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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADFAEL 9 / O Noviço do Diabo
CADFAEL 9 / O Noviço do Diabo

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Em meados de Setembro daquele ano de Nosso Senhor, 1140, os donos de duas casas senhoriais de Shropshire, uma a norte da cidade de Shrewsbury, a outra a sul, enviaram no mesmo dia mensageiros à abadia de S. Pedro e S. Paulo, por desejarem a entrada na Ordem dos filhos mais novos.

Um foi aceite, outro recusado. Para essas diferenças de tratamento houve razões de peso.

- Pedi-lhes para se reunirem - disse o Abade Radulfus -, antes de tomar uma decisão sobre este assunto ou de o pôr à discussão no capítulo, por o princípio aqui envolvido estar nesta altura em discussão entre mestres da nossa ordem. Vós, Irmão Prior e Irmão Subprior, por suportarem diariamente o peso do governo da casa e família, Irmão Paul por ser um mestre dos rapazes e dos noviços, Irmão Edmund por ter vivido no claustro desde a infância, para aconselhar sobre um aspecto, e o Irmão Cadfael, como converso que veio para esta vida depois de larga experiência e numa idade madura, para dar a sua opinião sobre o outro lado.

"Então", pensou o Irmão Cadfael, sem falar e sem se mexer no seu banco a um canto no aposento do abade despido e a cheirar a madeira, "vou ser advogado do diabo, a voz do mundo exterior adoçada por dezassete anos de vocação, mas ainda cortante para ouvidos enclausurados. Bem, servimos de acordo com as nossas capacidades e nos lugares que nos distribuem, o que é uma maneira como outra qualquer."

 

 

 

 

 

 

Estava mais que um pouco ensonado, porque tinha estado ao ar livre nos pomares de Gaye e no seu próprio jardim de plantas medicinais desde a mais pálida manhã, entre as sessões obrigatórias de oração, e estava levemente embriagado com o rico ar de um belo Setembro e pronto para ir para a cama mal terminassem as Completas. Mas ainda não tão sonolento que não conseguisse aguçar a orelha, quando o Abade Radulfus se declarou a precisar de conselho ou mesmo desejoso de ouvir conselho, que não hesitaria rejeitar, se o seu espírito incisivo lhe apontasse outra direcção.

- O Irmão Paul - disse o abade, lançando ao círculo um olhar autoritário - recebeu pedidos para aceitar na nossa casa dois novos devotos, para, a seu tempo, receberem hábito e tonsura. Aquele que temos de considerar aqui é de uma boa família e o pai é um benfeitor da nossa igreja. Que idade disse que tinha, Irmão Paul?

- É uma criança, nem cinco anos tem - disse Paul.

- E é essa a razão da minha hesitação. Agora só temos quatro rapazes de pouca idade entre nós, dois deles não vocacionados para a vida de convento, mas apenas para aqui receberem educação. É verdade que podem escolher ficar connosco e juntarem-se à comunidade na devida altura, mas isso é uma decisão deles, quando chegarem à idade de poderem fazer essa escolha. Os outros dois, crianças oferecidas a Deus pelos seus pais, têm já doze e dez anos e sentem-se bem e felizes entre nós, seria mal feito perturbar-lhes a tranquilidade. Mas preocupa-me aceitar mais dessas ofertas, quando eles ainda não têm noção daquilo para que são oferecidos ou, na realidade, daquilo de que estão a ser privados. É uma alegria - disse Radulfus -, abrir as portas a um coração e um espírito verdadeiramente empenhados, mas o espírito de uma criança que mal saiu da ama tem lugar junto dos brinquedos e no conforto do colo da mãe.

O Prior Robert arqueou as sobrancelhas prateadas e olhou vagamente sobre o nariz delgado, aristocrata.

- O hábito de entregar crianças como ofertas tem sido aceite durante séculos. A Regra sanciona-o. Todas as modificações à Regra só podem ser levadas a cabo depois de uma séria reflexão. Teremos nós o direito de negar aquilo que um pai deseja para o seu filho?

- Teremos nós, terá o pai, o direito de determinar o curso de uma vida, antes de o pobre inocente ter voz para falar por si próprio? A prática, eu sei, está há muito estabelecida, e nunca foi antes posta em questão, mas está agora a ser questionada.

- Ao abandoná-la - continuou Robert -, podemos estar a privar uma jovem alma do seu melhor caminho para a bem-aventurança. Pode haver uma má viragem, mesmo nos anos da infância, e perder-se o caminho para a graça divina.

- Concordo que é possível - disse o abade -, mas também receio que o contrário possa ser verdade, e que muitas crianças, mais talhadas para outra vida e outra maneira de servir a Deus, possam ser fechadas no que para elas deve ser uma prisão. Sobre este assunto só posso dizer aquilo que tenho no espírito. Mas temos aqui o Irmão Edmund, no convento desde os quatro anos, e o Irmão Cadfael, convertido depois de uma vida activa e aventureira e numa idade já madura. E ambos, como espero e creio, seguros do seu compromisso. Dizei-nos, Edmund, o que pensais deste assunto? Já alguma vez lamentastes que vos tivesse sido negada a experiência para fora das paredes deste convento?

O Irmão Edmund, o responsável pela enfermaria, apenas oito anos mais novo que os sessenta robustos de Cadfael, e um homem grave, belo, pensativo, que devia ter tão bom aspecto em cima de um cavalo e armado, como a cultivar uma propriedade e tomando conta dos seus dependentes, considerou a pergunta com gravidade e não se perturbou.

- Não, nunca lamentei. Mas também não sabia o que haveria que valesse a pena lamentar. E conheci aqueles que se revoltaram, querendo precisamente saber isso. Pode ser que tenham imaginado um mundo melhor e pode ser que eu não tenha esse dom de imaginação. Ou pode ser apenas que eu tenha encontrado aqui um trabalho de que gosto e que está dentro das minhas possibilidades e tenha estado demasiado ocupado para estar descontente. Não mudaria. Mas a minha escolha teria sido a mesma se tivesse atingido aqui a puberdade e tivesse feito os votos só quando fosse adulto. Tenho razões para saber que outros teriam escolhido de maneira diferente se fossem livres.

- Muito bem dito - disse Radulfus -, e vós Irmão Cadfael? Viajastes por grande parte do mundo, até à Terra Santa, e pegastes em armas. A vossa escolha foi feita tardiamente e com toda a liberdade, e penso que não olhastes para trás. Foi útil ter visto tanto e, no entanto, ter escolhido este pequeno eremitério?

Cadfael sentiu-se obrigado a pensar antes de falar e, debaixo do peso confortável de um dia de luz do sol e trabalho, o pensamento era um esforço. Não estava de modo algum certo do que o abade queria dele, mas não tinha qualquer espécie de dúvida em relação ao desagrado que lhe causava a ideia de um bebé de colo ser metido no hábito que ele assumira por vontade.

- Acho que foi útil - disse por fim -, e, sobretudo, trouxe uma melhor oferta, embora manchada e cheia de mossas, do que se tivesse vindo no meu tempo de inocência. Porque eu amei a minha vida e dou grande valor aos guerreiros que conheci e aos lugares nobres e grandes actos que presenciei, e ao escolher, na plenitude da juventude, renunciar a tudo e abraçar esta vida de convento em preferência a todas, penso verdadeiramente que lhe fiz a maior honra e homenagem que podia. E não posso acreditar que alguma coisa que guarde na memória me torne menos apto a professar esta obediência, mas antes que me torna mais apto a servir tão bem quanto possa. Se ma tivessem dado na infância, ter-me-ia revoltado na juventude, exigindo os meus direitos. Livre desde a infância, pude bem sacrificar os meus direitos quando cheguei à idade da razão.

- Contudo, não negareis - disse o abade, a face magra iluminada por um sorriso breve -, a vontade de outros, por virem no início da juventude para a vida que vós descobristes na maturidade?

- De modo algum o negaria! Penso que aqueles que assim procedem são, de certeza, os melhores que temos. Fazem a escolha pela sua própria vontade e segundo a sua própria consciência.

- Bem, bem! - disse Radulfus e ficou pensativo com a mão no queixo e os olhos encovados nublados. - Paul, tendes algum ponto de vista que possais pôr perante nós? Vós tendes a vosso cargo os rapazes e sei que eles poucas vezes se queixam de vós.

O Irmão Paul, de meia-idade, conscencioso e ansioso como uma galinha com a sua ninhada, era conhecido pela indulgência para com os mais jovens, sempre em defesa das travessuras, mas um bom professor, ensinando latim sem dor para nenhum dos lados.

- Para mim não seria um fardo - disse Paul devagar - tratar de um rapazinho de quatro, mas não há nenhum mérito em eu ter prazer num tal cargo ou em me sentir feliz. Não é isso que a Regra exige ou pelo menos é o que me parece. Um bom pai podia fazer o mesmo pelo filho pequeno. É melhor que venha sabendo o que está a fazer e com algum indício do que pode estar a deixar atrás de si. Aos quinze ou dezasseis anos, bem ensinado...

O Prior Robert inclinou a cabeça para trás e manteve uma expressão austera, deixando que o seu superior decidisse como quisesse. O Irmão Richard, o subprior, tinha-se mantido calado. Era um homem para tratar os assuntos do dia-a-dia, mas lento a tomar decisões.

- Desde que estudei as opiniões do Arcebispo Lanfranc que penso - disse o abade - que temos de mudar as nossas ideias sobre este assunto da dedicação das crianças, e estou agora convencido de que é melhor recusar todas as ofertas de crianças até elas poderem escolher por si próprias o tipo de vida que desejam. Por isso, Irmão Paul, é minha opinião que devemos recusar a oferta deste rapaz, nos termos desejados. Que se diga ao pai que dentro de alguns anos o rapaz será bem-vindo, como aluno da nossa escola, mas não como uma oferta para entrar na ordem. Na idade adequada, se ele o desejar, pode entrar. Dizei isto ao pai.

Respirou fundo e mexeu-se na cadeira para indicar que a reunião tinha terminado.

- E, segundo me parece, têm outro pedido de admissão?

O Irmão Paul já estava de pé, aliviado e a sorrir.

- Neste caso não há qualquer dificuldade. Leoric Aspley de Aspley deseja trazer-nos o filho mais novo, Meriet. Mas o jovem já fez dezanove anos e vem de sua livre vontade. No seu caso não precisamos de nos preocupar.

- Não que estes tempos sejam favoráveis ao recrutamento - disse o Irmão Paul ao atravessar o grande pátio a caminho das Completas, com Cadfael a seu lado -, e possamos dar-nos ao luxo de recusar candidatos. Mas apesar disso sinto-me feliz por o Abade ter decidido assim. Nunca gostei muito da questão das crianças muito pequenas. É certo que na maioria dos casos podem ter sido realmente dadas por verdadeiro amor e fé. Mas por vezes um homem tem de questionar... com desejo de manter as terras indivisas e um ou dois filhos fortes, é uma maneira de dispor de um terceiro com proveito.

- Isso pode bem acontecer - disse Cadfael com secura -, mesmo quanto ao terceiro, que é um homem adulto.

- Então é habitual haver um consentimento total, porque o convento pode ser uma carreira prometedora. Mas as crianças de colo... não, nesse caso é fácil haver abuso.

- Acha que dentro de alguns anos teremos este nas condições postas pelo Abade? - perguntou Cadfael.

- Duvido. Se o puserem aqui na escola, o pai terá de pagar. - O Irmão Paul, que era capaz de descobrir um anjo em cada criança que ensinava, era porém mais céptico em relação aos pais. - Se tivéssemos aceite o rapaz como oferta, a sua manutenção e tudo o resto seria por nossa conta. Conheço o pai. Um homem bastante decente, mas muito parcimonioso. Mas a esposa, calculo eu, vai ficar feliz por manter o filho mais novo.

Estavam na entrada do claustro, e o verde das árvores e arbustos à luz do crepúsculo, tingido pelo primeiro toque de dourado, erguia-se calmo e perfumado no ar.

- E o outro? - disse Cadfael. - Aspley, isso fica lá para sul, em direcção à orla da Floresta Grande. Já ouvi o nome, mas só isso. Conhece a família?

- Só de nome, mas tem boa reputação. Foi o administrador da propriedade que trouxe o recado, um velho camponês forte, saxão pelo nome: Fremund. Diz que o jovem é instruído, saudável e com boas maneiras. Um ganho para nós em todos os aspectos.

Uma conclusão com a qual ninguém tinha, então, qualquer razão para discordar. A anarquia de um país a sofrer uma guerra civil entre primos reduzira os rendimentos monásticos, mantinha os peregrinos fechados em casa por precaução e diminuía tristemente o número de candidatos genuínos que buscavam o convento, enquanto aumentava frequentemente o número de fugitivos indigentes à procura de abrigo. A promessa de um postulante já com instrução e desejoso de iniciar o seu noviciado era uma óptima notícia para a abadia.

Depois, evidentemente, houve muitos sabichões grávidos de entendimento do que devia ter sido feito, com listas de presságios, a falar de agouros, assegurando com descaramento que assim tinham dito a toda a gente. Depois de um choque e de qualquer coisa que corre mal, proliferam esses peritos tardios.

Foi por mero acaso que o Irmão Cadfael presenciou a chegada do novo candidato, dois dias mais tarde. Depois de vários dias de céu límpido e de Sol para colher as maçãs e carregar a farinha acabada de moer, era um dia de chuva intensa, que transformava as estradas em lama e cada buraco no pátio grande num charco traiçoeiro. No recinto do scriptorium, os copistas e artífices trabalhavam nas suas carteiras. Os rapazes esperavam impacientes, descontentes por terem de estar dentro de casa, ansiosos pelo recreio, e os poucos inválidos da enfermaria sentiam-se deprimidos, à medida que a luz do dia esmorecia e se punha de luto. Hóspedes havia poucos naquela altura. Havia uma curta pausa na guerra civil, enquanto clérigos sérios tentavam pôr as duas partes de acordo, mas a maioria das pessoas em Inglaterra preferia ficar em casa e esperar com a respiração suspensa, e só aqueles que não tinham outra opção andavam pelas estradas e se abrigavam nas hospedarias da abadia.

Cadfael passara a primeira parte da tarde na sua oficina do herbarium. Não só tinha lá uma série de misturas em preparação, fruto da colheita de folhas, raízes e bagas de Outono, como também conseguira obter uma cópia da lista de Aelfric de ervas e árvores de Inglaterra de há um século e precisava de paz e sossego para estudar. O Irmão Oswin, cujo ardor juvenil ajudava por vezes Cadfael neste seu domínio privado, fora dispensado e fora continuar os estudos de liturgia, pois aproximava-se o tempo dos votos finais e precisava de aperfeiçoamento.

A chuva, embora bem-vinda para a terra, perturbava e deprimia o espírito dos homens. A luz enfraquecia e a folha que Cadfael estudava escureceu em frente dos seus olhos. Desistiu de ler. Sabendo ler inglês, aprendera latim com esforço, na maturidade, e embora o dominasse, continuava a ser para ele estranho, uma língua estrangeira. Deu a volta às poções que ferviam, mexeu uma e outra, juntou um ingrediente numa argamassa até a diluir em creme e regressou apressado ao grande pátio por entre jardins húmidos, com o pergaminho precioso guardado no peito do hábito.

Atingira o abrigo do alpendre do salão dos hóspedes e estava a suster a respiração, antes de chapinhar pelas poças do claustro, quando três cavaleiros entraram a cavalo pelo Portão Frontal e pararam sob as arcadas da hospedaria para sacudir a chuva dos mantos. O porteiro saiu a correr para os saudar, movendo-se de lado ao abrigo da parede, e um criado saiu a correr do estábulo, chapinhando por entre a chuva com uma saca por cima da cabeça.

"Devem ser Leoric Aspley", pensou Cadfael, "e o filho que deseja tomar o hábito aqui entre nós." E ficou um momento a olhar, em parte por curiosidade, em parte na esperança vã de a chuva abrandar e o deixar atravessar para o scriptorium sem ficar mais húmido do que precisava.

Um homem velho, alto, direito, com uma capa espessa, vinha à frente dos recém-chegados, montado num grande cavalo cinzento. Quando afastou o capuz descobriu uma cabeça de farto cabelo grisalho e um rosto longo, austero e com barba. Mesmo àquela distância, através do pátio largo, tinha um aspecto belo, sem sorrir, direito, com um nariz saliente, arrogante e uma expressão de rígido orgulho na boca e maxilares, mas a sua atitude com o porteiro e o criado, quando desmontou, foi de uma cortesia grave. Um homem que não devia ser fácil, provavelmente um pai difícil de contentar. Será que aprovava a decisão do filho ou a aceitava apenas sob protesto e com desagrado? Cadfael imaginou-o entre os cinquenta e sessenta anos e, com toda a inocência, pensou nele como um homem velho, esquecendo a sua própria idade, a que nunca dava muita atenção, e que já passava dos sessenta.

Prestou mais atenção ao jovem, que seguira com decoro alguns respeitosos metros atrás do pai, e desceu com ligeireza do pónei preto para segurar o estribo do pai. Quase excessivamente respeitoso e, no entanto, havia algo na sua atitude que fazia lembrar a rígida autoconsciência do homem mais velho - tal pai, tal filho. Meriet Aspley, de dezanove anos, era um pouco mais baixo que Leoric; um jovem bem constituído, esmerado, sólido, sem nada de notável à primeira vista. Tinha cabelos escuros, com os caracóis colados à testa molhada e a chuva a correr pela face, em sulcos, como lágrimas. Ficou um pouco à parte, de cabeça baixa, as pálpebras descidas, atento como criado à espera das ordens do amo e, quando se afastaram para o abrigo, seguiu na sua peugada como um cão bem treinado. E, no entanto, havia nele algo de único, de muito próprio, como se observasse estas formalidades sem nada mais dar, uma observância exterior e escrupulosa que não tocava nada do que tinha dentro de si. E o pouco que tinha visto do seu rosto de relance revelavam a Cadfael uma semelhança com a austeridade do pai e uma boca de lábios grossos e apaixonados com covas profundas aos cantos.

"Não", pensou Cadfael, "aqueles dois não estão em harmonia, isso é certo." E a única razão satisfatória para o frio e rigidez era voltar à primeira noção: que o pai não aprovava a decisão do filho, que provavelmente o tentara demover e que não aceitava de bom grado que não o tivesse impedido. Obstinação por um lado e frustração por outro mantinham-nos afastados. Não era o melhor início para uma vocação, ter de resistir à vontade do pai. Mas aqueles que ficaram cegos por uma luz muito forte não vêem, não são capazes de ver, a dor que causam. Não fora desta maneira que Cadfael viera para o claustro, mas vira acontecer a um ou dois, e compreendia a coacção.

Partiram para a portaria para esperar pelo Irmão Paul e pela recepção formal pelo abade. O criado que tinha vindo com eles montado num pónei hirsuto levou as montadas para os estábulos e o grande pátio ficou de novo vazio sob a chuva ininterrupta. Cadfael cobriu-se com o hábito e correu a abrigar-se no claustro, para aí sacudir a água das mangas e do capuz e ficar confortável para continuar a leitura no scriptorium. Em poucos minutos estava mergulhado no problema: se a dittanders de Aelfric não seria a mesma planta a que ele chamava dittany. Não pensou mais em Meriet Aspley, que estava tão fortemente inclinado a tornar-se monge.

O jovem foi apresentado no capítulo, no dia seguinte, para fazer a sua profissão de fé formal e ser acolhido por aqueles que iriam ser os seus irmãos. Durante o noviciado, os noviços não tomavam parte nas discussões para ouvir e aprender, e o Abade Radulfus achava que eles deviam ser recebidos com cortesia fraterna desde a sua entrada.

Dentro do hábito, acabado de dar, Meriet movia-se pouco à vontade e estranhamente parecia mais baixo do que com poucas roupas seculares, reflectiu Cadfael ao observá-lo com atenção. Agora não havia a seu lado nenhum pai para gelar em hostilidade e não tinha necessidade de se precaver daqueles que se sentiam felizes por o aceitarem entre si; mas ainda havia nele uma rigidez e ficou de pé, olhos baixos, mãos apertadas com força, talvez demasiado preocupado com o passo que estava a dar. Respondeu às perguntas em voz baixa, duma forma rápida e submissa. Um rosto dum tom de marfim, mas com um bronzeado dourado do Sol de Verão, as faces rapidamente coradas pelo sangue sob a pele lisa. Um nariz fino e direito, com narinas que se abriam e fechavam nervosamente, e aquela boca carnuda, orgulhosa, que tinha uma expressão tão severa quando em repouso e parecia tão vulnerável quando falava. E escondia os olhos com humildade, sob as longas pestanas e as sobrancelhas arqueadas mais pretas que o cabelo.

- Haveis pensado bem - disse o abade -, e agora tendes tempo para ainda pensar de novo, sem censura de ninguém. É vosso desejo entrar para a vida conventual aqui entre nós? E um desejo verdadeiramente concebido e firmemente mantido? Podereis exprimir tudo o que vos vai no coração.

A voz baixa disse num tom mais de raiva do que de firmeza:

- É meu desejo, Pai. - Pareceu quase parar - com a sua própria veemência e acrescentou com mais ponderação: - Suplico-vos que me deixeis entrar e prometo obediência.

- Esse voto é feito mais tarde - disse Radulfus com um sorriso pálido. - Por agora, o Irmão Paul será o vosso instrutor e submeter-vos-eis a ele. É costume um ano inteiro de noviciado para os que vêm para a Ordem na maturidade. Tereis tempo de prometer e de cumprir.

A cabeça submissamente curvada ergueu-se de repente ao ouvir isto e as pálpebras abriram-se sobre os olhos cor de avelã escura com manchas verdes. Olhara para cima, em direcção à luz, tão poucas vezes que o brilho dos olhos espantou. E perguntou com uma voz alta, aguda, quase desapontada:

- Padre, isso vai ser necessário? O tempo não poderá ser encurtado, se eu estudar para o merecer? A espera é tão difícil de suportar!

O abade olhou-o fixamente e juntou as sobrancelhas numa expressão mais de especulação e espanto do que de desagrado.

- O tempo pode ser reduzido, se nos parecer bem. Mas a impaciência não é a melhor conselheira, nem a pressa o melhor advogado. Se estiverdes pronto mais cedo, isso será claro. Não deveis procurar a perfeição com esforços excessivos.

Era claro que o jovem Meriet era sensível a todas as implicações, tanto das palavras como do tom. Baixou de novo as pálpebras como uma cortina sobre a claridade e olhou para as mãos fechadas.

- Pai, deixar-me-ei guiar. Mas desejo com todo o meu coração ter a plenitude do meu compromisso e estar em paz. - Cadfael pensou que a voz cautelosa tremeu por um instante. Com toda a probabilidade isso não prejudicou o rapaz aos olhos de Radulfus, que tinha experiência tanto de entusiastas apaixonados como daqueles que eram arrastados gradualmente para o altar da dedicação.

- Isso pode ser conseguido - disse o abade com gentileza.

- E será! - Sim, a voz tremeu-lhe, embora por um breve momento. Manteve os olhos espantosos com as pálpebras descidas.

Radulfus mandou-o embora com uma amabilidade algo cuidadosa e fechou o capítulo depois da sua saída. Um candidato modelo? Ou seria um tom parecido de mais com o fervor febril que um abade tão astuto como Radulfus devia suspeitar, deplorar e observar com muito cuidado daí em diante? Contudo, um jovem ardente e sério, chegado ao seu porto desejado, podia muito bem estar ansioso e com muita pressa.

Cadfael, cujos dois grandes pés tinham sempre estado bem assentes no chão, mesmo quando tomou a decisão de vir para o porto para o resto de uma longa vida, sentia bastante simpatia pela juventude ardente, que exagera tudo e gosta de poesia e de música. Alguns que assim se incendeiam ficam em chamas até à morte e incendeiam muitos outros, deixando um rasto de luz por gerações. Outros fogos extinguem-se por falta de combustível, mas não prejudicam ninguém.

O tempo diria o que pressagiava a chama pequena e desesperada do jovem Meriet.

Hugh Beringar, juiz-deputado de Shropshire, veio da sua casa senhorial de Maesbury para ocupar o cargo em Shrewsbury, pois o seu superior, Gilbert Prestcote, partira para se juntar ao Rei Stephen em Westminster para a sua visita semestral na festa de S. Miguel, para prestar contas do seu condado e dos seus impostos. Entre os dois tinham mantido o condado forte e bem defendido, razoavelmente livre dos desordeiros que atormentavam a maior parte do país, e a abadia tinha boas razões para lhes estar agradecida, pois muitas como ela ao longo das fronteiras galesas tinham sido saqueadas, pilhadas, evacuadas, transformadas em fortalezas para a guerra, algumas mais de uma vez e sem qualquer remédio. Pior que os exércitos do Rei Stephen por um lado e da sua prima imperatriz por outro - em toda a consciência eram já suficientemente maus -, o país pululava de exércitos privados, pequenos e grandes predadores, que tudo devoravam enquanto estavam livres de uma força legal suficientemente forte para os conter. Em Shropshire a lei tinha sido suficientemente forte para tomar conta da situação.

Depois de ver a mulher e o filho bebé instalados confortavelmente na casa da cidade, junto à igreja de Stª Maria, e ele próprio satisfeito com a boa ordem mantida na guarnição do castelo, a primeira visita de Hugh era sempre para cumprimentar o abade. Mas nunca saía sem procurar o Irmão Cadfael na sua oficina no jardim. Eram velhos amigos, mais chegados que pai e filho, tendo não só essa relação fácil e tolerante de duas gerações, mas experiências partilhadas que os tornavam contemporâneos. Estimulavam os espíritos, um com o outro, para procurar a melhor protecção dos valores e instituições que necessitavam de defesa cada dia que passavam num país tão sacudido e separado.

Cadfael perguntou por Aline e sorriu com prazer só de lhe pronunciar o nome.

Vira-a ser ganha por combate, assim como o alto cargo para um homem tão jovem como era o seu amigo e sentia quase um amor orgulhoso de avô pelo seu primeiro filho, de quem era padrinho de baptismo, realizado nos primeiros dias deste ano.

- Óptima e a perguntar por si - disse Hugh muito feliz. - Quando puder, hei-de arranjar ocasião para poder ver por si próprio como desabrochou.

- O botão-de-rosa era já muito belo - disse Cadfael. - E Giles? Meu Deus, com nove meses deve andar a gatinhar pelo chão como um cachorrinho! Começam a andar quase antes de nos saírem dos braços.

- É tão rápido com os quatro membros como a escrava Constance é com dois - disse Hugh com orgulho. - E tem a força de braço de um lutador de espada nato. Que Deus o afaste dela ainda por muitos anos, porque para mim a infância dele será muito curta. E, se Deus quiser, ver-nos-emos livres destes tempos sombrios antes de ele chegar à idade adulta. Houve tempos em que a Inglaterra gozou de paz, devem vir outros assim.

Era uma criatura equilibrada e jovial, mas os tempos ensombravam-no quando pensava na sua função e fidelidade.

- Quais são as novidades do Sul? - perguntou Cadfael ao observar a nuvem momentânea. - Parece que a conferência do Bispo Henry teve um resultado muito escasso.

Henry de Blois, bispo de Winchester e legado papal, era o irmão mais novo do rei e tinha sido seu leal partidário até Stephen ter afrontado, atacado e ofendido a Igreja na pessoa de certos dos seus bispos, e de quem era agora partidário o Bispo Henry era assunto de alguma especulação, dado que a prima, a Imperatriz Maud, chegada a Inglaterra, abrigara-se com segurança com a sua facção no oeste, tendo como base a cidade de Gloucester. Um clérigo extremamente hábil, ambicioso e prático podia muito bem sentir simpatia por ambos os lados e muito mais sentir-se irritado com ambas as partes; e era coerente com a sua situação, dividido entre parentes, que tivesse passado toda a Primavera e meses de Verão deste ano dando o melhor do seu esforço para os reunir com sensatez e a providenciar para que no futuro se pudessem acalmar ou mesmo satisfazer as pretensões de ambos e dar a Inglaterra um governo credível e alguma esperança de restauração da lei.

Tinha-se esforçado e conseguira mesmo que os representantes de ambas as partes se encontrassem perto de Bath há mais ou menos um mês. Mas sem nenhum resultado.

- Embora tivesse parado o combate - disse Hugh muito ironicamente -, pelo menos durante uns tempos. Mas não, não houve resultado.

- Segundo ouvimos - disse Cadfael -, a imperatriz queria apresentar a sua pretensão à Igreja como juiz e Stephen não.

- Não admira! - disse Hugh e sorriu com sarcasmo. - Ele está no poder, ela não. Ao submeter-se a julgamento, ele tem tudo a perder, ela não tem nada em jogo, mas tem algo a ganhar. Mesmo um julgamento suspenso daria que ela não é parva. E o meu rei, Deus lhe dê juízo, afrontou a Igreja, que não perde tempo para se vingar. Não, não havia dali nada a esperar. O Bispo Henry está neste momento em França, não perdeu a esperança, está a ver se obtém o apoio do rei de França e do Conde Theobald da Normandia. Estará ocupado nestas próximas semanas, a trabalhar nalgumas propostas de paz com eles e voltar armado para abordar aqueles inimigos outra vez. Para dizer a verdade, esperava muito mais apoio do que obteve aqui, especialmente do norte. Mas calaram-se e ficaram em casa.

- Chester? - arriscou Cadfael.

O Conde Ranulf de Chester era um semi-rei de espírito independente, num palatino forte do Norte e casado com a filha do conde de Gloucester, o meio-irmão da imperatriz e principal patrocinador desta luta, mas tinha má vontade contra as duas facções e mantivera uma paz cautelosa no seu próprio domínio até agora, sem traçar armas por nenhum dos lados.

- Ele e o meio-irmão, William de Roumare. Roumare tem grandes terras em Lincolnshire e entre os dois são uma força que tem de se ter em cota. Mantiveram o equilíbrio, lá em cima, é verdade, mas poderiam ter feito mais. Bem, temos de estar agradecidos, mesmo por uma trégua passageira. E podemos ter esperança.

Esperança era algo que não abundava naqueles tempos duros em Inglaterra, pensou Cadfael com tristeza. Mas, façamos-lhe justiça, Henry de Blois estava a dar tudo por tudo para pôr ordem no caos. Henry era a prova positiva que se pode fazer uma grande carreira no mundo com a aceitação precoce do hábito. Monge de Cluny, abade de Glastonbury, bispo de Winchester, legado papal - uma subida tão vertiginosa e espectacular como a de um arco-íris. É certo que, para começar, era sobrinho do rei, e devia o seu rápido avanço ao velho rei Henry. Filhos mais novos, muito capazes, de famílias menos importantes que escolhem o claustro e o hábito não podiam esperar todos a mitra, dentro ou fora das suas abadias. Aquele jovem instável de boca apaixonada e olhos com manchas verdes, por exemplo - até onde chegaria na estrada do poder?

- Hugh - disse Cadfael, enquanto abafava o braseiro com turfa para o manter vivo mas adormecido, para o caso de o querer mais tarde -, o que sabeis dos Aspley de Aspley? Lá em baixo, na orla da Floresta Grande, creio, não muito longe da cidade, mas isolados.

- Não tão isolados - disse Hugh, um tanto surpreendido com a pergunta. - Há três casas senhoriais ali próximas, todas resultado do que começou por ser um desbaste de árvores. Todas dependiam do conde, agora dependem da coroa. Ele tomou o nome de Aspley. O avô era saxão, mas um homem sólido, e o Conde Roger concedeu-lhe o seu favor e deixou-lhe a terra. Ainda são saxões. Esse senhor casou com uma dama normanda, que lhe trouxe uma outra propriedade algures no norte, para além de Nottingham, mas Aspley continua a ser a parte principal do seu domínio. Porquê, o que é Aspley para vós?

- Um vulto num cavalo à chuva-disse Cadfael com simplicidade. - Trouxe-nos o filho mais novo, inclinado pelo céu ou pelo inferno para uma vida conventual. Pergunto porquê, é a verdade.

- Porquê? - Hugh encolheu os ombros e sorriu. - Um domínio pequeno e um irmão mais velho. A terra não chega para ele, a não ser que se incline para a carreira das armas e procure arranjar alguma para ele. E o convento e a Igreja não são más perspectivas. Um rapaz esperto podia ir mais longe por esse caminho do que através da espada. Onde é que está o mistério?

E ali, viva no espírito de Cadfael, estava a figura ainda jovem e vigorosa de Henry de Blois para ilustrar a opinião. Mas será que aquele rapaz rígido e agitado tinha estofo para um papel de governo?

- Como é o pai? - perguntou e sentou-se ao lado do amigo no banco largo, de encontro à parede da oficina.

- É de uma família mais antiga do que Ethelred e tão orgulhoso como o próprio diabo, pois tudo o que tem são duas propriedades. Nessa altura, os príncipes mantinham as suas cortes locais satisfeitas. Ainda há casas assim, nas colinas e nas florestas. Penso que deve ter passado os cinquenta anos - disse Hugh, meditando placidamente sobre os seus conhecimentos sobre as terras e os senhores sob a sua vigilância nestes tempos difíceis. - Tem boa reputação. Nunca vi os filhos. Devem ter uma diferença de cinco ou seis anos, creio. Que idade tem este?

- Dezanove, segundo disse.

- O que é que vos preocupa nele? - perguntou Hugh, imperturbável embora perceptivo. Deitou um olhar de lado, rápido, por cima do ombro, para o perfil agudo do Irmão Cadfael e esperou sem impaciência.

- A sua docilidade - disse Cadfael e controlou-se a si próprio por encontrar a imaginação, ainda mais que a língua, tão incauta. - Dado que, por natureza, ele é bravio - continuou com firmeza -, com um olho de falcão ou de faisão e um maxilar como uma rocha. E dobra as mãos e baixa as pálpebras como uma criada a quem se ralhou!

- Pratica a sua arte - disse Hugh -, e estuda o abade. É o que fazem os rapazes espertos. Já os tendes visto chegar e irem-se embora.

- É verdade.-Com muita inépcia, alguns, jovens ambiciosos dotados com meios para ir até certo ponto, mas não mais longe, e apostando para além das suas capacidades. Achava que não era o caso deste. Aquela fome e sede de aceitação, para além da salvação, parecia-lhe um fim em si própria, uma medida de desespero. Duvidava se os olhos de falcão olhavam para além ou se viam algum horizonte para fora dos muros fechados do enclave. -Aqueles que querem uma porta para fechar atrás de si, Hugh, devem estar a fugir ou para este mundo aqui dentro ou do mundo lá de fora. Há uma diferença. Mas sabeis alguma maneira de a distinguir uma da outra?

 

Naquele ano houve em Outubro uma colheita bastante boa de maçãs nos pomares ao longo do Gaye e dado que o tempo se tornara de difícil previsão, tiveram de tomar partido de três bons dias de seguida, que vieram no meio da semana, e colher os frutos enquanto não chovia. Para isso, reuniram todos os braços para o trabalho, monges do coro e criados, e todos os noviços, excepto as crianças. Um trabalho agradável, sobretudo para os jovens, que tiveram licença para subir às árvores e levantar os hábitos até à altura dos joelhos, num breve regresso ao tempo de rapazes.

Um dos comerciantes da cidade tinha uma cabana perto da esquina das terras da abadia ao longo de Gaye, onde mantinha cabras e abelhas, e tinha licença para cortar ervas para os animais debaixo das árvores do pomar, porque o seu campo era um tanto limitado.

Estava lá naquele dia com uma foicinha a cortar as ervas mais altas, o último corte do ano, à volta dos troncos onde a foice não podia ser usada com segurança. Cadfael passou o dia com ele agradavelmente e sentou-se na sua companhia debaixo de uma macieira para a troca de amabilidades próprias de uma reunião destas. Devia haver poucos cidadãos de Shrewsbury que ele não conhecesse e este homem tinha um rebanho de filhos por quem perguntar.

Cadfael ficou mais tarde com o peso na consciência que poderia ter sido a sua atenção de vizinho a causa de o seu companheiro deixar a foice debaixo da árvore e esquecer-se de a apanhar, quando o filho mais novo, um rapazito que lhe dava pelos joelhos, veio aos saltos chamar o pai para o pão e cerveja do meio-dia. Pode ter sido isso, mas ele deixou-a na erva que fazia um tufo junto ao tronco. E Cadfael levantou-se e foi para a apanha das maçãs, enquanto o companheiro de conversa levantava o miúdo aos saltos pelo ar até à cabana, enquanto lhe escutava a conversa todo o caminho.

Os cestos de palha estavam nessa altura a ficar cheios. Não era a maior colheita que Cadfael presenciara neste pomar, mas mesmo assim era bem-vinda. Um dia doce, meio enevoado, meio iluminado pelo Sol, o rio que corria devagar e calmo entre eles e a silhueta cheia de torres da cidade, o cheiro maduro da colheita, que era composto de fruta, erva seca, plantas cheias de sementes, árvores aquecidas pelo Verão a tornarem-se sonolentas para o descanso, pesado e doce no ar e no nariz - não admira que se esquecessem os problemas e os corações de alegrassem. As mãos trabalhavam e os espíritos ficavam mais leves. Cadfael reparou que o Irmão Meriet trabalhava com zelo, as mangas pesadas enroladas para trás, mostrando os braços morenos e vigorosos, as saias apanhadas pelos joelhos lisos, o capuz tombado sobre os ombros e a cabeça ainda sem a tonsura recortada, escura em contraste com o céu. O perfil brilhava, os olhos cor de avelã largos e descobertos. Sorria. Não um sorriso partilhado, confiante, apenas uma testemunha da sua satisfação e essa, talvez, breve e bastante vulnerável.

Cadfael perdeu-o de vista, labutando com modéstia com os seus próprios esforços. É perfeitamente possível estar espiritualmente envolvido numa oração particular, enquanto se trabalha arduamente a colher maçãs, mas estava apenas bem consciente que ele próprio estava completamente absorvido no prazer sensual do dia e, pelo que vira do rosto do Irmão Meriet, o mesmo acontecia com o jovem. E ficava-lhe muito bem.

Foi pouca sorte que o mais pesado e deselegante dos noviços escolhesse precisamente trepar à árvore debaixo da qual estava a foice e, ainda maior pouca sorte, que se aventurasse a debruçar-se muito para fora, num esforço para chegar a um ramo de frutos. A árvore era do tipo que tem muita fruta nas pontas e os ramos estavam enfraquecidos por uma colheita pesada. Um ramo partiu-se sob o peso e o jovem veio por ali abaixo numa confusão de folhas e ramos que se quebravam, direitinho à lâmina da foice, voltada para cima.

Foi uma descida espectacular e meia dúzia de colegas ouviram o ruído da queda e vieram a correr, com Cadfael entre os primeiros. O jovem jazia sem se mexer, embrulhado na confusão do hábito, os braços e pernas estendidos, um rasgão enorme no lado esquerdo do fato e uma corrente de sangue a empapar a manga e a relva debaixo dele. Se alguma vez um homem teve aspecto de morte súbita e violenta, era o seu caso. Não admira que os jovens inexperientes ficassem horrorizados, com gritos de tristeza ao vê-lo.

O Irmão Meriet estava a alguma distância e não ouviu a queda. Veio por entre as árvores, sem saber o que se passava, carregando um grande cesto de maçãs ao longo do caminho junto ao rio. Pousou o olhar despreocupado na figura caída, no fato rasgado, no sangue a correr. Estacou como um cavalo atingido, começou a andar para trás com os calcanhares a tropeçar na turfa. O cesto caiu-lhe das mãos e as maçãs espalharam-se todas pela relva.

Não emitiu qualquer som, mas Cadfael, que estava ajoelhado junto do noviço tombado, olhou para cima espantado pela chuva de fruta e viu um rosto arrastado da luz do dia e da vida para a rigidez de argila da morte. Os olhos fixos eram de vidro verde, sem qualquer brilho de vida. Olhavam fixamente sem pestanejar perante o que parecia um homem esfaqueado, morto sobre a relva. Todas as linhas da máscara se encolheram, aguçaram, ficaram brancas, como nunca mais se voltassem a mexer ou voltassem à vida.

- Louco! - gritou Cadfael, furioso por ficar sujeito a tal alarme e choque quando já tinha um rapaz tonto nas mãos. - Apanhai as maçãs e levai-as a elas e a vós daqui para fora, e fora da minha vista, se não sois capaz de fazer nada melhor para ajudar. Não percebeis que o rapaz apenas bateu com a cabeça contra o tronco e arranhou as costas na foice? Se sangra como um porco, está vivo e bem vivo.

E a vítima deu provas disso abrindo um olho estupefacto, olhando em volta como que à procura do inimigo que lhe fizera aquilo, tornando-se volúvel nas queixas do seu ferimento. O círculo aliviado fechou-se à sua volta, oferecendo ajuda, e Meriet ficou a apanhar o que espalhara, numa obediência rígida, ainda sem um som ou uma palavra. A máscara gelada demorou muito tempo a derreter, os olhos verdes ficaram baixos antes de a luz voltar a aparecer neles.

O ferimento da vítima era, como Cadfael dissera, um arranhão grande mas pouco profundo, que rapidamente foi limpo do sangue e ligado com uma camisa que um dos noviços sacrificou e a tira forte de tecido da asa remendada de um dos cestos de fruta. A panncada na cabeça tinha dado origem a um galo e uma dor de cabeça, mas a nada de mais grave. Foi mandado de volta para a abadia, mal sentiu vontade de se levantar e experimentar as pernas, na companhia de dois colegas suficientemente grandes e fortes para lhe fazerem uma cadeirinha com as mãos e pulsos entrelaçados se ele desmaiasse. Do acidente apenas restou o calcar de muitos pés no pedaço de relva onde o sangue secava e a foice que um rapaz assustado veio pedir intimidado. Esteve indeciso até poder aproximar-se de Cadfael, quando este estava sozinho, e ficou satisfeito quando este lhe assegurou que não havia grande prejuízo e que o pai não era culpado do infeliz esquecimento. Os acidentes continuarão a acontecer mesmo sem a ajuda de guardadores de cabras esquecidos e desajeitados e gordos rapazes.

Logo que se viu livre de todos, Cadfael olhou em volta à procura do problema que restava. E ali estava ele, uma figura de hábito negro entre os outros, a trabalhar sem parar, tal como os outros, excepto que este desviava a cara enquanto os outros falavam sobre o que acontecera num tom estridente, o excitamento que acabava punha-os a chilrear como estorninhos e ele nunca disse uma palavra. Uma certa rigidez nos movimentos, como se a boneca de madeira de uma criança tivesse ficado viva, e sempre o ombro levantado se alguém se aproximava. Não queria ser observado, pelo menos até recuperar o domínio do seu próprio rosto.

Transportaram a colheita para casa, para ser posta em tabuleiros nos sótãos do celeiro grande do pátio da granja, porque estas maçãs tardias conservavam-se até ao Natal. No caminho de regresso, bem a tempo das Vésperas, Cadfael pôs-se ao lado de Meriet e manteve o mesmo ritmo que ele, num silêncio plácido na maioria do caminho. Gostava de estudar as pessoas, quando parecia não ter por elas mais interesse para além da aceitação serena que estavam com ele no mesmo mundo.

- Que grande barulho que ali houve - disse Cadfael, tentando uma espécie de desculpa, que podia ter o mérito de ser surpreendente -, por causa de uns centímetros de pele. Falei convosco com dureza, à pressa. Desculpai-me! Podia realmente ter sido o que pensastes. Tive também perante mim essa imagem tão clara como vós. Agora podemos ambos respirar de alívio.

A cabeça que estava voltada para o outro lado virou-se de um modo muito suave e cuidadoso para olhar por sobre um ombro direito. A chama dos olhos verde-dourado foi como um relâmpago breve que depressa se apagou.

Uma voz suave e espantada disse:

- Sim, graças a Deus! E graças a vós, irmão!

Cadfael pensou que o "irmão" fora acrescentado por dever e tardiamente, mas mesmo assim apreciou-o.

- Eu não ajudei nada, tinha razão. Eu... não estou habituado... - disse Meriet desajeitadamente.

- Não, rapaz, por que havereis de estar? Eu tenho mais do dobro da vossa idade e tomei o hábito muito tarde, não como vós. Já vi a morte de várias maneiras, fui soldado e marinheiro no meu tempo: no Oriente, nas Cruzadas e durante dez anos depois da queda de Jerusalém. Vi homens mortos em batalha. Matei homens em batalha. Nunca senti prazer nisso, disso lembro-me bem, mas nunca fugi a isso também, depois de fazer os votos. - Algo se passava a seu lado, sentiu que o corpo jovem estacava para tomar atenção. Talvez a menção de votos diferentes dos monásticos, votos que envolviam também uma questão de vida ou de morte? Cadfael, como um pescador com um isco tímido e traiçoeiro na linha, continuou falando de coisas sem importância, acalmando a suspeita, despertando interesse, revelando, como raras vezes fazia, os anos passados da sua própria experiência. O silêncio que era apanágio da Ordem não podia evitar que ela atingisse os seus objectivos mais importantes, onde uma alma se atormentava nas fronteiras da convicção. Um irmão mais velho, conversador, recordando um passado aventuroso, passado em metade do mundo conhecido - poderia haver algo mais inofensivo ou mais pacífico?

- Estive com a companhia de Robert da Normandia e éramos uma grande mistura: Britânicos, Normandos, Flamengos, Escoceses, Bretões... e, se se lembrar de mais, pode ter a certeza que estavam lá! Depois de a cidade estar calma e de Baldwin ter sido coroado, a maioria de nós regressámos aos nossos países, numa questão de dois ou três anos, mas eu interessei-me pelo mar e fiquei. Havia piratas que andavam por aquelas costas, tínhamos sempre trabalho para fazer.

O jovem ao lado não perdera uma palavra do que fora dito, tremia como um cão de caça sem treino, mas de sangue puro, ao ouvir a trompa de caça, embora nada dissesse.

- E no fim voltei para o meu país, porque era o meu país e senti necessidade disso - disse Cadfael. - Servi aqui e ali como um homem de armas livre durante algum tempo e depois senti que estava maduro, que tinha chegado a altura. Mas vivi a minha vida pelo mundo.

- E agora o que fazes aqui? - perguntou Meriet.

- Cultivo plantas, seco-as e faço remédios para os doentes que nos visitam. Trato de muitas almas para além das que estão aqui dentro.

- E isso satisfaz-vos? - Era um grito mudo de protesto, a ele não o teria satisfeito.

- Tratar de homens depois de passar anos a feri-los? O que poderia ser mais adequado? Um homem faz o que deve fazer - disse Cadfael com cuidado -, se o dever que se impôs é combater ou salvar pobres almas do combate, matar, morrer ou curar. Muitos haverá que quererão dizer-nos o que devemos fazer, mas só um poderá passar pelos outros e alcançar a verdade. E esse somos nós próprios, com a luz que nos ilumina o caminho. Sabeis o que aqui é o mais difícil, de todos os votos que fiz? A obediência. E sou velho.

E eu gozei a minha vida, e uma bastante excitante, estava subentendido. "É o que estou a tentar fazer agora", pensou ele, "é avisá-lo para não se comprometer demasiado cedo com o que não pode dar, com o que não tem de dar?"

- É verdade! - disse Meriet com brusquidão. - Um homem deve fazer aquilo que lhe é dado para fazer e não questionar. Se isso é obediência! - E, de repente, voltou para o Irmão Cadfael uma expressão ao mesmo tempo tão jovem, devota e exaltada, como se tivesse acabado de beijar, como Cadfael uma vez o fizera, o punho em cruz do próprio punhal e prometido a vida por uma causa tão santa como a libertação da cidade de Deus.

Cadfael teve Meriet no pensamento durante o resto do dia e, depois das Vésperas, confiou ao Irmão Paul a angústia que sentia ao recordar-se do desastre do dia, porque Paul ficara com as crianças e as notícias que lhe tinham chegado apenas falavam da queda e ferimentos do Irmão Wolstan, não do horror indescritível que tinham suscitado em Meriet.

- Não que haja qualquer coisa estranha em recear a vista de um homem deitado no chão cheio de sangue, todos estavam impressionados com isso. Mas ele... o que sentiu foi de certeza excessivo.

O Irmão Paul abanou a cabeça duvidoso em relação a esta acusação difícil.

- Tudo o que ele sente é excessivo. Não vejo nele a calma e a certeza que devem acompanhar uma verdadeira vocação. Oh, ele é a própria encarnação do dever, faz tudo o que lhe peço, todas as tarefas que lhe destino são cumpridas, está ansioso por ir mais depressa do que eu lhe peço. Nunca tive um aluno tão diligente. Mas os outros não gostaram dele, Cadfael. Ele evita-os. Aqueles que tentaram aproximar-se dele dizem que ele se afasta deles e escapa-se desabridamente. Prefere estar sozinho. Digo-vos Cadfael, nunca vi um noviço seguir o seu noviciado com tanta paixão e tão pouca alegria. Já alguma vez o vistes sorrir desde que aqui está?

"Sim, uma vez", pensou Cadfael, "esta tarde, antes de Wolstan cair, quando estava a apanhar maçãs no pomar, a primeira vez que saía do convento desde que o pai o trouxe."

- Achais que seria melhor trazê-lo ao capítulo? - perguntou cheio de dúvidas.

- Eu fiz melhor do que isso... ou pelo menos assim o espero. Com uma tal natureza, não gostaria de me estar a queixar quando não tenho uma causa justa de queixa. Falei com o Pai Abade sobre ele. "Mandai-mo", disse Radulfus, "e assegurai-lhe que eu estou aqui para escutar todos os que de mim precisam como do próprio pai, sem medo." E eu enviei-lho e disse-lhe que podia confiar os seus pensamentos com toda a confiança. E qual foi o resultado? Uns "Sim, Pai; não, Pai; assim farei, Pai!". E nem uma palavra se lhe escapou do coração. A única coisa que lhe faz abrir os lábios voluntariamente é a menção de que pode estar enganado ao vir para aqui e que deve pensar de novo. Isso fá-lo ajoelhar bastante depressa. Implora que lhe deixem encurtar o tempo de noviciado, para lhe permitirem tomar os votos em breve. O Pai Abade leu-lhe uma homilia sobre a humildade e o uso correcto do ano de noviciado e ele levou-a a peito, ou pareceu levar, e prometeu paciência. Mas continua a pressionar. Devora os livros mais depressa do que eu lhos consigo dar e está determinado a reduzir o tempo para os votos a todo o custo. Os mais lentos ficam ressentidos com ele. Os que conseguem estar a par com ele, tendo começado dois meses antes ou mais cedo, dizem que ele os despreza. Que ele os evita já eu próprio vi. Não posso negar que ele me preocupa.

Também a Cadfael, embora não dissesse quão profundamente.

- Não pude deixar de me espantar... - continuou Paul pensativo. - "Dizei-lhe que pode vir ter comigo como se eu fosse o pai, sem medo," diz o abade. Que espécie de segurança pode ser essa para um jovem acabado de chegar de casa? Viste-os, Cadfael, quando chegaram? Os dois juntos?

- Vi - disse Cadfael com cuidado -, embora apenas por uns momentos, quando eles desmontaram, sacudiram a chuva e depois entraram.

- Desde quando precisais mais do que uns momentos? - disse o Irmão Paul. - Como ao seu próprio pai, realmente! Eu estive sempre presente, vi-os separarem-se. Sem uma lágrima, com poucas palavras e duras, o pai foi-se embora e deixou-o comigo. Muitos, eu sei, fizeram assim antes, com tanto medo da despedida como os filhos, talvez mais. - O Irmão Paul nunca gerara, baptizara, criara ou tratara filhos seus e, no entanto, havia nele uma qualquer qualidade que o velho Abade Heribert, apesar de não ser nem muito subtil nem muito sensato, lhe detectara acertadamente, confiando-lhe os rapazes e os noviços com uma confiança que nunca traíra. - Mas nunca vi nenhum partir sem um beijo - disse Paul. - Nunca, antes deste. Como Aspley partiu.

Na escuridão do longo dormitório, quase duas horas depois das Completas, a única luz era a pequena candeia que ardia no cimo da escada que levava à igreja e o único som o suspiro ocasional de alguém que dormia e se virava na cama, ou o voltar desconfortável de algum irmão acordado. O Prior Robert tinha a sua cela no topo da grande divisão, dominando todo o comprimento do corredor, aberto entre as duas filas de celas. Tinha havido alturas em que alguns dos irmãos mais novos, ainda não expiados do velho Adão, ficavam contentes por o prior ter um sono pesado. Por vezes, o próprio Cadfael escapava para fora, pelas escadas, por razões que ele considerava boas. Os seus primeiros encontros com Hugh Beringar, antes do jovem ter conquistado Aline ou ter conseguido o cargo, tinham sido à noite e sem autorização. E nunca lamentados! O que Cadfael não lamentava, era difícil recordar-se para confessar. Nessa altura, Hugh fora para ele um enigma, um jovem ambíguo que tanto poderia ser um amigo como um inimigo. Uma prova após outra confirmaram-no como amigo, o mais chegado e o mais caro.

No silêncio desta noite, depois da colheita das maçãs, Cadfael jazia acordado e pensava seriamente, não em Hugh Beringar, mas no Irmão Meriet, que recuara com repulsa desesperada perante a imagem de um homem apunhalado, estendido morto na relva. Uma ilusão! O noviço ferido estava agora deitado na cama, a uma distância não mais de três ou quatro celas de Meriet, desconfortável talvez, as costelas ligadas e doridas, mas do sítio onde ele estava não vinha nem um som, devia estar a milhas de profundidade. Será que Meriet dormia tão bem? E onde tinha ele visto, ou por que é que imaginara duma maneira tão viva, um homem morto ensanguentado?

O silêncio, com uma hora ainda até à meia-noite, era absoluto. Mesmo os que dormiam inquietos estavam em paz. Os rapazes, com as ordens do abade, separados dos mais velhos, dormiam num quarto pequeno no fim do dormitório e o Irmão Paul ocupava a cela que servia de escudo para tornar esse lugar privado. O Abade Radulfus conhecia e compreendia os perigos imprevistos que espreitavam em emboscada pelas almas solitárias, embora inocentes.

O Irmão Cadfael dormia, sem estar propriamente a dormir, como lhe acontecera muitas vezes no acampamento ou no campo de batalha ou embrulhado na capa de marinheiro no convés, sob as estrelas do mar Mediterrâneo. Falara consigo próprio, outra vez no Oriente e no passado, alertado para o perigo, mesmo onde não podia haver perigo.

O grito chegou lacerado, rasgando a escuridão e o silêncio, como se duas mãos demoníacas tivessem separado à força o sono de todos aqueles aqui presentes e o próprio tecido da noite. Ergueu-se até ao telhado e esvoaçou ululando através do tecto, despertando ecos selvagens como morcegos. Continha palavras, mas não conseguia distinguir nenhuma, pairava e gritava como uma maldição, quebrado por pausas de soluços para respirar.

Cadfael levantou-se da cama, antes de o grito atingir o som mais alto, e precipitou-se para a passagem na direcção em que vinha. Nessa altura, já todos estavam acordados, ouviu uma confusão de vozes aterradas e um murmurar frenético de orações e o Prior Robert, lento e ensonado, a perguntar lamuriento quem ousava perturbar a paz. Para além do sítio onde o Irmão Paul dormia, as vozes das crianças juntavam-se à cacafonia; os dois rapazes mais novos tinham sido acordados de repente e choramingavam cheios de medo e de espanto. Nunca o seu sono fora tão rudemente perturbado e o mais novo não tinha mais de sete anos. Paul saiu da sua cela e correu para os acalmar. O clamor e queixa continuavam, num som alto e doloroso, por vezes ameaçador, por vezes ameaçado. Os santos dialogavam em línguas estrangeiras com Deus. Com quem conversava esta voz feroz e violenta, contra quem lutava e em que língua de dor, raiva e desafio?

Cadfael levara com ele a sua vela, dirigiu-se para a candeia junto das escadas para a avivar, abrindo caminho através da escuridão trémula e empurrando corpos sem objectivo, agitados, que tropeçavam na passagem, bloqueando o caminho. O barulho dos gritos, pragas e lamentos, ainda na língua incoerente do sono, batia-lhe nas orelhas durante todo o caminho e as crianças choravam num lamento no quarto pequeno. Chegou à candeia e o pavio chamejou e começou a arder com intensidade, iluminando rostos espantados de olhos e bocas abertos e também as traves do tecto elevado. Já sabia onde procurar o perturbador da paz. Afastou com os cotovelos os que estavam no caminho e levou a sua vela para a cela de Meriet. Almas menos confiantes vieram timidamente atrás e formaram um círculo para observar, com receio de se aproximarem muito.

O Irmão Meriet estava sentado muito direito na cama, tremendo e balbuciando, as mãos agarradas com muita força aos cobertores, a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados com firmeza. Isso tranquilizou-o um pouco, pois, embora atormentado, continuava a dormir e, se a natureza do seu sono não podia ser alterada, poderia acordar incólume. O Prior Robert estava agora não muito longe, por detrás dos que observavam, e não hesitaria em agarrar e sacudir o ombro rígido mais próximo da sua mão, num desagrado peremptório. Em vez disso, Cadfael pôs-lhe o braço com cautela à volta dos ombros e não o agarrou com força. Meriet estremeceu e o ritmo dos seus gritos infelizes transformou-se em soluços e hesitações. Cadfael pousou a vela e colocou a palma da mão na testa do jovem, obrigando-o com doçura a deitar-se na almofada. Os gritos violentos esmoreceram, passaram a um choro infantil de suspiros e lamentos hesitantes e pararam. O corpo rígido cedeu, amoleceu, escorregou pela cama abaixo. Quando o Prior Robert chegou ao pé da cama, Meriet jazia numa inocência amolecida, meio a dormir e liberto do pesadelo.

O Irmão Paul trouxe-o no dia seguinte ao capítulo, por precisar de ajuda para o tratamento eficaz de alguém que se encontrava, claramente, numa tão desesperante agitação espiritual. Pelo seu lado, Paul inclinar-se-ia a contentar-se com dar ao jovem uma atenção especial durante um ou dois dias, tentando arrancar-lhe o problema interior que lhe causava um tal pesadelo, e acompanhá-lo em orações especiais para encontrar a paz de espírito. Mas o Prior Robert não queria estar com demoras. Concordava que o noviço sofrera uma experiência chocante e alarmante no dia anterior, com o acidente do colega, mas o mesmo acontecera com o resto dos trabalhadores no pomar e nenhum deles acordara todo o dormitório com gritos por causa disso. Na opinião de Robert, tais manifestações, mesmo durante o sono, eram reflexo de actos voluntários de auto-exibição, resultante de algum demónio profundo e tenaz dentro de si e a carne conseguia libertar-se melhor do seu demónio através do chicote. O Irmão Paul hesitava entre ele e o uso imediato da disciplina neste caso. O abade que decidisse.

Meriet estava de pé, no meio dos frades reunidos, olhos postos no chão, mãos entrelaçadas, enquanto a sua ofensa involuntária era abertamente discutida perante os seus ouvidos. Como os outros, os que tendo recuperado a calma conseguiram continuar a dormir depois de desassossego, acordara quando o sino os chamou para as matinas, e por causa do silêncio enquanto desciam em filas pelas escadas não sabia a razão porque tantos olhos e tão duros se voltavam para ele ou porque os companheiros deixavam ansiosamente um intervalo tão grande entre eles e ele. Pelo menos assim afirmara, quando finalmente lhe contaram o seu comportamento e Cadfael acreditou nele.

- Trago-o perante vós, não por ter cometido uma ofensa com consciência - disse o Irmão Paul -, mas por precisar de ajuda que eu não consigo dar sozinho. É verdade, tal como o Irmão Cadfael nos contou, porque eu próprio não estava ontem com o grupo, que o acidente do Irmão Wolstan causou em todos um grande alarme e o irmão Meriet chegou àquela cena sem aviso e sofreu um tremendo choque, receando que o pobre jovem estivesse morto. Pode ser que apenas isto lhe invadisse o espírito e aparecesse como um sonho a perturbar-lhe o sono e que agora nada mais seja necessário além de sossego e oração. Peço que me aconselhem.

- Dizeis-me - respondeu Radulfus com um olhar pensativo fixo na figura submissa na sua frente - que ele se manteve sempre a dormir? Depois de ter acordado todo o dormitório?

- Dormiu sempre - disse Cadfael com firmeza. - Tê-lo sacudido, para acordar naquele estado, podia ter-lhe causado um grande prejuízo, mas ele não acordou. Quando com cuidado o convenci, caiu num sono ainda mais profundo e ficou livre do que o atormentava. Duvido que se recorde de alguma coisa do sonho. Tenho a certeza que não sabia nada do que aconteceu e do burburinho que causou, até lho dizerem hoje de manhã.

- Isso é verdade, Pai - disse Meriet, olhando para cima por um curto momento e mostrando ansiedade. - Eles disseram-me o que eu fiz e tenho de acreditar e Deus sabe como lamento. Mas juro que não sabia nada do que fiz. Se tive sonhos, sonhos maus, não me recordo de nada. Não sei por que razão haveria de perturbar assim o dormitório. É tão misterioso para mim como para qualquer outro. Resta-me esperar que não volte a acontecer. O abade franziu o sobrolho e meditou. É estranho que uma perturbação tão violenta tenha surgido no vosso espírito sem uma causa. Penso que o choque de ser o Irmão Wolstan caído no chão, cheio de sangue, forneceu uma fonte para a vossa perturbação. Mas o facto de terdes tão pouco poder para aceitar e para controlar o vosso próprio espírito será um bom suporte para uma verdadeira vocação?

Foi a ameaça sugerida que pareceu que pareceu alarmar Meriet. Caiu de joelhos, com uma graça súbita e agitada que fez com que o hábito ondeasse à sua volta como uma capa, e ergueu um rosto cansado e mãos suplicantes para o abade.

- Pai, ajudai-me, acreditai em mim! Tudo o que desejo é entrar aqui e estar em paz, fazer tudo o que a Regra me pede, cortar todos os laços que me ligam ao passado. Se ofender, se transgredir, por vontade ou não, tratai-me, puni-me, lançai sobre mim todo o castigo que acheis próprio, mas não me mandeis embora!

- Não é fácil desesperarmo-nos com um noviço - - disse Radul-fus -, ou voltarmos-nos as costas se precisa de tempo e de ajuda. Há remédios que acalmam um espírito demasiado fervente. O Irmão Cadfael possui-os. Mas são ajudas que só se devem usar numa grande necessidade, enquanto que vós encontrareis melhores remédios na oração e no domínio de vós próprio.

- Seria mais fácil-disse Meriet com veemência -, se reduzísseis o período do meu noviciado e me deixásseis entrar para a plenitude desta vida. Então não haveria mais nenhuma dúvida ou receio...

"Ou esperança?", pensou Cadfael, observando-o. E continuou a pensar se o mesmo pensamento não estaria no espírito do abade.

- A plenitude desta vida - disse Radulfus com dureza -, tem de ser merecida. Ainda não estais pronto para tomar os votos. Tanto vós como nós devemos exercitar a paciência durante algum tempo, antes de estardes pronto a juntar-vos a nós. Quanto mais ansiosamente vos apressardes, mais vos atrasareis. Lembrai-vos disso e refreai a vossa impetuosidade. Desta vez, esperaremos. Aceito que não foi vossa intenção ofender, confio em que não voltareis a sofrer ou causar uma tal perturbação. Agora ide, o Irmão Paul dir-vos-á a nossa vontade.

Meriet lançou um olhar brilhante em volta de todas as máscaras pensativas e partiu deixando os irmãos a debater o que seria melhor fazer com ele. O Prior Robert, no seu fervor, e rápido a identificar uma humildade onde havia mais do que um pouco de arrogância, sentia que a mortificação da carne, quer pelo trabalho duro, dieta de pão e água ou flagelação, podia ajudar a concentrar e purificar um espírito perturbado. Muitos seguiram a solução mais fácil: dado que o rapaz nunca tivera más intenções e era no entanto uma ameaça para os outros, não merecia castigo, mas a segregação dos colegas poder-se-ia considerar justificada, no interesse da paz geral. Contudo, até isso lhe pareceria um castigo a ele, referiu o Irmão Paul.

- Pode muito bem acontecer - disse por fim o abade -, que nos estejamos a preocupar sem necessidade. Quantos de nós não tivemos já uma noite difícil, cheia de pesadelos? Uma vez não são vezes. Não veio daquilo mal a ninguém, nem mesmo às crianças. Por que não havemos de confiar que presenciámos o princípio e o fim disso? As portas podem ser fechadas entre o dormitório e os rapazes, se mais alguma vez for necessário. E se mais alguma vez for necessário, então tomaremos medidas.

Passaram três noites em paz, mas na quarta houve outra perturbação nas primeiras horas do dia, menos alarmante do que na primeira vez, mas pouco menos perturbadora. Desta vez não houve gritos violentos, mas duas ou três vezes, com intervalos, houve palavras ditas em voz alta e de maneira agitada e as que se conseguiam distinguir eram profundamente perturbantes e causaram nos colegas noviços um afastamento dele e uma suspeita ainda mais profunda.

- Ele gritou: "Não, não, não!" várias vezes - contou o colega que ficava mais perto, queixando-se ao Irmão Paul no dia seguinte. - E depois disse "Sim, sim, sim!" e qualquer coisa sobre obediência e dever... Depois de estar tudo em silêncio outra vez gritou de repente "Sangue!" E eu olhei para dentro do quarto, porque ele tinha-me acordado outra vez e ele estava sentado na cama a torcer as mãos. Depois disso caiu outra vez na cama e não se ouviu mais nada. Mas com quem estava ele a falar? Receio que um demónio se tenha apossado dele. Que outra coisa poderia ser?

O Irmão Paul cortou imediatamente com tais suposições, mas não podia negar as palavras que ele próprio ouvira, nem a inquietação que lhe suscitaram. Meriet ficou preocupado e espantado ao ouvir que perturbara o dormitório uma segunda vez sem ter nenhuma recordação, de um mau sonho ou mesmo de uma coisa tão pequena e compreensível como uma dor de estômago que pudesse ter perturbado o seu próprio descanso.

- Desta vez não causou nenhum mal - disse o irmão Paul a Cadfael depois da Missa -, porque não foi alto e tínhamos a porta que dá para as crianças fechada. E eu abafei as conversas deles o melhor que pude. Mas por causa de tudo isto, eles têm medo dele. Também precisam de sossego e ele constitui uma ameaça. Dizem que há nele um demónio durante o sono e que foi ele que o trouxe para aqui, para o meio deles, e quem sabe de qual deles se apoderará a seguir? O noviço do demónio, ouvi eu chamar-lhe. Oh, fi-los parar com isso, pelo menos em voz alta. Mas é o que estão a pensar.

O próprio Cadfael ouvira a voz atormentada, embora desta vez menos alta, ouvira a dor e o desespero que nela haviam e tinha a certeza, para além de qualquer dúvida, que para todas estas coisas havia uma razão humana. Mas não admirava que estes pobres jovens sem experiência, crédulos e supersticiosos, temessem uma razão não humana!

Isto passou-se em Outubro e no mesmo dia em que o Cónego Eluard de Winchester, na sua viagem para sul de Chester, chegou com o secretário e um laico para passar uma ou duas noites de descanso em Shrewsbury. E não por simples razões de política religiosa ou cortesia, mas precisamente porque o noviço Meriet Aspley estava instalado dentro dos muros de S. Pedro e S. Paulo.

 

Eluard de Winchester era um cónego negro de erudição considerável e vários títulos académicos, alguns de universidades francesas. Era esta larga sabedoria e largueza de espírito que o tinham recomendado ao Bispo Henry de Blois e o tinham elevado ao lugar de um dos três clérigos de mais alto grau e de maior confiança daquele prelado e deixado agora com o encargo de muitos dos assuntos pendentes do bispo, enquanto ele estava em França.

O Irmão Cadfael tinha uma categoria baixa de mais na hierarquia para ser convidado para a mesa do abade, quando havia convidados de tal estatura. Isso não lhe causava nenhuma ansiedade, nem lhe custava muito no conhecimento em primeira mão do que se passava, uma vez que era certo que Hugh Beringar, na ausência do juiz, estaria presente em qualquer reunião que envolvesse assuntos políticos e, infalivelmente, informaria o amigo de qualquer coisa de importância que surgisse.

Hugh veio a bocejar para a cabana do jardim de plantas medicinais, depois de acompanhar o cónego aos seus aposentos, no recinto das visitas.

- Um homem impressionante, não me admiro por o Bispo Henry lhe dar tanto valor. Viste-o, Cadfael?

- Vi-o chegar. Um homem grande, imponente, pesado, que no entanto montava a cavalo como caçasse desde a infância e lutasse desde a puberdade; uma tonsura redonda e farta numa cabeça redonda e sólida e um tom escuro nas faces barbeadas, quando desmontou no início da noite. Roupas ricas e segundo a moda, mas austeras. As únicas jóias eram uma cruz e um anel, mas ambos de rara beleza. E tinha um maxilar e uns olhos autoritários, inteligentes, mas tolerantes. O que está ele a fazer por estes lados na ausência do bispo?

- O mesmo precisamente que o Bispo está a fazer na Normandia: anda a pedir auxílio de todos os homens poderosos que possa contactar, para tentar produzir um plano que salve a Inglaterra de ser totalmente desmembrada. Enquanto ele procura o apoio do rei e duque em França, Henry tem a mesma urgência em saber qual a posição do Conde Ranulf e do irmão. Nunca deram atenção ao encontro do Verão, por isso parece que o bispo Henry mandou um dos seus homens ao Norte, para ser amável com os dois e assegurar-se do seu favor, mesmo antes de partir para França: um dos clérigos da sua casa, um jovem votado ao sucesso, Peter Clemence. E Peter Clemence não regressou. O que poderia significar muitas coisas, mas o tempo passou e nunca veio uma palavra nem dele nem dos dois homens do Norte, o que começou a preocupar o Cónego Eluard. Há uma espécie de paz no Sul e no Oeste, enquanto os dois lados esperam e se observam um ao outro, por isso Eluard pensou que podia partir ele próprio para Chester, para descobrir o que se passa lá em cima e o que aconteceu ao enviado do bispo.

- E o que é que lhe aconteceu ? - perguntou Cadfael com perspicácia. - Porque parece que sua senhoria está de novo a caminho do Sul para se juntar ao Rei Stephen. E que espécie de acolhimento teve em Chester?

- Tão caloroso e correcto quanto se podia desejar. E, segundo creio, o Cónego Eluard, embora leal aos esforços do bispo Henry para encontrar a paz, está mais inclinado para o lado de Stephen do que para a imperatriz e está a caminho de Westminster para dizer ao rei que ele devia atacar agora, enquanto a oportunidade é boa, e ir em pessoa ao Norte oferecer uns doces para manter Chester e Roumare tão bem-dispostos com ele como eles estão. Uma herdade ou duas e um título agradável. Roumare é agora como se fosse conde de Lincoln, por que não dar-lhe mesmo o título? Podiam segurar ali a sua posição. De qualquer modo, Eluard parece ter conseguido. Eles afirmam e voltam a afirmar a sua lealdade. E além do mais, a esposa é filha de Robert de Gloucester, Ranulf ficou em casa quando Robert trouxe a sua irmã imperial para tomar o terreno um ano atrás ou mais. Sim, parece que a situação ali não podia ser mais agradável ao cónego do que é, agora que foi afirmada. Mas a razão por que não foi afirmada mais ou menos há um mês, pela boca de Peter Clemence... É muito simples! O homem nunca lá chegou e eles nunca receberam a mensagem dele.

- Uma boa razão para não responderem - disse Cadfael sem sorrir e olhou o rosto sombrio do amigo com a máxima atenção. - Até onde chegou ele, então? - Havia nesta Inglaterra separada lugares suficientemente solitários onde um homem podia desaparecer só pelo casaco que trazia vestido ou pelo cavalo que montava. Havia distritos onde as casas senhoriais tinham sido abandonadas e ficado desertas e florestas tinham sido deixadas desguarnecidas e aldeias inteiras, demasiado expostas ao perigo, tinham sido abandonadas e deixadas apodrecer. No entanto, o Norte sofrera muito menos que o Sul e o Oeste e senhores como Ranulf de Chester tinham mantido as terras,, até agora, com uma relativa estabilidade.

- E o que Eluard tem estado a tentar descobrir no seu caminho de regresso, etapa por etapa, ao longo do caminho mais provável que um homem podia seguir. Porque de certeza que ele nunca chegou perto de Chester. E, etapa por etapa, o nosso cónego nada encontrou até chegar a Shropshire. Através de Cheshire nem um rasto de Clemence.

- E nenhum até Shrewsbury? - Hugh tinha mais a contar, pois olhava de sobrolho franzido para a taça que segurava entre as mãos delgadas.

- Para além de Shrewsbury, Cadfael, embora perto. Voltou para trás umas tantas milhas, por boa razão. A última coisa que descobriu sobre Peter Clemence foi que ele passou a noite do dia oito de Setembro com uma família de quem é parente afastado pelo lado da mulher. E onde pensas que foi? Em casa de Leoric Aspley, ali na orla da Floresta Grande.

- Não me digais! - Cadfael olhava-o agora com toda a atenção. O dia oito desse mês! E uma semana ou isso mais tarde chega o administrador, Fremund, com o pedido do amo de aceitarem o filho mais novo, de sua livre vontade, no claustro. Post hoc não é propter hoc, contudo. E, de qualquer maneira, que ligação poderia haver entre a descoberta súbita de um homem que descobriu uma vocação e a estada de uma noite de outro homem que parte de manhã?

- O Cónego Eluard sabia que ele faria ali uma paragem? O parentesco era conhecido?

- Tanto o parentesco como a sua intenção, sim, eram conhecidos tanto do Bispo Henry como de Eluard. Toda a gente da casa senhorial o viu chegar e contaram livremente como tinha sido recebido. Toda a gente, ou quase, o viu partir para a viagem na manhã seguinte.

Aspley e o administrador acompanharam-no a cavalo durante a primeira milha, com todo o pessoal e metade dos vizinhos a presenciar a partida. Não há dúvida, ele partiu dali são e salvo e bem montado. -A que distância estava da paragem seguinte? E era lá esperado? Pois se se tinha anunciado a sua ida, então alguém deve ter estado a perguntar por ele desde há muito.

- Segundo Aspley, ele tencionava parar mais uma vez em Whitchurch, que ficava a meio caminho do seu destino, mas sabia que poderia encontrar ali facilmente alojamento e não avisou. Não se encontra qualquer vestígio dele lá, ninguém o viu ou ouviu.

- Então, entre aqui e Whitchurch o homem desapareceu?

- A não ser que tenha mudado de planos e de caminho, para o qual, Deus sabe, poderia haver razões, mesmo aqui no meu distrito - disse Hugh numa queixa -, embora espere que não tenha acontecido. Mantemos a melhor ordem neste reino, ou pelo menos é o que eu afirmo, que me desafie quem quiser, mas mesmo assim duvido que seja seguro atravessar em qualquer sítio. Pode ter ouvido qualquer coisa que o fizesse voltar para outro lado. Mas a verdade é que está perdido. E há tempo de mais!

- E o Cónego Eluard quer que o encontrem?

- Morto ou vivo - disse Hugh. - É também o desejo de Henry, que está disposto a dar uma recompensa a quem o encontrar porque lhe dava muito valor.

- E estais encarregado da busca? - disse Cadfael.

- Não em termos tão restritos. Não, Eluard é um homem justo, fica ele com uma parte da responsabilidade e não se lamenta. Mas este condado é da minha conta e eu agarro a minha parte do problema. Tenho um clérigo que desaparece na minha jurisdição. Não gosto disso - disse Hugh, com a voz baixa, cheia de presságios e que tinha um brilho de prata como aço nu.

Cadfael fez a pergunta que lhe ocupava o espírito.

- E por que razão, então, tendo Aspley e todo o seu pessoal como testemunhas à sua disposição, teve o Cónego Eluard necessidade de voltar para trás estas milhas até Shrewsbury? - Mas já sabia a resposta.

- Porque, meu amigo, têm aqui o filho mais novo da casa, de fresco no seu noviciado. Este Cónego Eluard é radical. Quer o testemunho mesmo do que saiu da tribo. Quem sabe qual, entre todos os que fazem parte daquela casa, notou aquilo que é necessário?

Era um pensamento penetrante. Atingiu a cabeça de Cadfael como um dardo. Quem sabe, realmente?

- Ainda não interrogou o rapaz?

- Não, não ia perturbar os ofícios da noite com um assunto desses... nem a sua bela ceia - acrescentou Hugh com um breve sorriso trocista. - Mas amanhã vai chamá-lo à sala-de-visitas e vai tratar do assunto com ele, antes de continuar em direcção ao Sul para se juntar ao rei em Westminster e avisá-lo para se ir assegurar de Chester e Roumare enquanto pode.

- E vós estareis presente nessa reunião - disse Cadfael com segurança.

- Vou estar presente. Necessito saber tudo o que uma pessoa me possa contar sobre o assunto, se um homem desapareceu por meios criminosos dentro da minha jurisdição. O assunto é agora tanto de Eluard como meu.

- Dir-me-eis - disse Cadfael com confiança -, o que o rapaz tem para dizer e como se comporta?

- Está bem - disse Hugh e levantou-se para sair.

Meriet comportou-se com uma calma estóica durante a entrevista na sala, na presença do Abade Radulfus, do Cónego Eluard e de Hugh Beringar, aqui representantes do poder da Igreja e do Estado. Respondeu às perguntas de uma maneira simples e directa, sem hesitações aparentes.

Sim, estivera presente quando o Senhor Clemence chegou para fazer em Aspley uma paragem na sua viagem. Não, não era esperado, veio sem anunciar, mas a casa dos parentes estava para ele aberta sempre que quisesse. Não, estivera lá apenas uma vez presente como convidado, uns anos antes. Sim, o próprio Meriet tinha posto no estábulo o cavalo do visitante e tinha tratado dele, tinha-lhe dado água e comida, enquanto as mulheres davam as boas-vindas dentro da casa ao Senhor Clemence. Era filho do primo da mãe de Meriet, que morrera há dois anos - o lado normando da família. E como o receberam? O melhor que puderam em comida e bebida, música depois da ceia e um convidado mais à mesa, a filha da casa senhorial vizinha que estava noiva do irmão mais velho de Meriet, Nigel. Meriet falou da ocasião com olhos bem abertos e uma expressão desanuviada e calma.

- O Senhor Clemence disse qual era a sua missão? - perguntou Hugh de repente. - Disse para onde ia e com que fim?

- Disse que ia numa missão do bispo de Winchester. Não recordo que tenha dito mais alguma coisa enquanto lá estive. Mas houve música depois de eu ter saído e eles ainda estavam sentados. Fui ver se tudo estava a ser bem feito no estábulo. Pode ter dito mais ao meu pai.

- E de manhã? - perguntou o Cónego Eluard.

- Tínhamos tudo pronto para o servir quando se levantou, porque disse que tinha de partir cedo. O meu pai e Fremund, o nosso administrador, com dois criados, foram com ele a cavalo durante a primeira milha de caminho, e eu, e os criados e Isouda...

- Isouda? - disse Hugh de orelhas atentas a um novo nome. Me-riet tinha falado da noiva do irmão sem lhe ter dito o nome.

- Não é minha irmã, é a herdeira da casa de Foriet, que pega com a nossa a Sul. O meu pai é o tutor e administra-lhe as terras e ela vive connosco. - Uma irmã mais nova de pouca importância, era o que dizia o tom com que falava, desta vez completamente descuidado. - Ela estava connosco a ver o Sr. Clemence sair com todas as honras, como é costume.

- E não o voltou a ver?

- Não fui com eles. Mas o meu pai acompanhou-o a cavalo bastante mais do que, por cortesia, é necessário e deixou-o num bom caminho.

Hugh tinha ainda mais uma pergunta.

- Vós cuidastes-lhe do cavalo. Que espécie de cavalo era?

- Um belo animal, não tinha mais de três anos e impetuoso. -A voz de Meriet iluminou-se com entusiasmo. - Um baio escuro, com uma mancha branca no focinho desde a testa ao nariz e duas patas dianteiras brancas.

Bastante digno de nota, então, para ser facilmente reconhecido quando encontrado e, sobretudo, para ser um prémio para alguém.

- Se alguém queria o homem fora deste mundo, seja por que razão fosse - disse Hugh a Cadfael, depois, no jardim de plantas medicinais, -, ainda teria um bom uso para um cavalo como aquele. E algures entre aqui e Whitchurch deve estar esse animal e, onde estiver, haverá pistas a seguir. Se o pior tiver acontecido, pode-se esconder um homem morto, mas um cavalo vivo acabará por ser visto por alguém, mais cedo ou mais tarde, e mais cedo ou mais tarde acabo por vir a saber.

Cadfael estava a pendurar nas traves da barraca os ramos de plantas acabados de secar no fim do Verão, mas estava a dar toda a atenção, ao mesmo tempo, ao que Hugh contava. Meriet fora mandado embora sem nada acrescentar ao que o Cónego Eluard já conseguira saber pelo resto das pessoas da casa Aspley. Peter Clemence chegara e partira de boa saúde, bem montado e com a protecção do formidável nome do Bispo de Winchester sobre ele. Tinha sido acompanhado por cortesia durante uma milha do caminho. E desaparecera.

- Dai-me, se puderes, as respostas do rapaz com as suas próprias palavras - pediu Cadfael. - Quando não há nada de interesse no conteúdo, vale a pena observar com atenção a maneira como foi dito.

Hugh tinha uma memória excelente e reproduziu as respostas de Meriet até na entoação.

- Mas não há aí nada, excepto uma descrição muito boa do cavalo. Respondeu a todas as perguntas e, no entanto, nada disse, visto que nada sabe.

- Ah, mas ele não respondeu a todas as perguntas - disse Cadfael. - E penso que ele pode ter-nos dito algumas coisas importantes, embora pareça duvidoso que tenha algum significado no caso do desaparecimento do Senhor Clemence. O Cónego Eluard perguntou-lhe: "E não o voltou a ver?" E o rapaz disse: "Não fui com eles." Mas não disse se tinha voltado a ver a visita que partiu. E, de novo, quando falou dos criados e dessa rapariga Foriet, todos reunidos para a partida dele, não disse "e o meu irmão". Como também não disse se o irmão tinha ido com os que acompanharam o visitante.

- É verdade - concordou Hugh, não muito impressionado. - Mas nenhuma tinha muita importância. Muito poucos de nós observam cada palavra, para não deixar nenhum pormenor possível em dúvida.

- Com isso concordo. Porém não faz mal nenhum notar essas pequenas coisas e pensar. Um homem não acostumado a mentir, mas obrigado a fazê-lo, fugirá se puder. Bem, se encontrardes o vosso cavalo num estábulo umas trinta milhas ou mais daqui, não haverá necessidade de vós ou eu observarmos cada palavra pronunciada por Meriet, porque a busca o terá ultrapassado a ele e à família. E podem esquecer Peter Clemence - excepto uma missa de vez em quando, talvez, pela alma de um parente.

O Cónego Eluard partiu para Londres, secretário, criado, bagagem e tudo, com o fim de persuadir o Rei Stephen a fazer uma visita diplomática ao Norte, antes do Natal, e assegurar os seus interesses com dois poderosos irmãos que ali governavam quase de costa a costa. Ranulf de Chester e William de Roumare tinham decidido passar a festividade em Lincoln, com as esposas, e uma pequena lisonja criteriosa e a oferta de uma prenda modesta ou duas podia ter bons resultados. O Cónego já preparara o caminho e pensava fazer a viagem de regresso em companhia do rei.

- E, no regresso - disse ele, ao despedir-se de Hugh no grande pátio da abadia -, vou separar-me da companhia de Sua Majestade e voltar aqui, na esperança de que nessa altura já tenhais novidades para mim. O bispo vai ficar numa grande ansiedade.

Partiu, e Hugh ficou com a incumbência de continuar a busca de Peter Clemence, que agora se tinha transformado, para todos os fins práticos, na procura do seu cavalo baio. E continuou mesmo, com vigor, empregando tantos homens quantos conseguia reunir ao longo dos caminhos mais frequentados em direcção ao Norte, visitando os donos das casas senhoriais, invadindo estábulos, fazendo perguntas aos viajantes. Quando os locais mais prováveis para parar não deram qualquer resultado, espalharam-se pelas zonas mais desertas do país. No Norte do condado as terras eram mais planas, com menos floresta, mas com largas extensões de charneca coberta de urze, zonas pantanosas e mato e várias partes extensas de turfa, desoladas e impossíveis de cultivar, embora as pessoas de lá, que conheciam os canais seguros, cortassem e empilhassem combustível para usar no Inverno.

A casa de Alkington ficava na orla desta zona desolada, de charcos castanhos escuro e matos entrelaçados, sob um céu pálido e sem contornos. Estava desvalorizada, com as terras cultiváveis a diminuir, sem pastos. Mas foi aí que Hugh o encontrou, com o focinho com uma mancha branca, as patas dianteiras brancas, a ficar um tanto hirsuto e maltratado, mas mesmo assim em muito boas condições.

O comportamento do arrendatário não revelou encobrimento e mostrou abertamente o cavalo. Era um homem livre, subarrendatário de Lorde Wem e estava disposto e pronto a contar o que sabia sobre o inesperado hóspede do seu estábulo.

- E estais a vê-lo em melhor estado do que estava quando aqui chegou, pois andava sozinho há algum tempo e ninguém sabia de quem era ou de onde vinha. Um homem que aqui trabalha tem uma clareira a oeste daqui, uma ilha no charco, e corta lá turfa para ele e para outros. Era o que andava a fazer quando viu aquela criatura a vaguear à solta, com sela, freio e tudo e sem se ver qualquer cavaleiro. Tentou agarrá-lo, mas o animal não deixou. Tentou várias vezes e começou a pôr-lhe comida e a criatura era suficientemente esperta para ir comer sem se deixar apanhar. Estava enlameado até ao pescoço, conseguira soltar o freio e tinha a sela a cair pela barriga, mesmo antes de conseguirmos chegar-lhe ao pé. Por fim, preparei a minha égua e soltámo-la por ali e ela apanhou-o. Muito calmo, uma vez apanhado, e contente por se ver livre do resto dos arreios e de sentir uma escova a limpá-lo de novo. Mas não tínhamos noção de quem seria. Mandei recado ao meu senhor em Wem e mantêmo-lo aqui até sabermos o que havemos de fazer.

Não havia necessidade de duvidar disto. E ficava apenas a uma ou duas milhas do caminho para Whitchurch e à mesma distância da cidade.

- Guardastes o arreio? Tal e qual como ele o tinha?

- No estábulo, posso dar-vos quando quiserdes.

- Mas não havia nenhum homem. Procurastes um homem depois? Os charcos não eram sítio para um desconhecido ir de noite e nem suficientemente seguro para um viajante temerário mesmo durante o dia. Os charcos de turfa, mais além, já tinham ossos que chegavam.

- Procurámos, senhor. Há homens aqui nas redondezas que conhecem todos os canais, todos os caminhos e todas as ilhas onde se pode andar. Calculámos que tivesse sido atirado ou afundado com o cavalo e só o animal se libertou. Mas nem um vestígio. E aquela criatura, embora estivesse tão suja, duvido que estivesse enterrada por cima dos jarretes e, se estivesse a uma profundidade dessas, com um homem na sela, teria sido o homem quem teria mais sorte.

- Achais - disse Hugh olhando-o com perspicácia -, que ele veio para os charcos já sem o cavaleiro?

- Acho que sim. Umas tantas milhas ao Sul há floresta. Se lá havia salteadores e apanhassem o homem, teriam ficado com o cavalo. Acho que veio para aqui.

- Mostrai ao meu sargento o caminho para o vosso homem dos charcos? Ele poderá dizer-nos mais qualquer coisa e mostrar-nos os lugares onde o cavalo andava perdido. Há um funcionário da casa do Bispo de Winchester - disse Hugh, resolvendo confiar num homem simples e honesto-, que anda perdido, e talvez esteja morto. Este cavalo era dele. Se souberdes de mais alguma coisa, mandai-me dizer. Sou Hugh Beringar, do castelo de Shrewsbury e não ficareis a perder.

- Então ides levá-lo. Só Deus sabe que nome seria o dele, eu chamava-lhe Russet. - O homem livre, dono desta pobre propriedade, debruçou-se sobre a caniçada e fez estalar os dedos, e o baio veio ter com ele confiante e enfiou o nariz na palma da mão estendida. - Vou ter saudades dele. O pêlo não tem o brilho que devia ter, mas há-de voltar a tê-lo. Pelo menos, tirámos-lhe os carrapichos e os bocados de urze.

- Havemos de vos recompensar por isso - disse Hugh calorosamente. - Foi bem ganho. E agora, era melhor eu ver o que resta dos arreios, mas duvido que nos digam mais alguma coisa.

Foi por pura coincidência que os noviços estavam a passar pelo pátio grande para o claustro, para os ensinamentos da tarde, quando Hugh Beringar passou a cavalo em frente da portaria da abadia, conduzindo o cavalo, a que por conveniência chamava Russet, para o estábulo para ser guardado com segurança. Ficava melhor aqui do que no castelo, uma vez que o cavalo era propriedade do bispo de Winchester e, numa altura qualquer, dentro de pouco tempo ser-lhe-ia entregue.

Cadfael estava precisamente a sair do claustro a caminho do jardim de plantas medicinais e ficou assim frente a frente com os noviços que vinham a entrar. No fim da fila vinha o Irmão Meriet, bem a tempo de ver o jovem baio que ia a trote pelo pátio e arqueava o pescoço cor de cobre e levantava a mancha branca, longa e estreita para o ambiente estranho, enquanto deslocava as patas calçadas de branco, com delicadeza, pelas pedras,

Cadfael viu o encontro com clareza. O cavalo ergueu a bela cabeça estreita, pescoço e narinas esticadas e relinchou suavemente. O jovem ficou branco como a mancha da cabeça do cavalo e deu um salto para trás e um brilho de sol breve surgiu-lhe nos olhos verdes. Depois, lembrou-se e continuou a andar, seguindo os colegas para o claustro.

À noite, uma hora antes das Matinas, o dormitório foi sacudido por grande grito selvagem : "Barbary... Barbary..." e depois um assobio longo e estridente, antes de o Irmão Cadfael chegar à cela do Irmão Meriet, lhe passar a mão sobre a testa, face e lábios estendidos, o sossegar e voltar a deitar ainda a dormir na almofada. O sonho, se de sonho se tratava, foi abruptamente interrompido e os sons dissolveram-se em silêncio. Cadfael conseguiu afastar e fazer calar os irmãos espantados quando eles chegaram e até o Prior Robert hesitou em interromper um sono tão perigoso, especialmente à custa do incómodo de toda a gente, incluindo ele próprio. Cadfael sentou-se junto da cama muito depois de tudo voltar a ficar em escuridão e silêncio. Não sabia bem o que esperava, mas sentia-se contente por estar preparado. Quanto ao dia seguinte, ele iria chegar, para melhor ou para pior.

 

Meriet levantou-se para a Hora Prima com os olhos pesados e sombrios, mas aparentemente desconhecendo o que acontecera durante a noite e foi salvo do impacte imediato do temor, inquietação e desagrado dos irmãos, por ter sido chamado para falar com o juiz-deputado nos estábulos, imediatamente após o ofício ter terminado. Hugh tinha o arreio rasgado e estragado estendido em cima de um banco, no pátio, e um criado estava a levar o cavalo a que chamavam Russet pelas pedras para poder ser visto claramente na luz suave da manhã.

- Quase nem preciso de perguntar - disse Hugh com simpatia, sorrindo pela maneira como o focinho da mancha branca se erguia e as narinas largas se dilatavam quando viram a figura aproximar-se, mesmo num trajo tão pouco familiar. -É verdade, ele reconhece-vos outra vez, devo portanto concluir que também o conheceis. -E como Meriet não disse nada, mas continuou à espera, perguntou: - É este o cavalo que Peter Clemence montava quando saiu de casa do vosso pai?

- Sim, meu senhor, o mesmo. -Humedeceu os lábios e manteve os olhos baixos, mas por um momento breve olhou o cavalo e não fez qualquer pergunta.

- Foi essa a única ocasião em que o vistes? Ele aproxima-se prontamente de vós. Acariciai-o se quiserdes, ele está a pedir que o reconheçais.

- Fui eu que naquela noite o meti no estábulo e tratei dele-disse Meriet, hesitante e em voz baixa. - E de manhã pus-lhe a sela. Foi a única vez que tratei dele. Eu... eu tenho bastante jeito para os cavalos.

- Bem vejo. Então, também mexestes nos arreios. - Tinham sido ricos e belos, a sela trabalhada com cabedais coloridos, o freio ornamentado com prata agora manchada e suja. -Reconheceis tudo isto?

Meriet disse:

- Sim. Isto pertencia-lhe. - E, por fim perguntou, quase a chorar: - Onde é que encontraram Barbary?

- Era esse o nome dele? Foi o dono que vos disse? A umas vinte milhas pouco mais ou menos ao Norte, nos pântanos de turfa de Whitchurch. Muito bem, meu jovem senhor, é tudo o que preciso de vós. Podeis voltar para as vossas obrigações, agora.

À volta das tinas de água do lavatorium, enquanto efectuavam as suas abluções, os colegas de Meriet tiravam o maior partido da sua ausência. Os que o temiam como uma alma possessa, aqueles que se ressentiam do facto de ele se pôr à parte, aqueles que achavam que o seu silêncio não passava de desdém por eles, todos erguiam as vozes num clamor para expressar a sua queixa. O Prior Robert não estava lá, mas o seu escrivão e sombra, o Irmão Jerome, estava, e de orelhas aguçadas e cheias de vontade de ouvir.

- Irmão, vós próprio o ouvistes! Ele gritou outra vez de noite, acordou-nos a todos...

- Gritou por um espírito amigo. Ouvi o nome do demónio, ele chamou-lhe Barbary! E o demónio dele respondeu-lhe com um assobio... todos nós sabemos que são os demónios que assombram e assobiam!

- Trouxe para aqui para o meio de nós um espírito maligno e não temos a nossa vida em segurança. E à noite não temos descanso... Irmão, temos realmente medo!

Cadfael, passando um pente pelo espesso cabelo grisalho que lhe coroava a cúpula castanha, estava indeciso quanto a intervir, mas achou melhor não o fazer. Deixa-os despejar tudo o que armazenaram contra o rapaz e poder-se-ia ver melhor que não era nada. É certo que sofriam de um medo genuinamente supersticioso, tais alarmes nocturnos abalam verdadeiramente espíritos simples. Se fossem agora silenciados apenas se conseguiria que armazenassem o seu ressentimento para crescer em silêncio. Que deitassem tudo cá para fora e o ar ficaria mais leve. Por isso, manteve-se calado, mas continuou de orelhas alerta.

- Vai ser outra vez tratado no capítulo - prometeu o Irmão Jerome, que conseguia ser o principal canal para um pedido chegar aos ouvidos do prior. - De certeza que vão ser tomadas medidas para assegurar o descanso durante as noites. Se for necessário, o que perturba a paz será posto à parte.

- Mas, Irmão - choramingou o companheiro mais próximo de Meriet no dormitório -, se o põem à parte numa cela separada, sem ninguém a observá-lo, quem sabe o que ele poderá fazer? Terá aí mais liberdade e tenho medo que o demónio dele prospere e se aposse de outros. Podia fazer o tecto tombar em cima de nós ou incendiar as caves por baixo de nós...

- Isso é falta de confiança na providência divina - disse o Irmão Jerome e fez o sinal da cruz no peito enquanto falava. - O Irmão Meriet causou uma grande perturbação, concordo, mas dizer que ele está possuído pelo demónio...

- Mas Irmão, é verdade! Tem um talismã do demónio, esconde-o debaixo da cama. Eu sei! Vi-o esconder uma coisa pequena debaixo do cobertor, sem ser visto, quando entrei de repente na sua cela. Só queria perguntar-lhe um verso do salmo, pois bem sabeis como ele sabe, e ele tinha qualquer coisa na mão, escondeu-a depressa, ficou entre mim e a cama e não me deixou avançar mais. Deitou-me um olhar negro como um trovão, Irmão, fiquei cheio de medo! Mas desde então, tenho-o observado. É verdade, juro, tem um feitiço escondido ali, e à noite tira-o para cima, para a cama. De certeza que é o símbolo do seu espírito e vai trazer infortúnio sobre todos nós!

- Não posso acreditar... - começou o Irmão Jerome, mas calou-se, reconsiderando a sua própria credualidade. - Vós vistes isso? Na cama dele, dizeis? Uma coisa estranha escondida? Isso não está de acordo com a Regra. - Pois o que poderia estar numa cela além do catre e banco, uma pequena escrivaninha para ler e livros para estudar? Estas coisas e a privacidade e calma que apenas podem existir por virtude da consideração mútua, dado que meras divisórias simbólicas de madeira do tamanho de lambris separavam as celas umas das outras. - Um noviço que aqui entra tem de se separar de todas as posses terrenas - disse Jerome, endireitando os ombros magros e farejando uma infracção genuína da ordem aprovada das coisas. Aqui estava uma coisa que poderia usar! Não havia nada que gostasse mais do que ter uma ocasião para admoestação. -Vou falar com o Irmão Meriet acerca disto.

Meia dúzia de vozes encorajaram-no, instaram-no a uma acção mais imediata.

- Irmão, ide agora, enquanto ele não está e vede se não disse a verdade! Se lhe tirardes o feitiço, o demónio deixará de ter poder sobre ele.

- E teremos de novo sossego...

- Vinde comigo!-disse o Irmão Jerome heroicamente, decidindo-se. E antes de Cadfael poder fazer um gesto, Jerome saíra do lava-torium e dirigia-se para as escadas do dormitório, com um bando de noviços atrás de si.

Cadfael segui-os, curvado de desgosto resignado, mas não prevendo nenhuma grande urgência. O rapaz estava fora disto, em segurança, a falar com Hugh nos estábulos e era evidente que não iriam encontrar nada na cela que lhes pudesse dar qualquer prova contra ele, pois a malícia estimula muito a imaginação. O desapontamento poderia trazê-los de novo à realidade. Assim esperava! Mas, apesar de tudo, apressou-se para as escadas.

Mas outra pessoa ia ainda mais depressa. Passos leves batiam uma cadência ritmada nas tábuas de madeira atrás de Cadfael e um corpo impetuoso ultrapassou-o na entrada do grande dormitório e arrastou-o por alguns metros pelo corredor de ladrilhos entre as celas. Meriet passou por ele com passadas longas e indignadas, o hábito a esvoaçar.

- Eu ouvi-vos! Eu ouvi-vos! Deixem as minhas coisas em paz!

Onde estava agora a voz baixa, submissa, os olhos modestos postos no chão, as mãos cruzadas? Eis um jovem senhor furioso, ordenando peremptoriamente que não lhe mexam nas suas coisas e atingindo os ofensores com punhos cerrados e olhos faiscantes. Cadfael perdeu o equilíbrio por um instante, tentou agarrar uma manga esvoaçante, com o único resultado de ser arrastado por Meriet na sua corrida.

O grupo dos noviços assustados e inquiridores reunidos em volta da entrada da cela de Meriet, as cabeças metidas lá dentro com cautela e os traseiros saídos para fora, giraram alarmados ao ouvirem esta aparição irritada que se atirava a eles e fugiram com um cacarejar agitado como se fossem galinhas assustadas. Mesmo na entrada do seu diminuto domínio, Meriet encontrou-se frente a frente

J com o irmão Jerome, que saía.

Aparentemente, era uma confrontação muito desigual: um mero noviço de um ou dois meses, alguém que já causara problemas e que fora admoestado, enfrentando um homem com autoridade, a mão direita do prior, um clérigo e confessor, um dos dois encarregados dos noviços. A pausa deu oportunidade para Meriet parar por um momento e Cadfael inclinou-se para lhe murmurar ofegante ao ouvido: .- Parai, louco! Ele vai tirar-vos a pele! - Bem podia ter poupado o fôlego que bastante falta lhe fazia, pois Meriet nem o ouviu. O momento em que poderia ter ouvido a voz da razão já passara, pois o seu olhar tombou no pequeno objecto brilhante que Jerome lhe fazia oscilar na sua frente, pendurado dos dedos irados, como se fosse um objecto impuro. O rosto do rapaz ficou branco, não com a palidez do medo, mas com a brancura cega da fúria, cada linha numa expressão marcada com força, como cinzelada em gelo.

- Isso é meu - disse com autoridade calma e frieza e estendeu a mão. - Dai-mo!

O Irmão Jerome ergueu-se nas pontas dos pés e inchou como um peru por ele se lhe dirigir em tal tom. O nariz delgado tremeu-lhe com raiva afrontada.

- E dizei-lo abertamente? Sabeis, patife sem vergonha, que ao pedirdes para serdes admitido aqui vós repudiasteis a palavra "meu", e não podeis possuir nada seja do que for? Trazer para aqui qualquer objecto pessoal sem permissão do senhor abade é desobedecer à Regra. É um pecado! Mas trazer de propósito isto convosco... isto! É uma ofensa aos votos que dizeis querer fazer. E acariciar isto na cama é uma maneira de fornicar. Ousais? Ousais? Sereis chamado para prestar contas por isto!

Todos os olhos, excepto os de Meriet, estavam postos na causa inocente da ofensa. Meriet mantinha um olhar ardente sobre a face do adversário. E o feitiço secreto revelou-se como uma mera fita de tecido delicado bordada com flores azuis, vermelhas e douradas, o género de fita que uma rapariga usaria para prender o cabelo, e preso nela existia uma madeixa desse mesmo cabelo, dum tom de louro-avermelhado.

- Será que ao menos sabeis o significado dos votos que dizeis querer tomar? - disse Jerome irritado. - Celibato, pobreza, obediência, estabilidade. Haverá em vós algum sinal deles? Pensai bem agora, enquanto ainda podeis, renunciai a todo o pensamento sobre tais loucuras e impurezas que este objecto de vaidade implica, ou não podereis ser aqui aceite. Ao castigo por esta apostasia não podereis escapar, mas tendes tempo para vos corrigir, se há em vós alguma graça.

- Graça que chega, pelo menos - disse Meriet, sem se deixar abater e resplandecente -, para não andar a mexer na cama de outro homem e a roubar-lhe o que lhe pertence. Dai-me - disse com os dentes cerrados e muito baixo - o que é meu!

- Veremos, insolente, o que o senhor abade tem para dizer sobre o vosso comportamento. Não podereis manter na vossa posse um tal trofeu de vaidade. E quanto à vossa insubordinação, será fielmente relatada. E agora deixai-me passar! - ordenou Jerome, ainda perfeitamente confiante na sua ascendência e nos seus privilégios.

Se Meriet não compreendeu a intenção dele e supôs que era apenas uma questão de levar o assunto para o capítulo para o abade julgar, é algo de que Cadfael nunca poderá ter a certeza. O rapaz poderia ter tido o bom senso de aceitar aquilo, mesmo que significasse perder o seu pequeno tesouro no fim, pois, apesar de tudo, viera para aqui de sua livre vontade e a cada obstáculo continuava a insistir que queria com todo o coração que o deixassem ficar e tomar votos. Fosse qual fosse a razão, afastou-se, embora com um rosto sombrio e dúbio, e permitiu que Jerome viesse para o corredor.

Jerome voltou-se para as escadas, onde a candeia ainda ardia, e todos os seus seguidores o acompanharam com respeito. A candeia estava colocada numa tigela baixa numa argola presa à parede, e estava a derreter, já no seu fim. Jerome alcançou-a e, antes de Meriet ou Cadfael perceberem o que tencionava fazer, tinha atirado a fita diáfana para a chama. A madeixa de cabelo fez um ruído como um assobio e desapareceu num clarão de ouro, a fita desfez-se em dois pedaços queimados e extinguiu-se na tigela. E Meriet, sem emitir um som, lançou-se como um cão num salto, em direcção ao pescoço de Jerome. Demasiado tarde para o agarrar e tentar fazer com que parasse, Cadfael lançou-se atrás dele.

Sem dúvida Meriet tinha intenção de matar. Não era uma briga barulhenta, só ladrar e nada de morder, tinha as mãos bem à volta do pescoço esquelético, obrigando Jerome a cair para o chão de ladrilhos, e manteve as mãos apertadas e continuou no seu propósito apesar de meia dúzia de noviços espantados se lançarem a ele e o agarrarem, eles próprios sem qualquer resultado e a interporem-se no caminho de Cadfael. Jerome ficou arroxeado, sacudindo-se e contorcendo-se como um peixe fora de água e agitando as mãos contra os ladrilhos, desamparado. Cadfael abriu caminho até se poder baixar junto do ouvido de Meriet e dizer-lhe palavras inspiradas.

- Que vergonha, filho! Um velho!

Na verdade, Jerome tinha menos vinte anos que os sessenta de Cadfael, mas a necessidade justificava o suave exagero. A ascendência nobre de Meriet chamou-lhe silenciosamente a atenção. As mãos deixaram de apertar, Jerome começou a respirar ruidosamente e o tom purpúreo começou a esbater-se, a ficar vermelho como um tijolo e uma dúzia de mãos agarraram o ofensor, levantaram-no e seguraram-no, ainda furibundo e sem dizer uma palavra, até o Prior Robert, alto e terrível como se já usasse mitra, descer o corredor de ladrilhos, resplandecendo como um raio de ira de Deus.

Na tigela da vela, os dois pedaços da fita florida extinguiam-se, desfazendo-se num fumo mal cheiroso, e o fedor da madeixa queimada ainda pairava no ar.

Dois dos criados laicos, obedecendo às ordens do Prior Robert, trouxeram as algemas que raramente eram usadas, agrilhoaram os pulsos de Meriet e conduziram-no para uma cela de castigo, isolada de toda a parte de uso comum da casa. Ele acompanhou-os, ainda sem dizer uma palavra, com suficiente consciência da sua dignidade para opor qualquer resistência ou causar-lhes alguma ansiedade por sua causa.

Cadfael observou-o a ir-se embora com particular interesse, pois foi como se o visse pela primeira vez. O hábito já não o embaraçava, caminhava com um ar de desdém, com a cabeça direita e, se não era um sorriso de escárnio que lhe curvava os lábios e as narinas ainda excitadas, ficava muito perto. O capítulo iria pedir-lhe satisfações e muito rispidamente, mas ele não se importava. De certa maneira, tinha ficado satisfeito.

Quanto ao Irmão Jerome, levantaram-no, puseram-no na cama, trouxeram-lhe inalações calmantes, que Cadfael forneceu de boa vontade, ligaram-lhe o pescoço magoado com óleos reconfortantes e ouviram-lhe os sons fracos e roucos que em breve deixou de emitir, dado que lhe eram muito dolorosos. Não ficara muito mal, mas iria ficar rouco durante algum tempo e, talvez durante algum tempo, tivesse cuidado e fosse educado no trato com os filhos ainda não desligados da nobreza que viessem para tomar o hábito de frade. Por engano? Cadfael ficou a meditar sobre a estranha e inexplicável escolha de Meriet Aspley. Se alguma vez existiu um jovem mais talhado para uma casa senhorial e o campo da honra, para o cavalo e as armas, Meriet era o homem.

- Que vergonha, filho! Um velho! - E ele abrira as mãos, deixara o inimigo ir-se embora e marchara para a prisão, mas com todas as honras.

O resultado no capítulo era inevitável, sobre isso não havia nada a fazer. Atacar um padre e confessor poder-lhe-ia custar a excomunhão, mas isso foi posto de parte por clemência. Mas a sua ofensa extrema e o único castigo apropriado era o chicote. O castigo, a ser usado i apenas em último caso, existia no entanto para ser usado. Foi usado ! em Meriet. Cadfael não esperava menos. O criminoso, a quem foi permitido falar, contentou-se com afirmar simplesmente que não negava nada do que contra ele era dito. Convidado a apelar em sua defesa, recusou com dignidade invencível. E sofreu o látego sem um som.

Ao fim do dia, antes das Completas, Cadfael foi aos aposentos do abade pedir-lhe autorização para visitar o prisioneiro, que estava preso na cela solitária por uns dez dias de penitência.

- Uma vez que o Irmão Meriet não se defendeu - disse Cadfael -, e o Prior Robert que o trouxe perante vós só chegou ao local mais tarde, penso que seria bom que soubésseis tudo o que aconteceu, porque pode ter relação com o modo como este rapaz veio até nós. - E contou a triste história do objecto guardado por Meriet e escondido na sua cela e que à noite acariciava. - Pai, não reclamo saber. Mas o irmão mais velho do nosso mais problemático postulante está noivo e vai casar em breve, segundo percebi.

- Compreendo o que quereis dizer - disse Radulfus, apoiando as mãos unidas na escrivaninha -, e também eu pensei o mesmo. O pai dele é um benfeitor da nossa casa e o casamento vai ter aqui lugar em Dezembro. Eu perguntei a mim próprio se o desejo do filho mais novo de se afastar do mundo... Penso que esclareceria sobre ele. -E sorriu secamente por todos os jovens atormentados que acreditam que a frustração no amor é o fim do seu mundo e que nada mais lhes resta do que procurar outro. - Há uma semana ou mais que ando a pensar - disse ele - se não deveria enviar alguém com conhecimento para falar com o pai e examinar se não estaremos a fazer a este jovem um mau serviço, ao permitir-lhe tomar os votos que não assentam na sua natureza, por muito que ele os deseje agora.

- Pai - disse Cadfael com veemência -, penso que faríeis bem.

- O rapaz tem qualidades admiráveis, mesmo aqui – disse Radulfus meio arrependido -, mas infelizmente não são próprias para este local. Não durante uns trinta anos e depois da saciedade com o mundo, depois do casamento e de ter e criar filhos e da transmissão de um nome e de um orgulho de nascimento. Nós temos o nosso ambiente, mas eles... eles são necessários para continuar tanto o que eles sabem e o que nós lhe podemos ensinar. Vós compreendeis estas coisas, como poucos de nós que aqui ancoramos e escapamos da tempestade. Podereis ir a Aspley em meu nome?

- Com todo o gosto, Pai - disse Cadfael.

- Amanhã?

- Com prazer, se assim o desejais. Mas, agora, posso ir ver o que se poderá fazer para descansar o Irmão Meriet, tanto no espírito como no corpo e também o que ele nos poderá dizer?

- Fazei isso, com o meu consentimento - disse o abade.

Na sua pequena cela prisional de pedra, sem nada dentro além de uma cama dura, um banco, uma cruz pendurada na parede e o necessário vaso de pedra para as necessidades fisiológicas do prisioneiro, o Irmão Meriet parecia curiosamente mais aberto, tranquilo e contente do que alguma vez Cadfael o vira. Sozinho, sem ser observado e no escuro, pelo menos estava livre da necessidade de observar todas as suas palavras e movimentos e de afastar todos os que se aproximassem de mais. Quando a porta se abriu de repente e alguém entrou com uma pequena candeia na mão, é certo que se endireitou por um momento e levantou a cabeça pousada nos braços cruzados para observar, mas Cadfael tomou por um cumprimento e um encorajamento o facto de, ao reconhecê-lo, o jovem ter suspirado espontaneamente, se descontrair e voltar a colocar o rosto nos braços, embora de tal maneira que podia observar o recém-chegado. Estava deitado no catre de barriga para baixo, sem camisa, o hábito afastado até à cintura para deixar os vergões das chicotadas ao ar. Estava calmo num desafio, porque o sangue ainda estava agitado. Se tivesse confessado tudo aquilo de que era acusado, em perfeita honestidade, não se arrependia nada.

- O que é que eles querem agora de mim? - perguntou sem rodeios, mas sem apreensão digna de nota.

- Nada. Deixai-vos estar deitado sem vos mexerdes e deixai-me pôr esta candeia num lugar seguro. Ali, ouvis? Estamos aqui fechados juntos. Vou ter de bater na porta antes de vos verdes livre de mim.

- Cadfael pôs a luz na argola por debaixo da cruz, onde iluminaria a cama. - Trouxe-vos o que vos ajudará a ter um sono descansado esta noite, por dentro e por fora. Escolheis confiar nos meus remédios? Há um remédio que aliviará as dores e vos porá a dormir, se quiserdes.

- Não quero - disse Meriet e ficou alerta com o queixo apoiado nos braços cruzados. Tinha o corpo moreno, liso e forte, os vergões azulados nas costas não constituíam um desfiguramento demasiado grande. Um criado laico segurava-lhe a mão. Talvez ele próprio não sentisse grande amor por o Irmão Jerome. - Quero ficar acordado.

Isto aqui é calmo.

- Então, ao menos ficai sossegado e deixai-me untar a vossa pele.

Eu avisei-vos que ele ia tirá-la! - Cadfael sentou-se na beira do catre estreito, abriu o boião e começou a untar os ombros delgados que se encolhiam e torciam quando lhes tocava. - Louco - disse ele numa repreensão -, podíeis ter evitado isto.

- Ah, isso! - disse Meriet com indiferença e, no entanto, ficou

passivo sob os dedos que acalmavam a dor. - Já estive pior - disse ele, calmo e descontraído sobre os braços estendidos. - O meu pai, se estivesse irritado, podia ensinar-lhes alguma coisa aqui.

- Não conseguiu ensinar-vos a ser sensato. Embora eu não diga - admitiu Cadfael com generosidade - que eu por vezes não tenha tido vontade de estrangular o Irmão Jerome. Mas, por outro lado, o

homem estava apenas a cumprir o seu dever, embora de um modo desastrado. É confessor dos noviços, de quem ouço, poderei acreditar, que vós sois um. E se é essa a vossa aspiração, tereis de renunciar a todos os problemas com mulheres, meu amigo, e a tudo o que se relacione com propriedade pessoal. Fazei-lhe justiça, ele tinha razão para se queixar de vós.

- Não tinha razão para me roubar - disse Meriet acaloradamente.

- Ele estava no seu direito ao confiscar o que aqui é proibido.

- Mesmo assim acho que é roubar. E não tinha o direito de o destruir na minha frente, nem de falar como se as mulheres fossem impuras!

- Bem, se vós pagastes pelas vossas ofensas, também ele pagou pelas dele - disse Cadfael com tolerância. - Tem a garganta ferida que o vai manter calado por mais uma semana e, para um homem que gosta do som dos seus próprios sermões, isso não é uma vingança pequena. Mas quanto a vós, rapaz, tendes um longo caminho a percorrer antes de vos tornardes monge e, se é vossa intenção fazê-lo, seria melhor passar a vossa penitência aqui a pensar muito a sério.

- Outro sermão? - disse Meriet para os seus braços cruzados e, pela primeira vez, houve quase um sorriso na sua voz, embora fosse um sorriso magoado.

- Uma palavra ao sensato.

Isso fez com que parasse e sustesse a respiração, ficando completamente parado durante um momento, antes de voltar a cabeça para olhar para a cara de Cadfael com um olhar ansioso. O cabelo castanho-escuro enrolava-se e encaracolava de um modo agradável no pescoço bronzeado pelo Verão, e o pescoço tinha a forma elegante e suave da infância. Vulnerável ainda a todo o tipo de feridas, em seu próprio nome, talvez, mas de certeza em nome de outros que amava demasiado. A rapariga do cabelo louro-avermelhado?

- Eles não disseram nada? - perguntou Meriet, tenso com o desânimo. -Eles não têm a intenção de me expulsar? Ele não faria isso, o abade? Ter-mo-ia dito abertamente! - Voltou-se com um movimento violento, flexível, puxando as pernas para cima e erguendo-se sobre uma anca, para agarrar Cadfael pelo pulso e olhar-lhe nos olhos. - O que sabeis? O que pensa ele fazer de mim? Não posso, não desistirei agora.

- Vós pusestes a vossa própria vocação em dúvida - disse Cadfael com dureza -, mais ninguém interferiu. Se tivesse sido comigo, ter-vos-ia metido o vosso belo trofeu na mão e ter-vos-ia dito para sair daqui e ir à procura dela ou de outra parecida, igualmente jovem e loura e deixar de nos atormentar, a nós que nada mais pedimos do que uma vida calma. Mas se ainda quereis atirar fora a vossa inclinação natural, tendes essa oportunidade: ou dobrais o vosso pescoço rígido ou o levantais e ide-vos embora!

Havia mais do que isto e ele sabia-o.

O rapaz sentou-se muito direito, sem se importar com a sua meia nudez numa cela de pedra e gelada e segurou-o com força pelo pulso, olhando muito sério para os seus olhos, penetrando-lhe no pensamento e sem medo dele.

- Vou dobrá-lo - disse ele. -Vós duvidais que eu possa, mas eu sou capaz, e fá-lo-ei. Irmão Cadfael, se podeis falar com o abade, ajudai-me, dizei-lhe que não mudei, dizei-lhe que quero ser recebido. Dizei-lhe que esperarei, se tiver de esperar, e estudarei e serei paciente, mas que merecerei! No fim, não poderá queixar-se de mim. Dizei-lhe isto! Ele não me recusará.

- E a rapariga do cabelo louro? - disse Cadfael com uma brutalidade propositada.

Meriet afastou-se com violência e voltou a deitar-se sobre o peito. -Ela é comprometida - disse com não menor dureza, e não diria nem mais uma palavra sobre ela.

- Há outras - disse Cadfael. - Pensai agora ou nunca. Deixai-me dizer-vos, criança, como uma pessoa suficientemente velha para poder ter um filho mais velho que vós e com alguns arrependimentos na vida, se tivesse tempo para se pôr a pensar neles: muito jovem já teve o desejo mais que querido ao seu coração, para depois amaldiçoar o dia em que o desejou. Pela graça e sensatez do nosso abade, tereis tempo para ter a certeza antes de estardes ligado sem vos poderdes libertar. Fazei bom uso do vosso tempo, pois não voltará para trás depois de estardes comprometido.

De certo modo, era uma pena assustar assim um jovem, quando ele já estava dilacerado de muitas maneiras, mas tinha agora diante de si dez dias e dez noites de solidão, uma dieta pobre e tempo, tanto para pensar como para rezar. Estar sozinho não o oprimiria, só a pressão de muitas pessoas não apropriadas o tinham feito. Aqui, dormiria sem sonhos, sem começar a gritar durante a noite. Ou, se o fizesse, não haveria ninguém para o ouvir e dar-lhe mais problemas.

- Virei dar-vos os bons-dias de manhã - disse Cadfael e tirou a candeia. - Não, esperai! Voltou a colocá-la no mesmo lugar. - Se vos deitardes assim, tereis frio durante a noite. Vesti a camisa, o linho não vos incomodará muito e podereis usar o cobertor sobre ela.

- Estou bem - disse Meriet, submetendo-se quase com vergonha e deixando-se cair com um suspiro, outra vez, nos braços cruzados. - Eu... eu agradeço-vos... irmão! - terminou como um acrescento desajeitado, como se a forma de se dirigir ao outro não fizesse justiça ao que lhe ia no pensamento, embora soubesse que era a forma aprovada aqui.

- Dissestes isso com dúvidas - notou Cadfael -, como se estivésseis a tocar num dente doente. Há outras relações. Ainda tendes a certeza que é um irmão que quereis ser?

- Tenho de ser - deixou escapar Meriet sem pensar e voltou a cara devagar para o outro lado.

Cadfael perguntou a si próprio por que razão, ao bater na porta da cela para o porteiro a abrir e o deixar passar, por que razão disse ele só no final a única coisa com significado, quando já estava calmo e seria pena atormentá-lo outra vez? Não: Quero! ou: Serei! mas: Tenho de ser! Ter de implica uma resolução tomada à força ou pela vontade de outrem ou por uma necessidade opressiva. Ora, quem quereria este miúdo no convento ou que força de que circunstância o tinha feito escolher este caminho como o melhor, o único que lhe restava?

Quando, nessa noite, Cadfael saiu das Completas, encontrou Hugh à sua espera na portaria.

- Vinde comigo até à ponte. Vou a caminho de casa, mas o porteiro aqui disse-me que amanhã saís numa missão para o senhor abade, por isso ireis estar fora do meu alcance todo o dia. Ouvistes falar do cavalo?

- Que o encontrásteis, sim, mas nada mais. Hoje estivemos muito ocupados com os nossos próprios criminosos e crimes para ter tempo ou pensar em nada lá de fora - disse Cadfael, lamentando-se. - Sem dúvida que vos contaram o que aconteceu. - O Irmão Albin, o porteiro, era o maior mexeriqueiro do enclave. - Os nossos problemas vão lado a lado, parece, mas nunca se encontram. Isso já é estranho só por si. E, agora, encontrais o cavalo a umas milhas ao norte, segundo ouvi dizer.

Passaram juntos pelo portão e voltaram à esquerda em direcção à cidade, sob um céu frio e enevoado, de nuvens que se moviam rápido, embora cá em baixo apenas houvesse uma brisa suave, que mal conseguia fazer mexer os cheiros húmidos, doces e decadentes do Outono. A escuridão de árvores no lado direito da estrada, o brilho metálico do lago do moinho à esquerda e o som e aroma do rio em frente, entre eles e a cidade.

- Nem duas milhas antes de Whitchurch - disse Hugh -, onde ele tinha pensado passar a noite e fazer um fácil percurso a cavalo para Chester, no dia seguinte. - Contou tudo. Os pensamentos de Cadfael eram sempre uma visão esclarecida de outro ângulo, que era bem-vinda. Mas, neste caso, os seus espíritos caminhavam lado a lado.

- Uma floresta bem perto do lugar - disse Cadfael sombriamente -, e os pântanos bem ali à mão. Se foi ali que foi feito, seja lá o que foi feito, e o cavalo por ser novo e corajoso fugiu e não conseguiram apanhá-lo, o homem pode estar a milhas de profundidade. Onde não poderá ser encontrado. Nem sequer uma sepultura para cavar.

- É o que eu próprio tenho estado a pensar - concordou Hugh num tom sombrio. - Mas se tenho tais salteadores a viverem à solta no meu condado, como é possível que nunca tivesse ouvido uma palavra sobre eles até agora?

- Uma aventura ao sul de Cheshire? Bem sabeis como eles podem vir e ir depressa. E mesmo no que respeita à vossa júri disção, o tempo produz modificações. Mas, se estes homens eram independentes, não eram muito hábeis com cavalos. Qualquer fora-da-lei digno de nome teria preferido arrancar um braço a perder um animal como aquele. Fui dar uma vista de olhos ao estábulo - disse Cadfael -, quando tive tempo. E a prata nos arreios... só um milagre os poderiam tirar das suas mãos, uma vez que lhe pusessem a vista em cima. O que o homem tivesse com ele dificilmente teria mais valor do que o cavalo e os arreios.

- Se andam a pilhar os viajantes aqui - disse Hugh -, devem saber onde podem atirar um homem com pesos para os pântanos de turfa, onde é que são mais fundos. Tenho lá homens a procurar, se assim foi ou não. Mas há entre eles alguns da região que conseguem saber se deitaram alguma pessoa para o pântano há pouco tempo... sois capaz de acreditar?

"Mas duvido, duvido mesmo, que alguma vez se veja nem que seja um osso de Peter Clemence.

Tinham chegado ao fim da ponte. Na semi-escuridão, o rio Severn deslizava a uma velocidade nocturna, perto deles e em silêncio, como uma grande serpente cujas escamas apanhavam de vez em quando um raio de luz das estrelas e brilhavam como prata. Pararam para se despedirem.

- E vós ides a Aspley - disse Hugh. - Onde o homem esteve em segurança no meio dos familiares, um dia apenas antes da sua morte. Se é que realmente está morto! Esqueço-me que estamos apenas a conjecturar. E se ele tivesse boas razões para desaparecer ali e ser dado como morto?

"Hoje em dia, os homens mudam de aliados como quem muda de camisa, e para cada homem que se queira vender há sempre compradores. Bem, em Aspley servi-vos bem dos olhos e da cabeça para o vosso rapaz, já percebo muito bem quando estais a proteger alguém, mas trazei-me o que puderdes saber acerca de Peter Clemence, também, e o que é que ele estava a pensar quando os deixou e seguiu para Norte. Um inocente pode estar a guardar a palavra de que precisamos, sem saber.

- Assim farei - disse Cadfael e voltou para trás, no crepúsculo, em direcção à portaria e à sua cama.

 

Portador da autoridade do abade e tendo mais de quatro milhas para percorrer, o Irmão Cadfael foi aos estábulos buscar uma mula, em vez de calcorrear a pé o caminho para Aspley. Houvera tempos em que ele teria desdenhado ir a cavalo, mas tinha mais de sessenta anos e tencionava, desta vez, ter algum conforto. Além disso, tinha agora poucas oportunidades de montar, outrora o seu principal prazer, e não se podia dar ao luxo de desprezar esta que se apresentava no seu caminho.

Partiu depois da Hora Prima, depois de comer e beber à pressa. A manhã estava enevoada e suave, cheia da melancolia pesada, perfumada e húmida da estação, com um sol muito encoberto a aparecer, grande e brando, através da neblina. E o caminho era agradável, durante a primeira parte da estrada.

A Floresta Grande, a Sul e Sudoeste de Shrewsbury, tinha sobrevivido à pilhagem durante mais tempo que as suas congéneres, com clareiras escassas e distanciadas, os coutos de caça espessos e bravios, com as charnecas de urze a constituírem abrigo para toda a espécie de criaturas da terra e do ar. O juiz Prestcote mantinha-se atento às modificações, mas não interferia com o que poderia reforçar a ordem em vez de a desafiar e as casas senhoriais das orlas tinham licença de alargar e melhorar os seus campos, desde que mantivessem a paz com firmeza. Havia propriedades muito antigas junto à orla que outrora tinham sido clareiras, metidas bem dentro da floresta, e agora tinham-se estendido e ganho boas terras aráveis de antigas encostas e estavam limitadas com vedações. As três velhas casas senhoriais vizinhas de Linde, Aspley e Foriet guardavam esta parte oriental, meio coberta de floresta, meio livre. Um homem que fosse deste local, a cavalo para Chester, não precisava de atravessar Shrewsbury, mas podia passar-lhe ao pé e deixá-la para Oeste. Foi o que Peter Clemence fizera, tendo ido visitar os familiares quando teve oportunidade, em vez de avançar para o porto seguro de Shrews-bury. Teria o seu destino sido diferente, se tivesse dormido dentro da área de S. Pedro e S. Paulo? O seu caminho para Chester podia até não passar por Whitchurch, se fosse para Oeste, longe dos pântanos. Tarde de mais para pensar nisto!

Cadfael teve consciência de ter entrado nas terras de casa de Linde, quando chegou a terrenos desbravados e a vestígios de cereais há muito colhidos e de restolhos pastados por carneiros. Nessa altura, o céu já estava parcialmente descoberto e um sol suave e leitoso aquecia o ar, dissipando o nevoeiro, e o jovem que vinha a andar com um cão de caça a seguir-lhe os passos e um falcão meio treinado empoleirado no pulso tinha as botas escurecidas pelo orvalho e gotas espalhadas pelo cabelo castanho-claro, deixadas pelas folhas de matos que atravessara. Um jovem senhor de andar leve e coração despreocupado, que assobiava com alegria enquanto acariciava o pássaro agitado. Devia ter uns vinte e um ou vinte e dois anos. Quando viu Cadfael, desceu para o caminho cá em baixo e, como não tinha chapéu para tirar, fez-lhe uma inclinação de cabeça muito graciosa e cumprimentou-o com um jovial:

- Bom dia, Irmão! Ides a nossa casa?

- Se por acaso o vosso nome é Nigel Aspley - disse Cadfael, parando para retribuir a saudação -, então é certo que vou. - Mas este não poderia ser o filho que tinha mais cinco ou seis anos que Me-riet, era demasiado jovem, de um tom de pele e constituição muito diferentes, alto e elegante e de olhos azuis, com rosto redondo e um sorriso pronto. Se houvesse no cabelo louro um tom mais avermelhado, que tinha o indefinível amarelo-esverdeado das folhas de carvalho acabadas de brotar na Primavera, ou quase a cair no Outono, poderia ter sido a origem da madeixa que Meriet acariciava na cama.

- Então não temos sorte - disse o jovem com graciosidade e fez uma careta de desapontamento. - No entanto, sereis bem-vindo para fazer uma pausa em nossa casa, para descansar e tomar uma bebida, se tiverdes tempo para isso. Porque eu sou um Linde, não um Aspley, e o meu nome é Janyn.

Cadfael recordou-se do que Hugh lhe contara das respostas de Meriet ao Cónego Eluard. O irmão mais velho estava noivo da filha da casa senhorial vizinha, que só podia ser a casa de Linde, dado que mencionara também, sem muito interesse, a irmã adoptiva que era uma Foriet e herdeira da casa que pegava com Aspley a sul. Então esta jovem criatura jovial e cortês devia ser irmão da prometida noiva de Nigel.

- Isso é muito amável da vossa parte - disse Cadfael -, e agradeço-vos a boa vontade, mas é melhor eu ir tratar da minha incumbência. Porque penso que só me falta andar mais uma milha.

- Nem isso, se fordes pelo caminho da esquerda ali em baixo no cruzamento. Atravessai o mato e chegareis aos campos deles e o caminho leva-vos mesmo até ao portão. Se não estais com pressa, posso ir convosco e mostro-vos o caminho.

Cadfael aceitou com muito agrado. Mesmo que pouco ficasse a saber desta companhia acerca do conjunto de casas senhoriais, todas com tantos filhos e filhas mais ou menos da mesma idade e, conse-quentemente, educados praticamente como se fossem uma família, a companhia era agradável por si própria. E poderiam cair uns grão-zinhos de conhecimento como sementes que poderiam medrar. Deixou a mula afrouxar o passo e Janyn Linde foi a seu lado com passos longos e desembaraçados.

- Sois de Shrewsbury, irmão? - Tinha evidentemente a sua quota parte de curiosidade humana. - E alguma coisa relacionada com Meriet? Posso dizer-vos que ficámos todos abalados quando ele tomou a decisão de entrar no convento e, no entanto, se pensar bem, ele fez sempre as coisas à sua maneira e levava-as até ao fim. Como é que estava quando o deixastes? Bem, espero.

- Razoavelmente bem - disse Cadfael cuidadosamente. - Deveis conhecê-lo bastante melhor do que nós, sendo vizinhos e da mesma idade.

- Oh, fomos todos criados juntos desde pequeninos, Nigel, Meriet, a minha irmã e eu, especialmente depois de as nossas mães morrerem ambas, e Isouda também, quando ficou órfã, embora ela seja mais nova. Meriet foi o primeiro que perdemos do grupo, temos saudades dele.

- Ouvi dizer que haverá um casamento em breve que modificará as coisas ainda mais - disse Cadfael, no intuito de obter qualquer informação.

- Roswitha e Nigel? - Janyn encolheu os ombros levemente. - É um casamento planeado pelos nossos pais há muito tempo, mas se não o tivessem combinado eles casariam na mesma, porque era uma decisão de ambos desde crianças. Se vai para Aspley, vai encontrar a minha irmã por lá. Está lá mais tempo do que aqui, agora. Eles gostam muito um do outro! - Mostrava uma tolerância bem disposta, como os irmãos ainda não enamorados têm frequentemente para as excentricidades dos apaixonados. Gostam muito um do outro! Então se a madeixa de cabelo louro-avermelhado era da cabeça de Roswitha, certamente não tinha sido dada? A um irmão mais novo do noivo? Era mais certo ter sido cortada à socapa e a fita roubada. Ou então era, afinal, de outra rapariga muito diferente.

- O espírito de Meriet foi noutra direcção - disse Cadfael, no seguimento do seu objectivo. - Como é que o pai reagiu, quando ele escolheu o Convento? Acho que se fosse pai, e apenas tivesse dois filhos, não teria qualquer prazer em ficar sem um deles.

Janyn riu-se alegremente.

- O pai de Meriet tinha muito pouco prazer no que Meriet fazia, e Meriet pouco se esforçava para lhe agradar. Travaram uma longa batalha. E, no entanto, era capaz de jurar que se amavam tanto um ao outro como a maioria dos pais e filhos se amam. De vez em quando, ficavam assim, água e azeite, e não há nada a fazer.

Tinham chegado ao ponto em que os campos davam lugar a mato e um caminho largo virava num ângulo pequeno para atravessar as árvores.

- Aquele é o melhor caminho - disse Janyn -, a direito até à sebe da propriedade deles. E, se tiverdes tempo de parar em nossa casa no regresso, irmão, o meu pai terá muito prazer em receber-vos.

Cadfael agradeceu-lhe gravemente e voltou-se para o caminho verde. Na curva, voltou-se para trás. Janyn caminhava com vigor em direcção à sua colina e campos abertos, onde podia pôr o falcão a voar sem embaraçar o cordão, o que só o confundia e irritava. Estava de novo a assobiar, muito melodiosamente, e o seu cabelo louro tinha o brilho e a cor rara da folhagem nova do carvalho. Um contemporâneo de Meriet, mas de uma natureza tão diferente! Este não teria dificuldade em agradar ao mais difícil dos pais e certamente nunca daria ao seu o desgosto de escolher afastar-se de um mundo que, obviamente, lhe agradava muito.

A mata era aberta e arejada, as árvores já tinham deixado cair metade das folhas e ainda deixavam entrar a luz numa corrente ainda verde e fresca. Havia grupos de fungos cor de laranja a sair dos troncos de árvores e cogumelos frágeis e azulados na erva. O caminho trouxe Cadfael para o exterior, tal como Janyn prometera, para os vastos campos cultivados da propriedade de Aspley, retirados à floresta há muito tempo e, desde então, alargados com regularidade tanto para Oeste, para a floresta, como para Este, em direcção a ter­ritório mais rico e desbravado. Os carneiros andavam, também aqui, nos restolhos, em grande número, para aproveitarem o que pudessem da colheita e deixarem os excrementos para estrumar o terreno, para a próxima sementeira. E, ao fim de um caminho feito entre os terre­nos de cultivo, aparecia a casa, dentro de um muro que a rodeava, mas suficientemente alta para ser vista por sobre a sua cimeira: uma casa grande, construída em pedra, um andar com janelas sobre uma parte abobadada e provavelmente alguns aposentos no telhado sobre o solar. Bem construída e bem mantida, digna de ser herdada, tal co­mo a terra que a rodeava. Portas baixas e largas, feitas para carro­ças e carros, abriam para a parte abobadada e uma escada íngreme conduzia à porta principal. Havia estábulos e currais à volta dos mu­ros nos dois lados. Tinham grande número de gado.

À volta dos currais, havia dois ou três homens ocupados quando Cadfael chegou, montado, ao portão e um criado saiu do estábulo para lhe segurar prontamente nas rédeas, com o respeito devido ao hábito de Beneditino. E, pela porta principal, saiu um personagem de idade, de constituição forte e com barba, que deveria ser, segundo a suposição certa de Cadfael, o administrador Fremund, que anunciara Meriet na abadia. Uma casa bem dirigida. Peter Clemence deve ter sido recebido com cerimónia na entrada, quando chegou sem ser es­perado. Não devia ser fácil apanhar estes criados de surpresa.

Cadfael perguntou pelo Lorde Leoric e foi-lhe dito que ele se en­contrava fora, nos campos, a supervisionar o desenterrar de uma ár­vore, que tinha tombado para um ribeiro de uma margem que desmo­ronara e que estava a prejudicar a corrente, mas que o iriam chamar imediatamente, se o Irmão Cadfael não se importasse de esperar só um quarto de hora no solar, enquanto bebia uma taça de vinho ou de cerveja só para passar o tempo. Um convite que Cadfael aceitou com gosto depois da viagem. Já lhe tinham levado a mula, sem dúvida para ser tratada com a mesma hospitalidade atenciosa de que estava a ser alvo. Aspley mantinha os padrões grandiosos dos seus ante­passados. Aqui, um hóspede era uma obrigação sagrada.

Quando entrou, Leoric Aspley encheu a estreita entrada da porta, com a ponta da espessa cabeleira grisalha a varrer a verga da porta. Antes de ter envelhecido, o cabelo devia ter sido castanho-claro.

Meriet não era parecido com ele, nem no tom de pele, nem no corpo, mas havia nos seus rostos uma grande semelhança. Seria por serem tão parecidos que lutavam e não se conseguiam entender, tal como Janyn dissera? Aspley deu as boas-vindas ao visitante com uma imaculada cortesia e prontamente fechou a porta para ficarem sós.

- Fui enviado - disse Cadfael, quando estavam sentados frente a frente no vão duma grande janela, as taças pousadas na pedra a seu lado - pelo Abade Radulfus, para vos consultar em relação ao vosso filho Meriet.

- O que há com o meu filho Meriet? Agora, por sua própria vontade, ele tem uma relação mais íntima convosco, irmão, do que comigo, e tem um novo pai na figura do senhor abade. Onde está a necessidade de me consultar?

A voz era controlada e calma, fazendo as palavras geladas parecerem mais suaves do que implacáveis, mas Cadfael percebeu que ali não iria encontrar ajuda. Mas valia a pena tentar.

- Foste contudo vós que o gerastes. Se não desejais que vos recordem disso - disse Cadfael, à procura de uma fresta na sua armadura impenetrável -, recomendo-vos que nunca olheis para um espelho. Os pais que oferecem os filhos bebés como dávidas não desistem de os amar. Nem vós, estou convencido.

- Estais a dizer-me que ele já se arrependeu da escolha que fez? - perguntou Aspley, com uma expressão de desdém nos lábios. - Está a tentar fugir da Ordem tão depressa? Fostes enviado para me anunciar o seu regresso a casa com o rabo entre as pernas?

- Longe disso! Insiste com todo o fôlego no seu único desejo, o de ser admitido. Faz tudo o que pode ajudar a apressar a sua entrada, com um fervor quase demasiado. Cada hora em que está acordado é dedicada a atingir o mesmo objectivo. Mas, durante o sono, não se passa o mesmo. Nessa altura, parece-me, o seu espirito retrai-se de horror. O que deseja, ao acordar, fá-lo gritar de noite na cama. É justo que tomeis conhecimento disto.

Aspley estava sentado a franzir o sobrolho em silêncio e, de certeza, pela sua imobilidade, estava preocupado. Cadfael continuou e contou-lhe as perturbações no dormitório, mas, por qualquer razão que ele próprio não compreendia totalmente, não falou no ataque ao Irmão Jerome, como acontecera e qual o castigo que se seguira. Se entre eles os dois havia uma fogueira de desentendimento, para quê lançar mais achas?

- Quando acorda - disse Cadfael - não sabe o que fez durante o sono. Não tem culpa disso. Mas há grandes dúvidas no que respeita à sua vocação. O Pai abade pede-vos para pensardes seriamente se estaremos ou não a fazer muito mal a Meriet ao permitirmos-lhe que continue, por muito que ele agora deseje.

- Que ele se queira ver livre dele - disse Aspley, recuperando a calma implacável -, posso muito bem compreender. Foi sempre um jovem teimoso e difícil.

- Nem o Abade Radulfus nem eu o achamos assim - disse Cadfael, ferido.

- Nesse caso, sejam quais forem as dificuldades que existirem, está melhor convosco do que comigo, porque desde criança que acho que ele é assim. E, não poderia eu argumentar que lhe estávamos a causar um grande prejuízo se o afastarmos de um bom objectivo quando ele está tão inclinado? Ele fez a sua escolha, só ele a pode mudar. É melhor para ele sofrer essa agonia no início do que desistir do seu intento.

O que não era uma reacção surpreendente num tal homem, duro e firme nas suas resoluções, de certeza fiel à sua palavra e obrigado a seguir as suas acções até ao fim, tanto por obstinação como por honra. Contudo, Cadfael continuou a tentar encontrar as juntas na sua armadura, pois devia ser um ressentimento estranhamente amargo que era capaz de negar a um rapaz que sofria um simples gesto de afecto.

- Não o vou pressionar nem num sentido nem no outro - disse Aspley por fim -, nem confundir o seu espírito, visitando-o ou permitindo a alguém da família que o visite. Mantei-o convosco e deixai-o esperar por esclarecimento e penso que ele continua a desejar ficar convosco. Pegou no arado, deve rasgar o sulco até ao fim. Não o receberei se ele voltar as costas.

Levantou-se, para indicar que a entrevista terminara, e tendo sido claro ao mostrar que nada mais havia a esperar dele, ocupou-se do visitante com gentileza, ofereceu-lhe a refeição do meio-dia, que foi cortesmente recusada, e acompanhou a visita até ao pátio.

- Um belo dia para a vossa viagem - disse ele -, embora preferisse que comêsseis connosco.

- Teria muito prazer e agradeço-vos - disse Cadfael -, mas tenho de voltar e levar a vossa resposta ao meu abade. É uma viagem fácil.

Um criado trouxe a mula. Cadfael montou, despediu-se urbanamente e saiu pelo portão do muro baixo de pedra.

Não tinha andado mais de duzentas passadas, o suficiente para estar fora do alcance da vista daqueles que deixara dentro da área murada, quando teve consciência de duas figuras que se passeavam sem pressas em direcção ao portão que deixara. Caminhavam de mão dada, e não se tinham apercebido de um cavaleiro que se aproximava pelo caminho entre os campos, porque apenas tinham olhos um para o outro. Falavam com frases entrecortadas, como um sonho comum em que as expressões precisas não fossem necessárias, e as suas vozes, uma masculina com úm tom doce e uma feminina como prata, soavam mesmo à distância como gargalhadas breves. Ou campainhas de arreios, mas eles vinham a pé. Dois cães tolerantes, bem treinados, seguiam-nos de perto, farejando os aromas esvoaçantes de ambos os lados, mas mantendo o seu rumo sem desvios.

Estes deviam então ser os namorados, de regresso para a refeição. Até os enamorados precisam de comer. Cadfael olhou-os com interesse, enquanto ia devagar em direcção a eles. Valia a pena observá-los. A medida que se aproximavam, mas a uma distância suficiente para não terem dado por ele, tornavam-se mais interessantes. Eram ambos altos. O jovem tinha a figura nobre do pai, mas flexível e ágil de juventude, e o cabelo castanho-claro e tom de pele rosado dos saxões. Um filho que faria a alegria de qualquer pai. Saudável desde o nascimento, de certeza, crescendo e desenvolvendo-se como uma planta robusta, prometendo uma colheita fértil. Um segundo filho moreno e entroncado, nascido vários anos depois do primeiro, era bem possível que não conseguisse despertar uma tal fonte de orgulho e satisfação. Um paladino é suficiente, além de ser difícil de igualar. E se se desenvolve e chega à idade adulta sem qualquer problema ou dificuldade, para que é necessário um segundo?

E a rapariga era semelhante a ele. Dava-lhe pelo ombro e era elegante e direita como ele, era a imagem do irmão, mas tudo o que nele era agradável e atraente era nela beleza refinada. Tinha o mesmo rosto oval, docemente arredondado, mas aperfeiçoado quase em translucidez, e os mesmos olhos azuis, embora num tom mais escuro, e orlados de pestanas arruivadas. E ali estava, sem dúvida, o cabelo louro-avermelhado, espesso e com caracóis a escaparem-se de ambos os lados das têmporas.

Assim, percebia-se então o mistério de Meriet? Desesperado para fugir ao seu amor frustrado e a refugiar-se num mundo sem mulheres, talvez também ansioso de afastar da felicidade do irmão a mais leve sombra de tristeza ou acusação... isso desculpava-o? Mas levara para o convento o símbolo do seu tormento... seria isso sensato?

O som leve dos cascos da mula na erva seca do caminho e nas pequenas pedras chegou aos ouvidos da rapariga. Ergueu o olhar e viu o cavaleiro aproximar-se e disse uma palavra em voz baixa na orelha do companheiro. O jovem parou por um momento o passo e olhou de cabeça erguida para ver um frade beneditino a vir a cavalo das portas de Aspley. Foi rápido a relacionar e a pensar. O sorriso leve desapareceu-lhe imediatamente da cara, tirou a mão que estava presa na da rapariga e apressou o passo com intenção evidente de se aproximar do visitante que partira.

Ficaram frente a frente e pararam por comum acordo. De perto, o filho mais velho, mostrava ser ainda mais alto que o pai. Com uma mão grande, mas elegante, erguida para as rédeas da mula, olhou para Cadfael com os olhos castanhos claros redondos de preocupação, e cumprimentou-o brevemente cheio de pressa.

- Sois de Shrewsbury, irmão? Perdoai-me a ousadia da pergunta, mas estivestes na casa do meu pai? Há novidades? O meu irmão... ele não... - Parou nessa altura para fazer uma reverência tardia e justificar-se. - Perdoai-me a saudação tão indelicada, quando nem sequer me conheceis, mas sou Nigel Aspley, irmão de Meríet. Aconteceu-lhe alguma coisa? Ele não fez nenhum... disparate?

O que se podia dizer a isto? Cadfael não estava de modo algum certo se considerava ou não as acções conscientes de Meriet disparatadas ou não.

Mas, pelo menos, parecia haver uma pessoa que se importava com o que lhe acontecia e pela ansiedade e preocupação do rosto sofria um receio que, por enquanto, ainda não se justificava.

- Não há razão para alarme por causa dele - disse Cadfael consolando-o. - Está bastante bem e nada de mal lhe aconteceu, não tendes necessidade de receardes.

- E continua determinado? Não mudou de opinião?

- Não. Tem. igual intenção de tomar os votos.

- Mas vós estivestes com o meu pai! O que poderia haver para discutir com ele? Tendes a certeza que Meriet... Picou em silêncio, sem dúvida a estudar a cara de Cadfael. A rapariga tinha-se aproximado mais devagar e estava um pouco à parte, observando-os com uma compostura serena, numa atitude de tanta elegância natural que Cadfael não podia evitar olhá-la com prazer.

- Deixei o vosso irmão de ânimo forte - disse ele, com o cuidado de se expressar dentro da verdade -, e com a mesma decisão que tinha quando foi para o convento. O meu abade enviou-me apenas para falar com o vosso pai sobre certas dúvidas que se levantaram mais no espírito do senhor abade do que no do Irmão Meriet. Ele é ainda muito jovem para dar um passo destes à pressa e o seu zelo parece demasiado excessivo aos mais velhos. Vós estais mais próximo dele em idade do que o vosso pai ou os nossos membros - disse Cadfael com persuasão. - Podeis-nos dizer por que razão terá ele dado este passo? Por que razão, sólida e suficiente para ele, teria ele escolhido deixar o mundo tão cedo?

- Não sei - disse Nigel desajeitadamente e abanou a cabeça. - Por que é que eles o fazem? Nunca percebi. E por que haveria ele de perceber, com todas as razões que tinha para ficar neste e deste mundo? Ele disse que queria - disse Nigel.

- Ainda o diz. Insiste nisso em cada momento.

- Ficareis a seu lado? Ajudá-lo-eis a alcançar o seu intento? Se é o que ele verdadeiramente deseja!

- Estamos todos decididos - disse Cadfael com gravidade - a ajudá-lo no seu desejo. Nem todos os jovens seguem o mesmo destino, como deveis saber. - Tinha os olhos postos na rapariga. Ela tinha consciência disso e ele tinha consciência de que ela percebia. Outra madeixa de cabelo louro-avermelhado escapara da fita que o segurava: ficara sobre a face lisa, deixando uma sombra dum profundo dourado.

- Podereis levar-lhe as minhas lembranças mais carinhosas, irmão? Dizei-lhe que rezo por ele e que terá sempre o meu amor. - Nigel retirou a mão das rédeas e afastou-se para deixar passar o cavaleiro.

- E dai-lhe também o meu amor - disse a rapariga com uma voz de mel, pesada e doce. Ergueu os olhos azuis para o rosto de Cadfael. - Fomos companheiros de brincadeiras durante muitos anos, todos nós-disse ela certamente com verdade.-Posso falarem amor, pois em breve serei sua irmã.

- Roswitha e eu casaremos em Dezembro na abadia - disse Nigel, e de novo lhe deu a mão.

- É com muito gosto que levarei as vossas mensagens - disse Cadfael -, e desejo-lhes todas as bênçãos possíveis para esse dia.

A mula começou a andar com resignação, em resposta ao leve puxão da rédea. Cadfael passou por eles ainda com os olhos fixos na rapariga, cujo infinito olhar azul se abria para ele como um céu aberto. Tinha nos lábios o mais leve dos sorrisos, quando ele passou, e um pequeno clarão de contentamento brilhou-lhe nos olhos. Sabia que ele não podia deixar de a admirar, e mesmo a admiração de um velho monge lhe causava satisfação. De certeza que até os movimentos que fizera na sua presença, tão leves e tão conscientes, tinham sido feitos com o conhecimento de que ele os via, fios de uma teia para atrair mais uma mosca.

Teve o cuidado de não olhar para trás, porque sabia que ela esperava confiantemente que ele o fizesse.

Ainda dentro da orla da mata, no fim dos campos, havia um curral de ovelhas construído em pedra, perto do caminho, e alguém estava sentado na parede tosca, a balançar os tornozelos cruzados e pequenos pés descalços e carregando no colo um punhado de avelãs que partia com os dentes, atirando os pedaços de casca para a erva. Ao longe, Cadfael teve dúvidas se se tratava de um rapaz ou de uma rapariga, pois tinha o fato levantado até aos joelhos e o cabelo cortado a uma altura que não lhe tocava nos ombros, e o fato era do vulgar tecido castanho feito no campo. Mas, quando se aproximou, tornou-se claro que era de certeza uma rapariga e, ainda mais, no processo de se transformar numa mulher. Sob o corpete havia seios firmes e, apesar de delgada, tinha a largura de ancas que mais tarde iria tornar-lhe a gestação de filhos fácil e natural. "Dezasseis", pensou ele, "deve ser a idade dela." O mais curioso de tudo é que parecia que estava à espera dele, pois quando se aproximou ela voltou-se no sítio em que estava empoleirada e olhou-o com um sorriso lento e confiante de reconhecimento e boas-vindas e, quando ele já estava perto, atirou fora o resto das cascas, saltou da parede e, com um movimento rápido, baixou as saias como alguém que se aprontava para entrar em acção.

- Senhor, tenho de falar convosco - disse ela com firmeza, e pôs uma mão delgada e morena no pescoço da mula. - Não vos importais de desmontar e sentar-vos aqui comigo? - Tinha ainda um rosto de criança, mas a mulher começava a despontar, fazendo desaparecer as bochechas de bebé para dar lugar a maçãs-do-rosto bem delineadas. Era quase tão morena como as cascas de avelã, com um quente tom rosado a aparecer debaixo da pele bronzeada e macia, boca vermelha e com a curva de pétalas de rosa meio aberta. O tufo de cabelos curtos e encaracolados tinha um tom rico de castanho-arrui-vado e os olhos de um tom mais escuro, de pestanas negras. Não era uma aldeã, embora tivesse escolhido trajos simples e desprezasse os enfeites. Sabia que era uma herdeira e que era reconhecida como tal.

- Com certeza, com prazer-disse Cadfael prontamente, e assim fez.

Ela recuou um passo, com a cabeça inclinada, sem ter esperado uma recepção tão pronta, sem uma explicação dada nem pedida e, quando ele ficou ao mesmo nível dela, e pouco mais alto era que ela, ela decidiu-se bruscamente e ofereceu-lhe um sorriso radiante.

- Creio que nós os dois podemos conversar. Não fizestes perguntas e no entanto não me conheceis.

- Acho que sim - disse Cadfael, prendendo a rédea da mula a um espigão na parede de pedra. - Só podeis ser Isouda Foriet. Pois já conheci todos os outros e já me disseram que éreis a mais nova da tribo.

- Ele falou-vos de mim? - perguntou imediatamente, com o maior interesse, mas sem ansiedade.

- Falou de vós a outros e chegou-me aos ouvidos.

- Como é que falou de mim? - perguntou com brusquidão, erguendo o queixo firme. - Isso também chegou aos vossos ouvidos?

- Percebi que éreis uma espécie de irmã mais nova. - Por uma razão qualquer, não só achou possível mentir a esta jovem, como pensou que não tinha qualquer interesse adoçar-lhe a verdade.

Ela sorriu, como um comandante confiante a pesar as vantagens do campo ameaçado.

- Como se nunca mais deixasse de me olhar assim. Não faz mal! Ele olhará.

- Se eu tivesse algum poder sobre ele - disse Cadfael com respeito -, aconselhava-o agora. Bem, Isouda, aqui me tendes, como desejais. Vamo-nos sentar e dizei-me o que quereis de mim.

- Vós, os irmãos, não tendes nada a ver com mulheres - disse Isouda com um sorriso irónico, enquanto se voltava a empoleirar na parede. - Pelo menos, isso põe-o a salvo dela, mas não deve ir longe de mais nesta sua loucura. Podeis dizer-me o vosso nome, visto que sabeis o meu?

- Chamo-me Cadfael, um galês de Trefriw.

- A minha primeira ama era galesa - disse ela, baixando-se para apanhar um frágil pedaço de erva verde que secava a seus pés, e meteu-o entre os dentes fortes e brancos. - Não acredito que tenhais sido sempre monge, Cadfael, sabeis demasiado.

- Conheci monges, crianças no convento desde os oito anos de idade - disse Cadfael muito sério -, que sabiam mais do que eu jamais saberei, embora só Deus saiba como, porque foi quem o tornou possível. Mas não, vivi quarenta anos no mundo, antes de ir para o convento. O meu conhecimento é limitado. Mas aquilo que sei podeis perguntar-me. Quereis, creio, saber de Meriet.

- Não do "Irmão Meriet"? - disse ela, saltando com a agilidade de um gato.

- Ainda não. Ainda por algum tempo.

- Nunca! - disse ela com firmeza e confiança. - Não vai chegar a isso. Não pode. Voltou a cabeça e olhou-o com uma expressão altiva e imperiosa. - Ele é meu - disse simplesmente. - Meriet é meu, quer o saiba já ou não. E mais ninguém o terá.

 

- Perguntai-me o que quiserdes - disse Cadfael mudando de posição para encontrar o local com pedras menos agudas da parede. - E há coisas que terei de vos perguntar.

- E dir-me-eis honestamente o que preciso de saber? Tudo? - desafiou ela. A voz tinha um tom directo, alto e claro da de uma criança, mas a autoridade da de um lorde.

- Direi. - Porque ela estava à altura disso, preparada para isso. Quem conhecia melhor este atormentado Meriet?

- A que distância está ele de tomar os votos? Que inimigos fez? Que figura de parvo fez ele no seu desejo de mártir? Dizei-me tudo o que lhe aconteceu desde que foi para longe de mim. - "De mim" foi o que ela disse, não "de nós".

Cadfael contou-lhe. Apesar de escolher as palavras com cuidado, fê-las dizer a verdade. Ela ouviu com um silêncio tão contido e forte, acenando com a cabeça de vez em quando, sempre que achava necessário, abanando-a quando achava que era loucura, sorrindo de repente quando compreendia, uma maneira que Cadfael não era ainda capaz de compreender, as atitudes do homem que escolhera. Acabou por lhe contar abruptamente o castigo que Meriet fizera com que lhe dessem, e mesmo, o que era uma tentação maior de descrição, acerca da trança queimada que fora a razão da sua queda. Não a surpreendeu nem a desencorajou muito, notou ele. Apenas pensou nisso um momento.

- Se vós soubésseis das chicotadas que ele teve como castigo antes! Ninguém o vencerá dessa maneira. E o vosso Irmão Jerome queimou-lhe a tentação dela... foi bem feito. Não poderá enganar-se a si próprio durante mais tempo, sem o objecto de sedução na sua posse. - Ela apercebeu-se, pensou Cadfael, da sua suspeita momentânea de que aqui se tratava apenas de ciúmes de mulheres. Voltou-se e sorriu com puro divertimento. - Oh, mas eu vi-vos encontrá-los! Estava a ver, embora eles não o soubessem, nem vós. Achaste-a bonita? De certeza que sim, porque ela é. E ela não se fez graciosa e encantadora para vós? Oh, foi para vós, podeis ter a certeza... por que haveria ela de seduzir Nigel seja o tem dominado, o único que ela realmente quer. Mas não é capaz de deixar de deitar a rede. Foi ela que deu essa madeixa de cabelo a Meriet, evidentemente! Ela é incapaz de não tentar prender um homem.

Era exactamente do que Cadfael suspeitara desde que pusera os olhos em Roswitha.

- Eu não tenho medo dela - disse Isouda com tolerância. - Conheço-a bem de mais. Ele apenas começou a imaginar que a amava por ela pertencer a Nigel. Tem de desejar tudo o que Nigel deseja e tem de ter ciúmes de tudo o que Nigel tem e ele não. E, apesar disso, tendes de confiar em mim, não há ninguém que ele ame tanto como ele ama Nigel. Ninguém. Por enquanto!

- Acho - disse Cadfael - que sabeis muito mais do que eu sobre este rapaz que me preocupa e faz com que goste dele. E desejo que me conteis o que ele não me conta, tudo acerca desta casa dele, e de como ele cresceu dentro dela. Porque ele precisa da vossa ajuda e da minha e eu estou disposto a ser o vosso intermediário nisto, se lhe quereis bem, como eu quero.

Ela dobrou os joelhos, apertou os braços magros à volta deles e disse-lhe:

- Sou a senhora de uma casa senhorial, herdada muito jovem, deixada à guarda do vizinho do meu pai, o meu Tio Leoric, embora não seja meu tio. É um homem bom. Sei que a minha propriedade é tão bem gerida como qualquer outra de Inglaterra e o meu tio não tira dela qualquer proveito. Tendes de compreender, é um homem à maneira antiga, totalmente honesto. Não é fácil viver com ele, se se é seu filho e rapaz, mas eu sou rapariga e ele foi sempre bom e indulgente comigo.

"A Srª Avota, que morreu há dois anos... bem, ela era primeiro a esposa dele e só depois mãe de Meriet. Vistes Nigel, o que mais pode um homem desejar para o seu herdeiro? Eles nunca precisaram ou desejaram Meriet. Cumpriram todos os seus deveres quando ele veio, mas não podiam deixar de olhar para Nigel para dar atenção ao segundo. E ele era tão diferente!

Parou para pensar nos dois e provavelmente estava a ver em que ponto é que eles iam por caminhos diferentes.

- Achais - perguntou ela com dúvida -, que as crianças pequenas sabem quando são apenas as segundas? Eu penso que Meriet o soube muito cedo. Era diferente mesmo de aspecto, mas essa era a parte menos importante. Penso que ele esteve no lado oposto, fosse o que fosse que eles desejassem dele. Se o pai dizia branco, Meriet dizia preto; para onde quer que o tentassem levar, ele segurava-se nos calcanhares e não se mexia. Não podia deixar de aprender, porque era esperto e curioso, por isso aprendeu, mas quando percebeu que queriam fazer dele um escriturário, começou a andar com toda a espécie de más companhias e desconsiderava o pai de todas as maneiras. Teve sempre ciúmes de Nigel - disse a rapariga fixando os joelhos levantados -, mas sempre o adorou. Desconsidera o pai de propósito, porque sabe que ele o ama menos e isso magoa-o dolorosamente, e, no entanto, não é capaz de odiar Nigel por ser mais amado. Como pode ele, se o ama tanto?

- E Nigel paga-lhe esse afecto? - perguntou Cadfael, lembrando-se da cara perturbada do irmão mais velho.

- Oh, sim, Nigel gosta dele também. Sempre o defendeu. Pôs-se muitas vezes entre ele e o castigo. E ficava sempre com ele quando eles todos brincavam juntos.

- Eles? - disse Cadfael. - Não "nós"?

Isouda cuspiu a folha de erva mastigada e voltou para ele uma cara surpreendida e risonha.

- Sou a mais nova, três anos menos do que Meriet, era a criança que ia atrás deles. Durante algum tempo, pelo menos. Não houve muita coisa a que não tivesse assistido. Conhece o resto de nós? Aqueles dois rapazes com seis anos de diferença entre eles, os dois Linde, a meio caminho entre eles. E eu, muito mais nova. Vistes Roswitha, não sei se vistes Janyn?

- Vi - disse Cadfael -, no meu caminho para cá. Deu-me indicações.

- São gémeos. Tínheis adivinhado? Mas parece-me que ele ficou com toda a esperteza que estava destinada aos dois. Ela só tem esperteza para uma coisa - disse Isouda com sensatez -, para atrair os homens para ela e mantê-los presos. Estava à espera que vos virásseis e olhásseis para ela, e ter-vos-ia premiado com um olhar rápido. E agora, pensais que eu não passo de uma rapariga tonta, com ciúmes de outra mais bonita - disse de um modo desconcertante e riu-se ao vê-lo conter-se. - Gostaria de ser bonita, por que não? Mas não invejo Roswitha e, à nossa maneira rabugenta, temos sido aqui muito chegados. Muito chegados! Todos aqueles anos têm de contar para alguma coisa.

- Parece-me - disse Cadfael - que de todos sois quem melhor conhece este jovem. Por isso dizei-me, se puderes, por que razão é que ele se interessou pela vida de mosteiro? Sei tão bem como todos, como ele se agarra a essa intenção, mas não percebo por que razão. Será que vós vedes com mais clareza?

Não, não via. Abanou a cabeça com clemência.

- É contra tudo o que conheço dele.

- Dizei-me então, tudo o que recordais da altura em que esta resolução foi tomada. E começai - disse Cadfael -, com a visita a Aspley do enviado do bispo, este Peter Clemence. Já deveis saber, quem não sabe, que o homem nunca chegou ao alojamento seguinte. E nunca mais foi visto.

Ela voltou a cabeça bruscamente para olhar para ele.

- E agora dizem que o cavalo dele foi encontrado. Encontrado perto da fronteira de Cheshire. Não pensais que o capricho de Meriet tem alguma coisa a ver com isso? Como podia ter? E no entanto... - Tinha uma mente rápida e resoluta. Já estava a fazer ligações inquietantes. - Foi na noite de oito de Setembro que ele dormiu em Aspley. Não havia nada de estranho, nada digno de nota. Chegou sozinho, ao fim do dia. O tio Leoric saiu para o cumprimentar e eu levei a capa dele para dentro e disse às criadas para lhe prepararem uma cama e Meriet tomou-lhe conta do cavalo. Ele dá-se sempre bem com os cavalos. Recebemos bem o visitante. Continuaram na sala com música, depois de eu ir para a cama. E, na manhã seguinte, partiu e o Tio Leoric e Fremund com dois criados acompanharam-no a cavalo na primeira parte do caminho.

- Como era ele?

Ela sorriu, entre a indulgência e um leve desprezo.

- Muito bem, e sabia-o. Apenas um pouco mais velho do que Nigel, calculo, mas muito viajado e seguro de si. Muito belo, cortês e espirituoso, não parecia nada um funcionário. Cortês de mais para o gosto de Nigel! Vós vistes Roswitha e o aspecto dela. Este jovem tinha a mesma segurança, em relação a todas as mulheres se sentirem atraídas por ele. Aqueles dois estavam bem um para o outro, e Nigel não estava nada satisfeito, mas calou-se e teve maneiras, pelo menos enquanto esteve ali. Meriet também não gostou da maneira como eles estavam a actuar e retirou-se cedo para o estábulo, pois gostava mais do cavalo do que do homem.

- E Roswitha despediu-se também?

- Oh, não, Nigel levou-a a casa quando já estava a escurecer. Vi-os partir.

- Então o irmão dela não estava com ela nessa noite?

- Janyn? Não, Janyn não tem qualquer interesse na companhia de namorados. Ri-se deles. Não, ele ficou em casa.

- E, no dia seguinte, Nigel não acompanhou a cavalo o hóspede que partia? Nem Meriet? Por onde é que andavam nessa manhã?

Ela franziu o sobrolho, tentando recordar-se.

- Acho que Nigel deve ter ido muito cedo a casa dos Linde. Tem ciúmes dela, embora não veja mal nenhum nela. Creio que esteve fora a maior parte do dia, penso que nem apareceu à ceia. E Meriet sei que estava connosco quando o Sr. Clemence partiu, mas depois disso não o vi até ao fim da tarde. O Tio Leoric saiu com os cães de caça depois do almoço, com Fremund, o capelão e o responsável pelo canil. Lembro-me de que Meriet veio com eles a cavalo, embora não tivesse partido com eles. Trazia o arco... saía muitas vezes sozinho, especialmente quando estava zangado com todos nós. Entraram todos. Não sei porquê, foi uma noite muito calma, penso que por o visitante ter partido e não haver obrigação de cerimónias. Creio que nesse dia Meriet não veio cear a casa. Não o voltei a ver durante toda a noite.

- E depois? Quando foi a primeira vez que ouvistes falar do seu desejo de entrar para o convento de Shrewsbury?

- Foi Fremund que mo disse, na noite seguinte. Durante todo o dia não tinha visto Meriet para ele próprio mo dizer. Mas vi no dia seguinte. Andou pela propriedade como era costume, não pareceu diferente em nenhum aspecto. Veio ajudar-me a tratar dos gansos no campo de trás-disse Isouda acariciando os joelhos -, e eu disse-lhe o que tinha ouvido dizer e que achava que ele tinha enlouquecido e perguntei-lhe por que razão havia ele de desejar uma vida tão inútil. - Estendeu uma mão para tocar o braço de Cadfael e obter um sorriso para se assegurar da sua compreensão, sem se perturbar. - Vós sois diferente, vós já tínheis vivido uma vida, uma vida nova a meio do caminho é para vós uma bênção, mas ele, que tinha ele tido? Mas olhou-me nos olhos, directo como uma lança, e disse-me que sabia o que estava a fazer e que era o que queria fazer. E, ultimamente, tinha-se afastado de mim e não havia nenhuma razão para fingir comigo ou escrúpulo para me dizer o que eu perguntava. E eu não tinha razão para duvidar do que ele me dizia. Ele queria isto, ainda o quer. Mas porquê? Isso nunca me disse.

- Isso - disse o Irmão Cadfael pesarosamente -, não disse ele a ninguém, nem o fará se o puder evitar. O que há a fazer, senhora, com este jovem que se quer destruir a si próprio, fechado como um pássaro selvagem numa gaiola?

Bem, ele ainda não está perdido - disse Isouda resolutamente. - E eu hei de voltar a vê-lo quando formos ao casamento de Nigel em Dezembro e depois disso Roswitha estará fora do seu alcance, porque Nigel a vai levar para Norte para a casa perto de Newark, que o Tio Leoric lhes vai dar para tomarem conta. Nigel esteve lá no meio do Verão, para ver o seu domínio, e Janyn acompanhou-o na visita. Cada milha de distância será uma ajuda. Procurar-vos-ei, irmão Cadfael quando formos. Não tenho medo, agora que falei convosco. O Meriet é meu e no fim hei-de tê-lo. Pode ser que agora não sonhe comigo, mas agora os seus sonhos são diabólicos, não gostaria de estar neles. Quero-o bem acordado. Se o amais, afastai-o da tonsura e eu farei o resto!

"Se o amo e se te amo a ti, fauno", pensou Cadfael, cavalgando muito pensativo a caminho de casa depois de a deixar. "Porque tu poderás muito bem ser a mulher para ele. E o que me disseste, tenho de pensar sobre isso com cuidado, por amor de Meriet e por ti "

No regresso comeu um bocado de pão e queijo e uma medida de cerveja, depois de recusar uma refeição na companhia de pessoas com quem não sentia afinidade. E, feito isso, procurou audiência com o Abade Radulfus no silêncio activo da tarde, quando o grande pátio estava vazio e a maioria dos ocupantes trabalhavam no claustro, nos jardins ou nos campos.

O abade esperava-o e ouviu com enorme atenção tudo o que ele tinha para lhe contar.

- Temos então de tomar conta deste jovem, que pode estar errado na sua escolha, mas ainda persiste nela. Não temos outro caminho a seguir, senão ajudá-lo e darmos-lhe todas as oportunidades de encontrar o seu caminho entre nós. Mas temos também os seus colegas para tratar e eles estão cheios de medo dele e das perturbações do seu sono. Temos ainda os restantes nove dias da sua prisão, de que ele parece gostar. Mas depois, o que será melhor fazer com ele, para permitir o acesso à graça e livrar o dormitório dos seus problemas?

- Tenho estado a pensar no mesmo problema-disse Cadfael. - A sua retirada do dormitório pode ser um benefício tanto para ele como para os que ficam, pois é uma alma solitária e, se alguma vez ele se afastar do mundo completamente, penso que será ermitão em vez de monge. Não ficaria surpreendido de descobrir que ele ficou a ganhar por ser fechado numa cela penal, com aquele espaço pequeno e grande silêncio para si próprio e capaz de o encher com as suas meditações e orações, como não seria capaz de fazer num espaço maior, partilhado por muitos outros. Nem todos temos a mesma imagem de irmandade.

- É verdade! Mas nós somos uma casa de irmãos partilhando o comum e não tantos padres sozinhos espalhados em isolamento - disse o abade secamente. - Nem o rapaz pode ficar eternamente numa cela de castigo, a não ser que tencione estrangular os meus confessores um a um para ter direito a isso. O que tendes para sugerir?

- Enviai-o para servir sob orientação do Irmão Mark em Saint Giles - disse Cadfael. - Não encontrará aí maior privacidade, mas estará na companhia e ao serviço de criaturas manifestamente mais infelizes do que ele, leprosos e mendigos, doentes e mutilados. Poderá ser salutar. Poderá esquecer neles os seus próprios problemas. Há vantagens para além disso. Um tal período de afastamento retardará a sua instrução e o seu avanço para tomar os votos, mas isso só poderá ser vantajoso, dado que é evidente que ele não está com o espírito capaz de os tomar por enquanto. Além disso, embora o Irmão Mark seja o mais humilde e simples de todos nós, tem o dom de tantos santos inocentes de encontrar um caminho para o coração. Pode ser que com o tempo o Irmão Meriet se abra com ele e possa ser ajudado no seu problema. Pelo menos, dar-nos-á a todos uma pausa para respirarmos.

"Afastai-o da tonsura", dizia a voz de Isouda na sua cabeça, "e eu farei o resto."

- É verdade - confessou Radulfus a reflectir.-Os rapazes terão tempo de esquecer os seus receios e, tal como dizeis, tratar de homens mais feridos do que ele próprio pode talvez ser o melhor remédio para ele. Falarei com o Irmão Paul e, quando o irmão Meriet acabar de cumprir o seu castigo, será enviado para lá.

"E, se alguns entre nós pensam que o afastamento para trabalhar no lazareto é uma continuação do castigo", pensou Cadfael, afastando-se razoavelmente satisfeito, "deixai-os ter essa satisfação." O Irmão Jerome não era homem para esquecer uma injúria e uma paragem à sua vingança poderia diminuir-lhe a animosidade contra o ofensor. Um período de serviço no hospício no outro extremo da cidade podia também servir mais uma causa além da de Meriet, visto que o Irmão Mark, que ali cuidava dos doentes, fora o assistente mais valioso de Cadfael até há mais ou menos um ano e sofrera recentemente a perda da sua criança abandonada favorita, o pequeno Bran, que foi prestar serviço na casa de Joscelin e Iveta Lucy na altura do seu casamento, e devia sentir-se um pouco perdido sem um infeliz para mimar e tratar. Bastaria uma palavra no ouvido de Mark sobre a situação atormentada do noviço do diabo e a sua compaixão seria canalizada em proveito de Meriet. Se Mark não conseguisse chegar junto dele, então era porque ninguém o conseguiria, mas, ao mesmo tempo, ele poderia fazer também muito por Mark. Uma outra vantagem era que o Irmão Cadfael, como fornecedor de muitos remédios, loções e pomadas que eram necessários aos doentes, visitava Saint Giles de três em três semanas, por vezes mais frequentemente, para encher o armário dos remédios e poderia vigiar o progresso de Meriet.

O Irmão Paul, que vinha da sala do abade antes das Vésperas, ficou visivelmente aliviado pela perspectiva de poder gozar umas tréguas alargadas mesmo depois de Meriet ser libertado da prisão.

- O Pai Abade diz-me que a sugestão foi vossa. Foi bem pensado, há necessidade de uma longa pausa e de um novo começo, embora as crianças esqueçam os seus terrores rapidamente. Mas aquele acto de violência... isso não será tão facilmente esquecido.

- Como está a passar o vosso penitente? - perguntou Cadfael. - Visitaste-o desde que eu lá estive esta manhã cedo?

- Sim, visitei-o. Não estou muito seguro da sua penitência - disse o Irmão Paul com dúvida -, mas está muito calmo e dócil e ouve a exortação com paciência. Não fui também demasiado longe. Estamos a falhar duma maneira triste se ele se sente melhor dentro duma cela do que fora, no meio de nós. Penso que a única coisa que o preocupa é não ter trabalho para fazer, por isso levei-lhe os sermões de Santo Agostinho e dei-lhe uma luz melhor para ele poder ler e uma pequena escrivaninha que pode pôr em cima da cama. É melhor manter-lhe o espírito ocupado, e ele é rápido na leitura Penso que preferireis dar-lhe o tratado de Palladius sobre agricultura - disse Paul, numa piada sem agressividade.-Assim tereis uma razão para o levardes para o vosso herbarium, quando Oswin tomar votos.

Era uma ideia que já ocorrera a Cadfael, mas era melhor o rapaz ir-se embora, para a orientação suave de Mark.

- Não pedi outra vez licença - disse ele -, mas se o pudesse ver antes de ir para a cama, ficaria muito satisfeito. Não lhe falei da minha visita ao pai, dir-lhe-ei agora, mas há lá duas pessoas que lhe mandam mensagens de afecto que prometi transmitir. - Também havia uma que não mandava e talvez soubesse melhor o que estava a fazer.

- Claro que podeis ir antes das Completas - disse Paul. - Ele está apenas preso, mas não ostracizado. Afastá-lo completamente não seria maneira de o trazer de volta para a nossa família, o que deve ser o objectivo das nossas acções.

Não era o objectivo de Cadfael, mas não achou que fosse necessário ou oportuno dizê-lo. Há um lugar certo para cada pessoa nesta terra, mas já se tinha tornado claro para ele que o convento não era o lugar para Meriet Aspley, por mais ardentemente que ele pedisse para ser admitido.

Meriet tinha a luz acesa e colocada de molde a iluminar as folhas de Santo Agostinho, pousadas na cabeceira do catre. Olhou em volta, rápida mas tranquilamente, quando a porta se abriu e, ao reconhecer o visitante, até sorriu. Estava muito frio na cela e o prisioneiro trazia vestido o hábito e o escapulário para se aquecer e, pela maneira cuidadosa como virava o corpo e a careta momentânea que lhe provocava o soltar da camisa de um ponto mais sensível, os vergões estavam a endurecer à medida que saravam.

- Estou contente por vos ver tão salutarmente ocupado - disse Cadfael. - Com um pequeno esforço de oração, Santo Agostinho poderá fazer-vos bem. Pusestes a pomada depois desta manhã? Paul ter-vos-ia ajudado, se lhe tivésseis pedido.

- Ele é bom para mim - disse Meriet, fechando o livro e voltando-se completamente para o visitante. E era sincero, isso era claro.

- Mas vós escolhestes não condescender em pedir-lhe ajuda ou em admitir necessidade, eu sei! Deixai-me tirar-vos o escapulário, e tirai o hábito. - Não se tinha tornado um vestuário em que se sentisse à vontade, só se mexia dentro dele com naturalidade quando estava inflamado e se esquecia que o trazia. - Deitai-vos e deixai-me tratar-vos.

Meriet obedeceu e apresentou as costas, permitiu a Cadfael levantar-lhe a camisa e untar-lhe os vergões, que desvaneciam e que só aqui e ali mostravam um pouco escuro de sangue seco.

- Por que fazeis o que me contais? - perguntouele, numa rebelião suave. - Como se não fôsseis um irmão, mas um pai?

- Pelo que ouvi dizer de vós - disse Cadfael, enquanto lhe punha a pomada -, não sois de modo algum conhecido por fazer o que o vosso próprio pai vos manda.

Meriet voltou-se nos braços cruzados e mostrou um olho verde dourado, cheio de brilho, sobre o companheiro.

- Como sabeis tanto sobre mim? Estivestes lá e falastes com o meu pai?-Estava pronto a brigar cheio de desconfiança, os músculos das costas tensos. - O que é que eles estão a tentar fazer? Para que precisam agora de falar com o meu pai? Eu estou aqui. Se ofendi, pago. Mais ninguém salda as minhas dívidas.

- Ninguém se ofereceu - disse Cadfael placidamente. - Sois agora dono de vós próprio, por muito mal que tomeis conta de vós. Nada mudou. Excepto que vos trouxe mensagens, que não interferem com a vossa liberdade de vos salvardes ou condenardes a vós próprio. O vosso irmão envia-vos as suas melhores saudações e pede-me para vos dizer que vos ama sempre.

Meriet estava muito quieto, apenas a pele morena se arrepiava ao de leve sob os dedos de Cadfael.

- E Lady Roswitha também deseja que vos diga que ela vos ama como compete a uma irmã.

Cadfael amaciou nas mãos as pregas rijas da camisa, onde tinham secado e ficado duras, e lançou o tecido sobre as feridas que desvaneciam e que não iam deixar qualquer cicatriz. Roswitha poderia ser muito mais perigosa.

- Agora puxai o hábito e, se fosse a vós, apagava a luz, acabava com a leitura e dormia. - Meriet estava quieto, deitado sobre o rosto, sem dizer uma palavra. Cadfael puxou o cobertor por cima dele e ficou a olhar para a figura muda e rígida dentro da cama.

Mas já não havia rigidez, os ombros largos erguiam-se num ritmo reprimido e ressentido, os antebraços retesados estavam rígidos e protegiam a cara escondida. Meriet chorava. Por Roswitha ou por Nigel? Ou pelo seu próprio destino?

- Filho - disse Cadfael, meio irritado e meio indulgente -, tendes dezanove anos, ainda nem começastes a viver e pensais, no primeiro desgosto da vida, que Deus vos abandonou. O desespero é um pecado mortal, mas, pior ainda, é a loucura mortal. Tendes uma legião de amigos e Deus olha-vos com tanta atenção como sempre vos olhou. E tudo o que tendes a fazer é esperar com paciência e manter-vos animado.

Mesmo através do seu retraimento e das lágrimas engolidas com fúria Meriet estava a ouvir, como se podia ver pela tensão e silêncio.

- E se isso vos interessa-disse Cadfael, quase contra a sua vontade e parecendo ainda mais irritado por isso -, sim, sou pai, pela graça de Deus. Tenho um filho. E vós sois o único para além de mim que o sabe.

E, com isto, apagou com os dedos o pavio da candeia e na escuridão foi bater na porta para o deixarem sair.

Era difícil saber, quando Cadfael apareceu na manhã seguinte, qual dos dois estava mais reservado e prudente, por ambos terem revelado mais do que tencionavam. Não iria haver outra situação assim. Meriet pusera uma cara austera e séria, que não admitia qualquer fraqueza e Cadfael estava áspero e prático e, depois de um olhar ao pouco que era ainda visível dos danos do doente difícil, declarou que não precisava mais de cuidados, mas que estava em condições de se concentrar na sua leitura e tirar o maior proveito do tempo de penitência para bem da sua alma.

- Quer isso dizer-perguntou Meriet directamente - que estais a lavar as vossas mãos de mim?

- Quer dizer que não tenho nenhuma desculpa para pedir para entrar aqui, quando vós deveis estar a reflectir sobre os vossos pecados em solidão.

Meriet olhou por momentos com um ar zangado para as pedras da parede e depois disse rispidamente:

- Não é por receardes que eu tome alguma liberdade depois do que tão bondosamente me confiastes? Nunca direi uma palavra, a não ser a vós e a vosso pedido.

- Nunca tal pensamento entrou na minha cabeça - afirmou Cadfael, espantado e ressentido. - Pensais que o diria a um fala-barato que não reconheceria uma confidência quando alguém lhe faz uma? Não, é simplesmente porque não tenho razão para aqui vir e devo obedecer às regras tal como vós.

O gelo frágil já derretera.

- No entanto, é uma pena - disse Meriet, desenrolando um rápido sorriso que Cadfael recordou mais tarde como espantosamente doce e extraordinariamente triste. - Reflicto nos meus pecados muito melhor quando estais aqui a ralhar-me. Na solidão, dou por mim ainda a pensar quanto gostaria de ter feito o Irmão Jerome comer as próprias sandálias.

- Vamos considerar isso uma confissão-disse Cadfael -, e uma que será melhor não ser feita a mais ninguém. E a vossa penitência será passar sem mim até se acabarem os dez dias de mortificação. Desconfio que sois incorrigível e que não há orações que vos salvem, mas temos de tentar.

Estava à porta, quando Meriet perguntou ansioso:

- Irmão Cadfael...? E, quando ele se voltou, imediatamente: - Sabeis o que eles tencionam fazer comigo depois?

- Não vão mandar-vos embora, de qualquer maneira - disse Cadfael, e não viu razão para não lhe dizer o que estava planeado em relação a ele. Pareceu-lhe que nada mudara. A notícia de que não corria perigo de ser expulso do destino escolhido acalmou-o, deu-lhe segurança, aplacou-o. Era tudo o que queria ouvir. Mas não o fez feliz.

Cadfael afastou-se, desencorajado, e embirrou com todos os que se atravessaram no seu caminho durante o resto do dia.

 

Hugh veio do Sul, dos pântanos de turfa, de mãos vazias para a sua casa de Shrewsbury e enviou a Cadfael um convite para ir cear consigo na noite do seu regresso. Para tais visitas ocasionais, Cadfael tinha a desculpa mais aceitável que se possa imaginar, uma vez que Giles Beringar, que agora estava com dez meses de idade, era seu afilhado, e um bom padrinho deve manter-se atento ao bem-estar e progresso do seu afilhado. Acerca do bem estar físico e energia inesgotável do pequeno Giles pouca dúvida poderia haver, mas Hugh exprimia por vezes dúvida acerca das suas inclinações morais e, como a maioria dos pais, descrevia com pormenor as maldades engenhosas do filho com respeito e orgulho.

Aline, depois de ter dado comida e vinho aos homens e de ter observado com um olho atento o primeiro pestanejar do filho, retirou-o da sala para ser metido na cama por Constance, que era sua fiel escrava, tal como fora uma amiga leal e criada da mãe do garoto desde a infância. Hugh e Cadfael ficaram sozinhos durante um momento para trocarem as informações que tinham. Mas o total dessa informação era tristemente reduzido.

- Os homens do pântano dizem que não viram ninguém estranho, vítima ou malfeitor. Mas o facto é que o cavalo foi ter ao pântano e o homem de certeza que esteve perto. Ainda me parece que ele está nalgum daqueles charcos e, possivelmente, nunca mais o veremos ou ouviremos falar dele. Mandei pedir ao Cónego Eluard para tentar saber o que é que ele trazia consigo. Calculo que ia muito bem vestido e sei que gostava de usar jóias. O suficiente para atrair salteadores. Mas se foi o que se passou, parece ter sido uma primeira investida de indivíduos do Norte e pode bem ser que os nossos homens aqui tenham impedido os saqueadores de voltarem outra vez durante algum tempo. Não tem havido outros viajantes molestados naquelas zonas. E, de facto, estranhos no pântano estariam de certa maneira em perigo. É preciso conhecer os lugares seguros para passar. Por enquanto, pelo que se pode ver, foi o que aconteceu a Peter Clemence. Deixei lá um sargento e dois homens e os habitantes estão também vigilantes para nos informarem.

Cadfael não podia deixar de concordar que esta era a resposta mais provável para o desaparecimento de um homem.

- E, no entanto... vós sabeis e eu sei que, por um acontecimento se seguir a outro, não é absolutamente necessário que um tenha causado o outro. Mas o espírito está assim construído, não pode quebrar a ligação entre os dois. E houve aqui dois acontecimentos, ambos inesperados: Clemence visitou e partiu, porque ele partiu realmente, não apenas uma mas quatro pessoas foram com ele a cavalo durante um bocado e despediram-se amigavelmente; e dois dias mais tarde o filho mais novo declara a intenção de tomar o hábito. Não há nenhuma relação lógica e eu não consigo separá-los.

- Quer isso dizer - perguntou Hugh - que pensais que este rapaz pode ter tido a ver com a morte de um homem e estar a refugiar-se no convento?

- Não - disse Cadfael prontamente. - Não me pergunteis o que me vai no espírito, pois tudo o que aí encontro é enevoado e confuso, mas seja o que for que esteja por detrás do nevoeiro, estou certo de que não é isso. Qual é o seu motivo não ouso calcular, mas não creio que seja criminoso. - E mesmo quando afirmou, e era o que queria dizer, viu de novo o Irmão Wolstan caído e cheio de sangue na relva e o resto de Meriet paralisado numa máscara de horror.

- Por tudo isso, e respeito o que dizeis, gostaria de ter à mão este jovem estranho. Uma mão que poderia fechar em qualquer momento que quisesse - disse Hugh com honestidade. - E vós dizeis-me que ele vai para Sant Giles? Mesmo para o limite da cidade, perto dos bosques e das charnecas de urzes abertas!

- Não precisais de vos preocupar - disse Cadfael -, ele não vai fugir. Não tem para onde fugir, pois a verdade é que o pai está muito afastado dele e recusar-se-ia a aceitá-lo. Mas ele não vai fugir porque não é esse o seu desejo. A única urgência que sente é apressar-se a tomar os votos finais e acabar com tudo e para além de qualquer possibilidade de retrocesso.

- Então, anda à procura de prisão perpétua? Não de fuga? - disse Hugh com a cabeça escura de lado e um sorriso triste e carinhoso nos lábios.

- Não de fuga, não. Tudo o que vi - disse Cadfael -, ele não conhece nenhuma hipótese de fuga, para nenhum lado, não há fuga para ele.

No fim da penitência, Meriet saiu da cela pestanejando, mesmo à luz fraca de uma manhã de Novembro, depois da obscuridade gelada lá dentro, e foi apresentado no capítulo perante rostos austeros e fechados para pedir perdão das ofensas e reconhecer a justiça do castigo, o que fez, para alívio e admiração de Cadfael, com uma expressão calma e digna e em voz baixa. Parecia mais magro por causa da alimentação escassa e o tom bronzeado de Verão tinha esmaecido para uma cor de marfim escuro, porque, embora ficasse facilmente com um tom escuro, tinha pouca cor na pele excepto quando enfurecido. Estava agora bastante dócil ou tinha descoberto como se refugiar tão profundamente dentro de si próprio que a curiosidade, censura ou animosidade não eram capazes de o comover.

- Desejo - disse ele - saber o que devo fazer e executá-lo fielmente. Estou aqui para que façam comigo o que melhor acharem fazer.

Bem, de qualquer modo sabia como ficar de boca fechada, porque evidentemente nunca revelara, nem mesmo ao irmão Paul, que Cadfael lhe dissera o que tencionavam fazer com ele. Pelo que Isouda contara, devia estar habituado a guardar para si os seus planos desde que começou a crescer, talvez mesmo antes, pois logo que sentiu no coração a ferida de não ser amado como o irmão era, o obrigou a tornar-se travesso e teimoso para chamar um pouco a atenção daqueles que o substimavam. Assim, pô-los cada vez mais contra si e foi ficando cada vez mais afastado.

"E ousei censurá-lo por ter sucumbido ao primeiro desgosto da sua vida", pensou Cadfael, cheio de remorsos, "quando metade da sua vida tinha sido um profundo desgosto."

O abade foi de uma amabilidade austera, deixando para trás os erros do passado e explicou-lhe o que lhe pediam agora para fazer.

- Passareis a manhã connosco - disse Radulfus -, e comereis o almoço no refeitório no meio dos vossos irmãos. De tarde, o Irmão Cadfael levar-nos-á ao hospício de Sant Giles, dado que vai lá para fornecer o armário de remédios. - E isso, mesmo para Cadfael, era um novidade e uma indicação agradável da preocupação pessoal do abade. O irmão que tinha mostrado um interesse por este perturbado e perturbador jovem noviço ficava claramente a saber que tinha autorização para continuar a sua vigilância.

Partiram da portaria lado a lado, no princípio da tarde, para o trânsito diário normal da Entrada Principal. Não havia grande azáfama a esta hora de um dia suave, húmido e melancólico de Novembro, mas havia sempre algum testemunho de actividade: um rapaz a correr para casa ao ombro e um cão a acompanhá-lo; uma carroça a caminho da cidade carregada de lenha; um velho encostado ao seu bastão; duas donas-de-casa fortes e regressarem da cidade com as compras; um dos guardas de Hugh a vir a cavalo em direcção à ponte em passo lento. Meriet abria os olhos para observar tudo o que o rodeava, depois de dez dias fechado em paredes de pedra e fraca luz de candeia. O rosto mantinha-se solene e sereno, mas os olhos devoravam cor e movimento com avidez. Não chegava bem a meia milha a distância entre a portaria e o hospício de Saint Giles, ao longo do enclave da parede da abadia, depois do campo relvado da feira de cavalos e ao longo da estrada direita por entre as casas da Porta Principal, até que se começavam a espaçar com árvores e jardins entre elas e davam lugar a campo aberto. E aí, aparecia o telhado baixo do hospital e a torre larga e pouco alta da capela sobre uma leve elevação da estrada, onde havia um cruzamento.

Meriet, ao aproximar-se, olhou com um interesse significativo, mas não com sofreguidão, para o local, simplesmente como o sítio para onde fora mandado.

- Quantos doentes podem estar aqui internados?

- Pode haver vinte e cinco ao mesmo tempo, mas varia. Muitos deles andam de um lado para o outro, de lazareto em lazareto, sem ficar durante muito tempo em nenhum. Alguns chegam aqui doentes de mais para poderem sair. A morte reduz os números e outros ocupam os lugares deixados vagos. Tendes medo de infecção?

Meriet disse "Não" de um modo tão indiferente que era quase como se tivesse dito "Por que haveria de ter? Que espécie de ameaça poderá ser a doença para mim?"

- O Irmão Mark está encarregue de tudo? - perguntou.

- Há um superior laico, que vive na Porta Principal, um homem bom e um bom administrador. E outros dois ajudantes. Mas Mark toma conta dos internados. Podeis ser para ele uma grande ajuda se quiserdes - disse Cadfael -, pois ele pouco mais velho é que vós e apreciará muito a vossa companhia. Mark era o meu braço direito e ajuda no herbarium, até sentir necessidade de vir para aqui tratar dos pobres e abandonados, e agora duvido que o tenha alguma vez de volta, porque tem sempre ali alguma alma que não pode abandonar e quando perde uma aparece outra.

Refreou-se para não dizer demasiado bem do seu discípulo mais apreciado, mas Meriet constituiu ainda uma surpresa quando subiram a pequena inclinação que elevava o hospital em relação à estrada, passaram pela vedação desta casa e pelo alpendre baixo e encontraram o Irmão Mark, sentado lá dentro à pequena secretária. Estava com a testa enrugada a fazer contas, os lábios a pronunciarem números em silêncio, enquanto os escrevia num pergaminho. A pena precisava de ser aparada e tinha os dedos cheios de tinta e, por os ter esfregado no cabelo cor de palha tinha manchas tanto na testa como na coroa. Pequeno e delgado, de rosto sincero, ele próprio abandonado na infância, olhou para eles quando entraram na porta, com um sorriso de uma doçura tão desarmante que a boca fechada de Meriet se abriu, tal como os olhos, e ficou a observá-lo espantado e maravilhado, enquanto Cadfael o apresentava. Esta coisa pequena e frágil, com o corpo de dezasseis anos, era responsável por mais de vinte doentes, mutilados, pobres, verminosos e velhos!

- Trouxe-vos o Irmão Meriet-disse Cadfael -, assim como este saco cheio de coisas. Ele vai ficar convosco durante algum tempo para aprender o trabalho aqui e podeis confiar nele para tudo o que lhe mandares. Arranjai-lhe um canto e uma cama, enquanto eu vos encho o armário. Depois, podeis dizer-me se precisais de mais alguma coisa.

Conhecia bem a casa. Deixou-os a estudarem-se um ao outro e a procurar palavras sem pressa e foi abrir o depósito dos seus remédios e encher as prateleiras. Não tinha pressa, havia qualquer coisa em relação àqueles dois que, por mais diferentes que pudessem ser, um filho de um lorde de duas casas, o outro órfão de um camponês, os tinha de repente revelado semelhantes aos seus olhos. Ambos desprezados e maltratados, ambos da mesma idade, e com tal calor e humildade num lado e tal paixão e impulsividade do outro, como poderiam deixar de se entenderem?

Depois de despejar o saco e de anotar os lugares que permaneciam vazios nas prateleiras, foi à procura dos dois e seguiu-os a curta distância, enquanto Mark guiava o ajudante através do hospício, capela e cemitério e no pomar abrigado por detrás, onde alguns dos que estavam em melhor estado de saúde se sentavam ao ar livre durante parte do dia, para respirar ar puro. Uma casa de indigentes e abandonados, homens, mulheres, crianças até, abandonadas ou deixadas órfãs, manchadas por doenças de pele, deformadas por acidentes, lepra e paludismo; e um número de mendigos razoavelmente saudáveis a quem apenas faltava terra, trabalho, um lugar na sociedade e os meios para ganhar o pão. "No País de Gales", pensou Cadfael, "estes assuntos são mais bem tratados, não por caridade mas por laços de sangue. Se um homem pertence a uma família, quem é que o pode separar dela? Reconhece-o e sustenta-o, não o deixa ser rejeitado ou morrer de necessidade. Porém, mesmo no País de Gales, o estrangeiro sem um clã é um homem contra o mundo. Assim são estes servos fugitivos, camponeses escorraçados, trabalhadores mutilados, atirados fora quando perdem o seu valor de trabalho. E as mulheres pobres, prostitutas, degradadas, algumas com crianças agarradas às saias, e os pais confortáveis e longe, aqueles que não são honestos mas mortos."

Deixou-os juntos e foi-se embora sem fazer barulho com o saco vazio e a fé reconfortada. Não há necessidade de dizer uma palavra a Mark sobre a história do novo irmão, deixá-los descobrir o que pudessem um sobre o outro em pura irmandade, se esse termo tinha algum significado verdadeiramente. Era melhor deixar Mark formar uma opinião, sem preconceitos, sem sugestões e dentro de uma semana poderia saber algo de positivo sobre Meriet, sem ser filtrado através da piedade.

Quando os viu pela última vez, estavam no pomar onde as crianças corriam para brincar: quatro que podiam correr, uma que se apoiava numa muleta e uma com nove anos que andava sobre os quatro membros como um cachorrinho, pois perdera os dedos de ambos os pés por ter sido exposta a grandes gelos num Inverno muito mau. Mark segurava a mais pequena pela mão, enquanto guiava Meriet pelo pequeno lugar cercado. Meriet não tinha ainda uma couraça contra o horror, mas pelo menos nele o horror não era repulsa. Estava a debruçar-se para estender a mão ao rapaz que gatinhava e, ao descobrir que ele não era capaz de se levantar e por isso não queria tentar, não levantou a criança contra sua vontade, mas baixou-se de repente para ficar a um nível idêntico e ficou ali de cócoras a ouvir, angustiado e atento.

Era suficiente. Cadfael afastou-se contente e deixou os dois juntos.

Deixou-os sozinhos durante alguns dias e depois arranjou uma ocasião para falar a sós com o irmão Mark, com o pretexto de tratar um dos mendigos que tinha uma chaga que não sarava. Não foi dita nem uma palavra sobre Meriet, até Mark acompanhar Cadfael até ao portão e num bocado do caminho ao longo da estrada em direcção à abadia.

- E como vai o vosso novo ajudante? - perguntou então Cadfael no tom de voz casual com que teria perguntado por qualquer outro principiante neste trabalho difícil.

- Muito bem - disse Mark, alegre e sem desconfiar. - Com vontade de trabalhar até cair, se eu o deixasse. - Era uma reacção evidente: é a única maneira de esquecer aquilo a que não se pode fugir. - Tem muito jeito para as crianças, seguem-no por todo o lado e dão-lhe a mão quando podem. - Sim, isso também faz sentido. As crianças não lhe iriam fazer perguntas a que não quisesse responder ou medi-lo na escala como fazem os adultos, agarram-se a ele. Com elas não precisava de estar sempre alerta. - E não se afasta das mutilações mais horríveis ou das tarefas mais repugnantes - disse Mark -, embora não esteja acostumado a elas como eu estou, e sei que sofre.

- Isso é necessário - disse Cadfael simplesmente. - Se não precisasse de sofrer não estaria aqui. Uma amabilidade fria é apenas metade do dever de um homem que trata de doentes. Como reage ele a vós... fala alguma vez de si?

- Nunca - disse Mark e sorriu, sem se surpreender por assim ser. - Não tem nada que deseje dizer. Ainda não.

- E não há nada que queirais saber sobre ele?

- Escuto de boa vontade - disse Mark -, se há alguma coisa que pensais que eu deva saber sobre ele. Mas o que mais me interessa já sei: que é por natureza honesto e brando, sejam quais forem os estragos que ele, outras pessoas ou circunstâncias adversas tenham feito da sua vida. Só gostava que fosse mais feliz. Gostaria de o ouvir rir.

- Não por vós, então-disse Cadfael -, mas por causa dele, seria melhor que soubésseis sobre ele tudo o que eu sei. - E em seguida contou-lhe.

- Agora compreendo - disse Mark no fim -, por que razão ele levou o catre para o sótão. Tinha medo de poder perturbar durante o sono e assustar aqueles que já têm mais do que é preciso para suportar. Fiquei indeciso quanto a mudar lá para cima para o pé dele, mas achei melhor não ir. Sabia que ele devia ter boas razões para o fazer.

- Boas razões para tudo o que faz? - perguntou Cadfael.

- Razões que lhe parecem boas a ele, pelo menos. Mas podem nem sempre ser sensatas - concordou Mark muito sério.

O Irmão Mark não disse uma palavra sobre o que soubera, não fez qualquer tentativa para se juntar a ele no seu auto-exílio no sótão sobre o celeiro, nem fez nenhum comentário sobre tal escolha. Mas, nas três noites seguintes, levantava-se muito silenciosamente da cama quando tudo estava calmo e ia com cuidado até ao celeiro escutar algum ruído que viesse de cima. No entanto, não havia nada para além da respiração profunda, calma, de um homem a dormir em paz, e o suspiro ocasional e resmalhar, quando Meriet se voltava na cama sem acordar. Talvez uns outros suspiros mais profundos, por vezes, que tentavam aliviar um grande peso de um coração, mas nem um grito. Em Saint Giles, Meriet ia para a cama tão cansado e, em certa medida consoladora, tão satisfeito, que dormia sem sonhos.

Entre os muitos benfeitores da leprosaria, a coroa era um dos maiores através das suas contribuições para a abadia e suas dependências. Havia outros lordes de casas senhoriais que, em certos dias, permitiam a colheita de frutos silvestres ou de lenha, mas nas proximidades da Floresta Grande o lazareto tinha o direito de fazer incursões para arranjar lenha, tanto para aquecimento como para fazer vedações ou outras utilizações na construção, durante quatro dias no ano, um em Outubro, um em Novembro, um em Dezembro, quando o tempo o permitisse, e um em Fevereiro ou Março para voltar a fornecer as provisões gastas pelo Inverno.

Meriet estava no hospício apenas há três semanas quando o terceiro dia de Dezembro ofereceu um dia suave, apropriado para uma expedição na floresta, com sol desde manhã cedo e um terreno confortavelmente firme e seco para se poder caminhar. Tinha havido vários dias secos e, possivelmente, não iria haver mais. Era ideal para apanhar lenha do chão, sem ter de carregar o peso extra da humidade, e até matos empilhados seriam valiosos nessa circunstância. O Irmão Mark cheirou o ar e declarou que para todos os fins seria um feriado. Conduziram dois carros de mão e algumas padiolas de tecido para juntar os molhos, levaram um grande balde de cabedal de comida e reuniram todos os residentes que eram capazes de andar devagar pela floresta. Havia outros que gostariam de ter ido, mas não aguentariam o caminho e tiveram de esperar em casa.

A partir de Saint Giles a estrada ia para Sul, deixando à esquerda o caminho que o Irmão Cadfael tomou para Aspley. Um pouco à frente desse desvio, continuaram a andar pela estrada e dirigiram-se para a zona de mato que orlava a floresta, seguindo um trilho de cavalo largo que os carros faziam sem dificuldade. O rapaz que não tinha dedos dos pés foi com eles, em cima de um dos carros. O peso dele era afinal irrelevante e a alegria do rapaz compensava tudo. Quando pararam numa clareira para reunir lenha caída no chão, puseram-no no bocado de relva mais macia e deixaram-no brincar enquanto eles trabalhavam.

Meriet saíra tão grave como era costume mas, à medida que a manhã passava, saía do seu esconderijo para a luz do sol, tal como o dia. Aspirava o ar da floresta, pisava a erva e parecia expandir-se, como as folhas secas fazem com a chuva, arrancando sustento à terra que pisava. Não havia ninguém mais ocupado em reunir os troncos mais fortes de lenha caída, ninguém mais ágil a atá-los e carregá-los. Quando o grupo parou para comer e beber, esvaziando o balde, estavam bem dentro da área circundante da floresta, onde a colheita seria melhor, e Meriet comeu o seu pão com cebola e queijo e bebeu a cerveja. Depois, estendeu-se debaixo duma árvore com o rapaz sem dedos deitado sobre um dos braços. Assim mergulhado na última erva pálida, parecia um rebento nascido do chão, meio adormecido para o Inverno, meio acordado para outro ciclo de crescimento.

Não tinham avançado mais de dez minutos para dentro da floresta, depois do descanso, quando parou para olhar em volta, a luz do sol velado por entre árvores e a forma das rochas baixas, cobertas de líquenes à direita.

- Agora sei perfeitamente onde estamos. Quando tive o meu primeiro pónei não queriam que eu viesse mais longe do que a estrada da casa, quanto mais aventurar-me até tão longe para Sudoeste na floresta, mas eu fazia-o muitas vezes. Costumava haver aqui um velho carvoeiro que tinha por aqui uma meda, não pode ser longe daqui. Foi encontrado morto na cabana há um ano ou mais e não tinha nenhum filho que continuasse o seu trabalho e ninguém quis viver tão isolado como ele vivia. Pode ser que tenha deixado um molho ou dois de mato a secar e não viveu para o queimar. Quereis ir lá ver, Mark? Podíamos ter um bom resultado.

Era a primeira vez que ele falava de uma recordação da infância e a primeira vez que mostrara alguma vivacidade. Mark acolheu com agrado a sugestão.

- Sois capaz de a encontrar outra vez? Já temos uma boa carga, mas podemos muito bem carregar a melhor para o lado da estrada e vir buscá-la depois de descarregarmos o resto. Temos o dia todo.

- Deve ser por aqui - disse Meriet e começou a andar com confiança para a esquerda, por entre as árvores, alongando os passos para ir à frente procurar. - Deixá-los seguir ao seu próprio ritmo. Eu vou à frente e encontro o lugar. Era uma clareira escavada, as pilhas de lenha têm de ficar abrigadas... -A voz e a figura desapareceram por entre as árvores. Durante uns minutos ficou fora de vista antes de o ouvirem chamar, num tom tão próximo do prazer como Mark jamais lhe ouvira.

Quando Mark chegou ao pé dele, estava onde as árvores começam a rarear e acabam, deixando uma concavidade de talvez uns cinquenta passos de diâmetro com um chão direito de terra batida e cinzas. Na orla, junto deles, os restos decrépitos de uma cabana tosca, feita de paus, fetos e terra que se desfaziam sobre a ombreira da porta vazia e, no outro extremo da arena, havia molhos empilhados de matos parcialmente cobertos na base por ervas e turfas. No chão preparado havia espaço para duas medas com uns cinco passos de diâmetro cada uma e ainda se viam bem os locais, embora as ervas estivessem a vir das pontas da planície e a invadir até os círculos de cinza com rebentos verdes, provocadores. A meda mais próxima tinha sido limpa depois da última queima e não havia nenhuma nova pilha ali construída, mas na outra mais distante havia um conjunto de troncos empilhados, meio queimados e ainda a manter a forma debaixo de camadas de erva, folhas e terra.

- Construiu a última pilha e ainda a queimou - disse Meriet olhando -, e depois nunca teve tempo para construir a outra enquanto a primeira ardia, como costumava fazer sempre, nem de tomar conta da primeira que acendeu. Vede, deve ter soprado um vento depois de ele ter morrido e não estava ninguém para cobrir o buraco quando começou a arder. Um dos lados está todo em cinza e o outro está só chamuscado. Não se pode encontrar ali muito carvão, mas somos capazes de encontrar o suficiente para encher o balde. Pelo menos, deixou-nos uma boa provisão de lenha, e bem seca, também.

- Não percebo nada disto-disse Mark com curiosidade.-Como pode um monte tão grande de lenha ser queimado sem arder em chamas para poder ser outra vez usada como combustível?

- Começam por colocar no meio um poste alto e troncos secos à volta, depois os troncos todos até a meda ficar pronta. Depois, cobre-se com uma camada de folhas, ervas ou fetos para não deixar passar a terra, e cinza que se põe por cima a cobrir tudo. Depois, acende-se quando está pronta, tira-se o poste central para deixar uma chaminé e, por aí, deitam-se carvões a arder bem e paus bem secos depois até estar a arder. Tapa-se depois a abertura e arde muito devagar e a alta temperatura, às vezes durante dez dias. Se há vento, tem de se estar sempre atento porque se a meda pega fogo começa a arder em chamas. Se há perigo, tem de se cobrir bem o local e manter tudo bem tapado. Não ficou aqui ninguém para fazer isso.

Os companheiros mais lentos estavam agora a aparecer pelo meio das árvores. Meriet guiou-se pela inclinação até à meda, seguido de perto por Mark.

- Parece-me - disse Mark a sorrir -, que sois muito versado nesta arte. Como aprendestes tanto sobre isto?

- Ele era um velho carrancudo e as pessoas não gostavam dele - disse Meriet, encaminhando-se para a lenha atada em molhos -, mas comigo não era rabugento. Estive aqui mais de uma vez até que um dia o ajudei a destapar uma meda queimada e fui para casa mais sujo do que poderia descrever. Levei uma boa sova e não me deixaram sair outra vez com o pónei até prometer não voltar a ir para aquele lado. Creio que tinha na altura uns nove anos... foi há muito tempo. -Olhou para a pilha de lenha com orgulho e prazer e fez rolar o tronco que estava no topo, obrigando um número de animais assustados a procurar abrigo.

Tinham deixado um dos carros-de-mão, já muito cheio, na clareira onde descansaram à hora do almoço.

Dois dos ajudantes mais fortes trouxeram a segunda padiola por entre as árvores e começaram a apanhar os troncos e a carregá-los.

- Na meda ainda deve haver lenha meio queimada - disse Meriet -, e talvez algum carvão também, se a desmancharmos. - Afastou-se para a cabana em ruínas e saiu de lá com um ancinho grande de madeira, com o qual atacou o monte um pouco disforme deixado pela última queima sem controlo. - É estranho - disse ele, erguendo a cabeça e franzindo o nariz -, ainda se sente o cheiro a queimado. Quem poderia pensar que durava durante tanto tempo?

Havia na verdade um cheiro ténue como o que poderia ficar depois de um incêndio na floresta ter sido apagado pela chuva e seco por vento. Mark também o distinguia e foi para o lado de Meriet quando o ancinho largo começou a desfazer a cobertura de terra e folhas de um dos lados da meda. O cheiro húmido a terra das folhas em decomposição chegou-lhes ao nariz e troncos meio queimados desprenderam-se e rolaram com o ancinho. Mark foi para o outro lado, onde a meda se desfizera numa massa de cinzas que o vento carregara até à orla das árvores. Aí, o cheiro a fogo apagado era ainda mais intenso e levantava-se em ondas, à medida que os pés de Mark pisavam os destroços. E, deste lado, as folhas que ainda estavam nas árvores estavam secas como se tivessem sido chamuscadas.

- Meriet! - chamou Mark num tom baixo mas urgente. -Vinde aqui ter comigo!

Meriet olhou em volta, o ancinho espetado no chão. Surpreendido, mas não preocupado, rodeou o círculo de cinzas até onde Mark estava, mas em vez de deixar o ancinho arrastou-o atrás de si por sobre a parte de cima da meda e fez cair um grupo de troncos meio queimados que rolaram pela relva cheia de cinzas. Ocorreu a Mark que esta era a primeira vez que vira o novo ajudante parecer quase feliz, a usar o corpo com energia, absorvido no que estava a fazer, esquecido das suas próprias preocupações.

- O que foi? Que vistes?

Os troncos caídos, meio queimados e a desintegrarem-se, pararam numa nuvem de poeira acre. Algo rolou para os pés de Meriet, algo que não era lenha. Qualquer coisa de cabedal, escurecido, encarquilhado e seco, com a forma dificilmente reconhecível à primeira vista de um sapato de montar de ponta longa, com uma fivela escurecida, e, a sair dele, algo longo e rígido com reflexos de branco-marfim por entre trapos esvoaçantes e esgaçados de tecido calcinado.

Durante um longo momento Meriet ficou a olhar sem compreender, os lábios ainda com a forma da última palavra da pergunta jovial, o rosto ainda animado e vivo. Depois, Mark viu a mesma transformação chocante e violenta que Cadfael também vira, quando o brilho dos olhos cor de avelã pareceram retrair-se numa escuridão de breu, e a frágil máscara de contentamento gelar em horror. Emitiu um som muito baixo, um estertor rouco como um homem moribundo, deu um passo atrás, cambaleante, tropeçou no chão desnivelado e caiu nas ervas.

 

Foi apenas um momento de afastamento do insuportável, recolhendo-se dentro dos braços, afastando o que, no entanto, não podia deixar de continuar a ver. Não desmaiara. Mesmo quando Mark correu para ele, sem qualquer grito, para não alarmar o grupo ocupado a desmantelar a pilha de matos, já ele estava a pôr a cabeça para trás e a dobrar-se sobre os pulsos no chão, para se levantar. Mark segurou-o com um braço à volta do corpo, porque ainda estava a tremer quando se ergueu.

- Vistes? Vistes? - perguntou num murmúrio. O que restava da meda meio queimada estava entre eles e os outros, ninguém se voltara para olhar na direcção deles.

- Sim, vi. Eu sei! Temos de os afastar - disse Mark - Deixai esta pilha como está, não toqueis em mais nada, deixai o carvão. Temos é de carregar a lenha e começar a voltar para casa. Estais em condições de andar? Sois capaz de vos manterdes como sempre e reagir como de costume em frente deles?

- Sou - disse Merit, endireitando-se e passou a manga pela testa perlada de suor gelado. - Sim! Mas, Mark, se vísseis o que eu vi... temos de saber...

- Nós sabemos - disse Mark -, tanto vós como eu sabemos. Agora não é para nós, é uma coisa para a lei e devemos deixar tudo para eles verem. Não volteis a olhar para aquele lado. Possivelmente vi mais do que vós. Sei o que ali está. O que temos de fazer é levar a nossa gente para casa sem lhes estragar o dia. Agora, vinde comigo ver carregar o carro. Sois capaz, já?

Como resposta, Meriet agarrou-lhe os ombros, respirou fundo e afastou-se resolutamente do braço magro que ainda o segurava.

- Estou pronto! - disse ele numa voz que era uma boa tentativa de imitação do tom jovial e prático com que os tinha chamado para a meda e atravessou o chão direito para se lançar com força no trabalho de lançar troncos para o carro.

Mark seguiu-o atento e, contra todas as tentações, conseguiu obedecer à sua própria ordem e não olhou nem uma vez para o que estava a descoberto por entre as cinzas. Mas olhou com cuidado, enquanto trabalhavam, para a orla da meda, onde notara uns pormenores que lhe davam que pensar. O que ele ia dizer a Meriet quando o ancinho puxou para fora aquela avalanche nunca foi dito.

Carregaram o carro e formaram uma pilha tão alta que não havia lugar para o rapaz sem dedos ir em cima na viagem de regresso. Meriet levou-o às costas, até os braços com que o garoto se agarrava à volta do pescoço ficarem frouxos com o sono e ele o pôr num dos braços, de modo que a cabeça cor de estopa do rapaz podia pender no ombro. A carga no braço era leve e aquecia-o de encontro ao coração. O que ele carregava sem ser visto, pensou Mark observando-o com uma atenção reticente, era muito mais pesado e frio como gelo. Mas a calma de Meriet continuava firme como uma rocha. O único momento de recuo tinha passado e não haveria mais lapsos destes.

Em Saint Giles, Meriet levou o rapaz para dentro e voltou para ajudar a empurrar os carros pela elevação até ao celeiro, onde a lenha ia ser armazenada sob as traves baixas, para ser serrada e cortada mais tarde, à medida que fosse necessário.

- Vou agora a Shrewsbury - disse Mark, depois de ter contado todos os seus protegidos e de os deixar no ninho em segurança, cansados e felizes pelo passeio bem sucedido.

- Sim - disse Meriet, sem se voltar da resma que estava a construir. - Sei que alguém o tem de fazer.

- Ficai aqui com eles. Voltarei logo que possa.

- Eu sei - disse Meriet. - Eu fico com eles. Estão muito felizes. Foi um belo dia.

O Irmão Mark hesitou, quando chegou à portaria da abadia, porque o seu instinto natural era ir contar tudo primeiro ao Irmão Cadfael. Era óbvio que agora a sua missão era ir falar com os oficiais da lei do rei no comando, mas, por outro lado, fora Cadfael quem lhe confiara Meriet e tinha a certeza que a descoberta horrível na meda de carvão estava de algum modo ligada com Meriet. O choque que ele sentira era autêntico, mas extremo, a reacção fora intensa de mais para não se tratar de qualquer coisa pessoal. Não sabia, não sonhara, o que iria encontrar, mas, fora de qualquer dúvida, soube-o quando o encontrou.

Enquanto Mark andava para cá e para lá, indeciso, no arco da portaria, o Irmão Cadfael, que fora enviado antes das Vésperas a casa de um velho que tinha um mal no peito, veio por detrás dele e tocou-lhe no ombro ao de leve. Voltando-se para ver a clemência do céu oferecer-lhe aparentemente a resposta ao seu problema, Mark agarrou-lhe a manga e suplicou-lhe:

- Cadfael, vinde comigo falar com Hugh Beringar. Encontrámos uma coisa horrível na Floresta Grande, um assunto para ele, de certeza. Estava precisamente a rezar para vos encontrar. Meriet estava comigo... isto está de alguma maneira relacionado com Meriet...

Cadfael fixou-lhe um longo olhar, pegou-lhe no braço e fê-lo voltar em direcção à cidade.

- Então vinde e poupai as energias para contar a história só uma vez. Voltei mais cedo do que me esperam, posso alongar a minha autorização uma ou duas horas, por vós e por Meriet.

Foram assim dois a chegar à casa nas proximidades de Saint Mary, onde Hugh instalara a família. Por sorte, chegara a casa antes da ceia e livre das tarefas do dia. Recebeu-os calorosamente e teve inteligência de não oferecer ao Irmão Mark pausa ou bebidas antes de ele ter tirado do peito toda a ansiedade. O que fez com palavras muito escolhidas e comedidas. Passou meticulosamente de facto para facto, como se pisasse pedras seguras através duma corrente perigosa.

- Chamei-o para o pé de mim porque tinha visto aquilo no lado daquela meda onde eu estava e, onde a pilha estava queimada, o vento tinha levantado pó de cinza até às árvores e os ramos próximos das árvores estavam chamuscados, as folhas castanhas e secas. Tencionava chamar-lhe a atenção para estas coisas, porque esse fogo era recente. As folhas que estavam manchadas de castanho eram folhas deste ano, a cinza não tinha muitas semanas porque ainda estava cinzenta. E ele veio prontamente, mas, quando veio, agarrou o ancinho e arrastou-o com ele para deitar abaixo a parte de cima da meda, onde não tinha ardido. Por isso, deitou abaixo uma grande quantidade de lenha, terra e folhas, e aquela coisa rolou por entre as coisas, aos nossos pés.

- Vistes isso duma maneira clara - disse Hugh devagar -, contai-nos da mesma maneira clara.

- É um sapato de montar dos que se usam agora, de pé longo - disse Mark com firmeza -, enrugado, seco e torcido pelo fogo, mas não consumido e dentro dele um osso de perna de homem, dentro das cinzas das calças.

- Não tendes dúvidas - disse Hugh, olhando-o com simpatia.

- Nenhumas. Vi a sair da pilha o osso redondo do joelho do qual saíra a canela - disse o Irmão Mark, pálido mas tranquilo. -Acontece que o vi separar-se. Tenho a certeza de que o homem está ali. O fogo rompeu do outro lado, um vento forte guiou-se e deixou o homem, pode muito bem ser, quase para um funeral cristão. Pelo menos, podemos ir buscar-lhe os ossos.

- Isso será feito com todo o respeito - disse Hugh -, se for como dizeis. Continuai, tendes mais para contar. O Irmão Meriet viu o que vós vistes. E então?

- Ficou extremamente impressionado e chocado. Tinha estado a contar que ia ali em criança e ajudava o velho carvoeiro. Tenho a certeza que não sabia nada de pior do que aquilo que se lembrava. Primeiro, disse-lhe que devíamos levar a nossa gente para casa sem os perturbar e ele desempenhar o seu papel com coragem - disse o Irmão Mark. - Deixámos tudo tal e qual como encontrámos... ou como, sem querer, lhe mexemos. De manhã, com luz, poderei mostrar-lhes o local.

- Acho que seria melhor - disse Hugh -, que fosse Meriet Aspley a fazê-lo. Mas agora que nos contastes o que tínheis a contar, podeis sentar-vos comigo e comer e beber um pouco, enquanto falamos sobre isto.

O Irmão Mark sentou-se obedientemente, dando um suspiro de alívio por ter tirado o fardo do que sabia. Grato pela mais humilde hospitalidade não ficava atemorizado pela mais nobre e, como não era orgulhoso, não sabia ser servil. Quando a própria Aline trouxe carne e vinho para si e para Cadfael, recebeu-os com alegria e simplicidade, tal como os santos aceitam esmolas, num perpétuo espanto e prazer, numa perpétua serenidade.

- Dissestes - pressionou Hugh com delicadeza quando serviu o vinho - que tínheis razão para acreditar que o fogo era desta estação, por causa da cinza espalhada e das folhas das árvores chamuscadas, e não do ano anterior, o que eu aceito. Tínheis outras razões para assim pensar?

- Tinha - disse Mark com simplicidade -, pois embora tenhamos trazido para casa, para nosso aproveitamento, uma boa pilha de mato de boa qualidade, no entanto, não longe dessa havia duas outras marcas na erva, amassada e mais verde do que aquela que agora deixámos, mas ainda bem visível, que penso terem sido esvaziadas quando a lenha foi usada para esta meda. Meriet disse-me que os troncos têm de ficar a secar. Estes devem ter ficado mais de um ano, ressequidos de mais para o fim para que iam servir. Não ficou ninguém a vigiar a queima, e a lenha demasiado seca incendiou-se e ficou em chamas. Podereis ver as marcas onde a lenha está. Podereis melhor do que eu calcular há quanto tempo foi mexida.

- Disso duvido - disse Hugh a sorrir -, pois parece que vós o fizestes muitíssimo bem. Mas amanhã veremos. Há aqueles que são capazes de descobrir coisas por um cabelo, pelas tocas dos insectos e das aranhas e pelas achas que existem à volta da madeira. Mas sentai-vos e estai à vontade um bocado antes de voltardes, porque não há nada que se possa fazer antes de amanhecer.

O Irmão Mark sentou-se, aliviado, e comeu com um prazer espantoso o empadão de caça que Aline lhe trouxe. Ela achava-o subalimentado e preocupou-se por o ver tão magro e era natural que estivesse subalimentado por se esquecer de comer enquanto se preocupava com os outros. No Irmão Mark existia uma grande dose de bondade, e Aline reconheceu-o.

- Amanhã de manhã - disse Hugh, quando Mark se levantou para sair e regressar aos seus deveres -, estarei em Saint Giles com os meus homens, logo depois da Hora Prima. Podeis dizer ao Irmão Meriet que lhe vou pedir para me acompanhar e me mostrar o lugar.

Isso não deveria causar ansiedade a um homem inocente, visto ter sido ele quem em primeiro lugar fez a descoberta, mas podia dar uma noite muito desagradável para alguém não totalmente inocente, pelo menos alguém que sabia mais do que devia. Mark não podia contestar a ameaça indirecta, visto ele próprio ter pensado o mesmo. Mas, ao partir, expressou de novo o seu mais forte argumento em defesa de Meriet.

- Foi ele quem nos levou para o local, por razões boas e sensatas, por ver que o que nós precisávamos era de lenha para queimar. Se ele soubesse o que ali ia encontrar, nunca nos teria deixado aproximar.

- Isso será levado em conta - disse Hugh com gravidade. - No entanto, penso que vós achastes o seu horror quando descobriu um homem morto um tanto mais que o normal. Afinal, vós sois pouco mais velho do que ele e não tivésteis mais experiência de crime e violência do que ele. E não tenho dúvidas que estáveis abalado até à alma. No entanto, não da maneira que ele estava. Acredito que ele não soubesse nada deste enterro fora-da-lei, mas a sua descoberta significou mais para ele, algo pior, do que para vós. Acredito que ele não soubesse que o corpo tinha sido assim abandonado. No entanto, poderia saber que havia um corpo que precisava de ser escondido em segredo e reconheceu-o quando o viu?

- Isso é possível - disse Mark com simplicidade. - Cabe a vós examinar todas essas coisas. - E saiu e foi sozinho de regresso a Saint Giles.

Quando Mark saiu, Cadfael disse:

- Ainda não se sabe quem ou o que poderá ser este homem morto. Poderá não ter nada a ver com Meriet, com Peter Clemence ou com o cavalo à solta pelo pântano. Um homem vivo que desaparece, um homem morto que é encontrado... não é preciso que sejam um único e o mesmo. Há todas as razões para duvidar. O cavalo a mais de vinte milhas ao Norte, a paragem da última noite do cavaleiro a quatro milhas a Sueste e esta meda a arder a outras quatro milhas a Sudoeste daqui. Tereis muita dificuldade a ligar tudo isto em sequência e a fazer sentido. Ele saiu de Aspley e foi para Norte, e isso é certo porque há várias testemunhas, e era um homem vivo. O que estaria ele a fazer, não a Norte, mas a Sul de Aspley? E o cavalo a milhas, no Norte e no caminho certo que ele devia tomar, com excepção de um pequeno desvio no fim?

- Não sei, mas serei mais feliz - afirmou Hugh - se afinal isto for um outro viajante qualquer, vítima de ladrões algures e com nada a ver com Clemence, que pode neste momento estar bem fundo nos charcos de turfa. Mas tendes conhecimentos de algum outro desaparecido nesta região? E outra coisa, Cadfael, será que ladrões vulgares lhe deixariam os sapatos de montar? Ou as calças? Um homem nu não fica com nada que possa trazer benefício aos assassinos e com nada através do qual possa ser reconhecido com facilidade: duas boas razões para o despirem. Além disso, dado que usava sapatos de montar de ponta comprida, de certeza que não ia longe a pé. Nenhum homem no seu perfeito juízo os usaria para andar.

Um cavaleiro sem cavalo com sela sem cavaleiro, o que há de espantoso se o espírito os associa?

- Não há nenhuma vantagem em estar a maçar a cabeça-disse Cadfael com um suspiro - até vós verdes o local e reunir o que lá houver para reunir.

- Nós, velho amigo! Quero que me acompanheis e creio que o Abade Radulfus me dará licença para vos trazer comigo. Vós tendes mais conhecimentos do que eu sobre homens mortos, sobre há quanto tempo estão mortos e como morreram. Além disso, ele vai querer que vigie tudo o que está relacionado com Saint Giles. E quem melhor que vós? Já estais mergulhado até à cintura nisto tudo, tendes de mergulhar até ao fundo ou ficar de fora.

- Pelos meus pecados! - disse Cadfael. - Mas eu vou convosco com prazer. Seja qual for o demónio que possui o jovem Meriet, também me está a atormentar por contágio e quero exorcizá-lo a todo o custo.

Meriet esperava-os, quando no dia seguinte o vieram buscar um sargento e dois soldados, armados de alavancas e pás e uma peneira para procurar nas cinzas qualquer vestígio e todos os ossos. Na névoa fraca de uma manhã calma, Meriet olhava para todos estes preparativos com um rosto calmo como uma rocha, pronto para tudo o que aparecesse e disse apenas:

- As ferramentas ainda lá estão na cabana. Eu tirei de lá o ancinho, Mark deve ter-vos contado. - Olhou para Cadfael, com o mais leve sorriso nos lábios. - O Irmão Mark disse que eu ia ser necessário. Ainda bem que ele próprio não precisa de voltar lá. - A voz mantinha o mesmo controlo do rosto, fosse o que fosse que hoje lhe aparecesse pela frente não o tomaria de surpresa.

Tinham trazido um cavalo para ele, porque o tempo contava. Montou com ligeireza, talvez o único impulso de prazer que nesse dia teria, e guiou os outros pela estrada abaixo. Não olhou para o lado, quando passaram pelo desvio para a sua própria casa, mas voltou para o outro lado para o trilho largo, e dentro de meia hora tinha-os conduzido para a concavidade baixa da meda de carvão. Uma névoa azulada elevava-se sobre o monte desfeito, quando Hugh e Cadfael foram a pé à volta da orla e pararam onde estava o tronco, que não era tronco nenhum caído por entre as cinzas.

A fivela manchada da tira de cabedal era de prata. O sapato fora elegante e caro. Farripas de tecido queimado pendiam do osso quase sem carne.

Hugh olhou do pé até ao joelho e continuou a olhar por sobre a lenha exposta à procura da articulação de que se tinha separado.

- Devia estar ali, nesta posição. Quem o pôs ali não abriu uma pilha abandonada, mas construiu uma nova, com ele no centro. Alguém que conhecia o método, embora talvez não muito bem. É melhor tirar isto com cuidado. Podeis tirar a terra e as folhas - disse aos seus homens -, mas quando chegarem aos troncos vamos tirá-los um a um, quando estiverem inteiros. Duvido que haja mais do que ossos, mas quero tudo o que resta dele.

Começaram a trabalhar, afastando a cobertura do lado que não estava queimado, e Cadfael deu a volta ao monte para ver de que lado deveria ter soprado o vento destruidor. Perto do chão, um buraco pequeno, em arco, mostrava a base da pilha. Dobrou-se para olhar mais de perto e meteu uma mão por debaixo das folhas penduradas que o obscureciam. O buraco continuava para dentro, engolindo-lhe o braço até ao cotovelo. Tinha sido feito ao mesmo tempo que a meda fora construída. Voltou para onde Hugh estava de pé a observar.

- Conheciam o método, de certeza. Há uma abertura construída no lado do vento para deixar entrar o ar. A meda foi feita para arder completamente. Mas exageraram. Deviam ter mantido a abertura tapada até a meda estar a arder bem e depois abri-la e deixá-la. Soprou de mais e deixou a parte na direcção do vento meio chamuscada enquanto que o resto se incendiou com chamas. Estas coisas têm de ser vigiadas de dia e de noite.

Merit mantinha-se à parte, perto de onde tinham prendido os cavalos, e observava esta actividade com um rosto impassível. Viu Hugh atravessar para a berma da arena, onde três rectângulos mais claros e lisos na relva mostravam onde a lenha estivera empilhada a secar. Dois deles estavam mais verdes que o terceiro, tal como Mark dissera, onde nova erva tinha rompido a camada de erva morta e se tinha erguido para a luz. O terceiro, aquele que fornecera tanta lenha para os habitantes de Saint Giles, estava pálido e acamado.

- Quanto tempo foi necessário para permitir este novo crescimento nesta época do ano? - perguntou Hugh.

Cadfael ponderou, escavou com o dedo do pé no tapete fofo da erva antiga que estava por debaixo.

- Uma questão de oito a dez semanas, talvez. É difícil dizer. E a cinza espalhada pelo vento pode ter o mesmo tempo. Mark tinha razão, o calor atingiu as árvores. Se este chão estivesse mais despido e fosse mais duro, o fogo poderia tê-las atingido também, mas não havia uma rede forte de raízes e manta de folhas para o conduzir pelo terreno.

Voltaram para onde a cobertura de terra e folhas fora afastada e mostrava a superfície recortada de troncos, enegrecidos mas mantendo a forma. O sargento e os homens puseram de lado as ferramentas e começaram a trabalhar com as mãos, erguendo os troncos um a um e pondo-os de lado, fora do caminho. Um trabalho lento e durante o qual Meriet ficou de pé, a olhar, sem se mexer e mudo.

O morto apareceu no seu caixão de pedaços de lenha, depois de mais de duas horas de trabalho. Ficara perto da chaminé central a sota-vento e o fogo fora suficientemente intenso para queimar tudo, excepto uns fiapos das roupas, mas passara rápido de mais para tirar toda a carne dos ossos ou mesmo o cabelo da cabeça. Com todo o cuidado, retiraram todos os pedaços de carvão, cinza e madeira meio consumida, mas não o conseguiram manter intacto. A queda de parte da meda tinha-lhe separado as articulações e tinha-o separado em pedaços.

Tiveram de lhe reunir os ossos o melhor que puderam e colocá-los sobre a relva até terem, se não o homem completo, tudo excepto pequenos ossos do dedo ou do pulso que teriam de ser peneirados das cinzas. O crânio mantinha ainda, sobre os restos enegrecidos da cara, a coroa nua rodeada de alguns tufos e caracóis de cabelo castanho, cortado curto.

Mas havia outras coisas para lhe pôr ao lado. O metal é muito durável. As fivelas de prata dos sapatos, enegrecidas como estavam, mantinham a forma que um bom artífice lhes tinha dado. Havia a metade retorcida de um cinto de cabedal, com outra fivela de prata, grande e trabalhada e vestígios de ornamentos de prata no cabedal. Havia uma corrente partida de prata com uma cruz cravada com o que deviam ser seguramente pedras semipreciosas, embora agora estivessem enegrecidas e cobertas de sujidade. E um dos homens, a peneirar cinza junto do corpo, encontrou um osso de dedo com o anel que se mantinha largo à sua volta enquanto a carne ardera. O anel tinha uma grande pedra negra com um desenho gravado que a cinza não deixava distinguir, mas que parecia uma cruz decorativa. Havia também algo que se conservara dentro da área das costelas: a ponta da lança que o matara.

Hugh ficou muito tempo de pé a olhar para os restos de um homem e a sua morte com uma expressão austera. Depois, voltou-se para onde Meriet continuava, rígido e parado na orla da inclinação.

- Vinde aqui, vinde e vede se não nos podeis ajudar mais. Precisamos de um nome para este homem assassinado. Vinde a vede se por acaso o conheceis.

Meriet foi, rosto cor de marfim, aproximou-se tal como lhe tinham dito para fazer e olhou para o que estava exposto. Cadfael afastou-se, mas não uma grande distância, e observou e ouviu. Hugh tinha não só o seu trabalho para fazer, como os seus sentidos torturados para vingar, e se havia alguma maldade na maneira como estava a tratar Meriet, pelo menos não deixava de ter um objectivo.

Porque agora poucas dúvidas existiam sobre a identidade deste homem, que estava na frente deles, e a corrente que o ligava a Meriet apertava-se.

- Observai - disse Hugh, com bastante gentileza e friamente - que usava tonsura, que o próprio cabelo era castanho e tinha a altura, pelo aspecto dos ossos, de um homem alto. Que idade achais que tinha, Cadfael?

- É um homem direito, sem nenhuma das deformações da idade avançada. Um homem jovem. Trinta, talvez. Duvido que tenha mais.

- E um prelado - continuou Hugh de modo impiedoso.

- Pelo anel, a cruz e a tonsura, sim, um prelado.

- Compreendeis o nosso raciocínio, Irmão Meriet? Tendes conhecimento de um homem assim perdido nestas redondezas?

Meriet continuou a olhar para os restos silenciosos do que fora um homem. Tinha os olhos enormes numa cara do mais pálido marfim. Disse numa voz baixa:

- Veja o vosso raciocínio. Não conheço o homem. Como pode alguém conhecê-lo?

- Não pela cara, de certeza. Mas pelos seus atavios, talvez? A cruz, o anel, mesmo as fivelas... alguém pode recordar-se deles, se um prelado desta idade e assim adornado fez seu conhecimento? Um convidado, digamos, em vossa casa?

Meriet ergueu os olhos com um breve e retraído clarão verde e disse:

- Compreendo-vos. Houve um prelado que veio e ficou a noite em casa do meu pai, há semanas, antes de eu vir para o convento. Mas esse continuou a viagem para Norte na manhã seguinte, não para aqui. Como podia ele estar aqui? E como posso eu, ou vós, ver a diferença entre um prelado e outro quando eles ficam reduzidos a isto?

- Não pela cruz? O anel? Se podeis dizer com certeza que este não é o homem - disse Hugh de um modo insinuante -, ajudais-me muito.

- Em casa de meu pai não tinha tanta importância que ficasse perto do hóspede de honra - disse Meriet com uma amargura gelada. - Pus-lhe o cavalo no estábulo... e isso testemunhei. Em relação às suas jóias não posso jurar.

- Haverá outros que podem - disse Hugh rigidamente. - E quanto ao cavalo, sim, vi como se estimam um ao outro. E verdade que dissésteis que tendes jeito para os cavalos. Se fosse aconselhável deixar a montada a uma distância de umas vinte milhas ou mais de onde o cavaleiro encontrou a morte, quem melhor se poderia encarregar desse assunto? A cavalo ou a guiá-lo, ele não vos poria qualquer problema.

- Só o tive nas minhas mãos uma noite e na manhã seguinte - disse Meriet. - Não o voltei a ver de novo, até vós o trazerdes para a abadia, senhor. - E, apesar de uma cor irada lhe ter subido para a testa, a voz continuava segura e firme, e a irritação controlada.

- Bem, vamos primeiro encontrar um nome para o homem morto - disse Hugh e voltou-se para mais uma vez dar a volta à meda desmantelada, procurando no terreno em desordem e sujo algum pormenor que pudesse ter algum significado. Ponderou o que restava do cinto de cabedal, tudo excepto a ponta da fivela que ardera, o resto chamuscado com o tamanho apenas suficiente para chegar à anca esquerda de um homem magro. - Fosse quem fosse, trazia uma espada ou um punhal, aqui está a alça onde ficava pendurado: um punhal, é elegante de mais e leva de mais para uma espada. Mas não há sinal do punhal. Devia estar por aqui, algures no meio dos detritos.

Procuraram no meio dos restos durante mais uma hora, mas não encontraram mais nada do vestuário ou de metal. Quando teve a certeza de que não havia nada mais que se pudesse encontrar, Hugh mandou o grupo afastar-se. Embrulharam os ossos, o anel e a cruz com todo o respeito num lençol de linho e depois num cobertor e levaram-nos para Saint Giles. Aí, Meriet desmontou, mas ficou parado em silêncio para saber o que o juiz deputado pretendia fazer com ele.

- Ficareis aqui no hospício? - perguntou Hugh, olhando-o com imparcialidade. - O vosso abade designou-vos para este serviço?

- Sim, senhor. Até ser chamado para a abadia, estarei aqui. - Isto foi dito com ênfase, não apenas a constatar um facto, mas acentuando que se sentia como seja tivesse tomado votos e que não só o seu dever de obediências mas a sua própria vontade o manteria aqui.

- Bom! Então sabemos onde vos poderemos encontrar em caso de necessidade. Muito bem, continuai o vosso trabalho sem impedimentos, mas sujeito à autoridade do abade, mantende-vos também à minha disposição.

- Assim farei, senhor. Assim faço - disse Meriet e voltou-se com uma certa dignidade sombria e afastou-se pela inclinação até ao portão na sebe.

- E agora, penso que - suspirou Hugh, continuando a andar a cavalo para a Porta Principal ao lado de Cadfael -, deveis estar zangado comigo por eu ter sido duro com o vosso novato. Embora tenha de vos elogiar por vos terdes mantido calado com tanta generosidade.

- Não - disse Cadfael honestidade -, ele precisa de ser aguilhoado. E não há que hesitar, a suspeita enrola-se à volta dele como teias de aranha num arbusto de Outono.

- É o homem e ele sabe que é. Soube-o logo, quando tirou o sapato com o pé lá dentro. Isso e não o simples facto da morte horrível de um desconhecido qualquer foi o que chocou. Ele sabia, de certeza que sabia, que Peter Clemence estava morto, mas também quase de certeza que não sabia o que tinha acontecido ao corpo. Conseguis acompanhar-me?

- Sim - disse Cadfael com tristeza. - Foi realmente uma ironia guiá-los directamente ao local, quando estava apenas a pensar arranjar lenha para esta pobre gente se aquecer no Inverno. Que, se o meu nariz para o tempo não me engana, está à porta.

O ar tinha-se realmente tornado gelado e calmo e o céu fechava-se sobre o mundo numa nuvem de chumbo. O Inverno tinha demorado, mas estava perto.

- Em primeiro lugar - continuou Hugh, voltando ao assunto - temos de dar um nome àqueles ossos. Toda a gente da casa de Aspley viu o homem, passou um serão na sua companhia, devem todos conhecer-lhe as jóias, mesmo danificadas como estão agora.

- Eu não faria isso - disse Cadfael muito sério. - Nunca digais uma palavra de inquisição a nenhum deles, deixai-os acalmarem-se Deixai que se saiba que encontrámos um homem assassinado, mas nada mais. Se revelais coisas a mais, então o culpado sairá fora do nosso alcance. Deixai-o pensar que está tudo bem e deixar^ de estar à defesa. Não vos esquecestes que o casamento do rapaz mais velho está marcado para vinte e cinco deste mês, e dois dias antes todos eles, os vizinhos e os amigos, se reúnem na nossa hospedaria? Deixai-os vir e tereis toda a gente na mão. Nessa altura, é natural que tenhamos os meios para separar a verdade da mentira. E, quanto a provar que é verdadeiramente Peter Clemence, não que eu tenha dúvidas, não me dissésteis que o Cónego Eluard tenciona vir aqui quando vier de Lincoln e deixar o rei ir sem ele para Westminster?

- Sim, foi o que ele disse que faria. Está ansioso por notícias para levar ao Bispo de Winchester, mas as novidades que temos não são agradáveis.

- Se Stephen quer passar o Natal em Londres, então é natural que o Cónego Eluard chegue aqui antes do grupo do casamento. Ele conhecia bem Clemence, eram ambos muito próximos do Bispo Henry. Será a vossa melhor testemunha.

- Bem, mais duas semanas não irão prejudicar Peter Clemence agora - concordou Hugh. - Mas notastes o mais estranho em tudo isto? Não lhe roubaram nada, foi tudo queimado juntamente com ele. E, no entanto, mais de um homem, mais de dois, trabalharam para construir aquela pira. Não diríeis que esteve ali presente uma voz de autoridade que não permitiu o roubo, embora fosse obrigado a esconder o assassínio? E aqueles que receberam essas ordens temiam-no, pelo menos respeitavam-no, mais do que cobiçavam anéis e cruzes.

Era verdade. Quem que que fosse que tinha determinado dar aquele fim a Peter Clemence tinha claramente posto fora de questão que a morte pudesse ser da autoria de simples assaltantes e ladrões. Um erro, se tencionava afastar a suspeita de si próprio e de alguém da sua família. Essa honestidade rígida tivera para ele mais significado do que a segurança. O assassínio era algo que poderia compreender, se não mesmo tolerar, mas não o roubo a um morto.

 

Nessa noite, a geada apareceu anunciando uma semana de tempo frio. Não caiu neve, mas um vento gelado de leste varreu as colinas, os pássaros aventuraram-se a ir cada vez mais próximo das casas das pessoas para apanhar restos de comida e até as raposas dos bosques apareceram a vaguear uma milha mais junto à cidade. E o mesmo fez um predador humano desconhecido que andava a roubar uma ou outra galinha em sítios mais afastados e de vez em quando um pão de uma cozinha. Ao oficial de roubos da cidade começaram a chegar queixas dos armazéns fora das muralhas e, ao castelo, de criação roubada de casas na orla da Porta Principal, que não era obra nem de raposas nem de outros animais. Um dos lenhadores da Floresta Grande veio com a história de um veado estripado há cerca de um mês, com provas evidentes de que o tratamento possuía uma boa faca. Agora, o frio estava a empurrar para mais próximo da cidade alguém que vivia foragido e que procurava abrigo no calor de um estábulo ou de um celeiro para fugir ao frio da floresta.

O Rei Stephen detivera o seu juiz em Shropshire nesse Outono, depois do habitual relato pela festa de S. Miguel, e levara-o consigo para as visitas ao conde de Chester e a William de Roumare em Lincoln, de modo que este assunto do ladrão de capoeiras todas as ofensas contra a paz do rei e a boa ordem ficavam nas mãos de Hugh.

- Ainda bem! - disse Hugh - Porque preferia ficar com o assunto de Clemence nas minhas mãos sem qualquer interferência, agora que já está neste ponto.

Estava bem consciente de que não lhe restava muito tempo para o resolver sozinho, pois se o rei tencionava estar de regresso a West-minster para o Natal, então o juiz deveria estar de volta ao seu condado dentro de dias. E as actividades deste homem pareciam estar centradas na orla leste da floresta, que já estava a interessar Hugh por razões muito diferentes.

Num país assolado pela guerra civil, e por isso com dificuldades em manter a lei comum e a ordem, tudo o que não tinha uma explicação lógica era suposto ser da autoria de criminosos a viver foragidos. Mas, por tudo isso, de vez em quando a explicação mais simples acaba por ser a verdadeira. Em relação a este caso, Hugh não esperava isso e ficou grandemente surpreendido quando um dos seus sargentos trouxe para as masmorras do castelo, em triunfo, o ladrão que estava a viver à custa dos habitantes menos cautelosos da Porta Principal. Não por causa do homem em si, que era o que se esperava, mas por causa do punhal e bainha que foram encontrados na sua posse e que lhe forma entregues como prova dos seus crimes. Havia até vestígios de sangue seco, sem dúvida do frango ou ganso de alguém, na lâmina entalhada.

Era um punhal muito elegante, com pedras preciosas não lapidadas no punho, com aquela forma para ser confortável para a mão, e a bainha de metal coberta por cabedal trabalhado fora enegrecida e descolorida pelo fogo, o cabedal esfiapado até metade do comprimento. Uma ponta de uma delgada tira de cabedal ainda estava presa. Hugh vira a alça de onde esta, ou uma semelhante, estivera pendurada.

No espaço gélido da cela interior esticou a cabeça para a antecâmara da sala e disse:

- Tragam-no para aqui. - Havia ali uma boa fogueira e um banco onde se podia sentar. -Tirem-lhe as correntes - disse Hugh depois de lançar um olhar a um homem grande, mas fisicamente arruinado -, e deixem-no sentar-se ao pé do fogo. Podem ficar junto dele, mas duvido que cause algum problema.

O prisioneiro poderia ser uma figura impressionante, se ainda tivesse carne e força nos ossos grandes e compridos, mas estava minguado por fome e coberto apenas com trapos nesta altura do Inverno. Não podia ser velho, os olhos e o cabelo eram de um homem novo, os ossos, embora espetados e sem carne, tinham movimento de juventude. Junto da lareira, aquecido depois de muito frio, corou e dilatou-se para um tamanho aproximado ao seu habitual. Mas a cara, de olhos azuis, face encovadas, fixava Hugh com terror. Era como um animal selvagem numa armadilha, apanhado com firmeza, à espera de um golpe. Esfregava os pulsos sem parar, acabados de se soltarem das pesadas correntes.

- Como vos chamais? - perguntou Hugh com tanta suavidade que a criatura olhou-o fixamente, gelado, com receio de compreender um tal tom.

- Como é que as pessoas vos chamam? - repetiu Hugh com paciência.

- Harald, meu senhor. Chamo-me Harald. - O vulto enorme produziu um som esquelético, profundo, mas seco e longínquo. Uma

tosse frequente entrecortava-lhe a fala. Tinha o nome que outrora fora de um rei e que vivia na memória dos homens velhos que ainda eram vivos, homens com um tom de louro-pálido como o seu.

- Contai-me como é que isto vos foi parar às mãos, Harald. É a arma de um homem rico, como deveis saber. Reparai no trabalho de joalheiro que ostenta. Onde encontrastes uma coisa assim?

- Não a roubei - disse o desgraçado a tremer. - Juro que não! Atiraram-no fora, ninguém o queria...

- Onde é que o encontrastes? - perguntou Hugh, mostrando-se mais duro.

- Na floresta, meu senhor. Há um local onde fazem carvão. - Descreveu-o, a gaguejar e a pestanejar, falando para afastar de si a culpa. - Havia lá um fogo extinto, às vezes tirava de lá lenha, mas tinha muito medo de estar tão perto da estrada. A face estava no meio das cinzas, perdida e abandonada. Ninguém a queria. E eu precisava de uma faca... - Tremia ao olhar o rosto impassível de Hugh com olhos azuis assustados. - Não roubei... só roubei para me manter vivo, meu senhor, juro.

Não tivera grande sucesso com o ladrão, pois mal conseguira manter-se-vivo. Hugh olhava-o com um interesse pouco evidente e sem Imuita severidade.

- Há quanto tempo vos manteis a viver foragido?

- Há uns quatro meses, meu senhor. Mas nunca usei violência nem roubei nada a não ser comida. Precisava de uma faca para caçar...

"Ah, bom", pensou Hugh, "o rei pode dispensar um veado de vez em quando. Este pobre diabo precisa mais dele do que Stephen, e Stephen dar-lhe-ia um de boa vontade." Em voz alta disse:

- Uma vida dura para um homem, no Inverno. Ficareis melhor dentro de casa durante algum tempo, Harald, connosco e a comer com regularidade, embora não possa ser veado. - Voltou-se para o sargento que permanecia de pé e alerta. - Fechai-o na cela. Dai-lhe cobertores para se tapar. E vede se lhe dão comida, mas não muita no início, se não ele devora-a e morre aqui. - Sabia o que tinha acontecido com os desgraçados em fuga da tempestade de Worcester, no Inverno anterior. Estavam esfomeados e comeram tanto quando lhes deram abrigo, que morreram. - E tende cuidado com ele! - disse Hugh quando o sargento puxou o prisioneiro. - Ele não será capaz de sobreviver a maus tratos e eu quero-o vivo. Compreendeis?

O sargento entendeu isto como sendo este o assassino procurado e que tinha de ser mantido vivo para poder ser julgado e condenado à morte. Sorriu cinicamente e diminuiu a força com que agarrara o ombro ossudo.

- Percebo o que quereis dizer, meu senhor.

Saíram, carcereiro e prisioneiro, para uma cela fechada com toda a segurança onde o criminoso Harald, quase de certeza um vilão em fuga, e provavelmente por uma boa razão, podia pelo menos estar mais quente do que lá fora na floresta e ter as refeições, por más que fossem, postas na sua frente sem ter de as procurar.

Hugh terminou os assuntos do dia do castelo e foi depois procurar o Irmão Cadfael na sua oficina, ocupado a ferver uma mistura aromática para aliviar a garganta dos idosos nos primeiros frios do Inverno. Hugh sentou-se no banco do costume contra a parede de madeira e aceitou uma taça de um dos melhores vinhos de Cadfael, guardado para os seus conhecimentos mais íntimos.

- Bem, temos o nosso assassino em segurança, bem fechado à chave - anunciou impassível e contou o que acontecera. Cadfael ouviu com atenção, embora parecesse estar totalmente concentrado no xarope que fervia.

- Que disparate! - disse então com desprezo. A poção estava a ferver de mais e ele afastou-a para o lado.

- E claro que é um disparate - concordou Hugh com entusiasmo. -Um pobre desgraçado que não tem um trapo para se tapar nem uma côdea para comer, matava um homem e deixava-lhe todos os bens de valor, ou mesmo as roupas? Devem ser os dois mais ou menos da mesma altura, ter-lhe-ia despido tudo e ficaria bem satisfeito com tais roupas. E meter o indivíduo sozinho dentro da meda de lenha? Mesmo que soubesse como se fazem essas queimas e eu duvido que saiba... Não, não é de acreditar. Encontrou o punhal, tal como diz. O que temos aqui é um pobre diabo obrigado a ir demasiado longe por senhor cruel de quem é obrigado a fugir. E tímido de mais ou convencido de mais que o senhor o perseguira, para se arriscar a ir à cidade procurar trabalho. Tem andado em fuga há quatro meses, a roubar a comida que consegue onde quer que consiga.

- Parece que vedes tudo com muita clareza - disse Cadfael, ainda a olhar para a poção, embora esta começasse a assentar na panela, com uns ruídos suaves como se fossem soluços. - Que quereis de mim?

- O meu homem tem tosse e uma ferida infectada no braço, penso que seja uma dentada de cão, de qualquer sítio onde roubou alguma galinha. Vinde lá e curai-o e vede se conseguis que vos diga alguma coisa: de onde vem, quem é o senhor, qual a profissão. Nós podemos empregar bons artífices de todos os géneros na cidade, como sabeis, e ficámos com vários, para nosso benefício e deles também. Este pode ser outro caso.

- Farei isso com prazer - disse Cadfael e virou-se para olhar para o amigo com olhos perspicazes. - E que tem ele para vos oferecer em troca de uma refeição e de uma cama? E talvez algumas roupas, se tem o vosso tamanho, que pela vossa descrição não tem. Era capaz de jurar que Peter Clemence era mais alto que vós bem um palmo.

- Este indivíduo com certeza que era - disse Hugh com um sorriso sarcástico. - Embora, de lado, até eu era capaz de fazer dois do que ele está agora. Mas vereis por vós próprio e sem dúvida ireis procurar em todos os vossos conhecidos, para ver se encontrais um homem com um corpo semelhante ao dele. Quanto ao que eu quero dele, além de evitar que morra de fome... o meu sargento já está a espalhar por aí que apanhámos um selvagem e tenho a certeza de que se vai esquecer do pormenor do punhal. Não há necessidade de assustar mais o pobre diabo do que ele já está acusando-o, mas se as pessoas lá fora souberem que o assassino está seguro atrás das grades melhor. Todos poderão respirar mais à vontade... em especial o assassino. E um homem que não está precavido, tal como dissestes, pode cometer um erro fatal.

Cadfael concordou.

Um fim tão agradável, ter um criminoso e um estranho, com quem ninguém se importava, ser acusado de todo o mal que fora feito naquele local... e ainda faltava uma semana para se reunir o grupo do casamento, com todos os espíritos descansados.

- Porque aquele vosso rapaz teimoso de Saint Giles-disse Hugh muito sério - sabe o que aconteceu a Peter Clemence, quer tenha tido a ver com isso ou não.

- Sabe - disse o irmão Cadfael, também com ar grave -, ou pensa que sabe.

Nessa mesma tarde, atravessou a cidade em direcção ao castelo, por Hugh ter pedido ao abade que tratasse também dos prisioneiros e criminosos. Encontrou o prisioneiro Harald numa cela que ao menos estava seca e tinha um banco de pedra onde se podia deitar e cobertores para tornar mais macio e embrulhar-se para se proteger do frio, o que era com certeza obra de Hugh. O abrir da porta sobre a sua solidão causou um instante de receio mudo, mas a visão de um hábito beneditino espantou-o e acalmou-o e pedirem-lhe para mostrar as feridas foi um espanto ainda maior, mas fê-lo sentir-se vulnerável e com alguma esperança. Depois de tão longa solidão, onde o som de uma voz só podia significar uma ameaça, o fugitivo recuperou a língua com hesitações, mas agradecia e terminou numa onda de palavras como ondas de lágrimas que o esgotaram. Depois de Cadfael o deixar, estendeu-se e descansou num sono profundo.

Cadfael foi falar com Hugh, antes de deixar o castelo, para lhe contar tudo.

- É ferrador. Diz que é um bom ferrador. E natural que seja verdade, é a única coisa de que se orgulha. Podeis empregar um ferrador? Eu pus-lhe uma loção na ferida e tratei-lhe outros golpes e arranhões que tem. Acho que ficará bem. Deixai-o comer pouco mas muitas vezes durante um ou dois dias, se não ficará doente. É de um lugar qualquer do Sul, perto de Gretton. Diz que o administrador do seu amo lhe levou a irmã contra vontade dela, e ele tentou vingá-la. Não teve sucesso como assassino - disse Cadfael -, e o violador fugiu com um golpe apenas. Deve ser melhor como ferrador. O seu amo queria matá-lo e ele fugiu... quem o pode culpar?

- Servo? - perguntou Hugh com resignação.

- De certeza.

- É procurado possivelmente por vingança. Bem, será uma busca em vão se o procurarem em Shrewsbury neste castelo. Podemos mantê-lo com uma certa segurança. E pensais que ele conta a verdade?

- Foi longe de mais para estar a mentir - disse Cadfael. - Mesmo que seja fácil mentir, penso que se trata de uma alma simples inclinada à verdade. Além disso, acredita no meu hábito. Ainda temos reputação, Hugh, Deus queira que a mereçamos.

- Ele está dentro de uma cidade com foral, se estiver na prisão- disse Hugh com satisfação -, e seria um senhor ousado se o tentasse tirar dum domínio do reino. Deixemos o seu senhor alegrar-se com a ideia de o pobre desgraçado estar preso por assassínio, se isso lhe dá prazer. Espalharemos então a notícia de termos prendido o nosso assassino e ficaremos à espera do que se segue.

A notícia espalhou-se, como se espalham as notícias: de bisbilhotice em bisbilhotice, os habitantes da cidade a fazer alarde do maior conhecimento em relação aos que ficam de fora, os que vinham ao mercado, à cidade ou à Porta Principal a levar a notícia para as aldeias e herdades. Como tinha sido espalhado aos quatro ventos o desaparecimento de Peter Clemence e depois a notícia do aparecimento do corpo na floresta, também o ar levou a novidade de o seu assassino estar já na prisão do castelo, apanhado na posse do punhal da vítima e acusado da sua morte. Não havia mais nenhum mistério para ser discutido nas tabernas e nas esquinas, não se esperavam mais novidades sensacionais. A cidade contentava-se com o que tinha e tirava daí o maior partido. As herdades mais distantes e isoladas tinham de esperar uma semana ou mais que a novidade chegasse.

O mais espantoso foi ter levado três dias a chegar a Saint Giles. Embora o hospício estivesse isolado, dado que os residentes estavam proibidos de se aproximarem da cidade por causa do contágio, de qualquer modo parecia que as notícias chegavam lá sempre quase tão rapidamente como na tagarelice das ruas. Mas desta vez o sistema funcionou com lentidão. O Irmão Cadfael tinha pensado muito em qual seria o efeito que a notícia teria em Meriet. Mas, quanto a isso, não havia nada a fazer além de esperar e ver. Não havia necessidade de trazer a história deliberadamente aos ouvidos do jovem, seria melhor deixá-la seguir o seu caminho através da conversa normal, como para todas as outras pessoas.

Assim, só quando dois criados laicos vieram entregar os pães destinados ao hospital e feitos na padaria da abadia, passados três dias, chegou a notícia da prisão do servo fugitivo Harald aos ouvidos de Meriet. Por acaso, foi ele que pegou no cesto enorme e descarregou o pão na dispensa, ajudado pelos criados da padaria que o tinham trazido. Compensaram o silêncio dele com muita tagarelice.

- Irão ter cada vez mais mendigos à procura de abrigo, irmão, se este frio continua assim a sério. Geadas fortes e vento de leste outra vez, não é altura para andar nas estradas.

Com boa educação, mas taciturno, Meriet concordou que o Inverno atacava os pobres com dureza.

- Não que sejam todos honestos e merecedores - disse o outro. - Às vezes, como se pode saber quem estamos a meter dentro de casa? Bandidos e vagabundos, tanto uns como outros, pois quem pode distingui-los?

- Há um que poderia ter estado aqui a semana passada que não vos faz falta nenhuma - disse o outro -, pois poderíeis ter uma garganta cortada durante a noite e ficar sem tudo o que tivesse valor. Mas, de qualquer modo, estais livre dele porque está fechado no castelo de Shrewsbury, até ser julgado por assassínio.

- Por ter morto um padre, nem mais! De certeza que vai pagar por isso com o próprio pescoço, mas isso é um preço baixo por um padre.

Meriet voltara-se, com uma atenção crispada, a olhá-los com o sobrolho franzido.

- Por ter morto um padre? Que padre? De quem estais a falar?

- O quê? Ainda não sabeis? O capelão do bispo de Winchester que foi encontrado na Floresta Grande. Um selvagem que tem andado a roubar casas fora da cidade matou-o. É o que eu estava a dizer, com o Inverno a vir tão duro, possivelmente tiveste-lo aqui a tremer e a mendigar à vossa porta, e com o punhal do próprio padre debaixo dos trapos, pronto para vos atacar.

- Deixai-me perceber o que dizeis - disse Meriet devagar. - Dizeis que um homem foi preso por essa morte? Preso e acusado?

- Preso, acusado, fechado na cadeira e agora vai ser enforcado - concordou o informador com jovialidade. - Com esse não precisais de vos preocupar, irmão.

- Que homem é esse? Como é que isso acontece? - perguntou Meriet ansioso.

Contaram-lhe, com todos os pormenores, felizes por encontrarem alguém que ainda não tinha ouvido a história.

- E nem valia a pena negar, porque ainda tinha o punhal que pertencia ao homem assassinado. Disse que o tinha encontrado no meio do carvão da meda, o que é uma boa história.

Olhando para além deles Meriet perguntou em voz baixa:

- Como é ele, esse indivíduo? Um homem destes sítios? Sabem como se chama?

Isso não sabiam, mas podiam descrevê-lo.

- Não é destes sítios, um bandido que vivia foragido, um pobre desgraçado cheio de fome, que jura que o único mal que fez foi roubar um bocado de pão ou um ovo para se manter vivo, mas os guardas da floresta dizem que ele lhes roubou veados. Magro como um espeto e coberto de trapos, um caso desesperado...

Pegaram no cesto e foram-se embora e Meriet foi para o seu trabalho num silêncio frio durante todo o dia. Um caso desesperado, sim, era o que parecia. Vai ser enforcado! Esfomeado e em fuga e a viver isolado magro e definhado...

Não disse uma palavra ao Irmão Mark, mas uma das crianças mais inteligentes e vivas tinha conseguido ouvir o que fora dito na porta da cozinha e espalhou a notícia pelos outros com natural satisfação. A vida em Saint Giles, embora protegida, era por vezes aborrecida, e era bom aparecer de vez em quando um assunto sensacional para virar a rotina diária. A história chegou aos ouvidos do Irmão Mark. Ele ficou na dúvida, sem saber se devia ou não falar, ao ver a máscara gelada do rosto de Meriet e o estado de tensão que os olhos cor de avelã registavam. Mas, por fim, aventurou uma palavra.

- Ouvistes que prenderam um homem pela morte de Peter Clemence?

- Sim - disse Meriet, com uma voz de chumbo e olhando para longe através dele.

- Se não tem culpa - disse Mark com ênfase -, nada de mal lhe acontecerá.

Mas Meriet não tinha nada a dizer, e a Mark não pareceu apropriado acrescentar mais alguma coisa. Observou, contudo, o amigo, a partir desse momento, com um cuidado discreto e afligiu-se ao ver como ele se fechara completamente, isolado com esta notícia que parecia ter nele o efeito de um veneno.

Na escuridão da noite, Mark não conseguiu dormir. Já há algum tempo que não atravessava o celeiro durante a noite para se pôr ao fundo da escada que dava para o sótão com o propósito de escutar e sentir-se feliz com o silêncio, que significava que Meriet dormia profundamente, mas nesta noite fez de novo essa peregrinação. Não conhecia a verdadeira causa e natureza do problema de Meriet, mas sabia que era profundo e doloroso.

Levantou-se com todo o cuidado para não fazer barulho e não acordar os vizinhos e dirigiu-se ao celeiro.

Nessa noite a geada não era tão forte, o ar tinha uma quietude e um nevoeiro fraco em vez do brilho intenso de estrelas das noites anteriores. No sótão devia haver calor suficiente e os cheiros agradáveis de lenha, palha e cereal, mas também uma grande solidão para aquele rapaz que dormia inacessível e não queria ter companheiros, com medo de os assustar. Nos últimos tempos, Mark perguntara a si próprio se não deveria pedir a Meriet que viesse para baixo juntar-se aos companheiros, mas não seria fácil fazê-lo, sem alertar aquele espírito austero para o facto de os seus sonos terem sido espiados, embora de um modo benevolente. E Mark nunca conseguiu chegar ao ponto de fazer a proposta.

Conhecia o caminho, mesmo na maior das escuridões, até ao início da escada íngreme, uma simples escada-de-mão sem qualquer protecção de um corrimão. Ficou de pé e susteve a respiração, cheio do aroma da colheita do celeiro. Por cima, havia um silêncio perturbado, agitado por breves tremores de movimento. Pensou primeiro que o sono era pouco profundo e que quem dormia se virava na cama para encontrar uma posição na qual se pudesse cair mais profundamente em paz. Depois, viu que era a voz de Meriet, a uma distância estranha mas inconfundível, com palavras indistintas, apenas um murmúrio, mas terrível na sua discussão contida entre uma necessidade e outra, igualmente existente. Como uma alma obstinada esquartejada por cavalos em movimentos opostos, membro separado de membro. E, no entanto, um som tão pequeno e leve, que teve de aguçar os ouvidos para o seguir.

O Irmão Mark ficou de pé a perguntar a si próprio se deveria ou não subir e acordar Meriet, se é que ele dormia, ou se devia ficar a seu lado e recusar-se a abandoná-lo se ele estivesse acordado. Há alturas em que é melhor deixar as pessoas sozinhas, quer estejam boas ou doentes, e alturas em que se deve avançar para lugares proibidos, de estandartes desfraldados e ao som de trompetas, para exigir uma rendição. Mas não sabia se tinham chegado a esses extremos. O Irmão Mark rezou, não com palavras, mas como que acendendo uma vela dentro de si, que ardia muito alto e enviava o fumo da sua súplica, que era totalmente por Meriet.

Lá em cima, na escuridão, um pé moveu-se no pó seco de palha, como se fossem ratos a aventurarem-se durante a noite. Passos leves moviam-se lá em cima, certos e vagarosos. Em baixo, na obscuridade que a luz das estrelas adoçava, Mark olhou para cima e viu a escuridão mexer e girar. Algo suave e pálido desceu pela abertura do alçapão e pousou no cimo das escadas: um pé nu. Seguiu-se o outro, para um degrau mais baixo. Uma voz, ainda longe, mergulhada no corpo que se apoiava no topo da escada, disse à distância mas claramente:

- Não, não vou suportar isto!

Estava a descer, procurava ajuda. O Irmão Mark teve um suspiro de agradecimento e disse baixinho para a escuridão acima de si:

- Meriet! Estou aqui! - Muito baixinho, mas foi o suficiente.

O pé que buscava o lugar para se apoiar no degrau seguinte tropeçou e pousou em falso. Ouviu-se um grito leve, perturbado e fraco como o de um pássaro, e depois um grito agudo, acordado, vivo e indignado. O corpo de Meriet dobrou-se de lado e caiu, em parte nos braços estendidos do Irmão Mark, em parte com um ruído cavo e abafado no chão do celeiro. Mark agarrou desesperado a parte que conseguiu segurar, dobrado pela pressão do peso do corpo e pousou-o no chão tão devagar como conseguiu, sentindo os membros dobrados juntos, imóveis e sem força. Com excepção da sua respiração esforçada só havia silêncio.

Apalpou o corpo imóvel com mãos angustiadas, baixou o ouvido para escutar a respiração e o bater do coração, tocou a face macia e o cabelo espesso e afastou os dedos quentes e pegajosos de sangue.

- Meriet! - chamou aflito, num murmúrio, junto ao ouvido surdo, e percebeu que Meriet estava fora do alcance.

Mark foi a correr em busca de luz e de socorro, mas mesmo nesta situação aflitiva teve o cuidado de não acordar todo o dormitório, mas chamar apenas dois dos mais aptos do grupo que dormiam junto à porta e que poderiam afastar-se sem perturbar o resto. Levaram uma lanterna e examinaram Meriet no chão do celeiro, ainda sem sentidos. Mark tinha, em parte, amortecido a queda, mas a cabeça batera na aresta aguda da escada e fizera um longo corte que lhe atravessava a testa em diagonal seguia pelo cabelo que sangrava livremente e caíra com o pé direito dobrado debaixo de si.

- Foi culpa minha, foi culpa minha! - murmurava Mark aflito, apalpando o resto do corpo à procura de fracturas nos ossos. - Fui eu que o acordei. Não sabia que ele estava a dormir, pensei que vinha ter comigo de sua livre vontade...

Meriet jazia desmaiado e permitiu que lhe mexessem à vontade. Parecia não haver fracturas, mas era natural que houvesse entorses e a ferida da cabeça sangrava de um modo alarmante. Para o moverem o mínimo possível, trouxeram do sótão o catre e colocaram-no em baixo no celeiro, no sítio onde caíra, de modo a que pudesse ter descanso em relação ao resto da casa. Lavaram-lhe a cabeça e levantaram-no com cuidado para a cama, com mais um cobertor para se aquecer, porque a queda e o choque tinham-no deixado muito frio. E durante todo este tempo, o seu rosto, debaixo da ligadura envolvente, permanecia distante, calmo e pálido como Mark jamais o vira anteriormente, o seu problema afastado durante este curto espaço de tempo.

- Agora, vão-se embora, vão descansar-disse o Irmão Mark aos seus preocupados ajudantes. - Neste momento, não lhe podemos fazer mais nada. Eu fico com ele. Se for preciso, chamo-vos.

Aparou o pavio da lanterna para ela arder de um modo uniforme e durante todo o resto da noite esteve sentado ao lado do catre. Meriet não se mexeu, nem fez qualquer som até depois da aurora, embora a respiração fosse perceptivelmente mais longa e mais calma quando passou de um estado sem sentidos para o sono, mas o rosto continuava lívido. Já passava da Hora Prima quando os lábios se começaram a mover e as pálpebras a pestanejar, como se as quisesse abrir e não tivesse força suficiente. Mark humedeceu-lhe a cara e passou-lhe água e vinho pelos lábios que se mexiam.

- Ficai sossegado - disse enquanto pousava a palma da mão na face de Meriet. - Estou aqui... o Mark. Não vos preocupeis com nada, estais em segurança, aqui comigo. - Não tinha consciência do que queria dizer com aquilo. Prometia uma bênção infinita e que direito tinha ele de reclamar um tal poder? E, no entanto, as palavras tinham-lhe surgido espontaneamente.

As pesadas pálpebras ergueram-se, lutaram por um momento com o peso desconhecido que as mantinha fechadas e deixaram ver uma chamada reflectida nuns olhos verdes desesperados. O corpo de Meriet foi atravessado por um arrepio. Tentou falar com a boca seca e disse muito baixinho:

- Tenho de ir... tenho de lhes dizer... Deixai-me levantar!

O esforço que fez para se levantar foi facilmente anulado por uma mão sobre o seu peito. Caiu desamparado e a tremer.

- Tenho de ir! Ajudai-me!

- Não precisais de ir a lado nenhum - disse Mark, debruçando-se sobre ele.-Se tendes alguma mensagem para mandar a alguém, ficai quieto e dizei-me. Sabeis que farei isso fielmente. Vós destes uma queda, tendes de estar imóvel e a descansar.

- Mark... sois vós? - Procurou às cegas fora dos cobertores e Mark pegou-lhe na mão que tacteava e segurou-a. - Sois vós - disse Meriet com um suspiro. -Mark... o homem que eles prenderam... por ter morto o enviado do bispo... tenho de lhes dizer... tenho de ir falar com Hugh Beringar...

- Dizei-me-disse Mark -, e tereis feito tudo. Eu farei o que vós quereis fazer e vós podeis descansar. O que tenho eu de dizer a Hugh Beringar? - Mas dentro de si já o sabia.

- Dizei-lhe que tem de deixar essa pobre alma ir-se embora... Dizei-lhe que não foi ele quem praticou esse crime. Dizei-lhe que eu sei! Dizei-lhe - disse Meriet, os olhos dilatados e verde esmeralda pousados no rosto atento de Mark - que eu confesso o meu pecado mortal... que fui eu quem matou Clemence. Matei-o na floreta, a três milhas ou mais de Aspley. Dizei-lhe que tenho pena de assim envergonhar a casa de meu pai.

Estava fraco e confuso, a tremer pelo choque retardado, as lágrimas caíam-lhe dos olhos, espantando-o com a sua corrente inesperada. Agarrou com força e torceu a mão que agarrava.

- Prometei! Prometei que lhe ireis dizer isto...

- Sim, eu próprio irei, ninguém mais poderá ir - disse Mark e baixou-se para os olhos aflitos e cegos o verem e acreditarem. - Direi todas as palavras que me dissestes. Se antes de eu ir fizerdes uma coisa que é boa e útil para vós e para mim. Depois, podereis dormir mais em paz.

Os olhos verdes abriram-se de espanto, fixando-o.

- E o que é isso?

Mark disse-lhe, com muita suavidade e firmeza. Antes de ter acabado, Meriet retirara a mão e voltara o corpo dorido na cama, voltando a cara para o outro lado.

- Não! - disse num gemido baixo de dor. - Não, não! Não!... Mark continuou a falar, insistindo com calma no que pedia, mas parou quando isso lhe foi negado e com uma rejeição cada vez mais agitada.

- Calai-vos!-disse então em tom apaziguador. -Não precisais de vos preocupar dessa maneira. Mesmo sem isso, eu vou dizer o vosso recado, todas as palavras. Ficai quieto e dormi.

Meriet acreditou imediatamente e o corpo rígido com a resistência amoleceu e acalmou-se. A cabeça enfaixada voltou-se outra vez para Mark. Até a luz fraca dentro do celeiro lhe fazia fechar os olhos e franzir a cara. O Irmão Mark apagou a lanterna e aconchegou-lhe os cobertores. Em seguida, beijou o seu doente e penitente e foi entregar a mensagem.

O Irmão Mark atravessou a Porta Principal e a ponte de pedra a caminho da cidade, cumprimentando todos os que encontrou, perguntou por Hugh Beringar na sua casa junto a Saint Mary e continuou a andar quando lhe disseram que o juiz-deputado já estava no castelo. Foi uma espécie de bónus o facto de o Irmão Cadfael estar também lá, acabado de chegar para aplicar outro penso na ferida infectada do prisioneiro. A fome e a exposição ao frio não ajudavam a uma cura rápida, mas os ferimentos de Harald davam sinais de estarem a reagir ao tratamento. Já tinha mais carne nos ossos longos e uma textura um pouco mais jovem nas faces magras. Paredes sólidas de pedra, dormir sem um receio constante, cobertores quentes e três refeições por dia eram para ele um paraíso.

Contra as plataformas de pedra da prisão interior, privado até da pouca luz do início da manhã, a figura diminuta do Irmão Mark parecia ainda mais pequena, mas a sua dignidade grave não ficava de modo algum diminuída. Hugh deu-lhe as boas-vindas com espanto, tão inesperado era ele neste lugar, e levou-o para a antecâmara do guarda, onde havia uma lareira acesa e luz de uma tocha, dado que a luz do dia raramente ali penetrava.

- Pediram-me para trazer uma mensagem - disse o Irmão Mark, indo directo ao objectivo - para Hugh Beringar, do Irmão Meriet. Prometi transmiti-la palavra por palavra, visto ele próprio não o poder fazer, como gostaria. O Irmão Meriet só ontem tomou conhecimento, tal como todos nós em Saint Giles, que tendes aqui um homem preso pelo assassínio de Peter Clemence. Ontem à noite, depois de se ter ido deitar, Meriet sentiu-se desesperadamente perturbado no sono e levantou-se e começou a andar. Caiu do sótão, a dormir, e agora está deitado na cama com a cabeça partida e ferida, mas recuperou os sentidos e creio que com tratamento adequado não ficará mal. Mas se o Irmão Cadfael o pudesse ir ver eu ficaria mais descansado.

- Filho, com todo o prazer! - disse Cadfael, admirado. - Mas o que andava ele a fazer, a andar enquanto dormia? Nos seus ataques anteriores nunca saiu da cama. E os homens que o fazem geralmente andam com muito cuidado, mesmo em sítios em que um homem acordado não se aventuraria.

- Era o que ele teria feito - reconheceu Mark com tristeza - se eu não lhe tivesse falado lá de baixo. Porque eu pensava que ele estava bem acordado e que vinha em busca de conforto e ajuda, mas quando lhe chamei pelo nome ele colocou mal o pé, gritou e caiu. E agora está consciente. Eu sei onde se dirigia, mesmo a dormir, e com que fim. Porque esse objectivo deu-mo ele a mim, agora que não pode, e eu estou aqui para o cumprir.

- Deixaste-o em segurança? - perguntou Cadfael ansioso, embora meio envergonhado por duvidar do que o Irmão Mark achava bem fazer.

- Há duas boas almas a tomarem conta dele, mas acho que ele está a dormir. Aliviou o espírito comigo e eu aqui vos entrego este peso - disse o Irmão Mark. - Ele pede-me para dizer a Hugh Beringar que deve deixar ir embora este prisioneiro, porque ele nunca cometeu o assassínio de que é acusado. Pede-me que diga que é seu conhecimento e confessa como seu pecado mortal, pois foi ele quem matou Peter Clemence. Matou-o na floresta, a mais de três milhas a norte de Aspley. E pede-me também que diga que lamenta ter assim desgraçado a casa do seu pai.

Ficou de pé em frente deles, de olhos abertos e rosto erguido, como costumava, e eles olharam-no com rostos retraídos, pensativos. Um final tão simples! O filho, apaixonado por natureza e rápido a agir, mata, o pai, honesto e austero, embora ciumento da sua antiga honra, oferece ao pecador a escolha entre a infâmia pública que destruirá a sua casa ancestral ou o castigo perpétuo no convento e o filho do pai prefere o seu purgatório pessoal à morte vergonhosa e à degradação da sua família. E assim podia ser! Responderia a todas as questões.

- Mas é evidente - disse o Irmão Mark, com a confiança exaltada dos anjos e arcanjos e a simplicidade das crianças - que não é verdade.

- Não preciso de discutir convosco o que dizeis - disse Hugh Beringar devagar, depois de uma pausa longa e profunda -, se vos perguntar se falais apenas por acreditardes no Irmão Meriet, porque podereis sentir que tendes uma boa causa ou por saberdes com provas? Como sabeis que ele está a mentir?

- Sei por aquilo que conheço dele - disse Mark, firme -, mas tentei pôr isso de parte. Se digo que não é pessoa para matar um homem numa emboscada, mas antes para o enfrentar e desafiá-lo para um combate, digo aquilo em que firmemente acredito. Mas sou de condição humilde, longe deste mundo de honra, como poderei falar com certeza? Não, fiz uma experiência com ele. Quando ele me disse aquilo que disse, respondi-lhe que para conforto da sua alma devia deixar-me chamar o capelão e como um doente confessar-se a ele e pedir absolvição. E ele não mo deixou fazer - disse Mark e sorriu-lhes. - Só pensar nisso o fez tremer e voltar-se para o outro lado. Quando insisti, ficou muito perturbado. Porque ele poderá mentir a mim e a vós, à própria lei do rei, por uma causa que lhe parece boa -disse Mark -, mas não mentirá ao seu confessor e, através do confessor, a Deus.

 

Depois de muito pensar, Hugh disse:

- Por agora, parece, este rapaz vai guardar a verdade, seja ela qual for. Está na cama com a cabeça partida e é natural que durante algum tempo não se mexa, ainda mais se acreditar que aceitámos aquilo que, não sabemos por que razão, deseja que nós acreditemos. Cuidai dele, Mark, e deixai-o pensar que fez aquilo que decidiu fazer. Dizei-lhe que pode descansar em relação ao nosso prisioneiro, ele não é acusado e nenhum mal acontecerá. Mas não deixeis que se saiba lá fora que mantemos preso um homem inocente que não tem a vida em perigo. Meriet poderá sabê-lo. Mas ninguém lá fora. Para as pessoas, nós temos o assassino preso e em segurança.

Uma falsidade ligava-se a outra falsidade, ambas perpetradas por um bom fim, e se ao Irmão Mark parecia que a falsidade não devia ter qualquer lugar no caminho para a verdade, no entanto reconhecia os usos misteriosos de toda a espécie de estratagemas artificiosos nas obras dos objectivos de Deus e via a verdade reflectida até nas mentiras. Iria deixar Meriet acreditar que o seu tormento acabara e que a confissão fora aceite e Meriet dormiria sem medos nem esperanças, sem sonhos, mas com a satisfação do seu sacrifício voluntário.

- Velarei por isso - disse Mark -, que só ele sabia. E serei a garantia de ele ficar ao vosso dispor sempre que dele necessiteis.

- Bom! Então, agora voltai para o vosso doente, eu e Cadfael seguir-vos-emos muito em breve.

Mark partiu, satisfeito, para atravessar a cidade e sair pela Porta Principal. Depois de ele partir, Hugh ficou de pé, olhou o Irmão Cadfael nos olhos durante muito tempo, com ar pensativo.

- Bem?

- É uma história que faz sentido - disse Cadfael -, e em grande parte verdadeira. Eu sou da opinião de Mark, não acredito que o rapaz tenha matado. Mas o resto? O homem que mandou fazer aquela fogueira tinha força suficiente para obrigar os seus homens a fazerem-lhe a vontade e a guardarem o seu segredo. Um nomem muito bem servido, muito temido, talvez até muito amado. Um homem que não seria capaz de roubar nada a um morto, nem permitir que alguém seu o fizesse. Tudo atirado ao fogo. Aqueles que com ele trabalhavam respeitavam-no e obedeciam-lhe. Leoric Aspley é um homem assim e era capaz de se comportar dessa maneira, se acreditasse que um filho seu tinha assassinado numa emboscada um homem que estivera em sua casa como convidado. Não haveria perdão. Se protegia o assassino da morte merecida, podia ser por causa do seu nome e só para ter um castigo por toda a vida.

Estava a recordar-se da chegada deles no meio da chuva, pai e filho, o primeiro severo, frio e hostil, partindo sem o beijo que era habitual entre membros duma família, o outro submisso e obediente, mas de certeza contra a sua natureza, ao mesmo tempo rebelde e resignado. Febril no desejo de encurtar o tempo de noviciado e de ficar prisioneiro sem fuga possível, mas lutando como um demónio pela sua liberdade durante o sono. Era uma imagem verdadeira. Mas Mark tinha a certeza que Meriet mentira.

- Não falta nada - disse Hugh, abanando a cabeça. - Ele disse sempre que era seu desejo tomar o hábito, portanto podia bem ser, é uma boa razão, se a outra alternativa que lhe davam era a forca. A morte chegou lá, pouco depois de sair de Aspley. Levaram o cavalo bem para Norte e abandonaram-no, para o corpo só ser procurado bem longe de onde o homem fora morto. Mas seja o que for que o rapaz saiba mais, não sabia que estava a levar os seus apanhadores de lenha mesmo para o local onde se encontravam os ossos e desfazer o trabalho cuidadoso do pai. Acredito no que Mark diz quanto a isso e, por Deus, inclino-me a acreditar no que Mark diz em relação ao resto. Mas, se Meriet não matou o homem, por que haveria de aceitar a condenação e o castigo? De sua livre vontade!

- Só há uma resposta possível - disse Cadfael. -Para proteger outra pessoa. - Então, dizeis que ele sabe quem é o assassino.

- Ou pensa que sabe - disse Cadfael. - Porque há um véu por cima de outro véu a esconder estas pessoas umas das outras e parece-me que Aspley, se fez isto ao filho, acredita que sabe sem sombra de dúvida que o rapaz é culpado. E Meriet, uma vez que se sacrificou a uma vida contra a qual o seu espírito se revolta e agora a uma morte vergonhosa, deve ter também a certeza da culpa dessa outra pessoa a quem ama e deseja salvar. Mas se Leoric está tão enganado, será que Meriet não estará também a laborar num erro?

- Não estaremos nós todos? - disse Hugh com um suspiro. - Vinde, vamos ver esse sonâmbulo e... quem sabe... se estiver virado para a confissão e tiver de mentir para a realizar, pode deixar cair alguma coisa que nos interesse. Tenho de dizer isto a seu favor, não conseguiu deixar outro pobre diabo sofrer em seu lugar, ou mesmo no lugar de alguém que lhe é mais querido do que ele próprio. Harald prende-o bem com o seu silêncio.

Meriet estava a dormir quando chegaram a Saint Giles. Cadfael estava de pé ao lado do catre no celeiro e observava um rosto estranhamente calmo e infantil, exorcizado do seu demónio. A respiração de Meriet era longa, profunda e doce. Era possível acreditar que aqui estava um pecador atormentado que se confessara e aliviara o peito e que depois achava tudo mais fácil. Mas não repetiria a confissão a um padre. Mark tinha aí um poderoso argumento.

- Deixai-o descansar - disse Hugh, quando Mark, embora com relutância, ia acordar o jovem que dormia. -Podemos esperar. -E esperaram, quase uma hora, até Meriet se mexer e abrir os olhos. Mas, mesmo então, Hugh preferiu que o tratassem, lhe dessem comida e de beber antes de se sentar junto dele e ouvir o que ele tinha para dizer. Cadfael tinha-o examinado e não lhe encontrara nada que uns bons dias de descanso não curassem, embora tivesse torcido um tornozelo e o pé que ficara debaixo de si, e lhe fosse doloroso e difícil pôr nesse pé peso durante algum tempo. A pancada na cabeça tinha-lhe perturbado os sentidos e era natural que lhe afectasse a memória em relação aos últimos dias, embora mantivesseãntacta a memória mais distante que tanto desejava contar. O golpe profundo que lhe atravessava a testa sararia em breve.. .já parara de sangrar.

Os olhos, na obscuridade do celeiro, eram verde-escuro, olhando para cima, dilatados e fixos. A voz era fraca mas resoluta, enquanto repetia devagar a confissão que já fizera ao Irmão Mark. Estava decidido a ser convincente, dando pormenores de bom grado e pacientemente. Ao ouvi-lo, Cadfael teve de admitir a si próprio, com desânimo, que Meriet era realmente muito convincente. Hugh devia também pensar o mesmo.

Questionou-o, devagar e calmamente.

- Vistes o homem afastar-se a cavalo, com o vosso pai a acompanhá-lo, e não tivestes qualquer dúvida. Saístes com o arco... a cavalo ou a pé?

- A cavalo - disse Meriet prontamente, pois se tivesse ido a pé, como poderia ter ido tão depressa que chegava antes do cavaleiro depois de os acompanhantes o deixarem e voltarem para casa? Cadfael lembrou-se de Isouda lhe dizer que Meriet tinha voltado tarde a casa nessa tarde com o grupo do pai, embora não tivesse saído com eles. Não dissera se estava a cavalo quando voltou ou se vinha a pé, aí estava uma coisa que valia a pena inquirir.

- Com intenção de matar? - continuou Hugh. - Ou isso surgiu de repente? Pois que podereis vós ter contra o Sr. Clemence para lhe destinar a sua morte?

- Tinha tomado demasiadas liberdades com a noiva do meu irmão, cortejando-a e muito seguro da sua superioridade em relação a nós. Um homem sem propriedades, apenas com a sua cultura e o nome do seu amo em relação a terras e linhagem, e a olhar-nos com sobranceria, a nós com as raízes que temos. Para desagravar o meu irmão...

- No entanto, o vosso irmão nada fez para procurar reparação - disse Hugh.

- Ele tinha ido para a casa dos Linde, para Roswitha... Tinha-a ido levar a casa na noite anterior e tenho a certeza que discutiu com ela. Saiu cedo, nem sequer viu o convidado partir, foi reparar o que se rompera entre os dois... Não voltou a casa - disse Meriet num tom claro e firme -, a não ser bastante tarde nessa noite, muito depois de tudo estar terminado.

"Verdade, segundo o relato de Isouda", pensou Cadfael. Depois de tudo estar terminado, Meriet regressou a casa um assassino convicto para reparecer apenas depois de ter escolhido de livre vontade entrar para o convento, e estava preparado para continuar na sua liberdade condicional e assim declararar-se uma oblação à abadia, completamente consciente do que estava a fazer. Assim, dissera à sua inteligente e sensível companheira de brincadeira, completamente calmo e controlado. Estava a fazer o que queria fazer.

- Mas vós, Meriet, fostes a cavalo antes do Sr. Clemence. Já a pensar no assassínio?

- Não tinha pensado - disse Meriet hesitando pela primeira vez. - Fui sozinho... mas estava furioso.

- Fostes depressa-disse Hugh pressionando-o -, se passastes à frente do convidado que partia e por um atalho chegastes primeiro e o interceptastes, como dizeis.

Meriet estendeu-se e ficou rígido na cama, os olhos enormes a concentrarem-se no homem que o interrogava.

- Fui depressa, embora não por um fim determinado. Estava bem escondido quando o vi vir em direcção a mim, devagar. Cheguei-me perto dele e atirei. Ele caiu... - O suor apareceu na testa pálida por debaixo das ligaduras. Fechou os olhos.

- Deixai-o! - disse Cadfael baixinho sobre o ombro de Hugh. - já chega.

- Não - disse Meriet com veemência. - Deixai-me acabar. Estava morto quando me debrucei sobre ele. Tinha-o matado. E o meu pai apanhou-me assim, em flagrante. Os cães de caça... ele tinha cães de caça com ele... farejaram-me e trouxeram-no até mim. Ele encobriu por minha causa e por causa de um nome honrado, mas tudo o que ele fez que possa ser ilegal, para me manter vivo, foi por minha culpa, sou eu a causa de tudo. Mas ele não me ia perdoar. Prometeu-me encobrir o meu crime se eu aceitasse afastar-me do mundo e entrar para um convento. O que foi feito a seguir, ninguém me disse nada. Aceitei por minha vontade o castigo. Até desejei... e tenho tentado... Mas registai tudo o que fiz e deixai-me pagar por tudo.

Pensou que tinha conseguido e deu um grande suspiro. Hugh suspirou também e mexeu-se como se fosse levantar-se, mas depois perguntou distraidamente:

- A que horas aconteceu isto, Meriet, quando o vosso pai vos apanhou no acto de matar?

- Eram cerca de três da tarde - disse Meriet sem ligar muita importância e caindo completamente na armadilha.

- E o Sr. Clemence saiu logo depois da Hora Prima? Demorou muito - disse Hugh com uma suavidade enganosa - a atravessar o cavalo pouco mais de três milhas.

Os olhos de Meriet, meio-fechados pela fadiga e por ter aliviado a tensão, abriram-se completamente, cheios de consternação. Foi-lhe difícil controlar a voz e o rosto, mas conseguiu, fazendo subir do poço da sua resolução e desânimo uma resposta credível.

- Resumi de mais a minha história por a querer contar depressa. Quando aquela coisa aconteceu ainda nem era meio da manhã. Mas eu fugi a correr de ao pé dele e deixei-o ali. Andei a vaguear pela floresta, horrorizado com o que tinha feito. Mas, no fim, voltei. Pareceu-me melhor escondê-lo na vegetação, longe dos caminhos, onde ele podia ficar sem ser descoberto e eu podia voltar durante a noite e enterrá-lo. Estava aterrorizado, mas no fim voltei. Não lamento - disse Meriet por fim, com tal simplicidade que, algures nestas últimas palavras, devia haver verdade. Mas ele nunca tinha assassinado um homem. Tinha encontrado um homem morto coberto de sangue, tal como tinha ido de encontro e ficado assustado quando viu o Irmão Wolstan a deitar sangue ao pé da macieira. Uma volta a cavalo de três milhas a partir de Aspley, sim, pensou Cadfael, mas isso aconteceu bem dentro da tarde de Outono, quando o pai estava fora com o falcão e os cães de caça. - Não lamento - disse Meriet de novo, bastante baixo. - É bom que tenha sido assim apanhado. Mas ainda melhor por vos ter contado agora a todos.

Hugh levantou-se e ficou a olhar para baixo, para Meriet, com um rosto impenetrável.

- Muito bem! Por enquanto ficareis aqui, não há nenhuma razão para não ficardes aqui ao cuidado do Irmão Mark. O Irmão Cadfael diz-me que precisaríeis de muletas se tentásseis andar nos próximos dias. Aqui onde estais, estais em segurança.

- Podia dar-vos a minha palavra - disse Meriet com alguma tristeza-, mas duvido que acreditásseis nela. Mark poderá dar a sua palavra e eu submeto-me a ele. Mas... o outro homem... fareis que ele saia em liberdade?

- Não precisais de vos preocupar, ele está ilibado de toda a culpa, excepto a de pequenos roubos aqui e ali para encher a barriga, e isso será esquecido. Deveis pensar é no vosso próprio caso - disse Hugh gravemente. - Eu aconselhava-vos a ver um padre e a fazerdes a vossa confissão.

- Vós e o carrasco podem ser os meus padres - disse Meriet e conseguiu esboçar um sorriso triste.

- Ele está a mentir e a dizer a verdade ao mesmo tempo - disse Hugh com um desprezo, resignado, no regresso pela Porta Principal. - Quase de certeza que o que ele diz do pai é verdade, portanto ele foi apanhado assim e foi por ele protegido e condenado. Foi assim que ele chegou até vós, por vontade e contra vontade. Explica todos os problemas que tendes tido com ele, acordado e a dormir. Mas não nos dá a resposta sobre quem matou Peter Clemence, pois é certo e sabido que não foi Meriet. Nem sequer tinha pensado naquele erro gritante das horas, até eu o espicaçar. Tendo em conta o choque que lhe causou, saiu-se muito bem na explicação que arranjou. Foi porém tarde de mais. Ter feito um erro daqueles já era suficiente. Agora, qual será o melhor caminho para nós? Supúnhamos que tornávamos conhecido lá fora que o jovem Aspley confessar o crime e que ia ser enforcado. Se está realmente a sacrificar-se por outra pessoa, achais que essa pessoa se apresentaria e lhe tiraria do pescoço a corda a pôr no próprio pescoço, como Meriet fez por ela? Cadfael disse com desânimo:

- Não. Se o deixou ir para um inferno para salvar a sua própria pele, duvido que levantasse um dedo para o ajudar a descer da forca. Que Deus me perdoe se eu o estou a julgar mal, mas uma tal consciência não é de confiar. E ter-vos-eis comprometido a vós próprio e à lei com uma mentira por nada e dareis ao rapaz uma dor ainda mais profunda. Não. Ainda temos algum tempo, deixemos as coisas andarem. Dentro de mais dois ou três dias essa festa de casamento far-se-á na abadia e Leoric Aspley poderá ter de dar contas da parte que desempenhou, mas como está sinceramente convencido da culpa de Meriet, pouco nos poderá ajudar a encontrar o verdadeiro assassino. Não façais nada para ele depor, Hugh, antes de o casamento acabar. Até lá, deixai-o para mim. Tenho algumas ideias em relação a este pai e a este filho.

- Podeis ficar com ele e até vos agradeço - disse Hugh -, pois, como as coisas estão, o Diabo me leve se sei o que havia de fazer com ele. O seu crime é mais com a Igreja do que contra a lei que administro. Negar a um morto um funeral cristão e os ritos próprios que lhe eram devidos não está dentro da minha jurisdição. Aspley é um benfeitor da abadia, deixai o senhor abade ser o seu juiz. O homem que eu quero é o assassino. Vós, bem sei, quereis meter dentro da cabeça daquele, tirano que ele conhece o filho mais novo tão mal que uns conhecimentos de apenas umas semanas têm mais fé no rapaz e compreendem-no melhor do que o seu próprio pai. E desejo-vos que sejais bem sucedido. Quanto a mim, Cadfael, dir-vos-eis o que mais me preocupa. Não consigo de modo algum perceber que causa poderia alguém desta região ter, Aspley ou Linde ou Foriet ou quem quiserdes, para querer pôr Peter Clemence fora deste mundo. Matá-lo por ele ser muito ousado e insinuante com a rapariga? Que disparate! O homem ia-se embora, nenhum deles o tinha visto anteriormente, nenhum deles precisava de o voltar a ver, e a única preocupação do noivo, parece, foi fazer as pazes com a noiva depois de ter sido demasiado duro a repreendê-la. Matar por uma causa destas? Só se uma pessoa tivesse enlouquecido completamente. Vós dizeis-me que a rapariga bate as pestanas a todos os admiradores, mas nenhum ainda morreu por causa disso. Não! Há, tem de haver, outra causa, mas com franqueza, não consigo ver qual possa ser.

Preocupava Cadfael também. Disputas sem importância de uma noite por causa de uma rapariga e por causa de cumprimentos demasiados, não afrontas, uma mera efervescência na vida de uma família até então calma... não, os homens não matam por causas tão triviais. E, até agora, ninguém sugeriu uma discussão mais profunda com Peter Clemence. Os parentes distantes conheciam-no pouco, os vizinhos não o conheciam de todo. Se achamos um novo conhecimento irritante, mas sabemos que apenas vai ficar uma noite, suportamo-lo com tolerância e dizemos-lhe adeus com um sorriso na soleira da porta e a seguir respiramos mais à vontade. Mas não nos embrenhamos nos bosques, por onde ele vai passar, para o alvejarmos.

Mas, se não foi pelo próprio homem, que mais poderia tê-lo levado à morte? A sua missão. Não disse qual era, pelo menos enquanto Isouda esteve perto para ouvir. E, mesmo que tivesse dito, o que é que ele tinha para ser necessário obrigá-lo a parar? Uma missão diplomática civil com dois lordes do Norte, para se assegurar da sua aliança com os esforços do Bispo Henry para alcançar a paz. Uma missão que o Cónego Eluard tinha desde então levado a cabo com sucesso, com um resultado tão feliz que agora levou o rei lá para selar o acordo e nesta altura estava a acompanhá-lo ao Sul, outra vez, para passar o Natal em grande contentamento. Não podia ali haver nada de errado. Grandes homens têm os seus planos privados e podem, numa determinada altura, dar as boas-vindas a uma visita que noutra altura não aceitam, mas aqui estava a prova da aproximação e uma aparição razoavelmente segura no Natal.

Voltando ao homem, e o homem era inofensivo, um parente de passagem que se manifestava expansivamente e se envaidecia sob um tecto familiar, e depois se ia embora.

Não havia pois nenhum ódio pessoal. Então, que restava se não o vulgar azar de quem viaja, o ladrão furtivo e assassino à solta em lugares desertos, pronto a arrancar o homem do cavalo e a desfazer-lhe a cabeça pelas roupas que trazia vestidas, para não falar do cavalo magnífico e um punhado de jóias? Isso estava fora de questão, porque Peter Clemence não fora roubado, nem uma simples fivela de prata, nem uma cruz de pedras. Ninguém beneficiaria em bens ou equipamento com a sua morte, até o cavalo fora encontrado à solta nos pântanos com os arreios completos.

- O cavalo tem-me feito pensar - disse Hugh como se tivesse estado a seguir os pensamentos de Cadfael.

- A mim também. Na noite depois de o trazerdes para a abadia, Meriet chamou-o durante o sono. Contaram-vos isto? Barbary, Bar-bary... e assobiou-lhe para o chamar. Os noviços disseram que era o Diabo a assobiar-lhe. Pergunto-me se ele teria vindo, lá na floresta, ou se Leoric teve de mandar homens ir buscá-lo depois, mais tarde? Acho que ele deve ter ido ter com Meriet. Quando ele encontrou o homem morto, o seu pensamento seguinte devia ter sido com o cavalo, e foi chamá-lo.

- É natural que os cães de caça tivessem ouvido a voz dele - disse Hugh -, mesmo antes de lhe sentirem o cheiro. E trouxeram o pai para onde ele estava.

- Hugh, tenho estado a pensar. O rapaz respondeu-vos com grande valentia quando o inquiriste sobre aquele erro no tempo. Mas não acredito que se tivesse apercebido de seu significado. Vede, se Meriet tivesse simplesmente tropeçado num corpo morto solitário na floresta, sem sinal algum de suspeita contra nenhum homem, tudo o que saberia seria que Clemence tinha andado muito pouco antes de ser morto. Então, como poderia o rapaz saber ou mesmo adivinhar por quem? Mas se por acaso tivesse dado com outra pessoa apanhada como ele naquela armadilha, debruçado sobre o morto, ou tentando arrastá-lo para o esconder, alguém próximo que lhe fosse querido, então não percebeu, nem mesmo agora, que esse alguém veio até àquele lugar na floresta, como ele próprio veio, com pelo menos seis horas de atraso para ser o assassino!

No dia dezoito de Dezembro, o Cónego Eluard entrou a cavalo em Shrewsbury, muito contente consigo próprio, depois de ter persuadido o rei a fazer uma visita, que tinha resultado manifestamente bem, e acompanhou-o de novo até ali, para Sul, para o seu habitual Natal em Londres, antes de o deixar para se desviar para oeste à procura de notícias de Peter Clemence. Chester e Linclon, ambos condes agora de nome e de facto, tinham dado muita importância a Stephen e afirmaram-lhe a sua lealdade sem vacilações, que ele por seu lado premiara com ofertas de terras e de títulos. O castelo de Lincoln ficava na sua mão, bem guarnecido, mas a cidade e o condado estavam abertos ao novo senhor. A atmosfera em Lincoln tinha sido de festa, ajudada pelo tempo agradável para Dezembro. O Natal no Nordeste oferecia um belo tempo para ser uma festividade despreocupada.

Hugh veio do castelo para receber o Cónego Eluard e trocar com ele notícias, embora fosse uma troca muito desigual. Trouxera com ele as relíquias de Peter Clemence, as jóias e os arreios, limpos de cinza e terra incrustadas, mas descoloridas pelas marcas do fogo. Os ossos do morto repousavam num caixão forrado a chumbo na capela mortuária da abadia, mas o caixão não estava ainda selado. O Cónego Eluard tinha-o mandado abrir e olhara rapidamente para os restos que estavam lá dentro, com um rosto sombrio mas sem pestanejar.

- Tapai-o - disse ele e afastou-se. Ali não havia nada que pudesse outra vez ser reconhecido como um homem. Quanto à cruz e ao anel eram um assunto muito diferente.

- Isto reconheço. Vi-o usar muitas vezes - disse Eluard com a cruz na palma da mão. Sobre superfície de prata o brilho colorido estava embaciado, mas as pedras preciosas brilhavam. - Isto é de certeza de Clemence - disse Eluard. - Vai ser uma triste novidade para o meu bispo. E tendes alguém preso por este crime?

- Temos um homem na prisão, é verdade - disse Hugh -, e deixámos que lá fora se dissesse que foi ele o autor do crime, mas na verdade tenho de vos dizer que não está acusado e provavelmente nunca será. O que de mais grave sabemos em relação a ele são pequenos roubos aqui e ali para matar a fome, e continuo com ele preso por causa disso. Mas tenho a certeza de que não é criminoso. - Contou a história da sua busca, mas não disse uma palavra sobre a confissão de Meriet. - Se tencionais descansar aqui dois ou três dias antes de continuar a viagem, poderá haver mais notícias para levar.

Quando disse isto pensou logo que era louco em prometer tal coisa, mas sentira uma comichão nos dedos e as palavras saíram. Cadfael tinha que fazer com Leoric Aspley quando ele chegasse, e a reunião iminente, neste lugar, de todos os que estiveram mais de perto nas últimas horas de Peter Clemence parecia a Hugh como o engrossar de uma nuvem, antes de a tempestade romper e a chuva começar. Se a chuva se recusasse a cair, então depois do casamento tinham de obrigar Aspley a contar tudo o que ele sabia e investigar o que ele não sabia, tendo em conta pequenos pormenores como aquelas seis horas sem registos e as meras três milhas percorridas por Clemence antes da morte.

- Nada pode ser feito contra a morte - disse o Cónego Eluard com um ar sombrio -, mas é de justiça e de direito que o assassino seja julgado. Confio que isso seja feito.

- E estareis aqui ainda durante uns dias? Não tendes pressa em juntar-vos ao rei?

- Vou para Winchester, não para Westminster. E vai valer a pena esperar uns dias para ter mais qualquer coisa para contar ao bispo em relação a esta perda dolorosa. Confesso que também necessito de um pouco de descanso, já não tenho a juventude de outro tempo. O vosso juiz ainda vos deixa sozinho com os problemas de condado, a propósito. O Rei Stephen deseja retê-lo na sua companhia depois da festa, vão directamente para Londres.

Essa era uma notícia que, de modo algum, desagradava a Hugh. Estava determinadamente decidido a terminar o assunto que começara, e dois espíritos voltados para a mesma trefa, um mais impaciente que o outro, não dão bom resultado.

- E vós estais contente com a vossa visita - disse ele. -Pelo menos, alguma coisa correu bem.

- Valeu a pena o esforço de toda esta viagem - disse Eluard com satisfação. - O rei pode estar descansado em relação ao Norte. Ranulf e William têm, entre eles, cada milha bem sob controlo, seria grande ousadia a de um homem que interferisse na sua ordem. O castelão de Sua Graça em Lincoln tem a melhor das relações com os condes e as esposas. E as mensagens que levo para o bispo são realmente agradáveis. Sim, valeu bem a pena todas as milhas que andei a cavalo para assegurar isto.

No dia seguinte, o grupo do casamento chegou com modesto estadão senhorial, para aposentos para eles preparados nas hospedarias da abadia: os Aspley, os Lindes, a herdeira de Foriet e um grande grupo de convidados de todas as casas senhoriais vizinhas até à orla da floresta. Tudo, com excepção do salão comum e do dormitório para mendigos, peregrinos e indivíduos de passagem, foi destinado ao grupo. O Cónego Eluard, o convidado do abade, mostrou um interesse benevolente pelo alvoroço, a uma distância privilegiada. Os noviços e os rapazes olhavam, ávidos de curiosidade, encantados com qualquer distracção nas suas vidas pacatas. O Prior Robert permitia-se ser visto por todo o pátio e claustros, com o seu ar mais digno e benigno, sempre no seu melhor, onde existiam cerimónias a ser dirigidas e uma audiência importante para o apreciar e admirar; e o Irmão Jerome andou mais ocupado e autoritário entre os noviços e criados laicos. No pátio das cavalariças, havia grande actividade, e estas estavam completamente cheias. Os irmãos que tinham parentes entre os convidados foram autorizados a recebê-los no salão. Uma grande, onda de admiração e interesse atravessou os pátios e jardins, tudo ainda mais alegre por causa do tempo, que, embora revigorante e muito frio, estava claro e bonito e a luz do dia durava até bastante tarde.

Cadfael ficou com o Irmão Paul a um canto do Claustro a vê-los chegar a cavalo com os seus melhores equipamentos de viagem, com póneis de carga a transportar as roupas de casamento. Os Lindes chegaram primeiro: Wulfric Linde era um homem de meia-idade, gordo, flácido, com um rosto simpático e letárgico, e Cadfael não foi capaz de escolher, mas apenas imaginar como teria sido a falecida esposa, para ser possível aquele par produzir dois filhos tão belos. A filha montava um belo palafrém de cor creme e sorria consciente de ter todos os olhos fixos em si. Mantinha os seus olhos baixos de um modo que excitava, numa aparência de modéstia que dava um poder exagerado a cada olhar que lançava de esguelha. Envolvida numa bela capa azul que a tapava completamente, excepto o oval rosado da face, sabia mesmo assim como resplandecer de beleza e, oh, sabia mesmo muito bem, que tinha pelo mesmo quarenta pares de olhos masculinos inocentes a olhar para ela, maravilhados com as delícias que afastavam deles. Mulheres de todas as idades, por razões práticas e com uma finalidade definida, entravam e saíam estes portões frequentemente, com queixas, apelos, pedidos e ofertas, e não havia nenhuma perturbação nem pediam que lhe prestassem tributos. Roswitha veio armada com o conhecimento do seu poder e encantada com a perturbação que trazia com ela. Haveria alguns sonhos estranhos entre os noviços do Irmão Paul.

Mesmo atrás dela, e por momentos difícil de reconhecer, vinha Isouda Foriet num cavalo alto e nervoso. Montada nesse belo cavalo, com o cabelo preso numa rede, mas descoberto à luz, de um tom ruivo-vivo como folhas de Outono, com o capuz caído sobre os ombros e as costas direitas e lisas como uma faia, Isouda cavalgava sem artifícios e não precisava de nenhum. Tal como o rapaz que ia a seu lado, com a mão estendida para a rédea dela, tocando-a ao de leve. Vizinhos, cada um com uma herdade para oferecer, seria estranho se o pai de Janyn e o tutor de Isouda planeassem casá-los? Um bom par quanto à idade, estatuto, conhecendo-se desde crianças, o que haveria de mais apropriado? Mas os dois, a quem mais interessava o assunto, ainda conversavam e brigavam como irmão e irmã, com uma enorme familiaridade. E, além disso, Isouda tinha outros planos.

Aqui, como em qualquer outro lugar, Janyn mostrava uma candura agradável, sorrindo a todas as pessoas que via. Lançando um olhar rápido sobre os rostos que os observavam, reconheceu o Irmão Cadfael e a cara iluminou-se enquanto o cumprimentou, com uma marcada vénia de cabelo louros.

- Ele conhece-vos - disse o Irmão Paul, ao ver o gesto.

- É irmão da noiva... irmão gémeo. Conheci-o quando fui falar com o pai de Meriet. As duas famílias são vizinhos muitos chegados.

- É uma grande pena - disse Paul com simpatia - que o Irmão Meriet não esteja bom e possa estar aqui. Tenho a certeza de que ele gostaria de estar presente quando o irmão se casar e desejar-lhe as bênçãos de Deus. Ele ainda não pode andar?

Tudo o que se sabia de Meriet, entre aqueles que tinham feito o possível para o ajudar, era que tinha tido uma queda e que estava deitado, bastante fraco e com um pé torcido.

- Consegue coxear com uma bengala - disse Cadfael. - Não gostaria que ele se aventurasse a afastar-se tanto. Dentro de um ou dois dias já veremos até onde poderemos deixá-lo experimentar as suas forças.

Janyn saiu da sela com um salto e ficou atento junto à garupa do cavalo de Isouda enquanto ela desmontava. Ela pousou uma mão no seu ombro, desceu como uma pena e riram-se juntos voltando-se para o grupo que já se reunira. Depois deles chegaram os Aspleys: Leoric, tal como Cadfael o imaginara e o vira, de corpo direito, parecia ter a altura de uma coluna de igreja na sela. Um homem irado, intolerante e honrado, exacto nas suas responsabilidades, absoluto nos seus privilégios. Um semideus para o seus criados e alguém em quem se podia confiar, desde que essas pessoas fossem, por seu lado, dignas de confiança. Um deus para os seus filhos. O que tinha sido para a sua falecida esposa mal se poderia adivinhar, ou o que teria ela sentido em relação ao segundo filho. O primogénito admirável, muito perto do pai, volteava na sela como uma ave, leve, grande, vigoroso e belo. Em cada movimento, Nigel honrava os seus progenitores e o seu nome. Os jovens que o observavam do claustro murmuravam palavras de admiração e bem o podiam fazer.

- Difícil - disse o Irmão Paul sempre sensível à juventude e aos seus tormentos obscuros - ... ser segundo em relação a este.

- Muito difícil mesmo - disse Cadfael com tristeza. Parentes e vizinhos seguiram-se: pequenos lordes e as suas ladies, pessoas com confiança em si próprias, que dominavam pequenos reinos, talvez, mas absolutos dentro deles e bem capazes de os guardar. Desmontavam, os escudeiros levavam-lhes os cavalos e póneis, o pátio esvaziava-se gradualmente do súbito fulgor de cor e animação e a ordem fixa e reverenciada continuou inquebrável, com as Vésperas a aproximarem-se.

O Irmão Cadfael foi para a oficina no herbarium depois da ceia para levar uma certas ervas secas que o Irmão Petrus, o cozinheiro do abade precisava para o jantar do dia seguinte, quando os Aspley e os Lindes jantassem com o Cónego Eluard à mesa do abade. A geada estava de novo a cobrir tudo, o ar fresco e calmo, o céu cheio de estrelas e até o mais leve som parecia uma campainha na escuridão. Os passos que se seguiam ao longo do caminho de terra batida entre as sebes entrelaçadas eram muitas leves, mas ele ouviu-os. Alguém com um pé leve e pequeno mantinha uma certa distância, um ouvido atento aos passos de Cadfael que iam à frente, outro voltado para trás para se assegurar de que ninguém o seguia.

Quando ele abriu a porta da cabana e entrou, a pessoa que o seguia parou, dando-lhe tempo para riscar a pederneira e acender a pequena candeia. Então, ela apareceu no soleira da porta, embrulhada numa capa escura, o cabelo solto sobre o pescoço tal como a vira da primeira vez, o frio fazendo-lhe corar as faces e a luz da vela pondo-lhe estrelas nos olhos.

- Entrai, Isouda - disse Cadfael, placidamente, enquanto farfalhava os ramos de ervas aromáticas que estavam pendurados nos barrotes. - Esperava encontrar um meio de falar convosco. Devia ter sabido que vós própria encontraríeis uma ocasião.

- Mas não posso ficar durante muito tempo-disse ela, entrando e fechando a porta atrás de si. - Disse que ia acender uma vela e rezar umas orações na igreja por alma do meu pai.

- Então não deveríeis estar a fazer isso? - disse Cadfael a sorrir. - Sentai-vos aqui e estai à vontade no pouco tempo que tendes e, seja o que for que pretendeis de mim, pedi.

- Acendi a minha vela - disse ela enquanto se assentava no banco junto à parede -, ficou lá para que a vissem, mas o meu pai era um homem bom e Deus tomará bem conta da sua alma sem ser necessária nenhuma interferência minha. E eu preciso de saber o que está realmente a acontecer com Meriet.

- Disseram-vos que ele deu uma queda e ainda não pode andar?

- O Irmão Paul disse-nos isso. Disse que não seria um problema muito grave. É verdade? Será que vai ficar bom?

- Com certeza que sim. Ficou com um golpe na cabeça devido à queda, mas isso já está curado e o pé torcido só precisa de um pouco mais de descanso e conseguirá de novo andar bem como antes. Está em boas mãos, o Irmão Mark está a tomar conta dele e o Irmão Mark é seu amigo de confiança. Contai-me, como é que o pai reagiu à notícia da sua queda?

- Manteve uma cara séria-disse ela -, embora tivesse dito que lamentava ouvir isso, mas com tanta frieza que ninguém poderia ter acreditado nisso. Mas, apesar disso, ele sofre realmente.

- Não pediu para o visitar?

Ela fez uma expressão de desdém pela obstinação dos homens.

- Ele, nunca! Deu-o a Deus e Deus tem de cuidar dele. Não se aproximará dele. Mas eu vim perguntar se me podereis levar até junto dele.

Cadfael ficou a olhá-la durante muito tempo e depois sentou-se junto dela e contou-lhe o que tinha acontecido, tudo o que sabia ou calculava. Ela era arguta e decidida, sabia o que queria e estava decidida a lutar por isso. Mordeu o lábio quando ouviu que Meriet tinha confessado o crime e sentiu um orgulho reconhecido quando Cadfael acentuou que ela era a única pessoa privilegiada, além dele, Mark e a lei a saber, para seu consolo, que não acreditava no que ele dizia.

- Pura loucura! - disse simplesmente. - Graças a Deus que vós o compreendeis. E o louco do pai acredita nisso? Mas ele nunca o conheceu, nunca lhe deu valor ou se aproximou dele, desde o dia em que Meriet nasceu. E, no entanto, é um homem justo, tenho de o dizer, nunca faria mal a uma pessoa de propósito. Tem de ter uma causa premente para acreditar nisso. E Meriet uma razão também tão grave para o deixar neste erro, mesmo estando de certeza a culpar-se por estar pronto a acreditar o pior da sua própria carne e sangue. Irmão Cadfael, posso dizer-vos, nunca vi anteriormente de uma maneira tão clara como aqueles dois são parecidos, orgulhosos, teimosos e solitários, tomando sobre os seus ombros qualquer dificuldade que apareça pela frente, pondo de lado amigos, parentes, vassalos e todos. Podia bater com a cabeça de um no outro. Mas o que iria isso adiantar, sem uma resposta que lhes fechasse a boca... excepto em penitência?

- Não haverá tal resposta - disse Cadfael -, e se alguma vez conseguirdes juntar-lhes as cabeças, prometo-vos que nenhuma delas terá tonsura. E sim, amanhã levar-vos-ei a conversar com ele, mas depois do jantar, porque antes do jantar tenciono levar o vosso tio Leoric a visitar o filho, quer ele queira ou não. Dizei-me, se sabeis, que planos têm eles para amanhã? Ainda falta um dia para o casamento.

- Tencionam assistir à missa - disse ela -, e depois nós, as mulheres, vamos provar os fatos e escolher os ornamentos e dar um ponto aqui e ali nas roupas para o casamento. Nigel vai ficar afastado disso tudo, até irmos jantar com o senhor abade, e penso que ele e Janyn tencionam ir à cidade para as últimas compras. O Tio Leoric deve ficar sozinho depois da missa. Podeis levá-lo nessa altura.

- Vou ficar alerta - assegurou Cadfael. - E depois do jantar do abade, se vos puderdes ausentar, levar-vos-ei junto de Meriet.

Ela levantou-se, cheia de alegria, quando achou que estava na altura de o fazer, e avançou corajosamente, segura de si e da sua sorte, e de ter a graça de Deus. E Cadfael foi entregar as plantas escolhidas ao Irmão Petrus, que estava já a magicar nas iguarias que no dia seguinte iria apresentar ao meio-dia.

Depois da missa da manhã do dia vinte de Dezembro, as mulheres recolheram-se nos seus aposentos para escolher com cuidados os fatos para o jantar com o abade. O filho de Leoric e o filho do seu maior amigo partiram a pé para a cidade. Os convidados espalharam-se para fazerem visitas às pessoas daquela zona, o que era uma oportunidade rara, fizeram compras nas lojas locais para as suas casas de campo enquanto estavam perto da cidade ou aprontaram as suas melhores roupas para o dia seguinte. Leoric caminhou no ar frio da manhã pelos jardins, à volta dos lagos dos peixes e através dos campos, até ao ribeiro Meole, orlado de uma renda delicada de gelo fino. Cad-fael esperou para lhe dar tempo de estar sozinho, como era óbvio que desejava estar, e perdeu-o de vista, para o encontrar de novo na capela mortuária onde estava o caixão de Peter Clemence, agora fechado e coberto com um pano rico, esperando ordem do Bispo Henry quanto ao que dele devia ser feito. Duas grandes velas novas ardiam num candelabro de braços colocado ao topo, enquanto Leoric estava de joelhos nas lajes no lado dos pés. Os lábios moviam-se numa oração silenciosa, os olhos abertos fixavam o esquife. Cadfael sabia que pisava terreno seguro. As velas poderiam simplesmente ter sido oferta de um homem cortês a um parente morto, embora distante, mas o rosto fechado e severo reconhecia em silêncio uma culpa ainda não confessada ou expiada, confirmava a parte que desempenhara na negação de enterro a este homem morto e apontava claramente a razão. Cadfael afastou-se em silêncio e esperou que ele saísse. Ao encontrar-se de novo à luz do dia, Leoric pestanejou e viu-se confrontado por um frade baixo e forte, muito moreno, que se atravessou no seu caminho e se lhe dirigiu como um anjo-da-guarda que lhe bloqueasse o caminho: - Senhor, tenho para vós uma mensagem urgente. O vosso filho está moribundo.

Foi tão brusco e curto que o atingiu como uma lança. Os dois jovens tinham saído há meia hora, tempo suficiente para um assassino atacar, para a faca de um ladrão furtivo, para muitos desastres. Leoric ergueu a cabeça e aspirou o ar de terror e arquejou:

- O meu filho...?

Só então reconheceu o irmão que fora a Aspley por ordem do abade. Cadfael viu a suspeita hostil brilhar-lhe nos olhos arrogantes, fundos, e antecipou-se a tudo o que o seu antagonista pudesse ter tido para dizer.

- Já está na altura - disse Cadfael - de vos lembrardes que tendes dois filhos. Será que ireis deixar um deles morrer sem o conforto dos sacramentos?

 

Leoric acompanhou-o: caminhava impaciente, desconfiado, intolerante, mas continuava a ir com ele. Fez perguntas e não obteve respostas. Quando Cadfael disse simplesmente: "Voltai para trás, então, se é essa a vossa vontade e ficai em paz com Deus e com ele!", Leoric cerrou os dentes e continuou.

No caminho, parou de repente, mas mais para avaliar o local onde o filho servia e sofria do que por medo das muitas doenças contagiosas que poderia encontrar lá dentro. Cadfael levou-o ao celeiro onde ainda estava o catre de Meriet, que neste momento estava sentado sobre ele, a forte bengala com a qual coxeava pelo hospício bem agarrada na mão direita e a cabeça apoiada no castão. Devia andar por ali o melhor que podia desde a Hora Prima e Mark devia tê-lo obrigado a fazer um intervalo para descansar, antes da refeição do meio-dia. Não se deu conta deles imediatamente, porque a luz dentro do celeiro era vaga e difusa e com muitas sombras. Parecia muitos anos mais velho que o jovem silencioso e submisso que Leoric trouxera para a abadia como noviço, quase três meses antes.

O pai entrou e ficou a observá-lo. Tinha o rosto fechado e zangado, mas os olhos fixavam-no, cheios de espanto, dor e indignação também, por ser levado aqui desta maneira quando o doente não tinha qualquer sinal de morte, mas inclinava-se resignado e calmo, como um homem que aceita o seu destino.

- Continuai - disse Cadfael a Leoric -, e falai com ele. Ficou na dúvida se Leoric não se iria voltar, afastar do caminho aquele guia que o enganara e voltar para trás pelo mesmo caminho. E verdade que lhe lançou um olhar furioso por cima do ombro e afastou-se da entrada da porta, mas, ou a voz baixa de Cadfael ou o som dos movimentos surpreenderam Meriet.

Levantou a cabeça e viu o pai. A mais estranha contorção de espanto, dor e afecto relutante marcou-lhe o rosto. Fez um esforço para se levantar respeitosamente e tropeçou, com apressa. A muleta escorregou-lhe da mão e caiu no chão com estrondo. Fez uma careta de dor para a alcançar.

Leoric chegou primeiro. Atravessou o espaço que os separava em três passadas longas e impacientes, empurrou o filho para o catre com um gesto brusco no seu ombro e meteu-lhe de novo a bengala na mão, mais com o ar de estar irritado pela falta de jeito do que com pena.

- Sentai-vos! - disse zangado. - Não há necessidade de vos mexerdes. Disseram-me que destes uma queda e ainda não podeis andar bem.

- Não fiquei muito mal - disse Meriet, olhando para ele com firmeza. - Muito em breve estarei a andar bem. É muito amável ter vindo ver-me, não esperava uma visita. Quereis sentar-vos?

Não, Leoric estava demasiado perturbado e demasiado agitado, olhava à sua volta para os objectos que estavam no celeiro e só lançava ao filho olhares rápidos.

- Esta vida, da maneira que a aceitastes, disseram-me que vos tem sido difícil. Pusestes a mão no arado, agora deveis acabar de lavrar. Não espereis que vos leve de volta. - A voz era dura e o rosto tinha uma expressão hostil.

- Parece que o tempo que terei de levar é curto e eu posso bem aguentar até ao fim - disse Meriet com brusquidão. - Ou não vos contaram também que confessei o que fiz e que não é necessário continuardes a proteger-me?

- Confessastes... - Leoric sentia-se perdido. Passou a mão longamente sobre os olhos, ficou a olhar e tremeu. A enorme tranquilidade do rapaz confundia mais do que teria confundido uma enorme excitação.

- Lamento ter-vos dado tanto trabalho e dor sem qualquer fim útil - disse Meriet. - Mas foi necessário falar. Estavam a fazer um erro enorme, estavam a acusar outro homem, um pobre diabo que vivia acossado e que tirava alguma comida aqui e ali. Não ouvistes falar disso? A ele, ao menos, pude livrá-lo. Hugh Beringar assegurou-me que nenhum mal lhe aconteceria. Não queríeis que o deixasse nessa situação? Dai a vossa bênção a este acto, pelo menos. - Leoric ficou uns momentos sem poder falar, o corpo alto a tremer como se lutasse com um demónio, antes de se sentar abruptamente ao lado do filho no catre que rangia, e pôs a mão sobre a de Meriet. E, embora o rosto tivesse ainda a rigidez dum mármore e o gesto da mão parecesse um golpe e a voz, quando por fim conseguiu arranjar palavras, fosse ainda dura e severa, mesmo assim Cadfael afastou-se deles em silêncio e fechou a porta quando saiu. Andou por ali e sentou-se no alpendre, não tão afastado que não ouvisse o tom das duas vozes lá dentro, embora não distinguisse as palavras, e colocado de tal modo que via a porta. Não pensou que precisasse de mais, embora por vezes a voz do pai atingisse um alto tom irado e por uma ou duas vezes a de Meriet tivesse uma esperteza clara e obstinada. Isso não interessava, estariam perdidos um para o outro sem as chispas que agora lançavam.

Depois disto, pensou Cadfael, deixá-lo mostrar toda a indiferença que quiser, que não me importarei. Voltou quando achou que era altura, porque também tinha muito a dizer a Leoric da sua própria parte antes da hora do jantar do abade. O diálogo rápido e em tom elevado terminou quando ele entrou, as poucas palavras que ainda tinham a dizer saíram em voz baixa e com um ar desajeitado.

- Entregai a Nigel e Roswitha a minha mensagem. Dizei-lhe que rezo sempre pela sua felicidade. Gostaria de lá estar e assistir ao casamento - disse Meriet sem vacilar -, mas agora não é possível.

Leoric olhou para baixo para ele e perguntou desajeitadamente:

- Tratam de vós aqui? Do corpo e da alma?

O rosto cansado de Meriet sorriu, um sorriso pálido mas quente e doce.

- O melhor tratamento que já tive na vida. Gostam muito de mim aqui entre os meus companheiros. O Irmão Cadfael sabe!

E desta vez, à despedida, não aconteceu o mesmo que anteriormente. Cadfael tinha perguntado a si próprio. Leoric voltou-se para sair, voltou atrás, lutou por um momento com o orgulho e depois dobrou-se envergonhado e muito rapidamente depositou na face erguida de Meriet um beijo que ainda parecia um golpe. O sangue fez corar a face atingida quando Leoric se endireitou, voltou e saiu do celeiro.

Foi em direcção ao portão, sem falar e rígido, os olhos olhando mais para dentro do que para fora, de tal modo que bateu com o ombro e a anca de encontro ao pilar do portão e mal deu por isso.

- Esperai! - disse Cadfael. - Vinde aqui comigo à igreja e dizei o que tiverdes a dizer, que eu farei o mesmo. Ainda temos tempo.

Na pequena igreja de uma só nave, sob a torre, estava frio e havia uma semiobscuridade e muito silêncio. Leoric entrelaçou os dedos e torceu-os e virou-se para o seu guia numa fantástica ira silenciosa.

- Será que isto foi bem feito, irmão? Trouxestes-me aqui duma maneira falsa! Dissestes-me que o meu filho estava moribundo.

- E está-disse Cadfael.-Não tendes a sua própria palavra que mostra quão perto ele sente a sua morte? Assim estais vós, assim estamos todos. A doença da mortalidade está connosco desde o ventre materno, desde o dia em que nascemos vamos a caminho da morte. O que interessa é a maneira como fazemos a viagem. Vós ouvistes-lo. Confessou o assassínio de Peter Clemence. Por que não ouvistes isso, sem ter de ouvir da boca de Meriet? Porque mais ninguém vos podia dizer isso excepto o Irmão Mark, Hugh Beringar ou eu próprio, pois mais ninguém o sabe. Meriet acredita que está a ser guardado como um criminoso, aquele celeiro é a sua prisão. Mas eu digo-vos que não é assim. Nenhum de nós três, que ouvimos a sua confissão, acredita nisso. Temos a certeza de que ele está a mentir. Vós, sois o quarto, o seu pai, e sois o único a acreditar na sua culpa.

Leoric estava a abanar a cabeça com violência e dor.

- Gostava que assim fosse, mas sei bem. Por que dizeis que ele mente? Que prova podereis ter para a vossa confiança, comparada com a que eu tenho para a minha certeza?

- Vou dar-vos uma prova da minha confiança nele - disse Cadfael -, em troca de todas as vossas provas, das vossas certezas. Logo que soube que havia outro homem acusado, Meriet confessou a sua culpa à lei, que lhe pode destruir o corpo. Mas recusa-se completamente a repetir aquela confissão a um padre e pede penitência e absolvição para um pecado que não cometeu. É essa a razão porque o acredito não culpado. Agora mostrai-me, se podeis, uma razão tão forte para acreditardes que ele é o culpado.

A cabeça grisalha atormentada continuou os movimentos angustiados de rejeição.

- Bem gostava de estar enganado e de vós estardes certo, mas sei o que vi e o que ouvi. Nunca o poderei esquecer. Agora que tenho de o contar abertamente, dado que um homem inocente ia ser condenado e Meriet, para sua honra, disse a verdade, por que não vos havia de contar a vós? O meu visitante partira são e salvo, era um dia como qualquer outro. Saí para fazer exercícios com o falcão e cães de caça e três pessoas, o meu capelão e caçador e um escudeiro, todos homens

honestos, que podem confirmar o que vou dizer. Há floresta densa a três milhas para norte da nossa casa, uma larga faixa de floresta. Foram os cães que ouviram a voz de Meriet, que para mim era um som distante, até chegarmos mais perto dele e o reconhecer. Estava a chamar o Barbary e a assobiar para o chamar, o cavalo que Peter Clemence levava. Possivelmente foi o assobio o que os cães ouviram primeiro e foram afanosamente, mas em silêncio, à procura de Meriet. Na altura em que chegámos ao pé dele, tinha o cavalo preso, deveis ter ouvido dizer que ele tem esse dom. Quando o encontrámos, tinha o homem morto agarrado por debaixo dos braços e estava a arrastá-lo para o esconder longe do caminho. Uma seta estava espetada no peito de Peter e o arco e aljava no ombro de Meriet. Quereis mais? Quando o chamei, que tinha ele feito?... nunca disse uma palavra a negar. Quando lhe ordenei que voltasse connosco e o fechei à chave até poder pensar naquela vergonha e horror, e saber o que havia de fazer, ele nunca negou, mas aceitou tudo. Quando lhe disse que o ia manter vivo e encobrir o seu pecado mortal, mas com determinada condição, ele aceitou a vida e o afastamento, creio, tanto por causa do nosso nome como pela sua própria vida, mas ele escolheu.

- Escolheu mesmo, fez mais do que aceitar - disse Cadfael -, pois disse a Isouda o que disse a todos nós mais tarde, que veio para o convento de sua própria vontade, por ser esse o seu desejo. Nunca disse ter sido forçado. Mas continuai, dizei-me o que pensais.

- Eu fiz o que lhe tinha prometido: mandei levar o cavalo bem longe para Norte, pelo caminho que Clemence deveria ter seguindo, e aí ser solto nos pântanos, onde se pudesse pensar que o dono podia ter-se afogado. Quanto ao corpo, levá-lo em segredo, com tudo o que lhe pertencia, tendo o meu capelão dito todas as orações com todo o respeito, antes de o metermos dentro de uma meda nova no local do velho carvoeiro e deitarmos-lhe fogo. Foi mal feito e contra a minha consciência, mas fi-lo. Agora responderei por isso. Não lamentarei pagar seja o que for preciso por o ter feito.

- O vosso filho já teve o cuidado - disse Cadfael duramente - de dizer que foi o autor, além da morte, de tudo o que fizestes para o encobrir. Mas não confessará mentiras ao seu confessor, um pecado tão mortal como esconder a verdade.

- Mas porquê? - perguntou Leoric zangado. - Por que haveria ele de se sujeitar e de aceitar tudo, se tivesse uma resposta para me dar? Porquê?

- Porque a resposta que tinha para vós teria sido demasiado dura para vós suportardes e insuportável também para ele. Por amor, de certeza - disse o Irmão Cadfael. - Duvido que ele tenha tido o seu próprio quinhão de amor toda a sua vida, mas aqueles que mais fome têm de amor são os que mais prontamente e melhor o dão.

- Eu amei-o - protestou Leoric, enfurecendo-se e ficando branco -, embora ele tenha sido sempre uma alma tão causadora de problemas, fazendo sempre tudo ao contrário.

- Fazer as coisas ao contrário é uma maneira de chamar a vossa atenção-disse Cadfael com tristeza -, enquanto pela virtude e obediência ninguém repara. Mas não vos importeis com isso. Vós quereis provas. O local onde o encontrastes era a menos de três milhas de distância da vossa casa... digamos, uns quarenta minutos a cavalo? E a hora a que lá chegastes era bem dentro da tarde. Quantas horas esteve Clemence morto ali? E de repente há Meriet a tentar esconder o cadáver e a assobiar para chamar o cavalo perdido sem cavaleiro. Mesmo que ele tivesse fugido aterrorizado e andasse a vaguear pela floresta pelo acto cometido, não teria tratado do cavalo antes de fugir? Ou então tê-lo-ia chicoteado para ele fugir ou apanhado e levado para longe. O que estava ele ali a fazer a chamar e a amarrar o cavalo e a esconder o corpo, aquelas horas todas depois de um homem ter morrido? Nunca pensastes nisso?

- Pensei - disse Leoric, falando agora devagar, os olhos abertos, olhando insistentemente para a cara de Cadfael - que, tal como vós dissestes, ele tinha fugido horrorizado com o que fizera e regressado, mais tarde nesse dia, para o esconder.

- Foi o que ele agora disse, mas foi para ele um grande alívio arranjar essa desculpa.

- Nesse caso - murmurou Leoric, a tremer agora de esperança e espanto e com muito medo de confiar -, o que é que o levou a aceitar um crime tão horrível? Como pôde ele fazer tanto mal a si próprio e a mim?

- Por medo, talvez, de vos causar um mal maior. E por amor de alguém de quem ele tinha razões para duvidar. Meriet tem uma grande quantidade de amor para dar - disse o Irmão Cadfael muito grave -, e vós não lhe permitiríeis dar-vos muito. Deu-o a outra pessoa, que não o repeliu, embora não lhe tenha dado o devido valor. Terei de vos dizer outra vez que tendes dois filhos?

- Não! - gritou Leoric num grito mudo de protesto e de raiva, a cabeça e os ombros mais altos que a forma quadrada e sólida de Cadfael. - Isso não quero ouvir! Imaginem! É impossível!

- Impossível em relação ao vosso herdeiro e querido filho, mas instantaneamente acreditado no irmão? Neste mundo todos os homens são falíveis e todas as coisas são possíveis.

- Mas afirmo-vos que o vi a esconder o homem morto e a suar com o esforço. Se tivesse acontecido inocentemente por acaso não teria razão para esconder a morte, teria vindo a gritá-la bem alto.

- Não, se ele apanhou inocentemente alguém que lhe é querido, irmão ou amigo, curvado sobre a mesma tarefa horrível. Vós acreditastes no que vistes, por que razão não acreditaria Meriet no que ele viu? Vós pusestes a vossa alma em perigo para encobrir o que pensáveis que ele tinha feito, por que não poderia ele fazer o mesmo por outra pessoa? Vós prometestes silêncio e encobrimento por um preço, e essa protecção oferecida a ele era certamente também protecção para outro, só que o preço era também para ser pago por Meriet. E Meriet não regateou. Pagou de livre vontade: isso não foi uma simples aceitação dos vossos termos, foi desejo dele e tentou ficar contente com ele, porque isso ia libertar alguém que ele amava. Sabeis de mais alguma criatura à face da terra que ele ame mais do que o irmão?

- Isto é uma loucura! - disse Leoric a respirar com a dificuldade de um homem que estivesse meio morto de tanto correr, - Nigel esteve todo o dia com os Lindes, a Roswitha poderá dizer-vos, Janyn também o poderá dizer. Tinha um arrufo a desfazer com a rapariga, saiu para casa dela de manhã cedo e só chegou a casa tarde nesse dia. Não sabia nada do que se tinha passado nesse dia, ficou consternado quando ouviu contar o que se passava.

- Da casa dos Lindes até esse lugar da floresta não é uma viagem longa para um homem a cavalo - disse Cadfael inexorável. - E se Meriet o encontrou ocupado e ensanguentado sobre o corpo de Clemence e lhe disse: vai, sai daqui para fora, deixa-o comigo, vai e faz que te vejam noutro sítio o dia inteiro. Eu faço o que tem de ser feito. E então?

- Estais a dizer - disse Leoric num suspiro - que Nigel matou o homem? Um crime contra a hospitalidade, contra o parentesco, contra a sua natureza?

- Não-disse Cadfael.-Mas estou a dizer que pode ser verdade que Meriet o tenha encontrado assim, tal como vós encontrastes Meriet. Por que razão seria uma prova tão evidente para vós menos convincente para Meriet? Não tinha ele uma razão poderosa para acreditar na culpa do irmão, para recear que ele estivesse culpado ou, não menos horrível, recear que ele fosse considerado culpado sendo inocente? Porque deveis ter sempre presente no espírito, se vós pudestes estar enganado ao acreditar imediatamente no que vistes, o mesmo poderia acontecer a Meriet. Porque essas seis horas de espaço ainda não as engoli e ainda não sei como explicá-las.

- É possível? - murmurou Leoric, abatido e pensativo. - Fiz-lhe tanto mal? E a minha própria acção... não deveria ir imediatamente falar com Hugh Beringar e deixá-lo julgar? Por amor de Deus, que havemos nós de fazer para corrigir o que puder ser corrigido?

- Deveis antes ir ao jantar do Abade Radulfus - disse o Irmão Cadfael -, e ter uma atitude de convidado social como ele espera que sejais e amanhã deveis casar o vosso filho tal como estava planeado. Estamos ainda a tactear no escuro e não temos outra alternativa se não esperar esclarecimento. Pensai no que disse, mas não digais absolutamente nada a ninguém. Ainda não. Deixai-os ter o dia de casamento em paz.

Mas com tudo o que sabia, no seu próprio pensamento estava certo que não seria um dia de paz.

Isouda encontrou-o na oficina no herbarium. Olhou para ela, esqueceu-se das suas preocupações e sorriu. Ela trazia o fato austero, mas rico, que achava ser apropriado para jantares com abades e, ao aperceber-se do sorriso e do brilho de Cadfael, acalmou-se e sorriu ironicamente abrindo a capa larga e tirando o capuz para o deixar admirá-la.

- Achais que vou bem?

O cabelo, curto de mais para poder ser entrançado, estava preso à volta da testa por uma rede de fita bordada, precisamente como a que Meriet tinha escondido na cama do dormitório, e sob essa reclusão juntava-se num molho de espesso de caracóis sobre o pescoço. O vestido era uma túnica de azul profundo, que se ajustava à largura das ancas e que a partir daí caía em pregas suaves sobre uma cota de lã rosa-pálido, de mangas compridas e gola alta.

Demasiado adulta, longe das cores e do corte que uma criança selvagem escolheria se lhe dessem autorização por uma vez para jantar

com os adultos. A sua postura, sempre direita e confiante, adquirira uma dignidade senhorial a condizer com o fato, e ao entrar tinha o andar de uma princesa. O colar junto ao pescoço, de pedras naturais pesadas, polidas mas não lapidadas, servia lindamente para chamar a atenção para a beleza do porte da cabeça. Não usava mais nenhum ornamento.

- Por mim acho que sim - disse Cadfael simplesmente -, se eu fosse um jovem rapaz à espera de uma moça estouvada conhecida desde criança. Estais tão pouco preparada para ele como ele estará para vós?

Isouda abanou a cabeça até fazer dançar os caracóis castanhos e deixá-los de novo pousar em desenhos novos e perturbantes sobre os seus ombros.

- Não! Pensei em tudo o que me dissestes e conheço o meu Meriet. Nem ele nem vós precisam de recear. Eu sou capaz de enfrentar a situação!

- Então, antes de irmos - disse Cadfael -, é melhor ficardes a saber tudo o que consegui juntar aqui e ali entretanto. -E sentou-se com ela e contou-lhe. Ela ouviu-o com o um rosto sério mas tranquilo, sem se perturbar.

- Ouvi, Irmão Cadfael, por que razão não há-de ele vir assistir ao casamento do irmão, uma vez que as coisas estão como dizeis? Sei que não seria uma amabilidade, ainda não, dizer-lhe que se sabe que ele está inocente e que não engana ninguém, só o iria atormentar por esse alguém que ele está a esconder. Mas vós agora conhecei-lo. Se deu a sua palavra de honra, não a violará, e Deus sabe que ele é suficientemente inocente para acreditar que os outros homens são tão honestos como ele e aceitará a sua palavra com a facilidade com que a dá. Até era capaz de acreditar que Hugh Beringar permitia a um prisioneiro que fosse assistir ao casamento do irmão.

- Ele não é capaz de andar tanto-disse Cadfael, embora tivesse ficado encantado com a ideia.

- Não precisa. Eu mando-lhe um escudeiro com um cavalo para o trazer. O Irmão Mark poderia vir com ele. Por que não? Podia vir cedo e tapado com uma capa e escolher um lugar de onde pudesse ver. O que quer que fosse que se seguisse - disse Isouda com determinação -, porque não sou tão parva que não perceba que de alguma maneira vai haver um desgosto naquela casa... o que quer que se seguisse, eu queria que ele viesse para a luz do dia, onde pertence.

Sejam quais forem os rostos que possam ser desonrados! Que o dele é bem honesto e eu quero que assim seja mostrado.

- Também eu - disse Cadfael com entusiasmo -, também eu! -Então, pedi a Hugh Beringar se o posso mandar buscar. Não sei, sinto que pode ser necessária a sua presença, que ele tem direito a estar ali, que ele deve estar ali.

- Vou falar com Hugh - disse Cadfael. - E agora vinde, vamos partir para Saint Giles, antes de escurecer.

Caminharam juntos ao longo da Porta Principal, voltaram à direita no triângulo de relva esbranquiçada da feira de cavalos e saíram por entre as casas espalhadas e os campos verdes a caminho do hospício. As árvores sombrias, como esqueletos, desenhavam padrões de renda contra um céu esverdeado e pálido.

- Este lugar é onde até os leprosos se podem abrigar? - disse ela enquanto subia a encosta coberta de relva. - Tratam-nos aqui e fazem os possíveis para os curar? Isso é uma atitude nobre!

- Têm até casos bem sucedidos - disse Cadfael. - Nunca há falta de voluntários para servir aqui, mesmo depois de uma morte. Mark trabalhou bastante para curar o vosso Meriet, tanto de corpo como de alma.

- Quando eu tiver acabado o que ele começou - disse ela de repente com um sorriso luminoso -, agradecer-lhe-ei devidamente. Agora, onde temos de ir?

Cadfael levou-a directamente para o celeiro, mas a esta hora estava vazio. Ainda não era hora da refeição da noite, mas a luz tinha desaparecido há muito tempo para qualquer actividade ao ar livre. O solitário catre estava coberto com o cobertor de cor parda.

- É a cama dele?-perguntou ela, olhando para ele com um rosto pensativo.

- É. Ele tinha-a lá em cima no sótão, com medo de perturbar os companheiros no caso de ter um mau sonho, e foi aqui que caiu. Segundo disse Mark vinha a andar a dormir para confessar a Hugh Beringar e fazê-lo soltar o prisioneiro. Podereis esperar por ele aqui? Eu vou à procura dele e trago-o aqui.

Meriet estava sentado à pequena secretária de Mark, na antecâmara da sala, arranjando a capa de um livro de orações com uma tira de cabedal. A concentração no trabalho dava-lhe uma expressão grave ao rosto, os dedos mostravam-se pacientes e habilidosos. Só quando Cadfael o informou que tinha uma visita que o esperava no celeiro é que foi sacudido por uma súbita agitação. Cadfael já estava habituado e não se importava, mas não queria mostrar-se a outros, como se sofressem de uma doença contagiosa.

- Preferia não ver ninguém - disse ele, dividido entre a gratidão por uma intenção de amabilidade e a relutância por ter de fazer o esforço de suportar a dor consequente. - O que é que isso pode agora adiantar? O que é que se pode dizer mais? Tenho estado contente com. o meu sossego aqui. - Perguntou depois com ar resignado: - Quem é?

- Alguém que não precisais de recear - disse Cadfael a pensar em Nigel, cujas atenções fraternas poderiam ser difíceis de mais de suportar, se ele as tivesse oferecido. Mas não tinha. Os noivos têm alguma desculpa por porem tudo o mais de lado, mas pelo menos deveria ter perguntado pelo irmão. - É apenas Isouda.

Apenas Isouda! Meriet respirou de alívio.

- Isouda lembrou-se de mim? Que amável. Mas... ela sabe? Que sou um criminoso confesso. Não gostaria de a enganar...

- Ela sabe. Não é preciso falar disso, ela também não falará. Ela pediu-me para a trazer aqui porque tem por vós afecto leal. Não vos custará muito passar com ela uns minutos e duvido que tenhais de falar muito, porque ela falará o suficiente.

Meriet foi com ele, ainda um tanto relutante, mas não muito perturbado pelo pensamento de ter de suportar o olhar, a compaixão, a camaradagem obstinada, talvez, de um companheiro de infância. Entre os seus mendigos, as crianças tinham sido boas para ele, simples, sem exigências, aceitando-o sem perguntas. A ternura fraterna de Isouda podia ser aceite por ele da mesma maneira, ou pelo menos ele assim o supunha.

Ela tinha usado a pederneira e a isca da caixa junto ao catre e acendido a pequena candeia, colocando-a com cuidado numa pedra larga que ali estava para isso, onde estava longe de contacto com qualquer bocado de palha, e que lançava a luz suave para os pés da cama onde se sentara. Pusera para trás a capa, que se lhe pousava nos ombros e emoldurava a grandiosidade sóbria do fato, do cinto bordado, as mãos pousadas no regaço. Quando Meriet entrou, lançou-lhe o sorriso discreto da virgem numa das pinturas mais mundanas da Anunciação, onde o anúncio é visivelmente supérfluo, pois a senhora já o sabia antes.

Meriet susteve a respiração e parou para olhar espantado para esta senhora crescida sentada calmamente à espera sobre a sua cama. Como podiam uns meses alterar tanto uma pessoa? Tinha pensado dizer com gentileza mas dum modo brusco - "Não devíeis ter vindo aqui" - mas as palavras nunca foram pronunciadas. Ali estava ela sentada, senhora de si, do lugar, do tempo, e ele quase sentiu medo dela e das tristes mudanças que ela pudesse encontrar nele: magro, a coxear, sem nenhuma semelhança com o rapaz que corria à solta com ela ainda não há muito tempo. Mas Isouda levantou-se, avançou para ele com as mãos estendidas para lhe puxar a cabeça para ela e beijou-o.

- Sabeis que quase ficastes bonito? Lamento que tenhas partido a cabeça - disse, erguendo uma mão para tocar a ferida sarada -, mas isto passa, não ireis ficar com nenhuma marca. Foi um trabalho bem feito o de quem coseu este golpe. Com certeza que me podeis beijar, ainda não sois um monge.

Os lábios de Meriet, silenciosos e gelados contra a face dela, moveram-se de repente e tremeram, fechando-se em paixão desamparada. Não por ela como mulher, ainda não, simplesmente por um calor, uma doçura, alguém que vinha para ele de braços abertos e sem perguntas nem censuras. Beijou-a inexperientemente, balançando entre a impetuosidade e a timidez perante este ser transformado, e o contacto fê-lo emitir um som rouco.

- Ainda coxeais - disse ela com solicitude. -Vinde e sentai-vos comigo. Eu não me demoro, para não vos cansar, mas não era capaz de estar tão perto sem vos vir ver. Falai-me deste lugar - comandou ela fazendo-o assentar-se na cama ao lado dela. -Aqui também há crianças, ouvi as vozes delas. Crianças muito pequenas.

Fascinado, ele começou a contar-lhe em fases quebradas, aos tropeções, acerca do Irmão Mark, pequeno, frágil e indestrutível, que tinha sobre ele o sinal de Deus e que desejava ser padre. Não era difícil falar sobre o amigo e sobre os infelizes que, porém, tiveram a felicidade de cair em tais mãos. Não disse uma única palavra sobre ele ou sobre ela, enquanto estiveram sentados de ombros unidos, voltados para dentro, um para o outro, e os olhos se mediam despreocu-padamente e notavam as diferenças provocadas por este tempo de julgamento. Ele esqueceu-se que era um homem que se condenara a si próprio, com apenas uma vida breve, mas estranhamente tranquila, à sua frente, e ela uma jovem herdeira com uma herdade que valia o dobro de Aspley e que, de repente, crescera e se tornara bela. Ali estavam, sentados e isolados do tempo e sem a ameaça do mundo. Cadfael afastou-se satisfeito e foi trocar umas palavras com o Irmão Mark, enquanto havia tempo. Ela mantinha o controlo das horas, não ia ficar tempo de mais. A arte estava em espantar, dar calor, apressar uma esperança absurda mas incrivelmente credível e depois partir. Quando achou que estava na altura de partir, Meriet trouxe-a do celeiro pela mão. Estavam ambos corados e tinham os olhos brilhantes e, pelo modo como caminhavam juntos, tinham-se libertado do primitivo embaraço e isso era bom. Ele baixou a cara para receber um beijo quando se despediram e ela beijou-o rapidamente, deu-lhe a face em troca, disse que ele era um miúdo teimoso como sempre tinha sido e, no entanto, deixou-o num estado de exaltação, quase de contentamento, e saiu dali encorajada.

- Prometi-lhe mandar o meu cavalo para o vir buscar a tempo para a cerimónia de amanhã - disse ela quando estavam a chegar às primeiras casas espalhadas da Porta Principal.

- Prometi o mesmo a Mark - disse Cadfael. - Mas era melhor ele ir tapado com uma capa e em silêncio. Meu Deus, ele sabe se tenho alguma razão para isso, mas estou nervoso e quero-o lá, mas sem os que lhe são mais próximos pelo sangue saberem.

- Estamos a preocupar-nos demasiado - disse a rapariga com vivacidade, excitada pelo seu próprio sucesso. - Disse-vos há muito tempo, ele é meu, e mais ninguém o terá. Se é necessário prender o assassino de Peter Clemence, para Meriet vir para mim, então para quê preocupar-me, pois ele será preso.

- Rapariga - disse Cadfael, respirando fundo -, aterrorizais-me como um acto de Deus. Mas acredito bem que sois capaz de coisas inesperadas.

No calor e luz suave do pequeno aposento da hospedaria, as duas raparigas que partilhavam uma cama estavam sentadas a conversar sobre os planos para o dia seguinte. Não tinham sono, tinham demasiadas coisas na cabeça para quererem dormir. A criada de Roswitha, que servia a ambas, já tinha ido para a cama há uma hora: era uma simples rapariga do campo, pouco interessada na escolha de jóias, ornamentos e perfumes para um casamento. Seria Isouda quem pentearia o cabelo da amiga, quem a ajudaria a vestir-se e a acompanharia desde a hospedaria à igreja e de volta de novo, tirando-lhe a capa dos ombros à porta da igreja, neste frio de Dezembro, pondo-a de novo quando ela saísse pelo braço do seu senhor, uma esposa acabada de casar.

Roswitha tinha estendido o seu fato de casamento, para verificar cada prega, ver bem a colocação das mangas e o feitio do corpete e pensar se não teria sido melhor ainda um fecho mais apertado para o cinto dourado.

Isouda andava a vaguear pelo quarto sem descanso, respondendo sem atenção aos comentários sonhadores e perguntas de Roswitha. Tinham as arcas de madeira das suas posses, cobertas de cabedal, colocadas contra uma parede, e tinham tirado as coisas pequenas para fora. E estavam espalhadas por todos os lados: cama, prateleira e arca. A pequena caixa que continha as jóias de Roswitha estava sobre o guarda-roupa ao lado da vela. Isouda ia metendo uma mão por dentro dela e tirava à toa uma jóia após outra. Não tinha grande interesse por este tipo de adornos.

- Usareis as pedras amarelas - perguntou Roswitha - para combinar com este fio dourado no cinto?

Isouda segurou as pedras de âmbar à luz e deixou- as escorregar devagar pelos dedos.

- Ficavam bem. Mas deixai-me ver que mais tendes aqui. Nunca me mostrastes nem metade destas. - Estava a mexer-lhes com curiosidade, quando encontrou o brilho escondido de esmaltes coloridos e tirou mesmo do fundo da caixa um pregador grande do tipo antigo de anel e alfinete: o anel com as pontas achatadas e largas ornamentadas com formas de filigrama de ouro emoldurando os esmaltes, animais sinuosos que se transformavam em folhas entrelaçadas se olhava uma segunda vez e se enrolavam de novo em forma de serpentes enquanto ela olhava. O alfinete era de prata, com a cabeça em forma de diamante com uma flor gravada em esmaltes, e a ponta tinha o tamanho do seu mínimo para além do anel, que lhe enchia a palma da mão. Um objecto principesco, feito para apertar as regras espessas de uma capa de homem. Tinha começado a dizer:

- Nunca tinha visto isto... - Antes de o ter tirado completamente e de o ver com clareza. Então, parou e o silêncio repentino fez Roswitha olhar para cima. Levantou-se rapidamente e veio meter a própria mão na caixa e enfiar o pregador de novo para o fundo, onde não se via.

- Oh, esse não! - disse ela com uma careta. - É pesado de mais e tão antiquado. Ponde tudo outra vez lá dentro, só vou precisar do colar amarelo e das travessas de prata. - Fechou a tampa com firmeza e levou Isouda para junto da cama, onde o fato estava estendido com cuidado. - Reparai, há alguns fios soltos do bordado, sois capaz de os apanhar? Sois mais hábil com a agulha do que eu.

Com um rosto plácido e uma mão firme, Isouda sentou-se e fez o que lhe fora pedido e dominou-se para não olhar outra vez para a caixa que continha o pregador. Mas chegaram as Horas Completas, partiu o fio no último ponto, pôs o trabalho de lado e anunciou que ia assistir às orações. Roswitha, que já se despia languidamente para ir para a cama, não fez qualquer movimento para a dissuadir e nenhum para a acompanhar.

Depois das Completas, o Irmão Cadfael deixou a igreja pelo alpendre sul, com a intenção de fazer uma curta visita à sua oficina para verificar se o braseiro, que tinha estado a ser utilizado anteriormente pelo Irmão Oswin, estava apagado e em segurança, se tudo estava fechado e se a porta estava devidamente cerrada para conservar o calor que restava. A noite estava estrelada, mas fria com a geada e, para ver o caminho por aquele lugar tão familiar não precisava de mais nenhuma luz. Mas, não tinha ainda passado o arco para o pátio, quando alguém o puxou pela manga e ouviu uma voz ofegante que lhe murmurava ao ouvido:

- Irmão Cadfael, tenho de vos falar!

- Isouda! O que é? Aconteceu alguma coisa? Levou-a para trás, para uma das divisões dos scriptorium. Mais ninguém ia estar agora ali e, no escuro, ficaram os dois invisíveis, encostados a um dos cantos mais escuros.

Junto do seu ombro, o rosto dela tinha uma expressão intensa, um oval pálido suspenso na escuridão da capa.

- Aconteceu, realmente! Vós dissestes que eu era capaz de fazer coisas inesperadas. Descobri uma coisa - disse ela, rapidamente e em voz baixa ao seu ouvido - na caixa de jóias de Roswitha. Escondida no fundo. Um grande pregador de anel, muito antigo e belo, de ouro, prata e esmaltes, do género que os homens faziam muito antes de os Normandos aqui chegarem. Tão grande como a palma da minha mão, com um alfinete comprido. Quando ela viu o que eu tinha na mão, veio para o pé de mim, meteu-o na caixa e fechou a tampa, dizendo que aquilo era muito pesado e antiquado para ela usar. Deixei passar e não disse nem uma palavra do que sabia. Duvido que ela perceba o que aquilo é ou como é que a pessoa que lho deu chegou à sua posse, embora pense que ele a deve ter avisado para não o usar nem mostrar a ninguém, por enquanto... Por que outra razão seria ela tão rápida a tirá-lo da minha vista? Ou então, muito simples, não gosta dele... suponho que deve ser apenas isso. Mas eu sei o que aquilo é e de onde veio, e vós também sabereis quando eu vos disser... - Estava sem fôlego, com a pressa. -Vi-o antes, o que não deve ter acontecido com ela. Fui em quem lhe segurou a capa e a levei para dentro, para o aposento que tínhamos preparado para ele. Fremund trouxe os sacos de viagem, eu levei a capa... e este pregador estava preso na gola.

Cadfael pôs uma mão sobre a pequena mão que lhe agarrava a manga.

Perguntou, meio em dúvida, já meio convencido:

- A capa de quem? Estais a dizer que isso pertencia a Peter Clemence?

- Estou a dizer isso. Sou capaz de jurar.

- Tendes a certeza que é o mesmo?

- Tenho. Levei a capa para dentro, toquei-lhe, admirei-o.

- Não, não podia haver dois assim iguais - disse ela, e respirou profundamente. - Desses objectos raros duvido que se façam dois iguais.

- Mesmo que fizessem, por que haveriam de andar os dois por este condado? Mas não, de certeza que cada um é feito para um príncipe ou para um chefe e nunca é repetido. O meu avô tinha um pregador assim, mas nem de perto tão grande nem tão precioso, e dizia que tinha vindo há muito tempo da Irlanda. Lembro-me muito bem das cores e dos animais estranhos. É o mesmo. E ela tem-no!-Tinha outra ideia e exprimiu-a com ansiedade. - O Cónego Eluard ainda aqui está, ele conhecia a cruz e o anel, com certeza que conhecia isto também e pode prestar juramento. Mas, se isso não for possível, eu também posso jurar e fá-lo-ei. Amanhã, como havemos de fazer amanhã? Porque Hugh Beringar não está aqui e não lhe pode dizer, e o tempo urge. Dizei-me, o que será melhor eu fazer?

- É o que farei - disse Cadfael devagar, a sua mão firme sobre a dela -, depois de me dizerdes mais uma coisa que é vital. Esse pregador... está completo e limpo? Sem nenhuma mancha, sem nenhuma descoloração nos metais ou nos esmaltes? Nem sequer orlas estreitas onde essas descolorações poderiam ter sido limpas?

- Não! - disse Isouda após um breve silêncio. - Não tinha pensado nisso! Não, está tal como foi feito, brilhante e perfeito. Não está como as outras jóias... Não, esta não esteve exposta ao fogo.

 

O dia do casamento amanheceu claro, luminoso e muito frio. Alguns fiapos de neve gelada, quase tão finos que não se viam, mas que se sentiam nas faces, saudaram Isouda quando atravessou o pátio para as orações da Hora Prima, mas o céu estava tão puro e claro que indicava que não iria nevar. Isouda rezou dum modo sério e abrupto, mais a exigir ajuda do céu do que suplicando-a. Da igreja foi para o estábulo para dar ordens para o escudeiro ir com o seu cavalo buscar Meriet na altura certa, na companhia de Mark, para assistir ao casamento do irmão. Depois, foi vestir Roswitha, entrançar-lhe o cabelo e apanhá-lo com as travessas de prata e a rede dourada, apertar-lhe o calor amarelo à volta do pescoço, andar à sua volta e pôr todas as pregas no lugar.

O Tio Leoric, ou para evitar este local de mulheres juntas ou seriamente preocupado com os destinos divergentes dos dois filhos, não apareceu até ser altura de ir para o seu lugar na igreja, mas Wulfric Linde ficou por ali a admirar satisfeito e beleza da filha e pareceu não achar este ar cheio de mulheres difícil de respirar.

Isouda teve para ele um olhar suave e tolerante: um homem amável e pateta, competente a extrair bom lucro da herdade e razoável com os seus rendeiros e vilões, mas sem nunca olhar mais para além, e sempre o último a saber o que os filhos ou os vizinhos andavam a fazer.

Nesta altura, algures, Janyn e Nigel estavam certamente ocupados com a mesm;a dança arcaica, aprontando o noivo para o que era simultaneamente triunfo e sacrifício.

Wulfric estudou a colocação da túnica de Roswitha e fê-la dar uma volta sobre si própria para a admirar de todos os ângulos. Isouda afastou-se, e deixou-os a conversar satisfeitos, totalmente absorvidos, enquanto ela procurava com a mão no fundo da caixa o pregador antigo que pertencera a Peter Clemence e o prendeu pelo alfinete na manga larga.

O jovem escudeiro Edred chegou a Saint Giles com dois cavalos, bem a tempo de trazer Meriet e o Irmão Mark para o isolamento sombrio da igreja, antes de chegarem os convidados. Apesar da vontade natural de assistir ao casamento do irmão, Meriet não queria ser visto, por se considerar um criminoso acusado e uma vergonha para a casa de seu pai. Assim dissera, quando Isouda lhe prometeu trazê-lo e lhe assegurou que Hugh Beringar permitiria a indulgência e aceitaria a palavra de honra do prisioneiro de não se aproveitar de tal clemência; os escrúpulos tinham servido bem ao fim de Isouda na altura e eram agora ainda mais bem-vindos. Não precisava de se dar a conhecer e ninguém o reconheceria ou mesmo iria notá-lo. Edred ia trazê-lo cedo e poderia instalar-se seguramente num canto escuro do coro, mesmo antes de os convidados chegarem, um lugar afastado de onde pudesse ver sem ser visto. E quando o par de noivos sair casado e os convidados os seguirem, então ele poderá sair sem ser notado e voltar à sua prisão com o seu amável carcereiro, que era necessário como amigo e testemunha, embora Meriet nada soubesse da necessidade que poderia haver de testemunhas informadas.

- E a senhora de Loriet ordenou-me-disse Edred com vivacidade - para ter os cavalos em frente do edifício, prontos para quando quisésseis voltar. Prendo-os do lado de fora da hospedaria, até o resto das pessoas entrarem, se vós quiserdes. Não vos importais, irmãos, que eu tire uma hora para sair enquanto estiverdes lá dentro? Uma irmã minha tem uma casa na Porta Principal, um casebre pequeno para ela e para o homem dela. - Havia também uma rapariga de quem ele gostava, no casebre a seguir, mas isso não sentiu necessidade de dizer.

Meriet saiu do celeiro com o capuz descido para lhe cobrir o rosto. Não trazia a bengala, mas ainda andava um bocado coxo com o pé torcido. Mark mantinha-se perto dele, observando o seu perfil rígido, magro, parecia ainda mais delgado por causa do capuz de tecido escuro, um rosto moreno claro, de nariz erguido, delicado.

- Será que devia intrometer-me assim? - perguntava Meriet, a voz adelgaçada pela dor. - Ele não perguntou por mim - disse ele,. dorido, e afastou a cara, envergonhado por se estar a queixar assim.

- Deveis e tendes de o fazer - disse Mark com firmeza. - Prometeste-o à senhora e ela ofereceu-se para tornar a vossa visita fácil. Agora, deixai o escudeiro dela ajudar-vos a montar, não podeis ainda usar esse pé à vontade, não podeis saltar.

Meriet consentiu que o escudeiro lhe estendesse a mão para se pôr na sela.

- E se é o próprio cavalo dela... - disse Edred, olhando orgulhoso para o cavalo alto e jovem. - E ela é uma cavaleira exímia e acha que ele é excelente. Não deve haver muitas pessoas a quem ela deixasse montar este cavalo, posso dizer-vos.

Ocorreu a Meriet, um tanto tarde, perguntar a si próprio se não estaria a exigir de mais do Irmão Mark, ao forçá-lo a montar um cavalo desconhecido e possivelmente aterrorizador para ele. Sabia tão pouco deste irmão pequeno, esforçado, apenas o que era, nada do que fora anteriormente, nem há quanto tempo usava o hábito; havia aquelas crianças do claustro que desde a infância usavam hábito. Mas o Irmão Mark pôs o pé no estribo com bastante rapidez e levantou o seu peso leve para a sela, sem elegância mas também sem dificuldade.

- Cresci numa quinta - disse ele, ao notar os olhos espantados de Meriet. - Desde a infância que lido com cavalos, não com as vossas raças apuradas, mas com cavalos de trabalho. Trabalho como eles, mas consigo-me aguentar lá em cima e sou capaz de levar o animal para onde ele deve ir. Comecei muito cedo-disse ele, recordando-se de longas horas meio a dormir e a labutar no campos, a agarrar as pedras que trazia no saco para atirar aos corvos ao longo do rego do arado.

Saíram ao longo da Porta Principal, dois irmãos beneditinos montados no cavalo com um jovem escudeiro a caminhar ao lado. A manhã de Inverno ainda estava no início, mas o tráfego humano era já vivo, homens que iam alimentar o gado, donas-de-casa que iam às compras, carregadores com a carga às costas, crianças que corriam e brincavam, toda a gente pronta a tirar proveito da bela manhã, onde em todo o caso a luz do dia era breve e podia haver poucas manhãs assim boas. Como irmãos da abadia, cumprimentavam as pessoas todo o caminho.

Desmontaram em frente da portaria e deixaram os cavalos com Edred para os guardar como dissera. Aqui no recinto onde tinha dado entrada, por uma razão sua e uma razão contrária do pai, Meriet ficou parado irresoluto e a tremer, mas Mark pegou-lhe no braço e arrastou-o para dentro. Através do grande pátio, cheio de movimento mas atraente, encaminharam-se para a obscuridade abençoada e fria da igreja e, se alguém reparou neles, nunca ficaram a magicar quem seriam os dois irmãos que se dirigiam encapuçados e com tanta pressa numa manhã tão gelada.

Edred, a assobiar, prendeu os cavalos como tinha dito que faria e saiu para ir visitar a irmã e a rapariga da casa ao lado.

Hugh Beringar, que não era convidado do casamento, estava porém no local, tão cedo quanto Meriet e Mark, e também não vinha sozinho. Dois dos seus guardas andavam por ali por entre a multidão que se movia no pátio grande, onde vários habitantes curiosos da Porta Principal se tinham juntado aos criados laicos, rapazes e noviços, e aos vários mendigos de passagem alojados na casa comum. Apesar de estar frio, tencionavam ver tudo o que houvesse para ver. Hugh manteve-se fora de vista na antecâmara da hospedaria, onde podia observar sem ser observado. Aqui tinha à mão todos os que tinham estado mais perto da morte de Peter Clemence. Se o fermento deste dia não tivesse qualquer resultado, então tanto Leoric como Nigel tinham de ser chamados a prestar declarações e obrigados a dizer fosse o que fosse que soubessem.

Como agradecimento a um generoso benfeitor da abadia, o Abade Radulfus tinha decidido ser ele próprio a celebrar a cerimónia de casamento e isso assegurava a presença do seu convidado, o Cónego Eluard. Além disso, o sacramento seria celebrado no altar principal, não no paroquial, uma vez que era o abade a oficiar e o coro dos monges estaria completamente no seu lugar. Isso impediu Hugh de poder trocar umas palavras com Cadfael. Uma pena, mas conheciam-se um ao outro o suficiente para actuar agora em união, mesmo sem combinação prévia.

Já se dera início ao lento cerimonial da reunião dos convidados que passavam do salão para a igreja em grupos de dois ou de três, com os seus melhores fatos. Uma reunião de pessoas do campo, não de cortesãos, mas igualmente orgulhosa e de linhagem tão antiga ou mais antiga. Rodeada por um grande grupo de testemunhas, saxões e nor-mandos, Roswitha Linde ia para o seu casamento. Shrewsbury fora dada ao grande Conde Roger quase logo quando o Duque William se tornou rei, mas muitas herdades pelo território permaneceram com o antigo dono e muitos entre os novos proprietários normandos tiveram o bom senso de casar com uma mulher saxã e assegurar a sua aquisição através de sangue mais antigo que o seu próprio e assegurar também uma lealdade que não era devida a si próprio.

A multidão interessada mudava de posição e fazia comentários esforçando-se para arranjar o melhor local para ver os convidados a passar. Passou Leoric Aspley e depois o seu filho Nigel, aquele jovem esplêndido, vestido de molde a ter o melhor aspecto possível, e Janyn Linde, que o acompanhava, com um sorriso divertido e indulgente, bastante apropriado a um rapaz solteiro, simpático, que assiste à perda de liberdade de outro jovem. Isso quer dizer que todos os convidados já deviam estar a ocupar os seus lugares. Os dois jovens pararam à porta da igreja e tomaram aí o seu lugar.

Roswitha veio da hospedaria embrulhada na capa azul, pois o seu fato era muito leve para uma manhã de Inverno. Não havia dúvida, ela era bonita, pensou Hugh ao observá-la a descer os degraus de pedra dando o braço ao gordo e complacente Wulfric. Cadfael tinha-a descrito como uma rapariga incapaz de resistir a chamar à atenção de todos os homens sobre si, mesmo a de monges velhos sem qualquer atractivo ou presença. Agora tinha o melhor público que jamais teria na vida, alinhado de cada lado a vê-la passar sem pressa para a igreja, olhando embasbacado, cheio de admiração. E nela parecia tão inocente e louco como um gosto exagerado por mel. Ter ciúmes dela seria absurdo.

Isouda Foriet, reservada e eclipsada por um tal esplendor, caminhava atrás da noiva, segurando-lhe o livro de orações dourado e pronta para a ajudar à porta da igreja, onde Wulfric ergueu a mão da filha do seu próprio braço e a colocou na mão de Nigel, ansioso por a receber.

Noiva e noivo entraram juntos pelo portal da igreja e aí Isouda tirou a capa quente dos ombros de Roswitha e dobrou-a, colocando-a sobre o seu próprio braço, e assim seguiu o par nupcial para a nave pouco iluminada da igreja.

Não no altar paroquial de Santa Cruz, mas no altar-mor de S. Pedro e S. Paulo, Nigel Aspley e Roswitha Linde tornaram-se marido e mulher.

Nigel fez a sua saída triunfal da igreja pela porta Oeste, que ficava do lado de fora do enclave da abadia, muito perto da Porta Principal. Segurava Roswitha cerimoniosamente pela mão e estava tão cego e embriagado pelo orgulho da posse que é de duvidar que tenha tido consciência até da presença de Isouda que estava de pé no átrio, quanto mais da capa que ela estendeu com as mãos e colocou sobre os ombros de Roswitha, quando a noiva e o noivo chegaram à luminosidade fria do meio-dia lá fora. Depois deles, saíram os orgulhosos pais e os convidados satisfeitos, e se o rosto de Leoric tinha invulgarmente um tom cinzento e uma expressão sombria para uma ocasião assim, ninguém pareceu notar, ele era um homem austero em todas as situações.

Nem Roswitha notou o pequeno peso extra no ombro esquerdo proveniente de um adorno próprio para um homem usar. Ela apenas tinha olhos para a multidão que a admirava, que ondeava e suspirava com aprovação pela sua imagem. Aqui, fora da muralha, a multidão tinha engrossado, dado que todos os que tinham qualquer coisa a fazer na Porta Principal tinham vindo ver. "Aqui não", pensou Isouda, que seguia com atenção, "aqui não haverá qualquer reacção, aqui todos aqueles que poderiam reconhecer o pregador caminham atrás dela, e Nigel está tão distraído quanto ela. Só quando eles se voltarem para ir para a hospedaria, depois de se mostrarem na porta da paróquia, é que alguém notará. E se o Cónego Eluard me desiludir, pensou resoluta, então falarei eu, a minha palavra contra a dela ou de qualquer homem."

Roswitha não estava com pressa: os seus passos a descer a escada, a atravessar o empedrado do átrio exterior para a portaria, eram lentos e majestosos, para que cada homem pudesse ver bem. Isso foi uma oportunidade óptima, porque, entretanto, o Abade Radulfus e o Cónego Eluard deixaram a igreja pelo transepto e claustro e observavam de pé, com benevolência, junto da escada para a hospedaria e os monges do coro tinham-nos seguido para saírem e se dispersarem e misturarem com a multidão.

O Irmão Cadfael encaminhou-se para um lugar perto de onde o abade e o seu convidado estavam para, tal como eles, ver o par que avançava. Sobre o tecido pesado da capa de Roswitha o grande pregador destacava-se, agressivamente masculino. O Cónego Eluard parou de chofre, no meio de uma calma observação ao ouvido do abade, e o sorriso bondoso desapareceu e deu lugar a um franzir de testa intencional, como se a esta curta distância a sua vista não o conseguisse convencer de que estava a ver o que realmente vira.

- Mas aquilo... - murmurou ele, mais para si próprio do que para qualquer outra pessoa. - Não não, como pode ser isto?

A noiva e o noivo aproximavam-se e fizeram uma reverência cortês aos dignitários da igreja. Atrás deles, vinha Isouda, Leoric, Wulfric e todos os convidados. Sob o arco da hospedaria, Cadfael viu o cabelo louro de Janyn e os olhos brilhantes e azuis, quando ele parou para trocar uma palavra com alguém conhecido que estava entre a multidão na Porta Principal e depois chegou com o seu passo leve e saltitante, e a sorrir.

Nigel estava a guiar a sua esposa para o primeiro degrau de pedra da escada, quando o Cónego Eluard deu um passo em frente e se interpôs, fazendo com a mão um gesto para eles pararem. Só então, seguindo a direcção do seu olhar fixo, é que Roswitha olhou para baixo para a gola da capa que lhe caía solta dos ombros e viu o brilho das cores de esmalte e os contornos delgados de outro dos animais fantásticos, entrelaçados em folhas sinuosas.

- Filha - disse Eluard -, posso olhar mais de perto? - Tocou nos fios de ouro salientes e na cabeça de prata do alfinete. Ela observou num silêncio circunspecto, espantado e pouco à vontade, mas não ainda defensiva ou receosa. - Tendes aqui um objecto belo e raro - disse o cónego, olhando-a com um franzir de testa leve. - Onde o arranjastes?

Hugh tinha avançado e estava a ver e a ouvir da parte de trás da multidão. A um canto do claustro, dois irmãos de hábito observavam à distância. Imobilizado entre os espectadores à volta da porta oeste e a multidão que agora inexplicavelmente parara no pátio grande e não desejando ser notado por ninguém, Meriet estacou rígido e imóvel na sombra, com o Irmão Mark a seu lado, esperando voltar-se sem ser visto para a sua prisão e refúgio.

Roswitha humedeceu os lábios e disse com um sorriso pálido:

- Foi uma prenda de um familiar.

- Estranho! - disse Eluard, e voltou-se para o abade com um rosto sério. - Meu senhor abade, conheço este pregador bem, demasiado bem para me enganar. Pertencia ao Bispo de Winchester e ele ofereceu-o a Peter Clemence... àquele funcionário da sua casa que muito admirava e cujos restos mortais jazem na vossa capela.

O Irmão Cadfael notara já uma circunstância digna de registo.

Estivera a olhar para a cara de Nigel desde o primeiro momento em que o jovem baixara os olhos para o adorno que estava a causar tanto interesse e, até esse momento, não houvera qualquer sinal de que o pregador tivesse para ele qualquer significado. Olhava do Cónego Eluard para Roswitha e de novo para o primeiro, um olhar espantado que lhe franzia a testa, e ostentava um sorriso interrogador nos lábios, à espera que alguém o esclarecesse. Mas agora que tinha sido nomeado o proprietário, teve de repente significado para si e um significado sinistro e assustador. Empalideceu e ficou rígido, olhando para o cónego, mas, embora a garganta e os lábios trabalhassem, ou não encontrou palavras ou achou melhor não pronunciar as que encontrou e permaneceu calado. O Abade Radulfus tinha-se aproximado de um lado e Hugh Beringar do outro.

- O que se passa? Reconheceis esta jóia como pertencente a Peter Clemence? Tendes a certeza?

- Estou tão seguro deste como dos outros objectos que lhe pertenciam e que vós já me mostrastes: a cruz, o anel e o punhal, que foram com ele para o fogo. A este tinha ele uma afeição especial por ter sido uma prenda do bispo. Se o estava a usar ou não nesta última viagem não o posso dizer, mas era seu hábito, por gostar muito dele.

- Se me dais autorização para falar - disse Isouda com clareza por detrás do ombro de Roswitha -, eu sei que ele estava a usá-lo quando chegou a Aspley. O pregador estava na sua capa quando eu a recebi à porta e a levei para o aposento preparado para ele e estava na sua capa quando a trouxe para fora na manhã seguinte, quando ele nos deixou. Não precisava da capa para ir a cavalo, a manhã estava quente e bonita. Levou-a sobre a sela, quando se afastou.

- Bem à vista, então - disse Hugh Beringar. Porque a cruz e o anel tinham sido deixados no homem morto e tinham ido com ele para o fogo. Ou tinha havido pouco tempo e a fuga fora imperativa ou algum terror supersticioso tinha evitado que o assassino tirasse a um padre as jóias com que oficiava, as que estavam sobre o corpo, embora não tivesse quaisquer escrúpulos em tirar este belo objecto que estava ao alcance da sua mão. - Podeis observar, meus senhores - disse Hugh -, que esta jóia parece não mostrar marcas de estrago. Se nos permitis que a seguremos e a possamos examinar...

"Bom", pensou Cadfael, reconfortado, "já devia saber que Hugh não ia precisar que eu lhe dissesse nada. Agora posso-o deixar tratar de tudo."

Roswitha não fez nenhum movimento, nem para permitir, nem para impedir, quando Hugh lhe tirou o pregador do lugar. Continuou a olhar com um rosto pálido e apreensivo, mas nunca disse uma palavra. Não, Roswitha não estava totalmente inocente neste assunto; se sabia o que era aquela prenda ou não e se sabia ou não qual a sua origem, tinha com certeza percebido que era perigoso e que não devia ser mostrado... ainda não! Talvez não aqui?! E depois do casamento iriam para Norte, para a propriedade de Nigel. Quem é que ia a iria reconhecer?

- Isto nunca esteve no fogo-disse Hugh, e passou o pregador ao Cónego Eluard para confirmação. - Tudo o mais que o homem trazia foi queimado com ele. Apenas isto lhe foi tirado, mesmo antes de aqueles que construíram a pira chegarem. E só uma pessoa, que fosse a última a vê-lo vivo, a primeira a vê-lo morto, lhe pode ter tirado isto da capa enquanto ele estava deitado, e essa pessoa foi o seu assassino. Voltou-se para Roswitha, que ostentava uma palidez translúcida, como uma mulher de gelo, olhando para ele com olhos abertos e horrorizados.

- Quem vo-lo deu?

Ela lançou um olhar em volta e depois, como se de repente sentisse coragem, respirou fundo e respondeu em voz alta e clara:

- Meriet!

Cadfael acordou abruptamente para a compreensão de que possuía conhecimentos que ainda não confiara a Hugh e, se esperava pelo desafio certo para esta declaração arrojada de outros lábios, podia esperar em vão e perder o que já fora ganho. Para a maioria dos que ali estavam reunidos não havia nada de incrível nesta grande mentira que ela acabara de dizer, nem nada surpreendente, tendo em consideração as circunstâncias da entrada de Meriet para o convento e a história do noviço do diabo dentro destas paredes. E ela tinha agarrado no silêncio geral breve como um encorajamento e estava a aumentar descaradamente:

- Ele andava sempre a seguir-me com os seus olhos de cão. Eu não queria as prendas dele, mas aceitei-o para ser amável com ele. Como podia eu saber onde ele o tinha arranjado? - Quando? - perguntou Cadfael em voz alta, como alguém que tivesse autoridade. - Quando é que ele vos deu esta prenda?

- Quando? - Ela olhou em volta, mal sabendo donde partira a pergunta, mas respondeu rápida e positivamente, para acentuar a convicção. - Foi no dia seguinte ao Sr. Clemence ter saído de As-pley... o dia depois de ter sido morto... à tarde. Veio ter comigo em Linde. Insistiu para eu aceitar... Eu não queria magoá-lo... - Pelo canto do olho, Cadfael viu que Meriet tinha avançado do seu lugar na sombra e que se tinha aproximado um pouco, e Mark seguira-o ansiosamente, embora sem tentar sustê-lo. Mas, no momento seguinte, todos os olhos se fixaram na figura alta de Leoric Aspley, quando ele se aproximou e lançou para a frente os ombros para ficar em frente do filho e da nova esposa deste.

- Rapariga - gritou Leoric -, pensai no que dizeis! Está certo mentir? Eu sei que isso não pode ser verdade. - Voltou-se com veemência, enfrentando o olhar do abade, do cónego e do juiz-deputado com olhos tristes, inflexíveis. -Meus senhores, o que ela diz é falso. Confesso a parte que tive nisto e aceito com alegria a pena que por isso me cai. Porque isso sei, trouxe para casa o meu filho Meriet, naquele mesmo dia em que trouxe o corpo morto do meu convidado e parente, e por ter para isso razão, ou assim pensar, que o meu filho matara, fechei-o à chave a partir dessa altura, até pensar, e ele aceitar, o destino que lhe reservei. Desde o fim da tarde do dia em que Peter Clemence morreu, durante todo o dia seguinte e até ao meio-dia do terceiro, o meu filho Meriet ficou prisioneiro dentro da minha casa. Nunca visitou esta rapariga. Nunca lhe deu esta prenda, pois nunca a teve na sua posse. E também não ergueu a mão contra o meu hóspede e parente, como agora ficou provado! Que Deus me perdoe por ter acreditado!

- Não estou a mentir! - gritou Roswitha, lutando para conquistar o crédito que sentira ao seu alcance. - Um erro apenas... confundi o dia! Foi no terceiro dia que ele veio...

Meriet tinha-se aproximado muito lentamente. Do fundo do seu capuz os olhos enormes olhavam, observando o pai ao mesmo tempo maravilhado e cheio de angústia, o irmão adorado e o seu primeiro amor, que tão desesperadamente o atacava. Os olhos errantes e suplicantes de Roswitha encontraram os seus, e ela emudeceu como um pássaro que tivesse sido atingido durante o voo e encolheu-se nos braços de Nigel com um gemido de desespero.

Meriet ficou parado durante um longo momento, depois voltou-se e saiu dali rapidamente a coxear.

O movimento de pé coxo era como se a cada passo sacudisse a poeira.

- Quem vos deu isto? - perguntou Hugh.

Toda a multidão se tinha aproximado, a olhar e a escutar, não deixando de perceber a sequência do que se tinha passado. Uma centena de pares de olhos fixaram-se gradualmente e sem remores em Nigel. Ele sabia-o e ela também.

- Não, não, não! - gritou ela, voltando-se para enlaçar os braços impetuosamente em redor do marido. - Não foi o meu senhor... não foi Nigel! Foi o meu irmão que me deu o pregador!

Nesse instante, toda a gente presente olhava em volta, à procura do cabelo louro, os olhos azuis e o sorriso alegre, e os soldados de Hugh estavam a furar por entre as pessoas e saíram precipitadamente para o portão sem nenhum resultado. Janyn Linde tinha desaparecido em silêncio e circunspectamente, provavelmente com passos lentos, a partir do momento em que o Cónego Eluard notou os esmaltes brilhantes no ombro de Roswitha. E o mesmo acontecera ao cavalo de Isouda, o melhor dos dois presos do lado de fora da hospedaria para uso de Meriet.

O porteiro não prestara atenção a um jovem que se afastou inocentemente e montou sem pressas. Foi um jovem da Porta Principal, de olhos inteligentes e sabedores, que informou os soldados que um jovem cavaleiro tinha saído pelo portão, há um quarto de hora, tinha desprendido o cavalo e saído pela Porta Principal, mas não em direcção à cidade. O rapazito astuto disse que começara a andar a cavalo devagar no início, mas que já se ia em bom galope quando chegou à esquina da feira de cavalos e desapareceu.

Do caos do pátio grande, que teria de se organizar sem a sua ajuda, Hugh correu para o estábulo, para ele próprio montar um cavalo, assim como os soldados que iam com ele; mandou vir mais homens para perseguirem o fugitivo, se uma tal palavra se podia aplicar com propriedade a um malfeitor tão alegre e competente como era Janyn.

- Mas porquê, pelo amor de Deus, porquê? - disse Hugh apertando a cilha no estábulos e apelando ao Irmão Cadfael que a seu lado estava ocupado na mesma tarefa. - Por que razão havia ele de matar? O que poderia ele ter contra o homem? Nunca o tinha visto antes, não estava em Aspley naquela noite. Como diabo sabia ele qual a aparência do homem por quem estava à espera?

- Alguém lho tinha descrito... e ele sabia quando tinha partido e a estrada que ia tomar, isso é simples.-Mas todo o resto era ainda obscuro, tanto para Cadfael como para Hugh.

Janyn fugira, tinha-se escapado com delicadeza do alcance da lei em bom tempo, prevendo que tudo ia ser descoberto. Ao fugir, tinha-se acusado do seu acto, mas o acto em si continuava inexplicável.

"Não pelo homem", inquietava-se Cadfael, arquejava Cadfael para si próprio, atrás de Hugh, que punha o cavalo a trote para sair do pátio e da portaria. "Não pelo homem, então deve ter sido pela missão. Que mais poderia ser? Mas por que haveria alguém de desejar evitar que completasse a sua bem intencionada ida a Chester, para tratar o assunto do bispo? Que mal poderia vir daí a alguém?"

O grupo de convidados do casamento tinha-se espalhado indeciso pelo pátio, as famílias envolvidas tinham-se refugiado na hospedaria, os amigos mais chegados tinham seguido fielmente para longe da vista, onde as feridas podiam ser tratadas e as discussões apaziguadas sem o testemunho da multidão. Convidados mais distantes preferiram afastar-se discretamente. Os habitantes da Porta Principal, satisfeitos e entretidos, passaram a informação por todos os lados, acrescentando pormenores quando a transmitiam, e continuavam atentos à portaria.

Hugh tinha os homens reunidos e o pé no estribo, quando o som furioso de cacos a galope, raramente ouvidos na Porta Principal, chegaram ecoando loucamente ao longo da parede do enclave, e soaram no empedrado do caminho. Um cavaleiro exausto, a suar em cima de um cavalo coberto de espuma, segurou as rédeas numa paragem que fez o cavalo resvalar nas pedras cobertas de geada e, pode dizer-se, que, em vez de desmontar, caiu nos braços de Hugh, sem força nos joelhos para se manter de pé. Todos os que tinham ficado no pátio, entre eles o Abade Radulfus e o Prior Robert vieram à pressa para junto do recém-chegado, na expectativa de notícias desesperadas.

- O Juiz Prestcote - disse com dificuldade o mensageiro -, ou quem o representa aqui... a pedido do senhor Bispo de Lincoln, depressa, ele implora que seja depressa...

- Eu estou aqui em lugar do juiz - disse Hugh. - Dizei! Qual é a mensagem urgente do senhor bispo?

- Que reunais todos os cavaleiros do rei ao serviço no condado - disse o mensageiro, exprimindo-se com força -, porque no Nordeste há traição. Dois dias depois de o senhor nosso rei sair de Lincoln, Ra-nulf de Chester e William de Roumare introduziram-se no castelo através de um subterfúgio e tomaram-no pela força. Os cidadãos de Lincoln clamam a sua Graça para que os salve de uma abominável tirania, e o senhor bispo conseguiu enviar para fora um aviso, através de vigilância apertada, para contar a Sua Graça o que aconteceu. Somos agora muitos, que levamos a cavalo a mensagem para todos os lados. Ao cair da noite chegará a Londres.

- O Rei Stephen esteve lá há mais ou menos uma semana - gritou o Cónego Eluard-, e eles testemunharam a sua fé nele. Como é isto possível? Eles prometeram uma cadeia forte de fortalezas através do Norte.

- E fizeram isso - disse o enviado, respirando com dificuldade -, mas não ao serviço do Rei Stephen, nem também da imperatriz, mas para o seu próprio reino no Norte. Foi planeado há muito, quando se encontraram e convocaram os seus castelões para Chester em Setembro, com ligações para Sul até aqui e guarnições e condes-táveis prontos para cada castelo. Têm estado a reunir homens jovens à sua volta em todo o lado para os seus próprios fins...

Foi então assim! Planeado há muito, em Setembro, em Chester, para onde Peter Clemence se dirigia com uma mensagem de Henry de Blois, uma visita muito inoportuna para intervir num local onde se concebia uma tal conspiração e uma tal companhia reunia armas. Não admira que Clemence não pudesse andar sem ser atacado e completar a sua embaixada. E com ligações até aqui!

Cadfael agarrou o braço de Hugh.

- Havia dois metidos juntos nisto, Hugh. Amanhã este par acabado de casar estava para ir a caminho do Norte para as fronteiras do condado de Lincoln: é Aspley quem tem lá a herdade, não Linde. Prendei Nigel, enquanto podeis! Se não for já muito tarde!

Hugh voltou-se para olhar apenas por um instante, compreendeu o peso disto, largou a rédea e correu, chamando com um sinal os soldados para o seguirem para a hospedaria. Cadfael estava junto dele, quando irromperam ao pé do grupo desmoralizado do casamento, sem alegria, apetite ou vontade, à volta da mesa em que ninguém tocava e num tom de conversa mais próprio dum velório que de um casamento.

A noiva chorava desconsoladamente nos braços de uma forte matrona, com três ou quatro mulheres à volta a consolá-la. Não se via o noivo em parte nenhuma.

- Foi-se embora! - disse Cadfael. - Enquanto estávamos no estábulo, não há outra hipótese. E sem ela! O Bispo de Lincoln mandou a mensagem para fora de uma cidade bem guardada, pelo menos um dia antes do que deveria ter sido.

Do lado de fora da hospedaria, não havia nenhum cavalo preso, quando consideraram essa hipótese e correram a ver. Nigel tinha agarrado a primeira oportunidade de seguir o seu companheiro de conspiração para as terras, cargos e honras que William de Roumare lhes prometera, onde jovens capazes de feitos de armas e de poucos escrúpulos podiam arranjar um futuro mais rico do que em duas modestas herdades de Shropshire na orla da Floresta Grande.

 

Agora havia assunto novo e sensacional para a má língua e os espectadores na Porta Principal. Tendo apanhado tudo o que conseguiram com as orelhas estendidas e os olhos aguçados, foram espalhar a novidade. E havia uma rebelião planeada no Norte, uma proposta para estabelecer um reino para os condes de Chester e Lincoln, que os belos rapazes do casamento faziam parte da conspiração desde há muito e tinham fugido porque o assunto viera à luz do dia antes de poderem fazer uma saída ordeira como fora planeado. O Senhor Bispo de Lincoln, que não era um grande amigo do Rei Stephen, achara contudo que Chester e Roumare eram ainda mais censuráveis e conseguiu mandar a notícia para fora para ser levada ao rei e implorar salvação para si próprio e para a sua cidade.

As vindas e idas pela ponte para a abadia eram observadas com avidez. Hugh Beringar, dividido entre dois caminhos, delegara a perseguição dos traidores aos soldados, enquanto ele se dirigiu a cavalo imediatamente para o castelo, para mandar chamar os cavaleiros do condado para estarem prontos e juntarem-se à força que o Rei Stephen estaria certamente a reunir para cercar Lincoln, para começar a requisitar montadas suficientes para as suas forças e ver se tudo o que precisava da armaria estava em ordem. O mensageiro do bispo ficou alojado na abadia e a mensagem foi levada rapidamente no seu caminho por outro cavaleiro para os castelos do Sul do condado. Na hospedaria, o grupo de convidados abalado e a noiva abandonada continuavam invisíveis, fechados com as ruínas da festa.

Tudo isto, e mal passava das duas horas do vinte e um de Dezembro! E que mais iria acontecer antes da noite, quem poderia adivinhar, se as coisas se precipitavam àquela velocidade?

O Abade Radulfus tinha restabelecido a ordem doméstica e os irmãos foram obedientemente jantar no refeitório por sua ordem expressa, um tanto mais tarde que o habitual. O horarium da casa não podia ser totalmente abandonado, mesmo por causas tão devastadoras como assassínios, traição e caça ao homem. Além disso, tal como o Irmão Cadfael concluiu depois de reflectir, aqueles que tinham sobrevivido a esta sublevação para ganhar em vez de perder, podiam ser deixados a descansar e recobrar o fôlego em. paz, antes de terem de se encontrar e de chegar a novos termos. E aqueles que tinham perdido tinham de ter tempo de recusar a derrota. Quanto aos fugitivos, o primeiro tivera uma boa vantagem e o segundo beneficiara da chegada de notícias ainda mais chocantes para ganhar algum espaço de avanço, mas, apesar de tudo isso, os cães de caça estavam no seu encalço. Bem conscientes da estrada a tomar agora, pois a herdade do Norte de Aspley ficava algures a Sul de Newark e alguém que para lá quisesse seguir devia ir pela estrada para Stafford. Algures na planície, perto dessa cidade, a noite devia estar a cair sobre os viajantes. Podiam pensar que era seguro pernoitar na cidade.

Ao sair do refeitório, Cadfael foi para o seu habitual destino durante as horas da tarde de trabalho: a cabana no jardim das plantas aromáticas onde preparava as suas misteriosas poções. E eles lá estavam, os dois jovens de hábito beneditino, sentados em silêncio lado a lado no banco encostado à parede do fundo. O lume muito mortiço do braseiro iluminava-lhes as faces, fracamente. Meriet estava encostado para trás nas tábuas, cansado, o capuz atirado para os ombros, o rosto sombrio. Tinha mergulhado no mais profundo da ira, dor e amargura e viera de novo à superfície para encontrar Mark a seu lado, constante e paciente; e agora estava a descansar, sem pensar nem sentir, pronto a nascer de novo para um mundo modificado, mas não com pressa. Mark tinha o aspecto que tinha sempre, suave, quase a suplicar perdão, como se implorasse um direito frágil para estar onde estava, e no entanto era capaz de sofrer por isso até à morte.

- Pensei que vos podia encontrar aqui - disse o Irmão Cadfael e pegou no fole pequeno e ateou o braseiro que ficou com uma cor viva, porque ali não estava lá muito quente. Fechou e tapou a porta para não deixar entrar nem sequer a aragem que conseguia passar pelas frinchas. - Duvido que tenham comido - disse ele, apalpando ao longo da prateleira por detrás da porta. - Há aqui bolos de aveia e algumas maçãs e penso que tenho um bocado de queijo. Será melhor que comam. E também tenho um vinho que não lhes fará mal nenhum.

E imaginem, o rapaz tinha fome! Era assim tão simples. Tinha feito há pouco dezanove anos e era fisicamente robusto e desde o nascer do dia que não comia nada. Começou sem ouvir nada, dócil à persuasão e, à primeira dentada, ficou de novo vivo e esfomeado, os olhos brilhantes do fulgor do braseiro a dourar-lhe e a adoçar-lhe as faces encovadas. O vinho, tal como Cadfael previra, não lhe fez mal nenhum, o sangue correu-lhe pelo corpo outra vez, com calor novo.

Não disse nem uma palavra sobre o irmão, o pai, o amor perdido. Era ainda muito cedo. Tinha ouvido a falsa acusação de um deles, a falsa suspeita de outro e o quê do terceiro? Deixara-o continuar a sofrer o seu devoto e louco auto-sacrifício, sem uma palavra para o absolver. Tinha ainda uma grande carga de amargura para sacudir do coração. Mas, graças a Deus, voltou à vida para comer e comeu como um rapazinho de escola esfomeado. O Irmão Cadfael sentiu-se bastante encorajado.

Na capela mortuária, onde Peter Clemence jazia no seu caixão selado em cima da eça coberta com um panejamento, Leoric Aspley escolhera fazer a sua confissão e pediu ao Abade Radulfus para ser o padre e ouvi-la. De joelhos no chão de pedra, por sua escolha, contou a história tal como a conhecia, a descoberta terrível do filho mais novo a arrastar o homem morto para o tapar e esconder dos olhos de todos, a aceitação tácita da culpa por Meriet e a sua própria relutância em entregar o filho para ser morto ou deixá-lo ir em liberdade.

- Prometi-lhe que tomaria conta do homem morto, mesmo pondo a minha alma em perigo, e que ele devia viver, mas em penitência perpétua e afastado do mundo. E ele concordou com isso e aceitou o castigo, como agora sei ou receio saber, por amor do irmão, de quem ele tinha mais razão para acreditar ser um assassino do que razão eu tinha para atribuir a Meriet a mesma culpa. Receio, pai, que ele tenha aceitado o seu destino tanto por minha causa como pelo irmão, por ter razão, para minha vergonha, para acreditar... não, para saber... que eu construí tudo para Nigel e muito pouco para ele e que poderia continuar a viver afastando-o da minha vida, embora a perda de Nigel fosse a minha morte. Como agora está mesmo perdido, mas posso e vou continuar a viver. Por isso o meu pecado contra o meu filho Meriet não é apenas esta dúvida sobre ele, esta fácil aceitação do seu crime e o seu fastamento para o convento, mas estende-se para trás até ao nascimento num desprezo de toda a sua vida. E quanto ao meu pecado contra vós, pai, e contra esta casa, que também confesso e de que me arrependo, por dispor assim dum assassino suspeito e de assim forçar um jovem sem verdadeira vocação, foi vil contra ele e em relação a esta casa. Tende isso também em conta, porque quero ficar livre de todas as minhas dívidas.

- E quanto ao meu pecado contra Peter Clemence, meu hóspede e parente, ao negar-lhe um funeral cristão para proteger o bom nome da minha própria casa, fico contente agora que a mão de Deus fez uso do meu próprio filho para descobrir e desfazer o mal que eu tinha feito. Seja qual for a penitência que vós decretardes para mim em relação a este assunto, eu acrescentar-lhe-ei uma dádiva para que sejam rezadas missas pela sua alma enquanto eu for vivo...

Tão orgulhoso e rígido na confissão dos seus pecados como em corrigi-los no filho, desenrolou a história até ao fim e até ao fim Radulfus ouviu com paciência e gravidade e deu-lhe a absolvição.

Leoric ergueu-se e saiu com uma inusitada humildade e temor para procurar o filho que tinha abandonado.

O som de alguém a bater à porta fechada e tapada da oficina de Cadfael chegou quando o vinho, preparado por Cadfael há três anos, começara a aquecer Meriet e a trazê-lo para uma hesitante reconciliação com a vida, tornando pouco nítidas as duras recordações da traição. Cadfael abriu a porta e, no doce anel de luz projectada pelo braseiro, apareceu Isouda no seu belo fato de casamento, carmim, rosa e marfim, uma rede prateada à volta do cabelo, o rosto solene e importante. Na entrada da porta havia uma figura mais alta atrás dela, pouco iluminada no escuro do Inverno.

- Pensámos que podíamos encontrar-vos aqui-disse ela, e a luz dourou o seu sorriso leve e seguro. - Sou um arauto. Sois procurado por toda a parte. O vosso pai suplica-vos que o deixeis falar convosco. - No lugar onde estava sentado, Meriet ficou rígido, sabendo quem estava por detrás dela.

- Não é a maneira como costumava ser chamado à presença do meu pai - disse ele, num jacto de malícia e dor. - Na sua casa as coisas não aconteciam assim.

- Então muito bem - disse Isouda sem se perturbar. - O vosso pai ordena-vos que o deixes entrar aqui, ou faço-o eu em seu nome, e era melhor que aceitásseis com respeito. - E deu um passo para o lado, chamando com o olhar o Irmão Cadfael e Mark de uma forma imperiosa, enquanto Leoric entrava na cabana, a sua figura alta a tocar nos ramos de plantas secas que estavam pendurados nas traves.

Meriet levantou-se do banco e fez uma reverência lenta, hostil mas formal, as costas tão rígidas como o próprio orgulho, os olhos a arder. Mas a voz estava calma e firme quando disse:

- Por favor, entrai. Quereis sentar-vos, senhor?

Cadfael e Mark afastaram-se, cada um para seu lado, e seguiram Isouda para o frio da escuridão. Atrás deles ouviram a voz de Leoric dizer muito calma e humildemente:

- Não me recusais um beijo?

Houve um silêncio breve e perigoso, depois Meriet disse com voz rouca:

- Pai... - E Cadfael fechou a porta.

Na charneca para Sudoeste da cidade de Stafford, mais ou menos à mesma hora, Nigel Aspley cavalgava para dentro de mato espesso, sobre erva espessa, e quase foi de encontro ao seu amigo, vizinho e camarada de conspiração, Janyn Linde, que praguejava e suava em cima de um cavalo que caminhava a coxear de uma pata traseira depois de a ter torcido e caído no chão. Nigel ficou aliviado ao reconhecê-lo, porque não tinha vontade de se meter numa aventura sozinho e desceu para ir ver o que poderia causar aquele dano. Mas o cavalo de Isouda coxeava muito e era óbvio que não podia continuar.

- Vós? - gritou Jany. - Conseguistes escapar, então? Maldito sej a este animal, deitou-me ao chão e magoou-se.-Agarrou o braço do amigo. - Que fizestes com a minha irmã? Deixaste-a para ela responder por tudo? Ela vai enlouquecer!

- Ela está bem e em segurança, mandaremos chamá-la logo que possamos... Vós a acusares-me! -enfureceu-se Nigel, voltando-se furioso para ele. - Vós escapaste-vos a tempo e deixaste-nos em apuros. Quem é que nos afundou neste charco para começar? Mandei-vos eu matar o homem? Tudo o que pedi foi que mandásseis um cavaleiro à frente para dar o aviso, para eles tirarem tudo o que estava à vista depressa antes de ele chegar. Eles podiam ter feito isso!

Como podia eu enviar? O homem estava alojado ali na nossa casa, não podia mandar ninguém que não dessem pela sua falta... Mas vós... vós tivestes de o abater...

- Eu tive a dureza de fazer o que tinha de ser feito, onde vós teríeis hesitado - disse Janyn com uma expressão de desprezo no lábios. - Um cavaleiro nunca chegaria lá a tempo. Eu assegurei-me de que o lacaio do bispo nunca lá chegaria.

- E deixaste-o no chão! Deitado no meio do caminho!

- Para vós serdes suficiente louco para ir a correr, para lá mal eu vos disse! - Janyn mostrou o seu desprezo por tal fraqueza de vontade e de coragem. - Se o tivésseis deixado no chão, quem iria alguma vez saber quem o tinha abatido? Mas vós tivestes de vos assustar e ir a correr tentar escondê-lo, que era muito melhor não esconder. E deixar o pobre do vosso irmão apanhar-vos e o vosso pai a ele! Que eu alguma vez tenha dado uma missão tão alta a uma pessoa em quem não se pode confiar!

- E que eu tenha dado ouvidos a um demónio que assim me tentou! - disse Nigel. - Agora, aqui estamos abandonados. Este animal não pode andar... bem vedes! E a cidade ali a uma milha de distância e a noite a tombar...

- Eu tive um bom avanço - disse Janyn irritado, batendo com os pés na erva descolorida -, e a sorte à minha frente e o animal teve de cair! E vós ides estar lá para apanhar as honras devidas aos dois... vós que vos fostes abaixo à primeira ameaça! Maldito dia!

- Calai-vos! - Nigel voltou-se de costas em desespero, acariciando o flanco do cavalo coxo coberto de suor. - Como gostava que nunca vos tivesse posto a vista em cima, para chegar a este ponto, mas não vos vou abandonar. Se precisais de ser levado para trás... achais que ele estão muito para trás de nós? Iremos para trás os dois. Mas ao menos vamos tentar chegar a Stafford. Vamos deixar este aqui amarrado para poder ser encontrado e montar e correr por turnos no outro...

Ainda estava voltado de costas, quando o punhal lhe entrou pelas costelas e ele cambaleou e se dobrou, ainda sem sentir qualquer dor, apenas o esvair da vida e da força que o deixaram cair quase suavemente na relva. O sangue corria-lhe da ferida e aquecia-lhe o lado, correndo para tingir de vermelho o chão debaixo dele. Tentou levantar-se e não foi capaz de mexer nem uma mão.

Janyn ficou um bocado a olhar para ele sem piedade. Duvidava de que o golpe em si fosse fatal, mas achou que demoraria menos de meia hora que o outrora seu amigo se esvaísse em sangue, o que também servia. Voltou o corpo inerte com um pé, limpou o punhal na erva e voltou-se para montar o cavalo que Nigel tinha montado. Sem olhar para trás, esporeou o cavalo e foi num trote rápido para Stafford, por entre as árvores que escureciam.

Os soldados de Hugh, vindo a grande velocidade, uns dez minutos mais tarde encontraram o homem meio morto e o cavalo coxo e, dividindo as forças, os dois continuaram a cavalgar para tentar alcançar Janyn, enquanto os outros dois ficaram para salvar homem e cavalo: confiaram o cavalo de Isouda à casa mais próxima e levaram Nigel para Shrewsbury, pálido, envolvido em ligaduras e sem sentidos, mas vivo.

- ... ele prometeu-nos títulos, castelos e honras... William de Roumare. Foi quando Janyn foi comigo ao Norte a meio do Verão para vermos a minha herdade... foi Janyn quem me convenceu. - Nigel dava expressão à sua tristeza, fragmentos soltos da sua confissão ao escurecer do dia seguinte, outra vez consciente e meio desejando que não estivesse. Tantos olhos à volta da sua cama: o pai direito e de rosto desolado aos pés, a olhar para o seu herdeiro com olhos magoados; Roswitha ajoelhada ao seu lado direito, sem lágrimas agora, mas de cara inchada de tanto ter chorado; o Irmão Cadfael e o Irmão Edmund, o enfermeiro, vigilantes na penumbra para o caso de o doente abusar das suas forças. E, à sua esquerda, Meriet, outra vez de calças e túnica, sem o hábito negro que nunca lhe assentara bem, e parecendo estranhamente mais alto, mais magro e mais velho do que quando o vestira pela primeira vez. Os olhos distantes e sérios como os do pai foram os primeiros que Nigel vira ao acordar. Não se sabia o que se passava na mente por detrás deles.

- Nós temos sido seus homens desde essa altura... Sabíamos a altura determinada para o ataque a Lincoln. Tencionávamos ir para o Norte depois do casamento. Janyn ia connosco... mas Roswitha não sabia! E agora perdemos. Foi divulgado muito cedo...

- Quanto ao dia da morte - disse Hugh, que estava ao lado de Leoric.

- Sim... Clemence. Durante a ceia ele disse qual era a sua missão. E eles estavam ali em Chester, todos os condestáveis e castelões... no acto! Quando levei Roswitha a casa disse a Janyn e implorei-lhe que mandasse um cavaleiro imediatamente, durante a noite, para os avisar. Ele jurou que o faria... eu fui lá no outro dia de manhã cedo, mas ele não estava, não chegou antes do dia e quando perguntei se estava tudo bem, ele disse muito bem! Porque Peter Clemence estava morto na floresta e a reunião em Chester em segurança. Riu-se de mim por estar assustado. Deixai-o estar, disse ele, quem foro mais esperto, há caminhos por todo o lado... Mas eu tinha medo! Fui à procura dele, para o esconder até ser noite...

- E Meriet apanhou-vos no acto - disse Hugh.

- Tinha cortado a seta, para o mover melhor. Tinha sangue nas mãos... que outra coisa poderia ele pensar? Jurei que não tinha sido eu, mas ele não acreditou. Disse-me: ide depressa, lavai o sangue, voltai para junto de Roswitha, passai o dia fora, eu farei o que tem de ser feito. Pelo amor ao nosso pai, disse ele... ele tem tantas esperanças em vós, disse ele, partir-lhe-ia o coração... E eu fiz o que ele disse! Uma morte por ciúmes, deve ter ele pensado... nunca soube o que eu tinha... o que nós tínhamos... de encobrir. Afastei-me e deixei-o ser apanhado como culpado do que não fizera...

As lágrimas saltaram dos olhos de Nigel. Estendeu a mão às cegas para uma mão qualquer que o consolasse com um toque e foi Meriet quem de repente caiu de joelhos e a agarrou. O rosto manteve-se obstinadamente sério e ainda mais parecido com o do pai, mas aceitou a mão que tacteava e segurou-a com firmeza.

- Só de noite, quando fui para casa, é que ouvi... Como podia eu falar? Teria traído todos... todos... todos... Quando Meriet foi libertado de novo, quando nos disse que ia tomar o hábito, então fui ter com ele - afirmou Nigel. - Ofereci-me... Ele não me deixou meter-me. Disse que estava decidido e que queria e que eu tinha de deixar as coisas acontecerem...

- É verdade - disse Meriet. - Eu convenci-o. Para quê tornar o mau ainda pior?

- Mas ele não sabia da traição... Arrependo-me - disse Nigel, retorcendo a mão que segurava a sua e acalmando-se na sua fraqueza, bem-vindo refúgio do seu actual tormento. - Arrependo-me do que fiz à casa de meu pai... e sobretudo a Meriet... Se viver, corrigirei os meus erros...

- Ele vai viver - disse Cadfael, contente por escapar daquele leito doloroso para o ar gelado do grande pátio e respirar profundamente de novo no nevoeiro prateado. - Sim, e redimir-se dos presentes males alistando-se nas tropas do Rei Stephen, se conseguir pegar em armas na altura em que Sua Majestade se deslocar para Norte. Só pode ser depois da festa, há que juntar um exército. E embora tenha a certeza que o jovem Janyn pretendia matar, pois para ele parece tão fácil como sorrir, o seu punhal não foi pelo caminho certo e não provocou nenhum dano mortal. Uma vez que o alimentemos e o deixemos descansar e recuperar do sangue que perdeu, Nigel vai ser outra vez o mesmo homem e vai fazer o seu dever por quem lhe der mais vantagens. A não ser que acheis que ele está pronto para ser acusado de traição?

- Nesta época louca - disse Hugh com tristeza -, o que é a traição? Com dois monarcas em campo e uma dúzia de reizinhos como Chester e mesmo com pessoas como o Bispo Henry entre duas ou três lealdades? Não, deixai-o descansar, ele é apenas um meio traidor e não é um assassino... isso acredito, não teria estômago para isso.

Por detrás deles, Roswitha saiu da enfermaria, aconchegando a capa contra o frio, e cruzou-se com eles num passo apressado a caminho da hospedaria. Mesmo depois da humilhação, abandono e dor, ela tinha alegria em parecer bonita, embora por estes dois homens, pelo menos, pudesse passar à pressa e desviar os olhos.

- A beleza física só não chega - disse o Irmão Cadfael um tanto melancolicamente, olhando para ela. -Ah, bem, eles estão bem um para o outro. Deixai-os ficar juntos.

Leoric Aspley pediu uma audiência ao abade nesse dia depois das Vésperas.

- Pai, há ainda duas questões que queria levantar convosco. Há este irmão da vossa irmandade em Saint Giles, que foi um autêntico irmão para o meu filho Meriet, para além do seu irmão de sangue. O meu filho contou-me que o maior desejo do irmão Mark é tornar-se padre. É certo que é digno disso. Pai, ofereço o dinheiro que for necessário para os anos de estudo que precise para atingir o seu objectivo. Pago tudo e ainda lhe fico a dever.

- Eu próprio já notei a inclinação do Irmão Mark - disse o abade -, e aprovo-a. Aceito a vossa oferta de bom grado.

- E a segunda coisa-disse Leoric-diz respeito aos meus filhos, porque aprendi que tenho dois, como um certo irmão desta casa arranjou duas vezes ocasião para me recordar e com boas razões. O meu filho Nigel casou com a filha de uma herdade que agora precisa de um outro herdeiro que herdará através da esposa, se reparar as faltas confessadas. Assim, tenciono estabelecer a minha herdade de Aspley para o meu filho mais novo, Meriet. Quero dizer que tenciono dar a conhecer a minha intenção num documento e suplico-vos para serdes uma das testemunhas.

- Com boa vontade - disse Radulfus, sorrindo gravemente - e alegria me separo dele, para o encontrar noutro modo de vida, fora deste lugar que nunca foi designado para o ter aqui dentro.

O Irmão Cadfael foi nessa noite, antes das Completas, para a sua oficina, para fazer a sua ronda habitual e verificar se tudo estava em ordem, o braseiro apagado ou tão fraco que não constituísse nenhuma ameaça, todos os utensílios que não estavam em uso limpos e arrumados, os seus vinhos a fervilhar, as tampas em todos os frascos e garrafas. Estava cansado mas tranquilo, o mundo à sua volta não estava mais caótico do que há dois dias atrás e entretanto o inocente estava livre, não sem grande custo. Porque o rapaz tinha adorado o irmão fácil, afável, simpático, muito mais agradável à vista e muito mais dotado em graças e atributos físicos do que ele jamais seria, tão amado, muito mais vulnerável e frágil se apenas se visse a alma. A adoração estava agora no fim, mas a compaixão e lealdade, mesmo a piedade, pode ser tão encantadora. Meriet fora o último a abandonar o quarto de doente de Nigel. É estranho pensar que deve ter custado uma grande angústia de ciúme deixá-lo ali durante tanto tempo, acorrentado ao irmão e a deixar ir embora o pai. Tinham ainda terríveis ajustamentos a fazer entre os três, antes de tudo se resolver.

Cadfael sentou-se com um suspiro na sua escura cabana, com apenas um brilho de brasas acesas por companhia. E ainda faltava um quarto de hora para as Completas. Hugh tinha finalmente ido para casa, fazendo esta noite uma pausa na tarefa de reunir homens para o serviço do rei. O Natal ia chegar e partir e Stephen ia mover-se - aquela alma suave, admirável, letárgica de inclinações generosas, espicaçado para a acção violenta por um acto de traição. Era capaz de movimentos rápidos quando queria, o seu problema era que as animosidades depressa morriam. Não era verdadeiramente capaz de odiar. E algures no Norte, bem longe em direcção ao seu objectivo, cavalgava Janyn Linde, sem dúvida ainda a sorrir, assobiando, de coração leve, com os seus dois inevitáveis homens mortos atrás dele, e a irmã, que estivera mais próxima de si do que qualquer outro ser humano, embora posta de lado como uma luva que se tira. Hugh teria Janyn Linde nos seus olhos, quando veio com Stephen para Lincoln. Um jovem leve com pesadas enormidades pelas quais tinha de responder e de pagar aqui ou depois. Seria melhor que fosse aqui.

Quanto ao vilão Harald, havia um ferrador na cidade do lado da ponte ocidental que estava disposto a aceitá-lo e, logo que o espírito do público o esquecesse, seria calmamente libertado para começar aqui um trabalho honesto. Um ano e um dia num burgo, e seria um homem livre.

Sem querer, Cadfael fechara os olhos por um curto momento, encostando-se bem na parede de madeira, com as pernas confortavelmente estendidas à frente e tornozelos cruzados. Apenas a corrente de ar gelado lhe penetrou o sono e o fez abrir os olhos. E eles ali estavam na sua frente, de pé e de mão dada, a sorrir muito gravemente, imagens gémeas de indulgência para a sua idade e preocupações, o rapaz transformado num homem e a rapariga transformada no que sempre fora em botão, uma mulher formidável. Apenas havia o brilho quase morto do braseiro para os iluminar, mas eles brilhavam duma maneira muito satisfatória.

Isouda largou a mão do seu companheiro de brincadeira e dobrou-se para beijar a face enrugada e vermelha de Cadfael.

- Amanhã cedo vamos para casa. Nessa altura, pode não haver oportunidade de nos despedirmos. Mas não estaremos longe. Roswitha fica com Nigel e levá-lo-á para casa, quando ele estiver bom.

A luz secreta brincava no rosto dela, redondo, suave e forte, e encontrava reflexos vermelhos no cabelo. Roswitha nunca fora assim tão bela.

- Nós amamos-vos muito! - disse Isouda num impulso, falando pelos dois, no seu modo confiante. - A vós e ao Irmão Mark! - Agarrou-lhe e face sonolenta nas mãos durante um instante e afastou-se rapidamente para o dar a Meriet.

Ele tinha estado lá fora com ela à geada, e o frio tinha-lhe colorido as faces. No ar mais quente, dentro da cabana, o seu cabelo escuro e espesso, ainda felizmente sem tonsura, caía-lhe sobre a testa e estava parecido com a primeira vez que Cadfael o tinha visto, a descer do cavalo, à chuva, para segurar as rédeas do pai, teimoso e diligente, quando aqueles dois, tão perigosamente parecidos, estavam em pontos opostos num assunto de morte. Mas o rosto sob os caracóis molhados estava agora calmo, resignado mesmo, reconhecendo um irmão mais fraco que precisava de lealdade. Não pelos seus actos desastrosos, mal pela sua pobre carne pecadora e espírito.

- Então nós perdemos-vos!-disse Cadfael.-Se tivésseis vindo por vossa própria escolha ter-me-ia alegrado convosco, precisamos de um homem de acção para nos agitar. O Irmão Jerome precisa, de vez em quando, de uma mão à volta do pescoço.

Meriet teve a graça de corar e a serenidade para sorrir.

- Fiz as pazes com o Irmão Jerome, muito civilmente e com muita humildade, vós teríeis aprovado. Espero que sim! Desejou-me boa sorte e disse que continuaria a rezar por mim.

- Sim, de verdade! - Em alguém que era capaz de perdoar uma injúria à pessoa, mas não à sua dignidade, isso era simpático, e contava a favor de Jerome. Ou seria apenas que ele estava contente de ver pelas costas o noviço do diabo?

- Eu era muito jovem e tonto - disse Meriet com uma indulgência de sábio para o rapaz imaturo que fora, acariciando no coração cheio de dor e recordação de uma rapariga que ele iria acusá-lo despudoradamente de ser culpado de assassínio e roubo.-Lembrais-vos - perguntou Meriet - das poucas vezes que vos chamei "irmão"? Eu tentava adaptar-me. Mas não era o que eu sentia ou o que queria dizer. E agora no fim parece que é a Mark que vou ter de chamar "pai", embora ele seja aquele de quem sempre pensaria como um irmão. Eu estava a precisar de um pai. Só desta vez, permitis que vos chame... como eu teria gostado de vos chamar então?

- Meu filho Meriet - disse Cadfael, levantou-se com vivacidade para o abraçar e lhe pôr um beijo paternal na face gelada e lisa -, sois da minha família e sereis bem-vindo para o que eu tiver e vós precisardes. E lembrai-vos que eu sou galês e isso é um laço para toda a vida. Estais satisfeito?

O beijo foi retribuído, com solenidade e fervor, por lábios frios que ardiam num calor ardente. Mas Meriet tinha mais um pedido a fazer e segurou a mão de Cadfael quando o enunciou.

- E, enquanto ele aqui estiver, dar-lhe-eis a mesma bondade ao meu irmão? Porque a necessidade dele é maior do que a que eu tive.

Afastado discretamente para a sombra, Cadfael pensou que ouvira Isouda soltar uma breve gargalhada e depois suspirar profundamente, mas, se assim foi, Meriet nada ouviu.

- Filho - disse Cadfael abanando a cabeça por uma devoção tão obstinada -, sois ou um idiota ou um santo e eu agora não estou com paciência para nenhum deles. Mas por amor à paz, sim, fá-lo-ei, fá-lo-ei! O que puder fazer, farei. Vá, ide-vos embora! Levai-o, rapariga, e deixai-me apagar o braseiro e fechar a oficina, se não chego atrasado às Completas!

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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