guerra, e mesmo em paz, às mãos de homens maldosos. Recai sobre crianças, que nunca fizeram mal a ninguém, sobre velhos que nas suas vidas fizeram o bem a muitos, e no entanto todos são brutal e insensivelmente assassinados. Nunca deixes que isso abale a tua fé num juízo para além da morte. O que vês é apenas um pedaço imperfeito de um todo perfeito.

- Eu sei - disse o irmão Mark por entre os dentes, fiel mas inconformado. - Mas ser ceifado sem julgamento...

- O mesmo aconteceu a noventa e quatro do ano passado - informou Cadfael, suavemente -, e o nonagésimo quinto foi assassinado. A justiça a que assistimos também não é mais que um caco. Mas é nosso dever preservar o que pudermos, repor o que encontrarmos e confiar no resto.

- E sem se ter confessado! - exclamou o irmão Mark.

- O mesmo aconteceu à sua vítima, que não tinha roubado nem morto, ou, se o tinha, só Deus o sabe. Há muitos homens que passaram esse portão sem salvo-conduto e chegarão ao Céu à frente de alguns que foram escoltados pela absolvição e cerimonial e tinham os seus assuntos em ordem. Reis e príncipes da Igreja podem encontrar pastores e servos a precederem-nos, e alguns que reclamam ter feito muito bem podem ter de dar lugar a pobres diabos que fizeram mal, o reconheceram e tentaram remediá-lo.

O irmão Mark estava sentado a escutar, e pelo menos começou a ouvir. Humildemente, reconheceu e admitiu o verdadeiro âmago da sua queixa:

- Tinha o braço dele entre as minhas mãos, vi-o estremecer quando lhe limpei a ferida, e senti a sua dor. Era uma pequena dor, mas senti-a. Tive satisfação em ajudá-lo, foi um prazer untar-lhe a ferida com bálsamo, pôr-lhe uma ligadura limpa e saber que ele ficava aliviado. E agora está morto, trespassado por um tiro de besta... - Rápida e iradamente, o irmão Mark afastou as lágrimas e descobriu o rosto acusador. - Qual é a utilidade de recompor um homem, se ele é para ser quebrado poucas horas depois, para além de toda a recomposição?

- Estávamos a falar de almas - comentou Cadfael, docemente -, não de simples corpos. E quem sabe se o teu toque com unguento e linho não recompôs para melhor efeito a que dura mais? Nenhuma seta trespassa a alma. Mas pode haver bálsamo para esta.

 

 

                                                           Capítulo 5

 

Obstinado em reconstituir o seu itinerário daquela noite, Philip descobrira finalmente o seu amigo John Norreys na carreira de tiro junto ao rio, onde os jovens arqueiros do burgo se exercitavam, e juntos foram buscar o jornaleiro de Edric Flesher ao pátio por detrás da loja do patrão. A odisseia de Philip na véspera da feira começara com estes dois, para cujos braços fora atirado pelo irmão Cadfael quando os homens do alcaide desciam para Gaye. Pelo relato que fizeram, tinham-no arrastado para longe através dos pomares e caminhos estreitos que ficavam por detrás da frontaria, evitando a estrada, sentando-o na primeira tenda que vendia bebidas, para recuperar os sentidos confusos. E tinham-no achado muito ingrato, assim que começara a passar o choque da pancada na cabeça, e as pernas a tremerem menos sob o seu corpo. Furioso consigo próprio, virara o seu mau humor contra eles, resmungando, afirmou John com tolerância, que era capaz de olhar por si e que era melhor eles irem avisar alguns dos outros valentes que se tinham precipitado pela frontaria a derrubar bancas e a espalhar mercadorias, antes que os guardas os apanhassem. Não tinham perdido a boa disposição, por saberem que por essa altura já a cabeça dele devia doer fortemente, e haviam-no seguido durante algum tempo a discreta distância, enquanto ele avançava aos tropeções pelo terreno da feira, até que se voltara e os mandara embora. Tinham ficado a observá-lo, acabando por encolher os ombros e deixá-lo entregue a si próprio, já que não queria nada com eles.

- Dominavas outra vez as pernas - comentou John razoavelmente - e, como não nos deixavas fazer nada por ti, pensámos ser melhor deixar-te à vontade. Sozinho, não irias longe, mas, se te seguíssemos, podias fazer algum disparate, só para contrariares.

- Havia outro tipo a seguir-te com certa ansiedade - informou o talhante, recordando-se -, desde que saímos contigo da tenda. Saiu atrás de nós e seguiu pelo mesmo caminho que tu. Deve ter pensado que já estavas a cair de bêbedo e podias precisar de auxílio para chegar a casa.

- Que simpático - exclamou Philip, retesando-se indignadamente e querendo dizer que fora uma intrusão danada de quem quer que fosse. - Isso seria a que horas? Antes das oito?

- Quase. Pouco depois ouvi o sino para Completas, por cima do muro. É curioso como se sobrepõe a toda a agitação intermédia. - E assim era, vindo pelo ar: na frontaria, as pessoas regulavam os seus dias pelo toque dos sinos.

- Quem era esse que me seguia? Conheciam-no?

Eles olharam um para o outro e ergueram os ombros, indiferentes; entre os milhares que se reúnem para uma grande feira, as gentes locais diluem-se.

- Nunca o tinha visto antes. Não era homem de Shrewsbury. Podia não ir de facto atrás de ti, mas sim para o mesmo lado.

Indicaram-lhe o sítio exacto onde ele os tinha deixado, e a direcção que tomara. Philip seguiu propositadamente para o ponto referido, mas, naquele movimentado ajuntamento, que se espalhava a todo o comprimento da frontaria e preenchia todos os espaços abertos para além dela, ele continuava sem mapa. Tudo o que sabia era que antes das nove, segundo a testemunha na audiência do alcaide, estava muito embriagado e ainda a beber mais na taberna de Wat, e a dar vazão a ódio, ofensa e intenção de vingança contra mestre Thomas of Bristol. O intervalo era difícil de preencher. Talvez para lá tivesse ido imediatamente, e já estivesse bem adiantado na bebida quando o estranho reparara nas suas ameaças.

Philip rilhou os dentes e seguiu pela frontaria, tão preocupado com a sua própria busca que não tinha ouvidos para mais nada e não deu pela notícia que passava de boca em boca por toda a feira, com variações imaginativas e embelezamentos consideráveis antes de chegar ao canto mais afastado da feira de cavalos. Já então era notícia com mais de duas horas, mas Philip nada ouvira, com a mente exclusivamente ocupada pelo seu próprio problema. A toda a sua volta as bancas estavam a ser desmontadas em armação e prancha, e as cabinas alugadas a ser fechadas e as chaves entregues aos ecónomos da abadia. Os negócios estavam quase postos de lado, mas o dia ainda não acabara: haveria prazer depois do trabalho.

A estalagem de Walter Renold ficava no canto mais remoto da feira de cavalos, não na estrada de Londres mas sim na outra, muito menos movimentada, que seguia para nordeste. Dava jeito aos camponeses que levavam produtos para o mercado, e estava cheia àquela hora. Foi contrariado que Philip encomendou uma caneca de cerveja mais fraca, por estar naquela busca desesperada, mas as tabernas vivem das vendas, e ao menos ele agora estava tão formidavelmente sóbrio que se podia permitir essa indulgência. O rapazinho que levou a bebida pouco mais era que uma criança e não se lembrava do cabelo eriçado nem do rosto marcado pela varíola. Ele esperou para falar com o próprio Wat, quando houvesse um breve interlúdio de calma.

- Ouvi dizer que te tinham libertado - comentou este, estendendo os braços musculosos por cima da mesa, em frente dele. - Ainda bem. Nunca pensei que fizesses mal, e foi o que lhes disse quando me perguntaram. Quando foi que te puseram cá fora?

- Pouco antes do meio-dia. - Hugh Beringar tinha dito que ele jantaria em casa, e assim acontecera, embora a uma hora mais tarde que o habitual.

- Então ninguém te podia apontar um dedo quanto aos últimos malefícios! Que feira que temos tido! Bom tempo, boas vendas, boa participação por todo o lado e até bom comportamento - afirmou Wat com peso, considerando a sua vasta experiência de feiras. - Mas dois mercadores foram assassinados, o segundo um homem do Norte, encontrado ainda esta manhã com o pescoço quebrado na sua tenda. Deves ter ouvido! Nunca tal coisa nos tinha acontecido! Não são os rapazes de Shrewsbury, disse eu quando me perguntaram, que se metem em tais vilanias, procurem entre os forasteiros vindos dos outros lugares. Nós aqui somos gente decente!

- Sim, eu sei - concordou Philip. - Mas não foi essa morte que me imputaram, foi a primeira, a do mercador de Bristol... - O Norte e o Sul tinham-se encontrado ali, reflectiu ele, fatalmente para ambos. Então por que havia de ser isso? Ambas as vítimas eram estranhos de longes terras, quando alguns dos nascidos aqui se poderiam ter revelado tão aproveitáveis para o assalto...

- Este último mal poderia ser-te atribuído - informou Wat, sorrindo abertamente -, mesmo que te tivessem soltado mais cedo. Já pertence tudo ao passado. Não ouviste contar? Houve grande burburinho na frontaria há umas horas. O assassino foi apanhado com a boca na botija e tentou escapar no cavalo do seu senhor, deitando este ao chão, de caminho. E foi morto como uma árvore atingida por um raio, por ordem do seu senhor. Um tiro de mestre, dizem. O luveiro depressa foi vingado. E não tinhas ouvido nada?

- Nem uma palavra! A última coisa que ouvi foi que procuravam um homem de manga rasgada e ferida no braço. Então quando foi isso? - Parecia que afinal o irmão Cadfael sempre encontrara o seu homem, sem auxílio.

- Devia ter sido menos de uma hora antes de Vésperas. Só ouvi os gritos na extremidade de cá da frontaria. Mas disseram-me que o próprio alcaide lá estava.

Por volta das cinco da tarde, talvez menos de uma hora depois de Philip ter deixado o irmão Cadfael e regressado ao burgo, à procura de John Norreys. Fora uma breve caçada, já não valia a pena ele deitar olhadelas às mangas dos homens, onde quer que fosse.

- E de certeza que apanharam o verdadeiro responsável?

- De certeza! O mercador tinha-o marcado, e dizem que havia mercadorias e dinheiro da banca do luveiro no seu alforge. Um cavalariço chamado Ewald, ouvi dizer...

Portanto, um mero ladrão de ocasião que fora demasiado longe. Nada aí que tivesse que ver com a busca do próprio Philip. Ele estava livre para concentrar uma vez mais o seu espírito, e ainda mais seriamente, na sua própria busca. Começara como um exercício penitencial, mas estava a abandonar gradualmente esse aspecto. Claro que fizera figura de parvo, mas o impulso original que o fizera agir, e levar outros a agir, não fora afinal nenhuma parvoíce nem nada de que devesse envergonhar-se. Só quando isso ruíra à sua volta é que ele deitara o bom senso às urtigas e dera vazão à sua infelicidade como uma criança amuada:

- Ora se eu conseguisse descobrir com a mesma certeza quem foi que matou mestre Thomas...! Foi naquela noite em relação à qual me acusaram de questões graves, e devo confessar que me tornei vulnerável. É óptimo ter sido solto sob fiança do meu pai, mas ainda ninguém disse que estava livre da acusação. Quanto ao resto, pagarei o que for devido, mas quero provar que não cometi qualquer violência contra o mercador. Sei que estive aqui nessa noite... a véspera da feira, lembra-se? Desde que horas? Pessoalmente, não me lembro. Segundo os seus homens, mestre Thomas estava vivo até um terço da hora depois das nove.

- Oh, estiveste cá, sem dúvida! - Wat não podia deixar de sorrir ao recordar-se. - Havia barulho suficiente, estávamos cheios de movimento, mas tu fizeste-te ouvir! Sem ofensa, rapaz, quem não faz de vez em quando figura de parvo quando está com os copos? Não podia ser mais de oito e um quarto quando entraste, e duvido que até então tivesses bebido muito.

Só um quarto de hora depois de Completas - portanto devia ter ido directamente para ali, assim que se desembaraçara dos amigos. Não directamente, talvez não fosse a palavra mais apropriada, mas sim entremeada e inseguramente, embora, pelo tempo que demorara, não tivesse parado em mais alto nenhum pelo caminho. Era uma coisa natural para fazer: apressar-se a ultrapassar o movimento mais denso da feira, pondo tanto terreno quanto possível entre si próprio e os seus solícitos companheiros antes de se deter.

- Sempre te digo uma coisa, rapaz - informou o experiente amavelmente -, se tivesss bebido devagar, tinhas ficado sóbrio. Mas apressaste o processo. Duvido que alguma vez tenha visto um tipo engolir tanto em tão pouco tempo. Não admira que a tua barriga se tenha revelado contra isso.

Não era animador escutá-lo, mas Philip engoliu o comentário sem dar parte de fraco. Era evidente que se comportara tão insensatamente como vinha a temer, e o relato do arqueiro quanto ao seu comportamento não fora nada exagerado.

- E berrrava vingança contra o homem que me atingira? Foi o que disseram de mim.

- Ora bem, eu não iria tão longe como isso, todavia também não está muito longe da verdade. Digamos que não estavas muito meigo para com ele, o que não admira: todos podíamos ver o golpe que te fizera. Arrogante e ganancioso, foi o que lhe chamaste, entre outras coisas de que me não lembro, e, repara nas tuas palavras, não paravas de nos dizer que um orgulho como o seu acarretaria uma queda desastrosa, e muito em breve. Deve ter sido o que tinham em mente os que testemunharam contra ti. Ninguém me disse que ia a essa audiência, cá dos da taberna, só soube depois. Então quem foram esses que testemunharam?

- Foi só um homem - contou-lhe Philip. - Não que o possa censurar, parece que não disse mentiras... de facto nunca pensei que o tivesse feito, sei que nessa noite fui o bobo da corte.

- Ora benza-te Deus, rapaz, com uma mossa na cabeça é natural que um homem se comporte como quem tem uma mossa na cabeça, tem esse direito. Mas quem foi esse homem? Que, com todos os forasteiros que vieram para a feira, tive mais clientes estranhos que conhecidos durante todas estas noites.

- Foi um homem que está ao serviço de um dos hóspedes da abadia - informou Philip. - Turstan Fowler, foi como disseram que se chamava. Disse que esteve aqui a beber e que passou da cerveja ao vinho, e depois a uma aguardente forte... parece que acabou tão embriagado como eu próprio, mais tarde levaram-no sem dar acordo de si e atiraram-no para uma cela da abadia, para aí passar a noite. Um tipo bem constituído, mas mal pronto e despenteado quando o vi na audiência. De uns trinta e cinco anos de idade, calculo eu, queimado pelo sol, com farta cabeleira castanha...

Wat abanou a cabeça, considerando a descrição:

- Não o conheço, pelo menos por aquilo que disseste, apesar de ter uma rara memória para caras, como aliás o dono de uma taberna tem de ter. Ora bem, se é um estranho, não teria qualquer razão para prestar falsos testemunhos, suponho que tivesse sido honesto e atribuído o pior significado aos teus dislates por não te conhecer.

- A que horas é que eu saí de cá? - Philip estremecia à simples recordação dessa partida, súbita e desesperada, com o estômago às voltas e a cabeça à roda e as duas mãos compridas sobre o maxilar significativamente cerrado. Mal tivera tempo de chegar, aos tropeções frenéticos, ao outro lado da estrada e ao bosquezinho que ficava para além dela, onde vomitara até lhe parecer não poder mais, para depois avançar ainda, sempre pelo bosque, até aos prados de Gaye, onde caíra a tremer e a vomitar para a erva, adormecendo depois sob o efeito da embriaguez. Não conseguira sair desse estado antes de horas mortas.

- Ora, fazendo as contas a partir de Completas, diria que passara uma hora, deviam ser umas nove.

Thomas of Bristol saíra da sua cabina para regressar à barcaça apenas cerca de um quarto de hora depois. E alguém, alguém desconhecido, o interceptara no caminho, de punhal na mão. Não admirava que a lei tivesse olhado tão intensamente para Philip Corviser, que tinha uma razão para se ressentir e odiar, e saíra aos tropeções do alcance da vista e do ouvido dos outros homens perto dessa hora, depois de ter dado vazão às suas queixas em voz suficientemente alta para todos ouvirem.

Wat levantou-se para ir servir os clientes, que já eram demasiados para os seus dois auxiliares, e Philip continuou sentado, a meditar, com o queixo sobre o punho fechado. Por essa altura já a maior parte das luzes devia estar apagada ao longo da frontaria. Outra perfumada noite de estio, com o céu a fazer chover fartas bênçãos sobre as receitas da abadia e os lucros do comércio, depois de um Verão perdido na guerra e um Inverno de incertezas. E as muralhas do burgo ainda por reparar, e as ruas tão danificadas!

A porta estava aberta de par em par para o quente e luminoso crepúsculo, e as entradas e saídas eram contínuas. Rapazinhos levavam canecas e picheis para servirem os seus maiores, criadas iam buscar medidas de vinho para os seus patrões, trabalhadores e servos da abadia matavam a sede nos intervalos do trabalho. A Feira de S. Pedro aproximava-se do fim com satisfação e êxito.

Pela porta aberta entrou um jovem de cara fresca, com um óptimo gibão de cabedal e atrás dele um homem robusto e moreno, pelo menos quinze anos mais velho, com a mesma libré de boa qualidade. Philip precisou de olhar longo tempo para reconhecer Turstan Fowler, sóbrio, bem comportado e nas melhores relações com o seu senhor e todo o mundo. Ainda levou mais tempo até reflectir novamente em como ele próprio devia ter aparecido, ébrio, uma vez que a diferença podia ser tão grande. Observou o rapazinho a servi-los. Wat estava ocupado com outros clientes, e a sala achava-se cheia. O fim da feira era sempre altura de muito movimento. Mais um dia e estas mesmas horas custariam a passar, pesadas e escuras.

Philip nunca soube bem por que razão virou a cabeça para o outro lado e ergueu o ombro, para o tornar mais largo e interpor entre si próprio e os homens de Ivo Corbière. Não tinha nada contra qualquer deles, mas não queria ser reconhecido e lamentado, nem cumprimentado por ter sido solto, nem, sob qualquer forma, simpática ou não, ter as atenções gerais voltadas para si. Manteve o ombro levantado, e agradava-lhe que a sala estivesse tão cheia, na sua maior parte de estranhos.

- As feiras são um bom negócio - observou Wat, voltando ao lugar em que estivera e atirando-se para cima do banco com um suspiro de prazer - mas desejaria que as pudéssemos espalhar por todo o resto do ano. Os meus pés não estão a ficar mais novos e não deixei de estar em cima deles por mais de uma hora no total, nos últimos três dias. Que estávamos a dizer?

- Eu estava a tentar descrever-lhe o tipo que testemunhou contra mim dizendo que eu ameaçara vingar-me - lembrou Philip. - Deite um olhar para aquele lado e verá esse mesmo homem. Os dois vestidos de couro que entraram juntos... o mais velho.

Wat deixou vaguear os olhos argutos e observou Turstan Fowler com aparente desinteresse, mas muito sagazmente.

- A arrastar os pés e de orelhas murchas, não era? Agora parece novinho em folha. - Voltou a fitar o rosto de Philip. - É aquele o homem? Lembro-me dele suficientemente bem. É raro esquecer a cara de um homem, mas não tinha possibilidade de saber o seu nome e condição.

- Não podia ter tão bom aspecto naquela noite - disse Philip - uma vez que confessou estar bem bêbedo. Perdeu a consciência duas horas mais tarde, segundo ele próprio contou.

- E disse que tinha bebido tudo aqui? - Os olhos de Wat tinham-se contraído pensativamente.

- Disse: “Onde bebi a mais não poder”, foi o que ele disse. -Bom, deixa-me contar-te uma coisa interessante, meu amigo. - Wat inclinou-se confidencialmente por cima da mesa. - Agora que o vejo, sei como o vi da última vez, pois, se acreditares em mim, tinha uma aparência muito semelhante à de agora. E, o que é mais, agora que sei da ligação entre ele e os teus assuntos, lembro-me de pequenas coisas que aconteceram nessa noite, coisas a que antes não tinha dado a mínima importância, nem tu o terias feito. Esteve aqui duas vezes nessa noite, ou melhor, uma vez esteve à porta, antes de, mais tarde, transpor a soleira. Ficou ali à porta a olhar em torno, uns dez minutos depois de tu teres entrado. Não liguei à espécie de olhar de avaliação que te deitou, pois pareceu-me natural. Nessa altura estavas a dar bem nas vistas. Mas lá que olhou para ti... olhou, mediu-te bem e depois foi-se embora. Quando o voltámos a ver foi meia hora mais tarde: entrou, comprou uma medida de cerveja e uma grande garrafa de forte aguardente-de-genebra, sentou-se a sorver calmamente a sua cerveja e a olhar para ti de vez em quando... o que continuava a ser natural... Por essa altura estavas a ficar verde e agourentamente calado. Mas sabes quando ele acabou de beber e saiu, Philip, meu rapaz? Imediatamente a seguir a tu correres para a porta. E com a garrafa debaixo do braço, por abrir. Bêbedo? Ele? Estava o mais sóbrio possível quando saiu daqui.

- Mas levava a aguardente-de-genebra com ele - fez notar Philip, com razão. - Estava bem embriagado duas horas mais tarde, houve vários a jurar isso. Tiveram de o levar de regresso à abadia em cima de uma prancha.

- E que quantidade de aguardente-de-genebra é que ainda encontraram? Chegaram a mencionar isso? Por acaso encontraram a garrafa?

- Não ouvi falar nisso - confessou Philip, surpreendido e duvidoso. - O irmão Cadfael estava lá, posso perguntar-lhe. Mas porquê?

Wat pousou-lhe a mão no ombro, delicadamente, embora com ar algo paternalista:

- Meu rapaz, é fácil ver que nunca passaste de vinho ou cerveja e, se tiveres em conta o que te digo, deixarás as bebidas mais fortes para estômagos também mais fortes. Falei numa grande garrafa, e era mesmo grande. Havia mais de um litro de aguardente-de-genebra dentro dessa garrafa! Se um homem bebesse tudo isso em duas horas, não seria morto de bêbedo que o transportariam, mas simplesmente morto. Ou, se sobrevivesse para contar o caso, não poderia fazê-lo no dia seguinte, nem nos mais próximos. Sóbrio, como o próprio alcaide era, como aquele tipo estava quando daqui saiu atrás de ti, e porque havia de mentir acerca disso ultrapassa-me, mas lá que o fez, fez, ao que parece. Ora diz-me lá por que razão um homem havia de se dar ao trabalho de se culpabilizar por um deboche em que nem sequer se meteu, para ser, como recompensa, atirado para dentro de uma cela?! A menos - acrescentou Wat, considerando o problema com vivo interesse - que fosse para se safar de algo pior.

O criado mais velho, um rapazito sardento, nascido e criado na frontaria, aproximou-se com um cacho de canecas vazias em cada mão e deteve-se para dar uma cotovelada nas costelas de Wat e inclinar-se ao seu ouvido:

- Sabe quem tem ali, patrão? - Um movimento de cabeça indicou os dois em gibões de couro. - O mais novo era companheiro do

que já hoje foi trespassado por uma seta na frontaria. E o outro... Will Wharton disse-me agora mesmo, e ele estava lá perto e viu tudo... é o tipo que disparou a seta! Servos do mesmo senhor, veja bem! Acha que devia estar aqui, e tão bem disposto, na própria noite do acontecimento? É um estômago mais forte que o meu! “Deita-o abaixo!”", diz o senhor, e o tipo deita mesmo, com precisão e frieza. Ter-se-ia pensado que a mão lhe tremesse tanto que não conseguisse aproximar-se do alvo, mas não... Foi mesmo em cheio entre os ombros e até ao peito, pelo que Will diz. E aí está o próprio homem que o fez, a cear a sua cerveja como qualquer cristão.

Estavam ambos a fitá-lo de boca aberta, e só se viraram para também fitarem, breve e atentamente, Turstan Fowler, sentado à vontade, empunhando uma caneca e com as robustas pernas estendidas por debaixo da mesa. Nem sequer acorrera a Philip perguntar ao serviço de quem se encontrava o malfeitor morto, e talvez Wat não soubesse o nome, mesmo que lho tivesse perguntado. De contrário, tê-lo-ia mencionado.

- É aquele homem? Tens a certeza? - insistiu Philip.

- William Wharton tem, e ajudou a levantar o pobre diabo que foi morto.

- Turstan Fowler? O falcoeiro de Ivo Corbière? E Corbière ordenou-lhe que disparasse?

- O nome não sei, pois Will também não sabia. Um jovem senhor, hóspede da abadia. Um finório louro, disse Will. Embora seja de concordar não ser digno de censura por querer um assassino e ladrão detido a todo o custo, tanto mais que o homem acabara de lhe roubar o cavalo e de o deitar ao chão quando tentara impedi-lo. E suponho que, quando um senhor ordena, seja melhor o servo apressar-se a obedecer. Mesmo assim, é uma coisa desagradável trabalhar lado a lado com um homem, talvez meses e anos, e depois ouvir dizer: “Atira a matar!” E fazê-lo! - E o rapazito fez rolar os olhos, soltou um prolongado assobio baixo e continuou com as mãos cheias de canecas, deixando-os tão mergulhados nos seus pensamentos que nenhum deles teve fosse o que fosse a dizer.

Mas com certeza não podia haver ali nada de significativo para ele! Philip olhou por um instante para trás ao sair da estalagem e viu Turstan Fowler e o jovem cavalariço tranquilamente sentados com a sua cerveja, em alegre cavaqueira com meia dúzia de outros bebedores sóbrios que os rodeavam. Não tinham reparado nele ou, se tinham, não o tinham reconhecido, e nenhum dos dois parecia ter em mente algo de particularmente grave. Estranho, contudo, que aquele parecesse estar emaranhado em todos os episódios aziagos, nunca no centro das coisas, no entanto sempre algures à vista.

Quanto à questão da garrafa de aguardente-de-genebra, que verdadeiro significado teria? Quando fora levado, o homem estava demasiado ébrio para falar, ninguém olhara em torno à procura da garrafa, esta bem podia lá ter ficado caída, ainda mais de meio cheia, se o líquido fosse tão potente como Wat dizia, e algum rapinador da noite podia tê-la apanhado, rejubilando com a sua sorte. Havia dúzias de hóspedes para justificar as circunstâncias. Porém era estranho. Por que havia ele de dizer que estava embriagado antes de sair da estalagem de Wat se de facto de lá saíra perfeitamente sóbrio? Mais importante ainda: por que havia de sair tão imediatamente a seguir a Philip? Todavia, Wat era um bom observador.

As pequenas discrepâncias espetavam-se como barbelas no espírito de Philip. Era muito tarde para incomodar mais alguém naquela noite, o ofício de Completas passara há muito, os monges de Shrewsbury, os seus hóspedes, os seus servos, todos estariam na cama, ou preparando-se para isso, à excepção dos poucos ecónomos leigos que estavam quase a acabar os seus trabalhos e ainda teriam a alegria de festejar modestamente aquela noite. Além disso, os pais estariam irritados por ele os ter abandonado durante todo o dia, e podia contar com os correspondentes pedidos de explicações quando chegasse a casa. Era melhor dirigir-se para lá.

Mesmo assim, atravessou a estrada, dirigiu-se para o bosquezinho, tal como na noite que estava a repetir, e descobriu que ainda estavam visíveis ligeiros sinais do seu vomitado, secos, na erva pisada. Então voltou em direcção ao rio, evitando as ruas, manten-do-se a coberto do terreno arborizado, e lá estava a depressão abrigada onde adormecera até lhe passar o pior da orgia, antes de reunir forças para regressar, vacilante, ao burgo. A suave luz das estrelas era suficiente para ele ver o caminho, e mostrava-lhe as ervas remexidas e amachucadas.

Mas não, não era ali! Ali estava marcado um caminho, e ele de certeza que se embrenhara mais entre os arbustos e árvores, para juzante, escondendo-se da própria noite. A clareira era muito semelhante à outra, mas não era a mesma. Contudo, alguém ou alguma coisa, do tamanho de um homem, estivera ali caído, e não em paz. De certeza que mais de um par de sapatos espezinhara aquela terra. Um par de amantes oportunistas, a tirar partido de um dos tradicionais prazeres da feira? Ou outro tipo de luta? Não, mal se podia falar de luta, embora tivesse sido arrastado encosta abaixo, em direcção ao rio, o que era apenas perceptível por um brilhozinho entre as árvores. Havia uma mancha de solo nu, seco e pálido como barro, entre as raízes a espalharem-se de um abeto contra o qual ele se encostara, e essa mancha era preenchida por tiras de casca caída. A maior mostrava-se curiosamente escura em vez de prateada, como as restantes. Baixou-se, apanhou-a e as suas pontas dos dedos recuaram perante a negra nódoa encrustada. Na erva, se procurasse à luz do dia, talvez houvesse pingos semelhantes.

Ao procurar o lugar da sua própria humilhação, encontrara algo diferente, o lugar onde mestre Thomas fora morto. E um pouco abaixo, do espaço relvado que se projectava bem por sobre a margem espezinhada, o seu corpo fora atirado ao rio.

 

 

                                 Depois da feira

 

 

                                                   Capítulo 1

 

O irmão Cadfael saiu de Primax, na manhã seguinte, para encontrar Philip deambulando ansiosamente no grande pátio, passando alternadamente o peso do corpo de um pé para o outro, como se o solo escaldasse, e com uma expressão tão intensa e séria que não deixava dúvidas sobre a urgência do que tinha para comunicar. À vista de Cadfael, aproximou-se de lado para lhe pousar a mão no ombro:

- Não se importa de vir comigo falar com Hugh Beringar? Conhece-o, ele acreditará em si, se o irmão responder por mim. Não sabia se ele já estaria a pé tão cedo, por isso esperei por si. Acho que encontrei o sítio onde mestre Thomas foi morto.

Não era nada o que ele procurava, e de momento pareceu totalmente irrelevante ao irmão Cadfael, que parou e pestanejou perante um anúncio tão inesperado:

- Fizeste o quê?

- É verdade, juro! Ontem à noite era tão tarde que já não podia incomodar ninguém com isso, e não estive lá à luz do dia... mas alguém sangrou naquele lugar... alguém foi arrastado para baixo, para a água...

- Vem! - disse Cadfael, recuperando. - Vamos juntos. - E começou a dirigir-se a passo vivo para a hospedaria, com as largas passadas de Philip a acompanhá-lo facilmente. - Se tiveres razão... Ele quererá que lhe mostres o sítio. Conseguirás encontrá-lo de novo com toda a certeza?

- Decerto. Verá porquê.

Hugh saiu para ir ter com eles, a bocejar e em camisa e calções, mas mesmo assim perfeitamente acordado e barbeado:

- Falem baixo! - pediu, com um dedo em frente da boca, e fechou devagarinho atrás de si a porta dos apartamentos. - As senhoras ainda estão a dormir. Então que é? Tenho a sensatez suficiente para não despedir ninguém que venha com a garantia do irmão Cadfael.

Philip contou apenas o necessário. Para o que lhe dizia pessoalmente respeito haveria tempo mais tarde. O que interessava agora era a clareira no limiar do bosque, para além dos prados de Gaye.

- Seguia o meu próprio faro, ontem à noite, e escolhi um caminho mais curto do que aquele por onde realmente fui até ao rio. Por aí cheguei a um sítio entre árvores... posso encontrá-lo outra vez... onde estivera caída uma coisa pesada que depois fora arrastada para baixo, para a água. A erva está amachucada onde ele caiu, e inclinada pela colina, por onde foi arrastado, e, apesar de terem passado três dias, ainda mostra os vestígios. Creio que também há manchas de sangue.

- O mercador de Bristol? - indagou Hugh, surpreendido, depois de um instante de silêncio.

- Penso que sim. A luz do dia poderá confirmar.

Hugh virou-se para esgotar a sua cerveja da manhã, com pressa intencional, e demolir o resto do bolo de aveia que estivera a comer.

- Dormiu em casa? No burgo? - Enquanto falava, escovou apressadamente a sua crista negra, atou as fitas da camisa e estendeu a mão para a cota. - E veio ter comigo em vez de ir ao alcaide! Bem, não faz mal, estamos mais perto que ele, poupamos tempo. - Deixou para trás a espada e o cinto e meteu os pés nos sapatos. - Cadfael, vais perder o pequeno-almoço, leva estes bolos contigo e bebe qualquer coisa agora, enquanto podes. E você, meu amigo, comeu alguma coisa?

- Não levas escolta? - inquiriu Cadfael.

- Para quê? Os teus olhos e os meus são tudo o que nos faz falta aqui, e quanto menos botifarras andarem a espezinhar a relva, melhor. Venham, antes que Aline acorde, ela tem o ouvido apurado e prefiro que descanse. Então, Philip, avante! Está na sua terra, leve-nos pelo caminho mais rápido.

Aline e Emma estavam a tomar o pequeno-almoço, resignadas às partidas súbitas e silenciosas de Hugh, quando Ivo chegou, pedindo para ser recebido. Cerimonioso como sempre, perguntara por Hugh.

- Mas, como aquele meu marido já partiu para qualquer lado em serviço oficial - comentou Aline, divertida -, e como é com certeza a ti que ele quer mesmo ver, que dizes a mandá-lo entrar?

Tinha a certeza de que ele não se iria embora sem uma vez mais te apresentar os seus cumprimentos. Provavelmente tem estado a exercitar o espírito para arranjar maneira de se assegurar de que também não seja a última. Ontem à noite não estava no seu melhor, o que não admira, depois de tantos choques, e estava arranhado e ressentido da queda.

Emma não disse nada, mas a sua cor avivou-se agradavelmente. Levantara-se da cama com a sensação de entrar numa vida inteiramente nova, e mais a determinar por si própria do que alguma vez o fora antes. Por aquela hora já a barcaça de mestre Thomas devia ter descido grande parte do Severn, a caminho da terra. Ela sentia-se aliviada da necessidade de evitar as incómodas atenções de Roger Dod e liberta do sentimento de culpa por lhe fazer o que era provavelmente uma grande injustiça por temer e desconfiar das suas intenções para com ela. Os seus haveres estavam bem acondicionados para a viagem, num par de alforges comprados na feira, pois, fosse o que fosse que lhe acontecesse agora, partiria naquele mesmo dia. Se não se proporcionasse escolta imediata para sul, iria com Aline e esperaria em casa desta que Hugh lhe preparasse as condições para a viagem, pois, à falta de outra situação de confiança, ele próprio lhe prometera acompanhá-la em segurança até Bristol.

O bulício da partida enchia o grande adro e os pátios das cavalariças; metade dos aposentos da hospedaria já estava vaga. Sem dúvida Turstan Fowler e o jovem cavalariço estavam também a reunir as compras e outros pertences do seu senhor, e a selar o cavalo baio, levado de volta para a abadia por um moço de recados empreendedor, que fora principescamente recompensado, e os seus próprios póneis de pêlo eriçado. Dois deles! O terceiro iria atrelado.

Emma sentiu frio ao recordar o que acontecera ao cavaleiro do terceiro pónei e as coisas que ele fizera. Uma morte tão súbita horrrorizava-a. Mas o homem assassinara e não tivera escrúpulos em derrubar o seu próprio senhor ao ser desmascarado. Não era razoável culpar Ivo pelo que acontecera, mesmo que a sua ordem não tivesse sido dada sob o efeito de uma raiva compreensível perante o abuso do seu lacaio e o ataque à sua própria pessoa. Na realidade, Emma ficara comovida, na noite anterior, quando a própria veemência com que Ivo defendera a sua acção traíra muito claramente as suas próprias dúvidas e remorso. Tudo terminara com ela a proporcionar-lhe consolo e conforto. Era terrível, pensava ela, ter-se o poder da vida e da morte sobre os semelhantes, fossem quais fossem os crimes que eles tivessem cometido.

Se na noite anterior faltara a Ivo qualquer coisa do seu equilíbrio e confiança normais, não havia dúvida de que pela manhã os recuperara inteiramente. O seu aspecto era sempre imaculado, e o fato, por mais simples que fosse, assentava-lhe como uma luva. Fora-lhe odioso ser atirado ao chão, e erguer-se, a coxear e desfigurado, perante uma dezena ou mais de testemunhas. Esta manhã assegurara-se de que a sua aparência fosse a melhor possível, e até usava como ornamentos da face esquerda os arranhões com curativo; mas, assim que ele entrou, Emma viu que continuava a coxear em consequência da queda.

- Lamento não encontrar o seu marido - disse, ao entrar na sala onde elas estavam sentadas -, mas informaram-me de que ele já saiu. Tinha um plano para submeter à sua aprovação. Devo atrever-me a apresentá-lo a si, em substituição dele?

- Já estou com curiosidade - disse Aline, sorrindo.

- A Emma tem um problema, e eu tenho uma solução. Tenho estado a pensar no assunto desde que Emma me disse, há dois dias, que não regressaria a Bristol com a barcaça, tendo de arranjar uma escolta segura para sul, por estrada. Não tenho qualquer direito de fazer exigências mas, se Beringar consentir em ma confiar... Com certeza a Emma precisa de regressar a casa o mais depressa possível.

- Claro - confirmou Emma, fitando-o com admirada expectativa. - Tenho tantas coisas para tratar lá.

Ivo dirigiu-se muito seriamente a Aline:

- Tenho uma irmã em Stanton Cobbold decidida a tomar os véus, e o convento que ela escolheu já consentiu em recebê-la. E por sorte acontece que deseja entrar para um mosteiro beneditino, e o lugar em questão é o priorado de Minchinbarrow, poucas milhas para além de Bristol. Está à espera que eu a leve lá e, a dizer a verdade, tenho adiado para lhe dar tempo de mudar de ideias, mas a moça está mesmo decidida. Já estou convencido de que assim é. Ora, se confiar Emma ao meu cuidado, o que juro que pode fazer com toda a confiança, pois será meu prazer servi-la, então por que não hão-de ela e Isabel viajar muito confortavelmente juntas? Tenho homens suficientes para proporcionar uma guarda segura, e claro que eu próprio farei parte da escolta. Era este o plano que queria apresentar ao seu marido, na esperança de que ele concordasse e desse a sua aprovação. É uma pena não estar cá...

- Soa admiravelmente - disse Aline, de olhos muito abertos de prazer -, e tenho a certeza de que Hugh se sentiria muito satisfeito por confiar Emma aos seus cuidados. Não será melhor perguntar à própria Emma o que ela tem para dizer?

O rosto corado e o sorriso de confusão desta falavam por ela.

- Creio que seria a melhor solução possível para mim - afirmou lentamente -, e estou gratíssima por uma ideia tão gentil. Mas de facto tenho de ir o mais depressa possível, e a sua irmã... como disse, quer dar-lhe tempo para ter a certeza...

Ivo riu, com alguma amargura.

- Já cheguei ao ponto em que desisti da esperança de a persuadir a ficar no mundo. Não receei nada forçar a sua decisão, pois ela, desde que foi aceite, só tem tentado forçar a minha. E, se é isso que ela quer, quem sou eu para o impedir? Tem tudo preparado, só lhe dará prazer ver-me chegar a casa e dizer que podemos partir amanhã. Se estiver disposta a confiar-se a mim, sozinha, pelas poucas milhas até Stanton Cobbold, e a dormir esta noite sob o nosso tecto, podemos pôr-nos a caminho logo de manhã. Podemos proporcionar-lhe um cavalo selado, se estiver disposta a cavalgar, ou uma liteira para as duas, como quiser.

- Oh, posso ir a cavalo - afirmou ela, ardentemente. - Seria um prazer.

- Tentaríamos fazer que assim fosse. Se... - disse Ivo, voltando quase timidamente para Aline o seu sorriso, com escoriações no rosto -, se tiver a sua aprovação e a do Sr. Beringar. Não imaginava fazê-lo sem isso. Mas, como esta é uma viagem que tenho de fazer mais cedo ou mais tarde, e Isabel insiste que quanto mais cedo melhor, por que não aproveitar para servir também a necessidade em que Emma se encontra?

- Sem dúvida que resolveria tudo muito satisfatoriamente - concordou Aline. E também não podia haver dúvida, pensou Emma, apoiando o seu próprio desejo querido na persuasão de virtude, que Aline ficaria aliviada e feliz se a viagem pudesse ser poupada a Hugh, e a ela os diversos dias em que ficaria privada da sua companhia. - Emma sabe - continuou Aline - que pode escolher o que lhe parecer melhor, pois tanto Ivo como nós, creio, estamos igualmente ao dispor dela. Quanto a aprovação, pois claro que aprovo, e estou certa de que o mesmo fará Hugh.

- Gostaria que ele aparecesse - afirmou Ivo -, ficaria mais contente com a sua bênção. Mas, se de facto partirmos, penso que o devemos fazer imediatamente. Sei que disse que Isabel tem tudo pronto mas, apesar disso, podemos precisar de aproveitar ao máximo este dia.

Emma hesitava entre o seu desejo e a pena de partir sem se despedir de Hugh, convenientemente e com gratidão. Mas era vantajoso para ele, muito vantajoso, livrar-se da responsabilidade que assumira, e com tanta segurança como aquela solução prometia.

- Aline foi para mim a personificação da gentileza, e é com pena que me despeço de si. Mas em alturas destas é melhor poupar viagens suplementares, e além disso Hugh já tem andado tão ocupado por minha causa nestes últimos dias, e Aline tem-no visto tão pouco... Gostaria de ir com Ivo, se me der a sua bênção. No entanto, desagrada-me ir sem lhe agradecer como se deve...

- Não te preocupes por causa de Hugh, com certeza que ele te vai achar sensata por aproveitares uma oferta tão gentil e tão a propósito... Entrego-lhe todas as belas mensagens em que estás a pensar. Agora, quando o perco de vista, nunca sei quando é que ele volta, e creio que Ivo tem razão, ainda podem precisar de todos os momentos disponíveis do dia, ou pelo menos isso pode acontecer a Isabel. É um passo muito importante que ela vai dar.

- Foi o que eu lhe disse - afirmou ele -, mas a minha irmã tem atrevimento de espírito para dar passos importantes. Emma não se importa de fazer as poucas milhas que temos de percorrer hoje numa sela improvisada atrás de mim? Em casa arranjar-lhe-emos uma sela apropriada, cavalo e tudo.

- Ena - exclamou Aline, fitando os dois com um sorrizinho significativo -, começo a ter inveja!

Ivo enviou o jovem cavalariço para ir buscar os alforjes de Emma. O seu diminuto peso foi acrescentado aos fardos das compras de Corbière, sobre o pónei sem cavaleiro, e a capa dela, de que certamente não precisaria num dia tão bom, dobrada e arrumada com a restante bagagem. Era como partir para um novo mundo, iluminado pelo sol e convidativo, mas aterradoramente vasto. Era verdade que tinha deveres solenes à sua espera em Bristol, o menor dos quais não era a confissão de um fracasso, mas, apesar de tudo, sentia-se como se quase se tivesse libertado do passado, pudesse estar satisfeita com essa libertação e entrasse naquele mundo desconhecido sem pesos e desprevenida, verdadeiramente senhora de si própria.

Aline beijou-a com afecto e desejou a ambos feliz viagem. Emma deitava frequentes olhadelas para o lado da portaria, até ao último momento, não fosse Hugh aparecer, mas tal não aconteceu; teve mesmo de deixar as suas mensagens a Aline, para que ela lhas transmitisse. Ivo montou primeiro, visto que o baio, conforme ele disse, estava com disposição excitável e inclinado a pregar partidas, e depois virou-se para lhe dar a mão firme e forte, ao mesmo tempo que Turstan Fowler a içava com facilidade para a sela improvisada.

- Mesmo com nós os dois cá em cima - disse Ivo por cima do ombro, sorrindo -, esta criatura pode ser feroz quando começa a andar. Por uma questão de segurança, rodeie-me a cintura e agarre-se com ambas as mãos ao meu cinto... isso, está bem! - Saudou Aline com muita graciosidade e cortesia: - Farei que ela chegue a Bristol em segurança, prometo!

Saiu pela portaria, em mangas de camisa, tal como entrara, com os seus homens, agora apenas dois, atrás, e o pónei só com a carga a trotar alegremente, contente por ir tão leve. Os braços de Emma abarcavam facilmente a magreza de Ivo, e a sensação do corpo deste, elegante e forte, era de calor, musculatura e vitalidade, através do linho fino. Enquanto abriam caminho para a frontaria, agora a esvaziar-se rapidamente, ele pousou a sua própria mão esquerda sobre as duas que ela tinha cruzadas, comprimindo-as firmemente contra o seu estômago achatado, e, embora ela soubesse que se estava simplesmente a assegurar da firmeza com que se lhe agarrava, não pôde deixar de sentir que se tratava também de uma carícia.

Rira e abanara a cabeça perante as fantasias românticas de Aline, recusando-se a acreditar em qualquer união entre a nobreza terratenente e o comércio, excepto para mútuo lucro. Agora não tinha tanta certeza de a sabedoria pertencer inteiramente aos cépticos.

A depressão onde jazera o corpo grande e pesado ainda mostrava pelo menos as dimensões aproximadas de mestre Thomas, e em seu redor as ervas estavam espezinhadas, como se uma pessoa, ou talvez mais de uma, tivesse circulado a toda a sua volta enquanto ele se encontrava caído, morto. E decerto fora isso que acontecera, pois ali é que ele devia ter sido despido e revistado, na primeira daquelas buscas infrutíferas que o irmão Cadfael deduzira dos acontecimentos seguintes. Saindo da depressão, e descendo até à margem elevada do rio, seguia a pista por onde ele fora arrastado, com as ervas, mais compridas ao saírem da sombra, todas inclinadas na mesma direcção.

Também não havia dúvidas quanto aos vestígios de sangue, apesar de serem escassos. A raspa de casca de abeto, caída sob a árvore, mostrava uma fina camada, enegrecida ao secar. Uma procura atenta levou à descoberta de mais uma ou duas manchas e de um fiozinho a descer a encosta, onde parecia que o morto fora virado de costas para ser mais facilmente atirado para baixo, para a água.

- Aqui é fundo - comentou Hugh, de pé no montículo verdejante que sobrepujava o rio - e não havia perigo de atingir a margem, ele seria arrastado bem para o meio pela corrente. Suponho que as roupas tenham sido atiradas imediatamente atrás dele e talvez ainda encontremos as que faltam. Um só homem podia ter feito tudo. Se fossem dois, tê-lo-iam carregado.

- Parece-te - pensou Cadfael em voz alta - que fosse este um caminho recomendável para ele seguir de regresso à barcaça? Sabia que ela se encontrava um pouco a juzante da ponte, suponho que tentasse cortar caminho em relação à frontaria e exagerasse um bocado. Como vêem, a extremidade do embarcadouro, onde a barcaça estava amarrada, fica apenas um pouco a montante de nós. Dirias que ele estava sozinho, sem de nada suspeitar, quando foi atingido?

Hugh examinou atentamente o terreno. Não era cenário de luta: havia a zona amachucada pela queda do corpo, e o espezinhado em torno dessa ausência de movimento. As inclinações de ervas para um lado e outro tinham ordem, não eram marcas de luta.

- Sim. Não houve resistência. Alguém se aproximou por detrás e espetou-o sem uma palavra ou escrúpulos. Ele caiu e assim ficou. Ia no caminho do regresso, preferindo os atalhos, e acabou por chegar um pouco mais a juzante do que desejava. Alguém o estivera a observar e a seguir.

- Nessa mesma noite - disse Philip sem rodeios - alguém esteve a observar-me e a seguir-me.

Captou-lhes imediatamente a atenção, fixando-o ambos com vivo interesse.

- O mesmo alguém? - sugeriu Cadfael suavemente.

- Ainda não vos contei a minha parte - continuou Philip. - Passou-me de ideia quando dei com este lugar e percebi o que significava. O meu objectivo era descobrir exactamente o que fiz naquela noite e provar que o não assassinei. Pois chegara à conclusão de que quem quer que planeara esta morte pusera desde o princípio a vista em mim. Saí daquele tumulto no cais com a cabeça a sangrar e disposição homicida, foi uma sorte que pudesse estar fora das vistas e das mentes quando o assassínio fosse perpetrado. - Contou-lhes tudo o que descobrira, palavra por palavra. Quando acabou, ambos o olhavam com atenção e franzida concentração.

- Fowler - quis saber Hugh -, tem a certeza?

- Walter Renold tem, e acho que ele é boa testemunha. O homem estava lá à vista, indiquei-lho e Wat contou-me o que vira nessa noite: Fowler olhou para dentro, viu e ouviu as condições em que eu estava, e esteve fora o que podia ter sido meia hora, foi o que Wat disse. Depois voltou, encomendou uma medida de cerveja para beber e comprou uma garrafa grande de aguardente-de-genebra.

- E saiu com ela por abrir - recordou o irmão Cadfael-assim que tu próprio levaste a tua indisposição para os arbustos. Agora não vale a pena corares por isso, todos nós fizemos disparates desses uma ou duas vezes na vida, e muitos de nós emendãmo-nos. E depois só se sabe dele - afirmou, encontrando os olhos de Hugh do outro lado da clareira - duas horas mais tarde, quando o descobrimos caído de bêbedo sob um amontoado de armações, perto da frontaria.

- E Wat jura que ele estava sóbrio como um bispo quando saiu da sua estalagem.

- E eu era capaz de jurar pelo que Wat afirma - garantiu Philip com firmeza. - Se alguém esgotasse aquela garrafa em duas horas, disse ele, seria a sua morte, ou quase. E Fowler estava a testemunhar na audiência no dia seguinte, e pouco desgastado.

- Santo Deus! - exclamou Hugh, abanando a cabeça. - Baixei-me para ele, afastei-lhe a capa dos ombros. O tipo tresandava. O hálito dele teria derrubado um boi. Estarei a perder qualidades?

- Ou seria antes o cheiro que libertaste ao mexer a capa? Começo a ter ideias estranhas - confessou Cadfael -, pois parece-me que a aguardente-de-genebra foi comprada para entornar por fora, não para dentro.

- Um capricho caro - comentou Hugh -, ao preço a que essas aguardentes estão. Bastante barato, porém, se lhe comprasse a imunidade perante a suspeita de algo que lhe custaria muito mais. Qual foi a primeira coisa que eu disse...? Que tonto fui! Pelo aspecto, comentei, devia estar ali há horas. E para onde foi depois? Em segurança, para uma cela de castigo da abadia, onde passou a noite. Como poderia ser culpado de mais do que borrachão? Crianças e borrachos são os únicos inocentes do mundo! Havendo um assassínio nessa noite, quem iria olhar para um homem que se pusera fora de combate desde a altura em que o seu corpo fora trazido de regresso a Shrewsbury?

A mente de Cadfael já sondara mesmo para além desse ponto, embora aí nada fosse claro.

- Hugh, apetece-me olhar outra vez para o sítio de onde retirámos aquela carcaça empapada, se o conseguirmos encontrar. Com certeza um bêbedo honesto teria a garrafa a seu lado para toda a gente ver. Mas não me lembro de a ver. Se nos passou e algum rapinador transviado a encontrou durante a noite, ainda com metade ou mais, ainda bem. Mas, se por qualquer razão foi escondida-para que não pudessem ser feitas perguntas acerca de quanto fora bebido, e que tipo de cabeça o poderia aguentar, isso seria acto de um simples idiota? Ele não andaria pelo terreno da feira a cheirar como cheirava, fosse de fora fosse de dentro. O seu baptismo foi ali, onde o encontrámos embrulhado. Também ali devia estar a garrafa.

- E, se ele não foi nem simples nem idiota nessa noite, Cadfael, como interpretas as suas idas e vindas? Olhou para dentro da taberna, observou o estado deste rapaz, escutou-lhe as queixas e foi-se embora... para onde?

- Talvez até à cabina de mestre Thomas, para se assegurar de que o mercador lá estava, ocupado com as suas mercadorias, e provavelmente aí permaneceria mais algum tempo. E então de volta para a taberna, para manter a observação sobre Philip, bode expiatório tão à mão e tão claramente a caminho de acabar a noite cego e surdo. E depois, tendo seguido este até ao bosquezinho para se assegurar de que estava perdido para o mundo, outra vez na peugada de mestre Thomas no caminho de regresso à barcaça. Quer dizer, caminho até aqui.

- São tudo conjecturas - disse Hugh razoavelmente.

- Pois são. Mas interpreta assim, e tudo faz sentido.

- E lá volta ele, com a sua garrafa de aguardente a postos, para se esgueirar sem ser visto para um sítio afastado e escondido, e aí se tornar o objecto miserável que encontrámos. Quanto tempo te parece que levaria a matar o homem, revistá-lo e despi-lo, em vão, ao que parece, e arrastá-lo para o rio?

- Contando o tempo gasto a segui-lo sem ser visto e a regressar despercebidamente ao terreno da feira depois de tudo feito, mais de uma hora das duas perdidas entre sóbrio e embriagado. Não - concluiu Cadfael sombriamente -, não creio que passasse algum desse tempo a beber.

- Foi também ele que entrou na barcaça? Mas não, isso não podia ser, ele estava na audiência do alcaide. Quanto ao mercador de Shotwick, já sabemos quem foi o seu assassino.

- Sabemos quem foi um deles - afirmou Cadfael. - Alguma destas questões pode ser separada das restantes? Penso que não. Esta perseguição é apenas uma.

- Abarcas com certeza - comentou Hugh, depois de um longo momento de meditação furiosa - a extensão do que estamos a dizer! Aqui estão estes dois homens, um comprovadamente assassino, o outro suspeito. E ontem este derrubou mortalmente o primeiro. Friamente, como um especialista... Antes de dizermos mais - terminou Hugh abruptamente, deitando um último olhar em redor da clareira -, façamos o que sugeriste, vejamos de novo o lugar onde o encontrámos caído.

 

 

                                                         Capítulo 2

 

Philip, que estava a aprender a escutar em silêncio, seguiu-os por todo o caminho de regresso, através dos prados e pomares de Gaye. Nenhum deles achou essa persistência criticável. Ele ganhara o seu lugar e não tencionava ficar à margem. Todos os barcos de maior calado já tinham abandonado o embarcadouro. Em breve os trabalhadores começariam a desmantelar as pranchas e pontões até ao ano seguinte, arrumando-os nos armazéns da abadia. Ao longo da frontaria, as bancas estavam a ser retiradas e empilhadas para transporte, enquanto duas das carroças da abadia abriam caminho, seguindo da feira de cavalos em direcção à portaria.

- A mais de meio caminho, se bem me lembro - disse Hugh -, e bastante afastado da estrada. Havia poucas luzes, quase todas as bancas daqui eram para a gente da região, que vem durante o dia, algures nesta extensão.

Naquela noite havia armações empilhadas e toldos de lona encostadas a elas, prontos para serem usados. Esta manhã também havia pilhas de armações e pranchas, agora prontas para serem arrumadas até à feira seguinte. Pesquisaram toda a área provável, mas apontar o sítio exacto era impossível. Uma das carroças de recolha atingira aquela extensão e dois servos leigos estavam a içar para dentro dela as pranchas amontoadas e a arrumar os tripés uns dentro dos outros, em pilhas alatas. Cadfael observava o terreno a ser gradualmente limpo.

- Encontraram inesperados objectos abandonados - comentou, pois um canto da carroça transportava um montículo de estranhas coisas: um grande sapato, uma cota pequena, amarrotada mas de modo nenhum velha ou rota, uma boneca de madeira a que faltava um braço, um capuz verde, uma botija de beber.

- Há-de haver muitos mais, irmão - afirmou o carroceiro, sorrindo -, até todo o terreno ficar limpo. Alguns serão reclamados. Calculo que a criança queira saber onde perdeu a boneca. E a cota é de bom material; algum jovem senhor bebeu um pouco a mais e esqueceu-se de pegar nela quando voltou a caminhar. O sapato também está como novo e é de tamanho de gigante; é possível que apareça alguém, à socapa e envergonhado, a perguntar por ele. Espero que não tenha tido de andar muito até casa, só com um pé calçado. Mas não foi uma noite desordeira... como muitas últimas noites a que assisti. - Passou os braços poderosos sobre um amontoado de armações, que içou com toda a força do seu corpo. - Duvido que acredite onde encontrámos aquela garrafa.

Com um aceno da cabeça indicou a parte da frente da carroça, a que Cadfael ainda não devotara qualquer atenção. Pendurada ao varal por uma fina tira de couro encontrava-se uma achatada garrafa de vidro, suficientemente grande para conter mais de um litro.

- Encalhada em cima da lona que cobria uma das bancas da gente do campo. Era uma velhota que vende queijos que tinha essa banca, conheço-a, vem todos os anos, e, vendo que já não está com muita agilidade, montámos-lhe a banca na véspera de a feira abrir. A garrafa quase que fazia saltar os miolos aqui do Daniel, quando a desmontámos esta manhã! Imagine-se: deitar assim fora uma garrafa daquelas, como se não valesse nada! Wat dava-lhe uma bebida de graça se ele a devolvesse, fosse quem fosse.

A sua braçada de armações ressoou ao cair dentro da carroça e ele voltou-se para içar depois numa pilha de pranchas.

- Então tinha vindo da taberna do Wat? - perguntou Cadfael, olhando-a muito pensativamente.

- Tem a marca dele na tira de couro. Todos sabemos donde vêm estas vasilhas de melhor qualidade. Mas não é frequente ficarem para nós.

- E onde ficava a banca onde esta foi deixada? - indagou Hugh por cima do ombro de Cadfael.

- Menos de dez metros atrás do sítio onde os senhores estão. - Não conseguiram resistir a olhar para trás e medir a distância que dava. Dava muito bem. - O estranho é que a velhota garantiu, quando veio expor as suas mercadorias, que cheirava a aguardente por ali. À noite sentia o cheiro nas saias, como se tivessse chapinhado nela. Mas, passado o primeiro dia, esqueceu-se do assunto. É meio galesa e tem coisas um bocado estranhas, suponho que tivesse imaginado.

Cadfael teria dito antes que tinha bom olfacto e alguns conhecimentos da destilação de aguardentes, e avaliara com precisão a causa do seu desconforto. Algures na relva, próximo dessa banca, tinha ele agora a certeza de boa parte do litro de aguardente ter sido generosamente vertida sobre roupas e terreno, não admirando que as ervas lhe retivessem o cheiro. Um pouco talvez tivesse descido por uma garganta, para dar cheiro ao hálito e firmeza à mente; mas não mais, pois a mente estava de facto firme quando os estranhos se inclinaram para a sua habitação de carne e cheiraram a flagrante embriaguez. Estranhos, todos menos um! Começava a fazer-se no espírito de Cadfael o que mal poderia ser chamado luz, pois tratava-se de profunda escuridão.

- Acontece - disse - que temos um assunto a tratar com Walter Renold. Deixa-nos levar essa garrafa para lha restituir? O crédito para com ele será seu.

- Leve, irmão - concordou o carregador alegremente, soltando a garrafa do varal. - Diga-lhe que é Rychart Nyall que lhe manda. Wat conhece-me.

- Estava vazia, suponho, quando a encontrou? - arriscou Cadfael, erguendo numa das mãos o ominoso objecto.

- Nem uma gota, irmão! Os feirantes podem abandonar uma garrafa mas, antes de caírem sem sentidos, asseguram-se do caminho seguido pelo que lá estava dentro!

As pranchas estavam arrumadas, o chão limpo ficava espezinhado e nu, e a carroça avançou. Não seria preciso mais de meia dúzia de dias e os próximos aguaceiros de Verão para toda a bela cabeleira verdejante voltar a crescer e a terra calva se cobrir de anéis.

- Claro que é minha - afirmou Wat, recebendo a garrafa na sua manápula. - A única do género que me faltava. Quem compra tanta aguardente, mesmo numa feira? Quem tem dinheiro para se permitir isso? E quem a escolhe em vez de cerveja? Tenho conhecido homens desesperados por afundarem rapidamente as suas almas, a qualquer preço, mas raramente numa feira. Espertam durante as feiras, mesmo os tipos tristes respiram o ambiente e melhoram. Surpreendi-me com aquele, no próprio momento em que a encomendou e pagou o preço pedido, mas era evidente que se tratava do servo de algum senhor e tinha as suas ordens. Trazia o dinheiro, e eu vendo aguardente. Pois é isso, se vos serve para alguma coisa, esse mesmo tipo que aqui o Philip conhece, foi essa a medida que ele comprou.

Um canto afastado da grande sala de Wat era um sítio tão bom como qualquer outro para se sentarem a pensar antes de agirem, tentando atribuir um sentido ao que tinham ficado a saber.

- Wat acabou de dizer as palavras certas - disse Cadfael. - Nós devíamos ter sido mais rápidos a ver isso. Era evidente que se tratava de um servo de algum senhor, tinha as suas ordens, trazia dinheiro. Um homem da casa de um senhor subornado por um desconhecido para assassinar ou aventurando-se por sua própria conta para enriquecer através do homicídio e do roubo, nisso eu podia acreditar. Mas dois? Da mesma casa? Não, não acredito! Nunca se afastaram de ordens recebidas. Serviram sempre o mesmo senhor.

- O deles? Corbière? - sussurrou Philip, sem fôlego perante a enormidade das implicações. - Mas ele... Pelo que ouvi, o cavalariço tentou derrubá-lo. Atirou-o ao chão quando ele tentou detê-lo. Como se pode justificar isso? Não faz sentido.

- Espera! Comecemos pelo princípio. Digamos que, na noite em que mestre Thomas morreu, Fowler foi enviado para lidar com ele, para se apoderar do quer que fosse que alguém tanto deseja. O seu senhor observou o terreno, falou-lhe num bode expiatório mesmo a calhar, que ainda poderia ser útil, deu-lhe dinheiro para a bebida que o poria fora de cogitação depois de ter praticado o acto. O homem exigiria imunidade, tinha de ser visto fora de combate. O seu senhor mantém-se em contacto e depois reúne-se a nós quando vamos procurar o mercador desaparecido. Recorda-te, Hugh, de que foi Corbière, não nós, que descobriu o seu homem na bebedeira. Nós tínhamos passado por ele, e isso não servia. Ele tinha de ser encontrado, tinha de ser visto tão embriagado que só podia estar inútil e incapaz havia horas, e depois tinha de ficar reconhecidamente fechado ainda durante mais uma série de horas. Dez homicídios poderiam ter sido cometidos naquela noite, e ninguém pensaria em Turstan Fowler.

- Tudo para nada - observou Hugh. - Mais cedo ou mais tarde, ele teria de informar o seu senhor de que o assassínio fora em vão. Mestre Thomas não transportava o seu tesouro com ele.

- Duvido que Corbière o tivesse sabido antes da manhã, quando fez sair o seu homem da prisão. Consequentemente, levou Fowler a prestar um testemunho que garantisse que as atenções se virassem aqui para o Philip e, enquanto estávamos todos inocentemente ocupados na audiência do alcaide, enviou o seu segundo homem revistar a barcaça. E, uma vez mais, em vão. Até aqui isto está a fazer sentido?

- Perfeitamente - concordou Hugh sombriamente. - O pior ainda está para vir. Qual dos homens te parece que fez o trabalho desse dia?

- Duvido que alguma vez tenham envolvido o mais novo. Dois chegavam para tratar do negócio. O cavalariço Ewald, creio eu. Esses dois foram as mãos que tudo fizeram. Mas não foram a mente.

- Nessa mesma noite, então, arrombaram a cabina e passaram aí a sua busca, sempre sem êxito. Na noite seguinte realizaram o assalto que matou Euan of Shotwick. - Hugh nem mencionou que o caixão de mestre Thomas fora violado. - E, conforme me lembro de teres argumentado, outra vez em vão. Até agora, tudo é perfeitamente possível. Mas cheguemos à espinhosa questão de ontem. Por amor de Deus, como é que ela pode fazer sentido? Eu estava lá a observar o homem, vi-o mudar de cor, juro! Choque, ira, honra ofendida, ele demonstrou tudo isso. Não mandaria chamar o cavalariço, com medo de que outro servo o avisasse. Iria ele próprio buscá-lo. Colocou-se entre ele e o portão, arriscou-se a ficar defeituoso ou pior, ao tentar deter-lhe a fuga...

- Tudo isso é verdade - corroborou Cadfael pesadamente - , todavia tudo faz sentido, embora mais abominável do que tu ou eu sequer sonhávamos. Ewald estava nos estábulos, não havia fuga para ele, a menos que conseguisse libertar-se dos nossos muros. Corbière foi ter com o alcaide, a pedido deste, e tudo lhe foi contado. O seu homem fora detectado para além da possibilidade de contestação e, uma vez acossado, despejaria tudo o que sabia e descarregaria o fardo para cima do seu senhor. Considera a ordem em que tudo aconteceu a partir desse momento. Fowler estivera a praticar tiro ao alvo e tinha a sua besta com ele. Corbière dirigiu-se para os estábulos para ir buscar Ewald. Turstan esboçou o movimento de o seguir, sim, e algumas palavras foram trocadas entre eles, fazendo que o servo voltasse para trás. Mas que palavras? Os dois homens estavam demasiado distantes de nós para que os ouvíssemos. Também não podíamos adivinhar o que fora dito na cavalariça. Esperámos, concordas, não é verdade?, alguns minutos antes de eles saírem. Tempo suficiente para Corbière contar ao cavalariço o que se passava, o aconselhara manter a cabeça fria, prometendo-lhe fuga: “Traz o cavalo, eu encarrego-me de que mais ninguém fique entre ti e o portão, escolhe o momento, monta e foge. Esconde-te (indubitavelmente na sua mansão) e nada ficarás a perder. Mas torna bem claro que eu não participei nisso: ataca-me, desempenha o teu papel, eu desempenharei o meu.” E assim fez: a melhor representação a que já assisti. Colocou-se entre Ewald e o portão, e os dois utilizaram a vivacidade do cavalo para nos afastar a todos. Tentou galhardamente apoderar-se das rédeas, deu uma pesada queda, e o cavalariço ficou livre.

Os outros dois fixavam-no numa fascinação muda, de olhos esbugalhados.

- Só que o senhor tinha mais um trunfo para jogar - continuou Cadfael. - Nunca tencionara deixá-lo escapar. Seria um risco demasiado: ele ainda poderia ser apanhado e abrir a boca. “Deita-o abaixo!”, ordenou Corbière, e Turstan Fowler assim o fez. Sem piedade: tal senhor, tal servo. Uma boca perigosa, perigosa para ambos, fechada sem qualquer dificuldade.

Houve um longo momento de silêncio surpreendido. Até Beringar, cuja mente aberta concebia, embora com desagrado, prodígios de maldade e traição, ficara tão chocado que não conseguia encontrar palavras. Philip fitava-os de boca aberta e olhos dilatados, e pôs-se lentamente em pé. A sua experiência era limitada, local e decente, era-lhe difícil abarcar que os homens pudessem ser monstros:

- Sabe o que está a dizer! Acredita que foi asssim! Mas essse homem... visita-a, faz-lhe a corte! E dizem que o tio tinha qualquer coisa que ele queria e não conseguiu obter... não estava no seu corpo, nem na barraca, nem na cabina... Que outra possibilidade resta senão que esteja com Emma? E nós aqui a perdermos tempo!

- Emma está com a minha mulher - disse Hugh serenamente - na hospedaria abacial, que mal lhe pode acontecer?

- Que mal? - exclamou Philip com paixão. - Depois de me dizer que não estamos a tratar com homens, mas sim com demónios...? - E rodou no calcanhar de um sapato muito usado, correndo para fora da taberna e a direito como uma flecha pela estrada que levava à frontaria, com as longas pernas a serem alternadamente visíveis por um instante.

Cadfael e Hugh ficaram a olhar mudamente um para o outro por sobre a mesa, mas não mais de um momento:

- Por Deus - comentou então Hugh -, aprendemos com os inocentes! Vamos, é melhor apressarmo-nos a segui-lo. O rapaz abalou-me!

Philip chegou sem fôlego à hospedaria. Com o peito a arfar por ter ido a correr, perguntou por Aline, e esta saiu, sorridente mas sozinha:

- Então, Philip, que se passa? - Depois pensou que sabia e teve pena do rapazito apaixonado que chegava demasiado tarde até para uma despedida condigna, em que receberia o pouco conforto que lhe poderiam proporcionar umas palavras amáveis, que nada custariam. - Oh, Philip, lamento que não tenha tido oportunidade de se despedir dela, mas não podiam demorar-se, era necessário partirem o mais depressa possível. Ela teria desejado que eu me despedisse de si e lhe augurasse... - As palavras desvaneceram-se-lhe nos lábios. - Philip, que é? Que o perturba?

- Partiu? - inquiriu ele, em voz dura e aguda. - Ela partiu? Eles, disse!? Quem partiu com ela?

- Ora, foi com o Sr. Corbière, que se ofereceu para a escoltar até Bristol, com a irmã, que vai para um convento de lá. Pareceu-nos uma casualidade de sorte... Philip! Que disse eu? Que é que não está bem? - Ele soltara um grande gemido de fúria e angústia, e até chegara a estender a mão para lhe agarrar o pulso.

- Para onde? Para onde é que ele a leva? Agora, hoje!

- Para a sua mansão de Stanton Cobbold, onde passarão a noite... a irmã dele está lá...

Mas ele desaparecera, no instante em que o lugar fora nomeado, correndo como um demónio com um objectivo, e não em direcção à portaria, mas sim, atravessando o pátio, para as cavalariças. Não havia tempo para pedir licença fosse a quem fosse, nem para respeitar a propriedade fosse de quem fosse, independentemente das consequências. Philip apoderou-se do cavalo de melhor aspecto que viu à mão e que por sorte - de Philip, não do dono! - estava selado e à espera da partida, preso pela arreata. Antes de Aline, confusa e assustada, chegar à porta da hospedaria, já Philip saíra o portão, e um moço furibundo atravessava lestamente o pátio, numa perseguição rápida mas sem esperança.

Como o caminho mais rápido para chegar à estrada que levava para sul, em direcção a Stretton e Stanton Cobbold, consistia em virar à esquerda ao chegar ao portão e novamente à esquerda, pela vereda antes de chegar à ponte, o irmão Cadfael e Hugh Beringar, apressando-se ao longo da frontaria, não viram nada do tumulto que acompanhou a partida de Philip. Chegaram à portaria e entraram no pátio sem qualquer indicação de que pudesse ter havido coisas a correr mal. Ainda havia hóspedes a partir, o movimento normal do dia depois da feira, mas nada que os fizesse deterem-se. Hugh seguiu a direito para a hospedaria, mas Cadfael, que o seguia com dificuldade, sentiu-se subitamente preso por uma manápula no ombro e uma voz conhecida e calorosa saudou-o em simpático galês:

- Precisamente o homem que eu procurava! Venho despedir-me, irmão, e agradecer-lhe a camaradagem. Boa feira! Estou de partida para o meu barco, e de regresso a casa com um lucro simpático.

Rhodri ap Huw irradiava alegria de dentro da armação da sua barba negra e emaranhada cabeleira igualmente negra.

- Esteve longe de ser uma boa feira para dois, pelo menos, que tinham vindo à procura de lucros - disse Cadfael tristemente.

- Ah, mas em dinheiro ou noutra moeda? Embora no fundo tudo se resuma a dinheiro, dinheiro ou poder. Existe algum outro objectivo para os esforços dos homens?

- Uma causa, talvez, de vez em quando. Foi o meu amigo que disse, bem me recordo, que não há como uma das grandes feiras para encontros a que não se deseje dar publicidade. Não há lugar mais solitário que em pleno mercado! - E acrescentou suavemente: - Aposto que o próprio Owain Gwynedd teve cá os seus informadores. Embora precisassem de dominar bem o inglês - disse, sem malícia - para lucrarem bastante.

- Asssim teria de ser. Eu de nada serviria. Contudo, o irmão deve ter razão. Owain precisa de ter informações prévias, tal como qualquer outro, se quiser manter o seu principado em segurança, e acrescentar-lhe umas milhas aqui e ali. Ora quem será, de todos estes comerciantes com que me acotovelei, que vai fazer o seu relatório aos ouvidos de Owain?!

- E que conselhos lhe dará...? - completou Cadfael. Rhodri afagou a sua esplêndida barba, e os olhos negros pestanejaram:

- Penso que talvez lhe diga que a mensagem que o conde Ranulf esperava do Sul... quem sabe, talvez até do continente... nunca será entregue e, se quiser aproveitar ao máximo as oportunidades, deve procurar alargar os seus domínios, mas não para os lados da fronteira com Chester, pois o conde não correrá riscos, antes protegerá bem o que é seu. Owain faria melhor em se dirigir para os lados de Maelienydd e Elfael, deixando Ranulf em paz.

- Pensando bem - reflectiu Cadfael -, seria excelente cobertura para os informadores de Owain pedirem a ajuda de um intérprete nesta zona e serem vistos a precisarem dele. As línguas desatam-se mais facilmente na presença dos surdos.

- Boa ideia - aprovou Rhodri. - Alguém devia sugerir isso a Owain. - Havia, no entanto, todas as indicações de que o príncipe de Gwynedd não precisava da esperteza de outros homens para fortalecer a sua própria, pois fora excelentemente dotado por Deus logo à partida.

Cadfael gostaria de saber quantas outras línguas aquele simples mercador conhecia. Francês, quase de certeza o suficiente para os seus objectivos. Flamengo, possivelmente um pouco, viajara indubitavelmente pela Flandres. Não seria surpresa se também soubesse algum latim.

- Para o ano virá à Feira de S. Pedro?

- Pode ser, irmão, pode ser, quem sabe?! Apresentar-se-á outra vez para falar por mim, se eu vier?

- Com todo o gosto. Eu próprio sou homem de Gwynedd. Leve as minhas saudações consigo de regresso às montanhas. E faça boa viagem!

- Deus o proteja! - saudou Rhodri, sempre radiante e, dando-lhe uma pancada amigável no ombro, pôs-se a caminho da beira-rio.

Hugh mal pusera os pés na hospedaria quando Aline se lhe atirou aos braços, com um grito em que se misturavam o alívio e o desespero, e começou a verter-lhe nos ouvidos toda a sua confusão e ansiedade:

- Oh, Hugh, acho que devo ter feito qualquer coisa terrível! Ou isso ou Philip Corviser endoideceu. Esteve aqui a perguntar por Emma. Quando eu lhe disse que ela partira, desapareceu como um louco; está um mercador de Worcester nos estábulos a acusá-lo de lhe roubar o cavalo e fugir com ele, e nem me atrevo a supor o que tudo isto quer dizer, mas temo...

Hugh segurou-a ternamente, preocupado e solícito:

- Emma partiu? Mas ela ia connosco! Que aconteceu para a fazer mudar de ideias?

- Sabes que ele lhe tem feito a corte...? Veio esta manhã perguntar por ti... disse que tem uma irmã que vai entrar para o mosteiro de Minchinbarrow e, como tem de a escoltar até lá e fica apenas a cinco milhas de Bristol, podia levar igualmente Emma para casa, na companhia da irmã. Disse que passariam esta noite na mansão dele e partiriam amanhã. Emma concordou e eu não vi que houvesse algum mal. Por que havia de pensar? Mas o simples nome fez Philip saltar como um demente...

- Corbière? - interrogou Hugh segurando-a pelos ombros para a afastar um pouco e sondar ansiosamente o seu rosto.

- Sim! Sim, Ivo, claro... mas que tem isso tão mau? Leva-a para junto da irmã em Stanton Cobbold... pareceu-me o ideal, e a ela também, e tu não estavas cá para dizer sim ou não. Além disso, ela é senhora de si própria...

Era verdade, a jovem tinha vontade própria, gostava do homem que fizera a oferta e sentia-se lisonjeada por ter sido escolhida para os seus favores. Mesmo para preservar a sua própria independência, ela teria decidido ir, e Hugh, se tivesse estado presente, não teria então sabido ou suspeitado o suficiente para o impedir. Apertou os braços em redor da sua trémula esposa, para a confortar, com a face comprimida contra o cabelo dela.

- Meu amor, minha querida, não podias ter feito outra coisa, e eu teria feito o mesmo. Mas agora tenho de partir atrás deles. Não faças perguntas agora, saberás tudo mais tarde. Trá-la-emos de volta... nada está perdido...

- Então é verdade! - murmurou Aline, com a respiração palpitante a atingir o pescoço dele. - Há razão para temer algo de mau? Deixei-a acercar-se do perigo?

- Não a podias impedir. Ela é que decidiu ir. Não penses mais no teu papel, não desempenhaste nenhum... Como podias saber? Onde está Constance? Meu amor, detesto deixar-te assim...

Ele estava a pensar, claro, como todos os homens, pensou Aline, que qualquer preocupação que lhe perturbasse a esposa naquelas condições era uma perturbação potencial para o filho. Isso deu-lhe ânimo. Não era mulher para manter um homem em polvorosa, ansioso por ter todas as atenções para com ela, mesmo sendo o seu marido, desde que fosse necessário com mais urgência noutro lado qualquer. Libertou-se resolutamente dos seus braços.

- Claro que tens de me deixar. Não sofri, nem sofrerei nada. Vai, depressa! Têm umas boas três horas de avanço sobre ti e, além disso, se te demorares, Philip pode atirar-se de cabeça, sozinho, para algum problema. Manda chamar rapidamente todos os homens de que possas dispor, que eu vou ver o que posso fazer para aplacar o mercador cujo cavalo foi pedido de empréstimo... - Mesmo assim, ele tinha dificuldade em a largar. Aline tomou-lhe a cabeça entre as mãos, beijou-o com força e fê-lo voltar-se, precisamente quando Cadfael entrava a porta da hospedaria.

- Ela partiu com Corbière - disse Hugh, dando a notícia com o menor número possível de palavras. - Dirigem-se para a única mansão que ele tem em Shropshire. O rapaz partiu em perseguição deles, e eu tenho de fazer o mesmo. Vou mandar recado a Prestcote para fazer seguir uma guarda o mais depressa possível. Tu estarás aqui para tomar conta de Aline...

Mas ela duvidou disso, vendo a centelha que iluminou o olhar brilhante e combativo do irmão Cadfael. Apressou-se a dizer:

- Não preciso de ninguém para tomar conta de mim. Vão-se antes embora... os dois!

- Tenho licença - afirmou Cadfael, agarrando-se à virtude para disfarçar o seu ardor. - O abade Radulfus encarregou-me de garantir que nenhum mal adviesse à sua hóspede sob o nosso tecto, vou estender isso para além do nosso tecto e aproveitar também. Tens um cavalo que me podes dispensar, Hugh, para além do teu malhado ossudo. Vamos embora! Há um ano que não cavalgamos juntos.

 

 

                                                     Capítulo 3

 

O domínio de Stanton Cobbold ficava a umas boas dezassete milhas de Shrewsbury, no sul do condado e lado a lado com a grande propriedade que os bispos de Hereford possuíam naquela região e que abarcava uns nove ou dez coutos. A estrada passava pelas extensões mais abertas e iluminadas da Grande Floresta e, nos limites mais a sul desta, penetrava nas montanhas velhas do lado ocidental de uma longa cadeia sem vegetação, que se prolongava por algumas milhas. Aqui e ali um vale arborizado encostava-se-lhe ao flanco, e Corbière virou para um deles, seguindo por um caminho firmemente marcado. A tarde estava então no auge, o Sol na altura máxima, mas mesmo assim o grande número de árvores proporcionava uma súbita frescura e sombra. O baio esgotara o entusiasmo e seguia placidamente sob o duplo peso. Uma vez na floresta tinham-se detido por pouco tempo, e Ivo oferecera vinho e bolos de aveia como refeição de viagem, prestando a Emma todas as atenções delicadas que era possível. O dia estava bonito, a paisagem era-lhe estranha e bela, e ela embarcara numa aventura agradável. Aproximava-se de Stanton Cobbold com as melhores perspectivas, lisonjeada pela deferência de Ivo e ansiosa por conhecer a irmã dele.

Um ribeiro acompanhava o caminho, descendo da cadeia montanhosa. A vereda estreitava e as árvores apertavam-se mais. - Estamos quase em casa - informou Ivo por cima do ombro. E, poucos minutos depois, o terreno ascendente abriu-se diante deles numa faixa estreita e nivelada, protegida por uma paliçada. Dentro, a mansão tinha as traseiras solidamente encostadas à colina, com árvores por trás e dos dois lados, fechando-a na obscuridade. Um rapazito veio a correr abrir-lhes o portão, e entraram no espaço delimitado. Celeiros e currais alinhavam-se junto à paliçada, do lado de dentro. A mansão em si apresentava uma longa cripta de pedra, com contrafortes e aberturas para duas portas suficientemente largas para por elas passarem carros, e um andar de habitação por cima, também de pedra a quase todo o comprimento, onde se encontravam o salão, as cozinhas e as dispensas, mas, à direita, a pedra dava lugar à madeira e os mainéis de pedra a caixilhos de madeira com pesados taipais; e aquela zona de habitação em madeira era mais alta que a parte de pedra, parecendo haver um andar adicional sobre o primeiro. Uma escadaria de pedra levava à porta do salão.

- Bastante modesta - disse Ivo, virando a cabeça para lhe sorrir -, mas tem espaço para si e dá-lhe as boas-vindas.

Tinha muitos servidores: moços vieram a correr antes de o cavalo parar, uma criada apareceu à porta do salão e começou a descer com vivacidade ao seu encontro.

Ivo libertou-se dos estribos com dois pontapés, passou agilmente uma perna sobre a cabeça inclinada do cavalo e saltou para baixo, afastando Turstan Fowler com um gesto, para estender os braços a Emma e ajudá-la, ele próprio, a descer. O seu pouco peso não lhe deu qualquer problema e manteve-a no ar um longo momento, para o provar, rindo, antes de a pousar no chão.

- Venha, vou acompanhá-la até lá acima. - Afastou a criada com um movimento de mão, e ela manteve-se à distância, seguin-do-os timidamente pela escada, mas deixou-os entrar sozinhos quando chegaram ao salão. As espessas paredes de pedra atingiam o interior com um frio palpável. O salão era grande e de tecto alto, manchado de fumo, mas agora, de Verão, a enorme lareira estava vazia e fria. As janelas apaneladas deixavam entrar ar, muito mais agradável que o que se respirava lá dentro, e uma luz reconfortante, mas eram estreitas e pouco podiam fazer para contrariar o efeito opressivo da sala. - Não será a minha casa muito agradável - comentou Ivo com uma careta -, mas nestas fronteiras galesas construíamos para defesa, não para conforto. Venha para cima. A ala de madeira foi acrescentada mais tarde, mas mesmo lá a casa é fresca e escura. Até nas noites de Verão temos de acender a lareira.

Ao fundo do salão, umas escadinhas conduziam a uma galeria larga e duas portas.

- A capela - informou ele, indicando a da esquerda. - Há dois quartinhos de cama lá em cima, escuros, visto que dão para a encosta e as árvores estão muito próximo. E aqui, se me desculpar enquanto trato da sua bagagem e da minha e verifico se os cavalos são convenientemente postos no estábulo, virei em breve ter consigo.

A sala para onde a fez entrar continha uma pesada mesa, um banco trabalhado, cadeiras almofadadas, tapeçarias penduradas nas paredes e tapetes no chão, e era um lugar de algum conforto e elegância, embora algo sombrio e frio, principalmente devido à proximidade da encosta e do manto de árvores, e às janelas estreitas que pouca luz do dia deixavam passar, e filtrada pelas grossas ramadas. Aqui não havia lareira propriamente dita, pois a única chaminé servia o salão e as cozinhas; mas o chão era pavimentado no centro com grandes pedras, que constituíam uma protecção contra as brasas de uma braseira que ardia no centro desse espaço quadrangular, mesmo naquele dia de Verão. Uma discreta mistura de carvão e madeira estava incandescente, oferecendo conforto sem fumo. A luz do sol de Verão não conseguia aquecer através da espessura de uma braçada das paredes de pedra em baixo, e ali o sol, embora confrontado apenas com a amistosa madeira, quase nunca chegava.

Emma avançou para dentro da sala ficando a olhar com curiosidade à sua volta. Ouviu Ivo fechar a porta entre eles, mas foi só um som muito pequeno num grande silêncio.

Esperara que a irmã dele aparecesse imediatamente à chegada, e sentia um certo desapontamento, embora soubesse que tal não era razoável. Não mandara ninguém à frente para a avisar, como podia a jovem saber? Podia perfeitamente andar a passear pela colina para aproveitar o calor do Verão, ou ter que fazer em qualquer outro lado. Quando de facto chegasse, seria para ter o prazer de encontrar o irmão já em casa, e ainda por cima com uma visitante quase da sua idade, e para ouvir que a sua vontade ia ser satisfeita sem mais atrasos. A sua ausência, porém, constituía um desapontamento, e o facto de ele não ter feito qualquer observação sobre isso ou pedido desculpa diminuía-lhe o entusiasmo.

Começou a explorar a sala, interessada em tudo. A sua própria casa da cidade era agradável e cómoda por comparação, embora não menos escura e isolada, não devido às árvores, mas sim aos edifícios cuja construção era proporcionada por essas mesmas árvores. Tinha consciência de que nascera num meio comparativamente rico, mas de uma riqueza concentrada numa única habitação confortável e bem fornecida, enquanto aquela mansão de fronteira talvez representasse apenas um décimo do que Ivo possuía, sem ter em conta a terra ligada a cada uma dessas possessões. Ele próprio dissera que não era a sua casa muito agradável, não obstante dominar tantos hectares de terra, rendeiros livres e servos vilões que ela nem podia imaginar. Era outro mundo. Olhara-o à distância e fora ofuscada por ele, mas nunca ficara cega por isso.

Sentiu de súbito a convicção de que não era para ela, embora continuasse em mistério se isso lhe agradava ou não.

Em todo o caso, havia ali saber e gosto que ultrapassava a sua experiência. A braseira era um belo objecto, uma honra para o ferreiro que a produzira; sobre um tripé entrelaçado como ramos novos, o recipiente onde se fazia o fogo era uma latada. Se tivesse algum defeito, pensou ela, era o de ser demasiado alto para ter perfeita estabilidade. As almofadas das cadeiras tinham belos bordados de cenas de caça, embora estivessem desbotadas pelo uso e fricção e pelo toque de dedos gordurosos. Numa prateleira montada por debaixo da mesa, havia livros: um saltério, uma pasta de pelica com músicas, um tratado muito gasto, com estranhos diagramas. O trabalho das cadeiras, da mesa e das extremidades do banco representava com realismo plantas em crescimento. As tapeçarias que cobriam todas as paredes, entre as janelas e a porta, eram com certeza velhas, ricas, maravilhosamente trabalhadas, e em tempos teriam tido cores gloriosas, que ainda apareciam, aqui e ali, nas pregas mais protegidas; mas estavam enegrecidas pelo fumo, quase até se tornarem irreconhecíveis, e estragadas aqui e ali até ficarem em fio. Abriu uma prega e o perdigueiro, que se precipitava de mandíbulas abertas e patas esticadas entre os seus dedos, desintegrou-se em pó e flutuou no ar em lenta dissolução. Ela deixou cair os fios que segurava e afastou-se, consternada. O próprio pó nas suas palmas parecia cinza.

Esperou, mas ninguém aparecia. Provavelmente o tempo que esperou não foi tanto quanto supôs, não foi de modo nenhum tanto como sentiu, mas pareceu-lhe uma eternidade, um ano de vida.

Por fim, pensou que não ofenderia ninguém vagueando pela galeria, até à capela. Pelo menos talvez ouvisse se havia actividade em baixo. Ivo comprara tapeçarias flamengas para a sua nova mansão de Cheshire, podia muito bem estar a desdobrá-las e a deliciar-se com as suas cores vivas. Nessas circunstâncias, ela perdoar-lhe-ia um certo grau de negligência.

Pousou a mão na tranca da porta e ergueu-a confiadamente. A porta nem se mexeu. Ela voltou a tentar, com mais força, mas a barreira permaneceu imóvel. Não havia dúvida: a porta estava trancada.

O que Emma primeiro sentiu foi mera incredulidade, até divertimento, como se um acidente idiota tivesse feito descair a tranca, fechando-a por engano. Depois surgiu o desejo instintivo de todas as criaturas fechadas: o de sair; e só depois disso a centelha de alarme e a reaparição surpresa e furiosa, em busca de compreensão. Não fora engano, não! Fora Ivo que com as suas próprias mãos dera a volta à chave que a fechara.

Ela não era rapariga de entrar em pânico e desatar aos murros à porta. De que serviria isso? Ficou muito quieta, com a mão na tranca, enquanto o pensamento perseguia a verdade tão ferozmente como o cão da tapeçaria perseguira o veado. Ali estava ela numa sala do andar de cima, sem qualquer outra porta e com janelas não só demasiado estreitas até para o seu corpo magro conseguir por elas passar, como também a uma grande altura do solo, devido à existência da encosta. Não havia saída até alguém abrir a porta.

Acompanhara-o ingenuamente, de boa-fé, e ele transformara-se no seu carcereiro. Que queria dela? Emma sabia ter beleza, mas teve a súbita convicção de que ele não se daria a tanto trabalho por isso. Portanto não era a sua pessoa, e havia uma única coisa que ela detinha e pela qual já alguém se dispusera a ir a extremos. A morte tinha-a seguido por onde quer que passasse. Para uma dessas mortes contribuíra um servo de Ivo, e ele próprio fizera justiça sumária. Um sórdido ataque por lucro, um roubo que acidentalmente terminara em homicídio, e os bens roubados descobertos para o provar! Aceitara essa versão tal como todas as outras pessoas. Duvidar dela teria sido ver para além de um poço demasiado negro para se acreditar, mas agora espreitava para essa escuridão. Não fora outro senão Ivo que a engaiolara.

Ela não podia passar pelas janelas, mas já o mesmo não acontecia à carta que transportava consigo, embora isso equivalesse a correr o risco de que alguém a encontrasse. O peso era pouco, não seria possível atirá-la para muito longe. Mesmo assim, atravessou a sala até às janelas e espreitou para fora por entre as tabuinhas, para a encosta relvada e o friso de árvores em baixo; e aí, encostado à vontade ao tronco de uma faia, com a sua besta ao lado, encontrava-se Turstan Fowler, a olhar ociosamente para aquelas mesmas janelas. Quando avistou o rosto dela entre as madeiras do caixilho, fez um grande sorriso. Por ali não havia hipótese de auxílio.

Afastou-se da janela, a tremer. Rapidamente, retirou do sítio onde repousava, entre os seus seios, a bolsinha muito enrolada, de pelica, que sempre a acompanhara desde que mestre Thomas lha pendurara ao pescoço, antes de chegarem a Shrewsbury. Media quase o comprimento da mão dela, mas a espessura era a de dois dedos dessa mesma mão, e a fita de que pendia era de seda, com uma finura de teia. Não precisava de um esconderijo muito grande. Emma enrolou o fio de seda em torno da bolsinha e introduziu-a nas grandes madeixas formadas pelas tranças de cabelo negro-azulado e tapadas pela touca de rede sedosa, até a sua forma estar completamente disfarçada. Depois de ter ajustado a rede para a manter segura e parecer que o penteado não sofrera qualquer perturbação, teve de apertar as mãos uma na outra para as impedir de tremer, e inspirou profundamente, até acalmarem as palpitações do seu coração. Em seguida, assegurou-se de que a braseira ficava entre ela própria e a porta, mas, ao erguer o olhar para o outro lado da sala, sentiu o coração a que acabara de impor compostura saltar-lhe freneticamente no peito.

Uma vez mais, não conseguira ouvir a chave rodar na fechadura. Ele mantinha as suas defesas bem oleadas e silenciosas. Ivo estava ali à entrada, sorrindo confiadamente e fechando a porta atrás de si sem tirar os olhos dela. Emma percebeu pelo movimento do seu braço e do ombro que transferira a chave para dentro e a rodara novamente. Mesmo na sua própria mansão, com os servos em volta, não corria riscos. Mesmo não tendo um oponente mais forte que Emma Vernold! Seria, a seu modo, um cumprimento, mas que ela teria dispensado.

Como Ivo não podia saber se Emma experimentara ou não a porta, ela decidiu comportar-se como se nada tivesse acontecido para a perturbar. Recebeu-o com um sorriso expectante e abriu os lábios para se esforçar por fazer uma pergunta inocente, mas ele postou-se à sua frente:

- Onde está? Dê-ma livremente e não sofrerá nada. É o que lhe aconselho.

Não tinha pressa e continuava a sorrir. Ela via agora que esse sorriso era postiço, frio, superficial e decorativo como uma película dourada. Fitou-o de olhos muito abertos, com a expressão vazia e vaga de alguém a quem de repente falassem numa língua desconhecida.

- Não compreendo! Que é que tenho de lhe dar?

- Minha amiga, sabe muito bem. Quero a carta que o seu tio levava para o conde Ranulf de Chester, aquela que devia ter entregue na feira, por combinação anterior, a Euan of Shotwick, os olhos e os ouvidos do meu nobre parente. - Estava disposto a avançar lentamente, uma vez que o tempo já não contava. Até achava a perspectiva divertida e estava preparado para admirar o jogo dela, desde que por fim conseguisse os meus objectivos. - Não me digas, querida, que nem sequer ouviste falar em tal carta. Duvido que consigas mentir tão bem como eu.

- Na verdade - garantiu ela, abanando a cabeça desesperadamente -, não o percebo de todo. Nada mais lhe posso dizer, pois não sei nada de nenhuma carta. Se o meu tio levava alguma, como afirma, nunca me contou nada. Pensa que um homem de negócios conta as coisas importantes às mulheres da família? Está enganado quanto a ele, se acreditar nisso.

Corbière deu um, dois passos vagos dentro da sala e ela viu que não lhe restava qualquer vestígio de dificuldade no andar. O braseiro ardia com um brilho firme, escarlate, e essa luz reflectia-se como raios do sol-poente nas ondas douradas do seu cabelo.

- Foi o que eu pensei - concordou, rindo da recordação. -

Levei muito tempo, demasiado tempo até chegar a si, minha senhora. Eu não teria confiado numa mulher, não... Mas mestre Thomas, ao que parece, tinha outras ideias. E concordo que tinha uma jovem excepcional com quem lidar. Vejo que vale, admiro-a. Mas não deixarei que isso se interponha no meu caminho, acredite. O que detém é demasiado precioso para me deixar quaisquer escrúpulos, mesmo que eu fosse dado a tais fraquezas.

- Mas eu não a tenho! Não lhe posso dar uma coisa que não tenho em meu poder. Como conseguirei convencê-lo? - interrogou, com o primeiro repente de impaciência e indignação, embora soubesse de antemão que todos os fingimentos eram escusados. Ele sabia.

Ivo abanou a cabeça, sorrindo.

- Não está na sua bagagem. Até as costuras dos seus alforges abrimos. Portanto, está aqui, na sua pessoa. Não há outra possibilidade. Não estava com o seu tio, não estava nem na barcaça nem na cabina. Que hipótese restava a não ser a Emma? Emma e Euan of Shotwick, se de algum modo eu tivesse deixado um mensageiro escapar à minha guarda. A Emma sabia eu que a guardaria e me viria obediente à mão... só tive uma súbita desconfiança de que poderia tê-la metido em segurança no caixão de Thomas, mas isso era sobrestimá-la, minha querida, apesar de ser esperta. E Euan nunca chegou a recebê-la. Quem restava então a não ser Emma? Não a sua tripulação... só constituída por homens muito simples, mesmo que ele não tivesse recebido ordens de manter estrito segredo, como sei que recebeu. Duvido que até a si tenha dito o que estava na carta.

Era verdade, ela não fazia ideia do seu conteúdo. Fora-lhe simplesmente confiada para usar e guardar, como inocente óbvia, sobre quem nunca recairia a suspeita de ser correio fosse de quem fosse, mas a sua importância fora-lhe incutida muito poderosamente. Havia vidas, dissera-lhe o tio, que dependiam da sua entrega em segurança ou, na falta desta, do seu regresso ao remetente, igualmente em segurança. Ou, como último recurso, da sua destruição total.

- Estou cansada de lhe dizer - afirmou ela energicamente - que está enganado em supor que eu sei alguma coisa acerca disso, ou sequer que acredito que alguma vez tenha existido a não ser na sua imaginação. O senhor trouxe-me aqui a pretexto de me proporcionar a companhia da sua irmã e de nos conduzir a ambas a Bristol. Tenciona cumprir o que prometeu?

Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, com o brilho avermelhado a dançar-lhe nas belas maçãs do rosto.

- Não teria vindo comigo se eu não tivesse posto uma mulher na história. Se se portar agora com sensatez, pode ser que ainda venha a conhecer, um dia, a única irmã que tenho. É casada com um dos cavaleiros de Ranulf e mantém-me informado do que se passa na sua corte. Mas nunca seria freira, mesmo que não estivesse já casada. Quanto a enviá-la em segurança de regresso a Bristol... sim, isso farei, quando me tiver dado o que eu quero. E que vou ter! - acrescentou com um estalido, e os seus lábios bem feitos e sorridentes estreitaram-se e retesaram-se em lâmina de espada.

Houve então um momento em que ela quase considerou a hipótese de lhe obedecer e desistir do que mantivera tão obstinadamente através de tantos choques. Por essa altura o medo era uma realidade, mas também a fúria o era, tanto mais feroz quanto ela estava a tentar tão resolutamente suprimi-la. Ele avançou um passo na sua direcção, com o sorriso tão fino como o de um gato a atirar-se a um pássaro, e ela moveu-se com igual firmeza para manter a braseira entre os dois; isso também o divertiu, pois tinha ampla paciência.

- Não entendo - disse ela, franzindo a testa como se tivesse começado a sentir genuína curiosidade - por que há-de atribuir tanta importância a uma carta. Se a tivesse, acha que lha recusaria, quando estou em seu poder? Mas por que lhe interessa tanto? Que pode estar numa simples carta?

- Rapariga tonta, pode haver vida e morte numa carta - disse ele, condescendente com a simplicidade dela -, riqueza, poder, até terra a ser ganha ou perdida. Sabes o que esse simples pacotinho pode valer? Para o rei Estêvão, todo o seu reino! Para mim, talvez um condado. E para um grande núnero de outros, a vida! Pois creio que deves saber, apesar de toda a tua inocência, que Roberto de Gloucester tem planos elaborados para trazer a imperatriz Maud para Inglaterra, defender pelas armas a candidatura dela ao trono, e tem tentado através dos seus agentes de cá obter o apoio do conde Ranulf para a sua causa quando desembarcarem. O meu nobre parente tem a cabeça dura e exigiu provas de força dessa causa, antes de erguer a mão ou mexer o pé para se comprometer. Nomes, números, todos os pormenores, se bem conheço Ranulf, foram eles forçados a pôr por escrito para o satisfazer. Toda a história dos inimigos do rei, os nomes de todos os que agora dizem apoiá-lo mas se estão a preparar para o trair. Pode haver uns cinquenta nomes na lista e ela servirá igualmente, podes crer, para a ruína de Ranulf, pois, mesmo que o seu nome não esteja lá, ele já chegou ao ponto de considerar a hipótese de o acrescentar. Quanto não dará o rei Estêvão para que isso lhe chegue às mãos? Tudo passado a escrito, até pode ser que tenha a data em que planeiam partir e o porto onde esperam desembarcar. Todos os seus inimigos aniquilados antes de poderem reunir-se, uma prisão preparada para Maud antes de ela sequer pôr o pé em terra. Isso, minha filha, é o que tenciono oferecer ao rei, e não duvides de que conseguirei obter um bom preço.

Ela fitava-o para o outro lado da braseira, com o cenho carregado e o desgosto no olhar, sentindo o sangue gelar-lhe nas veias e todo o corpo a arrefecer. Ele nem sequer tomava um partido! Matara, ou encarregara outros de matar, já por três vezes, e não por uma causa, mas sim fria e metodicamente, para seu próprio lucro e promoção. Não lhe interessava nada qual deles tinha a coroa: Estêvão ou Maud. Se a oportunidade fosse de deitar antes as mãos a informações de valor para Maud e se ele sentisse que as probabilidades eram de ela prevalecer e o recompensar bem, teria traído Estêvão e todos os seus apoiantes com a mesma desenvoltura.

Sentiu-se aterrorizada pela primeira vez, com o peso de todas aquelas vidas em perigo a oprimir-lhe o coração como um enorme pedregulho. Não tinha dúvidas de que o que ele calculava estar na carta devia aproximar-se muitíssimo da verdade, o que seria suficiente para destruir muitos homens que aderiam ao mesmo lado que o tio servira com devoção. Este fora um partidário apaixonado, o que lhe custara a vida. Agora, a menos que ela conseguisse operar um milagre, a mensagem que transportara custaria muitas mais vidas, derramamento de sangue, perda de bens, ruína. E tudo para o enriquecimento e promoção de Ivo Corbière! Ela seguira e apoiara mestre Thomas por uma questão de lealdade familiar. Agora isso já nada significava e tudo o que sentia era um desejo desesperado de evitar mais mortes, de não trair qualquer homem, de um ou outro lado da disputa, aos seus inimigos do outro lado. Ajudar todos os fugitivos, esconder todos os homens perseguidos, manter as esposas sem enviuvarem e os filhos com os pais era muito melhor que lutar e matar, fosse por Estêvão fosse por Maud.

Não deixaria que ele os imolasse! Fosse qual fosse o preço, ele não avançaria impunemente para o seu novo condado sobre os corpos de outros homens.

- Não tenho nada contra si - ia dizendo Corbière, confiante e à vontade. - Dê-me a carta e chegará a Bristol em segurança e com vantagem. Mas não pense que, por outro lado, terei escrúpulos em lhe dar a devida conta, se me contrariar.

Ela permaneceu rígida e imóvel, as mãos em concha sobre as faces, como se as comprimisse fortemente para conter o medo. As pontas dos dedos trabalhavam invisíveis sob a beira da rede de tecido, indo até às madeixas de cabelo, à procura do pequeno cilindro de pelica, mas, frente a frente com ela, Ivo não via qualquer movimento.

- Vamos, não me atraís tanto que devas temer violação - dizia ele, sorrindo desdenhosamente -, desde que sejas sensata, mas apesar de tudo não me seria difícil despir-te com as minhas próprias mãos, se fores obstinada. Até podia ser que me desse prazer, se o acto se revelasse excitante. Entrega-a, ou ser-te-á arrancada à força. Por esta altura já deves saber que não deixo nenhum homem atravessar-se no meu caminho, muito menos uma rapariguinha sem importância, filha de um logista qualquer.

Sem importância! Não, nunca tivera qualquer importância para ele, nem por um momento, só utilidade na prossecução implacável dos seus próprios desígnios ambiciosos. Emma continuava como que congelada, só que, quando Corbière avançava calmamente, agora com um sorriso de lobo esfaimado, ela circulava centímetro a centímetro, para manter a braseira entre os dois. O centro dela tinha um brilho avermelhado. Emma mantinha-se muito perto, como se só aquele âmago de calor lhe proporcionasse algum conforto e protecção; e de súbito desmanchou o penteado e arrancou a carta, rasgando ao mesmo tempo, com a pressa, a rede de seda. Não se atreveu a deitá-la simplesmente ao fogo, podia rolar para fora ou ser recuperada com facilidade. Com um impulso desesperado, enfiou-a bem para o centro do brilho e manteve-a aí por um momento agonizante, retirando depois os dedos queimados, com um gritinho que soou meio a dor, meio a triunfo.

Ele soltou um berro de fúria e precipitou-se com igual rapidez para a recuperar, mas a rede inflamara-se imediatamente, minúsculas línguas de fogo treparam para lhe lamber a mão, e tudo o que tocou da preciosa carta, antes de recuar, foi o lacre do selo, que logo se derretera e agarrara ardentemente aos seus dedos, enquanto Ivo os contorcia e gemia de dor. Ela ouviu-se rir, e nem podia acreditar que era a fonte desse som. Ouvia-o amaldiçoá-la desenfreadamente, mas nessa altura ele estava demasiado interessado em recuperar o seu prémio para se virar contra Emma. Corbière arrancou a cota, enrolou um canto da aba em volta da mão e inclinou-se para voltar a agarrar o cilindro que brilhava, espetado na braseira. E obtê-lo-ia, talvez desfigurado e incompleto, mas seria o suficiente para os seus objectivos. A cobertura exterior ainda não estava completamente queimada. Não podia ser, ela não o consentiria! Emma baixou-se no momento em que ele agarrava a carta, deitou a mão sã à perna da braseira e derrubou-lha por cima dos tornozelos e dos pés.

Ivo soltou um berro, saltando para trás. Voaram carvões incandescentes, que logo caíram em cascata, fazendo um sulco castanho no chão e uma agitação de fumo e cheiro de lã queimada ao chegar ao tapete mais próximo, atingindo as sequíssimas abas das tapeçarias que pendiam da parede entre as duas janelas. Subiu um som estranho, como de inspiração profunda, uma serpente de chamas instantâneas trepou a parede, a seguir uma árvore de fogo cresceu, engrossou, deitou ramos de luz para todos os lados, ocupou todo o espaço entre as janelas e correu para os dois lados, como cães de caça, até chegar às cortinas empoeiradas das paredes mais próximas. Uma frágil casca de fogo rodeou toda a sala antes de Emma conseguir sequer sair da sua imobilidade horrorizada.

Viu os caçadores e caçadoras das tapeçarias adquirirem por um instante uma vida trémula, os cães saltarem, as árvores da floresta brilharem ferozmente, antes de todos se desintegrarem em pó cintilante. O fumo subia de uma dúzia de fragmentos incandescentes sobre metade do pavimento, e a visão obscurecia-se rapidamente.

Algures naquele inferno súbito para além da lareira, Ivo Corbière, camisa e cabelo em chamas, por uma volta de tapeçaria inflamada lhe ter caído em cima, rolava e guinchava de agonia, e os sons que emitia dilaceravam os sentidos dela. Por trás, uma parede da sala ainda não fora atingida, mas as chamas devoradoras circulavam de ambos os lados nessa direcção.

Havia um tapete ainda incólume atrás dela. Arrancou-o, tentando lançá-lo sobre o homem que ardia, mas o fumo adensava-se rapidamente, fazendo-lhe arder os olhos e cegando-a, e raios de fogo saíam em jacto de fumo, fazendo-a recuar. Atirou o tapete, para o caso de ele ainda conseguir agarrar-se-lhe e enrolar-se nas suas pregas, que abafariam as chamas, mas então já sabia ser demasiado tarde para que alguém o pudesse ajudar. A sala estava cheia de fumo, Emma comprimiu a manga larga sobre a boca e as narinas e recuou perante os terríveis gritos que lhe penetravam os ouvidos. E ele tinha a chave consigo! Agora não havia esperança de chegar até ele, não havia esperança de recuperar a chave. A sala estava em chamas, a madeira das janelas, das paredes e do chão começavam a estalar com barulho soltando roncos e cuspindo estranhos jactos de fogo.

Emma recuou, protegendo a cara, e martelou a porta, gritando por socorro, numa tentativa de se sobrepor aos furiosos sons daquele braseiro. Pareceu-lhe ouvir gritos algures em baixo, mas à distância. Enrolou as mãos nas tapeçarias dos dois lados da porta, onde as chamas ainda não tinham chegado, rasgou o tecido quase podre, enrolou-o numa bola para resistir às faúlhas e atirou-o para a fornalha do outro lado da sala. Que a porta, ao menos, ficasse livre, para por ela se poder passar. Puxou para baixo todas as cortinas que ainda não estavam a arder. Esquecera a mão queimada, usava-a tão livremente como a outra. Claro que todas as outras vidas estavam agora suficientemente seguras, nunca ninguém leria a carta que não fora possível fazer chegar às mãos de Ranulf de Chester. Quanto àquela terrível vida, fechada com ela na mesma sala, já devia estar quase extinta, os sons que emitia quase se perdiam na voz do fogo, que era ofegante, ansiosa, não muito diferente do sussurro obcecado do terreno da feira. Ela também tinha a vida para perder. Era jovem, animada, resoluta, não a perderia mansamente. Martelou a porta, gritando uma vez mais. Ninguém apareceu. Não ouviu vozes, nem passos apressados nas escadas que levavam à galeria, nada a não ser o cantar do fogo, aumentando firmemente de um murmúrio até um estrondo, como multidão em fúria, mas mais harmónico, afirmação triunfante de uma única vontade.

Emma baixou-se até ao buraco da fechadura e gritou por ele enquanto teve fôlego e forças. Então já não via nem pensava, em torno dela tudo era negrura a adensar-se, e sobre a garganta sentia como que uma mão a estrangulá-la. Da posição em que se encontrava descaiu sobre os joelhos e vergou-se para a frente, ao longo da base da porta, ficando caída, com a boca e o nariz comprimidos contra a fenda que deixava entrar uma réstea de ar puro. Passado pouco tempo, perdeu a consciência de tudo, até de respirar.

 

 

                                                       Capítulo 4

 

Philip perdeu-se por instantes no emaranhado de caminhos de vale que se entreteciam entre as colinas, depois de sair da Grande Floresta, e foi forçado a procurar alguém da região, no primeiro lugar a que chegou, para que lhe indicassem como seguir para a estrada de Stanton Cobbold. Conhecia vagamente o sítio, mas não a mansão. O aldeão deu-lhe instruções precisas e, virando-se para seguir com o olhar o seu próprio gesto, viu a primeira fina coluna de fumo elevar-se para o céu calmo, e engrossar e escurecer rapidamente enquanto a fitava.

- Pode ser ali mesmo ou mais perto. Os bosques estão suficientemente secos para haver problemas. Deus queira que consigam evitar que chegue à casa, se algum idiota fez alguma faísca...

- A que distância fica? - interrogou Philip, de olhos loucamente fixos.

- Mais de uma milha. O melhor...

Mas Philip partira comprimindo os calcanhares contra os lados do cavalo roubado, num galope desenfreado. Era mais frequente ter os olhos na coluna de fumo em crescimento encapelado que na estrada, e arriscou-se, naqueles caminhos pouco usados e irregulares, a cair uma dúzia de vezes, mas a sorte protegeu-o. Minuto a minuto, o espectáculo tornava-se mais alarmante, com o vermelho das chamas a regurgitar espasmodicamente contra o negro do fumo. Muito antes de chegar à mansão e se precipitar de entre as árvores em direcção à paliçada, já ouvia o estalar das traves a racharem-se ao calor com maior ruído que o provocado por machadadas. Era a casa, não a floresta.

O portão estava aberto e, lá dentro, os servos frenéticos corriam numa confusão, arrastando para fora do salão e da cozinha todos os haveres que conseguiam, salvando dos estábulos e aidos, perigosamente perto da parte de madeira da casa, os cavalos aterrorizados a guincharem e o gado hiante. Philip fitou de boca aberta a torre de fumo e chamas que engolfava uma ala da casa. O longo edifício de pedra, onde se encontravam o salão e o andar térreo, resistiria, embora como concha esburacada. Mas a parte de madeira já era uma fornalha. Homens confusos e mulheres aos gritos corriam loucamente de um lado para outro, sem lhe prestarem a mínima atenção. O desastre tinha-se precipitado tão de súbito sobre eles que estavam meio dementes.

Philip soltou os pés dos estribos, que estavam demasiado altos para ele, mas nem se detivera a alongar-lhes as correias, e pulou do cavalo, deixando-o a vaguear à vontade. Um dos vaqueiros atravessou-se-lhe e ele fê-lo rodar sobre si próprio para ficarem frente a frente.

- Onde está o teu senhor? Onde está a donzela que para cá trouxe hoje? - O homem estava atrapalhado e foi lento a responder; Philip sacudiu-o furiosamente. - A donzela... que lhe fez ele?

A arfar desesperadamente, o homem apontou para o pilar de fumo.

- Estão no solar... o meu senhor também... Foi lá que começou o fogo.

Philip largou-o sem mais palavra e começou a correr em direcção à escada que levava à porta do salão. O alarido do homem seguiu-o.

- Louco, lá é o interior do Inferno, ninguém podia sobreviver! E a porta está trancada... ele tinha a chave com ele... Vai à procura da morte!

Nada causava qualquer impressão a Philip, até a menção de a porta trancada o fazer parar abruptamente. Se não houvesse outro caminho, teria de entrar por uma porta trancada. Deitou olhares em volta, para todas as pilhas de cortinados, móveis e utensílios que tinham arrastado para fora, para o pátio, à procura de algo que pudesse usar para derrubar uma tal barreira. A cozinha fora esvaziada, havia cutelos de carne e facas, mas, melhor ainda, uma das pilhas era de armas retiradas do salão. Um dos antepassados de Corbière, ao que parecia, fora adepto da acha de armas. E aquelas cobardes criaturas do domínio não tinham feito qualquer tentativa para usar uma arma tão à mão! O seu senhor bem podia assar, que não se arriscariam a queimar a mão por ele.

Philip subiu os degraus de pedra três a três e entrou na caverna negra e asfixiante do salão. Afinal o calor não era tão intenso ali, as paredes de pedra eram espessas, e o próprio pavimento era empedrado, sobre as grandes traves do andar térreo. O pior inimigo era o fumo, que lhe atingiu a garganta, amargo e venenoso, logo à primeira inspiração. Deteve-se o pouco tempo necessário para rasgar a camisa e rodear com ela o rosto, a fim de cobrir o nariz e a boca, seguindo depois a louca velocidade, às apalpadelas à parede, em direcção à outra extremidade do salão, de onde provinha o calor e o fumo. Não pensava, fazia o que tinha de fazer. Emma estava algures naquele inferno, e nada importava a não ser tirá-la de lá.

Descobriu a base das escadas que levavam à galeria ao tropeçar cegamente no primeiro degrau, e subiu esse lanço baixando-se o mais possível, porque lhe parecia que a massa de fumo rolava nas proximidades do tecto. A forma da porta da sala revelou-se-lhe pela moldura de fumo em fina corrente constante que a rodeava. A madeira em si ainda não estava a arder. Bateu, tentou forçar a porta e chamou, mas nenhum som provinha do interior, além do crepitar do fogo. Tinha mesmo de derrubar a porta.

Fez revolutear a acha como um selvático guerreiro nórdico, fazendo pontaria para a fechadura. A porta era forte, a madeira velha e temperada, mas achas menos formidáveis haviam derrubado as árvores donde se fizeram. Os olhos ardiam-lhe, vertendo lágrimas que constituíam um auxílio por humedecerem o tecido que lhe tapava a boca. Os golpes deslocavam as traves da porta, mas a fechadura resistia. Philip continuou a fazer revolutear a acha. Começara a aprofundar uma fenda mesmo por cima da fechadura, de tal maneira que já tinha dificuldade em retirar a acha. Atingiu repetidamente o mesmo sítio, apercebendo-se de que voavam lascas, e de súbito a fechadura soltou-se com um agudo guincho metálico e a porta cedeu, só para emperrar de novo depois de ele a ter aberto não mais que a largura da mão. A parte de cima, quando a sondou, não ofereceu resistência. Procurou ao nível do chão, da parte de dentro, e fechou a mão sobre um caracol de cabelo sedoso. Ela estava lá, caída ao longo da porta, e, embora o calor que se precipitou para ele fosse aterrorizador, contudo, só o fumo a tinha atingido, não as chamas.

A abertura da porta proporcionara entrada de ar que alimentava as chamas, fora tal o brilho que se incendiara para além da negrura que ele sabia ter apenas minutos antes de o braseiro os engolfar a ambos. Freneticamente, inclinou-se para lhe agarrar no braço e a arrastar para o lado, a fim de poder abrir a porta o mais breve possível e só o suficiente para a fazer passar, voltando a fechá-la de seguida, como protecção contra o demónio do interior.

Houve uma grande explosão de chamas rubras, de que saiu uma língua pela abertura para lhe chamuscar o cabelo, e logo a teve içada aos ombros com o seu pequeno peso morto, arrastou novamente a porta atrás de ambos e seguiu, meio a cair meio a correr, pelas escadas abaixo, com ela nos braços, sem que o demónio do fogo tivesse feito pior que atirar-se-lhes aos calcanhares. Ele nem sequer se apercebeu, até tirar os sapatos, muito mais tarde, que os próprios degraus da escada tinham estado a queimar-se sob os seus pés.

Chegou à porta do salão com a cabeça à roda e o peito arquejante para respirar, e teve de se sentar nos degraus de pedra com o seu fardo, por ter medo de cair com ela. Ansiosamente, arrastou para dentro de si o ar puro do exterior e puxou da cara a camisa enfumarada. A vista e o ouvido eram vagos e indistintos e nem sequer soube que Hugh Beringar e a sua guarda tinham chegado ao pátio enquanto o irmão Cadfael não subiu apressadamente as escadas para o aliviar com doçura do peso de Emma.

- Meu bom rapaz! Já a tenho nos meus braços. Desce daí atrás de nós... encosta-te a mim enquanto descemos, isso! Vamos arranjar um canto seguro para vocês e ver o que podemos fazer por ambos.

Philip, com repentinas tremuras e tão fraco que nem se atrevia a confiar que as pernas o sustentassem de pé, perguntou num terror de agonia e aflição:

- Ela está...?

- Está a respirar - sossegou o irmão Cadfael. - Vem ajudar-me a tratar dela e, com a ajuda de Deus, tudo correrá pelo melhor.

Emma abriu os olhos para um céu limpo e pálido e para dois rostos concentrados e ansiosos. O do irmão Cadfael reconheceu imediatamente, pois tinha o seu habitual aspecto de abertura amistosa, embora ainda não conseguisse perceber como ele chegara ali, nem sequer onde ela própria se encontrava. O outro estava tão perto do seu que o via desfocado, e era bastante intempestivo e estranho, sujo da testa ao queixo de uma negrura entrecortada por riachos secos de transpiração, com o cabelo castanho encaracolado e mais escuro por ter ardido, junto de uma têmpora, mas tinha dois belos e límpidos olhos castanhos, tão honestos como a luz do dia por cima, e fixos nela com tanta devoção que aquela cara, apesar de desfeada e de nunca ter sido notável pela beleza, lhe pareceu a mais agradável e reconfortante que alguma vez vira. A última face que os seus olhos tinham contemplado, antes de se tornar uma horrorosa lanterna de fogo, fora a face da ambição, da ganância e do homicídio, numa possível casca de beleza. Esta face era o reverso da medalha humana.

Só quando se mexeu um pouco, e ele mudou de posição para a acomodar mais confortavelmente, se apercebeu de que jazia nos seus braços. As sensações e a consciência foram lentamente recuperadas, e até a dor levou tempo a manifestar-se. Tinha a cabeça aninhada na depressão do ombro dele, e uma das faces repousava encostada à frente da sua cota. Roupas de trabalho de um artesão, tecidas em casa. Claro, ele era sapateiro. Um rapazinho, sem importância, filho de um logista qualquer! De muito se poderia orgulhar. O cheiro de fumo e queimado ainda pairava sobre ambos, apesar dos cuidados de Cadfael com um balde de água do poço. O rapazinho sem importância, filho de um logista qualquer, entrara na mansão à procura dela e trouxera-a para fora, viva. Fora tão importante como isso para ele. Uma rapariguinha, filha de um logista qualquer...

- Tem os olhos abertos - disse Philip num murmúrio ansioso. - Está a sorrir.

Cadfael inclinou-se para ela:

- Como estás agora, minha filha?

- Viva - pronunciou ela, quase inaudivelmente, mas com grande alegria.

- Assim é, graças a Deus, e aqui ao Philip logo a seguir a Ele. Mas não te mexas, havemos de arranjar uma capa para te embrulhar, pois vais sentir o frio que sucede ao perigo. Também vais sentir dores, minha pobre criança. - Ela já sabia das dores. - Tens uma das mãos muito queimada, e eu não trouxe unguentos, só posso tapá-la para a isolar do ar, até regressarmos ao burgo. Mantém a mão imóvel, se puderes, quanto mais melhor. Como é que escapaste sem mais queimaduras, mas a dessa mão é tão profunda?

- Pu-la na braseira - contou Emma, recordando-se. Viu com que olhos de espanto Philip recebeu a informação, e apercebeu-se do que dissera; e de súbito pareceu-lhe que o mais importante de tudo era que Philip não devia saber todos os pormenores, que a sua natureza cândida e límpida não devia ser levada a explorar o uso de mentiras, enganos e subterfúgios, por mais rectas que fossem as causas ao serviço das quais fossem postos. Um dia talvez contasse a alguém, mas não seria a Philip. - Tive medo dele - disse, emendando cuidadosamente - e derrubei a braseira. Não era minha intenção começar um fogo assim...

Num local estranhamente distante do canto de paz onde ela se encontrava, Hugh Beringar, o sargento e os guardas que o tinham seguido a partir de Shrewsbury reuniam os servos desvairados para procederem à recuperação do que fosse possível e humedeciam todos os anexos que ainda estivessem em perigo de apanhar faúlhas e destroços, para que os animais pudessem ser recolhidos e um tecto, ao menos, pudesse ser proporcionado aos homens e mulheres. O fogo ardera tão ferozmente que já se estava a extinguir, mas só passados dias o calor se desvaneceria o suficiente para remexerem as cinzas, à procura do corpo de Ivo Corbière.

- Levantem-me - pediu Emma. - Deixem-me ver!

Philip ergueu-a para a sentar ao seu lado na relva verde e limpa. Estavam num canto do pátio, de costas voltadas para a paliçada. Acompanhando o perímetro dela, os celeiros e aidos fumegavam ao sol do fim da tarde, com baldes de água que lhes lançaram para cima. Junto da ala de habitação ainda havia homens a trabalhar, transportando baldes em cadeia, a partir do poço. Haveria tectos suficientes para abrigar cavalos, gado e gente, até se poder arranjar melhor. Tinham o equipamento da cozinha, os armazéns do andar térreo talvez estivessem danificados, mas nem tudo se teria perdido. Naquele tempo de Verão, passariam suficientemente bem, e alguém tomaria providências a fim de recuperar a mansão antes do Inverno. Tanto terror, afinal, só ceifara uma vida.

- Está morto - afirmou ela, de olhos fixos na ruína de que emergira viva, mas ele não.

- Não há outra hipótese - confirmou Cadfael simplesmente. Não ofereceu explicações, mas ela sabia.

- E o outro?

- Turstan Fowler? Está preso. O sargento tem-no sob a sua guarda. Foi ele, creio - continuou Cadfael suavemente -, que matou o teu tio.

E Emma esperara que, à aproximação de Beringar e da lei, ele se tivesse apoderado de um cavalo e dado às de Vila Diogo, mas, bem vistas as coisas, não tinha qualquer razão para suspeitar de que se encontrava em apuros: não estava a ser acusada de nada quando saíra de Shrewsbury; toda a gente na abadia devia estar convencida de que Emma fora convenientemente conduzida a casa, em Bristol. Por que haviam de duvidar disso? Por que tinham duvidado disso? Ela tinha muito para saber, assim como muito para contar. Haveria tempo, mais tarde. Agora não havia tempo senão para viver, para exultar por estar viva, para estar satisfeita e grata, e talvez, gradualmente e com um prazer a descobrir, para amar.

- Que lhe acontecerá? - quis saber.

- Com certeza contará tudo o que sabe e atribuirá as maiores culpas ao verdadeiro responsável, o seu senhor. - Cadfael duvidava, mesmo assim, de que Turstan pudesse ter esperança em escapar à forca, e até de que o devessse, mas não lho disse. Naquele momento ela estava profundamente preocupada com a vida e a morte, e disposta a ter misericórdia até para os mais baixos e piores, devido à grandeza da misericórdia manifestada para consigo. E isso era bom, Deus o livrasse de dizer alguma coisa que contribuísse para desfigurar essa atitude.

- Tem frio? - indagou Philip ternamente, sentindo-a estremecer junto ao seu braço.

- Não - respondeu ela imediatamente, e virou um pouco a cabeça na cova do ombro dele, encostando a testa à sua face enfarruscada. Philip sentiu-lhe a suave curvatura dos lábios no seu pescoço, quando Emma sorriu, e ficou cheio de uma tão segura sensação de posse que nunca mais alguém conseguiria afastá-la de si.

Hugh Beringar foi ter com eles, passando pela relva repisada do pátio, e até o seu aspecto normalmente impecável era de fumo e odor a fogo.

- Fez-se o que se podia - informou, limpando a cara. - É melhor levarmo-la de regresso a Shrewsbury, aqui não há acomodações. Por enquanto vou deixar cá o meu sargento e a maior parte dos homens, mas o seu lugar - disse, dirigindo a Emma um sorriso algo cansado - é numa cama confortável, com o ferimento convenientemente tratado, e não vale a pena pensar em se mexer até estar restabelecida. Bristol terá de esperar por si. Vamos levá-la para junto de Aline, na abadia, lá estará à vontade.

- Não - interveio Philip, com absoluta segurança. - Vou levar Emma para junto da minha mãe, em Shrewsbury.

- Muito bem, assim será - concordou Hugh -, fica a dois passos. Mas dê a Cadfael tempo de procurar no seu dispensário da abadia os unguentos e poções que quiser, e deixe Aline ver por si própria que não abandonámos Emma ao perigo. E não se esqueça, meu amigo, de que deve qualquer coisa a Aline por entreter o tipo a quem roubou o cavalo e por lhe proteger a retaguarda enquanto o não restitui.

Sob a camada de fuligem, Philip ainda conseguia corar.

- É verdade, é provável que acabe outra vez na cadeia por roubo, mas só depois de ver Emma alojada em segurança e entregue aos cuidados da minha mãe.

Hugh riu e deu-lhe uma palmada amigável no ombro.

- Nem nessa altura nem nunca, enquanto eu estiver no cargo... a menos que decida dar um pontapé nos dentes da lei em qualquer outra ocasião. Satisfaremos o mercador, Aline já o terá adoçado até à complacência, vai ver. O cavalo foi escovado, bebeu e descansou enquanto Philip esteve ocupado noutras coisas, e vamos levá-lo de regresso sem qualquer carga e também sem marcas da aventura. Há aqui muitos cavalos, vou escolher o melhor para transportar com firmeza duas pessoas. - Fora deitando uma olhadela a Emma enquanto organizava o transporte da água e a arrumação dos utensílios caseiros, portanto sabia ser inútil tentar arrancá-la aos braços de Philip ou encomendar uma liteira para a transportar de volta. Aqueles dois estavam tão unidos que só um idiota tentaria separá-los, nem que fosse só por algumas horas; e Hugh não era nenhum idiota.

Embrulharam-na cuidadosamente numa manta tomada de empréstimo de entre as roupas de cama salvas, mais para a proteger confortavelmente que para lhe dar calor, pois o fim de tarde continuava sereno e agradável, enbora ela ainda pudesse vir a sofrer de frio que se segue a um esforço. Emma aceitava tudo com serenidade, como um sonho, apesar de as dores na mão deverem ser agudas, como eles imaginavam. Parecia não sentir senão uma suprema paz interior, que fazia que tudo o resto deixasse de ter importância. Montaram Philip num grande cavalo castrado, de dorso largo e passo firme, depois ergueram Emma até ele, enfaixada no cobertor, e ela instalou-se no ninho do seu colo, braços e ombro, como se Deus a tivesse feito para aí se encaixar.

- E talvez assim tenha sido - comentou o irmão Cadfael, cavalgando atrás, com Hugh Beringar muito perto de si.

- Tenha sido o quê? - inquiriu Hugh, partindo de considerações muito diferentes, pois dois guardas seguiam atrás deles com um Turstan Fowler amarrado.

- Tenha providenciado tudo - respondeu Cadfael. - Afinal, isso é muito dele.

A meio caminho de Shrewsbury ela adormeceu-lhe nos braços, aninhada contra o seu peito. Devido a ter caído o cabelo negro, que cheirava a fumo, ele só lhe podia ver a metade inferior do rosto, mas a boca era suave, húmida e sorridente, e todo o seu peso se derretia e moldava no ninho do seu corpo amante como num leito conjugal. No sonho passara além da dor na mão queimada. Era como se tivesse introduzido essa mão no futuro e descoberto que valia a pena. A esquerda, que não estava marcada, agarrava-se-lhe calorosamente à cintura, por dentro do casaco, apertando-o contra si no sonho.

 

 

                                                 Capítulo 5

 

A escuridão das belas noites de Verão, que nunca é completa, mostrava uma feira de cavalos deserta, sem vestígios dos últimos três dias, a não ser as manchas pisadas e as marcas dos tripés na relva. Tudo terminara para só se repetir daí a um ano. Os ecónomos da abadia tinham reunido os lucros de rendas, direitos e impostos, apresentado as suas contas e ido para a cama. Também isto tinham feito os monges da abadia, os servos leigos, os noviços e os discípulos. Um porteiro ensonado abriu-lhes o portão; e misteriosamente, aos sons da sua chegada, embora circunspectos e abafados, o grande pátio acordou para a vida. Aline surgiu a correr da hospedaria, com o mercador prejudicado, agora notavelmente aplacado; atrás de si, o irmão Mark do dormitório e o próprio secretário do abade Radulfus dos aposentos deste, com o pedido ao irmão Cadfael de que lá fosse ter assim que chegasse, por mais tarde que fosse.

- Mandei-lhe dizer com que podíamos contar - informou Hugh -, antes de partirmos. Era justo que fosse informado. Deve estar ansioso por saber como tudo terminou.

Enquanto Aline levava Emma e Philip, só meio acordados e com uma docilidade estupefacta, para descansarem e se recomporem na hospedaria, o irmão Mark corria ao herbário para ir buscar pasta de folhas de amendoeira e unguento do manto de Nossa senhora, conhecidos específicos para queimaduras, e os homens de armas seguiam para o castelo com o seu prisioneiro, o irmão Cadfael apresentou-se a Radulfus no seu gabinete. Tanto ao meio-dia como à meia-noite, o abade estava igualmente bem desperto. À luz da única vela que ardia, observou Cadfael e perguntou simplesmente:

- Então?

- Está tudo bem, Reverendo. Regressámos com a Sra. Vernold a salvo e pouco afectada, e o assassino do tio dela está nas mãos do alcaide. Um assassino... o homem chamado Turstan Fowler.

- Há outro? - inquiriu Radulfus.

- Houve outro. Está morto. Não por mão de homem, Reverendo Abade. Nenhum de nós matou ou exerceu qualquer violência. Ele morreu pelo fogo.

- Conte-me - pediu o abade.

Cadfael contou-lhe toda a história, tal como a conhecia, rapidamente. Que mais Emma sabia era uma questão de conjectura.

- E que desejava o abade saber - podia ser essa comunicação, para fazer que um homem cometesse tais crimes por sua causa?

- Isso não sabemos, nem nenhum homem agora o saberá, pois ficou queimada com ele. Mas, quando numa terra há duas facções em luta - comentou Cadfael -, homens sem escrúpulos podem transformar a controvérsia em ganho, vender outros homens para obterem lucros, vingar-se dos seus rivais, esperar serem recompensados com a concessão das terras que pertenciam àqueles que traíram. Fosse qual fosse o malefício pretendido, agora já não frutificará.

- Um fim melhor do que eu já estava a temer - afirmou Radulfus, e emitiu um suspiro de gratidão. - Portanto já não há perigo, e os hóspedes da nossa casa nada sofreram. - Meditou um momento. - Esse jovem que tão bem se saiu em nosso benefício e da donzela... diz que é filho do preboste?

- Assim é, Reverendo. Vou com eles agora, se me derdes a vossa permissão, para ter a certeza de que chegam a casa em segurança e para lhes tratar das queimaduras. Estas não são graves, mas devem ser limpas e cuidadas imediatamente.

- Ide, com a bênção de Deus! - disse o abade. - É conveniente, até porque tenho uma mensagem para o preboste, que lhe podeis transmitir por mim, se não vos importardes. Convidai mestre Corviser, com os meus cumprimentos, a ter a bondade de se apresentar aqui amanhã de manhã, perto do fim do capítulo. Tenho um assunto a tratar com ele.

A Sra. Corviser estava indubitavelmente havia horas a fulminar o filho vagabundo, um inútil que, mal saía da prisão sob fiança, logo partia para fazer disparates em qualquer outro lado, até à meia-noite e mais. Provavelmente dissera pelo menos uma dúzia de vezes que lavava as mãos da sorte dele, que já nem valia a pena rezar por ele, que deixava de se preocupar, que fosse para o Diabo se quisesse. Porém, apesar de tudo isso, o marido não conseguia fazer que fosse para a cama e, ao mínimo som que pudesse ser de um passo à porta ou na rua, firme ou cambaleante, voava para olhar para fora, com a boca cheia de impropérios mas o coração pleno de esperança.

E, depois, quando ele chegou mesmo, foi com uma donzela de grandes olhos pelo braço, uma espessa mancheia de caracóis chamuscada numa das têmporas, cheiro de fumo no casaco, a camisa em bocados, um monge de São Pedro atrás, e em todo ele um ar de autoridade e maturidade despertas, que ultrapassava em muito o seu estado de sujidade e desmazelo. E em vez de lhe ralhar ou o abraçar, deu-lhes a ambos, a ele e à donzela, a mão, puxou-os juntos para dentro e dedicou-se a sentá-los, alimentá-los, tratar deles com poucas palavras que foram práticas e preocupadas. No dia seguinte talvez Philip se convencesse a contar toda a história. Naquela noite foi Cadfael que contou o simples esqueleto dela, enquanto limpava e tratava a mão de Emma e as queimaduras superficiais na testa e braço de Philip. Era melhor não atribuir muito valor ao que o rapaz fizera. Emma se encarregaria disso, mais tarde; a mãe apreciaria muito mais que proviesse dela.

A própria Emma quase não disse nada, isolada em exaustão e contentamento, mas os seus olhos raramente abandonavam Philip e, quando o faziam, era para reconhecerem com profunda satisfação o mobiliário sólido e escuro e o quente apainelado daquela casa burguesa, tão familiar para ela que ser aceite ali era como regressar a casa. O seu secreto sorriso arrebatado era eloquente; as mães reconhecem rapidamente esses olhares. Emma já conquistara, mesmo antes de ser suavemente conduzida para a cama que lhe fora preparada, e aí acomodada pela Sra. Corviser com toda a solicitude cacarejante de uma galinha com um só pinto, depois de beber uma poção guarnecida com o xarope de papoila do irmão Cadfael, para fazer dormir e esquecer as dores.

- Nunca vi coisa tão bonita - disse a Sra. Corviser ao regressar silenciosamente à sala, fechando a porta atrás de si. Deitou ao filho um olhar orgulhoso e deu com ele a dormir, sentado na cadeira. - E pensar que era isso que andava a fazer, e eu, que o devia conhecer melhor, só pensava coisas más dele!

- Philip conhece-se a si próprio bastante melhor do que há uns dias - garantiu Cadfael, voltando a arrumar a sua bolsa. - Deixo-lhe estas pastas e unguentos, a senhora sabe aplicá-los. Mas virei vê-la amanhã à tarde. Agora despeço-me, confesso que estou mais que pronto para a minha própria cama. Duvido que amanhã ouça o sino para Primax.

No pátio, Geoffrey Corviser estava, ele próprio, a pôr no estábulo o cavalo de Stanton Cobbold, juntamente com o seu. Cadfael transmitiu-lhe a mensagem do abade. O preboste ergueu o sobrolho, céptico.

- Ora que pode o senhor abade querer tratar comigo? Da última vez que me apresentei no capítulo, de barrete na mão, fui varrido.

- Mesmo assim - aconselhou Cadfael, esfregando pensativamente o nariz moreno e achatado -, no seu lugar acho que teria a curiosidade suficiente de ir ver do que se trata. Quem sabe se a vassoura não está já a varrer para outro lado!?

Não admira que o irmão Cadfael, embora conseguisse levantar-se para Primax, aproveitasse o seu lugar cuidadosamente escolhido, atrás de um pilar, para dormitar no decurso do capítulo. De facto, estava tão profundamente adormecido que, por uma vez, correu o risco de ressonar, e, ao primeiro assobio melodioso, o irmão Mark assustou-se acotovelando-o para o acordar.

O preboste correspondera à letra ao convite do abade, e chegara mesmo no fim do capítulo. O ecónomo da granja acabara de anunciar que ele estava à espera, quando Cadfael abriu os olhos.

- Por que será que o preboste cá veio? - sussurrou Mark. - Foi-lhe pedido que viesse. Porventura sei porquê? Chiu! Geoffrey Corviser entrou com as suas melhores vestes e fez uma vénia respeitosa mas fria. Desta vez não tinha uma sólida coorte atrás de si e, a dizer a verdade, embora talvez se sentisse algo curioso, ligava muito pouca importância a este encontro. O seu espírito estava ocupado noutras coisas. Era verdade que os problemas do burgo permaneciam, e em qualquer outra altura teriam assumido importância primordial nas suas preocupações, mas naquele dia estava imune aos cuidados públicos devido à satisfação pessoal de ter um filho vingado e louvado, um filho de que se podia orgulhar.

- Convocastes-me, Reverendo Abade. Aqui estou.

- Agradeço-vos terdes tido a bondade de vos apresentardes - disse o abade suavemente. - Há dias, Mestre Preboste, antes da feira, viestes fazer-me um pedido a que eu não podia corresponder.

O preboste não disse palavra; não era preciso, nem ele sentiu necessidade de falar à toa.

A feira está agora terminada - continuou o abade imperturbável. - Todas as rendas, direitos e impostos foram cobrados e entregues na tesouraria abacial, conforme a carta-patente determina. Confirma-lo?

- É a lei - redarguiu Corviser -, aplicada à letra.

- Muito bem! Estamos de acordo. Por conseguinte, cumpriu-se o direito e mantém-se o privilégio desta casa. Isso era o que eu não podia infringir por meio de qualquer concessão prévia. Os abades que me sucederem censurar-me-iam, e com razão. Os seus direitos são sacrossantos. Mas foram perfeitamente salvaguardados. E, como abade deste mosteiro, compete-me determinar o uso a dar aos dinheiros em nosso poder. O que não podia conceder, por ir contra a carta-patente - disse Radulfus com determinação -, posso agora dar livremente, como doação desta casa. Dos frutos da feira deste ano, dou um décimo ao burgo de Shrewsbury, para reparação das muralhas e repavimentação das ruas.

O preboste, já inchado pelo contentamento familiar, corou num agradecimento surpreso e deliciado, homem generoso a aceitar generosidade.

- Reverendo senhor, aceito a vossa dízima com prazer e gratidão, e proverei a que seja usada dignamente. E torno público aqui e agora que nenhuma parte dos direitos da abadia fica por isso alterada. A Feira de S. Pedro é a vossa feira. Se, e quando o burgo vosso vizinho deva dela beneficiar igualmente, estando em extrema necessidade, isso fica ao vosso critério.

- O nosso ecónomo entregar-vos-á o dinheiro - afirmou Radulfus, e ergueu-se, para concluir um encontro satisfatório. - Este capítulo está encerrado - disse.

 

 

                                               Capítulo 6

 

Agosto continuou abençoadamente agradável, e toda a gente se dedicou a assegurar-se de uma boa colheita. Hugh Beringar e Aline partiram para Maesbury com as suas esperanças e as suas compras, assim como o mercador de Worcester para a sua terra-natal, um dia mais tarde, mas bem compensado com uma propina pelo aluguer do seu cavalo numa emergência, ao serviço do alcaide, e uma óptima história, que contaria durante o resto da sua vida, sempre que a ocasião fosse propícia. O preboste e o concelho de Shrewsbury redigiram um digno agradecimento à abadia, pela doação desta, com suficiente calor para exprimir adequadamente quanto apreciavam o gesto, com suficiente astúcia para não comprometerem nenhuma das suas justas reclamações futuras. O alcaide arquivou o encerramento de um processo criminal, com o relato que lhe foi feito pela donzela que fora atraída com falsas declarações, no propósito que depois se tornara aparente de lhe roubarem uma carta deixada na sua posse mas cujo conteúdo ignorava. Havia algumas suspeitas de envolvimento numa conspiração mas, como a Sra. Vernold não chegara a ver nem lhe fora contado o significado do que detivera em seu poder e como, em qualquer caso, essa carta estava agora irrevogavelmente perdida pelo fogo, nenhuma outra acção era necessária ou possível. O malfeitor morrera, o seu servo, assassino confesso às ordens do senhor, aguardava julgamento e defender-se-ia dizendo que fora forçado a obedecer, uma vez que nascera vilão e estava à mercê do seu senhor. O suserano do morto fora informado. Alguma outra pessoa, ao critério do conde de Chester, receberia como feudo o domínio de Stanton Cobbold.

Toda a gente respirou fundo, esfregou as mãos e voltou ao trabalho.

O irmão Cadfael subiu ao burgo no segundo dia, para tratar da mão de Emma. O preboste e o filho estavam a trabalhar juntos, perfeitamente satisfeitos um com o outro e com o mundo. A Sra. Corviser voltou à sua cozinha e deixou juntos o médico e a doente.

- Queria falar consigo - disse Emma, fitando-lhe seriamente o rosto enquanto ele refazia o penso. - Tem de haver uma pessoa a quem eu conte a verdade, e prefiro que seja o senhor.

- Não acredito - comentou Cadfael imperturbável - que tivesse contado ao alcaide uma única falsidade.

- Não, mas não lhe contei toda a verdade. Disse que não tinha conhecimento do que se encontrava na carta, nem sequer a quem era dirigida ou por quem era enviada. Isso era verdade, eu não tinha esse conhecimento próprio, embora soubesse quem a levou ao meu tio e que era para ser passada ao luveiro a fim de ele a entregar ao verdadeiro destinatário. Mas, quando Ivo me exigiu a carta e eu prolonguei o tempo perguntando-lhe o que podia haver de tão importante numa carta, ele contou-me o que acreditava lá estar. O reino de Estêvão estava em causa, disse ele, e o lucro para o homem que lhe proporcionasse os meios de aniquilar os seus inimigos estender-se-ia a tanto como um condado. Contou que os amigos da imperatriz estavam a exercer pressão sobre o conde de Chester para este se lhes juntar, e ele o não faria sem ter conhecimento de todos os outros potentados que a causa dela conseguia reunir, sendo aquele o despacho prometido, para o convencer de que o seu interesse consistia em os acompanhar. Podiam lá estar até uns cinquenta nomes, disse ele, de vassalos secretos da imperatriz, talvez até à data em que Roberto de Gloucester esperava trazê-la para Inglaterra, ou mesmo o porto em que planeavam desembarcar. Todos eles vendidos com antecipação à vingança do rei, vidas, membros e terras, afirmou ele, e o conde de Chester igualmente, pois avançara tanto que permitira a aproximação! Todos oferecidos, atados e condenados, e ele obteria o seu próprio preço por isso. Foi o que me contou. Isto é o que eu não sei com conhecimento próprio, todavia sei-o no meu coração e na minha alma, pois tenho a certeza de que ele falou verdade. - Humedeceu os lábios e disse cautelosamente: - Não conheço o rei Estêvão suficientemente bem para saber o que faria, mas lembro-me do que fez aqui, no Verão passado. Vi todos aqueles homens, tão honestos na sua fidelidade como os que estão ao lado do rei, atirados para a prisão, perdendo as vidas, as famílias destituídas de terra e de meios de subsistência, algumas forçadas a exilarem-se... Vi mortes, vinganças e ainda mais amargura se a maré voltasse de novo. Por isso fiz o que fiz.

- Sei o que fizeste - afirmou o irmão Cadfael suavemente. Estava a pôr ligaduras na prova, que entretanto ia sarando.

- Mas mesmo assim, sabe - insistiu ela gravemente, - não tenho a certeza de ter feito bem, nem de ter agido pelas razões certas. O rei Estêvão ao menos mantém uma espécie de paz onde a sua lei está em vigor. O meu tio era defensor absoluto da imperatriz mas, se ela vier, se todos estes que a apoiam se erguerem e se lhe juntarem, não haverá paz em parte nenhuma. Para qualquer lado que olhe, só vejo mortes. Mas naquela altura só podia pensar em o impedir de lucrar com a sua traição e os seus homicídios. E só havia uma forma: pela destruição da carta. Desde então tenho tido dúvidas... Mas agora acho que devo assumir o que fiz. Se tiver de haver luta, se tiver de haver mortes, que seja segundo os desígnios de Deus e não por conspiração de homens ambiciosos e maus. As vidas que não pudermos salvar... ao menos não contribuamos para as destruir. Acha que fiz bem? Tenho sentido a falta de uma opinião, gostaria de que fosse a sua.

- Visto que me perguntas o que penso - disse Cadfael -, digo-te, minha filha, que, se ficares com cicatrizes nos dedos desta mão para toda a vida, deves usá-las como jóias.

Os lábios dela separaram-se num sorriso de surpresa. Abanou a cabeça com um persistente tremor de dúvida.

- Mas nunca deve contar a Philip - disse com súbita urgência, segurando-o pela manga com a mão sã. - Eu também nunca o farei. Deixe que ele me pense tão inocente quanto ele próprio é... - Franziu as sobrancelhas ao som da palavra, que não lhe pareceu exactamente a que pretendia, mas não conseguiu encontrar outra mais adequada ao seu objectivo. Se não era inocência que queria dizer, pois de que era ela culpada? seria simplicidade, clareza, pureza? Nenhuma destas servia. Talvez o irmão Cadfael compreendesse, apesar de tudo. - Senti-me de certo modo enlameada - disse. - Ele nunca deve pôr os pés em intrigas, não é para ele.

O irmão Cadfael fez-lhe a promessa e atravessou novamente o burgo, absorto, a reflectir na complexidade das mulheres. Ela tinha toda a razão. Philip, apesar dos seus dois anos de vantagem, da sua inteligência e da sua nova e dominadora maturidade, seria sempre o mais jovem, o mais simples e - sim, afinal ela escolhera a palavra correcta! - o mais inocente. Segundo a experiência de Cadfael, havia muito boas perspectivas para um casamento, quando a mulher tinha plena consciência das suas responsabilidades.

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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