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Series & Trilogias Literarias
Reabilitação... Ou um programa de reprodução perverso? Kelia está prestes a descobrir que há destinos piores do que ser uma cega.
Após a descoberta de seu relacionamento com o infame Drew Knight, um Sombra do Mar, a Assassina do Mar Kelia Starling é condenada a uma vida de servidão, lavando pratos e entregando água. Ela é uma Cega e está tentando se redimir. Pelo menos, é nisso que ela precisa que a Sociedade acredite.
Sem o conhecimento deles, no entanto, Kelia ainda está investigando por que a Sociedade assassinou seu pai, enquanto Drew Knight a visita secretamente para pedir o favor que Kelia deve a ele também. Ele a incumbiu de descobrir o paradeiro de uma Sra. Wendy Parsons, que ele acredita estar sendo mantida em cativeiro em algum lugar da Sociedade.
Mas à medida que a pesquisa de Kelia se intensifica e suas missões para ela e Drew se cruzam, Kelia é confrontada com uma compreensão perturbadora: antes da morte de seu pai, ele criou um programa de procriação perverso que força as relações entre Sombras e Cegos irredimíveis.
E Kelia acabou de ser incluída no programa.
CAPÍTULO 1
—As presas atrapalham quando as Sombras do Mar se beijam? — Madeline sussurrou sobre a pia da cozinha.
—O que te faz pensar que as Sombras do Mar se beijam? — Myra perguntou no mesmo sussurro, inclinando-se para perto como se quisesse se proteger de serem ouvidas.
Kelia Starling revirou os olhos e agarrou o prato que estava secando com força, decidindo se valia a pena quebrá-lo ou não. Ela já detestava lavar e secar os pratos da Sociedade, mas ter que ouvir suas companheiras Cegas parecia uma punição adicional.
Ela evitou se envolver com as duas garotas, Madeline e Myra, mas, novamente, ela evitou fazer amizades com qualquer pessoa desde que se tornou uma Cega há dois meses. Tudo o que ela sabia era que a dupla gorjeava como pássaros e eram românticas desesperadas e patéticas que procuravam uma fresta de esperança em todas as situações. Mesmo um Assassino romanticamente ou sexualmente envolvido com uma Sombra era o que havia de melhor para eles.
Passaram-se dois meses desde que Kelia foi condenada a cumprir sua penitência aqui - dois meses desde que ela foi espancada, torturada e mal escapou da morte graças ao Sombra do Mar que ela foi forçada a ter uma parceria. Dois meses desde que ela o viu pela última vez...
Ela balançou a cabeça, eriçada com o mero pensamento de Drew Knight. Ela não gostava de admitir, mas ele mantinha os pesadelos afastados.
Kelia ficou restrita ao isolamento nas primeiras quatro semanas como cega e não tinha visto uma única pessoa, exceto uma enfermeira que viria e trocaria suas bandagens. Ela pensou que o isolamento iria quebrá-la - talvez enviá-la a um ataque de delírio louco - mas ela descobriu que dava boas-vindas à escuridão, ao silêncio. Isso deu a ela tempo para aprender mais sobre si mesma, para descobrir os possíveis motivos pelos quais a Sociedade iria querer matar seu pai e alegar que foi um suicídio.
A única coisa que ela temia na escuridão era o quanto isso a lembrava de Drew.
—Kelia. — Madeline sussurrou ao lado de Kelia, suas mãos na pia rodeadas por água quente e borbulhante.
Kelia franziu a testa, então olhou para as duas garotas falando sobre beijar os homens, Sombras do Mar. Ela não estava acostumada com ninguém escolhendo falar com ela se pudesse evitar, não quando sua reputação estava tão manchada. Nem mesmo um Cego queria ter algo a ver com ela.
Ela não pôde deixar de se sentir um tanto desconfiada. Ela tinha lavado e secado pratos com elas no último mês, e nenhuma das duas havia estendido a mão para ela antes.
—Podemos fazer uma pergunta? — Myra perguntou.
Apertando os lábios, Kelia colocou lentamente o prato no balcão. Estava tão seco quanto poderia ficar.
Depois de limpar as mãos no avental esbranquiçado, ela assentiu. Ela ainda não tinha certeza do que se tratava e quase se odiou por sua reação imediata de suspeita e amargura, em vez de dar a elas o benefício da dúvida.
—Você teve um relacionamento com Drew Knight, a Sombra do Mar, — Madeline disse. — Isso é correto?
Enquanto ela falava, suas mãos temiam. Isso não era novo, no entanto. As mãos de Madeline sempre tremiam, mesmo quando não estava frio. Kelia tinha ouvido falar que uma das razões pelas quais ela foi integrada como Cega era por causa dessa falha genética. Aparentemente, ela não conseguia disparar uma arma com precisão. Kelia não sabia como Madeline adquiriu a deficiência - se foi algo com que ela nasceu ou algo que aconteceu com ela - mas ela estava sendo punida por isso. Os deficientes físicos não eram confiáveis no campo e, como tal, a Sociedade os trancava por algo que eles não podiam ajudar.
Quando ela era uma Assassina, Kelia mal havia notado os Cegos. Ela sabia que eles estavam sendo retirados de sua posição como Caçadores porque eles quebraram algum tipo de regra, mas ela nunca encontrou nela para investigar quais eram essas regras ou se elas mereciam em primeiro lugar. Depois que ela foi punida e aprendeu mais sobre as inúmeras maneiras de trair a Sociedade, ela ficou enojada - ser inválida não era um crime.
Kelia mal conseguia olhar para Madeline por causa da culpa que percorria seu sistema. Ela não deveria ter sido tão complacente. Ela deveria ter feito perguntas. Devia ter percebido que manter a cabeça baixa e ficar quieta significava que ela aceitava cegamente as regras da Sociedade e tolerava a forma como tratavam as pessoas.
No entanto, só porque ela se sentia culpada por sua falta de ação, não significava que ela tinha que compartilhar informações sobre seu relacionamento com Drew Knight como uma forma de compensar isso.
—Bem? — Madeline pressionou. — Você teve?
Kelia ficou tensa. Ela não sabia como responder. Verdade seja dita, além de concordar com Rycroft que ela estava tendo um caso com Drew, ela nunca apareceu com uma história detalhada do que aconteceu. Ela também não gostava de falar sobre ele porque nunca sabia o que dizer. Como explicá-lo. Como descrever seus sentimentos por ele.
—Claro que ela teve — disse Myra. Ela afastou o cabelo escuro dos olhos dourados. — Ela levou dez chibatadas por causa disso. — Ela afundou as mãos escuras na água com sabão mais uma vez enquanto Madeline pegava outro prato da pilha à sua esquerda. — Ninguém sofreria assim se não valesse a pena.
Kelia quase deu um sorriso. Valeu a pena, mas não da maneira que as duas Cegas queriam dizer.
Garantindo a liberdade de Drew Knight. Vendo a expressão no rosto de Rycroft quando percebeu que Knight não estava onde ela disse que ele estaria. Foi isso que fez valer a pena. Foi a primeira e única vez que viu seu antigo treinador perder a paciência. Ele a esbofeteou duas vezes naquela noite e a condenou a dez chicotadas públicas nas costas. Isso não incluiu os quinze extras que ele concedeu a ela quando ela estava nas masmorras depois.
Ela deveria estar morta, mas não foi por causa de Drew Knight. Porque ele a salvou.
Então, sim, valeu a pena.
—Eu quero ouvir isso dela, — Madeline disse, estreitando os olhos para Kelia. — Deixe a garota falar por si mesma.
—E dizer o quê? — Kelia perguntou.
Ela não queria parecer aborrecida com elas, mas nada sobre sua situação era da conta delas.
Então, novamente, seu cérebro apontou. Você permaneceu reservada também. Elas poderiam estar esperando que você falasse com elas.
—Não importa. — Madeline disse rapidamente, desviando seu olhar e enxaguando o sabão do prato.
Kelia não deveria ter sido tão dura. Franzindo os lábios, ela pegou um prato e começou a secá-lo. As meninas provavelmente só queriam ouvir uma história. Algo excitante ou romântico. Algo para salvá-las da monotonia e da miséria deste lugar.
Mas esse era o trabalho de Kelia?
—Isso não é verdade, — Madeline sussurrou para sua parceira. Kelia não tinha ouvido o que Myra dissera e planejava ignorar até que Madeline voltou sua atenção para Kelia e perguntasse: — Você realmente beijou Drew Knight? Você - você fez mais com ele?
Kelia deixou escapar um suspiro pelo nariz, estudando Madeline.
—Não é isso que todo mundo está dizendo? — Ela perguntou, erguendo as sobrancelhas. Não foi exatamente uma resposta, mas foi alguma coisa.
—Eles estão dizendo que você e Drew Knight eram amantes. — Myra disse com os olhos arregalados e uma voz que era secreta e ávida por mais informações.
A expectativa parecia fixada em Kelia.
Só então Kelia percebeu que a maioria dos Cegos nunca tinha realmente experimentado a vida. Eles foram condenados por algo que não puderam ajudar ou por causa de um preconceito que a Sociedade tinha contra eles. Por que a Sociedade não executou essas pessoas, especialmente aqueles que os traíram, Kelia não sabia. As tarefas tinham de ser feitas, claro, mas se o maior benfeitor da Sociedade era a Companhia das Índias Orientais, certamente eles tinham os fundos para os servidores entrarem e fazerem essas tarefas servis.
Havia mais do que isso. Tinha que haver. Para que os cegos estavam realmente sendo usados?
—Está tudo bem se você não deseja compartilhar — disse Myra de repente, tirando Kelia de sua linha de pensamento. — Provavelmente não era certo perguntarmos a você de qualquer maneira.
—Eu... Uh...— Kelia tentou pensar na melhor maneira de responder sem divulgar muito sobre Drew Knight. —Não gosto muito de falar sobre isso. Especialmente depois de estar aqui. Estou tentando fazer melhor. Me perdoe.
Foi uma performance decente - da qual Kelia se orgulhava bastante. Ela não gostava de mentir para elas, mas ela percorreu um longo caminho desde a menina ingênua que acreditava que mentir era errado. Algo que antes tinha sido tão preto e branco agora vivia dentro dela como algo que na verdade estava cheio de cinza. Ela mentiria para se proteger. Mentiria para proteger seu objetivo. E ela mentiria para proteger Drew Knight, mesmo que fosse difícil para ela admitir essa última parte para si mesma.
A Sociedade absolutamente a detestava por causa dele. Odiava. Eles poderiam ter finalmente derrubado Drew Knight, mas ela evitou que isso acontecesse. Ela o deixou escapar.
Ele estava livre para aterrorizar a população inocente de Port George, se ele ainda estivesse aqui.
—Você se arrepende? — Myra perguntou aqueles olhos dourados brilhantes curiosos.
Os pratos foram esquecidos, ensopados na banheira de água agora suja.
—Arrepender-me do quê? — Kelia perguntou confusa. — Deixando-o ir?
—Estar com ele. — A voz de Myra agora era um fragmento de um sussurro.
Kelia não podia culpá-la quando havia momentos em que ela tinha certeza de que as paredes aqui tinham ouvidos.
—Onde você está agora, de onde você veio. Todos nós já ouvimos sobre você. Soube do que você era capaz. Você desistiu de tudo por Drew Knight. — Suas sobrancelhas se juntaram. — Você se arrepende de fazer aquele sacrifício? Desistindo de ser uma Assassina, tendo sucesso como uma Assassina de alto nível, apenas para estar com Drew Knight?
Madeline estava surpreendentemente silenciosa. Kelia percebeu que ela estava tentando controlar as mãos trêmulas e Myra finalmente teve que intervir e tirar o prato dela para não o quebrar acidentalmente.
—Eu não diria que sou uma Assassina de alto nível, — Kelia disse em um tom prático. Ela não estava tentando ser humilde; ela realmente sentia que, embora tivesse uma reputação decente, não merecia o título de “Assassina de alto nível”.
—Claro que é — disse Myra como se fosse óbvio. — Era, quero dizer. Você foi uma excelente Assassina. Antes de tudo acontecer. Você capturou um infante sozinha, sem nem mesmo um arranhão. Os infantes são bestas ainda piores do que as Sombras. Eles mal têm controle sobre si mesmos. Tudo o que eles querem é sangue. E você trouxe um de volta. Vivo.
Kelia cerrou os dedos em punhos, esperando que isso ocultasse qualquer inflexão facial que pudesse denunciá-la. Elas estavam falando de Christopher. Ele era um infante resgatado por Drew Knight da Sociedade. Mas ele não era uma besta. Essa era apenas mais uma mentira que a Sociedade dizia a seus Assassinos para controlá-los, para infundir medo em seus corações para que matar infantes se tornasse semelhante a matar algo inanimado, como uma pedra ou uma árvore.
Os infantes eram considerados sedentos de sangue e cheios de luxúria. Satisfazer suas necessidades básicas era tudo de que eram capazes. Eles não tinham lógica, nenhuma capacidade de pensar ou sentir. Eles simplesmente sabiam o que queriam e iam atrás. Normalmente, eles rasgavam suas vítimas em pedaços no processo. Pelo menos, foi isso que os Assassinos aprenderam.
Kelia queria contar a essas meninas que a Sociedade encheu suas cabeças de mentiras. Ela queria dizer a elas que elas estavam errados sobre muitas coisas, incluindo infantes e especialmente Drew Knight.
Mas ela não conseguiu.
Ela deveria estar se reabilitando – redimindo seus crimes contra a Sociedade. E se ela olhasse essas garotas nos olhos e dissesse a elas que não se arrependia, a notícia poderia chegar a Abigail ou Rycroft, e então ela perderia todos os privilégios que adquirira tão recentemente.
—Estou aqui por causa de minhas ações — disse ela lentamente, ainda tentando descobrir como expressar tudo corretamente. — E eu ficarei até que eu me redima. Agi de maneira tola e egoísta e tenho sorte de ter uma segunda chance com a Sociedade.
—Ouvi dizer que Drew Knight ainda está aqui, — Madeline explodiu, como se ela não pudesse mais se controlar. Suas mãos tremiam ainda mais agora. — E as pessoas estão dizendo que a única razão pela qual ele ficaria aqui, quando todos - incluindo a Sociedade e Companhias das Índias Ocidentais - estão procurando por ele é porque ele quer você de volta.
Kelia apertou a mandíbula. Ela não tinha ouvido esse boato antes. Ela não queria ouvir sobre isso, para aumentar suas esperanças.
Mas uma pequena parte dentro dela sorriu, e se ela não tomasse cuidado, essa parte poderia colocá-la em mais problemas.
CAPÍTULO 2
Por mais que Kelia quisesse ouvir mais sobre as notórias Sombras do Mar, ela tinha outras coisas que precisava fazer. Quando terminou de secar a louça e guardá-la, lavou as mãos e saiu da cozinha.
Seu corpo inteiro doía pelo dia que passava fazendo tarefas. Ela rolou os ombros para trás, na esperança de aliviar a tensão que se acumulou em seus músculos. O gesto não fez nada por ela, e ela reprimiu um bocejo.
Ela gostaria de poder tomar um banho quente e se enfiar na cama, mas essa era a única vez que os Cegos tinham para si mesmos antes que o toque de recolher fosse obrigatório. Em vez disso, ela só poderia se esconder antes de ser forçada a apagar a vela e olhar para o teto em uma escuridão gelada, esperando por um sono misericordioso para finalmente levá-la embora.
Os corredores geralmente estavam livres neste ponto, o que significava que ela era capaz de voltar para os dormitórios dos Cegos sem encontrar ninguém que ela conhecesse antes.
Antes que ela fosse uma cega. Antes que ela fosse considerada uma traidora. Antes que ela percebesse que a Sociedade mentiu para ela por toda a vida e matou seu pai.
—Venha comigo.
A voz de veludo de Drew ainda assombrava seus sonhos. Todas as noites, ela se perguntava se havia cometido um erro grave ao recusar sua oferta.
—Saia deste lugar.
Mas ela não conseguiu.
A única razão pela qual ela fez parceria com Drew em primeiro lugar - a razão pela qual ela arriscou tudo e traiu seus companheiros Assassinos - foi porque ela precisava provar que seu pai não tinha tirado a própria vida. Quando ela soube que a Sociedade tinha sido a culpada por sua morte precoce, ela tinha a intenção de provar isso.
Mais do que isso, ela precisava saber por quê.
O que aconteceu que levou a Sociedade a assassinar seu pai?
Um relógio de pêndulo soou lá embaixo. Uma longa badalada, depois duas, até chegar às oito horas.
Uma hora até o toque de recolher.
Kelia abriu a porta de seu quarto e foi direto para o guarda-roupa. Soltando um suspiro de alívio por finalmente ser capaz de tirar a roupa apertada, ela tirou o vestido e colocou um traje antes de puxar sua trança meticulosa e escovar as ondas.
Há essa hora, todas as noites, alguns Cegos começavam a ronda pelos quartos. Eles despejavam água fresca em pias e deixavam panos limpos ao lado deles. Isso permitia que os Assassinos se limpassem depois de um longo dia de treinamento. Como uma cega, ela ainda recebia água em seu quarto, mas para se lavar depois de suas tarefas.
Kelia foi até seu boudoir e viu que a bacia ainda estava vazia. Ela soltou um grunhido irritado e, em vez disso, se arrastou para a cama. O diário com capa de couro rachado de seu pai ainda estava guardado com segurança dentro do exemplar de Moby Dick que ela mantinha embaixo do travesseiro, e ela o puxou para ler novamente.
Havia muitas informações contundentes sobre a Sociedade rabiscadas na escrita difícil de decifrar de seu pai. Cada vez que ela abria o couro gasto e folheava as delicadas folhas de pergaminho, seu coração doía. Era como se ele estivesse tão perto dela, mesmo após a morte.
Ela tentou ler algumas páginas todas as noites. Mesmo que ela tivesse lido várias vezes, ela sabia que algo estava faltando, algo significativo que explicaria o que seu pai tinha feito para ser morto.
O diário começou com o nascimento de Kelia. As inscrições eram esporádicas naquele ponto - até o ano passado, pelo menos. Algo havia acontecido no ano anterior, algo que não foi registrado. Ou o pai dela tinha vergonha do que era e se absteve de escrever sobre isso - para manter seu segredo e sua verdade para si mesmo como se soubesse que o diário cairia nas mãos de alguém depois que ele morresse - ou ele não tinha vergonha, mas cuidado sobre o mesmo motivo.
Ele era cuidadoso, ela se lembrou. Na noite em que ele morreu, ele estava pronto para me dizer...
Balançando a cabeça em frustração, ela desejou que seu pai tivesse confiado nela o suficiente para lhe contar o que estava acontecendo. Ela olhou pela janela, a noite decorando o céu como um cobertor pesado. Sua janela estava aberta para deixar o aroma sutil de ar salgado encher seus pulmões.
Ela se mexeu na cama, tentando ficar confortável. Fazia exatamente oito semanas desde sua chicotada. Mesmo agora, seu corpo estava incomumente dolorido depois de suas tarefas. Não ajudou que sua mente a mantivesse acordada tanto quanto seu corpo.
Era difícil para ela dormir à noite. Era mais do que apenas Drew Knight. Ela permanecia vazia. Ela precisava de respostas, e ela precisava delas agora.
Kelia teve a sensação de que seu pai iria contar tudo a ela na noite em que morreu, quando pediu sua presença na taverna, mas ele nunca teve a chance. A Sociedade o silenciou.
Uma semana depois, o diário caiu misteriosamente em suas mãos, mas a maioria das passagens eram tão vagas quanto seu pai tinha sido quando estava vivo. Foi frustrante, mas Kelia entendeu. E se o diário tivesse caído nas mãos de Rycroft ou de alguém do Conselho? Pelo menos seu pai teve a clarividência de codificar suas passagens de maneiras não facilmente decifráveis.
Mas isso também significava que Kelia tinha que se esforçar ainda mais para descobrir o que aconteceu com ele e por quê. Ela também estava começando a se perguntar por que a Companhia das Índias Orientais criou a Sociedade e por que a Sociedade criou as Sombras do Mar. Era uma teia espessa na qual ela se encontrou emaranhada.
A porta dela se abriu. Era outra Cega, Daniella Thompson. Ela tinha uma jarra do que só poderia ser água na mão. Sem dizer uma palavra, ela começou a esvaziar a bacia de água antes de enchê-la com água fresca.
Isso deveria ter sido feito antes do aviso de uma hora. Todo mundo estava dormindo e o toque de recolher se aproximava. Mas dizer isso poderia provocar a outra garota, então Kelia permaneceu quieta e tentou ignorá-la.
—Pensando naquela Sombra de novo, Starling?
Kelia levantou a cabeça. Havia muitos rumores em torno de Daniella, todos contraditórios. Kelia não se importava particularmente de uma forma ou de outra, então ela não prestou muita atenção. No entanto, por alguma razão inexplicável, Daniella fixou seus olhos em Kelia como alguém para insultar, atormentar e provocar sempre que pudesse.
Kelia tentou dar a outra face com a garota. Sua mãe morreu quando ela era jovem, e seu pai não tinha ideia do que fazer com ela. Por causa de sua riqueza, ele tinha laços com a Companhia das Índias Orientais. Eles sugeriram que ele a enviasse para a Sociedade a fim de quebrar seu espírito.
Infelizmente, o plano não funcionou. Ela agiu, exigindo disciplina pelo menos uma vez por semana até que o próprio Rycroft tomasse a decisão de renegar sua aceitação. Seu pai fez uma grande doação e ela permaneceu na Sociedade como Cega. Houve momentos em que Daniella se meteu em problemas, mesmo como Cega, mas ela parecia estar mais feliz agora do que como uma Caçadora.
Kelia só sabia disso porque Daniella tinha uma reputação que todo Assassino parecia estar familiarizado. Daniella era o exemplo que professores e treinadores usavam contra os Cegos. Para Daniella, olhar para Kelia mostrava o quão longe ela havia caído na escada da Sociedade, mas talvez a garota só precisasse machucar Kelia para se sentir melhor consigo mesma.
Cegos não são apenas aqueles que se prostituem para as Sombras, eles diriam. Um pouco de disciplina pode ajudar muito.
Agora que Kelia não era tão ignorante quanto antes, ela admirava muito os atos de rebeldia de Daniella, mesmo que fossem tão pequenos quanto usar renda preta em seu vestido cinza ou deixar seu cabelo ruivo solto quando deveria ser puxado de seu rosto.
Por outro lado, Daniella também estava tornando a vida de Kelia um inferno.
Mas não importava. Kelia estava aqui para obter informações. Para resolver o assassinato de seu pai. Não descobrir por que Daniella tinha problemas com ela.
Daniella continuou a olhar para Kelia de sua posição ao lado do boudoir, quase como se ela estivesse esperando por uma resposta. Quando ela não conseguiu uma, ela mudou e começou a derramar água no chão do quarto. Kelia ficou de pé.
—Que diabos, Daniella?
Daniella mudou de direção, então caminhou em direção a Kelia até que ela esbarrou nos ombros dela. Sibilando, Kelia se curvou para frente. Mesmo que suas costas estivessem quase curadas, a força em seu corpo ainda fazia seus músculos latejarem de dor.
E Daniella sabia disso.
—Você realmente deveria prestar atenção onde pisa. — Disse Daniella, seus lábios se curvando em um sorriso malicioso. Seu cabelo ruivo encaracolado crescia em volta dela, lembrando Kelia da juba de um leão.
Em vez de deixar que isso a afetasse, Kelia deixou as palavras rolarem de seus ombros. Era difícil de fazer, mas ela aprendeu da maneira mais difícil que emoções e reações podem ser uma fraqueza.
—Talvez você precise tirar sua cabeça de suas fantasias sobre Drew Knight e se concentrar no que está acontecendo bem na sua frente, hmm? — Daniella continuou. — Embora, eu deva perguntar, ele é realmente tão bom quanto todos dizem que ele é? Sexualmente, quero dizer. Você não seria a única, a saber, seria? Tenho certeza de que existem tantas outras com conhecimento íntimo dele quanto há fios de cabelo em sua cabeça.
Kelia quase rosnou com suas palavras. Ela sabia que Drew Knight tinha uma reputação. Ele era experiente. Se o que ela leu sobre ele fosse verdade, ele tinha quase cem anos, apesar de não parecer muito mais velho do que ela. O que significava que ele tinha muitos anos de mulheres em seu currículo. Kelia sabia disso. Mas Kelia não o considerava um interesse romântico. Ele era tudo o que ela havia aprendido a odiar. Mesmo que agora ela estivesse ciente de que tinha sido ensinado errado, era difícil esquecer anos de aulas.
Até que ela pensou em tudo que ele tinha feito por ela.
—Você não é nada mais do que uma Cega patética, e isso é tudo que você será, — Daniella disse com um sorriso de escárnio. — Se prostituem para as Sombras, assim como as outras Sombras fazem. Estou surpresa que a Sociedade ainda permita que você ainda esteja aqui. Você não merece a misericórdia deles.
Kelia encontrou o olhar de Daniella de frente. Naquele momento, ela não era a garota recatada que a Sociedade queria que ela fosse. Em vez disso, ela era forte, desafiadora.
Depois de meses escondendo quem ela realmente era, ela finalmente se sentiu ela mesma.
Em vez de falar, Kelia simplesmente manteve o olhar. Não havia nada para ela dizer. As pessoas acreditavam que ela e Drew Knight eram amantes. Deixe-os acreditar no que quisessem. Ela não podia mudar isso. Mas ela podia controlar como ela respondia. Sua resposta às réplicas e palavras ofensivas mostraria seu verdadeiro caráter.
O sorriso malicioso de Daniella sumiu de seu rosto quando ela percebeu que não teria uma reação. Desviando o olhar, ela deu um suspiro dramático antes de sair do quarto. Kelia soltou um suspiro que ela não percebeu que estava segurando. Ela estava pronta para ler mais, pronta para dar um passo mais perto de resolver a morte de seu pai.
Depois que ela se arrastou de volta para a cama, ela não pode deixar de pensar em Daniella, Drew Knight e nas declarações contundentes de Daniella. Ela agarrou as pontas do papel gasto para não o jogar pelo quarto. Em vez disso, ela respirou fundo e se lembrou do porquê de estar aqui. Resolver o mistério que cercava a morte de seu pai era a única coisa que importava para ela agora.
CAPÍTULO 3
Kelia acordou para encontrar um envelope imaculado, carimbado com o selo carmesim de Rycroft, em seu chão. Depois de abri-lo, ela puxou o papel e rapidamente leu os garranchos. Era uma convocação: Rycroft exigia a presença dela em seu escritório após a refeição matinal. Ela tentou decidir se a fúria dele por ela não comparecer àquela reunião valeria a pena. Então, novamente, Ashton Rycroft estava procurando por qualquer motivo para punir Kelia, para mantê-la como uma Cega pelo tempo que pudesse. Ela tinha conseguido muito no programa, indo tão longe a ponto de ganhar a confiança de sua treinadora Abigail Stanford, a ponto de ser liberada do isolamento e receber uma tarefa.
Rycroft, é claro, deixou claro que não acreditava que Kelia estivesse totalmente reabilitada, e ela não poderia culpá-lo pelo sentimento. Seus sentimentos em relação a tudo – A Sociedade, Sombras do Mar, até Drew Knight - não mudaram. Ela sabia muito para que isso acontecesse. Ele não tinha sido capaz de arrancar dela.
A verdade prevalecia, não importava o que ela tivesse que suportar.
Colocando-o de lado, ela fez seus alongamentos matinais. Ela esperava quebrar o jejum antes de seu encontro iminente com Rycroft, mas não achava que atrasar o inevitável seria uma decisão sábia. Havia um banheiro no final do corredor, e ela fez seu caminho para se aliviar antes de voltar para seu quarto. Uma vez de volta, ela escolheu um vestido cinza simples, perfeitamente engomado, sem uma ruga à vista. Era o uniforme de uma Cega.
Depois de escovar seus cabelos dourados, ela confeccionou uma trança, garantindo que cada mecha perdida estivesse no lugar. Sardas adornavam suas bochechas e nariz, sutis, mas perceptíveis, descobertas pela maquiagem. Ela era tão simples quanto poderia ser, parecendo ainda mais jovem do que os dezoito anos de idade.
Ela estava grata por seu pai ter dedicado tempo para educá-la a respeitar o valor de sua aparência. Não se tratava de parecer bonita; tratava-se de mostrar respeito por si mesma e pelas pessoas ao seu redor.
Com sorte, Rycroft notaria seus esforços, seu profissionalismo. Ela o deixaria sem nenhum motivo para questionar sua lealdade à Sociedade e à reabilitação, independentemente do que ele dissesse ou fizesse.
A Sociedade pensava que transformar as pessoas em Cegos era uma punição - tirar a individualidade, tirar a cor, tirar qualquer coisa que pudesse ajudá-los a se destacar. No entanto, Kelia preferia assim. Era mais fácil se misturar, ouvir conversas secretas quando ninguém mais a via como uma pessoa. Ela foi subestimada em todos os sentidos da palavra, considerada quebrada e inútil. Uma perda de fôlego, de espaço, de vida.
Rycroft era visto como um homem firme na convicção e misericordioso por permitir que Kelia vivesse mesmo depois que foi descoberto que ela teve um relacionamento ilícito com Drew Knight e o ajudou a escapar das garras da Sociedade. Sua chicotada pública foi justificada, embora fosse tudo baseado em uma mentira. Ela e Drew tinham um relacionamento, mas era apenas amigável, muito menos sexual. No entanto, a mentira era fácil de contar e fácil de acreditar. Afinal, Drew Knight tinha uma reputação.
E Rycroft via as mulheres como emocionais idiotas e fáceis de manipular. Como tal, Kelia alegando ter uma relação sexual com um dos homens das Sombras do Mar mais cruel e bonito não era tão difícil de acreditar. Ninguém sequer questionou isso.
Apesar de tudo, no entanto, ela não conseguia conectar as partes do motivo pelo qual a Sociedade matou seu pai, por que eles queriam matá-la e o que estavam escondendo. Ela sabia que havia coisas que ainda não tinha descoberto.
Ela saiu de seu quarto com o estômago roncando e as costas rígidas. Cada vez que ela precisava se encontrar com Rycroft, suas costas ficavam especialmente tensas, como se lembrasse do que teve que suportar em suas mãos. Se Drew Knight não tivesse cuidado dela, havia uma boa chance de que ela sangrasse pelos cílios ou pegasse uma infecção mortal e morresse.
Rycroft provavelmente teria preferido sua morte, mas ele não havia feito mais nenhum atentado contra sua vida.
Pelo menos nenhum que ela conhecesse.
Rycroft tinha um pequeno escritório nos corredores sem visão, que ficava isolado da parte principal da fortaleza. Havia duas salas de aula, e cada cego tinha uma hora de exercício físico fora cada dia. Se eles não estivessem recebendo aulas estritas em seu programa de reabilitação, ou fora da praça naquela hora designada, eles só podiam estar em três outros locais: seus quartos, a biblioteca ou completar a tarefa que lhes foi designada.
Kelia parou em frente ao escritório de Rycroft, olhando pela grande janela de vidro de sua porta. Daqui ela podia ver tudo dentro, incluindo o topo de sua cabeça enquanto ele olhava para um pedaço de papel em sua mesa.
Até agora.
A presença de Kelia o inspirou a fazer mais e mais visitas à ala dos Cegos da fortaleza para ver como ela estava, para ver se ela realmente estava em conformidade com as regras da Sociedade. Kelia fez questão de sair de seu caminho para mostrar o quanto ela havia mudado. Era tudo uma atuação, mas ela precisava garantir que ele acreditasse.
Hoje seria outra chance de mostrar a ele. Quando ela abriu a porta do escritório e entrou, ela curvou os ombros para frente e manteve os olhos no chão. Ela precisava parecer confiante em sua reabilitação, mas ainda recatada, embora ela não quisesse nada mais do que tratá-lo como se ele não fosse um treinador que deveria ser temido e respeitado, mas como alguém que ela havia superado.
Kelia acalmou seu orgulho ao se sentar. Embora estivesse praticando seu controle, ouvindo os conselhos de Drew Knight sobre como suas emoções contundentes podiam ser uma fraqueza, ela ainda sentia a atração, ainda sentia como seria fácil abrir a boca e fazer um comentário sarcástico. Isso a faria se sentir bem por um momento, mas arruinaria tudo que ela estava trabalhando. E a glória no momento não significaria nada quando ela pudesse ter tudo o que quisesse mais tarde, se exercitasse a paciência.
Ela olhou ao redor do pequeno escritório, meditando sobre a estranheza deste escritório, muito menos decorado do que o outro. Bijuterias não adornavam sua parede ou escrivaninha; troféus que ele havia recebido ou acumulado durante sua gestão como treinador da Sociedade não estavam em lugar nenhum. Na verdade, este escritório foi uma reflexão tardia. Claro, ele era mantido intocado. Os Cegos designados para a tarefa se certificaram de fazer seu trabalho de forma completa e consistente para garantir que Rycroft não tivesse motivos para reclamar.
—Srta. Starling — disse Rycroft, levantando-se e deslizando os óculos de aro fino pelo nariz redondo. Mesmo que ele não fosse alto, ele ainda chamava atenção. Ele tinha presença. Ela tinha que dar isso a ele. — Fico feliz em ver que você está... Bem.
Não sou nada mais do que um camaleão, pensou ela.
—Eu estou bem, — ela murmurou, brevemente olhando para ele. —Obrigada por perguntar.
Os lábios de Rycroft se curvaram lentamente em um sorriso triunfante. — Vejo que finalmente está recuperando o juízo, Srta. Starling. Você finalmente está percebendo que suas ações com Drew Knight foram nada menos do que pecaminosas, e você precisava ser punida. Você entende isso, não é?
Kelia entendia, mas ela não concordou. No entanto, Rycroft não precisava saber disso. Não quando ele já tinha suas suspeitas. Não quando ele já procurava algum motivo para puni-la ainda mais e mais cruelmente do que já tinha feito.
Suas costas nunca mais seriam as mesmas. Suas cicatrizes a marcariam pelo resto de sua vida, como uma marca, uma tatuagem que não poderia ser apagada. Um lembrete constante de sua traição à Sociedade e o que ela suportou quando foi descoberta. Ela nunca se casaria agora.
—Sim. — Kelia murmurou.
A cadeira do escritório de Rycroft rangeu quando ele se sentou.
—Sente-se, Srta. Starling. Fico feliz em ouvir isso — disse ele. — Estou feliz em ver que você está se destacando aqui. Eu não tinha certeza de que você sobreviveria aos seus ferimentos, mas parece que você se ergueu como a Fênix. Eu me pergunto quantas vidas você possui.
Kelia se sentou, colocando as mãos no colo.
—Você pode ser uma candidata perfeita para um novo projeto em que estamos trabalhando aqui na Sociedade — continuou ele, tamborilando os dedos na superfície da mesa. — Você estaria interessada em participar?
A velha Kelia teria questionado o que era esse projeto e como se esperava que ela se integrasse a ele. Mas essa Kelia era dócil, quieta e fazia o que todos mandavam, sem falar fora de hora, então assentiu.
—Eu ficaria honrada pela oportunidade de ajudar a Sociedade de qualquer forma. — Ela conseguiu dizer sem qualquer pista de seus verdadeiros sentimentos.
Rycroft acenou com a cabeça, sorrindo. — Estou muito feliz em ouvir isso, Sra. Starling. Você pode ir agora.
Kelia se levantou, tentando esconder sua surpresa com o fim abrupto dessa reunião, e lentamente caminhou até a porta, esperando para ouvi-lo chamá-la, para acrescentar mais uma coisa. Quando ele não o fez, parecia que seu peito estava sendo agarrado por uma mão nervosa, apertando e liberando. Ainda sem chamado, sem oferta para ficar. Ela se forçou a abrir a porta e sair. Era difícil não olhar para trás, para ter certeza de que ele realmente não tinha mais nada para ela, mas era necessário que ela mantivesse o olhar focado à sua frente.
Quando ela chegou ao quarto, ela praticamente fechou a porta. Ela não teve tempo de recuperar o fôlego antes que alguém falasse.
—Bem, bem, bem, — uma voz suavemente arrastada disse das Sombras. — Olha o que temos aqui. — Um lampejo brilhante de branco na forma de um sorriso mortal perfurou as sombras. —Como você está, Assassina?
CAPÍTULO 4
Kelia congelou, seu coração batendo forte contra suas costelas, exigindo se libertar de sua prisão. Depois de garantir que sua porta estava bem trancada, ela se virou para ver se a voz que ouvira agora não era um sonho, mas sim Drew Knight. Ela não sabia por que seu coração batia tão forte, como se ela tivesse medo de alguma coisa.
Drew nunca a machucaria, então não era isso. Talvez então, medo de ser pega? Medo da Sociedade? Como as marés mudaram...
E lá estava ele, diante dela em toda a sua bela glória. Sua respiração sumiu de seus pulmões. Suas mãos ficaram úmidas. Sua garganta ficou seca. Naquele momento, até seu coração pareceu parar de bater, como se ela fosse uma das Sombras que ela costumava caçar tão bem.
Tudo o que ela podia fazer era aceitá-lo. Olhar fixamente. Ele estava tão lindo quanto da última vez que ela pôs os olhos nele, o que era quase uma tragédia por si só.
Ela sentia falta dele. Nos últimos dois meses, ela realmente sentiu sua falta, e era um fardo que ela não percebeu que estava carregando até que o viu e foi esmagada com o peso daquele conhecimento inesperado.
Drew não parecia a besta que todos diziam que ele era. Se não fosse por sua pele pálida que parecia brilhar ao luar, ele poderia facilmente se passar por um cavalheiro devido ao seu traje justo que parecia moldar seu corpo como um segundo, embora mais solto, conjunto de pele.
—O que você está fazendo aqui? — Kelia se forçou a dizer, mas imediatamente odiou que tivesse saído trêmula.
Ela não deveria mostrar fraqueza, especialmente na frente dele. Ele não deveria saber que mesmo depois de todo esse tempo separados, ele ainda tinha a capacidade de afetá-la.
—É assim que você fala com velhos conhecidos? — Ele perguntou, ousando dar um passo em sua direção.
Kelia olhou para a janela atrás dele. Ela puxou o lábio inferior entre os dentes, com medo de que alguém pudesse vê-lo em seu quarto, embora estivesse escuro e suas cortinas estivessem fechadas. Mas ela se recusou a dar um passo para trás, para deixá-lo ver o que fazia com ela tão facilmente.
—O que você está fazendo aqui? — Ela perguntou novamente. Desta vez, sua voz era suave, embora ela não pudesse olhar para ele, mesmo se quisesse. Havia muito entre eles. — Você deveria fugir. Você não deveria voltar.
—Eu precisava ver você. — Sua voz era solene, toda brincadeira se foi. Mesmo seus olhos, normalmente brilhantes de arrogância e malícia, estavam mais escuros do que o normal. — Suas costas estão bem?
Kelia engoliu em seco. De alguma forma, essa conversa tinha se tornado decididamente íntima, e ela podia sentir suas costas gritarem de desejo, gritar porque queria seus dedos em sua pele mais uma vez.
—Curando. — Ela disse, certificando-se de enfatizar que ainda era algo acontecendo no presente.
Que ela não se recuperou tão rapidamente quanto esperava.
Ele acenou com a cabeça uma vez, então enfiou a mão dentro de seu casaco longo e escuro e puxou o bálsamo que ele tinha usado nela antes.
A boca de Kelia abriu quando ela viu. Isso foi inesperado. Drew Knight havia partido há meses e agora estava aqui, em seu quarto, sozinho com ela, com a intenção de esfregar bálsamo em suas costas como fizera antes. Como se isso fizesse alguma diferença?
Suas costas tinham linhas feias que subiam e desciam. Ela estava quase grata por não poder vê-las facilmente, por ter que esticar o pescoço para tentar avistar as cicatrizes vermelhas e gritantes.
Mesmo que Drew tivesse visto suas costas nuas, Kelia estava hesitante em ser tão vulnerável com ele novamente. Antes, não era uma escolha. Ela estava de bruços, o sangue escorrendo de suas feridas enquanto ela definhava naquela cela abaixo do solo. Abaixar sua roupa e se expor a ele seria uma escolha, ao invés de algo que ela era forçada a fazer se quisesse viver.
—Posso apenas garantir que tudo está curando como deveria? — Ele perguntou seu olhar escuro agrupando-se no dela. Ela não diria que ele estava implorando, mas se Drew Knight chegasse perto de tal coisa, provavelmente seria isso.
Kelia engoliu em seco. Ela deveria dizer não. Qualquer um poderia entrar no quarto. Os treinadores tinham chaves, tornando as fechaduras quase inúteis, exceto pela privacidade que proporcionavam aos outros Cegos. Drew Knight estava arriscando muito apenas para estar aqui, a ponto de Kelia querer gritar que ela estava aqui por causa de seu sacrifício por ele. Ela estava aqui porque o queria livre. Sua presença em seu quarto foi quase um tapa em seu rosto, a arrogância derramando-se dele como o sangue derramado de suas vítimas.
—Você só deseja me verificar? — Ela perguntou. Ela não se preocupou em esconder a suspeita de sua voz. Parecia estranho que, após dois meses de silêncio, ele estivesse de repente de volta e preocupado. Não era da sua conta, mas ela estava curiosa para saber o que tinha acontecido com ele durante o tempo separado.
Ele parecia bem. Ele parecia... Alimentado.
—Estou aqui porque queria ver você — ele disse novamente. —Eu precisava ver você.
Sua voz era inflexível, como se precisasse que ela acreditasse nele. Mas por quê? Drew Knight poderia fazer o que quisesse, quando quisesse. Não deveria importar o que ela pensasse.
—Aqui estou. — Disse ela. Ela não sabia mais o que dizer.
—Sim, — ele murmurou. Ele deu um passo em sua direção e ergueu o bálsamo. —Posso passar isso em você? — Uma batida e, em seguida, —Por favor?
O coração de Kelia parou com a palavra, e ela já sabia que daria sua permissão. Ela odiava aquela palavra quando saía daquela boca porque ela era incapaz de resistir.
—Eu não preciso disso...
—Vejo que você ainda é teimosa. — Disse ele, erguendo os lábios. O sorriso parecia genuíno. Satisfeito. Talvez até contente. Como se gostasse de estar na presença de Kelia, independentemente do risco.
Kelia abriu a boca para responder, mas mudou de ideia. Lentamente, ela caminhou até sua divisória e desamarrou o cordão de tecido que mantinha a frente de seu vestido levantada. A roupa caiu em sua cintura, deixando todo o torso exposto.
—Você tem que se virar. — Ela disse, recusando-se a sair da divisória até que ela tivesse certeza de que Drew tinha feito o que ela pediu. Assim que o fizesse, ela correria para a cama e se deitaria sem que ele visse qualquer parte dela que estava tipicamente escondida até o casamento.
Exceto suas costas, é claro.
Ela espiou pela divisória até que ele ouviu um sorriso tímido em seu rosto, e então ela saiu. Sua respiração havia desaparecido completamente. Estar em um cômodo com Drew Knight, metade de seu corpo exposta, não era algo que pensou que teria que suportar novamente. E, no entanto, aqui estavam eles.
Seus seios estavam de fora, a frieza inesperada beliscando seus mamilos. Ela precisava ir para a cama antes que ele ficasse ansioso e se virasse. Ela ainda não estava pronta. Mesmo que ela não achasse que Drew fosse quebrar sua confiança, ela correu para a cama. O frio inspirou seus movimentos rápidos, e ela não foi capaz de relaxar até que seu estômago estivesse enterrado nos lençóis e seus seios estivessem achatados, longe de olhares acidentais.
—Tudo bem. — Ela disse baixinho, sua voz falhando. Ela não sabia se era porque estava desconfortável ou porque não sabia o que esperar. De qualquer maneira, ela se sentia mais vulnerável do que antes. Mais exposta.
Ela não sabia por que isso era diferente do que ela estava deitada em sua cela, seu vestido rasgado em pedaços graças ao chicote de couro que Rycroft havia usado nela. Naquela época, ela estava meio delirando, e ela não poderia ter se importado se Drew Knight tropeçasse em seu corpo nu e fraco.
Agora, era diferente. Ela escolheu tirar a roupa, para se permitir ser vulnerável quando ela estava bem e consciente. Ela não deveria fazer isso. Não estava certo. Ele estaria tocando uma parte íntima de seu corpo com as próprias mãos. Sim, era para aplicar bálsamo, mas ela não precisava desse bálsamo. Na verdade, não.
E ainda...
E, no entanto, ela se encontrou ansiosa por seu toque. Desejando, até.
Embora Drew estivesse quieto, seus passos soaram como um trovão. Seu coração parecia bater no mesmo ritmo a cada passo, e ela moveu as mãos por baixo do travesseiro para aproximá-las de seu corpo.
Ele chegou ao lado da cama e se ajoelhou. Depois de tirar a tampa do bálsamo, ele despejou uma quantidade generosa em seus longos dedos. Kelia prendeu a respiração, esperando por seu toque. Ela o observou o melhor que pôde enquanto ele estudava suas costas nuas. Seu batimento cardíaco ecoou por ela, batendo contra seu peito.
E então, ele a tocou de volta. Seu corpo inteiro fez algo peculiar - ficou tenso e derreteu ao mesmo tempo. Ela não achava que tal coisa fosse possível. Era como se ela estivesse desconfortável e confortável quando ele a tocava.
—Você está se curando melhor do que eu esperava, — ele murmurou, sua voz enchendo o quarto. Havia uma certa severidade no tom, entretanto. Como se ele estivesse com raiva de alguma coisa. O que era, ela não sabia dizer. —Você ainda está com crostas. Sua pele está descascando. Como está?
Kelia engoliu em seco. Ela não esperava que ele falasse, para ser honesta, mas se viu perdendo no som de sua voz.
—Estou sobrevivendo.
—Isso não é uma resposta. — Respondeu ele.
—O que você gostaria que eu lhe dissesse? — ela perguntou, tentando ignorar seus dedos ágeis dançando em suas costas do jeito que fariam as teclas de um piano de marfim. — Não estou nem perto de descobrir por que meu pai está morto. Estou presa lavando pratos todas as noites com garotas tolas que querem saber se você beija bem. Eu não posso treinar. Não tenho ideia de onde está minha espada. Não posso fazer nada, exceto ler o diário de meu pai. Às vezes, essas entradas são tão enigmáticas que me preocupo que ele estava escondendo muito mais do que pensei que poderia estar. Que ele não é a pessoa que pensei que era.
Drew ficou em silêncio por um momento, concentrando-se nas costas dela. Kelia respirou fundo, tentando se acalmar. Esta era provavelmente a última coisa que ele queria ouvir, os problemas mundanos de uma garota. Ele era um poderoso Sombra do Mar. Garotas e diários provavelmente não estavam em sua mente.
—O que você disse a elas? — Ele perguntou sua voz sedosa a pegando de surpresa.
Seu corpo reagiu com arrepios e ela esperava que ele não percebesse.
—O que você quer dizer? — Ela perguntou. — Eu não contaria a elas sobre meu pai.
—Não sobre ele — disse ele, e ela pôde detectar um toque de brincadeira. — Sobre mim. Sobre que tipo de beijador que sou.
Kelia lançou um olhar para ele e ele jogou a cabeça para trás, dando uma gargalhada. Os dedos dele pararam de se mover nas costas dela, mas ele não tirou as mãos de sua pele. Ela estava completamente paralisada por ele, pelo som de sua risada, pela forma como seu sorriso iluminava todo o seu rosto. Ela deveria estar preocupada que alguém pudesse ouvir uma risada masculina em um dormitório feminino, mas ela simplesmente não conseguia tirar os olhos dele, muito menos ordenar que ele fosse embora.
—Tenho certeza de que você tem recebido muito essas perguntas — continuou ele, uma vez que se acalmou. — Sobre seu suposto relacionamento comigo.
—Eu tento não responder, — ela murmurou. Ela fechou os olhos quando ele voltou a esfregar o bálsamo em suas costas. — Eu nunca sei o que dizer.
—Você não conta a verdade — afirmou. — Talvez fosse melhor se você reconhecesse que eu te seduzi? Que eu cativei você com minhas habilidades perversas e sobrenaturais? Eles acreditariam nisso.
—Seria uma mentira. — Disse Kelia.
—E nossa relação sexual, não é? — Ele perguntou. Havia um pequeno sorriso em seu rosto, mas sua postura tensa fazia até o sorriso parecer sério.
—É fácil de explicar — disse ela. —Ninguém questiona.
—Sim, mas você não faria
—O que aconteceu já aconteceu, Drew — disse ela. — Não podemos voltar atrás e mudar isso. Não deixe que isso o incomode. Estou surpresa com algo tão inócuo quanto minhas costas...
—Kelia, caramba, você é importante para mim, e o que você fez por mim não será esquecido. — Disse ele, sua voz afiada. Ele puxou as mãos, então se virou para dar-lhe tempo para aliviar sua mudança de volta para que ela estivesse decente.
Ela se virou de lado. Ela estava quase completamente coberta, exceto pela manga de seu braço direito, que ela segurava contra ela.
Ele a encarou novamente e se ajoelhou ao lado dela. A tensão irradiava de seu corpo.
—Kelia, eu preciso cobrar o favor que você me deve — disse ele. Ela não tinha certeza, mas quase soou como se houvesse uma pitada de arrependimento em sua voz. —Eu não pediria isso a você, não colocaria você em risco, a menos que fosse absolutamente necessário.
Ela enrijeceu, chateada por ele não estar aqui apenas para ver como ela estava, embora não fizesse sentido que ele viesse simplesmente para isso. Claro que ele veio porque queria algo.
—E o que você quer de mim? — Ela perguntou.
—Eu preciso que você encontre informações sobre a localização de uma Wendy Parsons. — Drew disse.
—Tudo bem... — Kelia disse, arrastando a palavra. —Você pode me falar mais sobre ela? Onde ela nasceu? Uma data de nascimento, talvez? Por que ela é importante?
—Infelizmente, não posso dar a você mais do que um nome, mas acredito que ela está em algum lugar da Sociedade, em algum lugar aqui.
—Você conseguiu me encontrar, — Kelia apontou. —Certamente, você pode encontrar outra pessoa.
—Você é diferente. — Ele estendeu a mão e, lentamente, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha dela, seus olhos quase tão negros quanto a parte mais profunda do mar. — Tenho fé absoluta de que você será capaz de encontrá-la.
—E se eu não fizer? — Kelia conseguiu dizer.
Ele estava muito perto dela. Ela precisava se afastar, mas seu corpo se recusou a se mover.
Um sorriso lento deslizou em seu rosto. —Eu sei onde encontrar você.
CAPÍTULO 5
Ver Kelia Starling depois de dois meses pegou Drew de surpresa. Ela parecia diferente. Mais velha. Mais bonita, se isso fosse possível. Ele não tinha percebido o quanto sentia falta dela até que a viu. Ele tinha estado muito focado em rastrear Wendy Parsons.
Mas agora, tudo voltou correndo para ele. A forma como seu cabelo sempre escapava dos limites da trança e ela tentava desesperadamente afastar os fios soltos de seu rosto. A forma como os lábios dela pressionavam em uma linha fina e irritada ou os olhos dela teimosamente se recusavam a desviar o olhar dele às vezes.
Ao vê-la após a separação, ele se esqueceu de tudo o que havia suportado nos últimos dois meses. A incursão em seu navio, as informações que obteve - ele quase esqueceu que estava aqui por um motivo. Não para vê-la novamente, mas para exigir o favor que ele a fizera prometer quando eles concordaram em trabalhar juntos.
Ele arriscou muito para ver Kelia novamente, para pedir esse favor, mas Wendy era muito importante para ele. E Kelia sempre valia o risco.
Depois de sua provação há dois meses, Drew ainda estava inflexível sobre sua recusa em deixar Port George, mesmo sendo o criminoso mais procurado da ilha. Os piratas foram rejeitados em favor de rastrear o infame Sombra. Drew não ficou surpreso ao saber que uma grande soma foi colocada em sua cabeça, e uma quantia decente em informações que levariam à sua captura.
A morte estava fora de questão porque matar uma Sombra fazia com que elas se transformassem em cinzas e explodissem no mar. Não se poderia provar que uma Sombra morreu e por quem, a menos que houvesse relatos de testemunhas reais.
Drew Knight era procurado vivo.
Pelo menos, era o que dizia o papel com sua imagem desenhada e rebocada por toda a cidade.
Quando Kelia disse que ele não deveria ter vindo, ele fez uma pausa. Essas não eram as palavras que ele queria ouvir quando a visse novamente. E ainda assim, ele podia sentir o quanto ela significava para ele. Não porque ela não quisesse vê-lo, mas porque ela havia trabalhado tanto para libertá-lo, para avisá-lo de sua captura iminente, e ela não queria vê-lo sendo imprudente com a oportunidade que ela lhe deu. Especialmente considerando o que ela teve que suportar por causa disso.
Essa garota precisava controlar suas emoções.
Ou isso, ou ele estava se tornando um especialista em interpretá-la.
Ele saiu pela janela dela, então saltou para o telhado da fortaleza impenetrável da Sociedade. Ele se agachou ali, parando um momento para garantir que estava sozinho e não seria pego.
Porque Kelia estava certa. Ela havia sacrificado muito para que ele ainda tivesse sua liberdade, e ser pega faria esse sacrifício em vão.
Quando julgou seguro, caminhou pelo telhado, as mãos enfiadas nos bolsos, até chegar ao fim e se afastar, caindo do alto da fortaleza e caindo de pé com facilidade.
Quase uma hora depois, ele encontrou Emma nas docas do oeste. Se ele quisesse – se ele tivesse escolhido usar sua velocidade não natural e correr - ele poderia ter estado lá muito mais rápido. Poderia ter sido sua melhor opção, considerando que a vida noturna de Port George ainda se espalhava pelas ruas, a devassidão da qual participavam deixando um fedor peculiar em seu rastro.
Drew costumava desejar lugares como a vida noturna de Port George. Todo mundo estava sempre tão bêbado que ninguém o reconheceria como uma Sombra do Mar, ninguém perceberia que ele era bastante pálido para um pirata e ninguém perceberia suas presas anormalmente longas. Todos o viam como uma coisa bela e, como tal, ele tirava proveito disso.
Agora, entretanto, ele tinha décadas de experiência em seu currículo, e isso o tornava menos ignorante. Suas prioridades mudaram de adquirir comida e prazer para sobreviver o máximo que pudesse por conta própria.
A noite estava particularmente fria. Sua respiração saía como fumaça de um cachimbo. De alguma forma, Emma não demonstrou que estava com frio, embora tivesse que estar. Ela era menor do que ele, usando menos roupas. Sua pele estava coberta de arrepios, mas ela não disse uma palavra sobre o frio.
Drew balançou a cabeça, um pequeno sorriso no rosto. Todas as mulheres que ele conhecia e respeitava pareciam teimosas. Seu sorriso desapareceu quando ele pensou na única mulher que preferia nunca mais ver. Ela não era tão teimosa quanto cruel e fria.
Havia uma razão para ele não servir mais à Rainha Sombra do Mar. Houve uma razão para ele romper os laços com ela. Foi um movimento arriscado com certeza, mas ele não se importou. Ele queria sua liberdade - tanta liberdade quanto pudesse obter dela. Ela não gostava de doar seus pertences tão facilmente.
Drew continuou sua jornada pela selva até seu navio atracado do outro lado da ilha. Isso o fez perceber que esta era a mesma jornada que Kelia fazia cada vez que ia visitá-lo com novidades. Seus lábios se curvaram quando ele se lembrou dela empurrando o barco a remo que ele havia deixado na praia isolada para ela usar na areia, pulando e remando até seu navio ancorado. Ele construiu mais músculos na parte superior de seu corpo do que qualquer treinamento que ela participou como uma Assassina.
Ela sempre tinha essa ruga de frustração na ponta do nariz quando subia a escada e se puxava para fora da borda do navio. Ela era tão feroz, mesmo em face de uma notória Sombra do Mar. Ele admirava sua coragem.
Ele perdeu, até.
Um crocitar distante o fez virar a cabeça para cima. Não havia pássaros no céu, especialmente não tão tarde da noite. Ele cerrou os dentes, sua mente bloqueando qualquer outro pensamento de Kelia de escapar. Ele tinha que estar em guarda agora. Havia coisas tão mortais quanto as Sombras, e essas feras vagavam pelos mares.
Assim que eles levaram o barco para o navio e subiram a bordo, Emma fez seu caminho para o leme como se fosse a capitã, seu cabelo escuro amarrado, fazendo com que os ângulos de seu rosto parecessem duros sob o luar. Seu vestido justo com gola alta era apertado na cintura, acentuando sua figura marcante. Não havia como negar: Emma transbordava de uma confiança que nem mesmo alguns de seus tripulantes do Sombras do Mar possuíam.
—Demorou mais do que o esperado. — Ela apontou, embora não houvesse acusação ou julgamento em seu tom.
—Sim, bem. — Respondeu ele, mas ofereceu-lhe nada mais do que uma explicação.
Ela empurrou o leme do navio para encontrá-lo a bombordo, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele acenou com a mão em direção ao convés.
—Você localizou alguma coisa enquanto limpava os destroços? — Ele perguntou. Ele estava decidido a mudar de assunto, sabendo que Emma sem dúvida faria perguntas sobre Kelia que ele não queria responder ainda.
Seus lábios pintados de vermelho se curvaram. Era como se ela soubesse exatamente o que ele estava fazendo. O que provavelmente ela fez. Afinal, ela era uma bruxa. Ela tinha a habilidade de ver coisas que ninguém podia ver e sentir coisas que ninguém podia sentir. Ela foi à razão pela qual Kelia sobreviveu às chicotadas brutais que Rycroft lhe deu. Seu bálsamo, a mistura que ela dera a Drew para garantir que a febre de Kelia passasse, salvou a vida da Assassina.
Kelia não sabia disso, é claro. Ela sabia que Emma fazia tudo, mas não sabia que era misturado com magia, com propriedades curativas não encontradas na medicina humana.
Drew seria eternamente grato a Emma por salvar a vida de Kelia. E não apenas para garantir que Kelia estaria bem o suficiente para rastrear Wendy Parsons e cumprir sua parte no trato.
Havia mais do que isso.
Ele se importava com Kelia. Mais do que provavelmente deveria.
—Os homens estavam todos mortos antes de eu chegar até eles, então não havia ninguém para questionar — Emma respondeu. Ela deu um passo para fora do leme enquanto Drew avançava seus dedos coçando para agarrar as malaguetas mais uma vez. — No entanto, fui capaz de espiar que tipo de carga o navio estava transportando para a Sociedade.
Ela o olhou com atenção. Ele não precisava ordenar que ela explicasse; ele sabia que ela faria quando estivesse pronta.
—Havia gado no navio — ela continuou. — Vacas, galinhas, cabras. Tudo o que se precisa para uma fazenda.
—Pecuária? — Drew perguntou. Ele colocou o dedo indicador na ponta do queixo e o esfregou.
Ela assentiu. — Todos mortos agora, — ela disse com um aceno de desaprovação de sua cabeça. — As sereias e as Sombras tiveram um belo banquete.
—Por que a Sociedade precisa de gado? — Drew perguntou. Ele voltou sua atenção para o mar, como se as ondas pudessem se comunicar com ele, dizer-lhe tudo o que ele precisava saber. Além do fato de que uma tempestade estava chegando, não havia mais nada para ele. — Eles não têm grama. Eles não precisam abater os animais quando recebem comida de um açougueiro da cidade. Por que eles precisam de animais vivos?
Emma encolheu os ombros. — Essa é a questão, não é? — Ela perguntou. Ela deu passos suaves pelo convés, entrelaçando os dedos e colocando-os na protuberância de seu pequeno estômago. — E Kelia? — Quando Drew não respondeu, ela empurrou. — Como está Kelia?
—Ela está tão bem quanto se poderia esperar, dadas às circunstâncias atuais. — Disse ele. Ele tentou não permitir que seus sentimentos se infiltrassem em suas palavras.
—E o bálsamo? — Ela perguntou. — Certamente você sabia que eu descobriria que alguém entrou em meus aposentos privados sem um convite e levou meus pertences.
—Considerando que seus aposentos estão no meu navio, você deve perceber que, tecnicamente, eles pertencem a mim, — ele disse rapidamente, mas então suspirou. — Eu deveria ter perguntado, eu sei. Mas...
—Mas isso envolve Kelia, e as regras são diferentes com ela, — Emma terminou, embora Drew não tivesse intenção de dizer isso. Ela cruzou os braços sobre o peito. — Diga-me, como ela está? Você pode pelo menos me dizer isso.
Drew queria rosnar para ela, deslizar suas presas para fora e rugir, mas sabia que ela não se sentiria intimidada por ele nem um pouco. Ele conhecia Emma há muito tempo para que ela se preocupasse que ele danificasse um fio de cabelo de sua cabeça, não quando ela estava tão perto de Wendy. Ela era uma das poucas pessoas que poderia se safar de questioná-lo, com respostas exigentes. Contanto que ela não fizesse isso na frente de sua tripulação, ele particularmente não se importava.
Em vez disso, Drew deu de ombros casualmente, como se toda a sua visita a Kelia fosse praticamente sem sentido.
—Ela está fazendo o melhor que pode onde está. — Ele ofereceu. Ele se virou para a costa de Port George. Sua tripulação estaria fora, explorando a cidade, devastando mulheres, procurando comida, bebendo o quanto quisessem.
—Sim, foi o que você disse — disse Emma alegremente. — Mas o que isso significa?
—Ela é uma cega agora — disse Drew. — Ela tem cicatrizes horríveis marcando suas costas que ela nunca vai se curar. Quem quer que ela escolha para se tornar íntimo terá que aceitá-la como é. Terei que aceitar o fato de que... —Ele deixou sua voz sumir, não querendo terminar a frase. Não querendo dizer em voz alta que a culpa era dele. Ele já sabia que era o responsável pela vida que ela teve que suportar atualmente.
—Ela é uma mercadoria contaminada. — Emma terminou.
—Ela não está contaminada, — Drew estalou, girando para encará-la totalmente. — Ela resistiu. Ela sobreviveu. E ela vai continuar porque isso é tudo que ela sabe. E eu não... Eu não sei o que fazer sobre isso. — Ele passou os dedos frustrados pelos cabelos escuros e foi até a grade. Descansando os antebraços ali, ele se curvou, tentando inalar o cheiro do mar, esperando que isso o ajudasse a se acalmar.
—Drew, — Emma disse hesitantemente, embora permanecesse onde estava. — Kelia está contaminada agora. Seus pensamentos não são puros. Seu conhecimento não é unilateral. E seu corpo representa as escolhas que ela fez. Eu entendo que você se sinta culpado porque pensa que é sua culpa, mas posso garantir-lhe...
—Eu não quero sua garantia — disse ele, cada palavra afiada e pontiaguda. — Quero falar sobre outra coisa, algo sobre o qual posso realmente fazer algo.
Emma abriu a boca, mas Drew a lançou um olhar de advertência. Quase todas as noites, ele tolerava a opinião de Emma, mas não estava com humor para fazê-lo agora.
—Os destroços, — ele retrucou. — Me diga mais.
Ela parou por um longo momento, e Drew pensou que ela iria lutar com ele sobre isso. No entanto, ela soltou um suspiro de desprezo antes de começar a andar para cima e para baixo ao longo do convés.
—A Sociedade estava transportando gado de Port Royal para a fortaleza — disse Emma. — Não havia muitos homens a bordo, apenas três, e eles morreram quase instantaneamente no ataque. Consegui adquirir um livro-razão com notas. Não era exatamente um diário, mas tinha datas e frases que não consigo decifrar. Além do nome de Wendy, é claro.
—O livro-razão tinha o nome dela? — Ele olhou por cima do ombro, arqueando uma sobrancelha. Ele sabia que era; Emma não mentiria e não lhe traria notícias que já não tivesse verificado.
Ela torceu o nariz, como se surpresa por ele a questionar. No entanto, ela escolheu responder independentemente.
—Claro como o dia, — ela disse com um aceno de cabeça, vivamente compassando a extensão do cais - a primeira indicação de que ela estava, de fato, com frio. Ela colocou as mãos atrás das costas. — Datado de anos atrás, de volta ao tempo quando eu escapei. Eles devem ter pegado ela logo depois que ela me resgatou. — Ela estremeceu. — Wendy estava lá por minha causa. Se ela não tivesse tentado me resgatar...
—Quando me disseram sobre sua captura, pedi ajuda a Wendy — interrompeu Drew. Havia um aperto em seu coração, mas ele continuou, sem vontade de pensar nisso por mais tempo. — Eu fui um idiota, Emma. Depois que rompi meu vínculo, agi de forma egoísta. Talvez se eu não tivesse sido tão indulgente, você teria estado ao meu lado o tempo todo. Eu deveria saber que a Rainha iria rastreá-la, teria sido capaz de descobrir que foi você quem cortou meu vínculo com ela. Se eu não fosse tão egoísta, tão medroso, você nunca teria caído no colo deles. Pedi ajuda a Wendy porque sabia que não poderia fazer isso sozinho. Temia acabar voltando para a Rainha. E eu prometi que nunca deixaria isso acontecer de novo, mas o que eu arrisquei para me manter livre dela... Eu nunca vou me perdoar.
—É por isso que você insiste tanto na segurança de Kelia — disse Emma. — Ou talvez eu deva dizer uma das razões.
—Ninguém fica para trás. — Ele disse, então passou por ela. Ele ainda se lembrava do momento em que Emma voltou para ele depois de escapar, quando percebeu que Wendy não estava com ela. Ela tinha ficado para trás. Eles conseguiram Emma de volta apenas para perder Wendy. E quando ele foi atrás de Wendy, usando a localização exata de Emma, eles já haviam partido. Desapareceu como se o programa nunca tivesse existido. Claro, Emma tentou rastrear o novo local com sua magia, mas eles colocaram blocos no lugar que não estavam lá quando Wendy usou sua magia para rastrear Emma.
Era por isso que ele estava ansioso em conhecer Kelia, em usá-la, em conseguir aquele favor. Ele não tinha outra maneira de encontrar o programa. Ele tinha certeza, como uma Assassina, ela poderia descobrir. Ele não tinha planejado que ela se tornasse uma Cega. Ele a queria fora de lá. Mas ela se recusou a ir embora, e não havia sentido em jogar sua situação para o lixo. Alguém lá saberia sobre Wendy. Ele estava certo disso.
Ele só precisava tirá-la de lá antes que ela chegasse a fechar. Depois do que aconteceu com Emma, o que estava acontecendo com Wendy...
Ele mordeu o lábio com tanta força que o sangue gotejou na superfície. Ele não queria mais pensar sobre isso, mas não tinha escolha.
—Conte-me mais sobre o livro razão. Diz alguma coisa sobre o que aconteceu com Wendy? Onde ela está presa agora?
Emma balançou a cabeça. — Considerando que a comida e as armas tinham um local próximo a eles — disse ela, — tudo o que estava próximo ao seu nome era a imagem de uma estrela.
Isso chamou a atenção de Drew. — Desculpe? — Ele perguntou. — Uma estrela?
—Uma estrela, — ela repetiu. —Uma estrela, Drew. Incline sua cabeça para cima e olhe para o céu noturno, então você verá exatamente a que estou me referindo.
—Não precisa ser engraçada, Emma. — Ele disse.
—Não precisa ser idiota. — Ela respondeu.
—Uma estrela, — ele murmurou, ignorando-a. Ele estudou o convés de seu navio enquanto pensava. — Que diabos isso significa?
—Talvez seja uma referência às Sombras? — Emma disse. — Como vivem à noite e morrem durante o dia? Talvez se refira a Christopher, considerando que ele é uma Sombra recente que é forçado a viver sob as estrelas?
Ele deu a ela um olhar de soslaio com a menção da Sombra do Mar atualmente nas galés, recusando comida e prazer corporal até que ele encontrasse sua noiva mais uma vez. Era quase romântico se Drew acreditasse naquele absurdo - o que ele absolutamente não acreditava - mas era bastante frustrante porque era tudo sobre o que o menino conseguia falar. Tudo com o que ele se importava. Claro, ele era um infante, recentemente transformado e ainda ingenuamente humano em seus pensamentos e sentimentos, mas Drew esperava enfatizar que Sombras não tinha nada além de tempo agora. Wendy era muito valiosa para aqueles que a seguravam simplesmente matá-la.
—Você sabe Christopher nunca mencionou quem o transformou, — ele disse, seu dedo tocando a ponta de seu queixo. —Você acha que foi a Companhia das Índias Orientais? Ou a Rainha?
—Eu não sei, — ela admitiu. — Isso importa?
Drew não tinha certeza de uma forma ou de outra. Às vezes, as coisas pareciam irrelevantes, até que não eram mais.
—Talvez isso importe.
—Então pergunte a ele. — Disse ela, encolhendo os ombros.
Drew também não tinha certeza de que era a resposta. Se Christopher quisesse falar sobre isso, ele o teria feito.
—Estou apenas fazendo suposições, Drew, — ela continuou. — Talvez algo aconteça, especialmente agora que recrutamos Kelia para nos ajudar. — Ela parou de repente. —Espere... Kelia está nos ajudando a localizá-la, não é?
—Ela concordou com isso, sim.
Seu corpo relaxou enquanto ela continuava andando. — Tenho certeza de que Wendy faz parte do programa, Drew. Simplesmente não consigo rastrear onde está na fortaleza. A magia usada é complexa.
—Não sei o que ela poderá encontrar — murmurou ele. — Eu apenas dei um nome a ela. Eu não disse mais nada a ela. Não tenho mais nada para dar a ela. Estive onde você me disse que o programa estava, mas não havia ninguém. O lugar estava completamente deserto.
—Eles devem ter movido na vez que eu escapei. Fique tranquilo, meu contato está trabalhando para obter a localização por qualquer meio necessário — disse Emma. — Será que mudaram o programa para o local? Isso seria arrogante. Qualquer Assassino pode tropeçar nele. Então, novamente, a Sociedade não é nada senão arrogante.
—Seu contato?
—Uma garota que conheci no programa. — Emma disse enigmaticamente.
Drew sabia que não devia pressionar. Ela nunca revelou o que tinha acontecido com ela, e ele não tinha certeza se queria saber. Especialmente se isso pudesse estar acontecendo com sua irmã agora. Ele preferia não pensar nisso. Seu foco precisava ser em como trazê-la de volta.
Ele desejou não precisar da ajuda de Kelia. Ele não desejava colocá-la em risco mais uma vez.
—E quanto a Kelia? — Ela perguntou. —Você não contou a ela sobre o programa do pai dela, embora isso pudesse ajudá-la a encontrar Wendy?
—Absolutamente não, — ele disse. —Ela já passou por bastante. Recuso-me a desferir esse golpe.
—Ela vai descobrir, — Emma disse, seu tom preocupado. —E ela vai ficar com raiva que você escondeu isso dela.
Drew cerrou os dentes. Ele sabia muito bem que ela falava a verdade, mas era melhor Kelia não saber muito. Quanto menos, melhor.
Um vento forte balançou contra a lateral de seu navio, levantando seu cabelo. Uma tempestade estava chegando, isso ele sabia. Uma perigosa que sem dúvida o deixaria mudado para sempre.
CAPÍTULO 6
Em todos os seus anos com a Sociedade, Kelia nunca tinha ido à biblioteca. Ela preferia a solidão de seu quarto, pelo menos quando Jennifer não estava presente. Só porque Jennifer adorava fofocar e tendia a distraí-la das aulas.
No entanto, Drew tinha apenas lhe dado um nome, e esse nome não significava nada para ela. Se ela era uma Sombra do Mar, Kelia nunca tinha ouvido falar dela antes. Se ela fosse uma plebeia, seria ainda mais difícil localizá-la. Um nome estava perdido, a menos que houvesse mais com ele. Tudo o que Drew disse foi que ela era importante para ele.
O que isso significa? O que significava ser importante para uma Sombra do Mar?
Kelia balançou a cabeça ao entrar na biblioteca, tentando não pensar muito na escolha de dicção da Sombra.
A biblioteca era muito maior do que ela pensava que seria com pilhas e mais pilhas de livros de todo o mundo. Livros fictícios, factuais, com atlas, com histórias, com a história embutida em papel. Havia livros sobre treinamento, luta, sobre Sombras do Mar e sereias, Bíblias, até mesmo alguns sobre etiqueta.
Tudo e qualquer coisa que Kelia pudesse querer aprender estavam aqui. Tudo o que ela precisava fazer era saber para onde olhar.
Havia duas tabelas, provavelmente reservadas para os alunos que pesquisavam as informações de que precisavam para uma tarefa que lhes foi atribuída. Atualmente, as mesas estavam vazias, nem mesmo uma folha de pergaminho ou uma pena repousando sobre a superfície.
Kelia deixou cair seus próprios materiais de pesquisa em uma extremidade da mesa, o mais longe possível das portas, para que ela provavelmente tivesse o mínimo de interação com alguém, caso alguém entrasse. Os materiais fizeram um baque alto e Kelia pulou com o barulho, surpresa com a forma como ecoou pelo espaço silencioso.
Ela se virou e foi em direção ao balcão de informações, na esperança de pelo menos obter um ponto de partida sobre Wendy Parsons. Quando ela percebeu quem estava por trás disso, ela parou.
Mordendo de volta um gemido audível, ela respirou fundo.
Daniella.
Foi sorte dela que Daniella fosse designada para a biblioteca e encher bacias de água todas as noites. A Sociedade provavelmente presumiu que dar a ela uma tarefa tão mundana quanto guardar livros e derramar água para os outros quebraria seu espírito livre. Se Daniella fosse inteligente, ela usaria sua localização a seu favor e levaria um tempo para pesquisar o que quer que a mantinha em movimento.
Kelia endireitou os ombros, avançando lentamente até a mesa. Esta era uma biblioteca. Tecnicamente falando, Daniella estava de plantão. Ela não negaria a Kelia seu direito de ajuda - não tentaria começar uma batalha com ela agora.
Ela iria?
Daniella apenas ergueu os olhos do livro que estava lendo quando Kelia parou bem na frente dela. Seus olhos castanhos brilharam em reconhecimento e todo o seu rosto se contorceu em um cheio de suspeita e defesa, embora Kelia ainda não tivesse aberto a boca. Era como se Daniella presumisse o pior, embora Kelia nunca fosse a única a começar qualquer coisa entre elas.
Daniella zombou, movendo os braços para cobrir qualquer peça da literatura que estivesse lendo. — Estou surpresa em ver você aqui.
Kelia bufou e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ela não se importava particularmente com o que Daniella estava lendo - provavelmente algum romance gótico cheio de luxúria e amor proibido - e ao invés disso se certificou de olhar Daniella nos olhos. Ela não queria dar à garota mais munição para atirar nela.
—Sim, bem — disse Kelia com um encolher de ombros inquieto. —Aqui estou.
—Sinto muito, — disse Daniella, —mas não temos um livro que ensine os mortais a agradar as Sombras, embora tenha certeza de que há algo nas câmaras do conselho que pode lhe dar a informação que você está procurando. Eles gostam de manter certos livros longe de sua congregação irracional. Sabe-se que as Sombras escrevem livros de vez em quando, mesmo que não passem de lixo.
Kelia apertou a mandíbula. Ela queria se defender, apontar que ela definitivamente não era uma Sombra, dizer a Daniella que se ela não parasse ...
Por mais que ela quisesse dar uma lição em Daniella, ela sabia que não poderia. Isso arruinaria tudo pelo que ela trabalhou tão duro, e ela se recusava a permitir que Daniella tomasse isso dela.
—Se você quiser, posso mostrar-lhe livros sobre como lidar com sua família queimando no Inferno pelos pecados que cometeram — continuou Daniella. —Ou como ser uma senhora adequada, mesmo depois de seu corpo ter sido manchado por uma besta sobrenatural.
—Meu pai não... — Kelia cerrou os dentes, se detendo.
Ela não podia dizer no que realmente acreditava, nem mesmo na frente de Daniella. Não quando Daniella poderia ir até Abigail e contar tudo a ela. Não quando aceitar o pecado do pai foi um dos primeiros passos para Kelia sair do isolamento. Se eles soubessem que Kelia mentiu, ela seria condenada mais uma vez. Depois disso, ganhar a confiança da Sociedade seria impossível.
—O que? — Daniella pediu. Havia um toque em sua voz que beirava um grito. —O que você quer dizer, Starling? Seu pai não fez o quê?
Ela sabia. Claro que Daniella sabia como provocá-la. Ela queria que Kelia falhasse.
Kelia se recusou a recuar. Ela poderia não ser capaz de dizer tudo o que ela queria dizer para a garota na frente dela, mas ela se recusou a recuar, recusou-se a permitir que essa garota a irritasse. Ela esperava que Daniella entendesse, esperava que Daniella fosse inteligente o suficiente para ler seu corpo rígido, seus nós dos dedos brancos. Se elas pudessem treinar juntas. Se elas pudessem participar de um combate físico, Kelia poderia finalmente fazer Daniella se arrepender de atormentá-la no minuto em que ela se tornou uma Cega.
—Eu acho melhor você ter muito cuidado, — Daniella disse em voz baixa. —Acho que você sabe o que quero dizer quando digo que as paredes têm ouvidos. Não queremos que você seja jogada de volta no isolamento, ou pior. Tenho certeza de que suas costas já estão nojentas o suficiente. Nem mesmo o Salem's Balm ajudaria a curá-la.
Kelia estreitou os olhos com a menção do bálsamo. Drew Knight aplicou um bálsamo que Emma havia feito. Foi o bálsamo de Salem? Isso importa, desde que funcione? E o que Daniella saberia sobre isso, afinal?
—Então, comece já, — Daniella disse, sua voz tirando Kelia de seus pensamentos. —Por que você está aqui? O que você quer?
—Estou procurando informações sobre alguém — disse Kelia. —Você poderia me indicar a direção dos livros-razão caribenhos?
—Os livros? — Daniella perguntou, olhando feio. —Tipo, você quer peneirar os nomes de todas as pessoas que nasceram ou morreram no Caribe? Você deve estar louca. Isso, ou você está procurando sua próxima vítima.
Kelia tinha certeza de que as palmas das mãos teriam recortes permanentes em forma de lua crescente devido ao quão forte ela estivera pressionando as unhas na pele carnuda para não dizer algo de que se arrependeria mais tarde.
—Onde eles estão? — Kelia perguntou novamente, sua voz forte.
—Eu toquei em um nervo, Sombra? — Os lábios de Daniella se curvaram enquanto ela se levantava, mantendo uma mão sobre o livro que estava lendo e usando a outra para apontar para um corredor vazio cheio de pilhas de livros grossos encadernados em couro. —O que você está procurando simplesmente está lá. As datas devem estar nas capas. Mais alguma coisa?
—Não que eu possa pensar — disse Kelia. —Mas se eu pensar em mais nada, eu vou ter certeza de não lhe perguntar.
Daniella se sentou mais uma vez. —Graças a Deus.
Kelia seguiu na direção indicada sem se virar para ver se Daniella estava fazendo algo desagradável. Em vez disso, ela se concentrou em colocar um pé na frente do outro, as palavras Wendy Parsons se repetindo continuamente em sua cabeça como um mantra.
Kelia parou na frente das pilhas, sentindo-se oprimida. Ela olhou para a prateleira superior e depois para a inferior. Provavelmente havia cinquenta livros-razão que datavam dos últimos duzentos anos. Ela nem sabia por onde começar considerando que Drew apenas lhe deu um nome e nada mais.
Por que você está fazendo isso por ele, afinal? Ela pensou. Ela balançou a cabeça, castigando essa barganha em que havia entrado em primeiro lugar. Você precisa manter a cabeça baixa se quiser encontrar mais informações sobre seu pai.
—Já se passaram dois meses e não encontrei nada novo — ela murmurou antes de estender a mão e puxar um livro-razão datado de 1697, o mesmo ano em que nasceu. —Eu preciso de uma pausa de pensar sobre meu pai. Talvez o espaço me dê alguma clareza.
—Você está falando sozinha, Sombra? — Daniella chamou de sua posição na mesa. Ninguém mais entrou na biblioteca, então ela deve ter sentido que poderia gritar sem trégua. —Você realmente é maluca, não é?
Kelia não sabia quanto tempo ficou na biblioteca examinando os livros de contabilidade. Eventualmente, ela teve que levar alguns minutos para subir e descer os corredores dos livros de ficção para uma trégua do pequeno texto. Ela tinha lido pelo menos dezesseis livros diferentes cheios de centenas e centenas de nomes. Encontrou uma infinidade de John Smiths, Marie Thompsons e até mesmo vários Wendys e Parsons.
Mas ela não havia encontrado uma única Wendy Parsons em todas as páginas.
Isso levaria muito mais tempo do que ela esperava.
Quando Kelia retomou seu estudo, ela respirou fundo. Seu estômago roncava. Ela tinha se esquecido completamente de pegar algo para comer no jantar do meio-dia. A luz do sol entrou em uma janela aberta e Kelia arregalou os olhos, tentando se manter acordada. Quanto mais cedo ela descobrisse quem era Wendy Parsons e onde estava sendo mantida, mais cedo ela poderia voltar a pesquisar sobre seu pai.
—Quem, exatamente, você está procurando, Sombra? — Daniella perguntou, olhando por cima do ombro de Kelia.
Kelia nem tinha ouvido sua abordagem.
Surpreendentemente, não havia julgamento ou crueldade em seu tom. Se qualquer coisa, ela parecia curiosa. Kelia quase quis dizer que não era da sua conta. Ela queria finalmente dar a Daniella uma réplica inteligente, para ter a última palavra. Para excluí-la completamente e fazê-la se sentir inadequada, já que, apesar do que ela pensava, ela realmente não sabia tudo.
Mas ela se conteve.
Se Daniella conhecesse a biblioteca, ela poderia ajudar. E por mais que doesse para Kelia pedir a ajuda de Daniella, se ajudasse Drew a encontrar essa mulher e permitisse que ela descobrisse por que seu pai morreu, valia a pena o pequeno machucado em seu ego.
Kelia pigarreou. —Você já ouviu falar de Wendy Parsons?
Algo cintilou nos olhos de Daniella, mas imediatamente apagou. Mas Kelia viu. Reconhecimento. Ela já tinha ouvido o nome antes.
No entanto, Daniella apenas bufou. —Outra Sombra que você conhece? — Ela perguntou com desdém. —Por que eu iria conhecer alguém que você conhece? Posso não ser tão afetada e correta quanto minha família quer que eu seja, mas não fico por aí com o lixo das ruas como você e seus companheiros Sombras.
Sem outra palavra, ela saiu pisando forte.
Mas Kelia já sabia que estava no caminho certo. Daniella sabia de algo que não queria contar a Kelia. E fosse o que fosse, Kelia tinha toda a intenção de descobrir o segredo por si mesma.
CAPÍTULO 7
Na manhã seguinte, Kelia teve uma consulta com os médicos enquanto trabalhava para fortalecer as costas. Foi a pior dor que ela já experimentou, exceto pelas chicotadas reais. Houve muitas vezes em que ela quis desistir e ir embora. Teria sido muito mais fácil assim, mas ela nunca recuperaria a força que tinha antes. Nunca seria capaz de se defender tão bem como antes.
Se ela queria ficar forte, ela teria que trabalhar para isso.
Depois de prender o cabelo em uma trança apertada, ela fez questão de quebrar o jejum com uma boa quantidade de carnes e frutas, depois lavou o rosto e escovou os dentes. Pronta para começar o dia, ela saiu de seu quarto e desceu para a escada em espiral que levava à ala médica.
Um movimento fora de uma das janelas chamou sua atenção. Ela parou, olhando para o pátio onde uma das aulas que ela costumava frequentar como Assassina estava acontecendo. Seu corpo inteiro paralisou quando ela olhou para o grupo. Foi onde ela recebeu as dez chicotadas iniciais de Rycroft em primeiro lugar. Onde ele havia mostrado misericórdia, mas a usado para fazer um ponto crucial - qualquer tipo de relacionamento com o sobrenatural não seria tolerado.
Seu corpo estremeceu. Um de seus objetivos era poder passar por aquela praça sem reagir a ela, sem permitir que ela a controlasse. Ela apressou o passo, seus dedos se fechando em punhos enquanto ela praticamente corria até que a janela se foi e ela estava livre dela mais uma vez.
Ela virou à esquerda e soltou um suspiro trêmulo. Um último corredor e ela estaria em sua fisioterapia. Este corredor tinha retratos de treinadores anteriores, todos homens enrugados com gloriosas perucas brancas e uma expressão de seriedade em seus rostos rechonchudos. Todos usavam tons de azul, como se quisessem se diferenciar dos soldados ingleses de vermelho.
Ela parou na última porta à esquerda e a abriu. A sala para a qual levava era a mais limpa da fortaleza, graças à enfermeira responsável, Scully Masterson. Ela era uma mulher alta e séria, com cabelo ruivo curto e olhos azuis severos.
Havia duas fileiras de camas, dezesseis no total. Três estavam em uso, enquanto o resto estava pronto, esperando por seus próximos ocupantes.
Kelia desceu no meio, evitando os pacientes feridos. Eles olharam enquanto ela passava. Ela podia sentir sem precisar procurar confirmação. Ela não deveria olhar para eles para confirmação, mas ela olhou. Cada paciente olhando para ela como se ela fosse uma traidora, como se fosse sua culpa eles estarem na ala médica.
Ela odiava admitir, mas ela entendia. Eles se machucaram fazendo algo enquanto os Cegos eram completamente opostos a tudo que os Assassinos representavam. Tudo pelo que os Assassinos lutaram.
Mas Kelia também viu o outro lado e não parecia haver uma decisão clara e definitiva sobre quem estava certo e quem estava errado.
A mesa de Scully estava localizada na entrada. Estava meticulosamente organizada, com penas e tinta prontas.
—Bem-vinda de volta, Dourada, — Scully disse, sem se preocupar em erguer os olhos. —Achei que tivéssemos te assustado da última vez.
Kelia permitiu que o insulto saísse dela como água. Ela se recusou a morder a isca, especialmente considerando que essa era simplesmente a personalidade de Scully e não algo para levar para o lado pessoal.
—Não exatamente — Kelia murmurou em resposta.
—Acho que terei que me esforçar mais então. — Ela ergueu o olhar para que suas írises nítidas e frias travassem em Kelia. —Cama quatro. As roupas já estão fora e esperando por você. Seja rápida. Mais e mais de vocês estão se machucando, e não tenho tempo do dia para focar minha atenção nos Cegos quando tenho Assassinos de verdade aqui.
Kelia permaneceu em silêncio, fechando os dedos em punhos. Havia momentos em que ela podia ler Scully e ver através de sua crueldade, mas havia outros momentos em que ela não conseguia. Independentemente disso, ela sabia que não poderia reagir. Ela não podia permitir que sua frustração e raiva tirassem o melhor dela.
Ela foi para a cama, então pegou o vestido cinza especial feito sob medida para os exercícios que ela teria que suportar hoje. Dobrando a combinação sobre o braço, ela a carregou consigo enquanto caminhava para trás da divisória.
Quando ela mudou para a roupa feia, mas confortável, ela não pôde deixar de se perguntar como ela deveria ficar feia ao usá-la. O pescoço era alto e abotoado logo abaixo do queixo, enquanto as mangas eram longas e enroladas nos pulsos. Não havia espartilho, nenhuma cinta na cintura. Atingia seus tornozelos e havia um par de sapatos pretos lisos para colocar em seus pés.
Quando ela terminou, ela pendurou sua roupa original na divisória, garantindo que a roupa fosse posicionada de uma forma que não ficasse amassada. Ela se sentou ao pé da cama, passando as mãos pela trança para se certificar de que ainda estava apertada. Quando ela terminou, ela colocou as mãos nas coxas, endireitou as costas e esperou.
No início, ela não sabia que isso - a espera - era um exercício por si só. Isso forçava os músculos das costas a travar no lugar e a testava mentalmente, exigindo sua paciência. Houve uma vez em que Scully não a verificou por vinte minutos, e quando ela o fez, Kelia mal estava impedindo que lágrimas de frustração deslizassem por seu rosto. Ela queria atacar, mas então eles ganhariam, e isso era a última coisa que Kelia queria. Ainda mais do que tudo.
Quando ela percebeu que era um exercício, ela começou a se desafiar. Ela precisava de uma maneira de manter a calma, pelo menos para passar por isso. Não foi surpresa para ela que todos a rejeitaram. Ninguém acreditava que ela se tornaria uma Assassina novamente, o que significava que ninguém a levaria a sério. O que estava bom para ela. Contanto que ela soubesse que poderia passar por isso, ela estaria bem.
Hoje, ela só teve que esperar cinco minutos antes de ouvir Scully se aproximar dela. Ela deslizou para uma cadeira e lembrou-se mais uma vez de agir como se estivesse aqui por causa de suas decisões erradas, e agora ela estava perdendo tempo e recursos valiosos porque ela era egoísta, tola e um ser emocional que parecia não ter nenhum osso lógico em seu corpo. Era um papel que ela absolutamente detestava representar porque destacava tudo o que ela discordava da Sociedade.
—Bem, bem. — Scully disse em um tom sarcástico.
De onde Kelia estava sentada, ela podia ver os sapatos pretos de Scully, o que significava que a mulher estava bem na frente dela, suas mãos provavelmente colocadas em seus quadris, seus dedos fechados em punhos. Ela estaria fortemente vermelha, com círculos escuros de pó acima dos olhos, como a máscara de um guaxinim. —Você anda como se conhecesse este lugar melhor do que eu.
—E por que você acha isso? — Kelia perguntou. Ela encontrou os olhos de Scully sem pestanejar.
Scully inclinou a cabeça com a resposta e mudou seu peso para que seu calcanhar batesse no chão. —Muitas pessoas tendem a desistir quando as coisas ficam muito desafiadoras — ela falou lentamente. —É mais fácil desistir do que seguir em frente e perseverar. Você anda como se estivesse ansiosa por este encontro, apesar da dor inevitável.
—Talvez alguns desistam com facilidade, — Kelia concordou. —Mas eu não. Faria maior dano à minha pessoa desistir do que seguir em frente. O esforço mental sobre mim vale facilmente o preço físico que custaria ao meu corpo.
—É assim mesmo? — Scully perguntou. —Suponho que devo pressioná-la ainda mais forte, para promover a sua recuperação.
—Se você acha que deve. — Disse Kelia. Ela se recusou a deixar a enfermeira assustá-la. Era uma tática usada para manter os Cegos na linha, para mantê-los em sua posição atual, em vez de empurrá-los e encorajar sua recuperação.
Ela não tinha certeza, mas ela podia jurar que viu o queixo de Scully estalar, como se ela aceitasse o desafio. Kelia não a desafiou intencionalmente, mas ela não podia negar o sorriso presunçoso que coçava para se libertar. Muitos não enfrentavam Scully, fosse ela passivo-agressiva ou não, especialmente uma Cega.
—Tudo bem, — Scully disse, balançando a cabeça uma vez. —Levante-se e vamos lá fora.
—Lá fora? — Kelia não conseguiu esconder a surpresa de sua voz, mesmo que tentasse.
A fisioterapia nunca foi realizada fora. Era quase como um castigo, ficar dentro de casa o tempo todo. Era o suficiente para deixar qualquer um louco, incluindo Kelia. No entanto, ela conseguiu se manter sã com lembretes constantes sobre o motivo de permanecer na Sociedade em primeiro lugar.
—Isso é um problema para você, Sra. Starling? — Scully perguntou. —Acho que é um dia particularmente bom. Uma tempestade está chegando no horizonte, mas pelo menos podemos aproveitar o frio no ar. Se você tem medo do frio...
—Eu não tenho. — Disse Kelia rapidamente. Ela sabia que havia revelado o quanto queria estar ao ar livre, mas não se importou particularmente. Não quando sair estava em jogo.
Scully sorriu como se soubesse que oferta tentadora ela havia feito. Kelia se levantou e seguiu a enfermeira pelo longo corredor até chegarem a uma porta. Kelia manteve os olhos abertos. Ela nunca tinha estado aqui antes, não sabia que havia uma saída que levava para fora. Ela pensou que só havia uma saída para o pátio.
Claramente, ela estava enganada. O que significava que poderia haver outras entradas e outras saídas que ela não conhecia. Se ao menos ela tivesse a liberdade de explorar a fortaleza do jeito que ela queria.
O céu estava pintado com nuvens negras que bloqueavam o sol. Claro, Scully chamara esse clima de bom; combinava com sua personalidade - sombria e fria. A chuva ainda não tinha caído, mas havia um frio no ar. Kelia desejou ter agarrado seu sobretudo preto, mas se recusou a reclamar do frio para Scully.
O ar fresco a atingiu como uma onda para um navio, quase a derrubando. Ela o engoliu como se estivesse se afogando. Respirando profundamente, ela saboreou o ar puro e fresco, querendo se certificar de que se lembraria da sensação quando fosse forçada a voltar para dentro e não tivesse permissão para sair.
Ela não se importou em não poder ver o sol. Até chuva teria sido bem-vinda. Este momento valia a pena qualquer dor. Quaisquer exercícios que Scully fizesse, ela faria com o objetivo de exceder todas as expectativas possíveis.
Ela queria mais disso. Ela precisava estar fora, tanto quanto possível.
—Presumo que você reconheça este lugar? — Scully perguntou, olhando para ela com diversão, como se levar Kelia para onde ela havia sido amarrada na frente de toda a Sociedade fosse uma piada.
—Como eu poderia esquecer? — Kelia murmurou.
Olhos treinados na plataforma à sua frente, sua audição foi abafada pelo que parecia ser ondas quebrando no mar. O tempo ficou mais lento. Ela não pôde deixar de se lembrar do que havia acontecido com ela. Suas costas estavam tensas, como se pudesse sentir o chicote abrindo sua pele como fazia meses atrás.
—Suba os degraus para a plataforma. — Scully instruiu, sua voz afiada como um chicote.
Kelia virou a cabeça em direção à enfermeira. Ela piscou uma vez. —O que?
—Eu preciso me repetir? — Scully perguntou, cada palavra pontuda e lenta. —Estou instruindo você a subir os degraus da plataforma. Certamente você se beneficiaria visitando o lugar onde foi punida, onde recebeu suas chicotadas. Um lembrete, por assim dizer.
Kelia cerrou os dentes. Ela não podia discutir, mesmo se quisesse. E ela fez.
Ela não mostraria fraqueza. Ela não desistiria. Ela continuaria a crescer e a empurrar com mais força até ficar mais forte do que antes, antes de ser uma Cega, antes de Drew Knight. Porque por mais que apreciasse suas amizades, suas parcerias, ela sabia que a única pessoa que poderia salvá-la era ela mesma.
E ela pretendia fazer exatamente isso.
Enquanto subia os degraus, ela percebeu que não estava com medo do jeito que estava quando Rycroft a obrigou a fazer isso antes. Ela deu um passo de cada vez. Sua mão agarrou o corrimão de madeira. Sua respiração ficou superficial. Mas ela não desistiria.
Quando ela alcançou a plataforma, levou a última grama de sua energia para não vacilar. Ela ficou de pé, mesmo quando o estalo do chicote ecoou em sua mente, mesmo enquanto suas costas queimavam com as memórias, mesmo que ela pudesse jurar que viu seu próprio sangue decorar a plataforma da forca. Com a determinação de mantê-la de pé, ela olhou para o pátio vazio.
Ela percorreu um longo caminho, mas ainda tinha uma distância maior a percorrer.
Kelia observou enquanto Scully tirava algo do bolso. Sem aviso, Scully balançou o pulso e o chicote quebrou o céu. Kelia podia sentir o ar estalar. Ela tinha vergonha de admitir que soltou um grito.
Scully não iria realmente chicoteá-la, iria?
—Você está fazendo um grande progresso com sua força física, Kelia, mas sua resistência arrogante à humildade será sua ruína — disse Scully. —Não tema o medo em si. Pode ser a única coisa que vai te salvar. — Outro estalo do chicote. Kelia podia sentir suas costas gritarem, embora o chicote não a tocasse. —Agora, ajoelhe-se.
Scully a queria humilhada o suficiente para temer a Sociedade. E enquanto Kelia fazia seus exercícios com Scully chicoteando o espaço perto dela, Kelia se sentiu fraca. Quebrada. Porque as lágrimas estavam em seus olhos e, por mais que tentasse, ela não conseguia impedir que caíssem. Como ela deveria olhar mais fundo na morte de seu pai e descobrir quem era essa Wendy Parsons se ela não conseguia suportar a tortura de Scully?
CAPÍTULO 8
Por mais que Kelia quisesse faltar às aulas matinais após a extenuante fisioterapia, ela sabia que não poderia. Só porque ela havia se exaurido fisicamente, não significava que ela poderia fazer uma pausa em suas atividades mentais. Ela estava determinada a ser uma Assassina o máximo que pudesse, dadas as circunstâncias. Ela queria ser forte, queria ser afiada, queria ser capaz de cuidar de si mesma e resolver o assassinato de seu pai. Para fazer isso, ela precisava se assimilar.
Ainda se esperava que os Cegos fossem Assassinos em tudo, menos no nome. Eles foram colocados em classes, aulas atribuídas e obrigados a fazer exames. Aqueles que eram fisicamente capazes ainda podiam treinar. Era necessário, caso os Cegos fossem necessários para ajudar a defender a fortaleza. A diferença era que eles não eram permitidos no campo e não recebiam a confiança de certas informações, a menos que concluíssem sua reabilitação. E mesmo assim, seu nome e reputação estavam completamente manchados naquele ponto, então a confiança geralmente não era dada, de qualquer maneira.
Kelia bufou um suspiro, sentando-se em seu lugar designado perto da janela na terceira fila da sala de aula. Ela normalmente não ficava entediada durante as aulas; pelo menos, ela não tinha sido uma Assassina. Mas agora que ela havia acordado de sua ignorância, ela não podia deixar de sentir como se tivesse perdido seu tempo alimentando-se de mentiras que ela sabia que não eram verdadeiras.
Este professor era conhecido por seu total desdém pelas Sombras do Mar, embora a classe discutisse a dinâmica de todos os seres sobrenaturais, incluindo lobisomens, sereias e bruxas. Embora a Sociedade se concentrasse nas Sombras porque eram a ameaça imediata, era imperativo que todos os Assassinos estivessem cientes dos diferentes seres sobrenaturais, como se defenderem e como destruí-los.
Kelia ficou surpresa por ter tido permissão para assistir a essa aula, que os Cegos tenham recebido essa informação em primeiro lugar. No entanto, ela supôs que era porque até mesmo os cegos tinham que estar preparados para o pior. Cegos ainda eram Assassinos por pertencerem à Sociedade. Eles podiam não ser nada mais do que servos, mas a Sociedade investia muito tempo neles e eles não planejavam desperdiçar esse investimento.
Kelia puxou um papel e uma pena para começar a tomar notas. Havia momentos em que essa aula era interessante; outros onde estava particularmente seco. Quando o Professor Tampa começou uma de suas fúrias fora do tópico sobre Sombras, Kelia olhava fixamente para fora da janela, tentando não ficar muito distraída no caso de ele chamá-la para responder a uma pergunta.
O quadrado agarrou seu peito, mas ela se forçou a se concentrar no que estava acontecendo nele, e não no lugar em si.
Treinamento. Combate físico.
Seus dedos coçaram, enrolando em torno da alça que não estava lá, que não estava lá há muito tempo.
Sua lâmina estava desaparecida desde a noite em que foi levada, a noite em que Rycroft descobriu sua aliança com Drew Knight. Era uma parte tão integrante dela que, cada vez que era lembrada de que não a tinha mais, era como se ela tivesse perdido um membro ou outra coisa importante para sua pessoa.
O treinamento acontecendo lá fora era apenas isso - combate físico com armas. Os Assassinos se moviam com suas armas como se fossem parceiros de dança, seus movimentos graciosos, suas ações precisas.
Kelia apoiou o queixo na palma da mão, tentando se concentrar de volta na aula. O professor Tampa ainda estava falando sobre a sexualidade crua de Sombras do Mar e como Assassinos, especialmente as mulheres, precisariam ser cuidadosas porque Sombras podiam facilmente manipular emoções. E uma vez que as mulheres eram as mais emocionais dos sexos, elas tinham que estar vigilantes. No entanto, como uma cega em progresso que precisava parecer estar no caminho da reabilitação, ela tinha que concordar com o que ele ensinava.
Voltando-se para a janela, ela pensou em como sentia falta de sentir a lâmina, como ela se encaixava perfeitamente em sua mão esquerda, como as bolhas haviam diminuído. Ela odiava não poder manter a prática. Seria difícil ser tão boa quanto ela já foi sem ser. No entanto, ela sabia que não teria permissão para fazer tal coisa por muito tempo. Apenas os Cegos que quase haviam terminado o programa tinham permissão para treinar.
Com Abigail.
Kelia não sabia o que Abigail fez para se tornar uma Cega, e ela não planejava perguntar. Tudo que Kelia sabia era que, seguindo as regras e diretrizes do programa, Abigail se formara oito meses depois.
—Srta. Starling?
Kelia voltou sua atenção para o professor Tampa. Quantas vezes ele disse o nome dela? Parecia que tinha sido mais do que alguns.
—Você está sonhando acordada? — Ele perguntou, sua voz cheia de sarcasmo. —Quer voltar a ser como as coisas eram? Antes de ceder à sua luxúria e ter uma relação sexual com Drew Knight?
Kelia teve que morder o lábio inferior para não responder. Ela podia sentir o gosto do sangue metálico, como se para se chocar ao reconhecer que as pessoas iriam julgá-la, colocá-la no ostracismo e ridicularizá-la por causa do que achavam que sabiam. Eles iriam envergonhá-la, fazê-la se sentir algo que ela não era.
—Sinto muito, senhor. — Ela se forçou a dizer. Ela esperava que não saísse afetado.
O professor Tampa resmungou baixinho. —Você pode responder à pergunta, pelo menos, ou é esperar demais?
Kelia encostou o queixo no peito. —Pode repetir a pergunta, senhor? Parece que não ouvi.
Houve gemidos atrás dela, mas Kelia não lhes deu atenção. Ela não se importava particularmente com o que seus companheiros Cegos pensavam dela. Apesar de tudo, ela não gostava de ser o centro das atenções e não gostava disso mesmo antes de cair em desgraça.
—Já que esta é uma aula que discute o quanto a tentação é errada — o professor Tampa começou e dirigindo-se a Kelia, —quero que você diga à classe como foi ceder a essa tentação.
Kelia engoliu em seco. Por um lado, ela sabia que não deveria responder a uma pergunta tão pessoal sobre sua vida. A Sociedade decidiu mantê-la como Cega, o que significava que ela tinha certos direitos, mesmo que a maioria tivesse sido retirada. Por outro lado, havia pressão sobre ela para obedecer a todos os pedidos feitos a ela, fosse ela sendo ordenada a fazer algo, responder a uma pergunta ou quaisquer outros favores que fossem solicitados aos cegos. Se ela quisesse boas notas, ela responderia sem questionar. Se ela quisesse manter um pingo de dignidade, ela lembraria a ele e à classe que seu relacionamento com Drew Knight não era da conta de ninguém.
Essencialmente, ela precisava descobrir o que era mais importante para ela: ser uma cega bem-sucedida ou manter seu orgulho intacto às custas de progredir em seu programa de reabilitação.
Ela respirou fundo, conseguindo chamar a atenção do professor. Ele olhou para ela como se merecesse uma explicação, como se levasse o comportamento dela para o lado pessoal. Ela não entendia muito bem a animosidade dele em relação a ela, mas sabia que alguns consideravam relacionamentos proibidos - como os entre humanos e Sombras - como uma ameaça para si mesmos. Ela não estava totalmente familiarizada com o professor Tampa, mas se tivesse que adivinhar, diria que ele se enquadrava na última categoria.
—De todos os humanos clamando para chegar até Drew Knight, — ele continuou, —por que você acha que ele escolheu você? Você não é nada mais do que uma jovem com um pouco de mente. O que você poderia ter para oferecer a ele? Além do mel entre as coxas.
Kelia apertou a mandíbula. Ela desejou ter a habilidade de evitar corar. Infelizmente, ela não o fez. Sexo não era algo que ela conhecesse, muito menos poderia falar.
—Mas mesmo isso é tão comum quanto a próxima opção — continuou Tampa. —Desde que descobri sobre você e seu relacionamento com ele, queria saber por que você era considerada especial para ele.
Para ser honesta, Kelia não tinha ideia de como responder. Tampa estava certo, mas apenas em sua avaliação dela em comparação com outras mulheres. Drew Knight tinha opções que iam do exótico ao comum. Ela não tinha ideia do que a tornava tão especial.
—Seu palpite é tão bom quanto o meu. — Ela finalmente disse a ele, certificando-se de parecer devidamente castigada
—Certamente ele disse algo a você — Tampa continuou dando a ela uma sobrancelha franzida de frustração e impaciência. Ele colocou a mão na cintura e balançou a cabeça. —Drew Knight é conhecido por seu charme. Você está me dizendo que ele não falou nada?
—Não tínhamos tempo para conversar.
Kelia não deveria ter dito isso. Ela estava reagindo. Sendo mesquinha. E por falar em Drew Knight, ele diria a ela que suas emoções estavam levando a melhor sobre ela. Embora, ele provavelmente riria primeiro.
No entanto, a expressão de horror absoluto no rosto de Tampa a fez rir. Ela teve que fingir tosse para esconder o fato. Ela desejou ter a audácia de dizer mais, de empurrar mais longe, mas ela sabia que isso só faria mal a si mesma.
—Quando seu relacionamento se tornou sexual? — Tampa perguntou depois que ele conseguiu se controlar. —Foi imediato? Ele acabou de olhar para você e você imediatamente disse que sim? Ele tentou você? Tirou vantagem de você?
Kelia queria sair da sala de aula. E ela queria odiar Drew Knight mais uma vez pela posição em que estava atualmente, que ela teria que enfrentar sozinha. Mas ela não podia fazer nada.
—O que Drew Knight e eu tínhamos...— Ela deixou sua voz sumir. —Não é algo que posso descrever com precisão com palavras. É algo, no entanto, de que me arrependo. — Ela quase engasgou com a palavra arrependimento, o que não fazia sentido. Certo, ela não se arrependia de sua parceria com Drew Knight e mentir fazia parte do plano. No entanto, ela achou difícil fazer isso. —E estou no caminho certo para reformar meus hábitos.
Ela odiava isso. O fingimento. As mentiras que ela tinha que recitar como se fossem verdades. Mas ela não conseguia chamar atenção para si mesma. Perigos maiores a aguardavam, e ela não podia desperdiçar seus riscos aqui.
CAPÍTULO 9
Já tinha sido um longo dia, e Kelia não queria nada mais do que rastejar para a cama e dormir o máximo que pudesse antes de ser forçada a acordar e fazer tudo de novo. No entanto, ela ainda tinha suas tarefas que precisava completar. Ainda faltava uma hora para os Assassinos terminarem o jantar no refeitório, então ela não poderia ir para a cozinha e completar sua tarefa. Ela tinha tempo que precisava para passar, mas temia que, se tentasse tirar uma soneca, não acordaria novamente até o dia seguinte.
Ela decidiu ir para a biblioteca, tentar vasculhar mais livros em busca de Wendy Parsons. Era entediante e a deixava ainda mais sonolenta, mas dava a ela algo para fazer. Depois que ela descobrisse onde Wendy estava, ela poderia contar a Drew e finalmente terminar com ele.
—Kelia. — A voz de Abigail perfurou o silêncio que normalmente permeava a biblioteca. —O que você está fazendo aqui tão tarde?
Kelia olhou para sua treinadora, sua mente correndo. Ela deveria ter uma história preparada; a velha Kelia teria coberto seus rastros de três maneiras diferentes. Ultimamente, porém, ela parecia preferir viver no momento e pensar por conta própria, em vez de planejar.
Ela sentia falta de algumas das qualidades da velha Kelia.
—Pesquisa. — disse Kelia quando não conseguia pensar em mais nada.
—Pesquisa — Abigail repetiu lentamente, dando a ela um olhar vazio. —Você acha que eu sou idiota?
—Por que você diria isso? — Kelia perguntou, tentando manter a defensiva em seu tom. Ela gostaria de poder deixar cair os três livros que havia coletado na mesa, porque eles estavam começando a ficar pesados. —O professor Tampa nos deu uma tarefa sobre matar Lobisomens. Como não estou familiarizado com eles, queria dar uma olhada neles agora, quando a biblioteca estava vazia.
Até mesmo sua desculpa falhou.
—E você acha que vai descobrir sobre Lobisomens nos livros? — Abigail arqueou uma sobrancelha. —Eu preciso falar com você em meu escritório. Você pode dispensar alguns minutos?
Kelia estava na biblioteca fazendo algo sobre o qual mentiu descaradamente. Ficou claro que ela não estava pesquisando um tópico sobre o qual teria que escrever um artigo, não com livros contábeis nas mãos. Além disso, Abigail poderia ordená-la no escritório se ela quisesse. Em vez disso, ela estava perguntando a Kelia. O mínimo que Kelia podia fazer era concordar, mesmo que houvesse o pretexto de que ela realmente não tinha escolha.
Kelia baixou os livros e foi até Abigail. Ela não tinha ideia do que queria e não conseguiu fazer uma leitura da mulher. Abigail foi a história de sucesso da Rycroft. Ela era o exemplo que a Sociedade usava sempre que alguém questionava o “programa” Cego. Abigail era a pessoa que Kelia precisava imitar se ela queria ser confiável novamente um dia - talvez não para ser uma Assassina, mas definitivamente não uma Cega. As probabilidades estavam contra Kelia, mas enquanto ela fosse capaz de enganá-los e fazê-los pensar que estava progredindo para que pudesse continuar a descobrir o máximo que pudesse sobre seu pai, ela não se importaria em permanecer cega.
Abigail gesticulou para Kelia pelo corredor até seu escritório. Enquanto ela seguia Abigail, Kelia observou seus arredores, embora ela tivesse estado neste escritório mais do que algumas vezes. Os velhos hábitos de autopreservação persistiram.
Abigail fechou a porta e deu a volta na mesa para se sentar. Kelia se sentou em sua cadeira. Suas costas estavam rígidas graças à fisioterapia que ela havia sofrido mais cedo naquele dia.
—Então, — Abigail disse, entrelaçando os dedos e forçando um sorriso. —Como você tem estado?
Kelia piscou. Ela ainda não tinha certeza do que se tratava. Ela se mexeu na cadeira, tentando encontrar uma resposta satisfatória.
—Estou bem. — Disse ela.
Abigail acenou com a cabeça. — Sim, — ela concordou. —Não estou ouvindo nada além de coisas excelentes de seus professores, e a enfermeira Masterson disse que a funcionalidade das suas costas está melhorando mais rápido do que o esperado. Isso só mostra que, se você estiver disposta a investir tempo e esforço, se dedicar à sua causa, você prosperará.
Como Kelia deveria responder a isso? Provavelmente mais seguro permanecer em silêncio...
—O professor Tampa disse que te pegou olhando pela janela hoje, — Abigail disse. —Ele levou três vezes para chamar seu nome antes de você responder.
—Peço desculpas — disse Kelia. —Sinto falta do treinamento.
Ela não precisava mentir sobre isso.
Abigail lentamente se recostou na cadeira. —Eu entendo — disse ela. —Quando eu estava...— Ela fechou os olhos e balançou a cabeça. —Senti falta de poder ir e vir quando quisesse. Poder sair quando eu queria, ir onde eu queria sem responder a ninguém, sem contar a ninguém.
Kelia assentiu para si mesma, esperando que Abigail continuasse, para dar mais dicas sobre o que ela estava realmente pensando. Embora a conversa, até agora, tenha sido surpreendentemente agradável, e Abigail até compartilhou algo pessoal, Kelia não tinha certeza se podia confiar nela. Elas não eram amigas. Abigail era sua treinadora e era importante que ela se lembrasse disso.
—Eu chamei você aqui para te dizer o quão orgulhosa estou do progresso que você fez, — Abigail disse, sentando-se e abrindo os olhos. Ela olhou para a papelada à sua frente, então pegou uma pena e começou a ler suas anotações. —Você cumpriu seu dever todas as noites, secando os pratos em tempo hábil. Não só isso, você é boa no trabalho. Você parece ter mudado completamente, Srta. Starling. Da quebrada Sombra admitida pela primeira vez agora, você é quase como uma pessoa inteiramente nova.
Kelia desviou o olhar quando Abigail disse a palavra Sombra. Ela nunca teve problemas com isso até que outras pessoas começaram a usá-lo para descrevê-la. Ela nem mesmo era realmente uma Sombra; seu relacionamento com Drew Knight foi completamente falsificado para manter a verdadeira natureza de seu relacionamento em segredo. Eles não eram exatamente amigos, mas talvez aliados fosse a palavra correta. Eles estavam trabalhando juntos com o mesmo objetivo: descobrir o que aconteceu com seu pai. E agora, Kelia tinha que recompensá-lo ajudando-o a descobrir exatamente onde essa Wendy Parsons estava.
—Tenho tornado uma prioridade assimilar na Sociedade. — Disse ela. Suas mãos estavam pressionadas contra as coxas e ela as esfregou na saia.
—Bem, nós reconhecemos seu esforço, e eu quero dizer pessoalmente que é apreciado. — Abigail disse.
Por seu tom, Kelia acreditou que o elogio era sincero. Ela duvidava que Rycroft sentisse o mesmo, no entanto.
—Quero que perceba que será recompensada pelos avanços que der. É por isso que Scully Masterson a levou para fora hoje. É por isso que Tampa não marcou você para sua réplica esta tarde.
Kelia abaixou a cabeça. Não porque ela estava com vergonha, mas porque ela não pôde evitar a diversão que sentiu ao pensar nisso. O escândalo absoluto em seu rosto tinha valido a pena.
—Você ouviu sobre isso? — Kelia perguntou, arriscando um olhar para cima.
—Eu ouço sobre tudo, — Abigail disse. Embora seu tom fosse sinistro, havia um leve sorriso em seu rosto. —Embora, se eu fosse dar a você minha opinião imparcial, gostaria de observar que não é da conta dele. Seu relacionamento com Drew Knight, embora não seja ideal e potencialmente perigoso e idiota, não é da conta de ninguém, apenas seu e de Knight. Tampa pode ser professor aqui, mas ele não tinha o direito de perguntar sobre sua vida pessoal.
—Eu aprecio isso, — Kelia murmurou. —Obrigada.
—Ouça, — Abigail disse, batendo palmas e colocando-as na superfície de sua mesa. —Eu quero atualizar sua tarefa diária. Acho que você fez um excelente trabalho secando pratos todas as noites, mas decidi dar a você um pouco de liberdade. Você gostaria de entregar a água todas as noites?
Levou um momento para as palavras de Abigail serem absorvidas. No entanto, quando o fizeram, Kelia assentiu com entusiasmo.
—Sim, — ela disse rapidamente. —Sim por favor.
—Alguma coisa para sair lavando a louça, sim? — Abigail disse com uma risada.
Na verdade, Kelia tinha um plano passando pela cabeça. Ela seria capaz de estar em contato indireto com Assassinos.
—Obrigada — disse Kelia, levantando-se. Ela percebeu que estava presumindo que seria dispensada, e então se deixou cair de volta na cadeira. —Peço desculpas, há mais alguma coisa?
Abigail riu alto, balançando a cabeça. —Isso é tudo, Srta. Starling — disse ela. —Mantenha o bom trabalho. Você fez um progresso maravilhoso. Por favor, não regrida.
—Eu não vou. — Kelia disse com firmeza. Ela se levantou, então se dirigiu para a porta, sua mente correndo.
Não era muito. No entanto, Kelia sabia que esse era um grande passo. Ela seria capaz de contatar Jennifer. Ela poderia até ser capaz de falar com ela. Mas primeiro, ela precisava descobrir o que dizer.
CAPÍTULO 10
Na manhã seguinte, depois de outra tigela de mingau sem gosto para o café da manhã, Kelia decidiu arriscar ser capturada e procurar informações sobre Wendy Parsons nas proibidas câmaras do conselho. Ela recebeu a ideia de Daniella, quer a garota percebesse ou não, da última vez que Daniella fizera o possível para insultá-la e fazê-la se sentir insípida da última vez que interagiram. Ela ainda não tinha encontrado nenhuma informação nova sobre Wendy, e ela não queria que Drew aparecesse sem que ela oferecesse algo a ele. Ela odiava admitir, mas a aprovação dele era algo que ela desejava mais do que deveria.
Kelia nunca tinha estado lá antes. Ela sabia que era restrito a qualquer pessoa não convidada pessoalmente por um membro, e ela sabia que sua reputação a impediria de receber tal convite. No entanto, ela sabia que o conselho não estava no prédio hoje, então ela aproveitou a oportunidade.
Kelia parou na cozinha e pegou uma jarra de água caso alguém a visse e questionasse sua presença. Eles provavelmente não iriam acreditar nela, mas, pelo menos, ela tinha uma razão para estar ali. Ela poderia fingir que estava enchendo bacias com água.
Seu coração batia contra o peito. Cada passo que ela deu foi fortemente contido. Ela queria chegar lá rapidamente, mas se alguém a visse correndo para uma seção da fortaleza que não era normalmente ocupada por Assassinos ou Cegos, ela chamaria a atenção para si mesma.
—Seu lugar é aqui — ela continuava sussurrando, um lembrete de que não podia parecer preocupada ou nervosa, o que seria outra maneira de induzir suspeitas. —Você pertence aqui.
O corredor era longo e silencioso. Kelia deu um passo com muito cuidado. A jarra parecia pesada em suas mãos.
Quando ela alcançou as portas cor de vinho das câmaras do conselho sem ninguém a parando, suas mãos tremiam de nervosismo. Se ela fosse pega, o açoite seria uma misericórdia. Valia a pena cumprir sua parte do acordo?
Se isso significava descobrir o que aconteceu com seu pai, então sim, era.
Kelia respirou fundo, em seguida, estendeu a mão para a maçaneta dourada. Ela ficou surpresa ao descobrir que elas foram deixadas destrancados. Talvez eles não pensassem que alguém se atreveria a invadir seus aposentos. Só alguém totalmente louco tentaria tal coisa.
As câmaras estavam vazias. O batimento cardíaco de Kelia ecoou em seus ouvidos. No meio do cômodo repousava uma longa mesa com cadeiras em formato de trono, três de cada lado e uma na cabeceira. Havia uma cômoda e no canto uma caixa alta, mas estreita, cheia de livros.
Kelia endireitou os ombros. Ela precisava agir como se ela devesse estar aqui, como se ela tivesse todo o direito de estar aqui.
Mantendo os olhos treinados para frente, ela atravessou a sala, as mãos cruzadas atrás das costas.
Ela sentiu como se tivesse que tirar vantagem de sua liberdade temporária fazendo mais pesquisas sobre está misteriosa Wendy Parsons. Ela só esperava encontrar o que estava procurando o mais rápido possível.
Quando ela alcançou a única estante de livros, ela hesitou. Ela respirou fundo e deixou seus dedos percorrerem as capas dos livros. A História das Sombras do Mar. Feitiços, encantos e maldições. Sereias: Demônios do Mar.
Seus olhos se arregalaram. Um livro sobre feitiços? De sereias? Foi esta a confirmação do que ela pensava originalmente ser mitologia? Havia rumores, é claro, mas ela achava que eram contos do mar, coisas que os marinheiros diziam para explicar coisas que não entendiam. Poderiam existir criaturas como sereias? Ela se lembrou que Drew mencionou algo sobre elas antes, mas estava tão delirando de dor que ela não conseguia se lembrar de detalhes.
Só de pensar nisso a deixava enjoada. Ela já havia estado na água antes, apenas algumas vezes por causa do enjoo do mar, mas sabendo que havia uma chance de que ela pudesse ter sido seduzida por um demônio do mar...
Ela não gostava de pensar nisso.
Quando ela estendeu a mão e traçou as diferentes lombadas dos livros com os dedos, ela sentiu um choque mágico, uma centelha de vida, de excitação. Ela queria ler tudo o que era oferecido aqui. Essas eram as verdades do mundo, não as mentiras jorradas da boca de manipuladores e professores.
Mas ela não conseguiu. Não quando ela tinha tão pouco tempo.
Passos vieram sobre ela. Kelia congelou. Ela tinha sido pega. Ela seria punida. Como ela poderia não ter ouvido?
—Eu sabia que você não seria capaz de resistir. — Disse uma voz atrás dela.
Kelia se virou para encontrar Daniella. Ela ficou lá com uma mão no quadril proeminente, sua cabeça jogada para o lado, seu cabelo ruivo crespo solto.
—Do que você está falando? — Kelia perguntou.
—As câmaras do conselho? — Daniella perguntou, apontando para a estante preta. —Eu deixei escapar para você na biblioteca de propósito.
Kelia franziu a testa. —Não entendo. — Disse ela.
Daniella beliscou a ponte de seu nariz. —Claro que não. — Ela disse baixinho.
Kelia mordeu a língua para não fazer uma réplica inteligente.
Daniella soltou sua mão, que bateu em sua coxa de forma audível. —Você é mais ingênua do que eu pensava. Você sabe disso, Starling?
Kelia cerrou os dentes. —Se tudo o que você vai fazer e me insultar, você pode fazer o que estava planejando fazer, muito obrigada — disse ela. —Tenho coisas importantes que preciso fazer aqui.
—Isso é o que eu estava planejando fazer — disse Daniella. —Você não saberia sobre este lugar de outra forma.
—Assim? — Kelia perguntou.
—Você é tão desinformada.
O fogo queimou em suas veias. Ela quase desejou que Daniella tivesse usado a palavra estúpida ou idiota; teria sido muito menos ofensivo.
Daniella deu um passo em direção a Kelia, e Kelia enrijeceu, deixando cair um pé para trás e dobrando seu torso, como se estivesse se preparando para uma luta. Parecia ridículo onde elas estavam. Ela esperava que Daniella não se arriscasse a chamar atenção para si mesma, especialmente considerando que ela estava progredindo como uma Cega, assim como Kelia.
—Eu pensei que seu amante teria contado a você, ou pelo menos, aquela prostituta que ele mantém por perto, — Daniella continuou. —Falando nisso, eu me pergunto o que você pensa sobre ela - a prostituta. Em todo o seu relacionamento com ele, você ao menos considerou que ele pode estar tendo um caso com ela? Por que mais ele a trataria com tanto respeito?
A boca de Kelia caiu aberta. Emma? Por que Daniella estaria falando de Emma? Como ela saberia sobre Emma?
—Porque Emma é uma pessoa, — Kelia se forçou a dizer. Ela não queria parecer mais tola do que já parecia, especialmente na frente de Daniella. —E todas as pessoas merecem respeito.
—Drew Knight se encaixa nessa categoria? — Os cantos de seus lábios se curvaram em um sorriso malicioso. —Você o consideraria uma pessoa que merece respeito?
Kelia cravou as unhas nas palmas, os dedos se fechando em punhos apertados. Ela queria desesperadamente dar um soco em Daniella. Kelia nunca foi do tipo que usava seu corpo como arma, mas depois de uma aula informativa com Drew Knight, ela percebeu que era muito mais poderosa do que acreditava.
—E quanto a Emma? — Daniella empurrou.
—E quanto a Emma? — Kelia cuspiu de volta.
—Você acha que ela é uma pessoa? — Daniella deu mais um passo em direção a Kelia.
Kelia não queria nada mais do que dar um soco em Daniella, então ela teve uma desculpa para bater em suas costas.
—Não quero dizer que prostitutas não sejam gente, claro. Minha tia era uma prostituta e ganhou tanto dinheiro em uma noite quanto minha família inteira em um mês. Não tenho nada além de respeito pelas prostitutas. Mas Emma não é como a maioria das prostitutas, não é?
—Ela é afiliada às Sombras do Mar, — Kelia disse. —Isso não a torna normal de forma alguma.
Daniella bufou. —Você é realmente tão estúpida, Kelia? — Ela perguntou. —Você está me dizendo que teve um relacionamento com Drew Knight e, naquela época, você não tinha ideia de quem é Emma? Ou, devo dizer, o que ela é?
Kelia rangeu os dentes. —Eu não tenho tempo para isso, Daniella.
—Sua Emma, — Daniella disse em uma voz um pouco acima de um sussurro, — é uma bruxa. — Ela sorriu. —Estou sinceramente surpresa por você não saber disso.
—Como você sabe disso? — Kelia perguntou.
—Ela é uma associada de Drew Knight, — Daniella disse como se fosse óbvio. —A Sociedade é brilhante em fazer tudo o que pode para estar bem informada.
Kelia estava começando a ficar impaciente. Ela não permitiria que Daniella comprometesse tudo pelo que trabalhou tanto.
—O que Emma tem a ver com as câmaras do conselho? — Ela perguntou.
Daniella permitiu que o momento ficasse entre os dois.
—Emma, — ela disse lentamente, —é uma bruxa. Eu acabei de te dizer isso. Isso passou por você?
—Eu ouvi você da primeira vez, — ela disse, sem se preocupar em esconder sua dúvida. —E parecia tão ridículo como agora. Por que até mesmo mencionar Emma?
—É a verdade — disse Daniella antes de acenar com a mão dispensando. —Ouça, o que me importa se você acredita em mim ou não?
Kelia se virou para olhar para a estante. Ela tocou o queixo com os dedos. —Por que você me ajudaria? Por que me trouxe aqui? — Ela perguntou. —Você me odeia. Você me insulta. Você nunca quer ter nada a ver comigo. E eu nem sei o que fiz para irritá-la tanto.
Daniella mudou seu peso. Ela cutucou um fiapo do ombro. Mas seus lábios estavam puxados em uma linha tensa.
—Eu sei o que você está procurando, — disse Daniella. —Pelo menos, tenho uma ideia. — Ela fixou os olhos nos dela. —Eu odeio este lugar. Odeio a Sociedade mais do que odeio alguém ou alguma coisa. Você seria considerada minha amiga íntima em comparação com os meus sentimentos por este lugar. Qualquer maneira de foder este lugar, sou totalmente a favor.
Kelia se encolheu com a linguagem, mas assentiu uma vez. —O inimigo do inimigo. — Ela murmurou.
—Se você está procurando algo proibido, algo que não deveria estar procurando, estará aqui. — Daniella apontou para a estante de livros. —Eu iria me apressar, no entanto. O sermão acaba logo, e você tem livros que precisa folhear.
Kelia esperou que o outro sapato caísse. Isso era algum tipo de truque? Ela estava tentando colocar Kelia em problemas, então ela seria removida da Sociedade ou pior?
—Você ainda não respondeu por que está me ajudando — disse Kelia incisivamente. Ela não conseguia confiar em Daniella, pelo menos não ainda. —Deve haver mais do que apenas seu ódio pela Sociedade.
—Como eu disse, — Daniella disse com um encolher de ombros. —Posso não concordar com o seu relacionamento e definitivamente não gosto de você, mas o que você fez realmente tocou a todos aqui. Você enfureceu quase todo mundo e descobri que gostei muito disso. — Ela deu a Kelia um sorriso divertido. —Como tal, esta caça é minha retribuição a você. Não vou fazer mais nada por você de novo, não tenha medo. — Ela se moveu para correr os dedos ao longo das espinhas. —Esta seção tem dois livros-razão. — Ela fez uma pausa, colocando a mão nos últimos dois livros da terceira prateleira. —Se você estiver procurando por alguém nefasto, eles estarão lá.
—Como você sabe de tudo isso? — Kelia perguntou.
Daniella fez uma pausa antes de puxar um dos livros. Se possível, parecia mais antigo do que os que Kelia examinou na biblioteca, a capa preta desbotada, com páginas grossas que pareciam quebradiças ao toque.
—Eu sei muitas coisas, — Daniella disse, sua voz baixa e amarga. Ela colocou a mão nas costas de uma cadeira, segurando-a com os dedos. —Coisas que alguém como eu não deveria saber. Eles não podem fazer nada comigo, no entanto. Eles sabem disso. — Ela fixou os olhos em Kelia. —Eu sou mais do que pareço. Sei dessas coisas porque procuro respostas. Eu sou punida quando sou pega, mas vale a pena, porque vou acabar garantindo que este lugar não seja nada mais do que cinzas.
Kelia pegou o livro-razão dela. —Daniella, — ela começou, —você parece muito com... — Ela deixou sua voz sumir, não muito certa se ela estava pronta para admitir que Daniella era muito parecida com a própria Kelia. —Obrigada pela ajuda.
—Eu não estava fazendo isso por você, — Daniella fez questão de dizer. —Como eu disse, qualquer coisa proibida para Assassinos é exatamente o que eu desejo me educar. Eu vou deixar você com isso. Certifique-se de se apressar, no entanto. Seu tempo estava quase acabando antes de começar.
—Daniella, — Kelia chamou quando a outra garota girou no calcanhar de sua bota, pronta para deixar Kelia sozinha. Daniella fez uma pausa, olhando por cima do ombro. Kelia ofereceu a mão, mudando a saliência sob o outro braço. —Seja qual for o seu motivo para fazer isso, quero que saiba que aprecio isso.
Daniella assentiu, mas não segurou a mão de Kelia. —Não pense nada sobre isso — ela insistiu. — Por favor.
Os lábios de Kelia se curvaram e ela deu um aceno de cabeça para Daniella. Após devolver o gesto, Daniella desapareceu.
Kelia voltou para a prateleira. Parecia ameaçador estar aqui, como se ela fosse um alvo aberto. A porta que Daniella fechou recentemente parecia que poderia abrir a qualquer momento. Ela precisava se apressar.
Ela deslizou para a cadeira de madeira, em seguida, enrolou os dedos na ponta da capa preta e grossa do livro-razão. Não havia título, nada que indicasse do que se tratava. Em vez disso, havia letras douradas com duas datas: 1600-1700. Cem anos de nomes. Cem anos de história.
Seu coração batia forte contra o peito. Ela não tinha certeza se estava com medo de passar por cada página individual, procurando um nome em um mar de muitos, ou se estava ansiosa para ver por que esses nomes eram mantidos neste livro-razão em vez dos da biblioteca.
Lentamente, Kelia virou a capa, abrindo o livro. Seus sentidos foram agredidos com o cheiro velho e enferrujado da história. Ela fez uma pausa, levando um momento para se acostumar com a fragilidade das páginas.
Lembrando que precisava se apressar, começou a ler.
Ela ainda não havia encontrado nada sobre Wendy Parsons neste livro-razão.
As entradas eram como as postadas para consumo público. Havia nomes, datas de nascimento, gêneros, endereços, empregos, locais de nascimento, locais de morte, datas de casamentos, filhos produzidos por casamentos.
No entanto, havia duas diferenças: primeiro, não havia muitas datas de morte próximas a esses nomes. Isso confundiu Kelia, porque ela não tinha certeza se eles simplesmente esqueceram de adicionar um ou se a morte era possivelmente desconhecida. Uma terceira opção, menos provável, era que as pessoas sem uma data ao lado do nome não tivessem morrido.
—Mas isso é ridículo. — Ela murmurou, balançando a cabeça e esfregando os olhos com as costas das mãos.
Ela estava olhando para uma minúscula letra preta com uma caligrafia perfeita e seus olhos começaram a se cansar. Suas costas estavam começando a se esforçar de tanto curvar-se sobre a mesa. Ela havia distendido um músculo do pescoço ao virar a cabeça em direção à porta a cada poucos minutos para garantir que ainda tivesse tempo.
Uma outra diferença entre este livro-razão e o livro-razão geral era que havia um símbolo ao lado de cada nome. Havia uma lua crescente, a silhueta de um cachorro ou um lobo, notas musicais e um caldeirão. Pela vida dela, ela não conseguia entender o que significavam.
Para complicar ainda mais as coisas, havia alguns nomes - não muitos, mas o suficiente para notar - sem um símbolo. Kelia percebeu que os nomes sem símbolos eram normalmente acompanhados por uma união com alguém com um.
Kelia virou as páginas, seu olhar cintilando em cada uma. Ele era mantido em ordem alfabética e ela queria chegar ao Ps o mais rápido possível. No entanto, nem mesmo ela estava imune a ser varrida pelos vários nomes e famílias que eram mantidos neste livro-razão.
O que tornou esses nomes diferentes dos outros? Ela imaginou. O que esses pequenos símbolos significam? Por que alguns os tinham e outros não?
E por que as crianças normalmente tinham dois símbolos? Às vezes diferentes, às vezes iguais, mas sempre dois. Outro mistério.
—Não há tempo para perguntas — disse ela. —Você deve encontrar o nome.
Depois de quinze minutos, ela ouviu vozes no corredor. Elas pertenciam aos sete homens que compunham o conselho, incluindo Rycroft. Vozes se propagavam, então ela provavelmente tinha um minuto antes de chegarem à porta.
Página após página. Nada.
As vozes ficaram mais altas. Ela podia ouvir a conversa deles claramente.
Outra página e Kelia finalmente conseguiu encontrar o nome. Debaixo de um Andrew Parsons, havia uma Wendy Parsons. Ela não era casada e não parecia ter filhos. Havia um caldeirão ao lado de seu nome. Depois do caldeirão, havia uma chave. Sua data de nascimento foi dezessete de dezembro do ano de seiscentos e dez. Não havia data de morte.
Kelia franziu a testa. Wendy Parsons existia. Por algum motivo, o nome dela estava em livros que foram escondidos pela Sociedade com um caldeirão ao lado dela. Mas Drew Knight sabia claramente que ela estava viva, que ela existia. Ele queria que Kelia descobrisse se ela estava aqui, na Sociedade.
Mas ela não tinha ideia de como ela deveria fazer isso. Ela não tinha ideia de como Wendy ainda estava viva, a menos que ela fosse algum tipo de entidade sobrenatural também.
Ela fechou o livro-razão e rapidamente o deslizou de volta para a estante. Ela colocou a cadeira exatamente onde a encontrou, certificando-se de que estava no lugar, antes de correr para onde havia deixado a jarra. Ela a agarrou e despejou água na bacia sobre uma pequena escrivaninha.
Kelia saiu lentamente da sala. Ela já sabia que eles iriam vê-la. Ela teve que aceitar isso. Mas se ela mantivesse a cabeça baixa e os olhos no chão enquanto se afastava deles, poderia não ser reconhecida. Pelo menos, ela esperava que sim.
Seu caminho cruzou o deles, mas eles nem pareciam vê-la. Ainda assim, ela manteve a cabeça baixa, o coração batendo forte no peito, querendo sair dali o mais rápido possível. Até que eles vissem seu rosto, ela poderia ser qualquer um dos Cegos.
Ela não percebeu que estava prendendo a respiração até que ela estava em segurança no corredor e soltou. Isso foi muito perto.
Ela precisava encontrar Daniella, e o melhor lugar para começar essa busca era na biblioteca. Pareceu uma eternidade antes que ela finalmente encontrasse o cômodo familiar. Ela se forçou a evitar olhar por cima do ombro para não ser pega. Ela tinha certeza de que seria chamada pelo nome por um conselheiro que de alguma forma sabia o que ela vinha fazendo nas câmaras do conselho, o que ela havia descoberto. No entanto, ninguém veio atrás dela. Ela não encontrou ninguém nos corredores.
Pareceria, por enquanto, que ela estava segura.
Ela tirou uma das mãos da jarra d'água para abrir a porta da biblioteca. Uma cabeça familiar de cabelo ruivo crespo estava sentada na recepção, rabiscando algo em um pedaço de papel.
O alívio inundou seu corpo. Ela nunca tinha pensado que chegaria um dia em que ansiava por ver Daniella, mas ela praticamente pulou para ela.
—Daniella! — Kelia exclamou em um sussurro.
Daniella ergueu a cabeça, estreitando os olhos. —Você está aqui? — Ela perguntou. —Seriamente? Eu já...
—Eu preciso de mais — disse Kelia, quase sem fôlego. —Da sua ajuda, quero dizer. — Ela olhou ao redor da biblioteca, percebendo que elas estavam sozinhas. Isso não significava, porém, que os ouvidos não estivessem ouvindo. Como tal, ela se certificou de que sua voz estava baixa ao dizer: —Há símbolos ao lado de cada nome. Não entendo o que significam. A lua cheia, a silhueta de um cachorro, um lobo. Um caldeirão, uma nota musical. O que isso significa?
Daniella revirou os olhos. —Você tem que estar brincando, Sombra, — disse ela. —Como você era o chefe da nossa classe quando éramos Assassinas? Está além de mim.
Kelia a olhou fixamente, sem reagir aos insultos, mas indicando claramente que também não os aprovava.
—Leia nas entrelinhas, Kelia Starling, — Daniella disse. —São imagens tão básicas que até uma criança pode entendê-las. Um cachorro ou um lobo. Que entidade sobrenatural você acha que simboliza, hmm?
O sobrenatural. Esse era o elo que faltava. Os livros de contabilidade nas câmaras do conselho estavam cheios de entidades sobrenaturais.
—Um lobisomem — disse Kelia. Seus lábios se curvaram em um sorriso animado. —Um caldeirão é uma bruxa. A lua cheia simboliza a noite, que deve simbolizar As Sombras do Mar. E uma nota musical...
Este deu uma pausa.
—Sereias, sua idiota. — Daniella murmurou.
Mas Kelia já sabia o que ela precisava saber. Wendy Parsons era uma bruxa.
O que Drew Knight queria com uma bruxa? E se Emma também era uma bruxa, então por que ele precisava de duas delas?
CAPÍTULO 11
Kelia acordou no instante em que sentiu alguém em seu quarto. Ela sabia quem era sem olhar. Era sempre a mesma pessoa – a mesma Sombra do Mar, ela deveria dizer. Como ele sabia que ela havia descoberto algo importante? Ele tinha pessoas trabalhando para ele que ela não conhecia?
Ou talvez ele mesmo a estivesse observando. Ela não tinha certeza de como se sentia sobre qualquer cenário.
Tudo o que ela sabia era que ele estava aqui, o que significava que ela não poderia dar a Drew tudo o que ele pediu. A localização específica a iludia - por enquanto.
Ele parecia incrivelmente bonito sob o brilho da lua cheia que se infiltrava em sua janela agora aberta. Seu rosto era esculpido, suas maçãs do rosto inescapavelmente altas e sua mandíbula masculina e definida. Seu cabelo escuro estava estranhamente despenteado, dando-lhe mais o ar de um velhaco.
Com uma túnica branca de corte profundo, revelando um toque de peito bem definido, e um sobretudo azul marinho com botões dourados que chegavam até a parte de trás das coxas, ninguém suspeitaria que ele fosse o que era. Os Sombras eram monstros, feras que não podiam se controlar. Com suas calças pretas e botas até os joelhos que eram brilhantes, embora gastas, ele parecia muito digno e refinado.
—Kelia. — Ele disse, seus olhos profundos e escuros enquanto pousavam nela, como se ele não visse mais nada.
Os homens humanos não podiam nem chegar perto de sua beleza. Até Kelia, uma vez tão forte em sua convicção contra as Sombras, se viu incapaz de falar, incapaz de respirar perto dele, mesmo quando eles se conheceram e ela pensou que ele era o mal encarnado.
—Sr. Knight. — Disse ela secamente, depois de encontrar sua voz.
—Você pode me chamar de Drew — ele disse. —Você já se dirigiu a mim como tal antes. Sei que não nos vemos há algum tempo, exceto pela minha visita mais recente, mas não há necessidade de mais formalidades. Depois de tudo que passamos juntos, eu considero você minha...
—Amiga? — Kelia puxou as cobertas para esconder sua mudança o melhor que pôde, enquanto mantinha um olho na Sombra em seu quarto. —Não sei se essa é a palavra apropriada para descrever com precisão o nosso relacionamento.
—Amante seria mais preciso? — Ele perguntou, dando um passo em direção à cama dela. —Isso é o que todos pensam que somos, não é?
—Éramos — Kelia disse, seu tom firme. —Pretérito. Se eles pensassem que eu estava continuando nosso relacionamento, eles teriam me matado imediatamente.
—Eu sei. — Um olhar sombrio tocou o rosto de Drew. —Como você está?
—É por isso que você está aqui? — Kelia perguntou. —Para perguntar como eu estou?
—Isso está errado? — Drew olhou para ela, seus olhos intensos e cheios de uma emoção que ela não conseguia ler. —Só porque você nos vê como nada mais do que... como quer que nos veja, eu a considero uma amiga de confiança
Kelia congelou. Suas mãos brincaram preguiçosamente com a colcha, puxando o material macio entre os dedos.
Ela podia ver sinceridade em suas íris castanhas, o que a surpreendeu. Knight sabia como manipular palavras para que o beneficiassem, mas ele não era de mentir.
—O que é que você quer? — Ela perguntou novamente, sua voz ainda firme, mas agora, ela não conseguia esconder o tom de suavização de seu tom. Ela se sentou, puxando as cobertas com ela.
—Diga. — Ele disse, sua voz baixa, fazendo arrepios rastejarem por sua pele.
Seus olhos se fixaram nos dele. —O que?
—Meu nome, — ele disse a ela. —Diga. Diga como se não significasse nada para você e eu vou deixá-lo em paz.
—Drew. — Ela murmurou, sua voz não mais que um sussurro. Ela não conseguia nem fingir. A verdade era que ela não queria que ele a deixasse em paz.
Um sorriso deslizou em seu rosto, lento no início, mas brilhante. Kelia não pôde deixar de encará-lo sem falar, sem sentir qualquer tipo de vergonha neste momento por estar maravilhada com algo tão lindo.
—O que? — Ela finalmente perguntou quando o silêncio cresceu entre eles. —Por que você está olhando para mim desse jeito?
—Gosto da maneira como você diz meu nome — disse ele. —Eu quero ouvir você dizer mais.
—Você acha que é apropriado?
Seus lábios se curvaram sobre os dentes, mas não rápido o suficiente, porque ela já tinha visto suas presas escorregarem. Era tão fácil esquecer o que ele realmente era. Tão fácil supor que ele era como todo mundo.
—Eu não concordo com o que é considerado apropriado, — Drew disse, dando mais um passo em sua direção. —Eu decido por mim mesmo.
—Deve haver certas regras que você segue, — Kelia apontou. —Se todos agissem com abandono imprudente, haveria o caos.
—Eu prefiro o caos. — Ele disse, seus lábios se curvando.
—Tenho certeza que sim. — Ela inclinou a cabeça para o lado para que seu cabelo caísse sobre o ombro. Ela não gostou que estivesse desfeito na presença dele, mas não havia nada que ela pudesse fazer a respeito, especialmente quando ele apareceu sem qualquer aviso. Ela começou a trançá-lo, na esperança de aliviar seu nervosismo. —Por que você está aqui, Drew?
Ele sorriu novamente. —Sim — disse ele, fechando os olhos. —Gosto muito do som disso. — Abrindo-os de volta, ele disse novamente: —Estou aqui para verificar você. Para ver como você está.
Kelia suspirou. —Isso soa mais como o que você fez, e não tanto por que você fez. — Ela beliscou a ponte do nariz com os dedos. —Você se sente culpado? Você acha que isso torna as coisas bem entre nós? Esta...
—Amizade?
Kelia olhou para ele. —Se você não me contar, o mínimo que você pode fazer é me dizer como Emma está.
—Ela está bem, — Drew disse indiferente. —Ela pergunta sobre você de vez em quando. Você sabe, ela criou o bálsamo que eu dei a você.
As palmas das mãos de Kelia ficaram úmidas com a simples menção da pomada que ele esfregou em suas costas nuas. Foi uma coisa tão íntima para ele fazer, para ela permitir que ele fizesse. Especialmente considerando que ele era uma Sombra do Mar, e elas eram conhecidas por rasgar a carne em pedaços com o mero toque de sangue no ar.
Kelia lançou seus olhos para Drew. Ele enviou a ela um olhar inquisitivo em resposta.
—Posso lhe fazer uma pergunta? — Ela perguntou, repentinamente tímida. —E peço não ofender, mas por curiosidade.
Ele inclinou a cabeça para o lado, as sobrancelhas se juntando.
Kelia não podia culpá-lo. Um momento atrás, ela estava discutindo com ele sobre o relacionamento deles. E agora ela queria fazer perguntas pessoais? Isso não impedia seu desejo de saber, então ela seguiu em frente, mesmo que isso significasse suportar a provocação dele mais tarde.
—Você pode me perguntar qualquer coisa. — Ele disse a ela, e Kelia podia sentir que seu tom era apenas sincero.
Ela engoliu em seco, tentando umedecer a garganta enquanto ela se apertava e secava. Quando isso não funcionou, ela se enrolou com mais firmeza nas cobertas e se levantou para ir até a bacia, onde se serviu de um copo d'água. Ela gostaria de ter um manto adequado para vestir por cima da camisola, mas não havia nenhum por perto e decidiu confiar que ele era honrado. Suposição ridícula, sim, mas depois de tudo o que ele fez por ela, ele ganhou o benefício da dúvida.
Ela tomou um gole d'água, a trança ainda sobre o ombro, e o olhou. Seu olhar permaneceu firme em seu rosto, não afundando mais abaixo em seu corpo como se poderia esperar dele, mas seus olhos ficaram mais escuros. Famintos.
De alguma forma, sua garganta ficou seca mais uma vez. Ela não sabia o que aquele olhar significava exatamente, mas sabia que era algo semelhante ao desejo. Como se ela pudesse ser desejável, especialmente com cicatrizes correndo para cima e para baixo em suas costas. O que antes era uma parte sensual de seu corpo agora era um retrato de todas as suas decisões desde a morte de seu pai. E Drew sabia disso. Ele mesmo tinha visto.
Talvez ela o tivesse interpretado mal.
—Você estava lá, — ela finalmente conseguiu dizer. —Você estava lá quando eu tinha sangue escorrendo pelas minhas costas. Eu sei que estava meio delirando. Para falar a verdade, eu honestamente pensei que ia morrer. Mas você não me provou - meu sangue, quero dizer. Você nem parecia tentado.
—Acredite em mim, eu estava, — ele disse sombriamente. —Eu queria muito provar você, especialmente por ter cheirado você. Seu cheiro... —Ele deixou sua voz sumir e olhou pela janela, e ela seguiu sua cabeça virada para as ondas quebrando na costa próxima. —Seu perfume fez coisas ao meu corpo que nenhuma mulher jamais teve a habilidade de fazer. E, devo admitir, a besta dentro de mim não queria nada mais do que limpar você com minha língua, sentir você escorrendo pela minha garganta para que eu pudesse enterrá-la bem dentro de mim e nunca mais deixá-la ir. Eu posso cheirar sua inocência. Eu posso sentir o cheiro de sua pureza. Sombras do Mar tem esse impulso inato de querer nada mais do que corromper os inocentes, reivindicá-los como seus. Assim como um animal selvagem é levado a procriar, a foder algo sem pensar, a predisposição de uma Sombra é fazer o mesmo.
Ela se irritou com suas palavras, e ainda assim, elas também enviaram uma emoção através dela.
—E você acha que está tudo bem? — Ela perguntou em uma voz um pouco acima de um sussurro.
Ela não sabia como estava se sentindo neste momento. Seus sentimentos eram uma confusão de contradições que ela não conseguia resolver sob seu olhar penetrante. Ela pensava que ele era diferente das outras Sombras, que talvez as Sombras não fossem bestas afinal, mas talvez ele simplesmente fosse bom em esconder isso.
—Acho que não há nada que eu possa fazer para conter meus sentimentos conflitantes por causa do que eles me criaram — disse ele. Sua voz era baixa, um rosnado. —Tive quase um século para aceitar o que sou. Alguns nunca o fazem. Mas com o tempo, vem a capacidade de controlar. — O dele estava parado. —Por mais que eu quisesse provar você, eu não fiz. Porque você não me deu permissão e estava em uma posição comprometida. Se você decidir me dar seu sangue, por sua própria vontade, isso me deixaria de joelhos. Eu faria de você minha rainha, seu sangue como néctar para ser adorado e tratado com respeito. Gosto de você. Mas não vou tirar de você de má vontade. Você entende?
Kelia voltou para sua água e engoliu o resto. Como ela deveria responder a isso? Ela não conseguiu. Seu corpo, entretanto, e ela não queria que ele percebesse. Mas ela tinha certeza de que sim. Se ele pudesse cheirar as mudanças em seu corpo, ele notaria.
—Posso ser uma Sombra e posso ter meus... momentos de raiva, de quando esse outro eu, essa besta que tento obstinadamente conter, se liberta e assume o controle. Mas quando se trata de você, Kelia, juro pela minha vida que nunca vou machucar um fio de cabelo do seu corpo — disse ele. —Seu consentimento, se você me honrar com ele, o tornará muito mais doce.
Kelia assentiu, sua garganta ficando seca mais uma vez. Ela queria se servir de um terceiro copo d'água, mas achou que seria um pouco excessivo.
—Kelia, quando eu vi aquelas marcas em seu corpo...— Drew apertou sua mandíbula com tanta força que estourou antes de girar em sua bota e se dirigir para a janela. O céu negro estava cheio de estrelas que cintilavam como vaga-lumes. A lua estava cortada ao meio, esperando até ver sua companheira.
—Rycroft foi quem danificou você, sim? — Ao aceno de Kelia, Drew continuou. —Interessante, porque os treinadores raramente fazem o trabalho sujo eles próprios. Exceto Rycroft. Não quando tem a ver comigo. Ele tornou isso pessoal.
—Todo mundo te odeia, Drew, — Kelia disse, lentamente colocando seu copo no balcão. —Por que você acha que Rycroft está tornando isso pessoal quando você é um inimigo natural da Sociedade?
—Há uma história entre Rycroft e eu — disse ele. —Uma história cheia de sangue e fúria. Eu me banharia em seu sangue e consideraria um banho vitorioso, se pudesse.
Kelia sentiu a pele pálida, embora seu corpo ainda parecesse carregar o peso do mundo sobre os ombros. Houve uma centelha de vermelho em seus olhos escuros, uma sugestão da besta mascarada em uma bela concha. Suas presas brilharam sob o brilho da meia-lua. Elas pareciam afiadas e pontiagudas, prontas para afundar em algo macio.
—Quando ele descobriu que você me ajudou, quando descobriu que tínhamos um relacionamento de natureza sexual — disse Drew, — eu sabia que ele iria machucá-la. Eu sabia que ele iria te machucar porque fazer tal coisa me machucaria.
Kelia se virou para a bacia de água. Ela podia ver seu reflexo na água, seus cachos dourados já tentando escapar de sua trança. Havia olheiras e seus lábios não tinham a cor usual. Ela estava cansada. Excesso de trabalho. Estressada. Ela não tinha chegado a lugar nenhum com seu pai e por que a Sociedade achou sábio mandar matá-lo. O diário dele era enigmático, na melhor das hipóteses, e ela odiava ler as mesmas passagens sem parar, na esperança de encontrar uma pista, algo que ela sabia que havia perdido.
—Eu não entendo. — Ela disse, ainda sem olhar para ele. Ela não podia, embora não tivesse certeza do porquê. Parecia que havia um peso entre eles, um peso que poderia se transformar em outra coisa. E Kelia não achava que estava pronta para explorar isso ainda.
—Você é louca, então? — Havia um tom áspero em sua voz, mas ele não foi rude.
Kelia se virou para ele.
—Eu me importo com você, Kelia. Achei que minhas ações deixaram tudo claro. Arrisquei muito quando vim ver como você estava depois de sua chicotada. E eu arrisco muito agora, vindo...
—Talvez seja um risco, mas é algo que você faz por si mesmo tanto quanto faz por mim, — ela respondeu, sua voz tensa. —E isso me coloca tanto risco quanto a você. Portanto, não finja que está aqui apenas por mim, quando tenho quase certeza de que deseja ver onde estou no meu progresso de rastrear Wendy Parsons.
—Você descarta meus sentimentos por você? — Drew perguntou.
Kelia desviou o olhar e mudou seu peso. Ela não tinha certeza do que dizer. Embora ela não conhecesse Drew Knight bem o suficiente para decifrar se ele estava manipulando seus sentidos ou sendo genuíno, ela gostava de acreditar que ele não diria algo a menos que realmente quisesse dizer isso. Porque uma parte dela - uma parte maior do que ela pensava - queria que Drew Knight se preocupasse com ela.
Ela quase riu do que havia se tornado: uma mulher que ansiava por uma Sombra do Mar para cuidar dela. Era quase ridículo demais para dar algum crédito.
—Sentimentos — disse Kelia. —Você é capaz de ter sentimentos?
Ele correu os dedos pelos cabelos antes de deixar cair a mão para bater em sua coxa. Ela odiava o jeito que ele olhava para ela. Então, novamente, ela odiava que ela fizesse a ele uma pergunta como essa, depois de tudo que ele tinha feito por ela.
—Você ainda me vê como uma besta, então? — Ele perguntou, sua voz tremendo de raiva, com paciência contida. —Eu posso sentir as mesmas coisas que você sente. Posso sentir raiva e frustração. Posso sentir raiva e paixão, fome e desejo e luxúria. Posso sentir desespero e perda, tristeza. Eu sinto o que você sente, talvez mais do que o que você sente, porque estou aqui há muito mais tempo e tenho muito mais dor para carregar. Você é jovem, inocente e mais vulnerável. Você não sabe nada do que eu passei. E você nunca vai.
Kelia respirou fundo e desviou o olhar. Suas bochechas queimaram de vergonha.
—Eu considero você alguém de quem gosto, Kelia Starling, — ele continuou, — quer você acredite em mim ou não. E eu juro para você, vou me vingar de Ashton Rycroft pelo que ele fez a você, independentemente do que isso possa me custar.
Isso despertou o interesse de Kelia. —O que isso pode custar a você?
Drew se endireitou. —Digamos que Rycroft é associado de alguém importante na minha vida — disse ele. —E aquele associado tem muito controle sobre mim, quer eu queira ou não. E não me surpreenderia se Rycroft usasse você, torturasse você, para me machucar.
—Certamente Rycroft sabe que você não tem fraquezas e, portanto, ele não pode usar ninguém, especialmente eu, contra você — disse Kelia como se fosse óbvio. —Talvez eu possa admitir que somos amigos. Mas amigos...
—Eu já sei o que você pretende dizer, — Drew estalou. —Sombras do Mar não tem amigos, Kelia. Apenas aliados e associados. Não amigos. Especialmente eu.
—Emma?
—Emma é alguém em quem confio e respeito — disse ele. —Nós dois estamos procurando a mesma pessoa. Uma aliança seria muito benéfica para nós. Mas eu não a consideraria minha amiga.
—Então o que nos torna amigos? — Ela perguntou, inclinando a cabeça para o lado.
—Eu confio e respeito você, assim como eu faço por Emma, — Drew disse. —A diferença é que eu gosto de você. Isso não quer dizer que eu não goste de Emma. Mais uma vez, acho sua companhia agradável. Ela é uma das poucas pessoas com quem posso falar. É bastante difícil falar com minha própria espécie, considerando minha idade e como minhas crenças são muito diferentes quando comparadas com o que devemos acreditar. Mas, ao contrário de Emma, sinto-me atraído por você de várias maneiras incomuns. Quero ter certeza de que você está bem e, se não estiver, quero ter certeza de que vou cuidar de você.
Kelia balançou a cabeça. Não era isso que ela precisava ouvir agora, mas era exatamente o que ela percebeu que queria ouvir dele.
—Encontrei Wendy Parsons em um livro-razão da biblioteca — disse ela. Ela precisava mudar de assunto, precisava falar sobre algo mais do que apenas sentimentos e Sombras e como era uma impossibilidade que eles estivessem relacionados de alguma forma. —Depois de discutir isso com uma bibliotecária, encontrei esses registros particulares de entidades sobrenaturais. Wendy Parsons é uma bruxa e ela está aqui. Eu só não sei onde.
—Como? — Drew perguntou. —Como você sabe disso?
—Há uma estante proibida nas câmaras do conselho — disse Kelia. —Encontrei o nome dela em um livro-razão com um caldeirão ao lado. Isso geralmente significa que o nome de pessoa é uma bruxa. Certo, eu sabia que as bruxas existiam, mas não sabia que eram imortais. Ela está viva desde o início do século dezesseis. Uma conhecida sua, talvez?
Drew cruzou os braços sobre o peito e olhou pela janela. —O que te faz dizer isso?
Kelia inclinou o cabelo para que seu cabelo caísse sobre o ombro e ela começou a brincar com as pontas. Ela desejou estar mais perto da bacia de água; ela teria jogado água nele em um instante.
—Nós estudamos você, sabe — ela disse a ele. —Eu tive que escrever um artigo sobre você. Se eu pensei que sua história pessoal - o que sabemos disso, pelo menos - predispôs você a escolher ser uma Sombra do Mar.
Isso pareceu chamar sua atenção. —Você acha que foi uma escolha? — Ele perguntou, sua voz tão mortal quanto seus dentes pontiagudos, brilhando sob o brilho prateado do luar.
Kelia abriu a boca. Ela não tinha certeza se estava prestes a se desculpar ou se iria se defender. Mas antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, uma batida forte na porta os interrompeu.
CAPÍTULO 12
Kelia abriu a porta, seu coração disparado contra o peito, apenas para encontrar Charles. Por um momento, ela quase esqueceu que Drew Knight estava enfiado em seu guarda-roupa.
O que Charles estava fazendo aqui?
—Charles. — Ela murmurou, então pigarreou e se posicionou na frente da fresta da porta. Ela esperava que Drew fosse inteligente o suficiente para ficar onde estava, mas ela não queria correr nenhum risco.
Se Charles descobrisse sobre sua associação contínua com Drew Knight e como não havia terminado, mesmo depois de receber a chance de redenção por meio da reabilitação, ele contaria a Abigail. Ele contaria a Rycroft. E tudo pelo que ela trabalhou tão duro seria em vão. Ela provavelmente seria morta, e qualquer esperança de descobrir por que seu pai foi assassinado seria em vão.
—O que você está fazendo aqui? — Ela perguntou. Ela não se preocupou em esconder a suspeita de seu tom ou de seu rosto enquanto o olhava.
Charles não era um sujeito de aparência horrível. Ele tinha olhos azuis como a meia-noite e cabelo escuro preso em um rabo de cavalo frouxo. Ele era alto e magro e, há muito tempo, queria cortejar Kelia. Ela o considerava um conhecido na melhor das hipóteses, mas mudou de ideia depois que ele traiu seu relacionamento com Drew Knight para Rycroft. Ele era a razão pela qual ela tinha essas cicatrizes subindo e descendo pelas costas. Ele foi a razão pela qual ela quase morreu de infecção. Ele era a razão pela qual ela era uma Cega agora. Não importava para ela que ele estivesse preocupado com ela. Se ele apenas tivesse se importado com seus próprios negócios, nada disso teria acontecido.
—Eu só... — ele começou, mas suas palavras vacilaram. Ele olhou para o chão de madeira, suas bochechas ficando vermelhas com o que parecia ser vergonha. —Eu só queria verificar você.
—Depois de dois meses? — Ela perguntou. —Charles, você foi o motivo...
Ela se conteve antes que pudesse terminar, apenas porque tinha certeza de que Drew seria capaz de ouvir o que ela disse. Ela tinha certeza de que ele podia ouvir Charles. Como ele não sabia quem a traiu, ela não queria dar a ele nenhum motivo para sentir necessidade de protegê-la, como se ele tivesse esse fardo que agora carregava por causa dela. Por causa do que ela fez por ele. E agora ele sentia que devia a ela, embora ela tecnicamente devesse a ele. Talvez essa tenha sido a única razão pela qual ele a salvou, por que ele foi compelido a lhe dizer coisas tão ridículas quanto o quanto ele preferia ouvi-la dizer seu nome. Não havia sentimentos reais por trás disso, nenhum significado. Ele fez isso porque se sentiu culpado pelo que ela fez por ele - como ele estava livre e ileso enquanto ela estava presa e com cicatrizes.
Mas isso não poderia ser verdade. Ele pediu que ela fosse embora. Ela escolheu ficar. E ele não se sentiria culpado pelo que fizera por ela se não se importasse genuinamente com ela.
Charles pigarreou, lembrando-a de que ela não podia se perder em seus pensamentos.
—Eu só acho que você tem muita coragem de vir aqui à noite depois do toque de recolher, quando você sabe que eu estaria sozinha, — ela continuou. —Você contou a Rycroft sobre meu relacionamento com Drew Knight...
—Eu salvei você de seu relacionamento com Drew Knight, — Charles apontou, franzindo a testa. —Se não fosse por mim...
A pouca paciência de Kelia com Charles desapareceu. Tudo o que ela não queria dizer caiu para fora dela e ela não poderia impedir, mesmo que tentasse.
—Se não fosse por você, eu não teria essas cicatrizes nas minhas costas pelo resto da minha vida, — ela disse, sua voz firme e baixa. —Se não fosse por você, eu não teria quase morrido de infecção por sangramento por causa das chicotadas que recebi. Se não fosse por você, eu não seria reduzida a uma Cega, uma casca do que já fui.
—Eu não vou me desculpar por mantê-la segura, — Charles disse, e havia mais paixão em seu tom do que ela tinha ouvido falar dele em todo o tempo que o conheceu. —Eu entendo que você estava colocada em uma posição precária onde você teve que escolher entre ser uma Assassina e se casar. A maioria das mulheres se rebela contra ambos e escolhe outra coisa por um tempo, até que esteja pronta para fazer uma mudança notável. Eu pensei que talvez... —Ele deixou sua voz sumir, dando um passo em direção à porta. Ele pareceu pensar melhor e deu um passo para trás.
—Você pensou o quê? — Kelia exigiu, estreitando os olhos. Seu aperto na maçaneta aumentou, os nós dos dedos ficando brancos.
—Eu pensei que se eu lhe desse seu tempo, você veria a razão eventualmente. — Disse ele.
Kelia não pôde evitar ficar um tanto chocada com o tom dele; Charles era muitas coisas, mas feroz não era uma delas.
—Você não fez. E foi então que decidi te seguir. No minuto em que percebi que você estava em um relacionamento, fui para Rycroft.
—Então era a Sombra do Mar que o preocupava ou o relacionamento não era com você?
—Kelia...
—E isso foi antes ou depois de você me chantagear para ir ao Festival de Outono com você? — Ela continuou não esperando realmente uma resposta a nenhuma de suas perguntas; não era como se ela pudesse confiar em qualquer resposta que ele desse. Ela soltou a maçaneta da porta, com medo de bater na cara dele se não a soltasse.
Ela ouviu um estalo atrás dela e parou. Ela esperava que Drew não fizesse algo precipitado. Talvez esta não fosse a melhor hora para discutir sua história sórdida com Charles. Embora, considerando como Charles era um Assassino e não deveria estar aqui em primeiro lugar, não havia nenhum momento em que Kelia pudesse pensar em quando essa conversa ocorreria. E essa conversa precisava ocorrer.
Charles abriu a boca, mas Kelia interrompeu, seus pensamentos sobre Drew Knight desaparecendo por enquanto.
—Eu sei — disse ela. —Você foi para Rycroft antes. Você configurou a coisa toda. Foi por isso que fui interceptada naquela noite. Porque eles já sabiam de mim.
—Eu não vou me desculpar por salvar você, Kelia. — Ele repetiu, seu queixo erguido com orgulho.
—Nem você vai se desculpar por usar minhas escolhas a seu favor, — disse Kelia. —Deixe-me dizer uma coisa verdadeira, Charles. Você não me salvou - você me arruinou. Você não tem ideia do que eu suportei porque você estava com ciúmes. Não vamos fingir que é mais do que isso.
—Eu não entendo! — Charles exclamou.
Kelia olhou para ele.
Eles olharam ao redor do corredor, mas não parecia que a explosão de Charles tivesse chamado a atenção. A última coisa que os dois precisavam era que alguém descobrisse que Charles tinha aparecido depois do toque de recolher. Ele poderia escapar com um tapa no pulso; para ela, as coisas seriam muito piores. Ela já tinha uma reputação manchada e, embora Charles não fosse alguém em quem ela pensasse dessa forma, ela não seria capaz de explicar sua presença depois do expediente.
—O que você poderia ter visto naquele Sombra do Mar para ter feito você querer desenvolver tal relacionamento com ele? — Ele perguntou, sua voz caindo para um sussurro áspero. —Ele é um monstro que não tem a capacidade de cuidar de você da maneira que você merece ser cuidada. Ele só quer você por um motivo e apenas um motivo. Suas decisões arruinaram você, Kelia, você não vê isso? Sua reputação é irreparável. Nenhum homem vai querer você como esposa se souber que sua virgindade foi dada não apenas a uma Sombra do Mar, mas também Drew Knight. Você pode nunca ser uma Assassina novamente porque ninguém aqui será capaz de confiar em você. Você está arruinada.
Kelia apertou a mandíbula. —Há mais coisas na minha vida do que escolher entre casamento e assassinato — disse ela. —Deixe-me dizer uma coisa, Charles. E marque, porque é claramente algo que você precisa ouvir. Meu relacionamento com Drew Knight não resultou de algum tipo de rebelião porque fui forçada a decidir. Aconteceu porque ele me entendeu mais do que qualquer outra pessoa que eu conheço, talvez ele me conheça melhor do que eu mesma.
Charles empalideceu. Seus olhos se encheram de nojo e ele balançou a cabeça uma vez. Kelia não sabia se era porque ela estava vocalizando seu relacionamento com Drew Knight ou se ela estava sendo mais agressiva com seu tom do que normalmente era.
Kelia agarrou a maçaneta mais uma vez. —Eu acredito que você não vai contar a ninguém, Charles, — ela continuou, — porque então você teria que explicar o que está fazendo na minha porta tão tarde da noite sem escolta. — Ela fez uma pausa, deixando suas palavras afundarem. —Meu relacionamento com Drew Knight foi algo que eu escolhi porque eu queria. Eu queria cada pedaço disso. Se isso me faz perder perspectivas, tudo bem. Eu nunca quis essas perspectivas de qualquer maneira.
—Você parece estar perigosamente apaixonada, Kelia, — Charles disse, olhando para ela como se ela fosse um fantasma, uma aparição, algo que o chocaria completamente. —Por uma Sombra do Mar.
Kelia ficou em silêncio por um longo momento, seu silêncio pairando entre eles como uma adaga, esperando para cair. —Eu acho que é hora de você ir, Charles.
Charles abriu a boca, pronto para dizer mais, mas fechou-se, apertando a mandíbula com tanta força que estourou. Com um último olhar, ele se virou bufando e saiu pisando duro.
Kelia soltou um suspiro lento. Outro estalo atrás dela a lembrou de que ela não estava sozinha, e ela imediatamente fechou a porta. Ela desejou poder tê-la trancado, não querendo que alguém entrasse. Quando ela se fechou, ela se virou, apenas para encontrar Drew Knight posicionado ao lado de sua cama, esperando para atacar. Ela se assustou com a visão, nunca o tendo visto tão... intimidante.
Seus joelhos estavam dobrados, seus braços colocados firmemente atrás dele, ombros retos. Seus olhos estavam estreitados, a mandíbula travada, os lábios franzidos. Seu corpo se enrolou, pronto para saltar.
—Quem era aquele? — Cada palavra que saiu da boca de Drew foi cortada, como se cada palavra fosse sua própria frase.
O medo subiu por sua espinha, deixando arrepios em seu rastro. Ela engoliu em seco.
—Era Charles. — Ela disse, sua voz quase hesitante.
—Você nunca o mencionou antes.
Kelia detectou uma leve suspeita em seu tom, como se ele sentisse que ela estava escondendo algo dele, uma informação que ele deveria ter sido informado.
—Por que eu teria? — Ela perguntou, dando a ele um olhar que disse a ele a quão irritada ela estava com sua linha de perguntas. —Ele não era relevante para o nosso trabalho. E mais do que isso, ele não era uma ameaça ao nosso objetivo.
—Ele chantageou você, para que você comparecesse ao Festival de Outono com ele — disse Drew lentamente. —Você foi com ele?
—Eu não tive outra escolha — disse ela, jogando as mãos para fora. Ela se afastou da água, então seu corpo ficou de frente para o dele. —Não podia arriscar que tudo pelo qual trabalhei fosse sabotado porque fui descuidada e Charles cruel. Na verdade, não foi tão ruim quanto pensei que seria, até que tentei falar com você naquela noite...
—Foi assim que você foi pega? — Drew interrompeu. Seu corpo inteiro estava posado, ouvindo. —Você ia me ver? Por quê?
Levou um momento para lembrar por que queria ver Drew em primeiro lugar - a noite estava borrada, e tudo que ela conseguia se lembrar era luz intermitente e dor. Dor excruciante e insuportável. Mas, à medida que ela pensava nisso, aos poucos, isso começou a voltar para ela.
—Minha amiga e colega de dormitório estava morrendo, — ela disse lentamente. —A Sociedade a envenenou usando maquiagem. A mesma substância paralisante foi encontrada no corpo de meu pai, eu acredito. Ele de alguma forma lutou contra seu atacante, mas ele não podia fazer muito, e não demorou muito para que ele fosse consumido. A Sociedade pretendia fazer exatamente a mesma coisa com Jennifer. Bem, não tenho certeza se era o mesmo método de morte. Eles, no entanto, a paralisaram e isso a deixou extremamente doente. — Kelia pigarreou. —Eu consegui estabilizá-la e estava correndo para contar a você. Pensei que talvez você soubesse por que a Sociedade faria isso com seus Assassinos e talvez como eles foram capazes de inventar algo com um efeito paralítico.
Drew fez uma pausa, deixando as palavras dela penetrarem. Ele passou a mão no queixo, pensando profundamente. As sombras na escuridão se misturaram com o brilho do luar, fazendo com que o espaço entre as maçãs do rosto parecesse vazio.
—Eu conheço alguém que pode ser capaz de descobrir como e o que a Sociedade foi capaz de fazer para alcançar tal coisa. — Observou ele.
—Então eu espero que você faça, porque eu não tenho certeza do que eles farão quando perceberem que ela não está usando maquiagem. Que ela não está ficando doente como planejado.
—Por que você foi ao Festival com aquele menino se não queria? — Drew perguntou, caminhando lentamente até Kelia. Havia uma intensidade nele da qual ela não conseguia se livrar. Era como se aquele agente paralítico viesse diretamente de seus olhos; isso a enraizou no lugar, impedindo-a de respirar.
—Eu não queria arriscar que a Sociedade descobrisse sobre minha investigação sobre a morte de meu pai — ela explicou, em voz baixa. —Se eles acham que escaparam de alguma coisa, é menos provável que saiam de seu caminho para apagar seus rastros, remover evidências contundentes que possam revelar a verdade, olhar por cima do ombro para ver se alguém notou algo suspeito.
—Eu também não queria que eles rastreassem meu envolvimento na descoberta de pistas de suas verdadeiras intenções — ela continuou. —E talvez, por último, eu não queria que eles descobrissem meu envolvimento com você. Proteger você permite que eu me proteja.
Foi só depois que ela terminou de falar que ela percebeu que Drew Knight estava bem na frente dela, a um fôlego dela.
—Mentirosa. — Disse ele. Se ele inclinasse a cabeça para baixo, seus lábios estariam nos dela.
Kelia engoliu em seco. Ela não conseguia contar as vezes que se imaginou beijando Drew Knight, fosse por escolha ou acidente. Ela não queria admitir que estava pensando em beijá-lo agora.
—Você se preocupa comigo também, Kelia Starling, — ele continuou com a mesma voz rouca. —Se não o fizesse, não teria enviado Jennifer até mim com esse aviso. Você não teria se colocado em risco por mim. Você teria me entregado no minuto em que foi pega. Apenas admita isso. Diga! Diga que você se preocupa comigo.
A garganta de Kelia ficou seca. Seria tão fácil para ela dar um passo à frente, ceder ao que ele queria - o que ela mesma queria - e soltou um suspiro trêmulo.
—Eu também me importo com você. — Ela conseguiu dizer.
Ele pareceu surpreso que ela admitisse algo tão diferente dela. Sua boca se abriu, enfatizando suas maçãs do rosto salientes.
—Eu sabia — disse ele, sua voz brincalhona, seu sorriso deslizando mais em seu rosto esculpido. —Viu? Eu sabia que você se importava comigo. Por que você sempre é tão teimosa, Kelia Starling? Por que você precisa se esforçar apenas para admitir algo que eu já sei? Você já sabe?
Kelia olhou nos olhos de Drew. —Quem é Wendy Parsons?
A pergunta saiu de sua boca antes que ela pudesse detê-la. Verdade seja dita, ela não queria que Drew lhe contasse essas coisas, coisas que ela adorava e a deixava corada e sem fôlego, sem saber quem era Wendy Parsons para ele. Ela não queria jogar nenhum jogo. Ela não queria que ele dissesse nada bonito, a menos que essas palavras significassem algo para ele.
Ele apertou suavemente os dentes. Kelia tentou ler o olhar, mas não conseguiu.
—Você mesma disse, — ele disse lentamente. —Ela é uma bruxa. E isso é tudo que você precisa saber. Obrigado. — Seu tom de voz a deteve. Algo mudou. Algo de que ela não tinha certeza. —Por completar sua parte na barganha. Você encontrou Wendy Parsons. Você me disse que ela estava em algum lugar aqui. Isso foi tudo o que foi exigido de você. Não vou pedir que você se arrisque novamente.
Ele estendeu a mão. Kelia olhou com cautela.
—O que é isso? — ela perguntou. Ela não segurou sua mão.
—Eu não entendo, — Drew disse. —Eu ajudei você a provar que seu pai foi assassinado, você me ajudou a localizar a Sra. Parsons. Nosso relacionamento está completo, não é? Afinal, não somos amigos.
Kelia cerrou os dentes para não dizer nada, embora não quisesse nada mais do que discutir. Ela odiava que ele aparentemente preferisse fazer comentários fazendo isso da maneira mais prejudicial. Ela não achava que ele era capaz de magoá-la com palavras. Talvez tenha sido isso que ele sentiu quando ela disse a mesma coisa.
—Suponho que não, — ela conseguiu dizer.
—Vou lhe dar um conselho a respeito do seu pai, pois parece muito importante que você resolva o motivo por trás do assassinato dele — disse ele. —Você é teimosa e não consegue ficar satisfeita sabendo que a Companhia das Índias Orientais queria seu pai morto.
Kelia não disse nada. Em vez disso, ela colocou a mão no quadril proeminente, esperando.
—Ele estava encarregado de um programa muito importante e muito secreto que só o conselho conhece. — Disse Drew.
Kelia suspirou, sua respiração instável. Ela não conseguia desviar o olhar de Drew Knight, mesmo que tentasse.
—E Wendy Parsons? — Ela perguntou. —O que você pretende fazer com ela?
Drew deu de ombros, virando-se dela para ir em direção à janela aberta. Quando ele se segurou no corrimão, ele olhou por cima do ombro.
—Tenho certeza que você vai descobrir, Assassina. — Ele disse antes de desaparecer na noite.
CAPÍTULO 13
Como não havia aulas hoje, Kelia pensou que seria a melhor hora para descobrir por que Wendy Parsons estava sendo mantida pela Sociedade. Ela tinha ficado sem tempo ontem antes que ela pudesse descobrir algo novo. Ela não deveria estar voltando para as câmaras do conselho, mas se ela não voltasse, ela não iria encontrar as respostas de que precisava desesperadamente. Ela não se deixaria ser prisioneira aqui por nada.
Kelia se vestiu e quebrou o jejum com mingau e suco. Ela manteve a cabeça baixa, sem olhar para ninguém nem falar com ninguém. Mesmo do interior da fortaleza, ela podia ouvir o estrondo do trovão lá fora. Uma tempestade estava aqui e não iria parar por um tempo. Ela sorriu. O momento perfeito para fazer pesquisas. Todos provavelmente estariam em seus quartos, e o trovão mascararia qualquer ruído que ela pudesse fazer.
Quando ela alcançou as câmaras do conselho, ela fez uma pausa, verificando um corredor e depois outro. Até agora, ela estava limpa. Ela correu para as portas da câmara, então deslizou de joelhos para que pudesse olhar pelo buraco da fechadura. Ela esperou, ficando de pé em sua altura total, caso precisasse sair correndo.
Seu batimento cardíaco ecoou em seus ouvidos. Ainda assim, ninguém apareceu. Mesmo assim, nenhum som.
Ela se ajoelhou e puxou um grampo do cabelo, depois o enfiou no buraco da fechadura. Com dois gestos, ele clicou. Ela se levantou mais uma vez e abriu a porta, entrando e fechando a porta atrás dela.
—Saia.
Kelia se virou para encontrar Daniella em pé no canto da sala, uma jarra de água na mão. Kelia pensou que elas haviam percorrido um longo caminho alguns dias atrás, mas agora, o olhar de Daniella parecia absolutamente enfurecido quando ela fixou os olhos nos dela.
—O que aconteceu? — Kelia perguntou em uma voz suave. Ela olhou ao redor da sala, tentando descobrir por que Daniella estava aqui e por que ela voltou a agir tão cruel.
—Saia, Sombra — disse ela novamente com os dentes cerrados, lembrando Kelia de um cachorro rosnando. —Não pise nesta sala comigo aqui.
—Do que você está falando?
—Não se faça de boba comigo, Kelia, — ela retrucou. —Você está pesquisando o seu pai, não está? É por isso que você está aqui, nas câmaras do conselho, não é? O que mais você poderia querer saber?
Kelia não contaria a Daniella o que estava pesquisando. Por enquanto, Daniella presumiu que estava fazendo uma pesquisa sobre seu pai, que era como Kelia planejava mantê-la. Contanto que a afastasse de Drew Knight.
—Do que você está falando? — Kelia perguntou.
Daniella colocou a jarra de água na mesa, a água espirrando enquanto sua mão tremia. —Wendy Parsons.
—Ok. O que isso tem a ver com meu pai?
—Wendy Parsons, — ela repetiu, seu aperto na alça do jarro tão forte que seus nós dos dedos ficaram brancos. —Você tem alguma ideia de quem ela é?
—Uma bruxa — disse Kelia lentamente. Sua mente estava correndo rapidamente, tentando pensar em onde Daniella iria levar essa conversa e como ela poderia se defender contra isso. —Eu encontrei o nome dela em um livro-razão e...
Daniella soltou a jarra de água e empurrou os ombros para trás, alcançando sua altura máxima enquanto se aproximava assustadoramente de Kelia. Mas Kelia não se intimidou. Ela não achava que deveria estar.
—Esse livro-razão pertence à Sociedade, — disse Daniella, sua voz um sussurro fatal. —São as notas da Sociedade sobre todas as entidades sobrenaturais. Sombras do Mar, bruxas, sereias. Havia outro indicador ao lado do nome dela, ou você ignorou completamente esse fato?
—Por que você está aqui? — Kelia perguntou.
—Você não entenderia. — Ela estalou os nós dos dedos. —Assim como você não entende o que essa chave significa. Até um simplório decifraria seu significado.
—Do que você está falando? — Kelia repetiu. Ela estava começando a ficar frustrada por não entender o que estava acontecendo.
—Uma chave, — disse Daniella. Outro passo mais perto. Um brilho ameaçador. —Havia uma chave ao lado do nome dela. Lembra daquilo?
Kelia pensou por um momento antes de concordar. —Sim.
—Você sabe o que essa chave significa? — Daniella pressionou, sua voz ainda tensa. —Você sabe o que esse símbolo significa?
Kelia balançou a cabeça.
—Depois que você saiu, fiz algumas pesquisas sobre o que você estava fazendo — disse Daniella. —Achei que fossem livros contábeis que rastreavam o sobrenatural em geral, registros coletados pela Sociedade. — Ela jogou o braço para o lado, indicando a estante, e Kelia teve que se conter para não estremecer. —Eu estava errada. Estes foram os registros que a Sociedade criou.
—O que isto quer dizer? — Kelia não estava tentando ser difícil. Ela tinha várias perguntas e respostas insuficientes, e ela não conseguia ter uma conversa civilizada. Ela não conseguia controlar seu tom e estava acostumada a controlar tudo.
—Uma chave, — disse Daniella. Ela flexionou os dedos, olhando para eles, evitando Kelia completamente. —Você é uma tremenda idiota. Não posso acreditar que estou me incomodando com você. Isso significa que a Sociedade mantém a pessoa trancada à chave.
Os olhos de Kelia se arregalaram. —O que significa que Wendy Parsons está aqui. — Kelia bateu em seu queixo. —Eu sabia. Eu sabia. Mas onde? — Ela falou mais para si mesma do que para Daniella. —Claramente, algo que requer uma chave. Em algum lugar escondido...
Daniella bufou. —Nem perto, — ela murmurou. —Você acha que a Sociedade tem apenas um local onde operam?
Esta era uma questão delicada. No que dizia respeito a Kelia, a Sociedade operava em Port George e era isso. No entanto, ela sabia que eles tinham aliados em posições importantes. A Companhia das Índias Orientais criou a Sociedade, o que significava que controlavam a Sociedade. Se Wendy Parsons - e qualquer outra entidade paranormal com uma chave ao lado de seu nome - estivesse sob a custódia da Sociedade, poderia não estar na fortaleza. Poderia ser em outro lugar, em algum lugar de controle da Companhia das Índias Orientais.
Wendy Parsons, uma bruxa. Sob custódia da Sociedade.
Ela balançou a cabeça, mais para si mesma do que para Daniella. Por que Drew Knight precisava saber onde estava uma bruxa? Ele mesmo não sabia disso? Ele não poderia obter essa informação sozinho, ou, pelo menos, de Emma, especialmente se fosse verdade que a própria Emma também era uma bruxa? Talvez ela tivesse contatos ou habilidades que ajudariam a rastrear Wendy.
—O que? — Daniella perguntou, batendo o pé, as mãos em punhos e colocadas nos quadris.
—Nada. — Não havia tom defensivo, nem atitude. Kelia estava muito imersa em pensamentos para se preocupar com o olhar de Daniella.
—Você sabe alguma coisa sobre bruxas, ou você está tão envolvida em seu Sombra do Mar que não percebe que estamos cercados pelo sobrenatural? — Daniella perguntou. Parecia que ela estava tentando insultar Kelia, mas Kelia não entendeu dessa forma.
Kelia piscou uma vez e olhou de volta para Daniella. —Eu não sei por que a Sociedade iria querer ter uma bruxa sob sua custódia. — Ela admitiu.
Daniella baixou a cabeça, sacudindo-a. Estava claro que ela estava frustrada com Kelia.
—Você pode parar com isso? — Kelia perguntou, sua voz baixando então era apenas um sussurro. Ela não podia correr o risco de ninguém ouvir sua conversa ou pegá-la aqui e levá-la para Rycroft. Tudo pelo que ela trabalhou tão arduamente escaparia por entre seus dedos. No entanto, ela estava adquirindo informações adicionais, informações valiosas. Ela não conseguia explicar, mas tinha a sensação de que Daniella ia lhe contar algo importante, a peça final do quebra-cabeça que faria com que todas as outras se encaixassem. —É claro que você sabe algo que eu não sei e, em vez de me contar tudo de uma vez, está insinuando coisas e depois ficando com raiva quando eu não entendo. Pare de jogar este jogo e apenas me diga.
A sala ficou paralisada. Kelia não sabia como explicar a atmosfera, mas mudou. Mudou de alguma forma. Ela olhou ao redor, procurando por algum ouvido que pudesse ou não estar escutando sua conversa.
Ela deveria ter percebido isso antes: Daniella sabia de coisas. Ela sabia das coisas como Kelia sabia das coisas. Kelia não sabia se ela tinha um contato externo que lhe dissesse essas coisas. Havia uma boa chance, se fosse esse o caso, de Daniella alimentá-los com informações privilegiadas. Faria sentido ela saber o que a chave simboliza, que Wendy Parsons era uma bruxa.
—Você está me dizendo que realmente não sabe? — Daniella perguntou, sua voz cheia de dúvidas.
Kelia sentiu suas unhas cravarem na pele macia da palma da mão. Depois de todas as suas relações com Daniella, ela tinha certeza que teria luas crescentes permanentemente embutidas em sua pele.
—Você honestamente acredita que se eu acreditasse, continuaria a falar com você? — Kelia perguntou. —Daniella, por alguma razão desconhecida, você absolutamente me detesta. Eu não fiz nada para você, e você sai do seu caminho para tentar tornar minha vida miserável. Ontem, você agiu civilizadamente comigo. E hoje, você chega e essa civilidade desaparece completamente. Não tenho ideia do que fiz para ofendê-la desde a última vez que conversamos, e não sei o que fiz para ofendê-la antes. Tudo o que sei é que você está dançando em torno de seus motivos por um tempo agora, e em vez de perder nosso tempo, eu agradeceria se você realmente me desse uma resposta em vez de jogar esses jogos.
Danielle olhou para ela, um olhar indecifrável em seu rosto. Ela passou os dedos pelos cachos vermelhos emaranhados. Ao contrário de Kelia, parecia que Daniella não tinha escrúpulos em estar no meio das câmaras do conselho, o confronto escrito em seu rosto como palavras em uma página de um livro.
—Você não aprendeu nada com o diário de seu pai? — Ela perguntou, sua voz um silvo agudo.
Kelia congelou. Como diabos Daniella sabia sobre o diário de seu pai? Isso havia sido dado a ela meses atrás, logo após sua morte. A princípio, ela suspeitou de quem o havia dado a ela, mas então ela percebeu que provavelmente era um Cego. Ela nunca tinha descoberto por que um Cego iria querer ajudá-la e como eles saberiam que seu diário faria o trabalho, mas acabou em seu quarto antes que Rycroft ou qualquer pessoa do conselho o descobrisse.
Um cego.
—Você, — ela disse. —Você me deu o diário.
—Do que você está falando? — Daniella sibilou. Ela parecia confiante em sua rejeição da pergunta de Kelia, mas Kelia viu sua hesitação. Ela a pegou e salvou em suas memórias, para que pudesse se lembrar quando precisasse.
—Eu não sou tão estúpida quanto você me faz parecer, — Kelia disse, seu tom neutro. —Aquele diário não foi entregue a mim imediatamente. Alguém enfiou para mim dentro de outro livro. Apenas a pessoa que fez isso saberia que eu tenho.
Daniella abriu a boca, mas Kelia sentiu que era para instigar mais discussão, então ela continuou antes que Daniella tivesse a chance de falar.
—Mas há mais do que isso também. Você sabe mais do que um Cego comum. E por alguma razão, você tem me ajudado. E agora, por algum motivo, você vai negar? Eu não te entendo. Talvez se eu entendesse, isso me ajudaria a descobrir seu papel em tudo isso.
—Você sabe alguma coisa sobre mim? — Ela perguntou com os dentes cerrados. —Sobre quem eu era antes disso? Antes de vir aqui? E não me refiro a ser uma Cega. Quero dizer, se tornar uma Assassina.
Kelia queria reagir, queria dizer algo, mas achou que seria melhor se não o fizesse. Ela esperaria que Daniella lhe contasse, sem lhe dar motivos para se abster de dizer qualquer coisa.
—Minha mãe era uma bruxa, sua idiota, — Daniella disse. —Meu pai era um homem rico que odiava minha mãe assim que descobriu o que ela era, e ele me odiava tanto quanto a odiava. Ele me mandou aqui, esperando que eu fosse reabilitada.
—Eu pensei que você fosse uma Assassina.
—Eu era, — disse Daniella. —Por insistência de Abigail. Por que você acha que ela foi rebaixada a cega? Abigail não sabia nada sobre mim. Apesar de tudo, ela ainda tinha fé em mim. Mas Rycroft descobriu e... —Ela se interrompeu, seus olhos brilhando. —O que eles fizeram comigo, eu nunca vou te perdoar.
—Eu? — Kelia explodiu. Ela imediatamente olhou ao redor, mas a sala permaneceu intocado. Ninguém podia ouvir seu grito - pelo menos, ela esperava que não. —O que eu poderia ter feito para você? Sou um ano mais jovem e mal sabia quem você era.
—Suponho que seria errado da minha parte culpar a filha pelos pecados do pai dela, — Daniella disse lentamente. Ela não achou graça, nem estava brincando. Tudo o que ela era, pelo que Kelia podia ver, estava furiosa. —Mas todo mundo parece pensar que vou lançar um feitiço sobre eles. Acredite em mim, eu o faria se pudesse.
—Pecados do pai? — Kelia perguntou. —O que você quer dizer com isso?
Daniella deu um passo para trás e se virou. —Não posso segurar sua mão por tudo, Starling, — ela murmurou. —Talvez você precise ler o diário de seu pai e descobrir por si mesma.
Kelia apertou a mandíbula e desviou o olhar. Ela começou a andar. Sua energia estava acumulada e ela precisava tirá-la. Ela precisava de uma saída.
Do que diabos Daniella estava falando? Ela tinha lido o diário de seu pai várias vezes e nenhuma passagem mencionada...
As páginas que faltavam. Havia páginas faltando. Daniella estava se referindo a algo dessas páginas perdidas?
Não.
Não tinha como.
Seu pai não era o homem como os rumores o pintaram. A raiva explodiu mais uma vez.
Kelia caminhou até Daniella e agarrou seu ombro, puxando-a para trás.
—Que diabos... — Daniella começou.
—Você não vai falar do meu pai e se afastar de mim. — A voz de Kelia era baixa e mortal. —Como você ousa ler o diário do meu pai. Os segredos dele não são seus para contar.
—E ainda assim, você é muito estúpida para descobrir seus segredos por si mesma, — Daniella retrucou. Ela agarrou o braço de Kelia e o soltou com um movimento de pulso. —Não me toque.
—Diga-me o que você está insinuando — disse Kelia, os dentes cerrados. —Você parece saber mais sobre meu pai do que eu. Faça algo construtivo pelo menos uma vez e me diga.
—Seu pai é responsável por um programa de reprodução que força bruxas a acasalar-se com as Sombras do Mar e criar monstruosidades. — Ela cuspiu. Ela olhou Kelia de cima a baixo.
—Você é uma maldita mentirosa. — Disse Kelia. Suas palmas estavam úmidas. Seus joelhos tremeram. Sua cabeça ficou quente de raiva, com a emoção correndo direto para sua cabeça com tanta pressa.
—Eu sou? — Ela cruzou os braços sobre o peito e encostou-se nas pilhas. —Você quer dizer que leu o diário inteiro e não consegue descobrir?
—E você quer dizer que leu o diário do meu pai sozinha? — Kelia perguntou. O silêncio nas câmaras do conselho foi alto. Não fez nada para marcar a fúria que fez Kelia tremer. —O que lhe dá o direito?
—Vou usar todos os meios para entender o que aconteceu com minha mãe, — disse Daniella, cruzando os braços. —Em seu diário, seu pai confessa seus crimes.
—Que crimes? Ele não fez tal coisa!
—Releia o diário, Kelia, — Daniella disse. Foi a primeira vez que ela usou o nome verdadeiro de Kelia em vez de algum insulto amargo. —Talvez ele não afirme isso tão obviamente, mas seus crimes estão presentes.
—Se você sabia disso, por que foi legal comigo ontem? Por que me ajudar ainda agora? Suas crenças claramente não são novas. — Isso era o que Kelia não entendia. —Você me ajudou a descobrir quem é Wendy Parsons. Você me ajudou a entender que ela está aqui, provavelmente em algum lugar da Sociedade. E, no entanto, só hoje você está pior do que o seu eu miserável de costume.
Daniella deixou cair os braços ao lado do corpo. —Como eu disse, qualquer meio necessário. Eu não estava sendo legal com você, Sombra. Eu estava usando você. — Ela colocou as mãos nos quadris. —Eu precisava saber o que você sabia. Eu precisava saber por que você estava tão terrivelmente interessada nos livros. Você tem amigos em lugares perigosos, Kelia.
—E agora você tem o que quer de mim? — Kelia perguntou. —Então está tudo bem para você me tratar como um lixo porque está com raiva do suposto envolvimento do meu pai em algum programa de reprodução
—Envolvimento? — Daniella gritou.
Kelia se virou para a porta. Ela não tinha ideia de onde o conselho estava e quanto tempo duraria. Ela não sabia se eles voltariam. Eles precisavam sair. Se elas fossem pegas, seria ruim.
—Nós devemos ir, — Kelia sussurrou. —Continuar esta conversa em outro lugar.
Daniella estendeu a mão e varreu a jarra de água da mesa. A água salpicou ambas as pernas e a jarra retiniu contra o chão.
—Não é conveniente? — Daniella disparou. —Você me implora para falar com você, então quando você não gostar das minhas respostas...
—Shh. Você vai nos fazer ser pegas.
Daniella se aproximou tanto de Kelia que mal havia espaço para respirar entre elas, mas conseguiu colocar a mão no pequeno espaço para cutucar Kelia no peito. —Eu. Não. Dou a mínima, —ela rosnou. —Sua família já roubou de mim tudo que eu sempre gostei.
—Meu pai era um membro do conselho consultivo, — Kelia disse, empurrando a mão de Daniella, mas fazendo questão de não se afastar dela. —Ele saiu em missões. Quando fiquei mais velha, ele deu um passo para trás para que pudesse se concentrar em mim.
—É isso que você diz a si mesma? — Daniella perguntou, inclinando a cabeça para trás para rir. Ela girou para longe de Kelia, ainda sorrindo, embora seu humor parecesse sublinhado com raiva. —Diga-me, você pode dormir à noite usando sua lógica?
—E você - você pode me olhar nos olhos e me dizer que meu pai organizou e criou algo tão covarde quanto um campo de procriação, submetendo mulheres inocentes a serem estupradas por Sombras do Mar? — Ela perguntou com os dentes cerrados. —Eu devo acreditar nisso - sobre algum programa de que ninguém nunca ouviu falar antes?
—Oh, existe, — disse Daniella. —E só porque você não sabe sobre isso, não significa que todos estão tão no escuro quanto você.
—Ele era meu pai. Eu teria descoberto. Isso nem parece com ele!
—Bem, é ele, Sombra. E ele não apenas o criou — ela continuou. —Foi ele quem propôs tal ideia ao conselho em primeiro lugar. Depois que sua mãe foi morta, ele culpou as Sombras e as sereias. Foi pela canção da bruxa do mar que ele se apaixonou, pela canção que ele seguiu. E quando ele percebeu seu erro, era tarde demais para ela. Em sua raiva e amargura, ele criou este programa para punir bruxas, enquanto ao mesmo tempo criava demônios sem alma que ele podia controlar para seus próprios propósitos nefastos, para se vingar daqueles que mataram sua mãe. Mas tudo o que ele estava fazendo era tentar escapar da verdade.
—A verdade? — Kelia repetiu.
—A verdade, — Daniella repetiu. —Que seu pai matou sua mãe.
Antes que Kelia pudesse se conter, ela se lançou sobre Daniella. A cabeça de Daniella bateu contra a prateleira atrás dela, mas Kelia não cedeu. Ela se posicionou em Daniella e continuou a bater em seu rosto até que seus punhos doeram demais que ela foi forçada a parar.
Daniella riu, o sangue escorrendo de sua boca como se ela própria fosse uma Sombra. —Negue o quanto quiser, Kelia, mas é a verdade — disse ela. —As bruxas, bruxas terrestres normais, estão pagando por causa do desejo de vingança de seu pai. Você conhece Emma, não conhece? Você a conhece, assim como eu. Ela me contou tudo ontem à noite. Tudo. Quem quer que você esteja trabalhando - se ainda for Drew Knight - está mentindo para você. Eles só queriam confirmar que Wendy Parsons estava aqui. Você foi usada.
Um soco final nocauteou Daniella. Mas a dor nos nós dos dedos de Kelia não era nada comparada à dor em seu coração.
CAPÍTULO 14
Depois de sua altercação com Daniella, não foi surpresa que sua presença fosse necessária no escritório de Abigail. O que a surpreendeu foi a presença de Rycroft em um escritório tão pequeno. Ele parecia desconfortável, embora estivesse sentado atrás da mesa de Abigail e ela fosse deixada em pé atrás dele.
Um cavalheiro, com certeza.
Ambos tinham carranca em seus rostos. Abigail tinha decepção em seus olhos enquanto Rycroft parecia zangado e divertido ao mesmo tempo. Como isso era possível, Kelia não tinha ideia. Ela se endireitou sob seu olhar pesado, suas costas gritando de dor.
—Srta. Starling — disse Rycroft, inclinando-se contra a mesa. Seus lábios estavam curvados no que parecia um sorriso alegre. —Obrigado por se encontrar comigo e sua atual treinadora hoje. Acho que você tem estado bem desde as inflições nas suas costas.
Quer dizer, as imposições que você me deu, ela pensou consigo mesma.
Ela não queria que Rycroft visse sua fúria e o que ela acabara de descobrir, o que Daniella havia revelado a ela e como Kelia ainda se recusava a acreditar, independentemente do sentido que fizesse. Provavelmente não foi uma ideia inteligente atacar Daniella naquele ponto, mas a Sociedade manchou o bom nome de seu pai e Daniella estava apenas adicionando a ele. Ela ficou feliz quando deu um soco no rosto de Daniella. Ela quase desejou que Drew Knight estivesse lá, para que ele pudesse ver que ela seguia seu conselho e usava as armas com as quais nascera.
—Abigail, aqui, disse que você fez grandes avanços em sua reabilitação, — ele continuou. —Ouvi dizer que ela deu a você uma nova tarefa diária. Você enche bacias de água em vez de secar pratos, correto?
Kelia cerrou a mandíbula e cerrou os dedos em punhos apertados que apoiou nas coxas. Ela não sabia por que Rycroft estava abrindo esta sessão de punição óbvia com um prelúdio sobre o quão longe ela havia chegado. A menos, é claro, que fosse para esfregar em seu rosto que depois de seu momento com Daniella, ela fosse regulamentada de volta para Prostituta de Sangue e nada mais.
No entanto, ela sabia que essa partida de xadrez mortal era algo que ela precisava vencer, ou a verdade seria perdida para ela. Mais do que isso, ela provavelmente seria morta da mesma maneira que Jennifer quase foi. Como seu pai era.
Como tal, ela assentiu.
—Bom, — ele disse, pegando a mão esquerda dos óculos e aparentemente ajustando-a. —Imagine minha surpresa, então, quando Beatrice entrou na biblioteca e encontrou você atacando Daniella. A própria Daniella não é inocente, ela também teve uma conversa e uma punição apropriada foi atribuída. Espero que Abigail providencie isso imediatamente.
—Absolutamente, senhor. — Abigail murmurou, com as mãos atrás das costas, os olhos fixos nos pés.
—Qual foi a punição dela?
Kelia desejou que ela pudesse ter retirado a pergunta, mas ela não pôde. Seu antigo eu estava começando a se libertar e ela precisava ter cuidado, porque deixar esse lado dela sair a colocaria em sérios problemas.
Rycroft ergueu lentamente a sobrancelha e Kelia baixou a cabeça de vergonha. Realmente, o ângulo deu a ela a habilidade de revirar os olhos sem que ele visse.
— Lamento perguntar, senhor — murmurou ela, com o rosto vermelho. —Não é da minha conta.
—Muito bem — disse ele, balançando a cabeça. —Srta. Starling, devo confessar, estou tentando decidir o que preciso fazer para deixar claro para você que não toleramos violência contra outros Assassinos.
Kelia quase bufou, mas conseguiu se conter no último minuto. Ela queria mostrar a ele as marcas em suas costas, lembrando-o da não-violência que ele usou contra ela depois que descobriram que ela estava em conluio com Drew Knight. Certo, eles viram suas ações como traição. Ela e Daniella, no entanto, eram duas mulheres que não podiam se controlar.
—Diga-me, minha querida, em suas próprias palavras, por que você e a Srta. Thompson estavam lutando na câmara do conselho? — Ele perguntou.
Kelia não tinha ideia do que Daniella disse a Rycroft. Ela sabia que não podia ser verdade. As histórias precisavam ser as mesmas e, ainda assim, não era como se elas tivessem tempo para se coordenar, se elas pudessem ser civilizadas o suficiente para fazer tal coisa.
—Nós tivemos um desentendimento — ela disse finalmente, —sobre um menino.
Foi a coisa mais estúpida que ela poderia ter dito, e ela odiava ter que se degradar por causa de coisas frívolas, mas era necessário para manter seu segredo. Até certo ponto, ela estava mantendo o segredo de Daniella também, e Daniella estava mantendo o dela.
—Um... menino. — Rycroft não parecia acreditar nela. Ela não podia culpá-lo, porque era a última coisa que ela lutaria contra alguém, e ainda assim, foi a primeira coisa que veio à sua mente. Ele já pensava que ela era uma garota boba. Talvez ela pudesse continuar a manter consistente sua percepção dela.
Kelia concordou. Ela contorceu o rosto para que não parecesse estar aborrecida consigo mesma e com a desculpa que fora obrigada a oferecer a ele.
—Um menino — disse ela. —Daniella o insultou, e isso me ofendeu.
A afirmação, como seu cerne, ainda era essencialmente verdadeira.
—E isso fez com que você a atacasse? — Rycroft questionou, sem se preocupar em esconder sua dúvida.
Kelia deu de ombros, erguendo a cabeça para olhar para ele. —Sei que minhas transgressões anteriores foram inadequadas — disse ela lentamente. As palavras vieram naturalmente para ela, e ela se perguntou se havia uma pequena parte dela que acreditava nelas. —Ao me envolver em um caso com Drew Knight, fui egoísta e imprudente. Não só me coloquei em perigo, mas também coloquei meus companheiros Assassinos em risco. A totalidade da Sociedade poderia ter sido comprometida por minha causa. Graças à misericórdia que você me mostrou, permitindo-me permanecer aqui, com a Sociedade, como uma Cega, eu vejo o erro em meus caminhos.
Rycroft assentiu. Seus óculos escorregavam pelo nariz curto, mas ele não fez nenhum movimento para colocá-los de volta corretamente. Em vez disso, ele continuou a olhar para Kelia com dúvida. Mesmo assim, Kelia percebeu que ele queria acreditar nela porque ela estava dizendo as palavras certas.
Abigail cruzou os braços sobre o peito. Kelia percebeu que ela estava ficando cansada de ficar em pé e fazer de tudo para não ter que se encostar na parede do fundo.
—Como tal, — Kelia continuou, impulsionada pelo conflito em Rycroft, —Eu estou tentando ser melhor. Eu estou melhor. Mudei minha atração do sombrio e perigoso para o admirável e apropriado. Para ser franca, eu gostava de um menino, Sr. Rycroft. Eu gostava de um Assassino. Depois de minhas transgressões, tenho certeza de que ele nunca sentiria por mim - mesmo um pouco - o mesmo que eu sinto por ele. Mas eu considerei uma coisa positiva que minha atração mudou e que os desejos que eu tinha no passado desapareceram.
—Está tudo bem, Srta. Starling, — Rycroft disse, embora sua voz estivesse hesitante. —Mas não tenho certeza do que essa evolução tem a ver com o problema em questão. Você atacou outra Cega. Ela agrediu você. Você tem os arranhões e hematomas para provar isso, assim como ela.
—Estou tentando dizer que voltei meu foco para os homens que são adequados para eu imaginar o casamento — explicou Kelia. —E o fato de ela dizer algo sobre isso só me irritou. Como se ela estivesse desafiando tudo o que trabalhei tanto para obter. No entanto, foi errado atacá-la e sei que devo aprender a controlar minhas emoções.
Por alguma razão, ela se virou para Abigail, que não conseguia mais se segurar e estava encostada na parede atrás dela, com as mãos atrás das costas como se para dar seu apoio. Seus lábios estavam franzidos em profunda suspeita. Era como se ela pudesse dizer que Kelia estava mentindo. Como, Kelia não tinha a menor ideia. Talvez ela estivesse lendo Abigail errado.
—Adequado? — Rycroft perguntou. Ele empurrou a cadeira para trás, erguendo o queixo para avaliá-la com mais facilidade. —Por favor. Elabore.
O coração de Kelia disparou. Essa foi a parte do discurso em que ele se concentrou? Ela não esperava que ela fosse solicitada a explicar isso.
—Alguém que a Sociedade apoiaria se eu escolhesse o casamento. — Confirmou Kelia.
Os lábios de Rycroft se contraíram. Ele pareceu se divertir com o comentário dela. Seus olhos azuis brilhavam por trás dos óculos, e a ponta do nariz brilhava vermelha como uma maçã. Suas bochechas pressionaram contra o fundo de seus olhos, fazendo com que os cantos se enrugassem. Ele parecia muito divertido com o que ela disse. Ela examinou isso em sua cabeça, mas ela não conseguiu encontrar algo que lhe desse motivos para reagir dessa forma.
—É engraçado você mencionar isso — disse ele, —porque tenho a solução perfeita que beneficiaria a nós dois. Para você, isso permitiria que você cumprisse a maior parte de sua reabilitação. Isso provaria sua lealdade à Sociedade e aos seus companheiros Assassinos. Isso nos ajudaria a descobrir muito sobre as coisas que ainda estamos pesquisando. E isso absolveria qualquer punição que possamos ter atribuído a você por seu comportamento com a Srta. Thompson.
O coração de Kelia bateu forte contra o peito. Foi lento e pontudo, quase doloroso. O que quer que Rycroft tivesse em mente, não seria o que ela queria. Haveria um problema. Suas ofensas não seriam esquecidas tão facilmente.
No entanto, se ela pelo menos não parecesse interessada, isso por si só atrairia mais suspeitas, o que significava que suas verdadeiras ações de pesquisar Wendy Parsons e que relacionamento Drew Knight tinha com Wendy Parsons seriam comprometidas.
—Oh? — Ela tentou parecer agradavelmente interessada, mas mal conseguiu evitar que a voz falhasse. —Parece uma oferta generosa, Trenador Rycroft. Posso ainda me dirigir a você como tal?
—Aceite isso e você pode. — Disse ele com um sorriso encantado.
—Aceitar o quê, exatamente? — Kelia perguntou lentamente. Seus dedos se enterraram profundamente nas dobras de suas saias. Seu calcanhar direito começou a estalar contra o chão, e ela teve que se esforçar para acalmar o nervosismo. A última coisa que ela precisava era que alguém reconhecesse sua ansiedade infiltrando-se em gestos inócuos.
Seus olhos a percorreram. Ela ficou tensa, tentando evitar reagir ao seu olhar surpreendentemente lascivo. Rycroft era cruel e frio, cruel e violento. Mas ele nunca tinha sido impróprio de uma maneira sexual com ela ou qualquer outra pessoa pelo que ela sabia.
—Você é fisicamente capaz — disse ele, finalmente encontrando os olhos dela mais uma vez. —Você é agradável aos olhos. Talvez você pudesse usar mais carne em seus ossos, mas isso pode ser corrigido. A única falha que você tem é essa sua boca. Assim como sua colega de quarto anterior - Jennifer Espinosa. No entanto, de alguma forma, seu prometido não parece se importar. Ela está se preparando para o casamento, você sabe.
Kelia não sabia, mas não ousou dizer muito. Poderia soar argumentativo. Em vez disso, ela olhou para Abigail, que parecia muito mais capaz em disfarçar suas emoções do que Kelia, embora Kelia estivesse trabalhando nisso. Era difícil decifrar o que Abigail estava pensando, se ela aprovava o que quer que Rycroft estava prestes a sugerir. Se ela soubesse o que Rycroft iria sugerir.
—Eu sinto falta dela. — Kelia murmurou antes que ela pudesse se conter.
—Imagino que sim — disse Rycroft. Ele se inclinou e abriu uma gaveta. A mesa era claramente de Abigail, mas ele a tratava como se fosse sua. —Posso garantir que você a encontrará novamente, se concordar com os termos.
Ela não queria nada mais do que arrancar seu rosto com os dentes e se banhar em seu sangue. Ele a estava provocando, fazendo-a esperar até que soubesse que a tinha. Ele era como uma víbora, esperando o momento perfeito para atacar.
—Quais são os seus termos? — Ela perguntou. Sua voz estava tensa. Ela queria ficar indiferente, mas não conseguia disfarçar sua impaciência. Era algo em que ela ainda estava trabalhando.
—Antes que eu lhe diga, — ele disse, —você deve concordar com eles. Os Assassinos não estão cientes de muitas complexidades e detalhes que compõem a Sociedade. Mantemos assim para garantir que nossos Assassinos sejam informados, mas protegidos. — Ele puxou uma pasta da gaveta e colocou-a sobre a mesa. —Eu não vou te dizer algo que você não precisa saber. — Ele olhou para cima. —Como você não demonstrou nada além de um comportamento exemplar como uma Cega, eu esperava que você aproveitasse a chance de fazer parte de algo que apenas aumentaria seu status. Afinal, você confia explicitamente na Sociedade, não é?
Kelia ergueu os olhos dos nós dos dedos machucados.
—Tudo bem — disse ela. Ela não parecia satisfeita com a oportunidade, mas não conseguia forçar seu tom a deixar de ser impaciente. —Concordo. — Ela se virou para Abigail, que estava de cabeça baixa para que as longas mechas caíssem em seu rosto e protegessem seu perfil. Quando ela olhou para Rycroft, ele estava escrevendo algo em um papel. —O que eu concordei?
—Ora, minha querida, — Rycroft disse, seus lábios se curvando em um sorriso alegre, —você acabou de concordar em participar de um de nossos programas mais ilustres. Você vai se voluntariar como participante do nosso programa de criação. Parabéns, Srta. Starling. Seus sonhos de matrimônio estão prestes a se tornar realidade, mas não da maneira que você esperava.
A respiração de Kelia desapareceu. Então, Daniella estava certa. O programa de criação era real. E agora Kelia estava prestes a experimentar em primeira mão.
CAPÍTULO 15
Kelia estava curvada sobre a mesa, examinando o diário do pai em busca de qualquer evidência de que o próprio relato histórico da Sociedade havia sido falsificado, de que seu pai não havia criado e dirigido um programa de reprodução que envolvia os cegos e as Sombra do Mar.
Ela não podia mais negar que existia um programa de reprodução. No mesmo dia que Daniella sugeriu, Rycroft recrutou Kelia para isso. Mas isso não significa que seu pai o criou. E ainda faltavam peças. Se o programa de reprodução tinha a ver com bruxas, por que elas precisariam de Kelia - uma Cega - para participar do programa?
E em que posição?
Seu estômago embrulhou com as possibilidades, e ela dobrou a leitura, tentando abafar esses pensamentos com as palavras do diário de seu pai.
Ela mal conseguiu se concentrar na primeira vez que leu o diário dele, pois estava tão dominada pela perda do pai, e agora estava muito distraída com seu próprio destino para encontrar qualquer resposta que perdeu da primeira vez.
Kelia congelou quando uma presença familiar encheu seu quarto. Drew Knight. Ela se levantou e girou em direção a ele, para longe do diário de seu pai.
Ele estava encharcado quando entrou no meio do quarto dela, estragando o tapete.
—Você está ferida? — Ele perguntou.
—O que te faz dizer isso? — Ela retrucou. Ao ouvir como suas palavras saíram, ela fechou os olhos e respirou fundo. Isso não foi culpa de Drew. Nada disso foi culpa de Drew. —Sinto muito, Drew. Tem sido um longo dia.
—Claramente. — Ele caminhou em sua direção, e ela respirou fundo. —Seu rosto... haverá hematomas ao redor dos olhos. — Ele ficou bem na frente dela e ergueu a mão até que segurou sua bochecha.
Surpreendentemente, ela não vacilou. Ela ficou lá e silenciosamente se deleitou com a sensação de sua mão contra a pele. Seus músculos tensos, mesmo sob seu toque. Ela não temeria isso. Ela ansiava por algo para acalmá-la, algo para parar seu coração acelerado.
—Sim, — ela concordou. Seu polegar traçou suavemente a parte superior de sua bochecha. —Eu imagino que haverá.
—Por quê? — Seus olhos voltaram para os dela. Ele parecia pronto para lutar por ela caso ela comandasse, algo que ela não entendia. Ela não se importava com Daniella e sua altercação. Ela não se importou com os cortes e hematomas em seu rosto.
Seus dedos pareciam estar permanentemente cavando em suas palmas, deixando luas crescentes em sua pele. Seus punhos tremeram de raiva, frustração, impotência.
—Meu pai estava... — Ela balançou a cabeça, incapaz de terminar o pensamento.
—O que? — Drew apertou os lábios. Ele estendeu a mão para segurar sua bochecha, mas baixou a mão ao seu lado. Kelia quase se odiou por isso.
Ela não precisava ser lamentada. Ela precisava de respostas, respostas verdadeiras. Ela simplesmente não sabia se Drew Knight era a pessoa apropriada para perguntar. Se ele soubesse em primeiro lugar.
Ele enrolou uma mecha errante de cabelo atrás da orelha e deixou seu toque demorar. —O que há de errado Kelia? Como posso ajudar?
Ele estava tão perto dela, tudo que ele precisava fazer era se inclinar e tocar os lábios nos dela e eles estariam se beijando.
Ela não deveria estar pensando nessas coisas, não quando ela tinha tantas perguntas que se sentia obrigada a fazer. E ainda, mesmo agora, ela estava exausta com a perspectiva. Antes de ser dispensada da reunião, Rycroft informou que ela tinha uma noite para juntar suas coisas antes de ser transferida para onde este programa de criação iria começar. Ela sabia que era uma armadilha. Ela sabia que Rycroft queria controlá-la ainda mais do que já fazia. Não ajudou o fato de ela estar concluindo com sucesso seu programa de reabilitação.
No entanto, ela tinha um segundo motivo para honrar o acordo ao qual ele a enganou. Por mais que doesse a ideia de que seu pai tinha algo a ver com o programa, ela não pôde deixar de se perguntar. Se Wendy Parsons fosse uma bruxa e se a Sociedade a tivesse em suas garras, ela provavelmente estaria no programa. Kelia poderia ajudar Drew participando desse programa sozinha. Ela seria capaz de encontrá-la pessoalmente. Mais do que isso, ela seria capaz de descobrir mais sobre os motivos de seu pai para iniciar tal programa em primeiro lugar.
Sua única preocupação, na verdade, era manter o controle sobre seu papel no programa. Se ela pudesse, ela queria ajudar as meninas que já estavam lá também.
Enquanto a chuva batia em sua janela com grandes gotas consistentes, uma memória do que Daniella havia dito nas câmaras do conselho puxou sua mente: Quem quer que você esteja trabalhando - se ainda for Drew Knight - esteve mentindo para você.
—Diga-me —disse Kelia, dando um passo para trás. —Meu pai criou um programa de reprodução como retribuição pela morte de minha mãe?
Drew inclinou a cabeça para o lado e Kelia o observou com atenção. Ela não o conhecia bem, mas tinha certeza de que o conhecia o suficiente para ser capaz de ler seus olhos.
—O que você quer dizer? — Ele perguntou lentamente.
Ela não sabia se ele a estava testando para ver o que ela sabia ou se estava genuinamente curioso para saber o que ela queria dizer.
Talvez ela não o conhecesse tão bem quanto pensava.
Ela deu um passo em direção à cama. Ela queria desabar nela e dormir pelas próximas quarenta e oito horas. Ela queria se livrar da responsabilidade que sentia em relação a Wendy Parsons e como seu pai poderia ter se envolvido, queria cortar os laços com a Sombra atrás dela. A vida dela ficou confusa com a dele, como se ela estivesse enredada em sua teia. Mas por mais que odiasse, ela ainda precisava dele.
—Deixe-me começar do início — disse ela. —Você sabe que existe um programa de criação aqui? Onde as Sombras procriam com bruxas? Aqui, dentro da Sociedade?
Seu pomo de adão balançou enquanto ele engolia. —Sim, eu estava ciente disso.
Kelia acenou com a cabeça uma vez, lentamente. Ela mudou seu peso e olhou para seu boudoir. A bacia de água foi enchida com água doce. Ela se perguntou a quem havia sido atribuída a tarefa desta noite, enquanto ela falava com Rycroft.
—Você sabia que meu pai o criou?
—Eu estava ciente de que ele estava no comando — disse ele lentamente, suas palavras cuidadosamente escolhidas, provavelmente como sua comida e suas vítimas. Ele poderia corromper seus olhos, mesmo sem tentar se quisesse. Ele era lindo, mesmo nas sombras. —Eu não sabia que ele era o cérebro por trás da operação, se isso for verdade.
Havia uma pulsação na cabeça de Kelia, entre as sobrancelhas. Ela podia sentir que começava a bater rapidamente, o início de uma dor de cabeça chegando. Ela não sabia por onde começar, não sabia que emoção sentir.
Estendendo a mão, ela agarrou o boudoir à sua frente para se apoiar. Tanta coisa aconteceu nas últimas duas horas; era difícil para ela ficar de pé. Suas costas estavam tensas, como se a dor interna fosse emitida fisicamente.
—Por que você esconderia essas informações de mim? — Ela perguntou, abrindo os olhos para travar nos olhos castanhos dele.
Eles eram lindos, lindos demais para ela olhar sem sentir algo dentro dela se mexer. Foi por isso que ela tentou evitar olhar para eles tão frequentemente quanto podia. Agora, porém, esses sentimentos eram diferentes.
—Não achei que fosse pertinente ao que estávamos fazendo. — Disse ele.
Kelia não tinha certeza, mas jurou que viu a culpa brilhar naqueles olhos. Mas tão rápido quanto refletiu, ela se foi.
—Meu pai...— Seus olhos ardiam de lágrimas. Foi tão difícil chorar quando ele morreu. Ela foi acionada por algo - ela nem conseguia se lembrar agora - mas Drew estava lá para envolvê-la em seus braços, segurá-la com força e nunca a soltar. E agora, ele era o motivo dessas lágrimas. Ele era seu pai. Ela não sabia mais em quem ou no que confiar. —Outra Cega aqui disse que meu pai criou o programa para se vingar de bruxas e Sombras. Ele queria ver se ele poderia criar um monstro, um que ele pudesse controlar. — Ele pegou uma mecha de cabelo e afastou-a do rosto dela. —A garota disse que estava claro em seu diário, mas eu li isso e não consigo encontrar nenhuma menção a nada disso,
Drew estendeu a mão mais uma vez para segurar o rosto dela com a mão. Kelia não queria nada mais do que se inclinar em sua carícia, mas ela recuou.
—Não me toque, — ela retrucou. —Não me lembro de ter dado a você o privilégio de fazer isso, e não pretendo nunca mais querer que você faça isso de novo. Mais uma vez, você mentiu para mim.
—Eu não menti, — Drew apontou, embora sua voz fosse insistente, quase desesperada para que ela entendesse. —Eu escondi algo de você para...
—Para quê? — Ela perguntou. —Para me proteger? O que o faz pensar que tem o direito de oferecer essa assistência? Você não é meu pai nem meu amante. Você não tem direito às decisões que tomo. E, mais do que isso, o que te faz pensar que preciso de proteção? Por que você toma essa decisão? Não deveria ser minha escolha? — Ela soltou o boudoir e se afastou dele para que ele não pudesse estender a mão e tocá-la novamente. —O que eu preciso me proteger é de você.
A chuva ficou mais forte, batendo contra a janela com mais insistência. Na maioria das vezes, isso acalmava seus nervos e permitia que ela reformulasse qualquer pensamento flutuante que se tornasse complicado e opressor. Esta noite, entretanto, não havia nada que a faria se sentir melhor.
Ela olhou para os pés de Drew. Havia uma pequena poça de água que ele trouxe da tempestade. Provas que ele estaria deixando para trás se ela não se secasse quando ele fosse embora. Cada vez que ele entrava em sua vida, ele deixava uma bagunça.
—Quem é Wendy Parsons? — Ela perguntou a ele. —Por que ela é tão importante para você?
Drew demorou um pouco antes de responder. Kelia não tinha certeza se ele estava decidindo confiar nela as informações ou se estava tentando descobrir as palavras certas para dizer. Não que isso importasse. Ela sentiu que ele estava escondendo algo dela.
—Wendy Parsons é minha irmã — disse ele. —Ela é importante para mim porque é a única família que me resta.
—Oh. — A resposta deixou Kelia atordoada a ponto de quase perder de vista o que era importante para ela. Ela se fortaleceu, cruzando os braços. —Outra coisa que você escolheu não me contar? Eu perguntaria se havia mais alguma coisa, mas não acreditaria em você, independentemente do que saísse da sua boca.
Com toda a honestidade, ela nunca se sentiu tão brutal antes. Ela sempre foi decidida e cautelosa, mas não se lembrava de ser fria. Era como se algo tivesse mudado dentro dela. Era como se Drew a tivesse traído sobre algo importante demais para ser ignorado. Ela não iria fingir que ele não a machucou. A dor beliscava sua pele e incendiava seu sangue apenas por estar perto dele. Ela quase desejou que ele fizesse uma refeição dela - cortasse sua garganta com suas presas e a bebesse até secar. Seria menos doloroso do que o que ela sofreu atualmente.
Do jeito que estava, ela queria Drew fora de seu quarto, ela queria que ele fosse embora de Port George completamente. Ela o queria longe dela, onde nem mesmo as memórias poderiam chegar até ela. Onde ele se abstinha até de visitar seus sonhos e fazê-la sentir coisas completamente fora de seu controle.
—Você está com raiva de mim. — Afirmou Drew. Parecia haver uma expressão de confusão em seu rosto esculpido, e Kelia não conseguia entender. Ela não conseguia entender o que era tão difícil para ele entender sobre sua raiva.
—Estou furiosa com você. — Ela retrucou.
Ele estava na frente dela em duas longas passadas, suas mãos segurando suavemente seus braços. Ele a forçou a olhar em seus olhos, para ver o quão sério eles estavam.
—Você deve ter cuidado com seu tom de voz — disse Drew. —Você tomou muito cuidado para garantir que estava de volta às boas graças da Sociedade.
Kelia zombou. Seu corpo inteiro estava rígido, mas ela não se afastou dele.
—Você acha que eu ainda me importo com eles? — Ela perguntou. —Você acha que eu me importo em agradá-los? Eles já têm seus planos para mim. O que eu faço agora não vai me atrapalhar ou me ajudar.
—Do que você está falando? — Sua voz estava tensa.
Ela nunca gostara de jogos, mas havia parte dela que não queria nada mais do que fazê-lo sofrer, prolongar isso.
Não que isso importasse.
Se ele não confiasse nela com informações pertinentes, não havia motivo para prolongar as informações que ele descobriria de qualquer maneira. Ele não se importava o suficiente com ela, não a respeitava o suficiente, para deixá-la saber a verdade: a verdade sobre quem era Wendy Parsons e sua importância para ele, a verdade sobre seu pai e o homem terrível que ele estava se tornando.
—O programa de reprodução. — Sua voz falhou. Talvez ela não estivesse tão bem com sua decisão quanto queria que todos pensassem. —Rycroft me designou para isso.
Ela não achou que fosse possível, mas a cor sumiu do rosto de Drew. Ele sempre foi pálido, mas agora ele parecia doente. Como a morte.
—O que? — Sua voz era aguda, uma agulha em tecido grosso. Seus olhos eram adagas, nunca deixando os dela. Seu queixo estava tenso, mal se movendo mesmo quando ele falava.
—O programa de criação...
—Sim. — Ele retrucou.
Ela assistiu com fascinação admirada quando suas presas extraíram de sua boca e deslizaram sobre seu lábio inferior. Seu coração batia forte contra o peito como alguém preso em uma jaula, implorando para ser solto.
—Eu ouvi isso. Eu ouvi o que você disse. Eu simplesmente não entendo.
—Rycroft disse que, para não me punir depois do meu confronto com Daniella, eu poderia me voluntariar para participar do programa.
—Você não recusou?
Ela olhou para ele. —Você não recusa Ashton Rycroft — disse ela. —Minhas costas têm cicatrizes para provar que ele não aceita rebelião com gentileza.
Ele se encolheu com a menção das cicatrizes nas costas dela. —Eu tenho bálsamo — disse ele, — no navio. — Lentamente, suas presas começaram a se retrair. Foi bom que Kelia as tenha visto, no entanto. Ela precisava do lembrete de que ele não era humano, mas um monstro com pele de humano. —Eu posso pegar para você.
—Não quero ver você de novo — disse ela. Ela olhou pela janela, para a chuva caindo no vidro. —Nunca. — Ela lançou seu olhar para encontrar o dele para mostrar o quão séria estava. —Pare de me ajudar. Pare de me fazer favores. Encontrei Wendy Parsons para você. Ela está aqui. Por favor vá.
—Kelia...
—Não. — Ela apertou a mandíbula. —O uso do meu nome de batismo é apenas para aqueles de quem sou amiga. Não desejo ser mais amigável com você.
Drew abriu a boca antes de fechá-la. Ele deu um passo em sua direção, então caiu para trás.
—Eu irei, — ele concordou. —Eu vou. Mas eu prometo a você, Kelia, vou tirar você do programa de reprodução. Vou tirar você da Sociedade. Eu vou proteger você. Marque-me.
—Não preciso nem desejo sua proteção — disse ela. —A única pessoa de quem posso contar sou eu mesma. — Ela endireitou os ombros para a janela mais uma vez. —Agora vá. E não volte mais.
Desta vez, Drew não hesitou. Ele se foi e, embora fosse isso que ela havia pedido, parte disso doía por ela nunca mais o ver, não com sua transferência para o programa de reprodução.
CAPÍTULO 16
Drew Knight não gostava de sentimentalismos. Ele até se recusava a dizer o nome da irmã só porque não gostava de ser lembrado do quanto havia falhado com ela.
A chuva ensopou sua roupa passada, seu cabelo escuro emaranhado em seu rosto. A maior parte de sua tripulação estava em terra. Amavam qualquer desculpa para voltar a uma vida da qual um dia fizeram parte. Agora, eles estavam do lado de fora, olhando para dentro e ressentidos com toda a vida humana que estava a par de tal presente.
O convés estava lustroso de chuva. Ele tinha que ter cuidado onde estava para não escorregar e cair. Não importava o quão gracioso e equilibrado ele fosse, não importava o quão rápido ele se curasse, esta era uma chuva forte e feroz e ele não queria enfrentar as ramificações de ser descuidado enquanto estava nela. Não haveria prorrogação esta noite, e outros piratas estariam cientes disso, planejariam atacar a qualquer sinal de fraqueza, tornando até mesmo um deslize momentâneo mais perigoso do que seria normalmente.
Ele fechou os olhos, o tamborilar contra a madeira tocando uma música que só se ouvia na natureza. A calmaria suave das ondas, contrastando com a batida violenta da chuva, só aumentava.
O problema era que Drew não conseguia se concentrar na beleza do ambiente. O frio beliscava sua pele - algo que ele quase não sentia mais. Na verdade, ele se sentiu pior ao ouvir o que Kelia concordara em fazer do que qualquer outra coisa.
—Aquela maldita garota, — ele murmurou para si mesmo. —Como ela ousa... — Ele deixou sua voz sumir, não acostumado a pensar alto. A chuva escondia sua voz de qualquer ouvido atento, mas ele tinha certeza de que estava sozinho. Até mesmo Emma estava em terra, entretendo fofocas e conseguindo pistas sobre Wendy.
A raiva não conseguia nem descrever como ele se sentia. Ele deixou seus olhos permanecerem fechados, tornando sua audição aguçada ainda mais clara.
O fato de que ela se permitiria ser levada para um lugar tão vil, e então dispensá-lo assim.
Ela pagou por essa informação. Daniella, quem quer que fosse essa Assassina, tinha causado danos a Kelia. O fato de alguém ousar pôr a mão nela foi o suficiente para despertar sua ira. Ele não se importava se seu agressor era homem ou mulher, humano ou Sombra. Se alguém tocasse em Kelia, havia esse instinto de fazê-los pagar de alguma forma. Foi como uma reação; ele nem mesmo teve que pensar sobre isso.
—Você está mais estoico do que o normal. — Disse uma voz, vindo por trás dele.
—Estou surpreso em vê-lo na chuva, Christopher, — Drew disse com um sorriso sarcástico. —Você não está preocupado sobre como isso afeta seu cabelo?
—Você está com um humor particularmente mordaz. — Uma mecha de seu cabelo loiro escuro caiu em seu rosto. —Visitou a Assassina, então? Oh, eu peço desculpas. Ela não é tecnicamente uma Assassina mais, certo? Ela foi reduzida a uma humana esquecida, servindo a homens e mulheres corruptos enquanto eles promovem a violência contra seres inocentes que nunca pediram para ser transformados.
Drew queria se virar e dar um soco na cara do Infante só por falar sobre ela daquela maneira. Em vez disso, ele agarrou a lateral do navio. Ele precisava concentrar sua raiva e frustração em algo, e se Christopher não tomasse cuidado, Drew não teria problemas em colocar esse foco em Christopher.
—Como eles fizeram isso? — Drew se pegou perguntando. Ele precisava mudar de assunto ou então perderia a paciência. Ele prometeu a si mesmo que deixaria Christopher falar com ele sozinho, mas ele não podia aguentar sem saber mais. —Como a Sociedade transformou você?
Christopher franziu a testa. —Quem disse que foi a Sociedade? Eles desempenharam um papel, certamente, mas fui entregue à Rainha pelos Demônios do Mar por uma grande soma. Ela me transformou, mas, considerando que eu não era você, ela me mandou de volta para a Sociedade. Fui feito para matar Kelia. É só para isso que eu sirvo.
Drew bufou, mas seu coração não estava nisso. Ele não tinha certeza de como se sentia sobre essa resposta. Não foi culpa de Christopher; ele não havia pedido por esta vida. Sua resposta, entretanto, explicou porque ele não era tão bestial quanto as outras Sombras que a Sociedade havia criado.
—Quando foi a última vez que você comeu? — Christopher perguntou, olhando para Drew. —Quando foi a última vez que você fodeu?
—Qual é o seu negócio? — Drew explodiu.
—Descobri que quando minha noiva não comia, ela ficava especialmente zangada — disse ele. —Eu assumi a responsabilidade de garantir que ela sempre fosse alimentada. Achei que você poderia compartilhar personas semelhantes. — Ele deu de ombros, olhando para longe de Drew e para o mar.
—Talvez eu precise me alimentar. — Drew disse depois de um momento.
Ele não gostava de admitir que Christopher pudesse estar certo, mas poderia ser útil aguçar seus sentidos e focar no que ele veio fazer em Port George em primeiro lugar. Certamente não era para encontrar Kelia. Mas ele tinha, e não havia como mudar. A alimentação tiraria sua mente da mulher e esperançosamente o impediria de sentir qualquer coisa mais do que já sentia por ela. Já era demais.
Drew se viu mais perto de Kelia e da Sociedade do que gostaria. No entanto, ele não poderia ser especialmente exigente com sua próxima refeição apenas porque estava chovendo e a maioria da população estaria em suas casas, aconchegando-se perto do fogo, tentando se manter aquecido.
Ele passou pela fortaleza da Sociedade enquanto caminhava em direção ao coração da cidade, onde tavernas e lojas estavam fechando. Ele não resistiu e olhou para cima, onde sabia que todos os dormitórios estavam, se perguntando se Kelia ainda estaria acordada após a discussão acalorada.
A parte mais animalesca dele não queria nada mais do que voltar para o quarto dela, olhar profundamente em seus olhos e beijá-la do jeito que ele queria. Ele queria se alimentar de seu sangue puro, sentir o sangue correr em suas veias. Ele queria prová-la.
Ele estava frustrado por como as coisas terminaram entre eles esta noite. Ele queria explicar, que ela confiasse nele novamente. No entanto, ele não se arrependia de mantê-la longe de saber sobre seu pai. Não era prudente para a parceria inicial, e ele não achava que fosse relevante agora.
Greg Starling tomou uma decisão terrível a ponto de até ele perceber seu erro. Ele foi morto por causa dessa percepção. Pelo menos, esse foi o palpite de Drew.
Ele parou de andar para olhar para a imponente fortaleza negra. Parecia mais sinistra agora na chuva do que em circunstâncias normais. Ele queria se envolver na frustrantemente teimosa Assassina e se alimentar dela. Mas ele sabia que tal coisa nunca aconteceria. Não depois do que acabou de acontecer. Ele não achava que ela conseguiria confiar nele depois de tudo o que tinha acontecido, e ele não podia culpá-la por isso.
Ele balançou a cabeça e rastejou em direção o Scarlett. Ele precisava livrar sua mente da Assassina. Ela estava começando a se tornar uma fraqueza e estava afetando sua tomada de decisão.
O Scarlett era uma taverna que sempre era habitada pelo pior dos piores. Emma gostava de frequentar essa taverna apenas porque seria capaz de ouvir a fofoca mais suculenta de prostitutas com boca grande e bolsos pequenos. O dinheiro podia comprar tudo hoje em dia. Também estava cheio de mulheres em busca de um marido, desesperadas para se sentirem amadas e desejadas. Drew detestava tirar vantagem delas, mas também descobriu que eram as mais dispostas e tendiam a não o reconhecer ou fingiam que não o reconheciam. Ele também tinha a melhor oportunidade de fazê-las esquecer que ele estava lá e, em vez disso, ele colocaria memórias de uma noite romântica e feliz.
Quando ele entrou, algumas mulheres olharam para ele com luxúria. Ele sempre soube que era atraente, e o fato de agora ser uma Sombra do Mar só aumentava sua beleza. Ele gosta de aproveitar sua beleza quando estava com fome e precisava se alimentar. Era mais fácil encantar mulheres que queriam ser encantadas por ele do que forçar uma conversa com uma mulher que queria ficar sozinha.
Ele normalmente levava mais tempo para selecionar parceiras em potencial só porque queria ter certeza de que escolheria a pessoa certa para o momento certo. No entanto, seus sentimentos anteriores conflitavam com a necessidade de se alimentar, e ele se viu envolvido em uma conversa acalorada com uma mulher que tinha cabelos loiros e olhos verdes coloridos. Ele não iria admitir em voz alta, mas ela o lembrava muito de Kelia, e ele se permitiu, apenas por um momento, fingir que sim.
Ela não era tão bonita quanto Kelia, mas ninguém era realmente - pelo menos não em sua mente. A mulher também era muito mais paqueradora do que Kelia jamais seria, muito mais física, muito mais aberta.
Deus, ele sentia falta de Kelia, e fazia apenas algumas horas.
Ele enrolou os dedos em torno de seu cutelo. Ele mantinha com ele, mesmo agora. Ele provavelmente deveria ter devolvido a ela há muito tempo, mas ele racionalizou que ela não teria onde armazená-lo, e se a Sociedade ficasse sabendo do cutelo, ela poderia ser punida pior do que já foi. No entanto, sua presença ao seu lado o tranquilizou, o fez sentir-se contente.
Não se passou nem uma hora antes de ele ter encantado sua vítima, e eles se dirigiram para um quarto. Só porque ele tinha a capacidade de apagar memórias, não significava que queria tirar vantagem de alguém. Ele costumava se desafiar a encontrar mulheres atraídas por ele ao invés de usar suas habilidades para seduzi-las a acreditar que o queriam. Alguns homens Sombras, mesmo aqueles em sua equipe, pensaram que aqueles que resistiram e representaram um desafio maior era mais divertido de tentar. Esses Sombras às vezes esqueciam que quando uma mulher dizia não, significava não. Drew não podia proibir a intimidade, mas o estupro era proibido.
Quando eles chegaram ao quarto pitoresco, a mulher fechou a porta e o conduziu até uma pequena cadeira de madeira em vez da cama próxima. Drew se sentou e ela colocou uma perna de cada lado dele, montando nele como um cavalo.
Não demorou muito para que sua boca estivesse na dele, seu corpo pressionado contra seu peito e colo. Seus seios generosos já estavam à mostra, seus seios libertados de seus limites.
Esse contato não deu a ele nada. Não era nem porque ele era um Sombra e não estava mais vivo. Ele simplesmente não queria fazer isso com ela, e só o fazia porque precisava. Porque ele precisava comer. Ele também esperava que estar dentro de outra mulher, estar envolvido em outra pessoa, fosse o suficiente para esquecer Kelia, mesmo que temporariamente.
Assim que a mulher - ele não sabia o nome dela, embora tivesse certeza de que ela o dissera - festejou seus lábios e pescoço, ela começou a despi-lo. Ele a deixou chupar sua pele, deixou marcas por todo seu corpo. Depois do que pretendia fazer com ela, ele poderia pelo menos concordar com esse adiamento. Eles continuaram a se beijar enquanto se moviam para a cama.
Quando seus corpos se conectaram, ele se perdeu no prazer físico. Suas mãos correram para cima e para baixo em seu corpo, exceto em vez de curvas voluptuosas, ele viu uma figura mais modesta, curvilínea, mas magra, com alguns músculos em seu corpo pequeno. Em vez de um rosto muito maquiado, ele viu um rosto simples, mas muito mais bonito. Em vez de olhos cinzentos, ele viu o mar, uma cor verde colorida que ele ainda não vira em todo o seu século nesta terra. Ele viu sardas em seu nariz, ele viu um queixo forte, ele viu cicatrizes para cima e para baixo em suas costas gloriosas.
Ele viu Kelia, linda e perfeita. Ele a viu ansiar por ele, desejá-lo, do jeito que ele a desejava. Ele a ouviu gemer seu nome, ouviu-a perder o fôlego. Ele sentiu as unhas dela descendo por suas costas e reivindicando-o como seu. Ele viu tudo isso claramente em sua mente, que quando ele finalmente gozou, ele gritou o nome de Kelia.
A mulher gritou e começou a golpeá-lo. Demorou um pouco para ele perceber seu engano quando ela o empurrou. Ele caiu para o lado da cama, olhando para o teto, sem ter certeza de como se deixou ficar tão perdido no momento. Certamente a pobre mulher não desejava ouvir o nome de outra mulher, mas Drew não tinha a intenção de ofendê-la.
Suas presas deslizaram para fora de sua boca dolorosamente enquanto a mulher vestia suas roupas e saía furiosa do quarto.
Uma coisa era certa - ele não se alimentou da maneira que pretendia. Ele mal havia terminado seu orgasmo.
O que diabos ele estava pensando?
Ele olhou ao redor do pequeno quarto, perfeito para um marinheiro viajante. A chuva batia contra a janela. Era muito mais alta e mais insistente aqui do que no quarto de Kelia.
—Maldita mulher. — Ele murmurou para si mesmo.
Ela se arrastou para baixo de sua armadura de proteção como um cupim, derrubando-o por dentro. Ele não sabia como isso tinha acontecido. Ele nem mesmo acreditava que ela pretendia que ele se sentisse assim. Claro que não, pelo jeito que ela disse que não queria absolutamente nada com ele no início da noite.
No entanto, ele não podia ignorar a maneira como Kelia o fazia agir. O fez pensar. O fez sentir. Ele não podia mais negar.
Agora que Drew sabia que se importava com Kelia mais do que com quase qualquer pessoa, ele se deparou com o dilema de descobrir o que fazer a respeito.
CAPÍTULO 17
Kelia não dormiu muito naquela noite. Não era por causa do pavor que crescia dentro dela com a perspectiva de fazer parte de um programa aterrorizante destinado a condenar tanto as bruxas quanto os Sombra do Mar sendo usados como punição contra ela. Não foi nem por causa de sua amargura ao descobrir que seu pai não era o homem que ela pensava que ele era.
Kelia não conseguia dormir por causa de sua raiva de Drew Knight.
O fato de ela ser tão apaixonada a enfureceu ainda mais; ela não deveria estar sentindo tais coisas por Sombras, muito menos por ele.
A chuva batia contra a janela de vidro. Não parecia que iria diminuir tão cedo. Kelia não se importou. Ela se sentia em paz com o clima. Parecia que o céu estava passando por sua própria turbulência, e ela não pôde deixar de se solidarizar.
Ela se mexia e se virava, nunca conseguindo encontrar uma posição confortável o suficiente para cair no sono. Quando ela sentiu seu corpo relaxar, ela foi interrompida por seus pensamentos incessantes, furiosos com Drew Knight sobre como ele escondeu tal informação dela. Ela não deveria ter ficado surpresa. Ele reteve informações sobre a Sociedade, reteve informações sobre Wendy Parsons e quem ela era para ele, e reteve informações sobre seu pai.
Na verdade, não havia muito que ele podia dizer a ela.
Cada vez que ela pensava nisso, seus olhos ardiam com lágrimas e ela tentava piscar antes que caíssem. Ela nem sabia mais por que estava chorando.
A tempestade ainda estava caindo do lado de fora quando o relógio no corredor bateu, indicando que eram seis da manhã. Ela não seria capaz de dizer pela janela de seu quarto. O céu estava sombrio e cinza, quase preto, e a chuva continuava.
Foi difícil para ela se levantar da cama. Seu corpo inteiro gritava de exaustão. Por que ela tinha que ser atingida com a habilidade de dormir agora que ela tinha que acordar, quando ela teve a noite inteira para dormir e não foi capaz?
Ela mudou para um vestido cinza simples e sapatos pretos. Rycroft não a instruiu sobre o que ela poderia levar e o que deveria partir. Como tal, ela decidiu levar pouca bagagem e levaria apenas alguns vestidos e sapatos. Ela não tinha muitas coisas, mas tinha o diário do pai e não sabia o que fazer com ele.
Se ela entregasse para a Sociedade, eles saberiam que ela sabia o que realmente estava acontecendo. Mas levá-lo com ela a colocaria em mais risco. Não havia lugar para ela esconder o livro consigo, e sua bagagem certamente seria verificada antes que ela fosse oficialmente admitida. O único lugar em que ela conseguiu pensar em colocá-lo foi de volta no livro que ela recebeu o diário meses atrás, mas só porque eles permitiram que ela trouxesse aquele livro para cá, não significa que ela teria permissão para levá-lo para o programa de reprodução.
Naquele momento, houve uma batida suave em sua porta. Ela olhou para a porta, se perguntando quem poderia estar lá. Era muito cedo para qualquer um de seus companheiros Assassinos, e normalmente a ligação não era permitida entre os Cegos. Ela rapidamente pegou Moby Dick debaixo do travesseiro e enfiou o diário dentro dele antes de colocar o livro em cima de sua bagagem.
Por favor, deixe isso funcionar.
Ela caminhou até a porta, pegando o xale do guarda-roupa e colocando-o nos ombros ao se aproximar. Quando ela abriu a porta, Abigail estava no corredor, já vestida com um vestido preto e branco, seu cabelo puxado para trás com uma fita branca.
—Você fez as malas? — Sua voz estava tensa.
—Achei que tinha mais uma hora antes de chegar à praça. — Respondeu ela, voltando-se para o quarto e suas coisas. Ela não convidou Abigail para entrar, mas também não fechou a porta.
Se Kelia estava sendo honesta, ela não tinha certeza de como se sentia sobre Abigail. Houve momentos em que Kelia sentiu como se Abigail a entendesse, compreendesse o ridículo da Sociedade, como eles eram injustos. Afinal, ela era uma Cega. Ela tinha que ter feito algo para ser despojada de ser uma Caçadora.
—Eu não estou aqui para comentar sobre seu atraso. — Abigail murmurou.
As botas de Abigail prenderam-se no azulejo, hesitante em entrar. A porta se fechou e Kelia se virou, surpresa ao encontrar Abigail endireitando todas as rugas em seu vestido. Kelia achou que não havia nenhum presente, mas isso não impediu Abigail de tentar.
—Então por que você está aqui? — Kelia perguntou. Ela sabia que estava sendo ousada. Ela sabia que estava sendo rude. Ela não se importou de qualquer maneira.
Ela ruminou longa e profundamente durante a noite. Sua raiva por Drew Knight persistia, certamente, mas havia mais do que isso. Ela percebeu que agora não valia absolutamente nada para este lugar. Ela não era uma Assassina; ela nem era mais uma Cega. Se suas piores suposições fossem verdadeiras, ela era um pedaço de propriedade, um animal, a procriar com o que a Sociedade considerava os seres mais vis desta terra.
Ela não se importava com o que dissesse ou fizesse, não se importava se isso a colocaria em apuros ou se ofendesse alguém. Ela estava cansada de observar seus movimentos, de segurar o rosto com um olhar frio de indiferença quando tudo que ela queria fazer era reagir. Se ela não podia se redimir, se não havia outra maneira de restabelecer seus privilégios de Assassina, por que tentar? Por que ser algo para quem não a queria?
Kelia puxou a manga de seu vestido. Ela desejou que ela pudesse simplesmente fugir. Mas ela ainda precisava saber por que seu pai foi morto. Mais do que isso, independentemente de sua frustração com Drew, ela se sentia responsável por Wendy e todas as outras Assassinas presas lá. Seu pai criou este lugar. Talvez houvesse alguma maneira de ela ajudá-las. Talvez houvesse alguma maneira de ela ajudar Wendy e redimir seu pai, pelo menos um pouco.
Abigail abriu a boca. Ela não passou pelo boudoir do quarto. Kelia não sabia se era porque Abigail não tinha sido oficialmente convidada ou se havia algo mais que a impedia de fechar a distância. Abigail era tipicamente forte e segura. Apesar do mesmo fogo em seus olhos escuros, sua postura era fraca. Tímida.
—Bem? — Kelia persistiu, caminhando até seu guarda-roupa e abrindo as portas. Ela estava quase terminando de empacotar tudo. Uma pequena caixa estava em sua cama, cheia de coisas que ela pretendia levar.
Abigail brincou com os dedos antes de desviar o olhar com um suspiro exasperado. Quase parecia que ela não sabia se deveria contar a Kelia o que quer que estivesse em sua mente. Kelia não se importava de um jeito ou de outro, e ela desejou ter os últimos minutos de liberdade para si mesma antes de ser condenada à procriação.
—Há algo que você deve saber sobre o programa de reprodução para o qual Rycroft está enviando. — Abigail disse, olhando para a porta, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse estar ouvindo do outro lado.
—Eu já sei que meu pai foi a pessoa que criou e implementou o programa — disse Kelia, sua voz cheia de frustração. —O que mais você poderia ter a dizer sobre isso?
Abigail apertou o peito com a mão. Ela não poderia dizer se Abigail foi sincera em sua reação ou se ela estava fingindo. De qualquer forma, Kelia não ficou impressionada. Ela se voltou para as roupas em sua cama e começou a dobrá-las.
—Eu, — Abigail disse, deslizando as mãos pelos lados. —Eu não sabia disso.
Kelia baixou o olhar e começou a mexer no material de sua saia. Provavelmente havia muitas coisas que Abigail não sabia.
—O que você quer? — Kelia perguntou.
—Por que você tem um tom? — Abigail perguntou, dando um passo em direção a Kelia. —Você optou por participar do programa. Você poderia ter dito não.
Kelia bufou. —Estou amarga — disse ela. —Estou amarga e ressentida. Todos esses meses eu fui uma Cega, mordendo minha língua, controlando minha raiva, mascarando meus sentimentos, só para poder descobrir por que alguém da Sociedade iria querer matar meu pai. E agora, descobri que ele criou um programa tão vil, tão odioso, que não sei por que ele não foi morto antes.
Abigail desviou o olhar, seu rosto cheio de vergonha. —Ele te amava muito, Kelia. — Ela murmurou.
—Você não precisa me dizer isso. — Kelia parou de arrumar o quarto e fechou os dedos em punhos, tentando controlar sua raiva. Seus punhos tremiam com uma variedade de emoções, e nem mesmo cravar as unhas nas palmas das mãos poderia impedir. —Meu pai me amava com certeza, mas isso não o torna uma boa pessoa. O amor por sua filha não apaga seus crimes perversos. — Ela fez uma careta. —E quem é você para me dizer uma coisa dessas?
—Seu pai confiou em mim, — Abigail murmurou. —Nós... eu...— Ela se virou, caminhando até a janela. —Eu estava apaixonada por seu pai, mas ele ainda estava comprometido com sua mãe. Com você. Eu não poderia culpá-lo em seus sentimentos. Ele sempre foi claro onde estávamos, ele e eu. — Ela olhou por cima do ombro para Kelia e deu um sorriso aguado. —Acho que você recebeu o diário dele?
Kelia olhou para sua cama. O livro ainda estava em cima de sua bagagem. Ela ainda não tinha certeza se deveria levar o livro com ela ou deixá-lo aqui.
—Foi você? — Ela perguntou lentamente.
Abigail assentiu, pressionando os lábios. —Não diretamente — disse ela. —Mas, após minha promoção, recebi a responsabilidade de atribuir aos Cegos suas tarefas diárias. Como tal, instruí Daniella a levá-lo para seus aposentos antes que os treinadores pudessem invadir o quarto e se livrar das evidências contundentes.
—Daniella leu. — Disse Kelia.
Outro aceno de cabeça. —Ela fez. O que estava bom. Não havia nada terrivelmente revelador no diário.
—Deve ter havido. Ela revelou essas coisas ontem, e foi aí que trocamos golpes.
—Daniella sabe de coisas, — Abigail disse. —É em parte por isso que ela é e sempre será uma cega. Talvez ela tenha reagido a algo nas páginas que faltam no diário de seu pai. Ela leu o diário antes que eu as arrancasse. Na verdade, sua reação é o motivo pelo qual peguei as páginas em primeiro lugar. Foi por isso que me preocupei como você poderia reagir, por que eu as mantive longe de você todo esse tempo.
A cabeça de Kelia estalou para Abigail. Seu corpo inteiro congelou. Ela não sabia como respirar - algo que ela era totalmente capaz no segundo em que foi trazida a este mundo. E agora, neste momento, algo tão natural como respirar havia desaparecido completamente de suas habilidades.
Deve ter sido por isso que Daniella presumiu que sabia mais sobre seu pai do que ela mesma. Talvez ela não tenha percebido que Kelia tinha recebido o diário depois do fato. Ou talvez ela presumisse que Kelia simplesmente sabia de todas essas coisas - como se seu pai tivesse contado a ela, e de alguma forma ela soubesse o que estava acontecendo.
Mas isso não significava que Daniella estava certa sobre o que disse - não é? Até Kelia ler as páginas por si mesma, ela se recusava a julgar seu pai dessa forma.
Antes que Kelia pudesse responder, Abigail continuou: —Seu pai manteve o diário para o caso...
—Caso o quê?
—Você sabe por que, — Abigail disse, um toque de desejo em sua voz suave. Ela olhou para o diário. Kelia quase sentiu como se estivesse testemunhando algo que não deveria, colocando-se entre dois amantes quando eles se comunicavam apenas com os olhos. Então, balançando a cabeça como se tivesse sido forçada a sair de um transe, Abigail redirecionou sua atenção para Kelia. —A Sociedade é construída sobre mentiras apresentadas como absolutas. Somos ensinados a nunca questionar, a ver através de uma realidade cuidadosamente elaborada. Seu pai elaborou sua própria realidade naquele diário. Ele registrou o máximo que pôde da verdade.
—E você removeu páginas. — Kelia lançou a acusação como uma adaga.
A chuva suave da manhã bateu com mais força na janela.
—Para proteger você. — Os dedos de Abigail voltaram a mexer na saia de seu vestido. —Você não precisava saber o que ele fez. Na verdade, ele fez isso por sua mãe. Por você.
—E agora veja o que sua criação pode fazer comigo—. Kelia não pôde deixar de rir do absurdo absoluto de tudo isso. Foi um gesto estrangeiro em uma atmosfera sombria. Seu sorriso não trouxe sol. Trouxe exaustão, trouxe ironia, trouxe tudo menos alegria. Ela limpou a voz. —Como Daniella as encontrou? As páginas que faltam?
—Ela veio ao meu escritório para entregar algo e bisbilhotou, como ela costuma fazer, — Abigail disse em um rosnado. —Ela tem habilidades especiais que a ajudam a encontrar coisas que ela nem sabe que realmente existem.
Kelia continuou a arrumar suas roupas até que sua mala estivesse cheia. Ela olhou para o diário. Finalmente, ela pegou o livro e caminhou até Abigail.
—Talvez você deva pegá-lo. — Disse ela, entregando o diário a sua treinadora.
A boca de Abigail ficou frouxa. Ao estender a mão, Kelia teve certeza de que pegaria o diário dela, mas no último momento, ela largou a mão e a chicoteou nas costas.
—Eu não poderia — disse ela. Seus olhos estavam cheios de tristeza e... algo mais. Algo que Kelia não conseguia decifrar. —O diário foi feito para você. Cada pedaço disso. Mesmo estes. — Ela colocou a mão no bolso do vestido e tirou duas folhas de papel.
—E o que devo fazer com isso? — Kelia perguntou. Ela deixou cair o braço que segurava o diário ao lado do corpo e estendeu a mão para pegar os papéis. Eles pareciam nítidos e delicados, rígidos com segredos. Ela teve que conter sua empolgação em segurá-los nas mãos. Ela não queria que Abigail visse o quanto ela queria isso.
—Leia-os, — Abigail disse, seu foco ainda no pergaminho. —Ou não. Mas eles são seus. Eles pertenciam ao seu pai. Eram palavras dele e de ninguém mais.
Kelia deslizou as páginas que faltavam entre a capa de couro gasta do diário. —O que isto quer dizer?
—Isso significa que todos aqui têm sua própria realidade do que é a verdade — disse Abigail. —Seu pai escreveu sua verdade. Tenho outra e tenho certeza de que o próprio Rycroft tem outra. A verdade não é algo tangível. Não existe verdade absoluta. Mas isso não torna a verdade de ninguém menos verdadeira. — Ela respirou fundo. Sua voz estava mais suave do que o vento que começou a soprar lá fora. —É minha opinião que você deve ler suas próprias palavras e compreender sua própria verdade. Você não precisa concordar com isso, mas pelo menos ele mesmo está lhe dizendo isso. Em suas próprias palavras.
Kelia deu um passo à frente. —Você sabia todo esse tempo. Por que me dizer agora? Por que roubar essas páginas em primeiro lugar se elas foram feitas para mim?
—Eu pensei que estava protegendo você. — Abigail desviou o olhar. —Mas agora... agora eu não sei se vou ver você de novo, e eu sabia que não poderia viver o resto de meus dias sem honrar os desejos de morte de seu pai. Talvez então, eu - você - possa finalmente me livrar do fardo que ele deixou para você. O fardo de nunca saber verdadeiramente a verdade.
Kelia não sabia o que dizer. Talvez ajudasse a descobrir por que ele foi morto. Ela não diria isso a Abigail, entretanto. Quase parecia que havia mais na história, mais do que o que Abigail estava revelando.
—Obrigada. — Disse Kelia.
Os olhos de Abigail se encheram de tristeza, Kelia desviou o olhar. Ela não precisava ser atacada com tanta tristeza quando estava em guerra com suas próprias emoções distintas, girando dentro dela como uma tempestade de vento.
—Por favor, — Abigail disse, sua voz oscilando à beira do desespero. —Não me agradeça. Seu pai gostaria que você o tivesse.
Com essas palavras, ela deu passos largos e quase bateu a porta atrás dela. Talvez o vento tenha dado um empurrão extra.
Kelia levantou o diário. Ela quase foi obrigada a deixá-lo para trás, assim como queria deixar seu pai. Mas ela tinha a sensação de que não estaria livre de seu fantasma até que ela descobrisse o fundo da verdade - qualquer que fosse a verdade.
CAPÍTULO 18
Drew Knight nunca se sentiu mais envergonhado em toda a sua vida. Ele tinha feito amor com inúmeras mulheres. Estar vivo por um século faria isso com qualquer um, menos com uma bela besta com energia invejosa e uma predileção por trazer prazer a si mesmo e às mulheres que encontrava. Ele podia não se lembrar de rostos ou nomes, ele poderia não se lembrar do prazer ou das consequências, mas ele sabia, sem dúvida, ele nunca havia chamado sua amante de outro nome além do dela.
O fato de ele ter gritado o nome de Kelia durante seu clímax foi o suficiente para fazer seu sangue ferver e seu coração - seu coração morto - tremer de frustração.
Ele nem tinha se alimentado, então, quando voltou ao navio, estava com fome e zangado, e qualquer um que ousasse tentá-lo seria feito em pedaços. Ele ainda estava considerando se tal declaração era literal ou figurativa.
Ele não encontrou consolo em ir dormir e ainda era muito cedo para esperar que algum de seus tripulantes voltasse. Drew estava sozinho apenas com seus pensamentos, e aquele não era o lugar que ele queria estar.
Ele decidiu virar as costas para a cidade, para a fortaleza e para Kelia e, em vez disso, focar no mar. A chuva criava ondulações na água suave, o céu escuro e nublado pintando o oceano com um tom feio de preto. As sereias estariam se retirando para seu círculo do inferno - elas não poderiam atrair marinheiros para a morte com o som delicado da chuva.
Ele apertou a mandíbula só de pensar em sereias. Elas eram o pior tipo de bruxos, condenadas ao mar por sua Rainha.
Ele cuspiu na lateral do navio. Infelizmente, ele não conseguiu ver atingir a água com satisfação. Em vez disso, ele teria que estar bem com o conhecimento que tinha.
A rainha vampira, a primeira de sua espécie, criou os demônios do mar para controlar os mares. Se ele não a odiasse com cada fibra de seu ser, ele poderia ter dado crédito a ela por seu brilho. A mulher era inteligente e sinistra, egoísta e sensual. Ela era toda má e miserável, escondida atrás de uma máscara de perfeição. Ela era linda, linda demais para ser considerada real, e era assim que atraía suas próprias vítimas.
Drew entendeu que ele tinha um tipo de beleza semelhante. Foi por isso que ela foi atraída por ele em primeiro lugar. Ser transformado apenas realçou sua beleza, tornando-o mais atraente para vítimas em potencial.
Ele zombou de seu reflexo embaçado no oceano. Ao contrário da maioria dos rumores sobre Sombras do Mar, ele podia ver seu reflexo. Ele tendia a evitar a coisa, agora que ele era um monstro.
No entanto, ele descobriu que quanto mais tempo passava com Kelia, mas ele encontrava oportunidade de se redimir de todos os seus atos perversos.
Ela era sua graça salvadora, por assim dizer, e ele se agarrou a essa noção da maneira que gostaria de poder se agarrar a ela.
—Acho que você ouviu a notícia? — Emma perguntou, aparecendo do nada. Talvez ela tivesse viajado das docas para o navio dele de barco, como sempre fazia, e ele não percebeu porque estava muito absorto em seus próprios pensamentos.
—Por que você está aqui? — Drew não desviou os olhos da superfície do oceano. —Você odeia a chuva.
—Você sabe porquê. — Sua voz era suave, nada mais do que palavras sussurradas ao vento e quase afogadas pelo som da chuva.
Christopher subiu ao convés. —Você não ia se alimentar, Knight? — Ele olhou para Emma. —Não tenho certeza do que você faz e não acho que quero perguntar, mesmo se tiver minhas suspeitas.
—O que você está fazendo aqui? — Drew perguntou, voltando sua frustração para Christopher. —Eu pensei que você fosse se alimentar.
—Eu fiz — disse Christopher com um encolher de ombros. —Droga, não esperava.
—Você se alimentou de um animal? — Emma perguntou.
Christopher se virou para Emma, com as mãos nos quadris. —Só porque devo me alimentar de sangue humano não significa que eu queira — disse ele. —Eu não pedi para ser essa coisa. Quando aquela bruxa demoníaca do mar me trouxe até aquela vadia, eu não me lembro de ter sido questionado de uma forma ou de outra.
—Eu pensei que a bruxa do mar tentou salvá-lo?
Emma veio ao lado de Drew. —Podemos levar essa conversa para baixo do convés? — Ela perguntou entre os dentes. —Eu gostaria de ter uma discussão séria fora da chuva.
Ninguém discordou. Eles desceram a escada de madeira e encontraram o caminho para a cozinha. O navio foi construído por artesãos especializados. Nenhuma chuva vazava pelo convés, evitando que qualquer dano desnecessário de água ocorresse. Ele sabia que teria que consertar seu navio devido ao fato de que ele o possuía nas últimas duas décadas.
A cozinha era um grande cômodo com mesas e bancos de madeira, todos pregados no chão. Não havia janelas. Este lugar era para comer e comer sozinho. Apesar das Sombras precisarem de sangue para permanecer vivas, eles ainda tinham a capacidade de consumir, digerir e obter prazer da comida. Drew até contratou um chef que cozinhava uma refeição por dia - uma refeição matinal para a tripulação se acalmar, pouco antes de descansar durante o dia.
Christopher se deixou cair, uma grande poça sob seu corpo atarracado. Emma tinha os braços em volta do corpo, teimosa demais para mudar se ninguém, mas o fizesse. Drew se sentou à cabeceira da mesa, onde normalmente se sentava durante as refeições matinais. Ele chutou as botas molhadas na mesa, endireitando as pernas e recostando-se.
—Então, — Christopher falou lentamente, colocando o tornozelo no joelho e recostando-se na cadeira. —O que é? De que notícias você fala? — Ele dirigiu seu olhar para Emma, embora a própria pergunta parecesse ser feita para que Drew ou Emma respondessem.
Drew se levantou e caminhou pela cozinha, o queixo colado ao peito e as mãos atrás das costas.
Emma pigarreou. —Parece que nossa Assassina se meteu em uma situação difícil.
—Ofereceu-se como voluntária na situação. — Drew rosnou antes que pudesse se conter. Ele evitou uma poça bastante grande que Christopher deixou e se virou, quase escorregando devido ao seu foco intenso. E raiva.
Ele não sabia por que estava com raiva. Tudo o que ele podia ver era Kelia, voltando de Rycroft com a notícia de que ela faria parte do programa de reprodução. Um programa que seu pai criou. Um programa em que ela seria estuprada repetidamente por Sombras do Mar, transformada pelas mãos da Sociedade para algum propósito nefasto. Seus lábios se curvaram em um sorriso de escárnio e seus olhos se encheram de mágoa e traição - não com seu pai e o fato de que sua imagem dele estava agora manchada, mas com o próprio Drew, porque ele a negou.
—Situação? — Christopher esfregou as mãos. —Isso não parece tão sombrio quanto você está fazendo parecer.
—O programa de reprodução...— Emma agarrou seu cabelo molhado, em seguida, torceu-o para que uma pequena poça d'água caísse no chão de madeira. —Ela se ofereceu para isso. Drew não está satisfeito.
—Você está falando sério? — ele perguntou. —Esta é uma notícia brilhante.
—O que? — A voz de Drew estava tão tensa, o som saiu agudo e preciso, como se fosse sua própria palavra. Ele se forçou a sentar-se novamente.
Christopher esticou as pernas na frente dele. —Brilhante, — ele repetiu. —Ela pode encontrar Wendy lá.
Drew bateu com as mãos na madeira da mesa, levantando-se novamente. O som reverberou na madeira como um trovão.
—É só com isso que você está preocupado? — Saliva voou de sua boca e imediatamente se desintegrou na madeira onde pousou. —Sua prometida?
—Eu naveguei através de um oceano para fazer uma última tarefa para a maldita Companhia das Índias Orientais, — Christopher disse lentamente, olhando para Drew por cima da mesa. Ele também se levantou, como se fosse enfrentar o desafio silencioso de Drew. Ele era mais alto que Drew e tinha quase a mesma quantidade de músculos. Mesmo assim, Drew tinha muito mais poder do que Christopher jamais possuiria. —Porque uma vez que eu fizesse essa maldita tarefa, eu estaria livre para me casar com o amor da minha vida. Wendy é sua irmã. Não entendo por que você não está em êxtase com a perspectiva de finalmente tê-la de volta.
—Claro que estou em êxtase. — Drew disse, cada palavra enunciada com firmeza, como afinar as cordas de um violão. —Mas eu não gosto de sacrificar uma vida para alcançar outra.
—Wendy é sua irmã. Quem se importa com quem mais está em risco quando isso significa que sua Assassina pode libertá-la...
—E como ela deve fazer isso, hmm? — Drew caminhou em direção a Christopher, cada passo fazendo um guincho alto no chão. —Wendy é uma bruxa e nem mesmo ela pode usar seus próprios poderes para se libertar. Como você espera que um humano faça tal coisa?
—Há mais nisso, não é? — Christopher ficou bem na frente de Drew, olhando para ele. —O Drew Knight de que ouvi falar não se importaria nem um pouco com a vida humana. Ele pega o que quer. Ele não dá nada em troca. Ele não se desculpa por quem e o que ele é. E se alguém o faz mal, ele busca vingança sem pestanejar.
—O Drew Knight de que você ouviu falar não é nada mais do que um exagero — disse Drew. —Uma história de ninar para alertar as crianças.
—Você está me dizendo que não gostava de festejar com sangue e arrancar carne?
—Você não sabe nada sobre mim, — Drew rosnou. —Você, o mesmo homem que se recusa a se alimentar de carne humana. — Ele cuspiu em desgosto. —Minha irmã te ama. Mas isso não significa que tenho que gostar de você. E se não desejo que Kelia se encontre na situação em que se encontra, não só pelo risco que isso representa para ela, mas também para a minha irmã, é meu direito. Você não precisa concordar com meus sentimentos, mas quem é você para questioná-los?
Drew tocou o cabo da lâmina de Kelia, pendurada em seu quadril esquerdo. Ele gostava de sentir sua presença, mesmo sabendo que não precisava disso. Isso o fez sentir como se Kelia estivesse aqui.
O vento açoitou as velas, deslizando contra o pano. A navio gemeu, sendo empurrada pela força dos elementos.
—Você está apaixonado por ela.
Emma saltou como um relâmpago contra o céu.
—Calma. — Ela disse.
—Por quê? — Christopher deu uma risadinha. —É a verdade, não é? Independentemente de sua alegação de ser um Sombra do Mar inocente e compassivo, eu conheço você. Talvez eu não tenha tido experiência pessoal com você até agora, mas eu o conheço pelos olhos de sua irmã. Você é um monstro. Um bom, mas ainda um monstro. Você fode e mata e não pede desculpas por isso. Você assusta crianças. Você assusta os adultos. E, no entanto, esta mulher, com apenas dezoito anos, reduz você a uma poça como a que está sob meus pés.
Não houve desgosto ou julgamento. Drew não tinha certeza do que era, mas quase parecia compreensão.
—Eu não sabia que Drew Knight poderia amar.
Drew cerrou os dentes, esperando que isso mantivesse suas presas afastadas. Ele estava com fome e isso fritou sua paciência.
—Você precisa comer. — Emma disse, como se lesse sua mente. E talvez, como bruxa, ela pudesse.
—Seu contato do lado de dentro, — Drew disse a Emma. —Ela te disse mais alguma coisa? Nada mesmo? Quando ela vai sair para o programa?
—Falei com ela algumas horas atrás, — Emma murmurou. —Ela está supostamente incapacitada porque ela e Kelia entraram em uma briga física...
A cabeça de Drew estalou para Emma. Por um momento, ele se esqueceu de Christopher, sobre o que Christopher supôs.
—Seu contato foi a pessoa que lutou fisicamente contra Kelia? — Ele perguntou.
Drew esperou. Emma não disse nada.
Drew se afastou de Christopher e pisou forte no longo espaço da cozinha. Ele passou os dedos pelos cabelos, puxando as raízes como se fossem ervas daninhas. Ele precisava de dor física para distraí-lo da raiva atualmente navegando por sua corrente sanguínea.
—Eu a tenho treinado nas artes místicas, — Emma explicou. —Eu a escolhi como minha protegida e ela superou as expectativas. Ela obtém suas habilidades da linhagem de sua mãe - normalmente é mais forte quando é a linhagem de matrona.
—O que faz você pensar que me importo com ela? — Drew perguntou.
—Considerando que ela nos forneceu informações valiosas sobre Kelia, incluindo onde era seu novo quarto e como ela estava agora como cega, eu diria que é melhor você se importar muito, — Emma disse secamente. Ela deu um passo em direção a Drew, uma expressão em seu rosto que não deixou espaço para discussão. —Você precisa se alimentar. Eu sei com certeza que você estava no Scarlett com uma prostituta e a levou para cima. Mas nada aconteceu. Ou algo aconteceu, mas algo interrompeu. Algo aconteceu.
Drew grunhiu. —Não é da sua conta.
—É quando você está atacando todo mundo, pronto para festejar com seus aliados. — Disse Emma desafiadoramente.
Se ele não a respeitasse tanto, Drew teria rasgado sua garganta por falar com ele daquela maneira.
—No momento, Kelia não está correndo o tipo de perigo que exige uma escolha entre a vida ou a morte — disse Emma. Drew abriu a boca para interromper, mas ela continuou. —No entanto, ela será violada violentamente. Ela será quebrada e espancada, alimentada, como um saco de carne fornecendo apenas o essencial da vida: reprodução e sustento.
Drew rosnou. Um forte estrondo de trovão sacudiu o navio.
—Algo deve ser feito. — Emma voltou sua atenção para Christopher. —Temos tentado alcançar Wendy desde que descobrimos que ela foi levada pela Sociedade. Não sabemos em que estado ela estará se estiver, de fato, no programa de reprodução. É benéfico que Kelia esteja lá pelo bem de Wendy. No entanto, meu contato não tem acesso e não poderemos ajudar Kelia a menos que desejemos revelar nossa localização. Isso nos colocaria em risco, assim como Wendy e Kelia.
—Não vamos deixá-las —disse Drew. —Nós saímos uma vez e... — Sua voz falhou, imagens da fita carmesim escorrendo das costas de Kelia piscando em sua mente.
A janela iluminou-se com um raio antes de se transformar em carvão mais uma vez.
—Nós as resgataremos. — Ele se virou para Emma. —Vou tirar Kelia dali, desta vez. Quer ela queira ou não.
CAPÍTULO 19
A transferência foi imediata. Quase imediatamente depois que Abigail fugiu, homens que Kelia nunca tinha visto antes pegaram sua bagagem e um segundo apareceu para conduzi-la para fora.
Kelia teve o cuidado de evitar pisar na terra ainda úmida da tempestade noturna. Ela só tinha um par de calçados e não queria sujá-los. Um arrepio percorreu sua roupa fina e ela suprimiu um estremecimento.
As nuvens estavam altas, cinza escuro, uma ameaça silenciosa do que estava por vir. Outra tempestade. Eles passaram por estábulos de madeira onde normalmente os cavalos eram mantidos. A madeira estava desbotada e velha, com pregos enferrujados saindo em direções estranhas.
De onde Kelia caminhava sob o toldo de concreto, os estábulos não tinham animais. Eram seis, três de cada lado, com um pequeno colchão. Os colchões estavam inchados com a água da chuva e o cheiro de mofo flutuava no ar. O rosnado vicioso dos cães perfurou o silêncio enquanto eles rondavam fora do perímetro da terra - uma ameaça para qualquer um que estivesse pensando em escapar. Homens, Kelia não tinha medo. Cães de ataque treinados? Ela tinha visto o que aqueles cães podiam fazer durante seu tempo como uma Caçadora, e ela não queria correr esse risco.
Ela pensou em perguntar para onde estava sendo conduzida. No entanto, ela sabia que esses homens não diriam nada a ela. Ela era imunda, não melhor do que a lama em suas botas. Em vez disso, ela mordeu a língua e endireitou os ombros. Só porque seu coração batia forte contra o peito, não significava que todos precisavam saber de tal coisa.
Os Assassinos chegaram a um celeiro separado, deixando a fortaleza para trás. O celeiro não foi pintado, apenas uma madeira escura montada por Assassinos inexperientes melhor com suas mentes do que suas mãos. Kelia olhou para o celeiro instável. Ela não tinha certeza se preferia enlamear seus calçados e ficar do lado de fora na tempestade que se aproximava ou se arriscar dentro de casa.
—Aqui. — Um Assassino parou abruptamente bem na frente da porta. —Eu quase esqueci. Você vai precisar disso.
Do bolso de trás, ele puxou parecia ser um pedaço de couro. Um cinto, talvez? Mas era pequeno demais para ser um cinto.
Kelia entendeu o que era no minuto em que ele jogou para seu parceiro, ainda atrás de Kelia, que deu um tapa em sua garganta e o prendeu no lugar.
É uma coleira.
—Não o tire, — o segundo disse atrás dela. —Não que você tenha uma escolha. Ele está bloqueado em você agora.
Os dois assassinos começaram a andar para frente novamente, mas os pés de Kelia pareciam cimentados no lugar. Eles apenas a colaram? Como um animal?
—Bem? — Um dos Assassinos se virou para olhar para ela por cima do ombro. —Você está vindo ou não? Parece que vai chover a qualquer momento e gostaria de estar de volta ao meu quarto, se puder evitar.
Ele tirou uma grande chave da calça e abriu uma grande fechadura pendurada na maçaneta. Assim que se abriu, as correntes deslizaram e caíram no chão.
Kelia foi forçada a caminhar pela lama para cruzar o caminho. Quando ela entrou no celeiro, ela foi esbofeteada com um ataque de aromas: lama, chuva, fezes, urina, sangue e outra coisa. Um cheiro que Kelia não reconheceu.
A pura força do fedor a deteve. Ela colocou a mão sobre o estômago enquanto respirava fundo com a boca. Seu estômago se revirou e ela quase se enrolou ali mesmo. Era como se ela pudesse até sentir o cheiro em sua língua.
O outro Assassino sorriu. —Você se acostuma com isso, eu acho.
Kelia zombou, mas continuou em silêncio enquanto olhava ao redor. O celeiro era espaçoso e vazio, mas mais do que isso, estava silencioso. Até agora, ela não tinha visto uma única pessoa ou animal. A compreensão a deixou inquieta. Até a luz vinha de um lampião. Nada natural pôde ser detectado.
Havia um lance de escadas de madeira construído contra a parede oposta que levava a um segundo andar. Os Assassinos se dirigiram diretamente para a escada enquanto Kelia pegava mais colchões no meio das cabines. Manchas escuras decoravam o chão como uma marca. Se Kelia pudesse adivinhar, quase parecia sangue seco. Ela engoliu em seco e apertou os dedos contra as palmas das mãos. Ela precisava colocar um pé na frente do outro. Ela não podia deixar seu medo transparecer.
Ela subiu as escadas, seguindo os Assassinos. A madeira rangeu sob seus pés.
Não foi até ela chegar ao segundo andar que houve qualquer outro sinal de vida. Quatro outras mulheres de sua idade, todas cansadas com olhos profundamente fundos, estavam sentadas em uma pilha de desolação em colchões ao redor de uma pequena mesa de madeira. Seus cabelos foram puxados de seus rostos, tricotados e emaranhados, e Kelia podia sentir seu aroma podre do outro lado do cômodo. Sujeira e outras substâncias que Kelia preferia não tentar adivinhar que mancharam suas roupas, e todos elas estavam sentadas caídas para frente, de cabeça baixa, cabelos na cara, se escondendo. Envergonhadas de si mesmas, olhando para longe como se não tivessem qualquer desejo de fazer qualquer outra coisa.
—Quer ir com uma delas, Stephen? — O primeiro perguntou. —Elas não parecem estar em posição de dizer não.
Kelia não conseguiu mais conter seu desgosto. —Vocês me trouxeram aqui, vocês fizeram seu trabalho — disse ela. —Agora façam um favor a todos nós e gentilmente caiam fora antes que eu empurre vocês escada abaixo.
Os dois homens se viraram e olharam para Kelia, seus lábios se curvaram em rosnados.
—Só porque você fodeu uma Sombra não significa que você está protegida, querida. — O primeiro disse.
—Ele não está aqui para reivindicar você, está? — O segundo, Steve, disse. —Talvez a gente tenha uma chance com você, tente arrombá-la antes que os Sombras te peguem, hein?
—Eu acho que isso seria um favor a ela, não é?
—Concordo.
Naquele momento, algo baixo e melódico vibrou pelo cômodo. Os dois homens se endireitaram, como se fossem capturados por algum ser desconhecido e forçados a se afastar. Sem outra palavra para Kelia, sem nem mesmo olhar para as mulheres sem vida diante deles, eles desceram as escadas.
Assim que a porta da frente do celeiro se fechou, o celeiro parou. Nem mesmo as mulheres se mexeram. Elas não pareciam se importar se os homens haviam partido ou Kelia havia chegado. Elas continuaram sentados em colchões. Uma estava até em uma cama que pendia solta e quase raspava no chão.
Ninguém aqui poderia obrigar os homens a irem embora, e Kelia tinha certeza de ter ouvido uma voz dizer algo em um idioma que ela não reconheceu.
—Você é nova.
Kelia se virou para olhar por cima do ombro e viu uma das mulheres mais bonitas que ela já tinha visto antes de caminhar em sua direção.
Ela tinha visto este andar quando subiu as escadas pela primeira vez. Além das quatro mulheres, ela não tinha visto mais ninguém. Ela especialmente teria se lembrado de alguém cuja presença chamava atenção.
—Eu sou.
Kelia desviou o olhar, pela única janela do celeiro. As nuvens pareciam mais escuras, mas ela não tinha certeza se tal coisa era possível. Ela inclinou seu corpo em direção ao lance de escadas, apenas no caso de as coisas darem errado. Por alguma razão, ela tinha a sensação de que essa mulher era mais poderosa do que parecia.
Ela deu a Kelia um olhar longo e calculista. Ela começou nos pés de Kelia e lentamente ergueu os olhos até que encontraram o olhar de Kelia.
—Você é diferente, — ela finalmente murmurou. —Você ainda pode sobreviver a nós.
O calor se espalhou pelo peito de Kelia, e ela não conseguia explicar por quê. Ela não conhecia esta mulher. Ela não deveria se importar com o que esta mulher pensava dela. E, no entanto, era bom ver que alguém realmente tinha fé em sua capacidade de cuidar de si mesma. Era bom ter alguém a levando a sério.
—Isso foi por escolha ou punição? — A mulher perguntou, colocando as mãos nos quadris. Ela ignorou completamente as outras mulheres, assim como elas a ignoraram completamente.
—Existe algo como escolha na Sociedade? — Kelia perguntou. Ela não sabia quem era essa mulher, mas não se importava particularmente. Ela não morderia mais a língua, nem censuraria seus verdadeiros sentimentos sobre o assunto.
O lábio da mulher abriu um sorriso vazio. —Cega? — Ela adivinhou.
—Bruxa? — Kelia atirou de volta.
O sorriso da mulher se alargou. —Acho que gosto de você — disse ela. —Qual o seu nome?
—Kelia Starling. — Disse Kelia. Ela olhou para a caixa de suas coisas, onde os homens a deixaram, procurando o diário de seu pai. As páginas que faltavam ainda estavam enfiadas no pergaminho.
—Qualquer relação com...
—Sim. — Mesmo sentindo seu rosto esquentar, ela não se viraria e tentaria esconder sua vergonha. —Talvez eu esteja sendo punida pelos pecados do meu pai.
—Seu pai era um homem apaixonado — disse a mulher. —O amor faz coisas conosco que nunca poderíamos esperar. Faz de nós o nosso melhor absoluto e nos transforma em nosso pior. De qualquer forma, existe a crença de que não estamos no controle de nossas ações.
—Isso é uma merda — rebateu Kelia. —Meu pai fez escolhas. Ele...
—Por que você está aqui?
—Eu já disse a você — disse Kelia. —Eu não tive escolha. — Ela considerou a mulher à sua frente - o cabelo escuro, os olhos escuros. Ela usava um vestido com bainha suja, de tecido rasgado. Uma manga caída de seu ombro em um golpe elegante. —Quem é...
Antes que ela pudesse terminar sua pergunta, a porta principal do celeiro se abriu e o próprio Rycroft entrou. Kelia olhou por cima do corrimão para vê-lo. Ele já tinha um lenço sobre o rosto, como se soubesse que esperava um aroma tão forte. Apesar disso, Kelia percebeu o puxão nas bochechas, o que significava que ele estava sorrindo.
Ela se endireitou simplesmente por causa de sua presença. Ela se deteve imediatamente. Sua aceitação neste programa significava que ela não precisava mais fingir. Ela não precisava se esconder como fazia nos últimos meses.
—Srta. Starling! — Ele berrou, sua voz enchendo o celeiro.
Kelia olhou para as quatro mulheres sentadas. Ela não tinha certeza, mas quase parecia que até elas ficaram tensas ao ouvi-lo.
—Bem-vinda à sua nova casa. Ouvi dizer que você se acostuma com o fedor.
Kelia não disse nada. No entanto, os passos da bruxa rastejaram atrás dela como se ela quisesse ouvir o que Rycroft tinha a dizer.
—Quero que você se instale — disse ele. —Amanhã, tudo vai mudar para você. Você estará prestando um grande serviço à Sociedade. Eu espero que você saiba disso. Você deve ter orgulho do que faz.
— Ainda não sei o que você precisa de mim — Kelia falou lentamente, inclinando-se sobre o corrimão. Rycroft não fez menção de subir as escadas e ela se perguntou se ele não confiava no desenho sob seu peso. —Eu criei palpites com base na natureza do programa, mas nada definitivo. Você está aqui para elaborar?
—Aí está. — Seu sorriso se alargou e seus olhos se moveram para algo atrás de Kelia. —Vejo que você foi apresentada à nossa bruxa residente? Tenha cuidado, ou ela poderá controlá-la com seus poderes. É por isso que os Assassinos são proibidos de vir ao celeiro. É por isso que, quando o fazem, são responsáveis por usar um amuleto que impede que seus poderes funcionem.
—Você não está usando um amuleto. — Kelia apontou.
—Eu não preciso de um, — ele observou. Ele estendeu a mão e tirou os óculos do rosto para segurá-los. —Isto, aqui mesmo, é feito da mesma pedra dos amuletos. Estou sempre protegido.
Kelia se levantou em toda a sua altura, mantendo as mãos na madeira.
—Seus Assassinos que trouxeram minhas coisas não usavam amuletos. — Ela disse.
—Assassinos? — Rycroft riu alto. —Eles não são mais Assassinos do que você é agora. Apenas a ajuda contratada, suponho. Eu não me importo muito com o que acontece com eles. — Ele mudou seu peso onde estava. O celeiro estava surpreendentemente parado para um local que atualmente ocupava sete indivíduos. —Espero que você conheça suas colegas transportadoras.
—Transportadoras?
—Transportadoras — Rycroft repetiu. —Eu não disse a vocês o que esperar enquanto parte deste programa? Você será testada para ver quando será capaz de ter filhos com base em seus relatórios mensais. Você será parceira de Sombras do Mar que fizemos prisioneiros... — Com isso, a mulher atrás de Kelia bufou. Rycroft a ignorou. — E você começará a fase de acasalamento. Você continuará até que esteja grávida ou até o início da menstruação. Se você estiver grávida, nós a retiramos daqui e a hospedaremos durante sua incapacitação, fazendo testes e anotando o desenvolvimento do monstro em seu útero. Se você receber seus mensais... — Seus olhos brilharam. —Suas costas já estão informadas se você receber seus mensais. E todo o ciclo começa novamente. Você faz refeições duas vezes ao dia e rega três vezes ao dia. Você pode se aliviar no chão onde estou. Alguém vem e limpa uma vez por semana, se eles se lembram. Você tem alguma pergunta?
—Você tem alguma estatística sobre a minha expectativa de taxa de sobrevivência? — Kelia perguntou.
Rycroft se virou, já se dirigindo para a porta. —Espero que essa boca não lhe cause muitos problemas com seu companheiro, Srta. Starling — disse ele. —Embora, considerando que você era a prostituta de Drew Knight, talvez você já esteja acostumada com monstros em sua boceta.
Kelia se encolheu com a palavra. Era algo que ela só ouvira algumas vezes antes, e apenas na cidade, quando estava perto de homens bêbados falando com prostitutas. Ela nunca esperou isso da boca de Ashton Rycroft.
Quando ele alcançou a porta, ele parou e se virou para olhar para Kelia e a mulher atrás dela.
—É apropriado, — ele disse, sua voz ecoando através do celeiro. — que vocês duas sejam portadoras. Kelia Starling e Wendy Parsons. Tenho certeza de que seu pai e seu irmão ficariam orgulhosos.
Kelia não o ouviu sair do celeiro. Ela se esqueceu completamente do aroma pesado que sufocava seus sentidos e do pavor que se formou nela quando Rycroft explicou o que esperava dela. Em vez disso, ela se virou para olhar para a mulher diante dela. O cabelo escuro, os olhos escuros, a beleza, as maçãs do rosto salientes. Tudo faz sentido agora.
—Wendy Parsons? — Kelia murmurou. —A bruxa?
—Eu prefiro feiticeira, se você não se importa, — ela disse, colocando as mãos nos quadris e olhando para Kelia. Ela era apenas meia cabeça mais alta do que Kelia, talvez alguns centímetros mais baixa do próprio Drew Knight. —Mas sim, suponho que sou tecnicamente uma bruxa,
—Você é irmã de Drew Knight — disse Kelia. —Você é quem estou procurando.
CAPÍTULO 20
Wendy colocou as mãos nos quadris e deu a Kelia um longo olhar, afiando o pescoço de Kelia, como se ela estivesse procurando por algo.
—Você conhece Drew Knight? — Ela perguntou. —Quantos anos você tem?
—Dezessete, — Kelia respondeu antes de pensar, mas rapidamente se corrigiu. —Dezoito no mês passado.
Seu aniversário de meados de janeiro havia passado enquanto suas costas ainda doíam, algumas semanas em sua passagem como cega. Agora era março, embora Kelia não conseguisse se lembrar do dia. O tempo havia escapado de suas mãos, e a parte assustadora de sua provação foi que ela nem percebeu.
Ela colocou a mão na gargantilha em volta do pescoço e tentou puxá-la.
—Isso não vai funcionar — disse Wendy. —Está bem trancado, assim como as janelas fechadas com tábuas do celeiro.
—E eu sou muito boa em abrir fechaduras. — Ela murmurou. Ela estendeu a mão para o cabelo e puxou um grampo.
— Tudo bem — disse Wendy com um elegante encolher de ombros enquanto passava por Kelia. —Seja chicoteada por insubordinação. E os cachorros? Como você planeja superar isso?
Kelia se acalmou antes de colocar o grampo de volta em seu cabelo. Ela pigarreou.
—Certo. — Ela disse.
—E isso não é nem mesmo o pior de tudo — disse Wendy, cruzando os braços e olhando Kelia de cima a baixo. Antes que Kelia pudesse perguntar qual era o pior, Wendy continuou. —Você disse que conhecia meu irmão? Embora eu deva admitir que você é exatamente o tipo dele, não vejo nenhum vestígio do meu irmão em você.
Wendy jogou o cabelo por cima do ombro e se afastou dela. Ela desceu o caminho estreito entre os colchões, parando para pegar um cobertor descartado e jogando-o habilmente sobre um colchão podre.
—Ele gosta de cravar os dentes nas vítimas — ela continuou. —Para deixar sua marca e depois apagá-la. — Ela parou o que estava fazendo, de costas para Kelia, antes de sacudir o cabelo. Cachos castanhos seguiram o gesto lento e gracioso. —Mas se você sabe o que procurar, essas marcas nunca vão embora. No entanto, não há nenhuma em você. E meu irmão não reivindica ninguém.
—Eu não sou sua vítima.
—Certo. — Wendy disse, uma risada quase amarga correndo por trás de seu tom.
Kelia deu um passo em direção a Wendy, querendo nada mais do que chamar sua atenção, mas não tinha certeza de como lidar com ela. Wendy era uma bruxa. Kelia não tinha conhecido uma bruxa de verdade antes, exceto Emma. Embora Emma não tivesse admitido o que ela era para Kelia.
—Seu irmão está preocupado com você. — Disse ela.
Ela não sabia por que estava defendendo Drew Knight, quando ainda estava delirantemente zangada com ele pelo que ele lhe fez, pelo que ele escondeu dela. Ela não sabia se defender Drew Knight havia se tornado um hábito, apesar de seus melhores esforços para impedi-lo de cavar sob sua pele. No entanto, enquanto olhava para Wendy, ao ver a mulher forte em uma situação desesperadora, Kelia não podia deixar de querer informar a Wendy que alguém estava procurando por ela.
—Drew se preocupa, certamente — observou Wendy, olhando para as unhas. Seu perfil cortou a luz fraca, embora o dia estivesse aparecendo. A luz do sol entrava pela janela, mas devido ao acúmulo de sujeira e outros resíduos turvos, a luz do sol não era nem brilhante nem dominante. —Sobre ele mesmo, tenho certeza. — Ela girou no salto da bota e cruzou os braços sobre o peito. —Você está apaixonada por ele?
Kelia deixou cair os braços do corrimão em que estava encostada. —Eu sinto muito?
—Você parece uma garota inteligente — disse Wendy. —Tenho certeza de que você me ouviu corretamente. Você está apaixonada pelo meu irmão? Eu não culparia você se você estivesse. Meu irmão é lindo e charmoso. Um pouco mais baixo, mas ele compensa com seu físico. Minhas amigas não paravam de falar sobre ele, e isso me deixava totalmente louca. — Ela balançou a cabeça. Seus olhos estavam distantes. Ela estava falando sobre uma época diferente.
—Por que você parece zangada com seu irmão? — Kelia perguntou antes que ela pudesse se conter.
—Por que você evita minha pergunta? — Os lábios de Wendy se curvaram, mas seus olhos permaneceram tristes. Desta vez, ela pegou um travesseiro e o recolocou no colchão. —Por que eles mandaram você aqui? Me diga a verdade dessa vez. Já estou ciente de que você não teve escolha no assunto, mas me diga mais do que isso.
—Ashton Rycroft me odeia. — Disse Kelia. Ela não se orgulhava dessa declaração, nem parecia estar reclamando disso. Ela estava apenas declarando um fato.
—Ele odeia, agora? — Wendy se virou, novamente no salto de sua bota, e caminhou em direção a Kelia mais uma vez. —E por que isto?
—Ele pensa que seu irmão e eu somos amantes. — Disse Kelia.
—É verdade?
—Você mesma disse que ele não reivindica ninguém. — Kelia colocou a mão delicadamente na garganta, cobrindo o pulso. Apenas a batida contra sua pele a lembrou de como Drew olhou para sua garganta, como se estivesse tentado por algo que nem ele entendia. Ela baixou a mão. —Rycroft é um homem que está chateado com uma Assassina parceira de uma Sombra, seja por luxúria ou lógica.
—Parceira de Drew? — A cabeça de Wendy jogou para trás. —Por quê?
—Meu pai foi assassinado — disse Kelia. —A Sociedade - Rycroft disse que cometeu suicídio. Eu não acreditei nele.
—Seu pai — disse Wendy. —Rycroft disse que ele é o homem que criou este programa. Você é filha de Gregory Starling?
Kelia concordou. —Eu sou.
Wendy ficou em silêncio por um momento antes de acenar para a janela. —Ele foi morto lá — disse ela. —Em um estábulo. Eles enviaram várias Sombras atrás dele. Famintas. Ele não teve chance. Quase senti pena dele. Até que me lembrei que se ele não tivesse criado este lugar, eu não estaria aqui. — Uma pausa. —Você sabe por que ele fez isso?
Kelia se virou para descansar os braços no corrimão mais uma vez. Ela não sabia o que estava procurando e ainda assim procurou em cada canto do celeiro. Talvez ela quisesse uma prova de que seu pai esteve aqui. Ela não conseguiu encontrar nenhum vestígio dele na fortaleza, e ele estava lá por vinte anos de sua vida. Tudo o que ela tinha deixado foi seu diário e as páginas que faltavam. Isso, este programa e ela pareciam ser o último de seu legado.
—Ouvi dizer que uma sereia roubou minha mãe dele — disse Kelia suavemente. —Ele foi distraído pelo canto da sereia, e os monstros se levantaram e a consumiram na frente dele. Ele me disse que ela morreu, mas nunca entrou em detalhes.
—E ele pensou que acasalar com as Sombras o ajudaria como? — Wendy perguntou. Não havia simpatia em seu tom. Kelia não poderia culpá-la por isso. —Seu pai parece um idiota.
—Ele fez isso por minha mãe. — Kelia olhou para as outras quatro mulheres sentadas e olhando fixamente. —O que aconteceu com essas mulheres?
—Elas estão quebradas — disse Wendy, parando ao lado de Kelia. —Eu não ficaria surpresa se o bom Deus as levasse logo. Tenho certeza de que elas estão implorando por isso. Seria uma misericórdia.
—O que, exatamente, elas suportaram para você falar delas dessa maneira? — Ela perguntou. —Você está falando sobre elas morrerem enquanto estão ao alcance da voz.
—Você as vê reagindo? — Wendy se inclinou para mais perto de Kelia, perto o suficiente para que sua respiração esquentasse seu ombro. —Você tem hematomas em volta do olho. Uma luta, presumo? É por isso que você está aqui?
Kelia alisou a saia do vestido com as palmas das mãos. —Mais ou menos.
Seu confronto com Daniella parecia distante, embora tivesse acontecido apenas um dia atrás. Até o encontro com Abigail esta manhã parecia ter sido um sonho e nada mais. Mais uma vez, ela olhou para sua bagagem na escada. Se tivesse tempo, esperava poder ler mais nas páginas perdidas do diário de seu pai.
—Você não respondeu minha pergunta. — Kelia continuou.
—O que eu digo não fará justiça, — ela murmurou. Seus olhos encontraram os de Kelia e ela zombou. —Existem Sombras que a Sociedade criou - suponho que você saiba que as Sombra do Mar são na verdade criadas pela Sociedade e pela Companhia das Índias Orientais. Esses Sombras vivem em barcos feitos de prata. Eles se alimentam de carne crua. E eles se reproduzem conosco.
Kelia sentiu o sangue sumir de seu rosto. Ela tinha visto Sombras do Mar antes, em batalha e em parceria. No entanto, agora, neste celeiro de cheiro miserável, ela não sabia se sobreviveria ao próximo encontro com eles. Lutar contra uma Sombra do mar era uma coisa. Mas permitir que uma Sombra violasse completamente seu corpo com a intenção de procriar, de engravidá-la... Kelia quase derramou o conteúdo de seu estômago no chão. Estava começando a atingi-la - por que ela estava aqui, qual era seu propósito.
—Eu acreditei...— Ela engoliu em seco e desviou o olhar. Ela cruzou os braços sobre o peito, as mãos segurando a si mesma. —Achei que seria...— Ela não sabia no que acreditava. Ela havia sido avisada, é claro. Rycroft havia insinuado isso, e Drew ficou furioso com ela por concordar em fazer tal coisa. —Eu sabia; eu simplesmente não...
Havia uma expressão de simpatia no rosto bonito de Wendy e, por um momento, Kelia viu Drew.
—Essas mulheres estão quebradas porque foram violadas repetidamente — explicou ela. —É por isso que a morte seria uma misericórdia para elas. Se eu tivesse acesso às minhas ervas e poções, faria uma poção que traria morte instantânea e indolor. Então, novamente, se eu pudesse usar meus poderes contra aqueles que são importantes, eu não estaria aqui e nem elas estariam. — Seus olhos se estreitaram no pescoço de uma das mulheres. —Elas também usam pingentes de topázio. Elas não podem tirá-lo porque não percebem que está lá e eu não posso tocá-lo ou então ele vai me queimar.
—As bruxas não podem tocar no topázio? — Kelia perguntou.
—Representa o fogo — ela respondeu, — e sendo uma bruxa da terra, sou fraca contra o fogo. As sereias são resistentes às esmeraldas, que representam a terra.
— Não ouvi falar de bruxas do fogo — murmurou Kelia, mais para si mesma do que para Wendy. —Suponho que também existam bruxas do ar?
Os lábios de Wendy se torceram em um sorriso irônico. —Uma história para outra época — disse ela. Ela olhou pela janela. —Está quase na hora da nossa primeira refeição do dia. — Seus olhos piscaram para as quatro mulheres, ainda imóveis. Era até difícil distinguir quando inspiravam e expiravam. —Uma delas, Mary — ela acenou com a cabeça para a mulher menor e mais magra, seu cabelo loiro flácido em uma trança — tentou passar fome. Eu disse a ela que se ela não comesse, ela não teria forças para suportar, e seria pior do que seria de outra forma.
Kelia observou tudo no segundo andar: os colchões com os travesseiros e cobertores trocados, as tranças no cabelo. Ela olhou para trás para Wendy e deu um passo para trás.
—Você cuida delas. — Ela murmurou.
Wendy não olhou para Kelia. Em vez disso, ela manteve os olhos focados nas quatro mulheres sentadas juntas. Elas não haviam olhado na direção de Kelia nenhuma vez. Ela ficou surpresa por elas poderem estar tão quebradas que mal registraram o que estava acontecendo ao seu redor. Se não fosse por Wendy, elas estariam muito desgastadas. Talvez algumas delas ainda não estivessem vivas.
—Alguém precisa — murmurou Wendy. —Elas precisam de alguém para ser forte por elas.
Kelia tentou engolir, mas sua garganta parecia cinzas. Seu rosto baixou, suas mãos puxando a lã áspera que compunha seu vestido.
—Você deve suportar o pior — disse Kelia, em voz baixa. —Meu pai... ele queria criar bruxas e Sombras para criar algo que pudesse ser usado para proteger marinheiros. A terra enfraquece a água, como você disse. Eu não entendia completamente... —Ela balançou a cabeça, as lágrimas se acumulando em seus olhos. —Você deve suportar...
—O que eu preciso, para sobreviver. — Não havia amargura na voz de Wendy, embora fosse firme. Era apenas um fato, e ela estava dizendo isso. Wendy, ao contrário de Kelia, podia olhar Kelia nos olhos. Ela não tinha vergonha do que tinha sido feito a ela.
—Estas mulheres. — Kelia gesticulou com o máximo de sutileza que conseguiu reunir para o outro Cego. —Elas não são bruxas. Nem eu.
Wendy torceu o nariz.
—Você só terá problemas com este programa se houver uma vida humana em jogo? — Ela não tentou esconder a ofensa em seu tom.
—Eu não queria ofender. É apenas...
—É só o quê? Que a Sociedade transformou o programa de seu pai em uma ferramenta de punição? Para controle? Ou talvez seja assim que a Sociedade sempre quis. Talvez seu pai, em sua ignorância nublada, tenha pensado que se vingaria quando, na verdade, pessoas inocentes estão aqui agora por causa dele.
—Sinto muito, Wendy. Eu só queria entender. E encontrar uma maneira de escapar. Para todas nós.
Wendy virou a cabeça na direção de Kelia, um olhar feroz em seu rosto delicado. —Não há como escapar — disse ela. —Não seja tão arrogante a ponto de pensar o contrário.
—Mas...
—Você não acha que uma de nós tentou?
—E?
De alguma forma, o celeiro ficou quieto. Kelia estava quase com medo de respirar.
—Ela nunca mais voltou. — As narinas de Wendy dilataram-se. —Mas o cheiro dela perdura ... Não posso explicar.
Kelia espalmou as palmas das mãos contra a cintura antes de finalmente erguer o olhar para olhar para Wendy. —Você acha que ficaremos livres disso? — Ela perguntou. —Em algum ponto?
—Eu não sei. — Wendy voltou a cabeça para a janela. Se Kelia fechasse os olhos e se concentrasse, ela seria capaz de ouvir o vento soando lá fora. —Eu tinha um pretendente... Há uma pequena parte romântica de mim que espera que ele ainda esteja procurando por mim. Que ele não desistiu de mim. Não tenho certeza do que ele faria se me encontrasse - ele é apenas um homem e a Sociedade é um exército - mas... —Ela balançou a cabeça.
—Você não se preocupa se ele ainda vai ter você, depois que sua inocência foi roubada por essas feras? — Kelia perguntou em uma voz um pouco acima de um sussurro. Este não era o seu lugar. Não era da sua conta. E, no entanto, ela não pôde deixar de fazer a pergunta. Se Wendy era alguma coisa, era honesta. E honestidade era algo que Kelia podia apreciar, especialmente agora.
—Christopher entenderia o que aconteceu comigo. Ele me amaria mais porque eu sobrevivi a isso, —Wendy disse, seus lábios se curvando em um pequeno sorriso nostálgico. —Eu tenho quase um século como uma bruxa, Assassina. Minha inocência foi perdida há muito tempo. Ele sabia disso e ainda me amava porque o amor não deveria depender da sua inocência. Deve depender de quão adorável você é.
Kelia enterrou os dedos no vestido. —Christopher? — Ela perguntou. —Christopher Beckett?
Todo o comportamento de Wendy mudou. Como se sua energia tivesse dobrado, como se sua vida tivesse se renovado. Ela se virou para encarar Kelia. —Você o conhece? — ela perguntou, sua voz uma oitava acima. —Ele me encontrou? Ele está bem? Ele está seguro?
Kelia abriu a boca, pronta para responder, quando a porta do celeiro se abriu. Os mesmos dois homens que a trouxeram e sua bagagem voltaram com quatro bandejas de comida contendo oito tigelas do que parecia ser mingau, que colocaram no chão antes de se virar para sair novamente.
O estômago de Kelia se revirou. Não admira que essas mulheres estivessem murchando.
Quando as portas bateram, Wendy desceu os degraus para pegar a comida. Ela pegou as duas bandejas e conseguiu carregá-las até o segundo andar sem derramar a comida e quebrar o vidro. Ela colocou as tigelas na mesinha em frente às quatro mulheres e se ajoelhou para dar uma colher a cada mulher. Ela murmurou palavras gentis para essas mulheres, palavras que Kelia não conseguia ouvir, mas eram claras o suficiente para tirar as mulheres de seu estupor, pelo menos temporariamente. Não demorou muito para que cada uma - após uma conversa individualizada de Wendy - começasse a comer.
Wendy se aproximou de Kelia com uma tigela de mingau e uma colher. —Às vezes, elas precisam de incentivo — disse ela, ficando ao lado de Kelia para olhar para as mulheres. Sem olhar na direção de Kelia, ela entregou-lhe uma tigela de mingau e uma colher. —Coma, Assassina. Você vai precisar de toda a força que puder conseguir.
CAPÍTULO 21
Fazia dois dias e Kelia ainda não estava acostumada com o cheiro. Ninguém tinha vindo ou ido. As quatro mulheres silenciosas permaneceram indiferentes e quietas. Kelia não achou que elas perceberam que ela estava lá, que ela se juntou ao seu pequeno grupo, todas destinadas ao mesmo destino.
Wendy a lembrou de como uma mãe deveria ser. Ela não teve a oportunidade de ser cuidada porque sua mãe foi tirada dela quando Kelia era muito jovem, mas enquanto observava Wendy cuidar dessas mulheres - Mary, Cathleen, Samantha e Riley - ela acreditava que sua mãe a teria tratado de uma forma semelhante.
Wendy fazia tudo por essas mulheres. Ela não conseguia remover as bugigangas do pescoço delas, mas fazia o que podia para tornar a vida delas muito mais fácil. Ela as encorajou a comer. Se uma recusasse, ela as forçaria, mas de uma forma simpática que não era nem cruel nem crítica.
Ela oa limpava o melhor que podia e fazia com que se trocassem a cada dia. O guarda-roupa era todo dividido entre as mulheres, os vestidos rodados. Não parecia que lavá-los fosse uma das prioridades da Sociedade, mas Wendy era capaz de limpá-los o melhor que podia usando água da chuva e algumas lixeiras.
Wendy também fazia questão de falar com cada uma por pelo menos quinze minutos, quase como se para lembrá-las de que ainda estavam na terra, que independentemente de suas circunstâncias, ainda estavam vivas. Quando chegava a hora de se aliviarem - algo que faziam no primeiro andar, no canto mais distante - Wendy ia com elas e as ajudava porque algumas delas não se importavam.
Kelia estava dividida entre emoções muito diferentes em vários momentos do dia. Havia ocasiões em que ela admirava Wendy, era solidária com as mulheres, se entregava à autopiedade quando estava escuro e ninguém podia vê-la. Outras vezes, ela estava com raiva de tudo e de todos. Ela odiava Daniella por contar a verdade sobre seu pai, Drew por esconder dela, Wendy por existir em primeiro lugar. Quase sempre, entretanto, ela sentia ansiedade. Ela nunca conseguia relaxar totalmente o corpo ou a mente porque sempre havia a ameaça de que alguém entraria e a estupraria.
Ela balançou a cabeça e olhou para Wendy, atualmente em um colchão com um livro esfarrapado, lendo para as cegas. Todas estavam olhando para Wendy, mas Kelia não sabia se elas estavam ouvindo, se a história registrava.
Kelia se sentou no colchão que Wendy tinha designado para ela, o tenor calmante da voz de Wendy distraindo-a da autopiedade e do fedor pesado. Ajudou o fato de que o tempo estava frio e chuvoso. Quando ela fechou os olhos e pensou sobre aquela janela singular e o tempo lá fora, ela poderia jurar que o ar cheirava mais limpo, mais fresco.
Ela tateou debaixo do travesseiro, seus dedos encontrando o livro que continha o diário de seu pai.
Ela ainda não tinha lido mais das páginas. Ela não tinha certeza se queria. Ela não tinha certeza se isso importava. Seu pai criou este programa vil. Em sua névoa alimentada pela raiva, ele acreditava que estava fazendo isso por sua esposa. Kelia podia entender a raiva, a necessidade de reagir, mas ela não entendia a crueldade de ter as Sombras tentando engravidar inocentes para criar algum tipo de ser contra sereias...
No entanto, não ler as entradas significava que ela nunca saberia. Ela nunca veria o raciocínio de seu pai, seus motivos para suas ações. E ela precisava saber, ela precisava ver suas próprias palavras para confirmar o que todo mundo já parecia saber.
Quando a voz de Wendy perfurou o silêncio pesado, Kelia respirou fundo. Ela se absteve de vomitar e fechou os olhos, tentando ouvir a chuva suave que caía lá fora. Elas tiveram uma pausa de um dia antes que a chuva começasse novamente. A julgar pelas nuvens escuras, ela não achava que iria diminuir tão cedo.
Ela girou de sua posição no colchão para puxar Moby Dick e o diário que continha as páginas rasgadas que Abigail acabara de lhe dar. As peças que faltam do que aconteceu com seu pai poderiam estar aqui. As respostas para as perguntas que ela nem sabia que deveria perguntar até que Daniella a esclareceu rudemente. Ela ainda se perguntava por que Abigail deu isso a ela em primeiro lugar. Tinha que haver um motivo, um que Kelia queria descobrir. Seus dedos tremiam enquanto ela desdobrava lentamente o velho papel. Seus olhos deslizaram para Wendy e as Cegas, mas se ouviram o barulho das páginas, não deram nenhuma indicação disso.
Kelia voltou-se para os rabiscos familiares do pai.
13 de março
Sempre me perguntei o que poderia fazer para honrar a memória de Anna, e este programa é isso. Depois que Anna foi massacrada por uma bruxa do mar, jurei fazer algo para impedir. As Sombras não são a única ameaça para nós, para minha Kelia. Sereias, Lobisomens, bruxas da terra, demônios, fadas. Pelo menos, vou ajudar a erradicar o perigo que afetou minha família.
Pelos meus estudos, as sereias são imunes aos feitiços das bruxas da terra. O problema é que não estou familiarizado com as bruxas da terra ou onde alguém iria para encontrar uma. Só posso trabalhar com o que tenho à minha disposição. No entanto, meu objetivo é acasalar um Sombra do Mar e uma Bruxa da Terra para fazer uma Sombra nascer, não criada, com as habilidades mágicas de uma Bruxa da Terra. Uma que poderíamos manter sob a influência e controle da Sociedade. Se eu tivesse pelo menos um desses, tenho certeza de que seria capaz de me vingar e evitar mais baixas nas mãos das sereias.
Quando fui a Ashton Rycroft com meu plano, ele o considerou muito cruel. Sacrificar inocentes pela ciência não valia a pena, nem mesmo para conquistar sereias. Não valia o investimento. Independentemente de seu sentimento, eu persisti. O conselho vai votar, mas eles precisam falar com outra pessoa antes que seja aprovado. Quem é essa pessoa, não sei. Só sei que essa pessoa foi chamada de ela.
Esperarei ansiosamente pela resposta. Só posso rezar para que seja a meu favor.
Então era verdade.
Kelia não tinha certeza de como se sentia sobre isso. Ela sabia que isso aconteceria, mas isso não a preparou para o golpe. Seu pai parecia decidido a criar este programa para vingar sua mãe e erradicar as sereias. Independentemente de seus motivos, erradicar qualquer criatura completamente não era algo com que ela tinha certeza de concordar. Era preciso haver mais debate sobre o que constituía uma criatura e o que constituía um ser humano. Era uma linha tênue que ninguém tinha o direito de decidir.
Ela bufou um suspiro e continuou a ler. Restavam apenas duas entradas.
17 de março
Escravos.
Rycroft contratou escravos para participar do programa, pois precisamos de uma bruxa da terra e não conseguimos encontrar uma. Mas de que adianta isso? Não há elemento mágico com escravos humanos. É inútil criá-los. Rumores dizem que a Sociedade tem a oportunidade de adquirir Wendy Parsons, bruxa da terra e irmã de Drew Knight. Ela seria o espécime perfeito para testar isso.
Não sei os detalhes - Rycroft se recusa a me dizer isso. Não sei como vamos adquirir Sombras do Mar para cruzar com os escravos em primeiro lugar, a menos que a Sociedade possa dispensar um ou dois. Ouvi de Abigail que eles fizeram a rainha transformar o noivo de Wendy. Achei que talvez pudéssemos fazer com que ele procurasse com ela assim que estivesse fora dos estágios infantis, mas quando tento discutir essas opções com Rycroft, ele se recusa a falar comigo sobre o programa. Meu programa.
Eu poderia estar imaginando coisas, mas sinto como se meu programa estivesse sendo assumido pelo mesmo homem que, em primeiro lugar, não queria ter nada a ver com ele, e não sei como voltar atrás. Não sei se consigo. Quero testar minha teoria em diferentes Sombras - uma que deixou de ser outra Sombra, outra que saiu diretamente da Rainha e uma criada pela Companhia das Índias Orientais. Eu poderia documentar as descobertas, mas não tenho certeza se eles me ouvem mais.
Kelia balançou a cabeça, olhando pela janela e respirando fundo. Ela precisava de um momento. Wendy ainda estava lendo para as outras Cegas, e um rápido olhar em sua direção mostrou que ela nem havia notado Kelia fazendo nada fora do comum. Kelia afundou no colchão e olhou para o papel.
Não fazia sentido. Por que seu pai se importaria com os escravos sendo usados como alimento para os Sombra do Mar, mas não se importava em fazer experiências com eles? Ambas as ações eram cruéis e más. Criar esse monstro era realmente tão importante para ele? Ainda mais do que a vida humana?
Ela esperava que seu pai não fosse tão cruel assim, mas suas próprias palavras parecem contradizer sua esperança.
Kelia virou o papel. Seus dedos tremeram e ela descansou a página sobre o estômago para fechar os dedos em um punho. Ela precisava parar de tremer, mas não conseguia se controlar.
Apenas mais duas entradas, Starling, ela pensou consigo mesma. Você deixou por sua própria conta descobrir que tipo de homem ele realmente era. Talvez isso lhe dê uma ideia de por que ele foi morto.
A chuva continuou a cair suavemente contra o celeiro. A batida consistente acalmou o coração de Kelia.
O papel amassou mesmo com seu aperto gentil.
22 de Março
Abigail tem sido minha rocha durante todo esse tempo. Embora meu coração sempre pertencerá a Anna, acho que ela é agradável de se falar e de olhar. Ela é decididamente mais jovem do que eu, mas age como se fôssemos iguais em todos os sentidos. Sinto-me aliviado por tê-la ao meu lado.
Descubro, se estou sendo honesto comigo mesmo, que ela não é ameaçada por minha Anna. Ela sabe que este programa que quero executar é porque a perdi. No entanto, ela não me julga nem me diz como me sinto. Não importa que eu tenha perdido Anna há quase dez anos atrás. Abigail está ciente de que não posso dar-lhe todo o meu coração porque sempre será de Anna. Qualquer coisa que sobrar pertence à minha Kelia. Mas Abigail terá minha mente e qualquer afeto que eu possa dispensar a ela.
Quando conto a ela sobre os escravos, sobre os problemas em acasalar um escravo com um Sombra em vez de uma bruxa, ela me encoraja. Aparentemente, há uma Cega de nome Daniella cujo pai a mandou para cá depois de descobrir que sua mãe era uma bruxa. Era, sendo um indicador de que ela passou. Seu pai se preocupa com as habilidades de sua mãe transferidas para ela. Uma preocupação justificável, se assim posso dizer. Mas ela é muito jovem. Mal consigo colocar uma criança no programa. Estou feliz que ela seja uma bruxa do fogo e não uma bruxa da terra - é mais fácil deixá-la ir como uma cobaia dessa forma.
No entanto, isso significa que ainda precisamos encontrar uma bruxa diferente. Uma bruxa da terra, e uma que não é tão inocente quanto uma garota que nunca usou seus poderes.
Abigail se oferece para me ajudar, e fico feliz.
Podemos começar a juntar as peças.
Kelia se encolheu. A mãe de Daniella era uma bruxa. Sua história de fundo - pelo menos a que Kelia conhecia - era uma mentira. Isso significava que Daniella tinha essas habilidades mágicas? Kelia não tinha certeza. Daniella sabia muito sobre coisas que beiravam o místico - os livros proibidos nas câmaras do conselho sendo um excelente exemplo.
Mas isso não poderia explicar tudo. Se Daniella era uma bruxa, certamente ela tinha que ter algum tipo de mentor, alguém que a estava treinando.
Mais do que isso, Daniella estava certa. Sobre o programa de melhoramento. Sobre seu pai. Kelia queria...
Ela balançou a cabeça, desejando que ela soubesse sobre Daniella antes disso. Ela teria entendido seu comportamento insensível, sua atitude defensiva.
Naquele momento, alguém entrou e depositou a comida antes de sair. Wendy pausou sua história, seus olhos indo para Kelia.
Kelia baixou as mãos, mas tinha certeza de que agiu rápido demais e Wendy suspeitaria de algo. Ela continuou olhando para Kelia e franzindo a testa antes de desviar o olhar.
Kelia dobrou o papel e colocou-o de volta no diário de seu pai antes de colocá-lo sob o travesseiro. Não era o lugar mais exclusivo para escondê-lo nem o mais seguro, mas teria que servir, pois não havia outro lugar para colocá-lo. Seu estômago roncou e ela colocou a mão sobre ele, silenciando-o.
Ela sempre foi fã de mingau, mas a Sociedade se recusou a dar açúcar aos participantes para adoçar a comida. Como tal, não tinha gosto, e a única razão pela qual ela comia era porque ela não tinha outra escolha.
Ela se levantou da cama e se sentou ao lado de Cathleen no canto do colchão. Ela estava imitando Wendy e tentando falar com elas todos os dias, lembrando-as de que eram humanas e que suas vidas importavam, independentemente de como se sentissem ou pelo que estivessem passando. Kelia não obteve uma grande resposta, mas quando seus olhos a encontraram e o reconhecimento brilhou nas íris, ela soube que estava fazendo progresso.
—O que você está lendo? — Wendy perguntou lentamente, entre mordidas da refeição morna. Ela parecia aberta para ouvir o que Kelia tinha a dizer.
Kelia pigarreou e se voltou para o colchão. Ela sabia que revelava muito naquele olhar, mas ela não podia evitar o olhar natural para garantir que tudo estava como ela deixou. Afinal, Wendy lidava com a arte da magia e não seria surpresa para ela se a bruxa tivesse a habilidade de obter conhecimento com um movimento de seu pulso e um feitiço murmurado.
—Algo de imensa importância para mim — disse Kelia finalmente. Ela sentiu que havia uma chance de Wendy ser capaz de ler sua mente, mas não queria falar muito. Se ela tivesse sorte, o bloqueio da magia de Wendy também interromperia qualquer habilidade de leitura de mente, caso Wendy tivesse alguma. —É pessoal para mim e para minha família, então gostaria que fosse mantido em sigilo.
—Você acha que eu violaria sua privacidade? — Wendy perguntou. —Esse é o tipo de pessoa que você pensa que eu sou?
—Eu não te conheço, — Kelia apontou, seu tom suave. —Não sei que tipo de pessoa você é.
Wendy assentiu. —Justo.
Não houve mais conversa naquele dia. Wendy retomou sua história para as quatro mulheres, e Kelia encontrou o caminho de volta para o colchão. Ela odiava o quão lenta havia se tornado nos últimos dias. Ela desejou ter sua lâmina. Ela não tinha certeza, mas jurou que a vira nas mãos de Drew na última vez em que ele a visitara em seu quarto.
A noite em que ele admitiu saber a verdade sobre o pai dela e guardá-la para si mesmo.
Por um breve momento, Kelia se perguntou se Drew tinha ido procurá-la e se deparado com um quarto vazio. Ela se perguntou se ele se preocupava com ela, se ele se importava. O fato de ela assumir que ele se importava em primeiro lugar foi o suficiente para mostrar o quanto ela havia mudado. Uma besta era incapaz de sentir, mas de alguma forma deduzia, tentava, provocava e atormentava. A Sociedade não fazia sentido em sua doutrinação, e ela não podia acreditar que não tinha percebido isso.
Ela deslizou as mãos por baixo do travesseiro. Seus dedos sentiram o couro liso familiar do diário, e quando ela estava prestes a retirá-lo, a porta se abriu.
Ela deu um pulo. Ela não esperava uma visita.
Uma mulher que Kelia nunca tinha visto antes entrou. Apesar do tempo, ela estava imaculadamente seca, cada mecha de seu cabelo preto perfeitamente no lugar. Seus olhos claros se voltaram para cima, para o grupo de mulheres, e um sorriso deslizou por seu rosto como uma cobra.
—Está na hora, senhoras — disse ela. —Seus companheiros estão esperando.
CAPÍTULO 22
Kelia tirou a mão de debaixo do travesseiro tão rapidamente que quase puxou um músculo do braço. Ela não queria que ninguém soubesse sobre seu diário, que ela tinha algo importante para ela. Lentamente, esperando não atrair nenhuma atenção indesejada para si mesma, ela se levantou e olhou para Wendy em busca de orientação.
Wendy já estava de pé, os ombros retos, como se ela fosse para a batalha. Do canto do olho, Kelia viu as quatro mulheres empalidecerem ao ver essa mulher. Todos esperaram que Wendy se mexesse. Ela era a líder tácita entre elas, algo que Kelia concordou. Wendy parecia inquebrável.
—Bem? — A mulher bateu palmas, seus lábios pintados se curvaram em um sorriso. —Venham, venham. Temos apenas algumas horas no dia. O Sr. Rycroft foi generoso o suficiente para deixá-las usar este celeiro durante a temporada de tempestades. Em vez de enfiar vocês na prisão abaixo da fortaleza, vocês embarcam em um navio especificamente designado para esse propósito. Os Sombras não gostam de ser contidas no navio, mas saber que vocês estarão a bordo com eles logo os acalma.
Kelia não tinha ideia do que essa mulher estava dizendo. Ela poderia estar falando algo sem sentido, e faria muito sentido. Ela esperou para ver o que Wendy faria em resposta.
—Ah, você deve ser nossa recruta mais nova — disse a mulher. Ela fixou seus olhos azuis claros em Kelia. —Kelia Starling, correto? Tenho certeza de que você está deixando seu pai orgulhoso. Ele deixou um legado e tanto. Foi uma pena o que aconteceu com ele. Tirando sua própria vida e deixando sua única filha para trás.
—Ele não tirou a própria vida. — Foi bom ouvir a si mesma finalmente dizer isso em voz alta. Ela vinha mantendo isso dentro dela por meses, mas ela estava no ponto onde ela poderia finalmente contradizê-lo. Ela já estava sendo punida da pior maneira. Eles não podiam fazer nada pior com ela - a morte poderia até ser um adiamento.
— Mal-humorada, — a mulher disse. —Tenho certeza de que Rycroft gostou de quebrar você. Lembro quando ele te chicoteou na frente da academia. Você estava ensanguentada e quebrada. Foi a lição perfeita para seus companheiros Assassinos aprenderem. Mentindo com uma Sombra? Estou surpresa que você ainda esteja aqui para falar sobre isso.
—Você não está forçando todos nós a mentir com as Sombras? — Kelia perguntou. Ela foi até o corrimão para ver melhor a mulher.
—Isso é para a ciência, não para o prazer. — A mulher retrucou.
—Por que não pode ser para os dois? — Wendy brincou. — Estou certa de que assim que meu irmão me encontrar e garanto que ele o fará, matará todos vocês. Assim que ele descobrir que você forçou sua amante a tais experimentos, ele irá garantir que você sofra mais do que você pensou ser possível. Agora, Agatha, você tem certeza de que quer nos levar ao nosso destino?
—Você sempre me pergunta isso, Wendy Parsons — disse Agatha, olhando feio para Wendy. —Eu alguma vez aceitei sua sugestão de liberar você? Minha lealdade é para com a Sociedade, mesmo se eu morrer pela causa.
—Você vai provar isso para eles em breve — disse Wendy. Baixinho, ela murmurou: —Assim que eu tirar esse colar do seu fodido pescoço.
Independentemente de suas palavras, Kelia não esperava que Drew Knight aparecesse e resgatasse Wendy ou a si mesma ou a essas mulheres. Drew era o mais procurado possível. Os assassinos e os guardas foram instruídos a atirar imediatamente. Ele era um homem morto - um animal morto - andando por aí com um laço em volta do pescoço e uma adaga de prata no coração. Wendy podia valer o risco - Wendy era sua irmã. Mas Kelia... Wendy poderia usar uma tática de susto em Agatha, mas Kelia nunca tinha sido oficialmente sua amante. Ele não estava vinculado a ela de forma alguma, então ela não sentia que valia a pena ser salva - pelo menos para Drew Knight. Se Drew Knight ia salvar alguém, seria sua irmã, mas ele não o fez.
O que significava que Kelia precisava descobrir como se salvar.
Wendy foi até cada mulher, endireitou o vestido e escovou o cabelo com os dedos. Quando ela terminou, ela ficou ao lado de Kelia.
—Não é para o benefício dos Sombras, — Wendy murmurou como explicação. —É para elas. É para mostrar que elas são importantes, que ter uma boa aparência é algo que elas merecem.
Kelia não conseguia descobrir o que dizer, então não disse nada. Ela não sabia como fazer, mas iria salvar a todas. Talvez ela pudesse falar com Wendy em particular e descobrir a melhor maneira de fazer isso. Talvez houvesse uma maneira de ela remover o colar de alguém para que Wendy pudesse usar suas habilidades mágicas e escapar.
—Posso oferecer um conselho? — Wendy perguntou em voz baixa. Ela caminhou até o topo da escada e começou a descer lentamente.
—Por favor, — Kelia disse, sua voz tão baixa.
—Quando eles te pegarem, não grite — disse ela. —Você suportou muita dor. Rycroft chicoteou você - você sabe como é isso. Há muito mais cicatrizes emocionais decorrentes do estupro violento que não pude começar a curar ou expressar em palavras. No mínimo, você pode controlar como reage a eles. Não grite.
Elas alcançaram as escadas antes que Kelia pudesse responder. Isso não importava. Ela não tinha nada a dizer. Ela não sabia como se preparar para isso. Ela sentiu as lágrimas começarem a crescer. Seu coração batia forte em seu peito e ecoava por toda sua cabeça. Cada passo que ela dava combinou com seus batimentos cardíacos. Isso seria pior do que as chicotadas que ela recebeu de Rycroft. Ela sabia agora, no fundo de seus ossos, ela sabia disso.
No minuto em que Kelia pisou no primeiro andar, Agatha estendeu a mão e colocou a mão em seu ombro, fazendo-a passar por entre as outras até chegar à frente da fila. Ela tinha muito prazer em conduzir Kelia e as outras para fora do celeiro, para as docas próximas.
Kelia manteve os olhos focados em seu entorno. Ela não tinha percebido que elas estavam tão perto do porto. Ao passarem por uma entrada isolada para as docas, ela descobriu o porquê. Lá, pouco antes de um pequeno portão preto se abrir e levá-las a um caminho pavimentado até a água, havia uma pequena plataforma com um linchamento. Parecia uma forca, onde alguém foi enforcado. Onde alguém estava pendurado.
Kelia reconheceu a garota. Embora não conseguisse se lembrar do nome, ela conhecia a garota de sua época lavando pratos. Ela perguntou a Kelia sobre beijar Drew Knight. Agora, ela estava amarrada com uma corda grossa em seus pulsos à madeira atrás dela e seus pés fora do chão. Seus ombros estavam fora de suas órbitas. Ela estava completamente nua e havia cicatrizes nas costas de chicotadas. Sua pele estava totalmente rasgada e o sangue agora era marrom e uma crosta vermelha escura na pele branca. Havia mordidas em cada centímetro de sua pele, pequenas crostas cobrindo os buracos. Seu cabelo estava opaco, pendurado em fios até os ombros.
Morta.
Kelia estremeceu. Ela não conseguia descobrir há quanto tempo a garota estava morta, se ela havia sido punida alguns dias atrás ou se tinha sido semanas atrás. Ela torturou sua mente, tentando se lembrar da última vez que a vira. Kelia não conseguia nem lembrar o nome da garota enforcada e se odiava por isso. Ela era realmente tão egoísta?
O pescoço da garota estava protuberante em um ângulo estranho, e havia sangue seco endurecido em seu rosto em fluxos sob os olhos. Pássaros bicavam seus olhos.
Kelia parou de andar, tombou e vomitou. Com as mãos nos joelhos dobrados, ela não se preocupou em mascarar a dor e nojo que sentiu ao soltar a comida.
—Vejo que você percebeu nosso aviso — disse Agatha, com uma das mãos nas costas de Kelia como uma mãe faria para acalmar seu filho doente. Sua voz, entretanto, era fria ao invés de reconfortante. —Ela tentou escapar de sua primeira noite conosco, apenas três semanas atrás. Os cães a pegaram primeiro. Sua punição foi uma chicotada privada. Veja, nós a amarramos ali e Rycroft desferiu os golpes. Dez, por insubordinação, por tentar ignorar compromissos. Tentamos avisá-la, mas ela se recusou a ouvir. Assim que ela suportou sua punição, nós a deixamos lá em cima e enviamos os Sombras para um banquete. Eles fizeram muito mais com seu corpo. Seu vestido foi rasgado dela; coisas vis foram feitas ao seu corpo. De alguma forma, ela sobreviveu a tudo isso até que acordamos e descobrimos seu pescoço quebrado. Não podemos provar, mas acreditamos que alguém desejou mostrar misericórdia quebrando o pescoço.
Kelia começou a chorar. Ela ainda estava curvada, enxugando o vômito do queixo.
—Espero que você dê ouvidos ao nosso aviso, Starling, — Agatha continuou certificando-se de que sua voz soasse alta e clara sobre o som do vômito de Kelia. —Você não quer ser comida para os pássaros, quer?
Tudo em que Kelia conseguia se concentrar era em acalmar o estômago.
—Sinto muito — disse Wendy em um murmúrio baixo. —Se eu tivesse minhas habilidades, seria capaz de inventar algo para você.
—Você nem vai falar de suas habilidades, bruxa, — Agatha zombou. —Se você tivesse bom senso, faria o que é bom para você e manteria essa boca imunda fechada.
—Você não teve que dar o alarme quando Madeline fugiu. — O coração de Kelia apertou ao ouvir Wendy dizer o nome da garota. As lágrimas brotaram dos olhos de Kelia, e ela piscou rapidamente para se livrar delas o mais rápido possível, sem Wendy ver. —Ela estava com medo e, em vez de mostrar compaixão, você tocou o alarme. Você disse a todos que ela estava fugindo. Você é responsável por sua morte dolorosa. Guarde minhas palavras, você terá a sua. Você vai se arrepender do dia em que sentenciou aquela garota à morte.
Agatha empalideceu, seus dedos tremendo visivelmente enquanto ela continuava segurando o talismã de pedra.
—São mais duas chicotadas. — Disse ela.
—Vale a pena — disse Wendy.
Kelia olhou para Wendy enquanto Agatha voltava para a frente da fila. Seu estômago ainda agitava, não se recuperando totalmente do vômito, mas ela se sentia melhor agora que seu estômago esvaziou.
—Obrigada. — Kelia murmurou baixinho.
—Não me agradeça, — Wendy disse, sua voz firme, seus olhos na forma mutilada de Madeline. —Cheguei tarde demais para aliviar o sofrimento de Madeline. Ninguém sabia o que aconteceu até que ela já estava pendurada lá, com as costas abertas com o chicote de couro. Quando eles soltaram as Sombras, não havia nada que eu pudesse fazer. Eu não tenho minha magia. — Sua voz falhou e ela respirou fundo antes de continuar. —Eles cheiraram o sangue dela e ela foi aproveitada durante a noite. De onde eu estava, podia ouvir seus gritos até eles desaparecerem com a luz da manhã. — Ela cerrou os dentes, tentando evitar que a voz tremesse. —Eu deveria ter feito mais, mas não pude. As proteções me impediram de fazer isso.
Kelia não sabia o que estava fazendo, mas estendeu a mão e segurou a mão de Wendy. —Não sei como — disse ela, com a voz baixa e insegura, —mas vamos sair dessa. Nós vamos passar por isso. Não apenas você e eu... — Ela olhou para as quatro mulheres à sua frente, seguindo Agatha como uma manada de vacas estúpidas. —Mas todas nós. Eu te prometo isso.
—Eu acho que estou realmente inclinada a acreditar em você, Assassina, — Wendy disse. —Se for verdade e você possui algum tipo de relacionamento com meu irmão, você é muito mais engenhosa do que eu inicialmente esperava.
Kelia se concentrou no horizonte. A chuva estava fraca, tão fraca que caía como sussurros suaves na terra. Wendy parecia em paz na chuva, confortável e nada incomodada por ela. Kelia descobriu que também se sentia atraída pelo clima turbulento. O bater das ondas na costa, raivoso e exigente, retumbou nas proximidades. Os navios e barcos balançavam contra a superfície da água, os barcos mais leves quase tombando, mas de alguma forma conseguiram se manter à tona.
—Eu a conhecia. — As palavras saíram de sua boca antes que ela pudesse detê-las. Ela nunca confessou nada a ninguém, exceto pela vez em que começou a chorar na frente de Drew Knight por causa de seu pai. Como era apropriado que ela fizesse o mesmo com a irmã dele. —Ela... — Ela acenou com a cabeça de volta para o corpo de Madeline, mas ela não conseguia encontrar as palavras adequadas para descrevê-la apropriadamente.
—Madeline, — Wendy disse em uma voz suave. —Você conheceu Madeline.
Kelia acenou com a cabeça, mas quando ela foi repetir o nome de Madeline, ela descobriu que não poderia dizer. Sua voz engasgou com a palavra e em vez do nome, ela soltou um pequeno guincho quebrado.
—Nós, uh. — Kelia balançou a cabeça enquanto continuava a pisar com um pé na frente do outro. —Nós estávamos juntas. Lavamos pratos juntas, quero dizer. — Ela tentou piscar para afastar as lágrimas, mas elas caíram apesar de tudo. Ela enxugou o nariz com as costas da mão. —Eu não lembrava o nome dela. Quando ela mudou de posição, não a vi novamente. Eu nem liguei.
—Nós fazemos escolhas — disse Wendy. —O melhor que podemos fazer é aprender com elas. E planejar sua vingança. A vingança é a parte mais importante.
Kelia olhou para ela surpresa. —Sempre ouvi o contrário — disse ela. —Aprenda com seus erros. Siga em frente. Morda a língua, mantenha o queixo erguido.
—Isso é uma merda — disse Wendy. —Às vezes, a única coisa que me faz continuar é a expressão em seus rostos quando acabo queimando todos eles. E eu vou.
Kelia se voltou mais uma vez para o mar. De alguma forma, seus pés continuaram a se mover enquanto sua mente permanecia em Madeline. Agora, ela estava no convés de madeira frágil antes de um pequeno barco balançando nas ondas.
—Lembre-se de não gritar. — Disse Wendy em uma voz que quase foi abafada pela chuva.
Estava caindo mais forte agora, o que só poderia ser uma coisa boa.
Depois de ser violada e brutalizada, Kelia sairia do barco e cairia na chuva. Isso lavaria qualquer traço da Sombra que fosse parceiro dela e, a partir daí, ela mudaria sua pele e a tornaria mais espessa para que a próxima vez não fosse tão traumática.
Porque Wendy estava certa. A única maneira de Kelia sobreviver a isso seria sabendo, sem dúvida, que ela seria capaz de extrair uma vingança brutal e não deixar sobreviventes.
Por Madeline. Por Wendy. Para todas elas. Ela só precisava descobrir como.
CAPÍTULO 23
Passou-se quase uma semana antes de Drew Knight decidir agir. Depois do que ele descobriu com Kelia, o perigo que ela poderia correr, ele não queria arriscar deixá-la no programa por mais tempo. No sétimo dia, ele estava pronto. Ele não poderia tocar a terra até o anoitecer, e a espera foi uma agonia. Ele deveria ter dormido durante todo o dia, garantindo que quando o sol se pusesse, seu corpo estaria descansado, sua mente estaria preparada. Em vez disso, ele estava acordado, pensando em todas as diferentes coisas que planejava fazer com Rycroft, dependendo de como ele encontrasse Kelia e em que estado ela estava.
Drew caminhou para cima e para baixo no navio, seus olhos se estreitaram, seus lábios se contorceram em uma carranca. Ele estava tão furioso com o pensamento de Kelia naquele programa para ele, apenas para que ela pudesse encontrar sua irmã, que suas presas foram extraídas e pressionadas contra seu lábio inferior.
De certa forma, isso foi culpa dele.
Ele tinha um favor a pedir, e ela já havia feito o que lhe foi pedido. Não havia razão para ela continuar a fazer mais nada. No entanto, sendo a pessoa teimosa que era, quase parecia que Kelia não iria descansar até que Wendy fosse encontrada. E ele não sabia se era porque Kelia queria garantir que ela não tivesse que trabalhar com ele novamente ou se era porque ela havia assumido a responsabilidade parcial pela captura de Wendy. Afinal, foi seu pai quem criou este programa.
—Você está abrindo um buraco no convés.
Drew se virou. Embora Emma tivesse um pequeno sorriso divertido no rosto, Drew não teve coragem de reagir da mesma maneira.
—Você ouviu do seu contato? — Drew quase latiu. Ele parou de andar no meio do convés.
—Sim, claro, — Emma disse, caminhando em direção a ele, seus quadris balançando a cada passo. Ela não disse mais nada até estar na frente dele. —Daniella não respondeu a tudo o que você pediu? Ela nos contou os horários dos guardas, onde fica o novo quarto de Kelia, agora que ela é Cega.
—Seu contato, — Drew se recusou a dizer o nome dela, — também foi quem sentiu a necessidade de atacar Kelia.
—Ela descobriu o que eu me recusei a dizer a ela, — disse Emma. A diversão havia desaparecido de seus olhos. —Que o pai de Kelia criou o programa de reprodução. Você sabe o que aconteceu com Daniella quando Rycroft percebeu que tinha a filha de uma bruxa da terra.
—Gregory Starling não teria permitido que tal coisa acontecesse se soubesse. — Drew apontou. O sol quase desapareceu no horizonte. Seus pés coçaram para tocar a terra mais uma vez, para se levar até Kelia em um instante.
—E como você saberia disso? — Emma perguntou, projetando o quadril para fora e colocando a mão sobre ele.
—Você acha que eu não fiz nenhuma pesquisa sobre Assassinos que podem ter levado minha irmã? — Drew perguntou. —Gregory Starling era um homem tolo, determinado a se vingar porque o amor de sua vida foi morto por uma sereia.
—Então por que não experimentar em uma sereia? — Emma explodiu. —Por que levar Daniella? Por que levar Wendy? As bruxas da terra são muito diferentes dos demônios do mar. — Ela cuspiu, como se quisesse enfatizar seus pensamentos sobre sereias.
—Talvez ele não soubesse a diferença. — Sugeriu Drew. Se ele não estivesse tão focado em tentar tirar Kelia de sua terrível situação, ele teria sorrido com o gesto atípico de Emma. Ela era uma dama tanto quanto uma bruxa, mesmo quando se disfarçava de prostituta. Cuspir não era algo que ela fizesse. —Talvez ele pensasse que bruxas eram bruxas e ponto final.
—Talvez, — Emma permitiu. —Meu problema são as bruxas da terra sendo punidas pelas ações de uma sereia. Daniella foi punida e Wendy está sendo punida agora. Fui punida quando estive lá. Gregory Starling pode ter sido ignorante, mas ignorância não é uma defesa adequada. Ele é igualmente responsável como Rycroft.
—Mas você não culpa Kelia pelos pecados de seu pai. — Disse Drew. Seus olhos continuaram no horizonte. Faltavam apenas dez minutos para ficar preso em seu navio. Então ele poderia ir para Kelia. Ele poderia chegar até Wendy. Ele poderia libertá-las de sua prisão.
—Eu não, — Emma disse, sua voz curta. —E não acho que ela deva ser responsabilizada ou punida por suas ações. — Ela olhou para o canto do navio onde a escada descia para o convés inferior. —Você pretende envolver seu filho em sua missão de resgate?
—Seu amor por minha irmã é inquestionável — admitiu Drew, — mas essa paixão feroz não se traduz necessariamente em ajuda. Ele pode arriscar tudo.
—Você também poderia, indo atrás de Kelia, — Emma disse. Quando Drew se virou para lançar um olhar furioso em sua direção, ela já estava caminhando do lado oposto do navio, com as mãos delicadamente colocadas atrás das costas. —Não discuta comigo, Andrew Knight. Se, por algum motivo inexplicável, você se considera parcialmente - senão totalmente - responsável por tudo o que aconteceu com Kelia - suas chicotadas, sua reputação arruinada, sua participação no programa de criação - então você deve se lembrar que ela o procurou, não o contrário.
—Sim, mas fiz um trato com ela — disse Drew, — e podemos manipular a dicção para que funcione a nosso favor, mas isso não significa que seja verdade. Isso não significa que seja certo. Kelia queria saber se seu pai foi assassinado e por quê, e eu não cumpri tecnicamente minha parte do acordo. Tudo o que ela precisava fazer era descobrir com certeza que Wendy estava aqui, na Sociedade. Não apenas ela fez isso, ela se ofereceu para fazer parte do programa de reprodução para garantir que fosse o caso. Para mim. Ela fez aquele sacrifício por mim.
—Rycroft poderia tê-la forçado a estar naquele programa, Drew, — Emma murmurou. —Ela pode não ter tido escolha no assunto.
—Talvez, — Drew admitiu. —Mas a maneira como ela falou sobre isso, de fazer parte daquele programa...— Ele balançou a cabeça e caminhou para o lado do navio. Estibordo deu-lhe uma visão melhor do horizonte enquanto descansava os antebraços no corrimão, curvando as costas e sentindo o alongamento. —Ela não lutou contra isso. Ela me disse isso. Ela fez isso para encontrar Wendy, para garantir que a Sociedade a tivesse. Pelo meu bem.
—Se ela encontrasse Wendy naquele programa, como ela te contaria? — Emma perguntou gentilmente, parando ao lado de Drew no Eetibordo. Ela não o tocou - Emma não era o tipo de dar e receber qualquer tipo de afeto físico, independentemente de qual fosse a situação, mas sua presença ao lado dele era para tranquilizá-lo, tanto quanto ela pudesse. —Você deve se lembrar do que aconteceu, Drew. Eu estava lá. Eu lembro. Eu me lembro do que aconteceu com uma criança... —Ela cerrou os dentes, e Drew sabia que não devia empurrar. —Felizmente, ela saiu. Mas o que ela teve que suportar... Eu não desejaria isso ao meu inimigo. Se você não tivesse pedido que Wendy me resgatasse, eu ainda poderia estar no programa. Então, novamente, ela não teria tomado meu lugar. — Ela soltou um suspiro. —O que você está fazendo agora, no minuto em que o sol encontrar a água e derreter nela?
Drew sacudiu a cabeça para ela. —Eu pretendo ir atrás dela, — ele disse, como se isso fosse óbvio. —Só espero que nada tenha acontecido com ela.
—Você deve se preparar para isso, — disse Emma. Ela se endireitou, juntando as mãos na frente dela e descansando-as em sua cintura. —Diga-me, você ainda vai se importar com ela se sua inocência foi roubada dela? Se ela está machucada e sangrando, uma casca do que ela já foi? Você não pode saber como é...
—Eu não reivindico. — Drew nunca teve o desejo de ser violento contra uma mulher em todo o seu século de vida. Mas até o pensamento de que ele não se importaria com Kelia simplesmente por ter sido atacada causou uma onda de fúria em seu corpo. —Kelia é alguém que sempre irei...— Ele se interrompeu, sem saber o que dizer exatamente. Ele balançou a cabeça e mais uma vez se voltou para o horizonte. Só de olhar para ele se acalmou. —Você me insulta.
—Você não é como os outros homens. — Emma observou.
—Porque eu não sou um homem, — Drew disse. —Eu sou uma besta.
—Eu não gosto de homens de qualquer maneira. — Emma disse com um encolher de ombros.
Drew sorriu. O sol estava quase lá. Pintando uma longa faixa de cores brilhantes - rosa, ouro, azul, lavanda. Era bonito. Como uma Sombra, ele apreciava o pôr-do-sol ainda mais do que quando estava vivo, apenas porque isso lhe concedia sua liberdade. Quanto mais velho ficava, porém, mais percebia que tocar a terra não era tão importante quanto outras coisas. Amizades, comida, beleza em todas as coisas.
—E Christopher? — Emma perguntou, tirando Drew de seus pensamentos. —Devo mantê-lo na coleira? Ele vai se perguntar por que você foi, já que você nunca realmente sai deste navio.
—Ele só vai piorar as coisas em sua paixão, especialmente se Wendy estiver presente — disse Drew, tocando o queixo com o dedo. —E quem sabe como ela vai reagir ao vê-lo? É melhor se ele permanecer a bordo.
—Eu farei o meu melhor. — Ela murmurou.
—Seu contato, — Drew disse. —Onde posso encontrá-la? Ela vai me ajudar? Como posso confiar nela?
—Você faz muitas perguntas, Drew Knight, — disse Emma, suspirando. —Você pode simplesmente confiar em mim? Daniella estará em quartos vazios, enchendo bacias de água a partir das oito horas desta noite. Isso dá a você uma hora. Ela sabe que você virá esta noite. Eu disse a ela para encontrá-lo no antigo quarto de Kelia logo depois das oito. Você pode confiar nela. Ela detesta a Sociedade quase tanto quanto você. Seu pai, quando descobriu que sua mãe era uma bruxa... —Emma deixou sua voz sumir, mas a raiva brilhou em seus olhos. —A Sociedade se ofereceu para levá-la, para garantir que ela nunca assumisse seus poderes. O que eles fizeram com ela, eu nem posso falar sobre isso. Mas você pode confiar nela, mesmo depois do que ela fez com Kelia. Talvez até por causa disso. O objetivo era encontrar Wendy, correto? De qualquer maneira possível. E agora, Kelia pode fazer exatamente isso.
—Daniella sabia que Wendy fazia parte do programa? — Drew perguntou.
Emma encolheu os ombros. —Tenho certeza que ela percebe, sim, mas não porque ela conheceu Wendy. Wendy caiu em suas mãos depois de me ajudar a escapar. Daniella foi removida do programa antes. — Emma fez uma pausa. —Eu confio nela, Drew. E se você confia em mim, isso deve ser o suficiente.
Drew não tinha tanta certeza disso, mas aceitaria a palavra de Emma apenas porque ela nunca o conduziu para o caminho errado. Ele voltou para estibordo e esperou o sol ir embora. Ele tamborilou com os dedos na lateral do navio, bateu com o pé. Ele precisava ir embora agora, mas partir mais cedo seria sua morte absoluta, e ele não podia arriscar isso, nem mesmo por Kelia.
No minuto em que o sol desapareceu, ele remou de seu navio para a terra, usando o pequeno barco a remo com a mesma velocidade que alguns homens corriam. Ele sabia para onde estava indo como conhecia a cor dos olhos de Kelia. Ele não precisava pensar nisso. Ele não teve que parar e se lembrar. Chegar à fortaleza era parte dele, uma urgência que não se comparava a nada mais.
Árvores reagiram segundos depois de ele já ter passado por ele. Houve uma reação retardada quando a sujeira foi levantada atrás dele também. À medida que a selva ficava mais habitável, com mais casas, mais luzes, mais ruídos, Drew acelerava. Ele não precisava que ninguém o reconhecesse, nem mesmo suspeitasse dele neste momento, não quando ele tinha que estar em algum lugar.
A fortaleza estava à vista. Ele já sabia onde era o quarto de Kelia. Ele só precisaria pular a parede, cruzar o telhado e cair. Ainda bem que a chuva quase parou. A névoa enchia o ar e gotas suaves caíam do céu como lágrimas caindo de uma mulher que tentava manter sua tristeza sob controle. O frio não o deteve. Na verdade, a névoa o escondeu, e ele encontrou o telhado sem ninguém soando o alarme, sem ninguém sequer perceber que ele estava lá.
Ele pulou no telhado sem precisar escalar a parede e alcançou o quarto de Kelia sem problemas. Não havia luz emanando de sua janela. Ele esperava que talvez todos estivessem enganados e ela ainda estivesse protegida dentro de casa, mas não foi esse o caso. Ele abriu a janela dela e saltou para o quarto dela sem fazer barulho. Ele se virou para fechar a janela quando uma voz rompeu o silêncio.
—Bem na hora. Estou surpresa.
Drew não disse nada e terminou sua tarefa antes de se virar e perceber o contato de Emma. Ela era mais alta do que Kelia por cerca de meia cabeça, o que a colocava na altura do nariz. Seu cabelo ruivo estava puxado para trás com fitas e presilhas e ela usava um vestido cinza familiar. Seus olhos castanhos estavam estreitos com desconfiança óbvia, seus lábios pressionados em uma linha branca e fina enquanto ela o estudava sem medo. Ou talvez ela estivesse com medo, mas ela havia aprendido através da experiência as formas apropriadas de mascarar isso. Ela segurava uma grande jarra, provavelmente cheia de água. Ela a colocou no boudoir antes de retomar sua inspeção dele.
—Daniella? — Sua voz era curta. Ele não se importou se soasse rude. Ele queria agir rapidamente e não podia perder tempo para sutilezas.
—Isso. — Ela deu um passo à frente. —Emma disse que você precisaria da minha ajuda pessoalmente?
—Leve-me ao programa de criação, — ele instruiu. —Você sabe onde fica, certo?
—Como cega, estou comprometida com minha tarefa — disse ela. —Eles ficariam desconfiados se eu não a completasse.
Drew franziu a testa. —Você sabe onde fica o acampamento, então? — Sua voz estava rouca. Ele sabia que estava parecendo rude, mas não conseguia encontrar nele sua aparência habitual de um cavalheiro encantador. O tempo estava fora da essência. Ele não sabia se Kelia estava segura, em uma cama, dormindo, ou se sua pele estava sendo rasgada e sua inocência sendo devorada. —Eu preciso saber agora.
Daniella saiu de sua posição ao lado do boudoir e foi até a janela. Drew a seguiu.
—Você consegue ver o celeiro bem ali? — Ela apontou para a silhueta de um grande edifício. Drew conseguia distingui-lo facilmente à distância. Ainda estava dentro da fortaleza e nas terras da Sociedade. —Depois que Kelia foi aceita no programa, eu os segui. Se ela ainda não foi levada para seu companheiro, ela estará lá.
—E onde são mantidos os companheiros?
Daniella balançou a cabeça. —Eles os movem, da mesma forma que fazem o programa de criação. Mas geralmente os dois são mantidos por perto.
Drew assentiu, mas algo ainda o incomodava. Ainda havia perguntas que ele queria respondidas. —E por que ela foi designada para o programa? Você pode me dizer isso?
Daniella deu um passo para trás e desviou o olhar. —O objetivo era encontrar Wendy e libertá-la — disse ela. —Não importa o custo.
Drew franziu a testa com sua resposta enigmática, mas não havia tempo para se preocupar com isso agora.
—Obrigado. — Ele se forçou a dizer. Ele se virou para a janela, preparando-se para ir para o celeiro.
—Você se preocupa com ela. — Daniella murmurou antes que ele pudesse sair.
Drew não disse nada e saiu. Ele não achou que fosse necessário dignificar seu choque com uma resposta, mesmo que fosse verdade.
CAPÍTULO 24
Agatha tinha um sorriso no rosto, no qual Kelia não confiava, já que Wendy foi a primeira a subir no barco. Kelia foi forçada a seguir, quisesse ou não. Como ovelhas, as quatro mulheres seguiram o exemplo. Suas bochechas queimaram com o calor, apesar de estarem rodeadas pela névoa, apesar do toque suave da chuva em sua pele e roupas. Seus pés se moveram como se estivessem amarrados a âncoras, recusando-se a cruzar o convés. Ela preferia ficar em um lugar.
—Por que estamos em um barco? — Kelia perguntou. —O sol, o pouco que havia, se foi. Os Sombras podem tocar a terra. Por que não os deixar?
—E limpar a bagunça? — Havia uma expressão de nojo no rosto de Agatha enquanto ela olhava para Kelia como se ela fosse uma espécie de idiota. —Podemos controlá-los se estiverem no barco. Saber que você está indo, saber que eles podem se alimentar de você, os obriga a ficar.
—Você os transforma em monstros devastadores. — Rebateu Kelia.
Wendy passou por ela e parou perto de uma pequena escada que parecia levar para o convés inferior.
—Mantê-los confinados quando precisam ser capazes de liberar sua energia.
—O que você acha que serve? — Agatha saiu do cais e entrou no barco. —Agora, vou mostrar a qual estábulo você será designada.
Ela entrou em uma pequena cabine acima do convés. De onde Kelia estava, era difícil para ela entender o que, exatamente, Agatha estava fazendo ali. No entanto, ela foi capaz de ouvir os sons reveladores de um fósforo sendo arrastado para a madeira antes que uma chama ganhasse vida. A cabine brilhava naquele ponto. Agatha emergiu, com a mão primeiro, segurando a vela, e fechou a porta atrás dela.
O coração de Kelia continuou batendo furiosamente em seus ouvidos. As mulheres seguiram Wendy até a escada, alinhando-se atrás dela como patinhos atrás da mãe. O medo começou a percorrer seu corpo e, embora ela não quisesse demonstrá-lo, ela não pôde deixar de senti-lo. Não havia como escapar disso, não desta vez.
—De quem é esse quarto? — Kelia perguntou.
—Aquele quarto é irrelevante — disse Agatha. Seus olhos escuros brilharam com diversão, como se soubesse que Kelia estava tentando ganhar tempo antes que elas fossem para o convés inferior. —Fique de boca fechada e desça. Isso nos pouparia muito tempo.
Agatha viu o olhar de Wendy e sua diversão desapareceu. Ela assentiu, como se dissesse: É hora de você descer do convés e enfrentar seu destino mais uma vez.
Wendy apertou sua mandíbula e ela se virou e desceu a escada. Agatha fez com que Kelia ficasse na retaguarda, como se prolongar o inevitável tornasse o primeiro encontro muito mais satisfatório para Agatha.
A escada rangeu com o peso do grupo. Um dos painéis de madeira estava solto e o estômago de Kelia vibrou quando ela pisou nele.
No minuto em que ela alcançou o chão, ela podia ouvir seu batimento cardíaco acelerar ainda mais alto. Estava muito quieto. Essas Sombras deveriam estar famintas e isoladas. Se elas tivessem retido algo de sua humanidade antes de serem transformadas, seu tratamento aqui acabaria com isso. Kelia ainda não tinha certeza da verdadeira natureza de uma Sombra do Mar. A Sociedade fez questão de enfatizar suas tendências bestiais, o jeito que elas eram completamente diferentes dos humanos, o jeito que elas não tinham alma, o que tornava matá-las mais fácil.
Mas depois de conhecer Drew Knight, depois de estar em torno de sua tripulação repleta de Sombras, ela não tinha tanta certeza. Mesmo seu encontro com Christopher Beckett, um homem recentemente transformado, a deixou mais curiosa do que com medo. Ele estava atualmente nos estágios preliminares de ser uma Sombra, o que deveria torná-lo mais perigoso. Em vez disso, ele era encantador, bonito, arrogante e completamente focado em encontrar sua prometida. Talvez o temperamento da Sombra tenha se resumido a sua criação.
—Agora, — Agatha disse quando eles entraram em um corredor cheio de portas fechadas. Não parecia haver uma galera, o que disse a Kelia que esses barcos foram projetados especificamente para esse propósito. Ela zombou com amargura da traição de seu pai. —Cada companheiro, como você sabe, terá uma chance com você para garantir que encontremos a mais alta capacidade de engravidar você. O que significa não se apegar muito ao seu parceiro atual porque você mudará. Um conselho: você está aqui com um propósito e apenas um propósito. Não tente falar com esses monstros. Não tente racionalizar com eles. Eles não são como você e eu, mesmo que tenham a mesma aparência. Eles não têm sentimentos. Eles estão condenados, e uma vez que encontrem sua morte para sempre, eles apodrecerão no Inferno.
—Como eles podem apodrecer no Inferno se não têm alma? — Wendy falou lentamente com uma voz cansada.
Agatha lançou um olhar penetrante para Wendy e depois voltou sua atenção para Kelia. —Você tem alguma pergunta, Starling? Algumas vezes - embora seja uma ocorrência rara - alguém não sobrevive ao seu primeiro companheiro. Certamente espero que isso não aconteça com você. Mantenha um semblante forte. Ouvi dizer que você fica enjoada no mar. Vomitar em seu companheiro só vai deixá-lo com raiva, muito provavelmente.
—Por que você não mostra a ela como fazer isso, Agatha? — Wendy brincou, encostando-se na porta de um dos quartos. Todo o seu comportamento era indiferente, algo que Kelia não entendia. Ela parecia calma sobre o que iria acontecer, como se não importasse. Isso, ou a situação era tão terrível que não havia razão para lutar contra ela. —Finja que você é inocente o quanto quiser, mas nós duas sabemos que sua boceta viu mais ação do que a minha.
A cor sumiu do rosto de Agatha ao ouvir tal palavra.
—Eu lançaria fogo em você e observaria você queimar sem pensar em salvá-la — Agatha murmurou. — Não sei por que estamos deixando os Sombras fornicar com você quando você é uma bruxa da terra e Starling queria se vingar das sereias. Não sei por que é tão importante quebrá-la quando deveríamos simplesmente nos livrar completamente de você e jogar seu corpo no fogo ou amarrar âncoras em seus tornozelos e fazer você se afogar no mar. Mas acredito que a Sociedade vai perceber isso por si mesma em breve, e vou me oferecer para incendiá-la.
Wendy não disse mais nada. Em vez disso, ela se alinhou na frente do quarto para a qual foi designada e esperou. Ela evitou olhar para outra pessoa. Kelia não sabia se era porque ela não queria distraí-las ou se ela queria se concentrar em seus próprios problemas.
—Vá em frente, então, — Agatha disse, lentamente recuando até a escada de madeira da qual elas tinham acabado de sair. —Entrem e cumpram seu dever. Iremos recuperá-las em uma hora, se nos lembrarmos.
—E se decidirmos não entrar? — Kelia não conseguiu deixar de perguntar. Ela inclinou a cabeça para poder olhar para Agatha. Seus dedos coçaram para abrir a porta por pura curiosidade, mas seus pés estavam firmemente enraizados no lugar, não querendo dar um passo adiante.
—Devemos andar pelo corpo pendurado nos elementos enquanto falamos mais uma vez? — Agatha perguntou. —Você está aqui por uma razão e apenas uma razão. Se você decidir fugir de seu dever, nós a pegaremos. Vamos puni-la com uma morte pior do que esta vida. Saiba disso.
Kelia sabia disso. O corpo de Madeline brilhou em sua mente, e ela teve que se conter para não se sacudir e vomitar de náusea com o estômago vazio. Em vez disso, ela se virou para a porta e respirou fundo. Ela fechou os dedos em punhos e pressionou as unhas nas palmas das mãos.
Sem esperar por mais instruções, cada mulher deu um passo à frente e bateu duas vezes - alto e distintamente. Kelia fez o mesmo. Talvez ela estivesse avisando a Sombra que ela estava aqui, preparando-o. Então, elas estenderam a mão e puxaram a maçaneta da porta, abrindo a porta e entrando. Mesmo na escuridão, Kelia podia ver o brilho iridescente da prata líquida. Não admira que as Sombras não pudessem escapar. Eles estavam literalmente enjaulados.
Ela hesitou. Sua garganta estava seca. Seus dedos, enrolando em torno da maçaneta da porta, tremeram. Ela odiava estar com medo, incapaz de fazer qualquer coisa em relação a sua situação.
Ela engoliu em seco. Ela respirou fundo novamente. Ela não os deixaria ver seu medo. Ela não deixaria a Sombra sentir o cheiro nela. Ela seguiria o conselho de Wendy. Ela não gritaria. Ela não iria reagir. Ela se deitaria e olharia para o teto, contando os segundos até que tudo acabasse.
—Por que você hesita, Assassina? — Agatha perguntou, parando ao lado de Kelia. —Você não hesitou quando abriu as pernas para Drew Knight. Você sabia que eventualmente seria pega e punida por seu comportamento pecaminoso.
—Eu esqueci que você estava lá. — Disse Kelia. Ela grunhiu e abriu a porta. Ela preferia enfrentar quaisquer horrores que estivesse ali em vez de ouvir o lixo que vinha dessa mulher.
Antes que Agatha pudesse dizer mais alguma coisa, Kelia entrou no quarto escura e fechou a porta atrás dela. A fechadura clicou, dizendo a Kelia que ela agora estava trancada. Ela não se moveu de sua posição ao lado da porta, mas esperou até que seus olhos se acostumassem com a escuridão.
—Eu posso ouvir você respirar, Assassina. — Uma voz murmurou. Era sedosa, sedutora e acentuada. Espanha, se ela tivesse que adivinhar. Deslizou por sua espinha como uma serpente e fez sua carne arrepiar.
—Bom para você. — Ela retrucou, embora sua voz saísse mais trêmula do que ela teria preferido.
—Você é nova. — Ele cheirou profundamente algumas vezes. —Eu posso cheirar sua pureza. Estou honrado por você ter me permitido reivindicar sua virgindade. O sangue sempre tem um gosto mais doce quando é o primeiro.
—Bem, você está enganado. — Kelia forçou a voz para se certificar de que saísse mais fortes do que da primeira vez. Ela se virou, tentando identificar de onde vinha a voz. Tudo ficou em silêncio, exceto por sua respiração. Ela não conseguia nem ouvir o que estava acontecendo nos quartos adjacentes ao dela. —Em primeiro lugar, eu não estou permitindo nada a você. Estou aqui contra a minha vontade, como você certamente bem sabe. Em segundo lugar, a única razão pela qual estou aqui é por causa do meu relacionamento com Drew Knight. Tenho certeza que você já ouviu falar dele?
O Sombra cuspiu. —Drew Knight é um traidor de sua própria espécie, — ele retrucou, sua voz se tornando áspera e ligeiramente zangada. —A Rainha o escolheu como seu parceiro, concedeu a vida eterna a ele e ele a traiu em troca.
Kelia ficou imóvel. Isso era interessante. Talvez ela pudesse mantê-lo falando. Talvez ela pudesse prolongar seu ataque. Ela sabia que teria que aguentar esta noite. Não haveria como escapar disso. No entanto, pelo menos, ela poderia ser capaz de adquirir informações que ela poderia compartilhar com Wendy para ajudar a executar seu plano de se libertar deste inferno.
—Talvez ela merecesse. — Disse Kelia lentamente. Ela não sabia se disse a coisa certa, mas sabia que sua voz não estava tão trêmula quanto antes.
A Sombra cuspiu novamente. Kelia olhou para baixo, mas além do toque ocasional de marrom, tudo ao seu redor ainda estava envolto em sombras.
—A Rainha é tão generosa quanto uma mãe — disse o Sombra. Ele parecia mais perto dela, mas quando ela se virou, ele não estava lá. —Tão bonita como uma amante. Ela nos traz vida. Nós somos seus filhos. Nosso objetivo na vida é agradá-la.
—A Rainha criou você? — Kelia perguntou.
—A Rainha cria todos nós. — O Sombra respondeu.
Kelia fez uma pausa. —Então quem criou a Rainha? — Ela perguntou. —Eu pensei que a Sociedade tivesse criado você.
A Sociedade nunca disse a ela que havia uma diferença no temperamento de uma Sombra e quem os criava. Ela simplesmente sabia que os infantes eram mais bestiais do que os mais velhos. Agora, entretanto, ela não podia deixar de se perguntar se havia mais em uma Sombra do que simplesmente sua idade. Como os pais, o Criador do Sombra - independentemente de quem fosse – tinha algum efeito em seu filho?
O Sombra riu. —Você não sabe de nada, Assassina. A Sociedade faz Sombras com o temperamento de armas implacáveis. Eles pregam que as Sombras nada mais são do que animais, então eles criam Sombras que correspondem a essas expectativas. A rainha, tão cruel quanto bonita, se alimenta de humanos. Quando ela pega, ela dá. Os criados pela Rainha também são bestas, embora possam controlar seus temperamentos à medida que envelhecem e ganham mais experiência como Sombra. Seu Drew Knight foi a primeira Sombra que ela criou. Suponho que seja por isso que ela está tão apaixonada por ele.
Kelia apertou a mandíbula. Seu coração acelerou, tornando difícil respirar.
—Drew foi feito pela Rainha? — Ela perguntou.
—A maioria de nós foi, e aqueles que não foram ainda são bem recebidos por ela. — Ele suspirou, quase caprichosamente. —Anseio ir para a Ilha de Sangre. A Rainha me enviou aqui para ajudar nesta experiência. Eles precisavam das Sombras, ela queria ajudar. Eu faria qualquer coisa por ela, qualquer coisa. Você sabia que Rycroft queria acasalar você conosco? Para ver se poderíamos criar vida, mesmo na morte?
Kelia quase miserável. Podia ter a ver com seu enjoo, mas ela tinha a sensação de que tinha mais a ver com Rycroft tentando pegar o programa de seu pai e torná-lo pior do que era antes, tornando-o uma punição para aqueles que não caíram na linha em vez de algum tipo de experimento científico nojento baseado em vingança.
—Em primeiro lugar, pensei que Rycroft fosse contra a implementação deste programa — ela conseguiu dizer. —Por que ele mudaria de ideia?
—Você acha que alguém como Rycroft confia em mim? — A Sombra perguntou. —Talvez o homem só queira controlar as Assassinas que saem da linha. Aquelas que já se entregam à nossa espécie de boa vontade.
Ele fez uma pausa e Kelia sabia que o havia perdido. Ela podia senti-lo se aproximando dela, mas não porque ela pudesse ouvir seus passos. Era apenas algo que ela sentia. Como um instinto dizendo que ele estava bem atrás dela, se ela inclinasse a cabeça ligeiramente para trás, ela o sentiria.
—Aí está seu coração batendo mais uma vez, Assassina, — ele disse. Sua voz acariciou sua orelha e deslizou pelo lado de sua garganta. —Você disse que Drew Knight reivindicou você? Eu não sinto o cheiro dele em você. Veja, Assassina, se um Sombra afirma inocência, seja de um homem ou de uma mulher, o cheiro perdura pelo resto da vida. Eles sempre farão parte de você. Não há nenhum cheiro em você, o que me diz que sua inocência está intacta. Só pensando em devorar você...
Kelia se afastou. —Há quanto tempo você é uma Sombra? — Ela perguntou.
Ele parecia gostar de falar sobre si mesmo. Talvez ela pudesse distraí-lo um pouco mais, obter mais algumas respostas.
—Você sabe que eu terei você esta noite, Assassina, — o Sombra disse. —Por que adiar o inevitável?
—Eu não sei — disse Kelia honestamente. —Talvez eu queira alguma aparência de controle, um último resquício dele, antes que seja forçada a sucumbir ao meu destino. Isso é tão difícil de entender?
—Você acha que eu gosto de ficar enjaulado aqui, apenas ser alimentado quando eles trazem humanas muito jovens para mim como comida? — O Sombra perguntou. —Você acha que eu quero despertar o medo em minha parceira? Você acha que eu quero minha comida com medo de mim. A Sociedade não vai me deixar tentá-las, não vai deixar que as manipulem com minhas habilidades. Essas bugigangas em volta do seu pescoço protegem de toda a magia deste mundo... não apenas da magia das bruxas. Seria muito mais prazeroso para você e seria mais fácil para mim. Gosto de ser poderoso, mas não gosto de resistência. Se eu pudesse, todas vocês estariam implorando para ir para a cama comigo.
Kelia bufou antes que pudesse se conter. Antes que ela percebesse, os dedos se fecharam em sua garganta e ela foi erguida no ar pelo Sombra. Ela começou a tossir e engasgar.
—Você acha meus sentimentos engraçados, garota?
Sombras dançaram no rosto da fera. Kelia olhou para o rosto bonito. Pele lisa cor de oliva, principalmente sem cor. Olhos escuros e raivosos ficaram vermelhos. Cabelo preto encaracolado. Um corpo magro e musculoso. Ele estava vestido com roupas rasgadas - o que antes costumava ser uma túnica branca e calças pretas.
Ele era lindo. E ele não teria nenhum problema em quebrar seu corpo e tomar o que queria.
CAPÍTULO 25
Kelia não conseguia respirar. Ela estava perdendo oxigênio. Estrelas dispararam em sua visão, e ela agarrou a mão que segurava sua garganta, sem sucesso.
Então era assim que ela morreria. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela tinha tanto que queria fazer. As mulheres que ainda estavam aqui... ela não queria deixá-las nesta vida. Ela queria escapar da Sociedade...
Ela deveria ter ido com Drew. Ela deveria ter partido.
Sua garganta apertou. Sua visão ficou vermelha. Seu aperto na mão da Sombra afrouxou. Ela não podia fazer mais nada para lutar...
Um grande estrondo a fez esquecer momentaneamente que estava perdendo oxigênio. Agatha gritou ao longe. A madeira amassou e a porta se desintegrou em um monte de poeira.
—Espero não estar interrompendo nada muito urgente. — Disse uma voz familiar.
Kelia teria rido se não estivesse quase perdendo a maior parte de seu oxigênio devido ao aperto do Sombra em sua garganta. Ela conseguiu se afastar do rosto da Sombra, suas mãos agarrando as dele enquanto ela tentava se libertar de seu aperto. Não adiantou, é claro. Seu aperto era feroz e implacável.
Drew Knight, no entanto, estava de alguma forma parado na porta do quarto para o qual ela foi designada, seus olhos escuros estreitados ferozmente, sua postura curvada, como um gato selvagem rastreando sua presa. Como ele conseguiu tocar a porta, quanto mais quebrá-la, com a prata líquida encharcando a madeira, Kelia não sabia e nem se importava. Ele parecia inquieto, no entanto, não muito fraco, mas não com sua força total. Ela esperava que ele não tivesse se machucado de alguma forma.
Seu coração batia forte no peito, e ela não podia deixar de pensar que Deus, ou talvez seu próprio pai, havia enviado a ela um anjo da guarda na forma de uma Sombra do Mar.
—Deixe-a ir, — Drew disse, levantando-se devagar e dando um passo e depois outro ao entrar no quarto. O chão parecia vibrar a cada passo. Kelia podia ouvi-lo tremer, mesmo de sua posição no ar. —Ou vou arrancar sua garganta e pintar esta sala com seu sangue.
—Você faria isso com sua própria espécie? — A Sombra perguntou.
—Eu nem hesitaria. — A voz geralmente arrastada de Drew era clara e concisa. Ele parou quando estava a poucos passos da Sombra. Até agora, ele ainda não tinha olhado para Kelia. Todo o seu foco estava no homem Sombra.
Kelia se contorceu, mas descobriu que, ao fazer isso, perdia mais ar do que quando ficava parada. Ela cravou as unhas na pele do Sombra, mas ele não parecia afetado por isso.
A Sombra lentamente colocou Kelia no chão. No minuto em que ele a soltou, ela caiu no chão. Ela sugou o máximo de ar que pôde, quase engasgando com isso também.
Ela podia sentir os olhos de Drew sobre ela, e quando ela olhou para ele, ela encontrou seu olhar. A preocupação era fácil de decifrar nas piscinas quentes de marrom, e seu interior derreteu. A maneira como ele olhou para ela a fez se sentir especial, cuidada.
—Eu deveria matar você, — A Sombra disse, cuspindo aos pés de Drew. —Você é um traidor.
—Eu não me alinho com ninguém, — Drew disse com um encolher de ombros. A calúnia voltou e seus lábios se curvaram em um pequeno sorriso. —Todos os assessores são terríveis, se você pensar bem.
Kelia conseguiu se colocar de pé. Ela respirou fundo novamente, posicionando seu corpo para que pudesse atacar o melhor que pudesse no caso de o Sombra vir atrás dela mais uma vez. Ela não podia confiar que ele obedeceria a Drew, especialmente considerando que ele a estava olhando com um cálculo frio, como se quisesse machucar Kelia de alguma forma apenas para obter uma reação de Drew.
Algo brilhou. A Sombra estava usando algo - uma bugiganga, talvez? Mas por que?
Pela milésima vez, ela desejou ter sua lâmina confiável pendurada em seu quadril. Ela não precisaria de Drew para destruir a porta e atacar Agatha, o sangue escorrendo de sua garganta como fitas. Ela morreria em segundos.
—Seu cheiro nem estava nela — disse a Sombra. —Ela disse que não era tão pura quanto cheirava. Ela afirma que você possui a inocência dela. Mas não posso sentir seu cheiro nela. Ela mente em seu nome?
—Por que qualquer humano, especialmente uma Assassina, mentiria sobre tal coisa? — Drew perguntou lentamente.
Kelia vigiava Drew e suas características faciais. Ela não tinha certeza de como ele reagiria ao ouvir isso. Ela não tinha planejado falar com ele sobre isso. Ele poderia saber que ela mentiu sobre a natureza de seu relacionamento para protegê-la e sua verdadeira intenção de descobrir o que aconteceu com seu pai, mas ele não precisava saber que ela também estava usando seu nome para se proteger de outras Sombras.
—Então, você admite sua afirmação? — O homem Sombra se voltou para Kelia.
Kelia ficou tensa, sem saber o que a Sombra pretendia fazer. Drew Knight era provavelmente uma das criaturas mais rápidas deste planeta, mas isso não significava que ele poderia impedir uma Sombra de atacar Kelia se ele tivesse velocidade semelhante.
—Não admito nada para você — disse Drew. —Kelia não pertence a ninguém além dela mesma. Ela não pode ser reivindicada. Ela não pode ser levada a menos que dê seu consentimento. Você não é ninguém para mim, e a natureza do meu relacionamento com ela não é da sua conta.
O homem Sombra parecia confuso, como se ele não pudesse entender como Drew estava falando sobre respeitar uma mulher humana. Mais do que isso, uma Assassina, uma inimiga mortal das Sombras do Mar.
Kelia, por outro lado, também não conseguia acreditar no que Drew havia dito, mas por motivos diferentes. Ela sabia que ele era único - ele se comportava de forma inesperada, desde a noite em que se conheceram -, mas ela não esperava que ele falasse sobre ela dessa forma, especialmente para um companheiro Sombra.
—Você já violou mulheres antes? — Drew exigiu. Ele deu um passo mais perto do homem Sombra.
O homem Sombra olhou para trás de Drew, provavelmente calculando o quão rápido ele precisava ser para passar pela porta sem que Drew Knight o pegasse.
Impossível. Tudo o que Drew precisava fazer era estender a mão e agarrar a Sombra pelo colarinho. A Sombra não tinha como escapar. Ele estava preso em uma gaiola sem grades.
Antes que Kelia soubesse o que estava acontecendo, a Sombra disparou atrás dela e passou o braço em volta do pescoço dela, para que sua mão fosse pressionada contra seu peito nu. Sua outra mão estava segurando sua cintura, posicionando-a de forma que ela cobrisse grande parte de seu corpo. Ele a estava usando como uma espécie de escudo contra Drew, e a mão em seu peito estava posicionada para mostrar a Drew que ele poderia estrangulá-la ou afundar suas presas em seu pescoço mais rápido do que Drew poderia salvá-la.
O rosto de Drew empalideceu. Kelia não entendeu a expressão de terror absoluto em seu rosto. Ela nunca o tinha visto parecer tão preocupado antes. Sua boca caiu em uma forma de 'o' surpresa, destacando suas maçãs do rosto acentuadas. Não havia como mascarar seus sentimentos, nem fingir que estava com medo do que poderia acontecer com ela.
—Você, — Drew começou lentamente, sua voz nítida, seus olhos se estreitaram na garganta de Kelia. —Você está jogando um jogo muito perigoso, companheiro.
—Então é verdade, — o outro Sombra murmurou, mais para si mesmo do que para Drew. Kelia tentou se concentrar em seu posicionamento atrás dela. Talvez houvesse uma maneira de ela se libertar, ou pelo menos distraí-lo antes que ele pudesse machucá-la - ou pior. —Você se importa com esta humana.
Kelia fez uma pausa em seus cuidados para olhar para Drew. Era errado que ela estivesse curiosa para saber a resposta? Não deveria importar para ela, mas importava. Ela o havia considerado cruel e reservado, que ele a olhava como se ela não fosse confiável nem um pouco. Ele tinha adquirido tudo o que precisava dela. Não havia razão para vê-la novamente.
Mas ele a pegou completamente de surpresa. Ele sabia que Wendy estava aqui também, mas de alguma forma, ele estava aqui com Kelia, tentando salvá-la.
—O que você quer? — Drew perguntou. Ele evitou completamente a pergunta - não uma negação, não uma admissão.
—Eu quero fugir — disse ele. —Eu quero ser livre.
—Você é uma Sombra do mar, — Drew disse. —Você nunca será livre. Sua vida sempre será controlada pelo sol e pela lua, pela maré e pelas ondas. A única maneira de se libertar dessa miséria é morrer sua morte real.
—Eu não quero morrer — disse o Sombra. Kelia não podia vê-lo, então ela não podia dar uma olhada nele enquanto ele falava. No entanto, ela podia sentir seu aperto sobre ela apertar e suavizar com cada palavra. —E eu não vou precisar. Eu voltarei para a Rainha. Ela vai cuidar de mim. Ela é a mãe de todas as Sombras.
A mandíbula de Drew travou. Kelia notou isso. Ela queria mais informações sobre esta rainha, especialmente considerando que Drew não parecia gostar dela nem um pouco.
—Ela não vai levar você a menos que você tenha algo que a beneficie. — Drew disse, sua voz fria.
A Sombra parou atrás de Kelia e ela quase sorriu. Se Drew estivesse correto, a outra Sombra não tinha nada que ajudasse em sua causa.
—Você não acha que informações sobre o seu paradeiro seriam benéficas para ela? — O homem Sombra falou lentamente.
A respiração dele fez cócegas na nuca dela e levou tudo para não se contorcer embaixo dele. Ela cerrou os dentes, mantendo o corpo firme e sólido para o caso. Apenas no caso de ela encontrar uma abertura que pudesse usar a seu favor.
—Mais do que isso, — o Sombra continuou, —se eu levasse esta garota para ela, você não acha que isso a beneficiaria? Saber que sua primeira progênie encontrou outra pessoa para se consumir? Você está disposto a partir o coração de sua Rainha, eu me pergunto?
—Ela não é minha rainha, — Drew rosnou. Suas narinas dilataram enquanto ele falava. —E ela não saberá de nenhuma dessas informações porque eu irei massacrar você e pintar o oceano de vermelho com seu sangue. Os peixes comerão bem esta noite.
—Veremos — respondeu a Sombra. —Se eu sair daqui vivo, você vai morrer. Você sabe disso, não é? Não será apenas a Sociedade e a Companhia das Índias Orientais atrás de você. Ela estará atrás de você também. Ela o deixou entregue à sua sorte por quase um século depois que você a traiu, esperando pelo dia em que você voltaria rastejando para ela por conta própria. A rainha é paciente e deseja lealdade de coração. Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ela descobrir que você entregou seu coração a outra, ela o chamará. E você não pode recusar uma convocação da Rainha.
Kelia fixou o olhar em Drew, mas ele parecia imperturbável com essa afirmação.
Ela tentou equilibrar sua respiração. Isso era informação demais, rápido demais. A Sociedade nunca tocou na Rainha, exceto como a Criadora. Ninguém pensou em perguntar quem criou a Rainha ou como ela afetava aqueles que transformava.
As presas de Drew caíram, cobrindo seu lábio inferior. Seus olhos escureceram e se estreitaram na outra Sombra. Seu corpo inteiro estava curvado, pronto para saltar quando ele precisasse entrar em ação e tirá-la de lá. A maneira como ela praticamente cobriu o corpo inteiro da Sombra, no entanto, não deixou espaço para erros. Se Drew ia atacar, ele precisava ser preciso.
Quando ele não respondeu, o Sombra o cutucou ainda mais. —O que você vai fazer então, Sr. Knight? O que fará quando você não puder mais fugir da Rainha? Quando você quebrou o coração dela e atraiu sua ira?
Drew rosnou. —Eu farei o que sempre faço - o que eu quiser.
—Não mais. — Ele parecia divertido. —Agora você vai fazer o que eu quiser. A menos que você queira que sua amante morra na sua frente, sendo você incapaz de fazer qualquer coisa para salvá-la.
Drew deu um passo ameaçador na direção deles. S Sombra riu, um som nauseante que pouco fez para abafar os batimentos cardíacos de Kelia.
Algo bateu em seu pescoço e ela saltou antes de perceber que era apenas chuva. Ela podia ouvir agora, caindo no convés do navio. Alguns devem ter escorregado pelas rachaduras das tábuas acima deles.
—Eu não faria isso se fosse você, Knight. — Seu aperto sobre ela aumentou. —Eu poderia cortar a garganta dela com a minha maldita unha. Você ainda seria seu herói galante? Ou você beberia o sangue dela antes que esfriasse, enquanto ainda pode? Tem um cheiro tão puro...
Ele a lambeu e seu estômago se revirou.
Mas ela teve sua oportunidade.
Kelia pisou no pé dele. Foi um movimento perigoso, considerando que a boca dele estava perto de sua garganta, e ela não saberia como ele iria reagir. Mas ela sentiu que precisava fazer algo, e ela sabia que poderia sobreviver a uma mordida se precisasse, contanto que pudesse fugir depois.
O homem Sombra grunhiu. Seus dentes começaram a apertar. Kelia já dobrou os joelhos, deu uma cotovelada no estômago dele e começou a se afastar. Seus dentes apenas roçaram seu ombro, o veneno de suas presas a picou, mas não a retardou. Ela tentou se desvencilhar dele.
O homem Sombra era ainda mais forte e mais rápido. Ela não estava mais tão firme em suas mãos, mas ele ainda segurava seu braço. Ele estava rapidamente começando a recuperar o controle dela.
No entanto, seu esforço teve recompensa. Enquanto o Sombra estava distraído, Drew saltou para o céu e pousou atrás dele.
Antes que o Sombra pudesse reagir, Drew puxou o Sombra para longe de Kelia. Kelia caiu de joelhos e apertou a garganta com a mão livre.
Drew esquivou-se de cada golpe e conseguiu agarrar o Sombra mais uma vez. Assim que o Sombra abriu a boca, Drew usou a mão direita para cortar o coração dele. Kelia não podia acreditar em seus olhos quando a mão de Drew saiu das costas do Sombra.
Gotas de um carmesim escuro caíram da boca do Sombra. Ele tentou separar os lábios, mas além de um grunhido rouco e um gorgolejo do fundo da garganta, nenhum som saiu. Ele piscou uma vez, olhando para Drew como se nunca o tivesse visto antes. Então, ele explodiu em cinzas, espalhando-se sobre tudo.
Kelia soltou um grito e, com a mesma rapidez, foi dominada por um constrangimento que fez suas bochechas e orelhas queimarem. Ela nunca tinha sido o tipo de gritar quando estava com medo - esse sempre foi o mau hábito de Jennifer - mas com tudo o que acontecera nas últimas horas, ela se perdoou rapidamente.
Drew, ignorando completamente as cinzas caindo, foi até Kelia. Ele caiu de joelhos e a puxou para seus braços.
—Você foi ferida? — Ele perguntou. Ela não conseguiu responder. Sua boca ficou seca. Quando ela ficou em silêncio, ele tirou uma das mãos do braço de Kelia e segurou seu queixo. —Kelia. Eu sei que você está em choque, mas preciso ouvir sua voz. Preciso saber que você está bem.
Kelia piscou e se concentrou em Drew.
—Você veio atrás de mim. — Disse ela, quase sem acreditar.
—É claro que vim por você — disse ele. —Eu sempre virei para você.
Pedaços de cinza tocaram sua bochecha, e a chuva começou a cair mais forte, mais água escorrendo. As gotículas pungentes chamaram sua atenção, lembrando-a de que ela não era a única pessoa que tinha chegado perto de um ataque violento e brutal.
—Como? — Ela conseguiu sair. —A prata?
Drew sorriu, e Kelia quase chorou ao ver algo familiar, tão brilhante em um ambiente tão desesperador.
—Eu tive a ajuda de uma bruxa. — Ele disse, indicando o pingente pendurado em seu pescoço.
Algum tipo de pingente. Ela não deveria ter ficado surpresa.
—Temos que encontrar Wendy — disse ela, tentando se levantar. Ela quase perdeu o equilíbrio, mas Drew se levantou e agarrou seu pulso, evitando sua queda. —As outras. Precisamos salvá-las.
Ele abriu a boca, parando por um momento, então acenou com a cabeça.
—Vamos embora. — Disse ele.
Kelia sabia que ele havia deixado algo não dito, mas com as outras em perigo, agora não era a hora de perguntar o quê.
CAPÍTULO 26
Como Drew quebrou a porta em meros estilhaços, nada os impedia de sair correndo dali.
—Pronto — disse Kelia, apontando para a saída mais distante. —Wendy está aí.
Kelia se dirigiu para a porta ao lado dela, mas Drew agarrou seu pulso.
—Onde você pensa que está indo? — Ele perguntou. Sua voz estava selvagem. Não necessariamente acusatória, mas insistente com preocupação. Kelia teria se sentido tocada se não houvesse outras mulheres potencialmente sendo estupradas neste momento.
—Existem outras. — Ela disse simplesmente. Firmemente.
—E você acha que pode pará-los apenas entrando? — Drew perguntou. —Você irritará o homem Sombra, e ele irá atrás de você a seguir. E as coisas podem ficar piores do que da última vez. Eu não posso permitir.
Kelia entendeu as palavras não ditas de Drew. Ela não foi capaz de lidar com o último Sombra. Sem suas armas em mãos, o que ela esperava fazer no quarto ao lado?
Ainda assim, não parecia certo que Drew fosse o único que estava arriscando tudo. E mesmo que Sombras fossem rápidas, ela não podia dizer como ele reagiria quando visse sua irmã sendo potencialmente machucada ou pior por seu companheiro.
—Eu não posso te impedir, posso? — Drew perguntou, dando a ela um longo olhar. Ele deu um suspiro de frustração antes de alcançar o quadril. Lentamente, ele puxou uma lâmina familiar de sua bainha e apontou para o telhado acima dele para que Kelia pudesse vê-la. —Aqui... eu acredito que isso é seu.
A chuva caía do convés, caindo na cabeça e no pescoço de Kelia, mas ao ver sua lâmina, ela não se moveu para limpar as gotas. Seus lábios se curvaram em um sorriso quando ela pegou o cabo de Drew e a segurou na mão do jeito que faria, como se estivesse se preparando para a batalha - o que ela estava.
—Você guardou, — ela disse, as lágrimas se acumulando em seus olhos com a onda repentina de emoção. Não havia tempo. Ela olhou para Drew. —A separação vai fazer tudo correr mais rápido.
—Não morra, Assassina, — Drew disse a ela, sua voz pesada. —Eu nunca te perdoaria se você moresse. Ou eu mesmo.
Kelia concordou. Drew se virou para a porta que Kelia havia apontado para ele enquanto se ajoelhava na porta adjacente à dela. Ela enfiou a mão no cabelo e puxou os grampos. Ela começou a colocá-los na fechadura, esperando que até mesmo a audição aguçada do Sombra não captasse o que ela estava fazendo. Em questão de minutos, a fechadura abriu a porta com um clique. Kelia segurou seu cutelo firmemente em sua mão e se levantou.
Usando o pé, ela chutou a porta. Suas costas gritavam de dor, mas ela a empurrou. Agora não era hora de sucumbir.
A água batia nas janelas e no convés. Mas gotejova pelas placas. Estava claro que esses barcos eram baratos - meras gaiolas destinadas a manter as Sombras contidas e controladas até que sua sede de sangue fosse tão forte, jogar uma mulher neles para se alimentar e foder seria muito irresistível. Os Sombras não lutaram contra a Sociedade porque nunca tiveram forças para isso.
O Sombra correu em sua direção. Kelia nem teve uma visão clara de qual mulher estava no quarto. Não que isso importasse. Ela iria para salvar todas elas.
Kelia mal teve que se esquivar da besta bem a tempo. Ao contrário de Drew Knight, Christopher, ou mesmo do Sombra Espanhol que ela acabara de enfrentar, este parecia mais monstro do que homem. Parecia que ele reagiu em vez de tomar decisões com base na lógica e no pensamento racional. Por que houve tanta discrepância de comportamento? Tinha que haver mais do que simplesmente idade.
Kelia grunhiu, caindo no convés. O Sombra montou nela. Este usava uma bugiganga parecida com a que Kelia usava. Deve ter a ver com magia ou proteção. As costas de Kelia gritaram de dor. Seus músculos - que ela havia tentado manter ativos e em forma - estavam fracos graças à última semana no programa de reprodução. Ela não tinha comido muito e, além de andar pelo celeiro, não tinha permissão para fazer muito mais. O que tornava a luta mais trabalhosa do que antes.
—Devo comer você antes de terminar a minha prometida. — O Sombra murmurou.
Sua cabeça se lançou para frente, suas presas prontas morderam seu pescoço. Kelia ergueu sua lâmina, cortando seu ombro. O Sombra soltou um grito que reverberou pelo quarto e sacudiu o chão. Ele caiu dela. Apesar da dor que sentia, ela se levantou, a lâmina ainda segura em sua mão. Ela precisava perfurar seu coração se quisesse tirá-los disso.
—Você vai pagar por isso, Assassina.
Era difícil ouvir sua voz rouca acima da chuva forte.
Respirando com dificuldade, Kelia olhou ao redor. A mulher se encolheu no canto. Ela parecia chocada demais para gritar ou chorar. No entanto, ela conseguiu endireitar o vestido com as mãos trêmulas. Bom. Algo necessário para colocá-la em movimento. Agora, Kelia insistia que ela corresse.
O Sombra gritou, puxando a atenção de Kelia para longe de sua companheira e para o monstro. Ele estava correndo em sua direção, seu cabelo ruivo voando atrás dele. Seus olhos estavam praticamente amarelos, sua testa enrugada, suas narinas dilatadas.
Kelia respirou fundo. Ela estava começando a ficar cansada, muito cansada. Mas ela não conseguia ceder. Ela tinha que continuar.
Ela saiu do caminho do Sombra. Emitindo um grunhido alto, ela ergueu o cutelo e cortou o abdômen dele. Outro grito e, desta vez, ele caiu de joelhos. A prata dela embutida em seu cutelo estava fazendo seu trabalho.
Kelia ergueu o cutelo e o esfaqueou no coração. Ele uivou de dor antes de se desintegrar em cinzas.
Ela se virou para a mulher enquanto ela se levantava e disparava. Cabelo loiro sujo. Bochechas encovadas. Mary, ela percebeu.
Pelo menos Mary saiu bem.
Mas onde estava Drew? Ele já havia resgatado Wendy?
A chuva ainda estava caindo forte demais para ouvir o que estava acontecendo nos outros quartos. Ela precisava agir rápido. Ela encontrou Mary no meio de seu ataque. Ela esperava que não fosse tarde demais com as outras.
A segunda porta que ela abriu e chutou encontrou um curvado sobre Riley, se alimentando de seu pescoço. Ela estava com as pernas abertas, o líquido escorrendo pelas coxas. Ela olhava para o teto. Estava claro que ela estava tentando encontrar um lugar para pensar sobre isso, menos aqui.
O Sombra nem olhou para cima. Parecia que ele estava experimentando sua própria onda de endorfinas e agora estava muito envolvido para notar. Kelia correu direto para ele e o esfaqueou nas costas, tomando cuidado para não acertar Riley com a ponta de sua lâmina quando ela se projetou da cavidade torácica do Sombra. Ele nem mesmo teve a chance de gritar antes de explodir em cinzas.
Riley piscou quando cinzas e chuva caíram do céu. Quando seus olhos focaram, Kelia deu um passo em sua direção e ofereceu sua mão.
—Você precisa sair. — Disse Kelia.
—Mas...— Ela balançou a cabeça. —Eles vão me encontrar. Madeline...
—Vá, — Kelia insistiu. —Eles não querem você. Não quando Drew Knight está aqui. Vá enquanto ainda pode.
Riley não precisou ouvir uma terceira vez. Ela pegou a mão de Kelia e se levantou da cama, arrumando as saias. Mas então suas pernas pareceram enfraquecer embaixo dela, e Kelia teve que segurá-la para não cair no chão.
—Você precisa encontrar algo para comer — disse Kelia, embora não tivesse nada para recomendar, já que não havia comida neste barco. As mulheres eram a única comida aqui. —Você está muito fraca.
—Deixe-me apenas descansar —disse a mulher. Ela colocou a mão no peito e inalou. —Acho que estou muito, muito cansada.
Kelia gemeu e cerrou os dentes para não gritar. Não era culpa de Riley e Kelia não estava com raiva dela. Ela estava furiosa com a situação. Ela não podia imaginar o que Riley tinha acabado de suportar, e ela queria ter certeza de que era simpática. Por outro lado, ela tinha duas outras mulheres para resgatar, dependendo de como Drew estava com Wendy e seu Sombra.
—Fique aqui então — disse Kelia. —Eu tenho que pegar as outras.
Não parecia que Riley a tivesse ouvido.
Talvez fosse melhor assim. Ela já tinha passado por o suficiente e isso poderia ser um pequeno adiamento.
Kelia foi para a próxima porta. Ainda não havia nada de onde Wendy estava. Ela não ouviu nada e não pôde ouvir Drew. Ela estava quase preocupada que algo tivesse acontecido com ele e quase foi lá para ver se ele precisava de alguma ajuda. Ela se conteve, no entanto. Havia outras mulheres que precisavam mais da ajuda dela do que Drew Knight e Wendy Parsons. Uma Sombra do Mar e uma bruxa podiam se manter. Um humano normal não poderia.
Ela caiu de joelhos e abriu a porta. Cada vez que ela fazia isso, ela ficava cada vez mais rápida. Quando ela ouviu o clique da fechadura, uma emoção de satisfação balançou por ela. Ela recuou e chutou a porta.
Quando ela entrou no quarto, no entanto, ela não podia ver o Sombra. Ele não estava entre as pernas de Cathleen nem se deliciava com sua carne. Na verdade, Cathleen estava de costas para Kelia, seu corpo curvado em posição fetal. Ela estava imóvel, exceto pelo movimento de sua respiração. Não parecia que ela estava chorando. Ela estava apenas olhando para a parede de madeira à sua frente. Ela nem parecia afetada pela água caindo ao seu redor por causa da chuva.
A inquietação subiu pela espinha de Kelia. Ela não gostou nem um pouco disso. Ela ergueu a espada, posicionando-se para que pudesse atacar quando precisasse. Seu corpo estava começando a ficar cada vez mais cansado, suas costas gritavam, seus músculos tensos. Tudo o que ela queria era mergulhar em água quente e limpar a sujeira, sujeira, sangue e suor.
Ela deu um passo para dentro do quarto e depois outro.
—Cathleen, — Kelia murmurou. — Cathleen!
Não houve resposta. Kelia quase correu até lá para acordá-la, como se não confiasse muito que ela estivesse viva. Como se tivessem drenado de Cathleen mais sangue do que a manteria viva.
Quando Cathleen ainda não disse nada, Kelia deu mais um passo para o quarto escura. Ela não conseguia ver o Sombra em nenhum dos cantos da parede onde a cama estava colocada. Ela se virou, verificando os cantos atrás dela. A escuridão o manteria obscurecido, onde quer que estivesse, embora ele também não estivesse lá.
Onde ele poderia estar? Ele não tinha saído quando ela abriu a porta, e ele certamente não estava aqui agora. O que ela estava perdendo?
Um som estalou acima dela. Ela olhou para cima, apenas para ver que era tarde demais. O Sombra caiu de sua posição no teto, caindo sobre ela e extraindo suas presas.
—Você realmente fala muito alto, Assassina, — ele disse, seus olhos focando em seu pescoço com fome. —Eu ouvi você muito antes de você me alcançar. É hora de acabar com isso.
Ele se lançou para o pescoço dela. Kelia colocou a mão em seu rosto, e as presas dele perfuraram sua palma. Ela gritou de dor. Embora sua outra mão agarrasse o cutelo, ela não conseguia encontrar forças para levantá-lo e se defender. Ela estava presa e havia uma boa chance de morrer, se não aguentar algo pior.
Naquele momento, o Sombra foi arrancado dela. O sangue salpicou o chão de madeira e Kelia agarrou sua mão, um gemido de agonia escapou de seus lábios.
Seu queixo caiu quando viu Cathleen, deitada no chão, o corpo esparramado. A mulher interveio para salvar Kelia...
O Sombra estava prestes a atacar Cathleen. Kelia parou na frente de seu caminho e empurrou o cutelo para ele. Não acertou seu coração, perfurando sua coxa. Ela estava longe, fora de prática, e perdida no redemoinho de movimento e escuridão. Ainda assim, ele uivou de dor graças à prata da qual o cutelo foi feito, então jogou uma série de palavrões e nomes vis para ela.
Kelia não se importou. Ela precisava acabar com o homem Sombra antes que ele tentasse atacá-la ou a Cathleen novamente. Ela se levantou, embora não pudesse nem atingir sua altura total. Seu lado doía e sua mão direita pingava sangue como a chuva caindo pelas fendas do convés. Seus músculos estavam tensos e quase imóveis. Tudo o que ela queria fazer era rastejar para a cama - mesmo um daqueles colchões encharcados - e dormir por dias.
Com o canto do olho, Kelia notou Cathleen se esforçando para se levantar. O Sombra se concentrou apenas em Kelia. Se Kelia conseguisse mantê-lo distraído, talvez Cathleen pudesse fugir.
—Sinto muito — disse Kelia. —Isso doeu? Devo esperar você se enfaixar?
—Sua vadia tola, — o Sombra disse. Ele cuspiu ao lado dele. O sangue vermelho pingou da boca da Sombra. —Você está morta. Depois de reivindicar sua inocência, vou beber de sua coxa até que você murche em um monte de nada. Você vai me trazer vida, e eu vou tirar a sua.
Kelia não conseguia recuperar o fôlego, embora tentasse. Cathleen já havia se levantado e saído correndo - algo que Kelia não podia culpá-la por fazer. Ela ajudou a salvar Kelia, o que foi mais do que Kelia esperava. Se Cathleen não tivesse derrubado a Sombra, ela certamente estaria perdida.
Quando o homem Sombra se lançou sobre Kelia, ela tentou manter seu núcleo sólido, mas seu cansaço havia atingido o auge. Ela balançou a lâmina, mas seu ataque não foi rápido o suficiente. O Sombra se esquivou com facilidade. Ele agarrou seus ombros e a empurrou para o chão, montando em sua cintura e mostrando seus dentes alongados.
Cathleen havia partido. Drew ainda estava resgatando Wendy. Havia uma boa chance de Kelia não sobreviver a isso. Se o fizesse, ela sabia que não seria a mesma.
CAPÍTULO 27
Kelia olhou para o homem Sombra com olhos pesados. Ela sabia que tinha que continuar, mas cada vez que tentava mover algo - o braço, a perna - ela descobria que não conseguia.
O Sombra baixou a cabeça para morder sua garganta.
Kelia fechou os olhos e jogou a cabeça na direção do Sombra. A dor percorreu sua testa ao atingir. Ele a deixou cair no chão, atordoado. Kelia caiu com um baque no chão e ergueu o braço acima da cabeça para se proteger do ataque iminente, mas ele nunca veio.
Um ruído gorgolejante pegou Kelia de surpresa. Seus olhos se abriram para encontrar Drew Knight agarrando o homem Sombra pelos restos de sua túnica e puxando-o para trás.
Drew fazia com que parecesse tão fácil, como se o Sombra em cima de Kelia fosse fraco e fácil de mover. A Sombra atingiu à vontade com um baque nauseante e caiu em uma pilha no chão.
Depois de acabar com ele rapidamente, Drew foi até Kelia e a pegou em seus braços. Cinzas borrifaram o quarto e grudou no sangue que respingou na pele de Kelia.
—Você está bem, princesa? — Ele murmurou.
Kelia conseguiu acenar com a cabeça, mas mesmo um movimento mínimo como aquele era doloroso. Ele se virou, preparado para levá-la para fora, quando seu nariz se contraiu e ele foi forçado a parar. Ele olhou para Kelia.
—Você foi mordida. — Disse ele. Ele não perguntou a ela. Era como se ele já soubesse disso.
—Não exatamente — disse Kelia. Ela ergueu a mão para mostrar a ele o que havia acontecido. —Ele a rasgou. Eu o levantei para me defender e suas presas atingiram minha mão. — Ela apertou o ombro de Drew. —Precisamos sair. Agora. A Sociedade, eles podem estar vindo.
—Pelo menos não era uma artéria, — Drew murmurou. Ele parou e colocou Kelia no chão, tomando a palma da mão em suas mãos. —Kelia, você confia em mim?
—Drew — rebateu Kelia. —Minha mão não está...
—Vou rasgar qualquer um em pedaços em um piscar de olhos. Você é importante para mim, mesmo que não pense assim. — Ele fez uma pausa e perguntou novamente: —Você confia em mim?
Kelia engoliu em seco, permitindo-se tempo para realmente refletir sobre a questão. Drew Knight era um homem irritante... e uma Sombra. Ele dizia o que queria, fazia o que queria e vivia sua vida de acordo com seu próprio conjunto de morais e valores - aqueles que nem sempre se alinhavam com os de Kelia. Ele escondeu coisas dela, coisas que ela tinha o direito de saber. Coisas que ela precisava saber.
Mas ele também a salvou. Ele arriscou tudo, vindo ver como ela estava várias vezes. Ele a curou.
Talvez ela não devesse, mas a verdade é que sim, ela confiava nele. Mesmo agora. Mesmo depois de se sentir traída. Porque ele estava parado na frente dela, neste barco, pronto para resgatá-la de fazer parte de um programa que seu pai criou, de uma Sociedade para a qual ela havia trabalhado para destruir sua própria espécie. Ele arriscou tudo por ela.
—Eu confio. — Ela murmurou. Suas bochechas esquentaram, e ela se virou para o caso de ele ser capaz de perceber que ela estava corando, mesmo na escuridão.
A chuva ainda estava caindo, mas foi só quando ela se concentrou nela que pôde ouvir o barulho familiar dela no convés. Algumas gotas caíram sobre ela - a ponta do nariz, o ombro, a bota - mas não era tão incessante como em alguns dos outros quartos. Ela se perguntou se a tempestade iria diminuir em breve.
—Eu não tenho certeza do que eles ensinaram a você enquanto você estava na academia da Sociedade, — Drew disse antes de estender o polegar para furar a ponta do dedo. Pequenas gotas de sangue começaram a se formar na ferida. —Mas nosso sangue tem propriedades curativas. É por isso que somos capazes de permanecer jovens, por que podemos nos curar muito rápido, a menos que estejamos firmados no coração. Podemos, se quisermos, curar humanos com nosso sangue.
Kelia balançou a cabeça. —Eu não quero ser transformada. A ferida vai sarar.
Drew franziu a testa. —Eu nunca sugeriria transformar você, Kelia Starling. Eu gosto de você do jeito que você é, e pretendo mantê-la assim.
—Mas eu pensei...
—Somente quando houver uma troca de sangue, um humano se transformará em uma Sombra. Cura o infante, mas também fornece acesso à onde ele está o tempo todo, para que seu Criador possa ajudá-lo, possa sentir suas emoções e ir até ele, se necessário.
—Eu não vou te dar nada do meu sangue. — Disse Kelia, tensa com a ideia. Ela não estava pronta para se relacionar com ele, embora fosse Drew e ela confiasse nele. Ela não gostava da ideia de alguém ser capaz de sentir seus sentimentos.
—Não. — Um sorriso tocou seu rosto, e ela se perguntou se ele se divertia com sua atitude defensiva. —Como eu disse, não tenho intenção de transformá-la. Não aceitarei o seu sangue em troca e não haverá vínculo de sangue entre nós. Mas se você tomar meu sangue sozinha, poderei curar sua ferida. Você vai me deixar?
Ele travou seu olhar com o dela, e sua respiração desapareceu. Arrepios pinicaram sua pele. Ela não confiava em sua voz, então acenou com a cabeça e observou com olhos arregalados quando ele trouxe o polegar com o corte para a palma da mão. Sem tocá-la, ele permitiu que três gotas de sangue caíssem em sua ferida.
A pele de Kelia formigou com o contato. Teve uma sensação de calor que começou no corte e desceu direto pelo braço, cruzou o peito e deu um soco no coração.
Sua boca se abriu quando a pele ao redor de seu corte se fundiu para criar uma nova camada. Seu sangue da ferida desapareceu. Ela mexeu os dedos e cobriu a palma com eles. Sem dor. Foi como se nunca tivesse acontecido.
—Obrigada, — ela murmurou. O momento durou pouco. —Precisamos ir, Drew.
—Sim.
Eles correram para a porta, mas algo o deteve. Ele grunhiu.
Kelia estava com a porta aberta e estava prestes a entrar quando percebeu que ele não estava com ela.
—Drew?
Ele limpou as mãos. —Eu estou bem. — Ele se levantou e ficou em pé. —A prata demora a sair do meu corpo. O amuleto que Emma me deu... —Ele o puxou e havia uma rachadura perceptível nele. —Estou bem.
Eles saíram do quarto e seguiram pelo corredor estreito, onde uma porta os impedia de sair. Kelia soltou um palavrão vulgar, fazendo Drew sorrir.
—Eu não sabia que você conhecia essa palavra. — Ele meditou.
Kelia não disse nada. Em vez disso, ela caiu de joelhos e estendeu a mão para o cabelo, removendo um grampo. Ela poderia escapar disso facilmente.
Ela olhou para Drew enquanto colocava o alfinete no buraco da fechadura. —Como você está?
Ele assentiu. —Tão bem quanto posso estar. — Ele a encarou por um longo momento. —Eu só queria ter chegado a você antes. Eu poderia ter ajudado você muito mais do que ajudei com aquele bálsamo na masmorra, se eu tivesse.
Kelia balançou a cabeça, esperando que o alfinete abrisse a fechadura. —Não é seu trabalho me salvar, Drew, — ela disse. —Eu fiz minhas escolhas. Eu conhecia os riscos.
—Se eu estivesse com toda a minha força, seria capaz de quebrar essa porta. Eu seria capaz de nos libertar.
—Está coberta de prata, Drew. Minha liberdade não vale a pena sua dor.
Algo mudou em seu olhar, como se alguma grande culpa tivesse sido retirada dele. Mas com a mesma rapidez, o visual foi substituído por uma fachada de felicidade.
—Fico feliz em ver que você está bem — disse ele. —Quando eu ouvi seu grito... — Ele se interrompeu e balançou a cabeça.
Kelia engoliu em seco, mas sua boca parecia areia. Em vez disso, ela pigarreou. Por que ela não estava ouvindo o clique da fechadura? O que ela estava fazendo de errado?
O corredor estava parado. Ela se perguntou para onde todos tinham ido. Ela ficou surpresa por Agatha não ter retornado com a Sociedade. Talvez isso não estivesse fora de questão. Ela precisava se apressar.
—E Wendy? — Ela perguntou, tentando distrair Drew do fato de que ela ainda não tinha sido capaz de abrir a fechadura.
—Seu Sombra queria festejar com ela por causa de seu sangue, — Drew disse. —No entanto, ela tem a capacidade de se proteger de mordidas e alimentação. Exceto antes de hoje, algo estava bloqueando sua magia. É por isso que não consegui rastreá-la, por isso tive que pedir sua ajuda em primeiro lugar. Mas eu roubei a bugiganga protetora do bastardo e Wendy fez o que ela faz de melhor. O outro Sombra no próximo quarto se desintegrou em minutos. Quando ouvi você gritar, peguei você o mais rápido que pude. A mulher ali - não sei o nome dela - parecia pensar que eu era algum tipo de salvador e me tratou como tal, chorando em meus ombros e agarrando-se a mim como se eu fosse desaparecer. Wendy conseguiu arrancá-la de mim antes que eu pudesse chegar até você. Cheguei a você o mais rápido que pude.
—Está tudo bem, — ela disse. A fechadura clicou e ela se levantou, aliviada. Usando sua mão recentemente curada, ela girou a maçaneta e abriu a porta. Seus olhos se fixaram em sua mão. Ainda formigava, mas não de uma forma óbvia. Como se seu corpo estivesse se acostumando a ter um pedaço desconhecido de si mesmo adicionado a ele. —Contanto que vocês dois estejam bem. Contanto que estejamos bem.
—Assassina. — Seus dedos travaram em seu pulso antes que ela pudesse subir a escada. —Você percebeu que não pode voltar lá, certo? — Sua voz era como vidro, sua respiração pesada. Ele foi intenso e insistente. Kelia não conseguia desviar o olhar dele, mesmo que tentasse. —Você não pode voltar para a Sociedade. Se eles não a matarem, eles a quebrarão até que você seja nada mais do que espaço. Seu espírito será amarrado e quebrado. A morte do seu pai vale isso? Saber qual foi o catalisador final vale a pena sua própria vida? Não no sentido de que eles vão matá-la, mas de que vão matar tudo que faz de você quem você é?
Seus olhos escuros estavam implorando, capturando-a.
—Kelia, eu não vou deixar isso acontecer. Você significa muito para mim e não posso arriscar você. Não posso. Eu preciso que você entenda isso.
Ele deu um passo em sua direção, e depois outro, até ficar bem na frente dela. Apesar do esforço significativo, ela não conseguia desviar o olhar dele. Ele deu mais um passo até estar muito perto dela, e sua respiração ficou presa na garganta e desapareceu.
Ele estendeu a mão e enrolou uma mecha de cabelo atrás da orelha. A sensação de sua pele em sua carne a fez mexer por dentro. Mesmo assim, ela não conseguia desviar o olhar. Ela estava presa. Não havia nenhum lugar para ela ir.
Ela se forçou a assentir. A chuva caiu mais forte, mais rápido agora. Os estalos no deck se transformaram em algo mais. Não estava batendo bem, ainda não, mas estava chegando lá.
Naquele momento, algo passou por eles. Se Drew não estivesse na frente dela, se ele não estendesse a mão para segurá-la, ela teria caído. Um Sombra. Um que eles de alguma forma deixaram passar, um que não foi morto. Ele parou fora de seu alcance.
—Eu nunca esqueço um rosto, — ele sibilou, seus olhos em Kelia. —E eu vou lembrar o seu para minha Rainha.
Antes que Kelia pudesse piscar, o Sombra se foi.
—O que isso significa? — ela perguntou.
—Isso significa que precisamos sair rapidamente — disse Drew. Ele ofereceu-lhe a mão. —E eu gostaria muito que você viesse comigo.
—Precisamos nos preocupar com aquele cara?
Drew balançou a cabeça, mas fechou os olhos ao fazê-lo e, por algum motivo, isso fez Kelia sentir que ele não estava sendo completamente honesto.
—Kelia — disse Drew. —Nós realmente devemos ir. Diga que você virá comigo desta vez.
Kelia abriu a boca para responder. Ela não sabia o que dizer, mas sabia que precisava dizer algo. Ele estava certo. Ela não podia mais ficar com a Sociedade. Sua mente a puxou, entretanto. Havia algo de que ela precisava, algo que não podia deixar para trás.
—O diário do meu pai — ela conseguiu resmungar. —Eu preciso do diário do meu pai. Por favor.
Drew suspirou e se afastou dela. Sem dizer uma palavra, ele começou a subir a escada, grunhindo, movendo-se lentamente, como se cada degrau exigisse um grande esforço. Kelia o seguiu sem hesitar. Água caía do céu escuro e envolvia o barco no mar. Ele colocou a mão em seu ombro, como se tivesse medo até de deixá-la ir. Seu corpo inteiro aqueceu com o pensamento.
—Tudo bem, — Drew disse lentamente, virando a cabeça para olhar para ela. —Pegamos o diário do seu pai e depois partimos. Aquela mulher desgraçada fugiu antes que eu pudesse obrigá-la a esquecer de me ver, e eu estava muito focado para encontrar você para detê-la.
Kelia concordou.
—Wendy, — ela murmurou. —Onde está Wendy?
—Minha adorável irmã ainda está, uh, lidando com sua Sombra agora que eu arranquei a bugiganga do pescoço dele, — Drew disse, sua voz sarcástica. Kelia quase se permitiu rir. Foi bom ouvi-lo soar como ele mesmo. —Eu disse a ela que estava indo buscar você. Ela insistiu em se divertir e, em seguida, voltar a se concentrar em colocar suas colegas do programa em segurança. — Ele deu a Kelia outro olhar demorado. —Elas estão quebradas. Não tenho certeza do que pode ser feito por elas. Elas também não podem voltar. Talvez possamos fazê-las esquecer. Infelizmente, elas estão no programa há tanto tempo que, se as fizermos esquecer, elas podem tentar retornar à Sociedade.
—Simplesmente não sei para onde eles podem ir. — Disse ela.
—Não temos tempo a perder — disse Drew. —Tenho certeza de que Wendy ainda tem seus contatos que podem ajudar. Ela sempre foi mais engenhosa do que eu. — Eles se dirigiram para a porta, Kelia seguindo logo atrás de Drew. —Precisamos pegar o diário de seu pai e depois cruzar a ilha até meu navio. Podemos chegar lá em alguns minutos, no máximo, mas eu teria que carregá-la em meus braços. Caso contrário, seríamos muito lentos.
—Eu sou perfeitamente capaz...
Drew se virou. Kelia bateu em seu peito largo. Seu rosto aqueceu, e ela não conseguia encontrar forças para olhar para ele ainda.
—Você é capaz de fazer qualquer coisa que decidir — disse Drew. —Sim, claro que sei disso. Mas, pela primeira vez, você poderia me permitir tornar as coisas mais fáceis? Você poderia me permitir fazer com que estejamos de um lado a outro de Port George em minutos, em vez de horas? Ou o seu orgulho é mais importante do que a sua segurança, minha, Wendy, até mesmo o maldito do Christopher?
Os lábios de Kelia se curvaram em leve diversão com a exasperação dele.
—Tudo bem — disse ela com um aceno de cabeça. —Assim que conseguirmos o diário do meu pai, faça o que for preciso.
—Não me dê tais liberdades, princesa, — ele disse, inclinando-se para que seus lábios quase tocassem sua orelha. —Posso gostar do que faço com elas mais do que mereço.
Kelia achava que ele era bastante merecedor e que ela poderia gostar do que ele fizesse com tais liberdades também, mas ela se conteve de dizer isso. Ela respirou fundo, mas não conseguiu soltá-lo ainda. Ela estava fixada em seu olhar, imóvel, como uma montanha. Sua voz prometia coisas perversas e ela não pôde reprimir um estremecimento, embora quisesse desesperadamente.
—Venha.
Ele deu um passo para trás e ofereceu-lhe a mão. Ela fez uma pausa, sem saber o que fazer com isso. Ela provavelmente deveria pegá-la e deixá-lo guiá-la para fora, mas parte dela estava com medo. Era quase como se ela sentisse que colocaria mais do que apenas sua mão na dele, mas toda a sua vida também.
Ela poderia confiar nele com sua vida?
Quantas vezes ele a salvou? Ele havia se arriscado a vir apenas para vê-la?
Ela não conseguiu parar de tremer ao pegar sua mão. Quando ele enrolou os dedos nos dela, ela se sentiu sólida. Segura. Cuidada. Ela não se sentia assim desde que seu pai estava vivo.
Quando eles pisaram no convés, a chuva caía do céu, forte e insistente, como pedrinhas minúsculas sendo jogadas do céu. Kelia ficou encharcada em poucos segundos. Drew continuou segurando a mão dela, enquanto a puxava ao longo do convés.
Kelia mal conseguia distinguir Wendy, já na costa com as quatro mulheres, apressando-as para algum lugar. Onde ficava Kelia não sabia, mas tinha certeza de que Wendy ficaria bem.
A noite estava tranquila, exceto pela chuva. O estalar da chuva mascarava qualquer movimento, qualquer respiração. Era como se ela e Drew estivessem realmente sozinhos. A escuridão os envolveu em sombras e ela mal conseguia distinguir a diferença entre o oceano e a terra. Ela agarrou-se com força à mão dele, sem saber onde pisar, mas confiando que ele a conduziria na direção certa.
Sem aviso, ele largou a mão dela e a pegou como se ela fosse uma noiva e eles tivessem jurado oficialmente amar, abraçar e honrar um ao outro. Ela soltou um grito de surpresa, mas agarrou-se a seus ombros largos enquanto ele corria em direção ao celeiro onde o diário estava guardado.
—Eu posso sentir o cheiro deles — disse Drew. —Seu povo. Eles estão vindo.
Kelia imaginou que deveria ter demorado a esta hora para Abigail voltar para a fortaleza, encontrar Rycroft, alertá-lo e, em seguida, Rycroft reunir os Assassinos. Mas ela não esperava que isso acontecesse tão rápido.
—Quanto tempo nós temos? A que distância eles estão?
Drew balançou a cabeça. —Ainda estou fraco por causa da prata — respondeu ele enquanto acelerava em direção ao celeiro. Kelia sabia que ele seria muito mais rápido se fosse saudável. —Não consigo cheirar tão bem ou correr tão rápido quanto esperava. Mas teremos que agir rapidamente.
Kelia arriscou uma olhada na fortaleza iminente, uma ameaça sombria que se elevava sobre o celeiro. Todas as luzes acesas nas janelas estavam fracas, e ela mal distinguia silhuetas em movimento. Essas não eram pessoas se preparando para dormir. Estes eram Assassinos se preparando e marchando para uma batalha que nem ela nem Drew estavam preparados para lutar.
No minuto em que Drew pisou no caminho que os levaria ao celeiro, a cabana de madeira explodiu em chamas. Kelia soltou um grito de horror enquanto o fogo dançava na escuridão, um forte contraste com o céu negro.
Se foi. O diário de seu pai havia sumido. Ela nem mesmo teve a chance de ler a passagem final que Abigail deu a ela.
Ela não se importava com as meras bugigangas que havia levado. Ela queria suas palavras, suas memórias. A última coisa que ela poderia segurar era verdadeiramente dele.
Uma risada familiar perfurou a música do fogo. Ela se projetou mesmo sobre o estalo e o crepitar das chamas enquanto lambiam o céu.
Rycroft.
CAPÍTULO 28
Havia algo comovente na maneira como Rycroft olhava ao se afastar do celeiro em chamas enquanto a chuva caía diagonalmente ao seu redor. Kelia nunca teve medo de Rycroft antes; intimidador, sim, mas não assustador. Mas havia um brilho maníaco em seus olhos que ela podia ver, mesmo através da escuridão, mesmo por trás dos óculos.
De sua periferia, homens que ela reconheceu apenas de passagem estavam atrás dele. Esses homens eram do conselho. Kelia não tinha ideia do que eles estavam fazendo aqui. Eles normalmente não emergiam da segurança da fortaleza - era para isso que os Assassinos serviam: lutar sua batalha. Mesmo assim, eles vieram, enfrentando a chuva. Todos eles pareciam extremamente satisfeitos com alguma coisa.
Drew deu um passo à frente de Kelia, usando a mão direita para empurrá-la para trás. Kelia normalmente lutaria para não ser empurrada para o lado, especialmente com seu cutelo em mãos, mas em vez disso, ela cuidou de seu ferimento e permitiu que Drew a protegesse. Com sorte, ganharia tempo e permitiria que ela avaliasse a situação para que pudesse descobrir o que fazer.
—Há! — Rycroft berrou quando os alcançou. Ele parou, enfrentando Kelia e Drew, assim como o resto dos membros do conselho. —Eu não deveria estar surpreso que vocês dois estejam diante de mim, juntos.
Embora a chuva caísse forte do céu escuro, sua voz era forte contra a chuva forte. Talvez porque ele era tão previsível, ela quase podia ouvir o que ele diria antes de falar as palavras.
Seus dedos agarraram o cabo do cutelo, prontos para lutar se ela precisasse. Seu coração estava pesado e seus ossos doíam, mas a chuva despertou algo dentro dela, um desejo de parar isso de uma vez por todas. Ela poderia nunca descobrir por que seu pai morreu, mas pelo menos ela poderia levá-lo à justiça, mesmo que ele próprio não fosse um grande homem. Ela queria ver isso até o fim, ou então tudo o que ela tinha feito - conhecer Drew e fazer o acordo com ele em primeiro lugar, sofrer com o programa sem visão e quase ser uma vítima do programa de reprodução - seria em vão.
Rycroft se aproximou, assustador em seus passos confiantes. —Você sempre foi uma Sombra, não é, Srta. Starling?
Drew rosnou para Rycroft, mas as palavras de seu ex-treinador simplesmente saíram dela como a chuva. Ela não se importava mais com o que ele pensava dela. Ela não precisava mais fingir ser nada ou fazer algo que não queria fazer. Ela estava livre. Ela poderia fazer suas próprias escolhas. Mas primeiro, ela precisava escapar. Ou, se ela e Drew pudessem destruir Rycroft e este conselho para que outros Assassinos também pudessem ser livres.
—Eu me absteria de atacar a mim e a meus colegas membros do conselho — disse Rycroft. —Cada um de nós tem uma estaca de prata a postos. Podemos perder do seu coração, mas a prata tocando sua pele é como fogo e queimará sua carne.
Kelia olhou para trás de Rycroft. Cada homem segurava algo em suas mãos trêmulas, mas estava escuro demais para ela garantir que Rycroft não estava mentindo.
—O que estou surpreso em ver é você parado na frente dela, disposto a morrer por uma Assassina, nada menos, — Rycroft disse, seu foco em Drew. —Tive a sensação de que isso era mais do que apenas sexo para você. Você nunca foi tão estúpido em se envolver com uma Assassina e deixá-la lembrar. Eu gostei de puni-la por isso, no entanto. — Seu sorriso perverso empurrou suas bochechas rechonchudas contra os olhos.
Drew deu um passo à frente. A chuva havia tornado sua túnica transparente. Ela quase foi pega olhando para a pele tensa esticada sobre os músculos de suas costas.
—Agora que finalmente tenho você, — Rycroft disse, — Estou me perguntando o que eu deveria fazer para promover mais dor e mantê-lo vivo para que você ainda sofra com isso. Eu poderia arrancar cada dedo. Eu poderia cortar sua língua, como vocês, piratas, costumam fazer. Talvez suas orelhas fossem uma bela joia decorativa em um colar. — Ele colocou as mãos atrás das costas. —Tenho pensado neste momento por um tempo excepcionalmente longo. Estou ansioso para finalmente viver minhas fantasias. Vou empurrá-lo até a morte antes de trazê-lo de volta à vida. Vou deixá-lo morrer de fome até que você se banqueteie com o sangue de vacas em desespero. Vou chamar sua Rainha para vir e conversar com você. Ouvi dizer que ela está sentindo sua falta.
O coração de Kelia saltou uma batida com a menção da Rainha. Ela ainda não tinha ideia de quem era essa Sombra, mas cada vez que ela era citada, Drew se encolhia.
Através da chuva, ela mal conseguia distinguir os membros do conselho que cercavam Rycroft a uma distância mais segura. Apesar de seus números, eles ainda não tinham certeza se confiavam em estar tão perto de uma Sombra do Mar, especialmente Drew Knight. Eles eram homens mais velhos. Se eles fossem Assassinos, aqueles dias teriam ficado para trás. No entanto, eles claramente pensaram que poderiam tomar decisões com a vida de outros Assassinos, mesmo que não estivessem no campo de batalha ao lado deles.
Kelia fechou a mão livre em um punho. Esses foram os homens que provavelmente deram a ordem para que seu pai fosse morto. E aqui estavam eles, assustados. Por que vir, então?
O fogo crepitava à distância, tirando Kelia de seus pensamentos. Ela fixou os olhos em Rycroft.
—O que sua Rainha vai dizer, eu me pergunto? — Rycroft continuou. Ele caminhou na chuva, completamente no controle. Sua confiança o cercava como um halo. —Quando ela encontrar seu favorito, seu pretendido, com outra. Ela queria governar seus filhos com você, você sabe. Ela o transformou com o único propósito de tê-lo ao seu lado. E veja como você a traiu. Com uma humana, nada menos.
Kelia olhou para os homens que cercavam Rycroft antes de olhar para a fortaleza. Por que Rycroft não trouxe homens e mulheres jovens e saudáveis que podiam lutar, que podiam pegar Drew com uma flecha de prata?
Ele não quer que Drew morra, Kelia percebeu. Ele quer Drew para que ele possa entregá-lo à Rainha. A rainha não poderia convocá-lo? Todos os criadores podem convocar suas criações. Talvez ele tivesse removido seu vínculo com ela. Seria mesmo possível?
Kelia balançou a cabeça, tentando se concentrar. Seu corpo já tinha explodido em arrepios. O frio estava começando a tirar vantagem dela, enquanto Rycroft fazia seu pequeno discurso simpático. A adrenalina quase deixou seu corpo. Seu coração batendo dentro do peito era o único indicador que seu corpo sabia para se manter afiado, ficar tenso, independentemente de seus músculos pareciam estar pegando fogo.
—O que? — Rycroft parou de andar e se atreveu a dar dois passos na direção de Drew. —Você não tem nada a dizer? Tenho certeza de que se você se render por vontade própria, sua rainha será tolerante. Eu? Não muito. Ela me prometeu a oportunidade de torturá-lo, desde que eu não o mate, e acho que gosto muito da ideia de você me implorando por misericórdia.
Kelia sabia de Drew diria alguma coisa, mesmo que fosse um profundo, ressoando. Nada. No entanto, ele permaneceu posicionado na frente dela, seu corpo tenso e enrolado, como se ele estivesse pronto para atacar a qualquer momento. A ameaça de prata estava lá, mas ela se perguntou se Drew havia descoberto que ele não seria morto.
Ela deu um passo para trás. Atrás dela havia um longo cais de madeira que desaguava no mar. Se o navio de Drew estivesse em algum lugar lá fora, poderia ser a única chance de fuga. Mas mesmo que corressem pelo cais e pulassem no oceano, também havia o risco de sereias os reclamando, assim como outras vis criaturas marinhas.
Ela olhou de volta para a fortaleza. Havia parte da fortaleza construída na água, que era onde eles abrigavam Sombras capturadas que eles não queriam matar imediatamente e qualquer membro da Sociedade cujo destino ainda não havia sido decidido. Foi onde Kelia conheceu Christopher, e onde Rycroft a manteve após sua punição.
—Você está surpreendentemente quieto — disse Rycroft. Ele deu mais um passo à frente. —Se eu ameaçasse a Srta. Starling, isso teria mais uma reação de você?
Kelia não conseguia ver a expressão de Drew, mas tinha certeza de que ele não estava feliz com o humor negro que Rycroft vomitou.
—Se você ameaçar a Srta. Starling, eu poderia cortar sua garganta e voltar ao lugar antes que seus colegas membros do conselho soubessem o que eu fiz, — Drew disse suavemente. —Aqueles velhos tolos voltariam correndo para sua preciosa fortaleza, com o rabo entre as pernas, implorando por misericórdia.
—Eu consideraria isso um sim. — Os lábios de Rycroft se contraíram em um sorriso. —Você não pode ir a lugar nenhum. Você sabe disso, não é, Knight? A esta altura, a notícia está sendo enviada à Rainha de que temos você. Ela saberá de sua traição. Ela saberá de seus sentimentos pela Assassina. Ela vai matá-la, você sabe disso, não é? Ela vai matá-la, e o sangue dela estará em suas mãos.
Sintonizando o discurso de Rycroft, Kelia se concentrou em tentar discernir uma rota de fuga viável que salvaria a ela e Drew.
Encharcada até os ossos e todo o corpo dormente de frio, ela estava com medo de não ser capaz de se mover, muito menos de fugir. O cutelo pesava em sua mão; ela estava com medo de não ser capaz de usá-lo devido ao quão frígida ela havia se tornado. Depois de respirar fundo, ela lentamente soltou, deixando o ar escapar em pequenas silhuetas, pequenos espectros na escuridão.
Ela esperava que ela e Drew pudessem ir para o mar. No entanto, se já estivesse frio, o oceano poderia estar pior e ela poderia ficar doente com uma febre que poderia matá-la. Além disso, o navio de Drew estava longe de ser visto, embora ela tivesse certeza de que devia estar em algum lugar.
Rycroft e os membros do conselho eram muito velhos para persegui-la. Não fazia sentido porque Rycroft não trouxe Assassinos. Eles devem estar por perto, em algum lugar. Ou bloqueando algum caminho invisível de Drew e ela escapando... ou...
Kelia balançou a cabeça, a compreensão finalmente se estabelecendo. Rycroft não queria que os Assassinos vissem isso. Eles aprenderiam muito. Eles teriam perguntas. Tudo, desde a existência de Drew Knight até seu semblante, contradizia tudo o que a Sociedade havia ensinado.
E agora, Kelia sabia o segredo, o que tornaria deixá-la viver uma conclusão perigosa para a noite de Rycroft.
—Não sei nada quando se trata de Katalina — disse Drew antes de cuspir, como se não suportasse o nome na boca e precisasse expelir qualquer vestígio dele. —Ela pode fazer o que quiser. Eu não me preocupo com a sujeira.
Kelia ficou surpresa com seu desrespeito flagrante pela rainha. Ela se divertiu, certamente, com sua resposta direta. Mas havia uma amargura dura e raivosa - uma fúria que girava profundamente dentro dele com a simples menção dela - que aterrorizou Kelia. Quem quer que fosse essa mulher, Kelia tinha certeza de que nunca queria conhecê-la.
Rycroft deu uma risadinha. —Vai ser absolutamente delicioso ver como ela vai arruiná-lo — disse ele. —Sua arrogância, sua audácia; mal posso esperar para ver a maldade morrer em seus olhos. Ela vai bater em você e quebrá-lo até que seu espírito não seja nada além de cinzas, junto com o resto de você.
—Você não é nada além de um fantoche em seu grande plano, — Drew disse, erguendo o queixo. Embora ele fosse mais baixo do que Rycroft, esse movimento o fez parecer maior do que o ex-treinador de alguma forma. —Você sorri agora, mas quando ela arrancar seu coração porque está cansada de você, você ainda achará isso tão engraçado? — Ele cruzou os braços sobre o peito e mudou seu peso. —O que você planeja fazer comigo, exatamente? Você planeja falar no meu ouvido até que ela venha me buscar? Você nunca foi de bater papo. Você gosta de sentar e deixar que os outros façam o seu trabalho sujo, permanecendo nos confins seguros de sua fortaleza. E agora você está diante de mim, nesta chuva torrencial, amigável como o inferno.
Sem aviso, Drew saltou no ar e, em segundos, cada membro do conselho caiu em uma poça de sangue. Kelia pulou com a visão, não percebendo o que tinha acontecido até que já tivesse acontecido. Drew pousou de volta na frente dela. O sangue pingou de suas mãos e caiu na terra. A chuva lavou a cor, mascarando-a com a lama.
—Você acha que suas peças de prata iriam me tocar? — Drew perguntou. —Você acha que eles têm a capacidade de me tocar? Você sabe quem eu sou?
Algo estalou atrás dela. Ela girou no calcanhar dos calçados. Ela podia sentir a torção da pele. Teria sido preferível botas, mas ela não teve permissão de sair com elas quando se mudou para o celeiro, ainda de alguma forma pegando fogo apesar da chuva.
Lá estava Charles, mais amplo do que ela se lembrava dele. De onde ele veio? A chuva deve ter mascarado seus passos. A menos que ele já estivesse nas docas, isso significaria que ele tinha vindo da fortaleza.
—Morto! — Charles rosnou enquanto se lançava para Drew. Seu cutelo, uma arma que ele nunca dominou, estava pronto.
Kelia estreitou os olhos para o cutelo. Como todos os outros cutelos feitos pela Sociedade, ele teria sido forjado em prata. Se Charles acertasse Drew no coração, ele estaria morto. Se ele errasse, Drew ainda estaria com uma dor terrível. Mas havia esperança; Drew acabara de tirar a maior parte do conselho da Sociedade, também armado com armas de prata, de uma só vez. Charles não deveria ser problema para conquistar.
Mas Rycroft já estava atacando Drew, e a distração foi suficiente para Charles desferir um golpe. Kelia ergueu o cutelo e se interpôs entre Charles e Drew antes que Charles pudesse causar mais danos. Charles balançou mais uma vez. Kelia ergueu a lâmina, mas não foi capaz de afastá-lo do jeito que pretendia. Embora a lâmina tenha sofrido o impacto do ataque, a ponta da lâmina do próprio Charles perfurou o ombro de Kelia. Ela soltou um grito.
Drew era um borrão e, em um piscar de olhos, Charles estava morto a seus pés, o pescoço torcido em um ângulo estranho. Ele se virou para Kelia, ajoelhada. De onde ela estava, ela viu Rycroft se levantando do chão. Ainda vivo após atacar Drew Knight. Ela se perguntou se a preocupação de Drew por Kelia era a única coisa que impedia Drew de matar Rycroft.
—Estou bem, — ela murmurou, segurando seu ombro. Sangue carmesim pegajoso vazava da ferida e deslizava entre seus dedos. Sua cabeça estava leve. —Eu sobreviverei. Estou apenas perdendo...
—Sangue. — Rycroft deu um passo à frente. —Ela só vai sobreviver se for tratada adequadamente. Deixe-me levá-la para a enfermaria...
Drew se virou para atacar Rycroft.
Rycroft sacou sua própria arma - uma adaga revestida com a mesma substância líquida. Ela estava fazendo o possível para evitar que a lama entrasse em sua ferida.
—Dê ela para mim. — Disse Rycroft.
Os Assassinos começaram a sair para o pátio, todos eles segurando uma arma semelhante. Eles se amontoaram atrás de Rycroft, todos posicionados e prontos para atacar.
Ela estava errada. Rycroft não estava escondendo Drew e Kelia dos Assassinos. Ele estava escondendo os Assassinos de Drew e Kelia.
—Eu esperava que não chegasse a esse ponto. — Disse Rycroft.
—Você não pode me matar. — Drew suspirou.
—Não — Rycroft concordou. —Mas ela — ele apontou para Kelia —é uma história diferente.
—Dê ela para mim — disse Rycroft. —E venha de boa vontade. Você não pode vencer, Knight. Você sabe disso.
Kelia abriu a boca para responder, mas nenhum som saiu. Não havia maneira de sair disso. Drew poderia ser capaz de aniquilar uma reunião de membros do conselho, mas uma armada de Assassinos era outra história.
Ela voltou a cabeça para o oceano. Sem navio. Para sobreviver, precisariam de um milagre.
Ela baixou a cabeça e, pela primeira vez em muito tempo, começou a orar.
CAPÍTULO 29
Drew não sabia o que fazer. Kelia estava atrás dele, incapacitada. Rycroft e todo seu bando de Assassinos estavam diante dele, armas brandidas, brilhando com a prata líquida que as sereias devem ter fornecido a eles. A prata líquida era inatingível, exceto para as bruxas do mar. Elas tinham a habilidade de quebrar o metal e liquefazê-lo com sua magia. Ele poderia escapar se quisesse, mas não com Kelia a reboque. Ele não seria capaz de se mover tão rapidamente se tivesse que carregá-la nos braços, não depois de ter sido enfraquecido por uma facada da lâmina de Charles.
A chuva cortou o céu como uma lâmina, picando onde cada gota d'água caía sobre ele. O vento gemia ao redor deles, empurrando a tempestade, direcionando-a para onde bem entendesse. Ainda estava escuro, mas Drew sabia que logo amanheceria. Se ele não saísse da ilha antes dos primeiros raios de sol - mesmo que fossem bloqueados pelas nuvens - ele não seria nada mais do que cinzas, e Kelia seria deixada para os lobos.
Ele olhou para o grupo de Assassinos ao redor. Todos eles eram jovens, o mais velho sendo apenas alguns anos mais velho do que Kelia. Não era culpa deles que não quisessem nada mais do que matá-lo. Isso estava enraizado em suas cabeças desde que eram crianças. Eles não tiveram chance de saber a verdade, quando acreditavam tão apaixonadamente que ele era mau. Ele não queria matá-los. Este era o sangue que ele não queria derramar. Mas ele estava encurralado em um canto e sentia como se não tivesse outra escolha. Eles iriam arrancar Kelia dele e levá-la de volta para a fortaleza. E ele não seria capaz de chegar até ela se estivesse morto.
—Não. — Disse Kelia atrás dele.
Drew ficou tenso. Ele queria ir para ela. Ele queria envolvê-la em seus braços e protegê-la de tudo - a tempestade, os Assassinos, a Sociedade. Tudo. Ele precisava fazer um curativo em seu ferimento e encontrar um lugar seguro para ela se recuperar.
—Eu sei que você pode me ouvir, — ela continuou. Sua audição aguçada poderia pegar sua voz, mesmo através da chuva. —Não faça algo estúpido, Drew. Apenas me dê a eles e vá.
Ele apertou a mandíbula. Ele leu a multidão, tentando ver quem atacaria primeiro. Ele esperava que fosse Rycroft. Se ele matasse Rycroft, Drew tinha a sensação de que os outros cairiam. Corte a cabeça de uma cobra, por assim dizer.
—Não vale a pena, — ela o empurrou. —Ou eu morro, ou nós dois morremos. Não seja idiota.
—Não fale essas coisas — disse Drew com os dentes cerrados. —Eu não vou deixar você de novo.
Rycroft tinha um brilho divertido nos olhos. Drew teve o desejo de arrancá-lo.
—O que é que você está falando? — Rycroft perguntou. —Você está falando sozinho, Knight? Por favor, diga, do que está falando? Você gostaria de compartilhar?
—Eu não acho que você gostaria que ele fizesse isso. — Kelia rebateu, apenas alto o suficiente para ser ouvida sobre a chuva.
Drew não fez nenhum movimento para revelar sua surpresa mais do que já demonstrara. Ele podia sentir Kelia lutando ao lado dele, mas não a ajudou. Ela poderia cuidar de si mesma.
—Srta. Starling — disse Rycroft com um sorriso malicioso. —Você tem força que eu subestimei. Presumi que uma moça que não conseguia pôr os pés em um barco sem sentir o estômago revirar não conseguiria continuar em pé quando deveria cair. Você é teimosa, não é? Filha de sua mãe, isso é certo.
Kelia começou. Era uma coisa que Drew desejava ter melhor controle. Suas emoções eram fáceis de decifrar. Sua frustração e raiva eram palpáveis em um olhar. Ela deve ter trabalhado nelas se conseguiu enganar Rycroft e sua treinadora Cega. Mas ela ainda foi capaz de ser pega de surpresa. Ela tinha uma fraqueza clara: seus pais - embora Drew não soubesse muito sobre a mãe de Kelia, exceto por ela estar morta.
Rycroft avançou valsando sob a chuva, e Drew levou tudo para não proteger Kelia. O cheiro do sangue de Kelia fez cócegas no nariz de Drew. Ele sabia que sua ferida estava piorando, especialmente com o tempo. Ela poderia pegar um resfriado se eles não pensassem em um plano de fuga, e logo.
Eles tiveram sorte de Rycroft gostar de sentar e conversar, mas ele também podia estar protelando. Se fosse verdade e eles já tivessem mandado chamar a Rainha... isso significava que Kelia e Drew não tinham muito tempo. Mesmo se eles pudessem escapar do Conselho.
—Foi sua mãe quem se matou — disse Rycroft. —Você sabia disso? Sua mãe insistiu em visitar sua avó doente. Seu pai tirou um ano sabático e deixou você aos nossos cuidados, por insistência de sua mãe. Ela não queria você no barco, com a sua aflição.
Drew podia ver e ouvir a respiração de Kelia ficar pesada. Saiu de sua boca em uma fumaça branca e inchada, como se ela fosse um dragão, pronto para explodir a qualquer momento. Ele observou enquanto os dedos dela se fechavam em punhos, uma mão ao redor do cabo do cutelo, a chuva batendo contra sua pele.
—Seu pai, tolo que era, faria qualquer coisa por ela, — Rycroft continuou. —Aquela garota foi morta. Em vez de seguir o caminho mais longo, eles passaram pela Passagem Musical para economizar tempo. Seu pai, tenho certeza que você sabe, ficou arrasado e queria vingança. Ele estava desesperado, você vê. Tão desesperado, que nem percebeu quando condenou Daniella ao programa.
—Você está mentindo! — Kelia gritou. —Meu pai nunca permitiria que uma criança fosse devastada pelas Sombras. Daniella teria...
—Quatorze, eu diria, — Rycroft interrompeu. —E você está certa. Seu pai presumiu que Daniella não estava no programa. Ele estava muito ocupado em sua própria missão para ver como ele estava muito consumido por sua crença de que apenas a terra poderia dominar a água, muito focado em encontrar uma bruxa em particular. Uma mulher que acredito que você conhece.
Aonde Rycroft queria chegar?
—Eu não sei o que ela pensa agora, mas a cadela tem estado nesta ilha, protegendo-a por séculos. Ela também tem um relacionamento com seu amante. — Ele acenou com a cabeça para Drew.
—Emma. — Kelia sussurrou.
—Quem você acha que destruiu o vínculo entre ele e a Rainha? — Rycroft pressionou. —Você se lembra - a Rainha deveria ser capaz de convocá-lo, mas ela não pode. A cadela o ajudou.
Kelia empalideceu. Ela tinha aprendido recentemente sobre a habilidade da Rainha de invocar os Sombras que ela criou, mas ele não teve a chance de dizer a ela por que isso não se aplicava a ele. Por que a Rainha ainda não o tinha convocado, como ela não era mais capaz de fazê-lo.
—Tanto Daniella quanto a bruxa foram colocadas no programa, — Rycroft continuou. —Embora seu pai estivesse tão focado em - Emma, não é? - que ele não percebeu a participação de Daniella até que ela já estava grávida. Nesse ínterim, usamos a Cega para testar e coletar dados. Afinal, os humanos também são da Terra. Não apenas bruxas da terra. Infelizmente, nenhuma ainda sobreviveu ao parto para que possamos chegar a alguma conclusão, por isso a sua participação é tão importante. Então por que você não para com essa tolice e segue seu dever para com a Sociedade, Kelia Starling.
Kelia congelou onde estava. Ele ainda estava tentando jogar com sua lealdade à Sociedade? Isso estava muito longe. Ele estava delirando se pensava que poderia reivindicá-la para a agenda da Sociedade novamente.
—Funciona, Kelia — disse ele, como se ainda estivesse tentando convencê-la. —Assim que tivemos Daniella, pudemos confirmar a hipótese de seu pai. Você vê, seu experimento funcionou. Finalmente tínhamos um espécime que podíamos usar contra as sereias. Mas seu pai de repente sentiu que era uma questão moral, ter gerado aquela criação de uma criança. De repente, ele queria parar tudo. Ele confessou tudo para Emma e removeu as bugigangas de seu pescoço que a impediam de usar seus poderes. Ela fugiu. Naquela época, pensamos que seria mais sábio inibir a bruxa em vez de proteger todas as outras. Como você deve ter notado, tivemos uma mudança na política desde então. Mas você - você poderia nos ajudar. Termine o trabalho do seu pai. Vingue a morte de sua mãe. Restaure o legado de seu pai.
Drew olhou de volta para a multidão. Ele não sabia se eles podiam ouvir Rycroft ou se esperavam que Drew atacasse a qualquer momento. Ele supôs que não importava, contanto que eles não atacassem ainda.
O celeiro em chamas ainda estava em chamas, mas a chuva finalmente o estava derrubando. A fumaça escura subiu para o céu.
—Se você pensar sobre isso, Drew Knight é o responsável por tudo isso, — Rycroft continuou. Cada palavra ficava mais alta e clara na chuva conforme ele ficava mais ousado. —Drew cortou seus laços com a Rainha. Você sabe como isso deveria ser impossível? A Rainha foi capaz de rastrear Emma. Barganhamos com ela. Queríamos Emma para nosso programa, mas a Rainha queria que ela fosse punida. Oferecemos a ela Drew Knight porque tínhamos certeza de que ele voltaria e resgataria Emma. Ele não fez. Mas outra pessoa fez. Irmã dele. Ela caiu em nosso programa facilmente. O único problema foi a fuga de Emma. Veja, se Drew nunca tivesse rompido o vínculo com sua rainha, Emma nunca teria sido notada pela rainha. Nós nunca a teríamos encontrado, Wendy nunca teria que resgatar Emma, e você nunca teria sido enviada à procura de Wendy. É preciso perguntar se Drew Knight realmente se preocupa com alguma de vocês.
Drew ficou imóvel. Ele odiava admitir, mas Rycroft estava certo, em seu próprio jeito sádico e distorcido. Isso foi culpa de Drew. Tudo isso.
—Então o que você me diz, Kelia Starling? Você gostaria de uma última chance de poupar sua vida?
Kelia zombou.
Com a mão trêmula, Rycroft estendeu a mão e ajustou os óculos, para todo o bem que faria sua visão naquela chuva. —Você acha que vai se afastar disso, Kelia? Que você pode escapar, e todos que você gosta ainda estarão seguros?
Kelia deu um passo ousado para frente. —O que diabos isso quer dizer?
Os lábios de Rycroft se transformaram em uma carranca, quase como se ele estivesse encolhendo os ombros sem mover os ombros. —Wendy alguma vez te contou como ela entrou em nosso programa? Foi através de Emma. Wendy veio ajudar Emma a escapar, mas no processo, conseguimos adquirir Wendy. — Ele sorriu, uma visão aterrorizante para palavras tão sombrias. —Com quem podemos adquirir uma vez que você se for?
Kelia se recusou a responder isso. Ela não ia ficar aqui e não os estava ajudando com seu programa de doenças.
Rycroft tirou os óculos para limpar as lentes antes de colocá-los de volta no rosto. —O problema é, Kelia. Nós realmente não queremos ou precisamos de você. Ou Wendy, por falar nisso. Emma é mais poderosa do que Wendy, que só usamos como isca para Drew Knight, na esperança de atraí-lo para cá junto com Emma. Um prêmio para a rainha e um prêmio para nós também. Você poderia fugir disso, se nos fornecer a última peça que faltava no quebra-cabeça. — Depois de um longo momento, o sorriso sumiu do rosto de Rycroft, substituído por uma expressão de pedra para combinar com seu tom. —Onde está a bruxa da terra, Starling?
—Você não vai conseguir Emma, — Kelia disse. —E você não está me mantendo. Ou qualquer uma das outras garotas que você está tentando experimentar, seu doente de merda.
Ela cuspiu nele, mas Rycroft apenas sorriu ainda mais. —Até que a tenhamos, estaremos presos no jogo com os humanos e outras bruxas que colocamos no programa. Tantas vidas, quando tudo o que queremos é apenas uma... Veja, bem, seu pai pode ter sido um tolo, mas suspeito que ele estava certo sobre uma coisa. As bruxas da terra seriam capazes de carregar uma criança. Infelizmente, as humanas continuam morrendo tentando dar à luz, e muitas das bruxas são incapazes de carregar as Sombras por algum motivo. Veja Daniella por exemplo. Seu filho queimou porque seus poderes são os de um demônio do fogo. E Wendy parece não conseguir engravidar. Em nossa pesquisa, e com a ajuda das sereias, descobrimos que ela era um anjo caído - uma bruxa do ar - e é raro uma bruxa do ar engravidar. Quem sabe quanto tempo teríamos gasto tentando engravidá-la se você não tivesse aparecido? Mas se você nos der Emma, podemos parar com isso aqui. Ninguém mais precisa morrer.
—Mas muitos já o fizeram — disse Kelia. —E eu não vou permitir mais uma. Não Emma. Mais ninguém. Isso é o que meu pai queria no final. Parar você - esse será o legado dele.
Rycroft inclinou a cabeça para trás e riu com vontade. —Me parando? — Sua gargalhada ecoou contra a tempestade. —Você se lembra de como isso funcionou para ele, certo? Ele interferiu em nossos planos. Ele encontrou Emma depois que ela escapou, e em vez de nos dizer onde ela estava, ele contou a ela sobre o propósito de nosso programa. Eu garanto a você, tentar nos parar não vai funcionar para você.
—É por isso que você o matou. — Disse Kelia, sua voz perdendo a autoridade que tinha momentos atrás. Era a única razão pela qual ela ainda estava aqui - para descobrir. E agora ela sabia.
—Uma das razões, — Rycroft disse com um encolher de ombros fácil. —A traição dele foi o que realmente marcou o seu destino. O que, se você pensar bem, foi a melhor parte. Não sabíamos que ele disse à bruxa o que aconteceu ou que a libertou. Achamos que ela havia escapado sozinha. Graças ao bom Deus, alguém em quem ele confiou veio até nós e nos contou. — Seus olhos brilharam. —Tenho certeza de que você sabe quem foi que o entregou.
—Quem?
Rycroft sorriu. Sua adaga ainda estava em sua mão e se movia com seus gestos. A prata liquefeita brilhava mesmo na escuridão. A chuva a havia levado, lavado todas as armas da mistura? Ele não queria arriscar ainda. Talvez com o tempo, entretanto.
—Abigail. — disse Rycroft.
De sua periferia, Drew observou Kelia dar um passo para trás e depois outro.
—E, claro, era nosso dever reagir, fazer justiça à situação — disse Rycroft. —No início, presumimos que poderíamos nos livrar de você e forçá-la a se submeter. Já havíamos gasto anos e inúmeros recursos treinando seu pai. Podemos perder você sem hesitação. Mas não funcionou. Você conseguiu capturar o infante sem morrer no processo. Foi quando soube que seu pai lhe contaria tudo se não agíssemos. Sendo assim, decidimos que Abigail levasse seu pai aos navios nas docas depois de comer uma ceia envenenada com uma mistura para paralisá-la. As Sombras de seu programa banquetearam-se com ele, uma punição adequada por seu crime de traição. Embora ele tenha sofrido tremendamente, você deve saber, ele foi capaz de morrer com alguma honra. Um autodidata, ao invés de um traidor.
Kelia caiu de joelhos na lama.
Drew não entendia muito bem o significado do que estava acontecendo.
Com suas habilidades, ele foi capaz de ver através da escuridão. Seu ombro ainda estava aberto. O fluxo de sangue diminuiu. Havia uma boa chance de ela sobreviver ao esfaqueamento, contanto que não pegasse febre ou infectasse.
O que significava que eles precisavam sair desta ilha o mais rápido possível.
Uma vez que ele a tivesse a bordo, uma vez que tivesse Wendy a bordo, ele poderia fazer o que quisesse: derrubar sua Rainha e libertar as Sombras de suas amarras. Esmagar a Companhia das Índias Orientais e evitar que eles façam algo assim novamente.
—Você parece surpresa — disse Rycroft, dando mais um passo à frente. Kelia sabia que ele estava falando com ela, mas cada palavra que saía de sua boca era vazia, outro golpe em seu coração ferido. Ouvir essas coisas sobre seu pai... Era difícil respirar. —Você não sabia que seu pai era íntimo de Abigail? Na época, ela não era nada mais do que uma Cega, mas ela queria provar seu valor. Ela não queria ser uma cega. Demos a ela uma tarefa e ela a completou, superando nossas expectativas.
—Suas expectativas. — Drew disparou.
Rycroft percebeu seu tom e se virou, dando a Drew um olhar perplexo.
Outra etapa.
—Seu conselho está morto, — Drew o lembrou. —Você é o único que sobrou.
Naquele momento, houve um gemido alto e o celeiro desabou. Outro tiro no coração. As páginas que faltavam estavam lá, agora completamente perdidas, virando fumaça.
Em vez de ficar furioso com a lembrança, os lábios de Rycroft se ergueram. —Sim — disse ele, balançando a cabeça. —Você, você está correto. Eu sou o último, não sou? Eu acho, então, que daqui para frente, o que eu digo vai ser o ponto final. E quando sua rainha chegar, serei eu quem ela recompensará. Eu e mais ninguém.
Drew rosnou. —Não se eu matar você também.
—Me matar?
Kelia piscou. Matar Rycroft.
Sim.
Isso precisava acontecer.
Seus olhos se voltaram para o homem gordo. Ela poderia fazer isso. Sua lâmina estava à direita. Ela flexionou os dedos e se inclinou para frente lentamente. Ela não queria atrair a atenção de Rycroft. Ela continuou a avançar até que seus dedos enrolaram em torno do punho familiar. Seus olhos se fecharam de contentamento e um sorriso gentil apareceu em seus lábios.
Rycroft deu outro passo ousado à frente. Agora, ele estava a um braço de distância de Drew.
Ela teria que agir logo. Os Assassinos tinham armas com ela, mas ela duvidava que eles pudessem ver muito através da escuridão e da chuva. Mesmo se isso a matasse, ela arriscaria. Valeria a pena.
Ela ficou de pé, os joelhos tremendo. Ela quase caiu para frente. Em vez disso, ela disparou o pé, recuperando-se. Ela apertou o cabo com mais força enquanto ela se arrastava para trás de Rycroft. Um passo. Outro. Sua respiração engatou. Seu corpo gritou de dor.
—Me matar? — Rycroft repetiu, abaixando a cabeça para olhar Drew nos olhos, um grunhido no rosto. —Você não ousaria.
—Sim — ela sussurrou. —Eu gostaria.
Ela enfiou a lâmina em suas costas com tanta força que saiu de seu peito. Uma crise nauseante perfurou a noite. Kelia cambaleou para trás quando gotas de sangue rubi caíram no chão. Seu cabelo grudou em seu rosto e seu corpo tremia. Ela não sabia se estava chorando quando encontrou os olhos de Drew, mas supôs que não importava.
Ela puxou o cutelo, mas não conseguiu removê-lo do corpo. Seus dedos estavam inchados de frio. Cada vez que ela movia o ombro esquerdo, ela fazia uma careta. A dor começou a preencher seu corpo, e ela sabia que não sobreviveria se eles não conseguissem encontrar uma saída da ilha.
Drew deu a volta em Rycroft e puxou o cutelo da cavidade torácica. Kelia cedeu de alívio. Ela fechou os olhos, mas Drew segurou sua mão. O fogo foi apagado, mas metade do celeiro já havia desabado. Ela estava pronta para dormir.
—Ainda não. — Disse Drew, como se pudesse ler sua mente.
No momento em que Drew estava prestes a entregar a lâmina a Kelia, a tempestade estalou com um trovão. Estava alta. Perto. Destruía os ouvidos.
Mas então Kelia percebeu que não era um trovão. Ela piscou, o sono sumindo de sua mente. O sangue gotejava da ferida rasa e Kelia pôde ver que a dor emitida era o suficiente para atordoá-lo, pelo menos momentaneamente.
Ele olhou para a multidão. Uma única mulher estava de pé com a mão segurando uma pistola.
—Jennifer! — Kelia gritou. Levou cada grama de sua força para se manter ereta enquanto olhava para a amiga com os olhos arregalados. —O que você está fazendo?
—Você não pode ver que ele arruinou você? — Jennifer gritou de volta. —Eu pensei que se eu entregasse o bilhete dele, ele iria tirar você de tudo isso, mas eu estava errada. Ele arruinou você. — Ela ergueu a pistola, engatilhando-a. —Kelia, você matou o conselho. Não há proteção contra as Sombras agora. Rycroft está morto. Estamos livres para partir. Todos nós somos livres para fazer o que quisermos. Você, eu, os Assassinos, os cegos. Todos nós. Mas se Drew viver, todos vão querer você morta com ele.
Kelia deu um passo e depois outro. Os Assassinos atrás de Jennifer ergueram suas armas. Alguns tinham cutelos, outros tinham arcos e flechas. Alguns tinham pistolas, provavelmente carregadas com balas de prata.
—Se Drew Knight morrer, tudo isso acabará — disse Jennifer. —Agora se afaste dele. Eu não quero que você desça com ele.
—Você não ouviu uma palavra do que Rycroft disse? — Kelia gritou. Sua voz estava rouca, suas palavras ligeiramente arrastadas. Seu corpo continuou a tremer, desta vez com descrença. —A Rainha está chegando. Se ela descobrir que você matou Drew, você está morta.
—Ela vai pensar que os homens de Rycroft o mataram — disse Jennifer. —Finalmente, todos nós podemos estar a salvo desta sociedade opressora e das Sombras. Não vou desistir dessa liberdade, Kelia. Nem por você.
—Você está errada — A voz de Drew estava tensa. —Ela saberá que foi você, e ela vai te encontrar. Ela vai encontrar todos vocês e matar seus entes queridos na sua frente, então você conhecerá o verdadeiro sofrimento antes de morrer. Se você nos deixar ir...
—Não. — As mãos de Jennifer tremeram. Kelia não sabia se era de frio ou de nervosismo. —Kelia, por favor. — Sua voz falhou. —Volte conosco. Eu cuidarei de você. Eu prometo. Vamos casar você com um bom rapaz, que cuidará de você. Um que você pode aprender a amar.
Kelia nem hesitou. —Posso aprender muitas coisas — disse Kelia. —Infelizmente, aprender a amar alguém porque preciso não é uma dessas coisas. — Ela deu as costas a Jennifer, aos Assassinos, à fortaleza para que pudesse olhar para Drew. —Vamos lá.
Antes que Drew pudesse abrir a boca, Jennifer apontou a arma para Kelia. —Não me tente, Kelia — disse ela. —Vou puxar o gatilho se for preciso.
CAPÍTULO 30
Kelia estava entorpecida. Foi a única palavra que ela conseguiu encontrar que descrevia adequadamente a falta de sensibilidade em seus ossos. Abigail traiu seu pai. Daniella experimentou a pior das violações. Emma tinha sido cativa da Sociedade. Todas as coisas que Kelia não sabia. Todas as coisas que ela não queria saber.
Ela havia feito o que pretendia fazer. Ela havia resolvido o assassinato de seu pai, e foi mais trágico do que ela poderia ter imaginado. E agora ela estava pronta para deixar isso para trás e seguir em frente. Com Drew.
E ele estava dizendo a ela para ficar?
Kelia sabia que Jennifer não gostou de sua resposta - ela podia sentir - mas doeu mais quando Drew reduziu o amor um pelo outro a um 'destino tentador'.
Isso era besteira. Kelia escolheria seu próprio destino.
Ela se virou para Jennifer e caminhou pelo campo lamacento em sua direção. A cada passo, o cheiro de lavanda que envolvia Jennifer devido ao seu amor por velas perfumadas se fortalecia.
—Não posso permitir que volte para ele — disse Jennifer, sua voz transmitindo seu desespero. Kelia ouviu o barulho mesmo em meio à chuva torrencial. Seu coração batia forte contra o peito. Jennifer deu um passo à frente, implorando. —Por favor, Key. Deixe-me cuidar de você, como todas as vezes que você fez isso por mim.
De sua periferia, Kelia pôde ver Drew fazer uma pausa. Ela estava presa entre as duas pessoas mais importantes de sua vida: uma, sua melhor amiga desde que ela conseguia se lembrar; a outra, a Sombra mais desejada viva e o homem que ela amava inexplicavelmente. E ainda assim, Drew abriu seus olhos e mostrou a ela uma verdade que ela não queria ser confrontada e que ela não queria aceitar. E ele ocultou informações essenciais dela.
Ele era defeituoso - mas se importava com ela, e havia feito um grande esforço para provar isso.
Ela soltou um grunhido. Não havia mais energia em seu corpo. Ela estava tão cansada. Mentalmente. Emocionalmente. Fisicamente. Ela achava que não tinha mais forças para lutar.
—Kelia. — A voz de Drew a trouxe de volta ao presente. —Você deveria ir com ela. Agora. Tentamos o destino por muito tempo. Você está perdendo sangue e, se não for examinada, poderá contrair uma infecção.
Kelia balançou a cabeça —Você realmente não quer isso. Você realmente não deseja que eu vá com ela.
—Eu desejo que você faça o que é melhor para você, — ele murmurou. Ele baixou a voz quando estendeu a mão e apertou a mão dela. —Isso vai quebrar meu coração, mas é o melhor.
Kelia queria dizer a ele que ele não tinha coração. Ele era uma besta e as bestas não tinham coração e alma e coisas que lhes permitiam sentir coisas. Mas ela não podia porque essas coisas não eram verdade.
Ela iria com ele. Ela o convenceria disso. —Você não vai deixar esta ilha sem mim.
—Não posso deixar você ir com ele — tentou Jennifer pela última vez. Ela não olhou para Drew; seu foco estava apenas em Kelia. —Eu te ajudei então porque pensei que se ele fosse embora significaria que você finalmente terminaria com ele. Mas já que esse não é o caso ... —Ela engatilhou a pistola. —Eu realmente sinto muito por ter que chegar a esse ponto.
—Jennifer — disse Kelia. —Não!
Jennifer disparou a arma.
Mas, em vez de um tarugo disparando do cano, não houve nada além de um clique.
A chuva encharcou a pólvora, impedindo que a bala disparasse.
Jennifer baixou os olhos para a pistola, sacudiu-a e tentou mais uma vez.
Nada.
Uma flecha voou do enxame. Aterrou perto de Drew, quase o errando.
Eles precisavam sair. Agora.
Outra flecha. E depois outra.
Drew se virou para Kelia e agarrou seu braço. Ele a puxou com ele. Kelia embalou seu braço ferido, permitindo que Drew a puxasse na direção das docas. Kelia não conseguia distinguir nada com os lençóis de chuva caindo do céu e a espessa manta de nuvens de carvão.
Drew soltou um grito. Uma flecha atingiu sua coxa. Ele caiu de joelhos. Kelia parou, quase derrapando na lama, e puxou o braço de Drew.
—Você deve se levantar, — ela insistiu. —Agora, Drew.
Ele assentiu. A chuva emaranhada em seu cabelo, grudou em seu rosto. Ele se levantou mais uma vez, apenas para levar um tiro nas costas, perto de seu ombro esquerdo.
Outro grito de dor perfurou a chuva.
Kelia odiava aquele som.
—Vá, — Drew ordenou, sua voz áspera. —Pule na água. Eu prometo a você, minha tripulação vai encontrar você. Você estará segura. Eles vão cuidar de você. Eles a levarão para longe de mim e de qualquer perigo que eu traga em seu caminho. Apenas vá.
Lágrimas brotaram de seus olhos e ela caiu de joelhos na frente dele para combinar com sua posição no chão.
—Eu não vou te deixar, — ela disse a ele. —Eles não podem matar você. A Rainha vai puni-los se o fizerem.
—Eu prefiro morrer a vê-la novamente, — ele disse através de um rosnado. —E eles não parecem temê-la. Não vou deixar você morrer comigo, Kelia.
—Então não morra! — Kelia gritou na chuva. —Lute. Por nós dois. Levante-se e lute de volta!
Flechas caíam ao redor deles como chuva prateada, mas nenhum deles se encolheu.
—O que então, Assassina? Matar seus amigos? Matar aqueles homens e mulheres pelo crime de ignorância?
—Você pode se defender — rebateu Kelia. —Você pode se mover mais rápido do que eles podem piscar.
—Ou talvez eu possa mostrar a eles que nem todas as Sombras são monstros.
—Esse não é o seu propósito, Drew Knight! — Ela disse, com lágrimas ardendo em seus olhos. —Você não está aqui para provar uma porra de um ponto! Você está aqui porque este mundo precisa de você. Eu preciso de você.
Ela começou a soluçar com a realização. Ela nunca precisou de ninguém antes. Ela se orgulhava disso. Mas era verdade. Ela precisava dele - tanto quanto ele precisava dela. Ela odiava estar fazendo papel de boba na frente dele, mas não conseguiu se conter.
—Bem, agora, — ele disse, sua voz suave. Ele ergueu a mão para segurar sua bochecha. —Se esta não é a visão mais bonita que eu já coloquei meus olhos em todo o meu tempo na terra.
Kelia não entendeu. Ela parecia um destroço; ela não precisava de um espelho para ver por si mesma e saber tanto.
Seu polegar acariciou sua bochecha e ela não pôde evitar se inclinar para o toque, não se importando com o que ele pensava, o que qualquer um dos assassinos que gritava pensava.
—Uma Assassina, chorando por mim? — Drew disse, seu murmúrio quase inaudível sobre a chuva. —Eu vi tudo.
Ela se lançou e derrubou Drew sobre as ondas do barranco e fora da linha de fogo. De sua periferia, ela podia ver a oposição avançando em direção a eles, mas demoraria um pouco antes que eles finalmente chegassem a um lugar onde seriam capazes de disparar suas armas com qualquer esperança de atingir seus alvos.
Ela não sabia quanto tempo ainda tinha, mas ela sabia com quem estaria, e como ela queria gastá-lo.
Com um grunhido, ela agarrou o rosto de Drew com as mãos. Seu ombro gritou, mas ela empurrou a dor e puxou-o para si. As flechas sinalizavam enquanto voavam para o céu, mas, naquele momento, ela não se importou.
A mão de Drew se moveu de seu rosto para que ele pudesse agarrar a parte de trás de sua cabeça e ele recebeu seu abraço com entusiasmo e sinceridade.
Quando seus lábios se tocaram, tudo e todos foram esquecidos. O mundo navegou como um navio abandonado com uma vela apanhada na tempestade até que ficassem apenas os dois e a chuva que caía.
Seus lábios eram gentis. Kelia gostou que eles não a dominassem, mas eram suaves e pacientes. Ela suspirou durante o beijo. A sensação de sua mão forte segurando a parte de trás de sua cabeça a fez se sentir fortalecida e vulnerável, como se ela estivesse bem, independentemente do que acontecesse com eles.
Sua pele se arrepiou. Desta vez não foi por causa do frio. Na verdade, ela não sentiu nada, exceto o calor liquefeito que gotejava em seu estômago e pressionava seu coração com tanta força contra o peito que ela pensou que fosse explodir.
As flechas continuaram caindo. A doca de madeira se estilhaçava a cada tiro, a água engolindo aquelas que erravam a terra. Elas estavam chegando perto demais.
Ela se separou do beijo. —Nós vamos morrer? — Ela sussurrou.
—Hoje não — disse uma voz atrás deles. —Drew, leve sua amante ao mar. Seu navio o aguarda.
Kelia ergueu os olhos. Wendy parou na frente deles. Só então ela percebeu a verdadeira razão de não terem sido atingidos por flechas; eles haviam sido envolvidos em uma bola dourada. Era um escudo, uma camada protetora que desviava as flechas e as fazia estalar como gravetos.
—Vamos — disse Drew, levantando-se e pegando a mão de Kelia.
—Daniella — disse Kelia, olhando para Wendy. —Não podemos deixá-la aqui.
—Emma está resgatando-a. — Wendy disse, sem tirar os olhos dos Assassinos.
Atualmente, o grupo ficou paralisado, sem saber o que fazer. Alguns continuaram a atirar flechas, outros as sacaram, mas esperaram, e outros ainda não fizeram nada além de vigiar.
—Você percebe que eles estão todos mortos se a Rainha vier e você não estiver lá. — Wendy murmurou para Drew.
Drew continuou a olhar para os Assassinos, seus olhos duros e frios. —Não há nada que possamos fazer sobre isso agora.
—Vá, — Wendy comandou. —Acabei de colocar as Cegas em segurança e pretendo fugir sozinha. Eu apreciaria se você pudesse ouvir e entrar na água.
Drew ficou de pé. Kelia não tinha certeza se ele ainda sentia dor por causa dos ferimentos ou se estava disfarçando para se apressar. De qualquer maneira, ele a puxou para cima. Ele saiu correndo, puxando-a com ele.
—Onde estamos indo? — Kelia gritou através da chuva.
Wendy murmurou algo atrás dela, algo que soou como algum tipo de encantamento ou feitiço. Um grunhido coletivo foi emitido pelo enxame de Assassinos, e Kelia não pôde evitar se virar para olhar por cima do ombro para o que ocorreu.
A barreira dourada se empurrou para fora, derrubando a linha de frente dos Assassinos, todos preparados e prontos. Quando eles caíram para trás, eles derrubaram os Assassinos atrás deles e então aqueles derrubaram a fileira atrás deles até que quase todos eles estivessem incapacitados.
Flechas voaram no alto, mas a barreira protegeu Wendy, Kelia e Drew. Wendy ergueu as mãos como se estivesse segurando - e ela estava. Agora nem mesmo a chuva poderia passar.
Os poderes de Wendy eram fortes, uma visão de beleza. Kelia recusou-se ao fato de ter sido contida. Ela não sabia o que faria se tivesse tais poderes apenas para sufocá-los. Seria como se ela não tivesse o uso de um braço.
Wendy manteve a mão direita erguida, como se fosse segurar o escudo protetor, antes de estender a mão esquerda e sacudir o pulso. Todas as armas ergueram-se no céu. Alguns dos Assassinos soltaram um grito. Wendy lentamente ergueu as armas bem alto no céu escuro como breu, e qualquer prata liquefeita que tinha sido engessada nos cutelos e flechas evaporou diante de seus olhos enquanto suas pistolas permaneciam fora de alcance.
Kelia observou enquanto elas levantavam, levantavam, levantavam. E então, Wendy deixou cair a mão de uma maneira delicada, muito parecida com uma bailarina.
As armas começaram a cair.
Os Assassinos começaram a gritar mais alto agora e fugir do caminho, embora Kelia pudesse ver que Wendy tinha direcionado as armas para cair no oceano e para longe deles. Wendy recuou em direção ao cais de madeira, ainda segurando o escudo no lugar enquanto observava os Assassinos correrem em direção à fortaleza.
—Pare de ficar boquiaberta e se mexa! — Drew gritou, puxando Kelia para enfatizar seu ponto.
Kelia balançou a cabeça, tirando-a de seus pensamentos.
—Kelia! — Uma voz gritou. Era familiar e cruel. Cada fibra de seu ser surgiu na defensiva.
Abigail.
De onde ela veio?
Era como se ela tivesse permanecido na fortaleza até depois que os membros do conselho morreram e então se esgueirou quando foi conveniente para ela.
Kelia parou de correr. Ela se virou para ver que Abigail tinha sido capaz de passar pelas barreiras simplesmente porque Wendy não tinha notado ela e não tinha pensado em verificar quem estava deste lado da barreira antes de prender todos dentro.
—O que você quer? — Kelia gritou. Ela puxou o braço de Drew e se levantou para que pudesse enfrentar Abigail.
—Kelia — disse Drew. —Temos que sair agora. Os poderes de Wendy foram inibidos por muito tempo. Ela só pode mantê-los afastados por um curto período.
—Eu sinto muito! — Abigail gritou. —Por tudo! É por isso que lhe dei essas páginas que faltam. Você tem que acreditar em mim!
Kelia certamente não precisava acreditar nela.
A chuva encharcou Abigail, seus olhos parecendo implorar o perdão de Kelia, mas Kelia não encontrou ninguém para lhe dar. Se qualquer coisa, ela queria rasgar sua mandíbula e vê-la se afogar na água da chuva.
—Você arruinou tudo! — Kelia gritou.
A barreira tremulou. Não duraria muito mais tempo.
—Kelia! — Drew gritou. —Por favor!
Drew raramente dizia por favor, a menos que fosse importante.
Kelia soltou um grunhido, tirando o olhar de Abigail e acenou com a cabeça para Drew. O alívio encheu aqueles orbes marrons, e ele agarrou a mão dela e puxou mais uma vez. Eles correram ao longo do cais úmido, a chuva batendo contra ele e abafando os sons do oceano.
—Para onde vamos daqui? — Kelia perguntou quando eles chegaram ao fim do cais.
Drew não deu sinais de diminuir a velocidade. —Nós pulamos!
E eles fizeram.
Eles pularam do cais e bateram no oceano. Kelia reprimiu um grito quando a água salgada sufocou seu ferimento. Bolhas raivosas saíram de sua boca. Ela se sentiu como uma pedra, afundando nas profundezas do oceano.
Drew soltou a mão dela - ou talvez ela tenha soltado a dele. Talvez o oceano os tenha afastado. Não importava o que os separasse, Kelia não achava que tinha energia para voltar à superfície. Sua adrenalina diminuiu. A dor estremeceu por seu corpo. Ela não conseguia se segurar. Sua cabeça ficou leve. Uma visão de seu pai e sua mãe a envolveu, cobrindo-a de calor. Ela não conseguia entender o que eles diziam, mas os via tão vividamente quanto havia sentido seu beijo com Drew. Ela queria ir até eles, estar com eles mais uma vez.
Mas ela não conseguia chegar até eles.
“Fique” pareciam estar dizendo.
E então, alguém agarrou seu vestido e a ergueu com uma velocidade feroz, como uma bala disparada de uma arma, até que sua cabeça quebrou a superfície da água e ela engasgou, sugando o ar.
—Kelia!
Drew.
Sua voz a rejeitou para abrir os olhos. Ela o viu ao lado dela.
Ele sorriu um sorriso brilhante que o levou de lindo a absolutamente deslumbrante. Ele parecia aliviado. Ele largou o vestido dela para agarrar sua mão e começou a puxá-la para algo.
—Estamos quase lá — disse ele. —Meu navio está logo atrás daquele penhasco.
Com toda a honestidade, parecia uma eternidade. Kelia sabia que não teria sobrevivido se ele não estivesse segurando sua mão. Mas então, eles alcançaram o navio e ela foi ajudada a subir pela lateral por sua tripulação.
—Venha, venha, — Emma disse apressada, uma mulher familiar ao seu lado. —Eu esquentei água para você. Você precisa tirar essas roupas e essa chuva.
—Daniella? — Kelia perguntou, sua voz cansada, quando ela reconheceu a convidada de Emma.
—Estou aqui, — disse Daniella. —Kelia, estou aqui.
Uma vez que eles estavam abaixo do deck e fora da chuva, Emma abriu a cozinha e eles se jogaram nos bancos, exaustos.
—Agora que estamos seguros, por enquanto, — Drew disse, colocando as mãos atrás das costas e andando pelo chão. Suas botas rangendo com água. —Quero saber como Kelia foi incluída no programa.
—Eu já te disse. — Emma começou.
—Eu quero ouvir o que Kelia tem a dizer. — Drew retrucou, atirando em Emma.
Kelia engoliu em seco. Seu ombro doía e ela estremeceu ao movê-lo. Imediatamente, Emma se levantou e começou a cuidar dele com um bálsamo que poderia ser o mesmo que ela usava para as costas. Enquanto funcionasse, Kelia não se importava particularmente.
—Daniella e eu tivemos um confronto físico, — ela explicou. —Eu pensei ter te contado isso.
—Resumidamente — disse ele. Seu tom ficou baixo e, embora cansada, Kelia ainda podia captar o aviso ali. —Mas eu acredito que Daniella é mais inteligente do que eu pensava. Eu acredito que ela fez isso de propósito, sabendo que você seria designada para o programa. — Ele se lançou para agarrar Daniella pela garganta e a ergueu no ar. —É verdade?
Daniella engasgou e lutou contra seu aperto.
—Drew, — Emma retrucou. Ela parou de ministrar no ombro de Kelia, mas não foi até ele. —Eu te disse. Ela fez o que precisava ser feito para encontrar Wendy. A estrela com o nome de Wendy? No livro-razão? Representa o programa de Starling - que já conhecíamos. Que ela estava no programa. Sem Daniella, nunca teríamos encontrado Wendy.
Não admira que Daniella estivesse tão disposta a ajudá-la com os livros contendo o nome de Wendy.
—Não valia a pena arriscar Kelia — disse Drew. Seus olhos estavam fixos em Daniella. —Dê-me uma boa razão para não matar você.
—Drew, — Emma avisou. —Não me faça...
—Porque eu o solicito. — Disse Kelia.
Sua voz era um murmúrio baixo, mas a julgar pela tensão que apareceu no corpo de Drew, Kelia sabia que ele a ouviu. Ele não colocou Daniella no chão imediatamente, mas Kelia tinha fé que ele o faria.
Outro momento se passou antes que Drew colocasse Daniella no chão e a soltasse. Daniella sugou o ar, com as mãos no pescoço, tentando se acalmar.
—Estou observando você, — ele avisou, olhando para Daniella. —Um passo em falso e vou matá-la sem lhe poupar um pensamento. Não me importa quem você seja para Emma ou o que fez por Wendy. Você entendeu?
Daniella tossiu. Parecia que ela ainda não conseguia recuperar o fôlego, mas ela balançou a cabeça vigorosamente.
Kelia ficou com as pernas trêmulas. Ela não sabia se era porque estava com frio ou se estava exausta. De qualquer forma, ela queria tirar essas roupas assim que pudesse. Quando ela alcançou Daniella, ela caiu de joelhos.
—Eu sinto muito, — ela murmurou. —Você deixou o diário para mim?
Daniella acenou com a cabeça, ainda esfregando a garganta.
—Você... você ainda tem? — Ela conseguiu deixar sair.
Kelia balançou a cabeça e foi atingida por uma crise de tontura. —Queimou — disse ela. —O celeiro. — Ela respirou fundo. —Eu quero que você saiba... faltavam páginas. Acho que você leu as páginas, mas não recebi até ser Cega. Abigail as deu para mim. Ela havia arrancado as páginas depois que você leu o diário, antes de você deixá-lo para mim.
—Então você realmente não sabia. — Disse Daniella, desviando o olhar.
Kelia balançou a cabeça e foi confrontada com mais tonturas. —Não, Daniella. Verdadeiramente.
—Então também sinto muito — disse ela, estendendo a mão. —Amigas?
Kelia pegou a mão de Daniella nas suas. —Algo assim, eu acho.
Quando Daniella saiu, Kelia soltou um suspiro trêmulo que não percebeu que estava segurando. Ela estava segura. Seus amigos estavam seguros. Ela finalmente estava longe da Sociedade e nunca mais voltaria.
Obrigada, ela pensou - a seus pais, a Deus, a Drew ou Daniella ou Emma... ela não sabia.
Ela respirou fundo e finalmente se permitiu cair em uma feliz inconsciência.
CAPÍTULO 31
Drew Knight recostou-se na cadeira, os tornozelos cruzados na borda da mesa, as pernas esticadas e a cabeça voltada para o teto. Os papéis colocados em sua mesa ainda estavam espalhados. Ele pretendia organizá-los de maneira mais adequada, mas nunca teve a oportunidade de fazê-lo.
Era difícil para ele entender o que acabara de acontecer. Tudo era um borrão, era difícil de decifrar, difícil de entender. Ele nem estava pensando nisso, verdade seja dita.
Em vez disso, seu foco estava no que havia descoberto. A Rainha estava procurando por ele. Mais do que isso, ela o queria de volta. Porque ele havia cortado o vínculo deles há muito tempo, ela não podia chamá-lo para ela. Ele assumiu que ela nunca tentou chamá-lo de volta para ela porque ela não tinha visto uma razão para fazer isso, mas agora estava claro que ela devia e desde então colocara uma recompensa em sua cabeça.
Seus lábios se curvaram enquanto ele entrelaçava os dedos e o colocava atrás da cabeça. Agora ela saberia sobre Kelia, e a rainha não gostaria da ideia de que ele havia colocado outra mulher acima dela.
Ele podia vê-la claramente, aquele sorriso felino, os olhos estreitos, a testa lisa. Ela disse a ele para sair e brincar, que não importava porque, no final, ele voltaria rastejando para ela como todo mundo fazia. Pelo menos ele teve a previsão de que Emma removesse o vínculo de qualquer maneira.
Porque mesmo então, Drew sabia que não era como todo mundo... e que a Rainha acabaria percebendo isso.
A vela que ele acendeu, colocada cuidadosamente no canto da mesa, tremeluzia na escuridão. Sua audição captou o murmúrio suave da voz de Kelia. Parecia que ela estava falando com Wendy sobre qual cama ela queria.
Drew ordenou que as mulheres recebessem um alojamento separado dos Sombras, e Emma ofereceu-lhes um lugar em seu quarto. Apenas o som da voz suave de Kelia era o suficiente para acalmar seu coração.
Ela estava aqui, com ele.
Ela realmente estava aqui.
Ele chutou os pés da mesa, trazendo-os para descansar no chão. Ele se inclinou para frente, vasculhando o papel. O farfalhar da papelada era o único som em seu quarto. Ele precisava encontrar algo. Especificamente, a localização da Ilha de Sangre - a localização da Rainha.
A porta de seus aposentos se abriu e Emma se esgueirou. Seu olhar se fixou no dela. Ele fez uma pausa na busca, mas não disse nada.
—Todas estão se acomodando. — Disse Emma.
—Como ela está? — Drew sabia que não precisava especificar a quem se referia. Ele se concentrou na vela dançante e não em Emma ou em seus olhos conhecedores.
—Consciente. — Emma deslizou como uma onda rolando na costa. —Ela é muito mais forte do que eu imaginava.
—Ela é mais forte do que qualquer um acreditava. — Drew concordou. Ele olhou para baixo e folheou os papéis mais uma vez.
—Procurando algo em particular, Capitão?
Drew ergueu os olhos ao virar uma frase. Emma nunca se dirigiu a ele como capitão.
—Um local, talvez? — Ela perguntou.
Drew se recostou em seu assento. Apesar do quarto escuro, ele podia ver Emma claramente, parada diante dele com uma graça reservada. Era difícil não olhar para ela. Além de sua beleza óbvia, havia algo que ela certamente estava escondendo, algo que ele não conseguia identificar.
—Você arrisca muito indo atrás dela — ela continuou. Seus lábios pintados de vermelho eram como um aviso. —Tem certeza de que é isso que deseja fazer?
—Você me perguntou a mesma coisa quando cortou meu vínculo com a Rainha. — Drew disse lentamente.
—Sim, mas indo atrás da Rainha? Isso é um risco, Drew.
—Ela quer Kelia. — Drew ficou em pé em toda sua altura. Ele colocou a mão firmemente na superfície da mesa, os papéis enrugando sob seu peso. —É a única explicação para Kelia ser colocada no programa de criação. Não havia como ela ser uma Cega por ter um relacionamento comigo sem que ela ouvisse sobre isso; sem saber sua conexão com a Sociedade. Para o próprio Rycroft. Seu povo já estava a caminho, mesmo quando escapamos. E você sabe que a Rainha não vai ceder até que ela a tenha.
—Você sabe disso, e ainda foi atrás dela. — Emma apontou, sem se preocupar em esconder seu aborrecimento.
—Eu não pensei...
—Você faz muito isso quando se trata de Kelia.
Houve um silêncio pesado que ocupou o quarto. Embora houvesse apenas uma mesa entre eles, parecia que estavam em mundos separados. A vela lançava Sombras em Emma, fazendo-a parecer mais sinistra do que realmente era.
—O que é que você quer? — Ele perguntou, cada palavra enunciada. Ele mostrou os dentes, como se fosse algum tipo de animal, sem saber ao certo por que sentia a necessidade de ficar na defensiva com Emma, mas incapaz de aliviar a tensão que se acumulava dentro dele quando alguém mencionava seus sentimentos por Kelia.
—Onde estamos indo? — Emma perguntou. —Temos mais duas bruxas e uma humana a bordo e precisamos de mais suprimentos.
—Nassau fica ao sul, — Drew apontou. —Vamos parar por aí.
—E depois?
—E depois?
—Exatamente minha pergunta.
Drew quase rosnou de frustração. Ele não estava com humor para lidar com Emma e sua boca inteligente.
—E então encontramos o mapa. — Disse ele.
Ele viu quando Emma contorceu o rosto em um olhar suave e frio de indiferença. Ela era tipicamente hábil em esconder sua fachada, mas aqui, mesmo na escuridão, ele podia ver seu esforço tenso.
— E então? — Emma pressionou novamente. Sua voz era nítida. Fria.
Ele não precisava explicar. Ele poderia dizer que ela sabia. Parte dele não tinha ideia de por que ela perguntou em primeiro lugar.
—Tem que ser assim, Emma, — ele disse. Ele se levantou e contornou a mesa, para que pudesse encará-la diretamente. Portanto, não havia nada entre eles. —Você sabe, no minuto em que rompi meu vínculo, tive um relógio contando os segundos até que ela decidisse que precisava me fazer pagar.
—E você acha que seu tempo acabou? — Emma perguntou.
—Ela sabe sobre Kelia — disse Drew. —Isso basta para mim.
—Então, o quê, você planeja atacar navios até encontrar o mapa de sangre, e então...
—E então eu vou matar a Rainha, — Drew terminou. —Vou arrancar a cabeça dela, vou dançar em seu sangue e vou rir. Vou rir porque finalmente, finalmente, estarei livre.
—Drew, — ela disse ameaçadoramente. —Lamento dizer a você, mas não é assim que isso vai acabar.Sumário
Série THE VAMPIRE PIRATE Isadora Brown E Rebecca Hamilton
2 CAIL OF DARKNENESS Isadora Brown E Rebecca Hamilton
SINOPSE
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
SINOPSE
Reabilitação... Ou um programa de reprodução perverso? Kelia está prestes a descobrir que há destinos piores do que ser uma cega.
Após a descoberta de seu relacionamento com o infame Drew Knight, um Sombra do Mar, a Assassina do Mar Kelia Starling é condenada a uma vida de servidão, lavando pratos e entregando água. Ela é uma Cega e está tentando se redimir. Pelo menos, é nisso que ela precisa que a Sociedade acredite.
Sem o conhecimento deles, no entanto, Kelia ainda está investigando por que a Sociedade assassinou seu pai, enquanto Drew Knight a visita secretamente para pedir o favor que Kelia deve a ele também. Ele a incumbiu de descobrir o paradeiro de uma Sra. Wendy Parsons, que ele acredita estar sendo mantida em cativeiro em algum lugar da Sociedade.
Mas à medida que a pesquisa de Kelia se intensifica e suas missões para ela e Drew se cruzam, Kelia é confrontada com uma compreensão perturbadora: antes da morte de seu pai, ele criou um programa de procriação perverso que força as relações entre Sombras e Cegos irredimíveis.
E Kelia acabou de ser incluída no programa.
CAPÍTULO 1
—As presas atrapalham quando as Sombras do Mar se beijam? — Madeline sussurrou sobre a pia da cozinha.
—O que te faz pensar que as Sombras do Mar se beijam? — Myra perguntou no mesmo sussurro, inclinando-se para perto como se quisesse se proteger de serem ouvidas.
Kelia Starling revirou os olhos e agarrou o prato que estava secando com força, decidindo se valia a pena quebrá-lo ou não. Ela já detestava lavar e secar os pratos da Sociedade, mas ter que ouvir suas companheiras Cegas parecia uma punição adicional.
Ela evitou se envolver com as duas garotas, Madeline e Myra, mas, novamente, ela evitou fazer amizades com qualquer pessoa desde que se tornou uma Cega há dois meses. Tudo o que ela sabia era que a dupla gorjeava como pássaros e eram românticas desesperadas e patéticas que procuravam uma fresta de esperança em todas as situações. Mesmo um Assassino romanticamente ou sexualmente envolvido com uma Sombra era o que havia de melhor para eles.
Passaram-se dois meses desde que Kelia foi condenada a cumprir sua penitência aqui - dois meses desde que ela foi espancada, torturada e mal escapou da morte graças ao Sombra do Mar que ela foi forçada a ter uma parceria. Dois meses desde que ela o viu pela última vez...
Ela balançou a cabeça, eriçada com o mero pensamento de Drew Knight. Ela não gostava de admitir, mas ele mantinha os pesadelos afastados.
Kelia ficou restrita ao isolamento nas primeiras quatro semanas como cega e não tinha visto uma única pessoa, exceto uma enfermeira que viria e trocaria suas bandagens. Ela pensou que o isolamento iria quebrá-la - talvez enviá-la a um ataque de delírio louco - mas ela descobriu que dava boas-vindas à escuridão, ao silêncio. Isso deu a ela tempo para aprender mais sobre si mesma, para descobrir os possíveis motivos pelos quais a Sociedade iria querer matar seu pai e alegar que foi um suicídio.
A única coisa que ela temia na escuridão era o quanto isso a lembrava de Drew.
—Kelia. — Madeline sussurrou ao lado de Kelia, suas mãos na pia rodeadas por água quente e borbulhante.
Kelia franziu a testa, então olhou para as duas garotas falando sobre beijar os homens, Sombras do Mar. Ela não estava acostumada com ninguém escolhendo falar com ela se pudesse evitar, não quando sua reputação estava tão manchada. Nem mesmo um Cego queria ter algo a ver com ela.
Ela não pôde deixar de se sentir um tanto desconfiada. Ela tinha lavado e secado pratos com elas no último mês, e nenhuma das duas havia estendido a mão para ela antes.
—Podemos fazer uma pergunta? — Myra perguntou.
Apertando os lábios, Kelia colocou lentamente o prato no balcão. Estava tão seco quanto poderia ficar.
Depois de limpar as mãos no avental esbranquiçado, ela assentiu. Ela ainda não tinha certeza do que se tratava e quase se odiou por sua reação imediata de suspeita e amargura, em vez de dar a elas o benefício da dúvida.
—Você teve um relacionamento com Drew Knight, a Sombra do Mar, — Madeline disse. — Isso é correto?
Enquanto ela falava, suas mãos temiam. Isso não era novo, no entanto. As mãos de Madeline sempre tremiam, mesmo quando não estava frio. Kelia tinha ouvido falar que uma das razões pelas quais ela foi integrada como Cega era por causa dessa falha genética. Aparentemente, ela não conseguia disparar uma arma com precisão. Kelia não sabia como Madeline adquiriu a deficiência - se foi algo com que ela nasceu ou algo que aconteceu com ela - mas ela estava sendo punida por isso. Os deficientes físicos não eram confiáveis no campo e, como tal, a Sociedade os trancava por algo que eles não podiam ajudar.
Quando ela era uma Assassina, Kelia mal havia notado os Cegos. Ela sabia que eles estavam sendo retirados de sua posição como Caçadores porque eles quebraram algum tipo de regra, mas ela nunca encontrou nela para investigar quais eram essas regras ou se elas mereciam em primeiro lugar. Depois que ela foi punida e aprendeu mais sobre as inúmeras maneiras de trair a Sociedade, ela ficou enojada - ser inválida não era um crime.
Kelia mal conseguia olhar para Madeline por causa da culpa que percorria seu sistema. Ela não deveria ter sido tão complacente. Ela deveria ter feito perguntas. Devia ter percebido que manter a cabeça baixa e ficar quieta significava que ela aceitava cegamente as regras da Sociedade e tolerava a forma como tratavam as pessoas.
No entanto, só porque ela se sentia culpada por sua falta de ação, não significava que ela tinha que compartilhar informações sobre seu relacionamento com Drew Knight como uma forma de compensar isso.
—Bem? — Madeline pressionou. — Você teve?
Kelia ficou tensa. Ela não sabia como responder. Verdade seja dita, além de concordar com Rycroft que ela estava tendo um caso com Drew, ela nunca apareceu com uma história detalhada do que aconteceu. Ela também não gostava de falar sobre ele porque nunca sabia o que dizer. Como explicá-lo. Como descrever seus sentimentos por ele.
—Claro que ela teve — disse Myra. Ela afastou o cabelo escuro dos olhos dourados. — Ela levou dez chibatadas por causa disso. — Ela afundou as mãos escuras na água com sabão mais uma vez enquanto Madeline pegava outro prato da pilha à sua esquerda. — Ninguém sofreria assim se não valesse a pena.
Kelia quase deu um sorriso. Valeu a pena, mas não da maneira que as duas Cegas queriam dizer.
Garantindo a liberdade de Drew Knight. Vendo a expressão no rosto de Rycroft quando percebeu que Knight não estava onde ela disse que ele estaria. Foi isso que fez valer a pena. Foi a primeira e única vez que viu seu antigo treinador perder a paciência. Ele a esbofeteou duas vezes naquela noite e a condenou a dez chicotadas públicas nas costas. Isso não incluiu os quinze extras que ele concedeu a ela quando ela estava nas masmorras depois.
Ela deveria estar morta, mas não foi por causa de Drew Knight. Porque ele a salvou.
Então, sim, valeu a pena.
—Eu quero ouvir isso dela, — Madeline disse, estreitando os olhos para Kelia. — Deixe a garota falar por si mesma.
—E dizer o quê? — Kelia perguntou.
Ela não queria parecer aborrecida com elas, mas nada sobre sua situação era da conta delas.
Então, novamente, seu cérebro apontou. Você permaneceu reservada também. Elas poderiam estar esperando que você falasse com elas.
—Não importa. — Madeline disse rapidamente, desviando seu olhar e enxaguando o sabão do prato.
Kelia não deveria ter sido tão dura. Franzindo os lábios, ela pegou um prato e começou a secá-lo. As meninas provavelmente só queriam ouvir uma história. Algo excitante ou romântico. Algo para salvá-las da monotonia e da miséria deste lugar.
Mas esse era o trabalho de Kelia?
—Isso não é verdade, — Madeline sussurrou para sua parceira. Kelia não tinha ouvido o que Myra dissera e planejava ignorar até que Madeline voltou sua atenção para Kelia e perguntasse: — Você realmente beijou Drew Knight? Você - você fez mais com ele?
Kelia deixou escapar um suspiro pelo nariz, estudando Madeline.
—Não é isso que todo mundo está dizendo? — Ela perguntou, erguendo as sobrancelhas. Não foi exatamente uma resposta, mas foi alguma coisa.
—Eles estão dizendo que você e Drew Knight eram amantes. — Myra disse com os olhos arregalados e uma voz que era secreta e ávida por mais informações.
A expectativa parecia fixada em Kelia.
Só então Kelia percebeu que a maioria dos Cegos nunca tinha realmente experimentado a vida. Eles foram condenados por algo que não puderam ajudar ou por causa de um preconceito que a Sociedade tinha contra eles. Por que a Sociedade não executou essas pessoas, especialmente aqueles que os traíram, Kelia não sabia. As tarefas tinham de ser feitas, claro, mas se o maior benfeitor da Sociedade era a Companhia das Índias Orientais, certamente eles tinham os fundos para os servidores entrarem e fazerem essas tarefas servis.
Havia mais do que isso. Tinha que haver. Para que os cegos estavam realmente sendo usados?
—Está tudo bem se você não deseja compartilhar — disse Myra de repente, tirando Kelia de sua linha de pensamento. — Provavelmente não era certo perguntarmos a você de qualquer maneira.
—Eu... Uh...— Kelia tentou pensar na melhor maneira de responder sem divulgar muito sobre Drew Knight. —Não gosto muito de falar sobre isso. Especialmente depois de estar aqui. Estou tentando fazer melhor. Me perdoe.
Foi uma performance decente - da qual Kelia se orgulhava bastante. Ela não gostava de mentir para elas, mas ela percorreu um longo caminho desde a menina ingênua que acreditava que mentir era errado. Algo que antes tinha sido tão preto e branco agora vivia dentro dela como algo que na verdade estava cheio de cinza. Ela mentiria para se proteger. Mentiria para proteger seu objetivo. E ela mentiria para proteger Drew Knight, mesmo que fosse difícil para ela admitir essa última parte para si mesma.
A Sociedade absolutamente a detestava por causa dele. Odiava. Eles poderiam ter finalmente derrubado Drew Knight, mas ela evitou que isso acontecesse. Ela o deixou escapar.
Ele estava livre para aterrorizar a população inocente de Port George, se ele ainda estivesse aqui.
—Você se arrepende? — Myra perguntou aqueles olhos dourados brilhantes curiosos.
Os pratos foram esquecidos, ensopados na banheira de água agora suja.
—Arrepender-me do quê? — Kelia perguntou confusa. — Deixando-o ir?
—Estar com ele. — A voz de Myra agora era um fragmento de um sussurro.
Kelia não podia culpá-la quando havia momentos em que ela tinha certeza de que as paredes aqui tinham ouvidos.
—Onde você está agora, de onde você veio. Todos nós já ouvimos sobre você. Soube do que você era capaz. Você desistiu de tudo por Drew Knight. — Suas sobrancelhas se juntaram. — Você se arrepende de fazer aquele sacrifício? Desistindo de ser uma Assassina, tendo sucesso como uma Assassina de alto nível, apenas para estar com Drew Knight?
Madeline estava surpreendentemente silenciosa. Kelia percebeu que ela estava tentando controlar as mãos trêmulas e Myra finalmente teve que intervir e tirar o prato dela para não o quebrar acidentalmente.
—Eu não diria que sou uma Assassina de alto nível, — Kelia disse em um tom prático. Ela não estava tentando ser humilde; ela realmente sentia que, embora tivesse uma reputação decente, não merecia o título de “Assassina de alto nível”.
—Claro que é — disse Myra como se fosse óbvio. — Era, quero dizer. Você foi uma excelente Assassina. Antes de tudo acontecer. Você capturou um infante sozinha, sem nem mesmo um arranhão. Os infantes são bestas ainda piores do que as Sombras. Eles mal têm controle sobre si mesmos. Tudo o que eles querem é sangue. E você trouxe um de volta. Vivo.
Kelia cerrou os dedos em punhos, esperando que isso ocultasse qualquer inflexão facial que pudesse denunciá-la. Elas estavam falando de Christopher. Ele era um infante resgatado por Drew Knight da Sociedade. Mas ele não era uma besta. Essa era apenas mais uma mentira que a Sociedade dizia a seus Assassinos para controlá-los, para infundir medo em seus corações para que matar infantes se tornasse semelhante a matar algo inanimado, como uma pedra ou uma árvore.
Os infantes eram considerados sedentos de sangue e cheios de luxúria. Satisfazer suas necessidades básicas era tudo de que eram capazes. Eles não tinham lógica, nenhuma capacidade de pensar ou sentir. Eles simplesmente sabiam o que queriam e iam atrás. Normalmente, eles rasgavam suas vítimas em pedaços no processo. Pelo menos, foi isso que os Assassinos aprenderam.
Kelia queria contar a essas meninas que a Sociedade encheu suas cabeças de mentiras. Ela queria dizer a elas que elas estavam errados sobre muitas coisas, incluindo infantes e especialmente Drew Knight.
Mas ela não conseguiu.
Ela deveria estar se reabilitando – redimindo seus crimes contra a Sociedade. E se ela olhasse essas garotas nos olhos e dissesse a elas que não se arrependia, a notícia poderia chegar a Abigail ou Rycroft, e então ela perderia todos os privilégios que adquirira tão recentemente.
—Estou aqui por causa de minhas ações — disse ela lentamente, ainda tentando descobrir como expressar tudo corretamente. — E eu ficarei até que eu me redima. Agi de maneira tola e egoísta e tenho sorte de ter uma segunda chance com a Sociedade.
—Ouvi dizer que Drew Knight ainda está aqui, — Madeline explodiu, como se ela não pudesse mais se controlar. Suas mãos tremiam ainda mais agora. — E as pessoas estão dizendo que a única razão pela qual ele ficaria aqui, quando todos - incluindo a Sociedade e Companhias das Índias Ocidentais - estão procurando por ele é porque ele quer você de volta.
Kelia apertou a mandíbula. Ela não tinha ouvido esse boato antes. Ela não queria ouvir sobre isso, para aumentar suas esperanças.
Mas uma pequena parte dentro dela sorriu, e se ela não tomasse cuidado, essa parte poderia colocá-la em mais problemas.
CAPÍTULO 2
Por mais que Kelia quisesse ouvir mais sobre as notórias Sombras do Mar, ela tinha outras coisas que precisava fazer. Quando terminou de secar a louça e guardá-la, lavou as mãos e saiu da cozinha.
Seu corpo inteiro doía pelo dia que passava fazendo tarefas. Ela rolou os ombros para trás, na esperança de aliviar a tensão que se acumulou em seus músculos. O gesto não fez nada por ela, e ela reprimiu um bocejo.
Ela gostaria de poder tomar um banho quente e se enfiar na cama, mas essa era a única vez que os Cegos tinham para si mesmos antes que o toque de recolher fosse obrigatório. Em vez disso, ela só poderia se esconder antes de ser forçada a apagar a vela e olhar para o teto em uma escuridão gelada, esperando por um sono misericordioso para finalmente levá-la embora.
Os corredores geralmente estavam livres neste ponto, o que significava que ela era capaz de voltar para os dormitórios dos Cegos sem encontrar ninguém que ela conhecesse antes.
Antes que ela fosse uma cega. Antes que ela fosse considerada uma traidora. Antes que ela percebesse que a Sociedade mentiu para ela por toda a vida e matou seu pai.
—Venha comigo.
A voz de veludo de Drew ainda assombrava seus sonhos. Todas as noites, ela se perguntava se havia cometido um erro grave ao recusar sua oferta.
—Saia deste lugar.
Mas ela não conseguiu.
A única razão pela qual ela fez parceria com Drew em primeiro lugar - a razão pela qual ela arriscou tudo e traiu seus companheiros Assassinos - foi porque ela precisava provar que seu pai não tinha tirado a própria vida. Quando ela soube que a Sociedade tinha sido a culpada por sua morte precoce, ela tinha a intenção de provar isso.
Mais do que isso, ela precisava saber por quê.
O que aconteceu que levou a Sociedade a assassinar seu pai?
Um relógio de pêndulo soou lá embaixo. Uma longa badalada, depois duas, até chegar às oito horas.
Uma hora até o toque de recolher.
Kelia abriu a porta de seu quarto e foi direto para o guarda-roupa. Soltando um suspiro de alívio por finalmente ser capaz de tirar a roupa apertada, ela tirou o vestido e colocou um traje antes de puxar sua trança meticulosa e escovar as ondas.
Há essa hora, todas as noites, alguns Cegos começavam a ronda pelos quartos. Eles despejavam água fresca em pias e deixavam panos limpos ao lado deles. Isso permitia que os Assassinos se limpassem depois de um longo dia de treinamento. Como uma cega, ela ainda recebia água em seu quarto, mas para se lavar depois de suas tarefas.
Kelia foi até seu boudoir e viu que a bacia ainda estava vazia. Ela soltou um grunhido irritado e, em vez disso, se arrastou para a cama. O diário com capa de couro rachado de seu pai ainda estava guardado com segurança dentro do exemplar de Moby Dick que ela mantinha embaixo do travesseiro, e ela o puxou para ler novamente.
Havia muitas informações contundentes sobre a Sociedade rabiscadas na escrita difícil de decifrar de seu pai. Cada vez que ela abria o couro gasto e folheava as delicadas folhas de pergaminho, seu coração doía. Era como se ele estivesse tão perto dela, mesmo após a morte.
Ela tentou ler algumas páginas todas as noites. Mesmo que ela tivesse lido várias vezes, ela sabia que algo estava faltando, algo significativo que explicaria o que seu pai tinha feito para ser morto.
O diário começou com o nascimento de Kelia. As inscrições eram esporádicas naquele ponto - até o ano passado, pelo menos. Algo havia acontecido no ano anterior, algo que não foi registrado. Ou o pai dela tinha vergonha do que era e se absteve de escrever sobre isso - para manter seu segredo e sua verdade para si mesmo como se soubesse que o diário cairia nas mãos de alguém depois que ele morresse - ou ele não tinha vergonha, mas cuidado sobre o mesmo motivo.
Ele era cuidadoso, ela se lembrou. Na noite em que ele morreu, ele estava pronto para me dizer...
Balançando a cabeça em frustração, ela desejou que seu pai tivesse confiado nela o suficiente para lhe contar o que estava acontecendo. Ela olhou pela janela, a noite decorando o céu como um cobertor pesado. Sua janela estava aberta para deixar o aroma sutil de ar salgado encher seus pulmões.
Ela se mexeu na cama, tentando ficar confortável. Fazia exatamente oito semanas desde sua chicotada. Mesmo agora, seu corpo estava incomumente dolorido depois de suas tarefas. Não ajudou que sua mente a mantivesse acordada tanto quanto seu corpo.
Era difícil para ela dormir à noite. Era mais do que apenas Drew Knight. Ela permanecia vazia. Ela precisava de respostas, e ela precisava delas agora.
Kelia teve a sensação de que seu pai iria contar tudo a ela na noite em que morreu, quando pediu sua presença na taverna, mas ele nunca teve a chance. A Sociedade o silenciou.
Uma semana depois, o diário caiu misteriosamente em suas mãos, mas a maioria das passagens eram tão vagas quanto seu pai tinha sido quando estava vivo. Foi frustrante, mas Kelia entendeu. E se o diário tivesse caído nas mãos de Rycroft ou de alguém do Conselho? Pelo menos seu pai teve a clarividência de codificar suas passagens de maneiras não facilmente decifráveis.
Mas isso também significava que Kelia tinha que se esforçar ainda mais para descobrir o que aconteceu com ele e por quê. Ela também estava começando a se perguntar por que a Companhia das Índias Orientais criou a Sociedade e por que a Sociedade criou as Sombras do Mar. Era uma teia espessa na qual ela se encontrou emaranhada.
A porta dela se abriu. Era outra Cega, Daniella Thompson. Ela tinha uma jarra do que só poderia ser água na mão. Sem dizer uma palavra, ela começou a esvaziar a bacia de água antes de enchê-la com água fresca.
Isso deveria ter sido feito antes do aviso de uma hora. Todo mundo estava dormindo e o toque de recolher se aproximava. Mas dizer isso poderia provocar a outra garota, então Kelia permaneceu quieta e tentou ignorá-la.
—Pensando naquela Sombra de novo, Starling?
Kelia levantou a cabeça. Havia muitos rumores em torno de Daniella, todos contraditórios. Kelia não se importava particularmente de uma forma ou de outra, então ela não prestou muita atenção. No entanto, por alguma razão inexplicável, Daniella fixou seus olhos em Kelia como alguém para insultar, atormentar e provocar sempre que pudesse.
Kelia tentou dar a outra face com a garota. Sua mãe morreu quando ela era jovem, e seu pai não tinha ideia do que fazer com ela. Por causa de sua riqueza, ele tinha laços com a Companhia das Índias Orientais. Eles sugeriram que ele a enviasse para a Sociedade a fim de quebrar seu espírito.
Infelizmente, o plano não funcionou. Ela agiu, exigindo disciplina pelo menos uma vez por semana até que o próprio Rycroft tomasse a decisão de renegar sua aceitação. Seu pai fez uma grande doação e ela permaneceu na Sociedade como Cega. Houve momentos em que Daniella se meteu em problemas, mesmo como Cega, mas ela parecia estar mais feliz agora do que como uma Caçadora.
Kelia só sabia disso porque Daniella tinha uma reputação que todo Assassino parecia estar familiarizado. Daniella era o exemplo que professores e treinadores usavam contra os Cegos. Para Daniella, olhar para Kelia mostrava o quão longe ela havia caído na escada da Sociedade, mas talvez a garota só precisasse machucar Kelia para se sentir melhor consigo mesma.
Cegos não são apenas aqueles que se prostituem para as Sombras, eles diriam. Um pouco de disciplina pode ajudar muito.
Agora que Kelia não era tão ignorante quanto antes, ela admirava muito os atos de rebeldia de Daniella, mesmo que fossem tão pequenos quanto usar renda preta em seu vestido cinza ou deixar seu cabelo ruivo solto quando deveria ser puxado de seu rosto.
Por outro lado, Daniella também estava tornando a vida de Kelia um inferno.
Mas não importava. Kelia estava aqui para obter informações. Para resolver o assassinato de seu pai. Não descobrir por que Daniella tinha problemas com ela.
Daniella continuou a olhar para Kelia de sua posição ao lado do boudoir, quase como se ela estivesse esperando por uma resposta. Quando ela não conseguiu uma, ela mudou e começou a derramar água no chão do quarto. Kelia ficou de pé.
—Que diabos, Daniella?
Daniella mudou de direção, então caminhou em direção a Kelia até que ela esbarrou nos ombros dela. Sibilando, Kelia se curvou para frente. Mesmo que suas costas estivessem quase curadas, a força em seu corpo ainda fazia seus músculos latejarem de dor.
E Daniella sabia disso.
—Você realmente deveria prestar atenção onde pisa. — Disse Daniella, seus lábios se curvando em um sorriso malicioso. Seu cabelo ruivo encaracolado crescia em volta dela, lembrando Kelia da juba de um leão.
Em vez de deixar que isso a afetasse, Kelia deixou as palavras rolarem de seus ombros. Era difícil de fazer, mas ela aprendeu da maneira mais difícil que emoções e reações podem ser uma fraqueza.
—Talvez você precise tirar sua cabeça de suas fantasias sobre Drew Knight e se concentrar no que está acontecendo bem na sua frente, hmm? — Daniella continuou. — Embora, eu deva perguntar, ele é realmente tão bom quanto todos dizem que ele é? Sexualmente, quero dizer. Você não seria a única, a saber, seria? Tenho certeza de que existem tantas outras com conhecimento íntimo dele quanto há fios de cabelo em sua cabeça.
Kelia quase rosnou com suas palavras. Ela sabia que Drew Knight tinha uma reputação. Ele era experiente. Se o que ela leu sobre ele fosse verdade, ele tinha quase cem anos, apesar de não parecer muito mais velho do que ela. O que significava que ele tinha muitos anos de mulheres em seu currículo. Kelia sabia disso. Mas Kelia não o considerava um interesse romântico. Ele era tudo o que ela havia aprendido a odiar. Mesmo que agora ela estivesse ciente de que tinha sido ensinado errado, era difícil esquecer anos de aulas.
Até que ela pensou em tudo que ele tinha feito por ela.
—Você não é nada mais do que uma Cega patética, e isso é tudo que você será, — Daniella disse com um sorriso de escárnio. — Se prostituem para as Sombras, assim como as outras Sombras fazem. Estou surpresa que a Sociedade ainda permita que você ainda esteja aqui. Você não merece a misericórdia deles.
Kelia encontrou o olhar de Daniella de frente. Naquele momento, ela não era a garota recatada que a Sociedade queria que ela fosse. Em vez disso, ela era forte, desafiadora.
Depois de meses escondendo quem ela realmente era, ela finalmente se sentiu ela mesma.
Em vez de falar, Kelia simplesmente manteve o olhar. Não havia nada para ela dizer. As pessoas acreditavam que ela e Drew Knight eram amantes. Deixe-os acreditar no que quisessem. Ela não podia mudar isso. Mas ela podia controlar como ela respondia. Sua resposta às réplicas e palavras ofensivas mostraria seu verdadeiro caráter.
O sorriso malicioso de Daniella sumiu de seu rosto quando ela percebeu que não teria uma reação. Desviando o olhar, ela deu um suspiro dramático antes de sair do quarto. Kelia soltou um suspiro que ela não percebeu que estava segurando. Ela estava pronta para ler mais, pronta para dar um passo mais perto de resolver a morte de seu pai.
Depois que ela se arrastou de volta para a cama, ela não pode deixar de pensar em Daniella, Drew Knight e nas declarações contundentes de Daniella. Ela agarrou as pontas do papel gasto para não o jogar pelo quarto. Em vez disso, ela respirou fundo e se lembrou do porquê de estar aqui. Resolver o mistério que cercava a morte de seu pai era a única coisa que importava para ela agora.
CAPÍTULO 3
Kelia acordou para encontrar um envelope imaculado, carimbado com o selo carmesim de Rycroft, em seu chão. Depois de abri-lo, ela puxou o papel e rapidamente leu os garranchos. Era uma convocação: Rycroft exigia a presença dela em seu escritório após a refeição matinal. Ela tentou decidir se a fúria dele por ela não comparecer àquela reunião valeria a pena. Então, novamente, Ashton Rycroft estava procurando por qualquer motivo para punir Kelia, para mantê-la como uma Cega pelo tempo que pudesse. Ela tinha conseguido muito no programa, indo tão longe a ponto de ganhar a confiança de sua treinadora Abigail Stanford, a ponto de ser liberada do isolamento e receber uma tarefa.
Rycroft, é claro, deixou claro que não acreditava que Kelia estivesse totalmente reabilitada, e ela não poderia culpá-lo pelo sentimento. Seus sentimentos em relação a tudo – A Sociedade, Sombras do Mar, até Drew Knight - não mudaram. Ela sabia muito para que isso acontecesse. Ele não tinha sido capaz de arrancar dela.
A verdade prevalecia, não importava o que ela tivesse que suportar.
Colocando-o de lado, ela fez seus alongamentos matinais. Ela esperava quebrar o jejum antes de seu encontro iminente com Rycroft, mas não achava que atrasar o inevitável seria uma decisão sábia. Havia um banheiro no final do corredor, e ela fez seu caminho para se aliviar antes de voltar para seu quarto. Uma vez de volta, ela escolheu um vestido cinza simples, perfeitamente engomado, sem uma ruga à vista. Era o uniforme de uma Cega.
Depois de escovar seus cabelos dourados, ela confeccionou uma trança, garantindo que cada mecha perdida estivesse no lugar. Sardas adornavam suas bochechas e nariz, sutis, mas perceptíveis, descobertas pela maquiagem. Ela era tão simples quanto poderia ser, parecendo ainda mais jovem do que os dezoito anos de idade.
Ela estava grata por seu pai ter dedicado tempo para educá-la a respeitar o valor de sua aparência. Não se tratava de parecer bonita; tratava-se de mostrar respeito por si mesma e pelas pessoas ao seu redor.
Com sorte, Rycroft notaria seus esforços, seu profissionalismo. Ela o deixaria sem nenhum motivo para questionar sua lealdade à Sociedade e à reabilitação, independentemente do que ele dissesse ou fizesse.
A Sociedade pensava que transformar as pessoas em Cegos era uma punição - tirar a individualidade, tirar a cor, tirar qualquer coisa que pudesse ajudá-los a se destacar. No entanto, Kelia preferia assim. Era mais fácil se misturar, ouvir conversas secretas quando ninguém mais a via como uma pessoa. Ela foi subestimada em todos os sentidos da palavra, considerada quebrada e inútil. Uma perda de fôlego, de espaço, de vida.
Rycroft era visto como um homem firme na convicção e misericordioso por permitir que Kelia vivesse mesmo depois que foi descoberto que ela teve um relacionamento ilícito com Drew Knight e o ajudou a escapar das garras da Sociedade. Sua chicotada pública foi justificada, embora fosse tudo baseado em uma mentira. Ela e Drew tinham um relacionamento, mas era apenas amigável, muito menos sexual. No entanto, a mentira era fácil de contar e fácil de acreditar. Afinal, Drew Knight tinha uma reputação.
E Rycroft via as mulheres como emocionais idiotas e fáceis de manipular. Como tal, Kelia alegando ter uma relação sexual com um dos homens das Sombras do Mar mais cruel e bonito não era tão difícil de acreditar. Ninguém sequer questionou isso.
Apesar de tudo, no entanto, ela não conseguia conectar as partes do motivo pelo qual a Sociedade matou seu pai, por que eles queriam matá-la e o que estavam escondendo. Ela sabia que havia coisas que ainda não tinha descoberto.
Ela saiu de seu quarto com o estômago roncando e as costas rígidas. Cada vez que ela precisava se encontrar com Rycroft, suas costas ficavam especialmente tensas, como se lembrasse do que teve que suportar em suas mãos. Se Drew Knight não tivesse cuidado dela, havia uma boa chance de que ela sangrasse pelos cílios ou pegasse uma infecção mortal e morresse.
Rycroft provavelmente teria preferido sua morte, mas ele não havia feito mais nenhum atentado contra sua vida.
Pelo menos nenhum que ela conhecesse.
Rycroft tinha um pequeno escritório nos corredores sem visão, que ficava isolado da parte principal da fortaleza. Havia duas salas de aula, e cada cego tinha uma hora de exercício físico fora cada dia. Se eles não estivessem recebendo aulas estritas em seu programa de reabilitação, ou fora da praça naquela hora designada, eles só podiam estar em três outros locais: seus quartos, a biblioteca ou completar a tarefa que lhes foi designada.
Kelia parou em frente ao escritório de Rycroft, olhando pela grande janela de vidro de sua porta. Daqui ela podia ver tudo dentro, incluindo o topo de sua cabeça enquanto ele olhava para um pedaço de papel em sua mesa.
Até agora.
A presença de Kelia o inspirou a fazer mais e mais visitas à ala dos Cegos da fortaleza para ver como ela estava, para ver se ela realmente estava em conformidade com as regras da Sociedade. Kelia fez questão de sair de seu caminho para mostrar o quanto ela havia mudado. Era tudo uma atuação, mas ela precisava garantir que ele acreditasse.
Hoje seria outra chance de mostrar a ele. Quando ela abriu a porta do escritório e entrou, ela curvou os ombros para frente e manteve os olhos no chão. Ela precisava parecer confiante em sua reabilitação, mas ainda recatada, embora ela não quisesse nada mais do que tratá-lo como se ele não fosse um treinador que deveria ser temido e respeitado, mas como alguém que ela havia superado.
Kelia acalmou seu orgulho ao se sentar. Embora estivesse praticando seu controle, ouvindo os conselhos de Drew Knight sobre como suas emoções contundentes podiam ser uma fraqueza, ela ainda sentia a atração, ainda sentia como seria fácil abrir a boca e fazer um comentário sarcástico. Isso a faria se sentir bem por um momento, mas arruinaria tudo que ela estava trabalhando. E a glória no momento não significaria nada quando ela pudesse ter tudo o que quisesse mais tarde, se exercitasse a paciência.
Ela olhou ao redor do pequeno escritório, meditando sobre a estranheza deste escritório, muito menos decorado do que o outro. Bijuterias não adornavam sua parede ou escrivaninha; troféus que ele havia recebido ou acumulado durante sua gestão como treinador da Sociedade não estavam em lugar nenhum. Na verdade, este escritório foi uma reflexão tardia. Claro, ele era mantido intocado. Os Cegos designados para a tarefa se certificaram de fazer seu trabalho de forma completa e consistente para garantir que Rycroft não tivesse motivos para reclamar.
—Srta. Starling — disse Rycroft, levantando-se e deslizando os óculos de aro fino pelo nariz redondo. Mesmo que ele não fosse alto, ele ainda chamava atenção. Ele tinha presença. Ela tinha que dar isso a ele. — Fico feliz em ver que você está... Bem.
Não sou nada mais do que um camaleão, pensou ela.
—Eu estou bem, — ela murmurou, brevemente olhando para ele. —Obrigada por perguntar.
Os lábios de Rycroft se curvaram lentamente em um sorriso triunfante. — Vejo que finalmente está recuperando o juízo, Srta. Starling. Você finalmente está percebendo que suas ações com Drew Knight foram nada menos do que pecaminosas, e você precisava ser punida. Você entende isso, não é?
Kelia entendia, mas ela não concordou. No entanto, Rycroft não precisava saber disso. Não quando ele já tinha suas suspeitas. Não quando ele já procurava algum motivo para puni-la ainda mais e mais cruelmente do que já tinha feito.
Suas costas nunca mais seriam as mesmas. Suas cicatrizes a marcariam pelo resto de sua vida, como uma marca, uma tatuagem que não poderia ser apagada. Um lembrete constante de sua traição à Sociedade e o que ela suportou quando foi descoberta. Ela nunca se casaria agora.
—Sim. — Kelia murmurou.
A cadeira do escritório de Rycroft rangeu quando ele se sentou.
—Sente-se, Srta. Starling. Fico feliz em ouvir isso — disse ele. — Estou feliz em ver que você está se destacando aqui. Eu não tinha certeza de que você sobreviveria aos seus ferimentos, mas parece que você se ergueu como a Fênix. Eu me pergunto quantas vidas você possui.
Kelia se sentou, colocando as mãos no colo.
—Você pode ser uma candidata perfeita para um novo projeto em que estamos trabalhando aqui na Sociedade — continuou ele, tamborilando os dedos na superfície da mesa. — Você estaria interessada em participar?
A velha Kelia teria questionado o que era esse projeto e como se esperava que ela se integrasse a ele. Mas essa Kelia era dócil, quieta e fazia o que todos mandavam, sem falar fora de hora, então assentiu.
—Eu ficaria honrada pela oportunidade de ajudar a Sociedade de qualquer forma. — Ela conseguiu dizer sem qualquer pista de seus verdadeiros sentimentos.
Rycroft acenou com a cabeça, sorrindo. — Estou muito feliz em ouvir isso, Sra. Starling. Você pode ir agora.
Kelia se levantou, tentando esconder sua surpresa com o fim abrupto dessa reunião, e lentamente caminhou até a porta, esperando para ouvi-lo chamá-la, para acrescentar mais uma coisa. Quando ele não o fez, parecia que seu peito estava sendo agarrado por uma mão nervosa, apertando e liberando. Ainda sem chamado, sem oferta para ficar. Ela se forçou a abrir a porta e sair. Era difícil não olhar para trás, para ter certeza de que ele realmente não tinha mais nada para ela, mas era necessário que ela mantivesse o olhar focado à sua frente.
Quando ela chegou ao quarto, ela praticamente fechou a porta. Ela não teve tempo de recuperar o fôlego antes que alguém falasse.
—Bem, bem, bem, — uma voz suavemente arrastada disse das Sombras. — Olha o que temos aqui. — Um lampejo brilhante de branco na forma de um sorriso mortal perfurou as sombras. —Como você está, Assassina?
CAPÍTULO 4
Kelia congelou, seu coração batendo forte contra suas costelas, exigindo se libertar de sua prisão. Depois de garantir que sua porta estava bem trancada, ela se virou para ver se a voz que ouvira agora não era um sonho, mas sim Drew Knight. Ela não sabia por que seu coração batia tão forte, como se ela tivesse medo de alguma coisa.
Drew nunca a machucaria, então não era isso. Talvez então, medo de ser pega? Medo da Sociedade? Como as marés mudaram...
E lá estava ele, diante dela em toda a sua bela glória. Sua respiração sumiu de seus pulmões. Suas mãos ficaram úmidas. Sua garganta ficou seca. Naquele momento, até seu coração pareceu parar de bater, como se ela fosse uma das Sombras que ela costumava caçar tão bem.
Tudo o que ela podia fazer era aceitá-lo. Olhar fixamente. Ele estava tão lindo quanto da última vez que ela pôs os olhos nele, o que era quase uma tragédia por si só.
Ela sentia falta dele. Nos últimos dois meses, ela realmente sentiu sua falta, e era um fardo que ela não percebeu que estava carregando até que o viu e foi esmagada com o peso daquele conhecimento inesperado.
Drew não parecia a besta que todos diziam que ele era. Se não fosse por sua pele pálida que parecia brilhar ao luar, ele poderia facilmente se passar por um cavalheiro devido ao seu traje justo que parecia moldar seu corpo como um segundo, embora mais solto, conjunto de pele.
—O que você está fazendo aqui? — Kelia se forçou a dizer, mas imediatamente odiou que tivesse saído trêmula.
Ela não deveria mostrar fraqueza, especialmente na frente dele. Ele não deveria saber que mesmo depois de todo esse tempo separados, ele ainda tinha a capacidade de afetá-la.
—É assim que você fala com velhos conhecidos? — Ele perguntou, ousando dar um passo em sua direção.
Kelia olhou para a janela atrás dele. Ela puxou o lábio inferior entre os dentes, com medo de que alguém pudesse vê-lo em seu quarto, embora estivesse escuro e suas cortinas estivessem fechadas. Mas ela se recusou a dar um passo para trás, para deixá-lo ver o que fazia com ela tão facilmente.
—O que você está fazendo aqui? — Ela perguntou novamente. Desta vez, sua voz era suave, embora ela não pudesse olhar para ele, mesmo se quisesse. Havia muito entre eles. — Você deveria fugir. Você não deveria voltar.
—Eu precisava ver você. — Sua voz era solene, toda brincadeira se foi. Mesmo seus olhos, normalmente brilhantes de arrogância e malícia, estavam mais escuros do que o normal. — Suas costas estão bem?
Kelia engoliu em seco. De alguma forma, essa conversa tinha se tornado decididamente íntima, e ela podia sentir suas costas gritarem de desejo, gritar porque queria seus dedos em sua pele mais uma vez.
—Curando. — Ela disse, certificando-se de enfatizar que ainda era algo acontecendo no presente.
Que ela não se recuperou tão rapidamente quanto esperava.
Ele acenou com a cabeça uma vez, então enfiou a mão dentro de seu casaco longo e escuro e puxou o bálsamo que ele tinha usado nela antes.
A boca de Kelia abriu quando ela viu. Isso foi inesperado. Drew Knight havia partido há meses e agora estava aqui, em seu quarto, sozinho com ela, com a intenção de esfregar bálsamo em suas costas como fizera antes. Como se isso fizesse alguma diferença?
Suas costas tinham linhas feias que subiam e desciam. Ela estava quase grata por não poder vê-las facilmente, por ter que esticar o pescoço para tentar avistar as cicatrizes vermelhas e gritantes.
Mesmo que Drew tivesse visto suas costas nuas, Kelia estava hesitante em ser tão vulnerável com ele novamente. Antes, não era uma escolha. Ela estava de bruços, o sangue escorrendo de suas feridas enquanto ela definhava naquela cela abaixo do solo. Abaixar sua roupa e se expor a ele seria uma escolha, ao invés de algo que ela era forçada a fazer se quisesse viver.
—Posso apenas garantir que tudo está curando como deveria? — Ele perguntou seu olhar escuro agrupando-se no dela. Ela não diria que ele estava implorando, mas se Drew Knight chegasse perto de tal coisa, provavelmente seria isso.
Kelia engoliu em seco. Ela deveria dizer não. Qualquer um poderia entrar no quarto. Os treinadores tinham chaves, tornando as fechaduras quase inúteis, exceto pela privacidade que proporcionavam aos outros Cegos. Drew Knight estava arriscando muito apenas para estar aqui, a ponto de Kelia querer gritar que ela estava aqui por causa de seu sacrifício por ele. Ela estava aqui porque o queria livre. Sua presença em seu quarto foi quase um tapa em seu rosto, a arrogância derramando-se dele como o sangue derramado de suas vítimas.
—Você só deseja me verificar? — Ela perguntou. Ela não se preocupou em esconder a suspeita de sua voz. Parecia estranho que, após dois meses de silêncio, ele estivesse de repente de volta e preocupado. Não era da sua conta, mas ela estava curiosa para saber o que tinha acontecido com ele durante o tempo separado.
Ele parecia bem. Ele parecia... Alimentado.
—Estou aqui porque queria ver você — ele disse novamente. —Eu precisava ver você.
Sua voz era inflexível, como se precisasse que ela acreditasse nele. Mas por quê? Drew Knight poderia fazer o que quisesse, quando quisesse. Não deveria importar o que ela pensasse.
—Aqui estou. — Disse ela. Ela não sabia mais o que dizer.
—Sim, — ele murmurou. Ele deu um passo em sua direção e ergueu o bálsamo. —Posso passar isso em você? — Uma batida e, em seguida, —Por favor?
O coração de Kelia parou com a palavra, e ela já sabia que daria sua permissão. Ela odiava aquela palavra quando saía daquela boca porque ela era incapaz de resistir.
—Eu não preciso disso...
—Vejo que você ainda é teimosa. — Disse ele, erguendo os lábios. O sorriso parecia genuíno. Satisfeito. Talvez até contente. Como se gostasse de estar na presença de Kelia, independentemente do risco.
Kelia abriu a boca para responder, mas mudou de ideia. Lentamente, ela caminhou até sua divisória e desamarrou o cordão de tecido que mantinha a frente de seu vestido levantada. A roupa caiu em sua cintura, deixando todo o torso exposto.
—Você tem que se virar. — Ela disse, recusando-se a sair da divisória até que ela tivesse certeza de que Drew tinha feito o que ela pediu. Assim que o fizesse, ela correria para a cama e se deitaria sem que ele visse qualquer parte dela que estava tipicamente escondida até o casamento.
Exceto suas costas, é claro.
Ela espiou pela divisória até que ele ouviu um sorriso tímido em seu rosto, e então ela saiu. Sua respiração havia desaparecido completamente. Estar em um cômodo com Drew Knight, metade de seu corpo exposta, não era algo que pensou que teria que suportar novamente. E, no entanto, aqui estavam eles.
Seus seios estavam de fora, a frieza inesperada beliscando seus mamilos. Ela precisava ir para a cama antes que ele ficasse ansioso e se virasse. Ela ainda não estava pronta. Mesmo que ela não achasse que Drew fosse quebrar sua confiança, ela correu para a cama. O frio inspirou seus movimentos rápidos, e ela não foi capaz de relaxar até que seu estômago estivesse enterrado nos lençóis e seus seios estivessem achatados, longe de olhares acidentais.
—Tudo bem. — Ela disse baixinho, sua voz falhando. Ela não sabia se era porque estava desconfortável ou porque não sabia o que esperar. De qualquer maneira, ela se sentia mais vulnerável do que antes. Mais exposta.
Ela não sabia por que isso era diferente do que ela estava deitada em sua cela, seu vestido rasgado em pedaços graças ao chicote de couro que Rycroft havia usado nela. Naquela época, ela estava meio delirando, e ela não poderia ter se importado se Drew Knight tropeçasse em seu corpo nu e fraco.
Agora, era diferente. Ela escolheu tirar a roupa, para se permitir ser vulnerável quando ela estava bem e consciente. Ela não deveria fazer isso. Não estava certo. Ele estaria tocando uma parte íntima de seu corpo com as próprias mãos. Sim, era para aplicar bálsamo, mas ela não precisava desse bálsamo. Na verdade, não.
E ainda...
E, no entanto, ela se encontrou ansiosa por seu toque. Desejando, até.
Embora Drew estivesse quieto, seus passos soaram como um trovão. Seu coração parecia bater no mesmo ritmo a cada passo, e ela moveu as mãos por baixo do travesseiro para aproximá-las de seu corpo.
Ele chegou ao lado da cama e se ajoelhou. Depois de tirar a tampa do bálsamo, ele despejou uma quantidade generosa em seus longos dedos. Kelia prendeu a respiração, esperando por seu toque. Ela o observou o melhor que pôde enquanto ele estudava suas costas nuas. Seu batimento cardíaco ecoou por ela, batendo contra seu peito.
E então, ele a tocou de volta. Seu corpo inteiro fez algo peculiar - ficou tenso e derreteu ao mesmo tempo. Ela não achava que tal coisa fosse possível. Era como se ela estivesse desconfortável e confortável quando ele a tocava.
—Você está se curando melhor do que eu esperava, — ele murmurou, sua voz enchendo o quarto. Havia uma certa severidade no tom, entretanto. Como se ele estivesse com raiva de alguma coisa. O que era, ela não sabia dizer. —Você ainda está com crostas. Sua pele está descascando. Como está?
Kelia engoliu em seco. Ela não esperava que ele falasse, para ser honesta, mas se viu perdendo no som de sua voz.
—Estou sobrevivendo.
—Isso não é uma resposta. — Respondeu ele.
—O que você gostaria que eu lhe dissesse? — ela perguntou, tentando ignorar seus dedos ágeis dançando em suas costas do jeito que fariam as teclas de um piano de marfim. — Não estou nem perto de descobrir por que meu pai está morto. Estou presa lavando pratos todas as noites com garotas tolas que querem saber se você beija bem. Eu não posso treinar. Não tenho ideia de onde está minha espada. Não posso fazer nada, exceto ler o diário de meu pai. Às vezes, essas entradas são tão enigmáticas que me preocupo que ele estava escondendo muito mais do que pensei que poderia estar. Que ele não é a pessoa que pensei que era.
Drew ficou em silêncio por um momento, concentrando-se nas costas dela. Kelia respirou fundo, tentando se acalmar. Esta era provavelmente a última coisa que ele queria ouvir, os problemas mundanos de uma garota. Ele era um poderoso Sombra do Mar. Garotas e diários provavelmente não estavam em sua mente.
—O que você disse a elas? — Ele perguntou sua voz sedosa a pegando de surpresa.
Seu corpo reagiu com arrepios e ela esperava que ele não percebesse.
—O que você quer dizer? — Ela perguntou. — Eu não contaria a elas sobre meu pai.
—Não sobre ele — disse ele, e ela pôde detectar um toque de brincadeira. — Sobre mim. Sobre que tipo de beijador que sou.
Kelia lançou um olhar para ele e ele jogou a cabeça para trás, dando uma gargalhada. Os dedos dele pararam de se mover nas costas dela, mas ele não tirou as mãos de sua pele. Ela estava completamente paralisada por ele, pelo som de sua risada, pela forma como seu sorriso iluminava todo o seu rosto. Ela deveria estar preocupada que alguém pudesse ouvir uma risada masculina em um dormitório feminino, mas ela simplesmente não conseguia tirar os olhos dele, muito menos ordenar que ele fosse embora.
—Tenho certeza de que você tem recebido muito essas perguntas — continuou ele, uma vez que se acalmou. — Sobre seu suposto relacionamento comigo.
—Eu tento não responder, — ela murmurou. Ela fechou os olhos quando ele voltou a esfregar o bálsamo em suas costas. — Eu nunca sei o que dizer.
—Você não conta a verdade — afirmou. — Talvez fosse melhor se você reconhecesse que eu te seduzi? Que eu cativei você com minhas habilidades perversas e sobrenaturais? Eles acreditariam nisso.
—Seria uma mentira. — Disse Kelia.
—E nossa relação sexual, não é? — Ele perguntou. Havia um pequeno sorriso em seu rosto, mas sua postura tensa fazia até o sorriso parecer sério.
—É fácil de explicar — disse ela. —Ninguém questiona.
—Sim, mas você não faria
—O que aconteceu já aconteceu, Drew — disse ela. — Não podemos voltar atrás e mudar isso. Não deixe que isso o incomode. Estou surpresa com algo tão inócuo quanto minhas costas...
—Kelia, caramba, você é importante para mim, e o que você fez por mim não será esquecido. — Disse ele, sua voz afiada. Ele puxou as mãos, então se virou para dar-lhe tempo para aliviar sua mudança de volta para que ela estivesse decente.
Ela se virou de lado. Ela estava quase completamente coberta, exceto pela manga de seu braço direito, que ela segurava contra ela.
Ele a encarou novamente e se ajoelhou ao lado dela. A tensão irradiava de seu corpo.
—Kelia, eu preciso cobrar o favor que você me deve — disse ele. Ela não tinha certeza, mas quase soou como se houvesse uma pitada de arrependimento em sua voz. —Eu não pediria isso a você, não colocaria você em risco, a menos que fosse absolutamente necessário.
Ela enrijeceu, chateada por ele não estar aqui apenas para ver como ela estava, embora não fizesse sentido que ele viesse simplesmente para isso. Claro que ele veio porque queria algo.
—E o que você quer de mim? — Ela perguntou.
—Eu preciso que você encontre informações sobre a localização de uma Wendy Parsons. — Drew disse.
—Tudo bem... — Kelia disse, arrastando a palavra. —Você pode me falar mais sobre ela? Onde ela nasceu? Uma data de nascimento, talvez? Por que ela é importante?
—Infelizmente, não posso dar a você mais do que um nome, mas acredito que ela está em algum lugar da Sociedade, em algum lugar aqui.
—Você conseguiu me encontrar, — Kelia apontou. —Certamente, você pode encontrar outra pessoa.
—Você é diferente. — Ele estendeu a mão e, lentamente, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha dela, seus olhos quase tão negros quanto a parte mais profunda do mar. — Tenho fé absoluta de que você será capaz de encontrá-la.
—E se eu não fizer? — Kelia conseguiu dizer.
Ele estava muito perto dela. Ela precisava se afastar, mas seu corpo se recusou a se mover.
Um sorriso lento deslizou em seu rosto. —Eu sei onde encontrar você.
CAPÍTULO 5
Ver Kelia Starling depois de dois meses pegou Drew de surpresa. Ela parecia diferente. Mais velha. Mais bonita, se isso fosse possível. Ele não tinha percebido o quanto sentia falta dela até que a viu. Ele tinha estado muito focado em rastrear Wendy Parsons.
Mas agora, tudo voltou correndo para ele. A forma como seu cabelo sempre escapava dos limites da trança e ela tentava desesperadamente afastar os fios soltos de seu rosto. A forma como os lábios dela pressionavam em uma linha fina e irritada ou os olhos dela teimosamente se recusavam a desviar o olhar dele às vezes.
Ao vê-la após a separação, ele se esqueceu de tudo o que havia suportado nos últimos dois meses. A incursão em seu navio, as informações que obteve - ele quase esqueceu que estava aqui por um motivo. Não para vê-la novamente, mas para exigir o favor que ele a fizera prometer quando eles concordaram em trabalhar juntos.
Ele arriscou muito para ver Kelia novamente, para pedir esse favor, mas Wendy era muito importante para ele. E Kelia sempre valia o risco.
Depois de sua provação há dois meses, Drew ainda estava inflexível sobre sua recusa em deixar Port George, mesmo sendo o criminoso mais procurado da ilha. Os piratas foram rejeitados em favor de rastrear o infame Sombra. Drew não ficou surpreso ao saber que uma grande soma foi colocada em sua cabeça, e uma quantia decente em informações que levariam à sua captura.
A morte estava fora de questão porque matar uma Sombra fazia com que elas se transformassem em cinzas e explodissem no mar. Não se poderia provar que uma Sombra morreu e por quem, a menos que houvesse relatos de testemunhas reais.
Drew Knight era procurado vivo.
Pelo menos, era o que dizia o papel com sua imagem desenhada e rebocada por toda a cidade.
Quando Kelia disse que ele não deveria ter vindo, ele fez uma pausa. Essas não eram as palavras que ele queria ouvir quando a visse novamente. E ainda assim, ele podia sentir o quanto ela significava para ele. Não porque ela não quisesse vê-lo, mas porque ela havia trabalhado tanto para libertá-lo, para avisá-lo de sua captura iminente, e ela não queria vê-lo sendo imprudente com a oportunidade que ela lhe deu. Especialmente considerando o que ela teve que suportar por causa disso.
Essa garota precisava controlar suas emoções.
Ou isso, ou ele estava se tornando um especialista em interpretá-la.
Ele saiu pela janela dela, então saltou para o telhado da fortaleza impenetrável da Sociedade. Ele se agachou ali, parando um momento para garantir que estava sozinho e não seria pego.
Porque Kelia estava certa. Ela havia sacrificado muito para que ele ainda tivesse sua liberdade, e ser pega faria esse sacrifício em vão.
Quando julgou seguro, caminhou pelo telhado, as mãos enfiadas nos bolsos, até chegar ao fim e se afastar, caindo do alto da fortaleza e caindo de pé com facilidade.
Quase uma hora depois, ele encontrou Emma nas docas do oeste. Se ele quisesse – se ele tivesse escolhido usar sua velocidade não natural e correr - ele poderia ter estado lá muito mais rápido. Poderia ter sido sua melhor opção, considerando que a vida noturna de Port George ainda se espalhava pelas ruas, a devassidão da qual participavam deixando um fedor peculiar em seu rastro.
Drew costumava desejar lugares como a vida noturna de Port George. Todo mundo estava sempre tão bêbado que ninguém o reconheceria como uma Sombra do Mar, ninguém perceberia que ele era bastante pálido para um pirata e ninguém perceberia suas presas anormalmente longas. Todos o viam como uma coisa bela e, como tal, ele tirava proveito disso.
Agora, entretanto, ele tinha décadas de experiência em seu currículo, e isso o tornava menos ignorante. Suas prioridades mudaram de adquirir comida e prazer para sobreviver o máximo que pudesse por conta própria.
A noite estava particularmente fria. Sua respiração saía como fumaça de um cachimbo. De alguma forma, Emma não demonstrou que estava com frio, embora tivesse que estar. Ela era menor do que ele, usando menos roupas. Sua pele estava coberta de arrepios, mas ela não disse uma palavra sobre o frio.
Drew balançou a cabeça, um pequeno sorriso no rosto. Todas as mulheres que ele conhecia e respeitava pareciam teimosas. Seu sorriso desapareceu quando ele pensou na única mulher que preferia nunca mais ver. Ela não era tão teimosa quanto cruel e fria.
Havia uma razão para ele não servir mais à Rainha Sombra do Mar. Houve uma razão para ele romper os laços com ela. Foi um movimento arriscado com certeza, mas ele não se importou. Ele queria sua liberdade - tanta liberdade quanto pudesse obter dela. Ela não gostava de doar seus pertences tão facilmente.
Drew continuou sua jornada pela selva até seu navio atracado do outro lado da ilha. Isso o fez perceber que esta era a mesma jornada que Kelia fazia cada vez que ia visitá-lo com novidades. Seus lábios se curvaram quando ele se lembrou dela empurrando o barco a remo que ele havia deixado na praia isolada para ela usar na areia, pulando e remando até seu navio ancorado. Ele construiu mais músculos na parte superior de seu corpo do que qualquer treinamento que ela participou como uma Assassina.
Ela sempre tinha essa ruga de frustração na ponta do nariz quando subia a escada e se puxava para fora da borda do navio. Ela era tão feroz, mesmo em face de uma notória Sombra do Mar. Ele admirava sua coragem.
Ele perdeu, até.
Um crocitar distante o fez virar a cabeça para cima. Não havia pássaros no céu, especialmente não tão tarde da noite. Ele cerrou os dentes, sua mente bloqueando qualquer outro pensamento de Kelia de escapar. Ele tinha que estar em guarda agora. Havia coisas tão mortais quanto as Sombras, e essas feras vagavam pelos mares.
Assim que eles levaram o barco para o navio e subiram a bordo, Emma fez seu caminho para o leme como se fosse a capitã, seu cabelo escuro amarrado, fazendo com que os ângulos de seu rosto parecessem duros sob o luar. Seu vestido justo com gola alta era apertado na cintura, acentuando sua figura marcante. Não havia como negar: Emma transbordava de uma confiança que nem mesmo alguns de seus tripulantes do Sombras do Mar possuíam.
—Demorou mais do que o esperado. — Ela apontou, embora não houvesse acusação ou julgamento em seu tom.
—Sim, bem. — Respondeu ele, mas ofereceu-lhe nada mais do que uma explicação.
Ela empurrou o leme do navio para encontrá-lo a bombordo, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele acenou com a mão em direção ao convés.
—Você localizou alguma coisa enquanto limpava os destroços? — Ele perguntou. Ele estava decidido a mudar de assunto, sabendo que Emma sem dúvida faria perguntas sobre Kelia que ele não queria responder ainda.
Seus lábios pintados de vermelho se curvaram. Era como se ela soubesse exatamente o que ele estava fazendo. O que provavelmente ela fez. Afinal, ela era uma bruxa. Ela tinha a habilidade de ver coisas que ninguém podia ver e sentir coisas que ninguém podia sentir. Ela foi à razão pela qual Kelia sobreviveu às chicotadas brutais que Rycroft lhe deu. Seu bálsamo, a mistura que ela dera a Drew para garantir que a febre de Kelia passasse, salvou a vida da Assassina.
Kelia não sabia disso, é claro. Ela sabia que Emma fazia tudo, mas não sabia que era misturado com magia, com propriedades curativas não encontradas na medicina humana.
Drew seria eternamente grato a Emma por salvar a vida de Kelia. E não apenas para garantir que Kelia estaria bem o suficiente para rastrear Wendy Parsons e cumprir sua parte no trato.
Havia mais do que isso.
Ele se importava com Kelia. Mais do que provavelmente deveria.
—Os homens estavam todos mortos antes de eu chegar até eles, então não havia ninguém para questionar — Emma respondeu. Ela deu um passo para fora do leme enquanto Drew avançava seus dedos coçando para agarrar as malaguetas mais uma vez. — No entanto, fui capaz de espiar que tipo de carga o navio estava transportando para a Sociedade.
Ela o olhou com atenção. Ele não precisava ordenar que ela explicasse; ele sabia que ela faria quando estivesse pronta.
—Havia gado no navio — ela continuou. — Vacas, galinhas, cabras. Tudo o que se precisa para uma fazenda.
—Pecuária? — Drew perguntou. Ele colocou o dedo indicador na ponta do queixo e o esfregou.
Ela assentiu. — Todos mortos agora, — ela disse com um aceno de desaprovação de sua cabeça. — As sereias e as Sombras tiveram um belo banquete.
—Por que a Sociedade precisa de gado? — Drew perguntou. Ele voltou sua atenção para o mar, como se as ondas pudessem se comunicar com ele, dizer-lhe tudo o que ele precisava saber. Além do fato de que uma tempestade estava chegando, não havia mais nada para ele. — Eles não têm grama. Eles não precisam abater os animais quando recebem comida de um açougueiro da cidade. Por que eles precisam de animais vivos?
Emma encolheu os ombros. — Essa é a questão, não é? — Ela perguntou. Ela deu passos suaves pelo convés, entrelaçando os dedos e colocando-os na protuberância de seu pequeno estômago. — E Kelia? — Quando Drew não respondeu, ela empurrou. — Como está Kelia?
—Ela está tão bem quanto se poderia esperar, dadas às circunstâncias atuais. — Disse ele. Ele tentou não permitir que seus sentimentos se infiltrassem em suas palavras.
—E o bálsamo? — Ela perguntou. — Certamente você sabia que eu descobriria que alguém entrou em meus aposentos privados sem um convite e levou meus pertences.
—Considerando que seus aposentos estão no meu navio, você deve perceber que, tecnicamente, eles pertencem a mim, — ele disse rapidamente, mas então suspirou. — Eu deveria ter perguntado, eu sei. Mas...
—Mas isso envolve Kelia, e as regras são diferentes com ela, — Emma terminou, embora Drew não tivesse intenção de dizer isso. Ela cruzou os braços sobre o peito. — Diga-me, como ela está? Você pode pelo menos me dizer isso.
Drew queria rosnar para ela, deslizar suas presas para fora e rugir, mas sabia que ela não se sentiria intimidada por ele nem um pouco. Ele conhecia Emma há muito tempo para que ela se preocupasse que ele danificasse um fio de cabelo de sua cabeça, não quando ela estava tão perto de Wendy. Ela era uma das poucas pessoas que poderia se safar de questioná-lo, com respostas exigentes. Contanto que ela não fizesse isso na frente de sua tripulação, ele particularmente não se importava.
Em vez disso, Drew deu de ombros casualmente, como se toda a sua visita a Kelia fosse praticamente sem sentido.
—Ela está fazendo o melhor que pode onde está. — Ele ofereceu. Ele se virou para a costa de Port George. Sua tripulação estaria fora, explorando a cidade, devastando mulheres, procurando comida, bebendo o quanto quisessem.
—Sim, foi o que você disse — disse Emma alegremente. — Mas o que isso significa?
—Ela é uma cega agora — disse Drew. — Ela tem cicatrizes horríveis marcando suas costas que ela nunca vai se curar. Quem quer que ela escolha para se tornar íntimo terá que aceitá-la como é. Terei que aceitar o fato de que... —Ele deixou sua voz sumir, não querendo terminar a frase. Não querendo dizer em voz alta que a culpa era dele. Ele já sabia que era o responsável pela vida que ela teve que suportar atualmente.
—Ela é uma mercadoria contaminada. — Emma terminou.
—Ela não está contaminada, — Drew estalou, girando para encará-la totalmente. — Ela resistiu. Ela sobreviveu. E ela vai continuar porque isso é tudo que ela sabe. E eu não... Eu não sei o que fazer sobre isso. — Ele passou os dedos frustrados pelos cabelos escuros e foi até a grade. Descansando os antebraços ali, ele se curvou, tentando inalar o cheiro do mar, esperando que isso o ajudasse a se acalmar.
—Drew, — Emma disse hesitantemente, embora permanecesse onde estava. — Kelia está contaminada agora. Seus pensamentos não são puros. Seu conhecimento não é unilateral. E seu corpo representa as escolhas que ela fez. Eu entendo que você se sinta culpado porque pensa que é sua culpa, mas posso garantir-lhe...
—Eu não quero sua garantia — disse ele, cada palavra afiada e pontiaguda. — Quero falar sobre outra coisa, algo sobre o qual posso realmente fazer algo.
Emma abriu a boca, mas Drew a lançou um olhar de advertência. Quase todas as noites, ele tolerava a opinião de Emma, mas não estava com humor para fazê-lo agora.
—Os destroços, — ele retrucou. — Me diga mais.
Ela parou por um longo momento, e Drew pensou que ela iria lutar com ele sobre isso. No entanto, ela soltou um suspiro de desprezo antes de começar a andar para cima e para baixo ao longo do convés.
—A Sociedade estava transportando gado de Port Royal para a fortaleza — disse Emma. — Não havia muitos homens a bordo, apenas três, e eles morreram quase instantaneamente no ataque. Consegui adquirir um livro-razão com notas. Não era exatamente um diário, mas tinha datas e frases que não consigo decifrar. Além do nome de Wendy, é claro.
—O livro-razão tinha o nome dela? — Ele olhou por cima do ombro, arqueando uma sobrancelha. Ele sabia que era; Emma não mentiria e não lhe traria notícias que já não tivesse verificado.
Ela torceu o nariz, como se surpresa por ele a questionar. No entanto, ela escolheu responder independentemente.
—Claro como o dia, — ela disse com um aceno de cabeça, vivamente compassando a extensão do cais - a primeira indicação de que ela estava, de fato, com frio. Ela colocou as mãos atrás das costas. — Datado de anos atrás, de volta ao tempo quando eu escapei. Eles devem ter pegado ela logo depois que ela me resgatou. — Ela estremeceu. — Wendy estava lá por minha causa. Se ela não tivesse tentado me resgatar...
—Quando me disseram sobre sua captura, pedi ajuda a Wendy — interrompeu Drew. Havia um aperto em seu coração, mas ele continuou, sem vontade de pensar nisso por mais tempo. — Eu fui um idiota, Emma. Depois que rompi meu vínculo, agi de forma egoísta. Talvez se eu não tivesse sido tão indulgente, você teria estado ao meu lado o tempo todo. Eu deveria saber que a Rainha iria rastreá-la, teria sido capaz de descobrir que foi você quem cortou meu vínculo com ela. Se eu não fosse tão egoísta, tão medroso, você nunca teria caído no colo deles. Pedi ajuda a Wendy porque sabia que não poderia fazer isso sozinho. Temia acabar voltando para a Rainha. E eu prometi que nunca deixaria isso acontecer de novo, mas o que eu arrisquei para me manter livre dela... Eu nunca vou me perdoar.
—É por isso que você insiste tanto na segurança de Kelia — disse Emma. — Ou talvez eu deva dizer uma das razões.
—Ninguém fica para trás. — Ele disse, então passou por ela. Ele ainda se lembrava do momento em que Emma voltou para ele depois de escapar, quando percebeu que Wendy não estava com ela. Ela tinha ficado para trás. Eles conseguiram Emma de volta apenas para perder Wendy. E quando ele foi atrás de Wendy, usando a localização exata de Emma, eles já haviam partido. Desapareceu como se o programa nunca tivesse existido. Claro, Emma tentou rastrear o novo local com sua magia, mas eles colocaram blocos no lugar que não estavam lá quando Wendy usou sua magia para rastrear Emma.
Era por isso que ele estava ansioso em conhecer Kelia, em usá-la, em conseguir aquele favor. Ele não tinha outra maneira de encontrar o programa. Ele tinha certeza, como uma Assassina, ela poderia descobrir. Ele não tinha planejado que ela se tornasse uma Cega. Ele a queria fora de lá. Mas ela se recusou a ir embora, e não havia sentido em jogar sua situação para o lixo. Alguém lá saberia sobre Wendy. Ele estava certo disso.
Ele só precisava tirá-la de lá antes que ela chegasse a fechar. Depois do que aconteceu com Emma, o que estava acontecendo com Wendy...
Ele mordeu o lábio com tanta força que o sangue gotejou na superfície. Ele não queria mais pensar sobre isso, mas não tinha escolha.
—Conte-me mais sobre o livro razão. Diz alguma coisa sobre o que aconteceu com Wendy? Onde ela está presa agora?
Emma balançou a cabeça. — Considerando que a comida e as armas tinham um local próximo a eles — disse ela, — tudo o que estava próximo ao seu nome era a imagem de uma estrela.
Isso chamou a atenção de Drew. — Desculpe? — Ele perguntou. — Uma estrela?
—Uma estrela, — ela repetiu. —Uma estrela, Drew. Incline sua cabeça para cima e olhe para o céu noturno, então você verá exatamente a que estou me referindo.
—Não precisa ser engraçada, Emma. — Ele disse.
—Não precisa ser idiota. — Ela respondeu.
—Uma estrela, — ele murmurou, ignorando-a. Ele estudou o convés de seu navio enquanto pensava. — Que diabos isso significa?
—Talvez seja uma referência às Sombras? — Emma disse. — Como vivem à noite e morrem durante o dia? Talvez se refira a Christopher, considerando que ele é uma Sombra recente que é forçado a viver sob as estrelas?
Ele deu a ela um olhar de soslaio com a menção da Sombra do Mar atualmente nas galés, recusando comida e prazer corporal até que ele encontrasse sua noiva mais uma vez. Era quase romântico se Drew acreditasse naquele absurdo - o que ele absolutamente não acreditava - mas era bastante frustrante porque era tudo sobre o que o menino conseguia falar. Tudo com o que ele se importava. Claro, ele era um infante, recentemente transformado e ainda ingenuamente humano em seus pensamentos e sentimentos, mas Drew esperava enfatizar que Sombras não tinha nada além de tempo agora. Wendy era muito valiosa para aqueles que a seguravam simplesmente matá-la.
—Você sabe Christopher nunca mencionou quem o transformou, — ele disse, seu dedo tocando a ponta de seu queixo. —Você acha que foi a Companhia das Índias Orientais? Ou a Rainha?
—Eu não sei, — ela admitiu. — Isso importa?
Drew não tinha certeza de uma forma ou de outra. Às vezes, as coisas pareciam irrelevantes, até que não eram mais.
—Talvez isso importe.
—Então pergunte a ele. — Disse ela, encolhendo os ombros.
Drew também não tinha certeza de que era a resposta. Se Christopher quisesse falar sobre isso, ele o teria feito.
—Estou apenas fazendo suposições, Drew, — ela continuou. — Talvez algo aconteça, especialmente agora que recrutamos Kelia para nos ajudar. — Ela parou de repente. —Espere... Kelia está nos ajudando a localizá-la, não é?
—Ela concordou com isso, sim.
Seu corpo relaxou enquanto ela continuava andando. — Tenho certeza de que Wendy faz parte do programa, Drew. Simplesmente não consigo rastrear onde está na fortaleza. A magia usada é complexa.
—Não sei o que ela poderá encontrar — murmurou ele. — Eu apenas dei um nome a ela. Eu não disse mais nada a ela. Não tenho mais nada para dar a ela. Estive onde você me disse que o programa estava, mas não havia ninguém. O lugar estava completamente deserto.
—Eles devem ter movido na vez que eu escapei. Fique tranquilo, meu contato está trabalhando para obter a localização por qualquer meio necessário — disse Emma. — Será que mudaram o programa para o local? Isso seria arrogante. Qualquer Assassino pode tropeçar nele. Então, novamente, a Sociedade não é nada senão arrogante.
—Seu contato?
—Uma garota que conheci no programa. — Emma disse enigmaticamente.
Drew sabia que não devia pressionar. Ela nunca revelou o que tinha acontecido com ela, e ele não tinha certeza se queria saber. Especialmente se isso pudesse estar acontecendo com sua irmã agora. Ele preferia não pensar nisso. Seu foco precisava ser em como trazê-la de volta.
Ele desejou não precisar da ajuda de Kelia. Ele não desejava colocá-la em risco mais uma vez.
—E quanto a Kelia? — Ela perguntou. —Você não contou a ela sobre o programa do pai dela, embora isso pudesse ajudá-la a encontrar Wendy?
—Absolutamente não, — ele disse. —Ela já passou por bastante. Recuso-me a desferir esse golpe.
—Ela vai descobrir, — Emma disse, seu tom preocupado. —E ela vai ficar com raiva que você escondeu isso dela.
Drew cerrou os dentes. Ele sabia muito bem que ela falava a verdade, mas era melhor Kelia não saber muito. Quanto menos, melhor.
Um vento forte balançou contra a lateral de seu navio, levantando seu cabelo. Uma tempestade estava chegando, isso ele sabia. Uma perigosa que sem dúvida o deixaria mudado para sempre.
CAPÍTULO 6
Em todos os seus anos com a Sociedade, Kelia nunca tinha ido à biblioteca. Ela preferia a solidão de seu quarto, pelo menos quando Jennifer não estava presente. Só porque Jennifer adorava fofocar e tendia a distraí-la das aulas.
No entanto, Drew tinha apenas lhe dado um nome, e esse nome não significava nada para ela. Se ela era uma Sombra do Mar, Kelia nunca tinha ouvido falar dela antes. Se ela fosse uma plebeia, seria ainda mais difícil localizá-la. Um nome estava perdido, a menos que houvesse mais com ele. Tudo o que Drew disse foi que ela era importante para ele.
O que isso significa? O que significava ser importante para uma Sombra do Mar?
Kelia balançou a cabeça ao entrar na biblioteca, tentando não pensar muito na escolha de dicção da Sombra.
A biblioteca era muito maior do que ela pensava que seria com pilhas e mais pilhas de livros de todo o mundo. Livros fictícios, factuais, com atlas, com histórias, com a história embutida em papel. Havia livros sobre treinamento, luta, sobre Sombras do Mar e sereias, Bíblias, até mesmo alguns sobre etiqueta.
Tudo e qualquer coisa que Kelia pudesse querer aprender estavam aqui. Tudo o que ela precisava fazer era saber para onde olhar.
Havia duas tabelas, provavelmente reservadas para os alunos que pesquisavam as informações de que precisavam para uma tarefa que lhes foi atribuída. Atualmente, as mesas estavam vazias, nem mesmo uma folha de pergaminho ou uma pena repousando sobre a superfície.
Kelia deixou cair seus próprios materiais de pesquisa em uma extremidade da mesa, o mais longe possível das portas, para que ela provavelmente tivesse o mínimo de interação com alguém, caso alguém entrasse. Os materiais fizeram um baque alto e Kelia pulou com o barulho, surpresa com a forma como ecoou pelo espaço silencioso.
Ela se virou e foi em direção ao balcão de informações, na esperança de pelo menos obter um ponto de partida sobre Wendy Parsons. Quando ela percebeu quem estava por trás disso, ela parou.
Mordendo de volta um gemido audível, ela respirou fundo.
Daniella.
Foi sorte dela que Daniella fosse designada para a biblioteca e encher bacias de água todas as noites. A Sociedade provavelmente presumiu que dar a ela uma tarefa tão mundana quanto guardar livros e derramar água para os outros quebraria seu espírito livre. Se Daniella fosse inteligente, ela usaria sua localização a seu favor e levaria um tempo para pesquisar o que quer que a mantinha em movimento.
Kelia endireitou os ombros, avançando lentamente até a mesa. Esta era uma biblioteca. Tecnicamente falando, Daniella estava de plantão. Ela não negaria a Kelia seu direito de ajuda - não tentaria começar uma batalha com ela agora.
Ela iria?
Daniella apenas ergueu os olhos do livro que estava lendo quando Kelia parou bem na frente dela. Seus olhos castanhos brilharam em reconhecimento e todo o seu rosto se contorceu em um cheio de suspeita e defesa, embora Kelia ainda não tivesse aberto a boca. Era como se Daniella presumisse o pior, embora Kelia nunca fosse a única a começar qualquer coisa entre elas.
Daniella zombou, movendo os braços para cobrir qualquer peça da literatura que estivesse lendo. — Estou surpresa em ver você aqui.
Kelia bufou e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ela não se importava particularmente com o que Daniella estava lendo - provavelmente algum romance gótico cheio de luxúria e amor proibido - e ao invés disso se certificou de olhar Daniella nos olhos. Ela não queria dar à garota mais munição para atirar nela.
—Sim, bem — disse Kelia com um encolher de ombros inquieto. —Aqui estou.
—Sinto muito, — disse Daniella, —mas não temos um livro que ensine os mortais a agradar as Sombras, embora tenha certeza de que há algo nas câmaras do conselho que pode lhe dar a informação que você está procurando. Eles gostam de manter certos livros longe de sua congregação irracional. Sabe-se que as Sombras escrevem livros de vez em quando, mesmo que não passem de lixo.
Kelia apertou a mandíbula. Ela queria se defender, apontar que ela definitivamente não era uma Sombra, dizer a Daniella que se ela não parasse ...
Por mais que ela quisesse dar uma lição em Daniella, ela sabia que não poderia. Isso arruinaria tudo pelo que ela trabalhou tão duro, e ela se recusava a permitir que Daniella tomasse isso dela.
—Se você quiser, posso mostrar-lhe livros sobre como lidar com sua família queimando no Inferno pelos pecados que cometeram — continuou Daniella. —Ou como ser uma senhora adequada, mesmo depois de seu corpo ter sido manchado por uma besta sobrenatural.
—Meu pai não... — Kelia cerrou os dentes, se detendo.
Ela não podia dizer no que realmente acreditava, nem mesmo na frente de Daniella. Não quando Daniella poderia ir até Abigail e contar tudo a ela. Não quando aceitar o pecado do pai foi um dos primeiros passos para Kelia sair do isolamento. Se eles soubessem que Kelia mentiu, ela seria condenada mais uma vez. Depois disso, ganhar a confiança da Sociedade seria impossível.
—O que? — Daniella pediu. Havia um toque em sua voz que beirava um grito. —O que você quer dizer, Starling? Seu pai não fez o quê?
Ela sabia. Claro que Daniella sabia como provocá-la. Ela queria que Kelia falhasse.
Kelia se recusou a recuar. Ela poderia não ser capaz de dizer tudo o que ela queria dizer para a garota na frente dela, mas ela se recusou a recuar, recusou-se a permitir que essa garota a irritasse. Ela esperava que Daniella entendesse, esperava que Daniella fosse inteligente o suficiente para ler seu corpo rígido, seus nós dos dedos brancos. Se elas pudessem treinar juntas. Se elas pudessem participar de um combate físico, Kelia poderia finalmente fazer Daniella se arrepender de atormentá-la no minuto em que ela se tornou uma Cega.
—Eu acho melhor você ter muito cuidado, — Daniella disse em voz baixa. —Acho que você sabe o que quero dizer quando digo que as paredes têm ouvidos. Não queremos que você seja jogada de volta no isolamento, ou pior. Tenho certeza de que suas costas já estão nojentas o suficiente. Nem mesmo o Salem's Balm ajudaria a curá-la.
Kelia estreitou os olhos com a menção do bálsamo. Drew Knight aplicou um bálsamo que Emma havia feito. Foi o bálsamo de Salem? Isso importa, desde que funcione? E o que Daniella saberia sobre isso, afinal?
—Então, comece já, — Daniella disse, sua voz tirando Kelia de seus pensamentos. —Por que você está aqui? O que você quer?
—Estou procurando informações sobre alguém — disse Kelia. —Você poderia me indicar a direção dos livros-razão caribenhos?
—Os livros? — Daniella perguntou, olhando feio. —Tipo, você quer peneirar os nomes de todas as pessoas que nasceram ou morreram no Caribe? Você deve estar louca. Isso, ou você está procurando sua próxima vítima.
Kelia tinha certeza de que as palmas das mãos teriam recortes permanentes em forma de lua crescente devido ao quão forte ela estivera pressionando as unhas na pele carnuda para não dizer algo de que se arrependeria mais tarde.
—Onde eles estão? — Kelia perguntou novamente, sua voz forte.
—Eu toquei em um nervo, Sombra? — Os lábios de Daniella se curvaram enquanto ela se levantava, mantendo uma mão sobre o livro que estava lendo e usando a outra para apontar para um corredor vazio cheio de pilhas de livros grossos encadernados em couro. —O que você está procurando simplesmente está lá. As datas devem estar nas capas. Mais alguma coisa?
—Não que eu possa pensar — disse Kelia. —Mas se eu pensar em mais nada, eu vou ter certeza de não lhe perguntar.
Daniella se sentou mais uma vez. —Graças a Deus.
Kelia seguiu na direção indicada sem se virar para ver se Daniella estava fazendo algo desagradável. Em vez disso, ela se concentrou em colocar um pé na frente do outro, as palavras Wendy Parsons se repetindo continuamente em sua cabeça como um mantra.
Kelia parou na frente das pilhas, sentindo-se oprimida. Ela olhou para a prateleira superior e depois para a inferior. Provavelmente havia cinquenta livros-razão que datavam dos últimos duzentos anos. Ela nem sabia por onde começar considerando que Drew apenas lhe deu um nome e nada mais.
Por que você está fazendo isso por ele, afinal? Ela pensou. Ela balançou a cabeça, castigando essa barganha em que havia entrado em primeiro lugar. Você precisa manter a cabeça baixa se quiser encontrar mais informações sobre seu pai.
—Já se passaram dois meses e não encontrei nada novo — ela murmurou antes de estender a mão e puxar um livro-razão datado de 1697, o mesmo ano em que nasceu. —Eu preciso de uma pausa de pensar sobre meu pai. Talvez o espaço me dê alguma clareza.
—Você está falando sozinha, Sombra? — Daniella chamou de sua posição na mesa. Ninguém mais entrou na biblioteca, então ela deve ter sentido que poderia gritar sem trégua. —Você realmente é maluca, não é?
Kelia não sabia quanto tempo ficou na biblioteca examinando os livros de contabilidade. Eventualmente, ela teve que levar alguns minutos para subir e descer os corredores dos livros de ficção para uma trégua do pequeno texto. Ela tinha lido pelo menos dezesseis livros diferentes cheios de centenas e centenas de nomes. Encontrou uma infinidade de John Smiths, Marie Thompsons e até mesmo vários Wendys e Parsons.
Mas ela não havia encontrado uma única Wendy Parsons em todas as páginas.
Isso levaria muito mais tempo do que ela esperava.
Quando Kelia retomou seu estudo, ela respirou fundo. Seu estômago roncava. Ela tinha se esquecido completamente de pegar algo para comer no jantar do meio-dia. A luz do sol entrou em uma janela aberta e Kelia arregalou os olhos, tentando se manter acordada. Quanto mais cedo ela descobrisse quem era Wendy Parsons e onde estava sendo mantida, mais cedo ela poderia voltar a pesquisar sobre seu pai.
—Quem, exatamente, você está procurando, Sombra? — Daniella perguntou, olhando por cima do ombro de Kelia.
Kelia nem tinha ouvido sua abordagem.
Surpreendentemente, não havia julgamento ou crueldade em seu tom. Se qualquer coisa, ela parecia curiosa. Kelia quase quis dizer que não era da sua conta. Ela queria finalmente dar a Daniella uma réplica inteligente, para ter a última palavra. Para excluí-la completamente e fazê-la se sentir inadequada, já que, apesar do que ela pensava, ela realmente não sabia tudo.
Mas ela se conteve.
Se Daniella conhecesse a biblioteca, ela poderia ajudar. E por mais que doesse para Kelia pedir a ajuda de Daniella, se ajudasse Drew a encontrar essa mulher e permitisse que ela descobrisse por que seu pai morreu, valia a pena o pequeno machucado em seu ego.
Kelia pigarreou. —Você já ouviu falar de Wendy Parsons?
Algo cintilou nos olhos de Daniella, mas imediatamente apagou. Mas Kelia viu. Reconhecimento. Ela já tinha ouvido o nome antes.
No entanto, Daniella apenas bufou. —Outra Sombra que você conhece? — Ela perguntou com desdém. —Por que eu iria conhecer alguém que você conhece? Posso não ser tão afetada e correta quanto minha família quer que eu seja, mas não fico por aí com o lixo das ruas como você e seus companheiros Sombras.
Sem outra palavra, ela saiu pisando forte.
Mas Kelia já sabia que estava no caminho certo. Daniella sabia de algo que não queria contar a Kelia. E fosse o que fosse, Kelia tinha toda a intenção de descobrir o segredo por si mesma.
CAPÍTULO 7
Na manhã seguinte, Kelia teve uma consulta com os médicos enquanto trabalhava para fortalecer as costas. Foi a pior dor que ela já experimentou, exceto pelas chicotadas reais. Houve muitas vezes em que ela quis desistir e ir embora. Teria sido muito mais fácil assim, mas ela nunca recuperaria a força que tinha antes. Nunca seria capaz de se defender tão bem como antes.
Se ela queria ficar forte, ela teria que trabalhar para isso.
Depois de prender o cabelo em uma trança apertada, ela fez questão de quebrar o jejum com uma boa quantidade de carnes e frutas, depois lavou o rosto e escovou os dentes. Pronta para começar o dia, ela saiu de seu quarto e desceu para a escada em espiral que levava à ala médica.
Um movimento fora de uma das janelas chamou sua atenção. Ela parou, olhando para o pátio onde uma das aulas que ela costumava frequentar como Assassina estava acontecendo. Seu corpo inteiro paralisou quando ela olhou para o grupo. Foi onde ela recebeu as dez chicotadas iniciais de Rycroft em primeiro lugar. Onde ele havia mostrado misericórdia, mas a usado para fazer um ponto crucial - qualquer tipo de relacionamento com o sobrenatural não seria tolerado.
Seu corpo estremeceu. Um de seus objetivos era poder passar por aquela praça sem reagir a ela, sem permitir que ela a controlasse. Ela apressou o passo, seus dedos se fechando em punhos enquanto ela praticamente corria até que a janela se foi e ela estava livre dela mais uma vez.
Ela virou à esquerda e soltou um suspiro trêmulo. Um último corredor e ela estaria em sua fisioterapia. Este corredor tinha retratos de treinadores anteriores, todos homens enrugados com gloriosas perucas brancas e uma expressão de seriedade em seus rostos rechonchudos. Todos usavam tons de azul, como se quisessem se diferenciar dos soldados ingleses de vermelho.
Ela parou na última porta à esquerda e a abriu. A sala para a qual levava era a mais limpa da fortaleza, graças à enfermeira responsável, Scully Masterson. Ela era uma mulher alta e séria, com cabelo ruivo curto e olhos azuis severos.
Havia duas fileiras de camas, dezesseis no total. Três estavam em uso, enquanto o resto estava pronto, esperando por seus próximos ocupantes.
Kelia desceu no meio, evitando os pacientes feridos. Eles olharam enquanto ela passava. Ela podia sentir sem precisar procurar confirmação. Ela não deveria olhar para eles para confirmação, mas ela olhou. Cada paciente olhando para ela como se ela fosse uma traidora, como se fosse sua culpa eles estarem na ala médica.
Ela odiava admitir, mas ela entendia. Eles se machucaram fazendo algo enquanto os Cegos eram completamente opostos a tudo que os Assassinos representavam. Tudo pelo que os Assassinos lutaram.
Mas Kelia também viu o outro lado e não parecia haver uma decisão clara e definitiva sobre quem estava certo e quem estava errado.
A mesa de Scully estava localizada na entrada. Estava meticulosamente organizada, com penas e tinta prontas.
—Bem-vinda de volta, Dourada, — Scully disse, sem se preocupar em erguer os olhos. —Achei que tivéssemos te assustado da última vez.
Kelia permitiu que o insulto saísse dela como água. Ela se recusou a morder a isca, especialmente considerando que essa era simplesmente a personalidade de Scully e não algo para levar para o lado pessoal.
—Não exatamente — Kelia murmurou em resposta.
—Acho que terei que me esforçar mais então. — Ela ergueu o olhar para que suas írises nítidas e frias travassem em Kelia. —Cama quatro. As roupas já estão fora e esperando por você. Seja rápida. Mais e mais de vocês estão se machucando, e não tenho tempo do dia para focar minha atenção nos Cegos quando tenho Assassinos de verdade aqui.
Kelia permaneceu em silêncio, fechando os dedos em punhos. Havia momentos em que ela podia ler Scully e ver através de sua crueldade, mas havia outros momentos em que ela não conseguia. Independentemente disso, ela sabia que não poderia reagir. Ela não podia permitir que sua frustração e raiva tirassem o melhor dela.
Ela foi para a cama, então pegou o vestido cinza especial feito sob medida para os exercícios que ela teria que suportar hoje. Dobrando a combinação sobre o braço, ela a carregou consigo enquanto caminhava para trás da divisória.
Quando ela mudou para a roupa feia, mas confortável, ela não pôde deixar de se perguntar como ela deveria ficar feia ao usá-la. O pescoço era alto e abotoado logo abaixo do queixo, enquanto as mangas eram longas e enroladas nos pulsos. Não havia espartilho, nenhuma cinta na cintura. Atingia seus tornozelos e havia um par de sapatos pretos lisos para colocar em seus pés.
Quando ela terminou, ela pendurou sua roupa original na divisória, garantindo que a roupa fosse posicionada de uma forma que não ficasse amassada. Ela se sentou ao pé da cama, passando as mãos pela trança para se certificar de que ainda estava apertada. Quando ela terminou, ela colocou as mãos nas coxas, endireitou as costas e esperou.
No início, ela não sabia que isso - a espera - era um exercício por si só. Isso forçava os músculos das costas a travar no lugar e a testava mentalmente, exigindo sua paciência. Houve uma vez em que Scully não a verificou por vinte minutos, e quando ela o fez, Kelia mal estava impedindo que lágrimas de frustração deslizassem por seu rosto. Ela queria atacar, mas então eles ganhariam, e isso era a última coisa que Kelia queria. Ainda mais do que tudo.
Quando ela percebeu que era um exercício, ela começou a se desafiar. Ela precisava de uma maneira de manter a calma, pelo menos para passar por isso. Não foi surpresa para ela que todos a rejeitaram. Ninguém acreditava que ela se tornaria uma Assassina novamente, o que significava que ninguém a levaria a sério. O que estava bom para ela. Contanto que ela soubesse que poderia passar por isso, ela estaria bem.
Hoje, ela só teve que esperar cinco minutos antes de ouvir Scully se aproximar dela. Ela deslizou para uma cadeira e lembrou-se mais uma vez de agir como se estivesse aqui por causa de suas decisões erradas, e agora ela estava perdendo tempo e recursos valiosos porque ela era egoísta, tola e um ser emocional que parecia não ter nenhum osso lógico em seu corpo. Era um papel que ela absolutamente detestava representar porque destacava tudo o que ela discordava da Sociedade.
—Bem, bem. — Scully disse em um tom sarcástico.
De onde Kelia estava sentada, ela podia ver os sapatos pretos de Scully, o que significava que a mulher estava bem na frente dela, suas mãos provavelmente colocadas em seus quadris, seus dedos fechados em punhos. Ela estaria fortemente vermelha, com círculos escuros de pó acima dos olhos, como a máscara de um guaxinim. —Você anda como se conhecesse este lugar melhor do que eu.
—E por que você acha isso? — Kelia perguntou. Ela encontrou os olhos de Scully sem pestanejar.
Scully inclinou a cabeça com a resposta e mudou seu peso para que seu calcanhar batesse no chão. —Muitas pessoas tendem a desistir quando as coisas ficam muito desafiadoras — ela falou lentamente. —É mais fácil desistir do que seguir em frente e perseverar. Você anda como se estivesse ansiosa por este encontro, apesar da dor inevitável.
—Talvez alguns desistam com facilidade, — Kelia concordou. —Mas eu não. Faria maior dano à minha pessoa desistir do que seguir em frente. O esforço mental sobre mim vale facilmente o preço físico que custaria ao meu corpo.
—É assim mesmo? — Scully perguntou. —Suponho que devo pressioná-la ainda mais forte, para promover a sua recuperação.
—Se você acha que deve. — Disse Kelia. Ela se recusou a deixar a enfermeira assustá-la. Era uma tática usada para manter os Cegos na linha, para mantê-los em sua posição atual, em vez de empurrá-los e encorajar sua recuperação.
Ela não tinha certeza, mas ela podia jurar que viu o queixo de Scully estalar, como se ela aceitasse o desafio. Kelia não a desafiou intencionalmente, mas ela não podia negar o sorriso presunçoso que coçava para se libertar. Muitos não enfrentavam Scully, fosse ela passivo-agressiva ou não, especialmente uma Cega.
—Tudo bem, — Scully disse, balançando a cabeça uma vez. —Levante-se e vamos lá fora.
—Lá fora? — Kelia não conseguiu esconder a surpresa de sua voz, mesmo que tentasse.
A fisioterapia nunca foi realizada fora. Era quase como um castigo, ficar dentro de casa o tempo todo. Era o suficiente para deixar qualquer um louco, incluindo Kelia. No entanto, ela conseguiu se manter sã com lembretes constantes sobre o motivo de permanecer na Sociedade em primeiro lugar.
—Isso é um problema para você, Sra. Starling? — Scully perguntou. —Acho que é um dia particularmente bom. Uma tempestade está chegando no horizonte, mas pelo menos podemos aproveitar o frio no ar. Se você tem medo do frio...
—Eu não tenho. — Disse Kelia rapidamente. Ela sabia que havia revelado o quanto queria estar ao ar livre, mas não se importou particularmente. Não quando sair estava em jogo.
Scully sorriu como se soubesse que oferta tentadora ela havia feito. Kelia se levantou e seguiu a enfermeira pelo longo corredor até chegarem a uma porta. Kelia manteve os olhos abertos. Ela nunca tinha estado aqui antes, não sabia que havia uma saída que levava para fora. Ela pensou que só havia uma saída para o pátio.
Claramente, ela estava enganada. O que significava que poderia haver outras entradas e outras saídas que ela não conhecia. Se ao menos ela tivesse a liberdade de explorar a fortaleza do jeito que ela queria.
O céu estava pintado com nuvens negras que bloqueavam o sol. Claro, Scully chamara esse clima de bom; combinava com sua personalidade - sombria e fria. A chuva ainda não tinha caído, mas havia um frio no ar. Kelia desejou ter agarrado seu sobretudo preto, mas se recusou a reclamar do frio para Scully.
O ar fresco a atingiu como uma onda para um navio, quase a derrubando. Ela o engoliu como se estivesse se afogando. Respirando profundamente, ela saboreou o ar puro e fresco, querendo se certificar de que se lembraria da sensação quando fosse forçada a voltar para dentro e não tivesse permissão para sair.
Ela não se importou em não poder ver o sol. Até chuva teria sido bem-vinda. Este momento valia a pena qualquer dor. Quaisquer exercícios que Scully fizesse, ela faria com o objetivo de exceder todas as expectativas possíveis.
Ela queria mais disso. Ela precisava estar fora, tanto quanto possível.
—Presumo que você reconheça este lugar? — Scully perguntou, olhando para ela com diversão, como se levar Kelia para onde ela havia sido amarrada na frente de toda a Sociedade fosse uma piada.
—Como eu poderia esquecer? — Kelia murmurou.
Olhos treinados na plataforma à sua frente, sua audição foi abafada pelo que parecia ser ondas quebrando no mar. O tempo ficou mais lento. Ela não pôde deixar de se lembrar do que havia acontecido com ela. Suas costas estavam tensas, como se pudesse sentir o chicote abrindo sua pele como fazia meses atrás.
—Suba os degraus para a plataforma. — Scully instruiu, sua voz afiada como um chicote.
Kelia virou a cabeça em direção à enfermeira. Ela piscou uma vez. —O que?
—Eu preciso me repetir? — Scully perguntou, cada palavra pontuda e lenta. —Estou instruindo você a subir os degraus da plataforma. Certamente você se beneficiaria visitando o lugar onde foi punida, onde recebeu suas chicotadas. Um lembrete, por assim dizer.
Kelia cerrou os dentes. Ela não podia discutir, mesmo se quisesse. E ela fez.
Ela não mostraria fraqueza. Ela não desistiria. Ela continuaria a crescer e a empurrar com mais força até ficar mais forte do que antes, antes de ser uma Cega, antes de Drew Knight. Porque por mais que apreciasse suas amizades, suas parcerias, ela sabia que a única pessoa que poderia salvá-la era ela mesma.
E ela pretendia fazer exatamente isso.
Enquanto subia os degraus, ela percebeu que não estava com medo do jeito que estava quando Rycroft a obrigou a fazer isso antes. Ela deu um passo de cada vez. Sua mão agarrou o corrimão de madeira. Sua respiração ficou superficial. Mas ela não desistiria.
Quando ela alcançou a plataforma, levou a última grama de sua energia para não vacilar. Ela ficou de pé, mesmo quando o estalo do chicote ecoou em sua mente, mesmo enquanto suas costas queimavam com as memórias, mesmo que ela pudesse jurar que viu seu próprio sangue decorar a plataforma da forca. Com a determinação de mantê-la de pé, ela olhou para o pátio vazio.
Ela percorreu um longo caminho, mas ainda tinha uma distância maior a percorrer.
Kelia observou enquanto Scully tirava algo do bolso. Sem aviso, Scully balançou o pulso e o chicote quebrou o céu. Kelia podia sentir o ar estalar. Ela tinha vergonha de admitir que soltou um grito.
Scully não iria realmente chicoteá-la, iria?
—Você está fazendo um grande progresso com sua força física, Kelia, mas sua resistência arrogante à humildade será sua ruína — disse Scully. —Não tema o medo em si. Pode ser a única coisa que vai te salvar. — Outro estalo do chicote. Kelia podia sentir suas costas gritarem, embora o chicote não a tocasse. —Agora, ajoelhe-se.
Scully a queria humilhada o suficiente para temer a Sociedade. E enquanto Kelia fazia seus exercícios com Scully chicoteando o espaço perto dela, Kelia se sentiu fraca. Quebrada. Porque as lágrimas estavam em seus olhos e, por mais que tentasse, ela não conseguia impedir que caíssem. Como ela deveria olhar mais fundo na morte de seu pai e descobrir quem era essa Wendy Parsons se ela não conseguia suportar a tortura de Scully?
CAPÍTULO 8
Por mais que Kelia quisesse faltar às aulas matinais após a extenuante fisioterapia, ela sabia que não poderia. Só porque ela havia se exaurido fisicamente, não significava que ela poderia fazer uma pausa em suas atividades mentais. Ela estava determinada a ser uma Assassina o máximo que pudesse, dadas as circunstâncias. Ela queria ser forte, queria ser afiada, queria ser capaz de cuidar de si mesma e resolver o assassinato de seu pai. Para fazer isso, ela precisava se assimilar.
Ainda se esperava que os Cegos fossem Assassinos em tudo, menos no nome. Eles foram colocados em classes, aulas atribuídas e obrigados a fazer exames. Aqueles que eram fisicamente capazes ainda podiam treinar. Era necessário, caso os Cegos fossem necessários para ajudar a defender a fortaleza. A diferença era que eles não eram permitidos no campo e não recebiam a confiança de certas informações, a menos que concluíssem sua reabilitação. E mesmo assim, seu nome e reputação estavam completamente manchados naquele ponto, então a confiança geralmente não era dada, de qualquer maneira.
Kelia bufou um suspiro, sentando-se em seu lugar designado perto da janela na terceira fila da sala de aula. Ela normalmente não ficava entediada durante as aulas; pelo menos, ela não tinha sido uma Assassina. Mas agora que ela havia acordado de sua ignorância, ela não podia deixar de sentir como se tivesse perdido seu tempo alimentando-se de mentiras que ela sabia que não eram verdadeiras.
Este professor era conhecido por seu total desdém pelas Sombras do Mar, embora a classe discutisse a dinâmica de todos os seres sobrenaturais, incluindo lobisomens, sereias e bruxas. Embora a Sociedade se concentrasse nas Sombras porque eram a ameaça imediata, era imperativo que todos os Assassinos estivessem cientes dos diferentes seres sobrenaturais, como se defenderem e como destruí-los.
Kelia ficou surpresa por ter tido permissão para assistir a essa aula, que os Cegos tenham recebido essa informação em primeiro lugar. No entanto, ela supôs que era porque até mesmo os cegos tinham que estar preparados para o pior. Cegos ainda eram Assassinos por pertencerem à Sociedade. Eles podiam não ser nada mais do que servos, mas a Sociedade investia muito tempo neles e eles não planejavam desperdiçar esse investimento.
Kelia puxou um papel e uma pena para começar a tomar notas. Havia momentos em que essa aula era interessante; outros onde estava particularmente seco. Quando o Professor Tampa começou uma de suas fúrias fora do tópico sobre Sombras, Kelia olhava fixamente para fora da janela, tentando não ficar muito distraída no caso de ele chamá-la para responder a uma pergunta.
O quadrado agarrou seu peito, mas ela se forçou a se concentrar no que estava acontecendo nele, e não no lugar em si.
Treinamento. Combate físico.
Seus dedos coçaram, enrolando em torno da alça que não estava lá, que não estava lá há muito tempo.
Sua lâmina estava desaparecida desde a noite em que foi levada, a noite em que Rycroft descobriu sua aliança com Drew Knight. Era uma parte tão integrante dela que, cada vez que era lembrada de que não a tinha mais, era como se ela tivesse perdido um membro ou outra coisa importante para sua pessoa.
O treinamento acontecendo lá fora era apenas isso - combate físico com armas. Os Assassinos se moviam com suas armas como se fossem parceiros de dança, seus movimentos graciosos, suas ações precisas.
Kelia apoiou o queixo na palma da mão, tentando se concentrar de volta na aula. O professor Tampa ainda estava falando sobre a sexualidade crua de Sombras do Mar e como Assassinos, especialmente as mulheres, precisariam ser cuidadosas porque Sombras podiam facilmente manipular emoções. E uma vez que as mulheres eram as mais emocionais dos sexos, elas tinham que estar vigilantes. No entanto, como uma cega em progresso que precisava parecer estar no caminho da reabilitação, ela tinha que concordar com o que ele ensinava.
Voltando-se para a janela, ela pensou em como sentia falta de sentir a lâmina, como ela se encaixava perfeitamente em sua mão esquerda, como as bolhas haviam diminuído. Ela odiava não poder manter a prática. Seria difícil ser tão boa quanto ela já foi sem ser. No entanto, ela sabia que não teria permissão para fazer tal coisa por muito tempo. Apenas os Cegos que quase haviam terminado o programa tinham permissão para treinar.
Com Abigail.
Kelia não sabia o que Abigail fez para se tornar uma Cega, e ela não planejava perguntar. Tudo que Kelia sabia era que, seguindo as regras e diretrizes do programa, Abigail se formara oito meses depois.
—Srta. Starling?
Kelia voltou sua atenção para o professor Tampa. Quantas vezes ele disse o nome dela? Parecia que tinha sido mais do que alguns.
—Você está sonhando acordada? — Ele perguntou, sua voz cheia de sarcasmo. —Quer voltar a ser como as coisas eram? Antes de ceder à sua luxúria e ter uma relação sexual com Drew Knight?
Kelia teve que morder o lábio inferior para não responder. Ela podia sentir o gosto do sangue metálico, como se para se chocar ao reconhecer que as pessoas iriam julgá-la, colocá-la no ostracismo e ridicularizá-la por causa do que achavam que sabiam. Eles iriam envergonhá-la, fazê-la se sentir algo que ela não era.
—Sinto muito, senhor. — Ela se forçou a dizer. Ela esperava que não saísse afetado.
O professor Tampa resmungou baixinho. —Você pode responder à pergunta, pelo menos, ou é esperar demais?
Kelia encostou o queixo no peito. —Pode repetir a pergunta, senhor? Parece que não ouvi.
Houve gemidos atrás dela, mas Kelia não lhes deu atenção. Ela não se importava particularmente com o que seus companheiros Cegos pensavam dela. Apesar de tudo, ela não gostava de ser o centro das atenções e não gostava disso mesmo antes de cair em desgraça.
—Já que esta é uma aula que discute o quanto a tentação é errada — o professor Tampa começou e dirigindo-se a Kelia, —quero que você diga à classe como foi ceder a essa tentação.
Kelia engoliu em seco. Por um lado, ela sabia que não deveria responder a uma pergunta tão pessoal sobre sua vida. A Sociedade decidiu mantê-la como Cega, o que significava que ela tinha certos direitos, mesmo que a maioria tivesse sido retirada. Por outro lado, havia pressão sobre ela para obedecer a todos os pedidos feitos a ela, fosse ela sendo ordenada a fazer algo, responder a uma pergunta ou quaisquer outros favores que fossem solicitados aos cegos. Se ela quisesse boas notas, ela responderia sem questionar. Se ela quisesse manter um pingo de dignidade, ela lembraria a ele e à classe que seu relacionamento com Drew Knight não era da conta de ninguém.
Essencialmente, ela precisava descobrir o que era mais importante para ela: ser uma cega bem-sucedida ou manter seu orgulho intacto às custas de progredir em seu programa de reabilitação.
Ela respirou fundo, conseguindo chamar a atenção do professor. Ele olhou para ela como se merecesse uma explicação, como se levasse o comportamento dela para o lado pessoal. Ela não entendia muito bem a animosidade dele em relação a ela, mas sabia que alguns consideravam relacionamentos proibidos - como os entre humanos e Sombras - como uma ameaça para si mesmos. Ela não estava totalmente familiarizada com o professor Tampa, mas se tivesse que adivinhar, diria que ele se enquadrava na última categoria.
—De todos os humanos clamando para chegar até Drew Knight, — ele continuou, —por que você acha que ele escolheu você? Você não é nada mais do que uma jovem com um pouco de mente. O que você poderia ter para oferecer a ele? Além do mel entre as coxas.
Kelia apertou a mandíbula. Ela desejou ter a habilidade de evitar corar. Infelizmente, ela não o fez. Sexo não era algo que ela conhecesse, muito menos poderia falar.
—Mas mesmo isso é tão comum quanto a próxima opção — continuou Tampa. —Desde que descobri sobre você e seu relacionamento com ele, queria saber por que você era considerada especial para ele.
Para ser honesta, Kelia não tinha ideia de como responder. Tampa estava certo, mas apenas em sua avaliação dela em comparação com outras mulheres. Drew Knight tinha opções que iam do exótico ao comum. Ela não tinha ideia do que a tornava tão especial.
—Seu palpite é tão bom quanto o meu. — Ela finalmente disse a ele, certificando-se de parecer devidamente castigada
—Certamente ele disse algo a você — Tampa continuou dando a ela uma sobrancelha franzida de frustração e impaciência. Ele colocou a mão na cintura e balançou a cabeça. —Drew Knight é conhecido por seu charme. Você está me dizendo que ele não falou nada?
—Não tínhamos tempo para conversar.
Kelia não deveria ter dito isso. Ela estava reagindo. Sendo mesquinha. E por falar em Drew Knight, ele diria a ela que suas emoções estavam levando a melhor sobre ela. Embora, ele provavelmente riria primeiro.
No entanto, a expressão de horror absoluto no rosto de Tampa a fez rir. Ela teve que fingir tosse para esconder o fato. Ela desejou ter a audácia de dizer mais, de empurrar mais longe, mas ela sabia que isso só faria mal a si mesma.
—Quando seu relacionamento se tornou sexual? — Tampa perguntou depois que ele conseguiu se controlar. —Foi imediato? Ele acabou de olhar para você e você imediatamente disse que sim? Ele tentou você? Tirou vantagem de você?
Kelia queria sair da sala de aula. E ela queria odiar Drew Knight mais uma vez pela posição em que estava atualmente, que ela teria que enfrentar sozinha. Mas ela não podia fazer nada.
—O que Drew Knight e eu tínhamos...— Ela deixou sua voz sumir. —Não é algo que posso descrever com precisão com palavras. É algo, no entanto, de que me arrependo. — Ela quase engasgou com a palavra arrependimento, o que não fazia sentido. Certo, ela não se arrependia de sua parceria com Drew Knight e mentir fazia parte do plano. No entanto, ela achou difícil fazer isso. —E estou no caminho certo para reformar meus hábitos.
Ela odiava isso. O fingimento. As mentiras que ela tinha que recitar como se fossem verdades. Mas ela não conseguia chamar atenção para si mesma. Perigos maiores a aguardavam, e ela não podia desperdiçar seus riscos aqui.
CAPÍTULO 9
Já tinha sido um longo dia, e Kelia não queria nada mais do que rastejar para a cama e dormir o máximo que pudesse antes de ser forçada a acordar e fazer tudo de novo. No entanto, ela ainda tinha suas tarefas que precisava completar. Ainda faltava uma hora para os Assassinos terminarem o jantar no refeitório, então ela não poderia ir para a cozinha e completar sua tarefa. Ela tinha tempo que precisava para passar, mas temia que, se tentasse tirar uma soneca, não acordaria novamente até o dia seguinte.
Ela decidiu ir para a biblioteca, tentar vasculhar mais livros em busca de Wendy Parsons. Era entediante e a deixava ainda mais sonolenta, mas dava a ela algo para fazer. Depois que ela descobrisse onde Wendy estava, ela poderia contar a Drew e finalmente terminar com ele.
—Kelia. — A voz de Abigail perfurou o silêncio que normalmente permeava a biblioteca. —O que você está fazendo aqui tão tarde?
Kelia olhou para sua treinadora, sua mente correndo. Ela deveria ter uma história preparada; a velha Kelia teria coberto seus rastros de três maneiras diferentes. Ultimamente, porém, ela parecia preferir viver no momento e pensar por conta própria, em vez de planejar.
Ela sentia falta de algumas das qualidades da velha Kelia.
—Pesquisa. — disse Kelia quando não conseguia pensar em mais nada.
—Pesquisa — Abigail repetiu lentamente, dando a ela um olhar vazio. —Você acha que eu sou idiota?
—Por que você diria isso? — Kelia perguntou, tentando manter a defensiva em seu tom. Ela gostaria de poder deixar cair os três livros que havia coletado na mesa, porque eles estavam começando a ficar pesados. —O professor Tampa nos deu uma tarefa sobre matar Lobisomens. Como não estou familiarizado com eles, queria dar uma olhada neles agora, quando a biblioteca estava vazia.
Até mesmo sua desculpa falhou.
—E você acha que vai descobrir sobre Lobisomens nos livros? — Abigail arqueou uma sobrancelha. —Eu preciso falar com você em meu escritório. Você pode dispensar alguns minutos?
Kelia estava na biblioteca fazendo algo sobre o qual mentiu descaradamente. Ficou claro que ela não estava pesquisando um tópico sobre o qual teria que escrever um artigo, não com livros contábeis nas mãos. Além disso, Abigail poderia ordená-la no escritório se ela quisesse. Em vez disso, ela estava perguntando a Kelia. O mínimo que Kelia podia fazer era concordar, mesmo que houvesse o pretexto de que ela realmente não tinha escolha.
Kelia baixou os livros e foi até Abigail. Ela não tinha ideia do que queria e não conseguiu fazer uma leitura da mulher. Abigail foi a história de sucesso da Rycroft. Ela era o exemplo que a Sociedade usava sempre que alguém questionava o “programa” Cego. Abigail era a pessoa que Kelia precisava imitar se ela queria ser confiável novamente um dia - talvez não para ser uma Assassina, mas definitivamente não uma Cega. As probabilidades estavam contra Kelia, mas enquanto ela fosse capaz de enganá-los e fazê-los pensar que estava progredindo para que pudesse continuar a descobrir o máximo que pudesse sobre seu pai, ela não se importaria em permanecer cega.
Abigail gesticulou para Kelia pelo corredor até seu escritório. Enquanto ela seguia Abigail, Kelia observou seus arredores, embora ela tivesse estado neste escritório mais do que algumas vezes. Os velhos hábitos de autopreservação persistiram.
Abigail fechou a porta e deu a volta na mesa para se sentar. Kelia se sentou em sua cadeira. Suas costas estavam rígidas graças à fisioterapia que ela havia sofrido mais cedo naquele dia.
—Então, — Abigail disse, entrelaçando os dedos e forçando um sorriso. —Como você tem estado?
Kelia piscou. Ela ainda não tinha certeza do que se tratava. Ela se mexeu na cadeira, tentando encontrar uma resposta satisfatória.
—Estou bem. — Disse ela.
Abigail acenou com a cabeça. — Sim, — ela concordou. —Não estou ouvindo nada além de coisas excelentes de seus professores, e a enfermeira Masterson disse que a funcionalidade das suas costas está melhorando mais rápido do que o esperado. Isso só mostra que, se você estiver disposta a investir tempo e esforço, se dedicar à sua causa, você prosperará.
Como Kelia deveria responder a isso? Provavelmente mais seguro permanecer em silêncio...
—O professor Tampa disse que te pegou olhando pela janela hoje, — Abigail disse. —Ele levou três vezes para chamar seu nome antes de você responder.
—Peço desculpas — disse Kelia. —Sinto falta do treinamento.
Ela não precisava mentir sobre isso.
Abigail lentamente se recostou na cadeira. —Eu entendo — disse ela. —Quando eu estava...— Ela fechou os olhos e balançou a cabeça. —Senti falta de poder ir e vir quando quisesse. Poder sair quando eu queria, ir onde eu queria sem responder a ninguém, sem contar a ninguém.
Kelia assentiu para si mesma, esperando que Abigail continuasse, para dar mais dicas sobre o que ela estava realmente pensando. Embora a conversa, até agora, tenha sido surpreendentemente agradável, e Abigail até compartilhou algo pessoal, Kelia não tinha certeza se podia confiar nela. Elas não eram amigas. Abigail era sua treinadora e era importante que ela se lembrasse disso.
—Eu chamei você aqui para te dizer o quão orgulhosa estou do progresso que você fez, — Abigail disse, sentando-se e abrindo os olhos. Ela olhou para a papelada à sua frente, então pegou uma pena e começou a ler suas anotações. —Você cumpriu seu dever todas as noites, secando os pratos em tempo hábil. Não só isso, você é boa no trabalho. Você parece ter mudado completamente, Srta. Starling. Da quebrada Sombra admitida pela primeira vez agora, você é quase como uma pessoa inteiramente nova.
Kelia desviou o olhar quando Abigail disse a palavra Sombra. Ela nunca teve problemas com isso até que outras pessoas começaram a usá-lo para descrevê-la. Ela nem mesmo era realmente uma Sombra; seu relacionamento com Drew Knight foi completamente falsificado para manter a verdadeira natureza de seu relacionamento em segredo. Eles não eram exatamente amigos, mas talvez aliados fosse a palavra correta. Eles estavam trabalhando juntos com o mesmo objetivo: descobrir o que aconteceu com seu pai. E agora, Kelia tinha que recompensá-lo ajudando-o a descobrir exatamente onde essa Wendy Parsons estava.
—Tenho tornado uma prioridade assimilar na Sociedade. — Disse ela. Suas mãos estavam pressionadas contra as coxas e ela as esfregou na saia.
—Bem, nós reconhecemos seu esforço, e eu quero dizer pessoalmente que é apreciado. — Abigail disse.
Por seu tom, Kelia acreditou que o elogio era sincero. Ela duvidava que Rycroft sentisse o mesmo, no entanto.
—Quero que perceba que será recompensada pelos avanços que der. É por isso que Scully Masterson a levou para fora hoje. É por isso que Tampa não marcou você para sua réplica esta tarde.
Kelia abaixou a cabeça. Não porque ela estava com vergonha, mas porque ela não pôde evitar a diversão que sentiu ao pensar nisso. O escândalo absoluto em seu rosto tinha valido a pena.
—Você ouviu sobre isso? — Kelia perguntou, arriscando um olhar para cima.
—Eu ouço sobre tudo, — Abigail disse. Embora seu tom fosse sinistro, havia um leve sorriso em seu rosto. —Embora, se eu fosse dar a você minha opinião imparcial, gostaria de observar que não é da conta dele. Seu relacionamento com Drew Knight, embora não seja ideal e potencialmente perigoso e idiota, não é da conta de ninguém, apenas seu e de Knight. Tampa pode ser professor aqui, mas ele não tinha o direito de perguntar sobre sua vida pessoal.
—Eu aprecio isso, — Kelia murmurou. —Obrigada.
—Ouça, — Abigail disse, batendo palmas e colocando-as na superfície de sua mesa. —Eu quero atualizar sua tarefa diária. Acho que você fez um excelente trabalho secando pratos todas as noites, mas decidi dar a você um pouco de liberdade. Você gostaria de entregar a água todas as noites?
Levou um momento para as palavras de Abigail serem absorvidas. No entanto, quando o fizeram, Kelia assentiu com entusiasmo.
—Sim, — ela disse rapidamente. —Sim por favor.
—Alguma coisa para sair lavando a louça, sim? — Abigail disse com uma risada.
Na verdade, Kelia tinha um plano passando pela cabeça. Ela seria capaz de estar em contato indireto com Assassinos.
—Obrigada — disse Kelia, levantando-se. Ela percebeu que estava presumindo que seria dispensada, e então se deixou cair de volta na cadeira. —Peço desculpas, há mais alguma coisa?
Abigail riu alto, balançando a cabeça. —Isso é tudo, Srta. Starling — disse ela. —Mantenha o bom trabalho. Você fez um progresso maravilhoso. Por favor, não regrida.
—Eu não vou. — Kelia disse com firmeza. Ela se levantou, então se dirigiu para a porta, sua mente correndo.
Não era muito. No entanto, Kelia sabia que esse era um grande passo. Ela seria capaz de contatar Jennifer. Ela poderia até ser capaz de falar com ela. Mas primeiro, ela precisava descobrir o que dizer.
CAPÍTULO 10
Na manhã seguinte, depois de outra tigela de mingau sem gosto para o café da manhã, Kelia decidiu arriscar ser capturada e procurar informações sobre Wendy Parsons nas proibidas câmaras do conselho. Ela recebeu a ideia de Daniella, quer a garota percebesse ou não, da última vez que Daniella fizera o possível para insultá-la e fazê-la se sentir insípida da última vez que interagiram. Ela ainda não tinha encontrado nenhuma informação nova sobre Wendy, e ela não queria que Drew aparecesse sem que ela oferecesse algo a ele. Ela odiava admitir, mas a aprovação dele era algo que ela desejava mais do que deveria.
Kelia nunca tinha estado lá antes. Ela sabia que era restrito a qualquer pessoa não convidada pessoalmente por um membro, e ela sabia que sua reputação a impediria de receber tal convite. No entanto, ela sabia que o conselho não estava no prédio hoje, então ela aproveitou a oportunidade.
Kelia parou na cozinha e pegou uma jarra de água caso alguém a visse e questionasse sua presença. Eles provavelmente não iriam acreditar nela, mas, pelo menos, ela tinha uma razão para estar ali. Ela poderia fingir que estava enchendo bacias com água.
Seu coração batia contra o peito. Cada passo que ela deu foi fortemente contido. Ela queria chegar lá rapidamente, mas se alguém a visse correndo para uma seção da fortaleza que não era normalmente ocupada por Assassinos ou Cegos, ela chamaria a atenção para si mesma.
—Seu lugar é aqui — ela continuava sussurrando, um lembrete de que não podia parecer preocupada ou nervosa, o que seria outra maneira de induzir suspeitas. —Você pertence aqui.
O corredor era longo e silencioso. Kelia deu um passo com muito cuidado. A jarra parecia pesada em suas mãos.
Quando ela alcançou as portas cor de vinho das câmaras do conselho sem ninguém a parando, suas mãos tremiam de nervosismo. Se ela fosse pega, o açoite seria uma misericórdia. Valia a pena cumprir sua parte do acordo?
Se isso significava descobrir o que aconteceu com seu pai, então sim, era.
Kelia respirou fundo, em seguida, estendeu a mão para a maçaneta dourada. Ela ficou surpresa ao descobrir que elas foram deixadas destrancados. Talvez eles não pensassem que alguém se atreveria a invadir seus aposentos. Só alguém totalmente louco tentaria tal coisa.
As câmaras estavam vazias. O batimento cardíaco de Kelia ecoou em seus ouvidos. No meio do cômodo repousava uma longa mesa com cadeiras em formato de trono, três de cada lado e uma na cabeceira. Havia uma cômoda e no canto uma caixa alta, mas estreita, cheia de livros.
Kelia endireitou os ombros. Ela precisava agir como se ela devesse estar aqui, como se ela tivesse todo o direito de estar aqui.
Mantendo os olhos treinados para frente, ela atravessou a sala, as mãos cruzadas atrás das costas.
Ela sentiu como se tivesse que tirar vantagem de sua liberdade temporária fazendo mais pesquisas sobre está misteriosa Wendy Parsons. Ela só esperava encontrar o que estava procurando o mais rápido possível.
Quando ela alcançou a única estante de livros, ela hesitou. Ela respirou fundo e deixou seus dedos percorrerem as capas dos livros. A História das Sombras do Mar. Feitiços, encantos e maldições. Sereias: Demônios do Mar.
Seus olhos se arregalaram. Um livro sobre feitiços? De sereias? Foi esta a confirmação do que ela pensava originalmente ser mitologia? Havia rumores, é claro, mas ela achava que eram contos do mar, coisas que os marinheiros diziam para explicar coisas que não entendiam. Poderiam existir criaturas como sereias? Ela se lembrou que Drew mencionou algo sobre elas antes, mas estava tão delirando de dor que ela não conseguia se lembrar de detalhes.
Só de pensar nisso a deixava enjoada. Ela já havia estado na água antes, apenas algumas vezes por causa do enjoo do mar, mas sabendo que havia uma chance de que ela pudesse ter sido seduzida por um demônio do mar...
Ela não gostava de pensar nisso.
Quando ela estendeu a mão e traçou as diferentes lombadas dos livros com os dedos, ela sentiu um choque mágico, uma centelha de vida, de excitação. Ela queria ler tudo o que era oferecido aqui. Essas eram as verdades do mundo, não as mentiras jorradas da boca de manipuladores e professores.
Mas ela não conseguiu. Não quando ela tinha tão pouco tempo.
Passos vieram sobre ela. Kelia congelou. Ela tinha sido pega. Ela seria punida. Como ela poderia não ter ouvido?
—Eu sabia que você não seria capaz de resistir. — Disse uma voz atrás dela.
Kelia se virou para encontrar Daniella. Ela ficou lá com uma mão no quadril proeminente, sua cabeça jogada para o lado, seu cabelo ruivo crespo solto.
—Do que você está falando? — Kelia perguntou.
—As câmaras do conselho? — Daniella perguntou, apontando para a estante preta. —Eu deixei escapar para você na biblioteca de propósito.
Kelia franziu a testa. —Não entendo. — Disse ela.
Daniella beliscou a ponte de seu nariz. —Claro que não. — Ela disse baixinho.
Kelia mordeu a língua para não fazer uma réplica inteligente.
Daniella soltou sua mão, que bateu em sua coxa de forma audível. —Você é mais ingênua do que eu pensava. Você sabe disso, Starling?
Kelia cerrou os dentes. —Se tudo o que você vai fazer e me insultar, você pode fazer o que estava planejando fazer, muito obrigada — disse ela. —Tenho coisas importantes que preciso fazer aqui.
—Isso é o que eu estava planejando fazer — disse Daniella. —Você não saberia sobre este lugar de outra forma.
—Assim? — Kelia perguntou.
—Você é tão desinformada.
O fogo queimou em suas veias. Ela quase desejou que Daniella tivesse usado a palavra estúpida ou idiota; teria sido muito menos ofensivo.
Daniella deu um passo em direção a Kelia, e Kelia enrijeceu, deixando cair um pé para trás e dobrando seu torso, como se estivesse se preparando para uma luta. Parecia ridículo onde elas estavam. Ela esperava que Daniella não se arriscasse a chamar atenção para si mesma, especialmente considerando que ela estava progredindo como uma Cega, assim como Kelia.
—Eu pensei que seu amante teria contado a você, ou pelo menos, aquela prostituta que ele mantém por perto, — Daniella continuou. —Falando nisso, eu me pergunto o que você pensa sobre ela - a prostituta. Em todo o seu relacionamento com ele, você ao menos considerou que ele pode estar tendo um caso com ela? Por que mais ele a trataria com tanto respeito?
A boca de Kelia caiu aberta. Emma? Por que Daniella estaria falando de Emma? Como ela saberia sobre Emma?
—Porque Emma é uma pessoa, — Kelia se forçou a dizer. Ela não queria parecer mais tola do que já parecia, especialmente na frente de Daniella. —E todas as pessoas merecem respeito.
—Drew Knight se encaixa nessa categoria? — Os cantos de seus lábios se curvaram em um sorriso malicioso. —Você o consideraria uma pessoa que merece respeito?
Kelia cravou as unhas nas palmas, os dedos se fechando em punhos apertados. Ela queria desesperadamente dar um soco em Daniella. Kelia nunca foi do tipo que usava seu corpo como arma, mas depois de uma aula informativa com Drew Knight, ela percebeu que era muito mais poderosa do que acreditava.
—E quanto a Emma? — Daniella empurrou.
—E quanto a Emma? — Kelia cuspiu de volta.
—Você acha que ela é uma pessoa? — Daniella deu mais um passo em direção a Kelia.
Kelia não queria nada mais do que dar um soco em Daniella, então ela teve uma desculpa para bater em suas costas.
—Não quero dizer que prostitutas não sejam gente, claro. Minha tia era uma prostituta e ganhou tanto dinheiro em uma noite quanto minha família inteira em um mês. Não tenho nada além de respeito pelas prostitutas. Mas Emma não é como a maioria das prostitutas, não é?
—Ela é afiliada às Sombras do Mar, — Kelia disse. —Isso não a torna normal de forma alguma.
Daniella bufou. —Você é realmente tão estúpida, Kelia? — Ela perguntou. —Você está me dizendo que teve um relacionamento com Drew Knight e, naquela época, você não tinha ideia de quem é Emma? Ou, devo dizer, o que ela é?
Kelia rangeu os dentes. —Eu não tenho tempo para isso, Daniella.
—Sua Emma, — Daniella disse em uma voz um pouco acima de um sussurro, — é uma bruxa. — Ela sorriu. —Estou sinceramente surpresa por você não saber disso.
—Como você sabe disso? — Kelia perguntou.
—Ela é uma associada de Drew Knight, — Daniella disse como se fosse óbvio. —A Sociedade é brilhante em fazer tudo o que pode para estar bem informada.
Kelia estava começando a ficar impaciente. Ela não permitiria que Daniella comprometesse tudo pelo que trabalhou tanto.
—O que Emma tem a ver com as câmaras do conselho? — Ela perguntou.
Daniella permitiu que o momento ficasse entre os dois.
—Emma, — ela disse lentamente, —é uma bruxa. Eu acabei de te dizer isso. Isso passou por você?
—Eu ouvi você da primeira vez, — ela disse, sem se preocupar em esconder sua dúvida. —E parecia tão ridículo como agora. Por que até mesmo mencionar Emma?
—É a verdade — disse Daniella antes de acenar com a mão dispensando. —Ouça, o que me importa se você acredita em mim ou não?
Kelia se virou para olhar para a estante. Ela tocou o queixo com os dedos. —Por que você me ajudaria? Por que me trouxe aqui? — Ela perguntou. —Você me odeia. Você me insulta. Você nunca quer ter nada a ver comigo. E eu nem sei o que fiz para irritá-la tanto.
Daniella mudou seu peso. Ela cutucou um fiapo do ombro. Mas seus lábios estavam puxados em uma linha tensa.
—Eu sei o que você está procurando, — disse Daniella. —Pelo menos, tenho uma ideia. — Ela fixou os olhos nos dela. —Eu odeio este lugar. Odeio a Sociedade mais do que odeio alguém ou alguma coisa. Você seria considerada minha amiga íntima em comparação com os meus sentimentos por este lugar. Qualquer maneira de foder este lugar, sou totalmente a favor.
Kelia se encolheu com a linguagem, mas assentiu uma vez. —O inimigo do inimigo. — Ela murmurou.
—Se você está procurando algo proibido, algo que não deveria estar procurando, estará aqui. — Daniella apontou para a estante de livros. —Eu iria me apressar, no entanto. O sermão acaba logo, e você tem livros que precisa folhear.
Kelia esperou que o outro sapato caísse. Isso era algum tipo de truque? Ela estava tentando colocar Kelia em problemas, então ela seria removida da Sociedade ou pior?
—Você ainda não respondeu por que está me ajudando — disse Kelia incisivamente. Ela não conseguia confiar em Daniella, pelo menos não ainda. —Deve haver mais do que apenas seu ódio pela Sociedade.
—Como eu disse, — Daniella disse com um encolher de ombros. —Posso não concordar com o seu relacionamento e definitivamente não gosto de você, mas o que você fez realmente tocou a todos aqui. Você enfureceu quase todo mundo e descobri que gostei muito disso. — Ela deu a Kelia um sorriso divertido. —Como tal, esta caça é minha retribuição a você. Não vou fazer mais nada por você de novo, não tenha medo. — Ela se moveu para correr os dedos ao longo das espinhas. —Esta seção tem dois livros-razão. — Ela fez uma pausa, colocando a mão nos últimos dois livros da terceira prateleira. —Se você estiver procurando por alguém nefasto, eles estarão lá.
—Como você sabe de tudo isso? — Kelia perguntou.
Daniella fez uma pausa antes de puxar um dos livros. Se possível, parecia mais antigo do que os que Kelia examinou na biblioteca, a capa preta desbotada, com páginas grossas que pareciam quebradiças ao toque.
—Eu sei muitas coisas, — Daniella disse, sua voz baixa e amarga. Ela colocou a mão nas costas de uma cadeira, segurando-a com os dedos. —Coisas que alguém como eu não deveria saber. Eles não podem fazer nada comigo, no entanto. Eles sabem disso. — Ela fixou os olhos em Kelia. —Eu sou mais do que pareço. Sei dessas coisas porque procuro respostas. Eu sou punida quando sou pega, mas vale a pena, porque vou acabar garantindo que este lugar não seja nada mais do que cinzas.
Kelia pegou o livro-razão dela. —Daniella, — ela começou, —você parece muito com... — Ela deixou sua voz sumir, não muito certa se ela estava pronta para admitir que Daniella era muito parecida com a própria Kelia. —Obrigada pela ajuda.
—Eu não estava fazendo isso por você, — Daniella fez questão de dizer. —Como eu disse, qualquer coisa proibida para Assassinos é exatamente o que eu desejo me educar. Eu vou deixar você com isso. Certifique-se de se apressar, no entanto. Seu tempo estava quase acabando antes de começar.
—Daniella, — Kelia chamou quando a outra garota girou no calcanhar de sua bota, pronta para deixar Kelia sozinha. Daniella fez uma pausa, olhando por cima do ombro. Kelia ofereceu a mão, mudando a saliência sob o outro braço. —Seja qual for o seu motivo para fazer isso, quero que saiba que aprecio isso.
Daniella assentiu, mas não segurou a mão de Kelia. —Não pense nada sobre isso — ela insistiu. — Por favor.
Os lábios de Kelia se curvaram e ela deu um aceno de cabeça para Daniella. Após devolver o gesto, Daniella desapareceu.
Kelia voltou para a prateleira. Parecia ameaçador estar aqui, como se ela fosse um alvo aberto. A porta que Daniella fechou recentemente parecia que poderia abrir a qualquer momento. Ela precisava se apressar.
Ela deslizou para a cadeira de madeira, em seguida, enrolou os dedos na ponta da capa preta e grossa do livro-razão. Não havia título, nada que indicasse do que se tratava. Em vez disso, havia letras douradas com duas datas: 1600-1700. Cem anos de nomes. Cem anos de história.
Seu coração batia forte contra o peito. Ela não tinha certeza se estava com medo de passar por cada página individual, procurando um nome em um mar de muitos, ou se estava ansiosa para ver por que esses nomes eram mantidos neste livro-razão em vez dos da biblioteca.
Lentamente, Kelia virou a capa, abrindo o livro. Seus sentidos foram agredidos com o cheiro velho e enferrujado da história. Ela fez uma pausa, levando um momento para se acostumar com a fragilidade das páginas.
Lembrando que precisava se apressar, começou a ler.
Ela ainda não havia encontrado nada sobre Wendy Parsons neste livro-razão.
As entradas eram como as postadas para consumo público. Havia nomes, datas de nascimento, gêneros, endereços, empregos, locais de nascimento, locais de morte, datas de casamentos, filhos produzidos por casamentos.
No entanto, havia duas diferenças: primeiro, não havia muitas datas de morte próximas a esses nomes. Isso confundiu Kelia, porque ela não tinha certeza se eles simplesmente esqueceram de adicionar um ou se a morte era possivelmente desconhecida. Uma terceira opção, menos provável, era que as pessoas sem uma data ao lado do nome não tivessem morrido.
—Mas isso é ridículo. — Ela murmurou, balançando a cabeça e esfregando os olhos com as costas das mãos.
Ela estava olhando para uma minúscula letra preta com uma caligrafia perfeita e seus olhos começaram a se cansar. Suas costas estavam começando a se esforçar de tanto curvar-se sobre a mesa. Ela havia distendido um músculo do pescoço ao virar a cabeça em direção à porta a cada poucos minutos para garantir que ainda tivesse tempo.
Uma outra diferença entre este livro-razão e o livro-razão geral era que havia um símbolo ao lado de cada nome. Havia uma lua crescente, a silhueta de um cachorro ou um lobo, notas musicais e um caldeirão. Pela vida dela, ela não conseguia entender o que significavam.
Para complicar ainda mais as coisas, havia alguns nomes - não muitos, mas o suficiente para notar - sem um símbolo. Kelia percebeu que os nomes sem símbolos eram normalmente acompanhados por uma união com alguém com um.
Kelia virou as páginas, seu olhar cintilando em cada uma. Ele era mantido em ordem alfabética e ela queria chegar ao Ps o mais rápido possível. No entanto, nem mesmo ela estava imune a ser varrida pelos vários nomes e famílias que eram mantidos neste livro-razão.
O que tornou esses nomes diferentes dos outros? Ela imaginou. O que esses pequenos símbolos significam? Por que alguns os tinham e outros não?
E por que as crianças normalmente tinham dois símbolos? Às vezes diferentes, às vezes iguais, mas sempre dois. Outro mistério.
—Não há tempo para perguntas — disse ela. —Você deve encontrar o nome.
Depois de quinze minutos, ela ouviu vozes no corredor. Elas pertenciam aos sete homens que compunham o conselho, incluindo Rycroft. Vozes se propagavam, então ela provavelmente tinha um minuto antes de chegarem à porta.
Página após página. Nada.
As vozes ficaram mais altas. Ela podia ouvir a conversa deles claramente.
Outra página e Kelia finalmente conseguiu encontrar o nome. Debaixo de um Andrew Parsons, havia uma Wendy Parsons. Ela não era casada e não parecia ter filhos. Havia um caldeirão ao lado de seu nome. Depois do caldeirão, havia uma chave. Sua data de nascimento foi dezessete de dezembro do ano de seiscentos e dez. Não havia data de morte.
Kelia franziu a testa. Wendy Parsons existia. Por algum motivo, o nome dela estava em livros que foram escondidos pela Sociedade com um caldeirão ao lado dela. Mas Drew Knight sabia claramente que ela estava viva, que ela existia. Ele queria que Kelia descobrisse se ela estava aqui, na Sociedade.
Mas ela não tinha ideia de como ela deveria fazer isso. Ela não tinha ideia de como Wendy ainda estava viva, a menos que ela fosse algum tipo de entidade sobrenatural também.
Ela fechou o livro-razão e rapidamente o deslizou de volta para a estante. Ela colocou a cadeira exatamente onde a encontrou, certificando-se de que estava no lugar, antes de correr para onde havia deixado a jarra. Ela a agarrou e despejou água na bacia sobre uma pequena escrivaninha.
Kelia saiu lentamente da sala. Ela já sabia que eles iriam vê-la. Ela teve que aceitar isso. Mas se ela mantivesse a cabeça baixa e os olhos no chão enquanto se afastava deles, poderia não ser reconhecida. Pelo menos, ela esperava que sim.
Seu caminho cruzou o deles, mas eles nem pareciam vê-la. Ainda assim, ela manteve a cabeça baixa, o coração batendo forte no peito, querendo sair dali o mais rápido possível. Até que eles vissem seu rosto, ela poderia ser qualquer um dos Cegos.
Ela não percebeu que estava prendendo a respiração até que ela estava em segurança no corredor e soltou. Isso foi muito perto.
Ela precisava encontrar Daniella, e o melhor lugar para começar essa busca era na biblioteca. Pareceu uma eternidade antes que ela finalmente encontrasse o cômodo familiar. Ela se forçou a evitar olhar por cima do ombro para não ser pega. Ela tinha certeza de que seria chamada pelo nome por um conselheiro que de alguma forma sabia o que ela vinha fazendo nas câmaras do conselho, o que ela havia descoberto. No entanto, ninguém veio atrás dela. Ela não encontrou ninguém nos corredores.
Pareceria, por enquanto, que ela estava segura.
Ela tirou uma das mãos da jarra d'água para abrir a porta da biblioteca. Uma cabeça familiar de cabelo ruivo crespo estava sentada na recepção, rabiscando algo em um pedaço de papel.
O alívio inundou seu corpo. Ela nunca tinha pensado que chegaria um dia em que ansiava por ver Daniella, mas ela praticamente pulou para ela.
—Daniella! — Kelia exclamou em um sussurro.
Daniella ergueu a cabeça, estreitando os olhos. —Você está aqui? — Ela perguntou. —Seriamente? Eu já...
—Eu preciso de mais — disse Kelia, quase sem fôlego. —Da sua ajuda, quero dizer. — Ela olhou ao redor da biblioteca, percebendo que elas estavam sozinhas. Isso não significava, porém, que os ouvidos não estivessem ouvindo. Como tal, ela se certificou de que sua voz estava baixa ao dizer: —Há símbolos ao lado de cada nome. Não entendo o que significam. A lua cheia, a silhueta de um cachorro, um lobo. Um caldeirão, uma nota musical. O que isso significa?
Daniella revirou os olhos. —Você tem que estar brincando, Sombra, — disse ela. —Como você era o chefe da nossa classe quando éramos Assassinas? Está além de mim.
Kelia a olhou fixamente, sem reagir aos insultos, mas indicando claramente que também não os aprovava.
—Leia nas entrelinhas, Kelia Starling, — Daniella disse. —São imagens tão básicas que até uma criança pode entendê-las. Um cachorro ou um lobo. Que entidade sobrenatural você acha que simboliza, hmm?
O sobrenatural. Esse era o elo que faltava. Os livros de contabilidade nas câmaras do conselho estavam cheios de entidades sobrenaturais.
—Um lobisomem — disse Kelia. Seus lábios se curvaram em um sorriso animado. —Um caldeirão é uma bruxa. A lua cheia simboliza a noite, que deve simbolizar As Sombras do Mar. E uma nota musical...
Este deu uma pausa.
—Sereias, sua idiota. — Daniella murmurou.
Mas Kelia já sabia o que ela precisava saber. Wendy Parsons era uma bruxa.
O que Drew Knight queria com uma bruxa? E se Emma também era uma bruxa, então por que ele precisava de duas delas?
CAPÍTULO 11
Kelia acordou no instante em que sentiu alguém em seu quarto. Ela sabia quem era sem olhar. Era sempre a mesma pessoa – a mesma Sombra do Mar, ela deveria dizer. Como ele sabia que ela havia descoberto algo importante? Ele tinha pessoas trabalhando para ele que ela não conhecia?
Ou talvez ele mesmo a estivesse observando. Ela não tinha certeza de como se sentia sobre qualquer cenário.
Tudo o que ela sabia era que ele estava aqui, o que significava que ela não poderia dar a Drew tudo o que ele pediu. A localização específica a iludia - por enquanto.
Ele parecia incrivelmente bonito sob o brilho da lua cheia que se infiltrava em sua janela agora aberta. Seu rosto era esculpido, suas maçãs do rosto inescapavelmente altas e sua mandíbula masculina e definida. Seu cabelo escuro estava estranhamente despenteado, dando-lhe mais o ar de um velhaco.
Com uma túnica branca de corte profundo, revelando um toque de peito bem definido, e um sobretudo azul marinho com botões dourados que chegavam até a parte de trás das coxas, ninguém suspeitaria que ele fosse o que era. Os Sombras eram monstros, feras que não podiam se controlar. Com suas calças pretas e botas até os joelhos que eram brilhantes, embora gastas, ele parecia muito digno e refinado.
—Kelia. — Ele disse, seus olhos profundos e escuros enquanto pousavam nela, como se ele não visse mais nada.
Os homens humanos não podiam nem chegar perto de sua beleza. Até Kelia, uma vez tão forte em sua convicção contra as Sombras, se viu incapaz de falar, incapaz de respirar perto dele, mesmo quando eles se conheceram e ela pensou que ele era o mal encarnado.
—Sr. Knight. — Disse ela secamente, depois de encontrar sua voz.
—Você pode me chamar de Drew — ele disse. —Você já se dirigiu a mim como tal antes. Sei que não nos vemos há algum tempo, exceto pela minha visita mais recente, mas não há necessidade de mais formalidades. Depois de tudo que passamos juntos, eu considero você minha...
—Amiga? — Kelia puxou as cobertas para esconder sua mudança o melhor que pôde, enquanto mantinha um olho na Sombra em seu quarto. —Não sei se essa é a palavra apropriada para descrever com precisão o nosso relacionamento.
—Amante seria mais preciso? — Ele perguntou, dando um passo em direção à cama dela. —Isso é o que todos pensam que somos, não é?
—Éramos — Kelia disse, seu tom firme. —Pretérito. Se eles pensassem que eu estava continuando nosso relacionamento, eles teriam me matado imediatamente.
—Eu sei. — Um olhar sombrio tocou o rosto de Drew. —Como você está?
—É por isso que você está aqui? — Kelia perguntou. —Para perguntar como eu estou?
—Isso está errado? — Drew olhou para ela, seus olhos intensos e cheios de uma emoção que ela não conseguia ler. —Só porque você nos vê como nada mais do que... como quer que nos veja, eu a considero uma amiga de confiança
Kelia congelou. Suas mãos brincaram preguiçosamente com a colcha, puxando o material macio entre os dedos.
Ela podia ver sinceridade em suas íris castanhas, o que a surpreendeu. Knight sabia como manipular palavras para que o beneficiassem, mas ele não era de mentir.
—O que é que você quer? — Ela perguntou novamente, sua voz ainda firme, mas agora, ela não conseguia esconder o tom de suavização de seu tom. Ela se sentou, puxando as cobertas com ela.
—Diga. — Ele disse, sua voz baixa, fazendo arrepios rastejarem por sua pele.
Seus olhos se fixaram nos dele. —O que?
—Meu nome, — ele disse a ela. —Diga. Diga como se não significasse nada para você e eu vou deixá-lo em paz.
—Drew. — Ela murmurou, sua voz não mais que um sussurro. Ela não conseguia nem fingir. A verdade era que ela não queria que ele a deixasse em paz.
Um sorriso deslizou em seu rosto, lento no início, mas brilhante. Kelia não pôde deixar de encará-lo sem falar, sem sentir qualquer tipo de vergonha neste momento por estar maravilhada com algo tão lindo.
—O que? — Ela finalmente perguntou quando o silêncio cresceu entre eles. —Por que você está olhando para mim desse jeito?
—Gosto da maneira como você diz meu nome — disse ele. —Eu quero ouvir você dizer mais.
—Você acha que é apropriado?
Seus lábios se curvaram sobre os dentes, mas não rápido o suficiente, porque ela já tinha visto suas presas escorregarem. Era tão fácil esquecer o que ele realmente era. Tão fácil supor que ele era como todo mundo.
—Eu não concordo com o que é considerado apropriado, — Drew disse, dando mais um passo em sua direção. —Eu decido por mim mesmo.
—Deve haver certas regras que você segue, — Kelia apontou. —Se todos agissem com abandono imprudente, haveria o caos.
—Eu prefiro o caos. — Ele disse, seus lábios se curvando.
—Tenho certeza que sim. — Ela inclinou a cabeça para o lado para que seu cabelo caísse sobre o ombro. Ela não gostou que estivesse desfeito na presença dele, mas não havia nada que ela pudesse fazer a respeito, especialmente quando ele apareceu sem qualquer aviso. Ela começou a trançá-lo, na esperança de aliviar seu nervosismo. —Por que você está aqui, Drew?
Ele sorriu novamente. —Sim — disse ele, fechando os olhos. —Gosto muito do som disso. — Abrindo-os de volta, ele disse novamente: —Estou aqui para verificar você. Para ver como você está.
Kelia suspirou. —Isso soa mais como o que você fez, e não tanto por que você fez. — Ela beliscou a ponte do nariz com os dedos. —Você se sente culpado? Você acha que isso torna as coisas bem entre nós? Esta...
—Amizade?
Kelia olhou para ele. —Se você não me contar, o mínimo que você pode fazer é me dizer como Emma está.
—Ela está bem, — Drew disse indiferente. —Ela pergunta sobre você de vez em quando. Você sabe, ela criou o bálsamo que eu dei a você.
As palmas das mãos de Kelia ficaram úmidas com a simples menção da pomada que ele esfregou em suas costas nuas. Foi uma coisa tão íntima para ele fazer, para ela permitir que ele fizesse. Especialmente considerando que ele era uma Sombra do Mar, e elas eram conhecidas por rasgar a carne em pedaços com o mero toque de sangue no ar.
Kelia lançou seus olhos para Drew. Ele enviou a ela um olhar inquisitivo em resposta.
—Posso lhe fazer uma pergunta? — Ela perguntou, repentinamente tímida. —E peço não ofender, mas por curiosidade.
Ele inclinou a cabeça para o lado, as sobrancelhas se juntando.
Kelia não podia culpá-lo. Um momento atrás, ela estava discutindo com ele sobre o relacionamento deles. E agora ela queria fazer perguntas pessoais? Isso não impedia seu desejo de saber, então ela seguiu em frente, mesmo que isso significasse suportar a provocação dele mais tarde.
—Você pode me perguntar qualquer coisa. — Ele disse a ela, e Kelia podia sentir que seu tom era apenas sincero.
Ela engoliu em seco, tentando umedecer a garganta enquanto ela se apertava e secava. Quando isso não funcionou, ela se enrolou com mais firmeza nas cobertas e se levantou para ir até a bacia, onde se serviu de um copo d'água. Ela gostaria de ter um manto adequado para vestir por cima da camisola, mas não havia nenhum por perto e decidiu confiar que ele era honrado. Suposição ridícula, sim, mas depois de tudo o que ele fez por ela, ele ganhou o benefício da dúvida.
Ela tomou um gole d'água, a trança ainda sobre o ombro, e o olhou. Seu olhar permaneceu firme em seu rosto, não afundando mais abaixo em seu corpo como se poderia esperar dele, mas seus olhos ficaram mais escuros. Famintos.
De alguma forma, sua garganta ficou seca mais uma vez. Ela não sabia o que aquele olhar significava exatamente, mas sabia que era algo semelhante ao desejo. Como se ela pudesse ser desejável, especialmente com cicatrizes correndo para cima e para baixo em suas costas. O que antes era uma parte sensual de seu corpo agora era um retrato de todas as suas decisões desde a morte de seu pai. E Drew sabia disso. Ele mesmo tinha visto.
Talvez ela o tivesse interpretado mal.
—Você estava lá, — ela finalmente conseguiu dizer. —Você estava lá quando eu tinha sangue escorrendo pelas minhas costas. Eu sei que estava meio delirando. Para falar a verdade, eu honestamente pensei que ia morrer. Mas você não me provou - meu sangue, quero dizer. Você nem parecia tentado.
—Acredite em mim, eu estava, — ele disse sombriamente. —Eu queria muito provar você, especialmente por ter cheirado você. Seu cheiro... —Ele deixou sua voz sumir e olhou pela janela, e ela seguiu sua cabeça virada para as ondas quebrando na costa próxima. —Seu perfume fez coisas ao meu corpo que nenhuma mulher jamais teve a habilidade de fazer. E, devo admitir, a besta dentro de mim não queria nada mais do que limpar você com minha língua, sentir você escorrendo pela minha garganta para que eu pudesse enterrá-la bem dentro de mim e nunca mais deixá-la ir. Eu posso cheirar sua inocência. Eu posso sentir o cheiro de sua pureza. Sombras do Mar tem esse impulso inato de querer nada mais do que corromper os inocentes, reivindicá-los como seus. Assim como um animal selvagem é levado a procriar, a foder algo sem pensar, a predisposição de uma Sombra é fazer o mesmo.
Ela se irritou com suas palavras, e ainda assim, elas também enviaram uma emoção através dela.
—E você acha que está tudo bem? — Ela perguntou em uma voz um pouco acima de um sussurro.
Ela não sabia como estava se sentindo neste momento. Seus sentimentos eram uma confusão de contradições que ela não conseguia resolver sob seu olhar penetrante. Ela pensava que ele era diferente das outras Sombras, que talvez as Sombras não fossem bestas afinal, mas talvez ele simplesmente fosse bom em esconder isso.
—Acho que não há nada que eu possa fazer para conter meus sentimentos conflitantes por causa do que eles me criaram — disse ele. Sua voz era baixa, um rosnado. —Tive quase um século para aceitar o que sou. Alguns nunca o fazem. Mas com o tempo, vem a capacidade de controlar. — O dele estava parado. —Por mais que eu quisesse provar você, eu não fiz. Porque você não me deu permissão e estava em uma posição comprometida. Se você decidir me dar seu sangue, por sua própria vontade, isso me deixaria de joelhos. Eu faria de você minha rainha, seu sangue como néctar para ser adorado e tratado com respeito. Gosto de você. Mas não vou tirar de você de má vontade. Você entende?
Kelia voltou para sua água e engoliu o resto. Como ela deveria responder a isso? Ela não conseguiu. Seu corpo, entretanto, e ela não queria que ele percebesse. Mas ela tinha certeza de que sim. Se ele pudesse cheirar as mudanças em seu corpo, ele notaria.
—Posso ser uma Sombra e posso ter meus... momentos de raiva, de quando esse outro eu, essa besta que tento obstinadamente conter, se liberta e assume o controle. Mas quando se trata de você, Kelia, juro pela minha vida que nunca vou machucar um fio de cabelo do seu corpo — disse ele. —Seu consentimento, se você me honrar com ele, o tornará muito mais doce.
Kelia assentiu, sua garganta ficando seca mais uma vez. Ela queria se servir de um terceiro copo d'água, mas achou que seria um pouco excessivo.
—Kelia, quando eu vi aquelas marcas em seu corpo...— Drew apertou sua mandíbula com tanta força que estourou antes de girar em sua bota e se dirigir para a janela. O céu negro estava cheio de estrelas que cintilavam como vaga-lumes. A lua estava cortada ao meio, esperando até ver sua companheira.
—Rycroft foi quem danificou você, sim? — Ao aceno de Kelia, Drew continuou. —Interessante, porque os treinadores raramente fazem o trabalho sujo eles próprios. Exceto Rycroft. Não quando tem a ver comigo. Ele tornou isso pessoal.
—Todo mundo te odeia, Drew, — Kelia disse, lentamente colocando seu copo no balcão. —Por que você acha que Rycroft está tornando isso pessoal quando você é um inimigo natural da Sociedade?
—Há uma história entre Rycroft e eu — disse ele. —Uma história cheia de sangue e fúria. Eu me banharia em seu sangue e consideraria um banho vitorioso, se pudesse.
Kelia sentiu a pele pálida, embora seu corpo ainda parecesse carregar o peso do mundo sobre os ombros. Houve uma centelha de vermelho em seus olhos escuros, uma sugestão da besta mascarada em uma bela concha. Suas presas brilharam sob o brilho da meia-lua. Elas pareciam afiadas e pontiagudas, prontas para afundar em algo macio.
—Quando ele descobriu que você me ajudou, quando descobriu que tínhamos um relacionamento de natureza sexual — disse Drew, — eu sabia que ele iria machucá-la. Eu sabia que ele iria te machucar porque fazer tal coisa me machucaria.
Kelia se virou para a bacia de água. Ela podia ver seu reflexo na água, seus cachos dourados já tentando escapar de sua trança. Havia olheiras e seus lábios não tinham a cor usual. Ela estava cansada. Excesso de trabalho. Estressada. Ela não tinha chegado a lugar nenhum com seu pai e por que a Sociedade achou sábio mandar matá-lo. O diário dele era enigmático, na melhor das hipóteses, e ela odiava ler as mesmas passagens sem parar, na esperança de encontrar uma pista, algo que ela sabia que havia perdido.
—Eu não entendo. — Ela disse, ainda sem olhar para ele. Ela não podia, embora não tivesse certeza do porquê. Parecia que havia um peso entre eles, um peso que poderia se transformar em outra coisa. E Kelia não achava que estava pronta para explorar isso ainda.
—Você é louca, então? — Havia um tom áspero em sua voz, mas ele não foi rude.
Kelia se virou para ele.
—Eu me importo com você, Kelia. Achei que minhas ações deixaram tudo claro. Arrisquei muito quando vim ver como você estava depois de sua chicotada. E eu arrisco muito agora, vindo...
—Talvez seja um risco, mas é algo que você faz por si mesmo tanto quanto faz por mim, — ela respondeu, sua voz tensa. —E isso me coloca tanto risco quanto a você. Portanto, não finja que está aqui apenas por mim, quando tenho quase certeza de que deseja ver onde estou no meu progresso de rastrear Wendy Parsons.
—Você descarta meus sentimentos por você? — Drew perguntou.
Kelia desviou o olhar e mudou seu peso. Ela não tinha certeza do que dizer. Embora ela não conhecesse Drew Knight bem o suficiente para decifrar se ele estava manipulando seus sentidos ou sendo genuíno, ela gostava de acreditar que ele não diria algo a menos que realmente quisesse dizer isso. Porque uma parte dela - uma parte maior do que ela pensava - queria que Drew Knight se preocupasse com ela.
Ela quase riu do que havia se tornado: uma mulher que ansiava por uma Sombra do Mar para cuidar dela. Era quase ridículo demais para dar algum crédito.
—Sentimentos — disse Kelia. —Você é capaz de ter sentimentos?
Ele correu os dedos pelos cabelos antes de deixar cair a mão para bater em sua coxa. Ela odiava o jeito que ele olhava para ela. Então, novamente, ela odiava que ela fizesse a ele uma pergunta como essa, depois de tudo que ele tinha feito por ela.
—Você ainda me vê como uma besta, então? — Ele perguntou, sua voz tremendo de raiva, com paciência contida. —Eu posso sentir as mesmas coisas que você sente. Posso sentir raiva e frustração. Posso sentir raiva e paixão, fome e desejo e luxúria. Posso sentir desespero e perda, tristeza. Eu sinto o que você sente, talvez mais do que o que você sente, porque estou aqui há muito mais tempo e tenho muito mais dor para carregar. Você é jovem, inocente e mais vulnerável. Você não sabe nada do que eu passei. E você nunca vai.
Kelia respirou fundo e desviou o olhar. Suas bochechas queimaram de vergonha.
—Eu considero você alguém de quem gosto, Kelia Starling, — ele continuou, — quer você acredite em mim ou não. E eu juro para você, vou me vingar de Ashton Rycroft pelo que ele fez a você, independentemente do que isso possa me custar.
Isso despertou o interesse de Kelia. —O que isso pode custar a você?
Drew se endireitou. —Digamos que Rycroft é associado de alguém importante na minha vida — disse ele. —E aquele associado tem muito controle sobre mim, quer eu queira ou não. E não me surpreenderia se Rycroft usasse você, torturasse você, para me machucar.
—Certamente Rycroft sabe que você não tem fraquezas e, portanto, ele não pode usar ninguém, especialmente eu, contra você — disse Kelia como se fosse óbvio. —Talvez eu possa admitir que somos amigos. Mas amigos...
—Eu já sei o que você pretende dizer, — Drew estalou. —Sombras do Mar não tem amigos, Kelia. Apenas aliados e associados. Não amigos. Especialmente eu.
—Emma?
—Emma é alguém em quem confio e respeito — disse ele. —Nós dois estamos procurando a mesma pessoa. Uma aliança seria muito benéfica para nós. Mas eu não a consideraria minha amiga.
—Então o que nos torna amigos? — Ela perguntou, inclinando a cabeça para o lado.
—Eu confio e respeito você, assim como eu faço por Emma, — Drew disse. —A diferença é que eu gosto de você. Isso não quer dizer que eu não goste de Emma. Mais uma vez, acho sua companhia agradável. Ela é uma das poucas pessoas com quem posso falar. É bastante difícil falar com minha própria espécie, considerando minha idade e como minhas crenças são muito diferentes quando comparadas com o que devemos acreditar. Mas, ao contrário de Emma, sinto-me atraído por você de várias maneiras incomuns. Quero ter certeza de que você está bem e, se não estiver, quero ter certeza de que vou cuidar de você.
Kelia balançou a cabeça. Não era isso que ela precisava ouvir agora, mas era exatamente o que ela percebeu que queria ouvir dele.
—Encontrei Wendy Parsons em um livro-razão da biblioteca — disse ela. Ela precisava mudar de assunto, precisava falar sobre algo mais do que apenas sentimentos e Sombras e como era uma impossibilidade que eles estivessem relacionados de alguma forma. —Depois de discutir isso com uma bibliotecária, encontrei esses registros particulares de entidades sobrenaturais. Wendy Parsons é uma bruxa e ela está aqui. Eu só não sei onde.
—Como? — Drew perguntou. —Como você sabe disso?
—Há uma estante proibida nas câmaras do conselho — disse Kelia. —Encontrei o nome dela em um livro-razão com um caldeirão ao lado. Isso geralmente significa que o nome de pessoa é uma bruxa. Certo, eu sabia que as bruxas existiam, mas não sabia que eram imortais. Ela está viva desde o início do século dezesseis. Uma conhecida sua, talvez?
Drew cruzou os braços sobre o peito e olhou pela janela. —O que te faz dizer isso?
Kelia inclinou o cabelo para que seu cabelo caísse sobre o ombro e ela começou a brincar com as pontas. Ela desejou estar mais perto da bacia de água; ela teria jogado água nele em um instante.
—Nós estudamos você, sabe — ela disse a ele. —Eu tive que escrever um artigo sobre você. Se eu pensei que sua história pessoal - o que sabemos disso, pelo menos - predispôs você a escolher ser uma Sombra do Mar.
Isso pareceu chamar sua atenção. —Você acha que foi uma escolha? — Ele perguntou, sua voz tão mortal quanto seus dentes pontiagudos, brilhando sob o brilho prateado do luar.
Kelia abriu a boca. Ela não tinha certeza se estava prestes a se desculpar ou se iria se defender. Mas antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, uma batida forte na porta os interrompeu.
CAPÍTULO 12
Kelia abriu a porta, seu coração disparado contra o peito, apenas para encontrar Charles. Por um momento, ela quase esqueceu que Drew Knight estava enfiado em seu guarda-roupa.
O que Charles estava fazendo aqui?
—Charles. — Ela murmurou, então pigarreou e se posicionou na frente da fresta da porta. Ela esperava que Drew fosse inteligente o suficiente para ficar onde estava, mas ela não queria correr nenhum risco.
Se Charles descobrisse sobre sua associação contínua com Drew Knight e como não havia terminado, mesmo depois de receber a chance de redenção por meio da reabilitação, ele contaria a Abigail. Ele contaria a Rycroft. E tudo pelo que ela trabalhou tão duro seria em vão. Ela provavelmente seria morta, e qualquer esperança de descobrir por que seu pai foi assassinado seria em vão.
—O que você está fazendo aqui? — Ela perguntou. Ela não se preocupou em esconder a suspeita de seu tom ou de seu rosto enquanto o olhava.
Charles não era um sujeito de aparência horrível. Ele tinha olhos azuis como a meia-noite e cabelo escuro preso em um rabo de cavalo frouxo. Ele era alto e magro e, há muito tempo, queria cortejar Kelia. Ela o considerava um conhecido na melhor das hipóteses, mas mudou de ideia depois que ele traiu seu relacionamento com Drew Knight para Rycroft. Ele era a razão pela qual ela tinha essas cicatrizes subindo e descendo pelas costas. Ele foi a razão pela qual ela quase morreu de infecção. Ele era a razão pela qual ela era uma Cega agora. Não importava para ela que ele estivesse preocupado com ela. Se ele apenas tivesse se importado com seus próprios negócios, nada disso teria acontecido.
—Eu só... — ele começou, mas suas palavras vacilaram. Ele olhou para o chão de madeira, suas bochechas ficando vermelhas com o que parecia ser vergonha. —Eu só queria verificar você.
—Depois de dois meses? — Ela perguntou. —Charles, você foi o motivo...
Ela se conteve antes que pudesse terminar, apenas porque tinha certeza de que Drew seria capaz de ouvir o que ela disse. Ela tinha certeza de que ele podia ouvir Charles. Como ele não sabia quem a traiu, ela não queria dar a ele nenhum motivo para sentir necessidade de protegê-la, como se ele tivesse esse fardo que agora carregava por causa dela. Por causa do que ela fez por ele. E agora ele sentia que devia a ela, embora ela tecnicamente devesse a ele. Talvez essa tenha sido a única razão pela qual ele a salvou, por que ele foi compelido a lhe dizer coisas tão ridículas quanto o quanto ele preferia ouvi-la dizer seu nome. Não havia sentimentos reais por trás disso, nenhum significado. Ele fez isso porque se sentiu culpado pelo que ela fez por ele - como ele estava livre e ileso enquanto ela estava presa e com cicatrizes.
Mas isso não poderia ser verdade. Ele pediu que ela fosse embora. Ela escolheu ficar. E ele não se sentiria culpado pelo que fizera por ela se não se importasse genuinamente com ela.
Charles pigarreou, lembrando-a de que ela não podia se perder em seus pensamentos.
—Eu só acho que você tem muita coragem de vir aqui à noite depois do toque de recolher, quando você sabe que eu estaria sozinha, — ela continuou. —Você contou a Rycroft sobre meu relacionamento com Drew Knight...
—Eu salvei você de seu relacionamento com Drew Knight, — Charles apontou, franzindo a testa. —Se não fosse por mim...
A pouca paciência de Kelia com Charles desapareceu. Tudo o que ela não queria dizer caiu para fora dela e ela não poderia impedir, mesmo que tentasse.
—Se não fosse por você, eu não teria essas cicatrizes nas minhas costas pelo resto da minha vida, — ela disse, sua voz firme e baixa. —Se não fosse por você, eu não teria quase morrido de infecção por sangramento por causa das chicotadas que recebi. Se não fosse por você, eu não seria reduzida a uma Cega, uma casca do que já fui.
—Eu não vou me desculpar por mantê-la segura, — Charles disse, e havia mais paixão em seu tom do que ela tinha ouvido falar dele em todo o tempo que o conheceu. —Eu entendo que você estava colocada em uma posição precária onde você teve que escolher entre ser uma Assassina e se casar. A maioria das mulheres se rebela contra ambos e escolhe outra coisa por um tempo, até que esteja pronta para fazer uma mudança notável. Eu pensei que talvez... —Ele deixou sua voz sumir, dando um passo em direção à porta. Ele pareceu pensar melhor e deu um passo para trás.
—Você pensou o quê? — Kelia exigiu, estreitando os olhos. Seu aperto na maçaneta aumentou, os nós dos dedos ficando brancos.
—Eu pensei que se eu lhe desse seu tempo, você veria a razão eventualmente. — Disse ele.
Kelia não pôde evitar ficar um tanto chocada com o tom dele; Charles era muitas coisas, mas feroz não era uma delas.
—Você não fez. E foi então que decidi te seguir. No minuto em que percebi que você estava em um relacionamento, fui para Rycroft.
—Então era a Sombra do Mar que o preocupava ou o relacionamento não era com você?
—Kelia...
—E isso foi antes ou depois de você me chantagear para ir ao Festival de Outono com você? — Ela continuou não esperando realmente uma resposta a nenhuma de suas perguntas; não era como se ela pudesse confiar em qualquer resposta que ele desse. Ela soltou a maçaneta da porta, com medo de bater na cara dele se não a soltasse.
Ela ouviu um estalo atrás dela e parou. Ela esperava que Drew não fizesse algo precipitado. Talvez esta não fosse a melhor hora para discutir sua história sórdida com Charles. Embora, considerando como Charles era um Assassino e não deveria estar aqui em primeiro lugar, não havia nenhum momento em que Kelia pudesse pensar em quando essa conversa ocorreria. E essa conversa precisava ocorrer.
Charles abriu a boca, mas Kelia interrompeu, seus pensamentos sobre Drew Knight desaparecendo por enquanto.
—Eu sei — disse ela. —Você foi para Rycroft antes. Você configurou a coisa toda. Foi por isso que fui interceptada naquela noite. Porque eles já sabiam de mim.
—Eu não vou me desculpar por salvar você, Kelia. — Ele repetiu, seu queixo erguido com orgulho.
—Nem você vai se desculpar por usar minhas escolhas a seu favor, — disse Kelia. —Deixe-me dizer uma coisa verdadeira, Charles. Você não me salvou - você me arruinou. Você não tem ideia do que eu suportei porque você estava com ciúmes. Não vamos fingir que é mais do que isso.
—Eu não entendo! — Charles exclamou.
Kelia olhou para ele.
Eles olharam ao redor do corredor, mas não parecia que a explosão de Charles tivesse chamado a atenção. A última coisa que os dois precisavam era que alguém descobrisse que Charles tinha aparecido depois do toque de recolher. Ele poderia escapar com um tapa no pulso; para ela, as coisas seriam muito piores. Ela já tinha uma reputação manchada e, embora Charles não fosse alguém em quem ela pensasse dessa forma, ela não seria capaz de explicar sua presença depois do expediente.
—O que você poderia ter visto naquele Sombra do Mar para ter feito você querer desenvolver tal relacionamento com ele? — Ele perguntou, sua voz caindo para um sussurro áspero. —Ele é um monstro que não tem a capacidade de cuidar de você da maneira que você merece ser cuidada. Ele só quer você por um motivo e apenas um motivo. Suas decisões arruinaram você, Kelia, você não vê isso? Sua reputação é irreparável. Nenhum homem vai querer você como esposa se souber que sua virgindade foi dada não apenas a uma Sombra do Mar, mas também Drew Knight. Você pode nunca ser uma Assassina novamente porque ninguém aqui será capaz de confiar em você. Você está arruinada.
Kelia apertou a mandíbula. —Há mais coisas na minha vida do que escolher entre casamento e assassinato — disse ela. —Deixe-me dizer uma coisa, Charles. E marque, porque é claramente algo que você precisa ouvir. Meu relacionamento com Drew Knight não resultou de algum tipo de rebelião porque fui forçada a decidir. Aconteceu porque ele me entendeu mais do que qualquer outra pessoa que eu conheço, talvez ele me conheça melhor do que eu mesma.
Charles empalideceu. Seus olhos se encheram de nojo e ele balançou a cabeça uma vez. Kelia não sabia se era porque ela estava vocalizando seu relacionamento com Drew Knight ou se ela estava sendo mais agressiva com seu tom do que normalmente era.
Kelia agarrou a maçaneta mais uma vez. —Eu acredito que você não vai contar a ninguém, Charles, — ela continuou, — porque então você teria que explicar o que está fazendo na minha porta tão tarde da noite sem escolta. — Ela fez uma pausa, deixando suas palavras afundarem. —Meu relacionamento com Drew Knight foi algo que eu escolhi porque eu queria. Eu queria cada pedaço disso. Se isso me faz perder perspectivas, tudo bem. Eu nunca quis essas perspectivas de qualquer maneira.
—Você parece estar perigosamente apaixonada, Kelia, — Charles disse, olhando para ela como se ela fosse um fantasma, uma aparição, algo que o chocaria completamente. —Por uma Sombra do Mar.
Kelia ficou em silêncio por um longo momento, seu silêncio pairando entre eles como uma adaga, esperando para cair. —Eu acho que é hora de você ir, Charles.
Charles abriu a boca, pronto para dizer mais, mas fechou-se, apertando a mandíbula com tanta força que estourou. Com um último olhar, ele se virou bufando e saiu pisando duro.
Kelia soltou um suspiro lento. Outro estalo atrás dela a lembrou de que ela não estava sozinha, e ela imediatamente fechou a porta. Ela desejou poder tê-la trancado, não querendo que alguém entrasse. Quando ela se fechou, ela se virou, apenas para encontrar Drew Knight posicionado ao lado de sua cama, esperando para atacar. Ela se assustou com a visão, nunca o tendo visto tão... intimidante.
Seus joelhos estavam dobrados, seus braços colocados firmemente atrás dele, ombros retos. Seus olhos estavam estreitados, a mandíbula travada, os lábios franzidos. Seu corpo se enrolou, pronto para saltar.
—Quem era aquele? — Cada palavra que saiu da boca de Drew foi cortada, como se cada palavra fosse sua própria frase.
O medo subiu por sua espinha, deixando arrepios em seu rastro. Ela engoliu em seco.
—Era Charles. — Ela disse, sua voz quase hesitante.
—Você nunca o mencionou antes.
Kelia detectou uma leve suspeita em seu tom, como se ele sentisse que ela estava escondendo algo dele, uma informação que ele deveria ter sido informado.
—Por que eu teria? — Ela perguntou, dando a ele um olhar que disse a ele a quão irritada ela estava com sua linha de perguntas. —Ele não era relevante para o nosso trabalho. E mais do que isso, ele não era uma ameaça ao nosso objetivo.
—Ele chantageou você, para que você comparecesse ao Festival de Outono com ele — disse Drew lentamente. —Você foi com ele?
—Eu não tive outra escolha — disse ela, jogando as mãos para fora. Ela se afastou da água, então seu corpo ficou de frente para o dele. —Não podia arriscar que tudo pelo qual trabalhei fosse sabotado porque fui descuidada e Charles cruel. Na verdade, não foi tão ruim quanto pensei que seria, até que tentei falar com você naquela noite...
—Foi assim que você foi pega? — Drew interrompeu. Seu corpo inteiro estava posado, ouvindo. —Você ia me ver? Por quê?
Levou um momento para lembrar por que queria ver Drew em primeiro lugar - a noite estava borrada, e tudo que ela conseguia se lembrar era luz intermitente e dor. Dor excruciante e insuportável. Mas, à medida que ela pensava nisso, aos poucos, isso começou a voltar para ela.
—Minha amiga e colega de dormitório estava morrendo, — ela disse lentamente. —A Sociedade a envenenou usando maquiagem. A mesma substância paralisante foi encontrada no corpo de meu pai, eu acredito. Ele de alguma forma lutou contra seu atacante, mas ele não podia fazer muito, e não demorou muito para que ele fosse consumido. A Sociedade pretendia fazer exatamente a mesma coisa com Jennifer. Bem, não tenho certeza se era o mesmo método de morte. Eles, no entanto, a paralisaram e isso a deixou extremamente doente. — Kelia pigarreou. —Eu consegui estabilizá-la e estava correndo para contar a você. Pensei que talvez você soubesse por que a Sociedade faria isso com seus Assassinos e talvez como eles foram capazes de inventar algo com um efeito paralítico.
Drew fez uma pausa, deixando as palavras dela penetrarem. Ele passou a mão no queixo, pensando profundamente. As sombras na escuridão se misturaram com o brilho do luar, fazendo com que o espaço entre as maçãs do rosto parecesse vazio.
—Eu conheço alguém que pode ser capaz de descobrir como e o que a Sociedade foi capaz de fazer para alcançar tal coisa. — Observou ele.
—Então eu espero que você faça, porque eu não tenho certeza do que eles farão quando perceberem que ela não está usando maquiagem. Que ela não está ficando doente como planejado.
—Por que você foi ao Festival com aquele menino se não queria? — Drew perguntou, caminhando lentamente até Kelia. Havia uma intensidade nele da qual ela não conseguia se livrar. Era como se aquele agente paralítico viesse diretamente de seus olhos; isso a enraizou no lugar, impedindo-a de respirar.
—Eu não queria arriscar que a Sociedade descobrisse sobre minha investigação sobre a morte de meu pai — ela explicou, em voz baixa. —Se eles acham que escaparam de alguma coisa, é menos provável que saiam de seu caminho para apagar seus rastros, remover evidências contundentes que possam revelar a verdade, olhar por cima do ombro para ver se alguém notou algo suspeito.
—Eu também não queria que eles rastreassem meu envolvimento na descoberta de pistas de suas verdadeiras intenções — ela continuou. —E talvez, por último, eu não queria que eles descobrissem meu envolvimento com você. Proteger você permite que eu me proteja.
Foi só depois que ela terminou de falar que ela percebeu que Drew Knight estava bem na frente dela, a um fôlego dela.
—Mentirosa. — Disse ele. Se ele inclinasse a cabeça para baixo, seus lábios estariam nos dela.
Kelia engoliu em seco. Ela não conseguia contar as vezes que se imaginou beijando Drew Knight, fosse por escolha ou acidente. Ela não queria admitir que estava pensando em beijá-lo agora.
—Você se preocupa comigo também, Kelia Starling, — ele continuou com a mesma voz rouca. —Se não o fizesse, não teria enviado Jennifer até mim com esse aviso. Você não teria se colocado em risco por mim. Você teria me entregado no minuto em que foi pega. Apenas admita isso. Diga! Diga que você se preocupa comigo.
A garganta de Kelia ficou seca. Seria tão fácil para ela dar um passo à frente, ceder ao que ele queria - o que ela mesma queria - e soltou um suspiro trêmulo.
—Eu também me importo com você. — Ela conseguiu dizer.
Ele pareceu surpreso que ela admitisse algo tão diferente dela. Sua boca se abriu, enfatizando suas maçãs do rosto salientes.
—Eu sabia — disse ele, sua voz brincalhona, seu sorriso deslizando mais em seu rosto esculpido. —Viu? Eu sabia que você se importava comigo. Por que você sempre é tão teimosa, Kelia Starling? Por que você precisa se esforçar apenas para admitir algo que eu já sei? Você já sabe?
Kelia olhou nos olhos de Drew. —Quem é Wendy Parsons?
A pergunta saiu de sua boca antes que ela pudesse detê-la. Verdade seja dita, ela não queria que Drew lhe contasse essas coisas, coisas que ela adorava e a deixava corada e sem fôlego, sem saber quem era Wendy Parsons para ele. Ela não queria jogar nenhum jogo. Ela não queria que ele dissesse nada bonito, a menos que essas palavras significassem algo para ele.
Ele apertou suavemente os dentes. Kelia tentou ler o olhar, mas não conseguiu.
—Você mesma disse, — ele disse lentamente. —Ela é uma bruxa. E isso é tudo que você precisa saber. Obrigado. — Seu tom de voz a deteve. Algo mudou. Algo de que ela não tinha certeza. —Por completar sua parte na barganha. Você encontrou Wendy Parsons. Você me disse que ela estava em algum lugar aqui. Isso foi tudo o que foi exigido de você. Não vou pedir que você se arrisque novamente.
Ele estendeu a mão. Kelia olhou com cautela.
—O que é isso? — ela perguntou. Ela não segurou sua mão.
—Eu não entendo, — Drew disse. —Eu ajudei você a provar que seu pai foi assassinado, você me ajudou a localizar a Sra. Parsons. Nosso relacionamento está completo, não é? Afinal, não somos amigos.
Kelia cerrou os dentes para não dizer nada, embora não quisesse nada mais do que discutir. Ela odiava que ele aparentemente preferisse fazer comentários fazendo isso da maneira mais prejudicial. Ela não achava que ele era capaz de magoá-la com palavras. Talvez tenha sido isso que ele sentiu quando ela disse a mesma coisa.
—Suponho que não, — ela conseguiu dizer.
—Vou lhe dar um conselho a respeito do seu pai, pois parece muito importante que você resolva o motivo por trás do assassinato dele — disse ele. —Você é teimosa e não consegue ficar satisfeita sabendo que a Companhia das Índias Orientais queria seu pai morto.
Kelia não disse nada. Em vez disso, ela colocou a mão no quadril proeminente, esperando.
—Ele estava encarregado de um programa muito importante e muito secreto que só o conselho conhece. — Disse Drew.
Kelia suspirou, sua respiração instável. Ela não conseguia desviar o olhar de Drew Knight, mesmo que tentasse.
—E Wendy Parsons? — Ela perguntou. —O que você pretende fazer com ela?
Drew deu de ombros, virando-se dela para ir em direção à janela aberta. Quando ele se segurou no corrimão, ele olhou por cima do ombro.
—Tenho certeza que você vai descobrir, Assassina. — Ele disse antes de desaparecer na noite.
CAPÍTULO 13
Como não havia aulas hoje, Kelia pensou que seria a melhor hora para descobrir por que Wendy Parsons estava sendo mantida pela Sociedade. Ela tinha ficado sem tempo ontem antes que ela pudesse descobrir algo novo. Ela não deveria estar voltando para as câmaras do conselho, mas se ela não voltasse, ela não iria encontrar as respostas de que precisava desesperadamente. Ela não se deixaria ser prisioneira aqui por nada.
Kelia se vestiu e quebrou o jejum com mingau e suco. Ela manteve a cabeça baixa, sem olhar para ninguém nem falar com ninguém. Mesmo do interior da fortaleza, ela podia ouvir o estrondo do trovão lá fora. Uma tempestade estava aqui e não iria parar por um tempo. Ela sorriu. O momento perfeito para fazer pesquisas. Todos provavelmente estariam em seus quartos, e o trovão mascararia qualquer ruído que ela pudesse fazer.
Quando ela alcançou as câmaras do conselho, ela fez uma pausa, verificando um corredor e depois outro. Até agora, ela estava limpa. Ela correu para as portas da câmara, então deslizou de joelhos para que pudesse olhar pelo buraco da fechadura. Ela esperou, ficando de pé em sua altura total, caso precisasse sair correndo.
Seu batimento cardíaco ecoou em seus ouvidos. Ainda assim, ninguém apareceu. Mesmo assim, nenhum som.
Ela se ajoelhou e puxou um grampo do cabelo, depois o enfiou no buraco da fechadura. Com dois gestos, ele clicou. Ela se levantou mais uma vez e abriu a porta, entrando e fechando a porta atrás dela.
—Saia.
Kelia se virou para encontrar Daniella em pé no canto da sala, uma jarra de água na mão. Kelia pensou que elas haviam percorrido um longo caminho alguns dias atrás, mas agora, o olhar de Daniella parecia absolutamente enfurecido quando ela fixou os olhos nos dela.
—O que aconteceu? — Kelia perguntou em uma voz suave. Ela olhou ao redor da sala, tentando descobrir por que Daniella estava aqui e por que ela voltou a agir tão cruel.
—Saia, Sombra — disse ela novamente com os dentes cerrados, lembrando Kelia de um cachorro rosnando. —Não pise nesta sala comigo aqui.
—Do que você está falando?
—Não se faça de boba comigo, Kelia, — ela retrucou. —Você está pesquisando o seu pai, não está? É por isso que você está aqui, nas câmaras do conselho, não é? O que mais você poderia querer saber?
Kelia não contaria a Daniella o que estava pesquisando. Por enquanto, Daniella presumiu que estava fazendo uma pesquisa sobre seu pai, que era como Kelia planejava mantê-la. Contanto que a afastasse de Drew Knight.
—Do que você está falando? — Kelia perguntou.
Daniella colocou a jarra de água na mesa, a água espirrando enquanto sua mão tremia. —Wendy Parsons.
—Ok. O que isso tem a ver com meu pai?
—Wendy Parsons, — ela repetiu, seu aperto na alça do jarro tão forte que seus nós dos dedos ficaram brancos. —Você tem alguma ideia de quem ela é?
—Uma bruxa — disse Kelia lentamente. Sua mente estava correndo rapidamente, tentando pensar em onde Daniella iria levar essa conversa e como ela poderia se defender contra isso. —Eu encontrei o nome dela em um livro-razão e...
Daniella soltou a jarra de água e empurrou os ombros para trás, alcançando sua altura máxima enquanto se aproximava assustadoramente de Kelia. Mas Kelia não se intimidou. Ela não achava que deveria estar.
—Esse livro-razão pertence à Sociedade, — disse Daniella, sua voz um sussurro fatal. —São as notas da Sociedade sobre todas as entidades sobrenaturais. Sombras do Mar, bruxas, sereias. Havia outro indicador ao lado do nome dela, ou você ignorou completamente esse fato?
—Por que você está aqui? — Kelia perguntou.
—Você não entenderia. — Ela estalou os nós dos dedos. —Assim como você não entende o que essa chave significa. Até um simplório decifraria seu significado.
—Do que você está falando? — Kelia repetiu. Ela estava começando a ficar frustrada por não entender o que estava acontecendo.
—Uma chave, — disse Daniella. Outro passo mais perto. Um brilho ameaçador. —Havia uma chave ao lado do nome dela. Lembra daquilo?
Kelia pensou por um momento antes de concordar. —Sim.
—Você sabe o que essa chave significa? — Daniella pressionou, sua voz ainda tensa. —Você sabe o que esse símbolo significa?
Kelia balançou a cabeça.
—Depois que você saiu, fiz algumas pesquisas sobre o que você estava fazendo — disse Daniella. —Achei que fossem livros contábeis que rastreavam o sobrenatural em geral, registros coletados pela Sociedade. — Ela jogou o braço para o lado, indicando a estante, e Kelia teve que se conter para não estremecer. —Eu estava errada. Estes foram os registros que a Sociedade criou.
—O que isto quer dizer? — Kelia não estava tentando ser difícil. Ela tinha várias perguntas e respostas insuficientes, e ela não conseguia ter uma conversa civilizada. Ela não conseguia controlar seu tom e estava acostumada a controlar tudo.
—Uma chave, — disse Daniella. Ela flexionou os dedos, olhando para eles, evitando Kelia completamente. —Você é uma tremenda idiota. Não posso acreditar que estou me incomodando com você. Isso significa que a Sociedade mantém a pessoa trancada à chave.
Os olhos de Kelia se arregalaram. —O que significa que Wendy Parsons está aqui. — Kelia bateu em seu queixo. —Eu sabia. Eu sabia. Mas onde? — Ela falou mais para si mesma do que para Daniella. —Claramente, algo que requer uma chave. Em algum lugar escondido...
Daniella bufou. —Nem perto, — ela murmurou. —Você acha que a Sociedade tem apenas um local onde operam?
Esta era uma questão delicada. No que dizia respeito a Kelia, a Sociedade operava em Port George e era isso. No entanto, ela sabia que eles tinham aliados em posições importantes. A Companhia das Índias Orientais criou a Sociedade, o que significava que controlavam a Sociedade. Se Wendy Parsons - e qualquer outra entidade paranormal com uma chave ao lado de seu nome - estivesse sob a custódia da Sociedade, poderia não estar na fortaleza. Poderia ser em outro lugar, em algum lugar de controle da Companhia das Índias Orientais.
Wendy Parsons, uma bruxa. Sob custódia da Sociedade.
Ela balançou a cabeça, mais para si mesma do que para Daniella. Por que Drew Knight precisava saber onde estava uma bruxa? Ele mesmo não sabia disso? Ele não poderia obter essa informação sozinho, ou, pelo menos, de Emma, especialmente se fosse verdade que a própria Emma também era uma bruxa? Talvez ela tivesse contatos ou habilidades que ajudariam a rastrear Wendy.
—O que? — Daniella perguntou, batendo o pé, as mãos em punhos e colocadas nos quadris.
—Nada. — Não havia tom defensivo, nem atitude. Kelia estava muito imersa em pensamentos para se preocupar com o olhar de Daniella.
—Você sabe alguma coisa sobre bruxas, ou você está tão envolvida em seu Sombra do Mar que não percebe que estamos cercados pelo sobrenatural? — Daniella perguntou. Parecia que ela estava tentando insultar Kelia, mas Kelia não entendeu dessa forma.
Kelia piscou uma vez e olhou de volta para Daniella. —Eu não sei por que a Sociedade iria querer ter uma bruxa sob sua custódia. — Ela admitiu.
Daniella baixou a cabeça, sacudindo-a. Estava claro que ela estava frustrada com Kelia.
—Você pode parar com isso? — Kelia perguntou, sua voz baixando então era apenas um sussurro. Ela não podia correr o risco de ninguém ouvir sua conversa ou pegá-la aqui e levá-la para Rycroft. Tudo pelo que ela trabalhou tão arduamente escaparia por entre seus dedos. No entanto, ela estava adquirindo informações adicionais, informações valiosas. Ela não conseguia explicar, mas tinha a sensação de que Daniella ia lhe contar algo importante, a peça final do quebra-cabeça que faria com que todas as outras se encaixassem. —É claro que você sabe algo que eu não sei e, em vez de me contar tudo de uma vez, está insinuando coisas e depois ficando com raiva quando eu não entendo. Pare de jogar este jogo e apenas me diga.
A sala ficou paralisada. Kelia não sabia como explicar a atmosfera, mas mudou. Mudou de alguma forma. Ela olhou ao redor, procurando por algum ouvido que pudesse ou não estar escutando sua conversa.
Ela deveria ter percebido isso antes: Daniella sabia de coisas. Ela sabia das coisas como Kelia sabia das coisas. Kelia não sabia se ela tinha um contato externo que lhe dissesse essas coisas. Havia uma boa chance, se fosse esse o caso, de Daniella alimentá-los com informações privilegiadas. Faria sentido ela saber o que a chave simboliza, que Wendy Parsons era uma bruxa.
—Você está me dizendo que realmente não sabe? — Daniella perguntou, sua voz cheia de dúvidas.
Kelia sentiu suas unhas cravarem na pele macia da palma da mão. Depois de todas as suas relações com Daniella, ela tinha certeza que teria luas crescentes permanentemente embutidas em sua pele.
—Você honestamente acredita que se eu acreditasse, continuaria a falar com você? — Kelia perguntou. —Daniella, por alguma razão desconhecida, você absolutamente me detesta. Eu não fiz nada para você, e você sai do seu caminho para tentar tornar minha vida miserável. Ontem, você agiu civilizadamente comigo. E hoje, você chega e essa civilidade desaparece completamente. Não tenho ideia do que fiz para ofendê-la desde a última vez que conversamos, e não sei o que fiz para ofendê-la antes. Tudo o que sei é que você está dançando em torno de seus motivos por um tempo agora, e em vez de perder nosso tempo, eu agradeceria se você realmente me desse uma resposta em vez de jogar esses jogos.
Danielle olhou para ela, um olhar indecifrável em seu rosto. Ela passou os dedos pelos cachos vermelhos emaranhados. Ao contrário de Kelia, parecia que Daniella não tinha escrúpulos em estar no meio das câmaras do conselho, o confronto escrito em seu rosto como palavras em uma página de um livro.
—Você não aprendeu nada com o diário de seu pai? — Ela perguntou, sua voz um silvo agudo.
Kelia congelou. Como diabos Daniella sabia sobre o diário de seu pai? Isso havia sido dado a ela meses atrás, logo após sua morte. A princípio, ela suspeitou de quem o havia dado a ela, mas então ela percebeu que provavelmente era um Cego. Ela nunca tinha descoberto por que um Cego iria querer ajudá-la e como eles saberiam que seu diário faria o trabalho, mas acabou em seu quarto antes que Rycroft ou qualquer pessoa do conselho o descobrisse.
Um cego.
—Você, — ela disse. —Você me deu o diário.
—Do que você está falando? — Daniella sibilou. Ela parecia confiante em sua rejeição da pergunta de Kelia, mas Kelia viu sua hesitação. Ela a pegou e salvou em suas memórias, para que pudesse se lembrar quando precisasse.
—Eu não sou tão estúpida quanto você me faz parecer, — Kelia disse, seu tom neutro. —Aquele diário não foi entregue a mim imediatamente. Alguém enfiou para mim dentro de outro livro. Apenas a pessoa que fez isso saberia que eu tenho.
Daniella abriu a boca, mas Kelia sentiu que era para instigar mais discussão, então ela continuou antes que Daniella tivesse a chance de falar.
—Mas há mais do que isso também. Você sabe mais do que um Cego comum. E por alguma razão, você tem me ajudado. E agora, por algum motivo, você vai negar? Eu não te entendo. Talvez se eu entendesse, isso me ajudaria a descobrir seu papel em tudo isso.
—Você sabe alguma coisa sobre mim? — Ela perguntou com os dentes cerrados. —Sobre quem eu era antes disso? Antes de vir aqui? E não me refiro a ser uma Cega. Quero dizer, se tornar uma Assassina.
Kelia queria reagir, queria dizer algo, mas achou que seria melhor se não o fizesse. Ela esperaria que Daniella lhe contasse, sem lhe dar motivos para se abster de dizer qualquer coisa.
—Minha mãe era uma bruxa, sua idiota, — Daniella disse. —Meu pai era um homem rico que odiava minha mãe assim que descobriu o que ela era, e ele me odiava tanto quanto a odiava. Ele me mandou aqui, esperando que eu fosse reabilitada.
—Eu pensei que você fosse uma Assassina.
—Eu era, — disse Daniella. —Por insistência de Abigail. Por que você acha que ela foi rebaixada a cega? Abigail não sabia nada sobre mim. Apesar de tudo, ela ainda tinha fé em mim. Mas Rycroft descobriu e... —Ela se interrompeu, seus olhos brilhando. —O que eles fizeram comigo, eu nunca vou te perdoar.
—Eu? — Kelia explodiu. Ela imediatamente olhou ao redor, mas a sala permaneceu intocado. Ninguém podia ouvir seu grito - pelo menos, ela esperava que não. —O que eu poderia ter feito para você? Sou um ano mais jovem e mal sabia quem você era.
—Suponho que seria errado da minha parte culpar a filha pelos pecados do pai dela, — Daniella disse lentamente. Ela não achou graça, nem estava brincando. Tudo o que ela era, pelo que Kelia podia ver, estava furiosa. —Mas todo mundo parece pensar que vou lançar um feitiço sobre eles. Acredite em mim, eu o faria se pudesse.
—Pecados do pai? — Kelia perguntou. —O que você quer dizer com isso?
Daniella deu um passo para trás e se virou. —Não posso segurar sua mão por tudo, Starling, — ela murmurou. —Talvez você precise ler o diário de seu pai e descobrir por si mesma.
Kelia apertou a mandíbula e desviou o olhar. Ela começou a andar. Sua energia estava acumulada e ela precisava tirá-la. Ela precisava de uma saída.
Do que diabos Daniella estava falando? Ela tinha lido o diário de seu pai várias vezes e nenhuma passagem mencionada...
As páginas que faltavam. Havia páginas faltando. Daniella estava se referindo a algo dessas páginas perdidas?
Não.
Não tinha como.
Seu pai não era o homem como os rumores o pintaram. A raiva explodiu mais uma vez.
Kelia caminhou até Daniella e agarrou seu ombro, puxando-a para trás.
—Que diabos... — Daniella começou.
—Você não vai falar do meu pai e se afastar de mim. — A voz de Kelia era baixa e mortal. —Como você ousa ler o diário do meu pai. Os segredos dele não são seus para contar.
—E ainda assim, você é muito estúpida para descobrir seus segredos por si mesma, — Daniella retrucou. Ela agarrou o braço de Kelia e o soltou com um movimento de pulso. —Não me toque.
—Diga-me o que você está insinuando — disse Kelia, os dentes cerrados. —Você parece saber mais sobre meu pai do que eu. Faça algo construtivo pelo menos uma vez e me diga.
—Seu pai é responsável por um programa de reprodução que força bruxas a acasalar-se com as Sombras do Mar e criar monstruosidades. — Ela cuspiu. Ela olhou Kelia de cima a baixo.
—Você é uma maldita mentirosa. — Disse Kelia. Suas palmas estavam úmidas. Seus joelhos tremeram. Sua cabeça ficou quente de raiva, com a emoção correndo direto para sua cabeça com tanta pressa.
—Eu sou? — Ela cruzou os braços sobre o peito e encostou-se nas pilhas. —Você quer dizer que leu o diário inteiro e não consegue descobrir?
—E você quer dizer que leu o diário do meu pai sozinha? — Kelia perguntou. O silêncio nas câmaras do conselho foi alto. Não fez nada para marcar a fúria que fez Kelia tremer. —O que lhe dá o direito?
—Vou usar todos os meios para entender o que aconteceu com minha mãe, — disse Daniella, cruzando os braços. —Em seu diário, seu pai confessa seus crimes.
—Que crimes? Ele não fez tal coisa!
—Releia o diário, Kelia, — Daniella disse. Foi a primeira vez que ela usou o nome verdadeiro de Kelia em vez de algum insulto amargo. —Talvez ele não afirme isso tão obviamente, mas seus crimes estão presentes.
—Se você sabia disso, por que foi legal comigo ontem? Por que me ajudar ainda agora? Suas crenças claramente não são novas. — Isso era o que Kelia não entendia. —Você me ajudou a descobrir quem é Wendy Parsons. Você me ajudou a entender que ela está aqui, provavelmente em algum lugar da Sociedade. E, no entanto, só hoje você está pior do que o seu eu miserável de costume.
Daniella deixou cair os braços ao lado do corpo. —Como eu disse, qualquer meio necessário. Eu não estava sendo legal com você, Sombra. Eu estava usando você. — Ela colocou as mãos nos quadris. —Eu precisava saber o que você sabia. Eu precisava saber por que você estava tão terrivelmente interessada nos livros. Você tem amigos em lugares perigosos, Kelia.
—E agora você tem o que quer de mim? — Kelia perguntou. —Então está tudo bem para você me tratar como um lixo porque está com raiva do suposto envolvimento do meu pai em algum programa de reprodução
—Envolvimento? — Daniella gritou.
Kelia se virou para a porta. Ela não tinha ideia de onde o conselho estava e quanto tempo duraria. Ela não sabia se eles voltariam. Eles precisavam sair. Se elas fossem pegas, seria ruim.
—Nós devemos ir, — Kelia sussurrou. —Continuar esta conversa em outro lugar.
Daniella estendeu a mão e varreu a jarra de água da mesa. A água salpicou ambas as pernas e a jarra retiniu contra o chão.
—Não é conveniente? — Daniella disparou. —Você me implora para falar com você, então quando você não gostar das minhas respostas...
—Shh. Você vai nos fazer ser pegas.
Daniella se aproximou tanto de Kelia que mal havia espaço para respirar entre elas, mas conseguiu colocar a mão no pequeno espaço para cutucar Kelia no peito. —Eu. Não. Dou a mínima, —ela rosnou. —Sua família já roubou de mim tudo que eu sempre gostei.
—Meu pai era um membro do conselho consultivo, — Kelia disse, empurrando a mão de Daniella, mas fazendo questão de não se afastar dela. —Ele saiu em missões. Quando fiquei mais velha, ele deu um passo para trás para que pudesse se concentrar em mim.
—É isso que você diz a si mesma? — Daniella perguntou, inclinando a cabeça para trás para rir. Ela girou para longe de Kelia, ainda sorrindo, embora seu humor parecesse sublinhado com raiva. —Diga-me, você pode dormir à noite usando sua lógica?
—E você - você pode me olhar nos olhos e me dizer que meu pai organizou e criou algo tão covarde quanto um campo de procriação, submetendo mulheres inocentes a serem estupradas por Sombras do Mar? — Ela perguntou com os dentes cerrados. —Eu devo acreditar nisso - sobre algum programa de que ninguém nunca ouviu falar antes?
—Oh, existe, — disse Daniella. —E só porque você não sabe sobre isso, não significa que todos estão tão no escuro quanto você.
—Ele era meu pai. Eu teria descoberto. Isso nem parece com ele!
—Bem, é ele, Sombra. E ele não apenas o criou — ela continuou. —Foi ele quem propôs tal ideia ao conselho em primeiro lugar. Depois que sua mãe foi morta, ele culpou as Sombras e as sereias. Foi pela canção da bruxa do mar que ele se apaixonou, pela canção que ele seguiu. E quando ele percebeu seu erro, era tarde demais para ela. Em sua raiva e amargura, ele criou este programa para punir bruxas, enquanto ao mesmo tempo criava demônios sem alma que ele podia controlar para seus próprios propósitos nefastos, para se vingar daqueles que mataram sua mãe. Mas tudo o que ele estava fazendo era tentar escapar da verdade.
—A verdade? — Kelia repetiu.
—A verdade, — Daniella repetiu. —Que seu pai matou sua mãe.
Antes que Kelia pudesse se conter, ela se lançou sobre Daniella. A cabeça de Daniella bateu contra a prateleira atrás dela, mas Kelia não cedeu. Ela se posicionou em Daniella e continuou a bater em seu rosto até que seus punhos doeram demais que ela foi forçada a parar.
Daniella riu, o sangue escorrendo de sua boca como se ela própria fosse uma Sombra. —Negue o quanto quiser, Kelia, mas é a verdade — disse ela. —As bruxas, bruxas terrestres normais, estão pagando por causa do desejo de vingança de seu pai. Você conhece Emma, não conhece? Você a conhece, assim como eu. Ela me contou tudo ontem à noite. Tudo. Quem quer que você esteja trabalhando - se ainda for Drew Knight - está mentindo para você. Eles só queriam confirmar que Wendy Parsons estava aqui. Você foi usada.
Um soco final nocauteou Daniella. Mas a dor nos nós dos dedos de Kelia não era nada comparada à dor em seu coração.
CAPÍTULO 14
Depois de sua altercação com Daniella, não foi surpresa que sua presença fosse necessária no escritório de Abigail. O que a surpreendeu foi a presença de Rycroft em um escritório tão pequeno. Ele parecia desconfortável, embora estivesse sentado atrás da mesa de Abigail e ela fosse deixada em pé atrás dele.
Um cavalheiro, com certeza.
Ambos tinham carranca em seus rostos. Abigail tinha decepção em seus olhos enquanto Rycroft parecia zangado e divertido ao mesmo tempo. Como isso era possível, Kelia não tinha ideia. Ela se endireitou sob seu olhar pesado, suas costas gritando de dor.
—Srta. Starling — disse Rycroft, inclinando-se contra a mesa. Seus lábios estavam curvados no que parecia um sorriso alegre. —Obrigado por se encontrar comigo e sua atual treinadora hoje. Acho que você tem estado bem desde as inflições nas suas costas.
Quer dizer, as imposições que você me deu, ela pensou consigo mesma.
Ela não queria que Rycroft visse sua fúria e o que ela acabara de descobrir, o que Daniella havia revelado a ela e como Kelia ainda se recusava a acreditar, independentemente do sentido que fizesse. Provavelmente não foi uma ideia inteligente atacar Daniella naquele ponto, mas a Sociedade manchou o bom nome de seu pai e Daniella estava apenas adicionando a ele. Ela ficou feliz quando deu um soco no rosto de Daniella. Ela quase desejou que Drew Knight estivesse lá, para que ele pudesse ver que ela seguia seu conselho e usava as armas com as quais nascera.
—Abigail, aqui, disse que você fez grandes avanços em sua reabilitação, — ele continuou. —Ouvi dizer que ela deu a você uma nova tarefa diária. Você enche bacias de água em vez de secar pratos, correto?
Kelia cerrou a mandíbula e cerrou os dedos em punhos apertados que apoiou nas coxas. Ela não sabia por que Rycroft estava abrindo esta sessão de punição óbvia com um prelúdio sobre o quão longe ela havia chegado. A menos, é claro, que fosse para esfregar em seu rosto que depois de seu momento com Daniella, ela fosse regulamentada de volta para Prostituta de Sangue e nada mais.
No entanto, ela sabia que essa partida de xadrez mortal era algo que ela precisava vencer, ou a verdade seria perdida para ela. Mais do que isso, ela provavelmente seria morta da mesma maneira que Jennifer quase foi. Como seu pai era.
Como tal, ela assentiu.
—Bom, — ele disse, pegando a mão esquerda dos óculos e aparentemente ajustando-a. —Imagine minha surpresa, então, quando Beatrice entrou na biblioteca e encontrou você atacando Daniella. A própria Daniella não é inocente, ela também teve uma conversa e uma punição apropriada foi atribuída. Espero que Abigail providencie isso imediatamente.
—Absolutamente, senhor. — Abigail murmurou, com as mãos atrás das costas, os olhos fixos nos pés.
—Qual foi a punição dela?
Kelia desejou que ela pudesse ter retirado a pergunta, mas ela não pôde. Seu antigo eu estava começando a se libertar e ela precisava ter cuidado, porque deixar esse lado dela sair a colocaria em sérios problemas.
Rycroft ergueu lentamente a sobrancelha e Kelia baixou a cabeça de vergonha. Realmente, o ângulo deu a ela a habilidade de revirar os olhos sem que ele visse.
— Lamento perguntar, senhor — murmurou ela, com o rosto vermelho. —Não é da minha conta.
—Muito bem — disse ele, balançando a cabeça. —Srta. Starling, devo confessar, estou tentando decidir o que preciso fazer para deixar claro para você que não toleramos violência contra outros Assassinos.
Kelia quase bufou, mas conseguiu se conter no último minuto. Ela queria mostrar a ele as marcas em suas costas, lembrando-o da não-violência que ele usou contra ela depois que descobriram que ela estava em conluio com Drew Knight. Certo, eles viram suas ações como traição. Ela e Daniella, no entanto, eram duas mulheres que não podiam se controlar.
—Diga-me, minha querida, em suas próprias palavras, por que você e a Srta. Thompson estavam lutando na câmara do conselho? — Ele perguntou.
Kelia não tinha ideia do que Daniella disse a Rycroft. Ela sabia que não podia ser verdade. As histórias precisavam ser as mesmas e, ainda assim, não era como se elas tivessem tempo para se coordenar, se elas pudessem ser civilizadas o suficiente para fazer tal coisa.
—Nós tivemos um desentendimento — ela disse finalmente, —sobre um menino.
Foi a coisa mais estúpida que ela poderia ter dito, e ela odiava ter que se degradar por causa de coisas frívolas, mas era necessário para manter seu segredo. Até certo ponto, ela estava mantendo o segredo de Daniella também, e Daniella estava mantendo o dela.
—Um... menino. — Rycroft não parecia acreditar nela. Ela não podia culpá-lo, porque era a última coisa que ela lutaria contra alguém, e ainda assim, foi a primeira coisa que veio à sua mente. Ele já pensava que ela era uma garota boba. Talvez ela pudesse continuar a manter consistente sua percepção dela.
Kelia concordou. Ela contorceu o rosto para que não parecesse estar aborrecida consigo mesma e com a desculpa que fora obrigada a oferecer a ele.
—Um menino — disse ela. —Daniella o insultou, e isso me ofendeu.
A afirmação, como seu cerne, ainda era essencialmente verdadeira.
—E isso fez com que você a atacasse? — Rycroft questionou, sem se preocupar em esconder sua dúvida.
Kelia deu de ombros, erguendo a cabeça para olhar para ele. —Sei que minhas transgressões anteriores foram inadequadas — disse ela lentamente. As palavras vieram naturalmente para ela, e ela se perguntou se havia uma pequena parte dela que acreditava nelas. —Ao me envolver em um caso com Drew Knight, fui egoísta e imprudente. Não só me coloquei em perigo, mas também coloquei meus companheiros Assassinos em risco. A totalidade da Sociedade poderia ter sido comprometida por minha causa. Graças à misericórdia que você me mostrou, permitindo-me permanecer aqui, com a Sociedade, como uma Cega, eu vejo o erro em meus caminhos.
Rycroft assentiu. Seus óculos escorregavam pelo nariz curto, mas ele não fez nenhum movimento para colocá-los de volta corretamente. Em vez disso, ele continuou a olhar para Kelia com dúvida. Mesmo assim, Kelia percebeu que ele queria acreditar nela porque ela estava dizendo as palavras certas.
Abigail cruzou os braços sobre o peito. Kelia percebeu que ela estava ficando cansada de ficar em pé e fazer de tudo para não ter que se encostar na parede do fundo.
—Como tal, — Kelia continuou, impulsionada pelo conflito em Rycroft, —Eu estou tentando ser melhor. Eu estou melhor. Mudei minha atração do sombrio e perigoso para o admirável e apropriado. Para ser franca, eu gostava de um menino, Sr. Rycroft. Eu gostava de um Assassino. Depois de minhas transgressões, tenho certeza de que ele nunca sentiria por mim - mesmo um pouco - o mesmo que eu sinto por ele. Mas eu considerei uma coisa positiva que minha atração mudou e que os desejos que eu tinha no passado desapareceram.
—Está tudo bem, Srta. Starling, — Rycroft disse, embora sua voz estivesse hesitante. —Mas não tenho certeza do que essa evolução tem a ver com o problema em questão. Você atacou outra Cega. Ela agrediu você. Você tem os arranhões e hematomas para provar isso, assim como ela.
—Estou tentando dizer que voltei meu foco para os homens que são adequados para eu imaginar o casamento — explicou Kelia. —E o fato de ela dizer algo sobre isso só me irritou. Como se ela estivesse desafiando tudo o que trabalhei tanto para obter. No entanto, foi errado atacá-la e sei que devo aprender a controlar minhas emoções.
Por alguma razão, ela se virou para Abigail, que não conseguia mais se segurar e estava encostada na parede atrás dela, com as mãos atrás das costas como se para dar seu apoio. Seus lábios estavam franzidos em profunda suspeita. Era como se ela pudesse dizer que Kelia estava mentindo. Como, Kelia não tinha a menor ideia. Talvez ela estivesse lendo Abigail errado.
—Adequado? — Rycroft perguntou. Ele empurrou a cadeira para trás, erguendo o queixo para avaliá-la com mais facilidade. —Por favor. Elabore.
O coração de Kelia disparou. Essa foi a parte do discurso em que ele se concentrou? Ela não esperava que ela fosse solicitada a explicar isso.
—Alguém que a Sociedade apoiaria se eu escolhesse o casamento. — Confirmou Kelia.
Os lábios de Rycroft se contraíram. Ele pareceu se divertir com o comentário dela. Seus olhos azuis brilhavam por trás dos óculos, e a ponta do nariz brilhava vermelha como uma maçã. Suas bochechas pressionaram contra o fundo de seus olhos, fazendo com que os cantos se enrugassem. Ele parecia muito divertido com o que ela disse. Ela examinou isso em sua cabeça, mas ela não conseguiu encontrar algo que lhe desse motivos para reagir dessa forma.
—É engraçado você mencionar isso — disse ele, —porque tenho a solução perfeita que beneficiaria a nós dois. Para você, isso permitiria que você cumprisse a maior parte de sua reabilitação. Isso provaria sua lealdade à Sociedade e aos seus companheiros Assassinos. Isso nos ajudaria a descobrir muito sobre as coisas que ainda estamos pesquisando. E isso absolveria qualquer punição que possamos ter atribuído a você por seu comportamento com a Srta. Thompson.
O coração de Kelia bateu forte contra o peito. Foi lento e pontudo, quase doloroso. O que quer que Rycroft tivesse em mente, não seria o que ela queria. Haveria um problema. Suas ofensas não seriam esquecidas tão facilmente.
No entanto, se ela pelo menos não parecesse interessada, isso por si só atrairia mais suspeitas, o que significava que suas verdadeiras ações de pesquisar Wendy Parsons e que relacionamento Drew Knight tinha com Wendy Parsons seriam comprometidas.
—Oh? — Ela tentou parecer agradavelmente interessada, mas mal conseguiu evitar que a voz falhasse. —Parece uma oferta generosa, Trenador Rycroft. Posso ainda me dirigir a você como tal?
—Aceite isso e você pode. — Disse ele com um sorriso encantado.
—Aceitar o quê, exatamente? — Kelia perguntou lentamente. Seus dedos se enterraram profundamente nas dobras de suas saias. Seu calcanhar direito começou a estalar contra o chão, e ela teve que se esforçar para acalmar o nervosismo. A última coisa que ela precisava era que alguém reconhecesse sua ansiedade infiltrando-se em gestos inócuos.
Seus olhos a percorreram. Ela ficou tensa, tentando evitar reagir ao seu olhar surpreendentemente lascivo. Rycroft era cruel e frio, cruel e violento. Mas ele nunca tinha sido impróprio de uma maneira sexual com ela ou qualquer outra pessoa pelo que ela sabia.
—Você é fisicamente capaz — disse ele, finalmente encontrando os olhos dela mais uma vez. —Você é agradável aos olhos. Talvez você pudesse usar mais carne em seus ossos, mas isso pode ser corrigido. A única falha que você tem é essa sua boca. Assim como sua colega de quarto anterior - Jennifer Espinosa. No entanto, de alguma forma, seu prometido não parece se importar. Ela está se preparando para o casamento, você sabe.
Kelia não sabia, mas não ousou dizer muito. Poderia soar argumentativo. Em vez disso, ela olhou para Abigail, que parecia muito mais capaz em disfarçar suas emoções do que Kelia, embora Kelia estivesse trabalhando nisso. Era difícil decifrar o que Abigail estava pensando, se ela aprovava o que quer que Rycroft estava prestes a sugerir. Se ela soubesse o que Rycroft iria sugerir.
—Eu sinto falta dela. — Kelia murmurou antes que ela pudesse se conter.
—Imagino que sim — disse Rycroft. Ele se inclinou e abriu uma gaveta. A mesa era claramente de Abigail, mas ele a tratava como se fosse sua. —Posso garantir que você a encontrará novamente, se concordar com os termos.
Ela não queria nada mais do que arrancar seu rosto com os dentes e se banhar em seu sangue. Ele a estava provocando, fazendo-a esperar até que soubesse que a tinha. Ele era como uma víbora, esperando o momento perfeito para atacar.
—Quais são os seus termos? — Ela perguntou. Sua voz estava tensa. Ela queria ficar indiferente, mas não conseguia disfarçar sua impaciência. Era algo em que ela ainda estava trabalhando.
—Antes que eu lhe diga, — ele disse, —você deve concordar com eles. Os Assassinos não estão cientes de muitas complexidades e detalhes que compõem a Sociedade. Mantemos assim para garantir que nossos Assassinos sejam informados, mas protegidos. — Ele puxou uma pasta da gaveta e colocou-a sobre a mesa. —Eu não vou te dizer algo que você não precisa saber. — Ele olhou para cima. —Como você não demonstrou nada além de um comportamento exemplar como uma Cega, eu esperava que você aproveitasse a chance de fazer parte de algo que apenas aumentaria seu status. Afinal, você confia explicitamente na Sociedade, não é?
Kelia ergueu os olhos dos nós dos dedos machucados.
—Tudo bem — disse ela. Ela não parecia satisfeita com a oportunidade, mas não conseguia forçar seu tom a deixar de ser impaciente. —Concordo. — Ela se virou para Abigail, que estava de cabeça baixa para que as longas mechas caíssem em seu rosto e protegessem seu perfil. Quando ela olhou para Rycroft, ele estava escrevendo algo em um papel. —O que eu concordei?
—Ora, minha querida, — Rycroft disse, seus lábios se curvando em um sorriso alegre, —você acabou de concordar em participar de um de nossos programas mais ilustres. Você vai se voluntariar como participante do nosso programa de criação. Parabéns, Srta. Starling. Seus sonhos de matrimônio estão prestes a se tornar realidade, mas não da maneira que você esperava.
A respiração de Kelia desapareceu. Então, Daniella estava certa. O programa de criação era real. E agora Kelia estava prestes a experimentar em primeira mão.
CAPÍTULO 15
Kelia estava curvada sobre a mesa, examinando o diário do pai em busca de qualquer evidência de que o próprio relato histórico da Sociedade havia sido falsificado, de que seu pai não havia criado e dirigido um programa de reprodução que envolvia os cegos e as Sombra do Mar.
Ela não podia mais negar que existia um programa de reprodução. No mesmo dia que Daniella sugeriu, Rycroft recrutou Kelia para isso. Mas isso não significa que seu pai o criou. E ainda faltavam peças. Se o programa de reprodução tinha a ver com bruxas, por que elas precisariam de Kelia - uma Cega - para participar do programa?
E em que posição?
Seu estômago embrulhou com as possibilidades, e ela dobrou a leitura, tentando abafar esses pensamentos com as palavras do diário de seu pai.
Ela mal conseguiu se concentrar na primeira vez que leu o diário dele, pois estava tão dominada pela perda do pai, e agora estava muito distraída com seu próprio destino para encontrar qualquer resposta que perdeu da primeira vez.
Kelia congelou quando uma presença familiar encheu seu quarto. Drew Knight. Ela se levantou e girou em direção a ele, para longe do diário de seu pai.
Ele estava encharcado quando entrou no meio do quarto dela, estragando o tapete.
—Você está ferida? — Ele perguntou.
—O que te faz dizer isso? — Ela retrucou. Ao ouvir como suas palavras saíram, ela fechou os olhos e respirou fundo. Isso não foi culpa de Drew. Nada disso foi culpa de Drew. —Sinto muito, Drew. Tem sido um longo dia.
—Claramente. — Ele caminhou em sua direção, e ela respirou fundo. —Seu rosto... haverá hematomas ao redor dos olhos. — Ele ficou bem na frente dela e ergueu a mão até que segurou sua bochecha.
Surpreendentemente, ela não vacilou. Ela ficou lá e silenciosamente se deleitou com a sensação de sua mão contra a pele. Seus músculos tensos, mesmo sob seu toque. Ela não temeria isso. Ela ansiava por algo para acalmá-la, algo para parar seu coração acelerado.
—Sim, — ela concordou. Seu polegar traçou suavemente a parte superior de sua bochecha. —Eu imagino que haverá.
—Por quê? — Seus olhos voltaram para os dela. Ele parecia pronto para lutar por ela caso ela comandasse, algo que ela não entendia. Ela não se importava com Daniella e sua altercação. Ela não se importou com os cortes e hematomas em seu rosto.
Seus dedos pareciam estar permanentemente cavando em suas palmas, deixando luas crescentes em sua pele. Seus punhos tremeram de raiva, frustração, impotência.
—Meu pai estava... — Ela balançou a cabeça, incapaz de terminar o pensamento.
—O que? — Drew apertou os lábios. Ele estendeu a mão para segurar sua bochecha, mas baixou a mão ao seu lado. Kelia quase se odiou por isso.
Ela não precisava ser lamentada. Ela precisava de respostas, respostas verdadeiras. Ela simplesmente não sabia se Drew Knight era a pessoa apropriada para perguntar. Se ele soubesse em primeiro lugar.
Ele enrolou uma mecha errante de cabelo atrás da orelha e deixou seu toque demorar. —O que há de errado Kelia? Como posso ajudar?
Ele estava tão perto dela, tudo que ele precisava fazer era se inclinar e tocar os lábios nos dela e eles estariam se beijando.
Ela não deveria estar pensando nessas coisas, não quando ela tinha tantas perguntas que se sentia obrigada a fazer. E ainda, mesmo agora, ela estava exausta com a perspectiva. Antes de ser dispensada da reunião, Rycroft informou que ela tinha uma noite para juntar suas coisas antes de ser transferida para onde este programa de criação iria começar. Ela sabia que era uma armadilha. Ela sabia que Rycroft queria controlá-la ainda mais do que já fazia. Não ajudou o fato de ela estar concluindo com sucesso seu programa de reabilitação.
No entanto, ela tinha um segundo motivo para honrar o acordo ao qual ele a enganou. Por mais que doesse a ideia de que seu pai tinha algo a ver com o programa, ela não pôde deixar de se perguntar. Se Wendy Parsons fosse uma bruxa e se a Sociedade a tivesse em suas garras, ela provavelmente estaria no programa. Kelia poderia ajudar Drew participando desse programa sozinha. Ela seria capaz de encontrá-la pessoalmente. Mais do que isso, ela seria capaz de descobrir mais sobre os motivos de seu pai para iniciar tal programa em primeiro lugar.
Sua única preocupação, na verdade, era manter o controle sobre seu papel no programa. Se ela pudesse, ela queria ajudar as meninas que já estavam lá também.
Enquanto a chuva batia em sua janela com grandes gotas consistentes, uma memória do que Daniella havia dito nas câmaras do conselho puxou sua mente: Quem quer que você esteja trabalhando - se ainda for Drew Knight - esteve mentindo para você.
—Diga-me —disse Kelia, dando um passo para trás. —Meu pai criou um programa de reprodução como retribuição pela morte de minha mãe?
Drew inclinou a cabeça para o lado e Kelia o observou com atenção. Ela não o conhecia bem, mas tinha certeza de que o conhecia o suficiente para ser capaz de ler seus olhos.
—O que você quer dizer? — Ele perguntou lentamente.
Ela não sabia se ele a estava testando para ver o que ela sabia ou se estava genuinamente curioso para saber o que ela queria dizer.
Talvez ela não o conhecesse tão bem quanto pensava.
Ela deu um passo em direção à cama. Ela queria desabar nela e dormir pelas próximas quarenta e oito horas. Ela queria se livrar da responsabilidade que sentia em relação a Wendy Parsons e como seu pai poderia ter se envolvido, queria cortar os laços com a Sombra atrás dela. A vida dela ficou confusa com a dele, como se ela estivesse enredada em sua teia. Mas por mais que odiasse, ela ainda precisava dele.
—Deixe-me começar do início — disse ela. —Você sabe que existe um programa de criação aqui? Onde as Sombras procriam com bruxas? Aqui, dentro da Sociedade?
Seu pomo de adão balançou enquanto ele engolia. —Sim, eu estava ciente disso.
Kelia acenou com a cabeça uma vez, lentamente. Ela mudou seu peso e olhou para seu boudoir. A bacia de água foi enchida com água doce. Ela se perguntou a quem havia sido atribuída a tarefa desta noite, enquanto ela falava com Rycroft.
—Você sabia que meu pai o criou?
—Eu estava ciente de que ele estava no comando — disse ele lentamente, suas palavras cuidadosamente escolhidas, provavelmente como sua comida e suas vítimas. Ele poderia corromper seus olhos, mesmo sem tentar se quisesse. Ele era lindo, mesmo nas sombras. —Eu não sabia que ele era o cérebro por trás da operação, se isso for verdade.
Havia uma pulsação na cabeça de Kelia, entre as sobrancelhas. Ela podia sentir que começava a bater rapidamente, o início de uma dor de cabeça chegando. Ela não sabia por onde começar, não sabia que emoção sentir.
Estendendo a mão, ela agarrou o boudoir à sua frente para se apoiar. Tanta coisa aconteceu nas últimas duas horas; era difícil para ela ficar de pé. Suas costas estavam tensas, como se a dor interna fosse emitida fisicamente.
—Por que você esconderia essas informações de mim? — Ela perguntou, abrindo os olhos para travar nos olhos castanhos dele.
Eles eram lindos, lindos demais para ela olhar sem sentir algo dentro dela se mexer. Foi por isso que ela tentou evitar olhar para eles tão frequentemente quanto podia. Agora, porém, esses sentimentos eram diferentes.
—Não achei que fosse pertinente ao que estávamos fazendo. — Disse ele.
Kelia não tinha certeza, mas jurou que viu a culpa brilhar naqueles olhos. Mas tão rápido quanto refletiu, ela se foi.
—Meu pai...— Seus olhos ardiam de lágrimas. Foi tão difícil chorar quando ele morreu. Ela foi acionada por algo - ela nem conseguia se lembrar agora - mas Drew estava lá para envolvê-la em seus braços, segurá-la com força e nunca a soltar. E agora, ele era o motivo dessas lágrimas. Ele era seu pai. Ela não sabia mais em quem ou no que confiar. —Outra Cega aqui disse que meu pai criou o programa para se vingar de bruxas e Sombras. Ele queria ver se ele poderia criar um monstro, um que ele pudesse controlar. — Ele pegou uma mecha de cabelo e afastou-a do rosto dela. —A garota disse que estava claro em seu diário, mas eu li isso e não consigo encontrar nenhuma menção a nada disso,
Drew estendeu a mão mais uma vez para segurar o rosto dela com a mão. Kelia não queria nada mais do que se inclinar em sua carícia, mas ela recuou.
—Não me toque, — ela retrucou. —Não me lembro de ter dado a você o privilégio de fazer isso, e não pretendo nunca mais querer que você faça isso de novo. Mais uma vez, você mentiu para mim.
—Eu não menti, — Drew apontou, embora sua voz fosse insistente, quase desesperada para que ela entendesse. —Eu escondi algo de você para...
—Para quê? — Ela perguntou. —Para me proteger? O que o faz pensar que tem o direito de oferecer essa assistência? Você não é meu pai nem meu amante. Você não tem direito às decisões que tomo. E, mais do que isso, o que te faz pensar que preciso de proteção? Por que você toma essa decisão? Não deveria ser minha escolha? — Ela soltou o boudoir e se afastou dele para que ele não pudesse estender a mão e tocá-la novamente. —O que eu preciso me proteger é de você.
A chuva ficou mais forte, batendo contra a janela com mais insistência. Na maioria das vezes, isso acalmava seus nervos e permitia que ela reformulasse qualquer pensamento flutuante que se tornasse complicado e opressor. Esta noite, entretanto, não havia nada que a faria se sentir melhor.
Ela olhou para os pés de Drew. Havia uma pequena poça de água que ele trouxe da tempestade. Provas que ele estaria deixando para trás se ela não se secasse quando ele fosse embora. Cada vez que ele entrava em sua vida, ele deixava uma bagunça.
—Quem é Wendy Parsons? — Ela perguntou a ele. —Por que ela é tão importante para você?
Drew demorou um pouco antes de responder. Kelia não tinha certeza se ele estava decidindo confiar nela as informações ou se estava tentando descobrir as palavras certas para dizer. Não que isso importasse. Ela sentiu que ele estava escondendo algo dela.
—Wendy Parsons é minha irmã — disse ele. —Ela é importante para mim porque é a única família que me resta.
—Oh. — A resposta deixou Kelia atordoada a ponto de quase perder de vista o que era importante para ela. Ela se fortaleceu, cruzando os braços. —Outra coisa que você escolheu não me contar? Eu perguntaria se havia mais alguma coisa, mas não acreditaria em você, independentemente do que saísse da sua boca.
Com toda a honestidade, ela nunca se sentiu tão brutal antes. Ela sempre foi decidida e cautelosa, mas não se lembrava de ser fria. Era como se algo tivesse mudado dentro dela. Era como se Drew a tivesse traído sobre algo importante demais para ser ignorado. Ela não iria fingir que ele não a machucou. A dor beliscava sua pele e incendiava seu sangue apenas por estar perto dele. Ela quase desejou que ele fizesse uma refeição dela - cortasse sua garganta com suas presas e a bebesse até secar. Seria menos doloroso do que o que ela sofreu atualmente.
Do jeito que estava, ela queria Drew fora de seu quarto, ela queria que ele fosse embora de Port George completamente. Ela o queria longe dela, onde nem mesmo as memórias poderiam chegar até ela. Onde ele se abstinha até de visitar seus sonhos e fazê-la sentir coisas completamente fora de seu controle.
—Você está com raiva de mim. — Afirmou Drew. Parecia haver uma expressão de confusão em seu rosto esculpido, e Kelia não conseguia entender. Ela não conseguia entender o que era tão difícil para ele entender sobre sua raiva.
—Estou furiosa com você. — Ela retrucou.
Ele estava na frente dela em duas longas passadas, suas mãos segurando suavemente seus braços. Ele a forçou a olhar em seus olhos, para ver o quão sério eles estavam.
—Você deve ter cuidado com seu tom de voz — disse Drew. —Você tomou muito cuidado para garantir que estava de volta às boas graças da Sociedade.
Kelia zombou. Seu corpo inteiro estava rígido, mas ela não se afastou dele.
—Você acha que eu ainda me importo com eles? — Ela perguntou. —Você acha que eu me importo em agradá-los? Eles já têm seus planos para mim. O que eu faço agora não vai me atrapalhar ou me ajudar.
—Do que você está falando? — Sua voz estava tensa.
Ela nunca gostara de jogos, mas havia parte dela que não queria nada mais do que fazê-lo sofrer, prolongar isso.
Não que isso importasse.
Se ele não confiasse nela com informações pertinentes, não havia motivo para prolongar as informações que ele descobriria de qualquer maneira. Ele não se importava o suficiente com ela, não a respeitava o suficiente, para deixá-la saber a verdade: a verdade sobre quem era Wendy Parsons e sua importância para ele, a verdade sobre seu pai e o homem terrível que ele estava se tornando.
—O programa de reprodução. — Sua voz falhou. Talvez ela não estivesse tão bem com sua decisão quanto queria que todos pensassem. —Rycroft me designou para isso.
Ela não achou que fosse possível, mas a cor sumiu do rosto de Drew. Ele sempre foi pálido, mas agora ele parecia doente. Como a morte.
—O que? — Sua voz era aguda, uma agulha em tecido grosso. Seus olhos eram adagas, nunca deixando os dela. Seu queixo estava tenso, mal se movendo mesmo quando ele falava.
—O programa de criação...
—Sim. — Ele retrucou.
Ela assistiu com fascinação admirada quando suas presas extraíram de sua boca e deslizaram sobre seu lábio inferior. Seu coração batia forte contra o peito como alguém preso em uma jaula, implorando para ser solto.
—Eu ouvi isso. Eu ouvi o que você disse. Eu simplesmente não entendo.
—Rycroft disse que, para não me punir depois do meu confronto com Daniella, eu poderia me voluntariar para participar do programa.
—Você não recusou?
Ela olhou para ele. —Você não recusa Ashton Rycroft — disse ela. —Minhas costas têm cicatrizes para provar que ele não aceita rebelião com gentileza.
Ele se encolheu com a menção das cicatrizes nas costas dela. —Eu tenho bálsamo — disse ele, — no navio. — Lentamente, suas presas começaram a se retrair. Foi bom que Kelia as tenha visto, no entanto. Ela precisava do lembrete de que ele não era humano, mas um monstro com pele de humano. —Eu posso pegar para você.
—Não quero ver você de novo — disse ela. Ela olhou pela janela, para a chuva caindo no vidro. —Nunca. — Ela lançou seu olhar para encontrar o dele para mostrar o quão séria estava. —Pare de me ajudar. Pare de me fazer favores. Encontrei Wendy Parsons para você. Ela está aqui. Por favor vá.
—Kelia...
—Não. — Ela apertou a mandíbula. —O uso do meu nome de batismo é apenas para aqueles de quem sou amiga. Não desejo ser mais amigável com você.
Drew abriu a boca antes de fechá-la. Ele deu um passo em sua direção, então caiu para trás.
—Eu irei, — ele concordou. —Eu vou. Mas eu prometo a você, Kelia, vou tirar você do programa de reprodução. Vou tirar você da Sociedade. Eu vou proteger você. Marque-me.
—Não preciso nem desejo sua proteção — disse ela. —A única pessoa de quem posso contar sou eu mesma. — Ela endireitou os ombros para a janela mais uma vez. —Agora vá. E não volte mais.
Desta vez, Drew não hesitou. Ele se foi e, embora fosse isso que ela havia pedido, parte disso doía por ela nunca mais o ver, não com sua transferência para o programa de reprodução.
CAPÍTULO 16
Drew Knight não gostava de sentimentalismos. Ele até se recusava a dizer o nome da irmã só porque não gostava de ser lembrado do quanto havia falhado com ela.
A chuva ensopou sua roupa passada, seu cabelo escuro emaranhado em seu rosto. A maior parte de sua tripulação estava em terra. Amavam qualquer desculpa para voltar a uma vida da qual um dia fizeram parte. Agora, eles estavam do lado de fora, olhando para dentro e ressentidos com toda a vida humana que estava a par de tal presente.
O convés estava lustroso de chuva. Ele tinha que ter cuidado onde estava para não escorregar e cair. Não importava o quão gracioso e equilibrado ele fosse, não importava o quão rápido ele se curasse, esta era uma chuva forte e feroz e ele não queria enfrentar as ramificações de ser descuidado enquanto estava nela. Não haveria prorrogação esta noite, e outros piratas estariam cientes disso, planejariam atacar a qualquer sinal de fraqueza, tornando até mesmo um deslize momentâneo mais perigoso do que seria normalmente.
Ele fechou os olhos, o tamborilar contra a madeira tocando uma música que só se ouvia na natureza. A calmaria suave das ondas, contrastando com a batida violenta da chuva, só aumentava.
O problema era que Drew não conseguia se concentrar na beleza do ambiente. O frio beliscava sua pele - algo que ele quase não sentia mais. Na verdade, ele se sentiu pior ao ouvir o que Kelia concordara em fazer do que qualquer outra coisa.
—Aquela maldita garota, — ele murmurou para si mesmo. —Como ela ousa... — Ele deixou sua voz sumir, não acostumado a pensar alto. A chuva escondia sua voz de qualquer ouvido atento, mas ele tinha certeza de que estava sozinho. Até mesmo Emma estava em terra, entretendo fofocas e conseguindo pistas sobre Wendy.
A raiva não conseguia nem descrever como ele se sentia. Ele deixou seus olhos permanecerem fechados, tornando sua audição aguçada ainda mais clara.
O fato de que ela se permitiria ser levada para um lugar tão vil, e então dispensá-lo assim.
Ela pagou por essa informação. Daniella, quem quer que fosse essa Assassina, tinha causado danos a Kelia. O fato de alguém ousar pôr a mão nela foi o suficiente para despertar sua ira. Ele não se importava se seu agressor era homem ou mulher, humano ou Sombra. Se alguém tocasse em Kelia, havia esse instinto de fazê-los pagar de alguma forma. Foi como uma reação; ele nem mesmo teve que pensar sobre isso.
—Você está mais estoico do que o normal. — Disse uma voz, vindo por trás dele.
—Estou surpreso em vê-lo na chuva, Christopher, — Drew disse com um sorriso sarcástico. —Você não está preocupado sobre como isso afeta seu cabelo?
—Você está com um humor particularmente mordaz. — Uma mecha de seu cabelo loiro escuro caiu em seu rosto. —Visitou a Assassina, então? Oh, eu peço desculpas. Ela não é tecnicamente uma Assassina mais, certo? Ela foi reduzida a uma humana esquecida, servindo a homens e mulheres corruptos enquanto eles promovem a violência contra seres inocentes que nunca pediram para ser transformados.
Drew queria se virar e dar um soco na cara do Infante só por falar sobre ela daquela maneira. Em vez disso, ele agarrou a lateral do navio. Ele precisava concentrar sua raiva e frustração em algo, e se Christopher não tomasse cuidado, Drew não teria problemas em colocar esse foco em Christopher.
—Como eles fizeram isso? — Drew se pegou perguntando. Ele precisava mudar de assunto ou então perderia a paciência. Ele prometeu a si mesmo que deixaria Christopher falar com ele sozinho, mas ele não podia aguentar sem saber mais. —Como a Sociedade transformou você?
Christopher franziu a testa. —Quem disse que foi a Sociedade? Eles desempenharam um papel, certamente, mas fui entregue à Rainha pelos Demônios do Mar por uma grande soma. Ela me transformou, mas, considerando que eu não era você, ela me mandou de volta para a Sociedade. Fui feito para matar Kelia. É só para isso que eu sirvo.
Drew bufou, mas seu coração não estava nisso. Ele não tinha certeza de como se sentia sobre essa resposta. Não foi culpa de Christopher; ele não havia pedido por esta vida. Sua resposta, entretanto, explicou porque ele não era tão bestial quanto as outras Sombras que a Sociedade havia criado.
—Quando foi a última vez que você comeu? — Christopher perguntou, olhando para Drew. —Quando foi a última vez que você fodeu?
—Qual é o seu negócio? — Drew explodiu.
—Descobri que quando minha noiva não comia, ela ficava especialmente zangada — disse ele. —Eu assumi a responsabilidade de garantir que ela sempre fosse alimentada. Achei que você poderia compartilhar personas semelhantes. — Ele deu de ombros, olhando para longe de Drew e para o mar.
—Talvez eu precise me alimentar. — Drew disse depois de um momento.
Ele não gostava de admitir que Christopher pudesse estar certo, mas poderia ser útil aguçar seus sentidos e focar no que ele veio fazer em Port George em primeiro lugar. Certamente não era para encontrar Kelia. Mas ele tinha, e não havia como mudar. A alimentação tiraria sua mente da mulher e esperançosamente o impediria de sentir qualquer coisa mais do que já sentia por ela. Já era demais.
Drew se viu mais perto de Kelia e da Sociedade do que gostaria. No entanto, ele não poderia ser especialmente exigente com sua próxima refeição apenas porque estava chovendo e a maioria da população estaria em suas casas, aconchegando-se perto do fogo, tentando se manter aquecido.
Ele passou pela fortaleza da Sociedade enquanto caminhava em direção ao coração da cidade, onde tavernas e lojas estavam fechando. Ele não resistiu e olhou para cima, onde sabia que todos os dormitórios estavam, se perguntando se Kelia ainda estaria acordada após a discussão acalorada.
A parte mais animalesca dele não queria nada mais do que voltar para o quarto dela, olhar profundamente em seus olhos e beijá-la do jeito que ele queria. Ele queria se alimentar de seu sangue puro, sentir o sangue correr em suas veias. Ele queria prová-la.
Ele estava frustrado por como as coisas terminaram entre eles esta noite. Ele queria explicar, que ela confiasse nele novamente. No entanto, ele não se arrependia de mantê-la longe de saber sobre seu pai. Não era prudente para a parceria inicial, e ele não achava que fosse relevante agora.
Greg Starling tomou uma decisão terrível a ponto de até ele perceber seu erro. Ele foi morto por causa dessa percepção. Pelo menos, esse foi o palpite de Drew.
Ele parou de andar para olhar para a imponente fortaleza negra. Parecia mais sinistra agora na chuva do que em circunstâncias normais. Ele queria se envolver na frustrantemente teimosa Assassina e se alimentar dela. Mas ele sabia que tal coisa nunca aconteceria. Não depois do que acabou de acontecer. Ele não achava que ela conseguiria confiar nele depois de tudo o que tinha acontecido, e ele não podia culpá-la por isso.
Ele balançou a cabeça e rastejou em direção o Scarlett. Ele precisava livrar sua mente da Assassina. Ela estava começando a se tornar uma fraqueza e estava afetando sua tomada de decisão.
O Scarlett era uma taverna que sempre era habitada pelo pior dos piores. Emma gostava de frequentar essa taverna apenas porque seria capaz de ouvir a fofoca mais suculenta de prostitutas com boca grande e bolsos pequenos. O dinheiro podia comprar tudo hoje em dia. Também estava cheio de mulheres em busca de um marido, desesperadas para se sentirem amadas e desejadas. Drew detestava tirar vantagem delas, mas também descobriu que eram as mais dispostas e tendiam a não o reconhecer ou fingiam que não o reconheciam. Ele também tinha a melhor oportunidade de fazê-las esquecer que ele estava lá e, em vez disso, ele colocaria memórias de uma noite romântica e feliz.
Quando ele entrou, algumas mulheres olharam para ele com luxúria. Ele sempre soube que era atraente, e o fato de agora ser uma Sombra do Mar só aumentava sua beleza. Ele gosta de aproveitar sua beleza quando estava com fome e precisava se alimentar. Era mais fácil encantar mulheres que queriam ser encantadas por ele do que forçar uma conversa com uma mulher que queria ficar sozinha.
Ele normalmente levava mais tempo para selecionar parceiras em potencial só porque queria ter certeza de que escolheria a pessoa certa para o momento certo. No entanto, seus sentimentos anteriores conflitavam com a necessidade de se alimentar, e ele se viu envolvido em uma conversa acalorada com uma mulher que tinha cabelos loiros e olhos verdes coloridos. Ele não iria admitir em voz alta, mas ela o lembrava muito de Kelia, e ele se permitiu, apenas por um momento, fingir que sim.
Ela não era tão bonita quanto Kelia, mas ninguém era realmente - pelo menos não em sua mente. A mulher também era muito mais paqueradora do que Kelia jamais seria, muito mais física, muito mais aberta.
Deus, ele sentia falta de Kelia, e fazia apenas algumas horas.
Ele enrolou os dedos em torno de seu cutelo. Ele mantinha com ele, mesmo agora. Ele provavelmente deveria ter devolvido a ela há muito tempo, mas ele racionalizou que ela não teria onde armazená-lo, e se a Sociedade ficasse sabendo do cutelo, ela poderia ser punida pior do que já foi. No entanto, sua presença ao seu lado o tranquilizou, o fez sentir-se contente.
Não se passou nem uma hora antes de ele ter encantado sua vítima, e eles se dirigiram para um quarto. Só porque ele tinha a capacidade de apagar memórias, não significava que queria tirar vantagem de alguém. Ele costumava se desafiar a encontrar mulheres atraídas por ele ao invés de usar suas habilidades para seduzi-las a acreditar que o queriam. Alguns homens Sombras, mesmo aqueles em sua equipe, pensaram que aqueles que resistiram e representaram um desafio maior era mais divertido de tentar. Esses Sombras às vezes esqueciam que quando uma mulher dizia não, significava não. Drew não podia proibir a intimidade, mas o estupro era proibido.
Quando eles chegaram ao quarto pitoresco, a mulher fechou a porta e o conduziu até uma pequena cadeira de madeira em vez da cama próxima. Drew se sentou e ela colocou uma perna de cada lado dele, montando nele como um cavalo.
Não demorou muito para que sua boca estivesse na dele, seu corpo pressionado contra seu peito e colo. Seus seios generosos já estavam à mostra, seus seios libertados de seus limites.
Esse contato não deu a ele nada. Não era nem porque ele era um Sombra e não estava mais vivo. Ele simplesmente não queria fazer isso com ela, e só o fazia porque precisava. Porque ele precisava comer. Ele também esperava que estar dentro de outra mulher, estar envolvido em outra pessoa, fosse o suficiente para esquecer Kelia, mesmo que temporariamente.
Assim que a mulher - ele não sabia o nome dela, embora tivesse certeza de que ela o dissera - festejou seus lábios e pescoço, ela começou a despi-lo. Ele a deixou chupar sua pele, deixou marcas por todo seu corpo. Depois do que pretendia fazer com ela, ele poderia pelo menos concordar com esse adiamento. Eles continuaram a se beijar enquanto se moviam para a cama.
Quando seus corpos se conectaram, ele se perdeu no prazer físico. Suas mãos correram para cima e para baixo em seu corpo, exceto em vez de curvas voluptuosas, ele viu uma figura mais modesta, curvilínea, mas magra, com alguns músculos em seu corpo pequeno. Em vez de um rosto muito maquiado, ele viu um rosto simples, mas muito mais bonito. Em vez de olhos cinzentos, ele viu o mar, uma cor verde colorida que ele ainda não vira em todo o seu século nesta terra. Ele viu sardas em seu nariz, ele viu um queixo forte, ele viu cicatrizes para cima e para baixo em suas costas gloriosas.
Ele viu Kelia, linda e perfeita. Ele a viu ansiar por ele, desejá-lo, do jeito que ele a desejava. Ele a ouviu gemer seu nome, ouviu-a perder o fôlego. Ele sentiu as unhas dela descendo por suas costas e reivindicando-o como seu. Ele viu tudo isso claramente em sua mente, que quando ele finalmente gozou, ele gritou o nome de Kelia.
A mulher gritou e começou a golpeá-lo. Demorou um pouco para ele perceber seu engano quando ela o empurrou. Ele caiu para o lado da cama, olhando para o teto, sem ter certeza de como se deixou ficar tão perdido no momento. Certamente a pobre mulher não desejava ouvir o nome de outra mulher, mas Drew não tinha a intenção de ofendê-la.
Suas presas deslizaram para fora de sua boca dolorosamente enquanto a mulher vestia suas roupas e saía furiosa do quarto.
Uma coisa era certa - ele não se alimentou da maneira que pretendia. Ele mal havia terminado seu orgasmo.
O que diabos ele estava pensando?
Ele olhou ao redor do pequeno quarto, perfeito para um marinheiro viajante. A chuva batia contra a janela. Era muito mais alta e mais insistente aqui do que no quarto de Kelia.
—Maldita mulher. — Ele murmurou para si mesmo.
Ela se arrastou para baixo de sua armadura de proteção como um cupim, derrubando-o por dentro. Ele não sabia como isso tinha acontecido. Ele nem mesmo acreditava que ela pretendia que ele se sentisse assim. Claro que não, pelo jeito que ela disse que não queria absolutamente nada com ele no início da noite.
No entanto, ele não podia ignorar a maneira como Kelia o fazia agir. O fez pensar. O fez sentir. Ele não podia mais negar.
Agora que Drew sabia que se importava com Kelia mais do que com quase qualquer pessoa, ele se deparou com o dilema de descobrir o que fazer a respeito.
CAPÍTULO 17
Kelia não dormiu muito naquela noite. Não era por causa do pavor que crescia dentro dela com a perspectiva de fazer parte de um programa aterrorizante destinado a condenar tanto as bruxas quanto os Sombra do Mar sendo usados como punição contra ela. Não foi nem por causa de sua amargura ao descobrir que seu pai não era o homem que ela pensava que ele era.
Kelia não conseguia dormir por causa de sua raiva de Drew Knight.
O fato de ela ser tão apaixonada a enfureceu ainda mais; ela não deveria estar sentindo tais coisas por Sombras, muito menos por ele.
A chuva batia contra a janela de vidro. Não parecia que iria diminuir tão cedo. Kelia não se importou. Ela se sentia em paz com o clima. Parecia que o céu estava passando por sua própria turbulência, e ela não pôde deixar de se solidarizar.
Ela se mexia e se virava, nunca conseguindo encontrar uma posição confortável o suficiente para cair no sono. Quando ela sentiu seu corpo relaxar, ela foi interrompida por seus pensamentos incessantes, furiosos com Drew Knight sobre como ele escondeu tal informação dela. Ela não deveria ter ficado surpresa. Ele reteve informações sobre a Sociedade, reteve informações sobre Wendy Parsons e quem ela era para ele, e reteve informações sobre seu pai.
Na verdade, não havia muito que ele podia dizer a ela.
Cada vez que ela pensava nisso, seus olhos ardiam com lágrimas e ela tentava piscar antes que caíssem. Ela nem sabia mais por que estava chorando.
A tempestade ainda estava caindo do lado de fora quando o relógio no corredor bateu, indicando que eram seis da manhã. Ela não seria capaz de dizer pela janela de seu quarto. O céu estava sombrio e cinza, quase preto, e a chuva continuava.
Foi difícil para ela se levantar da cama. Seu corpo inteiro gritava de exaustão. Por que ela tinha que ser atingida com a habilidade de dormir agora que ela tinha que acordar, quando ela teve a noite inteira para dormir e não foi capaz?
Ela mudou para um vestido cinza simples e sapatos pretos. Rycroft não a instruiu sobre o que ela poderia levar e o que deveria partir. Como tal, ela decidiu levar pouca bagagem e levaria apenas alguns vestidos e sapatos. Ela não tinha muitas coisas, mas tinha o diário do pai e não sabia o que fazer com ele.
Se ela entregasse para a Sociedade, eles saberiam que ela sabia o que realmente estava acontecendo. Mas levá-lo com ela a colocaria em mais risco. Não havia lugar para ela esconder o livro consigo, e sua bagagem certamente seria verificada antes que ela fosse oficialmente admitida. O único lugar em que ela conseguiu pensar em colocá-lo foi de volta no livro que ela recebeu o diário meses atrás, mas só porque eles permitiram que ela trouxesse aquele livro para cá, não significa que ela teria permissão para levá-lo para o programa de reprodução.
Naquele momento, houve uma batida suave em sua porta. Ela olhou para a porta, se perguntando quem poderia estar lá. Era muito cedo para qualquer um de seus companheiros Assassinos, e normalmente a ligação não era permitida entre os Cegos. Ela rapidamente pegou Moby Dick debaixo do travesseiro e enfiou o diário dentro dele antes de colocar o livro em cima de sua bagagem.
Por favor, deixe isso funcionar.
Ela caminhou até a porta, pegando o xale do guarda-roupa e colocando-o nos ombros ao se aproximar. Quando ela abriu a porta, Abigail estava no corredor, já vestida com um vestido preto e branco, seu cabelo puxado para trás com uma fita branca.
—Você fez as malas? — Sua voz estava tensa.
—Achei que tinha mais uma hora antes de chegar à praça. — Respondeu ela, voltando-se para o quarto e suas coisas. Ela não convidou Abigail para entrar, mas também não fechou a porta.
Se Kelia estava sendo honesta, ela não tinha certeza de como se sentia sobre Abigail. Houve momentos em que Kelia sentiu como se Abigail a entendesse, compreendesse o ridículo da Sociedade, como eles eram injustos. Afinal, ela era uma Cega. Ela tinha que ter feito algo para ser despojada de ser uma Caçadora.
—Eu não estou aqui para comentar sobre seu atraso. — Abigail murmurou.
As botas de Abigail prenderam-se no azulejo, hesitante em entrar. A porta se fechou e Kelia se virou, surpresa ao encontrar Abigail endireitando todas as rugas em seu vestido. Kelia achou que não havia nenhum presente, mas isso não impediu Abigail de tentar.
—Então por que você está aqui? — Kelia perguntou. Ela sabia que estava sendo ousada. Ela sabia que estava sendo rude. Ela não se importou de qualquer maneira.
Ela ruminou longa e profundamente durante a noite. Sua raiva por Drew Knight persistia, certamente, mas havia mais do que isso. Ela percebeu que agora não valia absolutamente nada para este lugar. Ela não era uma Assassina; ela nem era mais uma Cega. Se suas piores suposições fossem verdadeiras, ela era um pedaço de propriedade, um animal, a procriar com o que a Sociedade considerava os seres mais vis desta terra.
Ela não se importava com o que dissesse ou fizesse, não se importava se isso a colocaria em apuros ou se ofendesse alguém. Ela estava cansada de observar seus movimentos, de segurar o rosto com um olhar frio de indiferença quando tudo que ela queria fazer era reagir. Se ela não podia se redimir, se não havia outra maneira de restabelecer seus privilégios de Assassina, por que tentar? Por que ser algo para quem não a queria?
Kelia puxou a manga de seu vestido. Ela desejou que ela pudesse simplesmente fugir. Mas ela ainda precisava saber por que seu pai foi morto. Mais do que isso, independentemente de sua frustração com Drew, ela se sentia responsável por Wendy e todas as outras Assassinas presas lá. Seu pai criou este lugar. Talvez houvesse alguma maneira de ela ajudá-las. Talvez houvesse alguma maneira de ela ajudar Wendy e redimir seu pai, pelo menos um pouco.
Abigail abriu a boca. Ela não passou pelo boudoir do quarto. Kelia não sabia se era porque Abigail não tinha sido oficialmente convidada ou se havia algo mais que a impedia de fechar a distância. Abigail era tipicamente forte e segura. Apesar do mesmo fogo em seus olhos escuros, sua postura era fraca. Tímida.
—Bem? — Kelia persistiu, caminhando até seu guarda-roupa e abrindo as portas. Ela estava quase terminando de empacotar tudo. Uma pequena caixa estava em sua cama, cheia de coisas que ela pretendia levar.
Abigail brincou com os dedos antes de desviar o olhar com um suspiro exasperado. Quase parecia que ela não sabia se deveria contar a Kelia o que quer que estivesse em sua mente. Kelia não se importava de um jeito ou de outro, e ela desejou ter os últimos minutos de liberdade para si mesma antes de ser condenada à procriação.
—Há algo que você deve saber sobre o programa de reprodução para o qual Rycroft está enviando. — Abigail disse, olhando para a porta, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse estar ouvindo do outro lado.
—Eu já sei que meu pai foi a pessoa que criou e implementou o programa — disse Kelia, sua voz cheia de frustração. —O que mais você poderia ter a dizer sobre isso?
Abigail apertou o peito com a mão. Ela não poderia dizer se Abigail foi sincera em sua reação ou se ela estava fingindo. De qualquer forma, Kelia não ficou impressionada. Ela se voltou para as roupas em sua cama e começou a dobrá-las.
—Eu, — Abigail disse, deslizando as mãos pelos lados. —Eu não sabia disso.
Kelia baixou o olhar e começou a mexer no material de sua saia. Provavelmente havia muitas coisas que Abigail não sabia.
—O que você quer? — Kelia perguntou.
—Por que você tem um tom? — Abigail perguntou, dando um passo em direção a Kelia. —Você optou por participar do programa. Você poderia ter dito não.
Kelia bufou. —Estou amarga — disse ela. —Estou amarga e ressentida. Todos esses meses eu fui uma Cega, mordendo minha língua, controlando minha raiva, mascarando meus sentimentos, só para poder descobrir por que alguém da Sociedade iria querer matar meu pai. E agora, descobri que ele criou um programa tão vil, tão odioso, que não sei por que ele não foi morto antes.
Abigail desviou o olhar, seu rosto cheio de vergonha. —Ele te amava muito, Kelia. — Ela murmurou.
—Você não precisa me dizer isso. — Kelia parou de arrumar o quarto e fechou os dedos em punhos, tentando controlar sua raiva. Seus punhos tremiam com uma variedade de emoções, e nem mesmo cravar as unhas nas palmas das mãos poderia impedir. —Meu pai me amava com certeza, mas isso não o torna uma boa pessoa. O amor por sua filha não apaga seus crimes perversos. — Ela fez uma careta. —E quem é você para me dizer uma coisa dessas?
—Seu pai confiou em mim, — Abigail murmurou. —Nós... eu...— Ela se virou, caminhando até a janela. —Eu estava apaixonada por seu pai, mas ele ainda estava comprometido com sua mãe. Com você. Eu não poderia culpá-lo em seus sentimentos. Ele sempre foi claro onde estávamos, ele e eu. — Ela olhou por cima do ombro para Kelia e deu um sorriso aguado. —Acho que você recebeu o diário dele?
Kelia olhou para sua cama. O livro ainda estava em cima de sua bagagem. Ela ainda não tinha certeza se deveria levar o livro com ela ou deixá-lo aqui.
—Foi você? — Ela perguntou lentamente.
Abigail assentiu, pressionando os lábios. —Não diretamente — disse ela. —Mas, após minha promoção, recebi a responsabilidade de atribuir aos Cegos suas tarefas diárias. Como tal, instruí Daniella a levá-lo para seus aposentos antes que os treinadores pudessem invadir o quarto e se livrar das evidências contundentes.
—Daniella leu. — Disse Kelia.
Outro aceno de cabeça. —Ela fez. O que estava bom. Não havia nada terrivelmente revelador no diário.
—Deve ter havido. Ela revelou essas coisas ontem, e foi aí que trocamos golpes.
—Daniella sabe de coisas, — Abigail disse. —É em parte por isso que ela é e sempre será uma cega. Talvez ela tenha reagido a algo nas páginas que faltam no diário de seu pai. Ela leu o diário antes que eu as arrancasse. Na verdade, sua reação é o motivo pelo qual peguei as páginas em primeiro lugar. Foi por isso que me preocupei como você poderia reagir, por que eu as mantive longe de você todo esse tempo.
A cabeça de Kelia estalou para Abigail. Seu corpo inteiro congelou. Ela não sabia como respirar - algo que ela era totalmente capaz no segundo em que foi trazida a este mundo. E agora, neste momento, algo tão natural como respirar havia desaparecido completamente de suas habilidades.
Deve ter sido por isso que Daniella presumiu que sabia mais sobre seu pai do que ela mesma. Talvez ela não tenha percebido que Kelia tinha recebido o diário depois do fato. Ou talvez ela presumisse que Kelia simplesmente sabia de todas essas coisas - como se seu pai tivesse contado a ela, e de alguma forma ela soubesse o que estava acontecendo.
Mas isso não significava que Daniella estava certa sobre o que disse - não é? Até Kelia ler as páginas por si mesma, ela se recusava a julgar seu pai dessa forma.
Antes que Kelia pudesse responder, Abigail continuou: —Seu pai manteve o diário para o caso...
—Caso o quê?
—Você sabe por que, — Abigail disse, um toque de desejo em sua voz suave. Ela olhou para o diário. Kelia quase sentiu como se estivesse testemunhando algo que não deveria, colocando-se entre dois amantes quando eles se comunicavam apenas com os olhos. Então, balançando a cabeça como se tivesse sido forçada a sair de um transe, Abigail redirecionou sua atenção para Kelia. —A Sociedade é construída sobre mentiras apresentadas como absolutas. Somos ensinados a nunca questionar, a ver através de uma realidade cuidadosamente elaborada. Seu pai elaborou sua própria realidade naquele diário. Ele registrou o máximo que pôde da verdade.
—E você removeu páginas. — Kelia lançou a acusação como uma adaga.
A chuva suave da manhã bateu com mais força na janela.
—Para proteger você. — Os dedos de Abigail voltaram a mexer na saia de seu vestido. —Você não precisava saber o que ele fez. Na verdade, ele fez isso por sua mãe. Por você.
—E agora veja o que sua criação pode fazer comigo—. Kelia não pôde deixar de rir do absurdo absoluto de tudo isso. Foi um gesto estrangeiro em uma atmosfera sombria. Seu sorriso não trouxe sol. Trouxe exaustão, trouxe ironia, trouxe tudo menos alegria. Ela limpou a voz. —Como Daniella as encontrou? As páginas que faltam?
—Ela veio ao meu escritório para entregar algo e bisbilhotou, como ela costuma fazer, — Abigail disse em um rosnado. —Ela tem habilidades especiais que a ajudam a encontrar coisas que ela nem sabe que realmente existem.
Kelia continuou a arrumar suas roupas até que sua mala estivesse cheia. Ela olhou para o diário. Finalmente, ela pegou o livro e caminhou até Abigail.
—Talvez você deva pegá-lo. — Disse ela, entregando o diário a sua treinadora.
A boca de Abigail ficou frouxa. Ao estender a mão, Kelia teve certeza de que pegaria o diário dela, mas no último momento, ela largou a mão e a chicoteou nas costas.
—Eu não poderia — disse ela. Seus olhos estavam cheios de tristeza e... algo mais. Algo que Kelia não conseguia decifrar. —O diário foi feito para você. Cada pedaço disso. Mesmo estes. — Ela colocou a mão no bolso do vestido e tirou duas folhas de papel.
—E o que devo fazer com isso? — Kelia perguntou. Ela deixou cair o braço que segurava o diário ao lado do corpo e estendeu a mão para pegar os papéis. Eles pareciam nítidos e delicados, rígidos com segredos. Ela teve que conter sua empolgação em segurá-los nas mãos. Ela não queria que Abigail visse o quanto ela queria isso.
—Leia-os, — Abigail disse, seu foco ainda no pergaminho. —Ou não. Mas eles são seus. Eles pertenciam ao seu pai. Eram palavras dele e de ninguém mais.
Kelia deslizou as páginas que faltavam entre a capa de couro gasta do diário. —O que isto quer dizer?
—Isso significa que todos aqui têm sua própria realidade do que é a verdade — disse Abigail. —Seu pai escreveu sua verdade. Tenho outra e tenho certeza de que o próprio Rycroft tem outra. A verdade não é algo tangível. Não existe verdade absoluta. Mas isso não torna a verdade de ninguém menos verdadeira. — Ela respirou fundo. Sua voz estava mais suave do que o vento que começou a soprar lá fora. —É minha opinião que você deve ler suas próprias palavras e compreender sua própria verdade. Você não precisa concordar com isso, mas pelo menos ele mesmo está lhe dizendo isso. Em suas próprias palavras.
Kelia deu um passo à frente. —Você sabia todo esse tempo. Por que me dizer agora? Por que roubar essas páginas em primeiro lugar se elas foram feitas para mim?
—Eu pensei que estava protegendo você. — Abigail desviou o olhar. —Mas agora... agora eu não sei se vou ver você de novo, e eu sabia que não poderia viver o resto de meus dias sem honrar os desejos de morte de seu pai. Talvez então, eu - você - possa finalmente me livrar do fardo que ele deixou para você. O fardo de nunca saber verdadeiramente a verdade.
Kelia não sabia o que dizer. Talvez ajudasse a descobrir por que ele foi morto. Ela não diria isso a Abigail, entretanto. Quase parecia que havia mais na história, mais do que o que Abigail estava revelando.
—Obrigada. — Disse Kelia.
Os olhos de Abigail se encheram de tristeza, Kelia desviou o olhar. Ela não precisava ser atacada com tanta tristeza quando estava em guerra com suas próprias emoções distintas, girando dentro dela como uma tempestade de vento.
—Por favor, — Abigail disse, sua voz oscilando à beira do desespero. —Não me agradeça. Seu pai gostaria que você o tivesse.
Com essas palavras, ela deu passos largos e quase bateu a porta atrás dela. Talvez o vento tenha dado um empurrão extra.
Kelia levantou o diário. Ela quase foi obrigada a deixá-lo para trás, assim como queria deixar seu pai. Mas ela tinha a sensação de que não estaria livre de seu fantasma até que ela descobrisse o fundo da verdade - qualquer que fosse a verdade.
CAPÍTULO 18
Drew Knight nunca se sentiu mais envergonhado em toda a sua vida. Ele tinha feito amor com inúmeras mulheres. Estar vivo por um século faria isso com qualquer um, menos com uma bela besta com energia invejosa e uma predileção por trazer prazer a si mesmo e às mulheres que encontrava. Ele podia não se lembrar de rostos ou nomes, ele poderia não se lembrar do prazer ou das consequências, mas ele sabia, sem dúvida, ele nunca havia chamado sua amante de outro nome além do dela.
O fato de ele ter gritado o nome de Kelia durante seu clímax foi o suficiente para fazer seu sangue ferver e seu coração - seu coração morto - tremer de frustração.
Ele nem tinha se alimentado, então, quando voltou ao navio, estava com fome e zangado, e qualquer um que ousasse tentá-lo seria feito em pedaços. Ele ainda estava considerando se tal declaração era literal ou figurativa.
Ele não encontrou consolo em ir dormir e ainda era muito cedo para esperar que algum de seus tripulantes voltasse. Drew estava sozinho apenas com seus pensamentos, e aquele não era o lugar que ele queria estar.
Ele decidiu virar as costas para a cidade, para a fortaleza e para Kelia e, em vez disso, focar no mar. A chuva criava ondulações na água suave, o céu escuro e nublado pintando o oceano com um tom feio de preto. As sereias estariam se retirando para seu círculo do inferno - elas não poderiam atrair marinheiros para a morte com o som delicado da chuva.
Ele apertou a mandíbula só de pensar em sereias. Elas eram o pior tipo de bruxos, condenadas ao mar por sua Rainha.
Ele cuspiu na lateral do navio. Infelizmente, ele não conseguiu ver atingir a água com satisfação. Em vez disso, ele teria que estar bem com o conhecimento que tinha.
A rainha vampira, a primeira de sua espécie, criou os demônios do mar para controlar os mares. Se ele não a odiasse com cada fibra de seu ser, ele poderia ter dado crédito a ela por seu brilho. A mulher era inteligente e sinistra, egoísta e sensual. Ela era toda má e miserável, escondida atrás de uma máscara de perfeição. Ela era linda, linda demais para ser considerada real, e era assim que atraía suas próprias vítimas.
Drew entendeu que ele tinha um tipo de beleza semelhante. Foi por isso que ela foi atraída por ele em primeiro lugar. Ser transformado apenas realçou sua beleza, tornando-o mais atraente para vítimas em potencial.
Ele zombou de seu reflexo embaçado no oceano. Ao contrário da maioria dos rumores sobre Sombras do Mar, ele podia ver seu reflexo. Ele tendia a evitar a coisa, agora que ele era um monstro.
No entanto, ele descobriu que quanto mais tempo passava com Kelia, mas ele encontrava oportunidade de se redimir de todos os seus atos perversos.
Ela era sua graça salvadora, por assim dizer, e ele se agarrou a essa noção da maneira que gostaria de poder se agarrar a ela.
—Acho que você ouviu a notícia? — Emma perguntou, aparecendo do nada. Talvez ela tivesse viajado das docas para o navio dele de barco, como sempre fazia, e ele não percebeu porque estava muito absorto em seus próprios pensamentos.
—Por que você está aqui? — Drew não desviou os olhos da superfície do oceano. —Você odeia a chuva.
—Você sabe porquê. — Sua voz era suave, nada mais do que palavras sussurradas ao vento e quase afogadas pelo som da chuva.
Christopher subiu ao convés. —Você não ia se alimentar, Knight? — Ele olhou para Emma. —Não tenho certeza do que você faz e não acho que quero perguntar, mesmo se tiver minhas suspeitas.
—O que você está fazendo aqui? — Drew perguntou, voltando sua frustração para Christopher. —Eu pensei que você fosse se alimentar.
—Eu fiz — disse Christopher com um encolher de ombros. —Droga, não esperava.
—Você se alimentou de um animal? — Emma perguntou.
Christopher se virou para Emma, com as mãos nos quadris. —Só porque devo me alimentar de sangue humano não significa que eu queira — disse ele. —Eu não pedi para ser essa coisa. Quando aquela bruxa demoníaca do mar me trouxe até aquela vadia, eu não me lembro de ter sido questionado de uma forma ou de outra.
—Eu pensei que a bruxa do mar tentou salvá-lo?
Emma veio ao lado de Drew. —Podemos levar essa conversa para baixo do convés? — Ela perguntou entre os dentes. —Eu gostaria de ter uma discussão séria fora da chuva.
Ninguém discordou. Eles desceram a escada de madeira e encontraram o caminho para a cozinha. O navio foi construído por artesãos especializados. Nenhuma chuva vazava pelo convés, evitando que qualquer dano desnecessário de água ocorresse. Ele sabia que teria que consertar seu navio devido ao fato de que ele o possuía nas últimas duas décadas.
A cozinha era um grande cômodo com mesas e bancos de madeira, todos pregados no chão. Não havia janelas. Este lugar era para comer e comer sozinho. Apesar das Sombras precisarem de sangue para permanecer vivas, eles ainda tinham a capacidade de consumir, digerir e obter prazer da comida. Drew até contratou um chef que cozinhava uma refeição por dia - uma refeição matinal para a tripulação se acalmar, pouco antes de descansar durante o dia.
Christopher se deixou cair, uma grande poça sob seu corpo atarracado. Emma tinha os braços em volta do corpo, teimosa demais para mudar se ninguém, mas o fizesse. Drew se sentou à cabeceira da mesa, onde normalmente se sentava durante as refeições matinais. Ele chutou as botas molhadas na mesa, endireitando as pernas e recostando-se.
—Então, — Christopher falou lentamente, colocando o tornozelo no joelho e recostando-se na cadeira. —O que é? De que notícias você fala? — Ele dirigiu seu olhar para Emma, embora a própria pergunta parecesse ser feita para que Drew ou Emma respondessem.
Drew se levantou e caminhou pela cozinha, o queixo colado ao peito e as mãos atrás das costas.
Emma pigarreou. —Parece que nossa Assassina se meteu em uma situação difícil.
—Ofereceu-se como voluntária na situação. — Drew rosnou antes que pudesse se conter. Ele evitou uma poça bastante grande que Christopher deixou e se virou, quase escorregando devido ao seu foco intenso. E raiva.
Ele não sabia por que estava com raiva. Tudo o que ele podia ver era Kelia, voltando de Rycroft com a notícia de que ela faria parte do programa de reprodução. Um programa que seu pai criou. Um programa em que ela seria estuprada repetidamente por Sombras do Mar, transformada pelas mãos da Sociedade para algum propósito nefasto. Seus lábios se curvaram em um sorriso de escárnio e seus olhos se encheram de mágoa e traição - não com seu pai e o fato de que sua imagem dele estava agora manchada, mas com o próprio Drew, porque ele a negou.
—Situação? — Christopher esfregou as mãos. —Isso não parece tão sombrio quanto você está fazendo parecer.
—O programa de reprodução...— Emma agarrou seu cabelo molhado, em seguida, torceu-o para que uma pequena poça d'água caísse no chão de madeira. —Ela se ofereceu para isso. Drew não está satisfeito.
—Você está falando sério? — ele perguntou. —Esta é uma notícia brilhante.
—O que? — A voz de Drew estava tão tensa, o som saiu agudo e preciso, como se fosse sua própria palavra. Ele se forçou a sentar-se novamente.
Christopher esticou as pernas na frente dele. —Brilhante, — ele repetiu. —Ela pode encontrar Wendy lá.
Drew bateu com as mãos na madeira da mesa, levantando-se novamente. O som reverberou na madeira como um trovão.
—É só com isso que você está preocupado? — Saliva voou de sua boca e imediatamente se desintegrou na madeira onde pousou. —Sua prometida?
—Eu naveguei através de um oceano para fazer uma última tarefa para a maldita Companhia das Índias Orientais, — Christopher disse lentamente, olhando para Drew por cima da mesa. Ele também se levantou, como se fosse enfrentar o desafio silencioso de Drew. Ele era mais alto que Drew e tinha quase a mesma quantidade de músculos. Mesmo assim, Drew tinha muito mais poder do que Christopher jamais possuiria. —Porque uma vez que eu fizesse essa maldita tarefa, eu estaria livre para me casar com o amor da minha vida. Wendy é sua irmã. Não entendo por que você não está em êxtase com a perspectiva de finalmente tê-la de volta.
—Claro que estou em êxtase. — Drew disse, cada palavra enunciada com firmeza, como afinar as cordas de um violão. —Mas eu não gosto de sacrificar uma vida para alcançar outra.
—Wendy é sua irmã. Quem se importa com quem mais está em risco quando isso significa que sua Assassina pode libertá-la...
—E como ela deve fazer isso, hmm? — Drew caminhou em direção a Christopher, cada passo fazendo um guincho alto no chão. —Wendy é uma bruxa e nem mesmo ela pode usar seus próprios poderes para se libertar. Como você espera que um humano faça tal coisa?
—Há mais nisso, não é? — Christopher ficou bem na frente de Drew, olhando para ele. —O Drew Knight de que ouvi falar não se importaria nem um pouco com a vida humana. Ele pega o que quer. Ele não dá nada em troca. Ele não se desculpa por quem e o que ele é. E se alguém o faz mal, ele busca vingança sem pestanejar.
—O Drew Knight de que você ouviu falar não é nada mais do que um exagero — disse Drew. —Uma história de ninar para alertar as crianças.
—Você está me dizendo que não gostava de festejar com sangue e arrancar carne?
—Você não sabe nada sobre mim, — Drew rosnou. —Você, o mesmo homem que se recusa a se alimentar de carne humana. — Ele cuspiu em desgosto. —Minha irmã te ama. Mas isso não significa que tenho que gostar de você. E se não desejo que Kelia se encontre na situação em que se encontra, não só pelo risco que isso representa para ela, mas também para a minha irmã, é meu direito. Você não precisa concordar com meus sentimentos, mas quem é você para questioná-los?
Drew tocou o cabo da lâmina de Kelia, pendurada em seu quadril esquerdo. Ele gostava de sentir sua presença, mesmo sabendo que não precisava disso. Isso o fez sentir como se Kelia estivesse aqui.
O vento açoitou as velas, deslizando contra o pano. A navio gemeu, sendo empurrada pela força dos elementos.
—Você está apaixonado por ela.
Emma saltou como um relâmpago contra o céu.
—Calma. — Ela disse.
—Por quê? — Christopher deu uma risadinha. —É a verdade, não é? Independentemente de sua alegação de ser um Sombra do Mar inocente e compassivo, eu conheço você. Talvez eu não tenha tido experiência pessoal com você até agora, mas eu o conheço pelos olhos de sua irmã. Você é um monstro. Um bom, mas ainda um monstro. Você fode e mata e não pede desculpas por isso. Você assusta crianças. Você assusta os adultos. E, no entanto, esta mulher, com apenas dezoito anos, reduz você a uma poça como a que está sob meus pés.
Não houve desgosto ou julgamento. Drew não tinha certeza do que era, mas quase parecia compreensão.
—Eu não sabia que Drew Knight poderia amar.
Drew cerrou os dentes, esperando que isso mantivesse suas presas afastadas. Ele estava com fome e isso fritou sua paciência.
—Você precisa comer. — Emma disse, como se lesse sua mente. E talvez, como bruxa, ela pudesse.
—Seu contato do lado de dentro, — Drew disse a Emma. —Ela te disse mais alguma coisa? Nada mesmo? Quando ela vai sair para o programa?
—Falei com ela algumas horas atrás, — Emma murmurou. —Ela está supostamente incapacitada porque ela e Kelia entraram em uma briga física...
A cabeça de Drew estalou para Emma. Por um momento, ele se esqueceu de Christopher, sobre o que Christopher supôs.
—Seu contato foi a pessoa que lutou fisicamente contra Kelia? — Ele perguntou.
Drew esperou. Emma não disse nada.
Drew se afastou de Christopher e pisou forte no longo espaço da cozinha. Ele passou os dedos pelos cabelos, puxando as raízes como se fossem ervas daninhas. Ele precisava de dor física para distraí-lo da raiva atualmente navegando por sua corrente sanguínea.
—Eu a tenho treinado nas artes místicas, — Emma explicou. —Eu a escolhi como minha protegida e ela superou as expectativas. Ela obtém suas habilidades da linhagem de sua mãe - normalmente é mais forte quando é a linhagem de matrona.
—O que faz você pensar que me importo com ela? — Drew perguntou.
—Considerando que ela nos forneceu informações valiosas sobre Kelia, incluindo onde era seu novo quarto e como ela estava agora como cega, eu diria que é melhor você se importar muito, — Emma disse secamente. Ela deu um passo em direção a Drew, uma expressão em seu rosto que não deixou espaço para discussão. —Você precisa se alimentar. Eu sei com certeza que você estava no Scarlett com uma prostituta e a levou para cima. Mas nada aconteceu. Ou algo aconteceu, mas algo interrompeu. Algo aconteceu.
Drew grunhiu. —Não é da sua conta.
—É quando você está atacando todo mundo, pronto para festejar com seus aliados. — Disse Emma desafiadoramente.
Se ele não a respeitasse tanto, Drew teria rasgado sua garganta por falar com ele daquela maneira.
—No momento, Kelia não está correndo o tipo de perigo que exige uma escolha entre a vida ou a morte — disse Emma. Drew abriu a boca para interromper, mas ela continuou. —No entanto, ela será violada violentamente. Ela será quebrada e espancada, alimentada, como um saco de carne fornecendo apenas o essencial da vida: reprodução e sustento.
Drew rosnou. Um forte estrondo de trovão sacudiu o navio.
—Algo deve ser feito. — Emma voltou sua atenção para Christopher. —Temos tentado alcançar Wendy desde que descobrimos que ela foi levada pela Sociedade. Não sabemos em que estado ela estará se estiver, de fato, no programa de reprodução. É benéfico que Kelia esteja lá pelo bem de Wendy. No entanto, meu contato não tem acesso e não poderemos ajudar Kelia a menos que desejemos revelar nossa localização. Isso nos colocaria em risco, assim como Wendy e Kelia.
—Não vamos deixá-las —disse Drew. —Nós saímos uma vez e... — Sua voz falhou, imagens da fita carmesim escorrendo das costas de Kelia piscando em sua mente.
A janela iluminou-se com um raio antes de se transformar em carvão mais uma vez.
—Nós as resgataremos. — Ele se virou para Emma. —Vou tirar Kelia dali, desta vez. Quer ela queira ou não.
CAPÍTULO 19
A transferência foi imediata. Quase imediatamente depois que Abigail fugiu, homens que Kelia nunca tinha visto antes pegaram sua bagagem e um segundo apareceu para conduzi-la para fora.
Kelia teve o cuidado de evitar pisar na terra ainda úmida da tempestade noturna. Ela só tinha um par de calçados e não queria sujá-los. Um arrepio percorreu sua roupa fina e ela suprimiu um estremecimento.
As nuvens estavam altas, cinza escuro, uma ameaça silenciosa do que estava por vir. Outra tempestade. Eles passaram por estábulos de madeira onde normalmente os cavalos eram mantidos. A madeira estava desbotada e velha, com pregos enferrujados saindo em direções estranhas.
De onde Kelia caminhava sob o toldo de concreto, os estábulos não tinham animais. Eram seis, três de cada lado, com um pequeno colchão. Os colchões estavam inchados com a água da chuva e o cheiro de mofo flutuava no ar. O rosnado vicioso dos cães perfurou o silêncio enquanto eles rondavam fora do perímetro da terra - uma ameaça para qualquer um que estivesse pensando em escapar. Homens, Kelia não tinha medo. Cães de ataque treinados? Ela tinha visto o que aqueles cães podiam fazer durante seu tempo como uma Caçadora, e ela não queria correr esse risco.
Ela pensou em perguntar para onde estava sendo conduzida. No entanto, ela sabia que esses homens não diriam nada a ela. Ela era imunda, não melhor do que a lama em suas botas. Em vez disso, ela mordeu a língua e endireitou os ombros. Só porque seu coração batia forte contra o peito, não significava que todos precisavam saber de tal coisa.
Os Assassinos chegaram a um celeiro separado, deixando a fortaleza para trás. O celeiro não foi pintado, apenas uma madeira escura montada por Assassinos inexperientes melhor com suas mentes do que suas mãos. Kelia olhou para o celeiro instável. Ela não tinha certeza se preferia enlamear seus calçados e ficar do lado de fora na tempestade que se aproximava ou se arriscar dentro de casa.
—Aqui. — Um Assassino parou abruptamente bem na frente da porta. —Eu quase esqueci. Você vai precisar disso.
Do bolso de trás, ele puxou parecia ser um pedaço de couro. Um cinto, talvez? Mas era pequeno demais para ser um cinto.
Kelia entendeu o que era no minuto em que ele jogou para seu parceiro, ainda atrás de Kelia, que deu um tapa em sua garganta e o prendeu no lugar.
É uma coleira.
—Não o tire, — o segundo disse atrás dela. —Não que você tenha uma escolha. Ele está bloqueado em você agora.
Os dois assassinos começaram a andar para frente novamente, mas os pés de Kelia pareciam cimentados no lugar. Eles apenas a colaram? Como um animal?
—Bem? — Um dos Assassinos se virou para olhar para ela por cima do ombro. —Você está vindo ou não? Parece que vai chover a qualquer momento e gostaria de estar de volta ao meu quarto, se puder evitar.
Ele tirou uma grande chave da calça e abriu uma grande fechadura pendurada na maçaneta. Assim que se abriu, as correntes deslizaram e caíram no chão.
Kelia foi forçada a caminhar pela lama para cruzar o caminho. Quando ela entrou no celeiro, ela foi esbofeteada com um ataque de aromas: lama, chuva, fezes, urina, sangue e outra coisa. Um cheiro que Kelia não reconheceu.
A pura força do fedor a deteve. Ela colocou a mão sobre o estômago enquanto respirava fundo com a boca. Seu estômago se revirou e ela quase se enrolou ali mesmo. Era como se ela pudesse até sentir o cheiro em sua língua.
O outro Assassino sorriu. —Você se acostuma com isso, eu acho.
Kelia zombou, mas continuou em silêncio enquanto olhava ao redor. O celeiro era espaçoso e vazio, mas mais do que isso, estava silencioso. Até agora, ela não tinha visto uma única pessoa ou animal. A compreensão a deixou inquieta. Até a luz vinha de um lampião. Nada natural pôde ser detectado.
Havia um lance de escadas de madeira construído contra a parede oposta que levava a um segundo andar. Os Assassinos se dirigiram diretamente para a escada enquanto Kelia pegava mais colchões no meio das cabines. Manchas escuras decoravam o chão como uma marca. Se Kelia pudesse adivinhar, quase parecia sangue seco. Ela engoliu em seco e apertou os dedos contra as palmas das mãos. Ela precisava colocar um pé na frente do outro. Ela não podia deixar seu medo transparecer.
Ela subiu as escadas, seguindo os Assassinos. A madeira rangeu sob seus pés.
Não foi até ela chegar ao segundo andar que houve qualquer outro sinal de vida. Quatro outras mulheres de sua idade, todas cansadas com olhos profundamente fundos, estavam sentadas em uma pilha de desolação em colchões ao redor de uma pequena mesa de madeira. Seus cabelos foram puxados de seus rostos, tricotados e emaranhados, e Kelia podia sentir seu aroma podre do outro lado do cômodo. Sujeira e outras substâncias que Kelia preferia não tentar adivinhar que mancharam suas roupas, e todos elas estavam sentadas caídas para frente, de cabeça baixa, cabelos na cara, se escondendo. Envergonhadas de si mesmas, olhando para longe como se não tivessem qualquer desejo de fazer qualquer outra coisa.
—Quer ir com uma delas, Stephen? — O primeiro perguntou. —Elas não parecem estar em posição de dizer não.
Kelia não conseguiu mais conter seu desgosto. —Vocês me trouxeram aqui, vocês fizeram seu trabalho — disse ela. —Agora façam um favor a todos nós e gentilmente caiam fora antes que eu empurre vocês escada abaixo.
Os dois homens se viraram e olharam para Kelia, seus lábios se curvaram em rosnados.
—Só porque você fodeu uma Sombra não significa que você está protegida, querida. — O primeiro disse.
—Ele não está aqui para reivindicar você, está? — O segundo, Steve, disse. —Talvez a gente tenha uma chance com você, tente arrombá-la antes que os Sombras te peguem, hein?
—Eu acho que isso seria um favor a ela, não é?
—Concordo.
Naquele momento, algo baixo e melódico vibrou pelo cômodo. Os dois homens se endireitaram, como se fossem capturados por algum ser desconhecido e forçados a se afastar. Sem outra palavra para Kelia, sem nem mesmo olhar para as mulheres sem vida diante deles, eles desceram as escadas.
Assim que a porta da frente do celeiro se fechou, o celeiro parou. Nem mesmo as mulheres se mexeram. Elas não pareciam se importar se os homens haviam partido ou Kelia havia chegado. Elas continuaram sentados em colchões. Uma estava até em uma cama que pendia solta e quase raspava no chão.
Ninguém aqui poderia obrigar os homens a irem embora, e Kelia tinha certeza de ter ouvido uma voz dizer algo em um idioma que ela não reconheceu.
—Você é nova.
Kelia se virou para olhar por cima do ombro e viu uma das mulheres mais bonitas que ela já tinha visto antes de caminhar em sua direção.
Ela tinha visto este andar quando subiu as escadas pela primeira vez. Além das quatro mulheres, ela não tinha visto mais ninguém. Ela especialmente teria se lembrado de alguém cuja presença chamava atenção.
—Eu sou.
Kelia desviou o olhar, pela única janela do celeiro. As nuvens pareciam mais escuras, mas ela não tinha certeza se tal coisa era possível. Ela inclinou seu corpo em direção ao lance de escadas, apenas no caso de as coisas darem errado. Por alguma razão, ela tinha a sensação de que essa mulher era mais poderosa do que parecia.
Ela deu a Kelia um olhar longo e calculista. Ela começou nos pés de Kelia e lentamente ergueu os olhos até que encontraram o olhar de Kelia.
—Você é diferente, — ela finalmente murmurou. —Você ainda pode sobreviver a nós.
O calor se espalhou pelo peito de Kelia, e ela não conseguia explicar por quê. Ela não conhecia esta mulher. Ela não deveria se importar com o que esta mulher pensava dela. E, no entanto, era bom ver que alguém realmente tinha fé em sua capacidade de cuidar de si mesma. Era bom ter alguém a levando a sério.
—Isso foi por escolha ou punição? — A mulher perguntou, colocando as mãos nos quadris. Ela ignorou completamente as outras mulheres, assim como elas a ignoraram completamente.
—Existe algo como escolha na Sociedade? — Kelia perguntou. Ela não sabia quem era essa mulher, mas não se importava particularmente. Ela não morderia mais a língua, nem censuraria seus verdadeiros sentimentos sobre o assunto.
O lábio da mulher abriu um sorriso vazio. —Cega? — Ela adivinhou.
—Bruxa? — Kelia atirou de volta.
O sorriso da mulher se alargou. —Acho que gosto de você — disse ela. —Qual o seu nome?
—Kelia Starling. — Disse Kelia. Ela olhou para a caixa de suas coisas, onde os homens a deixaram, procurando o diário de seu pai. As páginas que faltavam ainda estavam enfiadas no pergaminho.
—Qualquer relação com...
—Sim. — Mesmo sentindo seu rosto esquentar, ela não se viraria e tentaria esconder sua vergonha. —Talvez eu esteja sendo punida pelos pecados do meu pai.
—Seu pai era um homem apaixonado — disse a mulher. —O amor faz coisas conosco que nunca poderíamos esperar. Faz de nós o nosso melhor absoluto e nos transforma em nosso pior. De qualquer forma, existe a crença de que não estamos no controle de nossas ações.
—Isso é uma merda — rebateu Kelia. —Meu pai fez escolhas. Ele...
—Por que você está aqui?
—Eu já disse a você — disse Kelia. —Eu não tive escolha. — Ela considerou a mulher à sua frente - o cabelo escuro, os olhos escuros. Ela usava um vestido com bainha suja, de tecido rasgado. Uma manga caída de seu ombro em um golpe elegante. —Quem é...
Antes que ela pudesse terminar sua pergunta, a porta principal do celeiro se abriu e o próprio Rycroft entrou. Kelia olhou por cima do corrimão para vê-lo. Ele já tinha um lenço sobre o rosto, como se soubesse que esperava um aroma tão forte. Apesar disso, Kelia percebeu o puxão nas bochechas, o que significava que ele estava sorrindo.
Ela se endireitou simplesmente por causa de sua presença. Ela se deteve imediatamente. Sua aceitação neste programa significava que ela não precisava mais fingir. Ela não precisava se esconder como fazia nos últimos meses.
—Srta. Starling! — Ele berrou, sua voz enchendo o celeiro.
Kelia olhou para as quatro mulheres sentadas. Ela não tinha certeza, mas quase parecia que até elas ficaram tensas ao ouvi-lo.
—Bem-vinda à sua nova casa. Ouvi dizer que você se acostuma com o fedor.
Kelia não disse nada. No entanto, os passos da bruxa rastejaram atrás dela como se ela quisesse ouvir o que Rycroft tinha a dizer.
—Quero que você se instale — disse ele. —Amanhã, tudo vai mudar para você. Você estará prestando um grande serviço à Sociedade. Eu espero que você saiba disso. Você deve ter orgulho do que faz.
— Ainda não sei o que você precisa de mim — Kelia falou lentamente, inclinando-se sobre o corrimão. Rycroft não fez menção de subir as escadas e ela se perguntou se ele não confiava no desenho sob seu peso. —Eu criei palpites com base na natureza do programa, mas nada definitivo. Você está aqui para elaborar?
—Aí está. — Seu sorriso se alargou e seus olhos se moveram para algo atrás de Kelia. —Vejo que você foi apresentada à nossa bruxa residente? Tenha cuidado, ou ela poderá controlá-la com seus poderes. É por isso que os Assassinos são proibidos de vir ao celeiro. É por isso que, quando o fazem, são responsáveis por usar um amuleto que impede que seus poderes funcionem.
—Você não está usando um amuleto. — Kelia apontou.
—Eu não preciso de um, — ele observou. Ele estendeu a mão e tirou os óculos do rosto para segurá-los. —Isto, aqui mesmo, é feito da mesma pedra dos amuletos. Estou sempre protegido.
Kelia se levantou em toda a sua altura, mantendo as mãos na madeira.
—Seus Assassinos que trouxeram minhas coisas não usavam amuletos. — Ela disse.
—Assassinos? — Rycroft riu alto. —Eles não são mais Assassinos do que você é agora. Apenas a ajuda contratada, suponho. Eu não me importo muito com o que acontece com eles. — Ele mudou seu peso onde estava. O celeiro estava surpreendentemente parado para um local que atualmente ocupava sete indivíduos. —Espero que você conheça suas colegas transportadoras.
—Transportadoras?
—Transportadoras — Rycroft repetiu. —Eu não disse a vocês o que esperar enquanto parte deste programa? Você será testada para ver quando será capaz de ter filhos com base em seus relatórios mensais. Você será parceira de Sombras do Mar que fizemos prisioneiros... — Com isso, a mulher atrás de Kelia bufou. Rycroft a ignorou. — E você começará a fase de acasalamento. Você continuará até que esteja grávida ou até o início da menstruação. Se você estiver grávida, nós a retiramos daqui e a hospedaremos durante sua incapacitação, fazendo testes e anotando o desenvolvimento do monstro em seu útero. Se você receber seus mensais... — Seus olhos brilharam. —Suas costas já estão informadas se você receber seus mensais. E todo o ciclo começa novamente. Você faz refeições duas vezes ao dia e rega três vezes ao dia. Você pode se aliviar no chão onde estou. Alguém vem e limpa uma vez por semana, se eles se lembram. Você tem alguma pergunta?
—Você tem alguma estatística sobre a minha expectativa de taxa de sobrevivência? — Kelia perguntou.
Rycroft se virou, já se dirigindo para a porta. —Espero que essa boca não lhe cause muitos problemas com seu companheiro, Srta. Starling — disse ele. —Embora, considerando que você era a prostituta de Drew Knight, talvez você já esteja acostumada com monstros em sua boceta.
Kelia se encolheu com a palavra. Era algo que ela só ouvira algumas vezes antes, e apenas na cidade, quando estava perto de homens bêbados falando com prostitutas. Ela nunca esperou isso da boca de Ashton Rycroft.
Quando ele alcançou a porta, ele parou e se virou para olhar para Kelia e a mulher atrás dela.
—É apropriado, — ele disse, sua voz ecoando através do celeiro. — que vocês duas sejam portadoras. Kelia Starling e Wendy Parsons. Tenho certeza de que seu pai e seu irmão ficariam orgulhosos.
Kelia não o ouviu sair do celeiro. Ela se esqueceu completamente do aroma pesado que sufocava seus sentidos e do pavor que se formou nela quando Rycroft explicou o que esperava dela. Em vez disso, ela se virou para olhar para a mulher diante dela. O cabelo escuro, os olhos escuros, a beleza, as maçãs do rosto salientes. Tudo faz sentido agora.
—Wendy Parsons? — Kelia murmurou. —A bruxa?
—Eu prefiro feiticeira, se você não se importa, — ela disse, colocando as mãos nos quadris e olhando para Kelia. Ela era apenas meia cabeça mais alta do que Kelia, talvez alguns centímetros mais baixa do próprio Drew Knight. —Mas sim, suponho que sou tecnicamente uma bruxa,
—Você é irmã de Drew Knight — disse Kelia. —Você é quem estou procurando.
CAPÍTULO 20
Wendy colocou as mãos nos quadris e deu a Kelia um longo olhar, afiando o pescoço de Kelia, como se ela estivesse procurando por algo.
—Você conhece Drew Knight? — Ela perguntou. —Quantos anos você tem?
—Dezessete, — Kelia respondeu antes de pensar, mas rapidamente se corrigiu. —Dezoito no mês passado.
Seu aniversário de meados de janeiro havia passado enquanto suas costas ainda doíam, algumas semanas em sua passagem como cega. Agora era março, embora Kelia não conseguisse se lembrar do dia. O tempo havia escapado de suas mãos, e a parte assustadora de sua provação foi que ela nem percebeu.
Ela colocou a mão na gargantilha em volta do pescoço e tentou puxá-la.
—Isso não vai funcionar — disse Wendy. —Está bem trancado, assim como as janelas fechadas com tábuas do celeiro.
—E eu sou muito boa em abrir fechaduras. — Ela murmurou. Ela estendeu a mão para o cabelo e puxou um grampo.
— Tudo bem — disse Wendy com um elegante encolher de ombros enquanto passava por Kelia. —Seja chicoteada por insubordinação. E os cachorros? Como você planeja superar isso?
Kelia se acalmou antes de colocar o grampo de volta em seu cabelo. Ela pigarreou.
—Certo. — Ela disse.
—E isso não é nem mesmo o pior de tudo — disse Wendy, cruzando os braços e olhando Kelia de cima a baixo. Antes que Kelia pudesse perguntar qual era o pior, Wendy continuou. —Você disse que conhecia meu irmão? Embora eu deva admitir que você é exatamente o tipo dele, não vejo nenhum vestígio do meu irmão em você.
Wendy jogou o cabelo por cima do ombro e se afastou dela. Ela desceu o caminho estreito entre os colchões, parando para pegar um cobertor descartado e jogando-o habilmente sobre um colchão podre.
—Ele gosta de cravar os dentes nas vítimas — ela continuou. —Para deixar sua marca e depois apagá-la. — Ela parou o que estava fazendo, de costas para Kelia, antes de sacudir o cabelo. Cachos castanhos seguiram o gesto lento e gracioso. —Mas se você sabe o que procurar, essas marcas nunca vão embora. No entanto, não há nenhuma em você. E meu irmão não reivindica ninguém.
—Eu não sou sua vítima.
—Certo. — Wendy disse, uma risada quase amarga correndo por trás de seu tom.
Kelia deu um passo em direção a Wendy, querendo nada mais do que chamar sua atenção, mas não tinha certeza de como lidar com ela. Wendy era uma bruxa. Kelia não tinha conhecido uma bruxa de verdade antes, exceto Emma. Embora Emma não tivesse admitido o que ela era para Kelia.
—Seu irmão está preocupado com você. — Disse ela.
Ela não sabia por que estava defendendo Drew Knight, quando ainda estava delirantemente zangada com ele pelo que ele lhe fez, pelo que ele escondeu dela. Ela não sabia se defender Drew Knight havia se tornado um hábito, apesar de seus melhores esforços para impedi-lo de cavar sob sua pele. No entanto, enquanto olhava para Wendy, ao ver a mulher forte em uma situação desesperadora, Kelia não podia deixar de querer informar a Wendy que alguém estava procurando por ela.
—Drew se preocupa, certamente — observou Wendy, olhando para as unhas. Seu perfil cortou a luz fraca, embora o dia estivesse aparecendo. A luz do sol entrava pela janela, mas devido ao acúmulo de sujeira e outros resíduos turvos, a luz do sol não era nem brilhante nem dominante. —Sobre ele mesmo, tenho certeza. — Ela girou no salto da bota e cruzou os braços sobre o peito. —Você está apaixonada por ele?
Kelia deixou cair os braços do corrimão em que estava encostada. —Eu sinto muito?
—Você parece uma garota inteligente — disse Wendy. —Tenho certeza de que você me ouviu corretamente. Você está apaixonada pelo meu irmão? Eu não culparia você se você estivesse. Meu irmão é lindo e charmoso. Um pouco mais baixo, mas ele compensa com seu físico. Minhas amigas não paravam de falar sobre ele, e isso me deixava totalmente louca. — Ela balançou a cabeça. Seus olhos estavam distantes. Ela estava falando sobre uma época diferente.
—Por que você parece zangada com seu irmão? — Kelia perguntou antes que ela pudesse se conter.
—Por que você evita minha pergunta? — Os lábios de Wendy se curvaram, mas seus olhos permaneceram tristes. Desta vez, ela pegou um travesseiro e o recolocou no colchão. —Por que eles mandaram você aqui? Me diga a verdade dessa vez. Já estou ciente de que você não teve escolha no assunto, mas me diga mais do que isso.
—Ashton Rycroft me odeia. — Disse Kelia. Ela não se orgulhava dessa declaração, nem parecia estar reclamando disso. Ela estava apenas declarando um fato.
—Ele odeia, agora? — Wendy se virou, novamente no salto de sua bota, e caminhou em direção a Kelia mais uma vez. —E por que isto?
—Ele pensa que seu irmão e eu somos amantes. — Disse Kelia.
—É verdade?
—Você mesma disse que ele não reivindica ninguém. — Kelia colocou a mão delicadamente na garganta, cobrindo o pulso. Apenas a batida contra sua pele a lembrou de como Drew olhou para sua garganta, como se estivesse tentado por algo que nem ele entendia. Ela baixou a mão. —Rycroft é um homem que está chateado com uma Assassina parceira de uma Sombra, seja por luxúria ou lógica.
—Parceira de Drew? — A cabeça de Wendy jogou para trás. —Por quê?
—Meu pai foi assassinado — disse Kelia. —A Sociedade - Rycroft disse que cometeu suicídio. Eu não acreditei nele.
—Seu pai — disse Wendy. —Rycroft disse que ele é o homem que criou este programa. Você é filha de Gregory Starling?
Kelia concordou. —Eu sou.
Wendy ficou em silêncio por um momento antes de acenar para a janela. —Ele foi morto lá — disse ela. —Em um estábulo. Eles enviaram várias Sombras atrás dele. Famintas. Ele não teve chance. Quase senti pena dele. Até que me lembrei que se ele não tivesse criado este lugar, eu não estaria aqui. — Uma pausa. —Você sabe por que ele fez isso?
Kelia se virou para descansar os braços no corrimão mais uma vez. Ela não sabia o que estava procurando e ainda assim procurou em cada canto do celeiro. Talvez ela quisesse uma prova de que seu pai esteve aqui. Ela não conseguiu encontrar nenhum vestígio dele na fortaleza, e ele estava lá por vinte anos de sua vida. Tudo o que ela tinha deixado foi seu diário e as páginas que faltavam. Isso, este programa e ela pareciam ser o último de seu legado.
—Ouvi dizer que uma sereia roubou minha mãe dele — disse Kelia suavemente. —Ele foi distraído pelo canto da sereia, e os monstros se levantaram e a consumiram na frente dele. Ele me disse que ela morreu, mas nunca entrou em detalhes.
—E ele pensou que acasalar com as Sombras o ajudaria como? — Wendy perguntou. Não havia simpatia em seu tom. Kelia não poderia culpá-la por isso. —Seu pai parece um idiota.
—Ele fez isso por minha mãe. — Kelia olhou para as outras quatro mulheres sentadas e olhando fixamente. —O que aconteceu com essas mulheres?
—Elas estão quebradas — disse Wendy, parando ao lado de Kelia. —Eu não ficaria surpresa se o bom Deus as levasse logo. Tenho certeza de que elas estão implorando por isso. Seria uma misericórdia.
—O que, exatamente, elas suportaram para você falar delas dessa maneira? — Ela perguntou. —Você está falando sobre elas morrerem enquanto estão ao alcance da voz.
—Você as vê reagindo? — Wendy se inclinou para mais perto de Kelia, perto o suficiente para que sua respiração esquentasse seu ombro. —Você tem hematomas em volta do olho. Uma luta, presumo? É por isso que você está aqui?
Kelia alisou a saia do vestido com as palmas das mãos. —Mais ou menos.
Seu confronto com Daniella parecia distante, embora tivesse acontecido apenas um dia atrás. Até o encontro com Abigail esta manhã parecia ter sido um sonho e nada mais. Mais uma vez, ela olhou para sua bagagem na escada. Se tivesse tempo, esperava poder ler mais nas páginas perdidas do diário de seu pai.
—Você não respondeu minha pergunta. — Kelia continuou.
—O que eu digo não fará justiça, — ela murmurou. Seus olhos encontraram os de Kelia e ela zombou. —Existem Sombras que a Sociedade criou - suponho que você saiba que as Sombra do Mar são na verdade criadas pela Sociedade e pela Companhia das Índias Orientais. Esses Sombras vivem em barcos feitos de prata. Eles se alimentam de carne crua. E eles se reproduzem conosco.
Kelia sentiu o sangue sumir de seu rosto. Ela tinha visto Sombras do Mar antes, em batalha e em parceria. No entanto, agora, neste celeiro de cheiro miserável, ela não sabia se sobreviveria ao próximo encontro com eles. Lutar contra uma Sombra do mar era uma coisa. Mas permitir que uma Sombra violasse completamente seu corpo com a intenção de procriar, de engravidá-la... Kelia quase derramou o conteúdo de seu estômago no chão. Estava começando a atingi-la - por que ela estava aqui, qual era seu propósito.
—Eu acreditei...— Ela engoliu em seco e desviou o olhar. Ela cruzou os braços sobre o peito, as mãos segurando a si mesma. —Achei que seria...— Ela não sabia no que acreditava. Ela havia sido avisada, é claro. Rycroft havia insinuado isso, e Drew ficou furioso com ela por concordar em fazer tal coisa. —Eu sabia; eu simplesmente não...
Havia uma expressão de simpatia no rosto bonito de Wendy e, por um momento, Kelia viu Drew.
—Essas mulheres estão quebradas porque foram violadas repetidamente — explicou ela. —É por isso que a morte seria uma misericórdia para elas. Se eu tivesse acesso às minhas ervas e poções, faria uma poção que traria morte instantânea e indolor. Então, novamente, se eu pudesse usar meus poderes contra aqueles que são importantes, eu não estaria aqui e nem elas estariam. — Seus olhos se estreitaram no pescoço de uma das mulheres. —Elas também usam pingentes de topázio. Elas não podem tirá-lo porque não percebem que está lá e eu não posso tocá-lo ou então ele vai me queimar.
—As bruxas não podem tocar no topázio? — Kelia perguntou.
—Representa o fogo — ela respondeu, — e sendo uma bruxa da terra, sou fraca contra o fogo. As sereias são resistentes às esmeraldas, que representam a terra.
— Não ouvi falar de bruxas do fogo — murmurou Kelia, mais para si mesma do que para Wendy. —Suponho que também existam bruxas do ar?
Os lábios de Wendy se torceram em um sorriso irônico. —Uma história para outra época — disse ela. Ela olhou pela janela. —Está quase na hora da nossa primeira refeição do dia. — Seus olhos piscaram para as quatro mulheres, ainda imóveis. Era até difícil distinguir quando inspiravam e expiravam. —Uma delas, Mary — ela acenou com a cabeça para a mulher menor e mais magra, seu cabelo loiro flácido em uma trança — tentou passar fome. Eu disse a ela que se ela não comesse, ela não teria forças para suportar, e seria pior do que seria de outra forma.
Kelia observou tudo no segundo andar: os colchões com os travesseiros e cobertores trocados, as tranças no cabelo. Ela olhou para trás para Wendy e deu um passo para trás.
—Você cuida delas. — Ela murmurou.
Wendy não olhou para Kelia. Em vez disso, ela manteve os olhos focados nas quatro mulheres sentadas juntas. Elas não haviam olhado na direção de Kelia nenhuma vez. Ela ficou surpresa por elas poderem estar tão quebradas que mal registraram o que estava acontecendo ao seu redor. Se não fosse por Wendy, elas estariam muito desgastadas. Talvez algumas delas ainda não estivessem vivas.
—Alguém precisa — murmurou Wendy. —Elas precisam de alguém para ser forte por elas.
Kelia tentou engolir, mas sua garganta parecia cinzas. Seu rosto baixou, suas mãos puxando a lã áspera que compunha seu vestido.
—Você deve suportar o pior — disse Kelia, em voz baixa. —Meu pai... ele queria criar bruxas e Sombras para criar algo que pudesse ser usado para proteger marinheiros. A terra enfraquece a água, como você disse. Eu não entendia completamente... —Ela balançou a cabeça, as lágrimas se acumulando em seus olhos. —Você deve suportar...
—O que eu preciso, para sobreviver. — Não havia amargura na voz de Wendy, embora fosse firme. Era apenas um fato, e ela estava dizendo isso. Wendy, ao contrário de Kelia, podia olhar Kelia nos olhos. Ela não tinha vergonha do que tinha sido feito a ela.
—Estas mulheres. — Kelia gesticulou com o máximo de sutileza que conseguiu reunir para o outro Cego. —Elas não são bruxas. Nem eu.
Wendy torceu o nariz.
—Você só terá problemas com este programa se houver uma vida humana em jogo? — Ela não tentou esconder a ofensa em seu tom.
—Eu não queria ofender. É apenas...
—É só o quê? Que a Sociedade transformou o programa de seu pai em uma ferramenta de punição? Para controle? Ou talvez seja assim que a Sociedade sempre quis. Talvez seu pai, em sua ignorância nublada, tenha pensado que se vingaria quando, na verdade, pessoas inocentes estão aqui agora por causa dele.
—Sinto muito, Wendy. Eu só queria entender. E encontrar uma maneira de escapar. Para todas nós.
Wendy virou a cabeça na direção de Kelia, um olhar feroz em seu rosto delicado. —Não há como escapar — disse ela. —Não seja tão arrogante a ponto de pensar o contrário.
—Mas...
—Você não acha que uma de nós tentou?
—E?
De alguma forma, o celeiro ficou quieto. Kelia estava quase com medo de respirar.
—Ela nunca mais voltou. — As narinas de Wendy dilataram-se. —Mas o cheiro dela perdura ... Não posso explicar.
Kelia espalmou as palmas das mãos contra a cintura antes de finalmente erguer o olhar para olhar para Wendy. —Você acha que ficaremos livres disso? — Ela perguntou. —Em algum ponto?
—Eu não sei. — Wendy voltou a cabeça para a janela. Se Kelia fechasse os olhos e se concentrasse, ela seria capaz de ouvir o vento soando lá fora. —Eu tinha um pretendente... Há uma pequena parte romântica de mim que espera que ele ainda esteja procurando por mim. Que ele não desistiu de mim. Não tenho certeza do que ele faria se me encontrasse - ele é apenas um homem e a Sociedade é um exército - mas... —Ela balançou a cabeça.
—Você não se preocupa se ele ainda vai ter você, depois que sua inocência foi roubada por essas feras? — Kelia perguntou em uma voz um pouco acima de um sussurro. Este não era o seu lugar. Não era da sua conta. E, no entanto, ela não pôde deixar de fazer a pergunta. Se Wendy era alguma coisa, era honesta. E honestidade era algo que Kelia podia apreciar, especialmente agora.
—Christopher entenderia o que aconteceu comigo. Ele me amaria mais porque eu sobrevivi a isso, —Wendy disse, seus lábios se curvando em um pequeno sorriso nostálgico. —Eu tenho quase um século como uma bruxa, Assassina. Minha inocência foi perdida há muito tempo. Ele sabia disso e ainda me amava porque o amor não deveria depender da sua inocência. Deve depender de quão adorável você é.
Kelia enterrou os dedos no vestido. —Christopher? — Ela perguntou. —Christopher Beckett?
Todo o comportamento de Wendy mudou. Como se sua energia tivesse dobrado, como se sua vida tivesse se renovado. Ela se virou para encarar Kelia. —Você o conhece? — ela perguntou, sua voz uma oitava acima. —Ele me encontrou? Ele está bem? Ele está seguro?
Kelia abriu a boca, pronta para responder, quando a porta do celeiro se abriu. Os mesmos dois homens que a trouxeram e sua bagagem voltaram com quatro bandejas de comida contendo oito tigelas do que parecia ser mingau, que colocaram no chão antes de se virar para sair novamente.
O estômago de Kelia se revirou. Não admira que essas mulheres estivessem murchando.
Quando as portas bateram, Wendy desceu os degraus para pegar a comida. Ela pegou as duas bandejas e conseguiu carregá-las até o segundo andar sem derramar a comida e quebrar o vidro. Ela colocou as tigelas na mesinha em frente às quatro mulheres e se ajoelhou para dar uma colher a cada mulher. Ela murmurou palavras gentis para essas mulheres, palavras que Kelia não conseguia ouvir, mas eram claras o suficiente para tirar as mulheres de seu estupor, pelo menos temporariamente. Não demorou muito para que cada uma - após uma conversa individualizada de Wendy - começasse a comer.
Wendy se aproximou de Kelia com uma tigela de mingau e uma colher. —Às vezes, elas precisam de incentivo — disse ela, ficando ao lado de Kelia para olhar para as mulheres. Sem olhar na direção de Kelia, ela entregou-lhe uma tigela de mingau e uma colher. —Coma, Assassina. Você vai precisar de toda a força que puder conseguir.
CAPÍTULO 21
Fazia dois dias e Kelia ainda não estava acostumada com o cheiro. Ninguém tinha vindo ou ido. As quatro mulheres silenciosas permaneceram indiferentes e quietas. Kelia não achou que elas perceberam que ela estava lá, que ela se juntou ao seu pequeno grupo, todas destinadas ao mesmo destino.
Wendy a lembrou de como uma mãe deveria ser. Ela não teve a oportunidade de ser cuidada porque sua mãe foi tirada dela quando Kelia era muito jovem, mas enquanto observava Wendy cuidar dessas mulheres - Mary, Cathleen, Samantha e Riley - ela acreditava que sua mãe a teria tratado de uma forma semelhante.
Wendy fazia tudo por essas mulheres. Ela não conseguia remover as bugigangas do pescoço delas, mas fazia o que podia para tornar a vida delas muito mais fácil. Ela as encorajou a comer. Se uma recusasse, ela as forçaria, mas de uma forma simpática que não era nem cruel nem crítica.
Ela oa limpava o melhor que podia e fazia com que se trocassem a cada dia. O guarda-roupa era todo dividido entre as mulheres, os vestidos rodados. Não parecia que lavá-los fosse uma das prioridades da Sociedade, mas Wendy era capaz de limpá-los o melhor que podia usando água da chuva e algumas lixeiras.
Wendy também fazia questão de falar com cada uma por pelo menos quinze minutos, quase como se para lembrá-las de que ainda estavam na terra, que independentemente de suas circunstâncias, ainda estavam vivas. Quando chegava a hora de se aliviarem - algo que faziam no primeiro andar, no canto mais distante - Wendy ia com elas e as ajudava porque algumas delas não se importavam.
Kelia estava dividida entre emoções muito diferentes em vários momentos do dia. Havia ocasiões em que ela admirava Wendy, era solidária com as mulheres, se entregava à autopiedade quando estava escuro e ninguém podia vê-la. Outras vezes, ela estava com raiva de tudo e de todos. Ela odiava Daniella por contar a verdade sobre seu pai, Drew por esconder dela, Wendy por existir em primeiro lugar. Quase sempre, entretanto, ela sentia ansiedade. Ela nunca conseguia relaxar totalmente o corpo ou a mente porque sempre havia a ameaça de que alguém entraria e a estupraria.
Ela balançou a cabeça e olhou para Wendy, atualmente em um colchão com um livro esfarrapado, lendo para as cegas. Todas estavam olhando para Wendy, mas Kelia não sabia se elas estavam ouvindo, se a história registrava.
Kelia se sentou no colchão que Wendy tinha designado para ela, o tenor calmante da voz de Wendy distraindo-a da autopiedade e do fedor pesado. Ajudou o fato de que o tempo estava frio e chuvoso. Quando ela fechou os olhos e pensou sobre aquela janela singular e o tempo lá fora, ela poderia jurar que o ar cheirava mais limpo, mais fresco.
Ela tateou debaixo do travesseiro, seus dedos encontrando o livro que continha o diário de seu pai.
Ela ainda não tinha lido mais das páginas. Ela não tinha certeza se queria. Ela não tinha certeza se isso importava. Seu pai criou este programa vil. Em sua névoa alimentada pela raiva, ele acreditava que estava fazendo isso por sua esposa. Kelia podia entender a raiva, a necessidade de reagir, mas ela não entendia a crueldade de ter as Sombras tentando engravidar inocentes para criar algum tipo de ser contra sereias...
No entanto, não ler as entradas significava que ela nunca saberia. Ela nunca veria o raciocínio de seu pai, seus motivos para suas ações. E ela precisava saber, ela precisava ver suas próprias palavras para confirmar o que todo mundo já parecia saber.
Quando a voz de Wendy perfurou o silêncio pesado, Kelia respirou fundo. Ela se absteve de vomitar e fechou os olhos, tentando ouvir a chuva suave que caía lá fora. Elas tiveram uma pausa de um dia antes que a chuva começasse novamente. A julgar pelas nuvens escuras, ela não achava que iria diminuir tão cedo.
Ela girou de sua posição no colchão para puxar Moby Dick e o diário que continha as páginas rasgadas que Abigail acabara de lhe dar. As peças que faltam do que aconteceu com seu pai poderiam estar aqui. As respostas para as perguntas que ela nem sabia que deveria perguntar até que Daniella a esclareceu rudemente. Ela ainda se perguntava por que Abigail deu isso a ela em primeiro lugar. Tinha que haver um motivo, um que Kelia queria descobrir. Seus dedos tremiam enquanto ela desdobrava lentamente o velho papel. Seus olhos deslizaram para Wendy e as Cegas, mas se ouviram o barulho das páginas, não deram nenhuma indicação disso.
Kelia voltou-se para os rabiscos familiares do pai.
13 de março
Sempre me perguntei o que poderia fazer para honrar a memória de Anna, e este programa é isso. Depois que Anna foi massacrada por uma bruxa do mar, jurei fazer algo para impedir. As Sombras não são a única ameaça para nós, para minha Kelia. Sereias, Lobisomens, bruxas da terra, demônios, fadas. Pelo menos, vou ajudar a erradicar o perigo que afetou minha família.
Pelos meus estudos, as sereias são imunes aos feitiços das bruxas da terra. O problema é que não estou familiarizado com as bruxas da terra ou onde alguém iria para encontrar uma. Só posso trabalhar com o que tenho à minha disposição. No entanto, meu objetivo é acasalar um Sombra do Mar e uma Bruxa da Terra para fazer uma Sombra nascer, não criada, com as habilidades mágicas de uma Bruxa da Terra. Uma que poderíamos manter sob a influência e controle da Sociedade. Se eu tivesse pelo menos um desses, tenho certeza de que seria capaz de me vingar e evitar mais baixas nas mãos das sereias.
Quando fui a Ashton Rycroft com meu plano, ele o considerou muito cruel. Sacrificar inocentes pela ciência não valia a pena, nem mesmo para conquistar sereias. Não valia o investimento. Independentemente de seu sentimento, eu persisti. O conselho vai votar, mas eles precisam falar com outra pessoa antes que seja aprovado. Quem é essa pessoa, não sei. Só sei que essa pessoa foi chamada de ela.
Esperarei ansiosamente pela resposta. Só posso rezar para que seja a meu favor.
Então era verdade.
Kelia não tinha certeza de como se sentia sobre isso. Ela sabia que isso aconteceria, mas isso não a preparou para o golpe. Seu pai parecia decidido a criar este programa para vingar sua mãe e erradicar as sereias. Independentemente de seus motivos, erradicar qualquer criatura completamente não era algo com que ela tinha certeza de concordar. Era preciso haver mais debate sobre o que constituía uma criatura e o que constituía um ser humano. Era uma linha tênue que ninguém tinha o direito de decidir.
Ela bufou um suspiro e continuou a ler. Restavam apenas duas entradas.
17 de março
Escravos.
Rycroft contratou escravos para participar do programa, pois precisamos de uma bruxa da terra e não conseguimos encontrar uma. Mas de que adianta isso? Não há elemento mágico com escravos humanos. É inútil criá-los. Rumores dizem que a Sociedade tem a oportunidade de adquirir Wendy Parsons, bruxa da terra e irmã de Drew Knight. Ela seria o espécime perfeito para testar isso.
Não sei os detalhes - Rycroft se recusa a me dizer isso. Não sei como vamos adquirir Sombras do Mar para cruzar com os escravos em primeiro lugar, a menos que a Sociedade possa dispensar um ou dois. Ouvi de Abigail que eles fizeram a rainha transformar o noivo de Wendy. Achei que talvez pudéssemos fazer com que ele procurasse com ela assim que estivesse fora dos estágios infantis, mas quando tento discutir essas opções com Rycroft, ele se recusa a falar comigo sobre o programa. Meu programa.
Eu poderia estar imaginando coisas, mas sinto como se meu programa estivesse sendo assumido pelo mesmo homem que, em primeiro lugar, não queria ter nada a ver com ele, e não sei como voltar atrás. Não sei se consigo. Quero testar minha teoria em diferentes Sombras - uma que deixou de ser outra Sombra, outra que saiu diretamente da Rainha e uma criada pela Companhia das Índias Orientais. Eu poderia documentar as descobertas, mas não tenho certeza se eles me ouvem mais.
Kelia balançou a cabeça, olhando pela janela e respirando fundo. Ela precisava de um momento. Wendy ainda estava lendo para as outras Cegas, e um rápido olhar em sua direção mostrou que ela nem havia notado Kelia fazendo nada fora do comum. Kelia afundou no colchão e olhou para o papel.
Não fazia sentido. Por que seu pai se importaria com os escravos sendo usados como alimento para os Sombra do Mar, mas não se importava em fazer experiências com eles? Ambas as ações eram cruéis e más. Criar esse monstro era realmente tão importante para ele? Ainda mais do que a vida humana?
Ela esperava que seu pai não fosse tão cruel assim, mas suas próprias palavras parecem contradizer sua esperança.
Kelia virou o papel. Seus dedos tremeram e ela descansou a página sobre o estômago para fechar os dedos em um punho. Ela precisava parar de tremer, mas não conseguia se controlar.
Apenas mais duas entradas, Starling, ela pensou consigo mesma. Você deixou por sua própria conta descobrir que tipo de homem ele realmente era. Talvez isso lhe dê uma ideia de por que ele foi morto.
A chuva continuou a cair suavemente contra o celeiro. A batida consistente acalmou o coração de Kelia.
O papel amassou mesmo com seu aperto gentil.
22 de Março
Abigail tem sido minha rocha durante todo esse tempo. Embora meu coração sempre pertencerá a Anna, acho que ela é agradável de se falar e de olhar. Ela é decididamente mais jovem do que eu, mas age como se fôssemos iguais em todos os sentidos. Sinto-me aliviado por tê-la ao meu lado.
Descubro, se estou sendo honesto comigo mesmo, que ela não é ameaçada por minha Anna. Ela sabe que este programa que quero executar é porque a perdi. No entanto, ela não me julga nem me diz como me sinto. Não importa que eu tenha perdido Anna há quase dez anos atrás. Abigail está ciente de que não posso dar-lhe todo o meu coração porque sempre será de Anna. Qualquer coisa que sobrar pertence à minha Kelia. Mas Abigail terá minha mente e qualquer afeto que eu possa dispensar a ela.
Quando conto a ela sobre os escravos, sobre os problemas em acasalar um escravo com um Sombra em vez de uma bruxa, ela me encoraja. Aparentemente, há uma Cega de nome Daniella cujo pai a mandou para cá depois de descobrir que sua mãe era uma bruxa. Era, sendo um indicador de que ela passou. Seu pai se preocupa com as habilidades de sua mãe transferidas para ela. Uma preocupação justificável, se assim posso dizer. Mas ela é muito jovem. Mal consigo colocar uma criança no programa. Estou feliz que ela seja uma bruxa do fogo e não uma bruxa da terra - é mais fácil deixá-la ir como uma cobaia dessa forma.
No entanto, isso significa que ainda precisamos encontrar uma bruxa diferente. Uma bruxa da terra, e uma que não é tão inocente quanto uma garota que nunca usou seus poderes.
Abigail se oferece para me ajudar, e fico feliz.
Podemos começar a juntar as peças.
Kelia se encolheu. A mãe de Daniella era uma bruxa. Sua história de fundo - pelo menos a que Kelia conhecia - era uma mentira. Isso significava que Daniella tinha essas habilidades mágicas? Kelia não tinha certeza. Daniella sabia muito sobre coisas que beiravam o místico - os livros proibidos nas câmaras do conselho sendo um excelente exemplo.
Mas isso não poderia explicar tudo. Se Daniella era uma bruxa, certamente ela tinha que ter algum tipo de mentor, alguém que a estava treinando.
Mais do que isso, Daniella estava certa. Sobre o programa de melhoramento. Sobre seu pai. Kelia queria...
Ela balançou a cabeça, desejando que ela soubesse sobre Daniella antes disso. Ela teria entendido seu comportamento insensível, sua atitude defensiva.
Naquele momento, alguém entrou e depositou a comida antes de sair. Wendy pausou sua história, seus olhos indo para Kelia.
Kelia baixou as mãos, mas tinha certeza de que agiu rápido demais e Wendy suspeitaria de algo. Ela continuou olhando para Kelia e franzindo a testa antes de desviar o olhar.
Kelia dobrou o papel e colocou-o de volta no diário de seu pai antes de colocá-lo sob o travesseiro. Não era o lugar mais exclusivo para escondê-lo nem o mais seguro, mas teria que servir, pois não havia outro lugar para colocá-lo. Seu estômago roncou e ela colocou a mão sobre ele, silenciando-o.
Ela sempre foi fã de mingau, mas a Sociedade se recusou a dar açúcar aos participantes para adoçar a comida. Como tal, não tinha gosto, e a única razão pela qual ela comia era porque ela não tinha outra escolha.
Ela se levantou da cama e se sentou ao lado de Cathleen no canto do colchão. Ela estava imitando Wendy e tentando falar com elas todos os dias, lembrando-as de que eram humanas e que suas vidas importavam, independentemente de como se sentissem ou pelo que estivessem passando. Kelia não obteve uma grande resposta, mas quando seus olhos a encontraram e o reconhecimento brilhou nas íris, ela soube que estava fazendo progresso.
—O que você está lendo? — Wendy perguntou lentamente, entre mordidas da refeição morna. Ela parecia aberta para ouvir o que Kelia tinha a dizer.
Kelia pigarreou e se voltou para o colchão. Ela sabia que revelava muito naquele olhar, mas ela não podia evitar o olhar natural para garantir que tudo estava como ela deixou. Afinal, Wendy lidava com a arte da magia e não seria surpresa para ela se a bruxa tivesse a habilidade de obter conhecimento com um movimento de seu pulso e um feitiço murmurado.
—Algo de imensa importância para mim — disse Kelia finalmente. Ela sentiu que havia uma chance de Wendy ser capaz de ler sua mente, mas não queria falar muito. Se ela tivesse sorte, o bloqueio da magia de Wendy também interromperia qualquer habilidade de leitura de mente, caso Wendy tivesse alguma. —É pessoal para mim e para minha família, então gostaria que fosse mantido em sigilo.
—Você acha que eu violaria sua privacidade? — Wendy perguntou. —Esse é o tipo de pessoa que você pensa que eu sou?
—Eu não te conheço, — Kelia apontou, seu tom suave. —Não sei que tipo de pessoa você é.
Wendy assentiu. —Justo.
Não houve mais conversa naquele dia. Wendy retomou sua história para as quatro mulheres, e Kelia encontrou o caminho de volta para o colchão. Ela odiava o quão lenta havia se tornado nos últimos dias. Ela desejou ter sua lâmina. Ela não tinha certeza, mas jurou que a vira nas mãos de Drew na última vez em que ele a visitara em seu quarto.
A noite em que ele admitiu saber a verdade sobre o pai dela e guardá-la para si mesmo.
Por um breve momento, Kelia se perguntou se Drew tinha ido procurá-la e se deparado com um quarto vazio. Ela se perguntou se ele se preocupava com ela, se ele se importava. O fato de ela assumir que ele se importava em primeiro lugar foi o suficiente para mostrar o quanto ela havia mudado. Uma besta era incapaz de sentir, mas de alguma forma deduzia, tentava, provocava e atormentava. A Sociedade não fazia sentido em sua doutrinação, e ela não podia acreditar que não tinha percebido isso.
Ela deslizou as mãos por baixo do travesseiro. Seus dedos sentiram o couro liso familiar do diário, e quando ela estava prestes a retirá-lo, a porta se abriu.
Ela deu um pulo. Ela não esperava uma visita.
Uma mulher que Kelia nunca tinha visto antes entrou. Apesar do tempo, ela estava imaculadamente seca, cada mecha de seu cabelo preto perfeitamente no lugar. Seus olhos claros se voltaram para cima, para o grupo de mulheres, e um sorriso deslizou por seu rosto como uma cobra.
—Está na hora, senhoras — disse ela. —Seus companheiros estão esperando.
CAPÍTULO 22
Kelia tirou a mão de debaixo do travesseiro tão rapidamente que quase puxou um músculo do braço. Ela não queria que ninguém soubesse sobre seu diário, que ela tinha algo importante para ela. Lentamente, esperando não atrair nenhuma atenção indesejada para si mesma, ela se levantou e olhou para Wendy em busca de orientação.
Wendy já estava de pé, os ombros retos, como se ela fosse para a batalha. Do canto do olho, Kelia viu as quatro mulheres empalidecerem ao ver essa mulher. Todos esperaram que Wendy se mexesse. Ela era a líder tácita entre elas, algo que Kelia concordou. Wendy parecia inquebrável.
—Bem? — A mulher bateu palmas, seus lábios pintados se curvaram em um sorriso. —Venham, venham. Temos apenas algumas horas no dia. O Sr. Rycroft foi generoso o suficiente para deixá-las usar este celeiro durante a temporada de tempestades. Em vez de enfiar vocês na prisão abaixo da fortaleza, vocês embarcam em um navio especificamente designado para esse propósito. Os Sombras não gostam de ser contidas no navio, mas saber que vocês estarão a bordo com eles logo os acalma.
Kelia não tinha ideia do que essa mulher estava dizendo. Ela poderia estar falando algo sem sentido, e faria muito sentido. Ela esperou para ver o que Wendy faria em resposta.
—Ah, você deve ser nossa recruta mais nova — disse a mulher. Ela fixou seus olhos azuis claros em Kelia. —Kelia Starling, correto? Tenho certeza de que você está deixando seu pai orgulhoso. Ele deixou um legado e tanto. Foi uma pena o que aconteceu com ele. Tirando sua própria vida e deixando sua única filha para trás.
—Ele não tirou a própria vida. — Foi bom ouvir a si mesma finalmente dizer isso em voz alta. Ela vinha mantendo isso dentro dela por meses, mas ela estava no ponto onde ela poderia finalmente contradizê-lo. Ela já estava sendo punida da pior maneira. Eles não podiam fazer nada pior com ela - a morte poderia até ser um adiamento.
— Mal-humorada, — a mulher disse. —Tenho certeza de que Rycroft gostou de quebrar você. Lembro quando ele te chicoteou na frente da academia. Você estava ensanguentada e quebrada. Foi a lição perfeita para seus companheiros Assassinos aprenderem. Mentindo com uma Sombra? Estou surpresa que você ainda esteja aqui para falar sobre isso.
—Você não está forçando todos nós a mentir com as Sombras? — Kelia perguntou. Ela foi até o corrimão para ver melhor a mulher.
—Isso é para a ciência, não para o prazer. — A mulher retrucou.
—Por que não pode ser para os dois? — Wendy brincou. — Estou certa de que assim que meu irmão me encontrar e garanto que ele o fará, matará todos vocês. Assim que ele descobrir que você forçou sua amante a tais experimentos, ele irá garantir que você sofra mais do que você pensou ser possível. Agora, Agatha, você tem certeza de que quer nos levar ao nosso destino?
—Você sempre me pergunta isso, Wendy Parsons — disse Agatha, olhando feio para Wendy. —Eu alguma vez aceitei sua sugestão de liberar você? Minha lealdade é para com a Sociedade, mesmo se eu morrer pela causa.
—Você vai provar isso para eles em breve — disse Wendy. Baixinho, ela murmurou: —Assim que eu tirar esse colar do seu fodido pescoço.
Independentemente de suas palavras, Kelia não esperava que Drew Knight aparecesse e resgatasse Wendy ou a si mesma ou a essas mulheres. Drew era o mais procurado possível. Os assassinos e os guardas foram instruídos a atirar imediatamente. Ele era um homem morto - um animal morto - andando por aí com um laço em volta do pescoço e uma adaga de prata no coração. Wendy podia valer o risco - Wendy era sua irmã. Mas Kelia... Wendy poderia usar uma tática de susto em Agatha, mas Kelia nunca tinha sido oficialmente sua amante. Ele não estava vinculado a ela de forma alguma, então ela não sentia que valia a pena ser salva - pelo menos para Drew Knight. Se Drew Knight ia salvar alguém, seria sua irmã, mas ele não o fez.
O que significava que Kelia precisava descobrir como se salvar.
Wendy foi até cada mulher, endireitou o vestido e escovou o cabelo com os dedos. Quando ela terminou, ela ficou ao lado de Kelia.
—Não é para o benefício dos Sombras, — Wendy murmurou como explicação. —É para elas. É para mostrar que elas são importantes, que ter uma boa aparência é algo que elas merecem.
Kelia não conseguia descobrir o que dizer, então não disse nada. Ela não sabia como fazer, mas iria salvar a todas. Talvez ela pudesse falar com Wendy em particular e descobrir a melhor maneira de fazer isso. Talvez houvesse uma maneira de ela remover o colar de alguém para que Wendy pudesse usar suas habilidades mágicas e escapar.
—Posso oferecer um conselho? — Wendy perguntou em voz baixa. Ela caminhou até o topo da escada e começou a descer lentamente.
—Por favor, — Kelia disse, sua voz tão baixa.
—Quando eles te pegarem, não grite — disse ela. —Você suportou muita dor. Rycroft chicoteou você - você sabe como é isso. Há muito mais cicatrizes emocionais decorrentes do estupro violento que não pude começar a curar ou expressar em palavras. No mínimo, você pode controlar como reage a eles. Não grite.
Elas alcançaram as escadas antes que Kelia pudesse responder. Isso não importava. Ela não tinha nada a dizer. Ela não sabia como se preparar para isso. Ela sentiu as lágrimas começarem a crescer. Seu coração batia forte em seu peito e ecoava por toda sua cabeça. Cada passo que ela dava combinou com seus batimentos cardíacos. Isso seria pior do que as chicotadas que ela recebeu de Rycroft. Ela sabia agora, no fundo de seus ossos, ela sabia disso.
No minuto em que Kelia pisou no primeiro andar, Agatha estendeu a mão e colocou a mão em seu ombro, fazendo-a passar por entre as outras até chegar à frente da fila. Ela tinha muito prazer em conduzir Kelia e as outras para fora do celeiro, para as docas próximas.
Kelia manteve os olhos focados em seu entorno. Ela não tinha percebido que elas estavam tão perto do porto. Ao passarem por uma entrada isolada para as docas, ela descobriu o porquê. Lá, pouco antes de um pequeno portão preto se abrir e levá-las a um caminho pavimentado até a água, havia uma pequena plataforma com um linchamento. Parecia uma forca, onde alguém foi enforcado. Onde alguém estava pendurado.
Kelia reconheceu a garota. Embora não conseguisse se lembrar do nome, ela conhecia a garota de sua época lavando pratos. Ela perguntou a Kelia sobre beijar Drew Knight. Agora, ela estava amarrada com uma corda grossa em seus pulsos à madeira atrás dela e seus pés fora do chão. Seus ombros estavam fora de suas órbitas. Ela estava completamente nua e havia cicatrizes nas costas de chicotadas. Sua pele estava totalmente rasgada e o sangue agora era marrom e uma crosta vermelha escura na pele branca. Havia mordidas em cada centímetro de sua pele, pequenas crostas cobrindo os buracos. Seu cabelo estava opaco, pendurado em fios até os ombros.
Morta.
Kelia estremeceu. Ela não conseguia descobrir há quanto tempo a garota estava morta, se ela havia sido punida alguns dias atrás ou se tinha sido semanas atrás. Ela torturou sua mente, tentando se lembrar da última vez que a vira. Kelia não conseguia nem lembrar o nome da garota enforcada e se odiava por isso. Ela era realmente tão egoísta?
O pescoço da garota estava protuberante em um ângulo estranho, e havia sangue seco endurecido em seu rosto em fluxos sob os olhos. Pássaros bicavam seus olhos.
Kelia parou de andar, tombou e vomitou. Com as mãos nos joelhos dobrados, ela não se preocupou em mascarar a dor e nojo que sentiu ao soltar a comida.
—Vejo que você percebeu nosso aviso — disse Agatha, com uma das mãos nas costas de Kelia como uma mãe faria para acalmar seu filho doente. Sua voz, entretanto, era fria ao invés de reconfortante. —Ela tentou escapar de sua primeira noite conosco, apenas três semanas atrás. Os cães a pegaram primeiro. Sua punição foi uma chicotada privada. Veja, nós a amarramos ali e Rycroft desferiu os golpes. Dez, por insubordinação, por tentar ignorar compromissos. Tentamos avisá-la, mas ela se recusou a ouvir. Assim que ela suportou sua punição, nós a deixamos lá em cima e enviamos os Sombras para um banquete. Eles fizeram muito mais com seu corpo. Seu vestido foi rasgado dela; coisas vis foram feitas ao seu corpo. De alguma forma, ela sobreviveu a tudo isso até que acordamos e descobrimos seu pescoço quebrado. Não podemos provar, mas acreditamos que alguém desejou mostrar misericórdia quebrando o pescoço.
Kelia começou a chorar. Ela ainda estava curvada, enxugando o vômito do queixo.
—Espero que você dê ouvidos ao nosso aviso, Starling, — Agatha continuou certificando-se de que sua voz soasse alta e clara sobre o som do vômito de Kelia. —Você não quer ser comida para os pássaros, quer?
Tudo em que Kelia conseguia se concentrar era em acalmar o estômago.
—Sinto muito — disse Wendy em um murmúrio baixo. —Se eu tivesse minhas habilidades, seria capaz de inventar algo para você.
—Você nem vai falar de suas habilidades, bruxa, — Agatha zombou. —Se você tivesse bom senso, faria o que é bom para você e manteria essa boca imunda fechada.
—Você não teve que dar o alarme quando Madeline fugiu. — O coração de Kelia apertou ao ouvir Wendy dizer o nome da garota. As lágrimas brotaram dos olhos de Kelia, e ela piscou rapidamente para se livrar delas o mais rápido possível, sem Wendy ver. —Ela estava com medo e, em vez de mostrar compaixão, você tocou o alarme. Você disse a todos que ela estava fugindo. Você é responsável por sua morte dolorosa. Guarde minhas palavras, você terá a sua. Você vai se arrepender do dia em que sentenciou aquela garota à morte.
Agatha empalideceu, seus dedos tremendo visivelmente enquanto ela continuava segurando o talismã de pedra.
—São mais duas chicotadas. — Disse ela.
—Vale a pena — disse Wendy.
Kelia olhou para Wendy enquanto Agatha voltava para a frente da fila. Seu estômago ainda agitava, não se recuperando totalmente do vômito, mas ela se sentia melhor agora que seu estômago esvaziou.
—Obrigada. — Kelia murmurou baixinho.
—Não me agradeça, — Wendy disse, sua voz firme, seus olhos na forma mutilada de Madeline. —Cheguei tarde demais para aliviar o sofrimento de Madeline. Ninguém sabia o que aconteceu até que ela já estava pendurada lá, com as costas abertas com o chicote de couro. Quando eles soltaram as Sombras, não havia nada que eu pudesse fazer. Eu não tenho minha magia. — Sua voz falhou e ela respirou fundo antes de continuar. —Eles cheiraram o sangue dela e ela foi aproveitada durante a noite. De onde eu estava, podia ouvir seus gritos até eles desaparecerem com a luz da manhã. — Ela cerrou os dentes, tentando evitar que a voz tremesse. —Eu deveria ter feito mais, mas não pude. As proteções me impediram de fazer isso.
Kelia não sabia o que estava fazendo, mas estendeu a mão e segurou a mão de Wendy. —Não sei como — disse ela, com a voz baixa e insegura, —mas vamos sair dessa. Nós vamos passar por isso. Não apenas você e eu... — Ela olhou para as quatro mulheres à sua frente, seguindo Agatha como uma manada de vacas estúpidas. —Mas todas nós. Eu te prometo isso.
—Eu acho que estou realmente inclinada a acreditar em você, Assassina, — Wendy disse. —Se for verdade e você possui algum tipo de relacionamento com meu irmão, você é muito mais engenhosa do que eu inicialmente esperava.
Kelia se concentrou no horizonte. A chuva estava fraca, tão fraca que caía como sussurros suaves na terra. Wendy parecia em paz na chuva, confortável e nada incomodada por ela. Kelia descobriu que também se sentia atraída pelo clima turbulento. O bater das ondas na costa, raivoso e exigente, retumbou nas proximidades. Os navios e barcos balançavam contra a superfície da água, os barcos mais leves quase tombando, mas de alguma forma conseguiram se manter à tona.
—Eu a conhecia. — As palavras saíram de sua boca antes que ela pudesse detê-las. Ela nunca confessou nada a ninguém, exceto pela vez em que começou a chorar na frente de Drew Knight por causa de seu pai. Como era apropriado que ela fizesse o mesmo com a irmã dele. —Ela... — Ela acenou com a cabeça de volta para o corpo de Madeline, mas ela não conseguia encontrar as palavras adequadas para descrevê-la apropriadamente.
—Madeline, — Wendy disse em uma voz suave. —Você conheceu Madeline.
Kelia acenou com a cabeça, mas quando ela foi repetir o nome de Madeline, ela descobriu que não poderia dizer. Sua voz engasgou com a palavra e em vez do nome, ela soltou um pequeno guincho quebrado.
—Nós, uh. — Kelia balançou a cabeça enquanto continuava a pisar com um pé na frente do outro. —Nós estávamos juntas. Lavamos pratos juntas, quero dizer. — Ela tentou piscar para afastar as lágrimas, mas elas caíram apesar de tudo. Ela enxugou o nariz com as costas da mão. —Eu não lembrava o nome dela. Quando ela mudou de posição, não a vi novamente. Eu nem liguei.
—Nós fazemos escolhas — disse Wendy. —O melhor que podemos fazer é aprender com elas. E planejar sua vingança. A vingança é a parte mais importante.
Kelia olhou para ela surpresa. —Sempre ouvi o contrário — disse ela. —Aprenda com seus erros. Siga em frente. Morda a língua, mantenha o queixo erguido.
—Isso é uma merda — disse Wendy. —Às vezes, a única coisa que me faz continuar é a expressão em seus rostos quando acabo queimando todos eles. E eu vou.
Kelia se voltou mais uma vez para o mar. De alguma forma, seus pés continuaram a se mover enquanto sua mente permanecia em Madeline. Agora, ela estava no convés de madeira frágil antes de um pequeno barco balançando nas ondas.
—Lembre-se de não gritar. — Disse Wendy em uma voz que quase foi abafada pela chuva.
Estava caindo mais forte agora, o que só poderia ser uma coisa boa.
Depois de ser violada e brutalizada, Kelia sairia do barco e cairia na chuva. Isso lavaria qualquer traço da Sombra que fosse parceiro dela e, a partir daí, ela mudaria sua pele e a tornaria mais espessa para que a próxima vez não fosse tão traumática.
Porque Wendy estava certa. A única maneira de Kelia sobreviver a isso seria sabendo, sem dúvida, que ela seria capaz de extrair uma vingança brutal e não deixar sobreviventes.
Por Madeline. Por Wendy. Para todas elas. Ela só precisava descobrir como.
CAPÍTULO 23
Passou-se quase uma semana antes de Drew Knight decidir agir. Depois do que ele descobriu com Kelia, o perigo que ela poderia correr, ele não queria arriscar deixá-la no programa por mais tempo. No sétimo dia, ele estava pronto. Ele não poderia tocar a terra até o anoitecer, e a espera foi uma agonia. Ele deveria ter dormido durante todo o dia, garantindo que quando o sol se pusesse, seu corpo estaria descansado, sua mente estaria preparada. Em vez disso, ele estava acordado, pensando em todas as diferentes coisas que planejava fazer com Rycroft, dependendo de como ele encontrasse Kelia e em que estado ela estava.
Drew caminhou para cima e para baixo no navio, seus olhos se estreitaram, seus lábios se contorceram em uma carranca. Ele estava tão furioso com o pensamento de Kelia naquele programa para ele, apenas para que ela pudesse encontrar sua irmã, que suas presas foram extraídas e pressionadas contra seu lábio inferior.
De certa forma, isso foi culpa dele.
Ele tinha um favor a pedir, e ela já havia feito o que lhe foi pedido. Não havia razão para ela continuar a fazer mais nada. No entanto, sendo a pessoa teimosa que era, quase parecia que Kelia não iria descansar até que Wendy fosse encontrada. E ele não sabia se era porque Kelia queria garantir que ela não tivesse que trabalhar com ele novamente ou se era porque ela havia assumido a responsabilidade parcial pela captura de Wendy. Afinal, foi seu pai quem criou este programa.
—Você está abrindo um buraco no convés.
Drew se virou. Embora Emma tivesse um pequeno sorriso divertido no rosto, Drew não teve coragem de reagir da mesma maneira.
—Você ouviu do seu contato? — Drew quase latiu. Ele parou de andar no meio do convés.
—Sim, claro, — Emma disse, caminhando em direção a ele, seus quadris balançando a cada passo. Ela não disse mais nada até estar na frente dele. —Daniella não respondeu a tudo o que você pediu? Ela nos contou os horários dos guardas, onde fica o novo quarto de Kelia, agora que ela é Cega.
—Seu contato, — Drew se recusou a dizer o nome dela, — também foi quem sentiu a necessidade de atacar Kelia.
—Ela descobriu o que eu me recusei a dizer a ela, — disse Emma. A diversão havia desaparecido de seus olhos. —Que o pai de Kelia criou o programa de reprodução. Você sabe o que aconteceu com Daniella quando Rycroft percebeu que tinha a filha de uma bruxa da terra.
—Gregory Starling não teria permitido que tal coisa acontecesse se soubesse. — Drew apontou. O sol quase desapareceu no horizonte. Seus pés coçaram para tocar a terra mais uma vez, para se levar até Kelia em um instante.
—E como você saberia disso? — Emma perguntou, projetando o quadril para fora e colocando a mão sobre ele.
—Você acha que eu não fiz nenhuma pesquisa sobre Assassinos que podem ter levado minha irmã? — Drew perguntou. —Gregory Starling era um homem tolo, determinado a se vingar porque o amor de sua vida foi morto por uma sereia.
—Então por que não experimentar em uma sereia? — Emma explodiu. —Por que levar Daniella? Por que levar Wendy? As bruxas da terra são muito diferentes dos demônios do mar. — Ela cuspiu, como se quisesse enfatizar seus pensamentos sobre sereias.
—Talvez ele não soubesse a diferença. — Sugeriu Drew. Se ele não estivesse tão focado em tentar tirar Kelia de sua terrível situação, ele teria sorrido com o gesto atípico de Emma. Ela era uma dama tanto quanto uma bruxa, mesmo quando se disfarçava de prostituta. Cuspir não era algo que ela fizesse. —Talvez ele pensasse que bruxas eram bruxas e ponto final.
—Talvez, — Emma permitiu. —Meu problema são as bruxas da terra sendo punidas pelas ações de uma sereia. Daniella foi punida e Wendy está sendo punida agora. Fui punida quando estive lá. Gregory Starling pode ter sido ignorante, mas ignorância não é uma defesa adequada. Ele é igualmente responsável como Rycroft.
—Mas você não culpa Kelia pelos pecados de seu pai. — Disse Drew. Seus olhos continuaram no horizonte. Faltavam apenas dez minutos para ficar preso em seu navio. Então ele poderia ir para Kelia. Ele poderia chegar até Wendy. Ele poderia libertá-las de sua prisão.
—Eu não, — Emma disse, sua voz curta. —E não acho que ela deva ser responsabilizada ou punida por suas ações. — Ela olhou para o canto do navio onde a escada descia para o convés inferior. —Você pretende envolver seu filho em sua missão de resgate?
—Seu amor por minha irmã é inquestionável — admitiu Drew, — mas essa paixão feroz não se traduz necessariamente em ajuda. Ele pode arriscar tudo.
—Você também poderia, indo atrás de Kelia, — Emma disse. Quando Drew se virou para lançar um olhar furioso em sua direção, ela já estava caminhando do lado oposto do navio, com as mãos delicadamente colocadas atrás das costas. —Não discuta comigo, Andrew Knight. Se, por algum motivo inexplicável, você se considera parcialmente - senão totalmente - responsável por tudo o que aconteceu com Kelia - suas chicotadas, sua reputação arruinada, sua participação no programa de criação - então você deve se lembrar que ela o procurou, não o contrário.
—Sim, mas fiz um trato com ela — disse Drew, — e podemos manipular a dicção para que funcione a nosso favor, mas isso não significa que seja verdade. Isso não significa que seja certo. Kelia queria saber se seu pai foi assassinado e por quê, e eu não cumpri tecnicamente minha parte do acordo. Tudo o que ela precisava fazer era descobrir com certeza que Wendy estava aqui, na Sociedade. Não apenas ela fez isso, ela se ofereceu para fazer parte do programa de reprodução para garantir que fosse o caso. Para mim. Ela fez aquele sacrifício por mim.
—Rycroft poderia tê-la forçado a estar naquele programa, Drew, — Emma murmurou. —Ela pode não ter tido escolha no assunto.
—Talvez, — Drew admitiu. —Mas a maneira como ela falou sobre isso, de fazer parte daquele programa...— Ele balançou a cabeça e caminhou para o lado do navio. Estibordo deu-lhe uma visão melhor do horizonte enquanto descansava os antebraços no corrimão, curvando as costas e sentindo o alongamento. —Ela não lutou contra isso. Ela me disse isso. Ela fez isso para encontrar Wendy, para garantir que a Sociedade a tivesse. Pelo meu bem.
—Se ela encontrasse Wendy naquele programa, como ela te contaria? — Emma perguntou gentilmente, parando ao lado de Drew no Eetibordo. Ela não o tocou - Emma não era o tipo de dar e receber qualquer tipo de afeto físico, independentemente de qual fosse a situação, mas sua presença ao lado dele era para tranquilizá-lo, tanto quanto ela pudesse. —Você deve se lembrar do que aconteceu, Drew. Eu estava lá. Eu lembro. Eu me lembro do que aconteceu com uma criança... —Ela cerrou os dentes, e Drew sabia que não devia empurrar. —Felizmente, ela saiu. Mas o que ela teve que suportar... Eu não desejaria isso ao meu inimigo. Se você não tivesse pedido que Wendy me resgatasse, eu ainda poderia estar no programa. Então, novamente, ela não teria tomado meu lugar. — Ela soltou um suspiro. —O que você está fazendo agora, no minuto em que o sol encontrar a água e derreter nela?
Drew sacudiu a cabeça para ela. —Eu pretendo ir atrás dela, — ele disse, como se isso fosse óbvio. —Só espero que nada tenha acontecido com ela.
—Você deve se preparar para isso, — disse Emma. Ela se endireitou, juntando as mãos na frente dela e descansando-as em sua cintura. —Diga-me, você ainda vai se importar com ela se sua inocência foi roubada dela? Se ela está machucada e sangrando, uma casca do que ela já foi? Você não pode saber como é...
—Eu não reivindico. — Drew nunca teve o desejo de ser violento contra uma mulher em todo o seu século de vida. Mas até o pensamento de que ele não se importaria com Kelia simplesmente por ter sido atacada causou uma onda de fúria em seu corpo. —Kelia é alguém que sempre irei...— Ele se interrompeu, sem saber o que dizer exatamente. Ele balançou a cabeça e mais uma vez se voltou para o horizonte. Só de olhar para ele se acalmou. —Você me insulta.
—Você não é como os outros homens. — Emma observou.
—Porque eu não sou um homem, — Drew disse. —Eu sou uma besta.
—Eu não gosto de homens de qualquer maneira. — Emma disse com um encolher de ombros.
Drew sorriu. O sol estava quase lá. Pintando uma longa faixa de cores brilhantes - rosa, ouro, azul, lavanda. Era bonito. Como uma Sombra, ele apreciava o pôr-do-sol ainda mais do que quando estava vivo, apenas porque isso lhe concedia sua liberdade. Quanto mais velho ficava, porém, mais percebia que tocar a terra não era tão importante quanto outras coisas. Amizades, comida, beleza em todas as coisas.
—E Christopher? — Emma perguntou, tirando Drew de seus pensamentos. —Devo mantê-lo na coleira? Ele vai se perguntar por que você foi, já que você nunca realmente sai deste navio.
—Ele só vai piorar as coisas em sua paixão, especialmente se Wendy estiver presente — disse Drew, tocando o queixo com o dedo. —E quem sabe como ela vai reagir ao vê-lo? É melhor se ele permanecer a bordo.
—Eu farei o meu melhor. — Ela murmurou.
—Seu contato, — Drew disse. —Onde posso encontrá-la? Ela vai me ajudar? Como posso confiar nela?
—Você faz muitas perguntas, Drew Knight, — disse Emma, suspirando. —Você pode simplesmente confiar em mim? Daniella estará em quartos vazios, enchendo bacias de água a partir das oito horas desta noite. Isso dá a você uma hora. Ela sabe que você virá esta noite. Eu disse a ela para encontrá-lo no antigo quarto de Kelia logo depois das oito. Você pode confiar nela. Ela detesta a Sociedade quase tanto quanto você. Seu pai, quando descobriu que sua mãe era uma bruxa... —Emma deixou sua voz sumir, mas a raiva brilhou em seus olhos. —A Sociedade se ofereceu para levá-la, para garantir que ela nunca assumisse seus poderes. O que eles fizeram com ela, eu nem posso falar sobre isso. Mas você pode confiar nela, mesmo depois do que ela fez com Kelia. Talvez até por causa disso. O objetivo era encontrar Wendy, correto? De qualquer maneira possível. E agora, Kelia pode fazer exatamente isso.
—Daniella sabia que Wendy fazia parte do programa? — Drew perguntou.
Emma encolheu os ombros. —Tenho certeza que ela percebe, sim, mas não porque ela conheceu Wendy. Wendy caiu em suas mãos depois de me ajudar a escapar. Daniella foi removida do programa antes. — Emma fez uma pausa. —Eu confio nela, Drew. E se você confia em mim, isso deve ser o suficiente.
Drew não tinha tanta certeza disso, mas aceitaria a palavra de Emma apenas porque ela nunca o conduziu para o caminho errado. Ele voltou para estibordo e esperou o sol ir embora. Ele tamborilou com os dedos na lateral do navio, bateu com o pé. Ele precisava ir embora agora, mas partir mais cedo seria sua morte absoluta, e ele não podia arriscar isso, nem mesmo por Kelia.
No minuto em que o sol desapareceu, ele remou de seu navio para a terra, usando o pequeno barco a remo com a mesma velocidade que alguns homens corriam. Ele sabia para onde estava indo como conhecia a cor dos olhos de Kelia. Ele não precisava pensar nisso. Ele não teve que parar e se lembrar. Chegar à fortaleza era parte dele, uma urgência que não se comparava a nada mais.
Árvores reagiram segundos depois de ele já ter passado por ele. Houve uma reação retardada quando a sujeira foi levantada atrás dele também. À medida que a selva ficava mais habitável, com mais casas, mais luzes, mais ruídos, Drew acelerava. Ele não precisava que ninguém o reconhecesse, nem mesmo suspeitasse dele neste momento, não quando ele tinha que estar em algum lugar.
A fortaleza estava à vista. Ele já sabia onde era o quarto de Kelia. Ele só precisaria pular a parede, cruzar o telhado e cair. Ainda bem que a chuva quase parou. A névoa enchia o ar e gotas suaves caíam do céu como lágrimas caindo de uma mulher que tentava manter sua tristeza sob controle. O frio não o deteve. Na verdade, a névoa o escondeu, e ele encontrou o telhado sem ninguém soando o alarme, sem ninguém sequer perceber que ele estava lá.
Ele pulou no telhado sem precisar escalar a parede e alcançou o quarto de Kelia sem problemas. Não havia luz emanando de sua janela. Ele esperava que talvez todos estivessem enganados e ela ainda estivesse protegida dentro de casa, mas não foi esse o caso. Ele abriu a janela dela e saltou para o quarto dela sem fazer barulho. Ele se virou para fechar a janela quando uma voz rompeu o silêncio.
—Bem na hora. Estou surpresa.
Drew não disse nada e terminou sua tarefa antes de se virar e perceber o contato de Emma. Ela era mais alta do que Kelia por cerca de meia cabeça, o que a colocava na altura do nariz. Seu cabelo ruivo estava puxado para trás com fitas e presilhas e ela usava um vestido cinza familiar. Seus olhos castanhos estavam estreitos com desconfiança óbvia, seus lábios pressionados em uma linha branca e fina enquanto ela o estudava sem medo. Ou talvez ela estivesse com medo, mas ela havia aprendido através da experiência as formas apropriadas de mascarar isso. Ela segurava uma grande jarra, provavelmente cheia de água. Ela a colocou no boudoir antes de retomar sua inspeção dele.
—Daniella? — Sua voz era curta. Ele não se importou se soasse rude. Ele queria agir rapidamente e não podia perder tempo para sutilezas.
—Isso. — Ela deu um passo à frente. —Emma disse que você precisaria da minha ajuda pessoalmente?
—Leve-me ao programa de criação, — ele instruiu. —Você sabe onde fica, certo?
—Como cega, estou comprometida com minha tarefa — disse ela. —Eles ficariam desconfiados se eu não a completasse.
Drew franziu a testa. —Você sabe onde fica o acampamento, então? — Sua voz estava rouca. Ele sabia que estava parecendo rude, mas não conseguia encontrar nele sua aparência habitual de um cavalheiro encantador. O tempo estava fora da essência. Ele não sabia se Kelia estava segura, em uma cama, dormindo, ou se sua pele estava sendo rasgada e sua inocência sendo devorada. —Eu preciso saber agora.
Daniella saiu de sua posição ao lado do boudoir e foi até a janela. Drew a seguiu.
—Você consegue ver o celeiro bem ali? — Ela apontou para a silhueta de um grande edifício. Drew conseguia distingui-lo facilmente à distância. Ainda estava dentro da fortaleza e nas terras da Sociedade. —Depois que Kelia foi aceita no programa, eu os segui. Se ela ainda não foi levada para seu companheiro, ela estará lá.
—E onde são mantidos os companheiros?
Daniella balançou a cabeça. —Eles os movem, da mesma forma que fazem o programa de criação. Mas geralmente os dois são mantidos por perto.
Drew assentiu, mas algo ainda o incomodava. Ainda havia perguntas que ele queria respondidas. —E por que ela foi designada para o programa? Você pode me dizer isso?
Daniella deu um passo para trás e desviou o olhar. —O objetivo era encontrar Wendy e libertá-la — disse ela. —Não importa o custo.
Drew franziu a testa com sua resposta enigmática, mas não havia tempo para se preocupar com isso agora.
—Obrigado. — Ele se forçou a dizer. Ele se virou para a janela, preparando-se para ir para o celeiro.
—Você se preocupa com ela. — Daniella murmurou antes que ele pudesse sair.
Drew não disse nada e saiu. Ele não achou que fosse necessário dignificar seu choque com uma resposta, mesmo que fosse verdade.
CAPÍTULO 24
Agatha tinha um sorriso no rosto, no qual Kelia não confiava, já que Wendy foi a primeira a subir no barco. Kelia foi forçada a seguir, quisesse ou não. Como ovelhas, as quatro mulheres seguiram o exemplo. Suas bochechas queimaram com o calor, apesar de estarem rodeadas pela névoa, apesar do toque suave da chuva em sua pele e roupas. Seus pés se moveram como se estivessem amarrados a âncoras, recusando-se a cruzar o convés. Ela preferia ficar em um lugar.
—Por que estamos em um barco? — Kelia perguntou. —O sol, o pouco que havia, se foi. Os Sombras podem tocar a terra. Por que não os deixar?
—E limpar a bagunça? — Havia uma expressão de nojo no rosto de Agatha enquanto ela olhava para Kelia como se ela fosse uma espécie de idiota. —Podemos controlá-los se estiverem no barco. Saber que você está indo, saber que eles podem se alimentar de você, os obriga a ficar.
—Você os transforma em monstros devastadores. — Rebateu Kelia.
Wendy passou por ela e parou perto de uma pequena escada que parecia levar para o convés inferior.
—Mantê-los confinados quando precisam ser capazes de liberar sua energia.
—O que você acha que serve? — Agatha saiu do cais e entrou no barco. —Agora, vou mostrar a qual estábulo você será designada.
Ela entrou em uma pequena cabine acima do convés. De onde Kelia estava, era difícil para ela entender o que, exatamente, Agatha estava fazendo ali. No entanto, ela foi capaz de ouvir os sons reveladores de um fósforo sendo arrastado para a madeira antes que uma chama ganhasse vida. A cabine brilhava naquele ponto. Agatha emergiu, com a mão primeiro, segurando a vela, e fechou a porta atrás dela.
O coração de Kelia continuou batendo furiosamente em seus ouvidos. As mulheres seguiram Wendy até a escada, alinhando-se atrás dela como patinhos atrás da mãe. O medo começou a percorrer seu corpo e, embora ela não quisesse demonstrá-lo, ela não pôde deixar de senti-lo. Não havia como escapar disso, não desta vez.
—De quem é esse quarto? — Kelia perguntou.
—Aquele quarto é irrelevante — disse Agatha. Seus olhos escuros brilharam com diversão, como se soubesse que Kelia estava tentando ganhar tempo antes que elas fossem para o convés inferior. —Fique de boca fechada e desça. Isso nos pouparia muito tempo.
Agatha viu o olhar de Wendy e sua diversão desapareceu. Ela assentiu, como se dissesse: É hora de você descer do convés e enfrentar seu destino mais uma vez.
Wendy apertou sua mandíbula e ela se virou e desceu a escada. Agatha fez com que Kelia ficasse na retaguarda, como se prolongar o inevitável tornasse o primeiro encontro muito mais satisfatório para Agatha.
A escada rangeu com o peso do grupo. Um dos painéis de madeira estava solto e o estômago de Kelia vibrou quando ela pisou nele.
No minuto em que ela alcançou o chão, ela podia ouvir seu batimento cardíaco acelerar ainda mais alto. Estava muito quieto. Essas Sombras deveriam estar famintas e isoladas. Se elas tivessem retido algo de sua humanidade antes de serem transformadas, seu tratamento aqui acabaria com isso. Kelia ainda não tinha certeza da verdadeira natureza de uma Sombra do Mar. A Sociedade fez questão de enfatizar suas tendências bestiais, o jeito que elas eram completamente diferentes dos humanos, o jeito que elas não tinham alma, o que tornava matá-las mais fácil.
Mas depois de conhecer Drew Knight, depois de estar em torno de sua tripulação repleta de Sombras, ela não tinha tanta certeza. Mesmo seu encontro com Christopher Beckett, um homem recentemente transformado, a deixou mais curiosa do que com medo. Ele estava atualmente nos estágios preliminares de ser uma Sombra, o que deveria torná-lo mais perigoso. Em vez disso, ele era encantador, bonito, arrogante e completamente focado em encontrar sua prometida. Talvez o temperamento da Sombra tenha se resumido a sua criação.
—Agora, — Agatha disse quando eles entraram em um corredor cheio de portas fechadas. Não parecia haver uma galera, o que disse a Kelia que esses barcos foram projetados especificamente para esse propósito. Ela zombou com amargura da traição de seu pai. —Cada companheiro, como você sabe, terá uma chance com você para garantir que encontremos a mais alta capacidade de engravidar você. O que significa não se apegar muito ao seu parceiro atual porque você mudará. Um conselho: você está aqui com um propósito e apenas um propósito. Não tente falar com esses monstros. Não tente racionalizar com eles. Eles não são como você e eu, mesmo que tenham a mesma aparência. Eles não têm sentimentos. Eles estão condenados, e uma vez que encontrem sua morte para sempre, eles apodrecerão no Inferno.
—Como eles podem apodrecer no Inferno se não têm alma? — Wendy falou lentamente com uma voz cansada.
Agatha lançou um olhar penetrante para Wendy e depois voltou sua atenção para Kelia. —Você tem alguma pergunta, Starling? Algumas vezes - embora seja uma ocorrência rara - alguém não sobrevive ao seu primeiro companheiro. Certamente espero que isso não aconteça com você. Mantenha um semblante forte. Ouvi dizer que você fica enjoada no mar. Vomitar em seu companheiro só vai deixá-lo com raiva, muito provavelmente.
—Por que você não mostra a ela como fazer isso, Agatha? — Wendy brincou, encostando-se na porta de um dos quartos. Todo o seu comportamento era indiferente, algo que Kelia não entendia. Ela parecia calma sobre o que iria acontecer, como se não importasse. Isso, ou a situação era tão terrível que não havia razão para lutar contra ela. —Finja que você é inocente o quanto quiser, mas nós duas sabemos que sua boceta viu mais ação do que a minha.
A cor sumiu do rosto de Agatha ao ouvir tal palavra.
—Eu lançaria fogo em você e observaria você queimar sem pensar em salvá-la — Agatha murmurou. — Não sei por que estamos deixando os Sombras fornicar com você quando você é uma bruxa da terra e Starling queria se vingar das sereias. Não sei por que é tão importante quebrá-la quando deveríamos simplesmente nos livrar completamente de você e jogar seu corpo no fogo ou amarrar âncoras em seus tornozelos e fazer você se afogar no mar. Mas acredito que a Sociedade vai perceber isso por si mesma em breve, e vou me oferecer para incendiá-la.
Wendy não disse mais nada. Em vez disso, ela se alinhou na frente do quarto para a qual foi designada e esperou. Ela evitou olhar para outra pessoa. Kelia não sabia se era porque ela não queria distraí-las ou se ela queria se concentrar em seus próprios problemas.
—Vá em frente, então, — Agatha disse, lentamente recuando até a escada de madeira da qual elas tinham acabado de sair. —Entrem e cumpram seu dever. Iremos recuperá-las em uma hora, se nos lembrarmos.
—E se decidirmos não entrar? — Kelia não conseguiu deixar de perguntar. Ela inclinou a cabeça para poder olhar para Agatha. Seus dedos coçaram para abrir a porta por pura curiosidade, mas seus pés estavam firmemente enraizados no lugar, não querendo dar um passo adiante.
—Devemos andar pelo corpo pendurado nos elementos enquanto falamos mais uma vez? — Agatha perguntou. —Você está aqui por uma razão e apenas uma razão. Se você decidir fugir de seu dever, nós a pegaremos. Vamos puni-la com uma morte pior do que esta vida. Saiba disso.
Kelia sabia disso. O corpo de Madeline brilhou em sua mente, e ela teve que se conter para não se sacudir e vomitar de náusea com o estômago vazio. Em vez disso, ela se virou para a porta e respirou fundo. Ela fechou os dedos em punhos e pressionou as unhas nas palmas das mãos.
Sem esperar por mais instruções, cada mulher deu um passo à frente e bateu duas vezes - alto e distintamente. Kelia fez o mesmo. Talvez ela estivesse avisando a Sombra que ela estava aqui, preparando-o. Então, elas estenderam a mão e puxaram a maçaneta da porta, abrindo a porta e entrando. Mesmo na escuridão, Kelia podia ver o brilho iridescente da prata líquida. Não admira que as Sombras não pudessem escapar. Eles estavam literalmente enjaulados.
Ela hesitou. Sua garganta estava seca. Seus dedos, enrolando em torno da maçaneta da porta, tremeram. Ela odiava estar com medo, incapaz de fazer qualquer coisa em relação a sua situação.
Ela engoliu em seco. Ela respirou fundo novamente. Ela não os deixaria ver seu medo. Ela não deixaria a Sombra sentir o cheiro nela. Ela seguiria o conselho de Wendy. Ela não gritaria. Ela não iria reagir. Ela se deitaria e olharia para o teto, contando os segundos até que tudo acabasse.
—Por que você hesita, Assassina? — Agatha perguntou, parando ao lado de Kelia. —Você não hesitou quando abriu as pernas para Drew Knight. Você sabia que eventualmente seria pega e punida por seu comportamento pecaminoso.
—Eu esqueci que você estava lá. — Disse Kelia. Ela grunhiu e abriu a porta. Ela preferia enfrentar quaisquer horrores que estivesse ali em vez de ouvir o lixo que vinha dessa mulher.
Antes que Agatha pudesse dizer mais alguma coisa, Kelia entrou no quarto escura e fechou a porta atrás dela. A fechadura clicou, dizendo a Kelia que ela agora estava trancada. Ela não se moveu de sua posição ao lado da porta, mas esperou até que seus olhos se acostumassem com a escuridão.
—Eu posso ouvir você respirar, Assassina. — Uma voz murmurou. Era sedosa, sedutora e acentuada. Espanha, se ela tivesse que adivinhar. Deslizou por sua espinha como uma serpente e fez sua carne arrepiar.
—Bom para você. — Ela retrucou, embora sua voz saísse mais trêmula do que ela teria preferido.
—Você é nova. — Ele cheirou profundamente algumas vezes. —Eu posso cheirar sua pureza. Estou honrado por você ter me permitido reivindicar sua virgindade. O sangue sempre tem um gosto mais doce quando é o primeiro.
—Bem, você está enganado. — Kelia forçou a voz para se certificar de que saísse mais fortes do que da primeira vez. Ela se virou, tentando identificar de onde vinha a voz. Tudo ficou em silêncio, exceto por sua respiração. Ela não conseguia nem ouvir o que estava acontecendo nos quartos adjacentes ao dela. —Em primeiro lugar, eu não estou permitindo nada a você. Estou aqui contra a minha vontade, como você certamente bem sabe. Em segundo lugar, a única razão pela qual estou aqui é por causa do meu relacionamento com Drew Knight. Tenho certeza que você já ouviu falar dele?
O Sombra cuspiu. —Drew Knight é um traidor de sua própria espécie, — ele retrucou, sua voz se tornando áspera e ligeiramente zangada. —A Rainha o escolheu como seu parceiro, concedeu a vida eterna a ele e ele a traiu em troca.
Kelia ficou imóvel. Isso era interessante. Talvez ela pudesse mantê-lo falando. Talvez ela pudesse prolongar seu ataque. Ela sabia que teria que aguentar esta noite. Não haveria como escapar disso. No entanto, pelo menos, ela poderia ser capaz de adquirir informações que ela poderia compartilhar com Wendy para ajudar a executar seu plano de se libertar deste inferno.
—Talvez ela merecesse. — Disse Kelia lentamente. Ela não sabia se disse a coisa certa, mas sabia que sua voz não estava tão trêmula quanto antes.
A Sombra cuspiu novamente. Kelia olhou para baixo, mas além do toque ocasional de marrom, tudo ao seu redor ainda estava envolto em sombras.
—A Rainha é tão generosa quanto uma mãe — disse o Sombra. Ele parecia mais perto dela, mas quando ela se virou, ele não estava lá. —Tão bonita como uma amante. Ela nos traz vida. Nós somos seus filhos. Nosso objetivo na vida é agradá-la.
—A Rainha criou você? — Kelia perguntou.
—A Rainha cria todos nós. — O Sombra respondeu.
Kelia fez uma pausa. —Então quem criou a Rainha? — Ela perguntou. —Eu pensei que a Sociedade tivesse criado você.
A Sociedade nunca disse a ela que havia uma diferença no temperamento de uma Sombra e quem os criava. Ela simplesmente sabia que os infantes eram mais bestiais do que os mais velhos. Agora, entretanto, ela não podia deixar de se perguntar se havia mais em uma Sombra do que simplesmente sua idade. Como os pais, o Criador do Sombra - independentemente de quem fosse – tinha algum efeito em seu filho?
O Sombra riu. —Você não sabe de nada, Assassina. A Sociedade faz Sombras com o temperamento de armas implacáveis. Eles pregam que as Sombras nada mais são do que animais, então eles criam Sombras que correspondem a essas expectativas. A rainha, tão cruel quanto bonita, se alimenta de humanos. Quando ela pega, ela dá. Os criados pela Rainha também são bestas, embora possam controlar seus temperamentos à medida que envelhecem e ganham mais experiência como Sombra. Seu Drew Knight foi a primeira Sombra que ela criou. Suponho que seja por isso que ela está tão apaixonada por ele.
Kelia apertou a mandíbula. Seu coração acelerou, tornando difícil respirar.
—Drew foi feito pela Rainha? — Ela perguntou.
—A maioria de nós foi, e aqueles que não foram ainda são bem recebidos por ela. — Ele suspirou, quase caprichosamente. —Anseio ir para a Ilha de Sangre. A Rainha me enviou aqui para ajudar nesta experiência. Eles precisavam das Sombras, ela queria ajudar. Eu faria qualquer coisa por ela, qualquer coisa. Você sabia que Rycroft queria acasalar você conosco? Para ver se poderíamos criar vida, mesmo na morte?
Kelia quase miserável. Podia ter a ver com seu enjoo, mas ela tinha a sensação de que tinha mais a ver com Rycroft tentando pegar o programa de seu pai e torná-lo pior do que era antes, tornando-o uma punição para aqueles que não caíram na linha em vez de algum tipo de experimento científico nojento baseado em vingança.
—Em primeiro lugar, pensei que Rycroft fosse contra a implementação deste programa — ela conseguiu dizer. —Por que ele mudaria de ideia?
—Você acha que alguém como Rycroft confia em mim? — A Sombra perguntou. —Talvez o homem só queira controlar as Assassinas que saem da linha. Aquelas que já se entregam à nossa espécie de boa vontade.
Ele fez uma pausa e Kelia sabia que o havia perdido. Ela podia senti-lo se aproximando dela, mas não porque ela pudesse ouvir seus passos. Era apenas algo que ela sentia. Como um instinto dizendo que ele estava bem atrás dela, se ela inclinasse a cabeça ligeiramente para trás, ela o sentiria.
—Aí está seu coração batendo mais uma vez, Assassina, — ele disse. Sua voz acariciou sua orelha e deslizou pelo lado de sua garganta. —Você disse que Drew Knight reivindicou você? Eu não sinto o cheiro dele em você. Veja, Assassina, se um Sombra afirma inocência, seja de um homem ou de uma mulher, o cheiro perdura pelo resto da vida. Eles sempre farão parte de você. Não há nenhum cheiro em você, o que me diz que sua inocência está intacta. Só pensando em devorar você...
Kelia se afastou. —Há quanto tempo você é uma Sombra? — Ela perguntou.
Ele parecia gostar de falar sobre si mesmo. Talvez ela pudesse distraí-lo um pouco mais, obter mais algumas respostas.
—Você sabe que eu terei você esta noite, Assassina, — o Sombra disse. —Por que adiar o inevitável?
—Eu não sei — disse Kelia honestamente. —Talvez eu queira alguma aparência de controle, um último resquício dele, antes que seja forçada a sucumbir ao meu destino. Isso é tão difícil de entender?
—Você acha que eu gosto de ficar enjaulado aqui, apenas ser alimentado quando eles trazem humanas muito jovens para mim como comida? — O Sombra perguntou. —Você acha que eu quero despertar o medo em minha parceira? Você acha que eu quero minha comida com medo de mim. A Sociedade não vai me deixar tentá-las, não vai deixar que as manipulem com minhas habilidades. Essas bugigangas em volta do seu pescoço protegem de toda a magia deste mundo... não apenas da magia das bruxas. Seria muito mais prazeroso para você e seria mais fácil para mim. Gosto de ser poderoso, mas não gosto de resistência. Se eu pudesse, todas vocês estariam implorando para ir para a cama comigo.
Kelia bufou antes que pudesse se conter. Antes que ela percebesse, os dedos se fecharam em sua garganta e ela foi erguida no ar pelo Sombra. Ela começou a tossir e engasgar.
—Você acha meus sentimentos engraçados, garota?
Sombras dançaram no rosto da fera. Kelia olhou para o rosto bonito. Pele lisa cor de oliva, principalmente sem cor. Olhos escuros e raivosos ficaram vermelhos. Cabelo preto encaracolado. Um corpo magro e musculoso. Ele estava vestido com roupas rasgadas - o que antes costumava ser uma túnica branca e calças pretas.
Ele era lindo. E ele não teria nenhum problema em quebrar seu corpo e tomar o que queria.
CAPÍTULO 25
Kelia não conseguia respirar. Ela estava perdendo oxigênio. Estrelas dispararam em sua visão, e ela agarrou a mão que segurava sua garganta, sem sucesso.
Então era assim que ela morreria. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela tinha tanto que queria fazer. As mulheres que ainda estavam aqui... ela não queria deixá-las nesta vida. Ela queria escapar da Sociedade...
Ela deveria ter ido com Drew. Ela deveria ter partido.
Sua garganta apertou. Sua visão ficou vermelha. Seu aperto na mão da Sombra afrouxou. Ela não podia fazer mais nada para lutar...
Um grande estrondo a fez esquecer momentaneamente que estava perdendo oxigênio. Agatha gritou ao longe. A madeira amassou e a porta se desintegrou em um monte de poeira.
—Espero não estar interrompendo nada muito urgente. — Disse uma voz familiar.
Kelia teria rido se não estivesse quase perdendo a maior parte de seu oxigênio devido ao aperto do Sombra em sua garganta. Ela conseguiu se afastar do rosto da Sombra, suas mãos agarrando as dele enquanto ela tentava se libertar de seu aperto. Não adiantou, é claro. Seu aperto era feroz e implacável.
Drew Knight, no entanto, estava de alguma forma parado na porta do quarto para o qual ela foi designada, seus olhos escuros estreitados ferozmente, sua postura curvada, como um gato selvagem rastreando sua presa. Como ele conseguiu tocar a porta, quanto mais quebrá-la, com a prata líquida encharcando a madeira, Kelia não sabia e nem se importava. Ele parecia inquieto, no entanto, não muito fraco, mas não com sua força total. Ela esperava que ele não tivesse se machucado de alguma forma.
Seu coração batia forte no peito, e ela não podia deixar de pensar que Deus, ou talvez seu próprio pai, havia enviado a ela um anjo da guarda na forma de uma Sombra do Mar.
—Deixe-a ir, — Drew disse, levantando-se devagar e dando um passo e depois outro ao entrar no quarto. O chão parecia vibrar a cada passo. Kelia podia ouvi-lo tremer, mesmo de sua posição no ar. —Ou vou arrancar sua garganta e pintar esta sala com seu sangue.
—Você faria isso com sua própria espécie? — A Sombra perguntou.
—Eu nem hesitaria. — A voz geralmente arrastada de Drew era clara e concisa. Ele parou quando estava a poucos passos da Sombra. Até agora, ele ainda não tinha olhado para Kelia. Todo o seu foco estava no homem Sombra.
Kelia se contorceu, mas descobriu que, ao fazer isso, perdia mais ar do que quando ficava parada. Ela cravou as unhas na pele do Sombra, mas ele não parecia afetado por isso.
A Sombra lentamente colocou Kelia no chão. No minuto em que ele a soltou, ela caiu no chão. Ela sugou o máximo de ar que pôde, quase engasgando com isso também.
Ela podia sentir os olhos de Drew sobre ela, e quando ela olhou para ele, ela encontrou seu olhar. A preocupação era fácil de decifrar nas piscinas quentes de marrom, e seu interior derreteu. A maneira como ele olhou para ela a fez se sentir especial, cuidada.
—Eu deveria matar você, — A Sombra disse, cuspindo aos pés de Drew. —Você é um traidor.
—Eu não me alinho com ninguém, — Drew disse com um encolher de ombros. A calúnia voltou e seus lábios se curvaram em um pequeno sorriso. —Todos os assessores são terríveis, se você pensar bem.
Kelia conseguiu se colocar de pé. Ela respirou fundo novamente, posicionando seu corpo para que pudesse atacar o melhor que pudesse no caso de o Sombra vir atrás dela mais uma vez. Ela não podia confiar que ele obedeceria a Drew, especialmente considerando que ele a estava olhando com um cálculo frio, como se quisesse machucar Kelia de alguma forma apenas para obter uma reação de Drew.
Algo brilhou. A Sombra estava usando algo - uma bugiganga, talvez? Mas por que?
Pela milésima vez, ela desejou ter sua lâmina confiável pendurada em seu quadril. Ela não precisaria de Drew para destruir a porta e atacar Agatha, o sangue escorrendo de sua garganta como fitas. Ela morreria em segundos.
—Seu cheiro nem estava nela — disse a Sombra. —Ela disse que não era tão pura quanto cheirava. Ela afirma que você possui a inocência dela. Mas não posso sentir seu cheiro nela. Ela mente em seu nome?
—Por que qualquer humano, especialmente uma Assassina, mentiria sobre tal coisa? — Drew perguntou lentamente.
Kelia vigiava Drew e suas características faciais. Ela não tinha certeza de como ele reagiria ao ouvir isso. Ela não tinha planejado falar com ele sobre isso. Ele poderia saber que ela mentiu sobre a natureza de seu relacionamento para protegê-la e sua verdadeira intenção de descobrir o que aconteceu com seu pai, mas ele não precisava saber que ela também estava usando seu nome para se proteger de outras Sombras.
—Então, você admite sua afirmação? — O homem Sombra se voltou para Kelia.
Kelia ficou tensa, sem saber o que a Sombra pretendia fazer. Drew Knight era provavelmente uma das criaturas mais rápidas deste planeta, mas isso não significava que ele poderia impedir uma Sombra de atacar Kelia se ele tivesse velocidade semelhante.
—Não admito nada para você — disse Drew. —Kelia não pertence a ninguém além dela mesma. Ela não pode ser reivindicada. Ela não pode ser levada a menos que dê seu consentimento. Você não é ninguém para mim, e a natureza do meu relacionamento com ela não é da sua conta.
O homem Sombra parecia confuso, como se ele não pudesse entender como Drew estava falando sobre respeitar uma mulher humana. Mais do que isso, uma Assassina, uma inimiga mortal das Sombras do Mar.
Kelia, por outro lado, também não conseguia acreditar no que Drew havia dito, mas por motivos diferentes. Ela sabia que ele era único - ele se comportava de forma inesperada, desde a noite em que se conheceram -, mas ela não esperava que ele falasse sobre ela dessa forma, especialmente para um companheiro Sombra.
—Você já violou mulheres antes? — Drew exigiu. Ele deu um passo mais perto do homem Sombra.
O homem Sombra olhou para trás de Drew, provavelmente calculando o quão rápido ele precisava ser para passar pela porta sem que Drew Knight o pegasse.
Impossível. Tudo o que Drew precisava fazer era estender a mão e agarrar a Sombra pelo colarinho. A Sombra não tinha como escapar. Ele estava preso em uma gaiola sem grades.
Antes que Kelia soubesse o que estava acontecendo, a Sombra disparou atrás dela e passou o braço em volta do pescoço dela, para que sua mão fosse pressionada contra seu peito nu. Sua outra mão estava segurando sua cintura, posicionando-a de forma que ela cobrisse grande parte de seu corpo. Ele a estava usando como uma espécie de escudo contra Drew, e a mão em seu peito estava posicionada para mostrar a Drew que ele poderia estrangulá-la ou afundar suas presas em seu pescoço mais rápido do que Drew poderia salvá-la.
O rosto de Drew empalideceu. Kelia não entendeu a expressão de terror absoluto em seu rosto. Ela nunca o tinha visto parecer tão preocupado antes. Sua boca caiu em uma forma de 'o' surpresa, destacando suas maçãs do rosto acentuadas. Não havia como mascarar seus sentimentos, nem fingir que estava com medo do que poderia acontecer com ela.
—Você, — Drew começou lentamente, sua voz nítida, seus olhos se estreitaram na garganta de Kelia. —Você está jogando um jogo muito perigoso, companheiro.
—Então é verdade, — o outro Sombra murmurou, mais para si mesmo do que para Drew. Kelia tentou se concentrar em seu posicionamento atrás dela. Talvez houvesse uma maneira de ela se libertar, ou pelo menos distraí-lo antes que ele pudesse machucá-la - ou pior. —Você se importa com esta humana.
Kelia fez uma pausa em seus cuidados para olhar para Drew. Era errado que ela estivesse curiosa para saber a resposta? Não deveria importar para ela, mas importava. Ela o havia considerado cruel e reservado, que ele a olhava como se ela não fosse confiável nem um pouco. Ele tinha adquirido tudo o que precisava dela. Não havia razão para vê-la novamente.
Mas ele a pegou completamente de surpresa. Ele sabia que Wendy estava aqui também, mas de alguma forma, ele estava aqui com Kelia, tentando salvá-la.
—O que você quer? — Drew perguntou. Ele evitou completamente a pergunta - não uma negação, não uma admissão.
—Eu quero fugir — disse ele. —Eu quero ser livre.
—Você é uma Sombra do mar, — Drew disse. —Você nunca será livre. Sua vida sempre será controlada pelo sol e pela lua, pela maré e pelas ondas. A única maneira de se libertar dessa miséria é morrer sua morte real.
—Eu não quero morrer — disse o Sombra. Kelia não podia vê-lo, então ela não podia dar uma olhada nele enquanto ele falava. No entanto, ela podia sentir seu aperto sobre ela apertar e suavizar com cada palavra. —E eu não vou precisar. Eu voltarei para a Rainha. Ela vai cuidar de mim. Ela é a mãe de todas as Sombras.
A mandíbula de Drew travou. Kelia notou isso. Ela queria mais informações sobre esta rainha, especialmente considerando que Drew não parecia gostar dela nem um pouco.
—Ela não vai levar você a menos que você tenha algo que a beneficie. — Drew disse, sua voz fria.
A Sombra parou atrás de Kelia e ela quase sorriu. Se Drew estivesse correto, a outra Sombra não tinha nada que ajudasse em sua causa.
—Você não acha que informações sobre o seu paradeiro seriam benéficas para ela? — O homem Sombra falou lentamente.
A respiração dele fez cócegas na nuca dela e levou tudo para não se contorcer embaixo dele. Ela cerrou os dentes, mantendo o corpo firme e sólido para o caso. Apenas no caso de ela encontrar uma abertura que pudesse usar a seu favor.
—Mais do que isso, — o Sombra continuou, —se eu levasse esta garota para ela, você não acha que isso a beneficiaria? Saber que sua primeira progênie encontrou outra pessoa para se consumir? Você está disposto a partir o coração de sua Rainha, eu me pergunto?
—Ela não é minha rainha, — Drew rosnou. Suas narinas dilataram enquanto ele falava. —E ela não saberá de nenhuma dessas informações porque eu irei massacrar você e pintar o oceano de vermelho com seu sangue. Os peixes comerão bem esta noite.
—Veremos — respondeu a Sombra. —Se eu sair daqui vivo, você vai morrer. Você sabe disso, não é? Não será apenas a Sociedade e a Companhia das Índias Orientais atrás de você. Ela estará atrás de você também. Ela o deixou entregue à sua sorte por quase um século depois que você a traiu, esperando pelo dia em que você voltaria rastejando para ela por conta própria. A rainha é paciente e deseja lealdade de coração. Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ela descobrir que você entregou seu coração a outra, ela o chamará. E você não pode recusar uma convocação da Rainha.
Kelia fixou o olhar em Drew, mas ele parecia imperturbável com essa afirmação.
Ela tentou equilibrar sua respiração. Isso era informação demais, rápido demais. A Sociedade nunca tocou na Rainha, exceto como a Criadora. Ninguém pensou em perguntar quem criou a Rainha ou como ela afetava aqueles que transformava.
As presas de Drew caíram, cobrindo seu lábio inferior. Seus olhos escureceram e se estreitaram na outra Sombra. Seu corpo inteiro estava curvado, pronto para saltar quando ele precisasse entrar em ação e tirá-la de lá. A maneira como ela praticamente cobriu o corpo inteiro da Sombra, no entanto, não deixou espaço para erros. Se Drew ia atacar, ele precisava ser preciso.
Quando ele não respondeu, o Sombra o cutucou ainda mais. —O que você vai fazer então, Sr. Knight? O que fará quando você não puder mais fugir da Rainha? Quando você quebrou o coração dela e atraiu sua ira?
Drew rosnou. —Eu farei o que sempre faço - o que eu quiser.
—Não mais. — Ele parecia divertido. —Agora você vai fazer o que eu quiser. A menos que você queira que sua amante morra na sua frente, sendo você incapaz de fazer qualquer coisa para salvá-la.
Drew deu um passo ameaçador na direção deles. S Sombra riu, um som nauseante que pouco fez para abafar os batimentos cardíacos de Kelia.
Algo bateu em seu pescoço e ela saltou antes de perceber que era apenas chuva. Ela podia ouvir agora, caindo no convés do navio. Alguns devem ter escorregado pelas rachaduras das tábuas acima deles.
—Eu não faria isso se fosse você, Knight. — Seu aperto sobre ela aumentou. —Eu poderia cortar a garganta dela com a minha maldita unha. Você ainda seria seu herói galante? Ou você beberia o sangue dela antes que esfriasse, enquanto ainda pode? Tem um cheiro tão puro...
Ele a lambeu e seu estômago se revirou.
Mas ela teve sua oportunidade.
Kelia pisou no pé dele. Foi um movimento perigoso, considerando que a boca dele estava perto de sua garganta, e ela não saberia como ele iria reagir. Mas ela sentiu que precisava fazer algo, e ela sabia que poderia sobreviver a uma mordida se precisasse, contanto que pudesse fugir depois.
O homem Sombra grunhiu. Seus dentes começaram a apertar. Kelia já dobrou os joelhos, deu uma cotovelada no estômago dele e começou a se afastar. Seus dentes apenas roçaram seu ombro, o veneno de suas presas a picou, mas não a retardou. Ela tentou se desvencilhar dele.
O homem Sombra era ainda mais forte e mais rápido. Ela não estava mais tão firme em suas mãos, mas ele ainda segurava seu braço. Ele estava rapidamente começando a recuperar o controle dela.
No entanto, seu esforço teve recompensa. Enquanto o Sombra estava distraído, Drew saltou para o céu e pousou atrás dele.
Antes que o Sombra pudesse reagir, Drew puxou o Sombra para longe de Kelia. Kelia caiu de joelhos e apertou a garganta com a mão livre.
Drew esquivou-se de cada golpe e conseguiu agarrar o Sombra mais uma vez. Assim que o Sombra abriu a boca, Drew usou a mão direita para cortar o coração dele. Kelia não podia acreditar em seus olhos quando a mão de Drew saiu das costas do Sombra.
Gotas de um carmesim escuro caíram da boca do Sombra. Ele tentou separar os lábios, mas além de um grunhido rouco e um gorgolejo do fundo da garganta, nenhum som saiu. Ele piscou uma vez, olhando para Drew como se nunca o tivesse visto antes. Então, ele explodiu em cinzas, espalhando-se sobre tudo.
Kelia soltou um grito e, com a mesma rapidez, foi dominada por um constrangimento que fez suas bochechas e orelhas queimarem. Ela nunca tinha sido o tipo de gritar quando estava com medo - esse sempre foi o mau hábito de Jennifer - mas com tudo o que acontecera nas últimas horas, ela se perdoou rapidamente.
Drew, ignorando completamente as cinzas caindo, foi até Kelia. Ele caiu de joelhos e a puxou para seus braços.
—Você foi ferida? — Ele perguntou. Ela não conseguiu responder. Sua boca ficou seca. Quando ela ficou em silêncio, ele tirou uma das mãos do braço de Kelia e segurou seu queixo. —Kelia. Eu sei que você está em choque, mas preciso ouvir sua voz. Preciso saber que você está bem.
Kelia piscou e se concentrou em Drew.
—Você veio atrás de mim. — Disse ela, quase sem acreditar.
—É claro que vim por você — disse ele. —Eu sempre virei para você.
Pedaços de cinza tocaram sua bochecha, e a chuva começou a cair mais forte, mais água escorrendo. As gotículas pungentes chamaram sua atenção, lembrando-a de que ela não era a única pessoa que tinha chegado perto de um ataque violento e brutal.
—Como? — Ela conseguiu sair. —A prata?
Drew sorriu, e Kelia quase chorou ao ver algo familiar, tão brilhante em um ambiente tão desesperador.
—Eu tive a ajuda de uma bruxa. — Ele disse, indicando o pingente pendurado em seu pescoço.
Algum tipo de pingente. Ela não deveria ter ficado surpresa.
—Temos que encontrar Wendy — disse ela, tentando se levantar. Ela quase perdeu o equilíbrio, mas Drew se levantou e agarrou seu pulso, evitando sua queda. —As outras. Precisamos salvá-las.
Ele abriu a boca, parando por um momento, então acenou com a cabeça.
—Vamos embora. — Disse ele.
Kelia sabia que ele havia deixado algo não dito, mas com as outras em perigo, agora não era a hora de perguntar o quê.
CAPÍTULO 26
Como Drew quebrou a porta em meros estilhaços, nada os impedia de sair correndo dali.
—Pronto — disse Kelia, apontando para a saída mais distante. —Wendy está aí.
Kelia se dirigiu para a porta ao lado dela, mas Drew agarrou seu pulso.
—Onde você pensa que está indo? — Ele perguntou. Sua voz estava selvagem. Não necessariamente acusatória, mas insistente com preocupação. Kelia teria se sentido tocada se não houvesse outras mulheres potencialmente sendo estupradas neste momento.
—Existem outras. — Ela disse simplesmente. Firmemente.
—E você acha que pode pará-los apenas entrando? — Drew perguntou. —Você irritará o homem Sombra, e ele irá atrás de você a seguir. E as coisas podem ficar piores do que da última vez. Eu não posso permitir.
Kelia entendeu as palavras não ditas de Drew. Ela não foi capaz de lidar com o último Sombra. Sem suas armas em mãos, o que ela esperava fazer no quarto ao lado?
Ainda assim, não parecia certo que Drew fosse o único que estava arriscando tudo. E mesmo que Sombras fossem rápidas, ela não podia dizer como ele reagiria quando visse sua irmã sendo potencialmente machucada ou pior por seu companheiro.
—Eu não posso te impedir, posso? — Drew perguntou, dando a ela um longo olhar. Ele deu um suspiro de frustração antes de alcançar o quadril. Lentamente, ele puxou uma lâmina familiar de sua bainha e apontou para o telhado acima dele para que Kelia pudesse vê-la. —Aqui... eu acredito que isso é seu.
A chuva caía do convés, caindo na cabeça e no pescoço de Kelia, mas ao ver sua lâmina, ela não se moveu para limpar as gotas. Seus lábios se curvaram em um sorriso quando ela pegou o cabo de Drew e a segurou na mão do jeito que faria, como se estivesse se preparando para a batalha - o que ela estava.
—Você guardou, — ela disse, as lágrimas se acumulando em seus olhos com a onda repentina de emoção. Não havia tempo. Ela olhou para Drew. —A separação vai fazer tudo correr mais rápido.
—Não morra, Assassina, — Drew disse a ela, sua voz pesada. —Eu nunca te perdoaria se você moresse. Ou eu mesmo.
Kelia concordou. Drew se virou para a porta que Kelia havia apontado para ele enquanto se ajoelhava na porta adjacente à dela. Ela enfiou a mão no cabelo e puxou os grampos. Ela começou a colocá-los na fechadura, esperando que até mesmo a audição aguçada do Sombra não captasse o que ela estava fazendo. Em questão de minutos, a fechadura abriu a porta com um clique. Kelia segurou seu cutelo firmemente em sua mão e se levantou.
Usando o pé, ela chutou a porta. Suas costas gritavam de dor, mas ela a empurrou. Agora não era hora de sucumbir.
A água batia nas janelas e no convés. Mas gotejova pelas placas. Estava claro que esses barcos eram baratos - meras gaiolas destinadas a manter as Sombras contidas e controladas até que sua sede de sangue fosse tão forte, jogar uma mulher neles para se alimentar e foder seria muito irresistível. Os Sombras não lutaram contra a Sociedade porque nunca tiveram forças para isso.
O Sombra correu em sua direção. Kelia nem teve uma visão clara de qual mulher estava no quarto. Não que isso importasse. Ela iria para salvar todas elas.
Kelia mal teve que se esquivar da besta bem a tempo. Ao contrário de Drew Knight, Christopher, ou mesmo do Sombra Espanhol que ela acabara de enfrentar, este parecia mais monstro do que homem. Parecia que ele reagiu em vez de tomar decisões com base na lógica e no pensamento racional. Por que houve tanta discrepância de comportamento? Tinha que haver mais do que simplesmente idade.
Kelia grunhiu, caindo no convés. O Sombra montou nela. Este usava uma bugiganga parecida com a que Kelia usava. Deve ter a ver com magia ou proteção. As costas de Kelia gritaram de dor. Seus músculos - que ela havia tentado manter ativos e em forma - estavam fracos graças à última semana no programa de reprodução. Ela não tinha comido muito e, além de andar pelo celeiro, não tinha permissão para fazer muito mais. O que tornava a luta mais trabalhosa do que antes.
—Devo comer você antes de terminar a minha prometida. — O Sombra murmurou.
Sua cabeça se lançou para frente, suas presas prontas morderam seu pescoço. Kelia ergueu sua lâmina, cortando seu ombro. O Sombra soltou um grito que reverberou pelo quarto e sacudiu o chão. Ele caiu dela. Apesar da dor que sentia, ela se levantou, a lâmina ainda segura em sua mão. Ela precisava perfurar seu coração se quisesse tirá-los disso.
—Você vai pagar por isso, Assassina.
Era difícil ouvir sua voz rouca acima da chuva forte.
Respirando com dificuldade, Kelia olhou ao redor. A mulher se encolheu no canto. Ela parecia chocada demais para gritar ou chorar. No entanto, ela conseguiu endireitar o vestido com as mãos trêmulas. Bom. Algo necessário para colocá-la em movimento. Agora, Kelia insistia que ela corresse.
O Sombra gritou, puxando a atenção de Kelia para longe de sua companheira e para o monstro. Ele estava correndo em sua direção, seu cabelo ruivo voando atrás dele. Seus olhos estavam praticamente amarelos, sua testa enrugada, suas narinas dilatadas.
Kelia respirou fundo. Ela estava começando a ficar cansada, muito cansada. Mas ela não conseguia ceder. Ela tinha que continuar.
Ela saiu do caminho do Sombra. Emitindo um grunhido alto, ela ergueu o cutelo e cortou o abdômen dele. Outro grito e, desta vez, ele caiu de joelhos. A prata dela embutida em seu cutelo estava fazendo seu trabalho.
Kelia ergueu o cutelo e o esfaqueou no coração. Ele uivou de dor antes de se desintegrar em cinzas.
Ela se virou para a mulher enquanto ela se levantava e disparava. Cabelo loiro sujo. Bochechas encovadas. Mary, ela percebeu.
Pelo menos Mary saiu bem.
Mas onde estava Drew? Ele já havia resgatado Wendy?
A chuva ainda estava caindo forte demais para ouvir o que estava acontecendo nos outros quartos. Ela precisava agir rápido. Ela encontrou Mary no meio de seu ataque. Ela esperava que não fosse tarde demais com as outras.
A segunda porta que ela abriu e chutou encontrou um curvado sobre Riley, se alimentando de seu pescoço. Ela estava com as pernas abertas, o líquido escorrendo pelas coxas. Ela olhava para o teto. Estava claro que ela estava tentando encontrar um lugar para pensar sobre isso, menos aqui.
O Sombra nem olhou para cima. Parecia que ele estava experimentando sua própria onda de endorfinas e agora estava muito envolvido para notar. Kelia correu direto para ele e o esfaqueou nas costas, tomando cuidado para não acertar Riley com a ponta de sua lâmina quando ela se projetou da cavidade torácica do Sombra. Ele nem mesmo teve a chance de gritar antes de explodir em cinzas.
Riley piscou quando cinzas e chuva caíram do céu. Quando seus olhos focaram, Kelia deu um passo em sua direção e ofereceu sua mão.
—Você precisa sair. — Disse Kelia.
—Mas...— Ela balançou a cabeça. —Eles vão me encontrar. Madeline...
—Vá, — Kelia insistiu. —Eles não querem você. Não quando Drew Knight está aqui. Vá enquanto ainda pode.
Riley não precisou ouvir uma terceira vez. Ela pegou a mão de Kelia e se levantou da cama, arrumando as saias. Mas então suas pernas pareceram enfraquecer embaixo dela, e Kelia teve que segurá-la para não cair no chão.
—Você precisa encontrar algo para comer — disse Kelia, embora não tivesse nada para recomendar, já que não havia comida neste barco. As mulheres eram a única comida aqui. —Você está muito fraca.
—Deixe-me apenas descansar —disse a mulher. Ela colocou a mão no peito e inalou. —Acho que estou muito, muito cansada.
Kelia gemeu e cerrou os dentes para não gritar. Não era culpa de Riley e Kelia não estava com raiva dela. Ela estava furiosa com a situação. Ela não podia imaginar o que Riley tinha acabado de suportar, e ela queria ter certeza de que era simpática. Por outro lado, ela tinha duas outras mulheres para resgatar, dependendo de como Drew estava com Wendy e seu Sombra.
—Fique aqui então — disse Kelia. —Eu tenho que pegar as outras.
Não parecia que Riley a tivesse ouvido.
Talvez fosse melhor assim. Ela já tinha passado por o suficiente e isso poderia ser um pequeno adiamento.
Kelia foi para a próxima porta. Ainda não havia nada de onde Wendy estava. Ela não ouviu nada e não pôde ouvir Drew. Ela estava quase preocupada que algo tivesse acontecido com ele e quase foi lá para ver se ele precisava de alguma ajuda. Ela se conteve, no entanto. Havia outras mulheres que precisavam mais da ajuda dela do que Drew Knight e Wendy Parsons. Uma Sombra do Mar e uma bruxa podiam se manter. Um humano normal não poderia.
Ela caiu de joelhos e abriu a porta. Cada vez que ela fazia isso, ela ficava cada vez mais rápida. Quando ela ouviu o clique da fechadura, uma emoção de satisfação balançou por ela. Ela recuou e chutou a porta.
Quando ela entrou no quarto, no entanto, ela não podia ver o Sombra. Ele não estava entre as pernas de Cathleen nem se deliciava com sua carne. Na verdade, Cathleen estava de costas para Kelia, seu corpo curvado em posição fetal. Ela estava imóvel, exceto pelo movimento de sua respiração. Não parecia que ela estava chorando. Ela estava apenas olhando para a parede de madeira à sua frente. Ela nem parecia afetada pela água caindo ao seu redor por causa da chuva.
A inquietação subiu pela espinha de Kelia. Ela não gostou nem um pouco disso. Ela ergueu a espada, posicionando-se para que pudesse atacar quando precisasse. Seu corpo estava começando a ficar cada vez mais cansado, suas costas gritavam, seus músculos tensos. Tudo o que ela queria era mergulhar em água quente e limpar a sujeira, sujeira, sangue e suor.
Ela deu um passo para dentro do quarto e depois outro.
—Cathleen, — Kelia murmurou. — Cathleen!
Não houve resposta. Kelia quase correu até lá para acordá-la, como se não confiasse muito que ela estivesse viva. Como se tivessem drenado de Cathleen mais sangue do que a manteria viva.
Quando Cathleen ainda não disse nada, Kelia deu mais um passo para o quarto escura. Ela não conseguia ver o Sombra em nenhum dos cantos da parede onde a cama estava colocada. Ela se virou, verificando os cantos atrás dela. A escuridão o manteria obscurecido, onde quer que estivesse, embora ele também não estivesse lá.
Onde ele poderia estar? Ele não tinha saído quando ela abriu a porta, e ele certamente não estava aqui agora. O que ela estava perdendo?
Um som estalou acima dela. Ela olhou para cima, apenas para ver que era tarde demais. O Sombra caiu de sua posição no teto, caindo sobre ela e extraindo suas presas.
—Você realmente fala muito alto, Assassina, — ele disse, seus olhos focando em seu pescoço com fome. —Eu ouvi você muito antes de você me alcançar. É hora de acabar com isso.
Ele se lançou para o pescoço dela. Kelia colocou a mão em seu rosto, e as presas dele perfuraram sua palma. Ela gritou de dor. Embora sua outra mão agarrasse o cutelo, ela não conseguia encontrar forças para levantá-lo e se defender. Ela estava presa e havia uma boa chance de morrer, se não aguentar algo pior.
Naquele momento, o Sombra foi arrancado dela. O sangue salpicou o chão de madeira e Kelia agarrou sua mão, um gemido de agonia escapou de seus lábios.
Seu queixo caiu quando viu Cathleen, deitada no chão, o corpo esparramado. A mulher interveio para salvar Kelia...
O Sombra estava prestes a atacar Cathleen. Kelia parou na frente de seu caminho e empurrou o cutelo para ele. Não acertou seu coração, perfurando sua coxa. Ela estava longe, fora de prática, e perdida no redemoinho de movimento e escuridão. Ainda assim, ele uivou de dor graças à prata da qual o cutelo foi feito, então jogou uma série de palavrões e nomes vis para ela.
Kelia não se importou. Ela precisava acabar com o homem Sombra antes que ele tentasse atacá-la ou a Cathleen novamente. Ela se levantou, embora não pudesse nem atingir sua altura total. Seu lado doía e sua mão direita pingava sangue como a chuva caindo pelas fendas do convés. Seus músculos estavam tensos e quase imóveis. Tudo o que ela queria fazer era rastejar para a cama - mesmo um daqueles colchões encharcados - e dormir por dias.
Com o canto do olho, Kelia notou Cathleen se esforçando para se levantar. O Sombra se concentrou apenas em Kelia. Se Kelia conseguisse mantê-lo distraído, talvez Cathleen pudesse fugir.
—Sinto muito — disse Kelia. —Isso doeu? Devo esperar você se enfaixar?
—Sua vadia tola, — o Sombra disse. Ele cuspiu ao lado dele. O sangue vermelho pingou da boca da Sombra. —Você está morta. Depois de reivindicar sua inocência, vou beber de sua coxa até que você murche em um monte de nada. Você vai me trazer vida, e eu vou tirar a sua.
Kelia não conseguia recuperar o fôlego, embora tentasse. Cathleen já havia se levantado e saído correndo - algo que Kelia não podia culpá-la por fazer. Ela ajudou a salvar Kelia, o que foi mais do que Kelia esperava. Se Cathleen não tivesse derrubado a Sombra, ela certamente estaria perdida.
Quando o homem Sombra se lançou sobre Kelia, ela tentou manter seu núcleo sólido, mas seu cansaço havia atingido o auge. Ela balançou a lâmina, mas seu ataque não foi rápido o suficiente. O Sombra se esquivou com facilidade. Ele agarrou seus ombros e a empurrou para o chão, montando em sua cintura e mostrando seus dentes alongados.
Cathleen havia partido. Drew ainda estava resgatando Wendy. Havia uma boa chance de Kelia não sobreviver a isso. Se o fizesse, ela sabia que não seria a mesma.
CAPÍTULO 27
Kelia olhou para o homem Sombra com olhos pesados. Ela sabia que tinha que continuar, mas cada vez que tentava mover algo - o braço, a perna - ela descobria que não conseguia.
O Sombra baixou a cabeça para morder sua garganta.
Kelia fechou os olhos e jogou a cabeça na direção do Sombra. A dor percorreu sua testa ao atingir. Ele a deixou cair no chão, atordoado. Kelia caiu com um baque no chão e ergueu o braço acima da cabeça para se proteger do ataque iminente, mas ele nunca veio.
Um ruído gorgolejante pegou Kelia de surpresa. Seus olhos se abriram para encontrar Drew Knight agarrando o homem Sombra pelos restos de sua túnica e puxando-o para trás.
Drew fazia com que parecesse tão fácil, como se o Sombra em cima de Kelia fosse fraco e fácil de mover. A Sombra atingiu à vontade com um baque nauseante e caiu em uma pilha no chão.
Depois de acabar com ele rapidamente, Drew foi até Kelia e a pegou em seus braços. Cinzas borrifaram o quarto e grudou no sangue que respingou na pele de Kelia.
—Você está bem, princesa? — Ele murmurou.
Kelia conseguiu acenar com a cabeça, mas mesmo um movimento mínimo como aquele era doloroso. Ele se virou, preparado para levá-la para fora, quando seu nariz se contraiu e ele foi forçado a parar. Ele olhou para Kelia.
—Você foi mordida. — Disse ele. Ele não perguntou a ela. Era como se ele já soubesse disso.
—Não exatamente — disse Kelia. Ela ergueu a mão para mostrar a ele o que havia acontecido. —Ele a rasgou. Eu o levantei para me defender e suas presas atingiram minha mão. — Ela apertou o ombro de Drew. —Precisamos sair. Agora. A Sociedade, eles podem estar vindo.
—Pelo menos não era uma artéria, — Drew murmurou. Ele parou e colocou Kelia no chão, tomando a palma da mão em suas mãos. —Kelia, você confia em mim?
—Drew — rebateu Kelia. —Minha mão não está...
—Vou rasgar qualquer um em pedaços em um piscar de olhos. Você é importante para mim, mesmo que não pense assim. — Ele fez uma pausa e perguntou novamente: —Você confia em mim?
Kelia engoliu em seco, permitindo-se tempo para realmente refletir sobre a questão. Drew Knight era um homem irritante... e uma Sombra. Ele dizia o que queria, fazia o que queria e vivia sua vida de acordo com seu próprio conjunto de morais e valores - aqueles que nem sempre se alinhavam com os de Kelia. Ele escondeu coisas dela, coisas que ela tinha o direito de saber. Coisas que ela precisava saber.
Mas ele também a salvou. Ele arriscou tudo, vindo ver como ela estava várias vezes. Ele a curou.
Talvez ela não devesse, mas a verdade é que sim, ela confiava nele. Mesmo agora. Mesmo depois de se sentir traída. Porque ele estava parado na frente dela, neste barco, pronto para resgatá-la de fazer parte de um programa que seu pai criou, de uma Sociedade para a qual ela havia trabalhado para destruir sua própria espécie. Ele arriscou tudo por ela.
—Eu confio. — Ela murmurou. Suas bochechas esquentaram, e ela se virou para o caso de ele ser capaz de perceber que ela estava corando, mesmo na escuridão.
A chuva ainda estava caindo, mas foi só quando ela se concentrou nela que pôde ouvir o barulho familiar dela no convés. Algumas gotas caíram sobre ela - a ponta do nariz, o ombro, a bota - mas não era tão incessante como em alguns dos outros quartos. Ela se perguntou se a tempestade iria diminuir em breve.
—Eu não tenho certeza do que eles ensinaram a você enquanto você estava na academia da Sociedade, — Drew disse antes de estender o polegar para furar a ponta do dedo. Pequenas gotas de sangue começaram a se formar na ferida. —Mas nosso sangue tem propriedades curativas. É por isso que somos capazes de permanecer jovens, por que podemos nos curar muito rápido, a menos que estejamos firmados no coração. Podemos, se quisermos, curar humanos com nosso sangue.
Kelia balançou a cabeça. —Eu não quero ser transformada. A ferida vai sarar.
Drew franziu a testa. —Eu nunca sugeriria transformar você, Kelia Starling. Eu gosto de você do jeito que você é, e pretendo mantê-la assim.
—Mas eu pensei...
—Somente quando houver uma troca de sangue, um humano se transformará em uma Sombra. Cura o infante, mas também fornece acesso à onde ele está o tempo todo, para que seu Criador possa ajudá-lo, possa sentir suas emoções e ir até ele, se necessário.
—Eu não vou te dar nada do meu sangue. — Disse Kelia, tensa com a ideia. Ela não estava pronta para se relacionar com ele, embora fosse Drew e ela confiasse nele. Ela não gostava da ideia de alguém ser capaz de sentir seus sentimentos.
—Não. — Um sorriso tocou seu rosto, e ela se perguntou se ele se divertia com sua atitude defensiva. —Como eu disse, não tenho intenção de transformá-la. Não aceitarei o seu sangue em troca e não haverá vínculo de sangue entre nós. Mas se você tomar meu sangue sozinha, poderei curar sua ferida. Você vai me deixar?
Ele travou seu olhar com o dela, e sua respiração desapareceu. Arrepios pinicaram sua pele. Ela não confiava em sua voz, então acenou com a cabeça e observou com olhos arregalados quando ele trouxe o polegar com o corte para a palma da mão. Sem tocá-la, ele permitiu que três gotas de sangue caíssem em sua ferida.
A pele de Kelia formigou com o contato. Teve uma sensação de calor que começou no corte e desceu direto pelo braço, cruzou o peito e deu um soco no coração.
Sua boca se abriu quando a pele ao redor de seu corte se fundiu para criar uma nova camada. Seu sangue da ferida desapareceu. Ela mexeu os dedos e cobriu a palma com eles. Sem dor. Foi como se nunca tivesse acontecido.
—Obrigada, — ela murmurou. O momento durou pouco. —Precisamos ir, Drew.
—Sim.
Eles correram para a porta, mas algo o deteve. Ele grunhiu.
Kelia estava com a porta aberta e estava prestes a entrar quando percebeu que ele não estava com ela.
—Drew?
Ele limpou as mãos. —Eu estou bem. — Ele se levantou e ficou em pé. —A prata demora a sair do meu corpo. O amuleto que Emma me deu... —Ele o puxou e havia uma rachadura perceptível nele. —Estou bem.
Eles saíram do quarto e seguiram pelo corredor estreito, onde uma porta os impedia de sair. Kelia soltou um palavrão vulgar, fazendo Drew sorrir.
—Eu não sabia que você conhecia essa palavra. — Ele meditou.
Kelia não disse nada. Em vez disso, ela caiu de joelhos e estendeu a mão para o cabelo, removendo um grampo. Ela poderia escapar disso facilmente.
Ela olhou para Drew enquanto colocava o alfinete no buraco da fechadura. —Como você está?
Ele assentiu. —Tão bem quanto posso estar. — Ele a encarou por um longo momento. —Eu só queria ter chegado a você antes. Eu poderia ter ajudado você muito mais do que ajudei com aquele bálsamo na masmorra, se eu tivesse.
Kelia balançou a cabeça, esperando que o alfinete abrisse a fechadura. —Não é seu trabalho me salvar, Drew, — ela disse. —Eu fiz minhas escolhas. Eu conhecia os riscos.
—Se eu estivesse com toda a minha força, seria capaz de quebrar essa porta. Eu seria capaz de nos libertar.
—Está coberta de prata, Drew. Minha liberdade não vale a pena sua dor.
Algo mudou em seu olhar, como se alguma grande culpa tivesse sido retirada dele. Mas com a mesma rapidez, o visual foi substituído por uma fachada de felicidade.
—Fico feliz em ver que você está bem — disse ele. —Quando eu ouvi seu grito... — Ele se interrompeu e balançou a cabeça.
Kelia engoliu em seco, mas sua boca parecia areia. Em vez disso, ela pigarreou. Por que ela não estava ouvindo o clique da fechadura? O que ela estava fazendo de errado?
O corredor estava parado. Ela se perguntou para onde todos tinham ido. Ela ficou surpresa por Agatha não ter retornado com a Sociedade. Talvez isso não estivesse fora de questão. Ela precisava se apressar.
—E Wendy? — Ela perguntou, tentando distrair Drew do fato de que ela ainda não tinha sido capaz de abrir a fechadura.
—Seu Sombra queria festejar com ela por causa de seu sangue, — Drew disse. —No entanto, ela tem a capacidade de se proteger de mordidas e alimentação. Exceto antes de hoje, algo estava bloqueando sua magia. É por isso que não consegui rastreá-la, por isso tive que pedir sua ajuda em primeiro lugar. Mas eu roubei a bugiganga protetora do bastardo e Wendy fez o que ela faz de melhor. O outro Sombra no próximo quarto se desintegrou em minutos. Quando ouvi você gritar, peguei você o mais rápido que pude. A mulher ali - não sei o nome dela - parecia pensar que eu era algum tipo de salvador e me tratou como tal, chorando em meus ombros e agarrando-se a mim como se eu fosse desaparecer. Wendy conseguiu arrancá-la de mim antes que eu pudesse chegar até você. Cheguei a você o mais rápido que pude.
—Está tudo bem, — ela disse. A fechadura clicou e ela se levantou, aliviada. Usando sua mão recentemente curada, ela girou a maçaneta e abriu a porta. Seus olhos se fixaram em sua mão. Ainda formigava, mas não de uma forma óbvia. Como se seu corpo estivesse se acostumando a ter um pedaço desconhecido de si mesmo adicionado a ele. —Contanto que vocês dois estejam bem. Contanto que estejamos bem.
—Assassina. — Seus dedos travaram em seu pulso antes que ela pudesse subir a escada. —Você percebeu que não pode voltar lá, certo? — Sua voz era como vidro, sua respiração pesada. Ele foi intenso e insistente. Kelia não conseguia desviar o olhar dele, mesmo que tentasse. —Você não pode voltar para a Sociedade. Se eles não a matarem, eles a quebrarão até que você seja nada mais do que espaço. Seu espírito será amarrado e quebrado. A morte do seu pai vale isso? Saber qual foi o catalisador final vale a pena sua própria vida? Não no sentido de que eles vão matá-la, mas de que vão matar tudo que faz de você quem você é?
Seus olhos escuros estavam implorando, capturando-a.
—Kelia, eu não vou deixar isso acontecer. Você significa muito para mim e não posso arriscar você. Não posso. Eu preciso que você entenda isso.
Ele deu um passo em sua direção, e depois outro, até ficar bem na frente dela. Apesar do esforço significativo, ela não conseguia desviar o olhar dele. Ele deu mais um passo até estar muito perto dela, e sua respiração ficou presa na garganta e desapareceu.
Ele estendeu a mão e enrolou uma mecha de cabelo atrás da orelha. A sensação de sua pele em sua carne a fez mexer por dentro. Mesmo assim, ela não conseguia desviar o olhar. Ela estava presa. Não havia nenhum lugar para ela ir.
Ela se forçou a assentir. A chuva caiu mais forte, mais rápido agora. Os estalos no deck se transformaram em algo mais. Não estava batendo bem, ainda não, mas estava chegando lá.
Naquele momento, algo passou por eles. Se Drew não estivesse na frente dela, se ele não estendesse a mão para segurá-la, ela teria caído. Um Sombra. Um que eles de alguma forma deixaram passar, um que não foi morto. Ele parou fora de seu alcance.
—Eu nunca esqueço um rosto, — ele sibilou, seus olhos em Kelia. —E eu vou lembrar o seu para minha Rainha.
Antes que Kelia pudesse piscar, o Sombra se foi.
—O que isso significa? — ela perguntou.
—Isso significa que precisamos sair rapidamente — disse Drew. Ele ofereceu-lhe a mão. —E eu gostaria muito que você viesse comigo.
—Precisamos nos preocupar com aquele cara?
Drew balançou a cabeça, mas fechou os olhos ao fazê-lo e, por algum motivo, isso fez Kelia sentir que ele não estava sendo completamente honesto.
—Kelia — disse Drew. —Nós realmente devemos ir. Diga que você virá comigo desta vez.
Kelia abriu a boca para responder. Ela não sabia o que dizer, mas sabia que precisava dizer algo. Ele estava certo. Ela não podia mais ficar com a Sociedade. Sua mente a puxou, entretanto. Havia algo de que ela precisava, algo que não podia deixar para trás.
—O diário do meu pai — ela conseguiu resmungar. —Eu preciso do diário do meu pai. Por favor.
Drew suspirou e se afastou dela. Sem dizer uma palavra, ele começou a subir a escada, grunhindo, movendo-se lentamente, como se cada degrau exigisse um grande esforço. Kelia o seguiu sem hesitar. Água caía do céu escuro e envolvia o barco no mar. Ele colocou a mão em seu ombro, como se tivesse medo até de deixá-la ir. Seu corpo inteiro aqueceu com o pensamento.
—Tudo bem, — Drew disse lentamente, virando a cabeça para olhar para ela. —Pegamos o diário do seu pai e depois partimos. Aquela mulher desgraçada fugiu antes que eu pudesse obrigá-la a esquecer de me ver, e eu estava muito focado para encontrar você para detê-la.
Kelia concordou.
—Wendy, — ela murmurou. —Onde está Wendy?
—Minha adorável irmã ainda está, uh, lidando com sua Sombra agora que eu arranquei a bugiganga do pescoço dele, — Drew disse, sua voz sarcástica. Kelia quase se permitiu rir. Foi bom ouvi-lo soar como ele mesmo. —Eu disse a ela que estava indo buscar você. Ela insistiu em se divertir e, em seguida, voltar a se concentrar em colocar suas colegas do programa em segurança. — Ele deu a Kelia outro olhar demorado. —Elas estão quebradas. Não tenho certeza do que pode ser feito por elas. Elas também não podem voltar. Talvez possamos fazê-las esquecer. Infelizmente, elas estão no programa há tanto tempo que, se as fizermos esquecer, elas podem tentar retornar à Sociedade.
—Simplesmente não sei para onde eles podem ir. — Disse ela.
—Não temos tempo a perder — disse Drew. —Tenho certeza de que Wendy ainda tem seus contatos que podem ajudar. Ela sempre foi mais engenhosa do que eu. — Eles se dirigiram para a porta, Kelia seguindo logo atrás de Drew. —Precisamos pegar o diário de seu pai e depois cruzar a ilha até meu navio. Podemos chegar lá em alguns minutos, no máximo, mas eu teria que carregá-la em meus braços. Caso contrário, seríamos muito lentos.
—Eu sou perfeitamente capaz...
Drew se virou. Kelia bateu em seu peito largo. Seu rosto aqueceu, e ela não conseguia encontrar forças para olhar para ele ainda.
—Você é capaz de fazer qualquer coisa que decidir — disse Drew. —Sim, claro que sei disso. Mas, pela primeira vez, você poderia me permitir tornar as coisas mais fáceis? Você poderia me permitir fazer com que estejamos de um lado a outro de Port George em minutos, em vez de horas? Ou o seu orgulho é mais importante do que a sua segurança, minha, Wendy, até mesmo o maldito do Christopher?
Os lábios de Kelia se curvaram em leve diversão com a exasperação dele.
—Tudo bem — disse ela com um aceno de cabeça. —Assim que conseguirmos o diário do meu pai, faça o que for preciso.
—Não me dê tais liberdades, princesa, — ele disse, inclinando-se para que seus lábios quase tocassem sua orelha. —Posso gostar do que faço com elas mais do que mereço.
Kelia achava que ele era bastante merecedor e que ela poderia gostar do que ele fizesse com tais liberdades também, mas ela se conteve de dizer isso. Ela respirou fundo, mas não conseguiu soltá-lo ainda. Ela estava fixada em seu olhar, imóvel, como uma montanha. Sua voz prometia coisas perversas e ela não pôde reprimir um estremecimento, embora quisesse desesperadamente.
—Venha.
Ele deu um passo para trás e ofereceu-lhe a mão. Ela fez uma pausa, sem saber o que fazer com isso. Ela provavelmente deveria pegá-la e deixá-lo guiá-la para fora, mas parte dela estava com medo. Era quase como se ela sentisse que colocaria mais do que apenas sua mão na dele, mas toda a sua vida também.
Ela poderia confiar nele com sua vida?
Quantas vezes ele a salvou? Ele havia se arriscado a vir apenas para vê-la?
Ela não conseguiu parar de tremer ao pegar sua mão. Quando ele enrolou os dedos nos dela, ela se sentiu sólida. Segura. Cuidada. Ela não se sentia assim desde que seu pai estava vivo.
Quando eles pisaram no convés, a chuva caía do céu, forte e insistente, como pedrinhas minúsculas sendo jogadas do céu. Kelia ficou encharcada em poucos segundos. Drew continuou segurando a mão dela, enquanto a puxava ao longo do convés.
Kelia mal conseguia distinguir Wendy, já na costa com as quatro mulheres, apressando-as para algum lugar. Onde ficava Kelia não sabia, mas tinha certeza de que Wendy ficaria bem.
A noite estava tranquila, exceto pela chuva. O estalar da chuva mascarava qualquer movimento, qualquer respiração. Era como se ela e Drew estivessem realmente sozinhos. A escuridão os envolveu em sombras e ela mal conseguia distinguir a diferença entre o oceano e a terra. Ela agarrou-se com força à mão dele, sem saber onde pisar, mas confiando que ele a conduziria na direção certa.
Sem aviso, ele largou a mão dela e a pegou como se ela fosse uma noiva e eles tivessem jurado oficialmente amar, abraçar e honrar um ao outro. Ela soltou um grito de surpresa, mas agarrou-se a seus ombros largos enquanto ele corria em direção ao celeiro onde o diário estava guardado.
—Eu posso sentir o cheiro deles — disse Drew. —Seu povo. Eles estão vindo.
Kelia imaginou que deveria ter demorado a esta hora para Abigail voltar para a fortaleza, encontrar Rycroft, alertá-lo e, em seguida, Rycroft reunir os Assassinos. Mas ela não esperava que isso acontecesse tão rápido.
—Quanto tempo nós temos? A que distância eles estão?
Drew balançou a cabeça. —Ainda estou fraco por causa da prata — respondeu ele enquanto acelerava em direção ao celeiro. Kelia sabia que ele seria muito mais rápido se fosse saudável. —Não consigo cheirar tão bem ou correr tão rápido quanto esperava. Mas teremos que agir rapidamente.
Kelia arriscou uma olhada na fortaleza iminente, uma ameaça sombria que se elevava sobre o celeiro. Todas as luzes acesas nas janelas estavam fracas, e ela mal distinguia silhuetas em movimento. Essas não eram pessoas se preparando para dormir. Estes eram Assassinos se preparando e marchando para uma batalha que nem ela nem Drew estavam preparados para lutar.
No minuto em que Drew pisou no caminho que os levaria ao celeiro, a cabana de madeira explodiu em chamas. Kelia soltou um grito de horror enquanto o fogo dançava na escuridão, um forte contraste com o céu negro.
Se foi. O diário de seu pai havia sumido. Ela nem mesmo teve a chance de ler a passagem final que Abigail deu a ela.
Ela não se importava com as meras bugigangas que havia levado. Ela queria suas palavras, suas memórias. A última coisa que ela poderia segurar era verdadeiramente dele.
Uma risada familiar perfurou a música do fogo. Ela se projetou mesmo sobre o estalo e o crepitar das chamas enquanto lambiam o céu.
Rycroft.
CAPÍTULO 28
Havia algo comovente na maneira como Rycroft olhava ao se afastar do celeiro em chamas enquanto a chuva caía diagonalmente ao seu redor. Kelia nunca teve medo de Rycroft antes; intimidador, sim, mas não assustador. Mas havia um brilho maníaco em seus olhos que ela podia ver, mesmo através da escuridão, mesmo por trás dos óculos.
De sua periferia, homens que ela reconheceu apenas de passagem estavam atrás dele. Esses homens eram do conselho. Kelia não tinha ideia do que eles estavam fazendo aqui. Eles normalmente não emergiam da segurança da fortaleza - era para isso que os Assassinos serviam: lutar sua batalha. Mesmo assim, eles vieram, enfrentando a chuva. Todos eles pareciam extremamente satisfeitos com alguma coisa.
Drew deu um passo à frente de Kelia, usando a mão direita para empurrá-la para trás. Kelia normalmente lutaria para não ser empurrada para o lado, especialmente com seu cutelo em mãos, mas em vez disso, ela cuidou de seu ferimento e permitiu que Drew a protegesse. Com sorte, ganharia tempo e permitiria que ela avaliasse a situação para que pudesse descobrir o que fazer.
—Há! — Rycroft berrou quando os alcançou. Ele parou, enfrentando Kelia e Drew, assim como o resto dos membros do conselho. —Eu não deveria estar surpreso que vocês dois estejam diante de mim, juntos.
Embora a chuva caísse forte do céu escuro, sua voz era forte contra a chuva forte. Talvez porque ele era tão previsível, ela quase podia ouvir o que ele diria antes de falar as palavras.
Seus dedos agarraram o cabo do cutelo, prontos para lutar se ela precisasse. Seu coração estava pesado e seus ossos doíam, mas a chuva despertou algo dentro dela, um desejo de parar isso de uma vez por todas. Ela poderia nunca descobrir por que seu pai morreu, mas pelo menos ela poderia levá-lo à justiça, mesmo que ele próprio não fosse um grande homem. Ela queria ver isso até o fim, ou então tudo o que ela tinha feito - conhecer Drew e fazer o acordo com ele em primeiro lugar, sofrer com o programa sem visão e quase ser uma vítima do programa de reprodução - seria em vão.
Rycroft se aproximou, assustador em seus passos confiantes. —Você sempre foi uma Sombra, não é, Srta. Starling?
Drew rosnou para Rycroft, mas as palavras de seu ex-treinador simplesmente saíram dela como a chuva. Ela não se importava mais com o que ele pensava dela. Ela não precisava mais fingir ser nada ou fazer algo que não queria fazer. Ela estava livre. Ela poderia fazer suas próprias escolhas. Mas primeiro, ela precisava escapar. Ou, se ela e Drew pudessem destruir Rycroft e este conselho para que outros Assassinos também pudessem ser livres.
—Eu me absteria de atacar a mim e a meus colegas membros do conselho — disse Rycroft. —Cada um de nós tem uma estaca de prata a postos. Podemos perder do seu coração, mas a prata tocando sua pele é como fogo e queimará sua carne.
Kelia olhou para trás de Rycroft. Cada homem segurava algo em suas mãos trêmulas, mas estava escuro demais para ela garantir que Rycroft não estava mentindo.
—O que estou surpreso em ver é você parado na frente dela, disposto a morrer por uma Assassina, nada menos, — Rycroft disse, seu foco em Drew. —Tive a sensação de que isso era mais do que apenas sexo para você. Você nunca foi tão estúpido em se envolver com uma Assassina e deixá-la lembrar. Eu gostei de puni-la por isso, no entanto. — Seu sorriso perverso empurrou suas bochechas rechonchudas contra os olhos.
Drew deu um passo à frente. A chuva havia tornado sua túnica transparente. Ela quase foi pega olhando para a pele tensa esticada sobre os músculos de suas costas.
—Agora que finalmente tenho você, — Rycroft disse, — Estou me perguntando o que eu deveria fazer para promover mais dor e mantê-lo vivo para que você ainda sofra com isso. Eu poderia arrancar cada dedo. Eu poderia cortar sua língua, como vocês, piratas, costumam fazer. Talvez suas orelhas fossem uma bela joia decorativa em um colar. — Ele colocou as mãos atrás das costas. —Tenho pensado neste momento por um tempo excepcionalmente longo. Estou ansioso para finalmente viver minhas fantasias. Vou empurrá-lo até a morte antes de trazê-lo de volta à vida. Vou deixá-lo morrer de fome até que você se banqueteie com o sangue de vacas em desespero. Vou chamar sua Rainha para vir e conversar com você. Ouvi dizer que ela está sentindo sua falta.
O coração de Kelia saltou uma batida com a menção da Rainha. Ela ainda não tinha ideia de quem era essa Sombra, mas cada vez que ela era citada, Drew se encolhia.
Através da chuva, ela mal conseguia distinguir os membros do conselho que cercavam Rycroft a uma distância mais segura. Apesar de seus números, eles ainda não tinham certeza se confiavam em estar tão perto de uma Sombra do Mar, especialmente Drew Knight. Eles eram homens mais velhos. Se eles fossem Assassinos, aqueles dias teriam ficado para trás. No entanto, eles claramente pensaram que poderiam tomar decisões com a vida de outros Assassinos, mesmo que não estivessem no campo de batalha ao lado deles.
Kelia fechou a mão livre em um punho. Esses foram os homens que provavelmente deram a ordem para que seu pai fosse morto. E aqui estavam eles, assustados. Por que vir, então?
O fogo crepitava à distância, tirando Kelia de seus pensamentos. Ela fixou os olhos em Rycroft.
—O que sua Rainha vai dizer, eu me pergunto? — Rycroft continuou. Ele caminhou na chuva, completamente no controle. Sua confiança o cercava como um halo. —Quando ela encontrar seu favorito, seu pretendido, com outra. Ela queria governar seus filhos com você, você sabe. Ela o transformou com o único propósito de tê-lo ao seu lado. E veja como você a traiu. Com uma humana, nada menos.
Kelia olhou para os homens que cercavam Rycroft antes de olhar para a fortaleza. Por que Rycroft não trouxe homens e mulheres jovens e saudáveis que podiam lutar, que podiam pegar Drew com uma flecha de prata?
Ele não quer que Drew morra, Kelia percebeu. Ele quer Drew para que ele possa entregá-lo à Rainha. A rainha não poderia convocá-lo? Todos os criadores podem convocar suas criações. Talvez ele tivesse removido seu vínculo com ela. Seria mesmo possível?
Kelia balançou a cabeça, tentando se concentrar. Seu corpo já tinha explodido em arrepios. O frio estava começando a tirar vantagem dela, enquanto Rycroft fazia seu pequeno discurso simpático. A adrenalina quase deixou seu corpo. Seu coração batendo dentro do peito era o único indicador que seu corpo sabia para se manter afiado, ficar tenso, independentemente de seus músculos pareciam estar pegando fogo.
—O que? — Rycroft parou de andar e se atreveu a dar dois passos na direção de Drew. —Você não tem nada a dizer? Tenho certeza de que se você se render por vontade própria, sua rainha será tolerante. Eu? Não muito. Ela me prometeu a oportunidade de torturá-lo, desde que eu não o mate, e acho que gosto muito da ideia de você me implorando por misericórdia.
Kelia sabia de Drew diria alguma coisa, mesmo que fosse um profundo, ressoando. Nada. No entanto, ele permaneceu posicionado na frente dela, seu corpo tenso e enrolado, como se ele estivesse pronto para atacar a qualquer momento. A ameaça de prata estava lá, mas ela se perguntou se Drew havia descoberto que ele não seria morto.
Ela deu um passo para trás. Atrás dela havia um longo cais de madeira que desaguava no mar. Se o navio de Drew estivesse em algum lugar lá fora, poderia ser a única chance de fuga. Mas mesmo que corressem pelo cais e pulassem no oceano, também havia o risco de sereias os reclamando, assim como outras vis criaturas marinhas.
Ela olhou de volta para a fortaleza. Havia parte da fortaleza construída na água, que era onde eles abrigavam Sombras capturadas que eles não queriam matar imediatamente e qualquer membro da Sociedade cujo destino ainda não havia sido decidido. Foi onde Kelia conheceu Christopher, e onde Rycroft a manteve após sua punição.
—Você está surpreendentemente quieto — disse Rycroft. Ele deu mais um passo à frente. —Se eu ameaçasse a Srta. Starling, isso teria mais uma reação de você?
Kelia não conseguia ver a expressão de Drew, mas tinha certeza de que ele não estava feliz com o humor negro que Rycroft vomitou.
—Se você ameaçar a Srta. Starling, eu poderia cortar sua garganta e voltar ao lugar antes que seus colegas membros do conselho soubessem o que eu fiz, — Drew disse suavemente. —Aqueles velhos tolos voltariam correndo para sua preciosa fortaleza, com o rabo entre as pernas, implorando por misericórdia.
—Eu consideraria isso um sim. — Os lábios de Rycroft se contraíram em um sorriso. —Você não pode ir a lugar nenhum. Você sabe disso, não é, Knight? A esta altura, a notícia está sendo enviada à Rainha de que temos você. Ela saberá de sua traição. Ela saberá de seus sentimentos pela Assassina. Ela vai matá-la, você sabe disso, não é? Ela vai matá-la, e o sangue dela estará em suas mãos.
Sintonizando o discurso de Rycroft, Kelia se concentrou em tentar discernir uma rota de fuga viável que salvaria a ela e Drew.
Encharcada até os ossos e todo o corpo dormente de frio, ela estava com medo de não ser capaz de se mover, muito menos de fugir. O cutelo pesava em sua mão; ela estava com medo de não ser capaz de usá-lo devido ao quão frígida ela havia se tornado. Depois de respirar fundo, ela lentamente soltou, deixando o ar escapar em pequenas silhuetas, pequenos espectros na escuridão.
Ela esperava que ela e Drew pudessem ir para o mar. No entanto, se já estivesse frio, o oceano poderia estar pior e ela poderia ficar doente com uma febre que poderia matá-la. Além disso, o navio de Drew estava longe de ser visto, embora ela tivesse certeza de que devia estar em algum lugar.
Rycroft e os membros do conselho eram muito velhos para persegui-la. Não fazia sentido porque Rycroft não trouxe Assassinos. Eles devem estar por perto, em algum lugar. Ou bloqueando algum caminho invisível de Drew e ela escapando... ou...
Kelia balançou a cabeça, a compreensão finalmente se estabelecendo. Rycroft não queria que os Assassinos vissem isso. Eles aprenderiam muito. Eles teriam perguntas. Tudo, desde a existência de Drew Knight até seu semblante, contradizia tudo o que a Sociedade havia ensinado.
E agora, Kelia sabia o segredo, o que tornaria deixá-la viver uma conclusão perigosa para a noite de Rycroft.
—Não sei nada quando se trata de Katalina — disse Drew antes de cuspir, como se não suportasse o nome na boca e precisasse expelir qualquer vestígio dele. —Ela pode fazer o que quiser. Eu não me preocupo com a sujeira.
Kelia ficou surpresa com seu desrespeito flagrante pela rainha. Ela se divertiu, certamente, com sua resposta direta. Mas havia uma amargura dura e raivosa - uma fúria que girava profundamente dentro dele com a simples menção dela - que aterrorizou Kelia. Quem quer que fosse essa mulher, Kelia tinha certeza de que nunca queria conhecê-la.
Rycroft deu uma risadinha. —Vai ser absolutamente delicioso ver como ela vai arruiná-lo — disse ele. —Sua arrogância, sua audácia; mal posso esperar para ver a maldade morrer em seus olhos. Ela vai bater em você e quebrá-lo até que seu espírito não seja nada além de cinzas, junto com o resto de você.
—Você não é nada além de um fantoche em seu grande plano, — Drew disse, erguendo o queixo. Embora ele fosse mais baixo do que Rycroft, esse movimento o fez parecer maior do que o ex-treinador de alguma forma. —Você sorri agora, mas quando ela arrancar seu coração porque está cansada de você, você ainda achará isso tão engraçado? — Ele cruzou os braços sobre o peito e mudou seu peso. —O que você planeja fazer comigo, exatamente? Você planeja falar no meu ouvido até que ela venha me buscar? Você nunca foi de bater papo. Você gosta de sentar e deixar que os outros façam o seu trabalho sujo, permanecendo nos confins seguros de sua fortaleza. E agora você está diante de mim, nesta chuva torrencial, amigável como o inferno.
Sem aviso, Drew saltou no ar e, em segundos, cada membro do conselho caiu em uma poça de sangue. Kelia pulou com a visão, não percebendo o que tinha acontecido até que já tivesse acontecido. Drew pousou de volta na frente dela. O sangue pingou de suas mãos e caiu na terra. A chuva lavou a cor, mascarando-a com a lama.
—Você acha que suas peças de prata iriam me tocar? — Drew perguntou. —Você acha que eles têm a capacidade de me tocar? Você sabe quem eu sou?
Algo estalou atrás dela. Ela girou no calcanhar dos calçados. Ela podia sentir a torção da pele. Teria sido preferível botas, mas ela não teve permissão de sair com elas quando se mudou para o celeiro, ainda de alguma forma pegando fogo apesar da chuva.
Lá estava Charles, mais amplo do que ela se lembrava dele. De onde ele veio? A chuva deve ter mascarado seus passos. A menos que ele já estivesse nas docas, isso significaria que ele tinha vindo da fortaleza.
—Morto! — Charles rosnou enquanto se lançava para Drew. Seu cutelo, uma arma que ele nunca dominou, estava pronto.
Kelia estreitou os olhos para o cutelo. Como todos os outros cutelos feitos pela Sociedade, ele teria sido forjado em prata. Se Charles acertasse Drew no coração, ele estaria morto. Se ele errasse, Drew ainda estaria com uma dor terrível. Mas havia esperança; Drew acabara de tirar a maior parte do conselho da Sociedade, também armado com armas de prata, de uma só vez. Charles não deveria ser problema para conquistar.
Mas Rycroft já estava atacando Drew, e a distração foi suficiente para Charles desferir um golpe. Kelia ergueu o cutelo e se interpôs entre Charles e Drew antes que Charles pudesse causar mais danos. Charles balançou mais uma vez. Kelia ergueu a lâmina, mas não foi capaz de afastá-lo do jeito que pretendia. Embora a lâmina tenha sofrido o impacto do ataque, a ponta da lâmina do próprio Charles perfurou o ombro de Kelia. Ela soltou um grito.
Drew era um borrão e, em um piscar de olhos, Charles estava morto a seus pés, o pescoço torcido em um ângulo estranho. Ele se virou para Kelia, ajoelhada. De onde ela estava, ela viu Rycroft se levantando do chão. Ainda vivo após atacar Drew Knight. Ela se perguntou se a preocupação de Drew por Kelia era a única coisa que impedia Drew de matar Rycroft.
—Estou bem, — ela murmurou, segurando seu ombro. Sangue carmesim pegajoso vazava da ferida e deslizava entre seus dedos. Sua cabeça estava leve. —Eu sobreviverei. Estou apenas perdendo...
—Sangue. — Rycroft deu um passo à frente. —Ela só vai sobreviver se for tratada adequadamente. Deixe-me levá-la para a enfermaria...
Drew se virou para atacar Rycroft.
Rycroft sacou sua própria arma - uma adaga revestida com a mesma substância líquida. Ela estava fazendo o possível para evitar que a lama entrasse em sua ferida.
—Dê ela para mim. — Disse Rycroft.
Os Assassinos começaram a sair para o pátio, todos eles segurando uma arma semelhante. Eles se amontoaram atrás de Rycroft, todos posicionados e prontos para atacar.
Ela estava errada. Rycroft não estava escondendo Drew e Kelia dos Assassinos. Ele estava escondendo os Assassinos de Drew e Kelia.
—Eu esperava que não chegasse a esse ponto. — Disse Rycroft.
—Você não pode me matar. — Drew suspirou.
—Não — Rycroft concordou. —Mas ela — ele apontou para Kelia —é uma história diferente.
—Dê ela para mim — disse Rycroft. —E venha de boa vontade. Você não pode vencer, Knight. Você sabe disso.
Kelia abriu a boca para responder, mas nenhum som saiu. Não havia maneira de sair disso. Drew poderia ser capaz de aniquilar uma reunião de membros do conselho, mas uma armada de Assassinos era outra história.
Ela voltou a cabeça para o oceano. Sem navio. Para sobreviver, precisariam de um milagre.
Ela baixou a cabeça e, pela primeira vez em muito tempo, começou a orar.
CAPÍTULO 29
Drew não sabia o que fazer. Kelia estava atrás dele, incapacitada. Rycroft e todo seu bando de Assassinos estavam diante dele, armas brandidas, brilhando com a prata líquida que as sereias devem ter fornecido a eles. A prata líquida era inatingível, exceto para as bruxas do mar. Elas tinham a habilidade de quebrar o metal e liquefazê-lo com sua magia. Ele poderia escapar se quisesse, mas não com Kelia a reboque. Ele não seria capaz de se mover tão rapidamente se tivesse que carregá-la nos braços, não depois de ter sido enfraquecido por uma facada da lâmina de Charles.
A chuva cortou o céu como uma lâmina, picando onde cada gota d'água caía sobre ele. O vento gemia ao redor deles, empurrando a tempestade, direcionando-a para onde bem entendesse. Ainda estava escuro, mas Drew sabia que logo amanheceria. Se ele não saísse da ilha antes dos primeiros raios de sol - mesmo que fossem bloqueados pelas nuvens - ele não seria nada mais do que cinzas, e Kelia seria deixada para os lobos.
Ele olhou para o grupo de Assassinos ao redor. Todos eles eram jovens, o mais velho sendo apenas alguns anos mais velho do que Kelia. Não era culpa deles que não quisessem nada mais do que matá-lo. Isso estava enraizado em suas cabeças desde que eram crianças. Eles não tiveram chance de saber a verdade, quando acreditavam tão apaixonadamente que ele era mau. Ele não queria matá-los. Este era o sangue que ele não queria derramar. Mas ele estava encurralado em um canto e sentia como se não tivesse outra escolha. Eles iriam arrancar Kelia dele e levá-la de volta para a fortaleza. E ele não seria capaz de chegar até ela se estivesse morto.
—Não. — Disse Kelia atrás dele.
Drew ficou tenso. Ele queria ir para ela. Ele queria envolvê-la em seus braços e protegê-la de tudo - a tempestade, os Assassinos, a Sociedade. Tudo. Ele precisava fazer um curativo em seu ferimento e encontrar um lugar seguro para ela se recuperar.
—Eu sei que você pode me ouvir, — ela continuou. Sua audição aguçada poderia pegar sua voz, mesmo através da chuva. —Não faça algo estúpido, Drew. Apenas me dê a eles e vá.
Ele apertou a mandíbula. Ele leu a multidão, tentando ver quem atacaria primeiro. Ele esperava que fosse Rycroft. Se ele matasse Rycroft, Drew tinha a sensação de que os outros cairiam. Corte a cabeça de uma cobra, por assim dizer.
—Não vale a pena, — ela o empurrou. —Ou eu morro, ou nós dois morremos. Não seja idiota.
—Não fale essas coisas — disse Drew com os dentes cerrados. —Eu não vou deixar você de novo.
Rycroft tinha um brilho divertido nos olhos. Drew teve o desejo de arrancá-lo.
—O que é que você está falando? — Rycroft perguntou. —Você está falando sozinho, Knight? Por favor, diga, do que está falando? Você gostaria de compartilhar?
—Eu não acho que você gostaria que ele fizesse isso. — Kelia rebateu, apenas alto o suficiente para ser ouvida sobre a chuva.
Drew não fez nenhum movimento para revelar sua surpresa mais do que já demonstrara. Ele podia sentir Kelia lutando ao lado dele, mas não a ajudou. Ela poderia cuidar de si mesma.
—Srta. Starling — disse Rycroft com um sorriso malicioso. —Você tem força que eu subestimei. Presumi que uma moça que não conseguia pôr os pés em um barco sem sentir o estômago revirar não conseguiria continuar em pé quando deveria cair. Você é teimosa, não é? Filha de sua mãe, isso é certo.
Kelia começou. Era uma coisa que Drew desejava ter melhor controle. Suas emoções eram fáceis de decifrar. Sua frustração e raiva eram palpáveis em um olhar. Ela deve ter trabalhado nelas se conseguiu enganar Rycroft e sua treinadora Cega. Mas ela ainda foi capaz de ser pega de surpresa. Ela tinha uma fraqueza clara: seus pais - embora Drew não soubesse muito sobre a mãe de Kelia, exceto por ela estar morta.
Rycroft avançou valsando sob a chuva, e Drew levou tudo para não proteger Kelia. O cheiro do sangue de Kelia fez cócegas no nariz de Drew. Ele sabia que sua ferida estava piorando, especialmente com o tempo. Ela poderia pegar um resfriado se eles não pensassem em um plano de fuga, e logo.
Eles tiveram sorte de Rycroft gostar de sentar e conversar, mas ele também podia estar protelando. Se fosse verdade e eles já tivessem mandado chamar a Rainha... isso significava que Kelia e Drew não tinham muito tempo. Mesmo se eles pudessem escapar do Conselho.
—Foi sua mãe quem se matou — disse Rycroft. —Você sabia disso? Sua mãe insistiu em visitar sua avó doente. Seu pai tirou um ano sabático e deixou você aos nossos cuidados, por insistência de sua mãe. Ela não queria você no barco, com a sua aflição.
Drew podia ver e ouvir a respiração de Kelia ficar pesada. Saiu de sua boca em uma fumaça branca e inchada, como se ela fosse um dragão, pronto para explodir a qualquer momento. Ele observou enquanto os dedos dela se fechavam em punhos, uma mão ao redor do cabo do cutelo, a chuva batendo contra sua pele.
—Seu pai, tolo que era, faria qualquer coisa por ela, — Rycroft continuou. —Aquela garota foi morta. Em vez de seguir o caminho mais longo, eles passaram pela Passagem Musical para economizar tempo. Seu pai, tenho certeza que você sabe, ficou arrasado e queria vingança. Ele estava desesperado, você vê. Tão desesperado, que nem percebeu quando condenou Daniella ao programa.
—Você está mentindo! — Kelia gritou. —Meu pai nunca permitiria que uma criança fosse devastada pelas Sombras. Daniella teria...
—Quatorze, eu diria, — Rycroft interrompeu. —E você está certa. Seu pai presumiu que Daniella não estava no programa. Ele estava muito ocupado em sua própria missão para ver como ele estava muito consumido por sua crença de que apenas a terra poderia dominar a água, muito focado em encontrar uma bruxa em particular. Uma mulher que acredito que você conhece.
Aonde Rycroft queria chegar?
—Eu não sei o que ela pensa agora, mas a cadela tem estado nesta ilha, protegendo-a por séculos. Ela também tem um relacionamento com seu amante. — Ele acenou com a cabeça para Drew.
—Emma. — Kelia sussurrou.
—Quem você acha que destruiu o vínculo entre ele e a Rainha? — Rycroft pressionou. —Você se lembra - a Rainha deveria ser capaz de convocá-lo, mas ela não pode. A cadela o ajudou.
Kelia empalideceu. Ela tinha aprendido recentemente sobre a habilidade da Rainha de invocar os Sombras que ela criou, mas ele não teve a chance de dizer a ela por que isso não se aplicava a ele. Por que a Rainha ainda não o tinha convocado, como ela não era mais capaz de fazê-lo.
—Tanto Daniella quanto a bruxa foram colocadas no programa, — Rycroft continuou. —Embora seu pai estivesse tão focado em - Emma, não é? - que ele não percebeu a participação de Daniella até que ela já estava grávida. Nesse ínterim, usamos a Cega para testar e coletar dados. Afinal, os humanos também são da Terra. Não apenas bruxas da terra. Infelizmente, nenhuma ainda sobreviveu ao parto para que possamos chegar a alguma conclusão, por isso a sua participação é tão importante. Então por que você não para com essa tolice e segue seu dever para com a Sociedade, Kelia Starling.
Kelia congelou onde estava. Ele ainda estava tentando jogar com sua lealdade à Sociedade? Isso estava muito longe. Ele estava delirando se pensava que poderia reivindicá-la para a agenda da Sociedade novamente.
—Funciona, Kelia — disse ele, como se ainda estivesse tentando convencê-la. —Assim que tivemos Daniella, pudemos confirmar a hipótese de seu pai. Você vê, seu experimento funcionou. Finalmente tínhamos um espécime que podíamos usar contra as sereias. Mas seu pai de repente sentiu que era uma questão moral, ter gerado aquela criação de uma criança. De repente, ele queria parar tudo. Ele confessou tudo para Emma e removeu as bugigangas de seu pescoço que a impediam de usar seus poderes. Ela fugiu. Naquela época, pensamos que seria mais sábio inibir a bruxa em vez de proteger todas as outras. Como você deve ter notado, tivemos uma mudança na política desde então. Mas você - você poderia nos ajudar. Termine o trabalho do seu pai. Vingue a morte de sua mãe. Restaure o legado de seu pai.
Drew olhou de volta para a multidão. Ele não sabia se eles podiam ouvir Rycroft ou se esperavam que Drew atacasse a qualquer momento. Ele supôs que não importava, contanto que eles não atacassem ainda.
O celeiro em chamas ainda estava em chamas, mas a chuva finalmente o estava derrubando. A fumaça escura subiu para o céu.
—Se você pensar sobre isso, Drew Knight é o responsável por tudo isso, — Rycroft continuou. Cada palavra ficava mais alta e clara na chuva conforme ele ficava mais ousado. —Drew cortou seus laços com a Rainha. Você sabe como isso deveria ser impossível? A Rainha foi capaz de rastrear Emma. Barganhamos com ela. Queríamos Emma para nosso programa, mas a Rainha queria que ela fosse punida. Oferecemos a ela Drew Knight porque tínhamos certeza de que ele voltaria e resgataria Emma. Ele não fez. Mas outra pessoa fez. Irmã dele. Ela caiu em nosso programa facilmente. O único problema foi a fuga de Emma. Veja, se Drew nunca tivesse rompido o vínculo com sua rainha, Emma nunca teria sido notada pela rainha. Nós nunca a teríamos encontrado, Wendy nunca teria que resgatar Emma, e você nunca teria sido enviada à procura de Wendy. É preciso perguntar se Drew Knight realmente se preocupa com alguma de vocês.
Drew ficou imóvel. Ele odiava admitir, mas Rycroft estava certo, em seu próprio jeito sádico e distorcido. Isso foi culpa de Drew. Tudo isso.
—Então o que você me diz, Kelia Starling? Você gostaria de uma última chance de poupar sua vida?
Kelia zombou.
Com a mão trêmula, Rycroft estendeu a mão e ajustou os óculos, para todo o bem que faria sua visão naquela chuva. —Você acha que vai se afastar disso, Kelia? Que você pode escapar, e todos que você gosta ainda estarão seguros?
Kelia deu um passo ousado para frente. —O que diabos isso quer dizer?
Os lábios de Rycroft se transformaram em uma carranca, quase como se ele estivesse encolhendo os ombros sem mover os ombros. —Wendy alguma vez te contou como ela entrou em nosso programa? Foi através de Emma. Wendy veio ajudar Emma a escapar, mas no processo, conseguimos adquirir Wendy. — Ele sorriu, uma visão aterrorizante para palavras tão sombrias. —Com quem podemos adquirir uma vez que você se for?
Kelia se recusou a responder isso. Ela não ia ficar aqui e não os estava ajudando com seu programa de doenças.
Rycroft tirou os óculos para limpar as lentes antes de colocá-los de volta no rosto. —O problema é, Kelia. Nós realmente não queremos ou precisamos de você. Ou Wendy, por falar nisso. Emma é mais poderosa do que Wendy, que só usamos como isca para Drew Knight, na esperança de atraí-lo para cá junto com Emma. Um prêmio para a rainha e um prêmio para nós também. Você poderia fugir disso, se nos fornecer a última peça que faltava no quebra-cabeça. — Depois de um longo momento, o sorriso sumiu do rosto de Rycroft, substituído por uma expressão de pedra para combinar com seu tom. —Onde está a bruxa da terra, Starling?
—Você não vai conseguir Emma, — Kelia disse. —E você não está me mantendo. Ou qualquer uma das outras garotas que você está tentando experimentar, seu doente de merda.
Ela cuspiu nele, mas Rycroft apenas sorriu ainda mais. —Até que a tenhamos, estaremos presos no jogo com os humanos e outras bruxas que colocamos no programa. Tantas vidas, quando tudo o que queremos é apenas uma... Veja, bem, seu pai pode ter sido um tolo, mas suspeito que ele estava certo sobre uma coisa. As bruxas da terra seriam capazes de carregar uma criança. Infelizmente, as humanas continuam morrendo tentando dar à luz, e muitas das bruxas são incapazes de carregar as Sombras por algum motivo. Veja Daniella por exemplo. Seu filho queimou porque seus poderes são os de um demônio do fogo. E Wendy parece não conseguir engravidar. Em nossa pesquisa, e com a ajuda das sereias, descobrimos que ela era um anjo caído - uma bruxa do ar - e é raro uma bruxa do ar engravidar. Quem sabe quanto tempo teríamos gasto tentando engravidá-la se você não tivesse aparecido? Mas se você nos der Emma, podemos parar com isso aqui. Ninguém mais precisa morrer.
—Mas muitos já o fizeram — disse Kelia. —E eu não vou permitir mais uma. Não Emma. Mais ninguém. Isso é o que meu pai queria no final. Parar você - esse será o legado dele.
Rycroft inclinou a cabeça para trás e riu com vontade. —Me parando? — Sua gargalhada ecoou contra a tempestade. —Você se lembra de como isso funcionou para ele, certo? Ele interferiu em nossos planos. Ele encontrou Emma depois que ela escapou, e em vez de nos dizer onde ela estava, ele contou a ela sobre o propósito de nosso programa. Eu garanto a você, tentar nos parar não vai funcionar para você.
—É por isso que você o matou. — Disse Kelia, sua voz perdendo a autoridade que tinha momentos atrás. Era a única razão pela qual ela ainda estava aqui - para descobrir. E agora ela sabia.
—Uma das razões, — Rycroft disse com um encolher de ombros fácil. —A traição dele foi o que realmente marcou o seu destino. O que, se você pensar bem, foi a melhor parte. Não sabíamos que ele disse à bruxa o que aconteceu ou que a libertou. Achamos que ela havia escapado sozinha. Graças ao bom Deus, alguém em quem ele confiou veio até nós e nos contou. — Seus olhos brilharam. —Tenho certeza de que você sabe quem foi que o entregou.
—Quem?
Rycroft sorriu. Sua adaga ainda estava em sua mão e se movia com seus gestos. A prata liquefeita brilhava mesmo na escuridão. A chuva a havia levado, lavado todas as armas da mistura? Ele não queria arriscar ainda. Talvez com o tempo, entretanto.
—Abigail. — disse Rycroft.
De sua periferia, Drew observou Kelia dar um passo para trás e depois outro.
—E, claro, era nosso dever reagir, fazer justiça à situação — disse Rycroft. —No início, presumimos que poderíamos nos livrar de você e forçá-la a se submeter. Já havíamos gasto anos e inúmeros recursos treinando seu pai. Podemos perder você sem hesitação. Mas não funcionou. Você conseguiu capturar o infante sem morrer no processo. Foi quando soube que seu pai lhe contaria tudo se não agíssemos. Sendo assim, decidimos que Abigail levasse seu pai aos navios nas docas depois de comer uma ceia envenenada com uma mistura para paralisá-la. As Sombras de seu programa banquetearam-se com ele, uma punição adequada por seu crime de traição. Embora ele tenha sofrido tremendamente, você deve saber, ele foi capaz de morrer com alguma honra. Um autodidata, ao invés de um traidor.
Kelia caiu de joelhos na lama.
Drew não entendia muito bem o significado do que estava acontecendo.
Com suas habilidades, ele foi capaz de ver através da escuridão. Seu ombro ainda estava aberto. O fluxo de sangue diminuiu. Havia uma boa chance de ela sobreviver ao esfaqueamento, contanto que não pegasse febre ou infectasse.
O que significava que eles precisavam sair desta ilha o mais rápido possível.
Uma vez que ele a tivesse a bordo, uma vez que tivesse Wendy a bordo, ele poderia fazer o que quisesse: derrubar sua Rainha e libertar as Sombras de suas amarras. Esmagar a Companhia das Índias Orientais e evitar que eles façam algo assim novamente.
—Você parece surpresa — disse Rycroft, dando mais um passo à frente. Kelia sabia que ele estava falando com ela, mas cada palavra que saía de sua boca era vazia, outro golpe em seu coração ferido. Ouvir essas coisas sobre seu pai... Era difícil respirar. —Você não sabia que seu pai era íntimo de Abigail? Na época, ela não era nada mais do que uma Cega, mas ela queria provar seu valor. Ela não queria ser uma cega. Demos a ela uma tarefa e ela a completou, superando nossas expectativas.
—Suas expectativas. — Drew disparou.
Rycroft percebeu seu tom e se virou, dando a Drew um olhar perplexo.
Outra etapa.
—Seu conselho está morto, — Drew o lembrou. —Você é o único que sobrou.
Naquele momento, houve um gemido alto e o celeiro desabou. Outro tiro no coração. As páginas que faltavam estavam lá, agora completamente perdidas, virando fumaça.
Em vez de ficar furioso com a lembrança, os lábios de Rycroft se ergueram. —Sim — disse ele, balançando a cabeça. —Você, você está correto. Eu sou o último, não sou? Eu acho, então, que daqui para frente, o que eu digo vai ser o ponto final. E quando sua rainha chegar, serei eu quem ela recompensará. Eu e mais ninguém.
Drew rosnou. —Não se eu matar você também.
—Me matar?
Kelia piscou. Matar Rycroft.
Sim.
Isso precisava acontecer.
Seus olhos se voltaram para o homem gordo. Ela poderia fazer isso. Sua lâmina estava à direita. Ela flexionou os dedos e se inclinou para frente lentamente. Ela não queria atrair a atenção de Rycroft. Ela continuou a avançar até que seus dedos enrolaram em torno do punho familiar. Seus olhos se fecharam de contentamento e um sorriso gentil apareceu em seus lábios.
Rycroft deu outro passo ousado à frente. Agora, ele estava a um braço de distância de Drew.
Ela teria que agir logo. Os Assassinos tinham armas com ela, mas ela duvidava que eles pudessem ver muito através da escuridão e da chuva. Mesmo se isso a matasse, ela arriscaria. Valeria a pena.
Ela ficou de pé, os joelhos tremendo. Ela quase caiu para frente. Em vez disso, ela disparou o pé, recuperando-se. Ela apertou o cabo com mais força enquanto ela se arrastava para trás de Rycroft. Um passo. Outro. Sua respiração engatou. Seu corpo gritou de dor.
—Me matar? — Rycroft repetiu, abaixando a cabeça para olhar Drew nos olhos, um grunhido no rosto. —Você não ousaria.
—Sim — ela sussurrou. —Eu gostaria.
Ela enfiou a lâmina em suas costas com tanta força que saiu de seu peito. Uma crise nauseante perfurou a noite. Kelia cambaleou para trás quando gotas de sangue rubi caíram no chão. Seu cabelo grudou em seu rosto e seu corpo tremia. Ela não sabia se estava chorando quando encontrou os olhos de Drew, mas supôs que não importava.
Ela puxou o cutelo, mas não conseguiu removê-lo do corpo. Seus dedos estavam inchados de frio. Cada vez que ela movia o ombro esquerdo, ela fazia uma careta. A dor começou a preencher seu corpo, e ela sabia que não sobreviveria se eles não conseguissem encontrar uma saída da ilha.
Drew deu a volta em Rycroft e puxou o cutelo da cavidade torácica. Kelia cedeu de alívio. Ela fechou os olhos, mas Drew segurou sua mão. O fogo foi apagado, mas metade do celeiro já havia desabado. Ela estava pronta para dormir.
—Ainda não. — Disse Drew, como se pudesse ler sua mente.
No momento em que Drew estava prestes a entregar a lâmina a Kelia, a tempestade estalou com um trovão. Estava alta. Perto. Destruía os ouvidos.
Mas então Kelia percebeu que não era um trovão. Ela piscou, o sono sumindo de sua mente. O sangue gotejava da ferida rasa e Kelia pôde ver que a dor emitida era o suficiente para atordoá-lo, pelo menos momentaneamente.
Ele olhou para a multidão. Uma única mulher estava de pé com a mão segurando uma pistola.
—Jennifer! — Kelia gritou. Levou cada grama de sua força para se manter ereta enquanto olhava para a amiga com os olhos arregalados. —O que você está fazendo?
—Você não pode ver que ele arruinou você? — Jennifer gritou de volta. —Eu pensei que se eu entregasse o bilhete dele, ele iria tirar você de tudo isso, mas eu estava errada. Ele arruinou você. — Ela ergueu a pistola, engatilhando-a. —Kelia, você matou o conselho. Não há proteção contra as Sombras agora. Rycroft está morto. Estamos livres para partir. Todos nós somos livres para fazer o que quisermos. Você, eu, os Assassinos, os cegos. Todos nós. Mas se Drew viver, todos vão querer você morta com ele.
Kelia deu um passo e depois outro. Os Assassinos atrás de Jennifer ergueram suas armas. Alguns tinham cutelos, outros tinham arcos e flechas. Alguns tinham pistolas, provavelmente carregadas com balas de prata.
—Se Drew Knight morrer, tudo isso acabará — disse Jennifer. —Agora se afaste dele. Eu não quero que você desça com ele.
—Você não ouviu uma palavra do que Rycroft disse? — Kelia gritou. Sua voz estava rouca, suas palavras ligeiramente arrastadas. Seu corpo continuou a tremer, desta vez com descrença. —A Rainha está chegando. Se ela descobrir que você matou Drew, você está morta.
—Ela vai pensar que os homens de Rycroft o mataram — disse Jennifer. —Finalmente, todos nós podemos estar a salvo desta sociedade opressora e das Sombras. Não vou desistir dessa liberdade, Kelia. Nem por você.
—Você está errada — A voz de Drew estava tensa. —Ela saberá que foi você, e ela vai te encontrar. Ela vai encontrar todos vocês e matar seus entes queridos na sua frente, então você conhecerá o verdadeiro sofrimento antes de morrer. Se você nos deixar ir...
—Não. — As mãos de Jennifer tremeram. Kelia não sabia se era de frio ou de nervosismo. —Kelia, por favor. — Sua voz falhou. —Volte conosco. Eu cuidarei de você. Eu prometo. Vamos casar você com um bom rapaz, que cuidará de você. Um que você pode aprender a amar.
Kelia nem hesitou. —Posso aprender muitas coisas — disse Kelia. —Infelizmente, aprender a amar alguém porque preciso não é uma dessas coisas. — Ela deu as costas a Jennifer, aos Assassinos, à fortaleza para que pudesse olhar para Drew. —Vamos lá.
Antes que Drew pudesse abrir a boca, Jennifer apontou a arma para Kelia. —Não me tente, Kelia — disse ela. —Vou puxar o gatilho se for preciso.
CAPÍTULO 30
Kelia estava entorpecida. Foi a única palavra que ela conseguiu encontrar que descrevia adequadamente a falta de sensibilidade em seus ossos. Abigail traiu seu pai. Daniella experimentou a pior das violações. Emma tinha sido cativa da Sociedade. Todas as coisas que Kelia não sabia. Todas as coisas que ela não queria saber.
Ela havia feito o que pretendia fazer. Ela havia resolvido o assassinato de seu pai, e foi mais trágico do que ela poderia ter imaginado. E agora ela estava pronta para deixar isso para trás e seguir em frente. Com Drew.
E ele estava dizendo a ela para ficar?
Kelia sabia que Jennifer não gostou de sua resposta - ela podia sentir - mas doeu mais quando Drew reduziu o amor um pelo outro a um 'destino tentador'.
Isso era besteira. Kelia escolheria seu próprio destino.
Ela se virou para Jennifer e caminhou pelo campo lamacento em sua direção. A cada passo, o cheiro de lavanda que envolvia Jennifer devido ao seu amor por velas perfumadas se fortalecia.
—Não posso permitir que volte para ele — disse Jennifer, sua voz transmitindo seu desespero. Kelia ouviu o barulho mesmo em meio à chuva torrencial. Seu coração batia forte contra o peito. Jennifer deu um passo à frente, implorando. —Por favor, Key. Deixe-me cuidar de você, como todas as vezes que você fez isso por mim.
De sua periferia, Kelia pôde ver Drew fazer uma pausa. Ela estava presa entre as duas pessoas mais importantes de sua vida: uma, sua melhor amiga desde que ela conseguia se lembrar; a outra, a Sombra mais desejada viva e o homem que ela amava inexplicavelmente. E ainda assim, Drew abriu seus olhos e mostrou a ela uma verdade que ela não queria ser confrontada e que ela não queria aceitar. E ele ocultou informações essenciais dela.
Ele era defeituoso - mas se importava com ela, e havia feito um grande esforço para provar isso.
Ela soltou um grunhido. Não havia mais energia em seu corpo. Ela estava tão cansada. Mentalmente. Emocionalmente. Fisicamente. Ela achava que não tinha mais forças para lutar.
—Kelia. — A voz de Drew a trouxe de volta ao presente. —Você deveria ir com ela. Agora. Tentamos o destino por muito tempo. Você está perdendo sangue e, se não for examinada, poderá contrair uma infecção.
Kelia balançou a cabeça —Você realmente não quer isso. Você realmente não deseja que eu vá com ela.
—Eu desejo que você faça o que é melhor para você, — ele murmurou. Ele baixou a voz quando estendeu a mão e apertou a mão dela. —Isso vai quebrar meu coração, mas é o melhor.
Kelia queria dizer a ele que ele não tinha coração. Ele era uma besta e as bestas não tinham coração e alma e coisas que lhes permitiam sentir coisas. Mas ela não podia porque essas coisas não eram verdade.
Ela iria com ele. Ela o convenceria disso. —Você não vai deixar esta ilha sem mim.
—Não posso deixar você ir com ele — tentou Jennifer pela última vez. Ela não olhou para Drew; seu foco estava apenas em Kelia. —Eu te ajudei então porque pensei que se ele fosse embora significaria que você finalmente terminaria com ele. Mas já que esse não é o caso ... —Ela engatilhou a pistola. —Eu realmente sinto muito por ter que chegar a esse ponto.
—Jennifer — disse Kelia. —Não!
Jennifer disparou a arma.
Mas, em vez de um tarugo disparando do cano, não houve nada além de um clique.
A chuva encharcou a pólvora, impedindo que a bala disparasse.
Jennifer baixou os olhos para a pistola, sacudiu-a e tentou mais uma vez.
Nada.
Uma flecha voou do enxame. Aterrou perto de Drew, quase o errando.
Eles precisavam sair. Agora.
Outra flecha. E depois outra.
Drew se virou para Kelia e agarrou seu braço. Ele a puxou com ele. Kelia embalou seu braço ferido, permitindo que Drew a puxasse na direção das docas. Kelia não conseguia distinguir nada com os lençóis de chuva caindo do céu e a espessa manta de nuvens de carvão.
Drew soltou um grito. Uma flecha atingiu sua coxa. Ele caiu de joelhos. Kelia parou, quase derrapando na lama, e puxou o braço de Drew.
—Você deve se levantar, — ela insistiu. —Agora, Drew.
Ele assentiu. A chuva emaranhada em seu cabelo, grudou em seu rosto. Ele se levantou mais uma vez, apenas para levar um tiro nas costas, perto de seu ombro esquerdo.
Outro grito de dor perfurou a chuva.
Kelia odiava aquele som.
—Vá, — Drew ordenou, sua voz áspera. —Pule na água. Eu prometo a você, minha tripulação vai encontrar você. Você estará segura. Eles vão cuidar de você. Eles a levarão para longe de mim e de qualquer perigo que eu traga em seu caminho. Apenas vá.
Lágrimas brotaram de seus olhos e ela caiu de joelhos na frente dele para combinar com sua posição no chão.
—Eu não vou te deixar, — ela disse a ele. —Eles não podem matar você. A Rainha vai puni-los se o fizerem.
—Eu prefiro morrer a vê-la novamente, — ele disse através de um rosnado. —E eles não parecem temê-la. Não vou deixar você morrer comigo, Kelia.
—Então não morra! — Kelia gritou na chuva. —Lute. Por nós dois. Levante-se e lute de volta!
Flechas caíam ao redor deles como chuva prateada, mas nenhum deles se encolheu.
—O que então, Assassina? Matar seus amigos? Matar aqueles homens e mulheres pelo crime de ignorância?
—Você pode se defender — rebateu Kelia. —Você pode se mover mais rápido do que eles podem piscar.
—Ou talvez eu possa mostrar a eles que nem todas as Sombras são monstros.
—Esse não é o seu propósito, Drew Knight! — Ela disse, com lágrimas ardendo em seus olhos. —Você não está aqui para provar uma porra de um ponto! Você está aqui porque este mundo precisa de você. Eu preciso de você.
Ela começou a soluçar com a realização. Ela nunca precisou de ninguém antes. Ela se orgulhava disso. Mas era verdade. Ela precisava dele - tanto quanto ele precisava dela. Ela odiava estar fazendo papel de boba na frente dele, mas não conseguiu se conter.
—Bem, agora, — ele disse, sua voz suave. Ele ergueu a mão para segurar sua bochecha. —Se esta não é a visão mais bonita que eu já coloquei meus olhos em todo o meu tempo na terra.
Kelia não entendeu. Ela parecia um destroço; ela não precisava de um espelho para ver por si mesma e saber tanto.
Seu polegar acariciou sua bochecha e ela não pôde evitar se inclinar para o toque, não se importando com o que ele pensava, o que qualquer um dos assassinos que gritava pensava.
—Uma Assassina, chorando por mim? — Drew disse, seu murmúrio quase inaudível sobre a chuva. —Eu vi tudo.
Ela se lançou e derrubou Drew sobre as ondas do barranco e fora da linha de fogo. De sua periferia, ela podia ver a oposição avançando em direção a eles, mas demoraria um pouco antes que eles finalmente chegassem a um lugar onde seriam capazes de disparar suas armas com qualquer esperança de atingir seus alvos.
Ela não sabia quanto tempo ainda tinha, mas ela sabia com quem estaria, e como ela queria gastá-lo.
Com um grunhido, ela agarrou o rosto de Drew com as mãos. Seu ombro gritou, mas ela empurrou a dor e puxou-o para si. As flechas sinalizavam enquanto voavam para o céu, mas, naquele momento, ela não se importou.
A mão de Drew se moveu de seu rosto para que ele pudesse agarrar a parte de trás de sua cabeça e ele recebeu seu abraço com entusiasmo e sinceridade.
Quando seus lábios se tocaram, tudo e todos foram esquecidos. O mundo navegou como um navio abandonado com uma vela apanhada na tempestade até que ficassem apenas os dois e a chuva que caía.
Seus lábios eram gentis. Kelia gostou que eles não a dominassem, mas eram suaves e pacientes. Ela suspirou durante o beijo. A sensação de sua mão forte segurando a parte de trás de sua cabeça a fez se sentir fortalecida e vulnerável, como se ela estivesse bem, independentemente do que acontecesse com eles.
Sua pele se arrepiou. Desta vez não foi por causa do frio. Na verdade, ela não sentiu nada, exceto o calor liquefeito que gotejava em seu estômago e pressionava seu coração com tanta força contra o peito que ela pensou que fosse explodir.
As flechas continuaram caindo. A doca de madeira se estilhaçava a cada tiro, a água engolindo aquelas que erravam a terra. Elas estavam chegando perto demais.
Ela se separou do beijo. —Nós vamos morrer? — Ela sussurrou.
—Hoje não — disse uma voz atrás deles. —Drew, leve sua amante ao mar. Seu navio o aguarda.
Kelia ergueu os olhos. Wendy parou na frente deles. Só então ela percebeu a verdadeira razão de não terem sido atingidos por flechas; eles haviam sido envolvidos em uma bola dourada. Era um escudo, uma camada protetora que desviava as flechas e as fazia estalar como gravetos.
—Vamos — disse Drew, levantando-se e pegando a mão de Kelia.
—Daniella — disse Kelia, olhando para Wendy. —Não podemos deixá-la aqui.
—Emma está resgatando-a. — Wendy disse, sem tirar os olhos dos Assassinos.
Atualmente, o grupo ficou paralisado, sem saber o que fazer. Alguns continuaram a atirar flechas, outros as sacaram, mas esperaram, e outros ainda não fizeram nada além de vigiar.
—Você percebe que eles estão todos mortos se a Rainha vier e você não estiver lá. — Wendy murmurou para Drew.
Drew continuou a olhar para os Assassinos, seus olhos duros e frios. —Não há nada que possamos fazer sobre isso agora.
—Vá, — Wendy comandou. —Acabei de colocar as Cegas em segurança e pretendo fugir sozinha. Eu apreciaria se você pudesse ouvir e entrar na água.
Drew ficou de pé. Kelia não tinha certeza se ele ainda sentia dor por causa dos ferimentos ou se estava disfarçando para se apressar. De qualquer maneira, ele a puxou para cima. Ele saiu correndo, puxando-a com ele.
—Onde estamos indo? — Kelia gritou através da chuva.
Wendy murmurou algo atrás dela, algo que soou como algum tipo de encantamento ou feitiço. Um grunhido coletivo foi emitido pelo enxame de Assassinos, e Kelia não pôde evitar se virar para olhar por cima do ombro para o que ocorreu.
A barreira dourada se empurrou para fora, derrubando a linha de frente dos Assassinos, todos preparados e prontos. Quando eles caíram para trás, eles derrubaram os Assassinos atrás deles e então aqueles derrubaram a fileira atrás deles até que quase todos eles estivessem incapacitados.
Flechas voaram no alto, mas a barreira protegeu Wendy, Kelia e Drew. Wendy ergueu as mãos como se estivesse segurando - e ela estava. Agora nem mesmo a chuva poderia passar.
Os poderes de Wendy eram fortes, uma visão de beleza. Kelia recusou-se ao fato de ter sido contida. Ela não sabia o que faria se tivesse tais poderes apenas para sufocá-los. Seria como se ela não tivesse o uso de um braço.
Wendy manteve a mão direita erguida, como se fosse segurar o escudo protetor, antes de estender a mão esquerda e sacudir o pulso. Todas as armas ergueram-se no céu. Alguns dos Assassinos soltaram um grito. Wendy lentamente ergueu as armas bem alto no céu escuro como breu, e qualquer prata liquefeita que tinha sido engessada nos cutelos e flechas evaporou diante de seus olhos enquanto suas pistolas permaneciam fora de alcance.
Kelia observou enquanto elas levantavam, levantavam, levantavam. E então, Wendy deixou cair a mão de uma maneira delicada, muito parecida com uma bailarina.
As armas começaram a cair.
Os Assassinos começaram a gritar mais alto agora e fugir do caminho, embora Kelia pudesse ver que Wendy tinha direcionado as armas para cair no oceano e para longe deles. Wendy recuou em direção ao cais de madeira, ainda segurando o escudo no lugar enquanto observava os Assassinos correrem em direção à fortaleza.
—Pare de ficar boquiaberta e se mexa! — Drew gritou, puxando Kelia para enfatizar seu ponto.
Kelia balançou a cabeça, tirando-a de seus pensamentos.
—Kelia! — Uma voz gritou. Era familiar e cruel. Cada fibra de seu ser surgiu na defensiva.
Abigail.
De onde ela veio?
Era como se ela tivesse permanecido na fortaleza até depois que os membros do conselho morreram e então se esgueirou quando foi conveniente para ela.
Kelia parou de correr. Ela se virou para ver que Abigail tinha sido capaz de passar pelas barreiras simplesmente porque Wendy não tinha notado ela e não tinha pensado em verificar quem estava deste lado da barreira antes de prender todos dentro.
—O que você quer? — Kelia gritou. Ela puxou o braço de Drew e se levantou para que pudesse enfrentar Abigail.
—Kelia — disse Drew. —Temos que sair agora. Os poderes de Wendy foram inibidos por muito tempo. Ela só pode mantê-los afastados por um curto período.
—Eu sinto muito! — Abigail gritou. —Por tudo! É por isso que lhe dei essas páginas que faltam. Você tem que acreditar em mim!
Kelia certamente não precisava acreditar nela.
A chuva encharcou Abigail, seus olhos parecendo implorar o perdão de Kelia, mas Kelia não encontrou ninguém para lhe dar. Se qualquer coisa, ela queria rasgar sua mandíbula e vê-la se afogar na água da chuva.
—Você arruinou tudo! — Kelia gritou.
A barreira tremulou. Não duraria muito mais tempo.
—Kelia! — Drew gritou. —Por favor!
Drew raramente dizia por favor, a menos que fosse importante.
Kelia soltou um grunhido, tirando o olhar de Abigail e acenou com a cabeça para Drew. O alívio encheu aqueles orbes marrons, e ele agarrou a mão dela e puxou mais uma vez. Eles correram ao longo do cais úmido, a chuva batendo contra ele e abafando os sons do oceano.
—Para onde vamos daqui? — Kelia perguntou quando eles chegaram ao fim do cais.
Drew não deu sinais de diminuir a velocidade. —Nós pulamos!
E eles fizeram.
Eles pularam do cais e bateram no oceano. Kelia reprimiu um grito quando a água salgada sufocou seu ferimento. Bolhas raivosas saíram de sua boca. Ela se sentiu como uma pedra, afundando nas profundezas do oceano.
Drew soltou a mão dela - ou talvez ela tenha soltado a dele. Talvez o oceano os tenha afastado. Não importava o que os separasse, Kelia não achava que tinha energia para voltar à superfície. Sua adrenalina diminuiu. A dor estremeceu por seu corpo. Ela não conseguia se segurar. Sua cabeça ficou leve. Uma visão de seu pai e sua mãe a envolveu, cobrindo-a de calor. Ela não conseguia entender o que eles diziam, mas os via tão vividamente quanto havia sentido seu beijo com Drew. Ela queria ir até eles, estar com eles mais uma vez.
Mas ela não conseguia chegar até eles.
“Fique” pareciam estar dizendo.
E então, alguém agarrou seu vestido e a ergueu com uma velocidade feroz, como uma bala disparada de uma arma, até que sua cabeça quebrou a superfície da água e ela engasgou, sugando o ar.
—Kelia!
Drew.
Sua voz a rejeitou para abrir os olhos. Ela o viu ao lado dela.
Ele sorriu um sorriso brilhante que o levou de lindo a absolutamente deslumbrante. Ele parecia aliviado. Ele largou o vestido dela para agarrar sua mão e começou a puxá-la para algo.
—Estamos quase lá — disse ele. —Meu navio está logo atrás daquele penhasco.
Com toda a honestidade, parecia uma eternidade. Kelia sabia que não teria sobrevivido se ele não estivesse segurando sua mão. Mas então, eles alcançaram o navio e ela foi ajudada a subir pela lateral por sua tripulação.
—Venha, venha, — Emma disse apressada, uma mulher familiar ao seu lado. —Eu esquentei água para você. Você precisa tirar essas roupas e essa chuva.
—Daniella? — Kelia perguntou, sua voz cansada, quando ela reconheceu a convidada de Emma.
—Estou aqui, — disse Daniella. —Kelia, estou aqui.
Uma vez que eles estavam abaixo do deck e fora da chuva, Emma abriu a cozinha e eles se jogaram nos bancos, exaustos.
—Agora que estamos seguros, por enquanto, — Drew disse, colocando as mãos atrás das costas e andando pelo chão. Suas botas rangendo com água. —Quero saber como Kelia foi incluída no programa.
—Eu já te disse. — Emma começou.
—Eu quero ouvir o que Kelia tem a dizer. — Drew retrucou, atirando em Emma.
Kelia engoliu em seco. Seu ombro doía e ela estremeceu ao movê-lo. Imediatamente, Emma se levantou e começou a cuidar dele com um bálsamo que poderia ser o mesmo que ela usava para as costas. Enquanto funcionasse, Kelia não se importava particularmente.
—Daniella e eu tivemos um confronto físico, — ela explicou. —Eu pensei ter te contado isso.
—Resumidamente — disse ele. Seu tom ficou baixo e, embora cansada, Kelia ainda podia captar o aviso ali. —Mas eu acredito que Daniella é mais inteligente do que eu pensava. Eu acredito que ela fez isso de propósito, sabendo que você seria designada para o programa. — Ele se lançou para agarrar Daniella pela garganta e a ergueu no ar. —É verdade?
Daniella engasgou e lutou contra seu aperto.
—Drew, — Emma retrucou. Ela parou de ministrar no ombro de Kelia, mas não foi até ele. —Eu te disse. Ela fez o que precisava ser feito para encontrar Wendy. A estrela com o nome de Wendy? No livro-razão? Representa o programa de Starling - que já conhecíamos. Que ela estava no programa. Sem Daniella, nunca teríamos encontrado Wendy.
Não admira que Daniella estivesse tão disposta a ajudá-la com os livros contendo o nome de Wendy.
—Não valia a pena arriscar Kelia — disse Drew. Seus olhos estavam fixos em Daniella. —Dê-me uma boa razão para não matar você.
—Drew, — Emma avisou. —Não me faça...
—Porque eu o solicito. — Disse Kelia.
Sua voz era um murmúrio baixo, mas a julgar pela tensão que apareceu no corpo de Drew, Kelia sabia que ele a ouviu. Ele não colocou Daniella no chão imediatamente, mas Kelia tinha fé que ele o faria.
Outro momento se passou antes que Drew colocasse Daniella no chão e a soltasse. Daniella sugou o ar, com as mãos no pescoço, tentando se acalmar.
—Estou observando você, — ele avisou, olhando para Daniella. —Um passo em falso e vou matá-la sem lhe poupar um pensamento. Não me importa quem você seja para Emma ou o que fez por Wendy. Você entendeu?
Daniella tossiu. Parecia que ela ainda não conseguia recuperar o fôlego, mas ela balançou a cabeça vigorosamente.
Kelia ficou com as pernas trêmulas. Ela não sabia se era porque estava com frio ou se estava exausta. De qualquer forma, ela queria tirar essas roupas assim que pudesse. Quando ela alcançou Daniella, ela caiu de joelhos.
—Eu sinto muito, — ela murmurou. —Você deixou o diário para mim?
Daniella acenou com a cabeça, ainda esfregando a garganta.
—Você... você ainda tem? — Ela conseguiu deixar sair.
Kelia balançou a cabeça e foi atingida por uma crise de tontura. —Queimou — disse ela. —O celeiro. — Ela respirou fundo. —Eu quero que você saiba... faltavam páginas. Acho que você leu as páginas, mas não recebi até ser Cega. Abigail as deu para mim. Ela havia arrancado as páginas depois que você leu o diário, antes de você deixá-lo para mim.
—Então você realmente não sabia. — Disse Daniella, desviando o olhar.
Kelia balançou a cabeça e foi confrontada com mais tonturas. —Não, Daniella. Verdadeiramente.
—Então também sinto muito — disse ela, estendendo a mão. —Amigas?
Kelia pegou a mão de Daniella nas suas. —Algo assim, eu acho.
Quando Daniella saiu, Kelia soltou um suspiro trêmulo que não percebeu que estava segurando. Ela estava segura. Seus amigos estavam seguros. Ela finalmente estava longe da Sociedade e nunca mais voltaria.
Obrigada, ela pensou - a seus pais, a Deus, a Drew ou Daniella ou Emma... ela não sabia.
Ela respirou fundo e finalmente se permitiu cair em uma feliz inconsciência.
CAPÍTULO 31
Drew Knight recostou-se na cadeira, os tornozelos cruzados na borda da mesa, as pernas esticadas e a cabeça voltada para o teto. Os papéis colocados em sua mesa ainda estavam espalhados. Ele pretendia organizá-los de maneira mais adequada, mas nunca teve a oportunidade de fazê-lo.
Era difícil para ele entender o que acabara de acontecer. Tudo era um borrão, era difícil de decifrar, difícil de entender. Ele nem estava pensando nisso, verdade seja dita.
Em vez disso, seu foco estava no que havia descoberto. A Rainha estava procurando por ele. Mais do que isso, ela o queria de volta. Porque ele havia cortado o vínculo deles há muito tempo, ela não podia chamá-lo para ela. Ele assumiu que ela nunca tentou chamá-lo de volta para ela porque ela não tinha visto uma razão para fazer isso, mas agora estava claro que ela devia e desde então colocara uma recompensa em sua cabeça.
Seus lábios se curvaram enquanto ele entrelaçava os dedos e o colocava atrás da cabeça. Agora ela saberia sobre Kelia, e a rainha não gostaria da ideia de que ele havia colocado outra mulher acima dela.
Ele podia vê-la claramente, aquele sorriso felino, os olhos estreitos, a testa lisa. Ela disse a ele para sair e brincar, que não importava porque, no final, ele voltaria rastejando para ela como todo mundo fazia. Pelo menos ele teve a previsão de que Emma removesse o vínculo de qualquer maneira.
Porque mesmo então, Drew sabia que não era como todo mundo... e que a Rainha acabaria percebendo isso.
A vela que ele acendeu, colocada cuidadosamente no canto da mesa, tremeluzia na escuridão. Sua audição captou o murmúrio suave da voz de Kelia. Parecia que ela estava falando com Wendy sobre qual cama ela queria.
Drew ordenou que as mulheres recebessem um alojamento separado dos Sombras, e Emma ofereceu-lhes um lugar em seu quarto. Apenas o som da voz suave de Kelia era o suficiente para acalmar seu coração.
Ela estava aqui, com ele.
Ela realmente estava aqui.
Ele chutou os pés da mesa, trazendo-os para descansar no chão. Ele se inclinou para frente, vasculhando o papel. O farfalhar da papelada era o único som em seu quarto. Ele precisava encontrar algo. Especificamente, a localização da Ilha de Sangre - a localização da Rainha.
A porta de seus aposentos se abriu e Emma se esgueirou. Seu olhar se fixou no dela. Ele fez uma pausa na busca, mas não disse nada.
—Todas estão se acomodando. — Disse Emma.
—Como ela está? — Drew sabia que não precisava especificar a quem se referia. Ele se concentrou na vela dançante e não em Emma ou em seus olhos conhecedores.
—Consciente. — Emma deslizou como uma onda rolando na costa. —Ela é muito mais forte do que eu imaginava.
—Ela é mais forte do que qualquer um acreditava. — Drew concordou. Ele olhou para baixo e folheou os papéis mais uma vez.
—Procurando algo em particular, Capitão?
Drew ergueu os olhos ao virar uma frase. Emma nunca se dirigiu a ele como capitão.
—Um local, talvez? — Ela perguntou.
Drew se recostou em seu assento. Apesar do quarto escuro, ele podia ver Emma claramente, parada diante dele com uma graça reservada. Era difícil não olhar para ela. Além de sua beleza óbvia, havia algo que ela certamente estava escondendo, algo que ele não conseguia identificar.
—Você arrisca muito indo atrás dela — ela continuou. Seus lábios pintados de vermelho eram como um aviso. —Tem certeza de que é isso que deseja fazer?
—Você me perguntou a mesma coisa quando cortou meu vínculo com a Rainha. — Drew disse lentamente.
—Sim, mas indo atrás da Rainha? Isso é um risco, Drew.
—Ela quer Kelia. — Drew ficou em pé em toda sua altura. Ele colocou a mão firmemente na superfície da mesa, os papéis enrugando sob seu peso. —É a única explicação para Kelia ser colocada no programa de criação. Não havia como ela ser uma Cega por ter um relacionamento comigo sem que ela ouvisse sobre isso; sem saber sua conexão com a Sociedade. Para o próprio Rycroft. Seu povo já estava a caminho, mesmo quando escapamos. E você sabe que a Rainha não vai ceder até que ela a tenha.
—Você sabe disso, e ainda foi atrás dela. — Emma apontou, sem se preocupar em esconder seu aborrecimento.
—Eu não pensei...
—Você faz muito isso quando se trata de Kelia.
Houve um silêncio pesado que ocupou o quarto. Embora houvesse apenas uma mesa entre eles, parecia que estavam em mundos separados. A vela lançava Sombras em Emma, fazendo-a parecer mais sinistra do que realmente era.
—O que é que você quer? — Ele perguntou, cada palavra enunciada. Ele mostrou os dentes, como se fosse algum tipo de animal, sem saber ao certo por que sentia a necessidade de ficar na defensiva com Emma, mas incapaz de aliviar a tensão que se acumulava dentro dele quando alguém mencionava seus sentimentos por Kelia.
—Onde estamos indo? — Emma perguntou. —Temos mais duas bruxas e uma humana a bordo e precisamos de mais suprimentos.
—Nassau fica ao sul, — Drew apontou. —Vamos parar por aí.
—E depois?
—E depois?
—Exatamente minha pergunta.
Drew quase rosnou de frustração. Ele não estava com humor para lidar com Emma e sua boca inteligente.
—E então encontramos o mapa. — Disse ele.
Ele viu quando Emma contorceu o rosto em um olhar suave e frio de indiferença. Ela era tipicamente hábil em esconder sua fachada, mas aqui, mesmo na escuridão, ele podia ver seu esforço tenso.
— E então? — Emma pressionou novamente. Sua voz era nítida. Fria.
Ele não precisava explicar. Ele poderia dizer que ela sabia. Parte dele não tinha ideia de por que ela perguntou em primeiro lugar.
—Tem que ser assim, Emma, — ele disse. Ele se levantou e contornou a mesa, para que pudesse encará-la diretamente. Portanto, não havia nada entre eles. —Você sabe, no minuto em que rompi meu vínculo, tive um relógio contando os segundos até que ela decidisse que precisava me fazer pagar.
—E você acha que seu tempo acabou? — Emma perguntou.
—Ela sabe sobre Kelia — disse Drew. —Isso basta para mim.
—Então, o quê, você planeja atacar navios até encontrar o mapa de sangre, e então...
—E então eu vou matar a Rainha, — Drew terminou. —Vou arrancar a cabeça dela, vou dançar em seu sangue e vou rir. Vou rir porque finalmente, finalmente, estarei livre.
—Drew, — ela disse ameaçadoramente. —Lamento dizer a você, mas não é assim que isso vai acabar.
Isadora Brown
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