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CÃES NEGROS
CÃES NEGROS

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

CÃES NEGROS / Ian McEwan

 

 

 

 

 

QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo. QUARTA PARTE - ST. MAURICE DE NAVACELLES l946

Na primavera de 1946, aproveitando a Europa recém-libertada e o câmbio favorável, meus sogros, Bernard e June Tremaine, partiram em lua-de-mel para uma viagem
pela França e pela Itália. Conheceram-se em 1944 na casa do Senado, em Bloomsbury, onde ambos trabalhavam. O pai da minha mulher, formado em ciências por Cambridge,
exercia uma função burocrática ligada perifericamente ao serviço de inteligência. Alguma coisa relacionada com o suprimento de itens especiais. Minha sogra era linguista
e trabalhava num escritório que tinha ligações com a França Livre, ou como ela dizia, procurava suavizar as arestas entre a Inglaterra e de Gaulle. Algumas vezes
ela esteve na mesma sala
com de Gaulle. Foi a tradução de parte do projeto que visava adaptar máquinas de costura com pedal à geração da eletricidade que a levou ao escritório do seu futuro
marido. Só tiveram permissão de deixar os empregos quase um ano depois do fim da guerra. Casaram em abril. Pretendiam passar o verão viajando antes de se instalarem
para se adaptar ao tempo de paz, à vida de casados e ao trabalho civil.
No tempo em que essas coisas tinham mais importância para mim, eu pensava muito nesse diferente trabalho dos tempos de guerra, acessível a pessoas de classes
diferentes, nessa intensa pressuposição de escolha, nesse desejo jovem de experimentar novas liberdades que, ao que eu sabia, mal tinham tocado as vidas dos meus
pais. Eles também casaram logo depois do final da guerra. Minha mãe foi uma garota land, uma coisa que ela detestava lembrar, segundo uma das minhas
tias. Em 1943 ela passou a trabalhar numa fábrica de munições, perto de Colchester. Meu pai estava na infantaria. Sobreviveu intacto à retirada de Dunquerque, lutou
no norte da África e finalmente encontrou a bala destinada a ele num dos desembarques na Normandia. A bala atravessou sua mão direita sem atingir o osso. Meus pais
podiam ter viajado depois da guerra. Aparentemente herdaram algumas centenas de libras do meu avô logo depois que meu pai saiu da ativa. Teoricamente, estavam livres
para viajar, mas duvido que a idéia lhes tenha ocorrido, ou a qualquer um dos seus amigos. Eu costumava considerar como mais um aspecto da estreiteza da minha formação
o fato de o dinheiro ter sido usado para comprar a casa em que eu e minha irmã nascemos e abrir a loja de ferragens que nos manteve até a morte dos meus pais num
acidente.
Agora, acho que compreendo um pouco mais. Meu
sogro passava horas no seu trabalho estudando problemas como o da geração de força silenciosa para operar radiotransmissores nas fazendas remotas da França onde
não havia eletricidade. À noite, ele voltava para casa em Finchley, para a insossa dieta dos tempos de guerra, e as visitas de fim de semana aos pais, em Cobham.
Mais tarde, durante a guerra, veio o namoro, com cinema e caminhadas dominicais nas Chilterns. Comparemos a isso a vida de um sargento da infantaria: viagens obrigatórias
ao exterior, o tédio alternando-se com o estresse, as mortes violentas e os terríveis ferimentos dos amigos, nenhuma privacidade, nenhuma mulher, notícias irregulares
de casa. A perspectiva de uma vida de
mediocridade obrigatória e ritmada deve ter adquirido, na lenta e árdua caminhada para o leste, atravessando a Bélgica com a mão ferida e latejante, uma luminosidade
completamente desconhecida para meus sogros.
Compreender tais diferenças não as tornam mais atraentes, e eu sempre tive certeza de qual das guerras eu teria escolhido. O casal em lua-de-mel chegou à
cidade de Lerici, na costa da Itália, em meados de junho. Ficaram chocados com o caos e a devastação na Europa do pós-guerra, especialmente no norte da França e
da Itália. Ofereceram-se para o trabalho voluntário, durante seis semanas, num posto de distribuição da Cruz Vermelha na periferia da cidade. Era um trabalho de
longas horas, pesado e árduo. Todos estavam exaustos, preocupados com a emissão diária dos víveres, e ninguém parecia se importar com o fato de estarem em lua-de-mel.
Seu chefe
imediato, "il capo", começou a implicar com eles. Estava sempre disposto a falar sobre sua diferença com os britânicos. Ficaram hospedados na casa do Signor e Signora
Massucco, que choravam ainda a perda dos dois únicos filhos, mortos na mesma semana, a oitenta quilômetros um do outro, um pouco antes da rendição da Itália.
Às vezes, o jovem casal acordava durante a noite com o choro lamentoso dos dois.
O racionamento de comida, pelo menos no papel, era adequado mas a corrupção local o reduziu ao mínimo. Bernard apanhou uma doença de pele que passou das
mãos para o pescoço e para o rosto. June recebia propostas todos os dias, apesar do aro de latão que fazia questão de usar no dedo. Os homens estavam sempre chegando
muito perto ou se esfregando nela quando passava pelo barracão mal iluminado onde eram guardados os pacotes para distribuição ou beliscavam seu traseiro ou seu braço.
O problema, disseram as
outras mulheres, era seu belo cabelo.
Os Tremaine podiam ter abandonado o trabalho a qualquer momento, mas insistiram. Era a pequena compensação que podiam oferecer por terem passado a guerra
confortavelmente. Era também a expressão do seu idealismo. Estavam "ganhando a paz", e ajudando a "construir uma nova Europa". Mas sua partida de Lerici foi triste.
Ninguém os viu sair. O casal de italianos estava cuidando de um parente
agonizante no último andar e a casa estava cheia de familiares. O posto da Cruz Vermelha ocupava-se com um escândalo de desfalque. Bernard e June saíram discretamente
antes do dia clarear, no começo de agosto, e foram para a estrada esperar o ônibus que os levaria para o norte, para Gênova. Ali parados na meia-luz da madrugada,
deprimidos e em silêncio, certamente iam se sentir mais animados por terem contribuído para uma nova Europa, se soubessem que já haviam concebido sua primeira filha,
minha mulher, que mais tarde lutaria arduamente por uma cadeira no Parlamento europeu.
Viajaram de ônibus e de trem para o oeste, passando por Provença, enfrentando enchentes e tempestades. Em Arles conheceram um funcionário do governo francês
que os levou de carro a Lodève, no Languedoc. Ele garantiu que, se os dois aparecessem no seu hotel dentro de uma semana,
os levaria até Bordeaux. O céu estava claro, não precisavam estar na Inglaterra antes de duas semanas e resolveram sair para uma curta caminhada.
Essa é a região onde as causses, grandes platôs de calcário, erguem-se a centenas de metros acima da planície costeira. Em alguns pontos os penhascos têm
desfiladeiros espetaculares de dezenas de metros. Lodève fica no sopé de um desses passos, vem depois uma estreita estrada rural, hoje a movimentada RN9. Ainda é
uma bela escalada, embora, com o tráfego, não muito agradável para se fazer a pé. Naquele tempo era possível passar um dia subindo tranquilamente entre as enormes
formações rochosas, até se avistar o Mediterrâneo brilhando atrás de nós, quase cinquenta quilômetros ao sul. Os Tremaine passaram a noite na pequena cidade de Le
Caylar, onde compraram chapéus de pastor com abas enormes. Na manhã seguinte, saíram da estrada e seguiram para o leste, atravessando a Causse de Larzac, levando
dois litros de água cada um.
Esses são alguns dos espaços mais vazios da
França. O número de habitantes é muito menor do que há cem anos. Estradas empoeiradas, que não constam dos melhores mapas, o vento soprando nas grandes extensões
de urze, tojo e gualtéria. Fazendas e povoados desertos no meio de um verde surpreendente, onde pequenos pastos são divididos por muros antigos de pedra e os caminhos
entre eles, flanqueados por altos arbustos de amoras-pretas, rosas silvestres e carvalhos, lembram o aconchego dos campos da Inglaterra. Mas logo cedem o lugar ao
vazio novamente.
Quase no fim do dia, os Tremaine chegaram ao Dólmen de la Prunarède, uma câmara funerária pré-histórica. Então, poucos metros adiante, estavam na borda de
um profundo desfiladeiro aberto na rocha pelas águas do rio Vis. Pararam para comer suas últimas provisões - tomates enormes de uma espécie nunca vista na Inglaterra,
pão de dois dias, seco como biscoito, e um salsichão que June cortou com o canivete de Bernard. Há horas eles caminhavam em silêncio e agora, sentados na pedra horizontal
do dólmen, olhando para o norte, por cima do abismo, para a Causse de Blandas, e mais além, para os montes
Cévennes, começaram uma conversa animada na qual o caminho que fariam no dia seguinte, atravessando o campo desconhecido e glorioso, confundia-se com sua vida no
futuro. Bernard e June eram membros do Partido Comunista e falavam do caminho que tinham pela frente. Durante horas, complexos detalhes domésticos, distâncias entre
as pequenas cidades, a escolha das trilhas, a derrubada do fascismo, a luta de classes e o grande motor da história cuja direção só a ciência conhecia e que garantia
ao partido seu direito inalienável de governar, tudo se incorporou numa vista espetacular, uma avenida convidativa que se
estendia desde o começo do seu amor e atravessava a vasta imensidão da causse e das montanhas que começavam a se avermelhar para depois ficarem escuras. E à medida
que a escuridão se acentuava, aumentava também a inquietação de June. Estaria já perdendo a fé? Um silêncio imutável a tentava, a atraía, mas sempre que interrompia
seu discurso otimista para dar atenção a ele, o vazio se enchia com as sonoras frases feitas de Bernard, as vacuidades militarizadas, o "front", os "ataques", os
"inimigos" do pensamento marxista-leninista. As incertezas blasfemas de June foram momentaneamente apagadas ao retomarem a caminhada, no meio da noite, até a cidade
de St. Maurice para concluir ou estender a conversa sobre o futuro ou fazer amor, talvez na própria trilha, onde o solo era mais macio.
Mas no dia seguinte e no outro, e em todos os que vieram depois, jamais puseram os pés na paisagem metafórica do seu futuro. No dia seguinte eles voltaram.
Jamais desceram o Gorge de Vis nem caminharam pelo misterioso canal elevado que desaparece na rocha, jamais cruzaram o rio pela ponte medieval nem subiram para atravessar
a Causse de Blandas e andar entre os menires pré-históricos, os cromlechs e os dólmens espalhados no campo virgem, jamais começaram a longa subida do Cévennes na
direção de Florac. No dia seguinte, eles começaram sua jornada por caminhos diferentes.
No dia seguinte saíram do Hôtel des Tilleuls, em St. Maurice. Atravessavam a bela extensão de pasto e de tojo que separa a cidade da borda do desfiladeiro, outra
vez em silêncio. Ainda não eram nove horas e já fazia calor. Durante quinze minutos perderam a trilha e tiveram de atravessar um campo. O canto das cigarras, o aroma
da relva seca amassada pelos pés, o sol feroz no céu inocentemente azul, tudo isso, que no dia anterior parecia tão exoticamente típico do sul, agora perturbava
June. Preocupava-a a idéia de que estavam se afastando da sua bagagem em Lodève. A luz intensa da manhã, o horizonte árido, as montanhas à sua frente, os quilômetros
que teriam de percorrer naquele dia para chegar à cidade de Le Vigan, tudo isso a perturbava. Os dias de caminhada que tinham pela frente pareciam um desvio sem
sentido da sua incerteza.
Ela estava uns dez metros atrás de Bernard, que seguia com seu andar meio gingado, tão confiante quanto suas opiniões. June procurou refúgio nos pensamentos
burgueses e pecaminosos da casa que iam comprar na Inglaterra, a mesa de
cozinha rústica, a louça simples azul e branca presente de sua mãe, o bebê. Adiante eles avistavam o penhasco nu e ameaçador da borda norte do desfiladeiro. O caminho
começava a descer, a vegetação ficava diferente. Ao invés de uma alegria descuidada, June sentia um medo inexplicável, não suficientemente intenso para ser comentado.
Era uma agorafobia, influenciada talvez pelas células que se dividiam rapidamente para formar Jenny.
Voltar só por causa de uma ansiedade leve e não-definida estava fora de cogitação. Na véspera
tinham concordado em que ali estava finalmente a coroação dos meses que tinham passado no exterior. As semanas no barracão da Cruz Vermelha no passado, o inverno
inglês no futuro, por que ela não estava feliz, naquela liberdade ensolarada, o que havia de errado com ela?
Onde começava uma descida íngreme, eles pararam para admirar a vista. À distância de frente para eles, no outro lado de um espaço claro e vazio, estava um
muro vertical de rocha com noventa metros de altura. Aqui e ali alguns chaparros mais fortes conseguiram se fixar no solo de pequenas fendas e plataformas na rocha.
Aquele vigor insano que obrigava a vida a se agarrar nos lugares mais impossíveis a fatigava. June sentiu náusea. O rio passava trezentos metros abaixo de onde estavam,
perdido entre as árvores. O ar vazio, banhado de sol, parecia conter a treva, logo além do alcance da vista. June estava de pé na trilha trocando murmúrios
de apreciação com Bernard. A terra ao lado deles era lisa, amassada pelos sapatos e botas de outros caminhantes que haviam parado para admirar a mesma cena. Mero
ato de devoção. A resposta certa era medo. June lembrou vagamente
as descrições de viajantes do século dezoito no Lake District e nos Alpes suíços. Os picos das montanhas eram aterradores, os desfiladeiros íngremes horríveis, a
natureza indomada, um caos, uma censura pós-lapsariana, uma lembrança assustadora.
Sua mão descansava levemente no ombro de Bernard, sua mochila estava no chão, entre seus pés, e ela falava para se convencer, ouvia para ser convencida,
de que o que viam era estimulante,
de certa forma na sua natureza e simbolismo, o reflexo da bondade humana. Mas evidentemente, só por sua aridez, aquele lugar era seu inimigo. Tudo que crescia ali
era rude, seco, espinhoso, hostil ao tato, guardando seus fluidos para a amarga causa da sobrevivência. June tirou a mão do ombro de Bernard e abaixou para apanhar
sua garrafa de
água. Não podia falar do seu medo porque parecia absurdo. Cada definição que ela própria procurava, ansiosa, no seu desconforto a incitava a admirar a vista e continuar
a caminhada: uma jovem futura mãe apaixonada pelo marido, uma socialista e otimista, compadecidamente racional, livre de superstições, numa caminhada pelo país da
sua especialização, compensando os longos anos da guerra e os meses tediosos na Itália, aproveitando os últimos dias de férias antes da Inglaterra, da responsabilidade,
do inverno.
June afastou da mente seus temores e começou a falar com entusiasmo. Contudo ela sabia, por ter visto no mapa, que o rio que atravessava Navacelles estava
a quilômetros de distância e que a descida levaria duas ou três horas. Iam fazer a escalada mais curta e mais íngreme para sair do desfiladeiro sob o sol do meio-dia.
Levariam a tarde toda atravessando a Causse de Blandas que ela podia ver no outro lado, praticamente cozinhando no seu calor árido. Ela ia precisar de todas as suas
forças e procurava reuni-las falando. Ouviu a própria voz comparando O Gorge de Vis com o Golfe de Verdon, na Provença. À medida que falava, redobrava sua alegria,
embora detestasse todos os desfiladeiros, todas as ravinas e todas as fendas nas rochas do mundo e só quisesse ir para casa.
Então Bernard estava falando enquanto apanhavam as mochilas e se preparavam para continuar a caminhada. Seu rosto grande, amistoso, com a barba de dois dias
e as orelhas salientes, estava queimado de sol. A pele ressecada dava a impressão de que estava coberto de pó. Como podia desapontá-lo? Bernard falava de uma ravina
na ilha de Creta. Ele ouvira falar que na primavera dava para se fazer uma caminhada magnífica entre flores silvestres. Talvez pudessem ir até lá no próximo ano.
June estava alguns passos na frente dele, balançando a cabeça afirmativamente com vigor.
Resolveu que o que sentia era uma coisa passageira, uma dificuldade para retomar a caminhada e que o ritmo dos seus passos ia resolver. À noite, no hotel
em Le Vigan, suas ansiedades seriam reduzidas a uma lembrança. Depois de um copo de vinho iam parecer apenas um dos elementos de um dia agitado. A trilha passava
em ziguezague por uma larga saliência com terra solta. A superfície era macia e plana. June inclinou o chapéu de abas largas para a direção do sol e continuou a
andar, balançando os braços. Ouviu Bernard chamar e resolveu não atender. Talvez até pensasse que caminhando bem na frente dele o fizesse desistir e ele fosse o
primeiro a sugerir que deviam voltar.
June entrou numa curva fechada. A cem metros, na próxima curva, estavam dois jumentos. A trilha era mais larga naquele ponto, ladeada por buxos que pareciam
plantados pela mão do homem, com espaços regulares entre eles. Teve a impressão de ver algo interessante mais à frente e se inclinou para a beirada da trilha para
olhar. Era um velho canal de irrigação, de pedra, na encosta do desfiladeiro. Ela podia ver o caminho ao lado dele. Dentro de meia hora poderiam lavar o rosto e
refrescar os pulsos. Quando se afastou da borda, olhou para a frente e percebeu que os jumentos eram cães, cães negros de tamanho fora do comum. June não parou imediatamente.
O frio que desceu do seu estômago para as pernas impediu qualquer reação de defesa. Deu alguns passos, lentos e hesitantes, até parar imóvel no meio da trilha. Os
cães não a tinham visto ainda.
June não entendia muito de cães e não tinha medo deles. Nem os cães frenéticos das fazendas ao redor da Causse a tinham preocupado muito. Mas as criaturas
que bloqueavam o caminho a setenta metros de onde estava eram cães apenas na forma. No tamanho, assemelhavam-se a animais mitológicos. O aparecimento inesperado,
a anomalia, sugeria uma mensagem de cena muda, uma alegoria que só ela podia decifrar. Pensou confusamente em algo medieval, num quadro formal e terrível. Àquela
distância, os animais pareciam estar comendo calmamente. Uma aura de maldade emanava deles. June ficou nauseada e fraca de medo. Esperava o som dos passos de Bernard.
Tinha certeza de que não estava tão distanciada dele.
Naquela paisagem, onde os animais eram pequenos e fortes, não havia lugar para cães do
tamanho de jumentos. Aquelas criaturas - mastins gigantescos talvez - farejavam a relva ao lado da trilha. Não tinham coleiras, não estavam acompanhados pelo dono.
Moviam-se lentamente. Pareciam trabalhar juntos com um objetivo. A cor negra, o fato de serem ambos negros, a indicação de que estavam juntos e sem o dono a fez
pensarem aparições. June não acreditava nessas coisas. A idéia chegava agora porque as criaturas lhe pareciam familiares. Eram o símbolo da ameaça que pressentira,
personificavam a inquietação indefinível, irracional, não-mencionável daquela manhã. June não acreditava em fantasmas.
Mas acreditava na loucura. O que ela temia mais do que a presença dos cães era a possibilidade da sua ausência, deles não existirem. Um dos cães, um pouco menor
do que o outro, ergueu a cabeça e olhou por ela.
O fato de serem capazes de se mover independente um do outro confirmava sua existência no mundo real. Mas isso não servia de consolo. Enquanto o cão maior
continuava com o
focinho entre a relva, o outro ficou imóvel, com uma das patas dianteiras erguida, olhando para ela, ou farejando seu cheiro no ar quente. June fora criada perto
do campo, mas na verdade era uma pessoa da cidade. Sabia que não devia correr, mas era uma jovem de escritório, cinema, biblioteca. Nos seus vinte e seis anos de
vida havia enfrentado uma boa média de situações perigosas. Uma bomba V explodiu certa vez a trezentos metros de onde ela estava abrigada. Nos primeiros dias do
blackout ela estava num ônibus que bateu numa
motocicleta. Quando tinha nove anos, caiu num lago cheio de mato, completamente vestida, em pleno inverno. A lembrança dessas aventuras, ou do sabor delas, chegou
até ela, destilada numa essência metálica. O cão avançou alguns metros e parou com a cauda abaixada, as patas dianteiras firmes no chão. June recuou um passo, depois
mais dois. Seu joelho esquerdo tremia. A perna direita estava melhor. Imaginou o campo visual da criatura, o que ela estava vendo: uma mancha sem cor e uma linha
trêmula, perpendicular, francamente humana, comestível.
June tinha certeza de que aqueles cães sem dono estavam famintos. Naquele lugar, a mais de quatro quilômetros de St. Maurice, até mesmo um cão de caça teria
dificuldade para encontrar alimento. Aqueles eram cães de guarda, criados para agredir, não para lutar pela sobrevivência. Ou animais de estimação que haviam perdido
o encanto ou sua alimentação se tornara muito dispendiosa. June recuou outra vez. Estava com medo, com um medo razoável, não dos cães, mas do tamanho fora do normal
daqueles cães naquele lugar remoto. E da cor? Não, não da cor. O cão maior a viu e avançou, parando ao lado do companheiro. Ficaram imóveis por um quarto de minuto,
depois começaram a andar na direção dela. Se tivessem corrido, June não teria como se defender. Mas tinha de vigiá-los o tempo todo, tinha de vê-los avançar para
ela. Arriscou um olhar para trás; na trilha banhada de sol, como um instantâneo, não havia nem sinal de Bernard. Ele estava a mais de trezentos metros. Parou
para amarrar o cordão do sapato e ficou observando o progresso, a poucos centímetros da ponta do seu pé, de uma caravana de umas doze lagartas peludas,
cada uma segurando na boca o traseiro da outra. Bernard chamou June para ver, mas ela já havia passado a curva logo adiante. A cena despertou sua curiosidade científica.
A procissão parecia ter um propósito determinado. Ele queria saber exatamente para onde estavam indo, e o que ia acontecer quando chegassem. Estava ajoelhado com
a câmara na mão. Não via muita coisa no visor. Tirou o caderno de anotações da mochila e começou a desenhar.
Os cães estavam a menos de cinquenta metros dela e apressando o passo. Quando a alcançassem, suas cabeças chegariam à sua cintura, talvez mais acima. As
caudas estavam abaixadas e as bocas abertas. June via as línguas rosadas. Nada mais naquela paisagem tinha aquela cor, a não ser suas pernas queimadas de sol abaixo
da bainha do short. Para se acalmar June pensou num velho terrier de uma tia, como ele andava pelo corredor da reitoria, com as unhas estalando no assoalho de carvalho
encerado, para saudar cada novo visitante, nem amistoso, nem hostil, mas devidamente inquisitivo. Os cães deviam um certo respeito irredutível aos seres humanos,
criado e mantido durante gerações, baseado nos fatos incontestáveis da inteligência humana e na estupidez dos cães. E na famosa lealdade dos cães, na sua dependência,
seu desejo abjeto de serem mandados. Mas ali as regras se reduziam a meras convenções, a um frágil contrato social. Ali, nenhuma instituição garantia a ascendência
dos humanos. Tudo que havia era a trilha que pertencia a qualquer criatura que pudesse passar por ela. Os cães continuaram seu avanço amotinado. June começou
a andar para trás. Não ousava correr. Gritou o nome de Bernard uma, duas, três vezes. Sua voz parecia se diluir no ar ensolarado. Os cães aceleraram o passo, passando
quase ao trote. Ela não devia demonstrar medo. Com mãos trêmulas ela se abaixou e procurou alguma pedra na trilha. Encontrou três. Segurou uma na mão direita, e
as outras duas entre a palma da mão esquerda e ao lado do corpo. Estava recuando de lado, com o ombro esquerdo na direção dos cães. Numa inclinação do caminho, ela
tropeçou e caiu. Ansiosa para se levantar, praticamente ricocheteou do chão. Estava ainda com as pedras nas mãos e com um corte no braço. Será que o cheiro
do ferimento podia excitar os animais? June queria limpar o sangue mas para isso teria de largar as pedras. Faltavam mais de cem metros para a curva na trilha. Os
cães estavam a vinte metros dela e diminuindo a distância. June separou-se do próprio corpo quando finalmente parou e os enfrentou. Sua nova personalidade, desligada,
podia ver com indiferença, pior ainda, com aceitação, uma jovem mulher ser devorada viva. Com desprezo notou o lamento choroso em cada respiração, e o espasmo muscular
que fazia tremer tanto sua perna a ponto dela não sustentar mais o peso do corpo.
June encostou-se num pequeno carvalho ao lado da trilha e sentiu a mochila entre ela e o tronco da árvore. Sem largar as pedras, tirou a mochila dos ombros
e a segurou na frente do corpo. A cinco metros dela, os cães pararam. June compreendeu que estava se agarrando à última esperança de que seu medo fosse infundado.
Percebeu isso quando
ouviu o rosnado surdo do cão maior. O menor estava com o corpo rente ao chão e as pernas dianteiras estendidas, pronto para saltar. O outro deu passos lentos para
a direita, mantendo a distância, até que, para conservar ambos no seu campo de visão, June tinha de olhar de um para o outro. Desse modo ela via um conjunto desencontrado
de detalhes: as gengivas negras, os lábios negros com uma! faixa de sal na borda, um filete de saliva, as fissuras na língua que quase desapareciam quando chegavam
na ponta, um olho vermelho-amarelado e a remela no pêlo do canto do olho, feridas abertas numa perna dianteira e, presa no V da boca aberta, um pouco de espuma para
a qual seus olhos voltavam com insistência. Os cães carregavam com eles uma nuvem de moscas e algumas delas passaram para June.
Bernard não gostava de desenhar, nem seus desenhos se pareciam com o que ele via. Representavam o que ele sabia, ou o que queria saber. Eram diagramas, ou
mapas, aos quais ele acrescentava, mais tarde, os nomes que faltavam. Se pudesse identificar a lagarta, seria fácil encontrar nos livros o objetivo da procissão,
se não conseguisse descobrir naquele dia. Desenhou a lagarta como uma figura alongada, em escala maior. O exame atento revelou que não eram marrons, mas com finas
listras cor-de-laranja e negro. O seu diagrama mostrava só um conjunto de listras, com a devida proporção do comprimento e setas indicando as cores. Tinha contado
os membros da caravana - o que não foi fácil uma vez que cada indivíduo era a continuação dos pêlos do
outro. Registrou vinte e oito. Desenhou a parte da frente da cabeça da primeira lagarta, mostrando o tamanho relativo e a disposição da boca e do olho composto.
Quando ajoelhou, e com o queixo encostado no chão, olhou de perto para a cabeça da lagarta que ia na frente, uma cabeça formada por partes inescrutáveis, ele pensou
em como partilhamos a terra com criaturas tão estranhas e diferentes de nós que pareciam vindas de outro planeta. Mas nós lhes damos nomes, e deixamos de vê-las,
ou o tamanho delas evita que sejam vistas. Lembrou de citar esses pensamentos para June que, naquele momento, devia estar voltando à sua procura, possivelmente um
pouco zangada.
June estava falando com os cães, em inglês, depois em francês. Falava com esforço procurando não vomitar. Com o tom confiante de dona, ela ordenou ao cão
maior que estava com as pernas dianteiras abertas, ainda rosnando.
- Ça suffit!
O animal não ouviu, nem piscou. À sua direita, o outro escorregou para a frente, com a barriga encostada no chão. Se eles tivessem latido, June se sentiria
melhor. Os silêncios entre os rosnados sugeriam que os animais tinham um plano. Uma gota de saliva pingou da mandíbula do cão maior na terra seca da trilha. Um enxame
de moscas a cobriu imediatamente.
June murmurou, "Por favor, vão embora. Por favor. Oh, Deus!" A exclamação a fez lembrar sua última e melhor chance. Tentou encontrar espaço no seu íntimo para
a presença de Deus e teve a impressão de perceber os leves contornos de um vazio que nunca notara antes, bem no fundo da sua mente. Parecia ter flutuado para cima
e para a frente, distendendo-se de repente numa penumbra oval com vários centímetros de altura, um manto de energia, ou como ela tentou explicar mais tarde, de "luz
colorida e invisível" que a envolveu completamente. Se isso era Deus, era também, indiscutivelmente, ela mesma. Será que podia ajudá-la? Essa Presença ia se deixar
comover por uma conversão repentina e interesseira? Um apelo, uma prece lamentosa para algo que era tão claramente, tão luminosamente uma extensão dela mesma, parecia
irrelevante. Mesmo naquele momento extremo, sabia que acabava de descobrir algo extraordinário, e estava resolvida a sobreviver e investigar.
Segurando ainda a pedra, enfiou a mão direita na mochila, tirou o que tinha sobrado do salsichão da véspera e jogou no chão. O cão menor chegou primeiro,
mas imediatamente cedeu o lugar ao companheiro. A salsicha e o papel à prova de gordura desapareceram em menos de trinta segundos. O cão virou para ela, babando
com um triângulo de papel preso entre os dentes. O cão menor farejou o chão onde estivera a salsicha. June enfiou a mão outra vez na mochila e sentiu
uma coisa sólida entre as roupas dobradas. Tirou um canivete com cabo de baquelite. O cão maior deu dois passos na direção dela. Agora estava a três metros. June
passou a pedra para a mão esquerda, segurou o cabo do canivete entre os dentes e abriu a lâmina. Não podia segurar o canivete e a pedra na mesma mão. Tinha de escolher.
A lâmina com seus 7,5 centímetros era seu último recurso. Só poderia usá-la quando os cães a atacassem. June a pôs em cima da mochila, com o cabo virado para ela.
Segurou na mão direita a pedra, aquecida pelo pavor com que a tinha apertado, e encostou no tronco da árvore. Levou a mão para trás. Agora, estava pronta para atacar,
e sua perna esquerda não tremia mais.
A pedra atirada com força levantou uma chuva de cascalhos do chão. June errou o alvo, o cão maior, por uns trinta centímetros. O animal se encolheu quando
os cascalhos atingiram seu focinho, mas não saiu do lugar e abaixou a cabeça para o lugar do impacto, esperando que, fosse
comida. Olhou para ela outra vez, virou a cabeça para o lado e rosnou, um som malévolo, um misto de respiração e muco. Exatamente o que ela temia. Acabava de abrir
o jogo. Estava com outra pedra na mão. O cão menor abaixou as orelhas e deslizou para a frente. June ergueu o braço e a pedra escapou da sua mão, caindo sem força,
para o lado.
O cão maior abaixou, pronto para o salto, esperando um momento de distração. Os músculos das suas costas ficaram tensos. Uma pata negra arranhou o chão,
procurando maior apoio. June só tinha alguns segundos e atirou a terceira pedra que passou por cima das costas do animal e caiu no chão. O cão virou para trás ao
ouvir o som da pedra no chão e naquele instante, no segundo seguinte June se moveu. Não tinha nada a perder. Num delírio de indiferença ela atacou. O medo fora substituído
pela fúria ao ver sua felicidade, as
esperanças dos últimos meses e agora a revelação daquela luz extraordinária, a ponto de serem destruídas por um par de cães sem dono. Segurou o canivete na mão direita
e, usando a mochila como escudo, avançou para os cães, com um grito terrível, aaaaaaa!
O cão menor saltou para trás. Mas o outro atacou. Saltou alto no ar. June inclinou para a
frente para compensar o impacto do corpo do animal na mochila. Ele estava apoiado apenas nas pernas traseiras e June aparou o resto do corpo dele só com um braço.
Sentiu que começava a ceder ao peso. O focinho do animal estava poucos centímetros acima do seu rosto. Com três movimentos rápidos de baixo para cima ela enfiou
a faca na barriga e nos lados do corpo do cão, surpreendendo-se com a facilidade com que a lâmina penetrou. Um bom canivetinho. Ao primeiro golpe, o cão arregalou
os olhos vermelho-amarelados. No segundo e no terceiro, antes de largar a mochila, ele ganiu alto e lamentosamente como um filhote desamparado. Encorajada e gritando
outra vez, June atacou pela quarta vez. Mas o animal estava recuando e ela errou. O movimento do seu braço no ar a desequilibrou. June caiu para a frente.
O canivete escapou da sua mão. Sua nuca estava exposta. Tremendo, ela encolheu os ombros e as pernas e escondeu o rosto nas mãos. Ele pode vir agora, foi
seu único pensamento. Pode vir agora.
Mas não aconteceu. Quando ousou erguer a cabeça, viu os cães a uns cem metros correndo,
de volta para o lugar de onde tinham vindo. Entraram na curva da trilha e desapareceram.
Bernard a encontrou quinze minutos depois sentada no chão. Quando a ajudou a levantar, June disse zangada que fora assustada por dois cães e queria voltar. Bernard
não viu o canivete sujo de sangue e June esqueceu de apanhá-lo. Ele começou a dizer que era tolice perder o belo espetáculo da descida até Navacelles e que ele podia
se encarregar dos cães. Mas June já estava voltando. Não era do seu feitio forçar desse modo uma decisão. Quando Bernard apanhou a mochila dela, viu uma série de
furos na lona e uma mancha de espuma, mas estava preocupado em alcançá-la e não deu maior atenção. Quando chegou perto dela, June balançou a cabeça. Não tinha nada
mais para dizer. Bernard a segurou pelo braço para fazê-la parar.
- Pelo menos vamos conversar. É uma mudança radical nos nossos planos, você sabe.
Percebeu que ela estava realmente aborrecida e tentando controlar a irritação. June livrou o braço e continuou a andar. Seus movimentos pareciam mecânicos.
Bernard a alcançou outra vez, bufando sob o peso das duas mochilas.
- Aconteceu alguma coisa.
O silêncio dela era uma afirmação.
- Pelo amor de Deus, conte o que foi.
- Não posso. - June continuou a andar.
Bernard gritou.
- June! Isso é ridículo.
- Não me peça para falar. Ajude-me a chegar a St. Maurice, Bernard. Por favor.
Ela não esperou resposta. Não estava disposta a discutir. Bernard nunca a vira assim e de repente resolveu fazer o que ela pedia. Voltaram para o alto do
desfiladeiro e atravessaram o pasto sob a violência do calor escaldante, na direção da torre do castelo da cidade.
No Hôtel des Tilleuls, June subiu os degraus da frente e sentou na sombra irregular das árvores de lima, segurando com as duas mãos a beirada da mesa de
ferro pintada, como se estivesse dependurada num penhasco. Bernard sentou de frente para ela e estava se preparando para fazer a primeira pergunta quando June ergueu
a mão com as palmas para fora e balançou a cabeça. Pediram
limonada. Enquanto esperavam, Bernard descreveu com detalhes a procissão de lagartas e lembrou sua observação sobre a natureza estranha de certas espécies. June
às vezes balançava a cabeça afirmativamente, mas nem sempre nos momentos certos.
Madame Auriac, a proprietária, serviu a limonada. Era uma senhora maternal, sempre ocupada, que, na noite anterior, eles haviam apelidado de Sra. Tiggywinkle.
Perdera o marido em 194O, quando os alemães cruzaram a fronteira da Bélgica. Quando soube que eles eram ingleses e estavam em lua-de-mel, os fez passar para um quarto
com banheiro, sem cobrar mais. Chegou com os copos de suco de limão na bandeja, uma jarra de vidro com água com a marca Ricard e um pires com mel em lugar do açúcar,
que estava ainda racionado. Percebeu que havia alguma coisa errada com June porque ela pôs o copo na mesa cuidadosamente. Então, um segundo antes de Bernard, ela
viu o sangue na mão direita de June e, segurando-a, entre as suas, exclamou.
- Pobrezinha, que corte feio. Venha comigo
que vou cuidar disso para você.
June obedeceu docilmente. Quando levantou da cadeira, Madame Auriac segurou sua mão. Ia deixar que ela a levasse para dentro do hotel quando seu rosto se
crispou e ela deu um grito de surpresa. Bernard levantou imediatamente, assustado, pensando que iam assistir a um nascimento, um aborto, algum espetacular desastre
feminino. Madame Auriac, mais calma, segurou a jovem inglesa e a ajudou a sentar outra vez. June foi dominada por uma série de soluços secos e entrecortados que
terminaram num choro infantil. Quando conseguiu falar outra vez, June contou sua história, sentada ao lado de Madame Auriac, que mandou servir conhaque.
Bernard, no outro lado da mesa, segurou a mão de June, mas no começo ela não quis aceitar o consolo que ele oferecia. Não perdoava sua ausência naquele momento crítico
e a descrição das suas lagartas ridículas intensificou o ressentimento. Porém, quando ela chegou ao clímax da história e viu a expressão de espanto e de orgulho
do marido, entrelaçou os dedos nos dele e correspondeu ao aperto carinhoso.
Madame Auriac mandou o garçom chamar o prefeito, mesmo que ele estivesse fazendo a sesta. Bernard abraçou June e elogiou sua coragem. O conhaque aqueceu
o estômago dela. Pela primeira vez compreendeu que sua experiência estava completa. Na pior das hipóteses era uma lembrança vívida. Era uma história, na qual ela
se saíra muito bem. Aliviada, lembrou do amor que sentia por seu querido Bernard; assim, quando o prefeito apareceu, com a barba por fazer e estremunhado de sono,
encontrou uma cena de feliz comemoração, um idílio, e Madame Auriac sorridente. Compreensivelmente irritado, quis saber o que era tão urgente para tirá-lo da cama
no começo da tarde.
Madame Auriac parecia ter alguma ascendência sobre o prefeito. Depois de apertar as mãos dos ingleses, ele sentou e, mal humorado ainda, aceitou um conhaque.
Animou-se um pouco quando Madame Auriac pediu um bule de café. Café de verdade era ainda uma raridade. O de Madame Auriac era feito com o melhor grão da Arábia.
O prefeito ergueu o copo pela terceira vez. Vous êtes anglais? Ah, seu filho que estudava engenharia em Clermont-Ferrand lutou ao lado da Força Expedicionária Britânica
e sempre dizia...
- Hector, vamos deixar isso para mais tarde - disse Madame Auriac. - Temos aqui uma situação muito grave - e para poupar a June o esforço da repetição, contou
uma história, com pequenas adições por conta própria. Porém, quando Madame Auriac começou a descrever a luta de June com o cão, antes de feri-lo com o canivete,
ela achou que precisava intervir. O prefeito e Madame Auriac consideraram a interrupção apenas como modéstia irrelevante. No fim, Madame Auriac mostrou a mochila
de June. O prefeito assobiou entre os dentes e deu seu veredicto.
- C'est grave.
Dois cães selvagens famintos, possivelmente raivosos, um deles mais feroz por causa dos ferimentos, eram certamente uma ameaça pública. Logo que terminasse
seu drinque ele reuniria alguns homens e os mandaria sair à procura dos animais para mata-los. Ia também telefonar para
Navacelles para ver o que podia ser feito daquele lado.
O prefeito parecia estar pronto para se levantar, mas estendeu a mão para o copo e recostou na cadeira.
- Isso já aconteceu antes - disse ele. - No último inverno. Está lembrada?
- Não ouvi nada a respeito - disse Madame Auriac.
- Nessa vez foi só um cão. Mas a mesma coisa, o mesmo motivo.
- Motivo? - perguntou Bernard.
- Quer dizer que não sabe? Ah, c'est une histoire. - Empurrou o copo na direção de Madame Auriac que, voltando-se para o bar, chamou o garçom. O homem se
aproximou e, a um gesto dela,
puxou uma cadeira e sentou. De repente, a filha de Madame Auriac, Monique, que trabalhava na cozinha, apareceu com uma bandeja. Eles ergueram os copos e as xícaras
para que ela pudesse estender a toalha e pôr sobre a mesa duas garrafas de vin de pays, copos, uma cesta com pão, uma tigela com azeitonas e talheres. Lá fora, nas
vinhas, além da varanda coberta, as cigarras intensificaram seu canto seco e quente. Então a hora, o começo da tarde, que no Midi é tão elementar como o ar e a luz,
expandiu-se e rolou como uma onda imensa na direção do resto do dia, e para cima, na abóbada do céu azul, com sua deliciosa invasão liberando todos das suas obrigações.
Monique voltou com um assado de porco numa travessa marrom quando o prefeito, que acabava de servir o vinho, começava sua história.
- Esta era uma cidadezinha tranquila no começo, estou falando de 194O e 1941. Demoramos para nos organizar e por motivos, bem, históricos, disputas entre
famílias, discussões idiotas, ficamos fora do grupo que se formou em volta de Madière, a cidade na margem do rio. Então, em março ou abril de 1942, alguns dos nossos
ajudaram o movimento da linha Antoinette, que se estendia da costa, perto de Sète, atravessava a Seranne, passava por aqui, atravessava Cévennes e chegava a Clermont.
Cortava a linha Philipps leste-oeste que ia até a Espanha, através dos Pireneus.
O prefeito, interpretando erroneamente a deliberada falta de expressão no rosto de Bernard e notando que June tinha abaixado os olhos, apressou-se a explicar.
- Vou dizer do que se tratava. Nosso primeiro trabalho, por exemplo. Radiotransmissores trazidos por submarinos para Cap d'Adage. Nosso pessoal os levou de La
Vacquerie para Le Vigan em três noites seguidas. Para onde foram depois disso não sabemos, vocês compreendem?
Bernard balançou a cabeça afirmativamente com vigor, como se de repente tudo estivesse claro. June continuou a olhar para o colo. Eles nunca haviam conversado
sobre seus trabalhos durante a guerra e só foram falar a respeito em 1974. Bernard havia organizado inventários para numerosos grupos que operavam em linhas diferentes,
embora jamais tivesse se envolvido diretamente com uma linha tão pequena quanto a Antoinette. June tinha trabalhado para um grupo de ligação com a França Livre no
plano SOE em
Vichy, França, mas também não sabia nada sobre a Antoinette. Durante toda a narração do prefeito, Bernard e June evitaram olhar um para o outro.
- A Antoinette funcionou bem - disse o prefeito - durante sete meses. Éramos poucos aqui. Passávamos agentes e seus operadores de rádio para o norte. As
vezes eram apenas suprimentos. Ajudamos um piloto canadense a chegar à costa...
Alguns sinais de impaciência da parte do garçom e de Madame Auriac indicavam que tinham ouvido várias vezes aquela história contada pelo
prefeito com a garrafa de conhaque na sua frente, ou que achavam que ele estava exagerando. Madame Auriac, em voz baixa, dava instruções a Monique sobre o prato
que devia ser servido.
- Então - o prefeito ergueu a voz - alguma coisa saiu errada. Alguém deu com a língua nos dentes. Dois homens foram presos em Arboras. Foi então que a milícia
chegou.
O garçom virou a cabeça delicadamente e cuspiu na base de um pé de lima.
- Eles investigaram toda a linha, instalaram-se aqui no hotel e interrogaram todos os habitantes da cidade, um por um. Posso dizer com orgulho que não descobriram
nada, absolutamente nada, e foram embora. Mas foi o fim da Antoinette, e a partir daquele dia St. Maurice ficou sob suspeita. De repente, resolveram que devíamos
controlar uma linha para o norte, atravessando o Gorge. Mas não éramos mais uma cidadezinha obscura. Eles passavam por aqui dia e noite. Recrutavam informantes.
Antoinette estava morta e dificilmente poderia ser reorganizada. Os maquis de Cévennes enviaram um homem para cá e houve muita discussão. Estávamos isolados, era
verdade, mas não era difícil para eles manter a vigilância e os maquis não entendiam isso. Temos a Causse atrás de nós sem nenhuma cobertura. Na frente, fica o Gorge,
com poucas trilhas para baixo.
- Mas, no fim, recomeçamos e quase em seguida o nosso docteur Boubal foi preso aqui. Eles o levaram para Lyon. Foi torturado e achamos que morreu antes de
falar. A Gestapo chegou no dia em
que o levaram. Trouxeram cães, animais enormes e feios usados nas montanhas para descobrir os esconderijos dos maquis. Isso era o que diziam mas eu nunca acreditei
que fossem cães rastreadores. Eram cães de guarda, não de caça. A Gestapo chegou com os cães, requisitou uma casa no centro da cidade e ficou três dias. Não ficou
bem claro o que eles queriam. Foram embora e dez dias depois voltaram. E duas semanas depois. Andavam por toda a cidade e nunca sabíamos onde estavam nem quando
iam voltar. Ficaram muito conhecidos, com aqueles cães, investigando a vida de todo mundo. A idéia era intimidar e funcionou. Todos tinham pavor dos cães e dos homens
que andavam com eles. Era difícil qualquer movimento à noite com os cães patrulhando a cidade. E a essa altura, os informantes da milícia estavam firmemente instalados.
O prefeito esvaziou o copo de vinho com dois longos goles e o encheu outra vez.
- Então descobrimos o verdadeiro objetivo dos cães, ou pelo menos um deles.
- Hector... - advertiu Madame Auriac. - Isso não...
- Primeiro - disse o prefeito - preciso dizer
alguma coisa sobre Danielle Bertrand...
- Hector - insistiu Madame Auriac -, a jovem
senhora não quer ouvir essa história.
Mas fosse qual fosse sua autoridade sobre o prefeito, a bebida a tinha anulado.
- Não se pode dizer - explicou ele - que Madame Bertrand era muito popular na cidade.
- Graças a você e aos seus amigos - disse Madame Auriac, em voz baixa.
Ela chegou logo depois do começo da guerra e se instalou numa pequena propriedade na periferia da cidade, deixada por uma tia. Disse que o marido fora morto
perto de Lille, em 194O, o que podia ser verdade ou não.
Madame Auriac, recostada na cadeira, com os
braços cruzados, balançou a cabeça.
- Não confiávamos nela. Talvez estivéssemos
enganados... A última observação foi uma concessão a Madame Auriac, mas ela não olhou para ele, demonstrando sua desaprovaçao por meio de um silêncio furioso.
- Mas era assim durante a guerra - continuou ele, com um gesto largo da mão para sugerir que essa parte devia ser explicada por Madame Auriac, se ela se
dignasse a dizer alguma coisa.
- Uma estranha que veio morar na cidade, ninguém sabia de onde vinha seu dinheiro e ninguém lembrava de ter ouvido Madame Bertrand sequer mencionar a existência
de uma sobrinha, e ela era tão distante, ficava o dia inteiro sentada à mesa da cozinha com uma pilha de livros. É claro que tinha de despertar suspeitas. A verdade
é que não gostamos dela. Digo isso porque quero que compreenda, madame - dirigiu-se a June - que, apesar de tudo que eu disse, estávamos horrorizados com os acontecimentos
de abril de 1944. Sentíamos um remorso profundo...
Madame Auriac disse com desprezo.
- Remorso!
Nesse momento Monique chegou com uma grande cassole de barro e durante quinze minutos todas as atenções e elogios foram para o cassoulete Madame Auriac,
satisfeita, revelou como tinha conseguido o ingrediente principal, o ganso em conserva.
Quando terminaram a refeição, o prefeito continuou.
- Certa noite, depois do trabalho, estávamos
sentados a esta mesma mesa, três ou quatro de nós, quando vimos Madame Bertrand correndo pela rua na nossa direção. Estava em péssimo estado, com a roupa rasgada,
o nariz sangrando e com um corte no supercílio. Ela gritava, não, dizia coisas ininteligíveis, subiu estes degraus e entrou, à procura de Madame...
Madame Auriac disse rapidamente.
- Ela foi violentada pela Gestapo. Desculpe-me, madame - pôs a mão na de June.
- Foi o que nós todos pensamos - disse o prefeito. Madame Auriac ergueu a voz.
- E estavam certos.
- Não foi o que descobrimos mais tarde. Pierre e Henri Sauvy...
- Bêbados!
- Eles viram tudo. Desculpe-me, madame - para June - mas eles amarraram Danielle Bertrand numa cadeira.
Madame Auriac bateu com a mão na mesa.
- Hector, eu estou dizendo! Não vou admitir que conte essa história aqui...
Mas Hector virou para Bernard.
- Não foi a Gestapo que a violentou. Eles usaram...
Madame Auriac estava de pé.
- Saia da minha mesa agora, e nunca mais venha comer ou beber aqui!
Hector hesitou, depois deu de ombros e começou a levantar da cadeira quando June disse. - Usaram o quê? Do que está falando, monsieur?
O prefeito, antes tão ansioso para contar sua história, vacilou ante a pergunta direta.
- Precisa compreender, madame... os irmãos Sauvy viram com seus próprios olhos, pela janela... e mais tarde soubemos que isso acontecia também nos centros
de interrogatório de
Lyon e Paris. A verdade nua e crua é que um animal pode ser treinado...
Finalmente Madame Auriac explodiu.
- A verdade nua e crua? Uma vez que eu sou a única aqui, a única nesta cidade que conhecia Danielle, vou dizer qual é a verdade nua e crua! Ela empertigou
o corpo, tremendo de indignação. Era impossível, Bernard lembrava de ter pensado, não acreditar nela. O prefeito estava ainda meio sentado e meio de pé, o que o
fazia parecer intimidado.
- A verdade nua e crua é que os irmãos Sauvy são dois bêbados e que você e seus amigos desprezavam Danielle Bertrand porque ela era bonita e morava sozinha
e não dava satisfações a ninguém. E quando aquela coisa terrível aconteceu com ela, vocês fizeram alguma coisa para ajudá-la contra a Gestapo? Não, vocês ficaram
do lado deles. Aumentaram sua vergonha com essa história, essa história nojenta. Vocês todos, tão dispostos a acreditar em dois bêbados. Foi um prazer enorme. Mais
humilhação para Danielle. Não paravam de falar a respeito. Vocês fizeram a pobre mulher
sair da cidade. Mas ela valia mais do que muitos de vocês e deviam se envergonhar, especialmente você, Hector, na sua posição. É isso que estou dizendo agora. Não
quero ouvir nunca mais essa história nojenta. Compreendeu? Nunca mais! Madame Auriac sentou outra vez. Por não ter contestado as palavras dela, aparentemente
o prefeito achou que tinha direito de fazer o mesmo. Fez-se silêncio enquanto Monique tirava os pratos.
Então June disse.
- E os cães que eu vi esta manhã?
O prefeito disse, em voz baixa.
- Os mesmos, madame. Os cães da Gestapo. Logo depois disso as coisas começaram a mudar. Os aliados desembarcaram na Normandia. Quando começaram a avançar,
os alemães trouxeram as unidades do norte para enfrentá-los. O grupo que estava na cidade tinha como único objetivo a intimidação, por isso foi o primeiro a ser
retirado. Deixaram os cães que se tornaram selvagens. Pensamos que não iam durar muito, mas sobreviveram comendo nossas ovelhas. Há dois anos são uma ameaça para
a cidade. Mas, não se preocupe, madame. Esta tarde, aqueles dois serão mortos.
Recobrando o auto-respeito com essa promessa, o prefeito esvaziou, o copo, encheu outra vez de vinho e o ergueu.
- A paz!
Mas olhares de relance para Madame Auriac viram que ela continuava com os braços cruzados e a resposta ao brinde do prefeito foi desanimada.
Depois do conhaque, do vinho e do almoço demorado, o prefeito não conseguiu organizar os homens para a caça aos cães naquela tarde. Na manhã seguinte também
não aconteceu nada. Bernard ficou inquieto. Queria ainda fazer a caminhada que havia idealizado no Dólmen de Ia Prunarède. Logo depois do café, queria ir à casa
do prefeito. No entanto, June ficou aliviada. Precisava pensar e uma longa caminhada não seria conveniente. A vontade de voltar para casa era mais forte do que nunca.
Agora tinha uma explicação perfeitamente racional. Disse claramente a Bernard que, mesmo que visse os dois cães mortos aos seus pés, não pretendia caminhar até Navacelle.
Ele protestou,
mas June sabia que tinha compreendido. E Madame Auriac, que serviu pessoalmente o café da manhã aos dois, também compreendeu. Falou de uma trilha doux et beau, que
ia para o sul na direção de La Vacquerie, depois subia uma colina e descia da Causse para a cidade de Les Salces. A menos de um quilômetro ficava St. Privat onde
os primos dela
podiam hospedá-los por uma noite, por um preço razoável. Então podiam dar um passeio agradável até Lodève. Era simples! Apanhou um mapa, escreveu o endereço dos
primos, encheu de água as garrafas deles, deu um pêssego para cada um e os acompanhou até uma parte do caminho, despedindo-se com pequenos beijos no rosto - naquele
tempo um ritual exótico para os ingleses - e um abraço especial em June.
A Causse de Larzac, entre St. Maurice e La Vacquerie, é realmente um caminho mais fácil do que a região selvagem e árida mais a oeste. Eu já passei por ele
muitas vezes. Talvez seja porque as fazendas, as mas, sejam mais próximas umas das outras, estendendo sua influência benéfica na paisagem por todo o caminho. Talvez
seja a antiga influência do polje, um leito de rio pré-histórico que corre em ângulo reto com o Gorge. Uma extensão de terra de mais de meio quilômetro, quase um
túnel de roseiras silvestres, passa por um pequeno lago formado pela condensação, num campo reservado naquele tempo por uma velha senhora excêntrica para os jumentos
velhos demais para trabalhar. Foi aí que O jovem casal deitou numa sombra e silenciosamente - pois podia aparecer alguém na trilha - restabeleceram a doce e descontraída
união de duas noites atrás.
Entraram na cidade no fim da manhã. La Vacquerie era antes um ponto de parada da diligência que fazia o trajeto entre a Causse e Montpellier, antes da construção
da estrada que partia de Lodève, em 1865. Como St. Maurice, tem
ainda seu hotel-restaurante, onde Bernard e June sentaram nas cadeiras na calçada, de costas para a parede, tomaram cerveja e almoçaram. June estava calada outra
vez. Queria falar sobre a luz colorida que tinha visto ou sentido mas estava certa de que Bernard não ia dar importância. Queria também falar sobre a história do
prefeito, mas Bernard já deixara bem claro que não acreditava em nem uma palavra. Uma disputa verbal
não era o que ela queria, mas o silêncio começava a criar um ressentimento que ia crescer nas semanas seguintes.
Perto do restaurante, onde a estrada principal se dividia em duas, havia uma cruz de ferro numa base de pedra. June e Bernard viram um pedreiro gravando
na pedra mais uma meia dúzia de nomes. Na outra extremidades da rua, na sombra de um portal, uma jovem mulher de negro também observava. Era tão pálida que, a princípio,
pensaram que sofria de alguma doença grave. Ela ficou imóvel, segurando a ponta da echarpe que cobria sua cabeça, escondendo a boca. O pedreiro parecia embaraçado
e ficou o tempo todo de costas para ela. Depois de uns quinze minutos, um homem velho com roupa azul de trabalho chegou arrastando os chinelos de pano, segurou a
mão da jovem e a levou embora. O dono do hotel saiu para a calçada, indicou o outro lado da rua, vazio
agora, com uma inclinação da cabeça e disse.
- Trois. Mari et deux frères, e pôs na mesa
os pratos de salada.
A lembrança do incidente sombrio os acompanhou na subida sob o sol, depois do almoço, para a Bergerie de Tédenat. Pararam à sombra de um pequeno bosque de
pinheiros, antes de atravessar uma longa extensão de campo aberto. Bernard recordaria esse momento pelo resto da sua vida. Enquanto tomavam água das garrafas térmicas,
ele pensou na guerra há pouco terminada não como um fato histórico, geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase-infinidade de sofrimentos individuais, como
uma dor ilimitada
dividida em pequenas porções, todas com a mesma intensidade, entre indivíduos que cobriam o continente como o pó, como esporos cujas identidades diferentes permaneceriam
desconhecidas e cuja totalidade mostrava mais tristeza do que era possível compreender; um peso suportado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como o da
mulher de negro que chorava o marido e dois irmãos, cada dor uma história de amor particular, complexa, intensa que podia ter sido diferente. Era como se ele nunca
tivesse pensado na guerra antes, não sobre seu preço. Estava sempre ocupado com os detalhes do seu trabalho, procurando fazer o melhor, e com uma
visão mais ampla dos objetivos da guerra, das vitórias, das estatísticas sobre mortes, da destruição e da reconstrução no pós-guerra. Pela primeira vez percebia
a escala da catástrofe em termos de sentimento; todas aquelas mortes únicas e solitárias, todo o sofrimento, único e solitário também, que não era citado nas conferências,
nas manchetes dos jornais, na história, silenciosamente retirado para as casas, as cozinhas, as camas vazias e as lembranças dolorosas. Bernard pensou nisso pela
primeira vez ao lado de um pinheiro no Languedoc, em 1946, não como uma observação que podia partilhar com June, mas como uma profunda apreensão, o reconhecimento
de uma verdade que o envolveu num silêncio tristonho e mais tarde se transformaria numa pergunta: o que podia oferecer uma Europa coberta por essa poeira, esses
esporos, quando esquecer seria desumano e perigoso, e lembrar, uma tortura constante?
June conhecia a descrição de Bernard desse momento, mas afirmava não se lembrar da mulher de negro. Quando passei por La Vacquerie, em 1989, a caminho do
dólmen, descobri que as inscrições na base do monumento eram citações latinas. Não havia nenhum nome de mortos na guerra.
Quando chegaram ao topo da colina, seu estado de espírito melhorou. Olhando para trás, tinham uma bela vista do desfiladeiro a doze quilômetros de distância,
e podiam ver o caminho que haviam
percorrido como se fosse um mapa. Foi então que começaram a se perder. O desenho de Madame Auriac não indicava claramente onde deviam deixar a trilha que passa por
fora da Bergerie de Tédenat. Saíram cedo demais, descendo por um caminho feito por caçadores que entrava no meio de moitas de urze, timo e lavanda. June e Bernard
não se preocuparam. Afloramentos de rochas dolomitas espalhavam-se pela paisagem, torres e arcos esculpidos pela chuva e pelo vento e era como se estivessem andando
entre ruínas de uma antiga cidade invadida por um belo jardim. Continuaram a caminhar felizes, pensando que estavam na direção certa, durante mais de uma hora. Procuravam
uma larga faixa de areia que os levaria à descida dos Pas de l'Azé e finalmente Les Salces. Mesmo com o melhor dos mapas seria difícil encontrar o caminho.
Quando a tarde começou a ceder espaço para a noite, chegou o cansaço e a impaciência. A Bergerie de Tédenat é um barracão longo e baixo que se destaca contra
a linha do horizonte e elas desciam a encosta pouco inclinada que os levaria de volta a ela, quando ouviram, vindo do oeste, um som estranho de "choque-choque".
À medida que se aproximava deles dividiu-se em milhares de pontos melodiosos, como se uma porção de sistros, xilofones e marimbas competisse num selvagem contraponto.
Bernard pensou em água fria pingando
em rochas lisas.
Pararam e esperaram, encantados. A primeira coisa que viram foi uma nuvem de poeira marrom-clara iluminada por trás pelo sol baixo e forte e então apareceram
as primeiras ovelhas na curva do caminho, assustadas pelo encontro inesperado, mas sem poder voltar por causa do rebanho que vinha atrás. Bernard e June subiram
numa rocha e esperaram o rebanho passar, levantando a poeira e com seu clamor de sinos.
O cão pastor que seguia o rebanho percebeu a presença dos dois mas não deu a menor atenção. A mais de cinquenta metros atrás apareceu o pastor, o berger.
Como o cão, ele os viu e não demonstrou nenhuma curiosidade. Teria passado sem ao menos uma inclinação da cabeça se June não saltasse da rocha na frente dele para
perguntar o caminho para Les Salces. Só depois de dar mais alguns passos ele parou e não falou imediatamente. Tinha o bigode largo e caído, tradicional do berger,
e usava o chapéu de abas largas, também tradicional e igual aos deles. Sentindo-se uma fraude, Bernard pensou em tirar o chapéu. June, pensando que talvez o homem
não compreendesse seu francês de Dijon, começou a repetir a pergunta, falando mais devagar. O pastor ajeitou no ombro a manta puída, inclinou a cabeça na direção
das ovelhas e caminhou apressadamente para a frente do rebanho. Resmungou alguma coisa que eles não compreenderam, mas acharam que era para segui-lo.
Depois de vinte minutos, o pastor entrou numa abertura entre os pinheiros e o cão fez o rebanho acompanhá-lo. Bernard e June haviam passado duas ou três
vezes por aquele lugar. Estavam numa pequena clareira na borda de um penhasco, com o sol poente, a cadeia de montanhas baixas, arroxeadas, e o mar distante à sua
frente. A mesma paisagem que tinham admirado à luz da manhã do alto de Lodève há três dias. Estavam na borda do platô, quase na descida. Estavam voltando para casa.
Entusiasmada, já com a premonição da alegria que ia encher sua vida, depois a de Jenny, depois a minha e a dos meus filhos, June virou para trás, com as
ovelhas colidindo contra suas pernas no
pequeno espaço, para agradecer ao pastor. O cão já estava levando o rebanho para uma estreita trilha pedregosa que passava sob uma rocha imensa, o Pas de l'Azé.
- É tão bonito - gritou June, entre o som dos sinos. O homem olhou para ela. As palavras nada
significavam para ele. Deu meia-volta e eles o seguiram.
Talvez os pensamentos de voltar à casa tivessem encontrado eco na mente do pastor, ou talvez, e esta é a suposição mais cética de Bernard, ele já tivesse
um plano em mente quando resolveu começar a falar, assim que iniciaram a descida. Não era comum, explicou o pastor, tirar o rebanho da Causse tão cedo no ano. A
transhumance começava em setembro. Mas seu irmão tinha morrido num acidente de moto há pouco tempo e ele precisava descer para resolver vários negócios. Precisava
juntar os dois rebanhos, vender algumas cabeças, algumas propriedades e saldar dívidas. Essa história foi contada com longas pausas, enquanto desciam, atravessavam
um bosque de carvalhos, passavam por uma bergerie em ruínas que pertencia ao tio do pastor, pelo leito
seco de um riacho, depois por mais carvalhos, deram a volta numa colina com pinheiros no topo e entraram numa larga plataforma de terra ensolarada numa encosta cortada
por terraços, acima de um vale de parreiras e carvalhos. Lá embaixo, a menos de um quilômetro estava a cidade de St. Privat, pousada na borda de uma pequena garganta
cortada por um pequeno regato. Confortavelmente instalada entre os terraços da encosta, de frente para o vale, iluminada pelo sol poente, estava a bergerie de pedra
cinzenta. Num lado havia um pequeno campo onde o cão reunia as últimas ovelhas desgarradas. Para O norte, altos e estendendo-se para noroeste, formando um vasto
anfiteatro de rocha, erguiam-se os rochedos da borda do platô.
O pastor os convidou para sentar no lado de fora da bergerie enquanto ele ia apanhar água da fonte. June e Bernard sentaram numa pedra plana, de costas para
a parede irregular e morna, para
ver o sol desaparecer atrás das montanhas na direção de Lodève. A luz adquiriu um tom violeta, uma brisa fresca soprou e as cigarras modularam seu canto. Ficaram
em silêncio. O pastor voltou com uma garrafa de vinho cheia d'água para os três. Bernard cortou os pêssegos dados por Madame Auriac e dividiu entre os três. O pastor,
cujo nome eles ainda não sabiam, tinha esgotado seu assunto e ficou calado. Mas era um silêncio repousante, amistoso, e ali sentados olhando o céu se incendiar no
oeste, June, entre os dois homens, sentiu-se invadida por uma sensação de paz e de amplidão. Era um contentamento profundo e tranqüilo que a fez pensar que nunca
fora feliz antes. O que havia sentido duas noites atrás, no Dólmen de Ia Prunarède, era uma premonição disso, frustrada pela conversa oficiosa, as boas intenções,
os planos para melhorar a condição material de estranhos. Entre aquele tempo e este estavam os cães negros e o oval de luz que ela não via mais, mas cuja existência
a enchia de felicidade.
Ela estava segura naquele pequeno pedaço de terra agachado sob o alto rochedo do platô. Fora restituída a si mesma, estava mudada. Isto, agora, aqui. Sem dúvida
era isso que a existência se esforçava para fazer e tão raramente conseguia, saborear a si mesma completamente no presente, neste momento, em toda a sua simplicidade
- o ar de verão macio e quase escuro, o perfume do timo amassado pelos pés, sua fome, a sede saciada, a pedra morna que sentia através da saia, o gosto do pêssego,
as mãos pegajosas, as pernas cansadas, a fadiga suada, quente de sol e empoeirada. Aquele lugar belo e obscuro, e aqueles dois homens, um que ela conhecia e amava,
o outro em cujo silêncio ela confiava e que estava esperando, tinha certeza, que ela desse o próximo passo inevitável.
Quando ela perguntou se podia ver o interior da bergerie, teve a impressão de que o homem estava de pé antes que ela terminasse a pergunta e já caminhando para a
porta da frente, no lado norte. Bernard disse que não tinha vontade de sair de onde estava. June acompanhou o pastor na escuridão total. Ele acendeu um lampião e
o segurou bem alto para ela. June deu dois passos e parou. Sentiu o cheiro adocicado de palha e poeira. Estava numa espécie de celeiro comprido, com telhado em ponta,
dividido em dois andares por um teto de pedra em arco que havia desabado num
canto. O chão era de terra batida. June ficou parada em silêncio por um minuto e o homem esperou pacientemente. Quando ela virou para ele e perguntou "Combien?",
ele tinha o preço na ponta da língua.
Custou o equivalente a trinta e cinco libras, a casa e vinte acres de terra. June tinha economias suficientes para fechar o negócio, mas só na tarde seguinte
teve coragem para contar a Bernard o que acabara de fazer. Para sua surpresa, ele não se opôs com uma barragem de argumentos sensatos, como a necessidade de comprar
uma casa em Londres primeiro ou a imoralidade de ter duas casas quando tanta gente não tinha onde morar. Jenny nasceu no ano seguinte e June só voltou à bergerie
no verão de 1948, quando começou a fazer algumas reformas modestas. Foram acrescentadas várias construções no estilo local para acomodar a família. A água da fonte
foi canalizada em 1955. Em 1958, foi instalada a eletricidade. Durante anos, June consertou os terraços, canalizou outra fonte menor para irrigar os pomares de pêssego
e de oliveiras plantados por ela, e fez um encantador labirinto muito inglês com os arbustos que cresciam na encosta da colina.
Em 1951, depois do nascimento do terceiro filho, June resolveu morar na França. Os filhos ficavam com ela a maior parte do tempo. Ocasionalmente passavam
longos tempos com o pai em Londres. Em 1957, estudaram nas escolas locais de St. Jean de Ia Blacquière. Em 196O, Jenny entrou para o liceu em Lodève. Durante toda
a sua infância os filhos dos Tremaine viajavam entre
a Inglaterra e a França, acompanhados nos trens por bondosas senhoras ou por severas tias universais, indo da mãe para o pai e vice-versa, que não queriam viver
juntos nem se separar definitivamente. Pois June, convencida da existência do mal e de Deus, e certa de que ambos eram incompatíveis com o comunismo, não conseguiu
persuadir Bernard da sua crença, nem desistir dele. Bernard, por sua vez, a amava e aquela vida reclusa escolhida por ela, sem nenhuma responsabilidade social, o
deixava furioso. Bernard abandonou o partido e se transformou na "voz da razão" durante a crise do Suez. Sua biografia de Nasser chamou a atenção para seu
nome e foi logo depois da publicação do livro que ele passou a ser o ativista radical mais conveniente aos programas de debates da BBC. Candidatou-se pelo Partido
Trabalhista numa eleição secundária em 1961 e perdeu. Em 1964, tentou outra vez e conseguiu. Mais ou menos nessa época Jenny foi para a universidade e June, temendo
que a filha ficasse muito exposta à influência de Bernard, escreveu, no primeiro período, uma daquelas cartas antiquadas, repletas de conselhos que os pais escreviam
às vezes para os filhos que saíam de casa. Nela June dizia que não acreditava nos princípios abstratos segundo os quais "intelectuais engajados querem organizar
a mudança social". Tudo que ela podia acreditar, escreveu-para Jenny, era em "objetivos práticos realizáveis a curto prazo. Cada um deve ser responsável pela própria
vida, procurar melhorar as condições, primeiro espirituais, depois materiais se fosse preciso. Não dou a menor importância à política de uma pessoa. No que me diz
respeito, Hugh Wall (um político, amigo de Bernard), que conheci no ano passado num jantar em Londres e que falou sozinho a noite inteira, não é melhor do que os
tiranos que ele gosta de denunciar..."
June escreveu três livros que foram publicados. Em meados dos anos cinquenta, Graça mística: Obras seletas de Santa Teresa de Ávila. Dez anos depois, Flores
silvestres de Languedoc, e dois anos depois, um panfleto curto e prático, Dez meditações. Com o passar dos anos suas viagens a Londres tornaram-se cada vez mais
espaçadas. Ficou na bergerie, estudando, meditando, tomando conta da propriedade, até a doença obrigá-la a voltar para a Inglaterra, em 1982.
Recentemente encontrei duas páginas taquigrafadas com minha última conversa com June, um mês antes da sua morte, em 1987: Jeremy, naquela manhã eu me vi
face a face com o mal. Não sabia naquele momento, mas sentia no meu lado - aqueles animais eram a criação de uma imaginação
vil, de espíritos pervertidos que nenhuma teoria social pode definir. O mal de que estou falando vive em todos nós. Apossa-se de um indivíduo, de vidas particulares,
dentro de uma família, e são as crianças que sofrem mais. Então, quando as condições são favoráveis, em países diferentes, em tempos diferentes, surge uma crueldade
terrível, uma depravação contra a vida e cada homem se surpreende com a profundidade do mal que existe dentro dele. Então, o mal se esconde e espera. É algo que
está no nosso coração.
"Sei que você pensa que não regulo bem. Não faz mal. Isto é o que eu sei. A natureza humana, o coração humano, o espírito, a alma, o próprio
consciente - chame como quiser - no fim, é o único material que temos para trabalhar. Precisa se desenvolver, expandir, do contrário a soma dos nossos sofrimentos
jamais diminuirá. Minha pequena descoberta foi de que essa mudança é possível, temos força para isso. Sem uma revolução na nossa vida interior, por mais lenta que
seja, nossos planos grandiosos não têm valor. O trabalho que temos de realizar é dentro de nós mesmos se quisermos algum dia viver em paz com o mundo. Não estou
dizendo que vai acontecer. Provavelmente nunca acontecerá. Estou dizendo que é a nossa única chance. Se acontecer, e pode demorar gerações, o bem que vai fluir moldará
nossas sociedades de um modo não-programado e não-previsto, sem o controle de nenhum grupo de pessoas ou conjunto de idéias..."
Assim que terminei de ler, o fantasma de Bernard estava na minha frente. Cruzou as longas pernas e uniu as pontas dos dedos das duas mãos formando uma pirâmide.
"Face a face com o mal? Vou dizer o que ela enfrentou naquele dia - um bom almoço e um pouco de fofoca maldosa da cidade! Quanto à vida interior, meu caro
rapaz, tente isso com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tem de dormir num quarto com sete pessoas. É claro que quando todos tiverem uma segunda casa
na França... Você pode ver, do modo que vão as coisas neste pequeno planeta superpovoado, precisamos realmente de um conjunto de idéias e idéias muito boas!"
June respirou fundo. Eles estavam ajustando
contas...
Desde a morte de June, quando herdamos a bergerie, Jenny, eu e nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Às vezes, no verão, quando estou sozinho
na luz púrpura do começo da noite, na rede sob a árvore de tamarindo onde June costumava descansar, penso em todas as forças históricas e pessoas do mundo, nas enormes
e pequenas correntes que se alinharam e combinaram para trazer este lugar para nossas mãos: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim dessa guerra, impaciente para
pôr à prova sua
liberdade, um funcionário do governo e seu carro, o movimento da Resistência, a Abwehr, um canivete, a trilha de Madame Auriac - doux et beau, a morte de um jovem
num acidente de moto, as dívidas do irmão do pastor, e June encontrando segurança e transformação neste ensolarado pedaço de terra.
Mas é nos cães negros que penso com maior freqüência. Eles me perturbam quando considero a felicidade que devo a eles, especialmente quando os vejo, não como animais,
mas como espíritos de cães de caça, encarnações. June disse que durante toda a sua vida ela às vezes os via, via realmente, na retina, nos segundos antes de adormecer.
Eles correm pela trilha no Gorge de Vis, o maior deixando um rastro de sangue nas pedras brancas. Estão cruzando a linha de sombra e penetrando onde o sol jamais
alcança, e o amável e bêbado prefeito não vai conseguir organizar seus homens para caçá-los pois os cães estão atravessando o rio no escuro da noite, e subindo do
outro lado para atravessar a Causse; e quando o sono chega, eles começam a se afastar dela, manchas negras na luz cinzenta da madrugada, empalidecendo à medida que
se aproximam do sopé das montanhas, de onde voltarão para nos atormentar, em algum lugar da Europa, em outro tempo.

 

                                                                  Ian McEwan

 

 

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