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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAIM & ABEL / Jeffrey Archer
CAIM & ABEL / Jeffrey Archer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAIM & ABEL

 

                                                                                                                           1906-1923

 

                                   18 de abril, 1906 - Slonim, Polônia

Ela parou de gemer, de gritar — e morreu. E ele começou a chorar.

Um menino que caçava coelhos na floresta não soube ao certo o que o alertara, se o último grito da mulher ou o primeiro grito e choro da criança. Voltou-se rapidamente, pressentindo possível perigo, procurando o animal que, sem dúvida, estava sofrendo. Nunca ouvira um bicho gritar daquele modo. Andou com cautela na direção do alarido. O grito transformara-se num lamento choroso, mas ainda não lembrava nenhum animal conhecido. Tomara fosse um animal pequeno, que ele pudesse matar; pelo menos, em vez de coelho, teriam outra coisa para a ceia.

O garoto caminhou sorrateiramente para o rio, de onde vinha o barulho estranho, correndo de uma árvore a outra, sen­tindo contra as omoplatas a proteção que o tronco oferecia, algo que pudesse tocar. “Nunca fique em campo aberto”, ensinara-lhe o pai. Quando chegou à borda da floresta, teve uma clara linha de visão, desde o vale lá embaixo até o rio, e ainda assim demo­rou algum tempo a perceber que os gemidos não eram de nenhum bicho comum. Continuou a insinuar-se na direção do choro, mas se viu sozinho em campo aberto. De súbito avistou a mulher, o vestido levantado até a cintura, as pernas estendidas, bem abertas. Pela primeira vez viu uma mulher naquela posição. Cor­reu depressa até onde ela estava e olhou a barriga, com muito medo de tocá-la. Ali, entre as pernas da mulher, estava o corpo de um bichinho úmido e rosado, atado a uma espécie de cordão grosso. O jovem caçador largou no chão os coelhos recém-esfolados e se pôs de joelhos ao lado da criaturinha.

Fitou-a, atordoado, por um longo momento, e tornou a olhar a mulher, arrependendo-se logo da decisão. Ela já estava lívida e fria; o rosto cansado daquela jovem de vinte e três anos pa­receu ao menino o de uma mulher de meia-idade; ninguém pre­cisava lhe dizer que ela estava morta. Pegou o corpinho escorregadio — se lhe perguntassem por quê, o que nunca fizeram, teria respondido que ficara preocupado com as unhas pequeninas que arranhavam o rostinho enrugado — e se deu conta de que mãe e filho eram inseparáveis, por causa do cordão viscoso.

Procurou se lembrar do parto de um cordeirinho que havia presenciado alguns dias antes. Sim, o pastor tinha feito exata­mente aquilo, mas, e a coragem para fazer o mesmo com uma criança? O choro parou, e o menino sentiu que era o momento de tomar uma decisão. Desembainhou a faca com a qual pelara os coelhos, limpou-a na manga da camisa, e, vacilando apenas um instante, cortou o cordão perto do corpo da criança. O san­gue escorreu livremente das duas extremidades. E que fez o pastor depois que nasceu o cordeiro? Dera um nó a fim de es­tancar o sangue. Claro, claro. O menino arrancou da terra um punhado de capim e rapidamente fez um nó grosseiro no cordão. Em seguida apanhou a criança nos braços. Levantou-se com cuidado, deixando ali os três coelhos mortos e a mulher que havia dado à luz, também morta. Antes de finalmente voltar as costas à mulher, juntou-lhe as pernas e cobriu-lhe os joelhos com o vestido. Pareceu-lhe o mais acertado.

— Santo Deus! — exclamou em voz alta, como sempre fazia ao praticar uma ação muito boa ou muito má. Não sabia ainda de que natureza era essa.

O jovem caçador correu à choupana onde a mãe preparava o jantar, esperando apenas pelos coelhos, tudo o mais quase pronto. Estaria ansiosa por saber quantos animaizinhos o filho havia apanhado nesse dia; eram oito bocas para alimentar, e seriam necessários pelo menos três. Às vezes ele conseguia um pato, um ganso, ou mesmo um faisão extraviado da herdade do barão, onde o pai trabalhava. Nessa noite levava um animal diferente, e, ao chegar à choupana, não tirou as mãos da presa, batendo na porta com a sola do pé. A mãe veio abri-la. Sem dizer nada, ofereceu-lhe o presente. Ela não esboçou nenhum gesto imediato de pegar a criatura dos braços dele; com a mão sobre o peito, ficou atônita, diante da triste visão.

— Santo Deus! — exclamou, fazendo o sinal-da-cruz.

O garoto olhou com insistência o rosto da mãe, aguardando uma manifestação de alegria ou de raiva. Nesse momento, aos olhos dela aflorou uma ternura que antes ele nunca vira. Soube então que o que tinha feito podia ser uma coisa muito boa.

— É um bebê, matka?

— É um menininho — respondeu a mãe, balançando a cabeça, penalizada. — Onde o encontrou?

— Perto do rio, matka.

— E a mãe dele?

— Morreu.

Ela fez outro sinal-da-cruz.

— Depressa, corra e conte ao seu pai o que aconteceu, e que ele procure Urszula Wojnak na fazenda, e você os leve aonde está a mãe. Depois venha com eles para cá.

O jovem caçador entregou o menino à mãe, contente por não ter derrubado a criatura escorregadia. Em seguida, livre de sua presa, esfregou as mãos nas calças e saiu à procura do pai.

A mãe fechou a porta com o ombro, chamou a filha mais velha e pediu-lhe que pusesse a panela no fogão. Sentou-se num banco de madeira, desabotoou o corpete e aproximou da boqui­nha contraída seu bico de seio cansado. Sophia, a caçula, de seis meses, nessa noite ficaria sem refeição, como, aliás, toda a família.

— De que vai adiantar isso? — falou em voz alta a mu­lher, cobrindo com um xale o braço e a criança. — Coitadinho, amanhã cedo este pingo de gente estará morto.

Mas não revelou seus sentimentos à velha parteira Urszula Wojnak, que, mais tarde, nessa noite, lavou o corpinho e tratou do toco umbilical retorcido. O marido observava a cena em si­lêncio.

— Hóspede em casa, Deus em casa — comentou a mulher, citando o antigo provérbio polonês.

— Ao diabo com ele! — explodiu o homem. — Temos crianças demais aqui em casa.

A mulher fez que não ouviu, acariciando o cabelo fino e negro do bebê.

— Que nome vamos dar a ele? — e olhou para o marido.

— Isso não me importa. — Deu de ombros. — Que vá sem nome para a sepultura.

 

                               18 de abril, 1906 - Boston, Massachusetts

O médico ergueu o recém-nascido pelos tornozelos e deu-lhe uma palmada nas nádegas. O bebê começou a chorar.

Em Boston, há um hospital que acolhe sobretudo os que padecem das doenças dos ricos, mas, em ocasiões especiais, per­mite-se oferecer serviços de parto também aos novos-ricos. No Hospital Geral de Massachusetts as mães não gritam e, por certo, não dão à luz completamente vestidas. Não é apropriado.

Um homem jovem andava de um lado para outro, fora da sala de parto. Lá dentro, dois obstetras e o médico da família. Ao pai parecia impossível que o primogênito corresse algum pe­rigo. Os dois obstetras receberiam altos honorários apenas pelo trabalho de presenciar e testemunhar os acontecimentos. Um deles, usando traje a rigor por debaixo do avental branco e comprido, mais tarde compareceria a um jantar, mas não quisera se ausen­tar justamente desse parto. Os três haviam tirado a sorte no palitinho para decidir quem faria o parto da criança, e o dr. MacKenzie, clínico-geral da família, fora o vencedor. “Um nome concei­tuado e de confiança”, ponderava o pai, indo e vindo no corredor. Não que tivesse motivos para se preocupar. Roberts levara Anne para o hospital na carruagem, na manhã desse dia, que ela cal­culava ser o vigésimo oitavo do nono mês. Anne começara a sentir as dores logo após o desjejum, mas o marido fora informado de que o parto não ocorreria antes do encerramento do expediente do banco. Era um homem disciplinado e não via por que sua vida bem-organizada devesse ser interrompida por um parto. Todavia, não parava de andar. Enfermeiras e médicos passavam apressados por ele e, cientes de sua presença, baixavam a voz ao se aproxima­rem, para só a erguerem de novo quando não podiam ser ouvidos. Como todos o tratavam dessa forma, ele não lhes prestava aten­ção. A maioria dos funcionários jamais o conhecera pessoalmente, mas todos sabiam quem ele era.

Se fosse menino, um filho, provavelmente mandaria construir a ala infantil de que o hospital tanto precisava. Já construíra antes uma biblioteca e uma escola. Enquanto esperava, ele passou a vista no vespertino, sem maior atenção. Estava nervoso, quase apreen­sivo. Dificilmente eles (considerava quase todos como “eles”) compreenderiam que tinha de ser menino, um menino que um dia ocuparia seu lugar na presidência do banco. Virou as páginas do Evening Transcript. O Red Sox de Boston derrotara o Highlanders de Nova Iorque — muitos estariam comemorando. Lembrou-se então da manchete da primeira página e voltou a ela. O pior terremoto em toda a história dos Estados Unidos. Devastação em San Francisco, pelo menos quatrocentas pessoas mortas — pran­teadas por muitos. Como isso o aborreceu! O nascimento do seu filho ficaria em segundo plano. As pessoas lembrar-se-iam de outro acontecimento nesse dia. Nunca lhe passara pela cabeça, nem mesmo por um segundo, a idéia de que poderia nascer uma me­nina. Voltou às páginas de economia e verificou rapidamente o mercado da Bolsa de Valores; o abominável terremoto havia redu­zido o valor de seus títulos no banco em cem mil dólares, mas, como sua fortuna pessoal se conservava satisfatoriamente acima de dezesseis milhões de dólares, seria necessário mais de um ter­remoto californiano para abalá-lo. Tinha condições de manter-se com os juros das participações, deixando intacto o capital de de­zesseis milhões, que colocaria à disposição do futuro filho. Con­tinuou a andar e a fingir que lia o Transcript.

O obstetra de traje a rigor avançou pelas portas de vaivém da sala de parto com o propósito de lhe dar a notícia. Sentia-se na obrigação de justificar os honorários imerecidos, e, ademais, era o único que trajava uma roupa adequada para tal comunica­ção. Os dois homens olharam-se fixamente por alguns segundos. O médico também estava um pouco nervoso, mas esforçava-se por não demonstrá-lo.

— Parabéns. O senhor tem um filho, um menino pequeno e saudável.

“Que comentários tolos se costuma fazer quando nasce uma criança!”, pensou o pai; “claro que só poderia ser pequeno.” Finalmente, ele agora tinha certeza — um filho. Ele quase agra­deceu a Deus.

Para quebrar o silêncio, o obstetra arriscou uma pergunta:

— Já escolheu o nome que dará ao menino?

O pai respondeu sem hesitação:

— William Lowell Kane.

 

Mais tarde, passadas as emoções provocadas pelo aparecimento do bebê, o resto da família já recolhido, a mãe continuou des­perta com a criancinha entre os braços. Helena Koskiewicz tinha fé na vida, e, para confirmá-lo, gerara nove filhos. Embora tivesse perdido três ainda pequenos, vira-os partir inconformada.

Aos trinta e cinco anos, sabia que seu outrora vigoroso Jasio não mais lhe daria filhos. Este lhe fora dado por Deus e, segura­mente, estava destinado a viver. Helena tinha uma fé simples, o que era bom, pois o destino jamais lhe propiciaria algo além de uma vida simples. Era grisalha e franzina, não por escolha, mas por ser pouca a comida, pesado o trabalho e escasso o dinheiro. Nunca chegara a se queixar, mas as rugas de seu rosto condiziam mais com uma avó do que com uma mãe do mundo de hoje. Em nenhum momento em toda a vida vestira uma roupa nova.

Apertou os seios esgotados com tanta força que surgiram man­chas vermelho-escuras em torno dos mamilos. Pequeninas gotas de leite saíram num jato. Aos trinta e cinco anos, a meio caminho do ajuste com a vida, todos temos alguma experiência valiosa a transmitir, e a de Helena Koskiewicz era inestimável.

— Pequenino da matka — sussurrou ela com meiguice, reti­rando a mama da boca franzida. Os olhinhos azuis se abriram, e pequeninas gotas de suor brotavam no nariz do bebê, que se esforçava por sugar. Finalmente, sem querer, a mãe mergulhou num sono profundo.

Ao levantar-se, às cinco horas da manhã, Jasio Koskiewicz, um homem bronco e melancólico, de bigode cheio, único traço de auto-afirmação numa existência servil, encontrou a mulher e o bebê dormindo na cadeira de balanço. Não sentira falta dela durante a noite. Baixou o olhar e fixou-o no bastardozinho, que, graças a Deus, pelo menos havia parado de chorar. Estaria morto? Jasio imaginou que a melhor maneira de resolver a situação era ir trabalhar e não se meter com o intruso. Que a mulher se preo­cupasse com a questão da vida ou da morte: sua única preocupa­ção era chegar à propriedade do barão ao raiar do dia. Sorveu uns poucos e prolongados goles de leite de cabra e limpou o bigode exuberante com a manga da camisa. Com uma mão, arre­batou um naco de pão; com a outra, pegou os laços de caça; e saiu de mansinho da choupana, com receio de acordar a mulher e se ver envolvido no problema. Caminhou a passos largos em direção à floresta, sem voltar a pensar no pequeno intruso e achan­do que o tinha visto pela última vez.

Florentyna, a filha mais velha, foi a primeira a entrar na cozi­nha, bem antes que o velho relógio — que por muitos anos manti­nha o seu próprio tempo — assinalasse as seis horas da manhã. Ele não tinha outra função senão a de auxiliar quem desejasse saber a hora de se levantar ou de se deitar. Entre as obrigações de Florentyna estava o preparo da primeira refeição do dia, em si uma tarefa de menor importância, que implicava a simples par­tilha de um odre de leite de cabra e de um pedaço de pão de centeio entre as oito pessoas da família. Contudo, era preciso uma sabedoria de Salomão para levar a cabo a tarefa, de modo que ninguém reclamasse da porção distribuída.

Aos olhos de quem a visse pela primeira vez, Florentyna parecia uma coisinha graciosa, andrajosa e frágil. Era injusto que, nos últimos três anos, tivesse tido um só vestido, mas quem sou­besse vê-la, independentemente do meio onde vivia, compreenderia por que Jasio tinha se apaixonado pela mãe dela. O cabelo claro e longo luzia, e os olhos castanhos faiscavam, num desafio à in­fluência de sua origem e de sua alimentação.

Pé ante pé, Florentyna foi até a cadeira de balanço e con­templou a mãe e o bebê, a quem adorara à primeira vista. Ao longo dos seus oito anos, nunca possuíra uma boneca. Apenas vira uma, quando a família fora convidada a ir à festa de São Nicolau, no castelo do barão. Mesmo naquela ocasião não havia posto as mãos no belo brinquedo, mas agora sentia uma inexpli­cável necessidade de tomar o bebê nos braços. Inclinou-se, tirou a criança do colo dá mãe e, fitando os olhinhos azuis — que lindos olhos azuis! —, começou a cantarolar. O choque da mudança de temperatura, do calor do peito da mãe para o frio das mãos da menina, irritou o pequerrucho. Ele imediatamente pôs-se a cho­rar, acordando a mãe, cuja única reação foi sentir-se culpada por ter adormecido.

— Santo Deus! Ele ainda vive — disse Helena a Florentyna. Prepare o café dos meninos que eu vou dar de mamar a ele.

A contragosto, Florentyna entregou a criança à mãe e obser­vou-a apertar mais uma vez os peitos doloridos. A menina parecia magnetizada.

— Ande, Floreia — a mãe repreendeu-a —, o resto da famí­lia também tem de comer.

Florentyna obedeceu-lhe, e os irmãos, ao descerem do sótão onde todos dormiam, cumprimentaram a mãe, beijando-lhe as mãos, e se puseram a olhar com temor reverente para o recém-chegado. Tudo o que sabiam era que aquele menino não tinha saído da barriga da mãe. Inquieta demais para tomar o café da manhã, Florentyna viu os irmãos dividirem a porção dela entre si sem pestanejar, deixando sobre a mesa a cota que cabia à mãe. Aliás, ninguém tinha reparado que a mãe não comera desde a chegada do bebê.

Helena Koskiewicz sentia-se satisfeita por ver que os filhos haviam aprendido a se arranjar muito cedo na vida. Alimentavam os animais, ordenhavam as cabras e as vacas, cuidavam da horta e realizavam as tarefas cotidianas sem a ajuda ou o estímulo dela. A noite, logo que Jasio voltou do trabalho, reparou subita­mente que ela não lhe havia preparado o jantar, mas Florentyna pegou os coelhos trazidos por Franck, o irmão caçador, e tratou de cozinhá-los. A menina orgulhava-se de ter sido encarregada da refeição noturna, uma responsabilidade que lhe confiavam apenas quando a mãe se mostrava indisposta, um luxo que só raramente Helena Koskiewicz se permitia. O jovem caçador trou­xera quatro coelhos, e o pai, seis cogumelos e três batatas: nessa noite haveria um verdadeiro banquete.

Depois do jantar, Jasio Koskiewicz sentou-se em sua cadeira junto ao fogo e pela primeira vez examinou detidamente a criança. Segurando o pequenino pelas axilas e amparando-lhe o pescoço frágil com os dois polegares, lançou-lhe seu olhar de armador de laços. A feiúra do rosto, enrugado e sem dentes, só era redi­mida pelos olhos inquietos, azuis e perfeitos. Ao dirigir o olhar para o tronco franzino, um detalhe chamou imediatamente a aten­ção do pai, que assumiu um ar sério e esfregou o peito delicado do bebê com os polegares.

— Helena, viu isto aqui? — perguntou, cutucando as cos­telas do pequeno. — O bastardozinho feioso tem um mamilo só.

A mulher franziu a testa, passando o polegar sobre a pele do bebê, como se o movimento lhe pudesse suprir a falta do órgão. O marido tinha razão: o mamilo esquerdo, diminuto e incolor, estava lá, mas, no lugar do seu par, no lado direito do peito raso, a pele era completamente lisa e regularmente rosada.

A inclinação de Helena à superstição foi imediatamente des­pertada.

— Ele me foi dado por Deus! — exclamou. — Este é o sinal dele.

Num gesto brusco, o homem empurrou a criança na direção da mulher.

— Não seja boba, Helena. A criança foi dada à mãe dela por um homem de sangue ruim.

E cuspiu dentro do fogo, mais precisamente para exprimir sua opinião sobre a ascendência do menino.

— De qualquer maneira, não apostaria uma batata sequer na sobrevivência desse bastardo.

Jasio Koskiewicz, por natureza, não era um homem insen­sível, mas a criança não era sua, e uma boca a mais para alimentar só lhe agravava os problemas. Bem, se tinha de ser assim, não cabia a ele contrariar o Todo-Poderoso. Sem pensar mais no bebê, caiu num sono pesado, ao lado do fogo.

 

À medida que os dias iam passando, até mesmo Jasio Kos­kiewicz começou a acreditar que o menino sobreviveria, e, se fosse um homem de apostas, teria perdido uma batata. Com a ajuda dos filhos o caçador fez um berço com a madeira reco­lhida na floresta do barão. Florentyna costurou as roupas com retalhos de seus próprios vestidos. Tê-lo-iam chamado de Arlequim, caso soubessem o que significava o nome. Na verdade, a escolha do nome causou mais desavenças no seio da família do que qualquer outro problema em tantos meses; apenas o pai não tinha nenhum palpite. Finalmente concordaram em chamá-lo de Wladek. No domingo seguinte, na capela da vasta herdade do barão, a criança foi batizada de Wladek Koskiewicz; a mãe estava grata a Deus por ter-lhe poupado a vida; o pai, resignado ao que desse e viesse.

Nessa noite, houve uma festa modesta em comemoração ao batizado, enriquecida com um ganso presenteado pelo barão. Todos comeram fartamente.

A partir desse dia, Florentyna aprendeu a dividir por nove.

 

Anne Kane dormira tranqüilamente a noite toda. Depois do café da manhã, quando uma enfermeira lhe trouxe o filho William, não via a hora de tê-lo de novo nos braços.

— Agora, sra. Kane — disse animadamente a enfermeira —, que tal também alimentar o bebê?

E ajudou Anne, que de repente sentiu os peitos intumescidos, a sentar-se na cama, orientando os dois novatos nos procedimen­tos. Anne, ciente de que poderia ser considerada pouco maternal se demonstrasse embaraço, fixou o olhar nos olhos azuis de William, mais azuis que os do pai, e adaptou-se à nova condição, na qual seria ilógico sentir outra coisa que não contentamento. Aos vinte e um anos de idade, nada lhe faltava. Nascida uma Cabot, ligada pelo matrimônio a um ramo da família Lowell, dera à luz seu primeiro filho, que continuaria a tradição sucinta­mente resumida num cartão que uma velha amiga de escola lhe enviara:

 

             Viva a cidade de Boston,

             terra do feijão e do bacalhau,

             onde os Lowells só falam com os Cabots,

             e os Cabots só falam com Deus.

 

Anne passou meia hora falando com William, que permaneceu indiferente e, em seguida, foi levado para dormir pela mesma en­fermeira que o havia trazido. Anne resistiu nobremente às frutas e aos doces acumulados ao lado da cama. Estava decidida a voltar aos seus vestidos no próximo verão e a reassumir o lugar a que tinha direito nas revistas de moda. Pois o príncipe de Garonne não lhe havia dito que ela era a única beleza de Boston? O cabelo longo e dourado, os traços finos e delicados e o corpo esguio tinham sido objeto de exaltada admiração em cidades que nem chegara a visitar. Examinou-se ao espelho: nenhuma ruga alarmante no rosto; dificilmente alguém acreditaria que ela era mãe de um menino forte. “Graças a Deus, é um menino forte”, ela pensou.

Anne saboreou um almoço leve e arrumou-se para receber as visitas que começariam a chegar à tarde, já passadas pelo crivo da secretária particular. Somente os familiares e os membros das melhores famílias haviam obtido permissão para vê-la nos primei­ros dias; os demais seriam informados de que a mãe não se achava ainda preparada para receber visitas. Todavia, visto que Boston era a única cidade dos Estados Unidos em que todos ainda sabiam reconhecer seu lugar em relação ao mais alto grau de dis­tinção social, era pouco provável que aparecesse algum visitante inesperado.

Anne ocupava um quarto abarrotado de flores, que, de outro modo, comportaria facilmente mais cinco leitos. Não estivesse ali a jovem mãe sentada a prumo na cama, quem passasse poderia imaginar uma exposição de floricultura. Anne ligou a luz elétrica, que ainda era uma novidade; ela e Richard precisaram aguardar que os Cabots os instruíssem sobre o seu funcionamento, o que toda Boston interpretara como um indício oracular de que a indu­ção eletromagnética era, daquele momento em diante, socialmente aceitável.

A primeira visitante foi a sogra de Anne, sra. Thomas Lo­well Kane, à frente da família desde a morte do marido, no ano anterior. Mulher de meia-idade, elegante, ela aperfeiçoara a técnica de irromper majestosamente num aposento, para sua completa satisfação e total desgosto de seus ocupantes. Vestia um chemisier longo, e era impossível ver-lhe os tornozelos; o único homem que os vira estava morto. Sempre fora magra. Em sua opinião, mu­lheres gordas significavam má nutrição e educação ainda pior. Era a mais velha dos Lowells ainda vivos; a mais velha Kane, aliás. Por isso esperava, como todos, ser a primeira a chegar e a conhecer o novo neto. Afinal, não fora ela que planejara o encontro entre Anne e Richard? O amor sempre levara a sra. Kane a resultados de pouca monta. A riqueza, a posição social e o prestígio, ao contrário, sempre lhe haviam garantido um bom acordo. O amor era desejável, embora raramente se mostrasse um bem durável como os três anteriores. Ela beijou a fronte da nora em sinal de aprovação. Anne apertou um botão na parede, e ouviu-se o som de uma campainha discreta. A sra. Kane surpreendeu-se; não podia acreditar que um dia a eletricidade viesse a se tornar po­pular. A enfermeira reapareceu com o herdeiro. A sra. Kane o inspecionou, suspirou, satisfeita, e fez-lhe um aceno de despedida.

— Muito bem, Anne — disse a velha senhora, como se a nora tivesse recebido um prêmio numa gincana. — Todos nós nos orgulhamos muitíssimo de você.

A mãe de Anne, sra. Edward Cabot, chegou pouco depois. Tal como a sra. Kane, enviuvara recentemente e diferia tão pouco dela na aparência que quem as visse de longe correria o risco de confundi-las. Mas, justiça lhe seja feita, demonstrou maior inte­resse pelo novo neto e pela filha. Transferiu sua inspeção às flores.

— Os Jacksons foram muito gentis em mandar uma lem­brança — murmurou a sra. Cabot.

A sra. Kane adotou um procedimento mais superficial. Passou os olhos pelas flores viçosas e pousou-os sobre os cartões de feli­citação. Murmurou para si mesma os nomes confortadores das famílias Adamses, Lawrences, Lodges, Higginsons. As avós não fizeram nenhum comentário sobre os nomes que desconheciam; tinham passado da idade de aprender coisas ou de conhecer novas pessoas. Saíram juntas, muito satisfeitas: nascera um herdeiro que parecia, à primeira vista, adequado. Ambas julgavam ter cumprido com êxito o dever supremo da família, ainda que indiretamente, e, a partir daquele momento, poderiam passar a um papel secun­dário.

Estavam ambas enganadas.

Durante a tarde, os amigos de Anne e Richard entraram e saíram do aposento, levando-lhes presentes — de ouro e de prata — e os melhores votos de felicidade, com forte sotaque aristo­crático.

Quando o marido chegou, após o trabalho, Anne sentia-se um tanto exausta. Pela primeira vez na vida Richard tomara champanhe na hora do almoço — o velho amigo Amos Kerbes insistira nisso, e, com todo o Somerset Club presente, ele não vira como recusar o convite. Dava à mulher a impressão de estar um pouco menos tenso que o habitual. De aspecto sólido, com a sobrecasaca preta comprida e as calças riscadas, revelara o metro e oitenta que tinha; o cabelo preto partido ao meio brilhava à luz da enorme lâmpada elétrica. Poucos lhe dariam a idade que tinha, apenas trinta e três anos: para ele a juventude nunca fora importante; interessava-lhe a essência. Mais uma vez William Lowell Kane foi convocado e examinado, como se o pai confe­risse o balancete ao final do expediente no banco. Tudo parecia em boas condições. O menino nascera com duas pernas, dois braços, dez dedos nas mãos, dez dedos nos pés, e Richard nada notara que mais tarde pudesse vir a embaraçá-lo. Desse modo, William foi dispensado.

— Ontem à noite telegrafei ao diretor da St. Paul’s School. William foi aceito para setembro de 1918.

Anne permaneceu calada. Era evidente que Richard havia começado a planejar a carreira de William.

— Bom, minha querida, já se recuperou? — indagou ele, que nunca passara um dia sequer num hospital durante seus trinta e três anos.

— Sim... Não... Acho que sim — respondeu timidamen­te a mulher, reprimindo o choro, que, ela o sabia, apenas o irri­taria.

Richard não poderia compreender essa resposta. Beijou a mulher no rosto e voltou na carruagem para a Red House, na Louisburg Square, a residência da família. Incluindo os familia­res, os criados, o bebê e uma babá, haveria nove bocas para ali­mentar. Richard não se preocupou com isso.

William Lowell Kane recebeu a bênção, e o nome que o pai escolhera para ele antes do nascimento, na Catedral Protestante Episcopal de St. Paul, na presença de todas as pessoas ilustres de Boston e de umas poucas que não o eram. Oficiou a cerimônia o bispo W. Lawrence; foram padrinhos J. P. Morgan e Alan Lloyd, banqueiros de reputação inatacável, juntamente com Milly Preston, a amiga mais próxima de Anne. Sua Eminência espargiu água-benta sobre a cabeça de William, que nada murmurou. Anne agradeceu a Deus pelo nascimento normal do filho, e Richard agradeceu a Deus — a quem considerava um guarda-livro ex­terno, cuja função era registrar os feitos da família Kane de gera­ção a geração — por ter tido um filho homem, a quem poderia deixar a fortuna. Contudo, refletiu, o melhor talvez fosse afastar todas as dúvidas por meio de um segundo filho. Ainda de joelhos, olhou de lado para a mulher, plenamente satisfeito com ela.

 

Wladek Koskiewicz crescia devagar. A mãe adotiva com­preendeu com clareza que a saúde do menino seria um eterno problema. Ele pegava todas as enfermidades que crianças em cres­cimento normalmente pegam, além de outras que não costumam pegar, e passava-as indistintamente ao resto da família. Helena tratava-o como filho legítimo e defendia-o com firmeza toda vez que Jasio responsabilizava o Diabo, e não Deus, pela presença dele na minúscula choupana. Florentyna, por seu turno, também cuidava de Wladek como de um filho. Desde a primeira vez em que viu o menino, amou-o com uma intensidade que brotava do receio de que nunca ninguém quisesse esposá-la, a ela, a filha paupérrima de um armador de laços. Já que não seria mãe, Wla­dek seria seu filho.

O irmão mais velho, o caçador que encontrara Wladek, tra­tava-o como brinquedo, mas temia demais ao pai para poder admitir que gostava da criança delicada, que dava os primeiros passos e ia se tornando robusta. Em todo caso, no próximo mês de janeiro, o caçador deixaria a escola e passaria a trabalhar na propriedade do barão, e, ademais, dissera-lhe o pai, crianças eram coisa de mulher. Os três irmãos mais novos, Stefan, Josef e Jan, pouco se interessavam por Wladek, e a outra irmã, Sophia, con­tentava-se em acariciá-lo.

Nenhum dos pais, porém, estava preparado para lidar com uma índole e uma mentalidade tão diversas das dos filhos legí­timos. Era impossível não perceber as diferenças físicas e inte­lectuais. Os Koskiewicz eram altos, espadaúdos, louros e tinham olhos cinza, exceto Florentyna. Wladek era roliço, atarracado, moreno, os olhos de um azul intenso. Os Koskiewicz aspiravam a um mínimo de instrução, e, tão logo a idade ou o discernimento o permitiam, eram retirados da escola da aldeia. Wladek, por outro lado, embora tivesse demorado a andar, começara a falar aos dezoito meses. Aos três anos, lia, mas ainda não aprendera a vestir-se sozinho. Aos cinco, escrevia, mas continuava a urinar na cama. Transformara-se no desespero do pai e no orgulho da mãe. Os primeiros quatro anos de sua vida foram marcados apenas pelo esforço físico contínuo de sobreviver às enfermidades e procurar se imunizar a elas, no que era encorajado por Helena e Floren­tyna. Dentro da roupa de Arlequim, ele corria descalço em torno da choupana de madeira, atrás da mãe. Quando Florentyna voltava da escola, o menino transferia para ela sua fidelidade, só a lar­gando no momento de ser posto na cama. Ao dividir a comida por nove, Florentyna amiúde sacrificava metade de sua porção em benefício de Wladek, ou, quando ele adoecia, a porção inteira. Wladek usava as roupas que ela lhe fazia, cantava as canções que ela lhe ensinava e partilhava os poucos brinquedos e presentes que ela ganhara.

Florentyna passava a maior parte do dia na escola, e, por essa razão, desde pequeno, Wladek demonstrou o desejo de acompa­nhá-la. Quando foi admitido (segurava com força a mão de Floren­tyna até chegarem à escola da aldeia), andava as dezoito wiorsta, cerca de quinze quilômetros, atravessando bosques de bétulas co­bertas de musgo, de ciprestes, e pomares de limeiras e cerejeiras, até Slonim, a fim de iniciar sua educação.

Wladek gostou da escola desde o primeiro dia; via ali uma oportunidade de escapar à choupana humilde que, até aquele mo­mento, havia sido todo o seu mundo. A escola também o defron­tou, pela primeira vez na vida, com as implicações brutais da ocupação da Polônia oriental pelos russos. Wladek logo aprendeu que na escola deveria falar o russo, reservando a língua pátria, o polonês, apenas para a privacidade da choupana. Sentindo nos colegas um forte orgulho pela língua e pela cultura materna, tão oprimidas, ele também foi dominado pelo mesmo orgulho. Sur­preso, Wladek descobriu que o sr. Kotowski, o professor, não o menosprezava como fazia o pai em casa. Embora fosse o garoto mais novo, como em casa, não demorou a se destacar em tudo entre os colegas, exceto na altura. Sua estatura baixa levava-os a subestimar-lhe freqüentemente as reais capacidades: crianças sem­pre imaginam que o maior é o melhor. Aos cinco anos de idade, Wladek era o primeiro da classe em todas as matérias.

À noite, quando voltava à choupana, enquanto os demais cuidavam das violetas e dos choupos — que cresciam, aromáticos, no jardim durante a primavera —, colhiam frutas, cortavam lenha, apanhavam coelhos ou costuravam roupas, Wladek lia e lia, até que chegou a ler os livros intactos do irmão mais velho e, em breve, os da irmã mais velha. Aos poucos, Helena Koskiewicz foi se certificando de que tinha conseguido mais do que esperara, quando o jovem caçador levara para casa, em lugar dos três coe­lhos, aquele animalzinho; Wladek já lhe fazia perguntas a que ela não sabia responder. Compreendendo imediatamente que seria incapaz de lidar com a situação, Helena ficou em dúvida sobre o que fazer. Mas, como conservava uma fé inabalável no destino, não se surpreendeu quando a decisão lhe foi tirada das mãos.

Certa noite, no outono de 1911, ocorreu o primeiro mo­mento decisivo na vida de Wladek. A família havia terminado a refeição singela, constituída de sopa de beterraba e almôndegas, Jasio Koskiewicz roncava sentado perto do fogo, Helena costu­rava e os filhos brincavam. Wladek estava sentado aos pés da mãe, imerso na leitura, quando, cobrindo o clamor de Stefan e Josef, que disputavam a posse de uma pinha recém-pintada, ecoou uma sonora batida na porta. Todos ficaram em silêncio. A família Koskiewicz sempre se surpreendia com uma pancada na porta, pois a choupana ficava a dezoito wiorsta de Slonim e a mais de seis da herdade do barão. Os visitantes eram na maioria foras­teiros, a quem eles só podiam oferecer um suco de frutas e a com­panhia de crianças barulhentas. A família inteira olhou apreensiva para a porta. Esperaram nova batida. Ela veio, talvez um pouco mais forte. Ainda sonolento, Jasio levantou-se da cadeira, foi até a porta e abriu-a cautelosamente. Quando viram o homem que ali estava, todos curvaram a cabeça numa reverência, menos Wla­dek, que ficou olhando fixamente a enorme figura elegante e aristocrática, metida num pesado casaco de pele de urso, uma presença que dominava o minúsculo cômodo e fazia o medo aflorar aos olhos do pai. Um sorriso cordial atenuou-lhe o medo, e o armador de laços convidou o barão Rosnovski a entrar. Ficaram todos silenciosos. Nunca antes tinham recebido a visita do barão, e não sabiam bem o que dizer.

Wladek pousou o livro no chão, ergueu-se e aproximou-se do estranho, estendendo a mão antes que o pai pudesse impe­di-lo.

— Boa noite, senhor — disse-lhe.

O barão apertou-lhe a mão, e os olhos de Wladek caíram sobre a magnífica pulseira de prata em seu pulso, na qual havia uma inscrição que não pôde ver direito.

— Você deve ser Wladek.

— Sim, senhor — respondeu o menino, sem indicar ou demonstrar surpresa pelo fato de o barão conhecer-lhe o nome.

— Vim falar com seu pai por sua causa — disse o barão.

Wladek continuou diante do barão, fitando-o com insistência.

Com um gesto de braço, o armador deu a entender às crianças que o deixassem sozinho com o patrão, e assim duas delas fize­ram uma reverência com a cabeça, quatro inclinaram o corpo e as seis subiram em silêncio para o sótão. Wladek ficou, e nin­guém lhe sugeriu que fizesse o contrário.

— Koskiewicz — começou o barão, ainda de pé, já que não o haviam convidado a sentar-se. O armador de laços não lhe oferecera uma cadeira por dois motivos: primeiro, porque era muito acanhado, e, segundo, porque tomara como certo que a presença do barão se devia a uma reprimenda. — Vim pedir-lhe um favor.

— O que quiser, senhor, o que quiser — disse o pai, ima­ginando o que poderia dar ao barão que ele já não tivesse cem vezes mais.

— Meu filho Leon — prosseguiu o barão — está com seis anos de idade e vem recebendo instrução particular no castelo com dois professores, um nascido aqui na nossa Polônia, o outro vindo da Alemanha. Segundo eles, o menino é inteligente, mas falta-lhe espírito de competição, uma vez que só tem a si mesmo a superar. O sr. Kotowski, o professor da escola da aldeia de Slonim, diz que Wladek é o único menino capaz de propiciar a competição de que Leon tanto necessita. Interessa-me saber, pois, se vocês permitiriam que o garoto deixasse a escola da aldeia e ficasse com Leon e os professores no castelo.

Wladek continuou diante do barão, olhando-o atentamente, enquanto à sua frente se descortinava a extraordinária visão de uma mesa posta com comidas e bebidas, de livros e de professo­res muito mais sabidos que o sr. Kotowski. Olhou para a mãe. Também ela não deixava de olhar o barão, tomada de espanto e de tristeza. O pai voltou-se para a mãe, e o instante de comuni­cação silenciosa entre os dois pareceu ao menino uma eternidade.

O armador de laços falou bruscamente, olhando para os pés do barão.

— Seria uma honra para nós, senhor.

O barão interrogou Helena Koskiewicz com o olhar.

— A Virgem Maria me proíbe de me pôr no caminho do meu filho — disse, a voz baixa. — Mas só ela sabe o quanto isso vai me custar.

— Sra. Koskiewicz, ele poderá vir vê-la com regularidade.

— Sim, senhor. Espero que o faça, no começo. — Pensou em acrescentar uma objeção, mas resolveu não fazer.

— Bom — sorriu o barão —, está decidido então. Por favor, levem o garoto ao castelo amanhã cedo, às sete horas em ponto. Durante o período de aulas, Wladek fica conosco, e no Natal volta para vocês.

Wladek rompeu em choro.

— Quieto, menino — disse o armador.

— Não vou — disse Wladek com determinação, querendo ir.

— Quieto, menino — tornou o armador, dessa vez erguendo um pouco mais a voz.

— Nunca vou deixar Florcia, nunca.

— Florcia? — inquiriu o barão.

— Minha filha mais velha, senhor — explicou o armador. — Não se preocupe com ela, senhor. O menino fará o que lhe foi ordenado.

Sobreveio um silêncio. O barão refletiu por um instante. Wladek continuava a chorar lágrimas controladas.

— Que idade tem a menina? — indagou o barão.

— Catorze — disse o armador.

— Ela sabe fazer serviços de cozinha? — perguntou o barão, percebendo com alívio que Helena Koskiewicz não romperia em choro também.

— Oh, sim, barão — respondeu ela —, Florcia sabe cozi­nhar, sabe costurar, sabe...

— Ótimo, ótimo, então ela também virá. Espero vê-los amanhã pela manhã, às sete.

O barão foi até a porta e, voltando-se, olhou e sorriu para Wladek, que lhe sorriu também. Wladek triunfara na sua pri­meira negociação, e recebeu o abraço apertado da mãe enquanto olhava a porta fechada e a ouvia murmurar:

— Ah, pequenino da matka, que vai ser de você daqui para a frente?

Wladek estava ansioso por saber.

 

Durante a noite, Helena Koskiewicz arrumou as coisas de Wladek e Florentyna, mas nem mesmo juntar todos os pertences da família demandaria tanto tempo. Pela manhã, os irmãos e a mãe, à porta da choupana, observaram-nos partir rumo ao cas­telo, cada um levando seu embrulho debaixo do braço. Floren­tyna, espigada e graciosa, voltava-se o tempo todo para trás, cho­rando e acenando; mas Wladek, baixote e desajeitado, não olhou para trás uma vez sequer. Florentyna segurou-lhe a mão com fir­meza durante todo o percurso até o castelo do barão. Seus papéis agora se tinham invertido; a partir desse dia, ela é que estaria na dependência dele.

Sem dúvida, estavam sendo esperados pelo homem pomposo de libré verde enfeitada, que viera atender às tímidas batidas na enorme porta de carvalho. Quando passaram pela cidade, ambos se tinham encantado com a farda cinza dos soldados que vigiavam a vizinha fronteira da Rússia com a Polônia, mas era a primeira vez que viam algo tão deslumbrante como aquele criado unifor­mizado, elevando-se acima deles com uma importância franca­mente esmagadora. No saguão, depararam com um espesso tapete, e Wladek arregalou os olhos ante os desenhos em verde e ver­melho, admirado com tanta beleza, sem saber se devia tirar os sapatos, surpreso por não ouvir o ruído de seus passos ao andar sobre ele. A criatura ofuscante os conduziu aos quartos situados na ala oeste. Quartos separados — será que conseguiriam pegar no sono? Felizmente havia uma porta de comunicação, assim nunca ficariam um longe do outro, e, com efeito, durante muitas noites, dormiram juntos na mesma cama.

Depois que desfizeram os embrulhos, Florentyna foi levada à cozinha, e Wladek, ao quarto de brincar, na ala sul do castelo, onde se achava o filho do barão. Leon era um garoto alto e bo­nito, e se mostrou tão prontamente agradável e receptivo que Wladek abandonou, com surpresa e alívio, à atitude agressiva que ensaiara. Leon tinha sido uma criança solitária, sem ninguém com quem brincar a não ser a babá, uma lituana dedicada que o amamentara e o assistira desde a morte prematura da mãe. O garotinho forte saído da floresta prometia ser um bom compa­nheiro. Ao menos num aspecto podiam se considerar iguais.

Leon logo se ofereceu para mostrar a Wladek o castelo, e a excursão ocupou-lhes o resto da manhã. Wladek ficou perplexo com suas dimensões, a suntuosidade do mobiliário, das cortinas e dos tapetes em cada aposento. A Leon admitiu apenas estar favoravelmente impressionado: afinal, conquistara por mereci­mento seu lugar no castelo. A parte principal da construção per­tencia ao gótico antigo, explicou-lhe o filho do barão, como se o recém-chegado soubesse o que “gótico”, significava. Wladek anuiu. Em seguida, Leon conduziu o novo amigo às imensas adegas, cheias de prateleiras de garrafas de vinho cobertas de pó e teias de aranha. O lugar mais apreciado por Wladek foi o amplo salão de jantar, com as imponentes abóbadas sustentadas por colunas e o piso lajeado. Das paredes pendiam cabeças de animais. Leon disse-lhe que eram bisão, urso, alce, javali e carcaju. Num extre­mo da sala, abaixo da galhada de um veado, estava o resplendente brasão. O lema da família Rosnovski dizia: “A boa sorte protege os bravos”. Após a refeição, que Wladek mal saboreou por não saber manejar a faca e o garfo, ele foi apresentado aos dois preceptores, que não o receberam com o mesmo calor de Leon, e à noite deitou-se na cama mais comprida que já vira em toda a vida e contou suas aventuras a Florentyna. Ela não tirou os olhos excitados do rosto do irmão, boquiaberta, ouvindo-o talar do maravilhoso jantar e especialmente do garfo e da faca.

As aulas começavam pontualmente às sete, antes do desjejum, e prosseguiam por todo o dia, com breves intervalos para as refeições. No início, Leon estava nitidamente à frente de Wla­dek, mas este, resoluto, lutou corpo a corpo com os livros, e assim, no curso de algumas semanas, a distância começou a dimi­nuir, enquanto a amizade e a rivalidade entre os dois evoluíam simultaneamente. O preceptor alemão e o polonês encontravam dificuldade em tratar os dois alunos — o filho de um barão e o filho de um armador de laços — com igualdade, embora tivessem admitido com relutância, ao serem consultados pelo barão, que o sr. Kotowski havia feito uma escolha escolar correta. Wladek, porém, nunca se preocupou com o tratamento que lhe era dispen­sado pelos preceptores, porque Leon sempre o tratava como igual.

O barão fazia saber o quanto se sentia satisfeito com o progresso deles, e às vezes recompensava Wladek com roupas e brinquedos. A princípio distante e desinteressada, a admiração de Wladek pelo barão foi evoluindo para o respeito, e, ao chegar o momento de retornar à moderna choupana da floresta e passar o Natal ao lado do pai e da mãe, o garoto começou a se angustiar com a simples idéia de se afastar de Leon.

Havia motivos para essa angústia. Embora, no início, o fato de rever a mãe desse alegria a Wladek, o curto espaço de três meses que vivera no castelo do barão tinha bastado para lhe re­velar as deficiências da casa familiar que não havia percebido antes. As férias iam se arrastando. Wladek sentia-se asfixiado na minúscula choupana, de um cômodo térreo e sótão, desgostoso com a comida escassa e devorada com as mãos: não se dividia por nove no castelo. Duas semanas depois, Wladek já ansiava retomar a Leon e ao barão. Algumas tardes caminhava seis wiorsta até o castelo e, sentado, punha-se a olhar os altos muros que cercavam a propriedade. Florentyna, que apenas convivera com os empre­gados da cozinha, aceitara sem relutância a idéia do retorno e não entendia por que a choupana deixara de ser um lar para Wladek. O armador de laços não sabia como tratar o menino, agora bem-vestido, bem-falante, conversando aos seis anos sobre coisas que o homem não compreendia e não queria compreender. O menino não fazia outra coisa senão ler o dia inteiro. O que havia de ser dele?, perguntava-se o armador. Se não sabia utilizar um ma­chado ou capturar uma lebre, como esperava ganhar a vida ho­nestamente? Também ele desejava que aquelas férias passassem depressa.

Helena orgulhava-se de Wladek, e no começo procurou não aceitar que existisse um abismo entre ele e os outros filhos. No final, entretanto, foi impossível evitá-lo.

Brincando de soldado, certa noite, Stefan e Franck, ambos generais em flancos inimigos, recusaram-se a ter Wladek em seus exércitos.

— Por que fico sempre de fora? — queixou-se Wladek. — Também quero aprender a lutar.

— Porque não é dos nossos — afirmou Stefan. — Não é nosso irmão de verdade.

Fez-se longo silêncio, antes que Franck continuasse:

— Para começar, ojciec nunca quis você. Só matka estava do seu lado.

Imóvel, Wladek percorreu o olhar pelo círculo de crianças, buscando Florentyna.

— Não sou irmão de vocês? O que Franck quer dizer com isso? — inquiriu.

E então Wladek soube como veio ao mundo e compreendeu por que fora sempre rejeitado pelos irmãos e por uma irmã. Em­bora a aflição da mãe se tornasse opressiva agora, com o total isolamento do menino, no íntimo Wladek sentia-se secretamente contente por ter descoberto que provinha de uma estirpe desco­nhecida, intocada pela inferioridade do sangue do armador, e que isso continha o germe do espírito que tornaria possíveis todas as coisas.

Finalmente, as infelizes férias terminaram, e Wladek voltou ao castelo cheio de júbilo. Leon recebeu-o de braços abertos; ele também, tão isolado pela riqueza do pai, como Wladek pela po­breza do camponês, tivera poucos motivos para comemorar o Natal. A partir daquele momento, estreitaram relações e logo se tornaram inseparáveis. Quando se anunciaram as férias de verão, Leon pediu ao pai que Wladek permanecesse no castelo. O barão acedeu, pois também aprendera a amar Wladek. Wladek ficou radiante, e só uma vez mais pôs os pés na choupana do armador de laços.

 

Quando terminavam as tarefas escolares, Wladek e Leon aproveitavam as últimas horas do dia para brincar. A brincadeira preferida era o chowanego, uma espécie de esconde-esconde; como o castelo tinha setenta e dois aposentos, eram mínimas as chances de uma repetição. O esconderijo favorito de Wladek eram as masmorras, onde a única luz pela qual se podia descobrir alguém penetrava por uma pequena grade de pedra situada bem no alto na parede, e ainda assim se fazia necessário o auxílio de uma vela. Wladek ignorava a que propósitos tinham servido no passado as masmorras, e nenhum criado chegara a mencioná-las, como se não se lembrassem de que um dia elas tinham sido utilizadas.

Wladek sabia que só estava à altura de Leon nos estudos, e que, afora o jogo de xadrez, não rivalizava com o amigo em nenhuma outra brincadeira. O rio Shchara, que confinava com a propriedade, tornara-se extensão do espaço de recreio. Na prima­vera pescavam, no verão nadavam, e no inverno, quando as águas do rio se congelavam, punham os patins de madeira e corriam um atrás do outro sobre o gelo, enquanto Florentyna, sentada à mar­gem, alertava-os apreensiva, quanto aos lugares em que a super­fície se apresentava mais fina. Wladek, porém, nunca lhe dava atenção e sempre caía. Leon ia se desenvolvendo sadia e rapida­mente; corria bem, nadava bem, nunca se cansava ou adoecia. Pela primeira vez Wladek tomou consciência do que significava ser bem-nascido e bem-formado, e estava certo de que jamais alcançaria Leon, fosse nadando, correndo ou patinando. O pior era que aquilo que Leon chamava de botão da barriga, no amigo quase não se notava, mas nele era um coto feioso, sobressaindo, grosseiro, no meio do corpo rechonchudo. Wladek ficava, na tranqüilidade do quarto, estufando o peito na frente do espelho, sempre se perguntando por que ganhara um mamilo só, quando todos os meninos que vira de peito nu tinham os dois que a sime­tria do corpo humano parecia exigir. Por vezes, deitado na cama, incapaz de dormir, tocava com os dedos o peito despido, e lágri­mas de desconsolo caíam no travesseiro. Finalmente adormecia, pedindo que, ao acordar na manhã seguinte, as coisas fossem dife­rentes. Seus pedidos nunca foram atendidos.

Todas as noites Wladek reservava um momento para fazer exercícios físicos que não podiam ser testemunhados por ninguém, nem mesmo por Florentyna. Graças a uma firme determinação, aprendeu a colocar o corpo numa postura que o fazia parecer mais alto. Desenvolveu os músculos dos braços e das pernas, e pen­durava-se pelas pontas dos dedos numa viga do quarto, na espe­rança de com isso crescer; mas Leon crescia mais que ele até mesmo enquanto dormia. Wladek, forçosamente, tinha de aceitar o fato de que seria sempre um palmo mais baixo que o filho do barão, e de que nada faria gerar o mamilo ausente. O des­gosto de Wladek pelo próprio corpo não era causado por Leon, que jamais comentara qualquer coisa sobre a aparência do amigo; seu conhecimento de outras crianças limitava-se a Wladek, a quem adorava sem restrições.

O barão Rosnovski foi aos poucos se afeiçoando ao menino impetuoso e moreno, que substituíra o irmão mais novo de Leon, tragicamente perdido quando a esposa morrera de parto.

Os dois meninos jantavam na companhia dele todas as noites no grande salão de paredes de pedra, enquanto as chamas bruxuleantes das velas que incidiam sobre as cabeças empalhadas dos animais projetavam sombras sinistras nas paredes, e os criados entravam e saíam silenciosamente, carregando enormes salvas de prata e pratos dourados, que continham carne de ganso e de porco, lagostas, vinhos excelentes, frutas, e, de quando em quando, mazureks, que se haviam tornado a predileção de Wladek. Mais tarde, quando a escuridão se adensava em torno da mesa, o barão dis­pensava os criados e contava aos garotos episódios da história da Polônia, permitindo-lhes um trago de vodca de Dantzig, na qual pequeninas folhas douradas brilhavam, magníficas, à luz das velas. Wladek muitas vezes atrevia-se a pedir que ele lhe narrasse a história de Tadeusz Kosciuszko.

— Um grande patriota e herói — explicava o barão. — O símbolo perfeito da nossa luta pela independência, educado na França...

— ... cujo povo admiramos e amamos assim como apren­demos a odiar todos os russos e austríacos — completava Wladek, cujo prazer em ouvir a narrativa aumentava pelo fato de já conhe­cê-la palavra por palavra.

— Quem é que está contando a história, Wladek? — pro­testava o barão, sorrindo. — ... E depois lutou pela liberdade e pela democracia ao lado de George Washington na América. Em 1792, liderou os poloneses na batalha de Dubienka. Quando Estanislau Augusto, nosso desventurado rei, desertou e uniu-se aos russos, Kosciuszko retornou à sua amada terra natal, a fim de livrá-la do jugo czarista. Leon, qual foi a batalha que ele venceu?

— A de Raclawice, senhor, e depois libertou Varsóvia.

— Muito bem, meu filho. Depois, por infelicidade, os russos concentraram uma forte tropa em Maciejowice, e ele foi final­mente derrotado e aprisionado. Meu tataravô lutou ao lado de Kosciuszko naquele dia, e, mais tarde, nas legiões de Dabrowski, ao lado do poderoso imperador Napoleão Bonaparte.

— E pelo serviço prestado à Polônia recebeu o título de barão Rosnovski, um título que a família conservará sempre como lembrança daqueles dias gloriosos — arrematava Wladek com denodo, como se destinado a herdar o título.

— Aqueles dias gloriosos hão de voltar — afirmava calma­mente o barão. — Só espero viver para vê-los.

 

Na época do Natal, os camponeses que trabalhavam na pro­priedade celebravam no castelo a vigília santa com os familiares. Ao longo da noite de Natal, jejuavam, e as crianças, às janelas, aguardavam a primeira estrela, cuja aparição anunciava o início do banquete. Com sua bela voz grave, o barão recitou a oração de ação de graças: “Benedicte nobis, Domine Deus, et his donis quae ex liberalitate tua sumpturi sumus”, e todos sentaram-se à mesa. Wladek sentiu-se embaraçado com a desmedida capacidade de comer de Jasio Koskiewicz, que se entregava, resoluto, a cada um dos treze pratos, desde a sopa de barsasz até as tortas e uvas passas, e, como nos anos anteriores, sentiu enjôo na floresta a caminho de casa.

Depois do banquete, Wladek divertiu-se distribuindo os pre­sentes da árvore de Natal, carregada de velas e frutas, às inti­midadas crianças do camponês — uma boneca para Sophia, um facão para Josef e um vestido novo para Florentyna, o primeiro presente que Wladek jamais ousara pedir ao barão.

— É verdade, matka — disse Josef à mãe, ao receber seu presente das mãos de Wladek —, ele não é nosso irmão.

— Não — replicou ela —, mas sempre será meu filho.

 

Durante o inverno e a primavera de 1914, Wladek tornou-se mais forte e fez progressos nos estudos. Mas no mês de julho, de súbito, o preceptor alemão deixou o castelo sem ao menos se despedir; os garotos não sabiam por quê. Nunca lhes ocorrera associar a partida dele ao assassínio, em Sarajevo, do arquiduque Francisco Ferdinando por um estudante anarquista, que lhes fora relatado pelo outro preceptor de maneira estranhamente solene. O barão retraiu-se; os garotos não sabiam por quê. Os criados mais jovens, os mais queridos pelas crianças, começaram a desa­parecer um após o outro; os garotos não sabiam também por quê. À medida que o ano foi passando, Leon cresceu, Wladek encor­pou, e ambos ficaram mais experientes.

Certa manhã do verão de 1915, uma estação de dias belos e indolentes, o barão partiu numa viagem a Varsóvia com o pro­pósito de, como o qualificou, pôr os negócios em ordem. Ausen­tou-se durante vinte e cinco dias, que Wladek foi assinalando toda manhã no calendário do seu quarto; a ele parecia a duração de toda uma vida. No dia em que o barão deveria retornar, os me­ninos foram à estação de Slonim esperar o trem semanal de um único carro para saudar sua chegada. Os três fizeram o caminho de volta em silêncio.

Wladek achou cansado e envelhecido aquele homem notável, outro detalhe estranho. No curso da semana seguinte, o barão manteve repetidamente com os chefes dos criados um diálogo rápido e aflitivo, interrompido toda vez que Leon ou Wladek entravam no aposento, uma dissimulação incomum que deixava os garotos apreensivos e receosos de terem sido a causa involun­tária daquilo. Wladek temia que o barão o mandasse de volta à choupana do armador de laços — sempre ciente de que era um estranho no castelo.

Certa noite, algum tempo depois do seu retorno, o barão chamou-os ao grande salão. Entraram tímidos e temerosos. Sem nenhum esclarecimento, o barão disse-lhes que fariam uma longa viagem. A curta conversa, sem importância, como pareceu a Wla­dek na ocasião, ficou gravada em sua memória para o resto da vida.

— Queridos filhos — começou o barão, a voz grave e trê­mula —, os beligerantes da Alemanha e do Império Austro-Húngaro entraram em Varsóvia e em breve cairão sobre nós.

Wladek lembrou-se de uma inexplicável frase que o preceptor polonês lançara ao preceptor alemão durante os últimos dias tensos que tinham passado juntos.

— Isso quer dizer que a hora dos povos oprimidos da Europa está chegando? — perguntou.

O barão fitou com ternura o rosto inocente de Wladek.

– Nossa consciência nacional não morreu em um século e meio de conflitos e repressão — respondeu. — É possível que o destino da Polônia esteja em jogo, como o da Sérvia, mas não temos poderes para interferir na história. Estamos à mercê dos três impérios poderosos que nos rodeiam.

— Somos fortes, lutaremos — disse Leon. — Temos espa­das e escudos de madeira. Não tememos alemães nem russos.

— Meu filho, você apenas brincou de fazer guerra. Esta batalha não se travará entre crianças. Temos agora de encontrar um lugar tranqüilo para viver até que a história decida nosso destino, e precisamos partir o mais depressa possível. Só espero que este não seja o fim da infância de vocês.

Leon e Wladek ficaram perplexos e irritados com as palavras do barão. A guerra parecia ser uma aventura excitante, que certa­mente perderiam se deixassem o castelo. Os criados levaram alguns dias arrumando a bagagem do barão. Wladek e Leon foram avi­sados de que na segunda-feira seguinte estariam partindo para a pequena casa de verão ao norte de Grodno. Os dois garotos prosseguiram, em grande parte sem acompanhamento, com suas tarefas e brincadeiras, mas não encontraram ninguém no castelo com disposição ou tempo para responder às suas inúmeras per­guntas.

Aos sábados, as aulas eram ministradas apenas pela manhã. Estavam traduzindo para o latim o Pan Tadeusz, de Adam Mickiewicz, quando ouviram os disparos. A princípio, Wladek imaginou que o barulho familiar significasse apenas que um armador de laços estava caçando na herdade; os garotos voltaram à poesia. Uma segunda descarga, mais próxima, fê-los levantar a cabeça, e em seguida ouviram gritos que partiam do andar inferior. Entreolharam-se, aturdidos; não sentiram medo, uma vez que em suas curtas vidas nunca haviam experimentado nada que neles despertasse o medo. O preceptor retirou-se apressado, deixando-os sozinhos, e em seguida ouviram outro disparo, dessa vez no cor­redor, junto aos seus quartos. Os dois meninos ficaram paralisa­dos, estarrecidos e sem fôlego.

Subitamente, a porta escancarou-se, e acima deles elevou-se o corpo de um homem da idade do preceptor, de uniforme cinza de soldado e capacete de aço. Leon agarrou-se a Wladek, que encarou o invasor. Aos brados, o soldado lhes falou em alemão, querendo saber quem eram. Os meninos nada lhe responderam, apesar de dominarem a língua alemã tão bem quanto a língua materna. Logo atrás surgiu outro soldado; o primeiro avançou contra os garotos, e, pegando-os pelo pescoço como se pegam galinhas, puxou-os para o corredor, levou-os para o saguão do andar de baixo, até a frente do castelo, e depois para os jardins, onde encontraram Florentyna, que chorava histericamente, de olhos pregados no gramado à sua frente. Leon não conseguiu olhar e enterrou a cabeça no ombro de Wladek. Entre surpreso e hor­rorizado, Wladek fixou o olhar numa fileira de cadáveres, na maio­ria de criados, os corpos virados de bruços. Ficou hipnotizado pela visão do perfil de um bigode mergulhado numa poça de sangue. Era o armador de laços. Wladek não sentiu nada, mas Florentyna continuava a chorar.

— Papai está aí? — perguntou Leon. — Papai está aí?

Wladek esquadrinhou mais uma vez a fileira de corpos. Agra­deceu a Deus por não haver nenhum sinal do corpo do barão Rosnovski. Estava prestes a dizer isso a Leon, quando um sol­dado se aproximou.

— Wer hat gesprochen? — inquiriu, ameaçador.

— Ich — retrucou Wladek em tom provocador.

O soldado levantou o fuzil e golpeou a cabeça de Wladek com a coronha. Ele caiu, enquanto o sangue lhe escorria pelo rosto. Onde estava o barão? O que estava acontecendo? Por que os maltratavam em sua própria casa? Leon atirou-se imediatamen­te sobre Wladek, tentando protegê-lo do segundo golpe, que o soldado destinara ao estômago do amigo. Mas, na descida, a coro­nha atingiu-lhe brutalmente a nuca.

Os dois garotos permaneceram imóveis: Wladek, porque ainda estava atordoado com a pancada e com o peso inesperado do corpo do amigo, e Leon, porque morria.

Wladek pôde ouvir outro soldado censurar seu algoz pelo que tinha feito. Apanharam Leon do chão, mas Wladek grudou-se a ele. Foram necessários dois soldados para remover o corpo do amigo e abandoná-lo bruscamente junto dos outros, com o ventre voltado contra o chão. Os olhos de Wladek só se des­prenderam do corpo inerte do querido amigo quando finalmente foi levado de volta para dentro do castelo e, na companhia de uns poucos sobreviventes atônitos, conduzido às masmorras. Nin­guém ousou falar, temendo juntar-se à fileira de corpos abando­nados no relvado, até que as portas da masmorra foram aferrolhadas e o último resmungo dos soldados se perdeu a distância.

Foi então que Wladek exclamou:

— Santo Deus!

O barão estava caído contra a parede num canto, ileso mas atordoado, a fitar o vazio, vivo ainda apenas porque os conquis­tadores precisavam de alguém que se responsabilizasse pelos pri­sioneiros. Wladek foi até ele, enquanto os demais se afastavam o mais possível do amo. Olharam-se como no primeiro dia em que se conheceram. Wladek estendeu-lhe a mão, e, como no pri­meiro dia, o barão segurou-a. Wladek viu as lágrimas escorrerem por aquele rosto altivo. Nada disseram. Ambos haviam perdido a pessoa que mais amavam no mundo.

 

William Kane cresceu espantosamente depressa. Era consi­derado um menino adorável por todos os que o cercavam — os parentes deslumbrados e os criados afetuosos.

O último andar da casa dos Kanes, construída no século XVIII e situada na Louisburg Square, em Beacon Hill, transfor­mara-se numa ala infantil atulhada de brinquedos. Um dormitório e uma sala de estar adicionais foram colocados à disposição da babá recém-contratada. O pavimento ficava longe dos aposentos de Richard Kane, possibilitando-lhe ignorar problemas tais como dentição, fraldas molhadas e os choros irregulares e indisciplina­dos por mais comida. O primeiro som, o primeiro dente, o pri­meiro passo e a primeira palavra foram devidamente registrados no livro da família pela mãe, além de seu aumento em altura e peso. Anne surpreendeu-se ao notar que esses dados diferiam muito pouco dos de outras crianças de Beacon Hill com quem entrara em contato.

A babá, trazida da Inglaterra, criava o menino num regime que alegraria o coração de um oficial da cavalaria prussiana. O pai visitava-o todas as noites às seis horas em ponto. Como se recusasse a dirigir-se ao bebê em linguagem infantil, terminavam por não se comunicar; simplesmente trocavam olhares. William segurava o dedo indicador do pai, com o qual os balancetes eram examinados, e apertava-o com força. Richard permitia-se um sor­riso. Ao final do primeiro ano, tal rotina alterou-se um pouco e o menino pôde descer para ver o pai. Richard sentava-se na cadeira de couro vermelho-acastanhado de encosto alto e punha-se a observar o primogênito, que de gatinhas dava voltas em torno das pernas dos móveis, reaparecendo quando menos se esperava, o que fez Richard concluir que, sem dúvida, o menino seria se­nador. Aos treze meses, William deu os primeiros passos agarran­do-se à aba do sobretudo do pai. “Papá” foi sua primeira palavra, o que alegrou a todos, inclusive a avó Kane e a avó Cabot, que eram visitas costumeiras. Não chegavam a empurrar o carrinho no qual William passeava por Boston, mas, nas tardes de quinta-feira, acediam em andar pelo parque logo atrás da babá, lançando olhares dardejantes aos bebês acompanhados por um séquito menos disciplinado. Enquanto algumas crianças davam de comer aos patos dos jardins públicos, William fazia o mesmo aos cisnes da lagoa do extravagante Venetian Palace, propriedade do sr. Jack Gardner.

Passados dois anos, as avós deram a entender, através de indiretas e insinuações, que já era tempo de outra criança pro­dígio, de um irmão para William. Procurando satisfazê-las, Anne engravidou e, ao entrar no quarto mês, aflita, viu-se progressiva­mente indisposta.

O sorriso do dr. MacKenzie foi se apagando à medida que ele examinava a barriga cada vez mais crescida da mãe esperan­çosa, e quando, na décima sexta semana, Anne abortou, ele não se mostrou de todo surpreso, mas procurou impedi-la de entregar-se ao sentimento de frustração. No relatório, anotou “pré-eclampsia?”, e em seguida disse:

— Anne querida, o mal-estar se deveu a uma pressão arterial alta, que, provavelmente, tenderia a subir mais à medida que a gravidez evoluísse. Os médicos ainda não descobriram a causa desse fenômeno, e, de fato, o pouco que sabemos é que se trata de um estado perigoso para qualquer um, principalmente para a gestante.

Anne conteve as lágrimas, considerando as conseqüências de um futuro sem outros filhos.

– Se eu engravidar de novo, isso poderá se repetir? — perguntou, colocando a questão de modo a predispor o médico a uma resposta favorável.

– Minha cara, eu me surpreenderia se isso não voltasse a acontecer. Lamento dizê-lo, mas desaconselho seriamente uma nova gravidez.

– Mas não me importaria de sentir indisposição durante uns poucos meses, desde que...

– Anne, não me refiro a uma simples indisposição. Refiro-me anão arriscar desnecessariamente a sua vida.    

Foi um tremendo golpe para Richard e Anne, eles próprios filhos únicos, em grande parte devido à morte prematura dos respectivos pais. Ambos se tinham proposto constituir uma famí­lia à altura da importância de suas casas e de suas responsabili­dades para com a geração futura.

— O que mais poderá fazer uma jovem? — indagou a avó Cabot à avó Kane.

Ninguém voltou a falar no assunto, e William tornou-se o alvo de todas as atenções.

Richard, que assumira a presidência do Kane & Cabot Bank & Trust Company quando o pai falecera, em 1904, vivera sem­pre mergulhado na atividade bancária. O banco, situado na State Street, um baluarte da solidez financeira e arquitetônica, tinha agências em Nova Iorque, Londres e San Francisco. Esta última transformara-se num problema para Richard logo após o nasci­mento de William, quando, juntamente com o Crocker National Bank, o Wells Fargo e o Califórnia Bank, ruiu, não financeira­mente, mas literalmente, no grande terremoto de 1906. Richard, homem prudente por natureza, tinha um seguro, como é com­preensível, no Lloyd’s de Londres. Cavalheiros que eram, paga­ram-lhe até o último cent, permitindo-lhe assim a reconstrução do edifício. Todavia, Richard passou um ano penoso, atravessando o continente em viagens de trem que duravam quatro dias, entre Boston e San Francisco, com o propósito de fiscalizar a reedificação. Inaugurou a nova agência localizada na Union Square em outubro de 1907, mal tendo tido tempo de cuidar de outros pro­blemas que emergiam na costa Leste. Reduzira-se a corrida aos ban­cos nova-iorquinos; muitos dos pequenos estabelecimentos, des­preparados para enfrentar grandes retrações, começaram a falir. J. P. Morgan, o lendário presidente do poderoso banco que le­vava seu nome, propôs a Richard participar de uma associação cujo objetivo era sobreviver à crise. Richard aceitou. O corajoso plano de resistência resultou positivo, e aos poucos o problema foi se dissipando, embora não antes de ter custado a Richard algu­mas noites em claro.

William, por sua vez, dormia sonos profundos, alheio a terremotos e bancos arruinados. Afinal, havia cisnes a alimentar e intermináveis excursões de ida e volta a Milton, Brookline e Beverly, a fim de que pudessem mostrá-lo aos ilustres parentes.

 

No início da primavera do ano seguinte, Richard ganhou um novo brinquedo, como retorno de um cauteloso investimento de capital num homem chamado Henry Ford, que afirmava ter con­dições de fabricar um automóvel popular. O banco ofereceu um almoço ao sr. Ford, e Richard foi persuadido a adquirir um Modelo T pela elevada quantia de oitocentos e cinqüenta dólares. Henry Ford garantiu a Richard que, caso o banco o apoiasse, o custo posteriormente baixaria para trezentos e cinqüenta dólares num prazo de poucos anos, e todos poderiam comprar seus carros, assegurando desse modo grande margem de lucro aos financia­dores. Richard financiou o projeto e pela primeira vez aplicou bom dinheiro em alguém que desejava ver reduzido à metade o preço de seu produto.

A princípio Richard receou que seu automóvel, ainda que de um preto sombrio, fosse visto como um meio de transporte não-apropriado ao presidente de um banco, mas os olhares de ad­miração dos passantes atraídos pelo veículo devolveram-lhe a con­fiança. A dezesseis quilômetros por hora, fazia mais barulho que um cavalo, mas com a virtude de não deixar aquela imundície no meio da Mount Vernon Street. Richard discordara do sr. Ford apenas num ponto, já que o homem se recusara a ouvir-lhe a su­gestão de que o Modelo T deveria chegar ao mercado com várias opções de cor. O sr. Ford insistira em que, para evitar a elevação de preços, todos os carros deveriam ser pretos. Anne, mais sen­sível que o marido à aprovação da boa sociedade, não entraria no veículo enquanto os Cabots não adquirissem o deles.

William, por seu turno, adorara o “automóvel”, como a imprensa o chamava, e imediatamente concluíra que o veículo lhe fora comprado para substituir o então desnecessário e não-motorizado carrinho de bebê. Também preferira o chauffeur — com seus óculos de proteção e boné — à babá. A avó Kane e a avó Cabot declararam que jamais andariam naquele veículo medonho, e cumpriram a palavra, embora a avó Kane tenha andado num automóvel no dia de seu funeral, fato de que, diga-se de passagem, nunca chegou a ser informada.

Durante os dois anos seguintes, o banco cresceu em força e tamanho, tal qual William. Os americanos voltavam a investir com olhos no desenvolvimento; grandes somas entraram no Kane & Cabot Bank e saíram na forma de investimentos em projetos como o da expansão da fábrica de tecidos Lowell, em Lowell, Massachusetts. Richard acompanhava o crescimento do banco e o do filho com uma satisfação já esperada. No quinto aniversário de William, tirou o menino dos cuidados das mulheres e entregou-o a um professor particular, um certo sr. Munro, contratado a quatro­centos e cinqüenta dólares anuais, selecionado pessoalmente por Richard de uma relação de oito candidatos previamente escolhidos pela secretária particular. O sr. Munro fora encarregado de garantir que William estivesse preparado para ingressar na St. Paul’s School aos doze anos de idade. William simpatizou imediatamente com o sr. Munro, que lhe pareceu muito velho e muito inteligente. Na verdade, o professor tinha vinte e três anos de idade e fora diplomado sem distinção em inglês pela Universidade de Edimburgo.

William logo aprendeu a ler e a escrever com fluência, mas reservava aos números seu verdadeiro entusiasmo. Queixava-se unicamente de que, das oito aulas diárias, uma apenas fosse de­dicada à aritmética. Não tardou em fazer ver ao pai que um oitavo do dia de trabalho era um investimento de tempo insignificante para quem um dia seria presidente de banco.

Com o propósito de compensar a falta de visão do preceptor, William seguia os passos dos parentes mais acessíveis, pedindo-lhes com obstinação cálculos que fazia de cabeça. A avó Cabot, que nunca se convencera de que a divisão de um número inteiro por quatro produzia necessariamente o mesmo resultado que a sua multiplicação por um quarto — e, com efeito, nas suas contas as duas operações davam totais diferentes —, viu-se muito de­pressa superada pelo neto; a avó Kane, porém, com leve propen­são à destreza, lutava bravamente corpo a corpo com frações ordinárias, juros e a divisão de oito tortas entre nove crianças.

— Vovó — disse William branda mas firmemente, quando ela fracassou em encontrar a resposta ao seu último enigma —, a senhora pode me comprar uma régua de cálculo, assim não precisarei mais incomodá-la.

Maravilhada com a precocidade do neto, a avó Kane com­prou-lhe uma régua, mesmo duvidando que o garoto soubesse realmente usar o invento. Pela primeira vez na vida, ela escolhia a maneira mais fácil de resolver um problema.

Os problemas de Richard começaram a gravitar para o Leste. O presidente da filial de Londres morrera no exercício do dever, e Richard julgou indispensável sua presença na Lombard Street. Propôs a Anne que ela e William o acompanhassem à Europa, opinando que a interrupção dos estudos não prejudicaria o me­nino: ele poderia visitar todos os lugares de que o sr. Munro freqüentemente lhe falara. Anne, que nunca fora à Europa, en­tusiasmou-se com a possibilidade e encheu três malas de roupas novas, sóbrias e caras, com que enfrentaria o Velho Mundo. Aos olhos de William, a mãe cometia uma injustiça para com ele, não consentindo que levasse aquela acompanhante igualmente impres­cindível, sua bicicleta.

Os Kanes partiram de trem para Nova Iorque e lá embar­caram no Aquitania com destino a Southampton. Anne estarreceu-se ao ver os mascates imigrantes nas ruas a impingir mercadorias, mas alegrou-se na segurança do navio, descansando no camarote. William, por sua vez, maravilhou-se com a grandeza de Nova Iorque; até aquele momento acreditava que o banco do pai fosse o maior edifício dos Estados Unidos, senão do mundo. Um homem de terno branco e chapéu de palha passou vendendo um sorvete cor-de-rosa e amarelo, e William teve vontade de comprar um, mas o pai não lhe deu ouvidos; em todo caso, isso não era ne­nhuma novidade.

William apaixonou-se pelo enorme vapor assim que o viu, e fez logo amizade com o capitão, que lhe mostrou todos os segre­dos da prima-dona dos Cunard Steamships. Antes de o navio deixar o porto, Richard e Anne, que naturalmente se sentaram à mesa do comandante, houveram por bem desculpar-se pelo filho, que lhe tomava o tempo.

— De jeito algum — replicou o comandante, de barba branca. — William e eu já nos tornamos bons amigos. Gostaria de responder às perguntas que ele me faz sobre tempo, velo­cidade e distância. Todas as noites tomo aulas com meu primeiro-maquinista, na esperança de estar preparado para desincumbir-me de minha tarefa no dia seguinte.

O Aquitania atravessou o estreito de Solent e aportou em Southampton depois de uma viagem de seis dias. William desem­barcou a contragosto, e as lágrimas teriam sido inevitáveis não fosse a visão majestosa de um Rolls-Royce Silver Ghost, que os aguardava no cais com motorista e tudo, pronto para levá-los a Londres. Richard, inesperadamente, determinou que no final da viagem o carro seria transportado para Nova Iorque, tomando assim a decisão mais insólita do resto de sua vida. Explicou a Anne, de maneira pouco convincente, que queria mostrar o veículo a Henry Ford.

A família Kane, quando em Londres, costumava hospedar-se no Riz Hotel, no Piccadilly Circus, o que convinha ao escritório de Richard, situado na City. Anne aproveitava o tempo em que o mando estava ocupado no banco para mostrar a William a Torre de Londres, o Palácio de Buckingham e a troca da guarda. Tudo era “esplêndido” para William, menos a pronúncia britâ­nica, que ele compreendia com dificuldade.

— Mamãe, por que eles não falam que nem a gente? — inquiriu ele, surpreendendo-se com a resposta da mãe, que o corrigiu dizendo que se preferia o uso de “como” ao de “que nem”.

O passatempo favorito de William era olhar com interesse os guardas, de uniforme escarlate e botões de metal reluzente, que montavam guarda à entrada do Palácio de Buckingham. Tentou uma conversa com eles, mas os guardas pareciam atravessá-lo com o olhar, fitando o vazio, sem piscar.

— Vamos levar um pra casa? — perguntou à mãe.

— Não, meu bem, eles precisam ficar aqui e proteger o rei.

— Mas o rei tem tantos! Não podemos levar um só?

Atendendo a um “convite especial” — palavras de Anne —, Richard tirou uma tarde de folga e levou a esposa e o filho ao West End para assistirem à tradicional pantomima inglesa Joãozinho e o Pé de Feijão, representada no London Hippodrome. William gostou muito de Joãozinho e imediatamente desejou abater todas as árvores que via, imaginando um monstro escondido atrás de cada uma delas. Após o espetáculo, tomaram chá na Fortnum & Mason, no Piccadilly, e Anne permitiu a William comer dois confeitos de passas de Corinto com creme e uma novidade a que davam o nome de sonho. Depois disso, diariamente William exi­gia dela que o acompanhasse ao salão de chá da Fortnum para comer outro “confeito de sonho”, como passou a chamá-lo.

As férias passavam com rapidez para William e a mãe, en­quanto Richard, contente com os progressos que fazia na Lombard Street e satisfeito com o presidente recém-nomeado, começava a desejar o dia do regresso. Todos os dias recebia de Boston telegramas que o deixavam ansioso por retornar a seu gabinete. Finalmente, quando uma dessas mensagens o informou de que dois mil e quinhentos trabalhadores de uma fiação de Lawrence, Massachusetts, na qual o banco investira uma soma considerável, tinham entrado em greve, Richard respirou aliviado ao verificar que estava a apenas três dias da data marcada para o retorno.

William não via o momento de voltar, para reunir-se com as avós e contar ao sr. Munro as coisas emocionantes que fizera na Inglaterra. Estava convencido de que nunca haviam experi­mentado nada tão emocionante quanto a visita a um teatro de verdade, com seu público costumeiro. Também Anne sentia-se feliz com a volta, embora tivesse desfrutado a viagem quase tanto quanto William, pois suas roupas e sua beleza tinham sido admiradas pelos normalmente discretos ingleses. Como último passeio oferecido a William um dia antes de embarcarem, Anne o levou a uma reunião de chá na Eaton Square, organizada pela esposa do recém-empossado presidente da filial de Londres. Ela também tinha um filho, Stuart, de oito anos — e William apren­dera a considerá-lo, durante as duas semanas em que haviam brincado juntos, um insubstituível amigo mais crescido. A reunião, porém, transcorreu numa atmosfera algo melancólica, porque Stuart sentia-se indisposto e William, num gesto de solidariedade, anunciou à mãe que também adoecera. Anne e William retornaram ao Ritz Hotel antes do horário previsto. Convencida de que William simplesmente fingira indisposição para agradar a Stuart, o fato não a preocupou seriamente, uma vez que ganhava um pouco mais de tempo para verificar a arrumação das grandes malas de viagem. Nessa noite, porém, ao colocá-lo na cama, des­cobriu que o menino tinha dito a verdade, pois estava levemente febril. Durante o jantar, comentou o fato com Richard.

— Talvez seja apenas um excitamento pela perspectiva de voltar para casa — sugeriu ele, sem mostrar-se preocupado.

— Espero que sim — disse Anne. — Não quero que ele adoeça numa viagem marítima de seis dias.

— Amanhã ele estará bem — disse Richard, sem dar impor­tância.

Na manhã seguinte, porém, Anne encontrou William coberto de manchas vermelhas e com temperatura de trinta e oito graus. O médico em serviço no hotel diagnosticou sarampo e insistiu polidamente em que o menino não viajasse de modo algum, não apenas para o bem dele, mas também dos demais passageiros. Nada havia a fazer senão mantê-lo em repouso com uma bolsa de água quente e esperar a partida do próximo navio. Richard não estava em condições de arcar com um atraso de três semanas e resolveu embarcar, como planejara. A contragosto, Anne concordou com as apressadas alterações de reserva de passagens. William pediu ao pai que o deixasse acompanhá-lo: o Aquitania só voltaria a Southampton dali a vinte e um dias, um período que lhe parecia uma eternidade. Richard manteve-se inflexível e contratou uma enfermeira para cuidar de William e convencê-lo de seu precário estado de saúde.

Anne acompanhou Richard até Southampton no novo Rolls-Royce.

— Vou me sentir sozinha sem você aqui, Richard — aven­turou-se ela a dizer, timidamente, na hora da despedida, expondo-se à desaprovação de Richard quanto às mulheres emotivas.

— Bom, minha querida, acho provável que sem você eu também vá me sentir um tanto sozinho em Boston — disse ele, com o pensamento voltado para os grevistas da fiação.

Anne voltou de trem a Londres, sem saber como empregaria o tempo nas três semanas seguintes. William passou uma noite tranqüila, e pela manhã as erupções pareciam menos ameaçado­ras. O médico e a enfermeira foram unânimes, porém, em insistir no prolongamento do repouso. Anne ocupava o tempo livre escre­vendo longas cartas à família, enquanto William, não sem queixas, continuava deitado; mas na manhã de quinta-feira, já de volta ao seu estado normal, William levantou-se cedo e foi ao quarto da mãe. Subiu na cama, chegando-se bem próximo dela, e suas mãos frias a despertaram imediatamente. Com alívio, Anne o viu de todo recuperado. Telefonou à gerência e solicitou que o café da manhã para dois fosse servido na cama, uma concessão com a qual o pai de William não teria concordado.

Após bater levemente à porta, um camareiro de libré dourada e vermelha entrou, carregando enorme bandeja de prata. Ovos, bacon, tomate, torrada e geléia de laranja. William devorou a refeição, como se não se lembrasse da última vez em que havia se alimentado fartamente. Anne, despreocupada, folheou o jornal matutino. Em Londres, Richard costumava ler The Times, e a gerência presumira que ela também o pediria.

— Olhe aqui — disse William, arregalando os olhos ante a fotografia impressa numa das páginas internas —, é o navio do papai. Mamãe, o que quer dizer ca-tás-tro-fe?

A fotografia do Titanic ocupava quase toda a página do jor­nal.

Esquecendo-se de como deveria comportar-se uma Cabot ou uma Kane, Anne explodiu num choro desesperado, agarrando-se ao filho único. Sentados na cama, ficaram abraçados, sem que William atinasse com o que estava acontecendo. Anne compreen­deu que ambos tinham perdido a pessoa que mais amavam neste mundo.

Sir Piers Campbell, pai do pequeno Stuart, chegou quase imediatamente em seguida à suíte 10 do Ritz Hotel. Aguardou na saleta enquanto a viúva vestia um tailleur, a única peça de roupa escura de que dispunha. William trocou-se, sem saber ainda o que significava “catástrofe”. Anne solicitou a sir Piers que expusesse todas as implicações da notícia ao filho, que simplesmente disse: “Eu quis ir no navio com ele, mas ninguém deixou”. Não chorou, porque se recusava a crer que algo pudesse matar o pai. Ele esta­ria entre os sobreviventes.

Em toda a sua carreira de político, diplomata e então presi­dente do Kane & Cabot, de Londres, sir Piers nunca vira numa criança tal autodomínio. “Poucos têm presença de espírito”, diria anos mais tarde. “Richard Kane era um deles, e a transmitira ao único filho.” Na quinta-feira dessa semana, William fez seis anos, mas não abriu o pacote de nenhum dos seus presentes.

As listas de sobreviventes, que chegavam com intermitência dos Estados Unidos, eram examinadas e reexaminadas por Anne. Cada uma delas confirmava que Richard Lowell Kane estava desa­parecido no mar. Depois de uma semana, até mesmo William quase abandonou a esperança de encontrar o pai entre os sobre­viventes.

Anne relutou em subir a bordo do Aquitania, mas William mostrou-se estranhamente ansioso por embarcar. Hora após hora, ficava sentado no convés, olhando as águas.

— Amanhã vou encontrá-lo — prometeu à mãe, a princípio confiante, mas depois com um tom de voz que mal escondia a descrença.

— William, ninguém consegue sobreviver três semanas no Atlântico Norte.

— Nem mesmo meu pai?

— Não, meu filho.

Em Boston, Anne era aguardada pelas avós na Red House, atentas ao dever que se lhes impusera.

A responsabilidade de novo se transferira às avós. Anne aceitou passivamente o papel de proprietárias que elas passa­ram a assumir. A vida não tinha agora quase nenhuma finali­dade, a não ser William, cujo destino as duas mulheres pareciam decididas a controlar. William era cortês, mas não demonstrava espírito de colaboração. Durante o dia, permanecia silencioso na aula do sr. Munro, e à noite chorava no regaço da mãe.

– Ele precisa é da companhia de outras crianças — afirmaram energicamente as avós, e, depois de despedirem o sr. Munro e a babá, colocaram William na Sayre Academy, na esperança de que uma iniciação ao mundo real e a companhia regular de outras crianças o fizessem recuperar a antiga vivacidade.

Richard deixara a William a maior parte de seus bens, que permaneceriam em depósito junto com o legado da família até que ele completasse vinte e um anos. Uma cláusula adicio­nal acompanhava o testamento. Richard desejava que o filho se tornasse presidente do Kane & Cabot por méritos próprios, e este foi o único aspecto do testamento do pai que o animou, pois o restante lhe pertencia por direito natural. Anne recebera um capital de quinhentos mil dólares e pensão vitalícia de cem mil dólares anuais, livre de obrigações legais, que seria suspensa com um segundo casamento. Recebeu ainda a casa de Beacon Hill, a mansão de verão de North Shore, a casa do Maine e uma ilhazinha próxima de Cape Cod, que seriam transmitidas ao filho por ocasião de sua morte. As avós receberam duzentos e cinqüenta mil dólares e cartas que não deixavam dúvida quanto às suas responsabilidades para com o menino, se Richard falecesse antes delas. A herança da família seria administrada pelo banco, e os padrinhos de William desempenhariam as funções de co-curadores. Os rendimentos do capital seriam reinvestidos a cada ano em empreendimentos conservadores.

Passado um ano, as avós abandonaram o luto, e Anne, em­bora com vinte e oito anos, pela primeira vez na vida aparentava a idade que tinha.

As avós, ao contrário de Anne, ocultavam seu sofrimento ao neto, que um dia as censurou por isso.

— Não sentem falta de papai? — e fitava a avó Kane com os olhos azuis que despertavam nela a lembrança do próprio filho.

— Sim, filhinho, mas ele não gostaria de que ficássemos sentadas, chorando.

— Quero que a gente sempre se lembre dele, sempre — retrucou o menino, a voz embargada.

— William, pela primeira vez vou me dirigir a você como se fosse um homem feito. Zelaremos sempre pela memória de seu pai, e a você caberá desempenhar seu papel, vivendo de acordo com as expectativas dele. Você agora é o chefe da família, o herdeiro de uma imensa fortuna. Por isso, com o trabalho, deverá se preparar para assumir essa herança com a mesma disposição de espírito com que seu pai, pensando em você, trabalhou para aumentar seu patrimônio.

William não respondeu. Tinha acabado de encontrar o estí­mulo para viver que antes lhe faltava, e começou a agir segundo os conselhos da avó. Sem nenhum lamento, aprendeu a conviver com a dor, e, resoluto, entregou-se, a partir desse momento, às tarefas escolares, dando-se por satisfeito apenas quando a avó Kane se mostrava impressionada. Era excelente em todas as ma­térias, e em matemática não só alcançou o primeiro lugar da classe, como também estava bastante adiantado para a sua idade. Decidira superar o pai em tudo. Pouco a pouco foi estreitando as relações com a mãe, e passou a ver com desconfiança qualquer pessoa que não pertencesse ao círculo familiar, de modo que muitos o consideravam amiúde um menino solitário e, injusta­mente, pretensioso.

No sétimo aniversário de William, as avós decidiram que já era tempo de lhe ensinar o valor do dinheiro. Assim, deram-lhe, para pequenas despesas, um dólar por semana, mas persua­diram-no a contabilizar cada cent que viesse a gastar. Com esse conselho em mente, muniram-se de um livro razão com capa de couro verde, comprado por noventa e cinco cents, que foram deduzidos da primeira mesada semanal de um dólar. A partir da segunda semana, a cada manhã de sábado as avós dividiam o dólar. William investia cinqüenta cents, gastava vinte, doava dez a uma instituição de caridade de sua escolha e guardava vinte. Ao final de cada trimestre, as avós fiscalizariam o livro razão e o registro que ele tivesse feito de alguma eventual transação. Passados os primeiros três meses, William já estava preparado para prestar contas por si mesmo. Doou um dólar e trinta cents à recém-fundada Associação dos Escoteiros dos Estados Unidos da América e investiu cinco dólares e cinqüenta e cinco cents que, a seu pedido, a avó Kane aplicou numa caderneta de pou­pança no banco do padrinho, J. P. Morgan. Gastou dois dólares e sessenta cents, que não precisou registrar, e reservou também dois dólares e sessenta. O livro razão constituiu uma fonte de grande alegria para as avós: sem dúvida, William era filho de Richard Kane.

Na escola, William fizera poucas amizades, em parte por­que relutava em se relacionar com quem não fosse um Cabot ou um Lowell, ou com crianças de famílias menos abastadas que a sua. Suas escolhas eram rigorosamente cerceadas por essa atitude, que o tornava um menino algo cismarento, motivo de apreensão para a mãe, que lhe desejava uma vida mais normal e no íntimo desaprovava o livro razão e os programas de in­vestimento. Na opinião de Anne, seria preferível que William tivesse vários amiguinhos novos em lugar das velhas assessoras; que se sujasse e machucasse e não se conservasse limpo e ileso; que apanhasse sapos e tartarugas em vez de colecionar relatórios sobre ações e sociedades comerciais; que fosse, em suma, igual a qualquer garoto da idade dele. Mas Anne nunca teve coragem de confessar às avós suas preocupações, e, de qualquer modo, elas não se interessariam por outro tipo de garoto.

No nono aniversário, William apresentou às avós o livro razão para que fosse feita a segunda inspeção anual. O volume de couro verde registrava uma economia de mais de cinqüenta dólares em dois anos. Ele se mostrou particularmente orgulhoso de si mesmo ao destacar uma anotação assinalada com um B6, que revelava que ele havia sacado o dinheiro do banco de J. P. Morgan imediatamente após a morte do grande financista ter sido anunciada. Ele próprio tinha observado a queda do valor das ações do banco do pai depois de divulgado seu falecimento. Três meses depois, voltara a aplicar a mesma importância, antes que o público tomasse consciência de que a companhia era bem maior do que um único homem.

As avós ficaram devidamente impressionadas e permitiram que William vendesse a velha bicicleta e comprasse uma nova. Depois dessa transação, ele contava ainda com um capital supe­rior a cem dólares, que, a seu pedido, a avó aplicou na Standard Oil Company de Nova Jersey. O petróleo, assinalou o menino com conhecimento de causa, só tenderia a subir. William mante­ve escrupulosamente em dia o razão até completar vinte e um anos. Estivessem vivas as avós por essa época, ter-se-iam orgu­lhado do último registro na coluna da direita: “Ativo”.

 

Entre os que não morreram, apenas Wladek conhecia bem as masmorras. Nos dias em que brincara de esconde-esconde com Leon, passara horas felizes na liberdade dos cubículos de pedra, despreocupado por saber que acharia o caminho de volta ao castelo quando o desejasse.

No conjunto, havia quatro masmorras em dois planos. Dois dos cárceres, um grande e um pequeno, situavam-se ao nível do solo. O menor era contíguo à parede do castelo, o que propi­ciava um fraco filtro de luz, que atravessava a abertura gradeada feita nas pedras, bem no alto. Cinco degraus abaixo havia mais dois cubículos de pedra, mergulhados numa perpétua es­curidão e mal-arejados. Wladek levou o barão à pequena masmorra do plano superior, em cujo canto o homem se sentou, calado e imóvel, fitando fixamente o vazio; em seguida, o me­nino designou Florentyna como serviçal do barão.

Uma vez que Wladek era o único que ousava ficar na companhia do barão, sua autoridade nunca foi posta em dúvida pelos criados. Assim, aos nove anos de idade, Wladek assumiu a responsabilidade sobre o cotidiano de seus companheiros de cela. Na masmorra, transformou-se no senhor deles. Dividiu os vinte e quatro criados em três grupos de oito, procurando, na medida do possível, manter juntas as famílias. Substituía-os regularmente, em turnos: as primeiras oito horas eram passadas nas masmorras superiores, para ver a luz do dia, respirar, ali­mentar-se e fazer exercícios; o segundo turno, e o mais comum, era constituído por oito horas de serviços no castelo, para o oficial e os soldados, e as oito horas finais eram dedicadas ao sono numa das masmorras inferiores. Exceto o barão e Floren­tyna, ninguém sabia ao certo em que momento Wladek dormia, uma vez que ao final de cada turno estava presente, supervisio­nando a troca de criados. O alimento era distribuído a inter­valos de doze horas. Os guardas entregavam-lhe um odre de leite de cabra, pão preto, painço e, por vezes, algumas casta­nhas, que Wladek dividia por vinte e oito, sempre dando ao barão, mas sem permitir que ele tomasse conhecimento disso, duas partes. Os novos ocupantes das masmorras, já com a sere­nidade convertida pelo confinamento num deplorável estupor, nada viam de estranho numa circunstância que colocara suas vidas sob o controle de um menino de nove anos.

Tão logo organizava um turno, Wladek voltava ao seu lugar junto do barão, na masmorra pequena. A princípio esperou ser orientado por ele, mas o olhar sempre parado do amo era tão implacável e desolado quanto o das sentinelas alemãs, cons­tantemente substituídas. Desde o momento em que fora feito cativo dentro do próprio castelo, o barão não tinha dito uma palavra. Sua barba crescera, emaranhada, até o peito, e o corpo forte começava a definhar. O olhar altivo de outrora dera lugar à resignação. Wladek guardava uma vaga lembrança da voz agradável do benfeitor e habituara-se à idéia de que jamais tornaria a ouvi-la. Em pouco tempo aprendeu a atender às von­tades tácitas do barão, permanecendo em silêncio na presença dele.

Wladek não se lembrava de alguma vez, quando vivia na segurança do castelo, ter ficado horas pensando no dia anterior. Agora era incapaz de se lembrar até mesmo da hora precedente, pois nada mudava. Minutos desesperançados se transformavam em horas, horas em dias, e depois em meses, cuja seqüência ele logo perdia. Não fosse pela chegada do alimento, das trevas e da luz, nunca tomaria conhecimento do transcorrer de outras doze horas. A intensidade da luz, que de vez em quando cedia lugar a temporais, sucedida pela neve que se moldava às paredes da masmorra e que só se derretia com o surgimento de um novo sol, anunciava cada estação de uma maneira que Wladek jamais teria aprendido numa aula sobre a natureza. No decurso das noites intermináveis, o mesmo sentia com maior agudez o cheiro repugnante de morte que impregnava os cantos mais re­cuados das quatro masmorras, de quando em quando atenuado pelo sol da manhã, por uma brisa gelada ou, alívio bendito, pelo retorno das chuvas.

Ao final de um dia de chuva incessante, Wladek e Florentyna aproveitaram uma poça de água que se formara no chão de pedras da masmorra superior para lavarem-se. Nenhum deles reparou que o barão, com olhar atento, observava Wladek, que arrancara a camisa rota e, como um cão, rolava sobre a água um pouco turva, esfregando-se até que aparecessem traços bran­cos de pele limpa. De repente, o barão falou:

— Wladek — a palavra saiu quase inaudível —, não o vejo com nitidez — disse, a voz vacilante. — Chegue até aqui.

Wladek nem sequer olhou para ele, estupefato por ouvir a voz do benfeitor depois de tão prolongado período de silêncio. Estava convencido de que ela predizia o começo da loucura que já se tinha apoderado dos dois criados mais velhos.

— Chegue até aqui, menino.

Receoso, Wladek obedeceu, parando na frente dele. Num esforço de máxima concentração, o barão estreitou os olhos enfraquecidos enquanto tateava na direção do garoto. Correu o dedo pelo peito de Wladek e, incrédulo, perguntou:

— Wladek, saberia me explicar o porquê desta pequena anomalia?

— Não, senhor — Wladek ficou embaraçado. — É de nascença. Minha mãe adotiva dizia que era o sinal de Deus nosso Pai em mim.

— Que mulher tola. É a marca do seu próprio pai — disse com brandura o barão, e mergulhou por alguns minutos no silêncio.

Wladek continuou diante dele, imóvel.

Quando por fim o barão voltou a falar, sua voz soou forte:

— Sente-se, garoto.

Wladek obedeceu imediatamente. Ao se sentar, de novo teve a atenção atraída pela pesada pulseira de prata, que agora pendia frouxamente do pulso do barão. Um raio de luz que penetrava por uma fenda na parede caía sobre a magnífica gra­vação do brasão dos Rosnovskis, que rutilava na obscuridade da masmorra.

— Não tenho idéia de quanto tempo mais os alemães pre­tendem nos manter trancados aqui. No começo acreditei que essa guerra terminaria numa questão de semanas. Errei, e agora devemos considerar a possibilidade de que continue durante muito tempo. Tenhamos isso em mente e procuremos empregar de modo mais construtivo nosso tempo, pois sei que minha vida está chegando ao fim.

— Não, não — objetou Wladek. Mas o barão prosseguiu:

— Sua vida, meu pequeno, mal começou. Por esse motivo, quero assegurar-lhe a continuação do seu aprendizado.

Nesse dia o barão não tornou a falar, como se refletisse nas conseqüências de sua decisão. Assim Wladek ganhou um novo preceptor, e, como não dispusessem de material de leitura e de escrita, seguiu a orientação do barão, repetindo tudo o que ele lhe dizia. Aprendeu longos trechos de poemas de Adam Mickiewicz e Jan Kochanowski e extensas passagens da Eneida. No interior daquela sala de aula sombria, Wladek aprendeu geogra­fia, matemática e quatro línguas: russo, alemão, francês e inglês. Mas, mais uma vez, seus momentos mais felizes eram reservados às aulas de história: a história de sua nação ao longo de centenas de anos de divisões, as frustradas esperanças de uma Polônia unida, a angústia ulterior dos poloneses com a derrota esmaga­dora de Napoleão pela Rússia em 1812. Wladek ficou conhe­cendo as admiráveis narrativas de uma época mais antiga e venturosa, quando o rei João Casimiro consagrou a Polônia à Virgem Santa, depois de ter rechaçado os suecos em Czestochowa, e soube como o poderoso príncipe Radziwill, grande proprietário de terras e amante da caça, defendera sua corte no enorme cas­telo próximo de Varsóvia. A última lição de cada dia era sobre a história da família dos Rosnovskis. Repetidas vezes, ele ouviu — sem nunca se cansar — como o ilustre antepassado do barão, que lutara em 1794 sob o comando do general Dabrowski, e mais tarde, em 1809, sob as ordens do próprio Napoleão, fora recompensado pelo grande imperador com uma propriedade e um baronato. Aprendeu também como o avô do barão se tor­nara membro do conselho de Varsóvia, e como o pai dele de­sempenhara seu dever na construção da nova Polônia. Wladek sentia uma grande felicidade quando o barão transformava a masmorra numa sala de aula.

Os guardas que se postavam à porta da masmorra se reve­zavam de quatro em quatro horas, e a comunicação entre eles e os prisioneiros era strengst verboten. A intervalos, e aos pedaços, Wladek tomava conhecimento do curso da guerra, dos avanços de Hindenburg e Ludendorff, do surgimento da revolução na Rússia e de sua posterior retirada da guerra pelo Tratado de Brest-Litovsk.

Wladek começara a crer que seus companheiros só sairiam da masmorra mortos. Ao longo dos dois anos que se seguiram, as portas foram abertas nove vezes, e Wladek já se perguntava se não estaria destinado a passar o resto de seus dias trancafiado naquela cela infernal, lutando uma batalha vã contra o desespero, enquanto enriquecia o espírito com um conhecimento inútil, pois jamais conheceria a liberdade.

Não obstante o progressivo enfraquecimento da visão e da audição, o barão continuava a educá-lo. A cada dia, Wladek pre­cisava sentar-se mais e mais perto dele.

Florentyna — sua irmã, mãe e amiga íntima — consumia-se numa luta mais física contra a sordidez da prisão. De vez em quando as sentinelas lhe forneciam um novo balde com areia ou palha com que cobria o chão sujo, e durante alguns poucos dias o mau cheiro se tornava menos opressivo. Na obscuridade, inse­tos nocivos surgiam por toda parte, à cata de farelos de pão ou de batata, e com eles traziam doença e mais imundície. O fedor ácido de urina e dos excrementos decompostos, humanos e ani­mais, agredia-lhes as narinas e constantemente causava a Wladek um estado de mal-estar e de náusea. Ele desejava sobretudo poder voltar ao asseio, e sentava-se durante horas, a fitar o teto da masmorra, relembrando os canos fumegantes de água quente e o bom sabonete com o qual a babá costumava, não muito longe dali e não muito tempo atrás, limpar a sujeira adquirida por ele e por Leon num mero dia de brincadeiras, enquanto resmungava sem parar por causa de joelhos enlameados ou sacudia a cabeça devido a uma unha encardida.

Na primavera de 1918, apenas quinze dos vinte e seis pri­sioneiros ali jogados com Wladek continuavam vivos. O barão era sempre tratado por todos como patrão, e Wladek tinha se tornado seu ecônomo. Wladek sofria por sua amada irmã, agora com vinte anos. Havia muito Florentyna perdera as esperanças, e estava convencida de que passaria o resto dos seus dias na masmorra. Na presença dela, Wladek nunca dera mostras de de­sespero, mas, embora estivesse apenas com doze anos, também começava a duvidar se teria a coragem de acreditar em algum futuro.

Certa noite, no começo do outono, Florentyna procurou Wladek na masmorra mais espaçosa.

— O barão quer falar com você.

Wladek levantou-se prontamente, e, encarregando o criado mais velho da distribuição da comida, foi até ele. O sofrimento físico da barão era agudo, e Wladek viu, com uma nitidez estarrecedora — pela primeira vez —, como a doença havia corroído partes inteiras da carne do barão, e como restava apenas uma pele mosqueada de verde a cobrir um rosto já esquelético. Ele pediu água, e Florentyna a trouxe numa caneca, que se equili­brava na ponta de uma vara metida entre as grades de pedra. Quando terminou de beber, o barão falou pausadamente e com grande dificuldade:

— Você presenciou tantas mortes, Wladek, que mais uma não fará muita diferença. Confesso que já não temo deixar este mundo.

— Não, não, não será assim — exclamou Wladek, abraçando-se ao velho pela primeira vez. — Estamos quase triunfando. Barão, não desista. Os guardas me disseram que a guerra está chegando ao fim e seremos logo libertados.

— Wladek, há meses eles vêm falando do fim da guerra. Não podemos continuar confiando nisso, e, de qualquer maneira, acho que não tenho vontade de viver no novo mundo que estão criando.

O barão interrompeu-se ao ouvir o garoto chorar. Pensou em recolher essas lágrimas como se fossem água potável, mas então lembrou-se de que lágrimas são salgadas e sorriu.

— Wladek, vá chamar meu mordomo e meu lacaio.

Wladek obedeceu-lhe prontamente, sem saber por que se fazia necessária a presença deles.

Os dois criados, despertados de um sono pesado, foram postar-se diante do barão. Depois de três anos de cativeiro, o sono era a comodidade mais fácil de se obter. Eles ainda trajavam as librés enfeitadas, mas já não se podia dizer que outrora aque­las tinham sido as gloriosas cores verde e dourada dos Rosnovskis. Ficaram ali de pé, em silêncio, aguardando a palavra do amo.

— Eles estão aqui, Wladek? — perguntou o barão.

— Sim, senhor. Não pode vê-los?

Wladek compreendeu, pela primeira vez, que o barão estava completamente cego.

— Traga-os para mais perto, para que eu possa tocá-los.

Wladek fez com que os dois homens se aproximassem dele, e então o barão tocou-lhes o rosto.

— Sentem-se — ordenou. — Ludwik, Alfons, estão me ouvindo?

— Sim, senhor.

— Eu me chamo barão Rosnovski.

— Sabemos, senhor — replicou ingenuamente o mordomo.

— Não me interrompa — disse o barão. — Estou prestes a morrer.

A morte se tornara tão comum que os dois homens não fizeram nenhuma objeção.

— Estou impossibilitado de fazer um novo testamento, uma vez que não tenho papel, pena ou tinta. Sendo assim, faço-o na presença de vocês, que servirão de testemunhas, tal como reco­nhece a antiga lei da Polônia. Entendem o que digo?

— Sim, senhor — responderam os dois homens em unís­sono.

— Meu filho, Leon, está morto. — O barão fez uma pausa. — Por essa razão, deixo toda a minha propriedade e todos os meus bens para o menino conhecido como Wladek Koskiewicz.

Havia muitos anos que Wladek não ouvia seu sobrenome, e não foi capaz de compreender imediatamente o significado das palavras do barão.

— E como prova da minha decisão — continuou o barão —, dou a ele a pulseira da família.

O velho ergueu devagar o braço direito, tirou do pulso a pulseira de prata e estendeu-a para um Wladek emudecido, a quem segurou com firmeza, correndo os dedos pelo peito do me­nino, como que querendo certificar-se de que era ele mesmo.

— Meu filho — disse, colocando a pulseira de prata no pul­so do menino.

Wladek chorou, e ficou nos braços do barão a noite toda, até que não mais ouviu o pulsar do coração dele e sentiu seus dedos se enrijecerem. Pela manhã o corpo do barão foi removido pelas sentinelas, que permitiram a Wladek enterrá-lo ao lado de Leon, no cemitério da família, junto à capela. Quando o corpo foi baixado na cova rasa, que Wladek mesmo cavou, a camisa rota do barão se abriu. Wladek olhou perplexo o peito do morto.

Ele tinha um mamilo só.

 

Foi desse modo que, aos doze anos de idade, Wladek Kos­kiewicz herdou vinte e quatro hectares de terra, um castelo, dois solares, vinte e sete chalés e uma valiosa coleção de quadros, mó­veis e jóias, embora continuasse vivendo numa estreita cela de pedra abaixo do solo. Desse dia em diante passou a ser consi­derado pelos prisioneiros como amo legítimo, cujo império se limitava a quatro masmorras, o séquito de treze criados alquebrados e o amor de Florentyna.

Retornou ao que já era uma rotina interminável, até que chegou o inverno de 1918. Num dia ameno e seco, uma rajada de tiros e o ruído de uma luta rápida atingiu os ouvidos dos cativos. Wladek teve como certo que o Exército polonês vinha resgatá-lo e que então poderia requerer a herança que lhe cabia de direito. Quando os alemães abandonaram a porta de ferro das masmorras, os ocupantes correram às pressas para as celas inferiores e lá se encolheram, num silêncio aterrador. Wladek ficou sozinho diante da porta, girando a pulseira de prata em torno do pulso, triunfante, aguardando os salvadores. Finalmente surgiram os combatentes que tinham derrotado os alemães, fa­lando a rude língua eslava, com a qual ele se familiarizara nos dias de estudo e que aprendera a temer bem mais que a alemã.

Wladek e seus companheiros foram levados ao corredor, onde, depois de esperarem algum tempo, foram sumariamente inspe­cionados e então devolvidos às masmorras. Os conquistadores recém-chegados não sabiam que aquele menino de doze anos de idade era o senhor de todos os que estavam sob a vigilância deles. E não falavam a língua de Wladek. As ordens eram claras e in­contestáveis: matar os inimigos que resistissem ao acordo de Brest-Litovsk, que transformara em domínio deles aquela região da Polônia, e enviar os não-resistentes ao campo de prisioneiros 201, onde passariam o resto de seus dias. Os alemães haviam ba­tido em retirada para se refugiar no novo limite de fronteira, enquanto Wladek e seu séquito esperavam por uma vida nova, ignorantes do destino que os espreitava.

Após duas noites nas masmorras, Wladek se convenceu de que continuariam encarcerados por um longo espaço de tempo. Em nenhum momento as novas sentinelas lhes dirigiam a pala­vra, o que o fazia lembrar-se da vida de três anos atrás; ele co­meçava a perceber que a disciplina, que com os alemães pouco a pouco fora se abrandando, agora voltava de novo a ser severa.

Na manhã do terceiro dia, para extrema surpresa de Wladek, todos foram levados ao gramado situado em frente ao castelo, quinze corpos imundos e debilitados. Dois dos criados desmaia­ram com o impacto da luz do sol, à qual já estavam desacostu­mados. Wladek também viu na intensa luminosidade um incon­veniente, e protegeu o rosto com as mãos. De pé no gramado, e em silêncio, os prisioneiros aguardavam; afinal, os soldados lhes ordenaram que se despissem e descessem ao rio para se ba­nhar. Depois de esconder entre as roupas a pulseira de prata, Wladek correu em direção à margem, as pernas bamboleando antes mesmo de alcançá-la. Saltou dentro do rio, arquejando ao entrar em contato com a água gelada, embora agradável à pele. Os demais prisioneiros o seguiram e em vão procuraram remover três anos de sujeira.

Quando Wladek, já exausto, saiu do rio, reparou que alguns soldados observavam estranhamente Florentyna lavar-se. Riam e apontavam para ela, mas não demonstravam ter o mesmo grau de interesse pelas outras mulheres. Um deles, um sujeito granda­lhão e repulsivo, que em nenhum momento tirou os olhos de cima de Florentyna, esperou-a voltar do rio e, quando ela passou por ele, agarrou-a pelo braço e arrojou-a ao chão. Em seguida, ávido e apressado, começou a arrancar as próprias roupas, dis­pondo-as metodicamente na grama. Sem acreditar naquela visão, perplexo diante do pênis ereto e dilatado do homem, Wladek investiu contra o soldado, que imobilizava Florentyna no chão, metendo a cabeça contra a boca do estômago dele com toda a força que pôde reunir. O homem recuou, cambaleante, e um se­gundo soldado, num salto, apossou-se de Wladek, torcendo-lhe os braços atrás das costas. Atraídos pelo tumulto, outros solda­dos acorreram. O que tinha agarrado Wladek desatou num riso sonoro e sôfrego, que nada tinha de engraçado. As palavras dos soldados só contribuíram para agravar o desespero de Wladek.

— Comece com esse valente defensor — falou o primeiro.

— Venha cá defender a honra da sua nação, venha — pro­vocou o segundo.

— Pelo menos ele vai poder ver o palco de ação da primeira fila - zombou o soldado que o prendia.

Mais risos entrecortaram os comentários, que nem sempre Wladek compreendia. O soldado nu, o corpo rijo e gordo, avan­çou devagar em direção a Florentyna, que se pôs a gritar. Wla­dek se debateu, numa tentativa desesperada de escapar às garras que o apertavam como um torno, mas viu-se impotente nos bra­ços do soldado. O homem nu jogou-se desastradamente sobre Florentyna e a beijou, para em seguida esbofeteá-la, revidando os esforços que ela fazia para repeli-lo e desviar o rosto. Afinal penetrou-a violentamente. Ela emitiu um grito agudo e longo como nunca Wladek ouvira antes. Os guardas continuaram a conversar e a rir entre si, indiferentes ao que estava aconte­cendo.

— Eta virgem danada! — exclamou o primeiro soldado, afastando-se dela.

Todos romperam em risos.

— Você acabou de me facilitar um pouco a coisa — falou o segundo guarda.

E gargalhavam. Florentyna olhou fundo nos olhos de Wla­dek, que não pôde conter a ânsia de vômito. O soldado que o agarrava não demonstrou outra preocupação a não ser a de evitar que o vômito lhe sujasse o uniforme e as botas. O primeiro sol­dado, com o pênis coberto de sangue, disparou para o rio, sol­tando urros ao mergulhar na água. Enquanto o segundo homem se despia, um terceiro esforçava-se por manter Florentyna con­tra o solo. O segundo guarda prolongou o prazer um pouco mais, e, ao que parecia, encontrava gosto em maltratá-la; quando afi­nal a penetrou, ela tornou a gritar, mas dessa vez mais fraco.

— Saia pra lá, Valdi. Já aproveitou bastante.

O homem separou-se dela bruscamente e foi juntar-se ao outro no rio. Wladek obrigou-se a erguer o olhar para Floren­tyna, já machucada e sangrando entre as pernas. O soldado que o detinha voltou a falar:

— Boris, venha segurar este bastardo. Agora é a minha vez.

O primeiro soldado deixou o rio e segurou Wladek com firmeza. De novo ele estrebuchou, querendo esmurrá-lo, o que só provocou risos mais fortes.

— Agora a gente sabe qual é a força do Exército polonês.

Enquanto reverberavam os risos intoleráveis, um outro guarda se despiu e desempenhou sua parte no revezamento, mas Florentyna permaneceu indiferente a seus encantos. No momen­to em que corria para o rio, depois de ter terminado, o segundo soldado retornou, recolheu as roupas e vestiu-se.

— Ela já está começando a gostar da coisa — falou, sen­tando-se ao sol e observando o companheiro.

O quarto soldado se aproximou de Florentyna. Quando a alcançou, virou-a de bruços e abriu-lhe as pernas, afastando-as o mais possível, fazendo as mãos enormes deslizarem rapidamente pelo corpo frágil. O grito que ela soltou ao ser penetrada logo se transformou num gemido.

Wladek contou dezesseis soldados que sucessivamente estu­praram a irmã.

- Acho que trepei com um cadáver — praguejou o último soldado, tão logo consumou o ato e a abandonou, inerte, na relva.

Enquanto, mal-humorado, o último soldado rumava para o rio, todos gargalharam ainda mais alto. Por fim Wladek foi solto e correu para Florentyna. Os soldados estiraram-se, bebendo o vinho e a vodca saqueados da adega do barão e comendo o pão tirado da cozinha.

Auxiliado por dois criados, Wladek levou o corpo delicado de Florentyna à margem do rio, onde, entre soluços, limpou-lhe o sangue e as machucaduras. Era inútil, porém, pois ela estava coberta de lesões e ensangüentada, insensível a cuidados e inca­paz de falar. Após tentar tudo o que pôde, Wladek cobriu-a com a camisa e tomou-a nos braços. Com ternura, beijou-a nos lábios — a primeira mulher que ele beijava. Embora a mantivesse nos braços, sabia que ela não o reconhecia, e quando as lágrimas que lhe escorriam pelas faces caíram sobre o corpo injuriado, sentiu que ela desfalecera inteiramente. Chorando, afastou-se da margem, carregando o corpo morto. Os soldados, agora emudecidos, segui­ram-no com o olhar até a capela. Ele a deitou na grama junto ao túmulo do barão e começou a escavar a terra com as mãos. Quando terminou, o sol agonizante já projetava a longa sombra do castelo sobre o cemitério. Wladek enterrou Florentyna ao lado de Leon, e à cabeceira dela fincou uma cruz feita com dois gravetos. De­pois, deixou-se cair ao chão entre Leon e Florentyna e, extenua­do, adormeceu, sem se preocupar se voltaria a acordar.

 

No mês de setembro, William retornou à Sayre Academy disposto a encontrar um rival entre os colegas mais velhos. Fosse qual fosse a natureza daquilo que se propunha a aprender, só se dava por satisfeito quando alcançava distinção, e os garotos de sua idade quase sempre se mostravam adversários fracos. Wil­liam logo percebeu que os meninos de educação privilegiada, como a sua, na grande maioria careciam de estímulo para a com­petição; a rivalidade mais ferrenha procedia daqueles que, com­parados com ele, contavam com relativamente poucos privilé­gios.

Em 1915, a mania de colecionar rótulos de caixas de fósfo­ro tomou conta da Sayre Academy. Durante uma semana William acompanhou esse frenesi com enorme interesse, mas não aderiu. Poucos dias depois, os rótulos comuns estavam mudando de dono por uma moeda de dez cents, enquanto as raridades chegavam a valer cinqüenta. William estudou essa conjuntura e resolveu se tornar não um colecionador, mas um negociante.

No sábado seguinte, foi à Leavitt & Peirce, uma das maiores tabacarias de Boston, e passou toda a tarde anotando os nomes e os endereços de todos os principais fabricantes de caixas de fósforo do mundo, tomando o cuidado de destacar os países não envolvidos na guerra. Investiu cinco dólares em papel de carta, envelopes e selos, e escreveu ao diretor ou ao presidente de todas as companhias listadas. Sua carta era simples, embora a tivesse reescrito sete vezes.

 

       Prezado senhor diretor ou presidente,

Sou um dedicado colecionador de rótulos de caixas de fós­foro, mas não posso me dar ao luxo de comprar todas as caixas. Tenho uma mesada de apenas quatro dólares, mas incluo um selo de três “cents” para a remessa, numa prova de que levo a sério meu passatempo favorito. Lamento aborrecê-lo pessoalmente, mas o único nome que encontrei, a quem pudesse escrever, foi o do senhor.

           Seu amigo, William Kane (tenho nove anos de idade)

 

P S.: Seu rótulo é um dos meus favoritos

 

Em três semanas, William recebeu cinqüenta e cinco por cento de respostas, o que lhe rendeu setenta e oito rótulos dife­rentes. Quase todos os correspondentes também lhe devolveram o selo de três cents, como William havia previsto.

Durante os sete dias seguintes, William organizou um co­mércio de rótulos dentro da escola, sempre verificando o que poderia vender antes mesmo de efetuar uma compra. Observou que alguns garotos não mostravam interesse na raridade dos ró­tulos das caixas de fósforos, e sim apenas na sua aparência, e com eles fez trocas inteligentes com o fim de obter relíquias que se­riam oferecidas a colecionadores de maior discernimento. Passa­das mais duas semanas de compras e vendas, pressentiu que o negócio estava chegando ao apogeu e, se não agisse com cautela, uma vez que as férias se aproximavam rapidamente, o interesse poderia morrer. Com uma publicidade antecipada e bastante di­vulgada, na forma de folhetos impressos que lhe custaram meio cent cada, colocados nas carteiras dos garotos, William anunciou que realizaria um leilão de seus rótulos de caixas de fósforo, num total de duzentos e onze. O leilão teve lugar no amplo banheiro da escola durante o horário de almoço e recebeu uma audiência mais numerosa do que a habitual nos jogos de hóquei.

Como resultado, William obteve a quantia de cinqüenta e sete dólares e trinta e dois cents, um lucro líquido de cinqüenta e dois dólares e trinta e dois cents sobre o investimento. Depo­sitou no banco vinte e cinco dólares a juros de dois e meio por cento, comprou uma máquina fotográfica por onze dólares, doou cinco dólares à Associação Cristã de Moços, que havia expandido suas atividades para atender a um novo fluxo de imigrantes, pre­senteou a mãe com um buquê de flores e embolsou os poucos dólares que lhe sobraram. O negócio de rótulos de caixas de fós­foro acabou antes mesmo do fim do período letivo. Essa seria a primeira das muitas ocasiões semelhantes em que William se retirou no ápice do negócio. As avós ter-se-iam orgulhado dele; não fora de outro modo que seus maridos tinham feito fortunas durante o pânico de 1873.

Quando chegaram as férias, William não resistiu à tentação de descobrir uma maneira de obter um retorno do capital inves­tido superior aos dois e meio por cento que lhe rendia a cader­neta de poupança. Nos três meses seguintes, investiu — mais uma vez por intermédio da avó Kane — em ações altamente re­comendadas pelo Wall Street Journal. Durante o período letivo seguinte, perdeu mais da metade do dinheiro que tinha feito com os rótulos de caixas de fósforo. Essa foi a única vez em que con­fiou na experiência do Wall Street Journal ou em informações obteníveis em qualquer esquina.

Indignado com a perda de mais de vinte dólares, resolveu se ressarcir do prejuízo durante as férias da Páscoa. Assim que chegou a casa, computou as festas a que devia comparecer e as funções de que deveria se encarregar, segundo as expectativas da mãe, e constatou que lhe sobravam livres apenas catorze dias, tempo suficiente para encetar sua nova iniciativa. Vendeu todas as ações que lhe restavam das recomendadas pelo Wall Street Journal, o que lhe rendeu, líquidos, somente doze dólares. Com o dinheiro, adquiriu uma prancha de madeira, dois pares de ro­das, dois eixos e um pedaço de corda, ao preço, após um regateio, de cinco dólares. Pôs um boné de pano na cabeça, vestiu um velho terno que não lhe cabia mais e partiu para a estação de trens. No portal de saída, com ar de faminto e fatigado, infor­mava aos distintos viajantes que os hotéis principais de Boston se localizavam próximo à estação, de modo que não havia neces­sidade de tomar um táxi ou uma das raras carruagens que ainda existiam, já que ele, William, poderia lhes transportar as baga­gens na prancha móvel por vinte por cento da tarifa dos táxis; acrescentava que, além do mais, andar a pé só lhes faria bem. Trabalhando seis horas diárias, verificou que poderia ganhar apro­ximadamente quatro dólares por dia.

Cinco dias antes da data marcada para o início do novo pe­ríodo letivo, ele havia se refeito de todos os prejuízos anteriores e obtido um lucro adicional de dez dólares. Foi então que deparou com um problema. Os motoristas de táxi começaram a se sentir incomodados com ele. William lhes garantiu que se apo­sentaria, aos nove anos de idade, desde que cada um deles lhe desse cinqüenta cents para cobrir o custo do veículo de fabrica­ção caseira — com o que eles concordaram. Ganhou com isso mais oito dólares e cinqüenta cents. No caminho de volta à casa de Beacon Hill, vendeu o carrinho por cinco dólares a um colega de escola dois anos mais velho, o qual não demorou a descobrir o quanto aquele mercado já estava em declínio; além disso, cho­veu durante toda a semana seguinte.

No último dia de férias, William tornou a depositar o di­nheiro no banco, a dois e meio por cento. Tal decisão, ao longo do período letivo subseqüente, não lhe causou nenhuma ansie­dade, uma vez que suas economias aumentavam regularmente. O naufrágio do Lusitânia em maio de 1915 e a declaração de guerra feita por Wilson à Alemanha, em abril de 1917, não che­garam a preocupá-lo. Nada ou ninguém jamais conseguiria der­rotar os Estados Unidos da América, assegurou ele à mãe. Para sustentar essa opinião, William até mesmo investiu em obrigações Liberty.

Por ocasião do seu décimo primeiro aniversário, a coluna de créditos do seu livro razão registrava um ganho de quatrocen­tos e doze dólares. Dera à mãe uma caneta-tinteiro, e às avós, dois broches adquiridos numa pequena joalheria. A caneta-tin­teiro era da marca Parker, e as jóias foram entregues nas casas das avós em caixas da Shreve, Crump & Low, que ele achou, depois de muita procura, dentro da lata de lixo nos fundos da famosa loja. Diga-se, para fazer justiça ao garoto, que sua inten­ção não era enganar as avós. É que sua experiência com os rótu­los das caixas de fósforo tinha lhe ensinado que uma embalagem adequada vende produtos. As avós, que repararam na falta da marca registrada da Shreve, Crump & Low, ainda assim usaram os broches com muito orgulho.

As duas velhas senhoras continuaram a acompanhar cada pas­so dado por William e decidiram que, tão logo ele completasse doze anos, seria encaminhado, tal como fora planejado, à St. Paul’s School, em Concord, New Hampshire. Pela boa decisão, o garoto as recompensou ganhando como prêmio uma bolsa de estudos máxima, destinada ao curso de Matemática, poupando à família, desnecessariamente, cerca de trezentos dólares anuais. William aceitou a bolsa de estudos, e as avós utilizaram o dinhei­ro em benefício, na expressão delas, de “uma criança menos afor­tunada”. Anne aborreceu-se com a idéia de William ir para um internato tão distante, mas as avós não arredaram pé da idéia, e o que era mais importante: ela sabia que esse também era o desejo de Richard. Anne marcou e examinou as roupas e os sa­patos de William, e finalmente arrumou-lhe as malas, dispensan­do a ajuda dos criados. Quando chegou o momento de William partir, a mãe lhe perguntou quanto gostaria de receber de mesada no próximo período letivo.

— Nada — respondeu ele, sem qualquer comentário pos­terior.

William beijou as faces da mãe; ignorava com que intensi­dade ela sentiria a sua falta. Desceu pelo passeio, trajando suas primeiras calças compridas, o cabelo cortado muito curto, carre­gando na mão uma pequena mala, e foi ter com Roberts, o mo­torista. Entrou na parte traseira do Rolls-Royce, e o veículo o levou embora. Não olhou para trás. A mãe ficou longo tempo acenando e depois chorou. William também sentiu vontade de chorar, mas seu pai não teria aprovado isso.

A primeira coisa que causou estranheza a William Kane na nova escola preparatória foi que os colegas não demonstraram interesse em saber quem ele era. Os ares de admiração e o reco­nhecimento tácito de sua presença não existiam ali. Um garoto mais velho chegou a lhe perguntar o nome, e, o que foi pior, ao ouvi-lo não se mostrou impressionado. Outros chamaram-no até mesmo de Bill, falta que ele se apressou a corrigir, acrescentan­do a explicação de que nunca ninguém se tinha referido ao seu pai como Dick.

O novo território de William era um quartinho com estan­tes de madeira, duas mesas, duas cadeiras, duas camas e um sofá confortável de couro gasto. A outra cadeira, a outra mesa e a outra cama eram ocupadas por um garoto de Nova Iorque cha­mado Matthew Lester, cujo pai era presidente de Lester & Company — outra tradicional família de banqueiros.

Em pouco tempo William habituou-se à rotina escolar. Às sete e meia, levantava-se, lavava-se, tomava o café da manhã no refeitório principal junto com a garotada da escola inteira — duzentos e vinte meninos mastigando ruidosamente ovos, bacon e engolindo mingau de aveia. Depois, vinham o ofício religioso na capela, três aulas de cinqüenta minutos antes do almoço e duas depois, seguidas de uma aula de música que William abo­minava, primeiro porque era incapaz de cantar uma nota sem desafinar, e segundo porque não tinha a menor disposição de aprender a tocar um instrumento. O rúgbi no outono, o hóquei e o squash no inverno, e o remo e o tênis na primavera lhe to­mavam quase o tempo todo. Como era bom em matemática, William recebia explicações especiais da matéria três vezes por semana do ilustríssimo sr. G. Raglan, o diretor, conhecido pelos garotos como Zangado.

Durante o primeiro ano, William mostrou-se merecedor da bolsa de estudos, colocando-se entre os primeiros em quase todas as matérias e, é claro, reinando absoluto na aula especial de matemática. Só o novo amigo, Matthew Lester, parecia-lhe um rival de verdade, e havia pouca dúvida quanto a isso, já que par­tilhavam o mesmo quarto. Enquanto se firmava em termos co­legiais, William também ganhava a reputação de financista. Em­bora seu primeiro investimento no comércio tivesse resultado num fracasso, ele não abandonou a convicção de que para se obter uma soma considerável eram indispensáveis lucros vanta­josos no mercado de valores. Com desconfiança, foi acompa­nhando no Wall Street Journal os informes empresariais, e, aos deve anos de idade, lançou-se a experiências com uma carteira simulada de investimentos. Registrou todas as compras e vendas hipotéticas, as boas e as regulares, num livro razão de várias cores recentemente adquirido, e ao final de cada mês comparava o comportamento de suas aplicações em relação às outras do mer­cado. Punha de lado as ações das companhias mais cotadas, con­centrando-se, ao contrário, nas de empresas obscuras, algumas das quais eram negociadas tão-somente em agências financeiras, de modo a tornar quase impossível a compra de mais que umas poucas cotas por vez. William esperava obter quatro coisas de seus investimentos: um mínimo múltiplo de rendimentos, uma taxa de crescimento elevada, uma base segura de capital e uma perspectiva de negociação favorável. Poucas ações satisfaziam critérios rígidos como esses, mas, quando as encontrava, inva­riavelmente lhe proporcionavam lucros.

Ao verificar que o índice Dow-Jones batia regularmente com seu programa de investimento hipotético, William teve a certeza de que se achava preparado para tornar a aplicar o pró­prio dinheiro. Iniciou com cem dólares e nunca parou de aperfeiçoar o método. Via sempre seus lucros aumentados e os prejuízos reduzidos. Uma vez dobrado o valor de uma ação, vendia metade dos títulos e conservava intacta a outra metade, nego­ciando as ações que mantinha como bônus. Algumas de suas pri­meiras descobertas, como a Eastman Kodak e a IBM, chegaram à posição de líderes nacionais. Apostou também na primeira em­presa de serviço de reembolso postal, convencido de que se tra­tava de uma tendência que vingaria.

Ao final do primeiro ano, tinha se convertido em consultor de metade dos funcionários da escola e de alguns parentes. Wil­liam Kane sentia-se feliz no colégio.

 

Anne Kane sentia-se infeliz e solitária em casa, com William na St. Paul’s School e um círculo familiar que consistia apenas nas duas avós, que agora já entravam na velhice. Doía-lhe ter consciência de que passara dos trinta e que sua graça jovial e doce tinha desaparecido, deixando-lhe quase nada em troca. Co­meçara a reatar os laços de amizade, cortados pela morte de Richard, que a ligavam a velhos conhecidos. John e Milly Preston, madrinha de William, a quem Anne conhecia fazia muito tempo, passaram a convidá-la para jantares e teatro, incluindo sempre uma companhia masculina, numa tentativa de lhe encon­trar um bom casamento. As escolhas dos Prestons, no mais das vezes, eram péssimas, e, intimamente, Anne costumava rir-se dos esforços de Milly de vê-la de novo casada. Até que num certo dia de janeiro de 1919, pouco depois de William ter voltado ao colégio para o período letivo do inverno, ela recebeu um novo convite para jantar. Milly confessou jamais ter visto o convida­do, Henry Osborne, mas achava que havia cursado a Universi­dade de Harvard na mesma época que John.

— Para falar a verdade — admitiu Milly ao telefone —, John sabe muito- pouco a respeito dele. Só sabe dizer ao certo, querida, que é de boa aparência.

No tocante a isso, Anne e Milly puderam comprovar a opi­nião de John. Henry Osborne aquecia-se ao fogo quando Anne chegou, e imediatamente se levantou para que Milly os apresen­tasse. Com sua sombra, que se alongava, contra a luz do fogo, à altura de quase dois metros, os olhos escuros, quase negros, o cabelo preto e liso, tinha uma aparência esguia e atlética. Anne sentiu um lampejo de alegria por ter como companhia nessa noite um homem forte e cheio de vida, enquanto Milly teve de se contentar com o marido, o qual, comparado ao colega de uni­versidade, que irradiava energia, já mostrava sinais de velhice.

O braço de Henry Osborne se apoiava numa tipóia que cobria quase inteiramente a gravata de Harvard.

— Ferimento de guerra? — indagou Anne, condoída.

— Não, caí de uma escada uma semana depois que voltei da guerra — retrucou ele, rindo.

Foi um daqueles jantares, ultimamente raros na vida de Anne, em que o tempo à mesa passou agradável e despercebida-mente. Henry Osborne respondeu a todas as perguntas indiscretas que Anne lhe fez. Depois de deixar Harvard, tinha trabalhado numa administradora de imóveis de Chicago, sua cidade natal. E, quando estourou a guerra, não pudera resistir ao impulso de lutar contra os alemães. Contava muitos casos interessantes da Europa e sobre sua vida como jovem tenente que defendia no Marne a honra dos Estados Unidos. Desde a morte de Richard Milly e John não viam Anne rir tanto, e trocaram um sorriso de cumplicidade quando Henry lhe perguntou se podia levá-la de carro para casa.

— Que pensa fazer, agora que está de volta a uma terra propícia aos heróis? — perguntou Anne, enquanto Henry Osborne avançava com seu Stutz em direção à Charles Street.

— Ainda não resolvi ao certo. Felizmente, conto com algu­mas economias, assim não preciso ir atrás do primeiro emprego que aparecer. Talvez abra minha própria administradora de imó­veis aqui em Boston. Desde meus dias de Harvard, sempre me senti à vontade nesta cidade.

— Então não voltará a Chicago?

— Não, não há nada que me atraia lá. Meus pais morre­ram, e sou filho único. Desse modo posso começar vida nova no lugar que escolher. Que rua devo tomar?

— Oh, a primeira à direita — disse Anne.

- Mora em Beacon Hill?

— Sim, a uns cem metros à direita, um pouco além de Chestnut, na casa vermelha à esquina da Louisburg Square.

Henry Osborne estacionou o automóvel e acompanhou Anne até a porta da casa. Despediu-se e partiu logo em seguida, mal lhe dando tempo de agradecer-lhe a companhia. Ela observou o carro descer devagar a Beacon Hiil, ciente de que queria revê-lo. Ficou encantada, embora não inteiramente surpresa, quando, na manhã seguinte, ele lhe telefonou.

– A Orquestra Sinfônica de Boston vai tocar Mozart e aquele sujeito incrível, Mahler, na próxima segunda-feira. Será que consigo convencê-la a me acompanhar?

Anne espantou-se com a ansiedade com que ficou aguardan­do a segunda-feira. Fazia muito tempo que um homem que ela achava simpático quis namorá-la.

Henry Osborne chegou pontualmente. Cumprimentaram-se meio sem jeito, e ele aceitou um copo de uísque escocês com soda.

— Deve ser agradável viver na Louisburg Square. Você é uma moça de sorte.

— Sim, talvez seja, nunca pensei nisso antes. Nasci e fui criada na Commonwealth Avenue. Se existe alguma diferença, acho esta casa um pouco apertada.

— Se eu resolver mesmo me fixar em Boston, provavelmen­te comprarei uma casa em Beacon Hill.

— Nem sempre se acham casas à venda — disse Anne —, mas quem sabe tenha sorte. Não é melhor irmos andando? De­testo chegar atrasada a um concerto e ter de pisar nos pés das pessoas até a minha poltrona.

Henry consultou o relógio de pulso.

— Sim, realmente, seria lamentável perder a entrada do re­gente, mas não me preocupo com os pés dos outros, só com os meus. Nossas poltronas são as duas primeiras junto ao corredor da platéia.

O enlevo pela música grandiosa fez com que Henry Osborne espontaneamente segurasse o braço de Anne enquanto andavam em direção ao Ritz. A única outra pessoa que o fizera antes, desde a morte de Richard, tinha sido William, e só depois de muitos argumentos de persuasão, visto que, na opinião dele, isso era coisa de maricas. Outra vez as horas voaram: seria a comida ex­celente ou a companhia de Henry? Nesse dia, ela riu com as histórias sobre Harvard que ele lhe contou e se comoveu com histórias da guerra. Embora ele parecesse mais jovem do que ela, havia passado por tantas experiências na vida que na companhia dele Anne sentia-se deliciosamente moça e ingênua. Falou-lhe sobre a morte de Richard e chorou um pouco mais. Enquanto ele lhe segurava a mão, falou-lhe do filho com orgulho e carinho apaixonados. Henry lhe disse que sempre desejara ser pai. Poucas vezes mencionou Chicago ou a vida familiar, mas Anne não teve dúvidas de que ele sentia a falta dos pais. Nessa noite, quando a levou para casa, Henry ficou para tomar um drinque rápido e, ao partir, beijou-a levemente no rosto. Anne rememorou a noitada minuto por minuto antes de adormecer.

Na terça-feira foram ao teatro, na quarta-feira visitaram a casa de verão de Anne em North Shore, na quinta-feira passea­ram de carro pelas zonas rurais de Massachusetts, cobertas de neve, na sexta-feira compraram antigüidades e no sábado fizeram amor. Depois do domingo, poucas vezes se separaram. Milly e John Preston estavam “simplesmente maravilhados” com o fato de seus arranjos de casamento finalmente terem dado resultado. Milly espalhou por Boston a notícia de que tinha sido a respon­sável pela união do casal.

Durante esse verão, o anúncio do casamento não causou sur­presa a ninguém, exceto a William. Ele antipatizara com Henry, de maneira radical, desde o dia em que Anne, com apreensão jus­tificada, os apresentara. O primeiro contato entre os dois assumiu a forma de extensas perguntas por parte de Henry, que tentava demonstrar que queria se tornar amigo, e de respostas monossilábicas por parte de William, que demonstrava que não queria. E nunca mudou de opinião. Anne atribuiu o ressentimento do filho a um compreensível ciúme; desde a morte de Richard, William fora o centro de sua vida. Ademais, era perfeitamente natural que, no juízo de William, ninguém pudesse ocupar o lugar do próprio pai. Anne convenceu Henry de que, com o correr do tempo, William esqueceria a hostilidade.

Anne Kane tornou-se a sra. Henry Osborne em outubro desse ano na Catedral Episcopal de São Paulo, exatamente quando as folhas douradas começavam a cair das árvores, pouco mais que nove meses depois de se terem conhecido. William simulou uma doença para não comparecer ao casamento e permaneceu no colé­gio. As avós compareceram à cerimônia, mas mal conseguiram esconder sua reprovação ao segundo casamento de Anne, princi­palmente com um homem que aparentava ser bem mais novo do que ela.

— Esse casamento só poderá terminar em fracasso — co­mentou a avó Kane.

No dia seguinte, os recém-casados embarcaram num navio que os levaria à Grécia e só retornaram a Red House, em Beacon Hill, na segunda semana de dezembro, a tempo de receber William, que passaria em casa as férias de fim de ano. William ficou revoltado ao encontrar a casa inteiramente redecorada, quase sem mais nenhum vestígio do pai. Durante o Natal, o comporta­mento de William para com o padrasto não revelou sinais de melhora, não obstante o presente, na visão de Henry — o suborno, na interpretação de William —, de uma nova bicicleta. Henry Osborne aceitou a recusa com mal-humorada resignação. Causava tristeza a Anne o fato de o novo marido, tão bom, despender poucos esforços para conquistar a simpatia do filho.

William sentia-se tão mal dentro daquela casa, invadida, que desaparecia durante longos períodos do dia. Toda vez que lhe perguntava onde ia, Anne recebia como resposta uma explicação seca ou o silêncio total: naturalmente o menino não ia à casa das avós. Terminadas as férias, William estava contente por voltar ao colégio, e Henry nada aborrecido por vê-lo partir. Apenas Anne estava preocupada por causa dos dois homens de sua vida.

 

— De pé, garoto! De pé!

Um soldado cutucava as costelas de Wladek com a coronha do fuzil. O menino sentou-se, sobressaltado, e lançou um olhar para a sepultura da irmã e aquelas onde jaziam Leon e o barão. Quando se dirigiu ao soldado, não tinha mais os olhos úmidos de lágrimas.

— Vou continuar vivo. Ninguém vai me matar — disse em polonês. — Esta casa é minha, e vocês estão nas minhas terras.

O soldado cuspiu em Wladek e o fez retornar ao relvado, onde os criados esperavam, todos vestidos com uniforme pardo, semelhante a um pijama, com números impressos às costas. Wla­dek tomou-se de horror tão logo os viu, compreendendo o que lhe aconteceria. O soldado o conduziu bruscamente à parte norte do castelo e lá o obrigou a ajoelhar-se. De repente, ele sentiu que uma lâmina de faca lhe raspava a cabeça de través, enquanto o cabelo preto e basto ia caindo na relva. Depois de dez golpes terríveis, piores que a tosquia de uma ovelha, o serviço se com­pletou. Quando sua cabeça ficou raspada, o guarda ordenou-lhe que pusesse o novo uniforme, camisa e calças pardas malfeitas e de tecido grosseiro. Wladek conseguiu esconder a pulseira de prata e reuniu-se aos criados em frente ao castelo.

A certa altura, enquanto todos ainda esperavam, de pé, no gramado — números agora, não mais nomes —, Wladek se aper­cebeu de um ruído longínquo em nada comparável aos que ouvira durante os anos de sua vida. Volveu os olhos para o lugar de onde partia o som ameaçador. Um veículo de quatro rodas aca­bava de atravessar os portões de ferro, mas nenhum cavalo ou boi o puxava. Com uma expressão de espanto e de incredulidade, os prisioneiros observaram o objeto que se locomovia e que a seguir estacionou. Os soldados empurraram para o veículo os prisioneiros que ofereciam resistência e os forçaram a subir nele. O carroção sem cavalos fez o retorno, e de novo atravessou os portões. Ne­nhum cativo se atreveu a protestar. Wladek sentou-se no fundo da carroceria e contemplou o castelo, até perder de vista suas torres góticas.

O carroção sem cavalos movimentava-se de algum modo por si mesmo, rumo a Slonim. Wladek teria tido a curiosidade de descobrir o funcionamento do veículo, não estivesse mais preo­cupado em saber para que lugar seriam levados. Aos poucos, foi reconhecendo a estrada que, nos tempos de escola, percorrera muitas e muitas vezes, mas os três anos de encarceramento nas masmorras tinham enfraquecido sua memória, e em vão procurava ele se lembrar a que lugar essa estrada os levaria. Após uns poucos quilômetros, o caminhão parou, e todos desceram. À frente deles erguia-se a estação ferroviária da região. Wladek estivera ali uma vez só, no dia em que ele e Leon tinham ido receber o barão, de regresso da viagem a Varsóvia. Wladek lembrou-se de que, ao colocarem pela primeira vez os pés na plataforma, um guarda lhes fizera uma saudação; agora, porém, não havia guarda algum a saudá-los.

Os prisioneiros receberam rações de leite de cabra, sopa de repolho e pão preto, e de novo Wladek assumiu a distribuição dividindo eqüitativamente as porções entre os treze criados. Pro­curou um banco de madeira e sentou-se, suspeitando que aguarda­riam a chegada de algum trem. Nessa noite dormiram no chão e ao relento, um verdadeiro paraíso em comparação às masmorras. Wladek agradeceu a Deus pelo inverno moderado.

Quando amanheceu, ainda continuavam à espera. Wladek persuadiu os criados a movimentarem os músculos e as articula­ções do corpo, mas pouco depois muitos deles desfaleceram. Re­petiu na memória os nomes de todos os que tinham sobrevivido até ali. Dos vinte e seis iniciais encerrados nas masmorras, haviam sobrado onze homens e duas mulheres. “Mas para quê?”, pensou.

Durante um dia inteiro, esperaram pelo trem, que não che­gou. De fato, a certo momento um trem aparecera, mas, assim que outros soldados desembarcaram, falando a língua odiosa, partiu sem o lastimoso grupo de Wladek. Aquela noite dormiram de novo na plataforma.

Sob um céu estrelado, Wladek ficou acordado, estudando uma maneira de fugir. Na calada da noite, um dos companheiros, na esperança de fugir, saiu correndo e foi morto a tiros por uma sentinela enquanto atravessava os trilhos, antes mesmo de alcançar o outro lado. Wladek olhou, espantado, o local em que o com­patriota caíra, sem ser capaz de socorrê-lo, dominado pelo medo de ter o mesmo fim. Quando amanheceu, o corpo ainda estava sobre os trilhos, por decisão dos guardas, como advertência a todos aqueles que tentassem a fuga.

No dia seguinte, ninguém ousou falar do incidente, mas Wladek sempre olhava para o cadáver. Era o mordomo do barão, Ludwik — uma das testemunhas do testamento e de sua herança.

Na noite do terceiro dia, um outro trem roncou estação adentro, uma gigantesca locomotiva que puxava vagões de carga abertos, os pisos cobertos de palha e a palavra “gado” escrita nas paredes laterais. A maioria dos vagões estava cheia de seres humanos, mas Wladek sentia dificuldade de reconhecê-los como tais, por causa do aspecto lamentável, aliás semelhante ao seu. Ele e seu bando foram arremessados dentro de um dos vagões, o que anunciava o começo da viagem. Após algumas horas de es­pera, o trem se afastou morosamente da estação em direção leste, como Wladek pôde concluir observando o pôr-do-sol.

Cada grupo de três carros era vigiado por uma sentinela, que se sentava com as pernas cruzadas no alto de um vagão pro­vido de cobertura. Ao longo da viagem interminável, de quando em quando uma rajada de tiros cortava o ar, demonstrando a Wladek a inutilidade de qualquer tentativa de fuga.

Em Minsk, o trem fez uma parada, e os prisioneiros recebe­ram outra refeição: pão preto, água, castanha e painço E a via­gem recomeçou. Por vezes, transcorriam três dias sem que pas­sassem por uma só estação. Muitos dos viajantes que se recusavam a acatar ordens morriam de fome e eram lançados fora do trem em movimento. Quando havia uma parada eventual, era comum que esperassem dois dias por um trem que vinha para oeste pelos mesmos trilhos. Esses trens que retardavam a viagem invariavel­mente transportavam dezenas de soldados, e Wladek compreen­deu que tais trens, pela natureza de sua carga, tinham prioridade sobre quaisquer outros. O pensamento obsessivo de Wladek era a fuga, mas pelo menos dois fatores o desanimavam; em primeiro lugar, o percurso dos trilhos era na vastidão do deserto; e, em segundo, os companheiros que haviam sobrevivido às masmorras dependiam inteiramente da proteção que ele lhes dava. Era Wladek que se incumbia da distribuição da comida e da água, e quem lhes inspirava o desejo de viver. Era o mais jovem de todos, e o único ainda a ter fé na vida.

Com a noite a temperatura se tornava implacavelmente baixa, atingindo com freqüência trinta graus abaixo de zero, e todos se deitavam, aconchegados uns aos outros, formando uma fileira de corpos que assim se conservavam aquecidos. Enquanto não pegava no sono, Wladek recitava mentalmente trechos da Eneida. Como era impossível virar o corpo na posição contrária, a não ser com a colaboração de todos, Wladek se deitava no extremo da fileira e, de hora em hora — como podia calcular pelos reveza­mentos das sentinelas —, dando uma batida com a mão na pa­rede do vagão, todos começavam a rolar para o outro lado. Um após outro, os corpos se viravam como peças de dominó que vão tombando. Uma noite, um deles não se mexeu — porque nunca mais poderia se mexer —, e logo o fato foi comunicado a Wladek, que por seu turno o informou à sentinela. Então, quatro soldados apareceram, pegaram o corpo e o jogaram fora do trem em mo­vimento. E lhe deram tiros na cabeça, porque talvez o prisioneiro fingisse estar morto, para fugir.

Atingiram a cidadezinha de Smolensk, a trezentos quilôme­tros de Minsk, onde receberam sopa de repolho quente e pão preto. Wladek viu o embarque de novos prisioneiros, que fala­vam a mesma língua dos guardas. O chefe deles aparentava ter a mesma idade de Wladek. Este e seus dez companheiros restan­tes, nove homens e uma mulher, ao desconfiarem dos recém-che­gados, dividiram o vagão em duas partes, em cada uma das quais, por vários dias, os dois grupos se mantiveram afastados.

Certa noite, enquanto olhava as estrelas e se protegia do frio, Wladek teve subitamente a atenção atraída por um vulto que se mexia. Era o líder do pessoal de Smolensk, que, levando na mão um pedaço de corda, rastejava na direção do último ho­mem da fileira. Wladek o observou passar a corda em torno do pescoço de Alfons, o lacaio do barão, que dormia. Se se movesse muito depressa, o rapaz o ouviria e voltaria para junto dos seus companheiros. Assim, esticou-se de bruços no chão e rastejou len­tamente ao longo da linha dos corpos dos poloneses. Estes o olha­ram, mas ficaram quietos. Quando alcançou o final da fileira, deu um bote e apoderou-se do agressor, acordando bruscamente os outros ocupantes do carro. As duas facções permaneceram em seus campos, e Alfons continuou deitado e imóvel diante deles.

O chefe adversário era mais alto e mais ágil que Wladek, mas, enquanto se agarravam no soalho, isso não parecia fazer diferença. A refrega durou alguns minutos, assistida pelas sentinelas, que riam, divertidas, e apostavam em qual dos gladiadores sairia vencedor. Um deles, enfarado pela ausência de sangue, jo­gou uma baioneta no meio do carro. Numa corrida os dois garotos disputaram a posse da lâmina fulgente, que foi apanhada pelo líder do grupo de Smolensk. Seus compatriotas instigaram-no, aos berros, quando ele estocou o lado da perna de Wladek, puxou a baioneta ensangüentada e tornou a investir sobre o adversário. No segundo golpe, a lâmina cravou-se firmemente no soalho do vagão sacolejante, próximo à orelha de Wladek. O líder do grupo de Smolensk tentou arrancá-la. Wladek chutou-lhe a virilha com toda a força que lhe restava e empurrou para trás o adversário, que soltou a baioneta. Wladek agarrou a arma e atirou-se sobre o antagonista, enterrando-lhe a lâmina inteira na boca. O rapaz emitiu um grito estridente de agonia que acordou todo o trem. Wladek puxou a lâmina, girando-a, e de novo a enterrou no corpo do rapaz, tornando a enterrá-la, até que ele enfim parou de se mexer. Com a respiração ofegante, Wladek arremessou-o fora do vagão. Ouviu o baque surdo do corpo ao se chocar contra um barranco. E os guardas ainda atiraram no corpo inanimado.

Cambaleando, Wladek foi até Alfons inerte sobre as pran­chas de madeira, e, ajoelhando-se ao seu lado, sacudiu o corpo sem vida: era a sua segunda testemunha morta. Quem acreditaria nele agora? Quem acreditaria que havia sido escolhido para herdar a fortuna do barão? E que outro sentido haveria na vida? Segurou a baioneta com as duas mãos e apontou-a contra o estômago. Uma sentinela surgiu prontamente e tomou-lhe a arma.

— Não, não. Você, não — grunhiu. — Precisamos de gente forte para trabalhar nos campos. Não pensa que a gente vai fazer todo o serviço, não é?

Wladek enterrou a cabeça nas mãos, sentindo pela primeira vez uma dor lancinante na perna ferida. Tinha perdido a herança, e em troca se tornara chefe de mais um bando de miseráveis prisioneiros. Desse momento em diante contava com vinte pri­sioneiros que dele esperavam proteção. Sem demora, separou-os em dois grupos, e de tal modo que um polonês dormia sempre ao lado de um homem de Smolensk, evitando assim o surgimento de um conflito entre eles.

Wladek passava parte considerável de seu tempo tentando aprender a língua estranha. Só depois de alguns dias se deu conta de que, em verdade, era russo, mas muito diferente do russo clássico que o barão lhe havia ensinado. Foi então que percebeu a importância da descoberta, pois lhe revelava o destino daquela viagem.

Durante o dia, Wladek tomava aulas da língua com dois russos que ele mesmo escolhia, e, tão logo se sentiam cansados, substituía-os por outros dois, e dessa maneira procedia até que todos estivessem exaustos.

Aos poucos foi adquirindo a capacidade de conversar com seus novos dependentes. Alguns eram soldados russos, exilados após a repatriação porque tinham cometido o crime de se deixa­rem capturar pelos alemães; os demais eram russos-brancos, cam­poneses, mineiros, operários, todos ferrenhos adversários da Revolução.

O trem se movimentava aos solavancos, passando pelas terras mais áridas que Wladek vira em toda a vida e por cidades de que nunca tinha ouvido falar — Omsk, Novosibirsk, Krasnoiarsk —, nomes que lhe soavam sinistros. Por fim, depois de três meses e de mais de quatro mil quilômetros, alcançaram Irkutsk, onde os trilhos se interromperam bruscamente.

Aos empurrões, os prisioneiros desceram do trem e se alimentaram, recebendo a seguir sapatos de feltro, blusões e casacos pesados. Aqui e ali surgiam disputas por agasalhos mais quentes, embora estes proporcionassem um mínimo de proteção contra o frio sempre crescente.

Novos carroções sem cavalos foram chegando, em nada dife­rentes daquele que havia separado Wladek de seu castelo, de dentro dos quais foram tiradas correntes muito compridas. Para surpresa e horror de Wladek, cada prisioneiro teve o pulso agrilhoado, vinte e cinco pares lado a lado em cada corrente. A massa de prisioneiros começou a andar atrás dos caminhões a que as correntes estavam firmemente presas, e as sentinelas iam na reta­guarda. Caminharam durante doze horas, pararam para descansar por duas horas, e de novo retomaram a caminhada. Três dias depois, Wladek imaginou que em breve morreria de frio e de cansaço. Mas assim que pisaram em regiões despovoadas, passa­ram a andar somente durante o dia e a descansar à noite. Uma viatura-cozinha, organizada por prisioneiros do campo de traba­lhos forçados, fornecia sopa de nabo e pão ao primeiro clarão da manhã e ao cair da noite. A julgar por aqueles cativos, refletiu Wladek, deveriam ser ainda piores as condições dentro do campo.

Na primeira semana, em nenhum momento lhes tiraram as algemas, mas, a partir da segunda, quando já era impossível qual­quer tentativa de fuga, à noite, na hora de dormir, concediam-lhes a liberdade, a fim de que abrissem buracos na neve e se aquecessem. Por vezes, num dia de sorte, davam com uma flo­resta em que se podiam deitar: era uma alegria extraordinária. Caminhavam sempre em frente, longa e penosamente, passando por grandes lagos, atravessando rios congelados, sempre para o norte, desafiando ventanias gélidas e tempestades de neve. A perna ferida de Wladek doía leve, mas constantemente, uma dor que logo era suplantada pelo martírio dos dedos e das orelhas queimados pelo frio. Em toda a vastidão branca não havia o me­nor indício de vida e de alimento, e Wladek tinha certeza de que tentar uma fuga à noite significaria simplesmente a morte lenta por inanição. Quando tinham sorte, os velhos e os doentes morriam silenciosamente à noite. Os desafortunados, porém, in­capacitados de manter o passo, eram desacorrentados e abandona­dos no meio da neve sem fim. Os sobreviventes caminhavam, caminhavam, sempre em direção ao norte. Wladek perdeu toda a noção de tempo, ciente apenas do puxão inexorável da corrente, e sem saber se, ao adormecer à noite no buraco que cavava na neve com as mãos, tornaria a acordar na manhã seguinte: os que não acordavam tinham aberto a própria sepultura.

Depois de uma caminhada de um quilômetro e meio, os so­breviventes depararam com os ostíacos nômades das estepes siberianas, em seus trenós puxados por renas. Os caminhões largaram sua carga e retornaram. Os cativos foram conduzidos acorrentados aos trenós. Na maior parte dos dois dias que se seguiram, uma nevasca intensa obrigou-os a interromper a viagem, e Wladek, aproveitando a oportunidade, comunicou-se com o jovem ostíaco a cujo trenó se achava preso. Falando em russo clássico com forte sotaque polonês, conseguiu fazer-se compreender apenas parcialmente, mas ficou sabendo que os ostíacos detestavam os russos, que os tratavam praticamente tão mal quanto tratavam seus prisioneiros. Os ostíacos não se mostravam de todo indiferentes aos pobres cativos sem futuro, os “infelizes”, como os chamavam.

Nove dias depois, no lusco-fusco do início da noite do in­verno ártico, chegaram ao campo 201. Wladek jamais imaginara que um dia sentiria alegria ao ver um lugar como aquele: uma enfiada de barracos de madeira erguidos em terreno aberto e desolado. Como os prisioneiros, os barracos ostentavam número. O de Wladek tinha o número 33. No meio dele havia um pe­queno forno preto, e, destacando-se contra as paredes, beliches, sobre os quais havia colchões de palha duros e um único co­bertor fino. Poucos conseguiram dormir nessa primeira noite, e os gemidos e os gritos que se ouviam de dentro do barraco 33 ecoavam mais sonoros do que os uivos dos lobos lá fora.

Na manhã do outro dia, antes que o sol se erguesse, os prisioneiros foram acordados pelo som de um martelo que batia contra um triângulo de ferro. Ambos os lados da vidraça da ja­nela estavam cobertos de geada, o que deu a Wladek a certeza de que morreria de frio. A primeira refeição, servida num salão comum e gélido, durou exatamente dez minutos e consistiu numa tigela de mingau de aveia morno, pedaços de peixe e uma folha de repolho flutuando. Os recém-chegados cuspiam as espinhas de peixe em cima da mesa, enquanto os prisioneiros mais antigos engoliam até mesmo as espinhas e os olhos dos peixes.

Depois da refeição, os prisioneiros foram informados de suas tarefas. Wladek seria lenhador. Escoltaram-no através de onze quilômetros de estepes sem fim, até uma floresta, onde ele rece­beu a incumbência de cortar certa quantidade diária de árvores. O guarda partiu do local deixando a Wladek e ao seu pequeno grupo de seis homens a provisão que lhes cabia: um caldo grosso, amarelo e insípido, e pão. Os guardas não receavam que os pri­sioneiros tentassem a fuga, visto que o lugar se situava a mais de mil e quinhentos quilômetros da aldeia mais próxima; ainda que soubessem a direção correta a tomar, seria impossível escapar com vida.

Ao final de cada dia, o guarda voltava e contava o número de cepos; alertava os cativos de que, caso não conseguissem a quantidade de lenha exigida, suspenderia toda a provisão do dia seguinte. Quando, porém, retornava, às sete horas da noite, com a tarefa de reunir os lenhadores recalcitrantes, a escuridão já cobria tudo, e nem sempre ele lograva contar exatamente quantos cepos tinham sido cortados. Wladek instruíra os companheiros a aproveitar os últimos momentos da tarde para limpar a neve que cobria os toros cortados no dia anterior e alinhá-los com os que haviam conseguido cortar no dia. O plano sempre dava resultado, e desse modo o grupo de Wladek nunca se viu privado das provisões. Às vezes retornavam ao campo com um pequeno pe­daço de madeira, que prendiam às pernas por debaixo das calças, e com ele avivavam o fogo à noite. Todo o cuidado era pouco, visto que, toda vez que saíam ou entravam no campo, pelo menos um deles era inspecionado, obrigado quase sempre a tirar um sapato, ou os dois, e a ficar descalço na neve, cuja algidez causava dormência nos pés. Ser pego com algum objeto significava três dias de privação.

No decorrer de algumas semanas, Wladek foi sentindo que a perna se tornava rígida e dolorida. Aguardava com ansiedade a chegada de dias mais frios, quando a temperatura baixaria aos quarenta graus negativos e o trabalho a céu aberto seria suspenso, ainda que tivessem de repor no domingo o tempo perdido, dia que normalmente passavam deitados nos beliches.

Certa noite, ao puxar os toros que amarrara à cintura, sua perna começou a latejar insuportavelmente. Examinando as fe­ridas causadas pela luta no trem, verificou que haviam inchado e estavam supuradas. Nessa noite, mostrou-as a um guarda, que o autorizou a procurar o médico do campo antes da primeira luz da manhã. Permaneceu sentado a noite inteira, a perna quase encostada à estufa, cercado por botas molhadas, mas o calor era tão insuficiente que não lhe abrandava a dor.

Quando amanheceu, Wladek pôs-se de pé uma hora mais cedo que o habitual. Se não consultasse o médico antes do horá­rio de trabalho, só poderia fazê-lo no dia seguinte, e, por certo, com uma dor tão intensa, não resistiria a outra jornada. Apre­sentou-se ao médico com nome e número. Pierre Dubien era um senhor simpático, calvo, acentuadamente encurvado, e, pelo que Wladek pôde julgar, bem mais velho que o barão. Em silêncio, examinou-lhe a perna.

— A ferida vai sarar, doutor? — perguntou Wladek.

— Fala russo?

— Sim, senhor.

– Embora possa ficar manco para sempre, sua perna ficará boa. Mas boa para quê? Para passar toda uma vida carregando lenha!

— Não, doutor, eu penso em fugir e voltar para a Polônia.

O médico o fitou com um olhar penetrante.

— Fale baixo, seu tolo! Precisa compreender que por ora é impossível fugir. Estou preso aqui faz quinze anos, e não se passou um só dia sem que eu pensasse em fugir. Não há jeito. Ninguém conseguiu fugir e continuar vivo, e falar nisso significa dez dias de punição na cela. Lá, eles nos dão de comer a cada três dias e acendem o fogo só para derreter o gelo das paredes. Se sair vivo daquele lugar, pode se considerar um garoto de sorte.

— Vou fugir sim — disse Wladek, encarando o velho.

O médico olhava para Wladek e sorria.

— Meu amigo, não fale mais nisso, eles podem matar você. Volte ao trabalho, movimente a perna e procure-me amanhã cedo.

Wladek retornou à floresta e ao corte das árvores, mas não teve forças para arrastar os cepos mais de alguns metros. A dor era tão forte que a perna parecia querer se desprender do cor­po. Na manhã seguinte o médico examinou-lhe a perna com mais cuidado.

— Se houve alguma mudança, foi para pior — observou. — Que idade tem?

— Acho que treze —- respondeu Wladek. — Estamos em que ano?

— Em 1919.

— Então são treze mesmo. Quantos anos o senhor tem?

O velho fitou os olhos azuis de Wladek, surpreso com a pergunta.

— Trinta e oito — respondeu calmamente.

— Santo Deus! — exclamou Wladek, com espanto.

— Você terá esta mesma aparência quando completar seus quinze anos como prisioneiro, garoto — disse o médico, aparen­temente sem se perturbar.

— Mas por que o senhor está aqui? — indagou Wladek. — Por que não soltaram o senhor depois de todo esse tempo?

— -Prenderam-me em Moscou, em 1904, logo depois que fui habilitado a exercer a medicina, enquanto trabalhava na embaixada da França. Disseram-me que eu era espião e me encar­ceraram numa prisão de Moscou. Achei aquilo horrível, até estou­rar a Revolução, porque não conhecia este inferno para onde me mandaram depois. Até os franceses esqueceram que eu existo. Pelo que se sabe, poucos completam a sentença no campo 201. Devo morrer aqui, como todo mundo, e não vai demorar muito.

— Não, doutor, não deve perder a esperança.

— Esperança? Quanto a mim, já perdi a esperança faz muito tempo; talvez não a perca por você, mas lembre-se de nunca mencionar essa esperança a ninguém. Há por aqui pri­sioneiros que dão com a língua nos dentes por uma recompensa que não passa de um pedaço extra de pão ou um cobertor. Agora, Wladek, vou colocar você para trabalhar na cozinha durante um mês; enquanto isso, procure-me todas as manhãs. É sua única chance de conservar essa perna, e eu não sinto a menor alegria por ser o homem que irá cortá-la. Não contamos com o que se poderia chamar de modernos instrumentos cirúrgicos — comple­tou, fitando uma enorme faca de trinchar.

Wladek encolheu os ombros.

O dr. Dubien anotou o nome de Wladek num pedaço de papel. Na manhã seguinte, Wladek apresentou-se na cozinha onde lavou pratos com água gelada e ajudou no preparo de ali­mentos que dispensavam refrigeração. Depois de passar dias car­regando toros, acolheu com alegria essa mudança: sopa de peixe suplementar, um naco maior de pão preto com urtiga em tiras, e a oportunidade de ficar no interior do barraco e se manter aquecido. Numa ocasião, até mesmo dividiu um ovo com o cozi­nheiro, embora ambos ignorassem que ave o teria posto. Aos poucos a perna de Wladek foi melhorando, mas ainda o obrigava a mancar. Devido à carência de verdadeiros recursos médicos, quase nada podia fazer o dr. Dubien, exceto acompanhá-lo no processo de cura. À medida que os dias foram passando, o mé­dico tornou-se o protetor de Wladek, partilhando sua viva espe­rança quanto ao futuro. Todas as manhãs conversavam em línguas diferentes, mas o médico preferia o francês, sua língua materna.

— Dentro de sete dias, Wladek, você terá de retomar sua função na floresta. Os guardas irão examinar sua perna, e eu não terei condições de determinar sua permanência na cozinha. Por isso, escute com atenção o que vou lhe dizer, pois resolvi elaborar o plano de sua fuga.

— Nossa fuga, doutor — falou Wladek. — Nossa.

– Não, você irá sozinho. Estou velho demais para uma viagem tão longa, e, ainda que tenha sonhado com esse momento durante quinze anos, eu só o atrapalharia. Contentar-me-ei em saber que alguém teve êxito, e você, garoto, é o único que co­nheci que conseguiu me convencer de que terá êxito.

Wladek sentou-se no chão, em silêncio, e com os ouvidos aguçados escutou o plano do médico.

— Nestes últimos quinze anos, economizei duzentos rublos; não se consegue fazer horas extras como prisioneiro russo.

Wladek tentou sorrir com essa velha anedota sobre o campo de trabalhos forçados.

— Escondi o dinheiro num vidro de remédio, quatro notas de cinqüenta rublos. Quando estiver próximo o momento de sua partida, o dinheiro será costurado no forro da sua roupa. Eu mesmo farei isso.

— Mas que roupa? — inquiriu Wladek.

— Tenho um terno e uma camisa que comprei subornando um guarda doze anos atrás, quando ainda acreditava que poderia fugir. Não é exatamente a roupa da moda, mas servirá aos seus propósitos.

Quinze anos juntando duzentos rublos, guardando uma ca­misa e um terno, e o médico ainda se dispunha a sacrificá-los para ajudar Wladek, sem nenhuma hesitação. Nunca na vida ele testemunharia um gesto tão grandioso de altruísmo.

— Você terá sua única chance na próxima quinta-feira — continuou o médico. — Novos prisioneiros vão chegar de trem a Irkutsk, e os guardas sempre levam quatro serventes na viatura-cozinha. Já combinei com o cozinheiro-chefe — riu ao usar a expressão —, e ele, em troca de alguns medicamentos, o colo­cará entre os quatro na viatura. Não encontrei muita dificuldade em conseguir isso. Ninguém deseja fazer a viagem até lá e voltar em seguida. Mas você irá para sempre.

Wladek limitou-se a ouvi-lo atentamente.

— Quando chegar à estação, espere o trem de prisioneiros aparecer. Logo que todos tenham descido à plataforma, atravesse os trilhos e trate de subir no trem que se destina a Moscou, que não sairá antes de chegar o que transporta os prisioneiros, pois fora da estação existe só uma linha. Reze para que os guardas, que estarão preocupados com todo o agrupamento dos novos cativos, não percebam o seu desaparecimento. Dali em diante será o dono do seu destino. Lembre-se: cuidado, porque eles atiram. Existe uma última coisa que poderei fazer por você. Quinze anos atrás, quando me trouxeram aqui, desenhei um mapa, de memória, da rota que vai de Moscou à Turquia. Talvez não sirva mais como guia preciso, mas poderá ser útil aos seus objetivos. Procure descobrir se os russos já não dominaram a Turquia também. Só Deus sabe o que eles não fizeram ultima­mente! Se os conheço bem, não duvido que submetam inclusive a França.

O médico caminhou até o armário de remédios e dele tirou um vidro que, aparentemente, continha uma substância marrom. Desenroscou a tampa e puxou um pedaço de papel pergaminho envelhecido. A tinta preta havia esmaecido com os anos. Nele estava escrito “outubro 1904”, no alto do desenho da rota de Moscou a Odessa e de Odessa à Turquia, dois mil e quatrocentos quilômetros que levavam à liberdade.

— Esta semana, procure-me todas as manhãs, que eu lhe repetirei o plano quantas vezes forem necessárias. Se vier a fra­cassar, não será por falta de preparo.

Wladek ficou acordado todas as noites, de olhos fixos nos vultos dos lobos que via através da janela, pensando em que atitude tomaria numa dada situação, preparando-se para qual­quer eventualidade. De manhã, recordava sempre o plano com o médico. Na noite de quarta-feira, uma antes da tentativa de fuga, o médico dobrou o mapa oito vezes, colocou-o junto com as quatro notas de cinqüenta rublos num pequeno invólucro e costurou-o no interior de uma das mangas do paletó. Wladek tirou a roupa, vestiu o terno e sobre ele tornou a pôr o uniforme da prisão. Enquanto recolocava o uniforme, os olhos do médico foram atraídos pela pulseira de prata do barão que Wladek, desde que se vira obrigado a vestir aquela roupa, mantivera sempre acima do cotovelo, temendo que os guardas descobrissem seu único tesouro e o roubassem.

— O que é isso? É magnífica!

— Um presente de meu pai — respondeu Wladek. — Você a aceitaria como forma de gratidão? — Escorregou a pulseira até o pulso, tirou-a e estendeu-a ao médico.

O médico contemplou a pulseira de prata e balançou a cabeça.

– Nunca — disse. — Ela só pode pertencer a uma única pessoa. — Fitou o garoto. — Seu pai deve ter sido um grande homem.

Prendeu a pulseira no pulso de Wladek e apertou-lhe calo­rosamente a mão.

— Boa sorte, Wladek. Que nunca mais nos vejamos.

Abraçaram-se, e Wladek partiu para o que, esperava, fosse sua última noite no barraco da prisão. Não conseguiu adorme­cer, porém, receando que os guardas percebessem por debaixo do uniforme o terno que usava. Pela manhã soou o toque, e Wladek, já vestido, tratou de chegar à cozinha na hora marcada. Tão logo os guardas apareceram para destacar os quatro prisio­neiros que seguiriam na viatura-cozinha, o prisioneiro encarregado fez com que Wladek avançasse um passo à frente. Quatro pes­soas integravam o grupo, e Wladek era o mais jovem deles.

— Este aqui? — perguntou um guarda, indicando-o. — Não faz um ano que está no campo!

O coração de Wladek ameaçou parar, e ele suou frio. O plano do médico ia falhar, e a próxima leva de prisioneiros che­garia no mínimo dali a três meses. Nessa época, já não estaria mais na cozinha.

— Esse garoto cozinha como ninguém — explicou o cozi­nheiro. — Foi treinado no castelo de um barão. Os guardas me­recem o melhor.

— Ah — fez o guarda, a gula triunfando sobre a descon­fiança. — Então pode ir.

Os quatro subiram na viatura-cozinha, e o comboio partiu.

A viagem se arrastava, vagarosa e árdua, mas desta vez ele não caminhava, e o frio não era insuportável, pois tinha come­çado o verão. Trabalhou arduamente no preparo da comida, e, não desejando chamar a atenção sobre si, ficou praticamente em silêncio durante o trajeto, dirigindo-se apenas a Stanislaw, o cozinheiro-chefe.

Finalmente, no décimo sexto dia de viagem, chegaram a Irkutsk. O trem com destino a Moscou já aguardava na estação. Havia horas estava lá, mas só sairia após a chegada do trem que transportava os novos prisioneiros de guerra. Wladek sen­tou-se à beira da plataforma na companhia dos cozinheiros, três deles sem nenhuma intenção ou interesse em qualquer coisa ao redor, enfastiados daquela rotina, mas um deles absorto em cada movimento, perscrutando cautelosamente o trem parado do outro lado da plataforma. Wladek verificou que havia várias portas abertas, e depressa escolheu a que utilizaria quando chegasse o momento.

— Vai tentar fugir? — perguntou subitamente Stanislaw.

Wladek começou a transpirar, mas não respondeu.

Stanislaw não tirou os olhos de cima dele.

— Vai?

Wladek continuou emudecido.

O velho cozinheiro estudou o garoto de treze anos de idade, que meneou a cabeça, concordando. Se tivesse um rabo, tê-lo-ia abanado.

— Boa sorte. Quanto a mim, por uns dois dias vou fazer de tudo para que não dêem pela sua falta.

Stanislaw apertou-lhe o braço, e a distância Wladek avis­tou o trem de prisioneiros, que avançava vagarosamente na direção deles. Wladek retesou o corpo, o coração batendo forte, os olhos seguindo de perto os movimentos dos soldados. Esperou o trem parar e observou os prisioneiros fatigados acotovelarem-se na pla­taforma, centenas deles, homens anônimos que traziam consigo apenas um passado. Quando a estação se transformou numa massa humana desordenada e os guardas ficaram ocupados em controlá-la, Wladek desceu da plataforma, passou por debaixo do vagão e saltou para o interior do outro trem. Ninguém se mostrou curioso em relação a ele quando atravessou o carro e entrou no cubículo sanitário. Trancou-se, esperou e rezou, imaginando a cada segundo que alguém bateria à porta. Teve a sensação de que toda uma existência tinha transcorrido até o trem dar os primeiros sinais de que ia deixar a estação. Passaram-se, com efeito, dezessete minutos.

— Até que enfim! Até que enfim! — exclamou Wladek, em voz alta. Espiou pela janela estreita e viu a estação diminuin­do cada vez mais ao longe, os prisioneiros sendo agrilhoados, prontos para a caminhada rumo ao campo 201, os guardas a se divertirem enquanto os acorrentavam. Quantos deles chegariam vivos ao campo? Quartos deles serviriam de comida aos lobos? Quanto tempo levariam para dar pela sua falta?

Sentou-se na privada durante mais alguns minutos, imobi­lizado pelo medo, sem saber o que fazer. Subitamente, bateram a porta. Viu diante de si uma rápida sucessão de imagens ater­radoras— um guarda, o cobrador de passagens, um soldado? Pela primeira vez, precisou realmente usar a privada. As batidas continuavam.

– Saia, saia — gritou um homem, em russo vulgar.

Wladek pensou: se fosse soldado, jamais escaparia; nem mesmo um anão se espremeria naquela janela minúscula. Se não fosse soldado, a sua simples presença ali chamaria a atenção.

Arrancou as roupas de prisioneiro, fez com elas a menor trouxa possível e a jogou janela afora. Depois tirou um boné flexível do bolso do paletó, cobriu a cabeça raspada, e finalmente abriu a porta. Um homem esbaforido precipitou-se para dentro, abai­xando as calças antes mesmo que Wladek saísse.

Uma vez no corredor, pressentiu que aquele terno antigo o distinguia dos passageiros e o tornava pavorosamente notável, como uma maçã no alto de uma pilha de laranjas. Depressa, saiu à procura de outro compartimento sanitário. Encontrando um desocupado, trancou-se e apressadamente desfez a costura na manga do paletó, dela tirando uma das notas de cinqüenta rublos. Recolocou as outras três no lugar e voltou ao corredor. Procurou o carro mais freqüentado que pôde encontrar e sentou-se num canto em que não fosse notado. Um grupo de homens jogava cara ou coroa no meio do carro, apostando rublos, como forma de passar o tempo agradavelmente. Wladek sempre derrotara Leon quando jogavam no castelo, e, se não temesse atrair as atenções sobre si ganhando, apreciaria juntar-se aos companheiros. O jogo estendeu-se por longo tempo, e Wladek foi relembrando os es­tratagemas. Quase cedeu à tentação de apostar seus duzentos rublos.

Um dos jogadores, que perdera considerável quantia, reti­rou-se, revoltado, e sentou-se ao lado dele, fraquejando.

— Não estava com sorte — comentou Wladek, querendo ouvir a própria voz.

— Não é uma questão de sorte — retrucou o jogador. — Volta e meia ganho de camponeses como esses aí. Acontece que terminaram meus rublos.

— Quer vender seu casaco? — indagou Wladek.

O jogador era um dos poucos passageiros a usar um casaco de pele de carneiro, espesso, bem-feito e antigo. Ele encarou o jovem.

— Olhando sua roupa, rapaz, diria que você não pode com­prá-lo.

Wladek não deixou de perceber, pelo tom da voz do homem, que ele acreditava que poderia.

— Eu o vendo por setenta e cinco rublos.

— Dou quarenta — disse Wladek.

— Sessenta — falou o jogador.

— Cinqüenta — tornou Wladek.

— Não. No mínimo sessenta. Custou-me mais de cem.

– Mas isso faz muito tempo — argumentou Wladek, en­quanto considerava a inconveniência de tirar mais dinheiro do forro do paletó. Melhor seria aguardar uma nova oportunidade.

Para demonstrar que podia comprar o casaco, tocou a gola e falou com acentuado desdém:

– Pagou muito por ele, meu amigo. Cinqüenta rublos, nem um copeque a mais.

E levantou-se, simulando desinteresse.

— Espere aí, espere aí — apressou-se o jogador. — É seu por cinqüenta rublos.

O casaco, grande demais, quase tocava o chão, mas era exa­tamente do que Wladek precisava para esconder o terno, que chamava muito a atenção. Ficou parado uns instantes observando o homem, que voltava a jogar e de novo perdia. E Wladek apren­deu duas coisas: só jogar se a sorte estiver do seu lado, e se retirar quando atingir seu limite.

Vestindo o novo casaco velho, Wladek passou para outro carro com a sensação de maior segurança. Observou o trem com um pouco mais de alento. Os carros se dividiam em duas classes; a comum, em que os passageiros viajavam de pé ou sentavam-se em bancos de madeira, e a especial, em que se sentavam em bancos estofados. Os carros estavam lotados, com a exceção de um, da classe especial, em que, estranhamente, só havia uma mulher. Tanto quanto pôde perceber, ela era de meia-idade, ves­tia-se um pouco melhor e tinha um pouco mais de carne sobre os ossos do que a maioria dos passageiros do trem. Tratava um vestido azul-escuro e trazia um lenço na cabeça. Sorriu para Wladek ao notar que estava sendo observada por ele, encorajando-o a aproximar-se.

— Posso me sentar?

— Por favor — disse a mulher, olhando-o atentamente.

Wladek não tornou a falar, mas examinou a mulher e o carro. A pele do rosto era pálida, vincada por linhas de fadiga, e o corpo, rechonchudo — aquele peso a mais que se podia atri­buir à comida russa. O cabelo preto e curto e os olhos castanhos insinuavam uma mulher que, no passado, deveria ter sido encan­tadora. No porta-bagagem havia duas grandes sacolas de pano, e ao lado dela uma valise. Não obstante o perigo da situação em que se encontrava, Wladek de repente se viu dominado por uma exaustão desesperadora. Estava pensando em dormir quando ouviu a voz da mulher.

— Para onde está indo?

Tomado de surpresa, procurou raciocinar com rapidez.

— Moscou — respondeu, suspendendo a respiração.

— Eu também — retrucou ela.

Wladek arrependeu-se de ter entrado no carro vazio e de ter dado essa informação. “Não converse com ninguém”, alertara-o o médico; “lembre-se, não confie em ninguém.”

Para seu alívio, a mulher não fez nenhuma outra pergunta. Quando começava a recuperar a confiança perdida, o cobrador de passagens apareceu. Wladek transpirou, embora a tempera­tura estivesse a vinte graus negativos. O condutor pegou o bi­lhete da mulher, rasgou-o, devolveu-o e dirigiu-se a Wladek:

— Bilhete, camarada — foi tudo o que disse, num tom de voz arrastado e monótono.

Wladek, emudecido, limitou-se a enfiar as mãos nos bolsos do casaco fingindo procurar a passagem.

— Ele é meu filho — afirmou a mulher com segurança.

O condutor transferiu o olhar para ela, tornou a Wladek e, cumprimentando a mulher com um movimento de cabeça, deixou o vagão sem dizer mais nada.

Wladek encarou-a.

— Obrigado — murmurou, sem saber o que mais poderia dizer.

— Vi você saindo de baixo do trem dos prisioneiros — ob­servou a mulher calmamente. Wladek estremeceu. — Mas não irei denunciá-lo. Tenho um primo, bastante jovem, num desses campos terríveis, e todos nós tememos terminar nossos dias num deles. O que tem por baixo desse casaco?

Wladek pesou a vantagem relativa de sair correndo do carro ou de desabotoar o casaco. Se abandonasse o carro, não haveria fuga. Melhor seria desabotoar o casaco.

— Hum, nada mal — fez ela. — Que destino deu à roupa da prisão?

— Joguei pela janela.

— Esperemos que não a descubram antes de você chegar a Moscou.

Wladek ficou calado.

— Tem onde morar em Moscou?

De novo lembrou-se do conselho do médico: não confie em ninguém. Mas precisava confiar nela.

— Não tenho onde ir.

– Então ficará comigo até encontrar um lugar onde mo­rar. Meu marido — explicou — é o chefe da estação de Moscou, e este carro é reservado apenas a funcionários do governo. Se cometer outro erro desses, vão colocá-lo num trem de volta para Irkutsk.

Wladek sentiu a garganta seca.

— Devo ir embora?

– Não, não agora que já foi visto pelo cobrador. Enquanto ficar ao meu lado estará seguro. Tem algum documento de iden­tidade?

— Não. Que é isso?

— Depois da Revolução, todo cidadão russo deve ter um documento de identidade, para mostrar quem é, onde mora e onde trabalha, do contrário ficará detido até poder apresentá-lo. Como jamais poderá apresentá-lo, uma vez na prisão, lá ficará a vida toda — acrescentou ela sem demonstrar emoção na voz. — Você terá de ficar ao meu lado quando chegarmos a Moscou, e procure não falar.

— A senhora está sendo muito boa para mim — disse Wla­dek, desconfiado.

— Depois da morte do czar, ninguém se sente seguro. Por sorte casei-me com o homem certo — acrescentou —, mas não existe na Rússia um só cidadão, incluindo os oficiais do governo, que não viva constantemente com medo de ser preso e levado aos campos. Como você se chama?

— Wladek.

— Muito bem. Agora, Wladek, durma, que você está can­sado. A viagem é longa e o perigo ainda não passou.

Wladek dormiu.

Horas depois acordou. Já era noite. Lançou um olhar à guardiã, que lhe sorriu. Retribuiu o sorriso, querendo acreditar que ela não o denunciaria às autoridades. Ou já o teria denun­ciado? De dentro de uma das sacolas, ela tirou uma fruta, que Wladek comeu em silêncio. Quando pararam na estação seguinte, a maioria dos passageiros desceu, uns para não mais retornar, outros, em grande parte, para comprar um lanche ou uma bebida que os reanimasse, ou esticar os membros enrijecidos do corpo.

A mulher de meia-idade ergueu-se e dirigiu-se a Wladek:

— Siga-me — disse.

Ele se levantou e acompanhou-a à plataforma. Iria entre­gá-lo? Como um menino normal de treze anos a acompanhar a mãe, pegou a mão que ela lhe estendeu. A estranha andou até a porta de um banheiro reservado exclusivamente a mulheres. Wladek ficou indeciso. Ela insistiu e, uma vez lá dentro, orde­nou-lhe que tirasse as roupas. Sem nenhuma queixa, ele obede­ceu-lhe; desde a morte do barão não obedecia a ninguém. Enquan­to ele se despia, ela girou a única torneira que ali havia, que, depois de resistir alguns segundos, soltou um jato escasso de água parda. A mulher teve uma expressão de desagrado, mas, para Wladek, em comparação à água do campo de prisioneiros, aquilo era um progresso. Com um trapo molhado, a mulher pôs-se a lavar-lhe as feridas e tentou limpá-lo sem sucesso. Ela estremeceu ao notar o corte na perna. Por mais cuidado que tomasse, cada toque seu causava em Wladek uma dor insuportável, mas ele não soltou um gemido sequer.

— Quando estivermos em casa, tratarei direito desses feri­mentos — disse ela. — Por ora, basta isso.

Foi então que viu a pulseira de prata. Examinou a inscrição e olhou Wladek atentamente.

— É sua? — perguntou. — De quem você a roubou?

Wladek ofendeu-se.

— Não a roubei. Papai me deu esta pulseira pouco antes de morrer.

Ela tornou a fitá-lo, e nos seus olhos surgiu uma nova luz. Medo ou respeito? Ela baixou a cabeça.

— Tome cuidado, Wladek, alguém pode até matá-lo para se apossar de um objeto valioso como este.

Ele meneou a cabeça, agradecendo-lhe o conselho, e come­çou a vestir-se apressadamente. Retornaram ao carro. Houve um atraso de uma hora na estação, o que não era incomum, e, quando o trem voltou a se movimentar, aos trancos, Wladek ouviu com alegria as rodas girarem ruidosas sobre os trilhos. O trem de­moraria doze dias e meio para chegar a Moscou. Toda vez que aparecia um cobrador de bilhetes, eles repetiam o mesmo procedi­mento: Wladek esforçava-se, sem muito sucesso, em passar por um garoto ingênuo e inexperiente. A mulher era uma mãe con­vincente. Os condutores invariavelmente reverenciavam a senho­ra de meia-idade, levando Wladek a pensar que chefes de estação deviam ser importantes na Rússia.

Quando completaram mil quilômetros da viagem, Wladek já confiava inteiramente naquela senhora e não via a hora de co­nhecer sua casa. No início de uma tarde, o trem chegou ao des­tino final. Embora tivesse passado por muitas coisas, Wladek nunca havia visitado uma cidade grande, quanto mais a capital de todas as Rússias. Tomou-se de pavor, e de novo experimentou o gosto do desconhecido. Havia muita gente andando apressada para lá e para cá. A mulher notou sua apreensão.

– Acompanhe-me. Não diga uma palavra. E em hipótese alguma tire o boné.

Wladek desceu a bagagem do estrado, enterrou o boné na cabeça –agora coberta por um cabelo curto e espetado — até as orelhas e a seguiu em direção à plataforma. Na barreira fiscal, formara-se uma fila de pessoas que esperavam para sair por um corredor estreito e causavam congestionamento, visto que todos eram obrigados a mostrar ao guarda os documentos de identida­de. À medida que se aproximava da barreira, Wladek podia ouvir seu coração bater; chegada a sua vez, porém, num instante o temor desapareceu. O guarda olhou os documentos da senhora.

– Camarada — disse ele, fazendo continência. Voltou-se para Wladek.

— É meu filho — explicou ela.

– Naturalmente, camarada. — E tornou a fazer continên­cia.

Wladek estava em Moscou.

A despeito da confiança que depositava na nova amiga, seu primeiro impulso foi fugir. Mas, como dificilmente poderia viver com cento e cinqüenta rublos, resolveu continuar ao lado dela. Mais tarde não lhe faltaria oportunidade de fugir. Um cavalo e uma carruagem os aguardavam fora da estação para levar para casa a mulher e o novo filho. Quando lá chegaram, o chefe da estação não estava, e desse modo a senhora tratou de arrumar a cama de hóspede. A seguir, ela despejou numa enorme banheira a água que esquentara no fogão, dizendo a Wladek que entrasse nela. Era aquele seu primeiro banho em mais de quatro anos, a menos que contasse o mergulho no rio. Ela esquentou mais água, apresentou-o de novo ao sabonete, e esfregou-lhe as costas, a única região do corpo em que a pele não estava ressecada. Aos poucos a água transparente foi ficando turva, e depois de vinte minutos estava preta. Após enxugar Wladek, a mulher untou-lhe de linimento os braços e as pernas, aplicando ataduras nas partes do corpo particularmente machucadas. Com surpresa, notou o único mamilo. Ele vestiu-se rapidamente e logo desceu à cozinha, onde ela o esperava com um prato de sopa quente e uma tigela de feijão. Wladek devorou o banquete. Nenhum dos dois disse qual­quer palavra. Terminada a refeição, a mulher aconselhou-o a ir deitar e descansar.

— Não quero que meu marido o veja antes que eu explique por que você está aqui. Wladek, se meu marido concordar, você gostaria de ficar conosco?

Agradecido, ele fez que sim com a cabeça.

— Então, vá dormir.

Wladek seguiu o conselho e esperou que o marido consen­tisse na sua permanência. Despediu-se com morosidade e deitou-se. Ele estava limpo, as roupas de cama estavam limpas, o colchão era macio, verificou, enquanto atirava o travesseiro ao chão; en­tretanto, apesar de querer sentir todo aquele conforto, estava tão cansado que adormeceu imediatamente. Horas mais tarde, foi des­pertado por vozes exaltadas que subiam da cozinha. Não saberia dizer quanto tempo tinha dormido. Já era noite quando desceu da cama, foi até a porta e, deixando-a entreaberta, escutou a conversa que vinha da cozinha.

Wladek ouviu uma voz estridente.

— Como pôde ser tão estúpida! Não imagina o que teria acontecido se fossem detidos? Era você que eles mandariam para o campo!

— Mas, Piotr, você precisava vê-lo, um animal acossado.

— Daí decidiu fazer de nós dois também animais acossados — retrucou o homem. — Ninguém estranhou o rapaz?

— Não — respondeu a mulher. — Acho que não.

— Graças a Deus! Ele deve ir embora imediatamente, antes que alguém fique sabendo da sua presença. É nossa única espe­rança.

— Ele não tem para onde ir, Piotr. Está desnorteado, sozi­nho — suplicou a defensora de Wladek. — Além do mais, eu sempre quis um filho.

— Pouco me importa o que você quer ou para onde ele vai. Não somos responsáveis pelo menino, e devemos nos livrar dele o mais depressa possível.

— Mas, Piotr, ele é de origem nobre, o pai foi barão. Usa uma pulseira de prata gravada com as palavras...

— Isso só complica as coisas. Por acaso ignora o que nossos líderes decretaram? Nada de czares, nada de nobreza, nada de privilégios. Não ficaríamos presos, seríamos fuzilados.

– Piotr, sempre quisemos um filho. Não podemos correr esse risco na nossa vida?

– Na sua vida, talvez, mas não na minha. Estou dizendo que ele irá embora, e já!

Wladek não precisava continuar escutando aquela discussão. Resolvendo que a única maneira de ajudar sua benfeitora seria desaparecer na noite sem deixar nenhuma pista, trocou-se a toda a pressa e olhou pela última vez a cama em que dormira, espe­rando não ter de passar outros quatro anos antes de deitar-se noutra. Quando abria a janela, a porta escancarou-se bruscamente, dando passagem ao chefe de estação — um homem baixo, não mais alto que Wladek, com uma barriga protuberante e cabeça calva com alguns fios muito compridos de cabelo branco. Ele usava óculos sem aro, o que causava marcas em semicírculo abaixo de cada olho. Segurava na mão um lampião a querosene. Deteve-se, encarando Wladek, que, num desafio, também o encarou.

— Desça comigo — ordenou.

A contragosto, Wladek o acompanhou à cozinha. A mulher, chorando, estava sentada à mesa.

— Escute aqui, garoto — começou ele.

— O nome dele é Wladek — interveio a mulher.

— Escute aqui, garoto — repetiu. — Você é um estorvo, e quero-o longe daqui o mais depressa possível. Digo-lhe o que vou fazer para ajudá-lo.

Ajudá-lo? Wladek cravou friamente os olhos nele.

— Dou-lhe uma passagem de trem. Para onde quer ir?

— Odessa — disse Wladek, sem saber onde ficava a cidade ou quanto custava a passagem, sabendo apenas tratar-se da cidade seguinte no mapa do médico, rumo à liberdade.

– Odessa, a terra do crime. Um destino que vem a calhar — escarneceu o chefe de estação. — Lá é que está a sua igualha, lá você pode fazer o que quiser.

– Pois então deixe-o ficar conosco, Piotr. Eu cuidarei dele, eu...

– Não, nunca! Prefiro dar dinheiro a esse degenerado!

— Mas de que modo ele passará pelas autoridades? — in­tercedeu ela.

– Serei obrigado a fornecer-lhe um salvo-conduto. — Voltou-se para Wladek. — Pegue esse trem, garoto, mas não me ponha mais os pés em Moscou; do contrário, assim que o vir, eu o deterei e o jogarei na prisão mais próxima. Depois, se não o matarem, mandarão você para o campo de prisioneiros no pri­meiro trem.

O homem lançou um olhar para o relógio que estava sobre um móvel da cozinha: vinte e três horas e cinco minutos. Diri­giu-se à esposa:

— À meia-noite parte um trem para Odessa. Vou levá-lo pessoalmente à estação. Quero ter certeza de que deixará Moscou. Tem alguma bagagem, garoto?

Prestes a responder “não”, Wladek foi impedido pela mu­lher, que se adiantou.

— Sim. Vou buscá-la.

Wladek e o chefe de estação ficaram a sós, entreolhando-se com mútuo desprezo. A mulher se demorou, e, enquanto esteve ausente, o velho relógio soou uma vez. Ainda assim, ambos perma­neceram calados; o chefe de estação em nenhum momento despregou os olhos de Wladek. Finalmente a esposa retornou, tra­zendo um pacote amarrado com um cordão. Ao vê-lo, Wladek tentou objetar, mas imediatamente percebeu nos olhos dela um tal temor que só pôde dizer:

— Obrigado.

— Acabe isto — disse ela, empurrando-lhe a tigela de sopa fria.

Ele aceitou o oferecimento, embora com o estômago con­traído, e engoliu a sopa às pressas, não querendo causar-lhe mais transtorno.

— Animal! — exclamou o homem.

Wladek olhou-o com ódio. Sentiu pena da mulher, amarrada pela vida afora àquele homem.

— Vamos, garoto, é hora de ir embora — disse o chefe de estação. — Não queremos perder o trem, não é mesmo?

Wladek seguiu-o para fora da cozinha. Ao passar pela mu­lher, hesitou, tocou-lhe a mão e sentiu a resposta. Nada disse­ram; nenhuma palavra conseguiria ser expressiva. O chefe de estação e o refugiado esgueiraram-se pelas ruas de Moscou, ocultando-se nas sombras até alcançarem a estação. O homem com­prou uma passagem só de ida para Odessa e entregou o pequeno pedaço de papel vermelho a Wladek.

— Minha passagem? — perguntou Wladek, com ar desa­fiador.

O homem tirou do bolso um formulário oficial, assinou-o, apressado, e passou-o ao rapazinho dissimuladamente. Os olhos do chefe de estação se moviam, inquietos, sem se fixar em nada, como a querer prevenir algum risco possível. Wladek tinha visto essa espécie de olhar muitas vezes nos quatro anos passados: o olhar de um covarde.

– Nunca mais quero vê-lo nem ouvir falar de você — disse, com o tom de um fanfarrão.

Também esse tom Wladek tinha ouvido muitas vezes du­rante os últimos quatro anos. O menino levantou os olhos, como a querer dizer alguma coisa, mas o chefe de estação já se havia retirado, desaparecendo entre as sombras da noite. Estudou os olhos dos passantes que se apressavam à sua volta. Os mesmos olhos, o mesmo medo. Ninguém era livre naquele mundo? Pren­deu o embrulho de papel debaixo do braço, ajeitou o boné na cabeça e avançou em direção à barreira fiscal. Dessa vez, ao mos­trar o salvo-conduto ao guarda, sentiu-se confiante; sem fazer nenhum comentário, a autoridade o mandou passar. Embarcou no trem. Fora uma visita breve a Moscou, e jamais tornaria a ver de novo a cidade, embora soubesse que guardaria sempre na lembrança a bondade daquela mulher, a esposa do chefe de estação, a camarada... Nem sequer sabia o nome dela.

 

Wladek viajou de pé no carro comum. Odessa parecia mais próxima de Moscou do que Irkutsk, que, no mapa do médico, ficava a cerca de um dedão de distância, na realidade, mil e tre­zentos quilômetros. Wladek, que examinava o mapa rudimentar, distraiu-se e desviou a atenção para o jogo de cara ou coroa de um grupo de homens ali no carro do trem. Dobrou o papel pergaminho, recolocou-o cuidadosamente no forro do paletó e pouco a pouco foi sentindo maior interesse pelo jogo. Notou que um dos jogadores, mesmo quando as condições não lhe eram favoráveis, ganhava sempre. Observou com mais atenção o homem e percebeu que ele trapaceava.

Passou para o outro lado do carro com o objetivo de colo­car-se defronte do homem, e assim pegá-lo em flagrante, mas não o conseguiu. Tentando não chamar a atenção, adiantou-se e insi­nuou-se no círculo dos jogadores, conseguindo um lugar. Cada vez que o trapaceiro perdia duas vezes seguidas, Wladek jogava um rublo nele, dobrando sua aposta até que ele ganhasse. O trapaceador tanto podia estar se sentindo adulado, quanto conside­rando sensato permanecer omisso em relação à sorte de Wladek, porque nem uma vez sequer olhou na direção dele. Quando afinal o trem chegou à estação seguinte, “Wladek tinha ganho catorze rublos, e pagou dois por uma maçã e uma tigela de sopa quente. O dinheiro ganho bastaria para mantê-lo durante a viagem até Odessa, e, satisfeito com a idéia de que poderia obter muitos rublos aplicando o mesmo método, agradeceu no íntimo ao joga­dor desconhecido e tornou a subir no trem, preparado para repetir o estratagema. Ao pisar no último degrau, porém, recebeu uma pancada e foi impelido para um canto. Num movimento doloroso, torceram-lhe o braço nas costas e pressionaram-lhe fortemente o rosto contra a parede do carro. O nariz sangrou, e um ponta de faca tocou-lhe o lóbulo da orelha.

— Pode me ouvir, rapaz?

— Posso — respondeu Wladek, petrificado.

— Se entrar de novo no meu carro, arranco fora a sua orelha, e daí não vai poder mais me ouvir,, vai?

— Não, senhor — disse Wladek.

Wladek sentiu que a ponta da faca lhe cortava a pele atrás da orelha e que um filete de sangue lhe escorria pescoço abaixo.

— Isso é só um aviso, pivete.

Subitamente, com toda a força, o jogador golpeou-lhe os rins com o joelho. Wladek desabou no chão. Uma mão remexeu nos bolsos de seu casaco e tirou os rublos recentemente conseguidos.

— Meus, se não me engano — disse o homem.

Wladek sentiu que o sangue lhe escorria do nariz e da ore­lha. Reuniu coragem para levantar os olhos e espiar o corredor — o bandido desaparecera. Wladek experimentou pôr-se de pé, mas não pôde, e ali ficou caído no canto, durante alguns minutos. Quando afinal se reanimou e conseguiu se erguer, caminhou vaga­rosamente para o outro extremo do trem, o mais longe possível do carro em que estava o jogador, coxeando muito. Escondeu-se num carro ocupado quase que só por mulheres e crianças e caiu num sono pesado.

Na parada seguinte, Wladek não saiu do trem. Desfez o nó do cordão que envolvia o pequeno pacote e verificou seu conteú­do. Maçãs, pão, castanhas, duas camisas, um par de calças e até mesmo sapatos — tudo dentro do pacote. Que mulher! Que marido!

Comeu, dormiu, sonhou. E por fim, depois de cinco noites e quatro dias, o trem entrou com estrondo na estação de Odessa. Procedeu-se à inspeção na barreira fiscal, mas o guarda quase não lhe deu importância. Seu documento estava em ordem, dessa vez, mas estava sozinho. Ainda conservava os cento e cinqüenta rublos no forro do paletó e nem pensava em gastá-los.

Wladek passou o resto do dia andando pela cidade com o intuito de se familiarizar com ela, mas a todo instante ficava aturdido com as visões inusitadas: residências enormes, lojas com vitrines, mascates vendendo bugigangas coloridas, lampiões a gás, e até um macaco preso a uma vara. Caminhou até chegar ao porto, onde se pôs a contemplar o mar que se estendia para alem do horizonte. Sim, ali estava ele — o que o barão chamara de oceano. Contemplou com sofreguidão a vastidão de azul: aquele era o meio de encontrar a liberdade, o meio de fugir da Rússia. A cida­de devia ter conhecido de perto a guerra: casas arruinadas pelo fogo e pela miséria espalhadas por toda parte, incompatíveis com a brisa branda e perfumada que soprava do mar. Estaria a cidade ainda em guerra? Não havia a quem fazer a pergunta. Na hora em que o sol a pouco e pouco foi baixando até desaparecer atrás dos prédios elevados, Wladek saiu à procura de um lugar onde passar a noite. Entrou numa rua transversal e continuou andando. Devia parecer muito esquisito dentro do casaco de pele que se arrastava no chão e carregando o pacote debaixo do braço. Nada lhe inspirava segurança, até que, por fim, topou com um desvio de estrada de ferro onde um único e velho vagão de trem osten­tava sua solidão. Cautelosamente, olhou no seu interior; trevas e silêncio: não havia ninguém. Jogou o pacote dentro do carro, içou o corpo cansado sobre o soalho, engatinhou até um canto e deitou-se para dormir. Mal tinha encostado a cabeça no piso de madeira quando um corpo lançou-se sobre ele e duas mãos agar­raram-lhe rapidamente o pescoço. Quase não conseguia respirar.

— Quem é você? — falou entre dentes um menino que, pela voz, aparentava ser mais velho que ele.

— Wladek Koskiewicz.

— De onde veio?

— De Moscou. — A palavra “Slonim” esteve na ponta da língua de Wladek.

— Olhe aqui, moscovita, você não vai dormir no meu vagão.

— Desculpe — falou Wladek. — Eu não sabia.

– Tem algum dinheiro? — O menino pressionou os dedos contra a garganta de Wladek.

– Um pouquinho — respondeu Wladek.

— Quanto?

— Sete rublos.

— Me dá.

Enquanto Wladek mexia no bolso do casacão, o menino en­fiou decidido a mão dentro dele, afrouxando a outra que lhe aper­tava a garganta.

Num movimento célebre, e com toda a força que pôde reunir, Wladek atingiu com o joelho o escroto do menino. O agressor voou para trás, contorcendo-se de dor e segurando os testículos. Wladek saltou sobre ele, golpeando-o em regiões em que o me­nino jamais pensaria ser atingido. De repente as regras do jogo se tinham invertido. Ele não era um verdadeiro rival para Wladek. Comparado às masmorras e ao campo russo de trabalhos forçados, um vagão abandonado proporcionava o luxo de um hotel.

Wladek só parou de surrá-lo quando o adversário, impotente, caiu pregado ao piso do vagão. O menino implorou-lhe perdão.

— Vá para o fim do vagão e fique lá — exigiu Wladek. — Se se mexer, eu mato você.

— Eu vou, eu vou — disse o menino, arrastando-se.

Wladek ouviu-o chegar ao extremo do vagão. Sentou-se, imó­vel, e aguçou os ouvidos alguns instantes. Nenhum movimento. A seguir, pela segunda vez, deitou a cabeça no soalho e dali a pouco adormeceu completamente.

Quando acordou, o sol penetrava pelas fendas do vagão. Virou-se, sonolento e, pela primeira vez, olhou o adversário da noite anterior. Ele se deitara na posição fetal, no fim do vagão, e ainda estava dormindo.

— Venha cá — ordenou Wladek.

O menino acordou vagarosamente.

— Venha cá — tornou Wladek, erguendo a voz um pouco mais.

O menino lhe obedeceu prontamente. Era sua primeira opor­tunidade de vê-lo bem. Tinham mais ou menos a mesma idade, mas o menino era uns trinta centímetros mais alto. Tinha uma cara mais jovem e cabeleira loira, suja e emaranhada. Seu aspecto geral revelava que mencionar sabão e água seria insultá-lo.

— Primeiro, o mais importante — disse Wladek. — Como é que a gente arranja alguma coisa para comer?

— Venha comigo — respondeu o menino, saltando do vagão.

Wladek seguiu-o, mancando, subindo a colina em direção à cida­de, onde se montava a feira matinal. Nunca vira tanto alimento saudável desde os esplêndidos jantares em companhia do barão. Uma enfiada de barracas repletas de frutas, legumes e verduras, e até mesmo suas castanhas prediletas. O menino observou Wla­dek maravilhar-se com o espetáculo.

– Agora veja o que vamos fazer — disse o menino, pela primeira vez demonstrando maior segurança. — Vou até aquela barraca lá na ponta, pego duas laranjas e saio correndo. Então você grita bem alto: “Pega ladrão!” O vendedor vai sair atrás de mim, e nisso você chega e apanha as frutas. Não muitas. Pegue o suficiente para uma refeição. Depois volte aqui. Entendeu?

— Acho que sim — disse Wladek.

— Vamos ver se você faz isso, moscovita.

O menino lançou-lhe um olhar provocador, resmungou e afastou-se. Maravilhado, Wladek observou-o caminhar, emproado, até a primeira barraca, pegar uma laranja do topo de uma pirâ­mide, dizer alguma coisa rapidamente ao feirante e sair correndo sem muita afobação. O menino olhou para Wladek, que se esque­cera completamente de gritar “Pega ladrão”, mas o feirante girou os olhos à procura do malandro e imediatamente saiu atrás dele. Enquanto todos os olhares se voltavam para seu cúmplice, Wladek avançou às pressas e apanhou três laranjas, uma maçã e uma ba­tata, colocando-as no bolso do casacão. Quando o feirante estava prestes a alcançar o garoto, este atirou-lhe de volta as laranjas. O homem deteve-se no mesmo instante, recolheu as frutas do chão e proferiu palavrões, brandindo a mão fechada e queixando-se com os outros comerciantes enquanto voltava à barraca.

Vendo a cena, Wladek riu, afastando-se dali. De repente, sentiu a mão de alguém apertar-lhe o ombro. Voltou-se, horrori­zado por ter sido pego.

— E aí, moscovita, pegou alguma coisa ou está aqui como turista?

Com grande alívio, Wladek explodiu numa risada e mostrou as três laranjas, a maçã e a batata. O menino também riu.

— Como é que você se chama? — perguntou Wladek.

— Stefan.

— Vamos fazer outra vez, Stefan.

— Calma lá, moscovita, não comece a dar uma de esperto. Se a gente trabalhar de novo do meu jeito, vamos ter que ir para a outra ponta da feira e esperar pelo menos uma hora. Você agora está trabalhando com um profissional. Fique sabendo que de vez em quando eles vão te pegar.

Calmamente, os dois meninos foram ao outro extremo da feira, Stefan andando com uma empáfia pela qual Wladek teria trocado as três laranjas, a maçã, a batata e os cento e cinqüenta rublos. Confundiram-se entre os fregueses da manhã, e, quando Stefan decidiu que já era tempo, ambos repetiram duas vezes a façanha. Contentes com os resultados, voltaram ao vagão e des­frutaram o espólio: seis laranjas, cinco maçãs, três batatas, uma pêra, uma variedade de castanhas, e, a presa especial, um melão. Stefan jamais contara com bolsos tão grandes para acolher um deles. Mas o casacão de Wladek era capaz de uma proeza como essa.

— Nada mau — comentou Wladek, enterrando os dentes numa batata.

— Você não tira a casca? — perguntou Stefan, horrorizado.

— Estive em lugares em que a casca era um luxo — expli­cou Wladek.

Stefan olhou-o com admiração.

— Nosso próximo problema é conseguir algum dinheiro — disse Wladek.

— Quer tudo de uma vez, não quer, mestre? — disse Stefan. — O mais garantido é o trabalho pesado lá no cais, se é que está disposto a trabalhar duro, moscovita.

— Mostre-me o que fazer — disse Wladek.

Depois de terem comido metade das frutas e escondido o resto debaixo da palha no fundo do vagão, Stefan levou Wladek até os últimos degraus do ancoradouro e mostrou-lhe todos os navios. Wladek não acreditava no que seus olhos viam. O barão tinha falado sobre grandes navios que atravessavam oceanos trans­portando carregamentos para terras estrangeiras, mas aqueles eram muito maiores do que os produzidos por sua imaginação, flutuan­do ao longe numa linha do mar que seus olhos mal alcançavam.

Stefan interrompeu-lhe os pensamentos.

— Vê aquele ali, grandão e verde? Bom, você deve fazer o seguinte: pegar um balde no fim da rampa de desembarque, enchê-lo de cereal, subir a escala e despejá-lo no porão. Para cada quatro viagens dessa, você ganha um rublo. Mas confira o di­nheiro, moscovita, porque o malandro do encarregado do pessoal vai querer enganá-lo.

Stefan e Wladek trabalharam metade da tarde carregando o cereal. Juntos, perceberam vinte e seis rublos. Após o jantar, que consistiu em castanhas, pão e uma cebola, todos roubados, em­bora a cebola não tivesse entrado em seus planos, dormiram, fe­lizes, no interior do vagão.

Na manhã seguinte, Wladek foi o primeiro a acordar, e Stefan o encontrou estudando o mapa.

— Que é isso? — perguntou Stefan.

– Uma rota que mostra como sair da Rússia.

– Mas pra que quer sair da Rússia, quando pode ficar e trabalharmos juntos? — perguntou-lhe Stefan. — Podemos ser sócios, não podemos?

— Não. Eu vou para a Turquia. Lá, pela primeira vez na minha vida, serei um homem livre. Stefan, por que não vem comigo?

— Nunca vou deixar Odessa. Esta cidade é a minha casa, a estrada de ferro é a minha casa. Eu vivo aqui, aqui está a gente que conheci durante toda a minha vida. Sei que não é bom, mas esse lugar que você chama de Turquia pode ser ainda pior. Se é o que quer, vou ajudar você a fugir, porque sei como descobrir de onde vêm esses navios todos.

— Como vou saber que navio vai para a Turquia? — inda­gou Wladek.

— Fácil, fácil. No fim do cais mora o Zé Banguela. Ele vai lhe dar a informação por um rublo.

— Aposto que ele racha o dinheiro com você.

— Meio a meio — concordou Stefan. — Está aprendendo depressa, moscovita.

Terminada a conversa, Stefan saltou do vagão. Wladek ten­tou segui-lo. Como ele corria ágil entre os vagões parados na linha férrea! Uma vez mais, Wladek tomou consciência da habi­lidade que os outros meninos tinham de se movimentar. A ele fora dado apenas mancar!

Quando atingiram a ponta do cais, Stefan o fez entrar num cômodo estreito, abarrotado de livros empoeirados e de velhos papéis com tabelas de horário. Wladek não viu ninguém, mas dali a pouco, detrás da enorme pilha de livros, soou uma voz.

— Que está querendo, pirralho? Não tenho tempo a perder com você.

— Uma informaçãozinha para o meu companheiro que anda viajando, Zé. Sabe quando sai o próximo navio de luxo para a Turquia?

— Só com dinheiro adiantado — disse o velho, cuja cabeça, coberta por um boné de marinheiro, foi emergindo atrás dos livros, o rosto vincado de rugas e desgastado pelas intempéries. Seus olhos pretos pregaram-se em Wladek.

— Ele já foi lobo-do-mar — sussurrou Stefan, mas tão alto que Zé Banguela pôde ouvi-lo.

— Não comece a debochar, pirralho. Cadê o rublo?

— Minha carteira está com o meu amigo — justificou Stefan. — Wladek, mostre-lhe o rublo.

Wladek mostrou uma moeda. Zé mordeu-a com seu único dente, remexeu na estante de livros em desordem e, num arroubo, puxou uma enorme tabela verde. O pó se dispersou por toda parte. Ele tossia enquanto folheava as páginas encardidas, desli­zando o dedo curto, grosso e endurecido pelas tralhas ao longo das compridas colunas de nomes.

— Quinta-feira o Renaska vem recolher a carga de carvão. Talvez zarpe no sábado. Se carregarem logo o navio, sairá na noite de sexta-feira, para economizar as tarifas da aduana. Atraca no ancoradouro 17.

— Obrigado, Zé Banguela — disse Stefan. — Vou ver se no futuro trago mais algum dos meus sócios ricos.

Irado, Zé Banguela brandiu o punho cerrado. Stefan e Wladek correram em direção ao cais.

Nos três dias que se seguiram, os dois garotos roubaram ali­mentos, transportaram cereais e dormiram. Quando o navio turco aportou, na quinta-feira seguinte, Stefan quase conseguira con­vencer Wladek a ficar em Odessa. Mas o medo que Wladek tinha dos russos derrotou o fascínio pela nova vida na companhia de Stefan.

Postaram-se no cais, os olhos cravados no recém-chegado navio, atracado no ancoradouro 17.

— Como vou entrar no navio? — perguntou Wladek.

— Simples — respondeu Stefan. — Amanhã cedo vamos tra­balhar com os estivadores. Fico atrás de você e, quando o porão estiver quase cheio, você pula dentro dele e se esconde. Enquanto isso, pego o seu balde e desço a rampa pelo outro lado.

— E aí fica com a minha parte do dinheiro, não é isso? — inquiriu Wladek.

— Mas é claro — confirmou Stefan. — Minha inteligência superior tem que ser recompensada de alguma maneira. Senão, como é que um sujeito pode continuar pondo fé na livre inicia­tiva?

Pela manhã, juntaram-se ao grupo de estivadores e carrega­ram carvão pela rampa de embarque, até que finalmente ambos se prepararam para interromper o trabalho. Mas a hora não havia chegado. O porão só se encheu, e ainda assim pela metade, ao anoi­tecer. Nessa noite, os dois moleques dormiram a sono solto. Na manhã seguinte, retomaram o trabalho, e, no meio da tarde, quando o porão estava quase cheio, Stefan deu o sinal: um cutucão no tornozelo de Wladek.

— Na próxima subida, moscovita — disse.

Ao atingirem o alto da rampa, Wladek despejou o carvão, largou o balde no convés, saltou o parapeito do porão e aterrissou sobre o carvão, enquanto Stefan pegava o balde e, assoviando, descia pelo outro lado da rampa de desembarque.

— Adeus, meu amigo — disse —, e boa sorte com os turcos infiéis.

Wladek espremeu-se num canto do porão e observou a queda dos carvões ao seu lado. O pó negro assaltava todo o espaço, seu nariz, sua boca, seus pulmões e seus olhos. Wladek esforçou-se para não tossir, temendo ser ouvido por algum homem da tri­pulação. Exatamente no momento em que achava que não supor­taria mais o pó de carvão e que o melhor seria se juntar de novo a Stefan e pensar numa outra maneira de fugir, viu acima dele as tampas se fecharem. Tossiu até se fartar.

Instantes depois, sentiu uma mordida no tornozelo. Gelou, compreendendo nitidamente o que poderia ser. Procurou ver o agressor. Tão logo arremessou um pedaço de carvão contra o monstro, fazendo-o escapulir em disparada, outro o atacou, seguido de outro e mais outro. Os mais ferozes avançavam até suas per­nas. Pareciam surgir do nada. Pretos, grandes e esfaimados. Pela primeira vez na vida, Wladek reparava que ratos tinham olhos vermelhos. Trepou no topo do monte de carvões e abriu uma escotilha. A luz do sol jorrou dentro e os ratos desapareceram, retirando-se nos seus túneis escavados entre os carvões. Wladek começou a escalar o monte de carvão, pronto para sair, mas o navio já estava bem distante do cais. Tornou a cair dentro do porão, aterrorizado. Se o navio voltasse ao porto e ele fosse en­tregue à polícia, sem dúvida seria uma viagem sem retorno ao campo 201. Preferiu ficar na companhia dos ratos, que, logo que ele fechou a escotilha, voltaram a atacá-lo. O mais rapidamente que podia, Wladek começou a atirar montes de carvão contra os animais repugnantes, que, apesar disso, continuavam a surgir de todos os cantos. A intervalos muito breves, ele abria a escotilha e deixava a luz do sol entrar; a luz era o único aliado capaz de afugentar os roedores.

Durante dois dias e três noites, Wladek travou um combate com os ratos, sem jamais conseguir um momento sequer de sono tranqüilo. Finalmente, o navio aportou em Constantinopla e um marinheiro de convés abriu o porão. Wladek estava preto de car­vão da cabeça aos joelhos e vermelho de sangue dos joelhos às pontas dos pés. O marinheiro retirou-o dali de dentro. Wladek tentou manter-se de pé, mas desmoronou no convés.

Quando voltou a si — ignorava onde ou quanto tempo mais tarde —, Wladek achou-se deitado numa cama, numa sala pe­quena, rodeado por três homens que trajavam aventais brancos e o examinavam com cuidado, conversando entre si numa língua desconhecida. Quantas línguas existiam no mundo? Wladek per­correu o olhar pelo próprio corpo, ainda vermelho e preto, e tentou sentar-se, mas um dos homens de branco, o mais velho, de rosto magro e enrugado, de cavanhaque, o impediu, fazendo-o deitar-se outra vez. O médico falou com ele na língua estranha. Wladek balançou a cabeça, dizendo que não o entendia. O ho­mem experimentou o russo. Mais uma vez Wladek balançou a cabeça — falar russo, nesse instante de sua vida, seria abrir o mais curto caminho de volta ao lugar de onde tinha escapado. O outro idioma em que o médico se expressou foi o alemão, e Wla­dek constatou que ele próprio dominava o idioma melhor que seu inquiridor.

— Fala alemão?

— Sim.

— Você não é russo?

— Não.

— O que estava fazendo na Rússia?

— Tentava fugir.

— Hum.

O médico virou-se para os colegas e aparentemente os infor­mou, na língua deles, do diálogo. Em seguida, os três se retiraram da sala.

Uma enfermeira entrou e o limpou, sem dar muita impor­tância aos seus gritos de dor. Passou-lhe nas pernas um ungüento grosso e o deixou sozinho. Wladek adormeceu. Ao acordar pela segunda vez, continuava sozinho. Permaneceu deitado, olhando para o teto branco e imaginando sua próxima iniciativa.

Não sabendo onde estava, e querendo sabê-lo, subiu no peitoril da janela e olhou. Divisou a praça do mercado, igual à que conhecera em Odessa, mas com a diferença de que os mercadores usavam roupas brancas e compridas e tinham pele morena. Usa­vam também chapéus de várias cores, que, vistos de cima, lem­bravam vasinhos de flores de ponta-cabeça. Calçavam sandálias. As mulheres, todas elas, vestiam-se de preto, e, a não ser pela região dos olhos, seus rostos estavam totalmente cobertos. Wladek observou aquela raça tão singular que se acotovelava na praça do mercado, fazendo suas pechinchas para comprar o pão de cada dia; pelo menos essa era uma coisa que parecia ser universal.

O menino assistiu à cena por alguns minutos e só então re­parou que, junto à parede do prédio, estava encostada uma escada de mão, de ferro pintado de vermelho, que se estendia até o chão lá embaixo, muito semelhante à escada de incêndio do seu castelo de Slonim. Seu castelo! Ninguém mais acreditaria nele! Desceu do peitoril, andou de mansinho até a porta, abriu-a e espiou o cor­redor. Homens e mulheres apressavam-se para lá e para cá, mas não pareciam reparar na sua presença. Ele fechou a porta deva­gar, pegou seus pertences, que encontrou dentro do armário en­costado na parede da sala, e vestiu-se com rapidez. As roupas ainda estavam sujas de carvão e raspavam desagradavelmente a pele limpa. Ele voltou ao peitoril. Abriu a janela sem dificuldade. Se­gurou-se firme na escada de incêndio e, num movimento rápido, saiu da janela e começou a descer, rumo à liberdade. O calor foi a primeira coisa que o incomodou. Gostaria de abandonar o pe­sado casacão.

Assim que atingiu o solo, procurou correr, mas as pernas, de tão fracas e doloridas, não agüentaram, permitindo-lhe apenas andar a passos lentos. Como seria bom se houvesse um jeito de nunca mais mancar! Só tornou a olhar para o hospital depois de se ter misturado às pessoas que se aglomeravam na praça do mer­cado.

Olhou os alimentos expostos nas barracas e decidiu comprar uma laranja e uma porção de castanhas. Enfiou os dedos no forro do paletó. Não tinha a certeza de ter colocado o dinheiro na manga direita? Naturalmente que sim, mas o dinheiro não estava ali, e, pior ainda, nem a pulseira de prata. Os homens de avental branco tinham roubado os seus bens! Ele ponderou sobre voltar ao hospital e reaver a herança perdida, mas resolveu que só o faria depois de se alimentar. Talvez dentro do bolso houvesse algum dinheiro. Remexeu no enorme bolso do casacão e achou as três notas e algumas moedas. Junto com elas, o mapa do mé­dico e a pulseira de prata. O achado o deixou radiante. Pôs a pulseira, puxou-a e conservou-a um pouco acima do cotovelo.

Wladek pegou a maior laranja que encontrou e pediu um punhado de castanhas. O vendedor disse alguma coisa que ele não compreendeu. O menino pressentiu que a maneira mais fácil de transpor a barreira da língua era mostrar uma nota de cinqüenta rublos. Batendo os olhos nela, o mercador riu e atirou os braços para o céu.

— Alá! — exclamou, tomando das mãos de Wladek as cas­tanhas e a laranja e expulsando-o dali com o dedo indicador em riste.

Wladek afastou-se, desalentado. Uma língua diferente, pre­sumiu, significava dinheiro diferente. Na Rússia estivera na po­breza; ali estava na penúria. Teria de furtar a laranja. Se o pe­gassem, ele a devolveria ao mercador. Andou até o extremo opos­to da feira, do mesmo jeito que Stefan o fizera, mas sem saber imitar o gingado dele, e, ademais, sem possuir a mesma segu­rança. Escolheu a última barraca e, após certificar-se de que nin­guém o notara, furtou a laranja e saiu correndo. Repentinamente, houve uma gritaria, como se a metade da cidade o perseguisse.

Um sujeito grandalhão atirou-se sobre ele, que coxeava, e o lançou ao chão. Seis ou sete populares agarraram-no e uns tan­tos outros se juntaram ao seu redor, enquanto o levavam de volta à barraca. Lá, um guarda os esperava. Ele anotou algumas declarações e a seguir, em altos brados, começou a discutir com o vendedor, e suas vozes se tornavam mais altas a cada nova afirmação. O policial se voltou para Wladek e também gritou com ele, mas o menino não entendia nada do que ele dizia. O policial deu de ombros e, pegando-o pela orelha, carregou-o dali. Os populares não pararam de xingá-lo. Alguns até cuspiram nele. Quando chegou à delegacia, conduziram-no ao subterrâneo e o empurraram para dentro de uma cela estreita, já ocupada por vinte ou trinta criminosos, bandidos, ladrões, e sabe-se lá o que mais. Wladek não conversou com eles, que também não demonstra­ram a menor vontade de falar com ele. Manteve-se encostado contra uma parede, todo encolhido, quietinho e aterrorizado. E pelo menos por um dia e uma noite dali não saiu, sem comida e sem claridade. O fedor de restos fecais fê-lo vomitar. Jamais teria imaginado que um dia as masmorras de Slonim parecer-lhe-iam vazias e tranqüilas.

No outro dia, Wladek foi retirado do subterrâneo por dois guardas, que o escoltaram até um saguão do posto policial e o mandaram entrar numa fila de prisioneiros. Depois de amarra­dos um ao outro pela cintura com uma corda, os presos começa­ram a marchar para a rua. Um mundo de gente se amontoava do lado de fora, e, a julgar pela recepção ruidosa, aguardavam havia algum tempo a aparição dos prisioneiros. Aquela multidão os acompanhou durante todo o trajeto até a praça do mercado, ber­rando, aplaudindo e emitindo gritos, cuja razão Wladek, atemo­rizado, esperava descobrir dali a pouco. Tão logo alcançou a praça, a fila recebeu ordens de parar. O primeiro prisioneiro foi desamarrado e levado ao centro da praça, já repleta de centenas de espectadores, todos gritando.

Perplexo, Wladek observou a cena. O prisioneiro ficou de pé no meio do pátio e um guarda deu-lhe uma pancada nas arti­culações dos joelhos, obrigando-o a ajoelhar-se. Um sujeito gi­gantesco prendeu-lhe a mão direita com uma correia de couro a um grande cepo. Em seguida ergueu uma espada enorme acima de sua cabeça e desceu-a com uma força e uma velocidade im­pressionantes, visando o pulso do prisioneiro. Apenas as pontas dos dedos foram cortadas. O prisioneiro soltou um desesperado grito de dor, enquanto a espada se elevava de novo no ar. O segundo golpe acertou-lhe o pulso, mas sem consumar o intento, pois a mão ficou balançando, ainda pendendo do braço do pri­sioneiro, enquanto o sangue jorrava na areia. Pela terceira vez a espada subiu e desceu, implacável. Por fim a mão do prisio­neiro caiu. A multidão vibrou num sinal de aprovação. Soltaram o prisioneiro, que tombou inconsciente. O guarda arrastou-o dali com indiferença e o largou junto à barreira humana. Uma mulher em prantos, esposa dele, presumiu Wladek, às pressas amarrou um lenço encardido em torno do toco sangrento. O segundo prisioneiro morreu, vítima de um ataque, antes que a espada descesse pela quarta vez. O executor, um brutamontes, não se incomodou com a morte e prosseguiu no cumprimento de sua tarefa. Era pago para decepar mãos.

Wladek percorreu com o olhar a multidão ao redor, tomado de horror, e, se houvesse alguma coisa dentro de seu estômago, com certeza a teria posto fora. Buscou, em todos os lados, algu­ma ajuda ou um meio de fugir; não sabia que, segundo a lei maometana, a punição por tentativa de fuga era a perda de um pé. Dardejou com o olhar a massa de rostos que se comprimiam em torno da praça e finalmente vislumbrou um senhor que se vestia como europeu, com um terno escuro. O homem, postado a cerca de vinte metros de Wladek, repudiava nitidamente o ma­cabro espetáculo. Mas em momento algum olhou na direção de Wladek, e jamais ouviria seus gritos de socorro, que se perde­riam entre os da multidão, mais altos cada vez que a espada descia. Seria ele francês, alemão, inglês ou, quem sabe, polonês? Wladek não desviou o olhar dele, suplicando-lhe mentalmente que olhasse na sua direção. Mas ele não o via. Wladek acenou com o braço livre, e ainda assim não logrou chamar a sua aten­ção. Soltaram o primeiro dos dois homens à frente de Wladek e o arrastaram até o cepo. A espada subiu outra vez, e a multi­dão exultou. O europeu de terno escuro virou o rosto, com re­pugnância, e Wladek acenou-lhe desesperadamente.

O homem finalmente o viu e voltou-se para o companheiro, cuja presença Wladek não tinha notado. O guarda, nesse mo­mento, estava entretido com o prisioneiro colocado imediata­mente à sua frente. O carrasco prendeu-lhe a mão com a correia de couro; a espada subiu e desceu, decepando-lhe a mão num só golpe. A multidão pareceu decepcionada. Wladek tornou a olhar os europeus. Ambos olhavam também para ele. Desejou ardentemente que interferissem pela sua libertação, mas estavam imóveis.

O guarda caminhou até Wladek, atirou ao chão seu casaco de cinqüenta rublos, desabotoou-lhe a camisa e enrolou a manga. Enquanto era arrastado ao longo da praça, Wladek debateu-se inutilmente. Já em frente ao toro, levou um pontapé na articula­ção do joelho e desabou no solo. A correia apertou-lhe o pulso direito. Nada havia a fazer senão fechar os olhos enquanto a espada se erguia acima da cabeça do carrasco. Aterrorizado, ele esperou o golpe terrível. Nisso, a multidão murmurou: a pul­seira de prata do barão escorregara-lhe pelo braço, indo parar sobre o cepo. O silêncio pairou sobre a massa humana, enquanto a herança cintilava à luz do sol. O carrasco se deteve, baixou a espada e examinou a pulseira. Wladek abriu os olhos. O brutamontes procurou afastá-la do pulso, mas a correia de couro não o permitiu. Um sujeito fardado correu até o carrasco. Também olhou a pulseira e a inscrição e sem demora foi ter com outro homem, que, pelo andar vagaroso, Wladek julgou ser seu supe­rior. A espada descansava no cepo, e a multidão escarnecia e vaiava. O segundo oficial também tentou afastar a pulseira do pulso, mas não conseguiu fazê-la passar pela correia. Ele gritou alguma coisa para Wladek, que não o entendeu e respondeu em polonês:

— Não falo a sua língua.

Surpreso, o oficial levantou os braços e bradou:

— Alá!

Devia significar o mesmo que “santo Deus”, imaginou Wladek.

A passos arrastados, o oficial andou até os dois homens que trajavam roupas ocidentais e gesticulou amplamente, para todos os lados, como se fosse um moinho de vento desgovernado. Wla­dek suplicou a Deus; numa situação como aquela, todo homem suplica a alguém onipotente, seja Alá ou a Virgem Maria. Os europeus olhavam com insistência para Wladek, que acenava desesperadamente com a cabeça, para cima e para baixo. Um dos europeus, o de terno escuro, seguiu o oficial turco, que se adian­tava na direção de Wladek. O europeu agachou-se ao lado do rapaz, examinou a pulseira de prata e o fitou. Wladek, ansioso, aguardava. Falava cinco idiomas, e sua esperança era que o cava­lheiro falasse algum deles. Quando o homem conversou com o oficial na língua dele, foi como se o seu coração se desmanchas­se. A multidão vaiava e arremessava frutas podres contra o toro. O oficial fez que sim com a cabeça, concordando em alguma coisa com o europeu, que concentrava o olhar em Wladek.

— Sabe falar inglês?

Wladek suspirou, aliviado.

— Sim, senhor, um pouco. Sou polonês.

— Pode me dizer como essa pulseira veio parar com você?

- Ela pertenceu a meu pai. Ele foi morto na prisão por alemães, na Polônia, e eu fui preso e mandado a um campo de trabalhos forçados na Sibéria. Fugi e vim para cá de navio. Faz dias que eu não como nada. O vendedor recusou meus rublos pela laranja, e peguei uma, porque estava com muita fome.

O inglês pôs-se lentamente de pé e dirigiu-se ao oficial num tom de voz firme. O oficial, por sua vez, deu uma ordem ao carrasco, que ficou imóvel e perplexo; o oficial repetiu a ordem autoritariamente, e o subalterno baixou a cabeça, soltando a cor­reia que prendia Wladek. Dessa vez ele vomitou.

— Vamos embora — disse o inglês. — E depressa, antes que eles mudem de idéia.

Ainda atordoado, Wladek apanhou o casaco e o seguiu. A multidão apupava, atirando cascas de frutas enquanto ele se re­tirava. Num instante o carrasco prendeu a mão do prisioneiro seguinte e no primeiro golpe arrancou-lhe o polegar. Isso bastou para acalmar a turba.

Aos empurrões, o inglês foi abrindo caminho entre a massa impaciente, até sair da praça e encontrar o companheiro, que o aguardava.

— Edward, o que está acontecendo?

— Este garoto diz que é polonês e que fugiu da Rússia. Aleguei ao oficial de serviço que ele é cidadão inglês. Ele agora está sob nossa responsabilidade. Vamos levá-lo à embaixada e verificar o que há de verdadeiro na história dele.

Wladek andava com dificuldade entre os dois homens, que iam apressados por entre as barracas, até entrarem na rua dos Sete Reis. Ainda lhe chegavam aos ouvidos, embora fracos, os gritos de satisfação da multidão cada vez que o carrasco descia a espada.

Os dois ingleses cruzaram um pátio coberto de seixos e di­rigiram-se a um imponente edifício cinzento, tocando-lhe nas costas para que os acompanhasse. Na porta, ele leu as confortadoras palavras: Embaixada Britânica. Uma vez dentro do prédio, pela primeira vez Wladek começou a sentir-se seguro. Andou por um corredor atrás dos dois homens e, juntos, pararam num saguão cujas paredes estavam apinhadas de retratos de soldados e de marinheiros com estranhas fardas. No outro extremo do amplo recinto, estava afixado um magnífico retrato de um velho com uniforme azul, prodigamente adornado com medalhas. A bar­ba longa e vistosa lembrava-lhe a do barão. Um soldado apare­ceu e fez continência.

— Cabo Smithers, leve este menino e providencie-lhe um banho. Depois, dê-lhe de comer. Assim que estiver alimentado e com um cheiro menos desagradável, traga-o ao meu gabinete.

— Sim, senhor — disse o cabo, fazendo continência.

— Venha comigo, rapaz.

O soldado afastou-se. Obediente, Wladek o seguiu, dando corridinhas para acompanhar seus passos longos. Entraram num quarto situado no subsolo da embaixada; dessa vez, porém, ha­via uma janela. Antes de sair, o soldado ordenou-lhe que se despisse, mas ao voltar minutos depois encontrou Wladek sen­tado na beira da cama, ainda completamente vestido, perplexo, girando a pulseira de prata em torno do pulso.

— Depressa, rapaz, isto aqui não é uma casa de saúde.

— Desculpe, senhor — disse Wladek.

— Não me chame de senhor, rapaz. Sou o cabo Smithers. Chame-me de cabo.

— Sou Wladek Koskiewicz. Chame-me de Wladek.

– Não se faça de engraçadinho, rapaz. O Exército britânico está cheio de engraçadinhos, e não precisamos de mais um.

Wladek não compreendeu o que o soldado quis dizer. Tra­tou de despir-se.

— Acompanhe-me. Mas ande depressa.

Outro maravilhoso banho de água quente com sabonete! Wladek lembrou-se de sua protetora russa e imaginou que filho não teria sido para ela, mas não para o marido. Um novo con­junto de roupas, estrangeiras, mas limpas e cheirosas. A que filho teriam pertencido? O soldado apareceu para buscá-lo.

O cabo Smithers o conduziu à cozinha e o deixou com uma cozinheira gorda e de faces avermelhadas, o rosto mais corado que ele vira desde que saíra da Polônia. Tinha jeito de babá. Não pôde deixar de imaginar como a cintura dela ficaria fina depois de umas semanas no campo 201.

— Olá — saudou ela, com um sorriso radiante. — Como se chama?

— Wladek.

— Escute, rapazinho, pelo seu aspecto acho que está pre­parado para devorar uma boa comida inglesa. Essas porcarias turcas não alimentam. Comece com este prato de sopa quente e um bife. Se tem que enfrentar o sr. Prendergast, precisa se ali­mentar bem. — Ela riu. — Mas lembre-se: ele não morde tanto quanto late. Apesar de ser inglês, o coração dele está no lugar certo.

— Não é inglesa, senhora cozinheira? — perguntou Wla­dek, surpreso.

— Valha-me Deus! Não, rapazinho, sou escocesa. Há um mundo de diferença. Detestamos os ingleses muito mais do que os alemães os detestam — disse, rindo.

Ela pôs na mesa um prato de sopa fumegante, enriquecido com carne e verduras. Wladek havia esquecido completamente que comida pudesse ter um cheiro e um sabor apetitosos. Sabo­reou a refeição vagarosamente, como se temesse ficar sem comer durante um longo período.

O cabo reapareceu.

— Comeu bastante, rapaz?

— Oh, sim, obrigado, senhor cabo.

Ele olhou Wladek com desconfiança, mas logo admitiu que na expressão do garoto não havia deboche.

— Ótimo, então vamos andando. Não deve se atrasar para se apresentar ao sr. Prendergast.

O cabo fez menção de sair, e Wladek fitou a cozinheira. Detestava ter sempre de dizer adeus a quem mal acabava de conhecer, principalmente quando as pessoas eram bondosas.

— Vá, rapazinho, se sabe o que é bom para você.

— Obrigado, senhora cozinheira — disse ele. — Não me lembro de ter comido uma comida tão gostosa.

A cozinheira lhe sorriu. Mais uma vez ele precisou mancar muito para alcançar o cabo, cujos passos apressados obrigavam-no a correr. O soldado parou bruscamente diante de uma porta que Wladek por pouco não abriu.

— Olhe o que faz, rapazinho, olhe o que faz!

O soldado deu duas batidas secas na porta.

— Entre.

O cabo abriu a porta e fez continência.

— O menino polonês, senhor, limpo e alimentado.

— Obrigado, cabo. Por favor, peça ao sr. Grant que faça a gentileza de vir até aqui.

Edward Prendergast levantou os olhos dos papéis na mesa. Indicou a Wladek uma cadeira e continuou a mexer em seus papéis. Wladek sentou-se, fitou-o por alguns instantes e depois passeou o olhar pelos retratos pendurados nas paredes. Mais ge­nerais, mais almirantes, e de novo aquele cavalheiro velho e bar­budo, dessa vez com um uniforme caqui. Momentos mais tarde, entrou o outro inglês que estivera na praça do mercado.

— Obrigado, Harry, por ter vindo. Sente-se, meu velho.

O sr. Prendergast dirigiu-se a Wladek.

— Muito bem, rapaz, conte-nos a sua história desde o co­meço, mas sem nenhum exagero. Somente a verdade. Compreen­de?

— Sim, senhor.

Wladek contou sua vida desde a infância na Polônia. De­morava-se um pouco, tentando encontrar as palavras inglesas ade­quadas. Era evidente, pelas expressões dos dois ingleses, que a princípio não estavam acreditando nele. De vez em quando o interrompiam com perguntas, e a cada resposta comunicavam-se com sinais afirmativos. Após uma hora, a história de Wladek tinha sido exposta ao segundo-cônsul de sua Majestade britânica na Turquia.

– A meu ver, Harry — começou o segundo-consul —, é nosso dever comunicar o fato imediatamente ao consulado polo­nês e entregar-lhe o jovem Koskiewicz, uma vez que nessas cir­cunstâncias, sem dúvida, o caso é da responsabilidade deles.

– Concordo — disse o homem chamado Harry. — Sabe, ra­paz, você escapou por um triz daquele massacre. A lei Sher, digo, a antiga lei religiosa maometana, que permite a extirpação de uma mão como castigo aos ladrões, foi abolida oficialmente, em teoria, anos atrás. De fato, segundo o código penal turco, apli­car uma punição dessa natureza é crime. Mas na prática os bár­baros ainda continuam a fazê-lo. — Encolheu os ombros.

— E por que não cortaram a minha mão? — perguntou Wladek, segurando o pulso.

— Disse ao oficial que ele poderia cortar a mão de quan­tos muçulmanos quisesse, mas não a de um inglês — interveio Edward Prendergast.

— Graças a Deus! — disse Wladek, a voz desfalecida.

— Agradeça a Edward Prendergast — observou ele, sor­rindo pela primeira vez.

O segundo-cônsul prosseguiu:

— Você passará a noite aqui e amanhã o levaremos a seu consulado. Na verdade, a Polônia não tem embaixada em Constantinopla — explicou, com leve desdém —, mas meu colega é um bom sujeito, se considerarmos que se trata de um estran­geiro.

Ele apertou um botão, e o cabo entrou imediatamente.

— Senhor.

— Cabo, guie o jovem Koskiewicz até o quarto. Pela ma­nhã, providencie-lhe um lanche e traga-o aqui às nove em ponto.

— Sim, senhor. Depressa, garoto.

Wladek saiu com o cabo, sem ter tido tempo de agradecer aos dois ingleses por lhe terem salvo a mão — e talvez a vida. De volta ao quarto limpo, com a cama pequena e asseada, per­feitamente arrumada, como se fosse um hóspede de honra, despiu-se, jogou o travesseiro no chão e dormiu a sono solto até a luz da manhã entrar pela janela estreita.

— Levante-se, e apronte-se, rápido!

Era o cabo, de uniforme impecável e bem-passado, dando a impressão de nunca ter se deitado numa cama. Por um instante, Wladek, ainda sonolento, pensou ter voltado ao campo 201, porque a batida que o cabo deu com seu bastão no ferro do pé da cama lembrou-lhe o toque da manhã a que se havia habitua­do. Ele saltou da cama e pegou as roupas.

— Lave-se primeiro, rapaz, lave-se primeiro. Eu e você não queremos incomodar o sr. Prendergast tão cedinho com a sua catinga, queremos?

Wladek ficou indeciso quanto a que partes do corpo deveria lavar, porque a higiene era uma novidade recente. O cabo não desviou o olhar dele.

— O que há com sua perna, rapaz?

— Nada, nada — retrucou Wladek, evitando o olhar insis­tente do cabo.

– Ótimo. Daqui a três minutos estarei de volta. Três mi­nutos, está ouvindo, rapaz? Quero encontrá-lo pronto.

Wladek lavou às pressas as mãos e o rosto e vestiu-se. Quando o cabo voltou para levá-lo ao segundo-cônsul, ele estava sentado à ponta da cama, trajando o comprido casaco de pele de carneiro. O sr. Prendergast o recebeu amavelmente e pareceu muito menos sisudo do que quando se haviam encontrado pela primeira vez.

— Bom dia, Koskiewicz

— Bom dia, senhor.

— Gostou do lanche?

— Eu não comi lanche, senhor.

— E por que não? — indagou o segundo-cônsul, fitando o cabo.

— Sinto, senhor, ele acordou tarde. Chegaria aqui com atraso.

— Bom, vejamos como reparar isso. Cabo, peça à sra. Henderson uma maçã ou alguma coisa nutritiva.

— Sim, senhor.

Wladek e o segundo-cônsul atravessaram calmamente o cor­redor que levava à entrada principal da embaixada, cruzaram o pátio coberto de seixos e entraram num carro que os esperava, um Austin, um dos raros veículos motorizados existentes na Turquia e o primeiro em que Wladek andava. Era com tristeza que deixava a embaixada britânica, o único lugar, em tantos anos, em que se sentira seguro. Duvidava que, no resto de sua vida, viesse a dormir por mais de uma noite numa mesma cama. O cabo desceu correndo os degraus da escadaria e sentou-se à di­reção. Entregou a Wladek uma maçã e pães frescos.

– Cuidado para não derrubar farelos de pão no carro, rapaz. A cozinheira mandou-lhe lembranças.

O carro andava em marcha lenta pelas ruas quentes e movi­mentadas, uma vez que os turcos acreditavam que nada pudesse andar mais depressa que um camelo e não se preocupavam em abrir passagem para o minúsculo Austin. Embora as janelas es­tivessem abertas, o calor opressivo fazia Wladek transpirar, mas o sr. Prendergast permanecia seco e imperturbável. Wladek es­condeu-se na traseira do carro, temendo que alguma testemunha do incidente do dia anterior o reconhecesse e incitasse a multi­dão contra ele. Quando o minúsculo Austin preto estacionou diante de um prédio pequeno e deteriorado, em cuja porta se lia Konsulat Polski, Wladek sentiu uma ponta de entusiasmo mis­turado com desapontamento.

Os três desceram do carro.

— Onde estão as sementes da maçã, garoto? — quis saber o cabo.

— Comi.

O cabo riu e, adiantando-se, bateu à porta. Um homenzinho cordial, de cabelo negro e queixo firme, atendeu-os. Estava em mangas de camisa e tinha a pele bastante bronzeada, naturalmen­te pelo sol turco. Cumprimentou-os em polonês. Desde que ha­via deixado o campo de trabalhos forçados, era a primeira vez que Wladek ouvia alguém se comunicar na sua língua materna. Apressou-se em responder ao bom-dia. O compatriota dirigiu-se ao segundo-cônsul.

— Entre, sr. Prendergast — disse então em perfeito inglês. — Foi muito gentil em trazer pessoalmente o menino.

Trocaram amabilidades diplomáticas antes de Prendergast e o cabo retirarem-se. Wladek os olhou fixamente, procurando uma expressão inglesa mais apropriada que “obrigado”.

Prendergast afagou a cabeça de Wladek como o faria a um cocker spaniel. O cabo bateu a porta do carro e piscou. Boa sorte, rapaz. Deus sabe que você a merece.

O cônsul polonês apresentou-se a Wladek como Pawel Zaleski. Pela segunda vez Wladek contou a história de sua vida, encon­trando maior facilidade em fazê-lo em polonês do que em inglês, Pawel Zaleskt escutou-o em silêncio, balançando, contrito, a cabeça.

— Minha pobre criança! — disse com gravidade. — Você sofreu pelo nosso país muito mais do que deveria suportar uma criança da sua idade. E agora, o que faremos com você?

— Devo voltar à Polônia e reaver meu castelo — disse Wladek.

— Polônia — murmurou Pawel Zaleski. — Onde está a Polônia? A região em que você vivia continua sendo disputada, e russos e poloneses ainda lutam acirradamente entre si. O general Pilsudski está fazendo o que pode para defender a integridade territorial de nossa pátria. Mas seria tolice bancarmos os otimistas. Pouco restou para você na Polônia. Não, um plano mais sensato seria começar vida nova na Inglaterra ou nos Estados Unidos.

— Mas não quero ir para a Inglaterra ou para os Estados Unidos. Sou polonês.

— Sempre o será, Wladek, ninguém tirará isso de você, es­teja onde estiver, mas precisa encarar a vida com mais realismo. Sua vida mal começou.

Desesperançado, Wladek baixou a cabeça. Tinha então pas­sado por tudo aquilo para alguém lhe dizer que nunca mais pode­ria regressar à terra natal? Fez um esforço para não chorar.

Pawel Zaleski passou o braço em torno dos ombros de Wla­dek.

— Jamais se esqueça de que você é um daqueles que tive­ram a sorte de fugir e sobreviver ao holocausto. Vai compreen­der como seria sua vida, se se lembrar do seu amigo, o dr. Dubien.

Wladek nada respondeu.

— A partir de agora, abandone os pensamentos do passado e pense apenas no futuro. Quem sabe se no decorrer da sua vida você não assistirá ao surgimento de uma nova Polônia, que é o que todos nós esperamos?

Wladek permaneceu silencioso.

— Bom, Wladek, não há por que tomar já uma decisão — disse o cônsul com brandura. — Fique aqui o tempo que for necessário até decidir seu futuro.

 

O futuro preocupava Anne. Os primeiros meses de casa­mento tinham sido felizes, perturbados apenas pela sua inquieta­ção com respeito a William, cuja aversão por Henry aumentava, e ao novo marido, aparentemente incapaz de começar a trabalhar. Henry mostrava-se suscetível quando se tocava no assunto, expli­cando a Anne que ainda se sentia desorientado por causa da guerra e que não desejava assumir precipitadamente um compro­misso ao qual poderia ficar amarrado para o resto da vida — um argumento que ela encontrou dificuldade em aceitar e que finalmente provocou a primeira discussão entre eles.

— Não entendo por que ainda não abriu o negócio imobiliá­rio de que me falava com tanto entusiasmo.

— Não posso. As condições atuais não são propícias. O mer­cado imobiliário não é neste momento tão promissor quanto anti­gamente.

— Há um ano vem dizendo isso, Henry. Duvido que, na sua opinião, algum dia seja bastante promissor.

— Por certo que será. A verdade é que preciso de um ca­pital maior, que me ajude a começar. Se você me emprestasse seu dinheiro, amanhã mesmo eu faria um bom negócio.

— Isto é impossível, Henry. Você conhece os termos do testamento de Richard. Minha pensão vitalícia foi suspensa a par­tir do primeiro dia do nosso casamento, e agora só conto com o capital.

— Um pouquinho desse capital seria suficiente para eu co­meçar. E não se esqueça de que o seu precioso filho tem mais de vinte milhões de dólares depositados em seu nome.

— Você parece estar bem informado sobre a herança de William — disse Anne, com desconfiança.

— Ora, Anne, por favor, dê-me a oportunidade de ser seu marido. Não faça com que eu me sinta um hóspede dentro da minha própria casa;

– Henry, o que fez com o seu dinheiro? Você sempre me levou a acreditar que dispunha do dinheiro para abrir seu ne­gocio.

— Nunca pertenci financeiramente à classe de Richard, e você sempre soube disso. E houve um tempo, Anne, em que isso não fazia a menor diferença. “Mesmo que você fosse pobre, Henry, eu me casaria com você” — zombou ele.

Anne rompeu em lágrimas, e Henry tentou confortá-la. Ela ficou abraçada a ele, reconsiderando o problema. Convenceu-se de que estava agindo com mesquinhez e como uma esposa incompreensiva. Tinha mais dinheiro do que o necessário: não seria capaz de confiar um pouco desse dinheiro ao homem a quem estava disposta a confiar o resto de sua vida? Cedendo a esses pensamentos, Anne concordou em emprestar a Henry cem mil dólares, a fim de que ele estabelecesse em Boston sua própria administradora imobiliária. Em poucos dias, Henry alugou um sofisticado escritório num bairro elegante da cidade, formou o qua­dro de funcionários e começou a trabalhar. Em breve estava se relacionando com todos os políticos e os homens ligados a bens imobiliários de Boston, que lhe falavam sobre a febre de compra de propriedades rurais e o lisonjeavam. Anne dava-lhes pouca im­portância como relações sociais, mas Henry sentia-se feliz, e, ao que parecia, seu trabalho tinha êxito.

 

William, então com quinze anos, freqüentava o terceiro ano na St. Paul’s School, estava entre os seis melhores alunos nas diversas matérias e era o primeiro em matemática. Tornara-se também uma personalidade em ascensão na Sociedade de Debates. Escrevia à mãe uma vez por semana, informando-a do andamento de seus estudos. Sempre endereçava as cartas à sra. Richard Kane, recusando-se a reconhecer até mesmo a existência de Henry Osborne. Anne não tinha certeza se deveria falar ao marido a res­peito disso, e, todas as segundas-feiras, cuidadosamente retirava as cartas de William da caixa de correspondência para que Henry não visse o envelope. Confiava que com o tempo William viesse a gostar do padrasto, mas logo se tornou evidente que tal espe­rança não tinha bases reais. Numa carta à mãe, o menino pedia-lhe permissão para ficar na companhia de seu amigo Matthew Lester, com quem passaria as férias de verão. Anne recebeu o pedido como um golpe doloroso, mas logo se recuperou e ace­deu aos planos do filho, aos quais Henry também foi favorável.

William odiava Henry Osborne e alimentava apaixonada­mente esse ódio, sem saber ao certo o que de fato faria com ele. Que Henry nunca o visitasse na escola por si só era um alívio; não admitiria que seus colegas vissem a mãe com aquele homem. Morar com ele em Boston já era por demais penoso.

 

Pela primeira vez desde o casamento da mãe, William aguar­dava com ansiedade a chegada das férias.

Silenciosamente, o Packard dos Lesters transportou William e Matthew à casa de campo de verão situada em Vermont. Du­rante a viagem, Matthew, sem nenhuma intenção mais séria, per­guntou a William o que ele pretendia fazer quando saísse da St. Paul’s School.

– Quando me formar, serei o primeiro aluno em todas as matérias, o presidente dos quartanistas, e ganharei a bolsa de estudos do Hamilton Memorial para o curso de Matemática em Harvard — replicou William, sem nenhuma hesitação.

– Por que acha que tudo isso é tão importante? — inqui­riu Matthew ingenuamente.

— Meu pai conseguiu os três.

– Depois que tiver superado seu pai em tudo, vou apresen­tá-lo ao meu.

William sorriu.

Os dois meninos tiveram quatro semanas movimentadas e agradáveis em Vermont, praticando toda espécie de jogos, desde o xadrez ao futebol americano. Findo o mês, viajaram para Nova Iorque, onde passariam o resto das férias com a família de Lester. À porta foram recebidos por um mordomo, que tratava Matthew por senhor, e por uma menina de doze anos, toda manchada de sardas, que o chamava de Bolinha. William achou graça, porque o amigo era muito magro, e ela é que era gorda. A menininha sorriu e revelou os dentes que mal se viam por detrás do apare­lho.

— Ninguém diria que Susan é minha irmã, não acha? — perguntou Matthew com desdém.

— Acho que sim — disse William, sorrindo para Susan. — Ela é bem mais bonita que você.

Desse momento em diante, ela adorou o colega do irmão.

William gostou do pai de Matthew no momento em que o conheceu; ele lembrava seu pai em vários aspectos, e quando so­licitou a Charles Lester que lhe mostrasse o poderoso banco de que era presidente, este refletiu cuidadosamente sobre o pedido. Nunca antes uma criança havia entrado nas organizadas depen­dências da 17 Broad Street, nem mesmo seu filho. Ele transigiu, como amiúde fazem os banqueiros, e numa tarde de domingo mostrou a William o interior do edifício de Wall Street.

William ficou fascinado em ver os escritórios incomuns, as abóbadas, a sala em que se faziam as operações de câmbio, a sala da diretoria e a do presidente. Comparado ao Kane & Cabot, o banco de Lester era consideravelmente mais amplo, e William estava ciente, graças à sua pequena conta pessoal de investimentos, que lhe permitia receber um exemplar do relatório anual, de que este possuía um capital muito maior do que o do Kane & Cabot. Quando voltaram para casa, William permaneceu silencioso e pensativo.

— Então, William, gostou da visita ao banco? — perguntou animadamente Charles Lester.

— Oh, sim, senhor — respondeu William, — Sem dúvida — Fez uma pausa, e então adicionou: — Sr. Lester, penso um dia tornar-me presidente do seu banco.

Charles Lester riu, e se deliciou ao contar a história do pequeno William Kane, que desejava presidir a Lester & Co. Todos acharam graça.

Somente William não considerava seu comentário uma ane­dota.

 

Anne horrorizou-se quando Henry lhe pediu mais dinheiro.

— É tão seguro quanto uma casa — garantiu ele. — Per­gunte a Alan Lloyd. Como presidente do banco, ele só pode preocupar-se seriamente com os seus mais altos interesses.

— Mas duzentos e cinqüenta mil dólares? — inquiriu Anne.

— Uma excelente oportunidade, meu bem. Pense nisso como um investimento que renderá o dobro daqui a dois anos.

Depois de outra discussão prolongada, Anne cedeu de novo, e a vida retornou à mesma rotina serena. Quando verificou sua conta de investimentos, Anne viu que lhe restavam apenas cento e cinqüenta mil dólares, mas Henry dava a impressão de contactar todas as pessoas certas e de fechar todos os negócios certos. Refletiu sobre a possibilidade de discutir o problema com Alan Lloyd, do Kane & Cabot, mas acabou por afastar a idéia; se o fizesse, poderia dar a entender que não confiava no marido, para o qual desejava todo o respeito da alta sociedade, e por certo Henry não teria emitido aquela opinião se não estivesse seguro de que o empréstimo receberia o consentimento de Alan.

Anne retomou também suas consultas ao dr. MacKenzie, com o propósito de confirmar a possibilidade de ter outro filho. Mais uma vez, porém, o médico lhe desaconselhou a maternidade. Ain­da apresentava uma pressão arterial alta, causa do aborto ante­rior, e, já aos trinta e cinco anos, Andrew MacKenzie julgou-a numa situação inadequada para insistir em ser mãe pela segunda vez. Anne aconselhou-se com as avós, mas ambas concordaram sem reservas com os pontos de vista do médico notável que ele era. Nenhuma delas dava importância a Henry, menos ainda à idéia de um filho de sobrenome Osborne, um filho que, tão logo elas desaparecessem deste mundo, reivindicaria seu quinhão na fortuna da família Kane. Anne, por conseguinte, foi mais uma vez se resignando ao fato de que William seria seu único filho. Henry encolerizou-se com o que caracterizou como traição por parte dela, dizendo-lhe que, estivesse Richard vivo, teria feito uma nova tentativa. Como eram diferentes aqueles dois homens, refletiu Anne, sem conseguir explicar a si mesma o fato de ter amado a ambos. Procurou pacificar Henry, alimentando ao mes­mo tempo a esperança de que os projetos profissionais obtives­sem êxito e o absorvessem integralmente. Ele, com efeito, pare­cia entregar-se ao trabalho, demorando-se no escritório até tarde da noite.

Numa segunda-feira do mês de outubro, no fim de semana que se seguiu à comemoração do segundo aniversário de casa­mento, Anne recebeu a primeira de uma série de cartas de um “amigo” anônimo, que a informava de que Henry tinha sido visto, e podia continuar sendo visto, na companhia de outras mulheres de Boston; havia uma senhora em especial, cujo nome o autor das cartas não revelou. Incontinenti, Anne queimou todas as cartas, e, embora se sentisse amedrontada com elas, jamais chegou a mencioná-las a Henry, sempre na esperança de que cada carta recebida fosse a última. Nem mesmo teve a capaci­dade de criar coragem e abordar o assunto com Henry quando ele lhe pediu os últimos cento e cinqüenta mil dólares.

— Anne, se eu não tiver já esse dinheiro nas mãos, correrei o risco de perder todo o negócio.

— Mas, Henry, é tudo o que possuo. Ficarei sem nada se lhe der essa quantia.

– Só esta casa deve valer mais de duzentos mil dólares. Pode hipotecá-la amanhã.

— A casa pertence a William.

— William, William, William. É sempre William que im­pede meu sucesso! — bradou Henry, retirando-se tempestuosa­mente.

Após a meia-noite, ele voltou, arrependido, dizendo a Anne que o melhor seria que ela conservasse o dinheiro e que ele se arruinasse, assim ao menos teriam um ao outro. Reanimada por essas palavras, ela fez amor com ele. Na manhã seguinte, assinou um cheque de cento e cinqüenta mil dólares e esforçou-se por esquecer que, até o fechamento do negócio que Henry tinha em vista, aquele gesto a deixaria sem vintém. Não pôde, porém, evitar de se perguntar se seria uma mera coincidência o fato de Henry ter lhe pedido justamente a quantia que lhe restava da herança.

No mês seguinte, Anne constatou falha na menstruação.

O dr. MacKenzie se preocupou, embora não o tivesse de­monstrado; as duas avós escandalizaram-se, e o demonstraram; Henry, por sua vez, exultou, garantindo a Anne que essa era a coisa mais maravilhosa que lhe tinha acontecido em toda a sua vida, e até mesmo concordou em construir a nova ala infantil do hospital, que Richard havia planejado antes de falecer.

Quando William soube que poderia ter um irmão, por uma carta enviada pela mãe, permaneceu sentado, meditando, durante toda a noite, sem dizer a Matthew o que o preocupava. Na manhã do sábado seguinte, após obter uma permissão especial com o diretor, o sr. Raglan Zangado, embarcou num trem com destino a Boston. Tão logo desembarcou, retirou cem dólares de sua conta de poupança. Encaminhou-se a seguir aos escritórios de advocacia Cohen, Cohen & Yablons, na Jefferson Street. O sr. Thomas Cohen, sócio principal, homem alto e anguloso, de fisionomia sisuda, surpreendeu-se ao ver William ser introduzido na sala.

— Nunca, em toda a minha vida, fui contratado por um rapaz de dezesseis anos de idade — começou dizendo o sr. Cohen. — Para mim é uma completa novidade... — vacilou — sr. Kane. — Notou logo que o sr. Kane era de poucas palavras. — Mormente quando se sabe que seu pai não era propriamente... como direi?... simpatizante dos meus correligionários.

— Meu pai — retrucou William — foi um grande ad­mirador dos feitos da raça hebraica e, em particular, tinha um considerável respeito pela firma dos senhores, mesmo quando tra­balhavam em favor dos concorrentes dele. Em várias ocasiões ouvi-o mencionar o nome dos senhores. Por esse motivo, sr. Cohen, escolhi-o, e não o senhor a mim. Isso basta, creio eu, para renovar sua confiança.

O sr. Cohen não tardou em ignorar o fato de que William era um rapaz de apenas dezesseis anos.

— Sem dúvida, sem dúvida. Seja feita uma exceção ao filho de Richard Kane. Bem, em que posso ajudá-lo?

— Sr. Cohen, gostaria que me respondesse a três perguntas. Primeira: caso minha mãe, sra. Henry Osborne, dê à luz um outro filho, menino ou menina, esse filho teria algum direito legal à herança da família Kane? Segunda: tenho alguma obrigação legal com o sr Henry Osborne, por ser ele casado com minha mãe? E terceira: com que idade poderei expulsar o sr. Henry Osborne de minha casa da Louisburg Square, em Boston?

A pena de Thomas Cohen ia escrevendo rapidamente no papel diante dele, espirrando borrifos azuis sobre um tampo já salpicado de tinta.

William depositou cem dólares sobre a mesa. Colhido de sur­presa, o advogado se deteve, e, pegando as notas, contou-as.

— Sr. Cohen, empregue com prudência esse dinheiro. Preci­sarei de um bom advogado quando sair de Harvard.

— Já foi admitido em Harvard, sr. Kane? Meus cumpri­mentos. Espero que meu filho também ingresse lá.

— Não, não. Ainda não fui aceito, mas o serei dentro de dois anos. Daqui a uma semana, sr. Cohen, voltarei a Boston para vê-lo. Se algum dia eu vier a saber que alguém mais, além do senhor e de mim, está a par desse assunto, o senhor poderá considerar cortadas as nossas relações. Tenha um bom dia, senhor.

Thomas Cohen igualmente lhe teria desejado bom dia, se tivesse tido a chance de balbuciar as palavras antes que William saísse e fechasse a porta.

 

Sete dias depois, William retornou aos escritórios da Cohen, Cohen & Yablons.

— Olá, sr Kane — disse Thomas Cohen —, prazer em revê-lo. Aceita tomar um cafezinho?

— Não, agradecido.

— Um copo de refrigerante, então?

William permaneceu impassível.

— Bom, bom — disse Cohen, algo embaraçado —, ao tra­balho, ao trabalho. Fizemos algumas pesquisas em seu benefício, sr. Kane, com o auxílio de uma respeitável firma de investigado­res particulares, que nos forneceram os dados que nos permitem responder às perguntas formuladas pelo senhor, que, diga-se não foram puramente universitárias. Posso afirmar com segurança que encontramos as respostas satisfatórias. Pergunta o senhor se a descendência do sr. Osborne com a senhora sua mãe teria direitos sobre a herança dos Kanes, ou, mais especificamente, sobre o capital deixado ao senhor por seu pai. A resposta mais simples é “não”, embora naturalmente, a sra. Osborne esteja autorizada a legar a quantia que bem entender, do total de quinhentos mil dólares que a ela pertence por testamento, a quem lhe aprouver.

O sr. Cohen levantou os olhos.

— Entretanto, há uma coisa que talvez lhe interesse saber, sr. Kane. A senhora sua mãe retirou toda a quantia de quinhentos mil dólares de sua conta particular no Kane & Cabot durante os últimos dezoito meses. Infelizmente, porém, não descobrimos de que maneira o dinheiro foi empregado. Provavelmente ela terá resolvido depositar o mesmo valor em outro banco.

William mostrou-se impressionado, o primeiro indício de falha de autocontrole que o sr. Thomas Cohen pôde perceber nele.

— Não havia razão para que ela o fizesse — comentou William. — O dinheiro deve ter ido parar nas mãos de uma única pessoa.

O advogado aguardou, calado, que William prosseguisse, mas ele nada mais acrescentou. O sr. Cohen continuou:

— A resposta à sua segunda pergunta é que o senhor não tem nenhuma obrigação pessoal ou legal para com o sr. Henry Osborne. Segundo os termos do testamento de seu pai, a senhora sua mãe é curadora da herança, juntamente com o sr. Alan Lloyd e a sra. Milly Preston, seus padrinhos, até que o senhor complete vinte e um anos de idade.

Thomas Cohen de novo levantou os olhos. O rosto de William estava inteiramente inexpressivo. Isso já havia ensinado a Cohen que poderia continuar com sua exposição.

— Sua terceira pergunta. O senhor não poderá retirar o sr. Osborne de sua casa de Beacon Hill, desde que ele continue casado com a senhora sua mãe e more com ela. Por direito na­tural, a propriedade passará a lhe pertencer após a morte dela. Há de concordar, sr. Kane, que com isso respondemos a contento às suas três perguntas.

— Obrigado, sr. Cohen — disse William. — Fico-lhe agra­decido pela eficiência e discrição. Agora, por certo, o senhor me informará sobre quais foram suas despesas profissionais.

— Sr. Kane, cem dólares não cobrem nosso trabalho, entre­tanto confiamos no seu futuro e...

— Não pretendo contrair dívidas com ninguém, sr. Cohen. Trate-me como um cliente que não contratará de novo os seus serviços. Pensando assim, quanto devo pagar-lhe?

O sr. Cohen refletiu sobre a questão por um momento.

— Nessas circunstâncias, sr. Kane, fixemos o total de du­zentos e vinte dólares.

William tirou seis notas de vinte dólares do bolso interno do paletó e entregou-as a Cohen Dessa vez o advogado não as conferiu.

– Grato por sua colaboração, sr. Cohen. Estou certo de que nos veremos outra vez. Bom dia, senhor.

– Bom dia, sr. Kane. Se me permite dizer, nunca me foi dado o privilégio de conhecer seu distinto pai, mas, depois de ter a oportunidade de travar relações com o senhor, confesso que gostaria de tê-lo conhecido

William sorriu e abrandou-se.

— Obrigado, senhor

 

Anne ocupava-se o tempo todo nos preparativos para a chegada do bebê; sentia-se constantemente cansada e procurava descansar ao máximo. Quando indagado sobre o andamento do negócio, Henrv sempre tinha uma resposta pronta, plausível o bastante, a seu ver, para garantir a ela que tudo corria bem sem precisar entrar em minúcias.

Certa manhã, Anne começou de novo a receber as cartas anônimas. Dessa vez, forneciam mais detalhes, como os nomes das mulheres implicadas e os lugares em que poderiam ser vistas na companhia de Henry. Anne queimava-as antes mesmo de guar­dar na memória os nomes e os lugares. Não queria acreditar que o marido pudesse estar traindo-a, agora que esperava um filho. Devia ser alguém com ciúme, com raiva de Henry. Ele ou ela, quem quer que fosse o anônimo, devia estar mentindo.

As cartas não paravam de chegar, às vezes com novos nomes. Anne não parava de queimá-las, mas agora começavam a ator­mentar-lhe o espírito. Precisava falar do problema com alguém, mas não tinha ninguém em quem pudesse confiar. As avós ficariam horrorizadas, e, de qualquer modo, já estavam prevenidas contra Henry. Alan Lloyd dificilmente seria capaz de compreender o problema, uma vez que nunca fora casado, e William era jovem demais. Nenhuma pessoa pareceu-lhe indicada. Anne pensou em consultar um psiquiatra logo após ter assistido a uma conferência feita por Sigmund Freud, mas nunca um Lowell deveria expor qualquer problema familiar a uma pessoa completamente estranha.

A situação finalmente tornou-se crítica, de uma maneira tal que, nem mesmo Anne estava preparada. Certa manhã de se­gunda feira, ela recebeu três cartas, uma normalmente endereçada à Sra. Richard Kane pelo filho William, em que mais uma vez lhe pedia permissão para passar as férias de verão em Nova Iorque com o amigo Matthew Lester; outra, anônima, afirmando que Henry estava mantendo um caso amoroso com, com... Milly Preston; e a terceira enviada por Alan Lloyd, na qualidade de presidente do banco, solicitando-lhe a gentileza de telefonar, por­que desejava marcar uma entrevista. Anne deixou-se cair pesada­mente na cadeira, ofegando e sentindo-se mal. Forçou-se a reler as três cartas. A carta de William magoou-lhe pela indiferença. Anne detestava a idéia de que o filho preferisse passar as férias com Matthew Lester a visitá-la. Desde que se casara com Henry, a distância que os separava vinha aumentando cada vez mais. A carta anônima, que sugeria um caso amoroso entre Henry e sua melhor amiga, não podia ser ignorada. Difícil era evitar a lem­brança de que a própria Milly a havia apresentado a Henry, e, depois, ela era a madrinha de William. A terceira, de Alan Lloyd, de alguma maneira deixava-a ainda mais apreensiva. Até essa data, Alan escrevera-lhe apenas uma vez, e ainda assim para ma­nifestar seu pesar pela morte de Richard. Anne receava que uma segunda carta só pudesse reservar-lhe uma péssima notícia

Telefonou para o banco. A telefonista transferiu a ligação diretamente para a sala de Alan Lloyd.

— Alan, você queria me ver?

— Sim, minha querida, gostaria de conversar com você, se fosse possível. Quando lhe convém?

— Más notícias? — perguntou Anne.

— Não exatamente, mas prefiro não adiantar o assunto pelo telefone. Não há nada que possa preocupá-la. Por acaso estaria livre para almoçar comigo?

— Estou, Alan.

— Bom, podemos nos encontrar no Ritz às treze horas. Es­pero vê-la então, Anne.

Treze horas. Faltavam apenas três horas. Seu pensamento saltou de Alan para William, de William para Henry, e fixou-se em Milly Preston. Seria verdade? Resolveu tomar um demorado banho de chuveiro e pôs um vestido novo. Mas o vestido não a reanimava. Sentia-se, e isso começava a dar na vista, balofa. Os tornozelos e as pernas, que tinham sido sempre elegantes e esguios, estavam inchados e cobertos de manchas Amedrontava-a um pouco imaginar que as coisas poderiam ficar piores antes do nas­cimento do bebê. Olhando-se no espelho, suspirou de tristeza, e fez o possível para melhorar seu aspecto exterior.

 

– Você está muito elegante, Anne. Se não fosse um velho solteirão, eu a cortejaria, francamente — comentou o banqueiro grisalho, saudando-a com um beijo em cada face, como se fosse um general francês.

Ele a conduziu à sua mesa. Numa tradição tácita, a mesa situada no fundo era sempre ocupada pelo presidente do Kane & Cabot, quando não almoçava no restaurante do banco. Era o que Richard costumava fazer, e agora chegara a vez de Alan Lloyd. Quanto a Anne, sentava-se pela primeira vez àquela mesa sem um membro da família a acompanhá-la. Garçons agitavam-se em torno deles como pardais, sabendo exatamente em que momentos desaparecer ou aparecer, sem interromper uma conversa particular.

– Quando nasce o bebê, Anne?

— Oh, dentro de três meses.

– Sem complicações, espero. Lembro-me de que...

— Para falar a verdade — admitiu ela —, o médico me examina uma vez por semana e sempre faz cara torta por causa de minha pressão arterial. Mas eu não me preocupo muito, não.

— Fico contente, minha querida — disse, tocando-lhe a mão com a ternura de um tio. — Está com a fisionomia abatida. Espero que não esteja se excedendo em suas tarefas.

Alan Lloyd acenou com a mão discretamente. Um garçom materializou-se ao lado deles e anotou os pedidos.

— Anne, quero lhe pedir um conselho.

Constrangida, ela não ignorava o dom diplomático de Alan Lloyd. Ele não a convidara com o fito de ouvir-lhe um conselho. Ao contrário, sem dúvida estava ali para oferecer alguma sugestão, gentilmente.

— Você sabe como estão os projetos de Henry?

— Não sei — respondeu Anne. — Evito envolver-me nas atividades profissionais de Henry. Como você deve se lembrar, não o fazia com as de Richard também. Mas por que pergunta? Existe algum motivo que o deixe preocupado?

– Não, não, nenhum motivo que o banco não conheça. Muito pelo contrário, sabemos que Henry está para fechar um importante contrato comercial para construir o novo complexo do hospital. Perguntei-lhe isso simplesmente porque ele pediu ao banco um empréstimo de quinhentos mil dólares.

Anne espantou-se com a revelação.

– Vejo que isso a surpreende — disse. — Bom, sabemos que na sua conta de ações há de reserva um pouco menos que vinte mil dólares, e que na conta pessoal há um ínfimo saque a descoberto de dezessete mil dólares

Anne, horrorizada, largou a colher de sopa. Não sabia, até ali, o quanto sua conta estava a descoberto. Alan notou sua apreen­são.

— Mas não a convidei para almoçar para falar sobre isso, Anne —- acrescentou ele sem demora. — O banco não se preo­cupa em perder dinheiro com sua conta pessoal pelo resto de sua vida. O depósito de William está rendendo mais de um mi­lhão de dólares em juros anuais, de modo que seu saque a desco­berto é praticamente insignificante, assim como o serão os qui­nhentos mil dólares que Henry nos solicitou, caso você, como curadora de William, venha a autorizar o empréstimo.

— Eu não sabia que tinha qualquer poder de decisão legal sobre o depósito de William — disse Anne.

— Não o tem sobre a quantia capital, mas, em termos legais, os juros obtidos com o depósito poderão ser investidos em quaisquer projetos, desde que em benefício de William. Esses juros estão sob a nossa cautela — sua, minha e de Milly Preston — até que William complete vinte e um anos. Como adminis­trador do depósito de William, e com o seu consentimento, posso conceder a Henry o empréstimo de quinhentos mil dólares. Milly já me informou que ficaria felicíssima em aprovar, e se você con­cordar também serão dois votos favoráveis; não será válido então o meu parecer.

— Alan, você disse que Milly Preston já aprovou?

— Sim. Ela não lhe falou sobre isso?

Anne não deu uma resposta imediata.

— E qual é a sua opinião? — perguntou, afinal.

— Bom, ainda não examinei a contabilidade de Henry, por­que a firma dele foi montada há dezoito meses e não tem conta conosco. Assim, não sei em quanto as despesas excedem a receita no ano corrente e qual a previsão de retorno para 1923.

— Você constatou que, ao longo desses últimos dezoito me­ses, dei a Henry quinhentos mil dólares do meu próprio dinheiro? — indagou Anne.

— O chefe da contadoria me informa toda vez que uma quantia grande é retirada de qualquer conta. Eu ignorava para que propósitos você estava sacando o dinheiro, Anne, e isso não fazia parte do meu trabalho Aquele dinheiro lhe foi dado por Richard, e é seu para gastar onde ache conveniente. Em relação aos juros ganhos com a aplicação do depósito da família, a ques­tão é diferente. Se você resolve sacar quinhentos mil dólares para aplicá-los na firma de Henry, o banco terá de examinar a conta­bilidade de Henry, porque, nesse caso, o dinheiro seria conside­rado um investimento a ser convertido em proveito da carteira de William. Richard não deu aos curadores a autorização de fazerem empréstimos, mas tão-somente a de investir em benefício de William. Já expliquei essa condição a Henry, e, se dermos conti­nuidade à idéia e fizermos o investimento, os curadores deverão estabelecer que porcentagem da companhia de Henry constituiria um retorno conveniente para os quinhentos mil dólares. William, naturalmente, está sempre informado sobre o que fazemos com a renda de seu depósito, uma vez que não vimos por que não atender ao pedido dele de receber um extrato trimestral do programa de investimentos, a exemplo de todos os curadores. Quanto a mim, não tenho dúvidas de que ele terá suas próprias opiniões sobre a questão, da qual ficará sabedor assim que receber o próximo relatório. Talvez você goste de saber que, desde o seu décimo sexto aniversário, ele tem me mandado seus pareceres sobre todos os investimentos que fazemos. No começo encarei-os com o inte­resse superficial de um depositário benevolente. Ultimamente, po­rém, venho estudando-os com um respeito considerável. Quando William assumir o lugar dele na direção do Kane & Cabot, talvez este banco se revele pequeno demais para ele.

— Nunca fui solicitada a dar meu parecer sobre o depósito de William — lamentou Anne.

— Bem, minha querida, o banco envia a você um relatório ao primeiro dia de cada trimestre. Além disso, sendo uma cura­dora, sempre esteve em seu poder inquirir sobre quaisquer inves­timentos feitos por nós em favor de William.

Alan Lloyd tirou do bolso um pedaço de papel e permaneceu em silêncio enquanto o sommelier enchia as taças com o Nuits Saint-Georges. Tão logo o rapaz se retirou, Alan prosseguiu

– William possui mais de vinte e um milhões investidos no banco a quatro e meio por cento, até o seu vigésimo primeiro aniversário. A cada trimestre, em nome dele, reinvestimos os juros em ações e participações. Nunca antes investimos em firmas particulares. Provavelmente você ficará surpresa, Anne, em saber que atualmente realizamos este reinvestimento cinqüenta por cento segundo o conselho do banco e cinqüenta por cento segundo as sugestões que o próprio William apresenta. No momento estamos um pouco à frente dele, para satisfação de Tony Simmons, nosso diretor de investimentos, a quem William prometeu um Rolls-Royce no ano em que ele vencer o garoto por mais de dez por cento.

— Mas, se William perder a aposta, onde arranjará dez mil dólares para comprar um Rolls-Royce? Ele nem sequer pode tocar no dinheiro do depósito!

— Não tenho a resposta para isso, Anne. O que sei é que ele se sentiria extremamente orgulhoso se chegasse a nos dar ordens, e estou certo de que ele não se arriscaria a fazer a aposta se não estivesse em condições de honrá-la. Você teve oportunidade de ver ultimamente o famoso livro razão que ele mantém?

— O livro com que as avós o presentearam?

Alan Lloyd anuiu.

— Não, não o vejo desde que William foi para o internato. Não sabia que ele ainda o conservava.

— O livro ainda existe — afirmou o banqueiro —, e eu daria um mês do meu salário para descobrir em que pé está a coluna de crédito. Na certa você tem ciência de que ele deposita esse dinheiro no banco de Lester em Nova Iorque, e não no nosso. Eu não aceito contas pessoais abaixo de dez mil dólares. Tenho absoluta certeza de que eles também não abririam uma exceção, nem mesmo quando o cliente é o filho de Richard Kane.

— O filho de Richard Kane — repetiu Anne.

– Desculpe-me, Anne, minha intenção não era ofendê-la.

– Oh, não, não, sem dúvida alguma ele é filho de Richard Kane. Sabia que desde os doze anos de idade ele não me pede nem um cent? — Fez uma pausa. — Devo adverti-lo. Alan, de que ele não gostará de saber que terá de investir quinhentos mil dólares na empresa de Henry.

— O relacionamento deles não é cordial? — inquiriu Alan, erguendo as sobrancelhas.

— Receio que não —   retrucou Anne.

— Lamento saber disso. Se William se opuser a esse plano, por certo dificultará a transação. Embora até os vinte e um anos não tenha nenhum poder administrativo sobre o depósito, por intermédio de nossas fontes, descobrimos que não hesitou em con­sultar um advogado independente com o propósito de obter in­formações sobre sua situação legal.

— Deus do céu! — exclamou Anne. - Está falando sério?

— Oh, sim, bem sério. Mas não há por que se preocupar. Para ser franco com você, nós, do banco, ficamos todos muito impressionados, e, depois de verificarmos de onde procedia aque­la investigação, liberamos informações que normalmente guarda­mos em segredo. Por algum motivo pessoal, é evidente, ele não quis nos procurar diretamente.

– Deus do céu! — tornou Anne. — Como será ele aos trinta anos?

— Isso dependerá — comentou Alan — de ele ter a sorte de se apaixonar ou não por uma mulher tão encantadora quanto você. A força de Richard sempre esteve em você.

– Você é um lisonjeador incorrigível, Alan. Podemos adiar a solução do problema dos quinhentos mil dólares até eu ter a oportunidade de discutir o assunto com Henry?

— Naturalmente, minha querida. Eu disse que lhe pediria um conselho.

Alan pediu café e segurou com ternura a mão de Anne.

— Não deixe de cuidar de si mesma, Anne. Você é muito mais importante do que o destino de uns poucos milhares de dó­lares.

 

Anne voltou para casa e começou a se preocupar com as duas outras cartas recebidas nessa manhã. De uma coisa pelo menos agora estava certa: afinal Alan Lloyd dera-lhe informações sobre o filho; seria prudente consentir amigavelmente que William pas­sasse as próximas férias com o amigo Matthew Lester.

Henry e Milly, com o possível relacionamento, criavam um problema cuja solução ela se sentia incapaz de discernir. Sentou-se na poltrona de couro vermelho-acastanhado, a predileta de Ri­chard, e pôs-se a olhar através da janela da sacada, fechada pelo belo canteiro de rosas vermelhas e brancas. Mas não via nada, apenas pensava. Anne sempre demorava muito tempo para tomar uma decisão; quando a tomava, porém, raras vezes voltava atrás.

Nessa noite Henry chegou mais cedo que o habitual, e ela não pôde deixar de se perguntar por quê. Em breve descobriu-o.

– Soube que você almoçou com Alan Lloyd — foi dizendo ele ao entrar na sala.

— Quem lhe contou, Henry?

— Tenho espiões espalhados por toda parte — respondeu ele, rindo.

– Sim, Alan convidou-me para almoçar. Ele queria conhecer minha opinião sobre o investimento de quinhentos mil dólares do depósito de William que o banco faria em sua firma.

— E o que foi que você disse a ele? — Henry procurou não demonstrar ansiedade.

— Disse que primeiro discutiria o assunto com você. Mas, em nome de Deus, por que não me pôs a par dessa questão antes de consultar o banco, Henry? Senti-me uma tola quando fiquei sabendo de tudo pela informação de Alan.

— Não achei que tivesse algum interesse em negócios, meu bem, e só por puro acaso descobri que você, Alan Lloyd e Milly Preston são os três curadores, e que cada um tem direito a um voto sobre a renda dos investimentos de William.

— E como foi que descobriu? — perguntou Anne. — Eu mesma não sabia disso.

— É que você não lê os informes que eles nos enviam, meu bem. Para ser franco, também só fui lê-los recentemente. Por acaso Milly Preston falou-me sobre os detalhes do depósito e que ela, como madrinha, é curadora. Recebi a informação com verda­deira surpresa. Vamos ver agora se tiramos algum proveito dessa condição. Milly diz que me apoiará. Resta saber o que você pensa disso.

O simples som do nome de Milly deixou Anne embaraçada.

— Eu acho que não devemos mexer no dinheiro de William — respondeu. — Nunca considerei o depósito uma questão parti­cular minha. Ficarei muito feliz deixando-o, como está, e simples­mente continuarei concordando com o reinvestimento dos juros, tal como o banco vem fazendo há muitos anos.

— Por que se contentar com o programa de investimento do banco quando tenho a ótima oportunidade de assinar o con­trato com o hospital municipal? William ganharia dinheiro com uma porcentagem sobre os lucros da minha firma. Certamente Alan explicou-lhe isso, não?

— Não sei exatamente qual é a posição dele. Como sempre, foi bastante discreto, embora, de fato, tenha dito que o contrato seria um bom negócio e que você tinha boas chances de ganhar a concorrência.

— Perfeitamente.

— Mas, antes de tirar quaisquer conclusões definitivas, ele quer verificar seus livros de contabilidade. Chegou a me perguntar sobre o destino daqueles meus quinhentos mil dólares.

— Nossos quinhentos mil dólares, querida, foram bem apli­cados e em breve você saberá como. Amanhã enviarei meus livros a Alan, para que ele os examine pessoalmente. Posso ga­rantir que ele ficará muito impressionado.

— Espero que fique. Henry, para o nosso bem — disse Anne Aguardemos a opinião dele; você sabe o quanto confiei em Alan.

– Mas não em mim

- Oh. não. Henry, não quis dizer...

— Estou apenas provocando você. Por certo confia no seu próprio marido.

O choro que Anne sempre reprimira diante de Richard se avolumou dentro dela. Diante de Henry, ela não experimentou contê-lo.

- Espero que possa. Jamais precisei me preocupar com dinheiro, e agora me parece difícil enfrentar o problema. Sinto-me tão cansada e deprimida com esse bebê!

Imediatamente Henry mostrou-se apreensivo

– Eu não o ignoro, meu bem. Minha vontade é que você jamais se aborreça com questões financeiras; posso cuidar disso. Escute, por que não se deita mais cedo? Eu levo para você no quarto uma bandeja com um prato de sopa. Que tal? Enquanto você repousa, volto ao escritório e pego a documentação que Alan vai ver amanhã.

Anne aquiesceu. Depois que Henry saiu, porém, sentindo-se sem sono, sentou-se na cama com um livro de Sinclair Lewis. Henry levaria quinze minutos para chegar ao escritório, por isso ela esperou vinte minutos, e então discou o número do telefone dele. Deixou-o tocar por quase um minuto.

Vinte minutos mais tarde. Anne fez outra tentativa; ninguém atendeu ao chamado. Continuou tentando a cada vinte minutos, mas de novo ninguém estava presente para erguer o fone do gancho. O comentário de Henry sobre o depósito foi ecoando na sua cabeça de uma maneira áspera

Quando finalmente voltou para casa, após a meia-noite, Henry mostrou-se preocupado ao encontrar Anne sentada na cama, ainda lendo Sinclair Lewis.

— Não devia ter me esperado.

Ele deu-lhe um beijo caloroso. Anne pensou ter sentido cheiro de perfume – ou começava a se tornar desconfiada demais?

– Precisei me demorar mais do que tinha previsto porque não encontrei logo os documentos que Alan exigiria. A imbecil da minha secretária arquivou uma porção deles em gavetas erradas.

— Deve ser triste ficar sozinho no escritório durante a ma­drugada — observou Anne.

— Oh, se a gente tem um trabalho agradável a fazer, não é tão mau assim — comentou Henry, entrando debaixo das co­bertas e acomodando-se nas costas de Anne. — Pelo menos existe uma vantagem: o trabalho rende muito mais quando não há ne­nhum telefonema interrompendo a gente a toda hora.

Em poucos minutos ele adormeceu. Anne permaneceu acor­dada, decidida a levar avante o plano que formulara nessa tarde.

 

Na manhã seguinte, assim que Henry terminou de tomar o café e saiu para o trabalho — embora ela não soubesse mais ao certo onde Henry trabalhava —, Anne folheou o jornal Globe e fez um pequeno levantamento dos anúncios classificados. A se­guir, pegou o telefone e marcou um encontro que a levou à zona sul de Boston, poucos minutos antes do meio-dia. Os edifícios encardidos a escandalizaram. Nunca antes havia visitado o distrito sul da cidade, e, se não fossem os últimos acontecimentos, teria passado a vida inteira sem sequer tomar conhecimento da exis­tência de tais lugares.

Uma pequena escada de madeira juncada de palitos de fós­foro, tocos de cigarros e detritos conduzia a uma porta com janela de vidro fosco em que estava escrito em tinta preta: GLEN RICARDO, e, mais abaixo: Detetive particular (Registrado no Estado de Massachusetts). Anne bateu levemente.

— Entre, a porta está aberta — gritou uma voz grave e roufenha.

Anne entrou. O homem que estava com as pernas estiradas sobre a mesa ergueu a vista do que parecia ser uma revista mas­culina. A ponta de charuto quase lhe caiu da boca ao deparar com a figura de Anne. Era a primeira vez que um casaco de pele de vison adentrava seu escritório.

– Bom dia — disse ele, erguendo-se prontamente. — Meu nome é Glen Ricardo. — Inclinou-se sobre a mesa e estendeu a Anne a mão peluda e amarelada de nicotina. Ela a apertou, feliz por estar usando luvas. — Marcou uma entrevista? — perguntou Ricardo, sem na verdade dar importância ao fato de ela ter ou não marcado hora. Nunca estaria ocupado para um casaco de pele de vison.

– Sim, marquei.

– Ah, então deve ser a sra. Osborne Não quer tirar o casaco ?

— Prefiro ficar com ele — replicou Anne, sem ver um lugar em que Ricardo pudesse pendurá-lo. Provavelmente seria jogado na mesa.

— Claro, claro.

Anne observou Ricardo dissimuladamente, enquanto ele vol­tava a sentar-se e acendia outro charuto. Não se sentia incomodada com o terno verde-claro, com a gravata de cores mescladas ou o cabelo empastado de brilhantina. Perturbava-se apenas com o fato de que talvez tivesse sido melhor ter entrado em outro lugar.

— Qual é o problema? — indagou Ricardo, apontando um lápis já curto com um canivete de corte cego. As aparas caíam por toda parte, menos no cesto de papel. — Perdeu seu cãozinho, suas jóias ou seu marido?

— Em primeiro lugar, sr. Ricardo, quero que o senhor me garanta que será absolutamente discreto — começou Anne.

— Claro, claro, nisso a gente nem precisa falar — replicou Ricardo, sem desviar a atenção do lápis pequenino.

— Assim mesmo, eu estou falando — retrucou Anne.

— Claro, claro.

Se o homem dissesse “claro” mais uma vez, Anne seria capaz de gritar. Ela respirou fundo.

— Tenho recebido cartas anônimas que afirmam que meu marido mantém um caso amoroso com minha melhor amiga. Quero saber quem está me endereçando essas cartas e se as de­núncias são verdadeiras.

Anne sentiu uma enorme sensação de alívio ao formular em voz alta, pela primeira vez, seus temores. Ricardo olhou-a, impassível, como se incontáveis vezes tivesse ouvido esse tipo de revelação. Passou as mãos pelo longo cabelo negro, que, Anne notou, em nada se diferenciava da cor das unhas.

– Certo – anunciou- — O marido vai ser fácil. Mais difícil vai ser descobrir quem é o responsável pelas cartas. A senhora guardou as cartas, é claro!

– Apenas a última - respondeu Anne.

Glen Ricardo suspirou e, enfastiado, estendeu a mão por sobre a mesa. Com relutância, Anne tirou a carta de dentro da bolsa. Por um momento, parou, hesitante.

- Sei o que sente, sra. Osborne. mas não posso fazer o ser­viço com uma mão amarrada nas costas.

– Claro, sr. Ricardo, desculpe-me.

Anne não pôde acreditar que tivesse dito “claro”.

Antes de fazer qualquer comentário, Ricardo leu a carta inteira duas ou três vezes.

“ Todas elas foram datilografadas neste tipo de papel e enviadas neste tipo de envelope?

“ Sim, acho que sim — disse Anne. — Tanto quanto me lembro.

— Bom, quando receber a próxima, não se esqueça de...

– Tem tanta certeza assim de que receberei uma outra? – interrompeu-o

- Claro, portanto não se esqueça de guardá-la. Agora me fale com detalhes sobre seu marido. Tem uma fotografia dele?

— Sim.

De novo ela hesitou.

– Só quero olhar o rosto dele. Seria perda de tempo seguir o homem errado, não? – explicou Ricardo.

Anne abriu a bolsa e entregou ao detetive uma fotografia velha de Henry com o uniforme de tenente.

– Um homem simpático, o Sr. Osborne — disse ele. — Quando foi tirada esta foto?

– Se não me engano, há uns cinco anos. Não o conhecia na época em que estava no Exército.

Ricardo fez algumas perguntas sobre a rotina diária de Henry. Com surpresa, Anne constatou que em verdade conhecia muitís­simo pouco os hábitos de Henry ou mesmo seu passado.

– Isso é de pouca ajuda, sra. Osborne, mas vou ver o que posso fazer. Bem, cobro dez dólares por dia, mais despesas. Uma vez por semana eu lhe apresentarei um relatório por escrito. Duas semanas de pagamento adiantado, por favor.

De novo ele esticou a mão por sobre a mesa, dessa vez num gesto mais vivo.

Mais uma vez Anne abriu a bolsa, dela retirando duas notas novas de cem dólares, que entregou a Ricardo. Ele examinou as notas com uma atenção exagerada, como se não conseguisse iden­tificar o notável americano impresso nelas. Benjamin Franklin olhava serenamente para Ricardo, que evidentemente não o via há algum tempo. O detetive devolveu a Anne sessenta dólares em notas imundas de cinco dólares

— Vejo que trabalha aos domingos, sr. Ricardo — comen­tou Anne, satisfeita com sua aritmética mental.

— Claro — respondeu ele. — Esta mesma hora lhe con­vém, na próxima semana, sra. Osborne?

— Claro — tornou ela, saindo apressadamente para não ter que dar a mão ao homem sentado à escrivaninha.

 

William recebeu o relatório trimestral de seu depósito envia­do pelo Kane & Cabot, e, ao ler que Henry Osborne — Henry Osborne, ele repetiu o nome em voz alta, não acreditando no que lia — solicitara um empréstimo de quinhentos mil dólares para um investimento pessoal, teve certeza de que este dia seria pés­simo. Pela primeira vez, ao longo dos quatro anos na St. Paul’s School, William caiu para o segundo lugar num exame de mate­mática. Matthew Lester, que o venceu, perguntou-lhe se estava se sentindo bem.

Nessa noite, William telefonou para a residência de Alan Lloyd. O presidente do Kane & Cabot não se espantou ao ouvir sua voz, uma vez que Anne já lhe havia revelado o precário rela­cionamento entre o filho e Henry.

— William, meu rapaz, como tem passado? E como vão as coisas na St. Paul’s?

— Vai tudo bem por aqui, obrigado, senhor, mas não é por esse motivo que estou lhe telefonando.

“A sutileza de um caminhão Mack”, pensou Alan.

— Sim, eu imaginei que não podia ser — replicou Alan com frieza. — Em que lhe posso ser útil?

— Gostaria de vê-lo amanhã à tarde.

— William, amanhã é domingo!

— Sim, e como é o único dia em que posso sair da escola poderei encontrá-lo onde quiser e à hora que quiser. — William formulou a frase como se fizesse uma concessão. — Em hipótese alguma minha mãe deverá tomar conhecimento desse nosso en­contro.

— Bem, William... — começou Alan Lloyd.

A voz de William foi mais firme.

— É necessário lembrá-lo, senhor, de que o investimento do dinheiro do depósito na especulação comercial de meu pa­drasto, embora não seja ilegal, sem dúvida poderá ser conside­rado contrário à ética profissional.

Alan Lloyd permaneceu silencioso por alguns instantes, refletindo sobre a possibilidade de tranqüilizar o garoto pelo tele­fone. O garoto! Pensou também em fazer-lhe uma advertência, mas então já era tarde.

— Ótimo, William. Por que não almoça comigo no Hunt Club? Que tal às treze horas?

— Esperarei com ansiedade esse momento, senhor.

A ligação foi desfeita.

“Pelo menos o confronto será no meu terreno”, refletiu Alan Lloyd com certo alívio ao repor o fone no gancho, insul­tando Graham Bell por ter inventado o maldito aparelho.

Escolhera o Hunt Club porque não desejava que o encontro se desse num lugar extremamente privado. Quando William che­gou à sede do clube, a primeira coisa que pediu foi que o padri­nho lhe concedesse o prazer de uma partida de golfe após o almoço.

— Com grande prazer, meu rapaz — concordou Alan, e reservou o primeiro tee para as três horas em ponto.

Alan estava admirado de que William não tivesse discutido a proposta de Henry Osborne durante o almoço. Ao contrário, o rapaz conversou com inteligência sobre os pontos de vista do presidente Harding com respeito à reforma tarifária e sobre a incompetência de Charles G. Dawes como consultor financeiro do presidente. Alan estranhava que William, depois de ter ruminado o assunto durante toda a noite, tivesse desistido de discutir o empréstimo a Henry Osborne, mas dava continuidade ao en­contro sem querer admitir que houvesse mudado seu propósito. “Muito bem, se é desse modo que o garoto quer jogar”, refletiu Alan, “isso é ótimo.” Previa uma tarde tranqüila de golfe. Após um pequeno e agradável almoço, e mais da metade de uma gar­rafa de vinho — William restringiu-se a um só copo —, troca­ram de roupa no vestiário e encaminharam-se para o primeiro tee.

— O senhor ainda tem um handicap de nove pontos? — inquiriu William.

— Por aí, meu rapaz. Por quê?

— Quer apostar dez dólares por buraco?

Alan Lloyd titubeou, lembrando-se de que William era um bom golfista.

— Aceito.

Nada disseram ao atingir o primeiro buraco, em que Alan obteve quatro pontos, enquanto William alcançou cinco. Alan ganhou também o segundo e o terceiro sem esforço, o que lhe deu um pouco de tranqüilidade. Estava bastante satisfeito com o jogo. Quando chegaram ao quarto buraco, já tinham se distan­ciado quase um quilômetro da sede do clube. William esperou que Alan levantasse o taco.

– Em hipótese alguma o senhor emprestará quinhentos mil dólares de meu dinheiro a qualquer companhia ou pessoa associada a Henry Osborne.

Alan deu uma péssima tacada, atingindo em cheio o monte de areia. 0 único mérito desse golpe foi distanciá-lo de William, que dera um golpe vigoroso, e propiciar-lhe uns poucos minutos para refletir sobre como deveria se dirigir tanto a seu antagonista quanto à bola. Depois de ter errado mais três tacadas, voltou a encontrar William no gramado. Alan concedeu o buraco.

— William, você sabe que, como curador, tenho apenas um dos três votos. E deve também saber que você não conta com nenhum poder de decisão sobre o depósito, já que, por di­reito, só poderá controlar seu dinheiro quando completar vinte e um anos. Deve também estar ciente de que este assunto foi levantado inutilmente.

— Estou perfeitamente consciente das implicações legais, senhor, mas como as curadoras estão dormindo com Henry Os­borne. . .

Alan Lloyd deteve-se, assombrado.

— Não me diga que é a única pessoa de Boston a ignorar que Milly Preston anda tendo um caso amoroso com meu pa­drasto!

Alan Llovd continuou calado. William retomou a palavra.

— Quero a certeza de que seu voto estará a meu favor e de que usará todo o seu poder de influência para convencer mi­nha mãe a vetar a concessão do empréstimo, ainda que isso sig­nifique ir ao extremo de contar a ela a verdade sobre Milly Preston.

Alan deu um golpe com o taco e fez uma jogada ainda mais infeliz. William, por seu turno, lançou a bola para o meio da parte lisa do gramado. Na jogada seguinte, Alan arremessou a bola para dentro de uma moita, cuja existência ele não havia notado, e soltou um termo vulgar pela primeira vez em quarenta e três anos. Nesse momento, ele desapareceu à procura da bola.

– O que me pede é um pouco demais — disse Alan, en­contrando-se com William no quinto gramado.

— Não é nada comparado ao que farei, caso não conte com seu apoio, senhor.

— Creio que seu pai reprovaria ameaças, William — retru­cou Alan, observando a bola de William fazer um hole a quatro metros e meio de distância.

— Meu pai teria reprovado unicamente a presença de Os­borne.

Alan Lloyd deu dois arremessos a um metro do buraco.

— De qualquer modo, o senhor não ignora a cláusula inse­rida por meu pai na escritura, segundo a qual o dinheiro inves­tido pelo depósito permanece uma questão particular, e o bene­ficiário jamais deveria saber do envolvimento pessoal da família Kane. Essa norma jamais foi quebrada por ele, enquanto ban­queiro. Dessa forma, garantiu sempre a inexistência de conflitos entre os interesses do banco e os do depósito da família.

— Bom, sua mãe naturalmente acha que pode ser feita uma exceção para um membro da família.

— Henry Osborne não é um membro da minha família, e, quando eu controlar o depósito, tal qual meu pai, jamais quebra­rei esta norma.

— William, você viverá o bastante para se arrepender de uma posição tão rígida como essa.

— Creio que não, senhor.

— Procure considerar por um momento o efeito que essas medidas terão sobre sua mãe — ponderou Alan.

— Minha mãe já perdeu quinhentos mil dólares de seu pró­prio dinheiro, senhor. Não concorda que é o bastante para um único marido? Por que também eu terei que perder quinhentos mil dólares?

— William, não sabemos se será esse o caso. O investimento poderá ter um excelente retorno. Até agora ainda não tive a opor­tunidade de examinar com cuidado os livros contábeis de Henry.

William abalou-se ao ouvir Alan Lloyd chamar seu padrasto de Henry.

— Posso garantir, senhor, que ele queimou o dinheiro de minha mãe. Para ser preciso, restam-lhe trinta e três mil, qua­trocentos e doze dólares. Sugiro-lhe que examine superficialmente os livros de Osborne e investigue minuciosamente a sua vida pregressa, o histórico de sua firma e de seus associados. Isso, para não mencionar o fato de que ele joga — e joga pesado.

Do oitavo tee, Alan lançou a bola para dentro de um lago que estava à frente deles, um lago que até mesmo os jogadores mais inexperientes procuravam evitar. Concedeu o buraco.

– Como obteve essas informações sobre Henry? — indagou Alan ciente de que os escritórios de Thomas Cohen as ha­viam fornecido.

– Prefiro manter isso em segredo, senhor.

Alan também guardou seu próprio segredo. Achou que mais tarde precisaria desse ás, que conservaria dentro da manga, para lograr representar um papel na vida de William.

– Se tudo o que você alega se revelar exato, William, evidentemente aconselharei sua mãe a vetar quaisquer investimentos na firma de Henry, assim como será meu dever colocar tudo às claras também com ele.

— Assim seja, senhor.

Alan deu um golpe mais satisfatório, mas pressentiu que estava perdendo. William prosseguiu.

— Talvez tenha interesse em saber que Osborne precisa dos meus quinhentos mil dólares não para o contrato com o hos­pital, mas para liquidar uma antiga dívida em Chicago. Acredito que isso não era do seu conhecimento, senhor.

Alan não respondeu; certamente não era do seu conheci­mento. William ganhou a jogada.

Quando alcançaram o décimo oitavo buraco, Alan havia per­dido oito e estava na iminência de completar a pior partida de que se lembrava. Esperava-o um putt de um metro e meio, que pelo menos lhe permitiria empatar com William no último buraco.

— Tem mais alguma bomba, William? — inquiriu Alan.

— Antes ou depois do putt, senhor?

Alan riu, decidindo participar da pilhéria.

– Antes do putt, William — respondeu, baixando o taco.    

Osborne não obterá a concessão do contrato do hospital. Os interessados comentam que ele está subornando funcionários subalternos da administração pública. Nada disso virá a público, mas prevenindo repercussões posteriores, a firma dele foi excluída da lista final. O contrato em verdade será concedido à Kirkbride & Carter. Esta última informação, senhor, é confidencial. Os próprios Kirkbride & Carter só tomarão conhecimento disso uma semana depois da próxima terça-feira. Portanto, sou obri­gado a lhe pedir sigilo absoluto.

Alan perdeu o putt. William fez um hole, encaminhou-se para o presidente e apertou-lhe cordialmente a mão.

— Obrigado pela partida, senhor. Creio que me deve no­venta dólares.

Alan abriu a carteira, tirou uma nota de cem dólares e en­tregou-a a William.

— Na minha opinião, já é hora de você parar de me tratar por “senhor”. Como sabe, meu nome é Alan.

— Obrigado, Alan.

William devolveu-lhe dez dólares.

 

Na manhã de segunda-feira, Alan Lloyd chegou ao banco com um pouco mais de trabalho a realizar do que havia planejado antes do fim de semana. Encarregou cinco chefes de departa­mento de verificar imediatamente a veracidade das asserções de William. Receava ter antecipado os resultados das investigações, e, devido à situação de Anne no banco, tomou todas as medidas necessárias para que nenhum outro departamento ficasse a par das tarefas daqueles cinco. Instruíra cada chefe de uma maneira inequívoca; todos os relatórios seriam estritamente confidenciais e deveriam ser entregues em suas mãos. Na quarta-feira da mesma semana, alguns relatórios preliminares já haviam chegado à sua mesa. Ao que parecia, concordavam com as afirmações de William, embora os cinco chefes tivessem pedido uma ampliação de prazo com o fito de confirmar alguns detalhes. Alan preferiu nada co­municar a Anne, poupando-lhe aborrecimentos, antes de obter provas concretas. Decidira que o melhor a fazer nesse ínterim seria desfrutar uma ceia que os Osbornes estavam oferecendo nessa noite e aproveitar a ocasião para aconselhar Anne a suspen­der qualquer decisão imediata sobre o empréstimo.

Ao chegar ao jantar, viu com espanto o estado de abati­mento em que ela se encontrava, o que o levou a tratar da questão com uma cautela ainda maior. Tiveram uma única e breve opor­tunidade de ficar a sós. Lamentou, de si para si, que ela estivesse grávida justamente nas presentes circunstâncias.

Anne aproximou-se para recebê-lo e sorriu.

— Foi muito gentil em ter aceitado nosso convite, Alan, porque sei que o banco o ocupa demais.

— Eu não poderia faltar a um jantar oferecido por você, querida; suas reuniões ainda são como um brinde à cidade de Boston.

— Pergunto-me se alguma vez você disse uma inconveniên­cia – e ela sorriu.

– Quase sempre. Anne, você teve tempo de voltar a pensar na questão do empréstimo? — inquiriu, simulando naturalidade.

– Não, infelizmente não tive. Houve tantas outras coisas com que me preocupar, Alan! O que me diz da contabilidade de Henry?

– Está em ordem, mas examinamos apenas os dados refe­rentes a um ano, de modo que pretendo enviar meus contadores à firma para um novo exame. Essa norma bancária é de praxe e se aplica a todos os clientes que operam há menos de três anos. Estou certo de que Henry compreenderá nossa posição e concor­dará conosco.

— Anne, minha cara, sua reunião está ótima — disse alguém de voz sonora por detrás do ombro de Alan, que não reconheceu a fisionomia do convidado. Provavelmente um político amigo de Henry. — Como vai passando a futura mãezinha? — perguntou o desconhecido, de voz efusiva.

Alan retirou-se discretamente, confiando ter ganho algum tempo em favor do banco. Havia diversos políticos na reunião, a maioria da Prefeitura, e alguns do Congresso, o que o fez pensar que William poderia estar equivocado em relação ao grande con­trato. O banco, entretanto, não precisaria investigá-lo: a Prefei­tura divulgaria o resultado na semana seguinte. Despediu-se dos anfitriões, pegou o sobretudo no vestiário e saiu.

— Até quarta que vem — disse para si mesmo em voz alta, como se quisesse restituir a si mesmo a confiança, enquanto descia a Chestnut Street em direção à sua casa.

No decorrer do jantar, Anne observava o comportamento de Henry toda vez que ele se aproximava de Milly Preston. Nada por certo evidenciava qualquer relação suspeita; com efeito, Henry praticamente não saía de perto de John Preston. Anne teve o pressentimento de que se enganara a respeito do marido, chegando mesmo a pensar em cancelar a entrevista com Glen Ricardo no dia seguinte. A reunião terminou duas horas depois do previsto; e ela esperava que isso fosse sinal de que todos a tinham apreciado.

– Excelente jantar, Anne, obrigado por ter nos convidado.

Era a voz sonora, cujo dono saía por último. Ela não conseguia lembrar-se do nome dele, alguém ligado à Câmara Municipal. O homem desceu para a calçada e desapareceu.

Anne subiu às pressas, desfazendo-se do vestido antes de chegar ao quarto de dormir e prometendo a si mesma não ofe­recer outro jantar antes do nascimento da criança, que se daria dali a dez semanas.

Henry já estava se despindo.

— Meu bem, teve oportunidade de conversar com Alan?

— Tive — respondeu Anne. — Ele disse que os livros estão em ordem, mas que, uma vez que a companhia apresentou ape­nas os dados referentes a um ano, será necessário um novo exame. Isso parece ser um procedimento normal do banco.

— Que se dane o procedimento normal do banco! Então você não percebe que William está por trás disso? Ele pretende sustar o empréstimo, Anne.

— Como pode afirmar isso? Alan nem sequer mencionou William.

— Não? — indagou Henry, elevando a voz. — Ele nem se importou de dizer que ele e William almoçaram juntos no clube de golfe, no último domingo, enquanto eu e você ficáva­mos sozinhos aqui?

— O quê? — admirou-se ela. — Não acredito. William jamais viria a Boston e partiria sem me fazer uma visita. Henry, você deve estar enganado.

— Minha querida, metade da cidade estava presente, e eu não sou capaz de acreditar que William tenha viajado oitenta quilômetros só para jogar uma partida de golfe com Alan Lloyd. Anne, preste atenção, preciso desse empréstimo, do contrário serei recusado como licitante não-habilitado para o contrato municipal. Algum dia e, nessas circunstâncias, espero que logo, você terá de decidir se confia em William ou em mim. Tenho de estar com o dinheiro nas mãos dentro de uma semana a partir de amanhã, oito dias a partir de hoje, porque, se não conseguir provar à Prefeitura que disponho dessa quantia, serei desqualificado. Des­qualificado porque William até agora não aprovou nosso casa­mento. Por favor, Anne, não quer telefonai amanhã para William e pedir-lhe que me ceda esse dinheiro?

Seu tom colérico ribombou na cabeça de Anne, deixando-a fraca e atordoada.

— Não, amanhã não, Henry. Não pode esperar até sexta? Tenho tantas coisas a fazer amanhã!

Henry esforçou-se por se recompor e aproximou-se de Anne, que observava o corpo nu ante o espelho. Deslizou a mão pela barriga saliente.

– Quero que esse camaradinha tenha a mesma sorte que teve William.

 

No dia seguinte Anne disse a si mesma, centenas de vezes, que não ia ver Glen Ricardo, mas pouco antes do meio-dia cha­mou um táxi.

Subiu os degraus de madeira que rangiam, receosa do que o detetive poderia lhe informar. Ainda havia tempo de desistir. Deteve-se, vacilante, e logo depois bateu calmamente à porta.

— Entre.

Anne abriu a porta.

– Ah, sra. Osborne, que bom revê-la. Sente-se.

Ela sentou-se.

— Receio não ter uma boa notícia para lhe dar — disse Glen Ricardo, passando a mão pelo cabelo.

O coração de Anne desfaleceu.

— O sr. Osborne não foi visto com a sra. Preston ou com qualquer outra mulher nestes últimos sete dias.

— Mas o senhor disse que a notícia não era boa — disse Anne.

— Claro, sra. Osborne. Presumi que a senhora procurava justificar um divórcio. Normalmente as esposas indignadas não vêm até mim esperando que eu prove que seus maridos são ino­centes.

— Não, não — replicou Anne, cheia de alívio. — Foi a melhor notícia que recebi nestas últimas semanas.

— Ótimo — comentou o sr. Ricardo, um pouco surpreso. — Tomara que a próxima semana também não revele nada.

— Oh, pode parar suas investigações já, sr. Ricardo. Tenho certeza de que na segunda semana o senhor não encontrará nada de significativo.

- Sra. Osborne, não creio que isso seja sensato. Tirar uma conclusão definitiva com base numa única semana de observação seria, no mínimo, precipitado.

— Concordo, se o senhor acredita que a continuidade das investigações o levará a uma conclusão mais segura. Quanto a mim, estou certa de que não descobrirá mais nada na próxima semana.

– De qualquer maneira — prosseguiu Glen Ricardo, soltando uma baforada do charuto, que parecia maior e tinha um cheiro mais agradável que o da semana anterior —, a senhora já me pagou as duas semanas.

— E o que me diz sobre as cartas? — indagou Anne, de repente lembrando-se delas. — Imagino que tenham vindo de uma pessoa invejosa do sucesso do meu marido.

— Bom, como salientei na semana passada, sra. Osborne, nunca é fácil descobrir um remetente de cartas anônimas. Entre­tanto, foi possível localizar a papelaria onde o envelope e o papel foram comprados, já que são de qualidade rara, mas por ora não tenho nada para informar-lhe sobre essa frente de operações. Re­pito: na próxima semana é provável que consiga alguns indícios. Recebeu alguma outra carta nestes dias?

— Não, nenhuma.

— Ótimo, tudo indica que haverá melhoras. Esperemos, para a sua felicidade, que nosso encontro da semana que vem seja o último.

— Sim — replicou Anne, com satisfação —, tomara que seja. Na próxima terça-feira acertamos as despesas?

— Claro, claro.

Anne havia quase se esquecido da frase, mas dessa vez achou graça e riu. A caminho de casa, resolveu que Henry merecia o empréstimo de quinhentos mil dólares e a oportunidade de mos­trar que William e Alan estavam errados. Ainda não se tinha recobrado da notícia de que William fora a Boston sem sequer avisá-la; talvez Henry tivesse razão em afirmar que William ten­tava uma manobra para impedir o empréstimo.

Nessa noite, Henry ouviu com prazer a decisão de Anne com respeito ao empréstimo, e, na manhã seguinte, apresentou-lhe os documentos em que ela poria sua assinatura. Anne não pôde deixar de pensar que os papéis havia algum tempo se acha­vam preparados, principalmente porque já traziam a assinatura de Milly Preston. Ou de novo exagerava na sua desconfiança? Afastou o pensamento e assinou-os rapidamente.

Quando Alan Lloyd telefonou na manhã da segunda-feira subseqüente, encontrou Anne já decidida.

— Dê-me a oportunidade de pelo menos segurar o processo até terça-feira. Até lá saberemos quem receberá a concessão do contrato.

— Não, Alan, a decisão tem de ser tomada agora. Henry precisa do dinheiro com urgência, caso contrário não conseguirá provar à Prefeitura que tem recurso financeiro suficiente para executar o contrato Ademais, como você já tem as assinaturas das duas curadores, a responsabilidade escapa as suas mãos.

– O banco poderá garantir a situação de Henry sem efetuar a transferência do dinheiro. Estou certo de que a Prefeitura acei­taria esse recurso. De qualquer modo, ainda não tive tempo de reconferir a escrituração da companhia.

– Mas você arranjou tempo para almoçar com William no domingo retrasado, e nem sequer me informou disso.

Houve um breve silêncio do outro lado da linha.

– Anne, eu...

– Não me diga que não teve a oportunidade de fazê-lo. Na quarta-feira veio ao jantar aqui, e nada o impedia de falar. Preferiu omitir o fato, e também preferiu me aconselhar a adiar a decisão sobre o empréstimo de Henry.

– Sinto muito, Anne. Compreendo a maneira como encara o fato e por que motivo está contrariada, mas a verdade é que agi com razão, acredite em mim. Posso fazer-lhe uma visita para explicar lhe tudo?

— Não, Alan, não pode. Vocês dois uniram-se contra meu marido. Não querem dar a ele nem a oportunidade de se defender. Pois bem, eu mesma vou dar essa oportunidade.

Desligou o telefone, satisfeita consigo mesma, ciente de que fora leal com Henry de uma tal forma que reparava a sua des­confiança inicial.

Alan Lloyd tornou a ligar, mas Anne pediu à criada que dissesse que ela estaria fora o resto do dia. Quando Henry regres­sou a casa à noite, deliciou-se com o tratamento que Anne dera a Alan.

- Tudo vai dar certo, amor, você verá. Na terça-feira de manhã o contrato será meu, e então você poderá dar um beijo em Alan e fazer as pazes com ele. Até lá, porém, é melhor ficar bem longe dele. Se você estiver disposta, na terça-feira podere­mos comemorar com um almoço no Ritz e fazer um aceno com a mão para ele do outro lado do salão.

Anne sorriu e concordou. Não se esqueceu, entretanto, de que se comprometera a falar com o detetive pela última vez ao meio-dia de terça-feira. Naturalmente haveria tempo de sobra para chegar ao Ritz as treze horas e de uma só vez comemorar duas vitórias.

Repetidas vezes Alan tentou entrar em contato com Anne, mas a criada dava-lhe sempre a mesma desculpa. Uma vez que os documentos haviam sido assinados pelas duas curadoras, ele não poderia sustar o pagamento por mais de vinte e quatro horas. A redação era característica de um contrato legal elaborado por Richard Kane; não havia brechas por onde se pudesse escapulir. Depois que um portador especialmente designado saiu do banco com um cheque de quinhentos mil dólares, na tarde de terça-feira Alan sentou-se e escreveu uma longa carta a William, em que relatava todos os acontecimentos que haviam culminado na transferência do dinheiro, retendo apenas os dados não-confirmados que os relatórios apresentavam. Enviou uma cópia da carta a cada membro da diretoria, cônscio de que, embora se tivesse com portado com a máxima circunspecção, expunha-se a prováveis acusações de encobrimento de informações.

 

William recebeu a carta de Alan Lloyd na manhã de terça-feira, na St. Paul’s School, enquanto tomava o café na companhia de Matthew.

 

O café na manhã de terça-feira em Beacon Hill constava dos habituais ovos com bacon, torradas quentes, mingau de aveia frio e um bule de café recém-coado e fumegante. Henry estava ao mesmo tempo nervoso e despreocupado. Repreendera a criada e gracejara com um funcionário subalterno do governo, que lhe telefonara dizendo que o nome da companhia escolhida na concorrência seria afixado no painel de informações da Prefeitura, por volta das dez horas. Anne mostrava-se algo ansiosa com o próximo encontro com Glen Ricardo. Passava os olhos pela Vogue, fingindo não ter notado que as mãos de Henry, segurando o Globe, estavam trêmulas.

— O que vai fazer agora de manhã? — indagou Henry, experimentando entabular uma conversa.

— Oh, praticamente nada, antes do nosso almoço de come­moração. Terá condições de construir a ala infantil em memória de Richard? — perguntou.

— Não, meu bem, não em memória de Richard. A obra será minha. Pois então que seja em sua honra: “Ala Sra. Henry Osborne” — acrescentou ele, solene.

— É uma idéia excelente — comentou Anne, depondo a revista e sorrindo ao marido. — Mas não me permita beber champanhe demais durante o almoço, porque marquei um checkup com o dr. MacKenzie esta tarde, e duvido que ele aprove uma bebedeira nove semanas antes do parto. Quando terá a confir­marão da concessão do contrato?

– Agora mesmo — respondeu Henry. — O secretario com quem acabei de falar estava cem por cento confiante, mas o anún­cio oficial será divulgado às dez horas.

– A primeira coisa a fazer, Henry, é telefonar a Alan e contar-lhe a boa notícia. Começo a me sentir culpada pela ma­neira como o tratei na semana passada.

– Não há motivos para se sentir culpada. Ele não se preo­cupou em informá-la sobre as manobras de William.

— Não, mas depois quis me explicar tudo, Henry, e eu nem sequer lhe dei a chance de me contar sua versão da história.

— Está bem, está bem, como você quiser. Se isso a deixa feliz, telefonarei às dez e cinco, e depois você poderá dizer a William que, graças a mim, ele lucrará mais um milhão de dó­lares.

Consultou o relógio.

— Acho melhor ir andando. Deseje-me sorte.

— Pensei que não precisasse mais de sorte — disse Anne.

— Não preciso, não preciso. Mera força de expressão. Vejo-a no Ritz às treze horas. — Beijou-a na testa. — À noite você poderá rir de Alan, de William, dos contratos, e considerá-los todos problemas do passado, acredite em mim. Adeus, querida.

— Espero que tenha razão, Henry.

 

A refeição matinal permanecia intocada diante de Alan Lloyd. Enquanto lia as páginas de economia do Globe, ele notou um pequeno parágrafo na coluna da direita. A Prefeitura anunciaria às dez horas da manhã a companhia ganhadora do contrato com o hospital, no valor de cinco milhões de dólares.

Já havia decidido que linha de procedimento tomaria, caso Henry perdesse o contrato e as denúncias de William se compro­vassem. Faria exatamente o que Richard teria feito ao se defron­tar com uma mesma situação embaraçosa, agindo exclusivamente em defesa dos interesses do banco. Os relatórios recentes sobre a situação financeira pessoal de Henry o haviam deixado extre­mamente abalado. Sem dúvida, Henry era um jogador inveterado, e o destino dos quinhentos mil dólares que teriam sido aplicados em sua firma permanecia ignorado. Alan Lloyd tomou o e laranja e não tocou no resto da refeição; depois de apre­sentar suas desculpas à governanta, saiu para o banco. O dia estava agradável.

— William, quer jogar uma partida de tênis esta tarde? — Matthew Lester postara-se ao lado de William, que lia pela segunda vez a carta enviada por Alan Lloyd.

— O que foi que você disse?

— Está ficando surdo ou virou um adolescente caduco? Não quer perder feio de mim na quadra de tênis esta tarde?

— Não, Matthew, não estarei aqui à tarde. Tenho coisas mais importantes a fazer.

— Naturalmente, meu velho camarada, esqueci que você precisa fazer mais uma de suas misteriosas visitas à Casa Branca. Sei que o presidente irá nomear um novo assessor de economia, e você é o homem indicado para ocupar o lugar daquele imbecil posudo, Charles G. Dawes. Diga-lhe que aceita o cargo, desde que Matthew Lester seja nomeado procurador-geral do governo.

William não lhe respondeu.

— Está certo, a piada é fraca, mas ao menos merece um comentário — disse Matthew, sentando-se ao lado de William e examinando a fisionomia do amigo. — Os ovos fizeram-lhe mal, não foi? Até parece que foram feitos num campo de prisioneiros de guerra da Rússia.

— Matthew, vou precisar da sua ajuda — disse William, repondo a carta de Alan dentro do envelope.

— Recebeu uma carta da minha irmã, informando-o de que ela o aceita como substituto de Rodolfo Valentino?

William levantou-se.

— Matthew, chega de brincadeira. Se o banco do seu pai tivesse sido roubado, ficaria aqui sentado, fazendo piadinhas?

A expressão de William era inequivocamente séria. Matthew mudou o tom da conversa.

— Não, não ficaria.

— Pois então vamos embora daqui. No caminho explico-lhe tudo.

 

Anne deixou Beacon Hill pouco depois das dez horas com o propósito de fazer algumas compras antes de ir ao último encontro com Glen Ricardo. O telefone tocou quando ela já descia a Chestnut Street. A criada, que atendeu, olhou pela janela e concluiu que a patroa estava longe demais para ser chamada de volta. Se Anne tivesse atendido ao telefone, teria sido informada da decisão final da Prefeitura sobre a questão do contrato, e não teria saído para escolher meias de seda e um novo perfume. Che­gou ao escritório de Glen Ricardo minutos depois do meio-dia, com a esperança de que o aroma do perfume neutralizasse o fedor da fumaça do charuto.

— Espero não ter me atrasado muito, sr. Ricardo — co­meçou ela animadamente.

— Sente-se, sra. Osborne.

Ricardo não se achava particularmente animado, mas, pensou Anne, esse era o seu estado habitual. Ela observou então que ele não fumava a marca de charuto costumeira.

Glen Ricardo abriu um elegante fichário marrom, o único objeto novo visível no escritório, e dele retirou alguns papéis.

— Podemos começar pelas cartas anônimas, sra. Osborne?

Anne não gostou nada do tom da voz dele nem da palavra “começar”.

— Como queira — esforçou-se por dizer.

— Foram-lhe enviadas por uma certa sra. Ruby Flowers.

— Quem? Por quê? — indagou, ansiosa por uma resposta que não desejava ouvir.

— Desconfio de que um dos motivos possíveis resida no fato de que a sra. Flowers abriu um processo contra seu marido.

— Bem, isso explica todo o mistério — retrucou Anne. — Ela quer se vingar. Quanto Henry deve a essa senhora?

— Ela não alega dívida, sra. Osborne.

— O que alega, então?

Glen Ricardo levantou-se da cadeira como se esse movimento requeresse toda a forçados braços. Foi à janela e olhou para fora, observando uma a uma das pessoas que se movimentavam na apinhada enseada de Boston.

— Ela abriu um processo contra ele alegando quebra de compromisso, sra. Osborne.

— Oh, não!

— Ao que parece, estavam com casamento marcado na época em que o sr. Osborne a conheceu, quando então, sem nenhum motivo aparente, ele rompeu o noivado.

– Mulher interesseira. Provavelmente queria o dinheiro de Henry.

— Não, não acredito nisso. A sra. Flowers já é rica. Não pertence à sua classe, claro, mas é bastante rica também. O marido, já falecido, possuía uma fábrica de garrafas de refrigerantes e deixou-a em boa situação financeira.

— O marido falecido... Que idade tem ela?

O detetive voltou à escrivaninha e virou uma ou duas folhas do fichário antes de descer o dedão por elas. A unha encardida deteve-se.

— Vai fazer cinqüenta e três anos.

— Oh, Deus do céu! — exclamou. — Pobre mulher! Deve me odiar.

— Receio que sim, sra. Osborne, mas isso não nos ajudará. Agora devo falar sobre as outras atividades do seu marido.

O dedo amarelado de nicotina virou outras folhas.

Anne começou a sentir-se indisposta. Por que tinha vindo? Não precisaria ter tomado conhecimento desses fatos. Não queria saber deles. Por que não desistira na semana anterior? Por que não se erguia da cadeira e ia embora? Como seria bom se Richard estivesse ao seu lado! Ele saberia exatamente como lidar com toda essa situação. Anne viu-se incapaz de esboçar um movimento, paralisada pelo interesse no conteúdo do novo e elegante fichário de Glen Ricardo.

— Na semana passada, em duas ocasiões, o sr. Osborne passou três horas na companhia da sra. Preston.

— Isso nada prova — começou Anne, desesperada. — Sei que discutiram um importante documento financeiro.

— Num pequeno hotel na La Salle Street.

Anne não ousou interromper mais o detetive.

— Nessas duas ocasiões, foram vistos entrando no hotel de mãos dadas, cochichando e rindo. Isso não é definitivo, claro, mas tiramos fotografias dos dois juntos, entrando no hotel e saindo dele.

— Destrua as fotos — disse Anne calmamente.

Glen Ricardo pestanejou.

— Como queira, sra. Osborne. Receio que haja mais... Investigações posteriores comprovaram que o sr. Osborne jamais estudou em Harvard nem foi oficial das Forças Armadas america­nas. Em Harvard havia um Henry Osborne com um metro e sessenta e quatro de altura, ruivo e nascido no Alabama. Foi morto no Maine em 1917. Descobrimos também que seu marido é bem mais jovem do que afirma ser e que o verdadeiro nome dele é Vittorio Togna, tendo servido...

– Não quero ouvir mais nada! — explodiu Anne. As lágrimas desciam-lhe pelas faces. — Não quero ouvir mais nada!

– Claro, sra. Osborne, eu compreendo. Lamento que mi­nhas informações lhe causem sofrimento. Às vezes, no meu tra­balho...

– Obrigada, sr. Ricardo — cortou ela, tentando controlar-se. –Sou-lhe grata por tudo o que fez. Quanto lhe devo?

– Bom, como a senhora me pagou adiantado duas semanas, restam as despesas, que ficaram em setenta e três dólares.

Anne entregou-lhe uma nota de cem dólares e ergueu-se da cadeira.

— Espere o troco, sra. Osborne.

Ela balançou a cabeça, e com a mão fez um gesto de indi­ferença.

— Sra. Osborne, está se sentindo bem? Parece-me um pouco pálida. Não quer um copo d’água ou alguma outra coisa?

— Estou bem — mentiu ela.

— Permita-me levá-la de carro para casa.

— Não, obrigada, sr. Ricardo, estou em condições de ir sozi­nha. — Voltou-se antes de sair e sorriu. — Foi muito gentil em oferecer-me ajuda.

Glen Ricardo fechou suavemente a porta, andou com passos pesados até a janela, mordeu a ponta do último charuto, cuspiu-a e amaldiçoou a profissão.

 

Anne parou no alto da escada e agarrou-se ao corrimão, na iminência de perder os sentidos. O bebê deu um chute dentro dela, provocando-lhe náusea. Ela entrou num táxi que estava esta­cionado na esquina do quarteirão e, encolhendo-se no banco tra­seiro, rompeu em prantos, sem saber o que fazer. Tão logo saltou em Red House, subiu sem demora ao quarto de dormir, para não ser vista chorando pelos empregados. Quando entrou no quarto, o telefone tocou. Pegou o fone, mais por hábito que por curiosidade de saber quem chamava.

— Por gentileza, queria falar com a sra. Osborne.

Ela reconheceu a voz entrecortada e pesarosa de Alan.

– Alô, Alan. É Anne quem fala.

– Anne, minha querida, fiquei muito sentido ao saber da notícia hoje de manhã.

— Como soube, Alan? Como foi que soube? Quem lhe contou?

— Ligaram-me da Prefeitura, fornecendo-me detalhes, logo depois das dez horas. Liguei para sua casa, mas sua criada me disse que você havia saído para fazer compras.

— Oh, meu Deus! — exclamou. — Eu tinha me esquecido do contrato. — Ela se sentou, respirando com dificuldade.

— Está passando bem, Anne?

— Sim, estou bem — respondeu, tentando inutilmente es­conder o soluço que a impedia de falar. — O que disse a Prefei­tura?

— O contrato do hospital foi concedido à firma Kirkbrid & Carter. Ao que parece, Henry não estava nem entre os três primeiros favoritos. Tentei me comunicar com ele a manhã toda, mas Henry saiu do escritório depois das dez e desde então não voltou. Anne, por acaso você sabe onde ele está?

— Não, não faço idéia.

— Minha querida, quer que eu vá até aí? — perguntou Alan. – Não demoraria mais que alguns minutos.

— Não, Alan, obrigada. — Ela interrompeu-se, arquejando. — Por favor, perdoe-me por tê-lo destratado. Se Richard ain­da estivesse vivo, jamais me perdoaria.

— Anne, não seja tola. Nossa amizade veio se consolidando, em tantos anos que um incidente tão bobo quanto este jamais conseguiria abalá-la.

O tom amável com que falou predispôs Anne a romper em prantos mais uma vez. Titubeando, ela se pôs de pé.

— Preciso desligar, Alan. Há alguém na porta da frente. Deve ser Henry.

— Cuide-se, Anne, e não se aborreça com o que aconteceu hoje. Enquanto eu for presidente, o banco jamais deixará de apoiá-la. Não hesite em me chamar, caso venha a precisar de mim.

Anne pôs o aparelho no gancho, sentindo o barulho surdo ecoar em seus ouvidos. Fez um esforço espantoso para respirar. Tombou no piso, e, nisso, viu-se esmagada pela sensação de uma poderosa contração que há muito tempo não sentia.

Poucos instantes depois, a criada bateu de leve à porta. Abriu-a e espiou. William estava junto da criada. Desde que a mãe se casara com Henry Osborne ele não entrava no quarto. Ambos precipitaram-se sobre Anne, que tremia convulsivamente, incapa­citada de notar-lhes a presença. Gotículas de espuma salpicavam-lhe o lábio superior. Segundos depois, o acesso havia passado. Anne, prostrada, gemia fracamente.

— Mamãe — chamou-a William com insistência. — O que está sentindo?

Anne ergueu as pálpebras e, fora de si, fitou o filho.

— Richard. Graças a Deus você veio. Preciso de você.

— Mãe, sou William.

As pálpebras de Anne tremeram.

— Estou perdendo as forças, Richard. Tenho de pagar pelos meus erros. Perdoe-me por...

Sua voz transformou-se em gemido quando ela se viu assal­tada por nova e intensa contração.

— O que está acontecendo? — perguntou William, desnor­teado.

— Acho que é o bebê que está vindo — disse a criada —, mas se esperava para daqui a umas semanas.

— Telefone já para o dr. MacKenzie — ordenou William à criada, correndo para a porta do quarto. — Matthew — gritou —, suba aqui depressa!

Matthew subiu a escada, saltando os degraus, e juntou-se a William.

— Ajude-me a levar mamãe para o carro — disse. Matthew ajoelhou-se. Os dois meninos ergueram o corpo de Anne e o levaram cuidadosamente para dentro do carro. Ela ge­mia e arfava, tomada por uma dor insuportável. William voltou e arrancou o fone da mão da criada, enquanto Matthew o espe­rava no carro.

— Dr. MacKenzie?

— Sim, quem fala?

— Meu nome é William Kane. O senhor não me conhece.

— Como não o conheço, meu rapaz? Eu ajudei o seu nasci­mento. O que posso fazer por você?

– Acho que minha mãe está para ter o bebê. Vou levá-la ao hospital imediatamente. Estarei aí em cinco minutos.

O tom de voz do dr. MacKenzie mudou.

– Está bem, William, não se preocupe. Estarei esperando por você. Quando chegar, tudo ficará bem.

– Obrigado, senhor — William vacilou. — Ela teve uma espécie de ataque. Isso é normal?

As palavras de William gelaram o médico. Ele também vacilou.

– Bem, não é exatamente normal. Mas ela ficará boa quando tiver o bebê. Venha o mais rápido que puder.

William pôs o fone no gancho, correu para fora e pulou dentro do Rolls-Royce.

Dirigiu aos trancos e barrancos, sempre na primeira marcha, sem parar nos sinais fechados, até chegarem ao hospital. Os dois rapazes carregaram Anne, e uma enfermeira, que apareceu com uma maca de rodas, guiou-os à maternidade. O dr. MacKenzie os aguardava em frente à sala de parto. Encarregou-se da mãe e pe­diu-lhes que esperassem do lado de fora.

Os dois rapazes sentaram-se em silêncio no pequeno banco e esperaram. Choro e gritos agudos e assustadores, como nunca tinham ouvido, escaparam da sala de parto, seguidos de um silêncio absoluto ainda mais assustador. Pela primeira vez em sua; vida, William sentiu-se completamente atarantado. Os dois fica­ram ali sentados por mais de uma hora, sem trocar uma palavra. Finalmente o dr. MacKenzie, visivelmente cansado, saiu da sala. Os dois rapazes levantaram-se, e o médico encarou Matthew.

— William?

— Não, senhor, sou Matthew Lester. William é ele.

O médico olhou para William, pousando a mão em seu ombro.

— William, sinto muito... Sua mãe acaba de falecer e... a criança, uma menininha, também morreu.

As pernas de William amoleceram, e ele desabou sobre o banco.

— Fizemos o impossível para salvá-las, mas não houve jeito. — Balançou a cabeça, abatido. — Anne não quis me ouvir, in­sistiu em ter o bebê. Se tivesse ouvido meus conselhos, isso não teria acontecido.

William permaneceu sentado, emudecido, atordoado pelo golpes das palavras do médico.

— Como é que ela foi morrer? — murmurou. — Como que o senhor foi deixá-la morrer?

O médico sentou-se entre os dois rapazes.

— Ela não quis me ouvir — repetiu ele, a voz arrastada. —- Alertei-a várias vezes, depois do aborto que teve, no sentido de que não engravidasse de novo, mas ela e seu padrasto nunca levaram a sério minhas advertências. Tinha uma pressão arterial alta durante a última gravidez. E agora também, esse problema me preocupava, embora nunca tivesse atingido um nível perigoso. Mas quando ela chegou aqui hoje, não sei por que motivo, a pressão tinha subido a um nível que favoreceu a eclampsia.

– Eclampsia?

- Convulsões. Às vezes, o paciente consegue sobreviver a vários ataques. Às vezes, simplesmente... pára de respirar.

William resfolegou, trêmulo, e apoiou a cabeça nas mãos. Matthew Lester conduziu o amigo ternamente ao longo do corre­dor. O médico os seguiu. Quando chegaram à porta, olhou fixa­mente para William.

— A pressão arterial de sua mãe subiu tão bruscamente! Isso não costuma ocorrer com freqüência. E ela não lutou contra isso, como se não se importasse com o fato. Estranho... algo a afligia ultimamente?

William ergueu o rosto raiado de lágrimas.

— Algo, não — respondeu ele com ódio. — Alguém.

 

Alan Lloyd estava sentado num canto da sala de estar quan­do os dois rapazes voltaram à Red House. Ergueu-se ao vê-los entrar.

— William — adiantou-se. — Sou o único culpado pela cessão do empréstimo.

William encarou-o, não compreendendo o que ele dizia. Matthew Lester quebrou o silêncio.

— Acho que isso agora não tem importância nenhuma, senhor — disse com serenidade. — A mãe de William morreu durante o parto.

Alan Lloyd empalideceu, apoiou-se no consolo da lareira para não perder o equilíbrio e deu as costas aos rapazes. Pela primeira vez, ambos viam um homem adulto chorar.

— Tudo porque errei — disse o banqueiro. — Nunca vou me perdoar. Não contei a ela o que eu sabia. Eu a amava tanto que não queria magoá-la.

A angústia dele fez com que William se acalmasse.

— Por certo a culpa não é sua, Alan — disse ele com fir­meza. — Fez o que pôde, sei disso, e daqui para a frente eu é que vou precisar da sua ajuda.

Alan Lloyd tentou recobrar-se.

– Osborne já sabe da morte da sua mãe?

– Não sei, e pouco me interessa saber.

– O dia inteiro procurei encontrá-lo para falar sobre o investimento. Ele saiu do escritório depois das dez horas e não reapareceu.

— Cedo ou tarde ele virá para cá — disse William com gravidade.

Muito abatido, Alan Lloyd despediu-se. William e Matthew permaneceram sentados na sala a maior parte da noite, ora ador­mecendo, ora despertando, sobressaltados. Às quatro horas da ma­nhã, William contou as batidas do relógio que havia pertencido ao avô e, subitamente, ouviu um barulho na rua. Matthew correu à janela e espiou a calçada. William, todo tenso, aproximou-se do amigo. Ambos observaram Henry Osborne atravessar, cambalean­do, a Louisburg Square, segurando uma garrafa. Henry mexeu nas chaves, atrapalhado, e, depois de alguns instantes, finalmente abriu a porta. Parou no limiar e olhou atordoado para os dois rapazes.

— Quero ver Anne, não vocês. Por que não estão na escola? Não quero saber de vocês — disse, a voz empastada, as palavras atropeladas, tentando empurrar William de sua frente. — Onde está Anne?

— Minha mãe morreu — respondeu William, controlado.

Henry Osborne olhou-o, paralisado, por alguns segundos. O ar de incompreensão que seu olhar transmitia detonou a fúria de William.

— Onde você estava quando ela precisou do marido? — gritou.

Osborne continuou parado, oscilando levemente de um lado para outro.

— E o bebê?

— Uma menina. Também morta.

Henry Osborne afundou-se numa cadeira. Escorreram-lhe lá­grimas de bêbado.

— Ela perdeu meu bebê?

William descontrolou-se, tomado de raiva e amargura.

— Seu bebê? Pare de pensar só em você pelo menos uma vez na vida! — berrou. — O dr. MacKenzie tinha desaconselha­do uma nova gravidez, e você sabia disso!

— Sabichão nisso também, não, como em tudo! Se se me­tesse só na merda do seu negócio, eu bem que podia ter cuidado da minha própria esposa sem a sua interferência!

— Do dinheiro dela, pelo que sei!

— Dinheiro... Seu muquirana filho da puta! Perder seu dinheirinho dói mais que perder qualquer outra coisa!

— Levante-se daí — exigiu William, entre dentes.

Henry Osborne ergueu-se num esforço e arrebentou a gar­rafa contra o braço da cadeira. O uísque esparramou-se sobre o tapete. Ele oscilou na direção de William, agarrando na mão es­tendida a garrafa quebrada. William não se moveu, e Matthew interveio, colocando-se entre eles. Sem dificuldade, ele tirou a garrafa da mão do homem embriagado.

William afastou o amigo e avançou, ficando cara a cara com Henry Osborne.

— Agora você vai me ouvir com muita atenção. Saia desta casa dentro de uma hora. Se você interferir outra vez na minha vida, abrirei um processo para apurar onde foram aplicados os quinhentos mil dólares de minha mãe, que deveriam ter sido in­vestidos na sua firma. E mandarei investigar seu passado em Chi­cago e sua real identidade. Mas, se você desaparecer de uma vez por todas, tudo ficará encerrado. Agora, suma, antes que eu mate você.

Os dois amigos observaram-no sair, cambaleante, com raiva.

 

No outro dia, William fez uma visita ao banco. Assim que chegou, introduziram-no na sala do presidente. Alan Lloyd guar­dava um punhado de documentos numa pasta de couro. Ergueu os olhos, deteve-se e, sem nenhum comentário, passou uma folha de papel a William. Era uma breve carta dirigida a todos os mem­bros da diretoria em que apresentava sua demissão como presi­dente do banco.

— Pode pedir à sua secretária que venha até aqui? — inda­gou William com tranqüilidade.

— Como queira.

Alan Lloyd apertou um botão instalado num lado da mesa, e uma senhora de meia-idade, vestida com discrição, adentrou a sala por uma porta lateral.

— Bom dia, sr. Kane — disse ela, ao deparar com William. Sinto muito a respeito de sua mãe.

— Obrigado — disse William. — Alguém já leu esta carta?

– Não, senhor — respondeu a secretária. — Eu ainda ia datilografar doze cópias e entregá-las ao sr. Lloyd para que as assinasse.

– Pois então não as datilografe, sim? E, por favor, esqueça que essa minuta algum dia foi feita. Nunca se refira a ninguém sobre a existência dela, está entendendo?

Ela olhou dentro dos olhos azuis do rapaz de dezesseis anos de idade. “Tão parecido com o pai”, refletiu.

— Sim, sr. Kane — e saiu, fechando a porta sem fazer ruído.

William olhou para o velho amigo.

— Alan, o Kane & Cabot neste momento não está preci­sando de um novo presidente. Você nada fez que meu pai, nas mesmas circunstâncias, não tivesse feito.

— Não é tão fácil assim — afirmou Alan.

— É tão fácil assim — retrucou William. — Poderemos voltar a conversar sobre o assunto quando eu completar vinte e um anos, mas não antes. Até lá, eu ficaria agradecido se diri­gisse meu banco com sua maneira diplomática e cautelosa, como sempre. Gostaria que o que aconteceu não fosse comentado fora destas quatro paredes. Dê sumiço a todas as informações de que dispõe sobre Henry Osborne e considere o caso encerrado.

William rasgou a carta de demissão e jogou os fragmentos de papel no fogo. Colocou o braço em torno do ombro de Alan.

— Agora, Alan, não tenho mais família, só você. Pelo amor de Deus, não me abandone.

William voltou de carro para Beacon Hill. Na chegada, o mordomo o informou de que a sra. Kane e a sra. Cabot o aguar­davam na sala de visitas. Ambas puseram-se de pé quando o neto entrou. Pela primeira vez William tomou consciência de que, a partir desse dia, era o chefe da família Kane.

 

Os funerais foram realizados discretamente, dois dias depois, na Catedral Episcopal de São Paulo. Não houve convidados além dos familiares e dos amigos mais próximos. A única ausência no­tável foi a de Henry Osborne. À medida que as pessoas iam se retirando, apresentavam condolências a William. As avós posta­ram-se imediatamente atrás dele como sentinelas, louvando sua serenidade e a maneira nobre como se comportava. Quando todos partiram, William acompanhou Alan Lloyd até o carro.

O presidente alegrou-se com o pedido que William lhe fez:

— Alan, como sabe, minha mãe sempre alimentou o sonho de construir a ala infantil do novo hospital em memória de papai. Quero que os desejos dela se tornem realidade.

 

Fazia um ano que Wladek estava na delegação polonesa de Constantinopla, trabalhando dia e noite para Pawel Zaleski, de quem passara a ser um indispensável ajudante e amigo íntimo. Pensara, no início, que ficaria ali poucos dias. Nenhuma tarefa lhe parecia difícil, e logo Zaleski percebeu, com certo espanto, como se sobrecarregava antes da chegada do rapaz. Wladek vi­sitava a embaixada britânica uma vez por semana, quando fazia uma refeição na companhia da sra. Henderson, a cozinheira esco­cesa, e, de quando em quando, com o próprio segundo-cônsul de Sua Majestade britânica.

Os antigos costumes islâmicos iam se dissolvendo e o Im­pério Otomano ameaçava ruir. O nome de Mustafá Kemal era pronunciado por toda parte. O pressentimento de uma mudança iminente inquietava Wladek, cujo pensamento se voltava sem cessar para o barão e todos aqueles a quem amara nos tempos em que vivera no castelo. A necessidade de sobreviver dia a dia na Sibéria o impedira de conservá-los vivos na memória; ali, porém, na Turquia, eles ressuscitavam e se corporificavam à sua frente, numa silenciosa e lenta procissão. Por vezes, surgiam vi­gorosos e felizes: Leon nadando no rio, Florentyna brincando de cama-de-gato em seu quarto de dormir, a face sadia e altiva do barão iluminada pela luz das velas que se acendiam à noitinha. Mas sempre cada um desses rostos, amados e inesquecíveis, tremulavam, enfraquecidos, e, embora Wladek se esforçasse por retê-los, assumiam de maneira assustadora aquela derradeira apa­rência pavorosa: Leon caindo morto sobre seu corpo, Florentyna agonizando, ensangüentada, e o barão cego e alquebrado.

Wladek convenceu-se de que jamais conseguiria retornar à terra habitada por aqueles fantasmas sem antes, de alguma forma, dar dignidade à própria vida. Com esse único pensamento, pre­parou o coração para ir para a América, como antes dele fizera o compatriota Tadeusz Kosciuszko, sobre quem o barão lhe contara tantas histórias fascinantes. Pawel Zaleski descrevia-lhe os Esta­dos Unidos como o “Novo Mundo”. O nome por si só incutia nele a esperança no futuro e acenava-lhe com a oportunidade de retornar triunfante à Polônia.

Pawel Zaleski lhe deu dinheiro para comprar uma passagem como imigrante para os Estados Unidos. Não era fácil adquirir uma passagem, pois as reservas eram feitas sempre com um ano de antecedência. Wladek teve a sensação de que toda a Europa ocidental desejava fugir e recomeçar a vida no Novo Mundo.

Na primavera de 1921, finalmente Wladek Koskiewicz dei­xou Constantinopla e embarcou no vapor Black Arrow, com des­tino à Ellis Island, em Nova Iorque. Levava uma valise, que continha todos os seus pertences e os documentos emitidos por Pawel Zaleski.

O cônsul polonês o acompanhou ao porto e lá o abraçou carinhosamente.

— Vá com Deus, meu rapaz.

A tradicional resposta polonesa surgiu naturalmente das pro­fundezas da meninice de Wladek.

— Fique com Deus — respondeu.

Quando atingiu o alto da escada de embarque, lembrou-se da terrível viagem que fizera de Odessa a Constantinopla. Mas dessa vez não havia carvão à vista, apenas homens e mulheres, gente que viera de toda parte, poloneses, lituanos, estonianos, ucranianos e tantos outros tipos de povos que ele desconhecia. Wladek segurou firme seus poucos bens e ficou na fila, à espera, a primeira de muitas esperas às quais associaria sua entrada nos Estados Unidos.

Os documentos foram examinados rigorosamente por um oficial de plantão, que parecia desconfiar de que Wladek esti­vesse fugindo ao serviço militar da Turquia. Mas o trabalho de Pawel Zaleski havia sido executado à perfeição; em silêncio, Wla­dek abençoava seu compatriota enquanto observava alguns imi­grantes serem mandados de volta ao cais.

Em seguida, submeteu-se à vacinação e a um exame médico superficial, no qual, não tivesse tido a oportunidade, durante aqueles doze meses, de se nutrir bem e recuperar a saúde, certa­mente não teria sido aprovado. Quando afinal terminaram todas as inspeções de praxe, permitiram-lhe descer pelo convés em di­reção aos alojamentos de terceira classe. Havia compartimentos separados para homens, mulheres e casais. Sem demora ele pro­curou um dos compartimentos reservados aos homens e deparou com um grupo de poloneses que ocupava um grande conjunto de beliches de ferro, dispostos em fileiras de quatro, cada qual com dois leitos. Em cada estrado havia um colchão de palha muito fino, um cobertor leve e nenhum travesseiro. A falta de travesseiro não incomodou Wladek, que, desde a Sibéria, habi­tuara-se a dormir sem ele.

Wladek escolheu a parte inferior de um beliche em que se acomodava um garoto mais ou menos de sua idade e logo tratou de se apresentar.

— Meu nome é Wladek Koskiewicz.

— O meu é Jerzy Nowak, de Varsóvia — apresentou-se o outro falando polonês. — Estou partindo para fazer fortuna nos Estados Unidos — estendeu-lhe a mão com entusiasmo.

Enquanto o navio permaneceu atracado, Wladek e Jerzy pas­saram boa parte do tempo narrando suas experiências, ambos contentes por contar com um companheiro com quem partilhar o total desconhecimento da América. Jerzy, como Wladek veio a saber, havia perdido os pais na guerra, mas tinha alguns planos para o futuro. As histórias narradas por Wladek o arrebatavam; o filho de um barão, criado na choupana de um armador de laços, aprisionado por alemães e russos, fugitivo da Sibéria e finalmente salvo da espada de um carrasco turco graças à pe­sada pulseira de prata da qual o novo companheiro não con­seguia desviar o olhar. Nos seus quinze anos de idade, Wladek havia passado por mais experiências do que Jerzy teria sonhado em toda a sua existência. À noite, Wladek continuou a discor­rer sobre seu passado, enquanto Jerzy o escutava com interesse, ambos se recusando a dormir e a confessar um ao outro suas preocupações com o futuro.

Na manhã seguinte, o Black Arrow zarpou. Wladek e Jerzy debruçaram-se na balaustrada e ficaram observando Constantino­pla ir desaparecendo na distância azulada do Bósforo. Passada a calmaria das águas do mar de Mármara, afligiram-se, tal como os demais passageiros, com as águas encapeladas do mar Egeu. Os banheiros da terceira classe, cada qual com dez bacias, seis privadas e torneiras de água salgada e gelada, ficaram rapida­mente alagados. Dois dias mais tarde, o cheiro nos alojamentos era nauseante.

As refeições eram servidas num refeitório imenso e imun­do, atravancado de mesas compridas: sopa quente, batatas, pei­xe, carne e repolho cozidos, pão preto, ou de centeio. Há muito tempo Wladek não experimentava comida tão ruim, e ele aben­çoou as provisões que a cozinheira escocesa lhe dera: lingüiça, castanhas e uma garrafinha de conhaque. Ele e Jerzy as parti­lhavam escondidos a um canto do beliche. A partilha era um acordo tácito. Comiam juntos, juntos exploravam a extensão do vapor e, à noite, partilhavam o beliche.

No terceiro dia em alto-mar, à hora do jantar, Jerzy sen­tou-se à mesa na companhia de uma garota polonesa. O nome dela, Wladek soube pelo amigo, era Zaphia. Pela primeira vez em toda a sua vida, Wladek olhou duas vezes para uma mulher. Nada podia fazê-lo parar de olhá-la. A menina reacendeu-lhe lem­branças de Florentyna: olhos acinzentados e meigos, cabelo claro e longo, que lhe caía sobre os ombros, e voz suave. Wladek sentia vontade de tocá-la. Às vezes ela lhe sorria, e nesses momentos, desconsolado, ele notava que Jerzy tinha melhor aparência do que ele. Jerzy acompanhou Zaphia de volta ao alojamento feminino, e Wladek os seguiu de perto.

Mais tarde, Jerzy chamou-lhe a atenção, levemente irritado:

— Por que não arruma uma menina para você? Zaphia é minha.

Wladek não tinha condições de confessar que estava des­preparado para arrumar uma menina só sua.

— Quando chegarmos na América, haverá tempo de sobra para sair com meninas — respondeu ele com desdém.

— Por que esperar até lá? Vou pegar quantas puder en­quanto estiver neste navio.

— Como conseguirá? — indagou Wladek, com vontade de aprender como fazer isso, mas sem querer admitir sua igno­rância.

— Faltam doze dias para a gente sair desta banheira me­donha, e eu vou conseguir doze mulheres — gabou-se Jerzy.

— E o que vai fazer com doze mulheres? — perguntou Wladek.

— Comê-las. O que mais poderia fazer com elas?

Wladek fez uma careta de perplexidade.

— Deus do céu! — exclamou Jerzy. — Não me diga que o homem que sobreviveu aos alemães e fugiu da Rússia, que aos doze anos matou um sujeito e por um triz não teve a mão cortada por um bando de bárbaros turcos nunca teve uma mu­lher na vida!

E desatou a rir, um riso de caçoada, e logo dos beliches à volta deles ecoou a ordem num coro poliglota: “Calem a boca!”

— Bom — prosseguiu Jerzy, agora sussurrando —, chegou a hora de você ampliar seus conhecimentos. Pelo menos descobri uma coisa que posso ensinar-lhe. — Baixou o olhar lá de cima do seu beliche, embora não pudesse enxergar o rosto de Wla­dek, que sumira na penumbra. — Zaphia é uma garota bastante compreensiva. Acho que conseguirei persuadi-la a aperfeiçoar um pouco a sua formação. Deixe por minha conta.

Wladek não ousou responder.

E nada mais falaram sobre o assunto. No dia seguinte, po­rém, Zaphia se mostrou mais atenciosa com Wladek. Nas refei­ções, sentou-se perto dele, e depois, durante horas, conversaram a respeito de suas experiências e esperanças. Ela era órfã, natu­ral de Poznan, e estava indo encontrar-se com os primos que moravam em Chicago. Wladek lhe disse que seu destino era Nova Iorque e que provavelmente moraria com Jerzy.

— Tomara que Nova Iorque seja bem perto de Chicago — comentou Zaphia.

Jerzy interveio, com euforia:

— Quando eu for prefeito, você poderá me fazer uma visi­ta.

— Jerzy, você é polonês demais — ela replicou, torcendo o nariz. — Nem sabe inglês direito, como Wladek!

— Mas eu aprendo — retrucou Jerzy, confiante. — Vou até americanizar meu nome. A partir de agora me chamem de George Novak. Com esse nome não vou ter problema nenhum. Todos nos Estados Unidos pensarão que sou americano. E você, Wla­dek Koskiewicz? Seu nome não ajuda muito, não é?

Wladek olhou em silêncio o rebatizado George, aborrecido com o próprio nome. Impossibilitado de adotar o título que por direito lhe pertencia, rejeitava Koskiewicz e a permanente lem­brança de sua ilegitimidade.

— Darei um jeito — respondeu. — Se quiser, posso ajudar você a melhorar o seu inglês.

— E eu posso ajudar você a arranjar uma menina.

Zaphia deu uma risadinha.

— Não se preocupe com isso. Uma ele já arranjou.

Jerzy, ou George, como teimou que o chamassem, todas as noites depois do jantar se retirava com uma menina diferente para dentro de um dos botes salva-vidas cobertos com lona. Wladek sentia curiosidade de saber o que ele fazia com elas lá, porque as mocinhas que George escolhia não eram apenas sujas, como de resto todas eram, mas também nada atraentes, e sem dúvida assim continuariam mesmo que tomassem um bom banho e ficas­sem limpinhas.

Certa noite, depois do jantar, durante uma das desaparições de George, Wladek e Zaphia demoraram-se no convés. Ela pas­sou os braços em torno dele e pediu-lhe que a beijasse. Ele com­primiu os lábios enrijecidos contra os dela, e de repente seus dentes se tocaram. Sentiu-se tremendamente esquisito fazendo isso. Para sua surpresa e embaraço, a língua dela pressionou e separou seus lábios. Após um instante de receio, Wladek descobriu que a boca aberta de Zaphia lhe proporcionava um prazer intenso e ficou assustado ao sentir que seu pênis endurecia. Teve a intenção de recuar, envergonhado, mas Zaphia não pareceu perturbada. Pelo contrário, estreitou o corpo contra o dele num movimento lento e cadenciado e guiou-lhe as mãos sobre suas nádegas. O pênis inchado pulsava naquele contato, dando-lhe um prazer quase insuportável. Ela desprendeu os lábios e sussurrou-lhe no ouvido:

— Wladek, quer que eu tire a roupa?

Ele não encontrou resposta. Ela afastou-se, rindo.

— Bom, quem sabe amanhã — disse, e, saindo do convés, largou-o sozinho.

Wladek foi para o dormitório com as pernas bambas e dei­tou-se, atordoado, resolvendo que no dia seguinte terminaria o serviço que Zaphia havia começado. Mal se acomodara, ainda pensando em como levaria a cabo a tarefa, quando uma mão o pegou pelo cabelo, puxou-o para fora do beliche e o derrubou no chão. Num instante a excitação sexual desapareceu. Dois ho­mens desconhecidos o olhavam de cima. Eles o arrastaram até um canto e o jogaram contra a parede. Uma mão enorme lhe tapou a boca com energia enquanto a outra lhe encostava uma faca na garganta.

— Não dê um pio — grunhiu o homem que segurava a faca, pressionando-lhe a lâmina contra a pele. — A gente quer só a pulseira de prata.

A súbita percepção de que seu tesouro ia ser roubado cau­sou-lhe um pavor tão grande quanto o que sentira quando estivera prestes a perder a mão. Antes que tivesse tempo de pensar numa maneira de reagir, um dos homens arrancou-lhe a pulseira. A es­curidão não lhe permitia ver a cara dos atacantes, e Wladek temeu ter perdido a pulseira para sempre. Nisso, porém, um vulto se lan­çou sobre o homem da faca e esta caiu. O bote inesperado deu a Wladek tempo de esmurrar o homem que o apertava contra o chão. Os emigrantes começaram a acordar e a interessar-se pelo que acontecia. Os dois homens trataram de fugir o mais depressa possível, mas George ainda conseguiu golpear com a faca a perna de um dos agressores.

— Vão pro inferno! — gritou Wladek, enquanto eles fugiam.

— Acho que cheguei bem na hora — disse George. — Duvido que tenham pressa de voltar. — Baixou o olhar e viu a pulseira de prata caída na serragem que cobria o piso. — Ela é magnífica — exclamou, quase pomposamente. — Sempre vai haver alguém querendo roubá-la de você.

Wladek pegou a pulseira e a recolocou no pulso.

— Bom, ainda não foi desta vez — continuou George. — Teve sorte de eu ter voltado um pouco mais tarde esta noite.

— E por que está voltando mais tarde?

— Minha fama — jactou-se — cresceu além do meu con­trole. Quer dizer, hoje à noite encontrei um idiota dentro do meu bote. Logo me livrei dele, porque lhe disse que a menina que estava com ele era para ter sido minha na semana passada, e só não o foi porque desconfiei de que ela tem sífilis. Nunca vi ninguém se vestir tão depressinha.

— O que você faz no bote, Jerzy? — indagou Wladek.

— Eu como elas, seu asno. O que mais poderia fazer? — Irritado, subiu no beliche e deitou-se para dormir.

Wladek fitou o teto e, segurando a pulseira de prata, refle­tiu sobre a expressão usada por George, imaginando o que seria “comer” Zaphia.

Na manhã seguinte, foram atingidos por uma tormenta e todos os passageiros se refugiaram debaixo do convés. O mau chei­ro, agravado pelo sistema de aquecimento do navio, causava mal-estar a Wladek.

— E o pior dessa situação — gemeu George — é que quero completar uma dúzia.

Quando a tormenta abrandou, quase todos os passageiros voltaram ao convés. À força, Wladek e George abriram caminho pelo passadiço abarrotado de pessoas e buscaram o ar fresco da coberta. Várias garotas sorriam para George, sem fazer caso de Wladek. Se trajasse o casaco de cinqüenta rublos, refletiu ele, por certo elas não o ignorariam. Uma garota de cabelo preto, cujas faces o vento deixava avermelhadas, passou por George e deu-lhe um sorriso. Ele cochichou com Wladek:

— Hoje à noite vai ser essa.

Wladek observou a menina e o jeito com que ela olhava para George.

— Hoje à noite — propôs George, de modo que ela o ou­visse.

A garota fingiu não ouvi-lo e afastou-se a passos rápidos.

— Wladek, vire-se e veja se ela está me olhando.

Wladek virou-se.

— Está, sim — disse, admirado.

— Vai ser minha esta noite — falou George. — Já comeu Zaphia?

— Não. Hoje à noite.

— Estava na hora, não acha? Quando chegarmos a Nova Iorque nunca mais vai vê-la de novo.

Naturalmente, George jantou nessa noite acompanhado da garota de cabelo preto. Sem dizer uma palavra, Wladek e Zaphia retiraram-se da mesa abraçados pela cintura, subiram ao convés e deram algumas voltas pelo navio. Wladek olhava de lado o per­fil belo e jovial de Zaphia. Tinha de ser agora ou nunca, decidiu. Conduziu-a a um canto escuro e beijou-a do jeito como ela o tinha beijado, de boca aberta. Ela recuou um pouco e encostou-se numa amurada, com Wladek unido a ela. Zaphia pegou-lhe as mãos e devagar colocou-as sobre os seios. Ele os apertou, experimentando-os, maravilhado com a maciez deles. Ela abriu alguns botões da blusa e deslizou a mão dele pela abertura. A primeira sensa­ção ao tocar o seio nu foi deliciosa.

— Oh!, que mão fria! — exclamou Zaphia.

Ele a abraçou com força, sentindo a boca seca e a respiração pesada. Ela afastou um pouco as pernas, e Wladek empurrou-se desajeitadamente contra uma barreira de várias camadas de roupa. Ela respondeu com movimentos suaves durante alguns minutos e logo o afastou com as mãos.

— Aqui no convés, não — disse. — Vamos procurar um bote.

Os três primeiros já estavam ocupados, mas finalmente en­contraram um escaler vazio e esconderam-se debaixo da lona. Na escuridão, Zaphia ajeitou as roupas de um modo que Wladek não podia imaginar fosse possível e puxou-o delicadamente sobre ela. Em pouco tempo, ela o levou ao grau de excitação da vez anterior, que ele pôde sentir através das poucas camadas de rou­pa que ainda os separavam. Ele introduziu o pênis na fofura de­licada entre as coxas, e, quando estava a ponto de atingir o orgasmo, ela abriu os lábios de novo.

— Tire as calças — sussurrou.

Ele se achou um idiota, mas tirou-as a toda a pressa e de novo penetrou na doçura e suavidade concedida, alcançando ime­diatamente o mais extraordinário gozo. Sentiu o líquido viscoso escorrer na coxa de Zaphia. Prostrou-se, maravilhado com a impetuosidade do ato, percebendo de repente que as rachaduras da madeira do barco lhe machucavam os cotovelos e os joelhos.

— É a primeira vez que faz amor com uma garota? — in­dagou Zaphia, desejando que ele saísse de cima dela.

— Não, é claro que não.

— Wladek, você me ama?

— Sim, amo — respondeu —, e depois que acertar minha vida em Nova Iorque, vou buscar você em Chicago.

— Eu ficaria tão contente, Wladek! — disse ela, abotoando o vestido. — Também o amo.

Logo que Wladek chegou ao beliche, George tinha uma per­gunta a fazer:

— Comeu ela?

— Sim.

— E foi bom?

— Foi — respondeu, vagamente, e adormeceu.

De manhã, foram acordados pelo alarido dos passageiros, todos muito excitados e felizes por ser o último dia a bordo do Black Arrow. Alguns, antes mesmo do nascer do sol, haviam su­bido ao convés para avistar os primeiros sinais de terra. Wladek recolheu seus poucos pertences, guardou-os na valise, vestiu seu único terno, pôs o boné e reuniu-se a George e Zaphia no convés. Os três olhavam para dentro da névoa que pairava sobre o mar, aguardando em silêncio a primeira visão dos Estados Unidos da América.

— Olhem lá! — gritou um passageiro, em pé sobre a co­berta acima deles, e gritos alegres encheram o ar à aparição da listra acinzentada que era Long Island, cada vez mais próxima à luz da manhã de primavera.

Pequenos rebocadores surgiram ao lado do Black Arrow e o guiaram entre Brooklyn e a Staten Island ao porto de Nova Iorque. A estátua da Liberdade parecia acompanhá-los com um olhar austero, sua lâmpada na mão erguida; e eles a contempla­vam, na paisagem emergente de Manhattan.

Finalmente, o navio atracou perto dos edifícios de tijolos vermelhos e torres pontiagudas da Ellis Island. Os passageiros que haviam ocupado cabines de primeira classe começaram a descer. Só nesse dia Wladek tomou conhecimento deles. Deviam ter fre­qüentado um convés separado e comido em salão próprio. Suas bagagens eram levadas por carregadores, e pessoas sorridentes os esperavam no cais. Wladek sabia que ninguém sorriria para ele.

Após o desembarque dos poucos privilegiados, o capitão anunciou pelo alto-falante que os demais passageiros deveriam permanecer ainda algumas horas dentro do navio. Ouviram-se brados de desapontamento e de protesto; Zaphia sentou-se no convés e pôs-se a chorar. Wladek procurou confortá-la. Por fim, um tripulante distribuiu café. Um funcionário do serviço de imi­gração apareceu, trazendo placas numeradas que foram pendu­radas no pescoço dos passageiros. O número de Wladek era B. 127, o que o fez lembrar-se da última vez que fora um número. Para que havia feito essa viagem? Os Estados Unidos tinham campos como os da Sibéria?

No meio da tarde, sem que tivessem recebido alimentação ou informação, foram colocados em barcas, que, movendo-se vagarosamente, deixaram as docas e rumaram para a Ellis Island. Lá homens e mulheres foram separados e conduzidos a galpões diferentes. Wladek beijou Zaphia e abraçou-a, não querendo que ela se fosse, o que perturbou a ordem da fila. Um funcionário que passava os apartou.

— Chega, chega, continuem andando — disse. — Se insisti­rem muito nisso, vamos casar vocês já, já.

Wladek perdeu Zaphia de vista enquanto era empurrado jun­to com George. Passaram a noite num galpão velho e úmido, sem poder dormir, uma vez que alguns intérpretes, lacônicos mas cor­teses, andavam ao longo das fileiras de bancos abarrotados, ofe­recendo ajuda aos imigrantes desorientados.

Quando o dia seguinte clareou, os imigrantes foram envia­dos aos postos médicos onde seriam examinados. A primeira pro­va foi a mais difícil: pediram a Wladek que subisse um lanço de escada extremamente alto. O médico de uniforme azul obrigou-o a repetir a escalada duas vezes, observando seu andar com atenção. Wladek esforçou-se por disfarçar a coxeadura, e afinal o médico deu-se por satisfeito. Recebeu ordens de tirar o chapéu e o cola­rinho, para que o rosto, os olhos, o cabelo, as mãos e o pescoço pudessem ser cuidadosamente examinados. O homem que vinha imediatamente atrás de Wladek tinha um lábio leporino; o mé­dico barrou-o de pronto, riscou uma cruz com giz no seu ombro e mandou-o ao outro extremo do galpão. Terminado o exame médico, Wladek juntou-se de novo a George, que se achava em outra longa fila em frente ao posto de investigação, onde cada pessoa demorava cerca de cinco minutos. Três horas mais tarde, George foi introduzido na sala; Wladek sentiu curiosidade de saber que tipo de perguntas lhe seriam feitas.

Ao sair da sala, George dirigiu-se a Wladek e lhe sorriu.

— Fácil, você vai se sair bem. Entre.

Wladek deu um passo à frente, sentindo as palmas das mãos molhadas de suor. Seguiu o oficial até uma sala pequena e sim­ples. Dois examinadores estavam sentados a uma mesa e escre­viam sem parar em formulários oficiais.

— Fala inglês? — inquiriu o primeiro.

— Sim, senhor, falo bem — respondeu ele, arrependendo-se de não ter exercitado o inglês durante a viagem.

— Nome?

— Wladek Koskiewicz, senhor.

O homem estendeu-lhe um livro preto.

— Sabe que livro é este?

— Sim, senhor, a Bíblia.

— Acredita em Deus?

— Sim, senhor, acredito.

— Ponha a mão em cima da Bíblia e jure não mentir nas respostas às nossas perguntas.

Wladek pegou a Bíblia com a mão esquerda, pousou a direita sobre ela e disse:

— Prometo dizer a verdade.

— Qual é a sua nacionalidade?

— Polonesa.

– Quem lhe pagou a passagem para vir para cá?

— Eu mesmo, com o dinheiro que ganhei trabalhando no consulado da Polônia em Constantinopla.

Um dos funcionários examinou os documentos de Wladek, fez um sinal afirmativo com a cabeça e perguntou:  

— Tem onde ficar?

— Tenho, sim, senhor. Vou ficar na casa do sr. Peter Novak, tio do meu amigo. Ele mora em Nova Iorque.

— Está bem. Tem trabalho em vista?

— Tenho, sim, senhor. Vou trabalhar na padaria do sr. Novak.

— Foi preso alguma vez?

A Rússia passou num relâmpago pela sua cabeça. Não devia valer. Turquia... não, não mencionaria a Turquia.

— Não, senhor, nunca.

— É anarquista?

— Não, senhor. Odeio os comunistas. Mataram minha irmã.

— Está disposto a respeitar as leis dos Estados Unidos da América?

— Sim, senhor.

— Tem algum dinheiro?

— Sim, senhor.

— Pode mostrá-lo?

— Sim, senhor.

Ele depositou sobre a mesa um bolo de notas e algumas moedas.

— Obrigado — disse o examinador. — Pode guardar o di­nheiro.

O outro examinador o encarou.

— Quanto é 21 mais 24?

— Quarenta e cinco — respondeu Wladek, sem hesitar.

— Quantas pernas tem uma vaca?

Wladek não acreditou no que ouviu.

— Quatro, senhor — respondeu, achando que a pergunta era uma armadilha.

— E um cavalo?

— Quatro, senhor — respondeu, ainda admirado.

— Se estivesse num bote em alto-mar e precisasse fazer menos peso, o que jogaria na água, pão ou dinheiro?

— Dinheiro, senhor — respondeu.

— Bem. — O funcionário pegou um cartão em que esta­va impresso Admitido e entregou-o a Wladek. — Depois que trocar seu dinheiro, mostre este cartão ao funcionário de imigra­ção. Diga-lhe seu nome inteiro e ele lhe dará uma ficha de regis­tro. Em seguida, você receberá um certificado de entrada. Se em cinco anos não cometer nenhum delito e for aprovado num exa­me simples de escrita e de leitura, e concordar em defender a Constituição, terá o direito de requerer cidadania americana. Boa sorte, Wladek.

— Obrigado, senhor.

Sobre o balcão de câmbio, Wladek pôs suas economias de dezoito meses na Turquia e três notas de cinqüenta rublos. Pelo dinheiro turco, recebeu quarenta e sete dólares e vinte cents. Quanto aos rublos, ouviu apenas que não tinham valor. Lembrou-se do dr. Dubien e dos seus quinze anos de economia extenuante.

A etapa derradeira deu-se diante do funcionário de imigra­ção, sentado atrás de um balcão à barreira fiscal da saída, de­baixo de uma fotografia do presidente Harding. Wladek e George postaram-se diante dele.

— Nome completo? — perguntou o funcionário a George.

— George Novak — respondeu com segurança.

O funcio­nário escreveu o nome no formulário.

— Endereço?

— 286, Broome Street, N. Y.

O oficial entregou-lhe uma ficha.

— Este é o seu certificado de imigração, 21871, George Novak. Bem-vindo aos Estados Unidos, George. Também sou polonês. Vai gostar daqui. Minhas felicitações e boa sorte.

Sorrindo, George apertou a mão do funcionário, afastou-se e esperou por Wladek. O oficial estudou Wladek, enfiado em seu casaco de pele de carneiro. Wladek passou-lhe o cartão em que estava escrito Admitido.

— Nome completo?

Wladek hesitou.

— Seu nome? — tornou o funcionário, erguendo um pouco a voz, um tanto impaciente, desconfiado de que o rapaz não sou­besse inglês.

Wladek encontrou dificuldade em falar. Como detestava o nome de camponês!

— Pela última vez, qual é o seu nome?

George não tirava os olhos de cima de Wladek. E também as pessoas na fila. Wladek continuava mudo. De repente, o oficial agarrou-lhe o pulso, leu com atenção a inscrição da pulseira de prata, preencheu a ficha e entregou-a a Wladek.

— 21872, barão Abel Rosnovski. Bem-vindo aos Estados Unidos. Minhas felicitações e boa sorte, Abel.

 

                                                                       1923-1928

 

Em setembro de 1923, William regressou à St. Paul’s School para iniciar seu último ano de estudos e foi eleito presidente da classe sênior, exatamente trinta e três anos após seu pai ter ocupa­do o mesmo posto. William não foi eleito segundo os padrões costumeiros, em razão de ser um excelente atleta ou o rapaz mais popular da escola. Matthew Lester, seu amigo íntimo, sem dúvi­da teria ganho qualquer competição que se baseasse nesses crité­rios. Acontece que William era o rapaz que mais impressionava em toda a escola, e, por esse motivo, Matthew Lester jamais con­seguiria concorrer com ele. A St. Paul’s School apresentou o nome de William como seu candidato à bolsa de estudos para o curso de Matemática Hamilton Memorial, de Harvard. William traba­lhou durante todo o período letivo de outono com o único pro­pósito de arrebatá-la.

No Natal, quando retornou a Beacon Hill, estava preparado para um período ininterrupto de estudos, em que pudesse dedi­car-se ao Principia Mathematica. Isso não foi possível, porém, pois ao chegar encontrou diversos convites para festas e bailes. Pôde recusar a maioria deles com diplomacia, mas um era abso­lutamente irrecusável. As avós haviam organizado um baile que teria lugar na Red House, na Louisburg Square. William pergun­tou-se em que idade estaria capacitado a defender sua casa da invasão das duas ilustres senhoras e concluiu que esse momento ainda não havia chegado. Na verdade, contava com poucos amigos em Boston, mas isso não constituiu impedimento às avós, que elaboraram uma extensa lista de convidados.

Com o fim de registrar a ocasião, elas o presentearam com o primeiro smoking de sua vida, um modelo na última moda, tipo jaquetão. William aceitou-o simulando indiferença. Mais tarde, porém, na privacidade de seu quarto de dormir, desfilou com ele, parando a toda hora para olhar-se no espelho. No dia seguinte, telefonou para Nova Iorque e convidou Matthew Lester para reu­nir-se a ele no fatídico fim de semana. A irmã de Matthew quis acompanhá-lo, mas a mãe julgou o acontecimento pouco adequado à idade da menina.

William foi esperá-lo na estação de trem.

– Pensando bem, William — comentou Matthew, enquanto o motorista os levava a Beacon Hill —, não acha que já é tempo de arranjar uma garota? Em Boston as mulheres devem ser muito sem graça.

— Por quê, você já teve alguma, Matthew?

— Lógico. Em Nova Iorque, no último inverno.

— Hum... Que fazia eu nesse tempo?

— Provavelmente devorava Bertrand Russell.

— Você nunca me falou sobre o assunto.

— Nem havia muito a dizer. De qualquer forma, você se envolvia mais com o banco do meu pai do que com a minha vida amorosa. Tudo aconteceu na festa que papai deu aos funcionários para comemorar o aniversário de Washington. Uma típica inicia­ção de um dente-de-leite. Falando francamente, fui violentado por uma das secretárias do diretor, uma senhora enorme chamada Cynthia, com seios balouçantes bem maiores do que...

— Gostou?

— Naturalmente, mas não acredito que Cynthia tenha gos­tado. Ela estava bêbeda demais e nem sequer me notou junto dela. Enfim, a gente tem de começar de alguma maneira, e a dona estava disposta a dar uma mãozinha ao filho do patrão.

Num lampejo, William viu diante de si a secretária madura e empertigada de Alan Lloyd.

— Não creio que tenha oportunidade de me iniciar com a secretária do presidente do banco — cismou.

— Nem imagina o que é — observou Matthew, com conhe­cimento de causa. — As que andam com as pernas bem juntinhas são as que não vêem a hora de abri-las. Agora eu aceito a maioria dos convites, formais ou informais, e nem me importa com as roupas.

O motorista estacionou o carro na garagem, e os rapazes subiram os degraus que levavam ao interior da casa.

— Fez algumas mudanças desde a última vez em que estive aqui — comentou Matthew, encantando-se com os móveis de bam­bu e o papel de parede de padrões aveludados em relevo. Apenas a cadeira de couro permanecia intocada, como que enraizada no mesmo lugar.

— A casa precisava de um pouco mais de luminosidade — explicou William. — Era com se a gente vivesse na Idade da Pedra. Ademais, não queria me lembrar de... Ora, não é o mo­mento de discutir decoração de interiores.

— Quando chegam os convidados da festa?

– Do baile, Matthew, do baile. As minhas avós insistem em chamar o acontecimento de reunião dançante.

– Nessas ocasiões, só uma coisa merece o nome de dan­çante.

– Matthew, uma simples secretária de um certo diretor não o autoriza a se considerar especialista em educação sexual.

— Puxa, quanta inveja! E partindo do meu melhor amigo! — suspirou, Matthew, motejando.

William riu e consultou o relógio de pulso.

— O primeiro convidado deve chegar daqui a duas horas. Tempo de sobra para tomar um banho de chuveiro e trocar de roupa. Lembrou-se de trazer um smoking?

— Sim, e mesmo que tivesse esquecido poderia usar meu pijama. Sempre me esqueço de um ou de outro, mas nunca dos dois. Sabe, acho que de fato poderia inaugurar uma nova moda, se chegasse ao baile de pijama.

— Estou imaginando quanta graça minhas avós achariam disso —disse William.

Vinte e três entregadores do serviço de bufê chegaram às dezoito horas em ponto, e as avós, às dezenove, magníficas em seus longos rendilhados que se arrastavam no soalho. William e Matthew reuniram-se a elas na sala de visitas poucos minutos antes das vinte horas.

William estava na iminência de roubar um tentadora cereja vermelha do alto de um bolo majestoso, quando ouviu a avó Kane repreendê-lo às suas costas.

— William, não toque nesse bolo. Não é para você.

O rapaz virou-se para vê-la.

— De quem é, então? — perguntou ele, beijando-a na face.

— Não se faça de tolo, William. Não é porque tem mais de um metro e oitenta que vou deixar de dar-lhe umas palmadas.

Matthew Lester caiu na gargalhada.

— Vovó, quero apresentar-lhe meu melhor amigo, Matthew Lester.

A avó Kane submeteu o rapaz a uma demorada apreciação através de seu pincenê.

— Como vai, meu jovem?

— Encantado em conhecê-la, sra. Kane. Acredito que a se­nhora deva conhecer meu avô.

— Se conheço seu avô? Caleb Longworth Lester? Certa vez propôs-me casamento, há mais de cinqüenta anos. Recusei-o. Dis­se-lhe que bebia demasiado e que a bebida cedo o levaria à se­pultura. Eu estava certa. Portanto, não beba; vocês dois, não bebam. Nunca se esqueçam disso: o álcool embota o cérebro.

— Não temos muita chance com a lei seca — observou Matthew inocentemente.

— Creio que em breve terá fim — respondeu a avó Kane, torcendo o nariz. — O presidente Coolidge esquece-se de sua educação. Jamais se teria tornado presidente se aquele idiota do Harding não tivesse morrido estupidamente.

— Sem dúvida, vovó — comentou William, rindo —, sua memória é deveras seletiva. Ninguém ousou dizer nada contra ele durante a greve da polícia.

A sra. Kane calou-se.

Os convidados pouco a pouco foram aparecendo, em sua maioria completamente desconhecidos do anfitrião, que exultou ao deparar com Alan Lloyd entre os que chegaram cedo.

— Está com um ótimo aspecto, meu rapaz — disse ele, pela primeira vez na vida reconhecendo isso.

— Você também, Alan. Foi muito gentil em vir.

— Gentil? Por acaso ignora que o convite partiu de suas avós? Talvez eu ainda tivesse coragem bastante de driblar uma delas, mas duas...

— Você também, Alan? — completou William, rindo. — Pode me conceder um instante do seu tempo para uma conversinha particular? — Ele levou o convidado até um canto tranqüilo. — Quero modificar um pouco meu plano de investimento e pre­parar-me para comprar as ações do banco de Lester tão logo este­jam à venda. Quando eu fizer vinte e um anos, quero ter cinco por cento das ações dele.

— Isso não é fácil — ponderou Alan. — As ações de Lester não chegam ao mercado com freqüência, porque são privativas. Mas verificarei quais são as possibilidades. O que é que essa ca­beça anda maquinando, hein, William?

— Bom, minha meta real é...

— William — chamou a avó Cabot, que se aproximava deles um pouco apressada. — Ah, está conspirando com o sr. Lloyd! Acontece que ainda não o vi dançar com nenhuma das moças aqui presentes. Por que acha que organizei este baile, hein?

— Tem razão — confirmou Alan Lloyd, levantando-se. — Eu cuidarei de que este rapaz entre de cabeça no mundo, enquanto a senhora se senta aqui comigo. Descansaremos, observaremos William dançar e ouviremos música.

– Música? Alan, que música?! Isso não passa de uma ba­rulhenta dissonância, sem nenhuma sugestão de melodia.

– Minha querida avó — disse William —, o que a senhora está ouvindo é Yes, we have no bananas, o sucesso das paradas.

– Se é assim, já é tempo de eu partir deste mundo — sen­tenciou a avó Cabot num estremecimento.

– Nunca! — replicou Alan Lloyd, galhardamente.

William dançou com duas moças de quem vagamente se lem­brava, embora seus nomes não lhe ocorressem. Ao ver Matthew sentado sozinho num canto, desculpou-se e com alegria fugiu do centro da pista. Ao se aproximar, porém, notou que Matthew es­tava acompanhado de uma mocinha. Quando a desconhecida le­vantou o olhar e o fitou, William sentiu a perna amolecer.

— Conhece Abby Blount? — indagou Matthew despreocupadamente.

— Não — respondeu William, erguendo a mão e endirei­tando a gravata, mas sem se dar conta disso.

— Este é o anfitrião, sr. William Lowell Kane.

A moça baixou o olhar timidamente, enquanto William se sentava ao seu lado. Matthew percebeu o olhar que William lan­çara a Abby e, erguendo-se, retirou-se para buscar mais ponche.

— Como é possível que, vivendo minha vida toda em Boston, não nos tenhamos visto até hoje? — perguntou William.

— Já nos vimos antes uma vez. Naquela ocasião, você me empurrou para dentro do lago Common. Tínhamos três aninhos nessa época. Só me recuperei do choque depois dos catorze anos.

— Sinto muito — disse William, após um breve silêncio, durante o qual procurou uma resposta mais espirituosa.

— Sua casa é linda, William.

Ele fez nova pausa.

– Obrigado — respondeu, a voz enfraquecida. Olhou Abby de soslaio, fingindo não observá-la. O corpo dela era esguio — oh!, como era esguio! —, e os olhos, grandes e castanhos. Tinha sobrancelhas longas e um perfil que o cativa­vam. Abby cortara o cabelo no estilo que até esse instante ele sempre detestara.

– Matthew disse que no ano que vem você vai para Harvard –     tentou ela recomeçar uma conversa.

– Pois é, vou... Quer dizer, gostaria de dançar?

— Oh, sim, obrigada.

Os passos da dança, minutos atrás tão bem executados por ele, pareceram-lhe extremamente difíceis. Pisava-lhe nos pés e a toda hora impelia-a contra os pares que dançavam à volta. Des­culpou-se. Ela sorriu. Ele estreitou-se um pouco mais. Continua­ram dançando.

— Aquela moça que está monopolizando William há uma hora é do nosso relacionamento? — indagou a avó Cabot, um tanto cismada.

A avó Kane ergueu o pincenê e, através das portas que da­vam para o terreno, perscrutou a moça que caminhava ao lado de William em direção ao gramado.

— Abby Blount — asseverou a avó Kane.

— A neta do almirante Blount? — quis saber a avó Cabot.

— Exatamente.

A avó Cabot meneou a cabeça, expressando certo grau de aprovação.

William conduziu Abby Blount ao extremo mais remoto do jardim e deteve-se debaixo de um castanheiro, o qual, no passado, utilizara apenas para suas escaladas.

— Sempre que sai com uma garota pela primeira vez você tenta beijá-la? — indagou Abby.

— Para ser sincero — começou William —, nunca beijei uma garota.

Abby soltou um risinho.

— Estou lisonjeada.

Ela ofereceu-lhe primeiro uma face corada, depois os lábios rosados, e em seguida sugeriu que entrassem. Com certo alívio, as avós observaram a volta prematura do casal.

Mais tarde, no quarto de dormir de William, os dois rapa­zes conversaram sobre o baile.

— A festa não foi má — observou Matthew. — Apesar de você ter roubado a minha garota, acho que valeu a pena ter vindo de Nova Iorque para a província.

— Na sua opinião, ela me ajudará a perder a virgindade? — indagou William, ignorando a zombaria de Matthew.

— Bem, três semanas são um tempo suficiente, mas receio que você descubra que Abby ainda não perdeu a dela — disse Matthew. — E minha experiência no assunto me autoriza a apos­tar cinco dólares em que ela não cederá nem mesmo ao charme de William Lowell Kane.

William elaborou um minucioso estratagema. Virgindade era uma coisa, perder cinco dólares para Matthew era outra inteira­mente diferente. Depois daquela noite, viu Abby Blount pratica­mente todos os dias, não sem aproveitar a vantagem, pela primeira vez de possuir uma casa própria e um automóvel aos dezessete anos de idade. A situação tomaria outro rumo, sem dúvida mais satisfatório, sem a vigilância discreta, mas persistente, dos pais de Abby, que pareciam estar sempre por perto; assim, ele não havia chegado muito mais perto de seu objetivo quando o último dia de férias se aproximou.

Decidido a ganhar os cinco dólares, naquela manhã William enviou a Abby uma dúzia de rosas, levou-a para jantar num res­taurante fino, o Joseph’s, e por fim persuadiu-a a ir até sua casa, onde ficaram sentados na sala de estar.

— Com a lei seca em vigor, como conseguiu essa garrafa de uísque? — perguntou Abby.

— Oh, não é tão difícil assim — gabou-se William.

Na verdade, ele havia escondido em seu quarto uma garrafa de bourbon de Henry Osborne logo depois da partida dele, e agora sentia-se contente por não tê-la despejado no cano da pia, como inicialmente pretendera.

William serviu doses que o fizeram ofegar e encheram de lágrimas os olhos de Abby.

Ele sentou-se ao lado dela e, sem hesitar, passou-lhe o braço em torno dos ombros, tentando levar avante sua estratégia.

— Abby, você é tremendamente bonita — murmurou ele, numa preliminar, bem perto dos cachos ruivos.

Ela o fitou com seriedade, os olhos castanhos bem abertos.

— Oh, William — arquejou —, e você é encantador.

O rostinho de boneca de Abby era irresistível. Ela permitiu que ele a beijasse. Encorajado, William deslizou a mão hesitante que segurava o pulso dela e passou-a para o seio, esquecendo-a ali, como um guarda de trânsito que interrompesse um fluxo de automóveis. Ela corou de indignação e puxou a mão dele para baixo, de modo que o tráfego prosseguisse normalmente.

– William, você não deve fazer isso.

– Por que não? — retrucou, procurando inutilmente segu­rar-lhe a mão.

— Porque não sabe onde poderia parar.

— Sei perfeitamente.

Antes que pudesse retomar os avanços, ela o afastou e le­vantou-se apressadamente, alisando o vestido.

— William, eu já devia estar em casa.

— Você mal acabou de chegar!

— Mamãe vai perguntar o que estive fazendo.

— E terá condições de responder... nada!

— Acho melhor que seja assim — acrescentou.

— Mas amanhã eu vou embora. — Ele evitou completar: “para a escola”.

— Escreva-me, William.

Ao contrário de Valentino, William reconhecia quando es­tava derrotado. Levantou-se, endireitou a gravata, pegou Abby pela mão e levou-a de carro para casa.

No dia seguinte, já de volta à escola, Matthew Lester aceitou o dinheiro da aposta, uma nota de cinco dólares, erguendo as sobrancelhas num sinal de falsa surpresa.

— Se abrir a boca e disser uma palavra, Matthew, saio cor­rendo atrás de você com um bastão de beisebol.

— Não encontro uma só palavra que de fato expresse meu profundo sentimento de solidariedade.

— Matthew, pode começar a correr!

 

No último semestre letivo da St. Paul’s School, William co­meçou a reparar na esposa do diretor, uma mulher bonita, talvez de cintura e ancas um tanto flácidas, mas de seios fartos e rijos. Em seu cabelo abundante e preto, bem no alto da cabeça, mal se podiam contar os primeiros fios brancos. Certo sábado, quando William torceu o pulso no rinque de hóquei, a sra. Raglan fez-lhe uma compressa e pôs-lhe uma atadura, ficando tão próxima dele, mais que o necessário, que ele não pode evitar roçar o braço em seu seio. Ele gostou do contato. Noutra ocasião, quando pe­gou uma febre e precisou ficar alguns dias internado na enfer­maria, ela levava-lhe as refeições, sentava-se na cama enquanto ele comia e encostava o corpo na perna coberta pelo lençol. Tam­bém isso lhe deu prazer.

Corria o rumor de que era a segunda mulher de Raglan Zangado. Quase ninguém na escola podia imaginar de que maneira Zangado conseguia assegurar a posse de uma única esposa que fosse. Através de suspiros e silêncios deveras significativos, às vezes a sra. Raglan dava a entender que partilhava com eles a incredulidade a respeito de seu próprio destino.

Como parte de seus deveres como monitor veterano da es­cola todas as noites, às dez e meia, William obrigava-se a se apresentar a Raglan Zangado depois de ter apagado as luzes antes de se recolher. Na noite de uma segunda-feira, ele bateu como sempre à porta de Zangado e, surpreso, ouviu a voz da sra. Raglan, que o mandou entrar. Ela estava deitada num sofá e trajava um robe de seda que lembrava um quimono.

William abriu um pouco a porta, segurando firme a maçaneta fria.

– Sra. Raglan, apaguei todas as luzes e fechei a porta da frente. Boa noite.

Num volteio, ela baixou as pernas ao chão, revelando por um segundo um pedaço pálido de coxa sob o tecido estampado.

— William, por que está sempre apressado? Não vê a hora de começar a viver, não é mesmo? — Ela caminhou até uma mesinha. — Por que não fica um pouco e toma uma xícara de cho­colate? Sou tão distraída, que fiz chocolate para dois, esquecida de que o sr. Raglan só voltará no sábado.

Havia uma inequívoca ênfase na palavra “sábado”. Com a xícara de chocolate quente na mão, ela se aproximou de William e fitou-o, querendo se certificar de que o significado da frase tinha sido registrado por ele. Satisfeita, estendeu-lhe a xícara e, de pro­pósito, tocou-lhe a mão. William tomou aplicadamente o choco­late quente.

— Gerard foi fazer uma conferência — continuou ela. Pela primeira vez ele ouvia o primeiro nome de Raglan Zangado. — Feche a porta, William, e venha sentar-se.

William hesitou. Fechou a porta. Não queria sentar-se na cadeira de Zangado nem perto da sra. Raglan, mas resolveu que a cadeira de Zangado era o menor dos dois males e encaminhou-se para ela.

– Não, não — disse ela, batendo a mão no estofado do assento que estava ao seu lado.

William deteve-se, andou, desajeitado e indeciso, e, muito nervoso sentou-se ao lado dela, buscando inspiração dentro da xícara, de onde não despregava o olhar. Não encontrando nela a inspiração que buscava, engoliu o conteúdo num só gole, queiman­do a língua. Com alívio, viu a sra. Raglan levantar-se. Ela encheu de novo a xícara, sem dar atenção aos seus murmúrios de recusa, atravessou em silêncio a sala e ligou a vitrola.

Quando ela se aproximou, ele ainda fitava o soalho.

— Não se deixa uma senhora dançar sozinha, não é mesmo, William?

Ele levantou os olhos. A sra. Raglan balançava o corpo sua­vemente, acompanhando o ritmo da música. William pôs-se de pé e formalmente encaixou o braço em torno da cintura da sra. Ra­glan. Zangado caberia perfeitamente no espaço que os esperava. Depois dos primeiros acordes, ela se chegou mais a ele, que olhava o vazio acima do ombro direito dela com o propósito de lhe mos­trar, pela sua rigidez, que não havia notado a mão esquerda dela escorregar do seu ombro e pousar em suas costas. Acabado o disco, William achou que chegara a oportunidade de retornar à segurança do chocolate quente, mas a sra. Raglan virou o disco e logo voltou aos seus braços, sem lhe dar tempo de se locomover.

— Sra. Raglan, sinto muito, mas eu...

— Relaxe um pouquinho, William.

Por fim ele encontrou coragem de olhá-la dentro dos olhos. Tentou dar-lhe uma resposta, mas a voz não saía. A mão delicada como que alisava suas costas, as coxas pressionavam-lhe as viri­lhas em movimentos suaves. Ele apertou o abraço em torno da cintura dela.

— Bem melhor — ela disse.

Fizeram uma volta lenta em torno da sala, estreitamente abraçados, os passos e movimentos tornando-se mais e mais lentos, harmonizando-se com a música que dali a pouco terminaria. Quando ela se afastou para apagar a luz, William desejou que voltasse logo. Ficou ali de pé, envolto pela penumbra, imóvel, escutando o farfalhar da seda, distinguindo somente uma silhueta a se despir.

Enquanto o cantor encerrava a canção e a agulha ia arranhan­do o disco, ela ajudou-o a tirar as roupas e o conduziu ao sofá. William procurou-a às apalpadelas, os dedos tímidos de novato tocando-lhe regiões do corpo que, ao tato, não correspondiam ao que antes ele havia imaginado. Afobado, levou-os ao território dos seios, relativamente mais conhecidos. Os dedos dela, que não eram assim tão inexperientes, logo lhe acenderam sensações que jamais sonhara possíveis. Ele sentiu vontade de gemer alto, mas conteve-se, receando parecer ridículo. As mãos dela seguraram-no pelas costas e sem pressa o colocaram sobre ela.

William apoiou-se, temendo denunciar sua real falta de ex­periência para penetrá-la. Não era tão fácil quanto pensara, e seu desespero foi aumentando. Uma vez mais, os dedos da mulher desceram-lhe abaixo do estômago e sabiamente o orientaram. Com a ajuda dela, ele a penetrou sem dificuldade e imediatamente alcançou o orgasmo.

Deixou-se ficar deitado em cima dela.

– Desculpe — disse, sem ter idéia do que faria em seguida.

– Amanhã você se sairá melhor — disse ela finalmente.

O ruído da agulha a arranhar o disco voltou a entrar-lhe nos ouvidos.

Durante o interminável dia seguinte, a sra. Raglan não lhe saiu da cabeça. Nessa noite, ela suspirou. Na quarta-feira, arquejou. Na quinta, gemeu. Na sexta, gritou.

No sábado, Raglan Zangado regressou da conferência, mas então a educação de William já estava concluída.

 

Durante as férias da Páscoa, mais exatamente no dia da As­censão, Abby Blount finalmente sucumbiu ao charme de William, o que custou a Matthew Lester cinco dólares, e a ela, a virgin­dade. Depois da sra. Raglan, Abby foi uma espécie de anticlímax. Foi esse, no entanto, o único acontecimento digno de nota nessas férias, porque Abby acompanhou os pais a Palm Beach e William passou a maior parte do tempo trancado em casa com os livros, sem receber ninguém além das avós e de Alan Lloyd. Os exames finais estavam marcados para dali a poucas semanas, e, como Ra­glan Zangado não assumira compromissos com outras conferências, William não tinha outra atividade fora de casa.

Ao longo do último período letivo, ele e Matthew estudavam horas a fio na St. Paul’s School, sem abrir a boca, a não ser quando Matthew debatia com algum problema de matemática que real­mente não soubesse resolver. Os exames, há muito esperados, finalmente começaram. Duraram precisamente uma única semana febril. Assim que terminaram, os rapazes sentiram-se otimistas com os resultados, mas, à medida que os dias passavam, a expectativa aumentava mais e mais, e a confiança diminuía na mesma pro­porção. A bolsa de estudos para o curso de Matemática Hamilton Memorial de Harvard era concedida com base em critérios compe­titivos e oferecida a todos os estudantes dos Estados Unidos. Difi­cilmente William poderia avaliar a qualidade de seus concorrentes. O tempo escoava-se, e William, não tendo recebido nenhuma res­posta, preparava-se para o pior.

Quando o telegrama chegou, ele jogava beisebol com seis ex-alunos, matando os últimos dias de escola, aqueles dias quen­tes de verão em que os rapazes se arriscam a ser expulsos por alcoolismo, por quebrar vidraças ou por tentar levar para a cama as filhas dos professores, senão as próprias esposas.

William declarava em altos brados a quem quisesse ouvir que bateria o recorde de corrida no beisebol. “Ele é o Babe Ruth da St. Paul’s School”, afirmou Matthew. A essa pretensão exa­gerada, seguiram-se muitas risadas. Quando o telegrama lhe foi entregue, porém, as corridas foram imediatamente esquecidas. William soltou o bastão e abriu o pequeno envelope amarelo. O lançador esperava, impaciente, de bola na mão, assim como o jogadores que estavam no campo externo. William leu o comunicado com extrema atenção.

— Eles querem que você seja um profissional — gritou alguém da primeira base, considerando o telegrama um fato incomum numa partida de beisebol. Matthew deixou o campo externo e encaminhou-se para William, procurando descobrir, pela expres­são do amigo, se a notícia era boa ou má. Conservando a mesma fisionomia, William pôs o envelope nas mãos de Matthew, que o leu, deu um salto no ar, emocionado, e, jogando o papel no chão, seguiu o amigo, que corria de base em base, ambicionando bater o recorde, sem dar importância ao fato de que ninguém tinha batido a bola. O lançador observou os dois rapazes, pegou o tele­grama, leu a mensagem, e em seguida atirou a bola nas arqui­bancadas. O papel amarelo foi passando rapidamente de mão em mão. O último a ler a mensagem foi o ex-aluno que havia entre­gue o telegrama. Depois de ter causado tanta alegria sem ter recebido uma palavra de agradecimento, ele queria saber qual era a causa de tanto entusiasmo.

O telegrama era dirigido a William Lowel Kane, que o rapaz julgou ser aquele atirador incompetente. Dizia o seguinte: Feli­citações por ter ganho a bolsa Hamilton Memorial para o curso de Matemática de Harvard. Seguem maiores detalhes. Abbot Lawrence Lowel, diretor. William não alcançou o recorde, por­que foi carregado por vários interceptadores antes de chegar à base de partida.

Matthew mostrou-se contente com o êxito do amigo mais querido, mas ao mesmo tempo sentiu-se entristecido, porque aquilo significava que dali em diante deveriam se separar. William também estava triste, mas nada disse; os dois rapazes esperariam nove dias para tomar conhecimento de que Matthew também havia sido aceito em Harvard.

Então chegou outro telegrama, este de Charles Lester, que felicitava o filho e convidava os dois rapazes para um chá no Plaza Hotel de Nova Iorque. As avós enviaram os parabéns a William, mas, como informou a avó Kane a Alan Lloyd, não sem certa impertinência, “o menino fez o que dele se esperava, e nada mais do que o pai já conseguira”.

 

Os dois jovens caminhavam tranqüilamente pela Fifth Avenue no dia marcado para o chá, incapazes de esconder seu orgulho. As moças que passavam sentiam-se atraídas pelo elegante par, que simulava não notá-las. Às quinze e cinqüenta e nove, eles transpuseram a porta do Plaza, tiraram a palheta, atravessaram despreocupadamente a sala e observaram os familiares, que os aguardavam no Palm Court. Lá, empertigadas, sentadas em ca­deiras confortáveis, estavam as avós Kane e Cabot, ladeadas por outra senhora idosa, que, presumiu William, devia ser a equiva­lente da avó Kane na família Lester. O sr. e sra. Charles Lester, a filha de Susan (com os olhos pregados em William) e Alan Lloyd completavam o círculo, em que havia duas cadeiras vagas, uma para William, outra para Matthew.

A avó Kane chamou o garçom que se achava mais perto e ergueu a sobrancelha imperiosamente.

— Outro bule de chá e mais tortas, por favor.

O garçom saiu apressado em direção à cozinha.

— Um bule de chá e tortas, madame — falou o garçom ao regressar.

— William, hoje seu pai se sentiria orgulhoso de você — disse o velho ao mais alto dos dois rapazes.

O garçom gostaria de saber o que o jovem elegante havia feito para merecer esse comentário.

William jamais teria prestado atenção ao garçom, não fosse a pulseira de prata que ele trazia no pulso. A peça sem dúvida poderia ter sido comprada na Tiffany’s. Essa incongruência intri­gou-o.

— William — disse a avó Kane —, duas tortas bastam. Não é sua última refeição antes de ir para Harvard.

William fitou-a com ternura e esqueceu-se completamente da pulseira de prata.

 

À noite, deitado em seu pequeno quarto do Plaza Hotel e pensando naquele rapaz que teria dado um grande orgulho ao pai, Abel compreendeu pela primeira vez na vida o que precisamente desejava alcançar. Queria que todos os William do mundo o vissem como um igual.

Abel passara momentos difíceis desde a sua chegada a Nova Iorque. Ocupara um quarto que continha duas camas. Numa delas, ele se revezava com George e a outra era partilhada pelos dois primos do amigo. Como conseqüência, Abel dormia apenas quando uma das camas se achava livre. O tio de George não tinha meios de oferecer-lhe trabalho, e após algumas semanas de muita preo­cupação, em que se vira obrigado a gastar suas economias para sobreviver, Abel perambulou do Brooklyn ao Queens, até encon­trar uma vaga num açougue, que lhe pagava nove dólares por uma semana de seis dias e meio e oferecia-lhe um cômodo no andar de cima. O açougue ficava no coração de uma pequena comunidade polonesa praticamente autosuficiente, localizada na parte baixa do East Side. Abel não tardou a se chocar com o isolamento de seus compatriotas, muitos dos quais não faziam o menor esforço para aprender o inglês.

Todos os fins de semana, Abel encontrava-se com o amigo George e suas namoradas, que continuavam a se suceder num rodízio infindável, mas passava a maioria das noites livres estu­dando num curso noturno, onde aprendia a ler e a escrever em inglês. Progredia devagar, mas não se envergonhava disso, porque desde os oito anos tinha tido poucas oportunidades de estudar. Num prazo de dois anos, porém, já falava com fluência a língua, conservando um sotaque quase imperceptível. Chegara o momento de sair do açougue — mas para fazer o quê, e de que modo? Certa manhã, enquanto limpava a perna de um carneiro, por acaso escutou a conversa de um dos mais importantes fregueses do açougue; era o encarregado do abastecimento do Plaza Hotel, queixando-se de um ajudante de garçom, que fora despedido por furto.

— Como encontrar logo um substituto? — queixou-se o homem.

O açougueiro não tinha nenhuma sugestão a dar. Mas Abel tinha. Pôs o único terno que possuía, andou quarenta e sete quar­teirões e conseguiu o emprego.

Uma vez instalado no Plaza, inscreveu-se num curso noturno de inglês na Universidade de Colúmbia. Estudava com dedicação todas as noites, segurando o dicionário aberto, a outra mão em­punhando uma caneta; no período da manhã, no descanso entre o café e o almoço, transcrevia o editorial do New York Times e consultava as palavras que desconhecia no Webster comprado de segunda mão.

Durante os três anos seguintes, Abel conseguiu galgar os vários postos do Plaza até tornar-se garçom no Oak Room. Ga­nhava só em gorjetas vinte dólares por semana. Nada lhe faltava nesse seu mundo.

O professor da Universidade de Colúmbia impressionou-se tanto com seus progressos em inglês que terminou por aconselhá-lo a inscrever-se num curso noturno adiantado, o primeiro passo para a conquista do diploma de Bachelor of Arts. Das leituras que fazia nos períodos de folga, passou à área de economia, e começou a transcrever os editoriais do Wall Street Journal, deixan­do os do New York Times. Seu novo mundo o absorvia inteira­mente, de modo que ele perdeu contato com todos os amigos poloneses dos primeiros dias de Nova Iorque a não ser George.

Enquanto atendia às mesas do Oak Room, observava cuida­dosamente as personalidades que se misturavam aos clientes — os Bakers, os Loebs, os Whitneys, os Morgans e os Phelps —, esforçando-se por entender o que tornava os ricos diferentes dos outros. Leu H. L. Mencken, The American Mercury, Scott Fitzgerald, Sinclair Lewis e Theodore Dreiser, numa incessante busca de conhecimento. Enquanto os outros garçons folheavam o Mirror, ele lia o New York Times, e nos intervalos, enquanto os outros cochilavam, ele examinava o Wall Street Journal. Não era muito claro o caminho por onde esse acúmulo de conhecimentos o levava, mas ele nunca duvidara da máxima do barão: “Não há nada que substitua uma boa educação”.

Numa terça-feira de agosto de 1926 — lembrava-se bem da ocasião, porque nesse dia morrera Rodolfo Valentino e muitas das mulheres que saíam às compras na Fifth Avenue trajavam preto —, Abel servia como sempre às mesas que se situavam no fundo do restaurante. Eram reservadas aos homens de negócios mais importantes, que desejavam ficar em isolamento e ter certeza de que suas conversas não seriam ouvidas por curiosos. Agradava-lhe servir essas mesas, pois constituíam a área dos negócios em ex­pansão, e amiúde os fragmentos de conversa ofereciam-lhe infor­mações de bastidores. Após a refeição, se o freguês era de um banco ou de uma grande companhia, Abel consultava a cotação das ações da empresa dos fregueses que haviam estado juntos no almoço, e, caso o encontro tivesse sido especialmente bem-sucedido, investia cem dólares na empresa de menor porte, esperando que fosse encampada ou se expandisse com a ajuda da companhia mais poderosa. Quando o freguês pedia charutos após a refeição, Abel aumentava seu investimento para duzentos dólares. Em sete ocasiões, de um total de dez, o valor das ações escolhidas segundo tais critérios dobrou num período de seis meses, durante o qual Abel segurou as ações. Empregando tal método, nos quatro anos em que trabalhou no Plaza, ele perdeu apenas três vezes.

Naquela terça-feira em especial, Abel estava parado junto à mesa, o que só raramente fazia, porque os fregueses pediram-lhe charutos antes mesmo de o almoço ser servido. Pouco depois novos convidados chegaram e, sentando-se à mesma mesa, pediram mais charutos. Abel verificou o nome do anfitrião no livro de reservas do maître: Woolworth. Vira o nome havia pouco tempo nas colunas financeiras, mas não conseguiu situá-lo de imediato. O outro conviva chamava-se Charles Lester, antigo freguês do Plaza, que Abel conhecia como ilustre banqueiro de Nova Iorque. Enquanto colocava os pratos na mesa, ele prestava o máximo de atenção à conversa. Os cavalheiros não davam a menor importân­cia ao atencioso garçom. Abel não descobriu nenhum detalhe digno de nota, mas ouviu que certo negócio havia sido fechado naquela manhã e seria divulgado à tarde, tomando de surpresa um pú­blico despreparado. Foi então que o fato lhe veio à memória. Lera aquele nome no Wall Street Journal. Woolworth era o homem que abrira as primeiras lojas barateiras, que vendiam artigos ao preço de cinco e dez cents. Abel decidiu valorizar seus cinco cents. Enquanto os fregueses deliciavam-se com a sobremesa — a maioria deles pedira torta de queijo com morangos por sugestão de Abel —, ele se retirou do salão por alguns instantes e telefonou ao corretor estabelecido na Wall Street.

— A que preço estão as ações de Woolworth?

Houve um silêncio do outro lado da linha.

— Dois e um oitavo. Têm sido muito procuradas ultima­mente, não sei por quê — respondeu a voz.

– Compre-as no limite da minha conta. Hoje à tarde você saberá do anúncio que a empresa vai fazer.

— Que dirá esse anúncio? — perguntou, intrigado, o cor­retor.

– Não posso dar essa informação — retrucou Abel.

O corretor ficou impressionado. O pouco que conhecia de Abel levava-o a não inquirir demasiado sobre as fontes de infor­mação de seu cliente.

Abel voltou às pressas ao Oak Room, a tempo de servir o café. Os fregueses se demoraram ainda algum tempo, e Abel só voltou à mesa quando se preparavam para sair. O homem que recebeu a nota agradeceu a Abel pelo serviço atencioso e, virando-se para os amigos, de modo que pudessem ouvi-lo, disse:

— Quer uma gorjeta, meu jovem?

— Obrigado, senhor — disse Abel.

— Compre as ações de Woolworth.

Todos caíram na risada. Abel também riu, aceitou os cinco dólares que o homem lhe estendeu e agradeceu. Nos seis meses que se seguiram lucrou dois mil quatrocentos e doze dólares com as ações de Woolworth.

 

Quando lhe conferiram a cidadania americana, poucos dias depois de ele completar vinte e um anos, Abel resolveu que a ocasião merecia ser comemorada. Convidou George, Monika e uma garota chamada Clara. A primeira era a atual, e a segunda, uma ex-namorada de George. Iriam ao cinema ver Dom Juan, com John Barrymore, e jantariam no Bigo’s. George ainda trabalhava como aprendiz na padaria do tio e ganhava oito dólares semanais, e, embora o considerasse seu amigo mais íntimo, Abel não ignorava a diferença cada vez maior que se formara entre eles. George não tinha um vintém, e ele, agora com um depósito de oito mil dólares no banco, cursava o último ano de bacharel em Economia na Universidade de Colúmbia. Abel tinha consciência do rumo que tomara, enquanto George simplesmente havia parado de dizer a todo mundo que seria prefeito de Nova Iorque.

Os quatro passaram uma noite memorável, em particular porque Abel sabia perfeitamente o que um bom restaurante tinha a oferecer. Seus três convidados haviam comido mais do que o suficiente, e, quando o garçom trouxe a conta, George espantou-se ao ver que o total ultrapassara o que ganhava num mês inteiro. Abel pagou a conta sem olhá-la duas vezes. Se você tem de pagar uma conta, dê a entender que o total não é o mais importante. Se, porém, julga-o importante, não volte ao restaurante; mas, seja como for, não faça comentários ou demonstre surpresa — essas eram outras coisas que Abel havia aprendido com os ricos.

As duas da madrugada, quando a comemoração chegou ao final, George e Monika regressaram à parte baixa do East Side, e Abel pressentiu que havia conquistado Clara. Sorrateiramente, entrou com ela pela porta de serviço do Plaza. Subiram ao quarto dele pelo elevador da lavanderia. Abel não precisou seduzi-la demasiado para levá-la à cama. Incumbiu-se de Clara com certa pressa, sem esquecer que teria de dormir um pouco antes de descer e executar os serviços do café da manhã. Completou a tarefa a contento por volta das duas e meia e mergulhou num sono con­tínuo até o despertador soar, às seis em ponto. Tinha ainda algum tempo para possuir Clara mais uma vez antes de pular da cama e vestir-se.

Clara sentou-se na beira da cama e, mal-humorada, obser­vou-o ajustar a gravata borboleta.

Abel deu-lhe um rápido beijo de despedida.

— Saia por onde entrou — alertou-a Abel —, senão vai me meter em apuros. Quando a verei de novo?

— Não vai me ver mais — respondeu Clara com frieza.

— Por que não? — perguntou ele, surpreso. — Alguma coisa que eu fiz?

— Não, uma coisa que não fez. — Ela saltou da cama e começou a vestir-se às pressas.

— Que foi que não fiz? — tornou Abel, magoado. — Quis dormir comigo, não quis?

Clara parou de vestir-se e encarou-o.

— Achei que sim, mas só até perceber que você e o Rodolfo Valentino só têm uma coisa em comum: ambos estão mortos. Num ano de azar, para o Plaza você pode ser o máximo. Mas uma coisa eu lhe digo: na cama você não é de nada! — Ela aprontou-se para ir embora e, já completamente vestida, parou à porta com a mão na maçaneta, prestes a dar o bote derradeiro. — Responda-me: já conseguiu persuadir uma garota a ir para a cama com você uma segunda vez?

Atônito, Abel viu-a bater a porta. Durante todo o dia, ele refletiu gravemente nas palavras de Clara. Não tinha ninguém com quem pudesse discutir o assunto. George acharia graça, e o pessoal do Plaza acreditava que ele conhecia todas as coisas desse mundo. Concluiu que tal problema, como os demais com que se defrontara até então, só poderia ser superado por meio do conhe­cimento e da experiência.

Depois do almoço, no meio da tarde, rumou para a livraria Scribner, na Fifth Avenue. Lá encontrava sempre a solução para a maioria dos problemas econômicos e lingüísticos, mas não en­controu nenhum livro que o ajudasse a resolver seus problemas sexuais. O livro especializado, publicado sob a etiqueta da livraria e editora, mostrou-se inútil, e o The moral dilemma não era apropriado.

Ele saiu da livraria sem ter feito nenhuma aquisição e pas­sou o resto da tarde enfiado na sala sombria de um cinema da Broadway, olhando as imagens sem lhes prestar atenção e ruminando as palavras de Clara. O filme, uma história de amor com Greta Garbo, que só chegou ao primeiro beijo no último mo­mento, não lhe deu mais ajuda que a livraria Scribner.

Quando saiu do cinema, o céu se tornara escuro e um vento gélido soprava nas ruas da Broadway. Abel ainda se surpreendia com o fato de uma cidade poder ser à noite tão barulhenta e clara quanto durante o dia. Caminhou pela parte alta da cidade em direção à 59th Street, esperando que o ar fresco lhe desanu­viasse a cabeça. Parou na banca de jornais da esquina da 52nd Street e comprou um jornal.

— Procurando a companhia de uma mulher? — A voz veio do lado da banca.

Abel arregalou os olhos. A mulher devia ter uns trinta e cinco anos. Maquilagem bastante carregada, os lábios ostentando o mais novo tom de batom. O botão da blusa de seda branca estava solto; saia preta e longa, meias e sapatos também pretos.

— Só cinco dólares, cada cent um prazer — disse ela, ba­lançando os quadris. A abertura da saia revelou a liga na coxa.

— Onde? — perguntou Abel.

— Tenho um quarto, perto daqui.

E virou a cabeça, indicando o lugar. Só então Abel pôde ver nitidamente o rosto dela, iluminado pela luz do poste. Uma mulher simpática. Abel tomou-a pelo braço e começou a andar.

— Se a polícia incomodar a gente — avisou —, somos velhos amigos, e meu nome é Joyce.

Andaram um quarteirão e subiram a escada de um pequeno prédio de apartamentos de aspecto miserável. Abel ficou assom­brado com a decadência do cômodo: uma lâmpada pendurada no teto, uma cadeira, uma bacia e uma cama de armar amarfanhada, que, evidentemente, era usada diversas vezes durante o dia.

— Mora aqui? — perguntou, com ar de descrença.

— Pelo amor de Deus! Oh, não! Só trabalho aqui.

— Por que faz isso? — inquiriu Abel, duvidando que ainda tivesse vontade de continuar no seu propósito.

— Tenho dois filhos para criar e nenhum marido. Quer melhor razão? Como é, vai me querer ou não?

— Vou, sim, mas não do jeito que está pensando — res­pondeu.

A mulher o olhou, desconfiada.

— Não é desses maníacos, leitores do marquês de Sade, é?

— Claro que não — respondeu.

— Não vai me queimar com cigarro, vai?

— Não, nada disso — retrucou, chocado. — Quero apren­der direito. Quero que me dê umas aulas.

— Aulas? Está brincando! Que é que está pensando, queridinho, que isso aqui é um curso noturno para aprender relações sexuais?

— Mais ou menos — disse Abel, sentando-se na ponta da cama.

Explicou-lhe então como Clara havia reagido na noite an­terior.

— Vai me ajudar?

A dama da noite esquadrinhou Abel, achando que esse era o dia 1.° de abril.

— Pois não! — disse ela afinal. — Mas vou cobrar cinco dólares por uma aula de meia hora.

— Mais caro que o curso de Economia em Colúmbia — disse Abel. — De quantas lições vou precisar?

— Depende de você aprender rápido ou não, certo?

— Podemos começar já, então — sugeriu Abel, tirando cinco dólares do bolso interno do paletó e entregando-os à mulher.

Ela pegou o dinheiro e guardou-o na liga, num claro indício de que não ia tirar as meias.

— Sem roupa, benzinho — ela disse. — Não se aprende muito com tanta roupa.

Depois que ele se despiu, ela o analisou com olhos críticos.

— Não é exatamente um Douglas Fairbanks. Mas não se preocupe. Com a luz apagada isso não tem a menor importância. Interessa só o que sabe fazer.

Abel sentou-se na beira da cama, ouvindo-a explicar de que modo devia tratar uma mulher. Ela ficou surpresa ao ver que Abel não a desejava de fato, e surpreendeu-se ainda mais nas semanas seguintes, quando ele continuou a procurá-la.

— Como vou saber se aprendi direito?

— Vai saber, baby — replicou Joyce. — Se me fizer gozar, será capaz de dar prazer até a uma múmia egípcia.

Em primeiro lugar, ela ensinou-lhe as regiões sensíveis do corpo de uma mulher; em segundo, a ser paciente no ato de amar e quais os indícios pelos quais ele saberia se o que fazia dava prazer à mulher. Em terceiro, como usar a língua e os lábios em todas as partes do corpo afora a boca da mulher.

Abel prestava atenção a tudo o que ela lhe dizia e seguia suas instruções escrupulosamente, embora, no começo, um tanto mecanicamente. Embora Joyce lhe assegurasse que progredia a olhos vistos, ele duvidara de sua sinceridade. Depois de três sema­nas e cento e dez dólares, para sua surpresa e alegria, pela primeira vez Joyce ressuscitou em seus braços. Ela lhe segurava a cabeça com as mãos, enquanto ele lhe lambia gentilmente os bicos dos seios. Passando-lhe a mão de leve entre as pernas, ele sentiu que ela estava úmida — pela primeira vez, — e, depois de penetrá-la, ouviu-a gemer, um som que nunca antes havia escutado e que lhe agradou intensamente. Joyce agarrou-lhe as costas e pediu que não parasse. Os gemidos continuaram, às vezes fortes, às vezes fracos. Finalmente, ela emitiu um grito estridente, e os seus dedos, que antes quase se enterravam nas costas dele e o aperta­vam impetuosamente, afrouxaram.

Após recobrar o fôlego, Joyce falou:

— Baby... Acaba de tirar o diploma como o primeiro da classe.

Mas ele mesmo nem sentira o gozo máximo.

Para comemorar a conquista dos dois diplomas, Abel com­prou ingressos na primeira fileira a preços de cambista e levou George, Monika e Clara, ainda contrariada, para assistir a Gene Tunney enfrentar Jack Dempsey na disputa do campeonato mun­dial de pesos pesados. Nessa noite, depois da luta, Clara achou que não era mais que sua obrigação dormir com Abel, já que ele havia gasto tanto dinheiro com ela. Quando amanheceu, implo­rou-lhe que não a deixasse.

Abel jamais tornou a procurar Clara.

Depois de conseguir o bacharelado em Colúmbia, Abel co­meçou a ficar descontente com a vida que levava no Plaza Hotel, mas não via como conseguir uma mudança. Embora se visse cer­cado por alguns dos homens mais ricos e bem-sucedidos dos Esta­dos Unidos, achava difícil abordá-los diretamente, cônscio de que uma tal imprudência lhe custaria o emprego, e, em todo caso, os fregueses não encarariam com seriedade as aspirações de um sim­ples garçom. Havia muito ele decidira tornar-se chefe dos garçons.

Certo dia, o sr. e a sra. Ellsworth Statler almoçaram no Edwardian Room do Plaza, para onde Abel fora escalado durante uma semana, em substituição a um colega. Ele fez tudo o que pôde para causar boa impressão no célebre hôtelier, e a refeição servida estava esplêndida. Ao sair, Statler agradeceu sinceramente a Abel e deu-lhe dez dólares, mas esse foi o fim de seu breve relacionamento. Abel observou-o desaparecer atrás das portas gira­tórias do Plaza, perguntando-se quando seria agraciado com outra oportunidade.

Sammy, o chefe dos garçons, deu-lhe um tapinha no ombro.

— O que conseguiu com o sr. Statler?

— Nada — respondeu Abel.

— Nem mesmo uma gorjeta? — perguntou Sammy, duvi­dando da resposta.

— Sim, sim, uma gorjeta — disse Abel. — Dez dólares — e entregou o dinheiro a Sammy.

— Isso é mais plausível — disse Sammy. — Estava come­çando a imaginar que você tinha a intenção de me burlar, Abel. Dez dólares! Bom demais até mesmo para o sr. Statler. Você deve tê-lo impressionado bastante.

— Não acredito.

— O que quer dizer com isso? — indagou Sammy.

— Não tem importância — respondeu ele, afastando-se.

— Espere aí, Abel. Tenho um recado para você. O cava­lheiro da mesa 17, um certo sr. Leroy, quer conversar com você pessoalmente.

— Sobre o quê, Sammy?

— Como posso saber? Provavelmente gostou dos seus olhos azuis.

Abel relanceou os olhos à mesa número 17, buscando um ilustre desconhecido, porque a mesa estava mal colocada, ao lado da porta de vaivém da cozinha. Abel costumava evitar a mesa localizada naquele extremo do restaurante.

– Quem é ele? — perguntou. — O que quer de mim?

– Não sei — disse Sammy, sem se incomodar de olhar para a mesa. — Não estou a par da vida de todos os fregueses, como você. Minha filosofia é a seguinte: servir-lhes uma boa comida, garantir uma boa gorjeta e fazer votos para que retor­nem. Pode parecer simplória a você, mas para mim é excelente. Talvez a Universidade de Colúmbia não lhe tenha ensinado as coisas mais elementares. Aponte sua mira para aquele alvo, Abel, e, se gorjeta for o assunto, não se esqueça de entregar-me o dinheiro.

Abel sorriu, olhando a calva de Sammy, e dirigiu-se para a mesa, onde estava um homem que trajava uma jaqueta de tecido axadrezado de cores variegadas, para o qual ele torceu o nariz, e uma mulher ainda jovem, de cabeleira encaracolada, loira e desalinhada, que por um momento o distraiu, levando-o a supô-la a namorada nova-iorquina do sujeito de jaqueta xadrez. Abel pôs nos lábios seu sorriso de conveniência, apostando consigo mesmo que o homem armaria uma confusão por causa da porta de vai­vém e exigiria a troca de mesa só para impressionar a loira eston­teante. Quem afinal gostava de ficar tão perto do cheiro da cozinha e do estalo que a porta fazia ao ir e vir com o contínuo movi­mento dos garçons? Mas seria impossível trocar de mesa, porque o hotel já estava abarrotado de residentes e de nova-iorquinos que utilizavam o restaurante como local predileto e por pouco não consideravam os visitantes como meros intrusos. Por que Sammy sempre largava nas mãos dele os fregueses mais compli­cados?

Abel aproximou-se com cautela.

— Deseja falar comigo, senhor?

— Sem dúvida — afirmou o homem, com um sotaque sulis­ta. — Meu nome é Davis Leroy, e esta é minha filha, Melanie.

Os olhos de Abel deixaram momentaneamente o sr. Leroy e depararam com os olhos mais verdes jamais vistos.

— Tenho observado você nestes últimos cinco dias, Abel — foi dizendo o sr. Leroy com sua fala arrastada de sulista.

Se o inquirissem, Abel teria de admitir que só notara o sr. Leroy nos últimos cinco minutos.

— O que vi me impressionou muitíssimo, Abel, porque você tem classe, classe autêntica, e é isso exatamente o que tenho procurado. Ellsworth Statler foi um tolo em não contratá-lo imediatamente.

Abel começou a estudar o sr. Leroy mais atentamente. Suas bochechas rosadas e sua papada denunciavam que nunca na vida ele ouvira falar na lei seca, e os pratos vazios à sua frente expli­cavam seu ventre proeminente, mas nem o nome nem o rosto tinham qualquer significado para ele. Num almoço normal, Abel familiarizava-se com o histórico de todas as pessoas que se senta­vam a trinta e sete das trinta e nove mesas do Edwardian Room. Nesse dia, o sr. Leroy era um dos dois desconhecidos.

O sulista continuava a falar.

— Bem, não sou um dos multimilionários que se sentam às mesas do Plaza.

Abel ficou impressionado. O freguês comum não costumava apreciar os méritos relativos das diferentes mesas.

— Não que esteja em má situação. Com efeito, meu melhor hotel deverá também crescer muito, a ponto de, algum dia, tor­nar-se tão imponente quanto esse.

— Estou certo que sim, senhor — disse Abel, não querendo contrariá-lo.

Leroy, Leroy, Leroy. O nome nada significava para ele.

— Mas deixe-me ir direto ao assunto, filho. O hotel prin­cipal da minha cadeia precisa de um novo subgerente. Se estiver interessado, procure-me no meu apartamento depois que largar o serviço.

O homem entregou-lhe um cartão impresso em relevo.

— Obrigado, senhor — e Abel leu o cartão: Davis Leroy. Grupo Richmond de Hotéis, Dallas. Abaixo: No futuro, um hotel em cada Estado. O nome ainda nada lhe dizia.

— Espero revê-lo — disse amistosamente o texano de ja­queta axadrezada.

— Obrigado, senhor — e Abel sorriu para Melanie, cujos olhos continuaram gelidamente verdes. Retornou para perto de Sammy, que, com a cabeça inclinada, ainda contava sua receita em gorjetas.

— Sammy, já ouviu falar do Grupo Richmond de Hotéis?

— Claro! Meu irmão chegou a trabalhar como ajudante de garçom num deles. Deve haver uns oito ou nove, todos espalha­dos pelo Sul, dirigidos por um texano maluco de que me esqueci o nome. Por que pergunta? — inquiriu Sammy, olhando-o, des­confiado.

— Por nenhum motivo em particular, Sammy.

– Sempre existe uma intenção por trás do que você faz, Abel. O que queria o fulano da mesa 17?

– Queixou-se do barulho da cozinha. Não posso deixar de concordar com ele.

– E o que ele quer que eu faça? Que o ponha na varanda? Quem pensa que é? John D. Rockefeller?

Abel deixou Sammy contando o dinheiro e resmungando e limpou suas mesas o mais depressa possível. Em seguida, subiu para o quarto e começou a pesquisar o Grupo Richmond. Satisfez logo sua curiosidade com alguns telefonemas. A cadeia pertencia a uma empresa particular com um total de onze hotéis, o maior deles, o Richmond Continental, em Chicago, com trezentos e quarenta e dois apartamentos de luxo. Resolveu que nada perderia visitando o sr. Leroy e Melanie. Verificou o apartamento em que se hospedavam: 85 — o melhor entre os menores. Bateu à porta um pouco antes das dezesseis horas e decepcionou-se ao descobrir que Melanie não se achava na companhia do pai.

— Estou contente de que tenha vindo, Abel. Sente-se.

Pela primeira vez em mais de quatro anos no Plaza, Abel sentou-se na qualidade de convidado.

— Quanto ganha aqui? — perguntou o sr. Leroy.

A pergunta foi feita tão à queima-roupa que Abel descon­certou-se.

— Vinte e cinco dólares por semana, incluindo gorjetas.

— Para começar, pago-lhe trinta e cinco por semana.

— A que hotel se refere? — indagou Abel.

— Como sou um bom observador do caráter alheio, Abel, posso afirmar que, depois de ter largado o serviço, às quinze e trinta, você passou meia hora tentando descobrir a qual hotel me refiro. Acertei?

Abel começou a gostar do texano.

— O Richmond Continental de Chicago? — arriscou.

Davis Leroy riu ruidosamente.

— Acertou! E eu acertei escolhendo você!

Abel começou a raciocinar cada vez mais depressa.

— Quantas pessoas estão acima do subgerente na direção do hotel?

— O gerente, eu e mais ninguém. O gerente é fleumático, cortês, e está perto da aposentadoria; como ainda tenho outros dez hotéis com que me preocupar, não creio que você vá encon­trar muitas dificuldades, embora, confesso, o de Chicago seja meu favorito, o primeiro hotel do Norte. Como Melanie estuda lá, passo mais tempo na Cidade do Vento do que devia. Não cometa o mesmo engano dos nova-iorquinos de minimizar Chicago. Pensam que Chicago é um mero selo postal colado num envelope gigantesco; e, naturalmente, o envelope são eles.

Abel sorriu.

— Atualmente, o hotel acha-se um pouco abandonado — continuou o sr. Leroy —, e o último subgerente saiu do emprego de repente, sem sequer notificar-me ou dar-me qualquer explica­ção. Por isso estou precisando colocar no cargo um homem forte, que desenvolva todo o seu potencial. Mas escute o que tenho a lhe dizer, Abel: observei-o cautelosamente nestes últimos cinco dias, e tenho certeza de que você é esse homem. Interessa-lhe ir para Chicago?

— Quarenta dólares, mais dez por cento sobre os lucros que vierem do crescimento, e aceito o emprego.

— O quê?! — exclamou Davis Leroy, estupefato. — Ne­nhum dos meus gerentes recebe um salário desses. Todos se revol­tariam caso viessem a saber disso!

— Se o senhor não contar a eles, eu também nada direi — disse Abel.

— Agora, sim, não há dúvida de que escolhi o homem certo, ainda que saiba fazer um negócio vantajoso com mais inte­ligência que um ianque com seis filhos. —- Deu uma batida com a mão no braço da poltrona. — Aceito suas condições, Abel.

— O senhor quer referências, sr. Leroy?

— Referências! Conheço sua formação e a história da sua vida desde que imigrou da Europa até a luta para diplomar-se em Economia na Universidade de Colúmbia. Que pensa que andei fazendo nestes últimos cinco dias? Se quisesse referências, não o colocaria no segundo posto mais importante do meu melhor hotel. Quando poderá começar?

— Em um mês, a partir de hoje.

— Ótimo! Estarei aguardando você.

Abel levantou-se da cadeira do hotel; de pé, sentiu-se bem mais feliz. Cumprimentou o sr. Davis Leroy, o homem da mesa número 17 — reservada exclusivamente aos desconhecidos.

 

Ao contrário do que havia imaginado, deixar Nova Iorque e o Plaza Hotel, seu primeiro e verdadeiro lar desde o castelo situado nas proximidades de Slonim, logo se revelou uma sepa­ração dolorosa. Não esperava que fosse tão difícil dizer adeus a George, a Monika e aos poucos amigos que fizera na universi­dade. Sammy e os garçons o surpreenderam com uma reunião de despedida no bar.

– Esperamos notícias suas, Abel Rosnovski — disse Sam­my, com o que todos concordaram.

 

O Richmond Continental Hotel de Chicago ficava na privi­legiada Michigan Avenue, no coração da cidade que crescia mais depressa nos Estados Unidos. Tal situação alegrou Abel, que conhecera a máxima de Ellsworth Statler, segundo a qual apenas três coisas interessavam de fato no negócio de hotelaria: localiza­ção, localização e localização. E era essa quase a única qualidade do Richmond. Davis Leroy havia atenuado o problema ao dizer-lhe que o hotel no momento estava um tanto abandonado. Desmond Pacey, o gerente, não era fleumático e nem sequer cortês, como o descrevera o proprietário; não passava de um mandrião consumado, e, numa clara demonstração de que não simpatizava com Abel, instalou-o num cubículo do anexo residencial dos fun­cionários do outro lado da rua, excluindo-o do hotel. Um rápido exame dos livros de registro do Richmond mostrou a Abel que o índice de ocupação diária estava abaixo dos quarenta por cento e que só a metade do restaurante era ocupada, porque, para dizer o mínimo, a comida era repugnante. Os funcionários falavam três ou quatro línguas entre si, mas nenhuma delas parecia ser o inglês, e não deram boa acolhida ao parvo polonês que chegara de Nova Iorque. Não causava admiração o fato de que o último subgerente tivesse desaparecido. Se o hotel predileto de Davis Leroy era de fato o Richmond, que pensar dos outros dez que integravam a cadeia? Mesmo que o novo patrão tivesse uma arca de tesouro sem fundo no fim do arco-íris do Texas!

Durante os primeiros dias de Chicago, a melhor informação obtida por Abel foi que Melanie Leroy era a filha única do sr. Leroy.

 

No outono de 1924, William e Matthew já eram calouros da Universidade de Harvard. Não obstante a objeção das avós, William aceitou a bolsa de estudos Hamilton Memorial, e, ao custo de duzentos e noventa dólares, presenteou-se com o último Ford Modelo T, ao qual batizou de “Daisy”, seu primeiro e ver­dadeiro amor na vida. Pintou “Daisy” de um amarelo vivo, re­duzindo seu valor à metade e dobrando o número de namoradas. Eleito por maioria esmagadora, Calvin Coolidge retornou à Casa Branca, e o volume de negócios da Bolsa de Valores de Nova Iorque alcançou o recorde de dois milhões, trezentos e trinta e seis mil, cento e sessenta ações.

Os dois rapazes (não podemos continuar chamando-os de meninos, anunciou a avó Cabot) mostravam-se entusiasmados com a universidade. Após um movimentado verão de jogos de tênis e golfe, determinaram que se ocupariam com atividades mais sé­rias. Tão logo adentraram o novo quarto da Costa Dourada, sen­sivelmente melhor que o antigo e pequeno gabinete da St. PauPs School, William entregou-se aos estudos e Matthew saiu à procura do clube de remo da universidade. Matthew foi eleito líder da turma de calouros, e William, abandonando os livros todas as tardes de domingo, sentava-se às margens do rio Charles e assistia ao desempenho do amigo. No íntimo, apreciava o sucesso de Matthew, embora fizesse ironias.

— A vida não tem nada a ver com oito homens puxando pesados pedaços de madeira disformes contra águas agitadas, en­quanto um homem lhes dá ordens aos gritos — afirmou William, desdenhoso.

— Diga isso a Yale — retrucou Matthew.

Nesse meio tempo, William não tardou a provar aos profes­sores de Matemática que era nos estudos exatamente o equivalente de Matthew no esporte: estava mil metros à frente dos competi­dores. Tornou-se presidente da Sociedade de Debates dos Calouros e expôs ao tio-avô, o diretor Lowell, o primeiro plano de seguro universitário, de acordo com o qual todos os estudantes que saís­sem de Harvard levariam uma apólice de seguro de vida por ape­nas mil dólares, designando a universidade como beneficiária. Segundo os cálculos de William, cada participante gastaria menos de um dólar por semana, e, se quarenta por cento dos alunos se associassem ao plano, Harvard obteria um lucro garantido de aproximadamente três milhões de dólares ao ano, a partir de 1950. O diretor ficou impressionado com o projeto e deu-lhe total apoio; um ano depois, convidou William para integrar o conselho da Comissão de Levantamento de Fundos da universidade. William aceitou o convite com satisfação, sem tomar consciência de que era um compromisso para toda a vida. O diretor Lowell informou à avó Kane que ele havia capturado uma das maiores autoridades financeiras de sua geração, sem nenhuma despesa. Com certa irri­tação, a avó Kane respondeu ao primo que “todos têm o seu destino, e que aquilo ensinaria William a ver a letra com a qual o dele havia sido escrito”.

 

Quase imediatamente após o início do segundo ano, chegou o momento de William escolher (ou de ser escolhido para) um dos clubes que dominavam o panorama social dos endinheirados de Harvard. William foi “empurrado” para o Porcellian, o mais antigo, o mais rico, o mais exclusivo e o menos ostentoso desses clubes. Quando ia à sede da Massachusetts Avenue, impropria­mente situada sobre a lanchonete de auto-serviço Hayes-Bickford, William costumava sentar-se numa poltrona bastante confortável, refletindo sobre o problema dos mapas de quatro cores, discutindo as repercussões do julgamento Loeb-Leopold e olhando distraidamente para a rua lá embaixo através de um espelho estrategica­mente colocado, enquanto ouvia o enorme aparelho de rádio, de invenção recente.

Durante as férias de Natal, Matthew convenceu-o a esquiar em Vermont, e William passou uma semana ofegando encostas acima, seguindo as pegadas do habilidoso amigo.

— Matthew, qual é vantagem de subir uma encosta íngre­me durante uma hora, para depois descê-la numa questão de se­gundos, além de correr o sério risco de fraturar um membro ou mesmo de perder a vida?

— Tem sobre mim um efeito bem mais estimulante do que o gráfico de uma equação — resmungou. — Por que não admite que, seja na subida, seja na descida, você é um fracasso?

No segundo ano, os amigos se defrontaram com muitas tare­fas a cumprir, embora para cada um o sentido de “cumprir” fosse naturalmente diferente. Nos dois primeiros meses do verão, tra­balharam como assistentes do gerente do banco de Charles Lester, que, havia muito, desistira de manter William afastado do banco. Chegaram finalmente os dias quentes de agosto e os rapazes pas­saram a maior parte do tempo percorrendo no “Daisy” as zonas rurais da Nova Inglaterra, navegando o rio Charles com a maior variedade de garotas possível e freqüentando todas as festas a que eram convidados. Num abrir e fechar de olhos, haviam se colocado entre as personalidades mais procuradas e aceitas da universidade, passando a ser conhecidos pelos apelidos de Doutor e Suador. A sociedade de Boston compreendeu perfeitamente que a garota que se casasse com William Kane ou com Matthew Lester não precisaria se preocupar com o futuro, mas, tão depressa quanto as mamães esperançosas apareciam com suas filhas de rostos fresquinhos, as vovós Kane e Cabot despachavam-nas sem a menor cerimônia.

 

Aos 18 de abril de 1927, William festejou seu vigésimo primeiro aniversário comparecendo à última reunião dos curado­res de seus bens. Alan Lloyd e Tony Simmons apresentaram toda a documentação destinada a receber sua assinatura.

— William, meu querido — começou Milly Preston, como se lhe tivesse tirado um grande peso dos ombros —, tenho cer­teza de que você será capaz de cuidar direitinho de seus bens, como nós o fizemos.

— Espero que sim, sra. Preston, mas, se alguma vez na vida eu quiser perder meio milhão de dólares da noite para o dia, já sei a quem procurar.

Milly Preston enrubesceu e não tentou responder.

O depósito montava nessa data a mais de trinta e dois mi­lhões de dólares, para cuja proteção William já definira seus pla­nos. Por outro lado, já havia também se lançado à empresa de fazer um milhão de dólares antes de deixar Harvard, um valor ínfimo se comparado à quantia do depósito, mas os bens herdados importavam menos que o saldo de sua conta no banco de Lester.

No verão, as avós, temendo nova invasão de garotas rapaces, enviaram William e Matthew à Europa numa grande excursão, que ao final resultou num grande êxito para ambos. Matthew, superando a barreira das línguas, conheceu uma linda moça em cada capital importante da Europa — o amor, garantiu a William, era um artigo internacional. William teve contatos com os dire­tores dos bancos mais importantes da Europa — o dinheiro, ga­rantiu a Matthew, também era um artigo internacional. De Lon­dres a Berlim e Roma, os dois jovens deixaram atrás de si corações partidos e banqueiros convenientemente impressionados. Retor­naram a Harvard, no mês de setembro, preparados para se agar­rar aos livros e concluir o último ano letivo.

 

No implacável inverno de 1927, a avó Kane faleceu, aos oitenta e cinco anos, e William chorou pela primeira vez desde a morte da mãe.

– Tranqüilize-se — disse Matthew, após tolerar a depres­são de William alguns dias. — Ela viveu bastante e esperou muito para descobrir se Deus era um Cabot ou um Lowell.

William não deu atenção às palavras judiciosas que tão pouco compreendera enquanto a avó vivia e organizou um funeral ao qual ela própria se orgulharia de comparecer. Embora a grande dama tivesse chegado ao cemitério num carro fúnebre Packard (“Uma dessas engenhocas modernas, só por cima do meu cadá­ver”, embora, com efeito, o carro estivesse por baixo), esse meio aviltante de transporte seria o único aspecto que ela censuraria na cerimônia de adeus ideada pelo neto. A morte da avó levou William a entregar-se com afinco aos estudos nesse último ano em Harvard. Desejava arrebatar o mais importante prêmio de Matemática em sua memória. A avó Cabot morreu seis meses depois; provavelmente, comentou William, por não ter ninguém com quem conversar.

 

Em fevereiro de 1928, William foi procurado pelo presi­dente da Sociedade de Debates. Em março haveria um debate sobre o tema “Socialismo ou capitalismo para o futuro da Amé­rica”, e, como parecia natural, William deveria representar o capitalismo.

— E se eu lhe dissesse que gostaria de falar apenas em favor das massas oprimidas? — indagou William, surpreendendo o representante e levemente irritado com o fato de que seus pontos de vista fossem simplesmente presumidos por pessoas estranhas porque ele tinha herdado um nome célebre e um banco próspero.

– Bom, William, falando francamente, imaginamos que sua preferência seria, bem...

– Está certo, aceito o convite. Terei, naturalmente, a liber­dade de escolher meu parceiro, não?

— Oh, sim, naturalmente.

– Ótimo, escolho então Matthew Lester. Quem serão nossos adversários, se é que posso saber?

– Só ficará sabendo um dia antes do debate, quando afixar­mos os cartazes no pátio.

Durante todo o mês seguinte, Matthew e William trans­formaram as críticas aos jornais de esquerda e de direita, que faziam durante o café da manhã, e as conversas noturnas sobre o sentido da vida em exercícios de estratégia com os quais se pre­paravam para aquilo que o campus já começara a chamar de “O Grande Debate”. Matthew seria o primeiro a falar, decidira William.

À medida que o dia fatídico se aproximava, já se sabia que a maioria dos estudantes e professores politicamente mais conscientes e até mesmo algumas das pessoas mais ilustres de Boston e de Cambridge haviam prometido comparecer. Na manhã ante­rior ao debate, os rapazes foram ao pátio verificar os nomes dos adversários.

— Leland Crosby e Thaddeus Cohen. Esses nomes lhe di­zem alguma coisa, William? Esse Crosby deve ser membro da família Crosby de Filadélfia.

— Sem dúvida. “O Fanático Vermelho da Rittenhouse Square”, como o definiu com propriedade a própria tia dele. Trata-se do revolucionário mais convincente do campus. É abastado e gasta todo o dinheiro em causas populares radicais. Já posso imaginar como vai abrir o debate. — William imitou o modo exacerbado de Crosby falar. — “O que conheço, em primeiro lugar, é a ganância e a conseqüente falta de consciência social da classe bur­guesa americana.” Se cada um na audiência já não tiver ouvido isso umas cinqüenta vezes, acho que será um excelente adversário.

— E Thaddeus Cohen?

— Nunca ouvi falar dele.

Na noite seguinte, recusando-se a admitir o nervosismo que sentiam, os amigos saíram para o encontro em meio à neve e ao vento gélido, os casacões açoitados pela ventania, passando pelas colunas fulgurantes da recém-construída Biblioteca Widener — tal como o pai de William, o filho do doador havia morrido no Titanic —, até chegarem ao Boylston Hall.

— Se levarmos uma surra, com esse frio, pelo menos não haverá ninguém para testemunhá-la — comentou Matthew, espe­rançoso.

Mas, ao darem a volta pela lateral da biblioteca, viram um fluxo constante de figuras ruidosas e irrequietas que subiam a escadaria e ordenadamente ocupavam as poltronas do auditório. Uma vez lá dentro, mostraram-lhes os lugares no pódio. William sentou-se e permaneceu imóvel, mas seus olhos pinçavam na as­sistência as pessoas conhecidas: o diretor Lowell, sentado discre­tamente na fileira do meio; o venerável Newbury St. John, pro­fessor de Botânica; uma senhora metida a sabida da Brattle Streea, que ele havia visto nas reuniões da Red House; e, à sua direita, um grupo de homens e mulheres bastante jovens e com ar de boêmios, alguns deles sem gravata, que, virando-se para o lado, começaram a aplaudir: os oradores oficiais — Crosby e Cohen – dirigiam-se ao tablado.

Crosby era o mais notável dos dois, alto e magro, quase uma caricatura. Vestia com displicência — ou com extremo cuidado – um terno de lã grossa, mas usava uma camisa engomada e justa. Um cachimbo que aparentemente não tinha nenhuma re­lação com o corpo, a não ser com o lábio inferior, pendia-lhe da boca. Thaddeus Cohen era mais baixo. Usava óculos sem aro e um terno de tecido de lã penteada e escura, de corte perfeito.

Os quatro oradores apertaram-se as mãos, sisudos, enquanto se faziam os arranjos de última hora. Os sinos da Igreja Memo­rial, a uma centena de metros dali, deram sete badaladas.

— Sr. Leland Crosby Júnior — anunciou o presidente da sociedade.

O discurso de Crosby deu a William razões para se congra­tular. Previra tudo, desde o tom ríspido com que Crosby falaria, até os pontos que abordaria de forma exagerada, quase histérica. Foram repetidas as fórmulas do radicalismo americano — o Hay-market, o truste monetário, a Standard Oil e até a Cruz de Ouro. Segundo William, ele não fizera mais que se exibir, embora hou­vesse recebido o esperado aplauso da claque situada à esquerda da platéia. Quando Crosby voltou a sentar-se, era evidente que não lograra obter novos partidários e, ao que parecia, perdera alguns dos antigos. O confronto com Matthew e William — igualmente ricos, igualmente bem posicionados em termos sociais, mas que, egoisticamente, recusavam tornar-se mártires em nome da causa da justiça social — prometia ser devastador.

Matthew falou com desenvoltura e objetividade. Era a encarnação da tolerância liberal. Ao retomar o assento, debaixo de um aplauso estridente, William o cumprimentou calorosamente.

— Tudo vai bem, a julgar pela vibração — segredou.

Mas Thaddeus Cohen surpreendeu virtualmente a todos. Expressava-se de maneira agradável e tímida, mas com um discurso cordato. Suas referências e citações eram de caráter universal, precisas e iluminadoras. Sem transmitir à assistência a sensação de que tencionava causar impressão, exsudava uma seriedade moral capaz de fazer tudo o que não fosse retidão parecer um ver­dadeiro fracasso para o ser humano racional. Mostrava-se disposto a reconhecer os excessos de sua própria facção e as deficiências de seus líderes, mas deixou a impressão de que, a despeito de seus perigos, não havia alternativa fora do socialismo, caso se desejasse dignificar a condição da humanidade.

William ficou aturdido. Um ataque rigorosamente lógico à plataforma política dos adversários seria inútil depois da exposi­ção pacífica e persuasiva de Cohen. Contudo, superá-lo como porta-voz da esperança e da fé no espírito humano seria impos­sível. William, em primeiro lugar, concentrou-se em refutar algu­mas das investidas de Crosby e em seguida rebateu os argumentos de Cohen, afirmando sua própria fé na capacidade do sistema americano de produzir os melhores resultados através da com­petição, fosse intelectual, fosse econômica. Concluída sua expo­sição, achou que fizera um bom jogo defensivo, mas nada mais, e foi sentar-se, admitindo ter sido derrotado por Cohen.

Crosby era o orador dos adversários encarregados de refu­tá-lo. Começou com violência, como se a partir daquele instante precisasse derrotar não apenas William e Matthew, mas também Cohen. Perguntou aos assistentes se conseguiriam identificar o “inimigo do povo” presente entre eles ali no auditório. Durante longos segundos, olhou ferozmente para todas as pessoas, enquan­to estas se mostravam incomodadas pelo silêncio embaraçoso, e seus partidários baixavam os olhos e os fixavam nos sapatos. Então ele inclinou-se para a frente e rugiu.

— Ele está aqui, diante de todos vocês. Ele acabou de falar. O nome dele é William Lowell Kane. — E apontando a cadeira em que William se sentava, sem olhá-lo, trovejou: — O banco de sua propriedade possui minas nas quais os operários morrem para dar aos patrões um milhão extra em dividendos anuais. O banco dele apóia as ditaduras sanguinárias e corruptas da Amé­rica Latina. Por intermédio do banco dele, o Congresso se deixa subornar e arruína os pequenos fazendeiros. O banco dele...

E a diatribe avançou durante alguns minutos. William per­maneceu silencioso, impassível, de vez em quando rabiscando al­gum comentário em seu bloco de notas de papel amarelo. Algumas pessoas na platéia começaram a gritar “Não!”. Os partidários de Crosby retrucavam lealmente. Os funcionários não escondiam seu nervosismo.

O tempo concedido a Crosby estava prestes a terminar. Então ele ergueu o punho e disse:

– Cavalheiros, afirmo que a pouco mais de duzentos me­tros daqui encontraremos a resposta à situação em que se acham os Estados Unidos. Lá está a Biblioteca Widener, a maior biblio­teca particular de todo o mundo. Nela vêm estudar imigrantes e pobres, juntamente com americanos da melhor formação, com o intuito de aumentar o conhecimento e a prosperidade do mundo. Por que ela existe? Porque um rico playboy teve a infelicidade de, há dezesseis anos atrás, embarcar num navio chamado Titanic. Senhoras e senhores, enquanto o povo desta nação não entregar nas mãos de cada membro da classe dominante uma passagem que lhe dê direito a um camarote no Titanic do capitalismo, a riqueza amealhada neste grande continente não será libertada e destinada à liberdade, à igualdade e ao progresso.

Enquanto Matthew ouvia o discurso de Crosby, seus senti­mentos passaram do regozijo de que, por essa falta de tato, a vitória se tivesse transferido para o seu lado, ao embaraço pelo comportamento do adversário, e até ao acesso de ira à mera men­ção do Titanic. Não tinha idéia de como William responderia à provocação.

Quando os ânimos se acalmaram um pouco, o presidente caminhou até a tribuna.

— Sr. William Lowell Kane.

William dirigiu-se para a plataforma e percorreu o olhar pela assistência. Um silêncio cheio de expectativa pairou na sala.

— É minha opinião que os pontos de vista emitidos pelo sr. Crosby não são dignos de resposta.

E voltou a sentar-se. Houve um momento de perplexidade, e então irrompeu uma salva de palmas.

O presidente retornou à plataforma, sem saber que atitude tomar. A voz que ecoou por trás dele rompeu a tensão.

— Se me permite, senhor presidente, quero perguntar ao sr. Kane se posso utilizar o tempo de réplica a que ele teria direito.

Era Thaddeus Cohen.

William, fazendo um sinal de cabeça ao presidente, acedeu.

Cohen subiu à tribuna e olhou para a platéia tranqüilamente.

– Sabe-se há muito — começou — que o maior obstáculo ao sucesso do socialismo democrático nos Estados Unidos tem sido o extremismo de alguns de seus adeptos. Nada exemplificaria tão bem esse tato lastimável como o discurso que meu colega acabou de fazer. A predisposição a comprometer o avanço da causa através do apelo ao extermínio físico de todos os que se opõem a ela poderia ser compreensível num imigrante endure­cido pela luta, num veterano em lutas estrangeiras bem mais violentas do que as nossas. Nos Estados Unidos, essa atitude é patética e injustificável. Falando por mim, apresento minhas sin­ceras desculpas ao sr. Kane.

Dessa vez o aplauso foi instantâneo. Toda a audiência pôs-se de pé e o aplaudiu demoradamente.

William levantou-se para cumprimentar Thaddeus Cohen. Ambos não ficaram surpresos ao constatar que William e Matthew haviam ganho a votação por uma margem de mais de cento e cinqüenta votos. O debate estava encerrado, e a assistência saiu ordenadamente pelos caminhos cobertos de neve, conversando animadamente.

William insistiu em que Thaddeus Cohen o acompanhasse, e a Matthew, ao clube para um drinque. Os três atravessaram a Massachusetts Avenue, vendo com dificuldade o caminho que tomavam sob a nevasca, e detiveram-se diante de uma enorme porta preta, quase em frente ao Boylston Hall. William abriu-a com sua chave, e entraram no vestíbulo.

Antes que a porta se fechasse, Thaddeus Cohen resolveu falar.

— Receio não ser bem recebido aqui.

William fitou-o, surpreso por um segundo.

— Bobagem. Você está comigo.

Matthew lançou um olhar ao amigo, tentando preveni-lo, mas compreendeu que William não mudaria de idéia.

Subiram a escada que levava a uma sala de grandes dimen­sões, bem-mobiliada, embora não luxuosa, na qual havia cerca de doze rapazes, que tinham vindo do debate, e conversavam de pé em grupos de dois ou três. Assim que William surgiu no limiar da porta, começaram as felicitações.

— Você esteve esplêndido, William. É assim que se deve tratar esse tipo de gente.

— Entre o vitorioso matador de bolcheviques.

Thaddeus Cohen recuou, ainda semi-oculto no batente da porta, mas William não o esqueceu.

— Senhores, quero apresentar-lhes meu mais valioso adver­sário, o sr. Thaddeus Cohen.

Cohen deu um passo à frente, vacilante.

Todos os ruídos cessaram. Todas as cabeças voltaram-se para o outro lado, e os olhares concentraram-se nos olmos do pátio, cujos galhos curvavam-se com o peso da neve.

De repente, a tábua do soalho estalou quando um rapaz se dirigiu para outra porta e retirou-se. Outro saiu em seguida. E sem pressa, sem que aparentemente estivessem de acordo, todo o grupo se retirou numa procissão. O último olhou demorada­mente para William antes de sair.

Matthew fitou, espantado, os companheiros. Thaddeus Cohen, enrubescido, inclinou a cabeça. William comprimiu os lábios com a mesma ira que sentiu quando Crosby fez referência ao Titanic.

Matthew apertou o braço do amigo.

— É melhor irmos embora.

Os três caminharam a passos pesados até a residência de William e em silêncio beberam um medíocre conhaque.

Quando William acordou de manhã, encontrou um envelope debaixo da porta. Dentro havia uma nota breve, escrita pelo presidente do clube Porcellian, dizendo que ele esperava que o incidente da noite anterior jamais voltasse a acontecer e que o melhor seria esquecê-lo.

À hora do almoço, o presidente recebeu duas cartas de de­missão.

 

Após meses de longos dias de estudo, William e Matthew estavam praticamente preparados — ninguém nunca se sente to­talmente preparado — para prestar os exames finais. Durante seis dias, responderam a questões e encheram folhas e folhas dos pequenos cadernos, e depois esperaram; não em vão, pois ambos se graduaram em Harvard, como haviam previsto, em junho de 1928.

Uma semana depois, William recebeu o President’s Mathematics Prize. Desejou que o pai estivesse vivo para assistir à cerimônia de entrega. Matthew conseguiu um honesto “C”, que recebeu com alívio e que não surpreendeu a ninguém. Nenhum dos dois estava interessado em prosseguir nos estudos, pois am­bos haviam escolhido entrar no mundo “real” o mais rápido pos­sível.

Uma semana antes de William deixar Harvard, sua conta no banco de Nova Iorque atingira a marca de mais de um milhão de dólares. Foi então que ele expôs em detalhes a Matthew seu plano de conseguir a longo prazo o controle do banco de Lester, incorporando-o ao Kane & Cabot.

Matthew mostrou-se entusiasmado com a idéia e confessou:

— Essa é a única maneira de eu conseguir tocar naquilo que meu velho me deixará quando morrer.

No dia da colação de grau, Alan Lloyd, então com sessenta anos, foi a Harvard. Após a cerimônia, William levou o convi­dado para tomar chá na praça. Alan lançou um olhar afetuoso ao homem alto e jovem.

— O que pretende fazer agora que vai deixar a universi­dade?

— Vou trabalhar no banco de Charles Lester em Nova Iorque, a fim de ganhar alguma experiência, e daqui a alguns anos entrarei no Kane & Cabot.

— Mas, William, você não sai do banco de Lester desde os doze anos! Por que não vem trabalhar conosco imediatamente? Nós o nomearíamos diretor.

Alan Lloyd aguardou a resposta de William, que não veio.

— Sabe, William, permita-me dizê-lo, nunca pensei que al­guma coisa pudesse deixá-lo sem palavras.

— Mas como poderia imaginar que você me convidaria para integrar a diretoria antes dos vinte e cinco anos, exatamente a idade em que meu pai...

— Sim, sim, seu pai foi eleito aos vinte e cinco anos. Mas não há nada que o impeça de ocupar o cargo antes disso, caso os outros diretores concordem, e tenho certeza de que concor­darão. Em todo caso, tenho razões pessoais para querer nomeá-lo diretor sem demora. Dentro de cinco anos estarei me aposen­tando, e precisaremos eleger o presidente adequado. Se estiver trabalhando no Kane & Cabot durante esses cinco anos, e não como alto funcionário no banco de Lester, você ocupará uma posição capaz de influenciar essa decisão. Então, meu rapaz, aceita participar da diretoria?

Pela segunda vez nesse dia, William desejou que o pai ainda vivesse.

— Aceito-o com prazer, senhor — disse.

Alan levantou os olhos para William.

— Desde que jogamos aquela partida de golfe, é a primeira vez que me chama de “senhor”. Ficarei de olho em você.

William abriu um sorriso.

— Ótimo — disse Alan Lloyd —, estamos acertados. — Você será diretor júnior encarregado dos investimentos e trabalhará diretamente com Tony Simmons.

– Posso nomear meu assistente? — perguntou.

Alan Lloyd encarou-o com um ar zombeteiro.

– Matthew Lester, sem dúvida?

— Sem dúvida!

– Não! Não quero que ele faça com o nosso banco o que você pretendia fazer com o dele. Thaddeus Cohen devia ter lhe ensinado isso.

William nada disse, mas jamais tornou a subestimar Alan. Charles Lester riu quando William lhe contou a conversa sem omitir nenhuma palavra.

— Lamento saber que não ficará conosco, ainda que como espião — comentou ele amavelmente. — Não duvido, porém, de que um dia acabará voltando aqui, numa posição ou noutra.

 

                                                                   1928-1932

 

Quando William começou a trabalhar como diretor júnior do Kane & Cabot, em setembro de 1928, pela primeira vez na vida sentiu que fazia algo de valioso. Sua carreira começou num pequeno gabinete com painéis de madeira de carvalho, contíguo ao de Tony Simmons, o diretor de finanças do banco. A partir da primeira semana, William compreendeu, sem que nada preci­sasse ser dito, que Tony Simmons sucederia Alan Lloyd na pre­sidência.

Todo o programa de investimentos achava-se sob a respon­sabilidade de Simmons. Rapidamente ele delegou a William algu­mas de suas atribuições; em especial, investimentos privados em pequenos negócios, terras e quaisquer outras atividades de empreendimentos externos nas quais o banco estivesse implicado. Entre as obrigações de William estava a elaboração de um rela­tório mensal dos investimentos que ele desejasse aconselhar numa reunião geral da diretoria. Os catorze membros da diretoria reu­niam-se numa ampla sala revestida de painéis de carvalho, domi­nada, nas suas extremidades, por retratos, um do pai de William, outro de seu avô. William não chegara a conhecer o avô, mas sempre o julgara um louco por ter se casado com a avó Kane. Havia espaço de sobra nas paredes onde pendurar seu próprio retrato.

Nos primeiros meses no banco, William procurou agir com cautela, e em pouco tempo os membros da diretoria respeitavam suas opiniões e seguiam, com raras exceções, as suas recomenda­ções. Como logo se revelou, os conselhos rejeitados estavam entre os melhores sugeridos por William. Na primeira oportunidade, um certo sr. Mayer pediu empréstimo ao banco com o propósito de investir no “cinema falado”, mas a diretoria se recusou a veri­ficar se essa novidade tinha algum mérito ou futuro. Em outra oportunidade, um certo sr. Paley procurou William para mostrar-lhe um ambicioso plano da United, a cadeia de rádio. Alan Lloyd, que respeitava a telegrafia tanto quanto a telepatia, não viu ne­nhuma perspectiva nesse plano. A diretoria endossou o ponto de vista de Alan, e, anos mais tarde, Louis B. Mayer dirigia a MGM, e W. Paley, a empresa que viria a ser conhecida como CBS. Wil­liam, acreditando nos seus palpites, apoiou os dois com seus próprios recursos, e, a exemplo do pai, nunca informou aos benefi­ciários esse apoio.

Um dos aspectos mais desagradáveis do cotidiano de William referia-se às falências de clientes que haviam pedido grandes empréstimos ao banco e viam-se impossibilitados de pagá-los. Por natureza, William não era uma pessoa flexível, como Henry Osborne descobrira por experiência própria, mas obrigar antigos e respeitáveis clientes a liquidar seu capital em ações ou mesmo vender suas propriedades não lhe proporcionava um sono tran­qüilo. Logo ele percebeu que tais clientes podiam ser classificados em duas categorias distintas: os que consideravam a falência uma parte do cotidiano dos negócios, e os que estremeciam ao ouvir cada termo de compromisso e se dispunham a passar o resto da vida pagando cada cent devido. William julgava apenas natural ser inflexível com a primeira categoria, mas quase sempre mos­trava-se tolerante com a segunda, após ter obtido a aprovação de Tony Simmons, invariavelmente relutante.

Ao lidar com um desses casos em particular, William que­brou uma das normas áureas do banco e envolveu-se pessoalmente com uma cliente. Chamava-se ela Katherine Brookes, e seu marido, Max Brookes, havia feito um empréstimo superior a um milhão de dólares no Kane & Cabot, e o investira na febre de compras de terras da Flórida em 1925, um investimento que William jamais teria apoiado, caso estivesse trabalhando no banco na época. Max Brookes, porém, havia ascendido à posição de herói de Massachusetts como um dos novos e intrépidos aviadores, e, além do mais, mantivera estreitas relações com Charles Lindbergh. A trágica morte de Brookes, ocorrida quando o pequeno avião que pilotava chocou-se contra uma árvore a apenas uns cem metros do ponto de onde decolara, fora noticiada nos Estados Unidos como uma perda nacional.

No desempenho de suas funções no banco, William assumiu imediatamente a administração dos bens de Brookes, que já esta­vam insolventes, solveu-os e procurou reduzir os prejuízos do banco vendendo as terras da Flórida, menos o grande terreno em que a casa da família fora erguida. Apesar disso, os prejuízos do banco permaneciam acima de trezentos mil dólares. Alguns dire­tores discordaram da súbita decisão de William de vender as ter­ras, decisão que Tony Simmons vetou. O veto de Simmons foi incluído na ata da reunião, o que, meses mais tarde, deixou-o em posição de fazer ver aos outros diretores que, se tivesse con­servado as terras, o banco teria perdido a maior parte do milhão de dólares originalmente investido. Essa demonstração de hábil previsão não o fez cair na simpatia de Tony Simmons, embora desde então toda a diretoria tivesse tomado consciência de sua singular perspicácia.

Após ter liquidado todos os bens que o banco administrava em nome de Max Brookes, William voltou a atenção para a sra. Brookes, que dera caução pessoal pelas dívidas do marido falecido. Embora William sempre procurasse assegurar ao banco tal tipo de garantia em quaisquer empréstimos, nunca recomendava esse procedimento aos amigos, por mais confiantes que eles se sentis­sem, uma vez que, quase invariavelmente, a falência colocava o fiador numa situação extremamente difícil.

William escreveu uma carta formal à sra. Brookes, propondo-lhe uma entrevista em que pudessem discutir a situação. Havia lido escrupulosamente a ficha da viúva e sabia que ela estava com vinte e dois anos, era filha de Andrew Higginson, de uma famí­lia tradicional e distinta, sobrinha-neta de Henry Lee Higginson, fundador da Sinfônica de Boston, e que possuía bens próprios sujeitos a penhora. A idéia de que ela os transferisse ao banco não o comprazia, mas, pela primeira vez, ele e Tony Simmons estavam de acordo quanto à medida a ser tomada. Desse modo, William preparou-se para um encontro que não prometia ser nada agradável.

William, porém, não conhecia Katherine Brookes pessoalmen­te. Mais tarde, lembrar-se-ia com detalhes dos acontecimentos da manhã da entrevista. Ele indispusera-se com Tony Simmons em relação a um investimento de vulto em cobre e estanho que de­sejava aconselhar à diretoria. A demanda industrial desses dois metais continuava aumentando, e William julgava que em breve se seguiria uma escassez mundial. Tony Simmons discordara dele, argumentando que deveriam investir mais dinheiro no mercado de valores. A questão fervilhava em sua cabeça quando a secre­taria introduziu Katherine Brookes em seu escritório. Bastou um sorriso tímido para que ele esquecesse o cobre, o estanho e todo tipo de escassez em todo o mundo. Antes que ela tivesse tempo , sentar-se. ele contornou a mesa e indicou-lhe uma cadeira, sim­plesmente para se assegurar de que aquela visão não se esvaneceria, tal qual uma miragem, a um escrutínio mais íntimo. Nunca conhecera uma mulher que chegasse a ter metade do encanto que emanava de Katherine Brookes. O cabelo claro caía-lhe em cachos sobre os ombros, e as têmporas estavam cobertas por deli­cados anéis que escapavam graciosamente por debaixo do chapéu. De modo algum o luto lhe diminuía a beleza do corpo esguio. A compleição delgada anunciava uma mulher que permaneceria bela por toda a existência. Seus olhos grandes e castanhos revelavam inequivocamente que ela o temia, tanto quanto àquilo que ouviria dele.

William esforçou-se por usar um tom profissional.

— Sra. Brookes, não preciso dizer como lamento a morte de seu marido e quanto julgo desagradável ter precisado chamá-la aqui.

Nunca única sentença, duas mentiras que, cinco minutos antes, teriam sido apenas a verdade. Ele aguardou que ela falasse.

— Obrigada, sr. Kane. — A voz suave saiu num tom baixo e brando. — Estou ciente das minhas obrigações para com o seu banco, e posso lhe garantir que farei tudo ao meu alcance para cumpri-las.

William não respondeu, aguardando que ela prosseguisse. Como ela não o fez, explicou-lhe que destino havia dada aos bens de Max Brookes. Ela o ouviu com os olhos fixos no chão.

— Agora, a senhora foi fiadora do empréstimo de seu ma­rido e isso nos leva à questão que envolve os seus créditos ativos. — Ele consultou o histórico. — A senhora possui cerca de oito mil dólares, suponho que em conta conjunta, e dezessete mil, quatrocentos e cinqüenta e seis dólares em sua conta pessoal.

— Seus informes sobre minha situação financeira merecem elogio, sr. Kane. Deve acrescentar, porém, nossa casa na Flórida, o Buckhurst Park, que estava no nome de Max, e algumas jóias valiosas que possuo. Calculo que, no total, disponho dos trezen­tos mil dólares que o senhor reclama, e já tomei providência para perfazer essa soma o mais depressa possível.

Havia um tremor quase imperceptível em sua voz; William a contemplou, cheio de admiração.

— Sra. Brookes, não é intenção do banco privá-la de todas as posses que lhe restam. Com seu consentimento, gostaríamos de vender suas ações e títulos. Tudo o mais que mencionou, in­clusive a casa, a nosso ver deve continuar lhe pertencendo.

— Aprecio a sua generosidade, sr. Kane. — Ela hesitou. — Entretanto, não pretendo dever nada ao banco ou prejudicar o nome de meu marido. — De novo o tremor, imediatamente contido – De qualquer modo, resolvi vender a casa da Flórida e voltar à casa de meus pais, tão logo seja possível.

Ao ouvi-la dizer que retornaria a Boston, o coração de Wil­liam pulsou mais forte.

– Nesse caso, talvez possamos chegar a um acordo sobre o lucro da venda.

– Sim, podemos fazer isso — disse ela num tom neutro. – O senhor precisa receber todo o valor da dívida.

William desejava uma outra entrevista.

– Não tomemos decisões apressadas. Creio que seria mais sensato consultar os demais diretores, e então, numa outra data, voltaríamos a discutir o assunto.

– Como queira — retrucou ela, encolhendo levemente os ombros. — De qualquer maneira, não estou preocupada com o dinheiro nem pretendo criar-lhe inconvenientes.

– Sra. Brookes — disse ele, pestanejando —, confesso-me surpreso com sua nobreza de atitude. Ao menos conceda-me o prazer de levá-la para almoçar.

Ela sorriu pela primeira vez, revelando uma inesperada covinha na face direita. William contemplou-a, encantado, e fez de tudo para que ela reaparecesse durante o longo almoço no Ritz.

Quando regressou ao banco, passavam das quinze horas.

— Almoço demorado, William — comentou Tony Simmons.

— Sim, o problema Brookes revelou-se mais delicado do que eu imaginara.

— Quando reexaminei os documentos, pareceu-me razoavel­mente simples — disse Simmons. — Ela se queixou de nossa proposta? Julguei que estivéssemos sendo bastante generosos, da­das as circunstâncias.

— Ela é da mesma opinião. Precisei convencê-la a não se desfazer dos poucos dólares que ainda lhe restam só para aumen­tar as nossas reservas.

Tony Simmons observou-o.

– Você não está falando como o William Kane que todos conhecemos e tanto amamos. Entretanto, nunca houve tempos melhores para que o banco pudesse mostrar-se magnânimo.

William fez um trejeito. Desde seu primeiro dia no banco, ele e Tony Simmons vinham discordando cada vez mais a respeito dos rumos do mercado de valores. O mercado ascendia de ma­neira estável desde a eleição de Herbert Hoover à presidência, em novembro de 1928. Com efeito, dez dias depois, a Bolsa de Nova Iorque atingiu o recorde de mais de seis milhões de ações num só dia. William, porém, estava convencido de que a tendên­cia para a alta, resultante do grande afluxo de dinheiro que saía da indústria automobilística, provocaria inflação e instabilidade do mercado. Tony Simmons, por sua vez, confiava em que o boom continuaria, de tal modo que, quando William advogasse cautela nas reuniões de diretoria, invariavelmente suas opiniões seriam rejeitadas. Entretanto, uma vez que contava com o dinheiro legado, William sentia-se livre para seguir suas próprias intuições, e assim começou a investir decididamente em terras, ouro, mercadorias, inclusive em pinturas impressionistas cautelosamente escolhidas, reservando às ações apenas cinqüenta por cento do seu nume­rário.

Quando o Federal Reserve Bank publicou um edital decla­rando que não faria redesconto de empréstimos aos bancos que liberassem dinheiro aos clientes que objetivavam unicamente a especulação, William entendeu que se começava a apressar a morte do especulador. Imediatamente, procedeu a uma revisão do pro­grama de empréstimos do banco e descobriu que mais de vinte e seis milhões de dólares do Kane & Cabot haviam sido destinados àquele fim. Pediu a Tony Simmons que recolhesse essa quantia, na certeza de que, com aquela regulamentação do governo, os preços dos papéis, a longo prazo, inevitavelmente baixariam. Na reunião mensal da diretoria, William e Simmons estiveram na imi­nência de uma briga acirrada, e William perdeu numa votação de doze contra dois.

Em 21 de março de 1929, a Blair & Company anunciou sua fusão com o Bank of America, a terceira de uma série de incor­porações que pareciam apontar para um amanhã mais feliz. E em 25 de março Tony Simmons enviou a William um memorando interno informando-o de que a Bolsa alcançara o maior recorde de todos os tempos, e por isso continuaria a aplicar dinheiro em ações. Nessa ocasião, William havia redistribuído seu capital de modo a aplicar tão-somente vinte e cinco por cento na Bolsa uma medida que já lhe havia custado mais de dois milhões de dólares — e uma aflitiva reprimenda de Alan Lloyd.

— William, espero que saiba o que está fazendo.

— Alan, desde os catorze anos tenho sido bem-sucedido no mercado de valores, e sempre consegui isso acompanhando a tendência.

Mas ao longo do verão de 1929, o mercado continuou a subir e William parou de vender suas ações, perguntando-se se a visão de Tony Simmons não seria de fato a correta.

 

À medida que a época da aposentadoria de Alan Lloyd se aproximava, a intenção de Tony Simmons de sucedê-lo na presi­dência começava a assumir as características de um fato consu­mado. Tal perspectiva preocupava William, que considerava as idéias de Simmons por demais convencionais. Ele estava sempre atrasado em relação ao mercado, o que é uma virtude em anos de boom, quando as coisas correm bem, mas em épocas mais ma­gras e de maior competitividade pode colocar em risco um banco. Aos olhos de William, um investidor perspicaz nem sempre se­gue o rebanho, aos berros ou calado, mas procura antecipar por que caminho o rebanho voltará. William concluíra que o futuro do investimento em ações ainda se anunciava perigoso, enquanto Tony Simmons mostrava-se convencido de que os Estados Unidos entravam numa idade de ouro.

Tony Simmons era trinta e nove anos mais velho que Wil­liam, o que constituía um novo problema para ele, que não via possibilidade de tornar-se presidente do Kane & Cabot em menos de vinte e seis anos. Com efeito, dificilmente isso se ajustava ao que em Harvard chamavam de “modelo de carreira”.

 

Entrementes, era-lhe difícil esquecer Katherine Brookes, tal a nitidez com que a imagem dela persistia em sua mente. Apro­veitava todas as oportunidades para escrever-lhe sobre ações e títulos: cartas formais, datilografadas, que obtinham não mais que respostas formais escritas a mão. Ela devia imaginar que se correspondia com o banqueiro mais escrupuloso do mundo. Sou­besse ela que suas fichas se avolumavam como as de nenhum outro cliente sob o controle de William, certamente pensaria nelas ou ao menos nele — com mais atenção. No início do outono, ela escreveu-lhe dizendo que havia uma pessoa interes­sada em comprar a propriedade da Flórida. William respondeu-lhe solicitando permissão para negociar os termos da venda em nome do banco, com o que ela concordou.

No início de setembro de 1929, ele viajou para a Flórida. A sra. Brookes foi esperá-lo na estação, e William se espantou ao constatar o quanto ela era mais bela que a imagem que ele guar­dava na memória. Enquanto ela o esperava, de pé na plataforma, o vento leve comprimia-lhe o vestido preto contra o corpo, reve­lando um perfil que, por certo, todos os homens, exceto William, se sentiriam impelidos a olhar uma segunda vez. Mas agora os olhos de William não se desviavam dela.

Ela ainda conservava o luto e comportava-se de modo tão discreto e correto que a princípio William desistiu da intenção de causar-lhe impressão. Ele passou a expor os termos do negócio com um fazendeiro interessado em adquirir o Buckhurst Park, demorando-se nisso tanto quanto pôde. Convenceu Katherine Brookes a aceitar um terço do preço de venda estabelecido, en­quanto o banco reteria dois terços. Finalmente, depois que toda a documentação foi assinada, e não encontrando mais desculpas que o impedissem de retornar a Boston, convidou-a para jantar no restaurante do hotel em que se hospedara, decidido a revelar-lhe parte de seus sentimentos por ela. Ela o pegou de surpresa, e não pela primeira vez. Antes que pudesse encaminhar o assunto, perguntou-lhe, girando o corpo sobre a mesa com o propósito de não olhá-lo, se gostaria de passar alguns dias no Buckhurst Park.

— Algo assim como umas férias, que merecemos — e enrubesceu. William permaneceu silencioso. Por fim, ela reuniu cora­gem para prosseguir. — Sei como isso pode soar insensato, mas você não ignora quanto tenho me sentido solitária. O extraordi­nário é que tenho a impressão de que, nestes dias, vivi com você os momentos mais agradáveis de que consigo me lembrar, mais que em qualquer outra época. — Ruborizou-se mais uma vez. — Não me expressei bem, e a culpa é minha se fizer mau juízo de mim.

Isso ecoou forte no coração dele.

— Kate, nestes últimos nove meses tenho tentado dizer-lhe uma coisa que pode levá-la a fazer um juízo de mim ainda pior.

— Então ficará por alguns dias, William?

— Sim, Kate, ficarei.

Nessa noite, ela o acomodou no quarto de hóspedes no Buck­hurst Park. Posteriormente, William sempre relembraria esses dias como um interlúdio dourado. Passeou a cavalo com Kate, e ela o venceu nas corridas. Nadaram juntos, e ela o deixou para trás. Percorreram distâncias a pé, e ela sempre retornou primeiro, até que, finalmente, ele recorreu ao jogo de pôquer e ganhou três milhões e meio de dólares em três horas e meia de jogo.

— Aceita um cheque? — indagou ela majestosamente.

— Esquece-se de que estou a par do valor de sua fortuna, sra. Brookes, mas aceito fazer um negócio. Continuaremos jogan­do até que consiga recuperar o dinheiro perdido.

– Pode levar alguns anos — disse Kate.

– Não tenho pressa — retrucou ele.

William viu-se contando incidentes do passado há muito es­quecidos, coisas sobre as quais mal conversara até mesmo com Matthew. O respeito pelo pai, o amor pela mãe, o ódio cego por Henry Osborne, suas ambições no Kane & Cabot. E ela falou sobre a meninice em Boston, os tempos de escola na Virgínia, e de como se casara cedo com Max Brookes.

Cinco dias depois, quando ela lhe disse adeus na estação, pela primeira vez ele a beijou.

— Kate, vou dizer uma coisa por demais presunçosa. Espero que um dia você venha a sentir por mim mais do que sentiu por Max Brookes.

— Já começo a perceber que assim será — disse ela calma­mente.

William fitou-a com firmeza.

— Não fique outros nove meses longe da minha vida.

— Não poderia... vendi minha casa.

A caminho de Boston, sentindo-se mais seguro e feliz do que em qualquer outro tempo desde a morte do pai, William elabo­rou um relatório sobre a venda do Buckhurst Park, o pensamento retornando continuamente a Kate e aos cinco dias que passaram juntos. Antes que o trem entrasse na South Station, com sua letra simples e elegante, embora ilegível, ele rabiscou um rápido bi­lhete:

 

Kate, começo a sentir saudades. E só se passaram algumas horas. Por favor, escreva-me e diga-me quando virá a Boston, enquanto isso, voltarei ao meu trabalho no banco, onde conse­guirei esquecê-la por longos períodos (de cinco a dez minutos, mais ou menos).

               Com amor, William

 

Acabara de pôr o envelope dentro da caixa de correio da Charles Street, quando os brados de um jornaleiro afugentaram todas as lembranças de Kate.

— Pânico na Wall Street!

William arrebatou um exemplar da mão do menino e passou os olhos pela notícia. O mercado caíra da noite para o dia; alguns financistas viam isso como nada mais que um reajustamento; William compreendeu que começara o desmoronamento que havia meses ele estava prevendo. Correu ao banco e foi diretamente à sala do presidente.

— Tenho certeza de que o mercado voltará a se firmar den­tro de certo período — afirmou Alan Lloyd brandamente.

— Nunca — replicou William. — O mercado está sobre­carregado. Sobrecarregado com pequenos investidores que pensa­ram em fazer fortuna rapidamente e agora sabem que suas vidas correm perigo. Não percebe que o balão vai explodir? Vou ven­der tudo. No final deste ano, não haverá fundos nesse mercado, e eu avisei disso em fevereiro, Alan.

— Continuo discordando de você, William, mas convocarei para amanhã uma reunião geral da diretoria, e então discutiremos com mais detalhes seus pontos de vista.

— Obrigado — disse William.

Foi para a sala dele e pegou o interfone.

— Alan, esqueci-me de lhe dizer uma coisa. Encontrei-me com a moça com quem vou me casar.

— Ela já sabe disso? — perguntou Alan.

— Não.

— Compreendo — disse Alan. — Seu casamento terá es­treitos pontos de contato com sua carreira bancária, William. A pessoa diretamente envolvida só tomará conhecimento do fato depois de sua definitiva decisão.

William riu, pegou o telefone, colocou a maior parte de suas ações no mercado e examinou sua conta corrente. Tony Simmons, que acabara de entrar, deteve-se à porta e observou-o, imaginando que ele havia enlouquecido.

— Você corre o risco de perder da noite para o dia a camisa que está usando se vender as ações com o mercado nesta situação.

— Perderei muito mais se as conservar — retrucou William.

O prejuízo que ele viria a ter na semana que se seguiu, uma soma superior a um milhão de dólares, seria suficiente para aba­lar um homem menos confiante.

Na reunião da diretoria do dia seguinte, voltou a perder, vendo sua proposta de liquidar os títulos do banco derrotada por oito votos contra seis. Tony Simmons convenceu a diretoria de que seria uma atitude irresponsável não aguardar mais algum tempo. William conquistara uma pequena vitória ao lograr per­suadir os demais diretores a não efetuar nenhuma outra compra.

Nesse dia o mercado ergueu-se um pouco, o que deu a Wil­liam a oportunidade de vender outra parte de seus títulos. Ao final da semana, quando o índice havia subido de maneira estável durante quatro dias seguidos, William começou a se perguntar se não havia exagerado em sua reação, enquanto toda a sua expe­riência passada e sua intuição lhe diziam ter tomado a decisão acertada. Alan Lloyd nada opinou; o dinheiro que William estava perdendo não lhe pertencia, e, ademais ele ansiava por uma apo­sentadoria tranqüila.

Em 22 de outubro, a Bolsa tornou a abalar-se, com prejuízos bastante elevados, e mais uma vez William solicitou a Alan Lloyd que retirasse do mercado os títulos do banco enquanto ainda era possível. Alan ouviu-o afinal, permitindo-lhe pôr à venda alguns dos principais títulos do banco. No dia seguinte, o mercado tor­nou a cair numa avalanche de vendas. Pouco importava que títulos o banco havia colocado à disposição do mercado, pois já não havia compradores. O despejo de ações se havia transformado num es­touro, porque os pequenos investidores dos Estados Unidos as tinham posto em oferta na esperança de recuperar seus prejuízos. Tal era o pânico que a fita de cotações da Bolsa não conseguia acompanhar as transações. Apenas na manhã seguinte, quando a Bolsa abriu, depois de seus funcionários terem varado a noite em intenso trabalho, os operadores e corretores puderam confirmar o valor exato do prejuízo do dia anterior.

Alan Lloyd conversou com J. P. Morgan pelo telefone e con­cordou em que o Kane & Cabot faria bem em se associar a um grupo de bancos que tentaria escorar o colapso nacional em tí­tulos. William não se opôs a esse plano de ação, alegando que, se se fazia necessário o esforço conjunto, o Kane & Cabot deveria aderir a ele de uma maneira responsável. E, naturalmente, se desse certo, todos os bancos se reergueriam. Richard Whitney, vice-presidente da Bolsa de Valores de Nova Iorque, e o repre­sentante do Grupo Morgan reuniram-se nesse dia e, de comum acordo, desceram ao pavimento da Bolsa de Valores para adquirir trinta milhões de dólares em blue-chips. O mercado começou a deter-se. Foram negociados doze milhões, oitocentos e noventa e quatro mil, seiscentos e cinqüenta títulos, e nos dois dias que se seguiram o mercado permaneceu equilibrado. Todos, do presidente Hoover aos operadores das corretoras, acreditaram ter superado a crise.

William vendera quase todas as suas ações, e seus prejuízos pessoais haviam sido proporcionalmente bem menores que os do banco, que, em quatro dias, perdera mais de três milhões de dó­lares; até o próprio Tony Simmons passara a acatar todas as su­gestões de William. Em 29 de outubro, a Quinta-Feira Negra, como a batizaram, o mercado ruiu mais uma vez. Foram negocia­dos dezesseis milhões, seiscentos e dez mil e trinta títulos. Os bancos de todo o país não ignoravam que a verdade, naquele ins­tante, era que todos estavam insolventes. Se cada um dos clientes procurasse dinheiro vivo — ou tentasse resgatar seus empréstimos —, o sistema bancário como um todo ruiria.

Uma reunião da diretoria, realizada em 9 de novembro, foi aberta com um minuto de silêncio em memória de John J. Riordan, presidente do Country Trust e um dos diretores do Kane & Cabot, que havia se suicidado em sua casa. Em duas semanas, esse era o décimo primeiro suicídio nos círculos bancários de Boston; o morto tinha sido o amigo mais próximo de Alan Lloyd. O presidente iniciou a reunião anunciando que o Kane & Cabot havia tido um prejuízo de aproximadamente quatro milhões de dólares, que o Grupo Morgan havia fracassado nos esforços de união, e que a partir dali, esperava-se, todos os bancos passariam a agir segundo os seus mais altos interesses. Quase todos os pe­quenos investidores do banco tinham-se arruinado, e os mais im­portantes enfrentavam problemas de caixa insuportáveis.

Grupos de populares enfurecidos se haviam reunido em fren­te aos bancos de Nova Iorque, e os encarregados da segurança começavam a receber reforço da polícia. “Se as coisas continuarem desse modo por mais uma semana”, disse Alan, “seremos aniqui­lados.” Ele apresentou demissão, mas os diretores recusaram-se a aceitá-la. Sua decisão acompanhava a dos demais presidentes dos principais bancos dos Estados Unidos. Seguindo-lhe o exemplo, Tony Simmons também apresentou demissão, e, mais uma vez, os colegas recusaram-se a considerá-la. Era evidente que Tony Simmons não estava mais destinado a assumir o lugar de Alan Lloyd, e, ante essa constatação, William permaneceu quieto, num silêncio magnânimo.

Após chegarem a um comum acordo, Simmons foi para Lon­dres com a tarefa de se encarregar dos investimentos estrangeiros. “O caminho está livre”, refletiu William, que agora fora promo­vido a diretor de finanças, encarregado de todos os investimentos do banco. Sem demora, convidou Matthew Lester para trabalhar ao seu lado como assessor imediato. Dessa vez Alan Lloyd não ergueu às sobrancelhas.

Matthew concordou em trabalhar com William na primavera, quando o pai o liberaria. Também o banco dos Lester estava com graves problemas. William, pois, conduziu sozinho o departamento de investimentos até a chegada de Matthew. Considerou o inver­no de 1929 um período demasiado deprimente, vendo as empre­sas, tanto pequenas quanto grandes, a maioria delas dirigidas por antigos conhecidos, irem à bancarrota. Em certos momentos, che­gou mesmo a duvidar de que seu próprio banco conseguisse sobre­viver.

Por ocasião do Natal, William passou uma magnífica semana na Flórida na companhia de Kate, ajudando-a a encaixotar seus pertences para retornar a Boston.

— Os de Kane & Cabot eu mesmo guardo — brincou ele.

Os presentes de Natal que William lhe havia dado encheram outra caixa, e Kate sentiu-se constrangida diante da generosidade dele.

— Como uma viúva pobre poderá lhe retribuir? — troçou ela.

William respondeu-lhe indicando-lhe que terminasse de ar­rumar as coisas na última caixa, e escrevesse nela: “Presentes de William”.

Ele voltou reanimado para Boston, esperando que a estada com Kate pressagiasse o início de um ano melhor. Instalou-se no velho gabinete antes ocupado por Tony Simmons e pôs-se a ler a correspondência da manhã lembrando-se de que presidia às duas ou três reuniões habituais de liquidação marcadas para essa se­mana. Perguntou à secretária a quem deveria receber primeiro.

— Receio que seja outra falência, sr. Kane.

— Oh, sim, lembro-me do caso — disse William. O nome nada lhe dizia. — Ontem à noite dei uma olhada no fichário. Um caso demasiado infeliz. A que horas será nossa entrevista?

— Às dez em ponto, mas o cavalheiro já está à sua espera na sala, senhor.

— Muito bem — disse William —, por gentileza, faça-o entrar. Enfrentemos mais esta tarefa.

William reexaminou o fichário com o intuito de relembrar rapidamente os fatos mais importantes. Havia um traço cobrindo o nome do clientes anterior, um certo Davis Leroy. Fora substi­tuído pelo do visitante que estava na iminência de entrar na sala, Abel Rosnovski.

William recordou-se vivamente da última conversa que tivera com o sr. Rosnovski e manifestou previamente um sentimento de pesar.

 

Só depois de cerca de três meses Abel se deu conta do al­cance dos problemas que o Richmond Continental enfrentava e compreendeu o motivo por que o hotel perdia tanto dinheiro. A conclusão simples a que chegou, depois de ter mantido os olhos bem abertos durante doze meses, enquanto, simultaneamente, da­va a entender aos empregados que os mantinha fechados, foi a de que os rendimentos do hotel vinham sendo roubados. Os empre­gados trabalhavam num sistema fraudulento, numa escala com a qual o próprio Abel não havia se deparado anteriormente. O sis­tema, porém, não levava em consideração que o novo subgerente era um homem que no passado precisara roubar para não morrer de fome. O primeiro problema de Abel era ocultar a extensão das suas descobertas até concluir as investigações. Não demorou a compreender que cada seção tinha aperfeiçoado um método par­ticular de roubo.

A fraude começava na recepção, onde os funcionários regis­travam apenas oito entre dez hóspedes, embolsando os pagamen­tos à vista efetuados pelos dois restantes. Utilizavam uma rotina deveras simples; quem a experimentasse no Plaza Hotel de Nova Iorque seria apanhado em questão de minutos e despedido no ato. O chefe dos recepcionistas escolhia um casal de velhos pro­cedente de outro Estado que reservava apartamento por uma noite. Discretamente, verificava se os hóspedes tinham alguma relação comercial na cidade e, não a encontrando, não os registrava. Na manhã seguinte, se a conta era liquidada em dinheiro, o paga­mento ia para o bolso do recepcionista. Como as assinaturas dos hóspedes não constavam do registro, não havia vestígio de sua passagem pelo hotel. Abel nunca duvidara de que todos os hotéis registravam automaticamente os nomes de seus hóspedes, já que era esse o procedimento no Plaza.

No restaurante, o sistema fora elaborado em detalhes. Natu­ralmente, os fregueses ocasionais pagavam em dinheiro. Abel acre­ditava que esses pagamentos fossem contabilizados, e levou algum tempo para perceber que o recepcionista trabalhava de comum acordo com os funcionários do restaurante, de forma a garantir que não fossem emitidas notas aos hóspedes que não constavam do registro. Além do mais, havia uma série regular de defeitos e reparos fictícios, equipamentos que sumiam, alimentos que fal­tavam, lençóis que se perdiam, e até um ou outro colchão desa­parecia. Após inspecionar cada departamento detidamente, e de manter os olhos e os ouvidos aguçados, Abel concluiu que mais da metade do quadro de funcionários do Richmond achava-se im­plicada na conspiração e que nenhum departamento apresentava um registro inteiramente insuspeito.

Quando pisou no Richmond pela primeira vez, Abel sentiu curiosidade de saber por que o gerente, Desmond Pacey, não no­tava o que se passava debaixo de seu nariz havia tanto tempo. Erradamente, presumiu que o homem era displicente demais para se incomodar com as irregularidades. Só depois de algum tempo Abel pôde entender que o gerente era o cabeça de toda a opera­ção, razão por que ela funcionava tranqüilamente. Pacey traba­lhava para o Grupo Richmond havia mais de trinta anos. Em cada hotel do grupo, ocupara posição de chefia, o que despertou em Abel o receio de que todos os hotéis deveriam estar muito mal. Ademais, Desmond Pacey era amigo pessoal do proprietário, Da­vis Leroy. O Richmond de Chicago perdia anualmente trinta mil dólares, uma situação, ponderou Abel, que só seria sanada da noite para o dia com a demissão de metade dos funcionários. A começar por Desmond Pacey. Isso constituía um problema, por­que, em trinta anos, raramente Davis Leroy dispensara funcio­nários. Ele simplesmente tolerava os problemas, esperando que, com o passar do tempo, se normalizassem. Até onde Abel podia perceber, os empregados do Richmond continuariam a roubar o hotel descaradamente até o dia em que, a contragosto, se aposen­tassem.

Abel sabia que a única maneira de modificar radicalmente o destino do hotel seria pôr as cartas na mesa com Davis Leroy. Com tal propósito, no início de 1928 embarcou no trem expresso da Illinois Central para St. Louis, e de lá, pela Missouri Pacific, até Dallas. Debaixo do braço, levou um relatório de duzentas pá­ginas, cuja elaboração havia lhe tomado três meses de trabalho no pequeno cômodo dos alojamentos anexos ao hotel.

Ao terminar de ler o acúmulo de provas, Davis Leroy deixou-se ficar sentado, olhando-o, estarrecido.

— Esse pessoal é meu amigo. — Foram suas primeiras pa­lavras ao fechar o dossiê. — A maioria trabalha comigo há trinta anos. Que diabo! Sempre houve malandragem nesse tipo de ne­gócio, mas agora você vem e me diz que eles andam me roubando descaradamente nas minhas costas!

— Alguns deles, creio, durante todos esses trinta anos — disse Abel.

— Mas que droga de providência posso tomar? — inquiriu Leroy.

— Posso pôr fim a essa loucura se o senhor afastar Desmond Pacey e me der carta branca para despedir os que estão implica­dos nos roubos, a começar de amanhã.

— Abel, bem que eu gostaria que fosse simples desse jeito.

— Acontece que é simples desse jeito — disse Abel. — Se não me autorizar a despedir os culpados, apresento-lhe minha demissão imediatamente, porque não me interessa fazer parte da gerência de hotel mais corrupta da América.

— Poderíamos simplesmente rebaixar Desmond Pacey a sub­gerente? Eu promoveria você a gerente, e o problema ficaria sob seu controle.

— Nunca — replicou Abel. — Pacey se aposentará daqui a dois anos e tem nas mãos todos os empregados do Richmond. Quando eu conseguir colocá-lo na linha, você já estará morto ou arruinado, já que, imagino, os outros hotéis têm sido dirigidos segundo o mesmo método. Se quer que a situação se inverta em Chicago, terá de tomar já uma decisão drástica em relação a Pacey. Caso contrário estará decretando sua própria falência. Faça o que achar melhor.

— Nós, texanos, temos a fama de dizer o que pensamos, Abel, mas não desse jeito. Muito bem, muito bem, dou a você a autorização. Como forma de reconhecimento. Você é o novo ge­rente do Richmond de Chicago. Mas espere o Al Capone saber que você está em Chicago; ele virá correndo para cá, gozar, na minha companhia, a paz e a tranqüilidade do grande Sudoeste. Abel, meu rapaz — prosseguiu Leroy, levantando-se e dando um tapinha no ombro do novo gerente —, não pense que sou mal­agradecido. Você fez um excelente trabalho em Chicago, e, a par­tir de hoje, passo a considerá-lo meu braço direito. Para ser franco, Abel, tenho ganho tanto dinheiro na Bolsa de Valores que nem notei os prejuízos, por isso agradeço a Deus pelo amigo honesto que ganhei. Por que não fica esta noite e come alguma coisa com a gente?

– Gostaria de ficar, sr. Leroy, mas quero passar a noite no Richmond de Dallas, por motivos pessoais.

– Não deixará ninguém escapar, não é isso, Abel?

— Não, se eu puder.

Nessa noite, Davis Leroy ofereceu a Abel um magnífico jan­tar e algumas doses exageradas de uísque, que, teimou, faziam parte da hospitalidade dos sulistas. Contou-lhe que procurava uma pessoa que dirigisse o Grupo Richmond, de modo que pudesse viver sem preocupações.

— Tem certeza de que vai querer um polonês pateta? — perguntou Abel, enrolando as palavras por causa da bebida.

— Abel, pateta tenho sido eu. Se você não tivesse se mos­trado tão decidido a pôr para correr aqueles ladrões, certamente eu iria à bancarrota. Agora que conheço a verdade, juntos vamos dar-lhes uma lição. Vou dar a você a oportunidade de recolocar o Grupo Richmond no mapa.

Abel ergueu o copo com a mão trêmula.

— Brindemos a isso, então, e à nossa sociedade, que será duradoura e bem-sucedida.

— Vá e acabe com eles, rapaz!

Abel hospedou-se no Richmond de Dallas, sob nome falso. Intencionalmente, disse à recepcionista que ficaria uma só noite. Pela manhã, vendo a única via do recibo de pagamento desapa­recer dentro do cesto de papéis, Abel pôde confirmar as suspeitas. O problema não se restringia a Chicago. Resolveu endireitar as coisas primeiramente no hotel de Chicago; o resto dos trapaceiros teria de esperar mais um pouco. Telefonou a Davis Leroy e aler­tou-o de que a praga se havia espalhado por todo o grupo.

Regressou pelo mesmo meio de transporte. O vale do Mississípi se desenrolava, sombrio, pela janela do trem, devastado pelas inundações do ano anterior. Abel imaginou a devastação que pro­vocaria tão logo retornasse ao Richmond de Chicago.

Quando chegou, não havia nenhum porteiro de serviço. Ape­nas um funcionário no balcão de recepção. Abel decidiu deixá-lo passar uma noite tranqüila antes de dizer-lhe adeus. Um jovem mensageiro abriu-lhe a porta de entrada, quando ele decidiu voltar ao anexo.

— Fez boa viagem, sr. Rosnovski? — perguntou-lhe o rapaz.

— Sim, obrigado. As coisas correram bem por aqui?

— Oh, sim. Tudo tranqüilo.

“Amanhã estarão ainda mais tranqüilas”, pensou Abel, “quan­do então você será um dos poucos remanescentes.”

Abel desfez a mala e telefonou ao serviço de restaurante, pedindo uma refeição leve, que chegou uma hora depois. Quando terminou de tomar o café, despiu-se e entrou debaixo do chuveiro, onde se demorou refletindo sobre o plano que colocaria em prá­tica no dia seguinte. O extermínio ocorreria numa época de ano propícia. Fevereiro mal começara, o hotel tinha apenas vinte e cinco por cento das acomodações ocupadas, e ele acreditava poder dirigir o Richmond com metade do atual quadro de funcionários. Abel deitou-se, arrojou o travesseiro no chão e dormiu, tal qual dormiam os empregados, a sono solto, ignorantes do que os aguar­dava.

Desmond Pacey, amplamente conhecido no Richmond como Pacey Preguiça, tinha sessenta e três anos de idade. Consideravel­mente obeso e pesado, suas pernas curtas só muito vagarosamente o levavam a algum lugar. Desmond Pacey vira sete ou oito sub-gerentes chegarem ao Richmond e partirem pouco depois. Uns, gananciosos, queriam mais do que lhes cabia; outros simplesmente não logravam entender como funcionava a máquina. 0 polonês não ia se revelando mais brilhante que os outros, resmungava ele consigo mesmo enquanto caminhava lentamente na direção do es­critório de Abel, onde todos os dias eles se reuniam, às dez em ponto. Quando entrou, eram dez e dezesseis.

— Sinto tê-lo feito esperar — desculpou-se o gerente, sem de forma alguma mostrar-se sentido.

Abel nada comentou.

— Tive de me demorar na recepção. Você sabe como é.

Sim, Abel sabia exatamente como era a recepção.

Ele abriu morosamente a gaveta da escrivaninha diante de Pacey e dela tirou quarenta recibos amarrotados, alguns em quatro ou cinco pedaços, recibos que resgatara nos cestos de papel e nos cinzeiros, recibos de hóspedes que haviam pago e não tinham sido registrados. Observou o gerente baixo e gordo, que procurava descobrir a natureza dos recibos, virados de cabeça para baixo.

Por mais que os examinasse, Desmond Pacey não conseguia compreender o que significavam. Não que desse alguma impor­tância àquilo. Nada o preocupava. Se o estúpido do polonês tinha descoberto o funcionamento do sistema, pegaria a cota da pilha­gem ou iria embora. Pacey se perguntava que porcentagem lhe daria. Quem sabe um quarto confortável dentro do hotel por en­quanto o deixasse de bico calado.

— Sr. Pacey, está despedido, e dou-lhe uma hora para deixar o hotel.

Desmond Pacey não se abalou com essas palavras, simples­mente porque não acreditava tê-las ouvido.

— Que foi que disse? Acho que não o ouvi direito.

— Ouviu — disse Abel. — Está despedido.

— Não pode me despedir. Eu sou o gerente e trabalho para o Grupo Richmond há mais de trinta anos. Se alguém deve des­pedir alguém, esse alguém sou eu. Quem diabo pensa que é?

— O novo gerente.

— O quê?

— O novo gerente — repetiu Abel. — O sr. Leroy me no­meou ontem, e eu acabo de despedi-lo, sr. Pacey.

— Sob que alegação?

— Furto em grande escala.

Abel virou os recibos, colocando-os na posição correta para que o homem de óculos os visse adequadamente.

— Estes hóspedes pagaram as contas, mas nem um dólar entrou na caixa do Richmond, e todos estes recibos têm sua assi­natura.

— Nem mesmo em cem anos você prova isso.

— Eu sei — disse Abel. — Seu método é muito bom. Acon­tece que o senhor vai embora para aplicar o método onde quiser. Aqui o senhor deu azar. Sr. Pacey, há um antigo provérbio po­lonês que diz o seguinte: “Carregamos água no cântaro enquanto não se quebram as asas”. Pois as asas se quebraram, e o senhor está despedido.

— Não tem poderes para me despedir — insistiu Pacey. Gotas de suor pontilhavam-lhe a testa, a despeito do dia frio de fevereiro. — Davis Leroy é meu amigo pessoal, e é o único ho­mem que pode me despedir. Você chegou de Nova Iorque há me­nos de três meses. Depois que conversarmos, o sr. Leroy não lhe dará ouvidos. Bastaria um simples telefonema meu, e ele o poria para fora deste hotel.

— Vejamos — desafiou Abel.

Pegou o telefone e pediu à telefonista que ligasse para Davis Leroy, em Dallas. Os dois homens aguardaram, sem tirar os olhos um de cima do outro. As gotas de suor agora pingavam da ponta do nariz de Pacey. Por um segundo, Abel duvidou que o patrão sustentasse sua posição.

— Bom dia, sr. Leroy. É Abel Rosnovski falando de Chica­go. Acabo de despedir Desmond Pacey, e ele deseja falar com o senhor.

Pacey pegou o telefone. Sua mão tremia. Escutou apenas alguns segundos.

— Mas, Davis, eu... O que é que eu podia fazer?... Juro que não é verdade... Deve haver algum engano.

Abel ouviu o clique na linha.

— Uma hora, sr. Pacey — tornou Abel. — Senão entrega­rei estes recibos à polícia.

— Espere aí — disse Pacey. — Não seja precipitado. — O tom de voz e a atitude mudaram completamente. — Se você par­ticipar da nossa operação, ganhará uma pequena fortuna. Pode­mos dirigir juntos este hotel, sem essa coisa de um ser mais es­perto que o outro. Ganharia bem mais do que está ganhando como subgerente. Depois, nós dois sabemos que essas perdas não afetam Davis...

— Sr. Pacey, não sou mais subgerente. Sou o gerente. Por­tanto, saia já do hotel antes que eu o ponha na rua.

— Seu polaco de merda! — exclamou o ex-gerente, dando-se conta de que jogara a última cartada e perdera. — Abra os olhos, polaco, antes que eu arranque o seu penacho.

E retirou-se. À hora do almoço, estavam com ele na rua o chefe dos garçons, o cozinheiro-chefe, o chefe dos camareiros, o chefe dos recepcionistas, o chefe dos porteiros e mais dezessete empregados do Richmond que Abel julgou irrecuperáveis. À tarde, ele convocou uma reunião com os empregados restantes, explicou-lhes detalhadamente por que se vira obrigado a tomar aquelas medidas, e garantiu-lhes que seus empregos estavam assegurados.

— Mas se eu der pela falta de um só dólar —- disse Abel, —, repito, um único dólar, o implicado será posto no olho da rua sem mais explicações. Fui claro?

Todos permaneceram calados.

No decorrer das semanas seguintes, ao constatar que Abel não pretendia continuar aplicando o sistema de Desmond Pacey, diversos outros funcionários deixaram o Richmond e foram rapi­damente substituídos.

No final do mês de março, Abel havia contratado quatro empregados do Plaza. Tinham três coisas em comum: eram jovens, ambiciosos e honestos. Em seis meses, apenas trinta e sete do antigo quadro de cento e dez funcionários continuavam empre­gados no Richmond. Ao final do primeiro ano, Abel abriu uma enorme garrafa de champanha com Davis Leroy, e comemoraram a renda anual do Richmond de Chicago. Haviam apurado um lu­cro de três mil, quatrocentos e sessenta e oito dólares. Baixo, sem dúvida, mas o primeiro em trinta anos de existência do hotel. Abel previa um lucro superior a vinte e cinco mil dólares para o ano de 1929.

Davis Leroy estava tremendamente impressionado. Visitava Chicago uma vez por mês, e passou a confiar incondicionalmente nas providências de Abel. Refletiu que o que era certo para o Richmond de Chicago também o seria para os outros hotéis do grupo. Abel queria ver o hotel de Chicago deslanchar suavemente como uma empresa honesta e rentável, antes de pensar em atacar os demais; Leroy concordou, e disse que daria sociedade a Abel caso ele conseguisse realizar nos demais hotéis o que fizera no Richmond.

Juntos, costumavam ir a jogos de beisebol e corridas de ca­valo toda vez que Davis visitava Chicago. Certa ocasião, depois de ter perdido setecentos dólares em seis páreos, Leroy atirou os braços ao ar num sinal de desgosto e disse:

— Abel, por que é que eu me preocupo com cavalos? Você é a melhor aposta que fiz na vida!

Nessas visitas, Melanie Leroy sempre jantava com o pai. Cal­ma, bonita, magra, e de pernas compridas, o que atraía dezenas de olhares dos hospedes do hotel, ela tratava Abel com certa ar­rogância, desencorajando-o a levar avante as aspirações que ele começara a alimentar em relação a ela, e sem nunca lhe dar opor­tunidade de substituir o tratamento formal de “Miss Leroy” por um simples “Melanie”. Mas ao saber que ele tinha um diploma de Economia da Universidade de Colúmbia e sabia mais sobre fluxo de caixa do que ela própria, Melanie abrandou um pouco. De tempos em tempos, jantava sozinha com Abel no restaurante do hotel e pedia-lhe orientação sobre o trabalho que estava fazen­do para seu curso de Ciências Humanas na Universidade de Chicago. Encorajado, Abel às vezes a acompanhava a concertos e teatros, e logo passou a sentir ciúme dos colegas que ela levava para jantar no hotel, embora Melanie nunca estivesse duas vezes com o mesmo sujeito.

Sob as mãos de ferro de Abel, a cozinha do Richmond me­lhorara de tal maneira que pessoas que viviam havia mais de trinta anos em Chicago e nunca tinham notado a existência do restaurante começaram a fazer programas gastronômicos no hotel todas as noites de sábado. Pela primeira vez em vinte anos, Abel havia redecorado todo o hotel e fornecido aos funcionários ele­gantes uniformes, nas cores verde e ouro. Um freguês, que cos­tumava hospedar-se no Richmond uma semana por ano, ao che­gar deteve-se na porta, acreditando estar entrando no estabeleci­mento errado. Quando Al Capone reservou uma mesa para de­zesseis pessoas num salão privado a fim de comemorar seu trigésimo aniversário, Abel teve a certeza de que havia ganho a pa­rada.

 

As excelentes economias pessoais de Abel foram crescendo nesse período, enquanto o mercado de valores florescia. Dezoito meses antes, ele havia deixado o Plaza com oito mil dólares, e agora seu fundo de investimentos apresentava uma soma supe­rior a trinta mil. Tinha certeza de que o mercado continuaria em alta, e, por essa razão, reinvestia constantemente seus rendimentos. Suas necessidades pessoais continuavam relativamente modestas. Comprara dois ternos novos e o primeiro par de sapatos marrons. Morava no hotel, ali fazia as refeições e, além disso, gastava pou­co. Aparentemente, seu futuro não poderia ser menos do que bri­lhante. O Continental Trust trabalhava com a conta do Richmond havia mais de trinta anos, e, assim que chegara a Chicago, Abel transferira sua conta pessoal para lá. Todos os dias ele depositava no banco a receita do hotel do dia anterior. Numa manhã de sex­ta-feira, surpreendeu-se com o aviso de que o gerente lhe pedia que o procurasse. Sabia que sua conta nunca estivera sem saldo, e presumiu que a entrevista deveria estar relacionada com o Rich­mond. Dificilmente o banco se queixaria de que a conta do hotel, pela primeira vez em trinta anos, se achasse numa situação anor­mal. Um auxiliar de escritório conduziu Abel ao longo de um emaranhado de corredores e parou diante de uma bela porta. Uma batida leve, e em seguida ele foi introduzido no gabinete do gerente.

— Meu nome é Curtis Fenton — começou o homem, esten­dendo a mão a Abel e indicando-lhe uma cadeira de couro verde. Era um homem gorducho mas elegante, que usava óculos de len­tes de meia-lua, camisa de colarinho impecavelmente branco e gra­vata preta, que combinavam perfeitamente com a indumentária, de colete, de banqueiro.

– Obrigado — falou Abel, nervoso.

A situação evocou-lhe lembranças do passado, associadas tão-somente ao temor da incerteza do que estava para acontecer.

– Eu o teria convidado para almoçar, sr. Rosnovski...

O coração de Abel voltou a bater mais devagar. Os gerentes de banco não costumam dispensar refeições informais quando têm notícias desagradáveis a dar.

— ... mas surgiu um pequeno problema que exige medi­das urgentes, e, assim, espero que não se importe de discutirmos a questão sem delongas. Sr. Rosnovski, irei direto ao ponto. Uma de minhas clientes mais respeitáveis, uma senhorita chamada Amy Leroy — o nome fez Abel retesar-se na cadeira —, possui vinte e cinco por cento das ações do Grupo Richmond. Várias vezes, no passado, ela ofereceu essa porcentagem ao irmão, o sr. Davis Leroy, mas ele não se mostrou absolutamente interessado em comprar-lhe as ações. Compreendo o raciocínio do sr. Leroy. Setenta e cinco por cento da companhia já lhe pertencem e, acredito, ele não tem motivos para se preocupar com os vinte e cinco por cento restantes, os quais, por sinal, foram legados a Amy Leroy pelo falecido pai. Entretanto, ela está disposta a vender as ações, uma vez que nunca lhe deram dividendos.

Abel não ficou nada surpreso ao ouvir essa explicação.

— O sr. Leroy não faz objeção alguma a que ela venda as ações, e a srta. Amy acha que, na idade em que está, seria melhor dispor de dinheiro para gastar agora em vez de aguardar que um dia o grupo se torne rentável. Tendo isso em mente, sr. Ros­novski, decidi informá-lo da situação, acreditando que talvez o senhor conheça alguém interessado no negócio do hotel e, por conseguinte, na compra das ações de minha cliente.

– Quanto a srta. Leroy espera receber pelas ações? — per­guntou Abel.

– Oh, creio que se contentaria em liquidá-las por cerca de sessenta e cinco mil dólares.

– Mas é um preço alto demais para ações que jamais ren­deram um dividendo sequer — comentou Abel — e que não prometem fazê-lo no prazo de alguns anos.

— Ah — fez Curtis Fenton —, mas lembre-se de que o valor dos onze hotéis também deve ser levado em consideração.

— Mas o controle da companhia continuaria nas mãos do sr. Leroy, o que transforma os vinte e cinco por cento da srta. Leroy em nada mais que papéis.

— Ora, ora, sr. Rosnovski, vinte e cinco por cento de onze hotéis constituem uma posse valiosa por apenas sessenta e cinco mil dólares.

— Não enquanto o sr. Davis Leroy tiver o controle total. Sr. Fenton, ofereça à srta. Leroy quarenta mil dólares e talvez eu encontre algum interessado nas ações.

— Não vê possibilidades de essa pessoa pagar um pouco mais? — As sobrancelhas do sr. Fenton ergueram-se quando ele disse “um pouco mais”.

— Nem um penny a mais, sr. Fenton.

Delicadamente, o gerente cruzou os dedos, satisfeito com a atitude de Abel.

— Nessas circunstâncias, só me resta consultar a srta. Amy a respeito de sua proposta. Entrarei em contato com o senhor tão logo receba instruções dela.

Após deixar o gabinete de Fenton, o coração de Abel batia tão aceleradamente como quando ele entrara. Correu ao hotel e verificou o total de suas ações. O fundo de investimentos estava com trinta e três mil, cento e doze dólares, e a conta corrente, com três mil e oito dólares. Em seguida procurou desempenhar suas tarefas rotineiras. Encontrava dificuldade em se concentrar no serviço, imaginando de que modo a srta. Amy Leroy reagiria à sua proposta e devaneando sobre o que faria, caso viesse a se tornar detentor de vinte e cinco por cento das ações do Grupo Richmond.

Hesitou antes de informar Davis Leroy de seu lance, recean­do que o bondoso texano considerasse suas ambições uma ameaça. Mas após dois dias, durante os quais refletiu sensatamente sobre o assunto, resolveu que a atitude mais honesta seria telefonar a Davis Leroy e informá-lo de suas intenções.

— Sr. Leroy, queria que tomasse conhecimento da minha decisão. Acredito no futuro do Grupo Richmond, e o senhor pode ficar certo de que darei tudo de mim para o sucesso do empreen­dimento, uma vez que meu próprio dinheiro estará em jogo. — Interrompeu-se por um segundo. — Mas se o senhor desejar com­prar os vinte e cinco por cento, naturalmente eu o compreenderei.

A alternativa, para sua surpresa, não foi aceita.

– Bem, escute, Abel, se confia de fato no futuro do grupo, vá em frente, filho, e compre a parte de Amy. Sentirei orgulho em tê-lo como sócio. Você o merece. A propósito, estarei no Reds-Cubs na semana que vem. Vejo-o lá.

– Obrigado, Davis — disse Abel, exultante —, nunca se arrependerá dessa decisão.

— Sei que não, parceiro.

Passada uma semana, Abel retornou ao banco. Dessa vez, pediu para ver o gerente. E de novo sentou-se na cadeira verde, aguardando a palavra do sr. Fenton.

– Fiquei surpreso — começou Curtis Fenton, nada surpreso — quando a srta. Leroy aceitou a proposta de quarenta mil dó­lares pelos vinte e cinco por cento de ações do Grupo Richmond. — Fez uma pausa e levantou os olhos. — Agora que obtive o consentimento dela, posso perguntar se não se importa de revelar quem é o comprador?

— Sim — respondeu Abel com segurança. — Eu mesmo.

— Entendo, sr. Rosnovski — murmurou, ainda sem mos­trar-se surpreso. — Permite-me perguntar como conseguirá os quarenta mil dólares?

— Vendo minhas ações e libero o dinheiro que tenho em conta corrente, e me faltarão apenas quatro mil dólares. Confio em que o senhor poderá me emprestar essa quantia, uma vez que o senhor mesmo avaliou abaixo do valor real as ações do Grupo Richmond. Em todo caso, provavelmente os quatro mil dólares não representarão mais que a comissão do banco sobre o negócio.

Curtis Fenton franziu o cenho. Cavalheiros jamais fariam esse tipo de comentário dentro de seu gabinete; ofendera-o mais ainda o fato de Abel ter a soma exata.

— Dê-me tempo para pensar, sr. Rosnovski, e então voltare­mos a conversar sobre a proposta, sim?

— Se precisar de muito tempo, dispensarei o empréstimo — arrematou Abel. — Meus outros investimentos em breve cobrirão os quarenta mil dólares, uma vez que o mercado anda subindo rapidamente nos últimos tempos.

Abel esperou uma semana para receber a informação de que o Continental Trust dispunha-se a conceder-lhe o empréstimo. Imediatamente, fez os saques e tomou emprestados pouco menos que quatro mil dólares, para completar os quarenta mil.

Em seis meses, Abel saldou o empréstimo mediante caute­losas operações de compra e venda de ações entre março e agosto de 1929, um dos melhores períodos já vividos pelo mercado de valores.

Por volta de setembro, suas duas contas já apresentavam saldos razoáveis. Ele pôde, inclusive, comprar um novo Buick, além de se ter tornado detentor de vinte e cinco por cento do Grupo Richmond de Hotéis. Abel sentia-se satisfeito por ter ad­quirido tal participação no império de Davis Leroy, o que lhe dava segurança para pensar de novo em sua filha e nos outros setenta e cinco por cento.

No início de outubro, Abel convidou Melanie para assistir a um concerto de Mozart no Chicago Symphony Hall. Envergando o terno apertado, o que apenas acentuava o peso que ganhara, e usando a primeira gravata de seda de toda a sua vida, exami­nou-se ao espelho e sentiu que a noite seria um sucesso. Termi­nado o concerto, Abel evitou retornar ao Richmond, embora o serviço fosse excelente, e levou Melanie para jantar no Loop. Prudentemente, conversou apenas a respeito de economia e polí­tica, dois assuntos que ele conhecia muito melhor que ela. Final­mente, propôs-lhe que tomassem um drinque em seus aposentos no hotel. Era a primeira vez que Melanie os visitava, e seu re­quinte a deixou ao mesmo tempo interessada e surpresa.

Abel serviu-lhe o refrigerante que ela pedira, jogou duas pedras de gelo dentro do líquido efervescente e, ao passar-lhe o copo, recebeu um encorajador sorriso de agradecimento. Mal con­seguia afastar os olhos daquele corpo esguio, das pernas cruzadas. Serviu-se de um bourbon.

— Obrigada, Abel, pela noite deliciosa.

Sentou-se ao lado dela e, com um ar compenetrado, agitou o líquido dentro do copo.

— Há muitos anos não ouvia música. Mozart fala-me direto ao coração, como nenhum outro compositor.

— Às vezes você fala como um europeu da Europa central, Abel. — Ela puxou a barra do vestido de seda, sobre a qual Abel se havia sentado. — Ninguém poderia imaginar que um gerente de hotel desse importância a um compositor como Mozart.

— Um dos meus antepassados, o primeiro barão Rosnovski — comentou Abel —, certa vez conheceu o maestro, que logo se tornou grande amigo da família. Sempre achei que ele fazia parte da minha vida.

O sorriso de Melanie foi enigmático. Abel inclinou-se e bei­jou-lhe o rosto junto da orelha, onde o cabelo se prendia. Ela continuou a falar, sem demonstrar estar ciente de seu progresso.

– Frederick Stock captou o espírito do terceiro movimento de uma maneira perfeita, não acha?

Abel tentou beijá-la de novo. Desta vez, ela virou o rosto de frente para ele, permitindo-se ser beijada nos lábios. Em seguida, esquivou-se.

— Já é hora de eu voltar à universidade.

— Mas você acabou de chegar — disse Abel, desolado.

— Sim, sei disso, mas amanhã de manhã tenho de me levan­tar muito cedo. O dia vai ser puxado.

Ele tornou a beijá-la. Ela recostou-se no sofá, e Abel experi­mentou tocar-lhe o seio com a mão. Ela interrompeu o beijo e o afastou.

— Preciso ir embora, Abel — insistiu.

— Ora — fez ele. — Não precisa ir tão depressa. — E tentou beijá-la mais uma vez.

Ela o deteve, desta vez evitando-o com firmeza.

— Abel, o que está fazendo? Não é porque me levou a um jantar e a um concerto que tem o direito de ficar me apalpando.

— Mas temos estado juntos há meses — justificou-se Abel. — Achei que você não ia se importar.

— Não temos estado juntos há meses, Abel. De vez em quando, jantamos no restaurante de papai, mas você não deve deduzir daí que estamos juntos há meses.

— Desculpe-me — pediu Abel. — A última coisa que gos­taria que pensasse de mim era que pretendia abusar de você. Só queria tocá-la.

— Eu jamais consentiria que um homem me tocasse — respondeu ela —, a menos que fôssemos nos casar.

– Mas eu quero me casar com você — declarou ele calma­mente.

Melanie explodiu numa gargalhada.

– O que há de tão engraçado? — tornou Abel, ruborizando-se.

– Abel, não seja bobo, eu nunca me casaria com você.

– Por que não? — inquiriu Abel, abalado com a veemên­cia com que ela falara.

– Não ficaria bem uma moça do Sul casar-se com um imi­grante polonês de primeira geração — replicou, sentando-se em­pertigada e ajeitando o vestido sobre os joelhos.

— Mas eu sou um barão — asseverou Abel com certa alti­vez.

Melanie tornou a gargalhar.

— Abel, como é que alguém pode acreditar nisso? Nunca notou que todo o pessoal do hotel ri de você pelas costas toda vez que você menciona esse título?

Ele ficou pasmo, sentindo-se tonto, o rosto agora sem cor, desconcertado.

— Eles riem de mim? — O leve sotaque polonês por um instante tornou-se acentuado.

— Claro. Então não sabe qual é o seu apelido no hotel? O Barão de Chicago.

Abel perdeu a fala.

— Deixe de ser bobo e não se aborreça por causa disso. Tem feito um ótimo trabalho em benefício de papai, e ele o admira, sei disso. Mas eu nunca me casaria com você.

Abel sentou-se, quieto.

— “Eu nunca me casaria com você” — repetiu ele.

— É lógico que não. Papai gosta de você, mas não o aceitaria como genro.

— Sinto tê-la ofendido — falou Abel.

— Abel, você não me ofendeu. Sinto-me lisonjeada. Bem, agora vamos esquecer essa conversa. Faria a gentileza de levar-me para casa?

Ela levantou-se e caminhou até a porta. Abel permaneceu sentado, ainda perplexo. Sem saber como, ele conseguiu erguer-se lentamente e ajudou Melanie a vestir a capa. Enquanto andava pelo corredor, teve consciência de que mancava. Desceram pelo elevador e tomaram um táxi. Permaneceram calados durante o trajeto. Abel pediu ao motorista que o esperasse, acompanhou Melanie até a porta da frente do dormitório da universidade e beijou-lhe a mão.

— Espero que isso não impeça que continuemos amigos — disse Melanie.

— Claro que não.

— Obrigada por ter me levado ao concerto, Abel. Estou certa de que ainda conhecerá uma garota polonesa com quem po­derá se casar. Boa noite.

— Adeus — respondeu Abel.

 

Abel não se dera conta de que a Bolsa de Nova Iorque estava u real dificuldade, até o dia em que um hóspede lhe perguntou se poderia pagar a conta do hotel em ações. Desde que investira seu dinheiro no Grupo Richmond, ele tinha apenas uma pequena quantia aplicada em ações, mas acatou o conselho da corretora e vendeu o restante com um mínimo de prejuízo, aliviado por ter a maior parte das economias asseguradas em tijolos e argamassa. Desde esse dia, seu interesse pelo índice Dow-Jones decaiu.

O hotel apresentou bom faturamento no primeiro semestre do ano, e Abel ponderou que, se as coisas corressem daquele modo, atingiria os lucros previstos para 1929, da ordem de mais de vinte e cinco mil dólares. Mantinha Davis Leroy permanente­mente informado dos acontecimentos. Em outubro, porém, em decorrência do colapso financeiro, metade do hotel estava vazia. Abel telefonou para Davis Leroy na Quinta-Feira Negra. O texano pareceu deprimido e preocupado, e recusou-se a tomar quaisquer decisões sobre o afastamento temporário de funcionários do hotel, o que, segundo Abel, era uma medida urgente.

— Agüente firme, Abel. Irei aí na semana que vem e juntos encontraremos uma solução, ou, pelo menos, tentaremos.

Abel não gostou do tom da última frase.

— Há algum problema, Davis? Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Por enquanto, não.

Abel continuou intrigado.

— Por que não me autoriza a tomar as providências neces­sárias? Assim, quando chegar, na semana que vem, eu já poderei fazer-lhe um relatório.

— Abel, as coisas não estão nada fáceis para mim. Não queria falar sobre meus problemas pelo telefone, mas o banco está me dando dor de cabeça com meus prejuízos na Bolsa. Amea­çam obrigar-me a vender os hotéis, caso eu não consiga levantar dinheiro suficiente para pagar os débitos.

Abel esmoreceu.

— Meu rapaz, não há por que se preocupar — prosseguiu Davis, num tom de voz nada convincente. — Na próxima semana, assim que chegar, eu lhe darei todos os detalhes da situação. Tenho certeza de que até lá terei posto algumas coisas em ordem.

Abel ouviu o ruído do fone no gancho, e ficou preocupado. Como primeira reação, procurou descobrir uma maneira de ajudar Davis. Telefonou para Curtis Fenton, e, depois de muita insistência, obteve o nome do presidente do banco que controlava o Grupo Richmond, pressentindo que, se lograsse uma entrevista com ele, facilitaria as coisas para o amigo.

Telefonou para Davis diversas vezes nos dias que se segui­ram, dizendo-lhe que os acontecimentos iam de mal a pior e que se fazia necessário tomar uma decisão imediata, mas ele se mos­trava cada vez mais apreensivo, ainda relutando em atender aos seus apelos. Quando tudo começou a escapar ao controle, Abel tomou uma decisão. Pediu à secretária que telefonasse ao ban­queiro responsável pelas contas do Grupo Richmond.

— Com quem deseja falar, sr. Rosnovski? — perguntou uma voz feminina alambicada.

Abel olhou o nome anotado num pedaço de papel que tinha diante de si e o pronunciou com firmeza.

— Um momento, sim?

— Bom dia — disse uma voz em tom formal. — Posso aju­dá-lo em alguma coisa?

— Espero que sim. Meu nome é Abel Rosnovski — começou nervosamente. — Sou o gerente do Richmond de Chicago e gos­taria de marcar uma entrevista com o senhor a fim de que pudés­semos discutir o futuro do Grupo Richmond.

— Não estou autorizado a tratar da questão com ninguém, exceto com o sr. Davis Leroy — respondeu a voz, numa emissão entrecortada.

— Mas possuo uma participação de vinte e cinco por cento no Grupo Richmond — retrucou Abel.

— Nesse caso, poderiam ter lhe explicado que enquanto não possuir uma participação de cinqüenta por cento não estará habi­litado a tratar com o banco, a menos que o sr. Davis Leroy o autorize.

— Mas ele é meu amigo pessoal...

— Não duvido disso, sr. Rosnovski.

— ... e estou tentando ajudá-lo.

— O sr. Leroy o autorizou a representá-lo?

— Não, mas...

— Então, sinto muito. Seria até mesmo pouco profissional da minha parte continuar esta conversa.

— O senhor não poderia ser menos prestativo, não é mes­mo? — falou Abel, arrependendo-se imediatamente de ter pro­ferido essas palavras.

– Não resta dúvida de que é essa a sua opinião, sr. Ros­novski. Tenha um bom dia, senhor.

“Ora vá para o inferno!”, pensou Abel, batendo o telefone, aflito por encontrar um meio de ajudar Davis. Entretanto, não demoraria muito a descobri-lo.

Na manhã seguinte, Abel avistou Melanie no restaurante. Ela não ostentava a habitual segurança, estava abatida e ansiosa, a ponto de quase levá-lo a perguntar se tudo ia bem. Abel desistiu de aproximar-se, e, ao deixar o restaurante a caminho do escritório, encontrou Davis Leroy sozinho no saguão. Ele vestia a mesma jaqueta axadrezada que usava no dia em que Abel o conhecera no Plaza.

— Melanie está no restaurante?

— Sim — respondeu Abel. — Não sabia que viria hoje, Davis. Vou providenciar imediatamente a suíte presidencial.

— Só por esta noite, Abel. E mais tarde gostaria de vê-lo em particular.

— Naturalmente.

Abel não apreciou o tom com que ele dissera “em parti­cular”. Então Melanie queixara-se ao pai a seu respeito? Teria sido por isso que Davis não havia tomado nenhuma decisão du­rante aqueles últimos dias?

Davis Leroy afastou-se apressadamente e entrou no restau­rante, enquanto Abel foi ao balcão de recepção e verificou se a suíte do décimo sétimo andar estava vaga. Metade dos aparta­mentos estavam vazios, e, desse modo, não era de admirar que a suíte presidencial também estivesse livre. Abel reservou-a para o patrão e esperou-o ali mesmo, na recepção, durante mais de uma hora. Observou Melanie saindo do restaurante, o rosto congestio­nado, como se tivesse chorado. O pai saiu poucos minutos depois.

— Abel, pegue uma garrafa de bourbon, não me diga que não conseguirá uma, e venha à minha suíte.

Abel pegou as duas garrafas de bourbon que guardava no cofre e foi ter com Leroy na suíte do décimo sétimo andar, ainda desconfiado de que Melanie contara alguma coisa ao pai.

– Abel, abra a garrafa e sirva-se de uma dose grande — instruiu-o Davis Leroy.

Uma vez mais, Abel sentiu medo do desconhecido. As palmas de suas mãos estavam suadas. Naturalmente, não seria despedido só porque quisera se casar com a filha do chefe! Ele e Leroy eram amigos há um ano, amigos íntimos. Não tardou a saber o que era o desconhecido.

— Termine seu bourbon.

Abel esvaziou o copo num só trago. Davis Leroy fez o mesmo.

— Abel, estou falido. — Interrompeu-se e serviu duas doses. — Aliás, metade dos Estados Unidos faliu.

Abel não disse nada, em parte porque não tinha o que dizer. Permaneceram sentados, olhando um para o outro em silêncio du­rante alguns minutos, e então, depois de outro copo de bourbon, Abel arriscou-se a falar.

— Mas ainda é dono de onze hotéis.

— Fui dono — disse Davis Leroy. — Abel, precisamos falar no pretérito perfeito, agora. Nenhum deles me pertence mais. O banco se apossou de todas as minhas propriedades na sexta-feira passada.

— Mas pertencem ao senhor, pertenceram à sua família por duas gerações — disse Abel.

— Pertenceram. Não pertencem mais. Agora são do banco. A mesma coisa está acontecendo neste momento a quase todos os homens de negócios dos Estados Unidos, pequenos e grandes. Abel, não há razão para não lhe contar toda a verdade. Dez anos atrás, mais ou menos, tomei emprestado ao banco dois milhões de dólares, usando os hotéis como garantia, e investi o dinheiro imediatamente em ações e títulos, de maneira prudente, e em com­panhias bem estabelecidas. Fui acumulando um capital de quase cinco milhões, razão pela qual nunca me importei muito com os prejuízos do hotel — eram sempre um ônus deduzível dos lucros que eu auferia no mercado de valores. Hoje, porém, não pude liquidar essas ações. Podemos utilizá-las como papel higiênico nos onze hotéis. Nestas últimas três semanas, tentei vendê-las o mais depressa que pude, mas já não existem compradores. Na última sexta-feira, o banco executou a hipoteca para reaver o empréstimo.

Abel não se lembrou de que havia conversado com o ban­queiro exatamente na sexta-feira.

— A maioria das pessoas afetadas pela crise contam apenas com pedaços de papel para pagar seus empréstimos, mas, no meu caso, o banco que tinha me apoiado financeiramente possui as es­crituras dos onze hotéis, como garantia do empréstimo. Assim, quando os fundos estouraram, o banco imediatamente se apossou delas. Os desgraçados informaram-me que pretendem vender o grupo o mais rápido que puderem.

– Mas isso é loucura! Nada lucrariam com os hotéis neste momento. Mas, se nos apoiassem neste período, juntos poderíamos apresentar-lhes um bom retorno pelo investimento.

– Abel, sei que você seria capaz disso, mas eles têm o his­tórico do meu passado e o jogaram na minha cara. Fui procurá-los e lhes propus a mesma coisa. Contei-lhes sobre você e disse-lhes que me entregaria de corpo e alma ao grupo se nos oferecessem apoio, mas definitivamente eles não se interessaram. Fizeram-me conversar com um janota de fala macia que sabia de cor todas as respostas que constam dos manuais sobre circulação de dinheiro, falta de fundos e restrições de créditos. Por Deus! Se um dia eu voltasse lá, torceria o pescoço dele e depois quebraria aquele banco. A melhor coisa que podemos fazer por ora é encher a cara até não mais agüentar, por que estou liquidado, na miséria, na bancar­rota.

— E eu também — disse Abel calmamente.

— Não, há uma grande fortuna esperando por você, filho. Quem quer que seja que compre este grupo não conseguirá lucros sem você.

— O senhor se esquece de que possuo vinte e cinco por cento do grupo?

Davis Leroy fitou-o demoradamente. Esquecera-se desse fato.

— Oh, por Deus, Abel! Espero que não tenha posto todo o seu dinheiro no negócio! — Ele começava a falar num tom de voz grave.

— Até o último cent — respondeu Abel. — Mas não o lamento, Davis. Melhor perder junto com um homem inteligente do que junto com um idiota. — Serviu-se de outra dose de bour­bon.

Lágrimas se equilibraram nos cantos dos olhos de Davis Leroy.

– Abel, você é o melhor amigo que um sujeito poderia ter. Colocou este hotel em ordem, investiu seu próprio dinheiro nele, empobreceu, e nem se queixa; ainda por cima, para melhorar as coisas, minha filha se nega a casar com você.

— Não se importou com o fato de eu tê-la pedido em casa­mento? — perguntou Abel, menos incrédulo graças ao bourbon.

– A tola da minha filha não sabe reconhecer uma boa coisa. Quer se casar com um procriador de cavalos do Sul que tenha três generais da Confederação na árvore genealógica da família, ou com um cavalheiro do Norte que tenha um bisavô chegado no Mayflower. Se todos os que sustentam ter tido um parente na­quele navio estivessem dizendo a verdade, aquela droga de geringonça teria afundado mil vezes e não teria alcançado a América. Lamento não ter outra filha, para você, Abel. Ninguém que tenha trabalhado comigo foi tão leal quanto você. Eu me orgulharia de tê-lo como membro da família. Nós dois formaríamos uma dupla espetacular. Mas ainda assim confio em que você sozinho conse­guirá vencê-los. É jovem ainda, tem o mundo inteiro à sua frente. Repentinamente, aos vinte e três anos, Abel sentiu-se velho.

— Obrigado por confiar em mim, Davis, e, seja como for, quem é que se importa com o mercado de valores? Você é o me­lhor amigo que tive em toda a minha vida. — A bebida começava a falar por ele.

Abel despejou no copo uma nova dose de bourbon e engo­liu-a.

Quando amanheceu, ambos haviam esvaziado as duas gar­rafas. Abel deixou Davis dormindo, sentado na cadeira, foi cam­baleando até o décimo andar, arrancou a roupa e desmaiou na própria cama. Acordou do sono pesado com uma sonora batida na porta. Sua cabeça girava, girava sem parar, e a batida conti­nuava, cada vez mais forte. Ele se arrastou sobre a cama e, conseguindo equilibrar-se de pé, experimentou alcançar a porta. Era um mensageiro do serviço interno.

— Depressa, sr. Abel, depressa! — e saiu correndo.

Abel vestiu o roupão, enfiou os pés nos chinelos e arremeteu corredor afora para ir ter com o garoto, que segurava a porta do elevador aberta.

— Depressa, sr. Abel — insistiu o garoto.

— Por que tanta pressa? — inquiriu Abel, sentindo a cabeça zonza enquanto o elevador descia devagar. Recordou então a con­versa da noite anterior. Talvez os representantes do banco o esti­vessem procurando para tomar posse da propriedade.

— Alguém se jogou lá de cima pela janela — disse o garoto.

Abel recobrou-se da ressaca.

— Um hóspede?

— Acho que sim, senhor — disse o mensageiro. — Mas não tenho certeza.

O elevador parou no térreo. Abel abriu a porta de grades de ferro e saiu em disparada em direção à rua. A polícia já havia chegado. Não fosse a jaqueta axadrezada, Abel não teria reconhe­cido o corpo. Um policial fazia anotações. Um homem à paisana aproximou-se de Abel.

– O senhor é o gerente?

— Sou.

– Tem idéia de quem e este homem?

– Tenho – respondeu Abel, mastigando a palavra. — O nome dele é Davis Leroy.

– Sabe de onde ele é ou como poderemos entrar em contato com um parente mais próximo?

Abel desviou o olhar do corpo arrebentado e respondeu auto­maticamente:

– Ele é de Dallas, e a filha dele, Melanie Leroy, reside no campus da Universidade de Chicago.

— Certo, vamos procurá-la.

— Não, não, eu mesmo vou procurá-la — disse Abel.

— Obrigado. É sempre melhor não se ouvir esse tipo de notícia de uma pessoa estranha.

— Que coisa terrível e inútil ele foi fazer! — murmurou Abel, os olhos voltados para o corpo do amigo.

— É o sétimo suicídio hoje em Chicago — informou o agen­te policial, secamente, enquanto fechava o livro de notas de capa preta. — Nós precisamos examinar o apartamento dele. Ninguém pode ocupá-lo, por enquanto.

— Perfeitamente — disse Abel.

O policial afastou-se na direção da ambulância.

Abel observou os homens recolherem o corpo de Davis Leroy da calçada e colocarem-no na maca. Sentiu frio, caiu sobre os joelhos e, curvando-se, vomitou violentamente na sarjeta. Uma vez mais, tinha perdido seu melhor amigo. Se tivesse bebido me­nos e pensado mais, talvez tivesse encontrado uma maneira de salvá-lo. Abel ergueu-se e retornou ao quarto. Tomou um banho de chuveiro demorado e frio e de algum modo conseguiu vestir-se. Pediu que lhe trouxessem café preto, e em seguida, com certa relutância, subiu à suíte presidencial e abriu a porta. À parte as duas garrafas vazias de bourbon, não havia nenhum indício da tragédia ocorrida minutos antes. Viu então as cartas que estavam sobre o criado-mudo, cartas que não haviam sido enviadas. A pri­meira era endereçada a Melanie; a segunda, ao advogado de Dallas; e a terceira, a ele próprio. Abriu a que lhe era endereçada, mas por pouco não teve forças para ler as últimas palavras de Davis Leroy.

 

       Caro Abel,

Encontrei a única solução, em vista da decisão do banco. Não tenho mais nada que me faça viver. Estou velho demais para co­meçar tudo de novo. Saiba que acredito que você é a única pessoa capaz de conseguir algo de bom em meio a esta terrível desor­dem.

Fiz um novo testamento, em que deixo a você os outros setenta e cinco por cento das ações do Grupo Richmond. Sei que não têm valor, mas pelo menos lhe garantirão a condição legal de propriedade do grupo. Como você teve a coragem de comprar com seu próprio dinheiro os outros vinte e cinco por cento, me­rece o direito de tentar um acerto junto ao banco. Deixo a Me­lanie todos os meus demais bens, inclusive a casa. Por favor, não deixe que outra pessoa conte a ela o que aconteceu. Que não seja a polícia. Eu teria me sentido orgulhoso de tê-lo como genro, parceiro.

                   Seu amigo, Davis

 

Abel leu a carta duas vezes, dobrou-a demoradamente e guardou-a na carteira.

Foi à universidade e, da maneira mais suave que pôde en­contrar, transmitiu a notícia a Melanie. Nervoso, sentou-se num sofá, sem saber o que acrescentar à mera notícia da morte. Para seu espanto, ela a recebeu bem, como se soubesse que aquilo estava na iminência de acontecer. Nenhuma lágrima foi derramada diante dele — quem sabe depois, quando tivesse partido. Pela primeira vez, sentiu pena dela.

Abel retornou ao hotel, e, decidido a não almoçar, pediu ao garçom que lhe preparasse um suco de tomate enquanto exami­nava a correspondência. Havia uma carta de Curtis Fenton, do Continental Trust. Sem dúvida seria um dia de muitas cartas. Fenton recebera a comunicação de que um banco de Boston, o Kane & Cabot, havia assumido a responsabilidade financeira pelo Grupo Richmond. O negócio prosseguiria normalmente, até que o sr. Davis Leroy conseguisse uma entrevista em que seria dis­cutida a transmissão de todos os hotéis do grupo. Abel meditou sobre o comunicado e, depois do segundo suco de tomate, escreveu uma carta ao presidente do Kane & Cabot, sr. Alan Lloyd. Cinco dias depois, recebeu a resposta, solicitando-lhe que comparecesse a uma entrevista em Boston, no dia 4 de janeiro, quando então discutiria a liquidação do grupo com o diretor encarregado de falências. Esse espaço de tempo daria ao banco oportunidade de refletir sobre as implicações da súbita e trágica morte do sr. Leroy. Súbita e trágica morte?

– E quem é o responsável pela sua morte? — bradou Abel em alta voz, tomado de ira, lembrando-se de repente das próprias palavras de Davis Leroy: “Fizeram-me conversar com um janota de fala macia... Por Deus! Se um dia eu voltasse lá, torceria o pescoço dele e depois quebraria aquele banco”. — Não se preo­cupe, Davis, eu farei esse serviço por você — prometeu Abel, erguendo ainda mais a voz.

 

Nas últimas semanas do ano, Abel dirigiu o Richmond com um rígido controle do quadro de funcionários e das despesas, e ainda assim conseguiu apenas manter a cabeça fora d’água. O que estaria acontecendo com os outros dez hotéis do grupo? Ele não dispunha de tempo para averiguar, e, além do mais, isso não mais lhe competia.

 

No dia 4 de janeiro de 1930, Abel Rosnovski desembarcou em Boston. Na estação ferroviária, pegou um táxi até o Kane & Cabot, onde chegou minutos antes da hora marcada. Sentou-se na sala de recepção, que era maior e mais pomposa do que qual­quer um dos quartos de dormir do Richmond de Chicago. Abriu o Wall Street Journal. O ano de 1930 prometia ser melhor...

 

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No dia 4 de janeiro de 1930, Abel Rosnovski desembarcou em Boston. Na estação ferroviária, pegou um táxi até o Kane & Cabot, onde chegou minutos antes da hora marcada. Sentou-se na sala de recepção, que era maior e mais pomposa do que qual­quer um dos quartos de dormir do Richmond de Chicago. Abriu o Wall Street Journal. O ano de 1930 prometia ser melhor, o jornal afiançava. Ele duvidava disso. Uma senhora de meia-idade, um tanto empertigada, entrou na sala.

— O sr. Kane o receberá agora, sr. Rosnovski.

Abel acompanhou-a por um longo corredor, que deu num pequeno escritório de paredes forradas de painéis de carvalho, com uma mesa de tampo coberto de couro, à qual se sentava um moço vistoso que devia ser, pensou Abel, da mesma idade que ele. Os olhos, tão azuis quanto os de Abel. Na parede atrás do jovem, o retrato de um homem mais velho, com o qual ele era por demais parecido. “Aposto que é o papai”, imaginou Abel com rancor. “Tenho certeza de que ele sobreviverá à crise; os bancos sempre saem vitoriosos, de uma forma ou de outra.”

— Meu nome é William Kane — disse o jovem, alto, levantando-se e estendendo-lhe a mão. — Tenha a bondade de sentar-se, sr. Rosnovski.

— Obrigado.

William fitou o homem de pequena estatura e terno desa­linhado, mas notou determinação em seus olhos.

— Se o senhor me permite, gostaria de expor o estado atual da situação tal como a vejo — continuou o jovem.

— Naturalmente.

— A trágica e inesperada morte do sr. Leroy... — William começou, aborrecido com a própria linguagem empolada.

“Que a sua insensibilidade provocou”, pensou Abel.

— ... deixou-o como responsável direto pela direção do grupo até o momento em que o banco tenha condições de encon­trar um comprador para os hotéis. Embora cem por cento das ações do grupo estejam agora em seu nome, a propriedade dos onze hotéis, que serviam de garantia ao empréstimo de dois mi­lhões de dólares efetuado ao falecido sr. Leroy, passou legalmente ao nosso patrimônio, o que o exime de qualquer tipo de respon­sabilidade. Em vista disso, caso o senhor deseje desligar-se de todo o processo, nós, naturalmente, o compreenderemos.

“Uma proposta ultrajante”, refletiu William, “mas é neces­sário que seja feita.”

“O tipo da coisa que um banqueiro espera que um homem faça”, refletiu Abel: “cair fora no exato instante em que surge um problema.”

William Kane prosseguiu:

— Até que se liquide o débito de dois milhões, lamento, consideraremos insolvente a propriedade do sr. Leroy. Nós, do banco, prezamos seu envolvimento pessoal com o grupo, e nada fizemos no sentido de vender os hotéis antes de conversarmos com o senhor pessoalmente. Acreditamos que talvez conheça al­gum interessado na compra da propriedade, uma vez que os edi­fícios, as terras e o negócio evidentemente são valiosos.

— Mas não valiosos a ponto de o senhor me apoiar — re­trucou Abel, passando a mão enfadonhamente pelo cabelo preto e basto. — Quanto tempo me dará para procurar um comprador?

William vacilou um segundo ao perceber a pulseira de prata no pulso de Abel Rosnovski. Vira-a antes em algum lugar, mas não conseguia lembrar-se onde.

— Trinta dias. Entenda que o banco está arcando com os prejuízos diários de dez dos onze hotéis. Apenas o Richmond de Chicago tem apresentado um pequeno lucro.

– Sr, Kane, se o senhor me desse tempo e apoio financeiro, eu transformaria todos os hotéis em empresas rentáveis. Sei que o conseguiria — acrescentou Abel. — Basta dar-me a oportunidade de provar que posso consegui-lo, senhor. — Sentiu que a última palavra ficara presa na garganta.

— O sr. Leroy nos prometeu o mesmo quando nos procurou no último outono — comentou William. — Mas vivemos tempos difíceis. Não existem previsões de que o negócio se recupere, e nós, sr. Rosnovski, não somos hoteleiros. Somos banqueiros.

Abel começava a perder a paciência com o banqueiro impecavelmente vestido — o “janota”. Davis estava certo.

— E as coisas ficarão piores para os funcionários — disse Abel. — O que farão, se o senhor vender o teto que os abriga? O que imagina que acontecerá com eles?

— Sinto muito, sr. Rosnovski, mas isso escapa à nossa responsabilidade. Devo agir segundo os melhores interesses do banco.

— Os seus melhores interesses, não é o que está querendo dizer, sr. Kane? — indagou Abel, com raiva.

O jovem enrubesceu.

— Fez uma afirmação injusta, sr. Rosnovski, e eu me sentiria ofendido se não compreendesse a situação em que se encontra.

— É lamentável que o senhor não tenha sido compreensivo com o sr. Leroy em tempo hábil — disse Abel. — Sua compreen­são teria sido muito útil para ele. O senhor o matou, como se o senhor mesmo o tivesse empurrado para fora daquela janela, o senhor e seus fiéis colegas, que acomodam aqui o traseiro enquan­to nós damos nosso sangue, garantindo que, nos tempos fáceis, os senhores possam receber um grande quinhão, e, nos tempos difíceis, passem por cima de nós.

Também William começava a ficar irado, mas, ao contrário de Abel Rosnovski, não o demonstrou.

— Esse tipo de discussão não nos levará a lugar algum, sr. Rosnovski. Previno-o de que, se não puder encontrar um compra­dor dentro de trinta dias, não terei outra alternativa senão pôr os hotéis em leilão.

– O senhor está me aconselhando a pedir outro empréstimo em outro banco – disse Abel com sarcasmo. - Conhece meu histórico e não quer me apoiar. Espera que eu vá para que outro inferno quando sair daqui?

— Lamento, mas não tenho a mínima idéia — replicou William. — O problema é inteiramente seu. As instruções do conselho são uma só, simplesmente limpar o débito o mais rápi­do possível, e é isso o que tenho a intenção de fazer. Talvez o senhor possa entrar em contato comigo até o dia 4 de fevereiro, no mais tardar, quando então me informará se teve a sorte de encontrar um comprador. Bom dia, sr. Rosnovski.

William ergueu-se de trás da mesa e de novo ofereceu a mão a Abel. Dessa vez, ele a ignorou e caminhou em direção à porta.

— Depois da nossa conversa pelo telefone, sr. Kane, pensei que o senhor fosse se sentir numa situação embaraçosa e resolvesse me ajudar. Enganei-me. Você é exatamente um filho da puta. Quando se deitar à noite, sr. Kane, pense em mim. Quando acor­dar de manhã, pense em mim outra vez, porque não me cansarei de pensar numa maneira de acertar nossas contas.

William parou, pensativo, diante da porta fechada. A pulseira de prata ainda o perturbava. Em que lugar e quando a tinha visto? A secretária voltou.

— Mas que homenzinho desagradável! — comentou.

— Não, não exatamente — respondeu William. — Ele acha que nós matamos o sócio dele e agora dissolvemos a empresa sem pensar nos empregados, sem falar nele próprio, que de fato foi um gerente muito capaz. O sr. Rosnovski comportou-se de um modo extraordinariamente educado, se considerarmos as circuns­tâncias. E confesso que quase me senti penalizado, porque infeliz­mente o conselho decidiu não apoiá-lo.

Voltou-se para a secretária.

— Ligue para o sr. Cohen.

 

Na manhã do dia seguinte, Abel voltou a Chicago ainda preo­cupado e irritado com a intransigência de William Kane. Enquanto parava um táxi e se sentava no banco de trás, não ouviu direito o que o jornaleiro gritava junto à banca de jornais da esquina.

— Richmond Hotel, por favor.

— É repórter? — perguntou o motorista, dirigindo-se à State Street.

— Não, por que pergunta?

— Oh, porque pediu para levá-lo ao Richmond. Hoje aquilo lá está cheio de repórteres.

Abel não se lembrava de nenhuma programação marcada para esse dia que pudesse chamar a atenção da imprensa.

— Se não é jornalista — continuou o homem —, acho me­lhor levá-lo a outro hotel.

— Por quê? — indagou Abel, ainda mais curioso.

— Se fez reserva lá... o Richmond pegou fogo.

Quando o carro virou a esquina do quarteirão, Abel deparou com a carcaça fumacenta do Richmond Hotel. Viaturas policiais, caminhões do corpo de bombeiros, madeiras carbonizadas, água alagando a rua. Ele desceu do carro e olhou os escombros da capi­tânia do grupo de Davis Leroy.

“O polonês se mantém sereno diante da desgraça”, refletiu Abel, cerrando o punho e socando-o contra a perna aleijada. Não sentiu dor — nada lhe restara que pudesse lhe doer.

— Filhos da puta! — bradou. — Já fui humilhado mais que isso, mas vou derrotar cada um de vocês! Alemães, russos, turcos, o filho da puta do Kane, e agora isto! Todo mundo! Vou vencer todos vocês! Ninguém vai destruir Abel Rosnovski!

O subgerente avistou Abel, que gesticulava ao lado do táxi, e correu até ele. Abel esforçou-se por acalmar-se.

— Os empregados e os hóspedes saíram do hotel a salvo? — perguntou.

— Sim, graças a Deus. O hotel estava quase vazio. Foi fácil evacuá-lo. Uma ou duas pessoas machucaram-se e queimaram-se, mas já foram levadas ao hospital. Não há com que se preocupar.

— Bom, isso já é um alívio. Graças a Deus, o hotel estava segurado, se não me engano, em mais de um milhão. Essa des­graça ainda pode se tornar a nossa salvação.

— Creio que não, se o que os jornais dizem for verdadeiro.

— Como assim? — perguntou Abel.

— Leia o senhor mesmo, chefe — respondeu o subgerente.

Abel foi à banca de jornais e pagou ao menino dois cents pela última edição do Tribune. A manchete explicava tudo.

 

             FOGO NO RICHMOND HOTEL

INCÊNDIO PREMEDITADO?

 

Incrédulo, Abel balançou a cabeça e releu a manchete.

— Que mais poderá acontecer? — murmurou.

— Algum problema, senhor? — quis saber o jornaleiro.

— Um probleminha — respondeu Abel, e foi ter com o subgerente.

— Quem está encarregado do inquérito policial?

— Aquele oficial debruçado no carro da polícia — disse o subgerente, apontando um homem magro e alto, prematuramente calvo. — Tenente 0’Malley.

— Tinha de ser ele — comentou Abel. — Leve o pessoal para dentro do anexo e diga-lhes que conversarei com eles ama­nhã de manhã, às dez horas em ponto. Se alguém quiser me ver antes disso, estarei no Stevens até colocar as coisas em ordem.

— Tudo se esclarecerá, chefe.

Abel aproximou-se do tenente 0’Malley e apresentou-se. O policial curvou um pouco o corpo ao apertar a mão de Abel.

— Ah, o desaparecido ex-gerente voltou aos seus escombros.

— Não vejo graça nisso, tenente — replicou Abel.

— Desculpe — disse. — Não é engraçado mesmo. A noite foi longa demais. Vamos sair daqui e tomar alguma coisa.

O policial pegou Abel pelo cotovelo e o guiou ao outro lado da Michigan Avenue, em direção ao bar da esquina. O tenente 0’Malley pediu dois milk shakes.

Abel riu quando puseram diante dele a mistura branca e es­pumosa. Como jamais tivera juventude, esse era o seu primeiro milk shake.

— Sei, sei, é bem gozado. Todo mundo nesta cidade quebra a lei tomando bourbon ou cerveja — comentou o investigador. — Alguém tem de jogar esse jogo à risca. Em todo caso, a lei seca não vai durar a vida inteira, e até meus problemas começa­rão de novo porque os gângsteres descobrirão que eu gosto mesmo é de milk shake.

Abel riu pela segunda vez.

— Mas falemos dos seus problemas, sr. Rosnovski. Em pri­meiro lugar, devo dizer que perca as esperanças de receber o dinheiro do seguro do hotel. Os peritos fizeram uma inspeção pente-fino nos escombros e constataram que no local havia que­rosene. Não houve a menor tentativa de disfarçar. O porão inteiro apresentava vestígios do líquido. Bastou um fósforo e...

– Tem idéia de quem seja o responsável? — perguntou Abel.

– Eu faço as perguntas, está certo? Tem idéia de alguma pessoa que tivesse motivos para se vingar, a ponto de destruir o hotel ou atentar contra o senhor pessoalmente?

– Mais ou menos cinqüenta pessoas, tenente — resmungou Abel. — Quando cheguei aqui, fiz uma limpeza no hotel, joguei fora um latão cheio de vermes. Posso lhe dar uma relação, se isso puder ajudar.

— Acho que poderia, mas do jeito que vão os comentários lá fora, não será necessário — disse o tenente. — De qualquer modo, se conseguir alguma informação precisa, por favor, sr. Ros­novski, procure-me. Procure-me, porque, e isso é uma advertência, seus inimigos o esperam lá fora. — E indicou a rua que formi­gava.

— O que quer dizer? — perguntou Abel.

— Alguém afirma que foi o senhor que pôs fogo no hotel, porque perdeu tudo com a crise e precisava do dinheiro do seguro.

Abel saltou fora do banco.

— Fique calmo, fique calmo. Sei que passou o dia inteiro em Boston, e, o que é mais importante, goza da reputação, nesta cidade, de pôr hotéis em pé, não abaixo. Mas alguém pôs o Rich­mond abaixo, e pode apostar como vou descobrir o culpado. Por enquanto, deixemos as coisas como estão. — Num giro, ele saltou do banco. — O milk shake é por minha conta, sr. Rosnovski. Espero precisar de um favor seu no futuro.

Sorriu para a garota da caixa, admirando-lhe os tornozelos e amaldiçoando a nova moda das saias longas. Deu-lhe cinqüenta cents.

— O troco é seu, doçura.

— Obrigada — respondeu a garota.

— Ninguém gosta de mim — disse o tenente.

Abel riu pela terceira vez, o que, uma hora atrás, não ima­ginou fosse possível.

— A propósito — tornou a falar o tenente quando chega­ram à porta —, o pessoal do seguro anda procurando o senhor. Esqueci o nome do sujeito, mas logo estará aqui, creio eu. Não o encoste contra a parede. Se ele achar que o senhor está impli­cado, a culpa não é dele. Não suma, sr. Rosnovski. Vou querer conversar com o senhor outra vez.

Abel observou o tenente desaparecer no meio da multidão de curiosos e encaminhou-se calmamente para o Stevens Hotel onde reservou um quarto para passar a noite. A recepcionista, que já registrara a entrada da maioria dos hóspedes do Richmond, não pôde deixar de achar graça no fato de também acolher o gerente. Em seu quarto, Abel sentou-se para escrever uma carta formal ao sr. William Kane, aludindo ao incêndio e dizendo-lhe que, aproveitando a imprevista ociosidade, faria uma visita aos demais hotéis do grupo. Abel não via sentido em permanecer em Chicago aquecendo-se com o rescaldo do Richmond, na vã espe­rança de que surgisse alguém que lhe prestasse fiança.

Depois do desjejum de primeira classe do Stevens — ele sem­pre se sentia à vontade num hotel organizado —, na manhã se­guinte, Abel dirigiu-se ao Continental Trust, onde relatou a Curtis Fenton a atitude do Kane & Cabot para com ele ou, sendo mais preciso, a atitude de William Kane. Embora ciente da inutilidade da proposta, acrescento que procurava um comprador para o Grupo Richmond, que estava à venda por dois milhões de dólares.

— O incêndio só nos complicará o processo, mas verei o que posso fazer — disse Fenton, mostrando-se mais solícito do que Abel esperara. — Na época em que o senhor comprou os vinte e cinco por cento das ações do grupo que pertenciam à srta. Leroy, eu lhe disse que considerava os hotéis um bem valioso e que se tratava de um bom negócio. Não obstante a crise, não vejo razão para mudar minha opinião, sr. Rosnovski. Acompanhei-o na ge­rência do seu hotel durante dois anos, e, caso a decisão estivesse nas minhas mãos, eu o apoiaria. Receio, porém, que meu banco jamais concorde em financiar o Grupo Richmond. Há muito vimos acompanhando os resultados financeiros do grupo e não será agora que confiaremos no seu futuro. E o incêndio foi a última gota, se me permitir usar a expressão. Entretanto, tenho alguns conta­tos fora daqui e verifiquei se posso fazer alguma coisa para ajudá-lo. Nesta cidade o senhor tem mais admiradores do que imagina, sr. Rosnovski.

Depois de ouvir os comentários do tenente 0’Malley, Abel perguntou-se se de fato contava com algum amigo em Chicago. Agradeceu a Curtis Fenton, foi ao guichê do banco e fez uma retirada de cinco mil dólares, da conta do hotel. Permaneceu no anexo do Richmond durante toda a manhã. Entregou aos funcio­nários duas semanas de salário e disse-lhes que poderiam conti­nuar no anexo por um mês ou até encontrarem outro emprego. Em seguida, regressou ao Stevens, guardou as roupas novas, que comprara para substituir as destruídas no incêndio, e preparou-se para uma excursão aos hotéis restantes do grupo.

Com o Buick que comprara pouco antes da crise do mercado, desceu primeiro para o Sul, começando pelo Richmond de St. Louis. As visitas aos hotéis tomaram-lhe cerca de um mês. Embora estes estivessem em declínio, e, sem exceção, perdendo dinheiro, nenhum deles, na visão de Abel, era caso perdido. Todos tinham o privilégio da boa localização; alguns estavam situados nos me­lhores lugares da cidade. “O velho Leroy fora bem mais perspicaz que o filho”, refletiu Abel. Examinou cuidadosamente todas as apólices de seguro; tudo em ordem. Quando finalmente chegou ao Richmond de Dallas, assegurara-se de uma única coisa: quem comprasse o grupo por dois milhões de dólares faria excelente negócio. Desejou ter recursos para efetuar a compra, pois sabia com exatidão que medidas deveriam ser tomadas para que o grupo se tornasse lucrativo.

Ao retornar a Chicago, quase quatro semanas depois, hospe­dou-se no Stevens, onde alguns recados o aguardavam. O tenente 0’Malley queria vê-lo, assim como William Kane, Curtis Fenton e um homem chamado Henry Osborne.

Começou com a lei. Depois de uma breve conversa telefônica com 0’Malley, concordou em encontrá-lo no bar da Michigan Avenue. Abel sentou-se num banco alto, as costas contra o balcão, fitando a carcaça destroçada do Richmond Hotel enquanto espe­rava o tenente. 0’Malley chegou alguns minutos atrasado, mas não se incomodou em desculpar-se, sentando-se em frente a Abel.

— Por que este encontro? — perguntou Abel.

— Deve-me um favor — disse o tenente —, e ninguém em Chicago que me deva um milk shake sai sem me dar um alô.

Abel pediu dois, um grande, outro médio.

— O que foi que descobriu? — indagou Abel, passando ao investigador dois canudinhos listrados em vermelho e branco.

— O pessoal do corpo de bombeiros estava certo. O incêndio foi premeditado. Prendemos um sujeito chamado Desmond Pacey, ex-gerente do Richmond. Foi na sua época, certo?

— Infelizmente, foi — disse Abel.

— Por que diz isso? — perguntou o tenente.

— Despedi Pacey porque desviava dinheiro. Ele disse que ia se vingar, mesmo que fosse a última coisa da vida dele. Não dei atenção à ameaça. Na minha vida, tenente, recebi tantas ameaças que não podia levar mais nenhuma a sério, ainda mais vinda de um indivíduo como Pacey.

— Bem, nós o levamos a sério, saiba disso. E não só eu, também o pessoal da seguradora, porque eu soube que não vão lhe pagar um penny sequer enquanto não ficar provado que não houve conluio entre você e Pacey.

— Era só o que me faltava — disse Abel. — Como pode ter certeza de que foi Pacey?

— Nós o localizamos no pronto-socorro do hospital do dis­trito no mesmo dia do incêndio. Numa investigação de rotina, pedimos ao hospital que nos fornecesse os nomes das pessoas que haviam entrado com queimaduras graves. Por acaso — diaria­mente o acaso faz parte do trabalho da polícia, já que nem todos nascemos para ser Sherlock Holmes —, a mulher de um sar­gento, que foi copeira no Richmond, contou-nos que ele tinha sido gerente. Até eu sei que dois e dois são quatro. O cara se abriu depressa, nada preocupado por ter sido apanhado, aparentemente só interessado no que chamou de Dia do Massacre de São Valentim. Só agora estou entendendo qual era o objeto da vingança dele, mas não fiquei surpreso. Isso esclarece todo o caso, sr. Rosnovski.

O tenente sorveu o milk shake pelo canudinho até que o ruído gorgolejante o convenceu de que o copo estava seco.

— Aceita outro milk shake?

— Não, eu paro por aqui. Tenho um dia difícil pela frente. — Desceu do banco. — Boa sorte, sr. Rosnovski. Se provar aos homens do seguro que não tinha nenhum envolvimento com Pacey, receberá o dinheiro. Farei o que puder para ajudá-lo quan­do o caso chegar ao tribunal. Não suma.

Abel o observou desaparecer atrás da porta. Deu à garçonete um dólar e saiu para o passeio, olhando o terreno vazio, o terreno onde, menos de um mês antes, erguia-se o Richmond Hotel. Deu meia-volta e retornou ao Stevens, imerso em pensa­mentos.

Havia outro recado de Henry Osborne, que não tinha deixa­do nenhuma indicação de quem era. Havia uma só maneira de descobri-lo. Telefonou para Osborne, que se identificou como ins­petor da Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western, com a qual o hotel estava segurado. Abel marcou uma entrevista com o homem ao meio-dia. Em seguida, telefonou para William Kane em Boston e forneceu-lhe um relatório sobre os hotéis que havia vistoriado.

– Gostaria de tornar a dizer, sr. Kane, que eu poderia transformar os prejuízos em lucros, caso o seu banco me desse tempo e apoio. Sei que conseguiria fazer com os demais hotéis o que fiz em Chicago.

– Provavelmente o senhor o conseguiria, sr. Rosnovski, mas receio que terá de fazê-lo sem o dinheiro do Kane & Cabot. Devo lembrá-lo de que restam ao senhor apenas cinco dias para encon­trar um financiador. Bom dia, senhor.

— Banqueiro esnobe! — disse Abel, depois de desfeita a ligação. — Não sou fino o suficiente para receber o seu dinheiro, não é? Mas algum dia o serei, seu bastardo!

O próximo compromisso constante da agenda de Abel era com o homem do seguro. Henry Osborne era um homem alto e bem-apessoado, de olhos escuros e cabelo negro, que começava a ficar grisalho. Tinha uma distinção e afabilidade com as quais Abel encontrou afinidades. Osborne pouco acrescentou à histó­ria do tenente 0’Malley. A Companhia de Seguros contra Aci­dentes Great Western nada lhe pagaria enquanto a polícia não apurasse a suspeita de crime contra Desmond Pacey, e até que se provasse que Abel não estava envolvido com ele. Henry Osborne pareceu extremamente compreensivo com respeito à questão.

— O Grupo Richmond tem dinheiro suficiente para reerguer o hotel? — perguntou Osborne.

— Nem um cent — respondeu Abel. — O resto do grupo está hipotecado até a alma, e o banco vem me coagindo a vender a propriedade.

— Por que você? — indagou Osborne.

Abel explicou-lhe como adquirira as ações do grupo sem em verdade ser dono dos boteis. Henry Osborne mostrou-se surpreso.

— Naturalmente, o banco não ignora sua capacidade de diri­gir o hotel. Todos os homens de negócios de Chicago sabem que o senhor foi o primeiro gerente a dar lucros a Davis Leroy. Com­preendo que os bancos estejam passando por um momento difícil, mas eles próprios deveriam saber em que momento abrir uma exceção em nome de um bom investimento.

— Mas este banco, não.

– O Continental Trust? — perguntou Osborne. — Sempre achei o velho Curtis Fenton um tanto rígido, embora bastante tratável.

— Não é o Continental. Os hotéis pertencem a um banco de Boston chamado Kane & Cabot.

Henry Osborne empalideceu e deixou-se cair sentado.

— Está se sentindo bem? — perguntou Abel.

— Sim, estou.

— O senhor conhece o Kane & Cabot?

— Informação confidencial?

— Claro.

— Bem, uma vez, há algum tempo, minha companhia fez um negócio com ele. — Osborne pareceu titubear. — E acabamos levando-o à Justiça.

— Por quê?

— Não posso dar os detalhes. Um negócio desastroso. Diga­mos apenas que um dos diretores não foi inteiramente honesto e franco conosco.

— Qual deles? — perguntou Abel.

— Com quem você fez o contato? — inquiriu Osborne.

— Um diretor chamado William Kane.

Osborne pareceu titubear pela segunda vez.

— Tome cuidado — disse. — Ele é o filho da puta mais desprezível do mundo. Posso revelar-lhe toda a verdade sobre ele, se o quiser, mas isso terá de ficar exclusivamente entre nós.

— Sem dúvida não devo a ele nenhum favor — disse Abel. — Eu o procurarei, sr. Osborne. Ainda tenho uma dívida a acertar com o jovem sr. Kane pelo tratamento que deu a Davis Leroy.

— Bom, se William Kane está metido nisso, conte comigo de maneira incondicional — disse Henry Osborne, levantando-se da cadeira. — Mas que isso fique somente entre nós. E se no tribunal ficar provado que Desmond Pacey pôs fogo no Rich­mond sem a participação de ninguém, a companhia o indenizará no mesmo dia. Depois, quem sabe, possamos fazer algum outro negócio com todos os seus hotéis.

— Quem sabe — disse Abel.

Ele voltou ao Stevens e resolveu jantar e verificar a quali­dade da comida no restaurante principal. Encontrou outro comu­nicado na portaria. David Maxton o convidava para um almoço às treze horas.

— David Maxton — pronunciou Abel em voz alta, atraindo a atenção da recepcionista. — De onde conheço esse nome? — perguntou à moça, que o olhava.

— Ele é o proprietário deste hotel, sr. Rosnovski.

– Ah, sim, é claro. Por favor, diga ao sr. Maxton que terei prazer em almoçar com ele. — Consultou o relógio. — Pode lhe dizer também que provavelmente me atrasarei alguns minutos?

– Certamente, senhor — disse a moça.

Abel subiu apressado para o quarto, e vestiu uma camisa branca, curioso por saber o que David Maxton poderia querer dele.

Quando desceu, o restaurante estava lotado. O garçom o conduziu à mesa de um reservado, onde o proprietário do Stevens estava sentado, sozinho. Ele levantou-se para cumprimentar Abel.

— Abel Rosnovski, senhor.

— Eu o conheço — disse Maxton —, ou, para ser mais preciso, conheço sua reputação. Sente-se e façamos nossos pedidos.

Abel viu-se forçado a admirar o Stevens. Tanto o serviço quanto a comida, sob todos os aspectos, eram tão bons como os do Plaza. Se sonhasse possuir o melhor hotel de Chicago, sem dúvida teria de superar o Stevens.

O garçom reapareceu trazendo os cardápios. Abel recusou polidamente a entrada e escolheu um bife, a forma mais rápida de constatar se um restaurante trabalha com o açougueiro certo. David Maxton não olhou o cardápio, pedindo simplesmente sal­mão. O garçom afastou-se às pressas.

— Deve estar curioso por saber por que razão o convidei para almoçar comigo, sr. Rosnovski.

— Imaginei — respondeu Abel, sorrindo — que o senhor me proporia gerenciar o Stevens.

— Pois acertou em cheio, sr. Rosnovski.

Dessa vez foi Maxton que riu. Abel perdeu a fala. Mesmo a chegada do garçom, que empurrava um carrinho com a mais excelente das carnes, não lhe serviu de ajuda. A trinchadeira aguardou. Maxton espremeu limão sobre o salmão e prosseguiu:

— Meu gerente irá se aposentar daqui a cinco meses, após vinte e dois anos de serviço leal, e o subgerente também deverá se aposentar logo em seguida. Por isso, ando à procura de um ho­mem que saiba varrer muito bem.

— Este local me parece um brinco — disse Abel.

— Sempre espero maior higiene, sr. Rosnovski. Nunca de­vemos nos permitir um repouso — disse Maxton. — Acompanhei com muito interesse suas atividades. Não se poderia classificar o Richmond de hotel se o senhor não tivesse assumido a direção. Para ser mais exato, antes do senhor aquilo era uma espelunca. Dois ou três anos mais, se o senhor tivesse tido a oportunidade, que lhe foi tirada por um piromaníaco, e Richmond se teria tornado um concorrente do Stevens.

— Batatas, senhor?

Abel levantou os olhos e viu uma graciosa garçonete.

Ela lhe sorriu.

— Não, obrigado — respondeu. — Sabe, sr. Maxton, sinto-me lisonjeado pelos seus comentários e pela sua oferta.

— Creio que aqui o senhor seria feliz. O Stevens é um hotel bem organizado, e eu estaria disposto a lhe pagar de início cin­qüenta dólares por semana, mais dois por cento sobre os lucros. Poderia começar quando desejasse, sr. Rosnovski.

— Preciso de alguns dias para pensar nessa oferta generosa, sr. Maxton — disse Abel —, mas, confesso, sinto-me tentado a aceitar. Entretanto, restam-me alguns problemas legados pelo Rich­mond que requerem solução.

— Vagem, senhor? — A mesma garçonete, o mesmo sorriso.

O rosto era-lhe familiar. Abel tinha quase certeza de que a vira antes. Talvez tivesse trabalhado no Richmond.

— Sim, por favor.

Ele a observou enquanto se afastava. Algo nela o intrigava.

— Convido-o a ficar alguns dias no hotel — propôs Maxton — Assim, verá de que modo trabalhamos. Isso o ajudará a tomar uma decisão.

— Não é necessário, sr. Maxton. Um único dia foi suficiente para descobri-lo. O problema é que sou proprietário do Grupo Richmond.

O rosto de David Maxton registrou surpresa.

— Não sabia disso. Imaginei que a filha do velho Davis Leroy passaria a ser a proprietária.

— A história é longa — disse Abel, e explicou-lhe como se tornara dono das ações do grupo. — O problema é muito simples, sr. Maxton. O que quero de fato é conseguir os dois milhões de dólares e fazer desse grupo algo valioso. Algo que recompense os meus esforços.

— Compreendo — disse Maxton, olhando, embaraçado, o prato vazio.

O garçom levou o prato embora.

— Aceita um café? — A mesma garçonete. O mesmo rosto familiar.

Abel começava a se sentir intrigado.

— Disse-me que Curtis Fenton, do Continental Trust, pro­cura um comprador em seu nome?

— Há quase um mês ele o vem procurando — disse Abel. – Aliás hoje à tarde saberei se obteve algum sucesso, mas não tenho ilusões.

– Bom, isso é muito interessante. Ignorava que o Grupo Richmond se encontrava à venda. De qualquer maneira, poderia manter-me informado?

– Naturalmente — disse Abel.

– Quanto tempo o banco de Boston lhe deu para conseguir os dois milhões?

– Alguns dias, apenas. Assim não tardarei em comunicar-lhe a minha decisão.

– Obrigado — disse Maxton. — Foi um prazer este en­contro, sr. Rosnovski. Gostaria muito de poder contar com o se­nhor — acrescentou, apertando calorosamente a mão de Abel.

— Obrigado — disse Abel.

Retirando-se, ao passar pela garçonete ela lhe sorriu. Abel aproximou-se do garçom que o servira e perguntou-lhe o nome da moça.

— Desculpe-me, senhor, mas não podemos dar aos fregueses o nome de nenhum dos nossos funcionários; isso contraria as nor­mas da empresa. Se quiser fazer alguma queixa, por gentileza, faça-a diretamente a mim.

— Não tenho queixa alguma a fazer — disse Abel. — Pelo contrário, o almoço foi excelente.

Com uma oferta de trabalho dentro do bolso, Abel sentiu-se mais seguro para enfrentar Curtis Fenton. Com certeza o ban­queiro não havia conseguido um comprador. Mesmo assim, dirigiu-se rapidamente para o Continental Trust. Apreciava a idéia de gerenciar o melhor hotel de Chicago. Talvez o transformasse no melhor hotel dos Estados Unidos. Tão logo chegou ao banco, in­troduziram-no no gabinete de Curtis Fenton. O banqueiro alto e magro — usava o mesmo terno diariamente ou possuía três idên­ticos? — ofereceu-lhe uma cadeira, e um sorriso largo rasgou-lhe o rosto, habitualmente austero.

— Sr. Rosnovski, é muito bom poder revê-lo. Se tivesse vindo pela manhã, eu não teria nenhuma notícia a lhe dar, mas exatamente há poucos minutos recebi o telefonema de uma pessoa interessada.

O coração de Abel bateu depressa, cheio de surpresa e ale­gria. Ele permaneceu em silêncio alguns segundos e depois falou:

— Pode me dizer de quem se trata?

- Receio que não. A pessoa em questão pediu-me que a mantivesse no anonimato, uma vez que o investimento seria de natureza privada e de certa forma incompatível com o ramo em que o interessado trabalha.

— David Maxton — murmurou Abel, a meia voz. — Que Deus o abençoe!

Curtis Fenton não respondeu e prosseguiu:

— Como disse, sr. Rosnovski, não tenho autorização para...

— Concordo, concordo — disse Abel. — Daqui a quanto tempo poderá me comunicar a decisão definitiva do cavalheiro?

— Não sei dizer no momento, mas na segunda-feira já terei obtido mais informações. Assim, se o senhor tiver a intenção de deixá-lo de lado...

— Deixá-lo de lado? — disse Abel. — O senhor está lidando com a minha vida inteira.

— Nesse caso, marquemos uma entrevista para a segunda-feira de manhã.

Enquanto Abel descia a Michigan Avenue, de volta ao Ste­vens, um chuvisqueiro começou a cair. E ele cantarolou, alegre. Tomou o elevador, que o levou ao quarto, e telefonou a William Kane, solicitando-lhe extensão de prazo até a segunda-feira, já que possivelmente havia encontrado um comprador. Kane de início resistiu, mas acabou por concordar.

– Bastardo — repetiu Abel diversas vezes, enquanto colo­cava o fone no gancho. — Só mais um tempinho, Kane. Vai viver para lamentar a morte de Davis Leroy.

Abel sentou-se na ponta da cama, tamborilando os dedos na borda da grade, sem saber como passaria o tempo até segunda-feira. Desceu despreocupadamente ao saguão. Lá estava ela de novo, a garçonete que o servira ao almoço, agora servindo o chá no Tropical Garden. Levado pela curiosidade, ele entrou no salão e sentou-se a um canto. Ela se aproximou.

— Boa tarde, senhor — disse. — Aceita tomar um chá?

O mesmo sorriso familiar mais uma vez.

– Nós nos conhecemos, não é mesmo? — perguntou Abel.

— É verdade, Wladek.

Abel encolheu-se ao ouvir seu antigo nome e enrubesceu imperceptivelmente, recordando que aquele cabelo claro e curto fora longo e macio, e os olhos velados, convidativos.

– Zaphia! Chegamos aos Estados Unidos no mesmo navio! Mas claro, você ia para Chicago. O que faz por aqui?

– Trabalho, como pode ver. Aceita um chá, senhor?

Abel entusiasmou-se com o sotaque polonês.

– Jante comigo esta noite — disse.

– Não posso, Wladek. Os funcionários estão proibidos de sair com fregueses. Se sairmos, seremos automaticamente despe­didos.

— Mas não sou um freguês — disse Abel. — Sou um velho amigo.

— E quem é que vinha me visitar em Chicago logo que acer­tasse a vida, hein? Pois você acertou sua vida e nem se lembrou de que eu estava aqui — disse Zaphia.

— Eu sei, eu sei. Peço-lhe desculpas. Zaphia, jante comigo esta noite. Só esta vez — insistiu.

— Só esta vez — repetiu ela.

— Espero-a no restaurante do Brundage, às sete em ponto. É uma hora boa para você?

Ao ouvir o nome do restaurante, Zaphia perturbou-se. Na certa era o mais caro de Chicago, e, se ela não se sentiria à von­tade trabalhando lá como garçonete, muito menos como freguesa.

— Não, vamos a um lugar mais simples, Wladek.

— Qual, então? — perguntou Abel.

— Conhece o Sausage, na esquina da 43rd Street?

— Não conheço — confessou ele —, mas posso encontrá-lo. Às sete horas.

— Às sete horas, Wladek. Vai ser fantástico. A propósito, não aceita um chá?

— Obrigado, vou dispensá-lo.

Ela sorriu e afastou-se. Durante alguns minutos, ele ficou ali sentado, vendo-a trabalhar. Estava muito mais bonita que naquela época. Passar o tempo até a segunda-feira afinal não ia ser tão aborrecido.

O Sausage trouxe-lhe de volta as piores recordações dos pri­meiros dias nos Estados Unidos. Abel sorveu uns goles de cerveja de gengibre enquanto esperava Zaphia, e toda vez que os garçons jogavam os pratos de comida descuidadamente sobre as mesas, fazia uma careta de reprovação profissional. Não seria capaz de dizer o que lhe parecia pior: o serviço ou a comida. Com quase vinte minutos de atraso, Zaphia apareceu à porta, elegante como uma chapeleira, num vestido plissado amarelo cuja barra parecia ter sido levantada recentemente alguns centímetros só para acom­panhar a ultima moda, mas ainda assim revelando os atrativos de um corpo que antes fora franzino. Seus olhos acinzentados per­correram as mesas à procura de Wladek. Ao sentir-se observada pelos homens, um rubor coloriu-lhe as bochechas.

— Boa noite. Wladek — cumprimentou-o em polonês.

Abel levantou-se e ofereceu-lhe a sua cadeira, próxima do fogo.

— Alegra-me que tenha vindo — respondeu ele em inglês.

Ela fez um ar de perplexidade momentâneo e, em seguida, disse em inglês:

— Desculpe-me o atraso.

— Oh, nem notei. Quer beber alguma coisa, Zaphia?

— Não, obrigada.

Permaneceram calados alguns segundos, e de repente reto­maram a fala ao mesmo tempo.

— Nem me lembrava de como você era bonita... — disse Abel.

— Como foi que você... — disse Zaphia.

Ela sorriu, tímida, e Abel sentiu-se tentado a tocá-la. Lem­brava-se de ter experimentado a mesma sensação da primeira vez que a vira, mais de oito anos antes.

— Como vai George? — ela perguntou.

— Há mais de dois anos que não nos vemos — Abel res­pondeu, com um súbito sentimento de culpa. — Trabalhei duro num hotel aqui em Chicago e depois...

— Fiquei sabendo — disse Zaphia. — Puseram fogo no hotel.

— Por que nunca apareceu para me dizer um alô?

— Pensei que não fosse se lembrar de mim, Wladek, e tinha razão.

— E como chegou a me reconhecer? — perguntou. — Ganhei alguns quilos.

— A pulseira de prata — ela disse singelamente.

Abel olhou para o pulso e riu.

— Devo muito à minha pulseira, e agora ela nos aproxima de novo.

Zaphia evitou o olhar dele.

— O que anda fazendo, sem o hotel para dirigir?

— Estou procurando emprego — respondeu, não querendo mencionar a oportunidade de gerenciar o Stevens só para não inti­midá-la.

— Vai abrir uma boa vaga no Stevens. Meu namorado me contou.

– Seu namorado contou? — perguntou ele, repetindo as palavras.

– Foi — respondeu. — Logo, logo, o hotel vai precisar de um novo subgerente. Por que não se candidata? Você tem boas chances de conseguir o emprego, Wladek. Sempre achei que aqui na América você ia fazer sucesso.

­- É, talvez me candidate. Bondade sua lembrar-se de mim. E por que seu namorado não se candidata?

– Ah, não, ele é muito inexperiente. É um simples garçom do restaurante.

De súbito, Wladek desejou trocar de função com ele.

— Vamos jantar? — perguntou.

— Não estou acostumada a comer fora — Zaphia respondeu.

Indecisa, passou os olhos pelo cardápio. Abel, percebendo que ela ainda lia mal em inglês, fez o pedido pelos dois.

Zaphia jantou com gosto e elogiou a comida insossa. Abel achou revigorante esse entusiasmo ingênuo, tão diferente da so­fisticação maçante de Melanie. Cada um contou ao outro a história de sua vida nos Estados Unidos. Zaphia trabalhava como domés­tica e chegara a garçonete no Stevens, onde estava havia seis anos. Abel foi relatando todas as suas experiências, até que, de repente, ela lançou um olhar ao relógio de pulso.

— Wladek, está na hora, já passa das onze, e o café é às seis da manhã.

Abel não se dera conta de que quatro horas já se haviam passado. Teria tido prazer em conversar com ela pelo resto da noite, lisonjeado pela afeição respeitosa que lhe fora francamente confessada.

— Zaphia, posso vê-la outra vez? — perguntou, enquanto, de braços dados, andavam rumo ao Stevens.

— Se você quiser, Wladek.

Pararam à entrada de serviço, nos fundos do hotel.

– Eu entro por aqui — ela disse. — Quando se tornar sub­gerente, Wladek, vão deixá-lo entrar pela porta da frente.

— Importa-se de me chamar de Abel?

– Abel? — disse ela, pronunciando o nome como se ex­perimentasse uma luva nova. — Mas você se chama Wladek.

– Eu me chamava Wladek, mas não me chamo mais. Meu nome é Abel Rosnovski.

– Abel é um nome engraçado, mas combina com você — disse. — Obrigado pelo jantar, Abel. Gostei de ver você de novo. Boa noite.

— Boa noite, Zaphia.

Abel viu-a desaparecer pela entrada de serviço, deu a volta no quarteirão com passos lentos e entrou no hotel pela porta da frente. Inesperadamente — mas não pela primeira vez —, sentiu-se muito só.

Passou a semana pensando em Zaphia e recordando as ima­gens associadas a ela — o cheiro fétido dos alojamentos da ter­ceira classe do navio, as filas desordenadas formadas pelos imi­grantes na Ellis Island e, sobretudo, o breve, mas arrebatado, encontro no bote salva-vidas. Fez todas as refeições no restaurante do hotel só para ficar perto dela e poder observar seu namorado. Chegou à conclusão de que devia ser o rapazola espinhento. Achou que ele devia ter espinhas, precisava que ele tivesse espinhas, e, oh, sim, ele tinha espinhas. E era, para sua tristeza, o rapaz mais bonito entre os garçons, com as espinhas e tudo.

Abel quis sair com Zaphia no sábado, mas ela trabalharia o dia inteiro. Contudo, conseguiu acompanhá-la à missa no domingo, quando ouviu, com uma mistura de nostalgia e exasperação, as orações inesquecíveis que o sacerdote polonês entoava. Desde os dias do castelo da Polônia, era a primeira vez que entrava numa igreja. Naquele tempo, ainda não tinha visto ou suportado as cruel­dades que, agora, o impediam de acreditar num deus benevolente. Sua recompensa por ter assistido à missa veio quando Zaphia, no caminho de volta ao hotel, deixou-o pegar sua mão.

— E então, pensou na vaga do Stevens? — indagou.

– A primeira coisa que vou saber amanhã cedo será a de­cisão final tomada por eles.

– Oh, Abel, isso me alegra muito! Tenho certeza de que você dará um ótimo subgerente.

— Obrigado — disse Abel, ciente de que estavam falando de coisas diferentes.

– Não quer tomar sopa com meus primos hoje à noite? – perguntou. — Passo todos os domingos na companhia deles.

— Sim, eu gostaria muito.

Os primos de Zaphia moravam bem ali perto do Sausage, no coração da cidade. Espantaram-se deveras vendo-a chegar acom­panhada de um amigo que dirigia um Buik novo. A família, como Zaphia os chamava, era formada de duas irmãs, Katya e Janina, e do marido de Katya, Janek. Abel ofereceu um rama­lhete de rosas às irmãs e, em seguida, sentou-se, respondendo, num polonês fluente, a todas as suas perguntas sobre as perspec­tivas do seu futuro. Zaphia mostrou-se embaraçada, mas Abel sabia que em todos os lares polaco-americanos o mesmo procedi­mento era adotado com cada novo namorado. Esforçou-se por não mencionar suas conquistas desde os primeiros dias no açougue, porque notou que Janek não desviava dele o seu olhar de inveja. Katya pôs na mesa um prato polonês simples de pierogi e bigos, que Abel teria comido com mais gosto quinze anos antes. Des­preocupou-se com Janek, que considerou um caso perdido, e con­centrou sua atenção nas irmãs, procurando ganhar-lhes a simpatia. Davam a impressão de simpatizar com ele. Talvez também simpa­tizassem com o espinhento. Não, isso não era justo. Ele nem po­lonês era — ou quem sabe até fosse —, Abel não sabia o nome dele e jamais ouvira sua voz.

Quando retornavam ao Stevens, Zaphia lhe perguntou, num lampejo do coquetismo de que ele se recordava, se era seguro um homem dirigir um automóvel e ao mesmo tempo segurar a mão de uma dama. Abel riu e repôs a mão no volante, onde a deixou durante o resto do percurso até o hotel.

— Vai ter tempo de me ver amanhã? — ele perguntou.

— Acho que sim, Abel. É possível que amanhã mesmo você já seja meu chefe. Em todo caso, boa sorte.

Abel sorriu enquanto a observava encaminhar-se à porta dos fundos, imaginando como ela reagiria ao tomar conhecimento das conseqüências da decisão da manhã seguinte. Só saiu dali quando ela desapareceu pela entrada de serviço.

­– Subgerente — falou, rindo bem alto enquanto se deitava, perguntando-se que notícia lhe daria Curtis Fenton pela manhã. Atirando o travesseiro no chão, tratou de afastar Zaphia do pensa­mento.

Acordou minutos antes das cinco horas. Telefonou à recepção solicitando a edição matutina do Tribune, o quarto ainda mer­gulhado na penumbra. Durante algum tempo, manteve-se interes­sado na pagina de economia. Às sete horas em ponto, quando o restaurante abriu, já se encontrava vestido e pronto para descer e tomar cate. Zaphia não trabalhava no salão principal nessa manhã, mas lá estava o namorado espinhento, o que lhe causou um pressentimento de mau agouro. Abel tomou o café e voltou ao quarto; não soube que Zaphia entrara em serviço cinco minutos antes. Diante do espelho, pela vigésima vez examinou a gravata e de novo consultou o relógio. Calculou que, andando devagar, chegaria ao banco quando as portas estivessem se abrindo. Com efeito, chegou cinco minutos antes da hora e deu uma volta pelo quarteirão, contemplando, distraído, as vitrines de jóias caras, de modelos de rádio novos e de ternos feitos a mão. Compraria algum dia roupas de tal qualidade? Retornou ao banco às nove horas e quatro minutos.

— O sr. Fenton no momento está ocupado. Prefere esperar ou voltar daqui a meia hora? — perguntou a secretária.

— Eu volto depois — respondeu, não querendo demonstrar muita ansiedade.

Foram os trinta minutos mais longos de que se recordava desde que chegara a Chicago. Observara com atenção todas as vitrines de La Salle Street, inclusive as de roupas femininas, que lhe fizeram pensar com alegria em Zaphia.

Tornou a entrar no Continental Trust, e a secretária lhe disse:

— O sr. Fenton o receberá agora.

Abel entrou na sala do gerente, sentindo que suas mãos trans­piravam.

— Bom dia, sr. Rosnovski. Sente-se, por favor.

Curtis Fenton tirou da gaveta uma pasta, em que Abel con­seguiu ler Confidencial.

— Bem — começou ele —, espero que minhas novas sejam do seu agrado. O interessado se dispõe a efetuar a compra dos hotéis em termos que eu classificaria de favoráveis.

— Graças a Deus! — exclamou Abel.

Fingindo não tê-lo ouvido, Curtis Fenton prosseguiu:

— De fato, em termos muito favoráveis. Ele se responsa­bilizará pela liquidação da dívida de dois milhões do sr. Leroy e ao mesmo tempo formará, juntamente com o senhor, uma nova empresa, na qual as ações se dividirão sessenta por cento para ele e quarenta por cento para o senhor. Seus quarenta por cento, por conseguinte, ficam avaliados em oitocentos mil dólares, que a nova empresa considerará um empréstimo, empréstimo sobre o qual re­cairão juros de quatro por cento, num prazo que não deverá exce­der dez anos, e o qual poderá ser pago com os lucros da companhia à mesma taxa. Quer dizer, se a companhia atingir num ano o lucro de cem mil dólares, quarenta mil serão destinados ao pagamento do empréstimo de oitocentos mil dólares, mais os juros de quatro por cento. Se o senhor conseguir saldar essa dívida em menos de dez anos, terá preferência na compra dos sessenta por cento res­tantes da companhia por três milhões de dólares. Essa condição dará ao meu cliente um excelente retorno do seu investimento e ao senhor a oportunidade de ser o único proprietário do Grupo Richmond. Além disso, o senhor receberá um salário anual de cinco mil dólares e a posição de presidente do grupo, o que lhe dará um controle completo e diário dos hotéis. 0 senhor se obri­gará a me consultar tão-somente em assuntos financeiros. Fui incumbido da tarefa de mediar as questões entre o senhor e o interessado e de representar os interesses dele na direção do novo Grupo Richmond. Senti-me honrado com a escolha. Meu cliente não pretende envolver-se pessoalmente. Como já disse, po­derá haver um conflito de interesses profissionais nesta transação, mas estou certo de que o senhor compreenderá perfeitamente esse aspecto. Ele também insiste em que o senhor nada faça no sentido de descobrir-lhe a identidade. Deu-lhe catorze dias para refletir sobre as condições, que não poderão ser reformuladas, uma vez que ele as considera, e nisso estou de pleno acordo, mais do que vantajosas.

Abel não conseguiu falar.

— Sr. Rosnovski, por favor, diga-me alguma coisa.

— Não preciso de catorze dias para tomar uma decisão — disse Abel, afinal. — Aceito as condições do seu cliente. Por favor, agradeça-lhe por mim e diga-lhe que sem dúvida nenhuma respeitarei seu desejo de permanecer no anonimato.

— Formidável — disse Curtis Fenton, permitindo-se um sorriso forçado. — Agora, restam alguns pequenos pontos. Os hotéis do grupo deverão abrir suas contas nas filiais do Continental Trust, e a conta principal continuará aqui, sob meu controle di­reto. Em troca dos meus serviços, receberei mil dólares anuais como diretor da nova empresa.

– Alegra-me que ganhe alguma coisa com a transação — falou Abel.

– Como? — disse o banqueiro.

— Será um prazer tê-lo como colega de trabalho, sr. Fenton.

– Seu sócio também depositou neste banco duzentos e cin­qüenta mil dólares destinados ao funcionamento dos hotéis durante os próximos meses. Considere-os um empréstimo a quatro por cento. Deve avisar-me caso julgue essa quantia insuficiente para suas necessidades. Ao meu ver, sua reputação só aumentaria junto ao meu cliente se julgasse a quantia suficiente.

— Procurarei não me esquecer disso — falou Abel em tom solene, tentando imitar a elocução do banqueiro.

Curtis Fenton abriu a gaveta da escrivaninha e dela tirou um enorme charuto cubano.

— O senhor fuma?

— Fumo — respondeu Abel, que nunca na vida fumara um charuto.

Tossindo a fumaça, Abel desceu toda a La Salle Street rumo ao Stevens. Sobranceiro, David Maxton estava parado no saguão do hotel quando Abel entrou. Com certo alívio, apagou o charuto que fumara quase inteiro e correu para ele.

— Sr. Rosnovski, parece-me um homem feliz esta manhã.

— Estou feliz, senhor, e sinto não poder trabalhar como gerente do seu hotel.

— Também o sinto, sr. Rosnovski, mas, falando francamen­te, a notícia não me surpreende.

— Agradeço-lhe por tudo — falou Abel, imprimindo à frase e ao olhar toda a emoção que pôde reunir.

Abel despediu-se de David Maxton e foi ao restaurante pro­curar Zaphia, que já havia largado o serviço. Tomou o elevador para o quarto, reacendeu o charuto, deu uma tragada cautelosa e telefonou para o Kane & Cabot. Uma secretária transferiu a liga­ção para William Kane.

— Sr. Kane, consegui levantar o dinheiro que me tornará proprietário do Grupo Richmond. Hoje mesmo o sr. Curtis Fenton, gerente do Continental Trust, entrará em contato com o senhor e lhe dará os detalhes. Portanto, não haverá necessidade de colocar os hotéis à venda.

Seguiu-se um breve silêncio. Abel imaginou o quanto essa notícia irritaria William Kane.

— Obrigado, sr. Rosnovski, por manter-me informado. Acho que nem preciso lhe dizer o quanto estou feliz por ter conseguido um financiador. Desejo-lhe um futuro de muitos sucessos.

— Sinto não poder desejar-lhe o mesmo, sr. Kane.

E desligou o telefone, deitando-se na cama e pensando no futuro.

— Um dia — prometeu, olhando para o teto —, hei de com­prar o seu maldito banco e fazê-lo saltar do décimo sétimo andar de um hotel.

Pegou de novo o telefone e pediu à telefonista que ligasse para a Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western. Queria falar com o sr. Henry Osborne.

 

William pôs o fone no gancho, mais aborrecido do que irri­tado com a expressão provocadora de Abel Rosnovski. Lamentava não ter conseguido convencer o banco a financiar o pequeno po­lonês, o qual, ele acreditava firmemente, reergueria o Grupo Richmond. Para concluir sua participação no caso, informou à co­missão financeira que Abel Rosnovski havia arranjado um finan­ciador e preparou os documentos legais para a posse dos hotéis, o que encerrou o caso do Grupo Richmond.

William exultou quando, poucos dias depois, Matthew che­gou a Boston para assumir o cargo de gerente do departamento de investimentos do banco. Charles Lester não fizera segredo do fato de que qualquer experiência que o filho adquirisse num esta­belecimento concorrente só seria benéfica para o longo estágio que o levaria a ocupar a presidência do Lester. A carga de trabalho que pesava sobre William foi imediatamente repartida, mas seu tempo encurtou-se ainda mais. Resistindo, num tom de brincadeira, ele deixava-se arrastar às quadras de tênis e às piscinas a cada momento de folga, mas disse um “não” decidido à sugestão de Matthew de esquiarem em Vermont. A imprevista atividade ao menos serviu para mitigar sua solidão e a ansiedade por estar ao lado de Kate.

Matthew não escondeu sua descrença.

Preciso conhecer a mulher que consegue fazer William Kane devanear numa reunião de diretoria em que se discute a pos­sibilidade de o banco comprar mais ouro.

- Vai entender quando a conhecer, Matthew. Aposto como concordará que ela é um investimento muito melhor que o ouro.

- Acredito em você. Eu é que não quero contar a Susan. Ela ainda o acha o único homem do mundo.

William riu. Susan nunca lhe passara pela cabeça.

 

A pequena pilha de cartas de Kate, que crescia toda semana, ficava guardada a chave na escrivaninha de William na Red House. William relia as cartas e, em pouco tempo, praticamente chegou a decorá-las. Afinal recebeu a que estivera esperando, conveniente­mente datada.

 

           Buckhurst Park, 14 de fevereiro de 1930

           Meu querido William,

Finalmente encaixotei, vendi a preços baixos, dei ou de algu­ma forma me desfiz de todas as coisas que haviam sobrado. Che­garei a Boston no dia 19. Que acontecerá se todo este maravilhoso encanto estourar como uma bolha no frio de inverno da costa Leste? Meu Deus, peço que isso não aconteça. Não fosse por você, não sei como teria conseguido suportar a solidão de todos estes meses.

                     Com amor, Kate

 

Na noite anterior à chegada de Kate, William resolveu não apressá-la a tomar nenhuma decisão que mais tarde ambos pudes­sem lamentar. Era-lhe impossível avaliar até onde tinham evoluído os sentimentos dela, uma vez que ela se achava num estado de espírito peculiar, causado pela morte do marido, como dissera a Matthew.

— Não seja patético! — disse Matthew. — Você está apai­xonado e deve encarar esse fato.

Ao avistar Kate na estação, William por pouco não abandonou imediatamente suas intenções de agir com prudência, tomado pela alegria de ver aquele sorriso encantador que lhe iluminava o rosto. Abriu caminho através da massa de viajantes e abraçou-a com tal força que ela mal pôde respirar.

— Seja bem-vinda, Kate.

Estava na iminência de beijá-la, quando ela se esquivou. Sen­tiu-se um tanto surpreso.

— William, quero apresentá-lo aos meus pais.

Nessa noite, William jantou com a família de Kate, e passou a vê-la todos os dias em que conseguia escapar dos problemas do banco ou da raquete de tênis de Matthew, mesmo que por apenas duas horas. Depois de tê-la conhecido, Matthew ofereceu a William todas as suas ações em ouro em troca de uma só Kate.

— Nunca vendo nada abaixo do preço — replicou William.

— Nesse caso, teimo em que me conte — pediu Matthew — onde se pode encontrar uma mulher tão valiosa como essa.

– No departamento de liquidação de dívidas, onde mais? — respondeu William.

– Pois então, William, tome posse dela depressinha, porque, se não o fizer, pode estar certo de que eu o farei.

Os prejuízos do Kane & Cabot, decorrentes da crise de 1929, foram de sete milhões de dólares, um valor mediano, considerando-se a grandeza do banco. Muitos dos bancos tão importantes quanto o Kane haviam tido prejuízos menores, e William se viu obrigado a proceder a um plano de contenção ininterrupto durante todo o ano de 1930, medida que o sujeitava a dificuldades permanentes.

Quando Franklin Delano Roosevelt foi eleito presidente dos Estados Unidos, sustentando um programa de auxílio, recupera­ção e reforma, William temeu que o New Deal pouco tivesse a oferecer ao Kane & Cabot. Os negócios iam se recuperando lenta­mente, obrigando-o a fazer com cautela quaisquer empreendimen­tos de expansão.

Nesse ínterim, Tony Simmons, que ainda dirigia a filial de Londres, ampliava o campo de suas atividades, e, durante os dois primeiros anos, alcançou lucros respeitáveis para o Kane & Cabot. Os resultados de seu trabalho impunham-se como supe­riores aos do de William, que mal se fizeram notar no decorrer do mesmo período.

Passados alguns meses do ano de 1932, Alan Lloyd chamou Tony Simmons de volta a Boston, solicitando-lhe que apresen­tasse ao conselho um relatório completo das atividades do banco em Londres. Tão logo reapareceu, Simmons anunciou sua inten­ção de assumir a presidência quando Alan Lloyd se aposentasse, dali a quinze meses. William viu-se tomado completamente de surpresa, pois excluíra tal possibilidade desde que Simmons desa­parecera em Londres sob uma nuvem de descrédito. Pareceu-lhe injusto que aquela nuvem se tivesse dissipado, não pela acuidade de Simmons, mas simplesmente pelo fato de que a economia inglesa apresentava aspectos mais positivos; estava menos inativa que a americana durante o mesmo período.

Tony Simmons retornou a Londres, onde cumpriu outro ano de êxitos. Na primeira reunião após seu regresso a Boston, dirigiu-se ao conselho envolto numa aura de glória, anunciando as cifras da filial de Londres referentes ao final do terceiro ano, que mostravam lucro superior a um milhão de dólares, um novo re­corde. William comunicou um lucro consideravelmente menor concernente ao mesmo período. O regresso repentino de Tony Simmons, totalmente merecedor de estima, confrontou William com um novo problema. Teria poucos meses para convencer o conselho a apoiá-lo antes que o impulso de seu adversário se tor­nasse irrefreável.

Kate ouvia com atenção os problemas de William durante horas, fazendo comentários compreensivos, oferecendo-lhe respos­tas em que se manifestava solidária, ou repreendendo-o por deixar-se impressionar demais. Matthew, atuando como os olhos e os ouvidos de William, dissera-lhe que, pelo que pudera apurar, a votação seria dividida entre os que o consideravam demasiado jovem para ocupar um posto de tal responsabilidade e os que ainda julgavam Tony Simmons culpado pelos prejuízos de 1929. Ao que parecia, a maior parte dos membros não executivos do conselho, que não trabalhavam diretamente com William, influen­ciavam-se mais pela diferença de idade dos dois rivais do que por qualquer um dos outros fatores. Em mais de uma oportunidade, Matthew ouviu: “A vez de William há de chegar”. Certa feita, a título de curiosidade, Matthew encarnou o espírito de Satã:

— Só com as suas participações no banco, William, você conseguiria afastar toda a diretoria, substituir os membros por homens da sua escolha e eleger-se presidente.

William não ignorava que tal medida o colocaria no topo, mas desprezava táticas dessa natureza e não poderia levá-las a sério; desejava tornar-se presidente unicamente por seus próprios mé­ritos. Afinal, era assim que seu pai alcançara o posto, e era isso o que Kate esperava dele.

Em 2 de janeiro de 1934, Alan Lloyd fez circular entre todos os membros do conselho a convocação para uma reunião no dia do seu sexagésimo quinto aniversário e cujo único propósito seria a eleição de seu sucessor. O dia da votação crucial foi se aproxi­mando, e Matthew encarregava-se praticamente sozinho do depar­tamento de investimentos; Kate, por sua vez, cuidava das refei­ções dos dois amigos, que trabalhavam incansavelmente no último estágio da campanha. Matthew nunca se queixou da sobrecarga de trabalho imposta por William, que durante horas a fio ia pla­nejando suas jogadas com o fito de conquistar o posto. Ciente de que Matthew nada obteria com o seu sucesso, uma vez que um dia assumiria a posição máxima do banco do pai em Nova Iorque — um negócio bem mais grandioso do que o Kane & Cabot —, William confiava em poder oferecer a Matthew no futuro o mes­mo apoio abnegado que ele agora lhe oferecia.

E esse tempo viria mais cedo do que ele imaginava.

 

No dia em que Alan Lloyd completava seus sessenta e cinco anos estavam presentes ao banco os dezessete membros do con­selho. A reunião foi aberta por Alan, como presidente; fez um discurso de despedida de apenas catorze minutos, mas que William pensou não ter fim. Tony Simmons batia nervosamente a caneta no caderno de anotações amarelo que tinha diante de si e de vez em quando erguia os olhos para William. Nenhum dos dois ouvia com atenção o discurso de Alan. Por fim, Alan sentou-se sob aplausos sonoros, de uma sonoridade apropriada a dezesseis ban­queiros de Boston. Quando a salva de palmas foi enfraquecendo, Alan Lloyd levantou-se pela última vez como presidente do Kane & Cabot.

— E agora, senhores, devemos eleger meu sucessor. O con­selho tem dois candidatos ilustres, o diretor da nossa divisão estrangeira, o sr. Anthony Simmons, e o diretor do departamento de investimentos, o sr. William Kane. Ambos são sobejamente conhecidos dos senhores, e não tenho a menor intenção de lhes falar exaustivamente a respeito de seus méritos. Em vez disso, peço a cada candidato que se pronuncie diante do conselho com rela­ção à maneira com que encara o futuro do Kane & Cabot, caso seja eleito presidente.

William foi o primeiro a se erguer, como haviam combinado os concorrentes na noite anterior, depois de um cara ou coroa, e falou ao conselho durante vinte minutos, explicando em deta­lhes que sua meta seria avançar por novos campos a que, até então, o banco não se havia aventurado. Em particular, queria ampliar as bases do banco e afastá-lo de uma Nova Inglaterra em crise, transferindo-o para perto do centro bancário, que, acredi­tava, naquele momento era Nova Iorque. Mencionou até mesmo a possibilidade de criar uma companhia holding que poderia vir a se especializar em operações bancárias comerciais. A essa enunciação, certos membros mais velhos do conselho balançaram a cabeça, descrentes. Queria que o banco tivesse em vista a expansão, que desafiasse a nova geração de financistas que agora liderava a América, e queria ver o Kane & Cabot entrar na segunda metade do século XX como uma das maiores instituições financeiras dos Estados Unidos. Quando se sentou, sentiu-se satisfeito ao ouvir os murmúrios de aprovação. Seu discurso, como um todo, havia sido bem recebido pelo conselho.

Tony Simmons começou a falar, seguindo uma linha bem mais conservadora: o banco deveria consolidar sua posição nos próximos anos, avançando com muita cautela por áreas cuidadosamente es­colhidas e fixando-se nos moldes tradicionais das operações ban­cárias, graças às quais o Kane & Cabot gozava da atual reputação. Aprendera a lição da prudência durante o crack, e sua maior preo­cupação, acrescentou — provocando risos —, era certificar-se de que o Kane & Cabot entrasse na segunda metade do século XX pura e simplesmente. Tony falou de modo circunspecto e com uma segurança que William, por ser jovem demais, não demonstrara. Tony voltou a sentar-se, e William não pôde avaliar exatamente qual a preferência do conselho, embora ainda acreditasse que a maioria se inclinava a optar pela expansão e não pela imobilidade.

Alan Lloyd informou aos demais diretores que nem ele nem os dois candidatos participariam da votação. Os catorze eleitores receberam as cédulas e preencheram-nas, devolvendo-as a Alan, que, atuando como escrutinador, deu início à lenta contagem. Wil­liam não teve forças para tirar os olhos de seu bloco de anotações, rabiscado e marcado com as impressões de sua mão suada. Alan concluiu a tarefa, e o silêncio encheu a sala. Ele anunciou seis votos a favor de William, seis a favor de Simmons, e duas absten­ções. Conversas sussurradas entre membros da diretoria quebraram o silêncio, e Alan pediu ordem. William respirou fundo, de ma­neira audível, ferindo o silêncio que novamente se estabelecera. Alan Lloyd fez uma pausa e então disse:

— Creio que a medida apropriada numa circunstância como esta é procedermos a uma segunda votação. Se um dos dois mem­bros que se abstiveram na primeira votação sentir-se mais propenso a apoiar um dos candidatos nesta segunda oportunidade, um deles será considerado eleito por maioria.

As pequenas cédulas foram redistribuídas. Desta vez William nem sequer teve forças de acompanhar o processo. Enquanto os membros registravam as suas escolhas, ele ouvia o ruído das penas de aço arranhando os papéis. Uma vez mais as cédulas chegaram às mãos de Alan Lloyd. Novamente ele se abriu devagar, uma a uma, mas desta vez pronunciando em voz alta os nomes que ia lendo.

— William Kane.

Anthony Simmons, Anthony Simmons, Anthony Simmons.

Três votos contra um para Tony Simmons.

William Kane, William Kane.

Anthony Simmons

William Kane, William Kane, William Kane.

Seis contra quatro para William.

Anthony Simmons, Anthony Simmons.

William Kane.

Sete votos contra seis em favor de William.

William sentiu, a respiração presa, que Alan Lloyd demo­rava toda uma existência ao ir abrindo a última cédula.

– Anthony Simmons — declarou. — O total de votos é sete, senhores.

William sabia que, nesse instante, Alan Lloyd via-se obriga­do a dar o voto decisivo, e, embora jamais tivesse revelado a ninguém a quem apoiaria, William sempre imaginara que, se a votação chegasse a um impasse, Alan o apoiaria em detrimento de Tony Simmons.

— Como a votação duas vezes resultou num empate, e como acredito que nenhum membro do conselho mudará seu ponto de vista, devo lançar meu voto para o candidato que, ao meu ver, me sucederá na presidência do Kane & Cabot. Estou certo de que nenhum dos senhores inveja minha posição, mas não vejo outra alternativa senão sustentar meu próprio julgamento e apoiar o homem que sinto preparado para a presidência. E este homem, senhores, é Tony Simmons.

William mal pôde acreditar no que ouviu. O próprio Tony Simmons dava a impressão de ter levado um choque. Ele se ergueu da cadeira em frente a William sob uma salva de palmas e, tro­cando de lugar com Alan Lloyd, sentou-se à ponta da mesa, falan­do ao Kane & Cabot pela primeira vez como presidente. Agradeceu ao conselho o apoio que lhe fora dispensado e louvou William por jamais ter lançado mão do privilégio de sua posição financeira e familiar com o intuito de influenciar a votação. Convidou-o para ser o vice-presidente e propôs que Matthew Lester assumisse a diretoria, em substituição a Alan Lloyd. Ambas as propostas fo­ram aceitas por unanimidade.

William permaneceu sentado, contemplando o retrato do pai, perfeitamente consciente de que falhara.

 

Abel apagou pela segunda vez o Corona e prometeu a si mesmo não acender outro charuto enquanto não obtivesse os dois milhões de dólares de que precisava para o controle absoluto do Grupo Richmond. Não, estes não eram tempos favoráveis a cha­rutos grandes, pois o índice Dow-Jones baixara ao ponto mais ínfimo da história, e a população, na esperança de obter um prato de sopa, formava longas filas nas principais cidades dos Estados Unidos. Abel fitou o teto e propôs-se a analisar as prioridades. Antes de qualquer coisa, precisava salvar o melhor quadro de fun­cionários do Richmond de Chicago.

Saltou da cama, vestiu a jaqueta e rumou para o anexo do hotel, onde ainda moravam muitos dos que, após o incêndio, não haviam conseguido colocação. Tornou a empregar os homens em que depositava maior confiança, e aos que pretendiam deixar Chicago ofereceu trabalho num dos dez hotéis restantes. Deixou clara sua posição: numa época em que o desemprego atingira um índice recorde, seus empregos só seriam garantidos caso os hotéis começassem a dar lucros. Acreditava que os demais hotéis do grupo vinham sendo dirigidos da mesma maneira corrupta com que o fora o antigo Richmond de Chicago; desejava mudar essa situação — e rapidamente. Seus três subgerentes foram distribuí­dos em três hotéis, o Richmond de Dallas, o de Cincinnati e o de St. Louis. Nomeou novos subgerentes destinados aos sete hotéis restantes, Houston, Mobile, Charleston, Atlanta, Memphis, Nova Orleans e Louisville. Os hotéis do velho Leroy situavam-se todos no Sul e Centro-Oeste, incluindo o Richmond de Chicago, o único construído pelo próprio Davis Leroy. Durante três semanas Abel ocupou-se em colocar os velhos funcionários de Chicago em seus novos postos.

Abel resolveu estabelecer seu escritório central no anexo do Richmond de Chicago e abrir um pequeno restaurante no térreo. Pareceu-lhe mais sensato ficar próximo de seu financiador e ban­queiro e instalar-se num dos hotéis do Sul. Ademais, Zaphia esta­va em Chicago, e Abel sentia, com certa segurança, que em curto espaço de tempo ela desmancharia o namoro com o jovem espi­nhento e se apaixonaria por ele. Zaphia era a única mulher que conhecera capaz de despertar-lhe o sentimento de confiança em si mesmo. Quando se preparou para ir a Nova Iorque com o propó­sito de recrutar pessoal especializado, conseguiu obter dela a promessa de que jamais tornaria a se encontrar com o namorado espinhento.

– Que ele se encha de espinhas — Abel falou em voz alta – mas que não seja mais o namorado dela.

Na noite anterior à sua partida, dormiram juntos pela pri­meira vez. Ela era terna, rechonchuda, risonha e deliciosa.

O carinho e a habilidade de Abel deixaram Zaphia surpresa.

– Quantas garotas você teve depois do Black Arrow? — brincou.

— Nenhuma de quem eu realmente gostasse.

— Mas o bastante para fazer você me esquecer — ela acrescentou.

— Nunca a esqueci — disse mentindo, convencido de que o único modo de parar a conversa era continuar beijando-a.

Ao chegar a Nova Iorque sua primeira decisão foi procurar George, que encontrou desempregado e morando num sotão da East 3rd Street. Abel esquecera-se do inferno que eram aqueles casarões quando divididos por vinte famílias. O mau cheiro de alimento deteriorado emanava de cada cômodo, onde aparelhos sanitários não funcionavam e leitos eram compartilhados por três pessoas durante as vinte e quatro horas. A padaria havia sido fe­chada, e o tio de George precisara empregar-se numa grande usina situada nos arredores de Nova Iorque. George, que não conseguira colocação na usina, deu pulos de alegria quando Abel lhe ofereceu uma vaga no Grupo Richmond — em qualquer fun­ção.

Abel recrutou três novos empregados: um especialista em massas, um chefe de contabilidade e um chefe de garçons. Em se­guida, ele e George regressaram a Chicago com o plano de organi­zar o anexo do Richmond. Abel sentia-se satisfeito com os resulta­dos da viagem. A maioria dos hotéis da costa Leste havia reduzido ao mínimo o número de funcionários, o que lhe dera a oportunidade de escolher gente experimentada, um, inclusive, do próprio Plaza.

No início do mês de março, Abel e George partiram numa excursão aos demais hotéis do grupo. Abel insistiu com Zaphia para que os acompanhasse, oferecendo-lhe até mesmo a oportunidade de trabalhar num hotel de sua escolha, mas ela não arredaria pé de Chicago, a única cidade que lhe era familiar. Numa concessão tácita, enquanto Abel estivesse fora da cidade, ela moraria no cômodo dele no anexo do Richmond. George, que, junto com sua cidadania americana e formação católica, havia adquirido a mo­ral da classe média, ressaltando a Abel as vantagens do casamento. Abel, solitário, hóspede de uma sucessão interminável de quartos de hotel impessoais, mostrou-se um ouvinte interessado.

Não foi surpresa para Abel encontrar os demais hotéis em situação precária, em alguns casos dirigidos com desonestidade. Mas, ante o desemprego em escala nacional, grande parte do pes­soal se sentira encorajada a recebê-lo como o salvador dos destinos do grupo. Não lhe pareceu necessário despedir os funcionários da maneira devastadora que utilizara em Chicago. Já não estavam lá muitos dos que conheciam sua reputação e temiam seus métodos. Algumas cabeças tiveram de rolar, e, inevitavelmente, estavam presas aos pescoços dos mais antigos funcionários do Grupo Rich­mond, não inclinados a mudar seus procedimentos nada ortodoxos simplesmente por causa da morte de Davis Leroy. Em muitos casos, Abel percebeu que a transferência de pessoal de um hotel a outro gerava uma nova atitude. Ao final do seu primeiro ano como presidente, o Grupo Richmond funcionava apenas com a metade do quadro utilizado no passado e apresentava um prejuízo de apenas pouco mais que cem mil dólares. A renovação do pes­soal antigo se fazia mais lenta; a confiança que Abel depositava no futuro do grupo era contagiante.

Abel impôs a si mesmo a tarefa de recuperar-se até o ano de 1932. Pressentia que a única maneira de alcançar uma melhora tão rápida em termos econômicos seria permitir que cada gerente do grupo se sentisse responsável pelo próprio hotel sob seu con­trole, com o estímulo de uma participação nos lucros, bem à ma­neira com que Davis Leroy o fisgara para o Richmond de Chicago.

Abel transferiu-se de hotel para hotel, não permanecendo no mesmo lugar por mais de três semanas. A não ser George, o fiel, o substituto de seus olhos e ouvidos em Chicago, ninguém sabia que hotel receberia sua próxima visita. Durante meses, Abel só quebrou a exaustiva rotina para visitar Zaphia ou Curtis Fenton.

Após uma avaliação completa da situação financeira do grupo, Abel viu-se obrigado a tomar mais algumas medidas desagradá­veis. A mais drástica foi fechar temporariamente dois hotéis, o de Mobile e o de Charleston, que vinham perdendo tanto dinheiro que poderiam tornar-se o sorvedouro do resto das finanças. O quadro de pessoal dos demais hotéis soube da medida e tratou de trabalhar com maior empenho. Toda vez que retornava ao pe­queno escritório do anexo do Richmond de Chicago, Abel encon­trava uma pilha de memorandos cheios de problemas que reque­riam imediata atenção — canos estourados em banheiros, baratas, nas cozinhas, explosões de ânimo nos restaurantes e o inevitável freguês insatisfeito que ameaçava abrir um processo contra o grupo.

Henry Osborne fez sua reentrada na vida de Abel com uma oferta bem recebida: a Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western reconhecia não ter havido envolvimento de Abel no sinistro, e iria indenizá-lo em setecentos e cinqüenta mil dóla­res. As provas apresentadas pelo tenente 0’Malley foram satis­fatórias. Abel compreendeu que lhe devia bem mais do que um milk shake. Satisfeito, pretendia fixar a negociação nesse valor, que considerava justo, mas Osborne sugeriu-lhe que requeresse uma soma maior, de cuja diferença ele extrairia uma porcentagem. Depois dessa proposta, Abel, cujos defeitos jamais incluíram o peculato, passou a precaver-se contra ele: se Osborne se dispunha tão prontamente a ser desleal com sua própria companhia, sem dúvida não teria escrúpulos em lesá-lo quando lhe conviesse.

Na primavera de 1932, Abel ficou um tanto surpreso ao re­ceber uma carta de Melanie Leroy, que se mostrava mais amável no modo de expressar do que o fora pessoalmente. Sentindo-se lisonjeado, e até mesmo excitado, Abel telefonou-lhe, convidando-a para jantar no Stevens, uma decisão que ele lamentou ter tomado, logo que puseram os pés no restaurante, pois lá estava Zaphia, na sua simplicidade, cansada e vulnerável. Melanie, ao contrário, tinha um aspecto arrebatador com seu vestido longo verde-menta, a re­velar nitidamente como era seu corpo se o verde-menta não o cobrisse. Seus olhos, provavelmente extraindo audácia do vestido, pareciam ainda mais verdes e mais cativantes do que nunca.

– Alegra-me vê-lo tão bem, Abel — observou ela, sentando-se a uma mesa no centro do salão —, e, naturalmente, todos comentam as mudanças que vem fazendo no Grupo Richmond.

– No Grupo Baron — corrigiu-a.

Melanie corou levemente.

- Oh, não sabia que tinha mudado o nome do grupo.

– Pois é, mudei-o no ano passado — mentiu. Com efeito, acabara de resolver que todos os hotéis do grupo a partir desse instante seriam conhecidos como Baron Hotel. Por que nunca pensara nisso antes?

— Um nome apropriado — comentou Melanie, sorrindo.

Abel percebeu que Zaphia olhava fixamente para eles, do outro lado do salão, mas, a essa altura, ele não podia fazer nada.

— Não está trabalhando? — perguntou Abel, escrevendo as palavras “Grupo Baron” nas costas do cardápio.

— Não. Pelo menos no momento. Mas as coisas melhoraram um pouco. Uma mulher formada em Ciências Humanas nesta ci­dade não tem o que fazer senão esperar que todos os homens se empreguem, e só então, com o que resta de esperança, tentar achar uma vaga.

— Se quiser trabalhar no Grupo Baron — disse Abel, enfa­tizando um pouco o nome —, basta avisar-me.

— Oh, não, não — respondeu Melanie. — Não estou em apuros.

Sem demora, ele tratou de mudar de assunto, falando de mú­sica e teatro. Conversar com ela constituía um desafio desusado e agradável; ela o provocava, porém, com inteligência. Fazia-o sen­tir-se mais seguro em sua companhia do que no passado. O jantar estendeu-se até as onze horas, e quando todos deixaram o restau­rante, inclusive Zaphia, com os olhos evidentemente avermelhados, Abel levou Melanie de carro para casa. Dessa vez ela o convidou para entrar e tomar um drinque. Ele sentou-se numa extremidade do sofá, enquanto ela lhe servia um uísque e punha um disco na vitrola.

— Não posso me demorar — falou Abel. — Amanhã vou ter um dia cheio.

— Eu é que deveria dizer isso, Abel. Não precisa sair cor­rendo. A noite foi muito agradável, exatamente como nos velhos tempos.

Ela sentou-se ao lado dele, e o vestido subiu-lhe pelas pernas, deixando os joelhos à mostra. Não exatamente como nos velhos tempos, pensou ele. Que pernas extraordinárias! Ele nem sequer tentou resistir quando ela apertou seu corpo contra o dele. Logo ele percebeu que a estava beijando — ou ela é que o estava bei­jando? Suas mãos deslizaram livremente por aquelas pernas e, em seguida, procuraram-lhe os seios. Dessa vez ela não o repeliu. E foi ela que, de repente, pegou-o pelas mãos e levou-o ao quarto de dormir, onde dobrou a colcha com movimentos metódicos e, voltando-lhe as costas, pediu-lhe que puxasse o zíper do vestido. Nervoso e incrédulo, Abel obedeceu-lhe, e antes de despir-se, apa­gou a luz. Depois desses preparativos, não lhe foi difícil colocar em prática os ensinamentos esmerados de Joyce. Por certo a própria Melanie demonstrava ter alguma experiência; nunca na vida Abel desfrutara tanto de um ato de amor, e ele pode entregar-se, feliz, a um sono profundo.

Pela manhã, Melanie preparou-lhe o café e satisfez-lhe todos os pedidos, até que chegou o momento da partida.

– Acompanharei o Grupo Baron com um interesse renovado – disse ela. – Mas sei que ninguém duvida de que será um tre­mendo sucesso.

– Obrigado — disse Abel —, pelo café e pela noite ines­quecível.

– Eu estou pensando... acho que a gente poderia se ver de novo um dia desses — ajuntou Melanie.

— Eu gostaria muito — respondeu Abel.

Ela o beijou no rosto como uma esposa que se despede do marido que parte para o trabalho.

— Com que tipo de mulher pensa em se casar? — pergun­tou ela com ingenuidade, enquanto o ajudava a vestir o sobretudo.

Ele a fitou e sorriu com doçura.

— Quando eu tiver de tomar uma decisão dessas, Melanie, pode estar certa de que só serei influenciado pelos seus pontos de vista.

— Como assim? — indagou Melanie, melindrada.

— Simplesmente pedirei seus conselhos — respondeu Abel, dirigindo-se para a porta. — E, por favor, veja se arranja uma ótima moça polonesa que me queira por esposo.

 

Abel e Zaphia casaram-se um mês depois. O primo de Zaphia, Janek, conduziu-a ao altar, e George foi padrinho do noivo. A recepção teve lugar no Stevens, e os comes e bebes foram até a manhã seguinte. Seguindo a tradição, cada homem que dançava com Zaphia pagava-lhe uma quantia simbólica, e George, trans­pirando, girava pelo salão tentando fotografar os convidados em muitos instantâneos e poses. Depois da ceia da meia-noite, com­posta de barszcz, pierogi e bigos e regada a vinho branco, conha­que e vodca de Dantzig, Abel e Zaphia puderam retirar-se para a suíte dos noivos.

Na manhã seguinte, Abel ouviu com agradável surpresa Curtis Fenton comunicar-lhe que a conta pela recepção no Ste­vens fora coberta pelo sr. Maxton, e que esse gesto deveria ser considerado um presente de casamento. O dinheiro economizado para a recepção serviu de entrada na compra de uma casinha na Rigg Street.

Pela primeira vez na vida, Abel possuía uma casa própria.

 

                                                                   1932-1941

 

Em fevereiro de 1934, William resolveu passar um mês de férias na Inglaterra, antes de tomar uma resolução definitiva so­bre o seu futuro; chegara mesmo a pensar em demitir-se do con­selho mas foi convencido por Matthew de que seu pai, nas mes­mas circunstâncias, não faria isso. Matthew parecia bem mais abalado com a derrota do amigo do que o próprio William. Na semana seguinte à eleição, por duas vezes fora trabalhar com sinais evidentes de ressaca e deixara pela metade uma importante tarefa. William concluiu que o melhor seria não fazer nenhum comentário sobre o incidente e convidou-o para jantar na compa­nhia dele e de Kate. Alegando excesso de trabalho, Matthew de­clinou do convite. William não teria ligado para a recusa se, nessa mesma noite, não o tivesse visto no Ritz Carlton jantando com uma mulher deveras encantadora, que, William podia jurar, era casada com um dos chefes de departamento do Kane & Cabot. Kate apenas comentou que Matthew não lhe parecia bem.

William, ocupado com a iminente viagem à Europa, prestou menos atenção ao estranho comportamento do amigo do que o faria normalmente. Na última hora, sentindo que não conseguiria passar sozinho um mês na Europa, pediu a Kate que o acompa­nhasse. Para sua surpresa e alegria, ela aceitou o convite.

William e Kate embarcaram rumo à Inglaterra no Mauritânia, ocupando cabines separadas. Logo depois de se terem acomodado no Ritz, em apartamentos separados, e não no mesmo andar, William apresentou-se à filial de Londres do Kane & Cabot, na Lombard Street, e cumpriu o aparente propósito da viagem re­examinando as atividades européias do banco. A disposição dos funcionários era grande, e Tony Simmons, sem dúvida alguma, fora um gerente estimado; William apenas resmungou sua apro­vação.

Ele e Kate passaram juntos duas semanas magníficas em Londres, Hampshire e Lincolnshire, visitando certos terrenos que William comprara havia alguns meses, ao todo mais de doze mil acres. O retorno financeiro de terras para a lavoura nunca era alto, explicou William a Kate, mas “a terra sempre estará aqui, se as coisas voltarem a se agravar nos Estados Unidos”.

Poucos dias antes da data marcada para o regresso aos Estados Unidos, Kate quis conhecer Oxford, e William concordou em levá-la até lá de carro logo cedo na manhã seguinte. Alugaram um Morris novo, um carro que ele nunca tinha dirigido. Na cidade universitária, passaram o dia visitando as faculdades: Magdalen, que se erguia, soberba, junto ao rio; Christchurch, portentosa, mas sem claustro; e Merton, onde eles simplesmente sentaram sobre a relva e sonharam.

— Não é permitido sentar na grama, senhor — soou a voz de um zelador.

Riram, e de mãos dadas, como dois colegiais, caminharam ao longo do Cherwell, observando oito Matthews extenuarem-se para fazer um barco de competição deslizar o mais depressa possível. William já não podia imaginar uma vida sem Kate em nenhuma parte do mundo.

No meio da tarde, tomaram o caminho de volta a Londres, e, quando alcançaram Henley-on-Thames, pararam para tomar chá no Bell Inn, que dava frente para o rio. Depois das broas e de um grande bule de chá inglês forte (Kate, temerária, misturou-o apenas com leite, mas William adicionou água quente para en­fraquecê-lo), Kate sugeriu que voltassem antes de escurecer, para que pudessem apreciar a vista do campo. Mas quando William recolocou a manivela no Morris, a despeito de seus esforços, não conseguiu fazer o motor funcionar. Por fim, ele se deu por ven­cido e, visto que a noite se aproximava, concluiu que a passariam em Henley. Retornou ao balcão de recepção do Bell Inn e pediu dois quartos.

— Sinto muito, senhor, mas disponho apenas de um quarto para duas pessoas — informou o recepcionista.

William refletiu por um momento, um tanto indeciso, e então disse:

— Ficaremos com ele.

Kate revelava uma fisionomia cheia de surpresa, mas não disse nada; o recepcionista olhou-a com desconfiança.

— Sr. e sra... ?

— Sr. e sra. William Kane — completou William com fir­meza. — Voltaremos mais tarde.

— Devo colocar sua bagagem no quarto, senhor? — pergun­tou o empregado.

— Não temos bagagem — respondeu William, sorrindo.

— Pois não, senhor.

Kate acompanhou William pela Henley High Street acima, até que ele se deteve em frente a uma igreja.

– William, posso perguntar o que estamos fazendo? — indagou.

– Uma coisa que devia ter feito há muito tempo.

Kate absteve-se de outras perguntas.

Entraram na sacristia, ali estava o sacristão, ocupado em empilhar alguns hinários.

– Onde posso encontrar o vigário? — perguntou William.

O sacristão empertigou-se e olhou-o, compadecido.

– No vicariato, eu diria.

– Onde fica o vicariato? — tornou William.

– Vocês são americanos, não são, senhor?

— Somos — falou William, já impaciente.

– O vicariato é a próxima residência em direção à igreja, não é? — falou o sacristão.

— Imagino que sim — disse William. — O senhor pode ficar aqui uns dez minutos?

– E por que eu deveria ficar, senhor?

William enfiou a mão no bolso interno do paletó, de onde tirou uma nota nova de cinco libras.

— Isto é para garantir que o senhor permanecerá aqui du­rante quinze minutos, por favor.

O sacristão estudou com cuidado a nota de cinco libras e disse:

— Americanos. Oh, sim, senhor.

William deixou o homem com a nota nas mãos e correu com Kate para fora da igreja. Ao passarem pelo quadro de avisos da varanda, ele leu: O vigário dessa paróquia é o reverendo Simon Tukesbury, M. A. (Cambridge); junto dessa declaração, pendu­rado num prego, havia um apelo relativo à colocação de um novo telhado na igreja. Cada penny destinado a somar as quinhentas libras necessárias será de boa ajuda, dizia o cartaz, em letras tre­midas. William saiu apressado rumo ao vicariato, sempre segui­do de Kate, que caminhava poucos metros atrás dele. Uma se­nhora gorda, de bochechas rosadas e sorridente, abriu-lhes a por­ta, atendendo às suas batidas destemidas.

– Sra. Tukesbury? — inquiriu William.

– Eu mesma — sorriu.

– Posso falar com seu esposo?  

– Ele está tomando chá no momento. O senhor não gosta­ria de voltar um pouco mais tarde?

— Receio que seja urgentíssimo — insistiu.

Kate já o havia alcançado, mas permaneceu calada.

— Bom, nesse caso creio que o senhor deve entrar.

A residência datava do início do século XVI, e a saleta de paredes de pedra conservava-se aquecida pelo fogo de uma larei­ra. O vigário, alto e magro, sentado à mesa comendo sanduíches de pepino cortado em rodelas muito finas, ergueu-se para rece­bê-los.

— Boa tarde, senhor... ?

— Kane, senhor, William Kane.

— Em que posso ajudá-lo, sr. Kane?

— Kate e eu — disse William — queremos nos casar.

— Oh, isso é maravilhoso! — exclamou a sra. Tukesbury.

— Sem dúvida — observou o vigário. — O senhor é nosso paroquiano? Confesso que não me lembro de...

— Não, senhor, sou americano. Assisto aos cultos na Cate­dral de St. Paul, em Boston.

— Massachusetts, presumo, não Lincolnshire — observou o reverendo Tukesbury.

— Exato — disse William, esquecido, por um segundo, de que havia uma Boston na Inglaterra.

— Esplêndido — disse o vigário, erguendo as mãos como se os fosse abençoar. — E em que data pretendem unir suas almas?

— Agora, senhor.

— Agora, senhor? — indagou, surpreso, o vigário. — Sr. Kane, desconheço as tradições que cercam a solene, santa e uni­ficadora instituição do matrimônio nos Estados Unidos, embora às vezes a gente leia sobre incidentes estranhos envolvendo alguns de seus compatriotas da Califórnia. Quanto a mim, porém, creio não ser mais que meu dever informá-lo de que aqueles costumes ainda não foram aceitos em Henley-on-Thames. Na Inglaterra, em qualquer paróquia, o senhor deve aguardar um mês completo antes de casar-se, e os proclamas são lidos em três ocasiões dife­rentes, a menos que haja circunstâncias muito especiais e atenuan­tes. Mesmo em tais circunstâncias, eu seria obrigado a consultar o bispo, o que não faria em menos de três dias — acrescentou o sr. Tukesbury, os braços rigidamente colados no corpo.

Kate falou pela primeira vez:

— Quanto lhe falta para colocar o novo telhado da igreja?

– Ah o telhado. É uma história muito triste, mas não pre­tendo contá-la agora. Sabe, desde o início do século XI.

– De quanto precisa? — perguntou William, apertando a mão de Kate.

– Esperamos levantar quinhentas libras. Ate agora obtivemos uma quantia satisfatória: vinte e sete libras, quatro xelins e quatro pence, em apenas sete semanas.

– Não, não, querido — interveio a sra. Tukesbury. — Es­queceu-se de contar uma libra, onze xelins e dois pence que con­seguimos com o bazar da semana passada.

– De fato, esqueci-me disso, querida. Que descuidado fui eu em não considerar a sua contribuição pessoal! Com isso, temos um total de... — começou o reverendo Tukesbury, fazendo cálculos de cabeça e erguendo os olhos para o alto em busca de inspiração.

William retirou a carteira do bolso interno, fez um cheque de quinhentas libras e, em silêncio, ofertou-o ao reverendo Tukesbury.

— Eu... bem, eu compreendo que as circunstâncias são muito especiais, sr. Kane — murmurou o vigário, tomado de surpresa e mudando o tom de voz. — Vocês já foram casados?

— Eu fui — disse Kate. — Meu marido morreu num de­sastre de avião há quatro anos.

— Oh, que terrível! — exclamou a sra. Tukesbury. — Sinto muito, eu não...

— Shush, minha querida! — pediu o homem de Deus, mais interessado no telhado da igreja que nos sentimentos da esposa. — E o senhor?

— Nunca me casei — respondeu William.

— Vou telefonar ao bispo. — Segurando firme na mão o cheque de William, o reverendo desapareceu na sala contígua.

A sra. Tukesbury convidou-os a sentar-se, ofereceu-lhes o prato de sanduíches de pepino e continuou a falar. Sem prestar atenção às suas palavras, William e Kate fitavam-se demoradamente.

O vigário retornou três sanduíches de pepino mais tarde.

– É extremamente irregular, extremamente irregular, mas o bispo concordou, desde que o senhor, amanhã cedo, legitime a cerimônia na embaixada americana, e tão logo regresse a seu pais a confirme junto ao bispo de sua igreja em Boston, Massa­chusetts.

Ele ainda segurava firmemente o cheque de quinhentas libras.

— Agora só precisamos de duas testemunhas — prosseguiu. — Minha esposa será uma delas. Esperemos que o sacristão não tenha ido embora, assim ele será a outra.

— Garanto que não foi embora — disse William.

— Como pode ter tanta certeza disso, sr. Kane?

— Ele me custou um por cento.

— Um por cento? — inquiriu o reverendo Tukesbury, desconcertado.

— Um por cento do telhado da sua igreja — explicou William.

O vigário conduziu William, Kate e a esposa pelo caminho estreito, de volta à igreja, e deu uma piscadela ao sacristão, que continuava esperando.

— De fato, vejo que o sr. Sprogget permaneceu em seu posto... Nunca fez isso por mim. Sem dúvida sabe conquistar as pessoas, sr. Kane.

Simon Tukesbury pôs os paramentos e uma sobrepeliz, en­quanto, estupefato, o sacristão acompanhava a cena.

William voltou-se para Kate e beijou-a delicadamente.

— Sei que nestas circunstâncias é uma pergunta idiota, mas você me aceita como esposo?

— Por Deus! — exclamou o reverendo Tukesbury, que em todos os seus cinqüenta e sete anos de vida mortal nunca blasfe­mara. — O senhor ainda não a tinha consultado?

Quinze minutos depois, o sr. e a sra. William Kane deixaram a igreja paroquial de Henley-on-Thames, em Oxfordshire. A sra. Tukesbury precisara providenciar as alianças na última hora, ti­rando duas argolinhas da cortina da sacristia. Serviram perfeita­mente, como que sob encomenda. O reverendo Tukesbury conse­guira o telhado novo, e o sr. Sprogget, uma história para contar aos amigos da Green Man, onde gastaria quase todas as suas cinco libras.

Já fora da igreja, o vigário entregou a William um papel.

— Dois xelins e seis pence, por favor.

— Por quê? — perguntou William.

— Sua certidão de casamento, sr. Kane.

— O senhor deveria trabalhar em um banco — comentou William, entregando-lhe uma moeda de cinco xelins.

William desceu com a noiva a High Street, imerso num silêncio feliz, e voltaram ao Bell Inn. Deliciaram-se com um tranqüilo jantar no restaurante datado do século XV, com vigas de carva­lho no teto, e recolheram-se minutos depois das nove horas. En­quanto subiam a velha escada de madeira em direção ao quarto, o recepcionista voltou-se para o porteiro e deu uma piscadela.

– Se eles são casados, eu sou o rei da Inglaterra.

William começou a cantarolar o God Save the King.

Na manhã seguinte, o sr. e a sra. Kane tomaram um café demorado, enquanto aguardavam o conserto do carro. (Tudo de que precisava era uma correia de ventilador nova, o pai lhe teria dito.) Um garçom bastante jovem serviu-lhes o café.

– Gosta de café preto ou com um pouco de leite? — indagou William com ingenuidade.

Um casal de velhinhos deu-lhes um sorriso cordial.

— Com leite, por favor — disse Kate, estendendo o braço e tocando suavemente a mão de William.

Ele lhe sorriu, reparando de súbito que o salão inteiro os observava.

Retornaram a Londres na refrescante atmosfera da prima­vera que se iniciava, passando por Henley-on-Thames, e depois subiram por Berkshire e Middlesex rumo a Londres.

— Notou com que olhar o porteiro a observou esta manhã, meu bem? — perguntou William.

— Notei. Acho que deveríamos ter lhe mostrado nossa cer­tidão de casamento.

— Oh, não, não. Isso teria desfeito a imagem que ele faz das americanas, todas mulheres impudicas. Ele não diria à mulher, à noite em casa, que realmente somos casados.

Quando chegaram ao Ritz, ainda a tempo para o almoço, o chefe da recepção surpreendeu-se com William, ao ouvir o pe­dido de cancelamento do quarto de Kate. Pouco depois, ouviram-no comentar:

— O jovem sr. Kane me parecia um verdadeiro cavalheiro. Seu falecido e distinto pai jamais se teria comportado desse modo.

William e Kate embarcariam no Aquitania com destino a Nova Iorque, mas antes cuidaram de apresentar-se à embaixada americana na Grosvenor Gardens para informar ao cônsul de seu recente casamento. O cônsul deu-lhes um longo formulário para preencher, cobrou-lhes uma taxa de uma libra e fê-los esperar por mais de uma hora. A embaixada americana, ao que parecia, não precisava de um novo telhado. William teve a idéia de ir ao Car­tier, na Bond Street, com o propósito de comprar as alianças de casamento, mas Kate não concordou — nada a separaria da precio­sa argolinha de cortina.

 

William encontrou dificuldade em adaptar-se ao trabalho sob a orientação do novo presidente. As normas do New Deal esta­vam na iminência de ser aprovadas por lei com uma rapidez inusi­tada, e William e Tony julgaram impossível avaliar se as implica­ções com respeito aos investimentos seriam boas ou más. Expansão houve — ao menos numa frente —, pois logo que retornaram aos Estados Unidos Kate anunciou que estava grávida, uma notícia que encheu de alegria os seus pais e o marido. William procurou intro­duzir algumas alterações em seu horário de trabalho com o intuito de desempenhar seu novo papel de homem casado, mas via-se cada vez mais debruçado sobre a escrivaninha, varando as noites de um verão muito quente. Kate, serena e feliz em sua camisola maternal estampada de flores, inspecionava sistematicamente o quarto de crianças da Red House. Pela primeira vez na vida, William saía do escritório ansioso por voltar para casa. Quando lhe restava alguma tarefa a concluir, punha os documentos numa pasta e os levava, hábito que adotou durante toda a vida de casado.

Enquanto Kate e a expectativa pela chegada do bebê, que nasceria na época do Natal, enchiam-lhe o lar de alegria, Mat­thew só lhe dava aborrecimentos. Contraíra o hábito de beber, e, sem qualquer explicação, chegava ao escritório com atraso. Os meses foram transcorrendo, e William concluiu ser impossível continuar confiando nas estimativas do amigo. No início, preferiu omitir-se, na esperança de que tal comportamento, tão contrário ao caráter dele — e talvez passageiro —, não fosse mais que uma reação à revogação da lei seca. Mas não se tratava disso, e o problema foi se agravando. A última gota ocorreu numa ma­nhã de novembro, quando Matthew apareceu com duas horas de atraso, evidentemente de ressaca, e cometeu um erro, simples e injustificado, ao liquidar importante investimento, o que resultou em prejuízo para um cliente que tinha condições de conseguir um lucro considerável. Chegara o momento, William não duvi­dava, de terem uma conversa desagradável, mas absolutamente necessária. Matthew admitiu o erro e, consternado, desculpou-se. William sentiu-se aliviado depois do desabafo e pensou em con­vidá-lo para o almoço. Nisso, coisa que nunca acontecera antes, a secretária entrou, esbaforida, no gabinete.

– Sua esposa, senhor. Levaram-na para o hospital.

– Por quê? — perguntou William, perplexo.

– A criança — disse a secretária.

– Mas a criança é esperada para daqui a seis semanas — comentou ele, incrédulo.

– Sei disso, senhor, mas o dr. MacKenzie parecia apreensivo e pediu que o senhor vá rapidamente para o hospital.

Matthew, apático segundos atrás, tomou a dianteira e levou William. Ambos, preocupados, pareciam recordar a morte da mãe de William e da criança natimorta.

– Oh, não, Deus meu, Kate não! — disse Matthew, entran­do com o carro no estacionamento do hospital.

William não precisou que lhe indicassem a Maternidade Anne Kane, que Kate inaugurara oficialmente apenas seis meses antes. Uma enfermeira, parada diante da porta da sala de parto, informou-o de que o dr. MacKenzie estava atendendo sua esposa e que ela havia perdido muito sangue. Atarantado, William ficou andando pelo corredor, aguardando, estonteado, exatamente como anos atrás. A cena era-lhe demasiado familiar. Ser presidente do banco não tinha a menor importância diante da possibilidade de perder Kate. Quando ela lhe dissera pela última vez: “Eu te amo”? Matthew não abandonava o amigo um só instante; sen­tava-se ao lado dele, andava ao lado dele de um lado para outro, parava quando ele parava, ambos em silêncio. Nada havia a dizer. Toda vez que uma enfermeira entrava ou saía da sala de partos, William consultava o relógio de pulso. Os segundos converteram-se em minutos, os minutos em horas. Finalmente o dr. MacKen­zie apareceu. Gotas de suor brilhavam em sua fronte, e uma máscara cirúrgica cobria-lhe o nariz e a boca. William não con­seguia surpreender nenhuma expressão no rosto do médico. Quan­do por fim ele retirou a máscara, revelou-se um sorriso.

— Parabéns, William, nasceu um menininho, e Kate está passando muitíssimo bem.

— Graças a Deus! — exclamou William, quase sem fôlego, agarrando-se a Matthew.

— Respeito muito o Todo-poderoso — observou o dr. Mac­Kenzie. — Mas confesso que tive uma grande participação nesse parto.

William riu.

— Posso vê-la?

– Não, não, agora não. Dei-lhe um sedativo e ela adorme­ceu. Perdeu sangue em excesso, mas amanhã se sentirá melhor. Um pouco fraca, talvez, mas em condições de recebê-lo. Natu­ralmente, ninguém o impedirá de ver seu filho. Não se assuste com o tamanho dele, porém. Lembre-se de que é bastante pre­maturo.

O médico conduziu William e Matthew pelo corredor até uma sala envidraçada, onde eles viram nos berços seis cabecinhas rosadas.

— É aquele ali — disse o dr. MacKenzie, indicando a criança que acabava de chegar.

William olhou o rostinho feioso com ar de desconfiança, sentindo desmoronar a imagem de um menino bonito que acalentara até então.

— Bem, eu digo uma coisa sobre esse guri — disse o médico, animadamente. — É bem mais bonito que você nessa idade, e olhe que você não saiu tão feio assim.

William soltou uma gargalhada de alívio.

— Que nome vai dar a ele?

— Richard Higginson Kane.

O médico pôs a mão afetuosamente no ombro do pai.

— Espero viver o bastante para fazer o parto do primeiro filho de Richard.

William telegrafou imediatamente para o reitor da St. Paul’s School, que reservou uma vaga para o menino no ano de 1943, e, em seguida, o pai e seu amigo Matthew embebedaram-se e chegaram com atraso na manhã seguinte para ver Kate. William levou Matthew para dar uma outra olhada no pequeno Richard.

— Ô coisinha feia — disse Matthew —, nada parecido com a linda mãe que tem.

— Foi o que eu pensei — disse William.

— Mas é a cara do pai.

William voltou ao quarto de Kate, já repleto de flores.

— Gostou do seu filho? — perguntou Kate ao marido. — Ele se parece tanto com você!

— Vou chamar para a briga a próxima pessoa que me disser isso —falou William. — É a coisinha mais feia que já vi.

— Oh, não — fez Kate, fingindo-se indignada. — Ele é lindo!

— Só mesmo a mãe para gostar daquela cara — falou William, apertando a esposa entre os braços.

Ela o envolveu com os braços, feliz com a sua felicidade.

– O que a vovó Kane diria se visse nosso primogênito vir ao mundo antes de completados oito meses de casamento? “Longe de mim ser maldizente, mas quem quer que nasça antes de um ano e três meses de casamento deve ser considerado de paternidade duvidosa; antes dos nove meses, definitivamente ina­ceitável” — arrematou William. — A propósito, Kate, esqueci-me de dizer-lhe uma coisa antes que a trouxessem para o hos­pital.

— O quê?

— Eu amo você.

Kate e Richard ficaram no hospital quase três semanas. Kate só se recuperou completamente depois do Natal. Richard, por sua vez, crescia como uma erva do campo, sem que ninguém o tivesse informado de que era um Kane, e ninguém sequer ima­ginara fazê-lo. William entrou na história da família como o pri­meiro Kane a trocar uma fralda e empurrar um carrinho. Kate orgulhava-se dele, e até mesmo surpreendia-se. William comentou com Matthew que já era hora de encontrar uma boa mulher e arrumar sua vida. Matthew riu, defendendo-se.

— Positivamente você está envelhecendo. Daqui a pouco, vou achar uns fiozinhos brancos no seu cabelo.

Mas um ou dois fios já haviam aparecido durante a batalha da sucessão à presidência. Matthew não os notara.

 

William não sabia ao certo em que momento começara a se deteriorar seu relacionamento com Tony Simmons. Invaria­velmente, Tony vetava um plano de ação atrás de outro, numa atitude negativa que de novo levou William a pensar seriamente em demitir-se. Matthew havia retomado o hábito de beber, e não ajudava o amigo em nada. O período de regeneração não durara mais que uns poucos meses, e, agravando ainda mais as coisas, ele passara a beber com maior freqüência, chegando atrasado ao banco todos os dias. William sentia-se indeciso quanto à forma com que lidaria com essa nova situação, e, aos poucos, foi assu­mindo o trabalho de Matthew. Ao final de cada dia, William reexaminava a correspondência de Matthew e respondia aos tele­fonemas por ele ignorados.

Na primavera de 1936, quando os investidores haviam recuperado a confiança e os depositantes começaram a retornar, William resolveu voltar experimentalmente ao mercado de va­lores, mas Tony vetou a sugestão com um memorando interno que enviou ao conselho financeiro. William irrompeu esbrave­jando no gabinete de Tony e perguntou-lhe se sua renúncia ao cargo seria bem-recebida.

— É evidente que não, William. Quero simplesmente que você reconheça que minha política foi sempre dirigir este banco de maneira cautelosa, e não é minha intenção retornar ao merca­do com o dinheiro dos nossos investidores.

— Mas estamos perdendo dinheiro para outros bancos, en­quanto ficamos sentados aqui, à margem, vendo-os aproveitar a situação atual. Bancos que, dez anos atrás, nem sequer teríamos considerado concorrentes, em breve nos passarão a perna.

— Passarão a perna em quê, William? Não na reputação. Lucros rápidos, talvez, mas não reputação.

— Mas estou interessado é em lucros — disse William. — Na minha opinião, o dever de um banco é propiciar aos investi­dores ótimos lucros, e não ficar marcando passo inutilmente.

— Prefiro imobilizar-me a perder a reputação, uma repu­tação que este banco construiu graças a seu avô e a seu pai du­rante quase meio século.

— Perfeito, mas ambos estavam sempre atentos às novas oportunidades de expandir as atividades do banco.

— Isso foi nos bons tempos — disse Tony..

— E nos maus, também — retrucou William.

— William, por que tanta irritação? Ainda dirige o seu departamento com inteira liberdade.

—- A duras penas o faço! Você bloqueia a menor sugestão de qualquer empreendimento.

— William, sejamos honestos um com o outro. Uma das razões por que tenho sido particularmente cauteloso nos últimos tempos é que não podemos mais confiar nas estimativas de Mat­thew.

— Deixe Matthew fora desta questão. É a mim que você bloqueia; sou eu o chefe do departamento.

— Sinto, mas não posso deixar de incluir Matthew nesta questão. Bem que gostaria de poder fazê-lo. A responsabilidade global e final do conselho pelas ações de quem quer que seja cabe a mim, e ele é o braço direito do mais importante departa­mento do banco.

— Certo, e, portanto, de minha responsabilidade, porque o departamento sou eu.

— Não, William, não importa o tempo de amizade e o nível de intimidade existente entre vocês, você não pode continuar sendo o único responsável pelo fato de Matthew chegar ao trabalho embriagado às onze da manha.

– Ora não exagere!

– Não estou exagerando, William. Este banco vem tolerando Matthew Lester há mais de um ano, e a única coisa que me impediu de revelar a você minhas preocupações foi justamente seu relacionamento pessoal com ele e sua família. Não lamen­taria confesso, vê-lo apresentar a carta de demissão. Um homem de caráter já a teria apresentado há muito tempo, e os amigos dele o teriam aconselhado a fazê-lo.

– Nunca — disse William. — Se ele sair, eu também saio.

– Que seja assim, então, William — falou Tony. — Minha primeira responsabilidade é com os investidores, não com seus antigos colegas de escola.

– Tony, você vai se arrepender por ter dito isso — disse William, retirando-se tempestuosamente e retornando à sua sala, ainda fora de si.

— Onde está o sr. Lester? — perguntou à secretaria, ao passar por ela.

— Ainda não chegou, senhor.

Encolerizado, consultou o relógio.

— Assim que ele chegar, diga-lhe que quero vê-lo.

— Sim, senhor.

William andou de um lado para outro na sala, praguejando. Tudo o que Tony Simmons falara sobre Matthew era correto, o que só agravava a situação. Procurou reconsiderar o passado, refletindo sobre o momento em que tudo começara, buscando uma simples explicação. Seus pensamentos foram interrompidos pela secretária.

— O sr. Lester acabou de chegar, senhor.

Matthew entrou demonstrando embaraço, com todos os in­dícios de recente bebedeira. Envelhecera nesse último ano, sua tez perdera a cor saudável e o vigor. William mal o reconhecia como o homem de quem fora o amigo mais íntimo durante quase vinte anos.

— Matthew, onde diabo você esteve?

— Acordei tarde — respondeu Matthew, coçando o rosto, desajeitado. — Mais exatamente, dormi tarde.

– Em outras palavras, bebeu demais.

— Não, nem tanto. Sabe, foi uma nova namorada que não me deixou dormir. Uma mulher insaciável.

— Matthew, quando vai parar? Já dormiu com quase todas as mulheres solteiras de Boston.

— Também não exagere, William! Sobraram uma ou duas; pelo menos, espero que sim. Depois, não esqueça os milhares de casadas.

— Piada de mau gosto, Matthew.

— Oh, William, o que é que há? Veja se me dá uma folga!

— Dar-lhe uma folga? Tony Simmons acaba de cair em cima de mim por sua causa. E tem mais: a razão está toda com ele. Você leva para a cama qualquer uma que use saia, e, o que é pior, está se matando de beber. Suas estimativas têm sido de­sastrosas. Por quê, Matthew? Só me diga por quê. Deve haver alguma explicação. Até um ano atrás você era um dos homens mais confiáveis que encontrei na minha vida. O que está acon­tecendo, Matthew? Que devo dizer a Tony Simmons?

— Diga a Simmons que vá para o inferno e meta-se com os assuntos dele.

— Matthew, seja sensato. Este assunto é dele. Estamos di­rigindo um banco. Você entrou aqui como diretor por recomen­dação minha.

— E agora não estou correspondendo aos seus padrões de exigência, não é o que quer dizer?

— Não, não é isso o que estou dizendo.

— Então que diabo está dizendo?

— Que sossegue e trabalhe algumas semanas. Em pouco tempo todo mundo vai esquecer este incidente.

— Não quer mais nada?

— Não.

— Farei o que me pede, mestre — disse Matthew, batendo os calcanhares um contra o outro e retirando-se.

— Diabo! — exclamou William.

À tarde, William quis repassar a carteira de um cliente com Matthew mas ninguém conseguiu localizá-lo. Ele não voltara ao banco depois do almoço, e não estava em casa. Nem mesmo o prazer de colocar o jovem Richard no berço nessa noite afastou Matthew e seus problemas do pensamento de William. Richard já falava “dois”, e William ensinava-lhe a falar “três”, mas ele teimava em pronunciar “teis”.

— Se não consegue falar “três”, Richard, como é que um dia vai ser banqueiro, hein? — perguntava ao filho, quando Kate entrou no quarto.

– Talvez ele acabe fazendo alguma coisa de proveitoso — disse Kate.

– O que pode ser mais proveitoso do que um banco? — indagou William.

– Ora, ele poderá ser músico, jogador de beisebol ou, quem sabe, presidente dos Estados Unidos.

– Dos três, prefiro que seja jogador de beisebol. Das que você sugeriu, é a única profissão que paga bom salário — co­mentou William, colocando Richard no berço.

As últimas palavras de Richard, antes do dormir, foram:

— Teis, papá.

William deu-se por vencido. Não era o seu dia.

— Você me parece exausto, querido. Espero que não tenha esquecido a festa de Andrew MacKenzie.

— Diabo! Pois não é que me esqueci completamente? A que horas ele nos espera?

— Daqui a uma hora.

— Bem, primeiro vou tomar um banho quente demorado.

— Achava que isso era um privilégio feminino — disse Kate.

— É que esta noite preciso relaxar. O dia me acabou com os nervos.

— Tony o importunou de novo?

— Sim, desta vez, porém, com razão. Queixou-se do hábito de beber de Matthew. Ainda bem que não mencionou o fato de ele ser mulherengo. Já se tornou impossível levar Matthew a uma reunião sem que a filha mais velha dos anfitriões, ou mesmo a esposa do anfitrião, não precise se trancar em algum lugar como medida de segurança. Pode preparar-me o banho?

William ficou na banheira mais de meia hora, e Kate pre­cisou arrastá-lo de lá de dentro antes que pegasse no sono. Ape­sar de Kate tê-lo apressado, chegaram à casa de MacKenzie com atraso de vinte minutos, a tempo de surpreender Matthew, já a caminho da embriaguez, tentando seduzir a esposa de um deputado. William quis intervir, mas foi dissuadido por Kate.

– Não diga nada — murmurou.

– Não posso ficar aqui parado vendo-o destruir-se na minha frente — disse William. — É o meu melhor amigo. Tenho de fazer alguma coisa.

Por fim, ele acatou o conselho de Kate e passou uma noite desagradável, vendo Matthew ir se embebedando pouco a pouco. Tony Simmons, no outro extremo da sala, olhava de maneira penetrante para William, que, aliviado, viu Matthew sair cedo, acompanhado da única mulher solitária da festa. Após a partida de Matthew, William sentiu-se mais tranqüilo.

— Como tem passado o pequeno Richard? — perguntou Andrew MacKenzie.

— Ele não consegue falar “três” — respondeu William.

— Talvez tenha tendência para alguma coisa civilizada — comentou o dr. MacKenzie.

— Justamente o que pensei — disse Kate. — Olhe que ótima idéia, William: ele poderá ser médico.

— Sem dúvida alguma — disse Andrew. — Não conheço médicos que saibam contar além de dois.

— A não ser quando nos mandam suas contas — retrucou William.

Andrew riu.

— Kate, aceita outro drinque?

— Não, obrigada, Andrew. Já estamos de saída. Se nos de­morarmos, é provável que só restem Tony Simmons e William, e ambos conseguem contar além de dois. Já imaginou passar o resto da noite conversando sobre assuntos bancários?

— Tem toda a razão — disse William. — Obrigado, An­drew, por esta excelente reunião. A propósito, peço-lhe desculpas pelo comportamento de Matthew.

— Mas por quê? — perguntou o dr. MacKenzie.

— Ora, Andrew. Ele não só estava bêbado, como nenhuma das mulheres aqui presentes sentiu-se tranqüila em ficar sozinha com ele.

— Eu faria o mesmo se estivesse na situação dele — disse o médico.

— Por que diz isso? — perguntou William. — Não pode desculpar o comportamento dele apenas porque ele é solteiro.

— Não, claro que não, mas procuro entendê-lo e imaginar que, com um problema como o dele, até eu poderia ser meio irresponsável.

— Não entendo — observou Kate.

— Deus do céu! — disse o dr. MacKenzie. — Ele é o seu melhor amigo e não lhe contou?

— Contou o quê? — disseram os dois ao mesmo tempo.

O dr. MacKenzie fitou-os, um ar de descrença estampado no rosto.

— Venham comigo ao meu escritório.

William e Kate acompanharam o médico até uma saleta for­rada de livros de medicina, intercalados por fotografias não emol­duradas dos seus tempos de estudante da Cornell.

– Kate, sente-se, por favor — disse. — William, não me desculpo pelo que vou dizer agora, porque achei que soubesse que Matthew sofre de uma doença bastante grave, com efeito, uma doença mortal. Ele está com o mal de Hodgkin. Matthew sabe disso há mais de um ano.

William caiu sentado na cadeira, por alguns segundos inca­pacitado de falar.

— Mal de Hodgkin?

— Uma inflamação e dilatação dos gânglios linfáticos, quase sempre fatal — explicou o médico num tom formal.

Pasmo, William balançou a cabeça negativamente.

— Por que ele não me contou?

— Vocês se conhecem desde os tempos de colégio. Acho que é o orgulho de Matthew que o impede de sobrecarregar os outros com seus problemas. Prefere morrer sozinho a que saibam do que está sofrendo. Nestes últimos seis meses, pedi-lhe que contasse ao pai, e, por certo, quebrei minha promessa profissional contan­do a vocês, William, como o faço agora, mas apenas para que não continue a responsabilizá-lo por algo sobre o que ele não possui o menor controle.

— Obrigado, Andrew — disse William. — Como pude ser tão cego e tão estúpido?

— Não vá culpar-se agora — disse o dr. MacKenzie. — Não havia como saber.

– Tem certeza de que não há esperança? Não existem clínicas, especialistas? Dinheiro não seria problema e...

— O dinheiro não compra tudo, William, e eu mesmo já consultei os três melhores especialistas dos Estados Unidos, além de um da Suíça. Infelizmente, todos concordam com o meu diag­nostico e a ciência médica não descobriu ainda a cura para o mal de Hodgkin.

– Quanto tempo lhe resta de vida? — perguntou Kate, a voz quase sufocada.

– Seis meses no máximo, mais provavelmente três.

– E eu pensando que eu é que tinha problemas — murmu­rou William. Apertou fortemente a mão de Kate, como se nela estivesse a salvação. — Precisamos ir, Andrew. Obrigado por nos ter contado.

— Ajude-o de todas as maneiras possíveis — disse o médico —, mas, pelo amor de Deus, seja compreensivo. Deixe-o fazer o que bem entender. São os últimos meses de Matthew, não os seus. E que nunca ele venha a descobrir que eu lhe contei a ver­dade.

William dirigiu o carro em silêncio. Tão logo entraram na Red House, William telefonou para a mulher com quem Mat­thew saíra da festa.

— Posso falar com Matthew Lester?

— Ele não está aqui — respondeu ela, a voz um tanto irri­tada. — Ele me arrastou para o Revue Club, mas, quando chega­mos lá, estava bêbado demais. Recusei-me a ficar com ele. — E desligou.

O Revue Club... William tinha uma vaga lembrança de ter visto o luminoso oscilando numa barra de ferro, mas não con­seguia lembrar-se exatamente onde ficava o lugar. Verificou na lista telefônica, avançou com o carro em direção à zona norte da cidade e, afinal, depois de perguntar a um transeunte, localizou o clube. Bateu à porta. O postigo abriu-se.

— O senhor é sócio?

— Não — respondeu William com firmeza, e enfiou uma nota de dez dólares através da grade.

O postigo fechou-se, a porta se abriu. William entrou e pa­rou no meio da pista de dança, sentindo-se esquisito dentro do elegante terno de banqueiro. Os casais que dançavam entrelaça­dos giravam à sua volta, sem perturbar-se com a sua presença. Os olhos de William através da nuvem de fumaça que envolvia o salão buscaram Matthew, mas ele não se achava ali. Repenti­namente, William teve a impressão de reconhecer uma das mo­ças que haviam saído com ele recentemente, uma que, tinha quase certeza, vira saindo do apartamento do amigo numa certa manhã. Ela estava sentada, com as pernas cruzadas, a um canto recuado, na companhia de um marinheiro. William se encaminhou para lá.

— Desculpe-me, senhorita.

Ela voltou-lhe os olhos, mas, era evidente, não o reconheceu.

— A dama está comigo, caia fora — disse o marinheiro.

— Viu Matthew Lester?

— Matthew? Que Matthew?

– Eu disse pra você dar o fora — tornou o marinheiro, pondo-se de pé.

– Se disser mais alguma coisa — disse William —, parto sua cara.

O marinheiro que já vira aquele ódio nos olhos de outro homem, e lembrando-se de que quase perdera um olho por aceitar o desafio, preferiu sentar-se de novo.

– Onde está Matthew?

– Ah, benzinho, sei lá eu de Matthew! — Também ela se sentia atemorizada.

– Um metro e oitenta, loiro, vestido assim como eu, e, provavelmente, bêbado.

– Oh, você fala de Martin. O nome dele aqui é Martin, benzinho, não Matthew. — A moça estava mais tranqüila agora. – Bem, deixe-me ver, com quem ele saiu hoje? — Girou a cabeça em direção ao bar e gritou para o rapaz que estava atrás do balcão: — Terry, com quem Martin saiu hoje à noite?

O rapaz tirou o toco de cigarro do canto da boca.

— Jenny — disse, e pôs o cigarro apagado no mesmo lugar.

— Jenny, isso mesmo — disse a moça. — Agora, deixe-me ver, Jenny é apressadinha. Um cara nunca fica com ela mais que meia hora, acho que eles voltam logo.

— Obrigado — disse William.

Ele esperou quase uma hora sentado diante do balcão, to­mando um uísque aguado, sentindo-se a cada minuto mais deslo­cado. De súbito, o rapaz do balcão, que ainda mantinha o cigarro apagado no canto da boca, fez um gesto indicando a mulher que acabara de entrar.

— Jenny é aquela — informou.

Matthew não estava com ela.

Com um sinal, o rapaz chamou-a ao balcão. Jenny, magra, baixa, morena e de certa forma atraente, piscou para William e, ondulante, aproximou-se dele.

– Esperando por mim, benzinho? Agora estou aqui só pra você. Dez dólares, meia hora.

– Não, não quero você — respondeu William.

— Que encantador! — disse Jenny.

– Procuro o homem que esteve com você: Matthew, digo, Martin.

– Martin estava bêbado demais pra levantar, nem com um guindaste. Mas me pagou os dez dólares. Sempre me paga. É de fato um cavalheiro.

— Onde ele foi? — perguntou William, impaciente.

— Não sei. Estava chateado e saiu andando por aí. Pra casa, acho.

William saiu para a rua. O vento gélido feriu-lhe o rosto, mas ele não precisava ser reanimado. Afastou-se do clube rodan­do o carro devagar, fazendo o caminho que levava ao apartamento de Matthew, olhando atentamente cada pessoa que passava. Al­gumas, apressadas, intrigadas por seu olhar penetrante; outras tentavam entabular uma conversa. Ao passar em frente a um café que costumava ficar aberto a noite inteira, através da vidra­ça avistou Matthew, trançando as pernas entre as mesas com uma xícara na mão. William estacionou o carro, entrou no café e sen­tou-se ao lado dele. Matthew debruçara-se sobre uma mesa, ten­do ao lado a xícara de café entornado e intocado. De tão bêbado, não reconheceu William.

— Matthew, sou eu — falou William, fitando o homem encolhido sobre si mesmo. As lágrimas começaram a descer pelas suas faces.

Matthew ergueu a cabeça para olhá-lo, esparramando o resto de café que sobrara na xícara.

— Ô meu velho, você está chorando. Perdeu a mulher, foi?

— Não, meu amigão — disse William.

— Está cada vez mais difícil conseguir uma mulher.

— Sei disso — falou William.

— Tenho um amigo do peito — disse Matthew, enrolando as palavras. — Ele sempre me apoiou, mas hoje, pela primeira vez, discutimos. Culpa minha, eu sei. Sabe, falhei feio com ele.

— Não falhou, não — disse William.

— Como é que pode saber? — perguntou Matthew, irrita­do. — Você não merece nem conhecê-lo.

— Vamos para casa, Matthew.

— Meu nome é Martin — disse Matthew.

— Desculpe, Martin, vamos embora para casa.

— Não, quero ficar aqui. Vem uma garota aí mais tarde. Acho que agora estou preparado.

— Em casa tenho um uísque velho e muito bom — disse William. — Por que não vem comigo?

— Tem mulher lá?

— Sim, uma porção delas.

— Se é assim, eu vou.

William suspendeu Matthew e segurou-o por debaixo do braço, guiando-o devagar pelo salão em direção à porta. Só então notou o quanto Matthew era pesado. Quando passaram por dois policiais, sentados no canto do balcão, William ouviu um deles dizer ao outro:

– Lá vão as bichinhas.

William ajudou Matthew a entrar no carro e o levou a Beacon Hill. Kate os esperava.

– Devia ter se deitado, querida.

– Não consegui dormir. Acho que ele está fora de si.

– Essa é a mulher que me prometeu — disse Matthew.

– É, sim, ela vai cuidar de você — disse William, e, com a ajuda de Kate, levou-o para o quarto de hóspedes e deitou-o na cama.

Kate começou a despi-lo.

— Não vai tirar a roupa também, querida? — disse. — Paguei dez dólares.

— Depois que você se deitar — respondeu Kate branda­mente.

— Por que essa carinha de tristeza, bela dama? — per­guntou Matthew.

— Porque o amo — disse Kate, sentindo que as lágrimas lhe brotavam dos olhos.

— Não chore, não — disse Matthew —, não há por que chorar. Desta vez vou conseguir, vai ver só.

Depois que Matthew estava despido, William cobriu-o com um lençol e um cobertor. Kate apagou a luz.

— Você prometeu vir deitar-se comigo — disse Matthew, com voz de sono.

Ela fechou a porta sem fazer ruído.

William dormiu sentado numa cadeira do lado de fora do quarto, temendo que Matthew acordasse de madrugada e tentasse ir embora. Kate acordou-o pela manhã, antes de levar café a Matthew.

– Kate, o que estou fazendo aqui? — foram as primeiras palavras de Matthew.

– Veio conosco para cá, depois que saímos da festa de Andrew MacKenzie ontem à noite — respondeu Kate, com a voz fraca.

— Não, não vim, não. Fui ao Revue Club com aquela mu­lher horrível. Patrícia qualquer coisa, ou sei lá quem, que se recusou a ficar comigo. Meu Deus, sinto-me um bagaço. Posso tomar um suco de tomate? Não quero ser insociável, mas a última coisa que farei é comer de manhã.

— Naturalmente, Matthew.

William entrou no quarto. Matthew ergueu os olhos para ele. Em silêncio, entreolharam-se.

— Você sabe, não sabe? — perguntou Matthew, repentina­mente.

— Sei — respondeu William —, e me comportei como um idiota. Espero que me perdoe.

— Não chore, William. Não o vejo fazer isso desde os doze anos, quando Covington estava batendo em você e eu precisei tirá-lo de cima de você. Lembra-se? O que será que Covington anda fazendo agora? Talvez esteja cuidando de um bordel em Tijuana; ele nasceu para isso. Mas veja, se Covington for o ge­rente, o lugar deve ser excelente. Leve-me para lá. Não chore, William. Gente grande não chora. Nada poderá ser feito. Con­sultei especialistas de Nova Iorque, de Los Angeles, até de Zuri­que. Eles não podem fazer nada. Importa-se se não for trabalhar de manhã? Estou me sentindo meio indisposto. Acorde-me se dormir demais ou der algum trabalho, que eu vou para casa.

— Sua casa é aqui — disse William.

A expressão de Matthew transformou-se.

— William, pode contar a meu pai? Não posso encará-lo. Você também é filho único, compreende o problema.

— Sim, eu conto — disse William. — Amanhã vou a Nova Iorque e conto, desde que me prometa ficar com Kate e comigo. Não o impedirei de beber, se é o que quer, ou de possuir quantas mulheres quiser, mas precisa ficar aqui.

— William, essa foi a melhor proposta que recebi ultima­mente. Agora acho que vou dormir um pouco mais. Ando muito cansado.

William esperou Matthew cair num sono pesado e tirou o copo semi vazio de sua mão. Uma mancha de tomate avermelhava o lençol.

— Não morra — disse calmamente. — Por favor, Matthew, não morra. Esqueceu-se de que você e eu vamos dirigir o maior banco da América?

Na manhã seguinte, William procurou Charles Lester em Nova Iorque. Ao saber da notícia, o homem pareceu envelhecer de repente e encolheu-se em sua cadeira.

– Obrigado, William, por ter vindo me contar pessoal­mente. Quando Matthew parou de me fazer as visitas mensais, imaginei que alguma coisa ia mal. Eu o verei todos os fins de semana. Ele ficará com você e Kate, e eu tentarei não demons­trar o quanto a notícia me feriu. Deus sabe o que ele fez para merecer isso. Desde que minha esposa faleceu, fiz tudo por Matthew, e agora nada do que construí ficará com ele. Susan não se interessa pelo banco.

— Vá a Boston quando desejar, senhor. Será sempre bem recebido.

— Obrigado, William, por tudo o que tem feito por Matthew.

O velho fitou William demoradamente.

— Gostaria que seu pai estivesse vivo e visse quanto o filho dele merece o nome Kane. Se ao menos eu pudesse ocupar o lugar de Matthew e deixá-lo viver...

— Devo voltar logo, senhor.

— Oh, sim, naturalmente. Diga-lhe que recebi a notícia de uma forma corajosa. Não diga nada em contrário.

— Sim, senhor.

William retornou a Boston à noite. Matthew continuara na casa em companhia de Kate, e, sentado na varanda, lia o mais recente sucesso da literatura norte-americana, ... E o vento levou. Ergueu os olhos quando William abriu as portas envidraçadas e passou.

– Como foi que meu velho recebeu a notícia?

— Ele chorou — disse William.

– O Presidente do Lester chorou? — disse Matthew. — Que os acionistas nunca saibam disso.

Matthew parou de beber e entregou-se ao trabalho até os últimos dias. William admirou-o pelo esforço, mas aos poucos foi conseguindo dele maior moderação. Matthew dava conta de todo o trabalho e, ao final do dia, provocava William verificando-lhe a correspondência. Durante a noite, antes da ceia, Matthew jogava tênis ou competia com ele no remo.

– Saberei que estou morto quando não puder mais derrotá-lo – motejou.

Matthew não se internou no hospital, preferindo ficar na Red House. As semanas arrastavam-se, mas, para William, preci­pitavam-se. Ele acordava todas as manhãs com o receio de que Matthew já não estivesse vivo.

Matthew morreu numa sexta-feira, sem ter lido as quarenta páginas finais de ... E o vento levou.

 

O funeral foi em Nova Iorque, e William e Kate ficaram ao lado de Charles Lester. No espaço de seis meses, ele se conver­tera num homem envelhecido, e, de pé diante dos túmulos da esposa e do único filho, confessara a William não ver mais sen­tido em continuar vivo. William nada comentou; nenhuma palavra sua aliviaria o sofrimento desse pai. William e Kate voltaram a Boston no dia seguinte. Sem Matthew, a Red House enchera-se de um vazio perturbador. Os últimos meses haviam sido ao mes­mo tempo os mais felizes e infelizes da vida de William. A morte viera para aproximá-lo intimamente, tanto de Matthew quanto de Kate, coisa que a vida normal não lhe teria propiciado.

Ao retornar ao banco após a morte de Matthew, William viu-se impossibilitado de readaptar-se à rotina normal. Levanta­va-se e dirigia-se para a sala de Matthew, a quem antigamente pediria um conselho, com quem daria boas gargalhadas. Simples­mente, procurava confirmar-lhe a existência — mas ele já não estava mais lá. Passaram-se semanas até que William abandonasse tal hábito.

Tony Simmons mostrava-se compreensivo, o que lhe era de pouca valia. William perdera todo o interesse pelas atividades bancárias, até mesmo pelo Kane & Cabot, atravessando meses a ruminar o remorso pela morte de Matthew. Sempre acreditara que ele e Matthew cresceriam juntos e juntos cumpririam um destino comum. Ninguém ousava comentar que a qualidade do desempenho de William deixara de corresponder aos altos padrões usuais. A própria Kate preocupava-se com William, horas e horas entregue à solidão.

Certa manhã, ao despertar, Kate o viu sentado na beira da cama, a fitá-la intensamente. Ela abriu e fechou as pálpebras, sonolenta.

— O que é, meu bem?

— Nada, apenas estou olhando a minha maior riqueza, certificando-me de que não será eterna.

 

No final de 1932, os Estados Unidos ainda se debatiam contra a Depressão. Abel começou a preocupar-se com o futuro do Grupo Baron. Nos dois últimos anos, dois mil bancos tinham falido, e a cada semana muitos outros fechavam as portas. Nove milhões de pessoas estavam desempregadas, uma situação cuja única vantagem era assegurar a Abel a possibilidade de manter em seus hotéis um pessoal altamente profissionalizado. Entretanto, o Grupo Baron perdera setenta e dois mil dólares num ano para o qual ele previra a estabilização financeira, e Abel perguntava a si mesmo se os fundos e a paciência de seu financiador suporta­riam durante mais algum tempo.

Abel começara a tomar um interesse ativo na política du­rante a bem-sucedida campanha de Anton Cermak, candidato a prefeito de Chicago. Cermak convencera Abel a entrar para o Partido Democrata, que havia lançado uma virulenta campanha contra a lei seca; Abel apoiou Cermak sem reservas, visto que o proibicionismo prejudicava o negócio de hotelaria. O fato de o próprio Cermak ser um imigrante, vindo da Tchecoslováquia, criou uma estreita e imediata ligação entre os dois homens, e Abel, com prazer, viu-se escolhido como delegado da convenção demo­crata, que ocorreu nesse ano e onde Cermak conseguiu pôr aos seus pés uma multidão de eleitores ao pronunciar as seguintes palavras: “É verdade, não vim para cá no Mayflower, mas foi para cá que vim tão logo pude”.

Na convenção, Cermak apresentou Abel a Franklin Delano Roosevelt, que o impressionou de maneira inesquecível. Roosevelt ganhou sem dificuldades as eleições, e, em todo o país, colocou na administração os candidatos democratas. Um dos vereadores recém-eleitos para a Câmara de Chicago fora Henry Osborne. Quando Anton Cermak, semanas mais tarde, foi morto por uma bala assassina destinada a Franklin D. Roosevelt, Abel resolveu contribuir, com grande quantidade de tempo e de dinheiro, para a causa dos democratas poloneses de Chicago.

Durante o ano de 1933, o banco perdera apenas vinte e três mil dólares, e um dos hotéis, o Baron de St. Louis, realmente apresentou lucros. Quando o presidente Roosevelt dirigiu à nação a primeira de suas “conversas ao pé do fogo”, em 12 de março, exortou os compatriotas a uma vez mais terem fé nos Estados Unidos; Abel, com a esperança fortalecida, decidiu rea­brir os dois hotéis que havia fechado no ano anterior.

Zaphia mostrava-se cada vez mais intolerante com as longas viagens de Abel a Charleston e a Mobile, para cuidar dos dois hotéis. Nunca desejara que ele fosse algo mais que o subgerente do Stevens, um posto cujo ritmo tinha condições de acompanhar. Tal ritmo, porém, agora se acelerava a cada mês, levando-a a tomar consciência de que começara a ficar para trás em relação às ambições de Abel, que, temia, parecia ir perdendo o interesse por ela.

Zaphia começara também a preocupar-se com o fato de não ter filhos, e, consultando médicos, certificou-se de que nada a impedia de engravidar. Certo médico sugeriu-lhe que Abel tam­bém se submetesse a um exame, mas Zaphia, escrupulosa, ponde­rou que a menor menção do assunto seria interpretada por ele como uma ofensa à sua virilidade. Finalmente, após a questão ter sido protelada a ponto de dificultar um entendimento, Zaphia constatou irregularidade no seu período menstrual. Esperançosa, aguardou a passagem de um mês antes de contar o fato a Abel ou mesmo de consultar o médico. Este confirmou-lhe que, afinal, engravidara. Para alegria de Abel, Zaphia deu à luz uma menina no dia do ano-novo de 1934. Batizaram-na de Florentyna em homenagem à irmã dele. Estonteado, Abel pôs os olhos admira­dos sobre a criança, e, a partir desse instante, Zaphia compreen­deu que deixara de ser o primeiro amor da vida dele. George e o primo de Zaphia foram os kums da menina, e Abel ofereceu um jantar polonês tradicional de dez pratos na noite do batismo. Foram oferecidas à criança centenas de presentes, inclusive um anel, de rara antigüidade e beleza, enviado pelo financiador de Abel, que pôde retribuir o presente quando, no final do ano, o Grupo Baron apresentou um lucro de sessenta e três mil dólares. Apenas o Baron de Mobile continuava perdendo dinheiro.

Após o nascimento de Florentyna, Abel passava grande parte do tempo em Chicago, o que o levou a concluir ter chegado o momento de construir ali também um Baron Hotel. Os hotéis da cidade prosperavam graças às conseqüências do mercado mun­dial. Abel pretendia fazer do novo hotel o capitânia do grupo em memória de Davis Leroy. A companhia ainda era proprietária do terreno da Michigan Avenue em que se erguera o antigo Rich­mond, e, embora tivesse recebido diversas ofertas de compra,

Abel o conservava, na esperança de um dia atingir condições que lhe permitissem reconstruir o hotel. O projeto requeria capital, e Abel resolveu empregar os setecentos e cinqüenta mil dólares recebidos da companhia de seguros na realização das primeiras obras. Tão logo formulou os planos, conversou com Curtis Fenton sobre suas intenções. Fazia uma única ressalva: se David Maxton não queria um rival para o Stevens, estaria disposto a renunciar a todo o projeto; na sua opinião, era o mínimo que poderia fazer naquelas circunstâncias. Poucos dias mais tarde, Curtis Fenton comunicou-lhe que o financiador estava satisfeito com a idéia de um Baron Hotel em Chicago.

Com a colaboração do vereador Henry Osborne, que, com a sua influência junto à Câmara, obtivera o alvará de licença em tempo recorde, a obra ficou pronta em doze meses. O edifício foi inaugurado em 1936 pelo prefeito de Chicago, Edward J. Kelly, que, após a morte de Anton Cermak, tornara-se o principal organizador da máquina democrata. Em memória de Davis Leroy, o hotel não tinha “décimo sétimo” andar — característica tam­bém de cada novo Baron que Abel veio a construir.

Os dois senadores de Illinois estiveram presentes e discur­saram para os dois mil convidados. Era soberbo o Baron de Chicago, tanto no projeto quanto no acabamento. Mais de um milhão de dólares haviam sido investidos no hotel, e a impressão que se tinha era a de que cada dólar fora aplicado criteriosa­mente. Os salões públicos, vastos e suntuosos, de teto alto reves­tido de estuque, receberam ornamentos em tons azuis matizados de verde, agradáveis e tranqüilizantes. A letra B verde-escura fora trabalhada em relevo, muito discreta, porém onipresente, adornando desde a bandeira a drapejar no topo do edifício de quarenta e dois andares até a lapela do mais jovem dos mensa­geiros.

Este hotel traz a marca distintiva do sucesso — afirmou Hamilton Lewis, senador de Illinois —, e isso porque, senhores, é o homem e não o edifício que será sempre conhecido como o “Barão de Chicago”.

Abel sorriu com indisfarçada satisfação, enquanto os dois mil convidados ratificavam com aplausos as palavras do orador.

Ao apresentar seus agradecimentos, Abel falou de maneira sucinta, expressando-se com segurança e recebendo calorosa ovação. Começava a sentir-se à vontade entre os ilustres homens de negócios e políticos. Zaphia andava de um lado para outro, es­quecida, durante a pródiga cerimônia: a situação era difícil demais para ela. Não compreendia nem se importava com o sucesso da carreira do marido; e, embora contasse com um guarda-roupa dos mais caros, vestia-se de maneira antiquada e sentia-se deslocada, ciente de que com isso aborrecia Abel. Ela parou ao lado do ma­rido, que conversava com Henry Osborne.

— Este é o ponto máximo de sua vida — dizia Henry, dando uns tapinhas nas costas de Abel.

— Ponto máximo... Mas acabei de fazer trinta anos — respondeu ele.

Quando Abel pôs um braço nos ombros de Henry, o flash de uma máquina fotográfica estourou. Ele sorriu, deliciando-se pela primeira vez com o prazer de ser visto como uma personali­dade pública.

— Vou encher o mundo de hotéis Baron — falou, alto e bom som, para que o repórter o ouvisse. — Quero tornar-me aqui nos Estados Unidos o que César Ritz foi na Europa. Agar­re-se a mim, Henry, e aprecie a cavalgada.

 

Na manhã do dia seguinte, durante o café, Kate chamou a atenção do marido para pequena notícia, na página 17 da Globe, que relatava a abertura do Baron de Chicago.

William sorriu ao ler. O Kane & Cabot dormira no ponto, fechando os ouvidos ao seu conselho de dar apoio financeiro ao Grupo Richmond. William constatava, satisfeito, que seu julga­mento sobre Rosnovski fora correto, embora o banco tivesse per­dido um ótimo negócio. Seu sorriso aumentou quando ele leu o cognome: “Barão de Chicago”. De súbito, sentiu um mal-estar. Examinou a fotografia que acompanhava a notícia. Não se en­ganara. A própria legenda confirmava sua primeira impressão: Abel Rosnovski, presidente do Grupo Baron, em conversa com Mieczyslaw Szymczak, diretor da Comissão da Reserva Federal, e o vereador Henry Osborne.

William deixou cair o jornal sobre a mesa e ficou pensando alguns momentos. Assim que chegou ao banco telefonou para Thomas Cohen, dos escritórios Cohen, Cohen & Yablons.

– Sr Kane há quanto tempo! — Foram as primeiras pa­lavras de Thomas Cohen. - Causou-me tristeza saber do faleci­mento de seu amigo, Matthew Lester. E como vão passando sua esposa e seu filho... Richard, não e mesmo?

William sempre admirara a capacidade de Thomas Cohen de lembrar-se de nomes e de relacionamentos.

– Sim, isso mesmo. Vão bem, obrigado, sr. Cohen.

– Bem, sr. Kane, em que posso ajudá-lo desta vez? —

Thomas Cohen também lembrou-se de que William era um ho­mem de poucas palavras.

– Quero contratar, por intermédio do senhor, os serviços de um investigador de confiança. Não gostaria que meu nome fosse ligado a essa investigação, mas preciso que pesquisem de novo a vida de Henry Osborne. Tudo o que fez desde que saiu de Boston, e, em especial, que tipo de relação existe entre ele e Abel Rosnovski, do Grupo Baron.

— Sim — disse o advogado, depois de uma pausa.

— Pode dar-me alguma informação dentro de uma semana?

— Duas semanas, por favor, sr. Kane, duas.

— Dossiê completo em cima da minha mesa dentro de duas semanas, sr. Cohen?

— Duas semanas, sr. Kane.

Como de praxe, Thomas Cohen cumpriu a promessa, e, na manhã do décimo quinto dia, William tinha diante de si um re­latório completo. Leu-o com extrema atenção. Aparentemente, entre Abel Rosnovski e Henry Osborne não havia nenhum rela­cionamento comercial formal. Rosnovski, ao que parecia, via em Osborne um contato político útil, e nada mais que isso. Quanto a Osborne, saltara de emprego em emprego desde que saíra de Boston, terminando nos escritórios centrais da Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western. Com toda a probabili­dade, foi desse modo que Osborne entrara em contato com Abel Rosnovski, visto que o antigo Richmond sempre fora segurado pela Great Western. Quanto ao incêndio do hotel, a seguradora inicialmente se recusara a pagar a Abel a indenização. Um certo Desmond Pacey, o gerente, fora condenado a dez anos de prisão por crime doloso, e por um momento suspeitou-se de que Abel estivesse implicado no ocorrido. Na falta de provas, pouco tempo depois a seguradora lhe pagara a soma de setecentos e cinqüenta mil dólares. Osborne, prosseguia o relatório, é agora vereador, e, sabe-se, ambicionava ser deputado. Recentemente, casara-se com a srta. Marie Axton, filha de um abastado proprietário de um laboratório farmacêutico, e até o momento não tinha filhos.

William releu o relatório com o intuito de certificar-se de que nada lhe escapara, nem mesmo o detalhe mais insignificante. Embora não lhe parecesse aconselhável entrar em contato com os dois homens, pressentiu que a associação entre Abel Rosnovski e Henry Osborne, que o odiavam por motivos diversos, era poten­cialmente perigosa. Enviou pelo correio um cheque a Thomas Cohen e solicitou-lhe que atualizasse trimestralmente os relató­rios, mas, à medida que transcorriam os meses e os informes trimestrais não revelavam nada de novo, deixou de preocupar-se, acreditando ter se impressionado indevidamente com a fotografia publicada no Globe de Boston.

 

Na primavera de 1937, Kate presenteou o marido com uma filha, a quem deram o nome de Virgínia. De novo William tro­cava fraldas, e estava a tal ponto fascinado pela little lady que todas as noites Kate a tirava de seus braços com receio de que depois ela não conseguisse pegar no sono. Richard, então com dois anos e meio, não deu muita importância à recém-chegada, mas o tempo e um soldadinho montado num cavalinho de ma­deira contribuíram para apaziguar-lhe o ciúme.

No final do ano, o departamento de William no Kane & Cabot obtivera um lucro vantajoso para o banco. Ele deixava a letargia a que se entregara desde a morte de Matthew e rapi­damente recuperava a reputação de sagaz investidor no mercado de valores. Até mesmo Smith, o especialista em “vendas a curto prazo”, confessara ter apenas aperfeiçoado uma técnica desenvol­vida por William Kane, de Boston. A própria direção de Tony Simmons tornara-se para ele menos desagradável. Entretanto, in­timamente William inquietava-se com a perspectiva de que, en­quanto Tony Simmons não se aposentasse, e isso só ocorreria dali a quinze anos, não poderia assumir a presidência do banco. Ocor­reu-lhe a idéia de procurar trabalho em outro banco.

 

William e Kate habituaram-se a visitar Charles Lester em Nova Iorque um fim de semana por mês. Três anos após a morte de Matthew, o homem envelhecera acentuadamente. Comentava-se nos círculos financeiros que ele havia perdido todo o interesse pelo trabalho e só raramente era visto no banco. William per­guntava-se quanto tempo mais ele conseguiria viver quando, su­bitamente, três semanas mais tarde, foi informado do seu faleci­mento. William viajou para Nova Iorque e esteve presente aos funerais. Quase todos os conhecidos compareceram, inclusive c vice-presidente dos Estados Unidos, John Nance Garner. Termi­nado o funeral, William e Kate voltaram de trem para Boston, cônscios de que tinham acabado de perder o último vínculo com a família Lester.

Seis meses depois, William recebeu uma notificação de Sullivan e Cromwell, ilustres advogados de Nova Iorque, na qual lhe solicitavam que gentilmente comparecesse à leitura do testa­mento do falecido Charles Lester em seus escritórios da Wall Street. William decidiu ir, mais por lealdade à família Lester do que por curiosidade de saber o que o velho Charles Lester havia lhe deixado. Esperava receber uma pequena lembrança que o aproximasse permanentemente da memória de Matthew e que pudesse figurar ao lado do “Remo de Harvard”, ainda pendu­rado na parede do quarto de hóspedes da Red House. Ansiava ainda pela oportunidade de reatar as relações com alguns mem­bros da família Lester, que conhecera quando passara com Matthew as férias do colégio e da faculdade.

Dirigindo um Daimler recentemente adquirido, William chegou a Nova Iorque na noite anterior à leitura do testamento e hospedou-se no Harvard Club. A leitura estava marcada para as dez horas em ponto da manhã seguinte. Ao entrar nos escri­tórios de Sullivan e Cromwell, William deparou, surpreso, com a presença de mais de cinqüenta pessoas. Muitas delas voltaram-se para olhá-lo tão logo ele deu os primeiros passos para cumpri­mentar os primos e as tias de Matthew, bem mais envelhecidos do que ele imaginara; concluiu que deveriam pensar o mesmo a seu respeito. Procurou com os olhos a irmã de Matthew, Susan, mas não a viu. Às dez horas, pontualmente, o sr. Arthur Crom­well entrou na sala acompanhado de um secretário, que carregava sob o braço uma pasta de couro acastanhado. Fez-se um silêncio carregado de expectativa. O advogado começou por explicar à assistência de futuros beneficiários que o conteúdo do testamento só estava sendo dado a conhecer seis meses após a morte de Charles Lester em atendimento à sua própria vontade: visto não ter um herdeiro da fortuna, o sr. Lester desejara que, após sua morte o pó assentasse antes de que suas intenções se fizessem co­nhecidas.

William estudou os rostos concentrados ao seu redor, atentos a cada palavra do advogado. Arthur Cromwell levou aproximada­mente uma hora para concluir a leitura do testamento. Depois de recitar a habitual doação testamentária aos membros da famí­lia, às instituições de caridade e à Universidade de Harvard, Cromwell revelou que Charles Lester dividira a fortuna pessoal entre todos os parentes, considerando-os segundo os graus de parentesco. Susan, a filha, ficava com a posse da maior parte dos bens, enquanto os cinco sobrinhos e as três sobrinhas receberiam cada qual uma parte eqüitativa do restante. Todo o dinheiro e todos os valores em ações seriam administrados pelo banco até que os herdeiros completassem trinta anos de idade. Outros pri­mos, tias e parentes distantes foram contemplados com pagamen­tos em dinheiro.

William ficou surpreso quando o sr. Cromwell anunciou:

— E assim ficam dispostos todos os bens conhecidos do falecido Charles Lester.

As pessoas agitaram-se ruidosamente em seus assentos, e um rumor nervoso quebrou o silêncio.

— Não termina aqui, porém, a última vontade e o testa­mento do sr. Charles Lester — prosseguiu o imperturbável advo­gado.

Todos aquietaram-se, receando um raio tardio e indesejável. O sr. Cromwell continuou: — Lerei as palavras do sr. Charles Lester: “Fui sempre da opinião de que um banco, assim como a sua reputação, depende dos indivíduos que nele trabalham. Como é do conhecimento de todos, minha vontade era que meu filho Matthew me sucedesse na presidência do Lester, mas sua morte trágica e prematura interpôs-se em nosso caminho. Até este momen­to, nunca antes revelei o nome da pessoa que escolhi como meu su­cessor no banco. Desejo, portanto, tornar pública a minha vontade de que William Lowell Kane, filho de um dos meus amigos mais queridos, o falecido Richard Lowell Kane, e no momento vice-presidente do Kane & Cabot, seja nomeado presidente do Lester’s Bank and Trust Company na próxima reunião do conselho”.

Seguiu-se um tumulto. Todos voltaram-se para procurar na sala o misterioso sr. William Lowell Kane, de quem poucos, com a exceção dos membros mais próximos da família Lester, tinham ouvido falar.

— Ainda não terminei — disse calmamente Arthur Crom­well.

Mais uma vez fez-se silêncio, enquanto os membros da as­sistência, prevendo a explosão de uma outra surpresa, trocavam olhares receosos. O advogado retomou a palavra.

– Todas as outorgas e a divisão das ações do Lester’s Bank and Trust Company serão transmitidas na condição expressa de que os beneficiários votem no sr. Kane na próxima reunião anual do conselho e continuem a fazê-lo pelo menos durante os cinco anos seguintes, a não ser que o próprio sr. Kane declare não aceitar a presidência.

Sobreveio um novo tumulto. William desejou estar a quilô­metros de distância dali, sentindo-se delirantemente feliz e ao mesmo tempo percebendo que naquela sala era a pessoa mais de­testada.

– Isso conclui a última vontade e o testamento do falecido Charles Lester — disse o sr. Cromwell.

Mas foi ouvido somente pelos que se sentavam na primeira fila de cadeiras.

William ergueu os olhos. Susan Lester vinha na sua direção. Não era mais a menina gorduchinha, mas as sardas graciosas ha­viam permanecido. Ele sorriu para ela, que passou sem sequer tomar conhecimento de sua presença. William franziu o cenho.

Sem dar importância aos murmúrios, um homem encorpado e grisalho, usando terno de tecido riscado e uma gravata cinza-prata, aproximou-se rapidamente de William.

— É William Kane, não é, senhor?

— Sim, sou — respondeu William, irrequieto.

— Meu nome é Peter Parfitt — disse o desconhecido.

— O vice-presidente do banco — disse William.

— Correto, senhor — falou. — Não o conhecia pessoal­mente, apenas a sua reputação, e julgo-me um homem de sorte por ter me relacionado com seu distinto pai. O fato de Charles Lester tê-lo considerado o homem adequado para a presidência do banco é deveras auspicioso.

William nunca se sentira tão reconfortado em sua vida.

— Onde o senhor está hospedado aqui em Nova Iorque? — continuou Peter Parfitt, antes de que William lhe agradecesse.

— No Harvard Club.

– Esplêndido. Posso perguntar-lhe se dispõe de tempo para jantar comigo esta noite?

Eu havia planejado retornar a Boston esta noite — ex­plicou William —, mas creio que terei de ficar em Nova Iorque por mais alguns dias.

– Ótimo. Aguardo-o em casa, digamos, às oito horas em ponto.

O banqueiro entregou-lhe um cartão com o endereço escrito em letras cursivas e gravado em cobre.

— Terei prazer em conversar com o senhor num ambiente mais convidativo.

— Obrigado, senhor — disse William, guardando o cartão no bolso, enquanto outras pessoas começavam a cercá-lo. Algumas lançavam-lhe olhares francamente hostis; outras aguardavam o momento de cumprimentá-lo.

Quando, finalmente, William conseguiu retirar-se e voltar ao Harvard Club, telefonou para Kate e transmitiu-lhe as novas.

— Matthew ficaria feliz por você, querido — disse ela cal­mamente.

— Eu sei — disse William.

— Quando estará de volta?

— Só Deus sabe. Esta noite jantarei com o sr. Peter Parfitt, vice-presidente do banco de Lester. Ele foi bastante solícito co­migo, o que me torna a vida bem mais simples. Passarei a noite aqui no clube. Amanhã eu lhe telefono para dizer como estão indo as coisas.

— Está bem, querido.

— Tudo tranqüilo aí?

— Bem, nasceu o primeiro dente de Virgínia, e agora ela acha que merece atenção especial. Mandei Richard ir dormir mais cedo porque foi malcriado com a babá. E todos nós estamos com saudade de você.

— Ligo amanhã — disse William, rindo.

— Ligue, por favor. A propósito, meus parabéns. Concordo com a escolha de Charles Lester, mesmo detestando a idéia de morar em Nova Iorque.

Pela primeira vez, William tinha de pensar em mudar-se para Nova Iorque.

 

Às oito horas em ponto dessa noite, William chegou à casa de Peter Parfitt, na East 64th Street, e, tomado de surpresa, viu que o anfitrião vestira traje a rigor. Sentiu-se ligeiramente em­baraçado e desconfortável em seu terno escuro de banqueiro. Apressou-se em explicar à anfitriã que resolvera antecipar sua partida para Boston nessa noite. Diana Parfitt, que, soube depois, era a segunda esposa de Peter, não poderia ter sido mais encan­tadora para com seu hóspede, e, aparentemente, estava contente com o fato de William ter sido escolhido para ocupar a cadeira presidencial do banco de Lester. Durante o curso do excelente jantar, William não resistiu à tentação de perguntar a Peter Parfitt de que maneira, segundo a visão dele, o resto da diretoria reagiria aos desejos de Charles Lester.

– Todos estarão de acordo — disse Farritt. — Já tive a oportunidade de conversar com muitos deles. Na manhã de se­gunda-feira haverá uma reunião em que se confirmará sua escolha. Vejo apenas uma nuvem escura no horizonte.

– O quê? — perguntou William, não querendo parecer preocupado.

– Bem, entre mim e você ha um outro vice-presidente, Ted Leach, que, naturalmente, esperava ser nomeado presidente. Com efeito, indo um pouco mais longe, eu diria que ele chegara a antecipar essa nomeação. Todos nós sabíamos perfeitamente que isso jamais poderia ocorrer antes da leitura do testamento, mas Charles Lester parece ter chocado Ted com suas cláusulas.

— Ele quererá se opor a mim? — perguntou William.

— Receio que sim, mas não precisa se preocupar.

— Confesso — disse Diana Parfitt, examinando o suflê demasiado raso diante dela — que nunca simpatizei com esse homem.

— Minha querida — reprovou Parfitt —, não temos o di­reito de fazer comentários sobre Ted na ausência dele. Esperemos que o sr. Kane o julgue por si mesmo. Quanto a mim, não duvido de que o conselho confirmará a indicação do sr. Kane na reunião de segunda-feira, e creio mesmo ser possível que Ted Leach peça demissão.

— Não me faria bem saber que alguém se demitiu por minha causa — disse William.

— É um sentimento louvável, sr. Kane — observou Parfitt. - Mas não se aborreça com um mero golpe de vento. Confio em que a situação esteja sob absoluto controle. Amanhã o senhor voltará tranqüilamente para Boston e eu o manterei informado sobre o curso dos acontecimentos.

- Talvez fosse aconselhável que eu comparecesse ao banco pela manhã. Seus colegas não acharão um tanto estranho que eu não procure conhecê-los?

– Não, não. Dadas as circunstâncias, não acho nada aconselhável. De fato, o mais aconselhável é que o senhor não se ponha no caminho deles, pelo menos até segunda-feira, quando a reunião terá dado os seus frutos. Detestarão parecer menos independentes, e é provável que já se sintam como nobres ca­rimbos. Aceite meu conselho, Bill. Vá para Boston, e na segun­da-feira, antes do meio-dia, receberá notícias minhas.

Com relutância, William aceitou a sugestão de Peter Parfitt e continuou com eles uma agradável conversa sobre em que lugar ele e Kate deveriam ficar em Nova Iorque antes de encon­trar uma moradia permanente. Com certa surpresa, William no­tou que Peter Parfitt parecia não querer discutir seus próprios pontos de vista sobre atividades bancárias, o que, deduziu, talvez se devesse à presença de Diana Parfitt. A ótima noite terminou com um relativo excesso de doses de conhaque, e William só retornou ao Harvard Club por volta da uma hora da madrugada.

 

Tão logo chegou a Boston, William informou Tony Simmons dos fatos ocorridos em Nova Iorque, visto que não dese­java que ele viesse a saber da designação através de nenhuma outra pessoa. Tony revelou-se surpreendentemente otimista com respeito à notícia.

— Lamento que esteja nos deixando, William. O Lester pode ser duas ou três vezes mais importante que o Kane & Cabot, mas não teremos como substituí-lo, e espero que reflita com muito cuidado antes de aceitar a designação.

William ficou pasmo, e não conseguiu ocultar sua surpresa.

— Francamente, Tony, pensei que você se sentiria feliz de me ver pelas costas.

— William, quando você acreditará que, em primeiro lu­gar, meu interesse foi sempre o banco, e que em tempo algum duvidei que você seja um dos maiores consultores de investi­mentos dos Estados Unidos de hoje? Se sair do Kane & Cabot agora, muitos dos mais importantes clientes do banco evidente­mente quererão acompanhá-lo.

— Eu jamais transferiria meu próprio dinheiro para o banco de Lester — disse William —, e não acredito que os clientes do banco me acompanhariam se eu o fizesse.

— Naturalmente, você não pediria a eles que o fizessem, William, mas alguns deles insistirão que você continue a admi­nistrar suas carteiras. A exemplo de seu pai e de Charles Lester, eles acreditam, e corretamente, que o negócio bancário depende de pessoas e de reputação.

 

William e Kate passaram um fim de semana tenso, aguar­dando a segunda-feira, e com ela o resultado da reunião do con­selho em Nova Iorque. Durante toda a manhã da segunda-feira, William trabalhou com os nervos à flor da pele, atendendo ele mesmo a todos os telefonemas; mas a manhã foi se arrastando, até que a tarde chegou sem que ele tivesse recebido notícia al­guma. William não saiu da sala na hora do almoço, até que final­mente pouco depois das dezessete horas, Peter Parfitt telefonou-lhe.

– Bill, lamento, mas houve alguns imprevistos — come­çou ele.

O coração de William ameaçou parar.

— Não há nada com que deva se preocupar, visto que, acredito, a situação continua sob controle. Ocorre, porém, que o conselho reivindicou o direito de impugnar sua nomeação apre­sentando seu próprio candidato. Alguns dos membros levantaram aspectos legais, chegando ao ponto de dizer que a cláusula perti­nente do testamento não tem validade real. Incumbiram-me da desagradável tarefa de convidá-lo a competir com o candidato do conselho.

— Quem será o candidato do conselho? — perguntou Wil­liam .

— Nenhum nome foi mencionado até o momento, mas creio que será Ted Leach. Ninguém demonstrou interesse em concorrer com você.

— Preciso de um pouco de tempo para pensar — respondeu William. — Quando será a próxima reunião?

— Dentro de uma semana — disse Parfitt. Mas não se deixe perturbar por Ted Leach. Confio em que você o derrotará. Eu o informarei de quaisquer alterações no decorrer da semana.

— Peter, não acha melhor que eu vá a Nova Iorque?

— Não, não por ora. Ao meu ver, isso em nada ajudaria.

William agradeceu-lhe e desligou o telefone. Pegou a pasta de couro e deixou a sala, sentindo-se de certa forma deprimido. Tony Simmons, carregando uma valise, encontrou-o no estaciona­mento privativo.

— Tony, não sabia que estava saindo da cidade.

— Estou indo para o jantar mensal dos banqueiros em Nova Iorque. Amanhã à tarde estarei de volta. Não temo abandonar o Kane & Cabot por vinte e quatro horas, uma vez que ele estará nas mãos hábeis do futuro presidente do Lester.

William riu.

— Talvez eu já seja o ex-presidente — disse, e relatou os últimos acontecimentos. Mais uma vez, William surpreendeu-se com o comportamento de Tony Simmons.

— É verdade que Ted Leach sempre desejou tornar-se pre­sidente do banco de Lester — observou com ar meditativo. — Os círculos financeiros sempre souberam disso. Mas como ele sem­pre foi um funcionário leal, custa-me acreditar que se opusesse à vontade expressa de Charles Lester.

— Não sabia que você o conhecia — disse William.

— Oh, não o conheço bem — disse Tony. — Quando estudávamos em Yale, estava um ano na minha frente, e hoje nos vemos de vez em quando, no encontro dos banqueiros. Aliás, como presidente, você se verá obrigado a freqüentar esses mal­ditos jantares. Hoje à noite ele estará lá. Se quiser, posso con­versar com ele.

— Sim, por favor, mas com cautela, está bem?

— Meu caro William, você passou quase dez anos acusando-me de ser por demais cauteloso.

— Desculpe-me, Tony. É curioso como o julgamento de uma pessoa se ofusca quando ela se defronta com problemas pessoais, por mais seguro que esse mesmo julgamento possa ser ao se lidar com estranhos. Ponho minha vida nas suas mãos, e disponho-me a seguir seus conselhos.

— Muito bem, deixe por minha conta. Verei o que Leach pensa de tudo isso e ligarei para você amanhã, sem falta.

Poucos minutos depois da meia-noite, Tony telefonou de Nova Iorque, acordando William de um sono profundo.

— Acordei-o, William.

— Sim, quem está falando?

— Tony Simmons.

William acendeu a luz do abajur da cabeceira da cama e lançou um olhar para o despertador. Meia-noite e dez.

— Não ia me ligar pela manhã?

Tony riu.

— Receio que a notícia que vou lhe dar não seja muito agradável. O candidato à presidência do banco de Lester, seu oponente, portanto, chama-se Peter Parfitt.

— O quê? — disse William, despertando realmente.

— Ele vem tentando convencer o conselho a apoiá-lo con­tra você. Ted Leach, confirmando minhas suspeitas, concorda com a sua designação. Acontece que o conselho dividiu-se ao meio.

– Com os diabos! Em primeiro lugar, Tony, quero agra­decer a você. Em segundo, só uma pergunta: o que devo fazer?

– Se quer ser o próximo presidente do Lester’s Bank, corra já para cá, antes que os membros do conselho comecem a perguntar por que você anda escondido aí em Boston.

– Escondido?

– É o que Parfitt tem dito aos diretores nos últimos dias.

– Que filho da puta! Bastardo!

– A propósito, nada posso assegurar sobre a ascendência legítima de Parfitt.

William deu uma risada.

– Venha já e hospede-se no Yale Club. — Discutiremos a questão amanhã cedo.

— Chegarei o mais depressa possível — disse William.

— Talvez eu esteja dormindo quando você chegar. Será a sua vez de me acordar.

William pôs o fone no gancho e voltou-se para Kate, que felizmente ignorava seus novos problemas. Continuara adorme­cida durante toda a conversa. Como ele gostaria de conseguir o mesmo! Bastava a agitação de uma cortina soprada pelo vento para acordá-lo. Provavelmente dormiria bem após aquela segunda batalha. Rabiscou algumas linhas de explicação a Kate e colocou o bilhete no criado-mudo ao seu lado. Vestiu-se, fez a mala — dessa vez não esqueceu o traje a rigor — e partiu para Nova Iorque.

As estradas estavam vazias, e, no seu novo Daimler, a via­gem demorou apenas cinco horas. Entrou na cidade de Nova Iorque juntamente com os varredores, carteiros, jornaleiros e o sol da manhã. Registrou seu nome no Yale Club quando o re­lógio do saguão dava uma badalada. Eram seis horas e quinze minutos. Desfez a mala e resolveu descansar durante uma hora, antes de acordar Tony. E ele mesmo foi acordado por uma batida insistente na porta. Ainda sonado, levantou-se, abriu a porta e deparou com Tony Simmons.

— Belo roupão, William — disse Tony, com os dentes à mostra.

Já estava vestido socialmente.

— Devo ter adormecido. Se puder esperar um minuto, saio com você — disse William.

— Não, não, tenho que pegar o trem para Boston. Tome um banho de chuveiro e vista-se. Conversaremos enquanto isso.

William entrou no banheiro e deixou a porta aberta.

— Bem, seu grande problema... — começou Tony.

William enfiou a cabeça pela porta do boxe.

— O barulho da água não me deixa ouvi-lo.

Tony esperou que ele desligasse o chuveiro.

— Seu grande problema é Peter Parfitt. Tinha certeza de que seria o próximo presidente e que o nome dele constaria do testamento de Charles Lester. Ele anda manobrando os diretores contra você, e há muito vem fazendo política de gabinete. Ted Leach pode lhe dar maiores detalhes. Ele gostaria de almoçar com você hoje no Metropolitan Club. Levará dois ou três mem­bros do conselho, nos quais você poderá confiar inteiramente. O conselho, a propósito, continua dividido exatamente ao meio.

William cortou-se com a lâmina de barbear.

— Droga! Em que clube?

— No Metropolitan, na esquina da Fifth Avenue com a East 60th Street.

— Por que lá e não em outro lugar de Wall Street?

— William, quando lidamos com os Peter Parfitts da vida, não passamos telegramas explicando nossas intenções. Conserve o bom senso e tente calmamente encontrar uma saída para a si­tuação. Considerando o que Leach me contou, acredito que você será o vencedor.

William retornou ao quarto com uma toalha na cintura.

— Tentarei — disse. — Com toda a calma.

Tony sorriu.

— Bem, preciso voltar a Boston. O trem sairá da Grand Central dentro de dez minutos. — Consultou o relógio de pulso. — Droga! Seis minutos!

Tony deteve-se à porta do quarto.

— Sabe, seu pai jamais confiou em Peter Parfitt. Cortês demais, costumava ele dizer. Nada mais do que isso: um tanto cortês demais. — Pegou a valise. — William, boa sorte.

— Tony, como posso agradecer-lhe?

— Não pode. Encare isso como uma tentativa minha de expiar a maneira deplorável com que tratei Matthew.

William ficou olhando a porta fechar-se, enquanto punha o peitilho e em seguida ajustava a gravata. Era curioso que, de­pois de ter trabalhado tantos anos com Tony Simmons, só agora, durante esses poucos dias de crise pessoal, viesse a conhecê-lo. Começava a gostar desse homem, começava a confiar nele. Um homem que, em verdade, nunca chegara a notar.

Desceu para o restaurante e fez um desjejum típico do clube: ovo cozido frio, fatia de torrada, manteiga e geléia de laranja inglesa, que pegou da mesa de algum outro hóspede. O boy trouxe-lhe um exemplar do Wall Street Journal, que, numa pá­gina interna, insinuava que nem tudo corria bem na nomeação de William Kane para presidente do Lester’s Bank. Pelo menos o Journal não estava a par de nenhuma informação de bastidores.

William retornou ao quarto e solicitou à telefonista que li­gasse para um certo número de Boston. Esperou alguns minutos para ser atendido.

— Desculpe-me, sr. Kane. Não sabia que o senhor estava aguardando na linha. Aceite meus cumprimentos pela sua desig­nação para a presidência do Lester’s Bank. Isso significa que no futuro nossos escritórios irão recebê-lo com maior freqüência.

— Isso não dependerá de mim, sr. Cohen.

— Creio que não entendi — replicou o advogado.

William explicou-lhe o curso dos acontecimentos nos últi­mos dias e leu a cláusula principal do testamento de Charles Lester.

Thomas Cohen gastou algum tempo anotando cada palavra, e em seguida leu cuidadosamente as anotações.

— Acha que a vontade dele resistiria a um processo judicial? — perguntou William.

— Quem sabe? Lembro-me de um antecedente numa situa­ção semelhante. No século XIX, um membro do Parlamento certa vez ligou seu eleitorado através de um testamento; ninguém se opôs a isso, e o beneficiário tornou-se primeiro-ministro. Mas isso foi há mais de um século — e na Inglaterra. Agora, neste caso, se o conselho resolveu contestar o testamento do sr. Lester, e você levar a decisão dele ao tribunal, eu não saberia prever para que lado oscilaria o julgamento do juiz. Lorde Melbourne não teve de contender com um juiz de sucessões do condado de Nova Iorque. Contudo, eis um interessante enigma legal, sr. Kane.

— O que aconselha? — indagou William.

– Sou judeu, sr. Kane. Vim para este país de navio, saído da Alemanha, no início do século, e sempre precisei lutar muito pelo que quis. Realmente deseja ser presidente do Lester?

— Sim, sr. Cohen, desejo.

– Então ouça um velho que, com o correr dos anos, passou a respeitá-lo muito, e, se me permite dizê-lo, com alguma afeição. Direi exatamente o que eu faria se me defrontasse com uma si­tuação tão desagradável.

Uma hora depois, William desligou o telefone, e, dispondo ainda de algum tempo, resolveu dar um passeio pela Park Avenue. Passou por um terreno em que se construía um edifício enorme. Uma placa grande e bem-feita anunciava: O próximo Baron Hotel será construído aqui. Quando você se hospedar no Baron, nunca mais vai querer ficar em outro hotel. William sorriu pela primeira vez nessa manhã, e, a passos mais vagarosos, encaminhou-se para o Metropolitan Club.

Ted Leach, um homem baixote e janota, de cabelo castanho-escuro e bigode um pouco mais claro, esperava-o no saguão. Conduziu William até o bar. William contemplou admirado a decoração em estilo renascentista do clube, construído por Otto Kuhn e Standford White em 1891. J. P. Morgan fundara o clube quando um de seus melhores amigos perdera a votação na Union League.

— Um gesto bem extravagante, até mesmo para um amigo íntimo — opinou Ted Leach, procurando iniciar uma conversa. — O que quer beber, sr. Kane?

— Xerez, por favor — disse William.

Um garçom, com impecável uniforme azul, voltou minutos depois trazendo o xerez e um scotch com água. O sr. Leach não precisara fazer o seu pedido.

— À saúde do próximo presidente do Lester’s Bank — disse Ted Leach, erguendo seu copo.

William hesitou.

— Não beba, sr. Kane. Como sabe, nunca se deve beber à própria saúde.

William sorriu, sem saber como responder.

Pouco depois, dois homens de meia-idade aproximaram-se deles, ambos de estatura elevada e muito seguros em seus ternos cinza, colarinhos engomados e gravatas escuras. Se estivessem andando pela Wall Street, William não os notaria. Mas ali, no interior do Metropolitan Club, ele os observou detidamente.

— O sr. Alfred Rodgers e o sr. Winthrop Davies — disse Ted Leach, apresentando-os.

William sorriu com reserva, duvidando ainda de que esses homens estivessem do seu lado. Os dois recém-chegados também o estudavam. Por um momento, houve um silêncio constrangedor.

— Por onde começamos? — disse Rodgers, deixando cair o monóculo enquanto falava.

– Diretamente pelo almoço — disse Ted Leach.

Os três homens evidentemente sabiam que caminho tomar. William os acompanhou. O restaurante do segundo andar era amplo, o teto, igualmente alto e soberbo. O maître guiou-os à mesa diante da janela que dava para o Central Park. Ali ninguém os ouviria.

– Façamos os pedidos e depois conversaremos — sugeriu Ted Leach.

Através da janela, William vislumbrou o Plaza Hotel. Re­cordou o dia em que, com as avós e Matthew, comemorara a sua graduação — mas havia algo mais, relacionado ao chá no Plaza, de que não conseguia lembrar-se.

— Sr. Kane, coloquemos as cartas na mesa — começou Ted Leach. — A decisão de Charles Lester de apontá-lo como presi­dente do banco foi recebida com surpresa, para falar sem rodeios. Entretanto, se o conselho não quiser acatar a vontade dele, por certo o banco mergulhará num caos, e nenhum de nós deseja que isso aconteça. Lester era um homem sagaz, e terá tido suas razões para apontá-lo como o próximo presidente, o que, diga-se, do meu ponto de vista, é uma excelente escolha.

William ouvira uma frase semelhante antes — dita por Peter Parfitt.

— Nós três — Winthrop Davies interveio — devemos mui­to a Charles Lester, e cumpriremos a vontade dele, ainda que isso nos custe a posição de membros do conselho.

— E talvez isso ocorra de fato — completou Ted Leach —, caso Peter Parfitt assuma a presidência.

— Desculpem-me, senhores — disse William —, nunca pre­tendi causar tanto embaraço. Se minha designação os surpreendeu, asseguro-lhes que eu a recebi como um raio em céu azul. Imaginei que receberia apenas uma lembrança pessoal de Matthew, nunca, porém, a responsabilidade de dirigir toda uma instituição finan­ceira.

— Compreendemos a situação em que foi colocado, sr. Kane —- comentou Ted Leach —, e deve depositar sua confiança em nós quando dizemos que estamos aqui para ajudá-lo. Temos plena consciência de que encontra dificuldade em acreditar em nossa palavra, mormente após o modo com que Peter Parfitt o tratou e as táticas que ele vem empregando às suas costas com o pro­pósito de arrebatar-lhe o cargo.

– Preciso acreditar nos senhores, sr. Leach, porque não vejo outra alternativa senão colocar-me em suas mãos e seguir seus conselhos, no que diz respeito ao modo como devo encarar a presente situação.

— Obrigado — disse Leach. — A situação é bastante sim­ples. A campanha de Peter Parfitt é bem organizada, e ele sabe que está agindo a partir de uma posição forte. Nós, por conse­guinte, sr. Kane, se quisermos ter alguma oportunidade de vencê-lo, temos de nos abrir um com o outro. Estou supondo, eviden­temente, que o senhor esteja disposto a levar esta luta em frente.

—- Se não estivesse, sr. Leach, não teria aceito o seu con­vite. Agora que o senhor expôs a situação de uma forma sucinta, talvez me permita sugerir uma maneira de derrotarmos o sr. Parfitt.

— Naturalmente — disse Ted Leach.

Os três homens concentraram a atenção na exposição de William.

— Tem razão quando diz que Parfitt se sente numa posição forte, porque sempre esteve à frente no ataque, sempre anteci­pando os acontecimentos. Pois bem, sugiro ter chegado o mo­mento de invertermos essa tendência e conduzirmos o ataque onde e quando ele menos espera — no interior do próprio ga­binete.

— De que modo o faremos, sr. Kane? — inquiriu Win­throp Davies com ar de assombro.

— Eu direi, desde que, primeiro, os senhores me permitam perguntar algumas coisas. Quantos diretores responsáveis em tempo integral existem com direito a voto no conselho?

— Dezesseis — respondeu Ted Leach no mesmo instante.

— E a quem estão apoiando neste exato momento?

— Esta é uma pergunta difícil de responder, sr. Kane — interveio Winthrop Davies. Ele tirou um envelope amarrotado do bolso interno do paletó e, antes de prosseguir, examinou sua face interna. — Com segurança, poderemos contar com seis votos. Peter Parfitt conta com cinco. Hoje pela manhã, fiquei surpreso ao saber que Rupert Cork-Smith, que fora o amigo mais próximo de Charles Lester, recusa-se a apoiá-lo, sr. Kane. É de fato estranho, porque sei que não simpatiza com Parfitt. Essa adesão empata a votação.

— Com isso — ajuntou Ted Leach —, teremos tempo até quinta-feira para descobrir como os outros quatro membros do conselho reagirão à sua nomeação.

– Por que quinta-feira? — indagou William.

– Porque nesse dia haverá uma reunião geral — respondeu Leach, alisando o bigode, o que, William observara, ele sempre fazia ao começar a falar. — O mais importante: o tópico princi­pal da agenda será a eleição do novo presidente.

– Soube que a próxima reunião não ocorreria antes de segunda-feira — disse William, perplexo.

– Soube por quem? — perguntou Davies.

— Peter Parfitt — respondeu William.

— As táticas de Parfitt — comentou Ted Leach — nem sempre são as de um cavalheiro.

— Descobri muitas coisas sobre esse cavalheiro — disse William, enfatizando as palavras com ironia. — O suficiente para ter certeza de que será impossível evitar um confronto.

— É mais fácil falar do que fazer, sr. Kane. Neste preciso momento, ele está na direção — disse Winthrop Davies —, e não vejo como tirá-lo de lá.

— Ligando o semáforo vermelho — respondeu William. — Quem do conselho está autorizado a convocar uma reunião?

— Enquanto o conselho estiver sem presidente, os dois vice-pre-sidentes — informou Ted Leach. — O que equivale a dizer, Peter Parfitt ou eu mesmo.

— Quantos membros são necessários para que haja quorum?

— Nove — informou Davies.

— Se o senhor é um dos dois vice-presidentes, sr. Leach, quem é seu assessor?

— Eu — disse Alfred Rodgers, que até então falara pouco, revelando uma virtude que William sempre julgara indispensável num assessor.

— Sr. Rodgers, qual é o prazo de notificação de uma reunião urgente?

— Os diretores devem ser informados pelo menos vinte e quatro horas antes da reunião, embora isso só tenha acontecido durante a quebra da Bolsa, em 1929. Charles Lester fazia suas comunicações com três dias de antecedência.

— Mas as normas do banco permitem a comunicação de uma reunião urgente com apenas vinte e quatro horas de antecedência? — indagou William.

– Permitem, sr. Kane — confirmou Alfred Rodgers, o monóculo ajustado com firmeza na direção de William.

– Excelente. Convoquemos a nossa reunião de conselho.

Os três banqueiros arregalaram os olhos para William, como se o tivessem ouvido mal.

— Pensem bem, senhores — continuou William. — O sr. Leach, na qualidade de vice-presidente, convoca a reunião, e o sr. Rodgers, como seu assessor, comunica-a a todos os diretores.

— Para que dia quer essa reunião? — perguntou Ted Leach.

— Para amanhã à tarde. — William consultou o relógio de pulso. — Três horas.

— Deus do céu! — exclamou Alfred Rodgers. — Estamos em cima do prazo. Não sei se...

— Em cima do prazo de Parfitt, não é o que quer dizer? — disse William.

— Tem razão — comentou Ted Leach —, se é que você sabe exatamente o que pretende com essa reunião.

— Deixe comigo a reunião. Apenas me garanta que ela será devidamente convocada e que todos os diretores serão correta­mente informados.

— Estou curioso por saber como Peter Parfitt reagirá — disse Ted Leach.

— Não se preocupe com Parfitt — disse William. — Nesse tempo todo, este foi o erro. Invertamos a situação e façamos com que ele se preocupe conosco. Desde que ele seja o último diretor a receber a comunicação, vinte e quatro horas antes, nada teremos a temer. Não lhe daremos tempo suficiente para planejar um con­tra-ataque. E, senhores, não se assustem com o que eu disser ou fizer amanhã. Confiem na minha decisão e estejam lá para me dar seu apoio.

— Não acha que deveríamos saber exatamente em que está pensando?

— Não, sr. Leach, os senhores devem comparecer à reunião como diretores imparciais que cumprirão nada mais do que o seu dever.

Ted Leach e seus dois colegas começaram a compreender por que Charles Lester havia escolhido William Kane para ocupar a cadeira da presidência. Saíram do Metropolitan Club bem mais seguros do que quando entraram, apesar de ignorarem inteira­mente o rumo da reunião do conselho que estavam na iminência de convocar. William, por outro lado, tendo realizado a primeira parte das instruções de Thomas Cohen, não via o momento de pôr em andamento a segunda parte.

Passou grande parte da tarde e da noite fechado no quarto do Yale Club, refletindo meticulosamente sobre as táticas que empresaria na reunião do dia seguinte. Interrompeu-se unicamen­te para telefonar para Kate.

– Querido, onde está agora? — disse ela. — Esgueirando-se na calada da noite para onde nem sequer imagino?

– Aquecido nos braços de minha amante de Nova Iorque – brincou William.

— Pobre mulher! Provavelmente não sabe com quem se envolveu. Que conselho ela lhe dá sobre o caso do diabólico sr. Parfitt?

— Não tive tempo de perguntar-lhe. Sabe como é, nós nos ocupamos com outras coisas. Mas já que estamos conversando, qual é o seu conselho?

— Não tome medidas que Charles Lester ou seu pai jamais tomariam se estivessem na mesma situação — disse, de súbito falando em tom sério.

— Possivelmente eles estão jogando golfe na oitava nuvem e fazendo apostas enquanto nos observam o tempo todo.

— Faça o que fizer, William, se se lembrar de que está sendo observado por eles, não chegará a cometer um erro grave demais.

 

Quando a manhã raiou, William já se achava acordado, pois dormira a intervalos breves e agitados. Pouco antes das seis, le­vantou-se, tomou um banho de chuveiro frio, deu uma longa caminhada pelo Central Park, esperando acalmar-se, e retornou ao Yale Club, onde fez uma refeição ligeira. Havia um recado no saguão — de sua esposa. Ao ler pela segunda vez a mensagem, não pôde conter o riso: Se não estiver muito ocupado, poderia comprar uma luva de beisebol para Richard? Pegou em seguida o Wall Street Journal; ainda publicava matéria sobre a turbulên­cia da sucessão da presidência do Lester’s Bank. Dessa vez trazia a versão de Peter Parfitt, que sugeria que sua nomeação muito provavelmente seria confirmada na reunião que se realizaria na quinta-feira. William perguntava-se que versão seria publicada na edição do dia seguinte. Oh, não podia esquecer de dar uma olhadela na edição do Journal de amanhã. Dedicou a manhã toda a reexaminar os artigos de incorporação e os estatutos do banco. Preferiu não almoçar, mas encontrou tempo para passar pela Schwalts e comprar a luva, de beisebol para Richard.

Às catorze e trinta, tomou um táxi, que o levou ao banco, na Wall Street, onde chegou alguns minutos antes das quinze horas. O porteiro perguntou-lhe se havia marcado alguma entre­vista.

— Sou William Kane.

— Sim, senhor. Naturalmente irá à sala de reuniões.

“Deus do céu”, exclamou William para si mesmo. “Não consigo me lembrar onde fica a sala.”

O porteiro notou seu embaraço.

— Pegue o corredor à esquerda. É a segunda porta à direita.

— Obrigado — disse William, procurando caminhar com passos firmes ao longo do corredor. Até esse momento, julgara tola a expressão “friozinho na barriga”. As batidas de seu cora­ção soavam mais altas que o tique-taque do relógio do saguão; não se espantaria de ouvir a si próprio batendo as três horas.

Ted Leach postara-se à entrada da sala de reuniões.

— Vai haver complicação — disse ele.

— Ótimo — respondeu William. — Charles Lester a teria apreciado. Ele enfrentaria a complicação de cabeça erguida.

William entrou na portentosa sala revestida de painéis de carvalho e nem precisou contar as cabeças para certificar-se de que todos os diretores haviam comparecido. Essa reunião não era do tipo a que um diretor se permitiria faltar. As conversas cessaram assim que William entrou, e todos se voltaram para olhá-lo. Sem perder tempo, William sentou-se na cadeira do pre­sidente, à cabeceira da longa mesa de mogno. Peter Parfitt mal teve tempo de atinar com o que estava acontecendo.

— Sentem-se, senhores, por favor — disse William, esfor­çando-se para que a voz soasse firme.

Ted Leach e alguns diretores sentaram-se incontinenti; ou­tros mostraram-se relutantes. Os murmúrios começaram.

William percebeu que dois diretores, que não conhecia, esta­vam prestes a erguer-se e interpelá-lo.

— Antes que algum dos senhores diga alguma coisa, se me permitem, gostaria de fazer uma declaração de abertura. Depois disso, os senhores decidirão como continuar. Creio que é o míni­mo que podemos fazer para que a vontade de Charles Lester seja cumprida.

Os dois homens sentaram-se.

— Obrigado, senhores. Dando início à reunião, eu gostaria de esclarecer a todos aqui presentes que não desejo de modo algum tornar-me presidente deste banco... — fez uma pausa com o intuito de impressioná-los — a menos que isso seja vonta­de da maioria dos diretores.

Todos os olhos agora se concentravam sobre William.

– Senhores, atualmente sou vice-presidente do Kane & Cabot e detentor de cinqüenta por cento das ações dessa institui­ção. O Kane & Cabot foi fundado por meu avô, e, acredito, pode ser comparado vantajosamente ao Lester’s Bank em termos de re­putação, embora não em importância. Se eu precisasse deixar Boston e transferir-me para Nova Iorque com o propósito de me tornar presidente do Lester, de acordo com os desejos de Charles Lester, confesso, essa mudança não seria fácil, nem para mim nem para a minha família. Entretanto, como Charles Lester de­sejou que eu fizesse exatamente isso — e ele não era o tipo de homem capaz de propostas levianas —, sinto-me inclinado, se­nhores, a respeitar seriamente os desejos dele. Gostaria ainda de acrescentar que seu filho, Matthew Lester, foi meu melhor ami­go durante quinze anos, e considero trágico que eu, e não ele, esteja hoje se dirigindo aos senhores como presidente nomeado.

Alguns diretores assentiram com a cabeça.

— Senhores, se hoje tiver a felicidade de conquistar seu apoio, sacrificarei tudo o que tenho em Boston para colocar-me a seu serviço. Espero ser desnecessário fornecer-lhes um relato detalhado de minha experiência nas atividades bancárias. Suponho que qualquer um dos diretores aqui presentes que tenha lido o testamento de Charles Lester certamente refletiu sobre a razão pela qual fui escolhido para sucedê-lo. Meu próprio presidente, Anthony Simmons, que muitos dos senhores conhecem, pediu-me que permanecesse no Kane & Cabot. Ontem mesmo eu teria in­formado o sr. Parfitt de minha decisão final, caso ele tivesse se dado ao trabalho de me telefonar e procurar ele mesmo tal infor­mação. Senti-me honrado em jantar com o sr. e sra. Parfitt em sua casa na noite da última sexta-feira, e, naquela ocasião, o sr. Parfitt assegurou-me não estar interessado na presidência deste banco. Meu único rival, na opinião dele, era o sr. Edward Leach, outro vice-presidente. A partir daquele momento, consultei o sr. Leach, e por ele soube que contaria com seu apoio. Presumi, por conseguinte, que ambos os vice-presidentes me apoiavam. Depois de ler o Wall Street Journal desta manhã, embora desde os oito anos de idade nunca tenha dado crédito às suas previsões — os diretores riram —, achei que deveria comparecer à reunião de hoje para me assegurar de que não havia perdido o apoio dos dois vice-presidentes e de que a notícia do Journal era imprecisa. O sr. Leach convocou esta reunião, e, nesta conjuntura, sinto-me obrigado a perguntar a ele se ainda me apóia na sucessão de Char­les Lester como o próximo presidente do banco.

William olhou na direção de Ted Leach, que mantivera a cabeça inclinada. Era palpável a espera do veredicto. Se ele bai­xasse o polegar, isso significaria que os parfittianos devorariam os cristãos.

Ted Leach ergueu a cabeça devagar.

— Apoio o sr. Kane sem nenhuma reserva.

William encarou Peter Parfitt pela primeira vez. O homem suava abundantemente, e, ao falar, não afastou o olhar do bloco de anotações amarelo que tinha diante de si.

— Bem, alguns membros do conselho — começou — opina­ram que eu devia descer à arena...

— Então mudou de idéia com respeito ao seu apoio à minha nomeação e à vontade de Charles Lester? — interrompeu-o Wil­liam, imprimindo à voz um leve tom de surpresa.

Peter Parfitt ergueu um pouco a cabeça.

— Sr. Kane, o problema não é assim tão simples como pensa.

— Sim ou não, sr. Parfitt?

— Sim, devo opor-me ao senhor — disse Parfitt, repentina e vigorosamente.

— Mesmo depois de dizer-me, na última sexta-feira, não ter interesse na presidência?

— Eu gostaria de ter a oportunidade de definir minha po­sição — disse Parfitt —, antes que o senhor exagere nas suas suposições. A sala de reuniões ainda não é sua, sr. Kane.

— Certamente, sr. Parfitt.

Até esse ponto, a reunião tomara o curso planejado por William. Seu discurso fora cuidadosamente elaborado e pronun­ciado. Peter Parfitt arcava com a desvantagem de ter perdido a iniciativa, sem falar que em público fora chamado de mentiroso. Levantou-se.

— Senhores — começou, como se procurasse as palavras. — Bem...

Os olhares tinham se fixado em Parfitt. William aproveitou a oportunidade para relaxar e estudar as expressões dos demais diretores.

— Vários membros do conselho vieram até mim, em par­ticular, depois do jantar com o sr. Kane, e entendi que não era mais que meu dever levar em consideração suas vontades e ofe­recer minha candidatura à eleição. Nunca, em nenhum momento, pensei em me opor à vontade de Charles Lester, a quem sempre admirei e respeitei. Naturalmente, eu teria informado o sr. Kane das minhas intenções, antes da reunião marcada para amanhã, mas confesso que os acontecimentos de hoje me tomaram de surpresa.

Fez uma pausa, respirou fundo e retomou a palavra.

– Servi a este banco durante vinte e dois anos, seis dos quais como vice-presidente. Creio, portanto, ter direito a concor­rer a essa cadeira. Eu me sentiria feliz se o sr. Kane integrasse o conselho, mas agora sinto-me incapaz de apoiá-lo na sua indi­cação como presidente. Espero que meus colegas da diretoria apóiem um homem que tem trabalhado em benefício deste banco por mais de vinte anos, mas, jamais, que elejam um homem es­tranho e desconhecido, por causa do capricho de um homem per­turbado no mais íntimo de si pela morte de seu único filho. Obri­gado, senhores.

E sentou-se.

Dadas as circunstâncias, William ficou de certo modo impres­sionado pelo discurso, mas Parfitt não se beneficiara do conselho do sr. Cohen, para quem, numa concorrência cerrada, era funda­mental a força da última palavra. William levantou-se de novo.

— Senhores, o sr. Parfitt afirmou que sou pessoalmente desconhecido dos senhores. Por conseguinte, não quero que fi­quem com nenhuma dúvida a respeito do tipo de homem que sou. Eu sou, como já disse, neto e filho de banqueiros. Durante toda a minha vida fui banqueiro, e seria desonesto de minha parte dizer que não me daria satisfação poder prestar meus serviços ao Lester’s Bank na qualidade de presidente. Se, por outro lado, depois de tudo o que ouviram hoje nesta sala, os senhores resol­verem apoiar o sr. Parfitt para a presidência, que assim seja. Voltarei a Boston e servirei com muita alegria ao meu banco. Ademais, anunciarei publicamente que não desejo ser presidente do Lester’s Bank, e isso os protegerá contra quaisquer alegações de que os senhores foram negligentes quanto ao cumprimento das disposições do testamento de Charles Lester. Não existem, porém, condições que me permitam ser útil ao conselho sob a presidência do sr. Parfitt. Nesse ponto pretendo ser absoluta­mente franco. Venho à presença dos senhores com a grave des­vantagem de ser, nas palavras do sr. Parfitt, “um homem estranho e desconhecido”. Tenho, por outro lado, a vantagem de ter recebido o apoio de um homem que não pode estar presente. Um homem que todos respeitaram e admiraram, um homem que nunca foi conhecido por ser dado a caprichos e por tomar deci­sões apressadas. Proponho, pois, a este conselho que não perca mais nenhum minuto de seu tempo valioso e passe à votação para a escolha do próximo presidente. Se algum dos senhores tem al­guma dúvida a respeito da minha capacidade de dirigir este ban­co, então, nesse caso, só posso sugerir que vote no sr. Parfitt. Eu próprio não votarei nesta eleição, senhores, e presumo que o sr. Parfitt fará o mesmo.

— Você não pode votar — disse Peter Parfitt, nitidamente irritado. — Ainda não é membro deste conselho. Eu sou, e vo­tarei.

— Assim seja, sr. Parfitt. Ninguém poderá dizer que não lhe foi dada a oportunidade de ganhar todos os votos possíveis.

William aguardou que suas palavras surtissem efeito, e, quan­do um diretor que lhe era desconhecido deu sinais de que iria interrompê-lo, continuou a falar.

— Pedirei ao sr. Rodgers, como oficial, que se encarregue dos procedimentos eleitorais. Quando os senhores tiverem termi­nado de votar, por gentileza, entreguem as cédulas a ele.

O monóculo de Alfred Rodgers saltara periodicamente de seu rosto durante toda a reunião. Com as mãos trêmulas, ele distribuiu as cédulas aos diretores. Cada eleitor escreveu o nome de seu candidato, e as cédulas voltaram às suas mãos.

— Considerando-se a situação, sr. Rodgers, talvez seja pru­dente contar os votos em voz alta. Desse modo, evitaremos erros inadvertidos e não precisaremos proceder a uma segunda votação.

— Certamente, sr. Kane.

— Está de acordo, sr. Parfitt?

Sem erguer o olhar, Peter Parfitt acenou afirmativamente.

— Obrigado. Sr. Rodgers, tenha a bondade de ler os votos em voz alta.

O assessor abriu a primeira cédula.

— Parfitt. Abriu a segunda.

— Parfitt — repetiu.

A jogada não podia mais ser controlada por William. Todos os anos em que ambicionara aquele prêmio, que há muito tempo prometera a Charles Lester conquistar, estavam ameaçados de ter um fim em questão de segundos.

– Kane. Parfitt. Kane.

Três votos contra dois; estava perdendo. Teria a mesma sorte que tivera na competição com Tony Simmons?

— Kane. Kane. Parfitt.

Quatro a quatro. Do outro lado da mesa, Parfitt transpirava. E ele próprio, William, não se sentia exatamente tranqüilo.

— Parfitt.

A fisionomia de William não revelava expressão alguma. Parfitt permitiu-se um sorriso. Cinco votos contra quatro.

— Kane. Kane. Kane.

O sorriso esvaneceu-se.

Dois mais, só dois mais, pedia William, quase em voz alta.

— Parfitt. Parfitt.

O oficial demorou longo tempo abrindo uma cédula que alguém dobrara e redobrara diversas vezes.

— Kane.

Oito votos contra sete, a favor de William.

O último pedaço de papel começara a ser aberto. William sondou os lábios de Alfred Rodgers. Os olhos do oficial ergue­ram-se. Nesse instante, ele era o homem mais importante da sala.

— Kane.

A cabeça de Parfitt naufragou nas profundezas de suas mãos.

— Senhores, o resultado da contagem deu nove votos para o sr. William Kane, e sete votos para o sr. Peter Parfitt. Portanto, declaro o sr. William Kane eleito presidente do Lester’s Bank.

Um silêncio reverente desabou sobre a sala, e todas as ca­beças, exceto a de Peter Parfitt, voltaram-se para William. Todos os diretores aguardaram o primeiro gesto do novo presidente.

William expirou profundamente e pôs-se de pé mais uma vez, agora para olhar de frente a diretoria.

— Obrigado, senhores, pela confiança que depositaram em mim. Era a vontade de Charles Lester que eu fosse o próximo presidente, e fico contente de que a tenham confirmado através de seus votos. É minha intenção servir a este banco com o máxi­mo da minha capacidade, o que, de fato, não conseguirei sem a ajuda sincera do conselho. Se o sr. Parfitt puder fazer a gentileza de...

Peter Parfitt, esperançoso, ergueu o olhar.

— ...acompanhar-me ao gabinete do presidente por alguns minutos, ser-lhe-ia imensamente grato. Depois de conversar com o sr. Parfitt, gostaria de ver o sr. Leach. Confio em que amanhã eu possa ter uma entrevista individual com todos os senhores. A próxima reunião do conselho será a mensal. Esta sessão está suspensa.

Os diretores levantaram-se e iniciaram uma conversação. Wil­liam apressou-se em direção ao corredor, evitando o olhar de Peter Parfitt. Ted Leach alcançou-o e conduziu-o ao gabinete da presidência.

— Arriscou-se demasiado — disse Ted Leach. — Por pouco não venceu. O que faria se tivesse perdido a votação?

— Voltaria a Boston — disse William, aparentemente nada perturbado.

Ted Leach abriu para William a porta da sala da presidência, que continuava quase exatamente como na sua recordação; talvez fosse um pouco mais ampla, quando, ainda estudante da escola preparatória, dissera a Charles Lester que um dia dirigiria aquele banco. Contemplou o retrato do grande homem que pendia da parede, atrás da mesa, e piscou para o falecido presidente. Em seguida, sentou-se na enorme cadeira forrada de couro vermelho e apoiou o cotovelo sobre o tampo da mesa de mogno. Tirou um pequeno livro de capa de couro do bolso da jaqueta e colocou-o sobre a mesa à sua frente. Nesse instante, uma batida na porta. Um homem idoso entrou, apoiando-se pesadamente numa bengala preta de cabo prateado. Ted Leach deixou-os sozinhos.

— Meu nome é Rupert Cork-Smith — disse, com um leve sotaque inglês.

William levantou-se e cumprimentou-o. Era o mais antigo membro do conselho. O cabelo branco, as suíças longas e um relógio de ouro maciço remetiam-no a uma época passada, mas sua reputação de homem íntegro tornara-se lendária nos círculos bancários. Nenhum homem via necessidade de assinar um contrato com Rupert Cork-Smith: sua palavra sempre fora uma garantia. Fitou William nos olhos.

— Votei contra o senhor, e, naturalmente, esperará ver mi­nha carta de demissão sobre sua mesa dentro de uma hora.

— Não quer sentar-se, senhor? — disse William, cortesmente.

— Obrigado — respondeu.

— O senhor deve ter conhecido meu pai e meu avô.

– Tive esse privilégio. Seu avô e eu estudamos juntos em Harvard, e ainda me lembro com tristeza da morte trágica de seu pai.

– E Charles Lester? — perguntou William.

– Foi grande amigo meu. As cláusulas do testamento me remoeram a consciência. Não fiz segredo algum de que minha escolha não cairia sobre Peter Parfitt. Preferiria Ted Leach como presidente, mas, como nunca me abstive de nada na minha vida, concluí que deveria apoiar o candidato oponente, visto que jamais poderia votar num homem desconhecido por mim.

– Admiro sua honestidade, sr. Cork-Smith, mas agora sou responsável por este banco. Preciso do senhor neste momento bem mais do que o senhor precisa de mim. Por isso, como mais jovem, peço-lhe que não se demita.

O velho ergueu a cabeça e fixou o olhar nos olhos de William.

— Não sei se adiantaria, meu jovem. Não sei mudar minhas posições da noite para o dia — disse Cork-Smith, ambas as mãos descansando sobre a bengala.

— Dê-me seis meses, senhor, e se até lá continuar pensando da mesma maneira, não o dissuadirei de sua intenção.

Permaneceram em silêncio alguns segundos, e, a seguir, Cork-Smith tornou a falar.

— Charles Lester estava certo: o senhor é o filho de Richard Kane.

— Continuará a servir a este banco, senhor?

— Sim, meu jovem. Não há ninguém mais tolo que um velho tolo, sabia?

Rupert Cork-Smith levantou-se vagarosamente com o apoio da bengala. William procurou ajudá-lo, mas o homem recusou a ajuda com um gesto de mão.

— Boa sorte, meu rapaz. Conte com o meu total apoio.

Quando lhe abriu a porta, William avistou Peter Parfitt, que aguardava no corredor. Depois que Rupert Cork-Smith se afastou, os dois homens continuaram em silêncio. Peter Parfitt entrou tempestuosamente.

— Bem, lutei e perdi. Um homem não pode ir além disso. – E riu. — Nenhuma mágoa, Bill? — Estendeu a mão.

— Nada de mágoa, sr. Parfitt. Como o senhor disse acertadamente, lutou e perdeu, e agora pedirá a demissão de seu cargo neste banco.

— Pedirei o quê? — disse Parfitt.

— A sua demissão — tornou William.

— Isso é uma tremenda punição, não Bill? Minha atitude não era assim tão pessoal. Eu simplesmente senti que...

— Não o quero no meu banco, sr. Parfitt. Está desligado a partir desta noite, para nunca mais pôr os pés aqui.

— E se eu disser que não? Tenho muito dinheiro em ações, tenho ainda quem me apóie no conselho. Você sabe disso. E mais: posso levá-lo à justiça.

— Nesse caso, recomendo-lhe ler os estatutos do banco, sr. Parfitt, que estudei durante toda a manhã.

William pegou o pequeno livro de capa de couro que estava sobre a mesa e virou algumas folhas. Localizou o parágrafo que havia assinalado de manhã e leu:

— “O presidente se reserva o direito de dispensar qualquer acionista em quem tenha perdido a confiança.” — Ergueu os olhos. — Perdi a confiança no senhor, e, portanto, o senhor se demite, recebendo dois anos de indenização. Se, por outro lado, o senhor forçar-me a dispensá-lo, providenciarei para que saia do banco levando tão-somente suas ações. O senhor é quem sabe.

— Não me dará uma oportunidade?

— Dei-a na noite da última sexta-feira. E o senhor mentiu e trapaceou. Não quero burla no cargo de vice-presidente. Ou o senhor se demite, ou eu o ponho no olho da rua.

— Vá para o inferno, Kane. Demito-me.

— Ótimo. Sente-se e escreva a carta já.

— Não. Eu a entregarei amanhã cedo, quando estiver mais tranqüilo. — E rumou para a porta.

— Agora! Ou eu o despedirei! — insistiu William.

Peter Parfitt titubeou e em seguida voltou, afundando-se pesadamente na cadeira ao lado da mesa. William deu-lhe uma folha do próprio banco e uma pena para escrever. Parfitt tirou do bolso uma caneta e começou a escrever. Quando terminou, William pegou a carta e leu-a atentamente.

— Bom-dia, sr. Parfitt.

Peter Parfitt deixou a sala sem dizer mais nenhuma palavra.

Momentos depois, Ted Leach entrou.

— Queria me ver, senhor presidente?

— Sim. Quero designá-lo vice-presidente geral do banco. O sr. Parfitt achou que seria melhor para ele demitir-se.

— Oh, isso me surpreende, eu pensei que...

William entregou-lhe a carta. Ted Leach leu-a e então lançou um olhar para William.

– Honra-me ser o vice-presidente geral. Obrigado por con­fiar em mim.

– Muito bem. Ficaria agradecido se pudesse tomar as me­didas necessárias para que, durante os dois próximos dias, eu possa entrevistar todos os diretores. Começarei a trabalhar ama­nhã a partir das oito horas em ponto.

— Sim, sr. Kane.

– Por gentileza, entregue a carta de demissão do sr. Parfitt ao assessor.

— Como queira, senhor presidente.

— Meu nome é William. Um outro erro cometido pelo sr. Parfitt.

Ted Leach ensaiou um sorriso tímido.

— Eu o verei amanhã cedo... — hesitou — William.

Ele saiu e William sentou-se na cadeira de Charles Lester e, repentinamente, tomado por uma inusitada explosão de alegria, fez a cadeira girar até sentir-se estonteado. Em seguida, olhando pela janela, contemplou a Wall Street, que se estendia lá embai­xo, exultando com a multidão azafamada, deleitando-se com a visão dos outros grandes bancos das casas de câmbio dos Estados Unidos. Agora ele fazia parte de tudo aquilo.

— Por favor, quem é o senhor? — A voz feminina ecoou na sala.

William girou a cadeira e deparou com uma mulher de meia-idade, vestida com discrição, e com expressão muito sisuda.

— Faço-lhe a mesma pergunta — retrucou William.

— Sou a secretária do presidente — e ela empertigou-se.

— E eu — disse William — sou o presidente.

 

Nas semanas que se seguiram, William fez a mudança da família para Nova Iorque, onde encontraram uma casa situada na East 68th Street inteiramente satisfatória para Kate, e com um pequeno jardim. Demoraram bem mais do que o previsto para adaptar-se à nova vida. Nos primeiros três meses, visto que pro­curava desligar-se de Boston para levar a bom termo o trabalho em Nova Iorque, William desejara que os dias tivessem quarenta e oito horas, e não tardou em descobrir o quanto lhe era difícil cortar o cordão umbilical. Tony Simmons mostrou-se muito prestativo, e William começou a compreender por que Alan Lloyd o apoiara para a presidência do Kane & Cabot, disposto a admitir que de fato Alan estivera com a razão.

Em pouco tempo a vida de Kate encheu-se de ocupações. Vir­gínia já engatinhava por toda a sala, e bastava que Kate lhe desse as costas para que ela entrasse no escritório de William; Richard queria um casaquinho de lã grossa novo, igual ao de todos os me­ninos de Nova Iorque. Na posição de esposa do presidente de um banco nova-iorquino, Kate regularmente oferecia coquetéis e jantares, retirando-se habilmente no momento preciso, para que determinados diretores e importantes clientes tivessem a oportuni­dade de consultar William e ouvir-lhe os conselhos. Kate lidava com todas as situações de forma encantadora, e William sentia-se eternamente agradecido ao departamento de liquidações do Kane & Cabot por ter lhe dado seus maiores bens. Quando ela o infor­mou de que seria mãe pela terceira vez, tudo o que ele fez foi perguntar: “Mas como encontrei tempo para isso?” Virgínia vi­brou com a notícia, embora não compreendesse perfeitamente por que a mamãe estava ficando tão gorda. Richard, por sua vez, re­cusou-se a falar sobre o assunto.

Depois de meio ano, o embate com Peter Parfitt já era uma coisa do passado, e William tornara-se o inconteste presidente do Lester e uma personalidade reconhecida dentro dos círculos financeiros de Nova Iorque. Poucos meses depois, William pen­sava em qual seria sua nova meta. Realizara a ambição de sua vida ascendendo à presidência do banco aos trinta e três anos de idade, embora, ao contrário de Alexandre, sentisse que ainda exis­tiam mais mundos a serem conquistados, e não contava com tem­po e disposição para se sentar e lamentar.

Kate deu à luz o terceiro filho ao final do primeiro ano da presidência de William, uma segunda menina, a quem deram o nome de Lucy. William ensinou Virgínia, que agora estava an­dando, a balançar o berço de Lucy; enquanto isso, Richard, com quase cinco anos e prestes a entrar no jardim de infância da Buckley School, aproveitou o advento como uma oportunidade de pedir ao pai um novo bastão de beisebol.

No primeiro ano de William como presidente, os lucros subi­ram ligeiramente, e, para o segundo ano, faziam-se previsões de um crescimento considerável.

 

No dia 1.° de setembro de 1939 as tropas de Hitler inva­diram a Polônia.

Umas das primeiras reações de William foi pensar em Abel Rosnovski e no seu novo Baron da Park Avenue, prestes a se transformar no hotel mais fino de Nova Iorque. Os relatórios tri­mestrais de Thomas Cohen mostravam que Rosnovski fora se fortalecendo passo a passo, embora suas últimas idéias de expan­são na Europa devessem ser adiadas. Cohen ainda não encontrara indícios de uma associação direta entre Henry Osborne e Abel Rosnovski, mas confessara que se tornava cada vez mais difícil a comprovação de todos os dados de que precisava.

William jamais imaginara que os Estados Unidos iriam se envolver na guerra européia; manteve em funcionamento a filial do Lester em Londres, com o intuito de mostrar claramente de que lado se achava. Em nenhum instante pensou em vender os doze mil acres de terras de Hampshire e Lincolnshire. Tony Sim­mons, em Boston, por outro lado, informara William de que pensava em fechar a filial londrina do Kane & Cabot. William valeu-se dos problemas criados em Londres pela guerra como des­culpa para visitar sua querida Boston e entrevistar-se com Tony.

Os dois presidentes relacionavam-se em termos amigáveis, visto que não mais tinham motivos para se verem como rivais. Com efeito, tinham se engajado numa rotina em que um usava o outro como trampolim para novas idéias. Como Tony havia previsto, o Kane & Cabot perdeu alguns dos clientes mais ilustres quando William assumiu a presidência do Lester. Mas William sempre cuidou de comunicar a Tony a decisão de cada cliente que resolvesse transferir sua conta para o Lester, e jamais chegou a solicitar a transferência de nenhuma delas. Acomodaram-se à mesa do canto do Locke-Ober, na hora do almoço, e Tony Sim­mons procurou ser breve ao reiterar sua intenção de fechar a filial de Londres do Kane & Cabot.

— A razão principal é simples — disse Tony, bebendo um gole de borgonha, aparentemente sem pensar na possibilidade de os tacões alemães esmagarem as uvas das vinhas da França. — Se não procurarmos diminuir as despesas retirando-nos de Londres, o banco perderá dinheiro.

— Naturalmente perderá algum dinheiro — disse William —, mas precisamos dar apoio à Inglaterra.

— Por quê? — perguntou Tony. — Somos uma instituição bancária, não uma sociedade de patronos.

— E a Inglaterra não é uma equipe de beisebol, Tony; é uma nação a cujo povo devemos toda a nossa herança...

— Você deveria entrar para a política — comentou Tony. — Começo a acreditar que está esbanjando talento na atividade bancária. Creio, porém, existir uma razão mais forte para fechar­mos a filial. Se Hitler invadir a Inglaterra, assim como o fez com a Polônia e a França — e estou certo de que é o que pretende fazer —, o banco será tomado e perderemos tudo que lucramos em Londres.

— Só passando sobre o meu cadáver — disse William. — Se Hitler puser um pé no solo inglês, os Estados Unidos entrarão na guerra no mesmo dia.

— Nunca — disse Tony. — Franklin Delano Roosevelt dis­se: “Toda ajuda, sem guerra”. E os defensores dos Estados Unidos se unirão num clamor de protesto.

— Jamais dê ouvidos a um político — disse William. — Principalmente a Roosevelt. Quando ele diz “nunca”, isso significa apenas “não hoje”, ou, pelo menos, “não esta manhã”. Lembre-se do que Wilson nos disse em 1916.

Tony riu.

— Quando se candidatará ao Senado, William?

— A esta pergunta posso responder com segurança: nunca.

— Respeito seus sentimentos, William, mas quero fechar a filial.

— O presidente é você — replicou William. — Se o con­selho o apoiar, estará apto a fechar a filial amanhã mesmo, e eu jamais usaria minha posição contra uma decisão majoritária.

— Até o dia em que você fizer dos dois bancos um só, e então a decisão será sua.

— Tony, disse-lhe certa vez que não o faria enquanto você fosse o presidente. Uma promessa que pretendo honrar.

— Mas acho que deveríamos fundi-los.

— O quê? — perguntou William, entornando o borgonha na toalha da mesa, não conseguindo acreditar no que acabara de ouvir. — Por Deus, Tony, uma coisa eu lhe digo: você é um sujeito imprevisível.

— Acima de tudo, penso sempre nos interesses do banco, William. Reflita um pouco sobre a situação atual. Nova Iorque é agora, mais do que nunca, o centro das finanças dos Estados Unidos. Quando a Inglaterra for esmagada por Hitler, Nova Iorque se converterá no centro das finanças do mundo. E é aí que o Kane & Cabot precisará estar. Ademais, com a fusão, esta­remos criando uma instituição mais abrangente, porque nossas atividades são complementares. O Kane & Cabot sempre se de­dicou ao financiamento das indústrias naval e pesada, enquanto o Lester’s Bank pouco fez nessa área. Inversamente, vocês têm se dedicado a seguros, e nós raramente o fazemos. Sem mencionar o fato de que, em várias cidades, mantemos desnecessariamente duas agências.

– Tony, concordo com tudo o que disse, mas ainda assim quero continuar na Inglaterra.

– Exatamente para provar meu ponto de vista, William. A filial londrina do Kane & Cabot seria fechada, mas conservaríamos a do Lester’s Bank. Posteriormente, se Londres passasse por maus momentos, não nos afetaria tanto, porque estaríamos consolidados e fortalecidos.

— Mas a que conclusão chegaria se eu lhe dissesse que, enquanto as restrições aos bancos mercantis feitas por Roosevelt só nos permitirem obter resultados num único Estado, uma fusão só seria bem-sucedida se toda a operação fosse orientada a partir de um centro em Nova Iorque, convertendo Boston numa mera agência da empresa detentora?

— Eu o apoiaria — disse Tony, e ajuntou: — Inclusive poderia pensar em operações comerciais e abandonar o investi­mento direto.

— Não, Tony. Franklin Delano Roosevelt impede que um homem honesto atue nas duas frentes, e, em todo o caso, papai sempre acreditou ser possível servir um grupo pequeno de ricos ou um grupo grande de pobres, e dessa forma o Lester continuará nas tradicionais operações mercantis, ao menos enquanto eu for o presidente. Se resolvêssemos pôr em prática tal fusão, porém, não prevê problemas gigantescos?

— E poucos deles não conseguiríamos superar, desde que ambas as partes tenham boa vontade. Mas terá de refletir sobre as implicações, William, visto que, sem dúvida alguma, você perderia o controle total do novo banco como acionista minoritá­rio, o que o tornaria vulnerável a uma oferta de encampação.

— Pois eu correria esse risco, desde que fosse o presidente de uma das maiores instituições financeiras dos Estados Unidos.

 

Nessa noite, William retornou eufórico a Nova Iorque e con­vocou uma reunião dos diretores do Lester, para expor a proposta de Tony Simmons. Ao verificar que, em princípio, o conselho aprovava a fusão, tratou de instruir cada gerente do banco no sentido de refletir detidamente sobre o plano.

Os chefes de departamento demoraram três meses para apresentar um relatório ao conselho, e todos chegaram à mesma conclusão: havia consenso para a fusão, visto que os dois bancos, sob vários aspectos, se complementavam. Com agências espalhadas, por todos os Estados Unidos e filiais na Europa, ambos tinham muito a oferecer um ao outro. Além do mais, o presidente do Lester continuaria detendo cinqüenta e um por cento do Kane & Cabot, transformando a fusão simplesmente numa casamento de interesse. Alguns dos diretores do conselho do Lester’s Bank não compreenderam por que William não havia tido antes tal idéia. Ted Leach era da opinião de que Charles Lester pensava justamente nisso quando nomeara William seu sucessor.

Os detalhes da absorção foram negociados durante quase um ano inteiro, e advogados trabalharam intensamente até as primeiras horas da madrugada a fim de completar a documen­tação necessária. Depois da fusão, William continuou sendo o maior acionista, com oito por cento da nova companhia, e foi no­meado presidente do novo banco. Tony Simmons continuou em Boston, como vice-presidente, e Ted Leach, em Nova Iorque, como outro vice-presidente. O novo banco mercantil foi rebatizado de Lester, Kane & Company, mas ainda era chamado de Lester.

William resolveu dar uma entrevista à imprensa de Nova Iorque para anunciar ao mundo financeiro a próspera fusão dos dois bancos, e escolheu uma segunda-feira, 8 de dezembro de 1941. A entrevista à imprensa foi cancelada, porque na manhã anterior à sua realização os japoneses haviam atacado Pearl Harbor.

Os boletins informativos haviam sido enviados aos jornais alguns dias antes, mas na manhã de quinta-feira as páginas de economia, compreensivelmente, destinaram um espaço insignifi­cante ao anúncio da fusão. A falta de destaque já não era a preo­cupação principal na mente de William.

Não tinha idéia de como ou quando contaria a Kate que pretendia alistar-se. Quando Kate soube de sua decisão, horrori­zou-se e esforçou-se prontamente por fazê-lo voltar atrás.

— O que imagina poder fazer que milhões de outros não possam? — inquiriu.

— Não estou muito certo quanto a isso — respondeu Wil­liam. — Tudo o que sei é que devo fazer o que papai ou vovô teriam feito diante das mesmas circunstâncias.

– Sem sombra de dúvida, eles teriam feito o melhor no interesse do banco.

– Não – replicou William vivamente. — teriam feito o melhor no interesse da América.

 

                                                                             1941-1952

 

Abel leu a notícia sobre o Lester, Kane & Company, publi­cada na seção de economia do Chicago Tribune. Como um grande espaço fora dedicado às conseqüências do ataque japonês a Pearl Harbor, a curta notícia lhe teria passado despercebida se não hou­vesse junto uma foto pequena e antiga de William Kane, tão an­tiga, de fato, que ele se parecia com o Kane que Abel visitara em Boston havia mais de dez anos. Evidentemente, um Kane jovem demais, que não correspondia ao brilhante presidente do recém-formado Lester, Kane & Company, segundo a descrição do jornal. A nota prosseguia, em tom profético: O novo banco, uma fusão do Lester de Nova Iorque com o Kane & Cabot de Boston, poderá tornar-se uma das mais importantes instituições financei­ras dos Estados Unidos em virtude da união dos dois bancos de famílias ilustres, por decisão de William Kane. Até onde o Tribune pôde apurar, as ações estão em poder de cerca de vinte pessoas relacionadas ou estreitamente ligadas às duas famílias.

Abel sentiu grande prazer ao ler a última informação, por compreender que o controle absoluto escapara às mãos de Kane. Releu a notícia. Desde a época em que se haviam digladiado, sem dúvida Kane ascendera em posição, mas também ele o fizera, e, contudo, faltava-lhe acertar uma velha dívida com o recém-nomeado presidente do Lester. Tão apreciável fora o crescimento do Grupo Baron ao longo de uma década que Abel conseguira liquidar os empréstimos, cumprir à risca o acordo inicial firmado com o financiador e assegurar a detenção dos cem por cento da empresa no prazo de dez anos, conforme fora estipulado.

No último trimestre de 1939, Abel conseguiu saldar o em­préstimo, obtendo em 1940 lucros acima do limite de meio mi­lhão de dólares. Tal marco coincidira com a abertura de dois novos hotéis Baron, em Washington e San Francisco. Durante esse período, embora tenha sido um marido pouco dedicado, dificil­mente se poderia ter tornado pai mais afetuoso. Zaphia, que desejava com ardor um segundo filho, após muito insistir con­venceu-o a consultar um médico. Ao tomar conhecimento de que quase com certeza não teria outro filho, devido a uma produção insuficiente de espermatozóides, provavelmente causada por en­fermidades ou pela desnutrição à época da dominação alemã e russa, Abel perdeu as esperanças e cuidou de proporcionar tudo a Florentyna.

A fama de Abel espalhava-se agora pelos Estados Unidos, e a imprensa passara a referir-se a ele como o “Barão de Chica­go”. Ele não ligava mais importância às chacotas que lhe faziam pelas costas. Wladek Koskiewicz havia chegado, e, o que era mais importante, chegara para ficar. Em 1941, seus treze hotéis apre­sentaram um lucro apenas um pouco abaixo de um milhão, e, com o recente aumento de capital, ele resolveu dar prossegui­mento a seus planos de expansão.

Mas então os japoneses atacaram Pearl Harbor.

Abel enviava somas consideráveis de dinheiro à Cruz Ver­melha inglesa, para auxiliar seus compatriotas, desde o terrível dia de setembro de 1939, quando os nazistas invadiram a Polônia, para enfrentar os russos mais tarde em Brest-Litovsk e, mais uma vez, dividir entre si a sua terra natal. Travara uma batalha dentro do Partido Democrata e na imprensa, com o objetivo de levar os Estados Unidos, ainda relutantes, a entrar na guerra, mesmo que fosse preciso lutar ao lado dos russos. Até ali seus esforços ha­viam resultado inúteis, mas, num domingo de dezembro, quando as estações de rádio relatavam em altos brados todos os detalhes da guerra a uma nação perplexa, Abel teve a certeza de que, a partir daquele instante, os Estados Unidos estavam envolvidos no conflito. Em 11 de dezembro, o presidente Roosevelt disse à nação que a Alemanha e a Itália haviam declarado guerra aos Estados Unidos. A intenção de Abel era alistar-se, mas, antes disso havia uma declaração de guerra que ele próprio queria fazer, e, com tal propósito, fez uma ligação para Curtis Fenton, do Continental Trust Bank. Com o decorrer do tempo, Abel passara a confiar na capacidade de julgamento de Fenton, e, após assu­mir o comando total do Grupo Baron, conservara-o no conselho a fim de preservar um estreito vínculo entre o grupo e o Conti­nental Trust.

Curtis Fenton, com a formalidade costumeira e a cortesia de sempre, atendeu ao telefone.

— Qual é o saldo da conta de reserva do grupo? — per­guntou Abel.

Curtis Fenton pegou a pasta assinalada com uma Conta n.º 6, lembrando-se da época em que todos os negócios do sr. Rosnovs­ki podiam constar de uma só pasta. Examinou algumas cifras.

— Um pouco menos de dois milhões de dólares — disse.

– Ótimo — disse Abel. — Quero que o senhor faça algumas pesquisas sobre o recém-formado Lester, Kane & Company. Des­cubra os nomes de todos os acionistas, que porcentagem detêm, e se existem possibilidades de venderem suas ações. Tudo deverá ser feito sem o conhecimento do presidente do banco, o sr. Wil­liam Kane, e sem que o meu nome seja mencionado.

Curtis Fenton suspendeu a respiração e não disse nada. Fe­lizmente Abel Rosnovski não lhe podia ver o rosto surpreso. “Por que razão ele deseja aplicar dinheiro em algo relacionado com William Kane?” Fenton havia lido no Wall Street Journal a res­peito da incorporação dos dois bancos renomados. Em parte por causa de Pearl Harbor, em parte por causa da dor de cabeça da mulher, também ele quase não notara a notícia. A solicitação de Rosnovski lhe fez lembrar que tinha de enviar um telegrama de congratulações a William Kane. Fez uma anotação a lápis ao pé da pasta do Grupo Baron, enquanto ouvia as instruções de Abel.

— Quando tiver informações completas, me telefone, não me escreva.

— Pois não, sr. Rosnovski.

“Alguém deve estar a par do que aconteceu entre esses dois”, Curtis Fenton disse para si mesmo, “mas eu o ignoro completa­mente.”

Abel prosseguiu:

— Inclua também em seu relatório trimestral, e com deta­lhes, todas as declarações oficiais feitas pelo Lester, e quais as companhias com que está envolvido.

— Sem dúvida, sr. Rosnovski.

— Obrigado, sr. Fenton. A propósito, minha equipe de pes­quisa de mercado aconselhou-me abrir um novo Baron em Mon­treal.

— A guerra não o preocupa, sr. Rosnovski?

— Oh, não de modo algum. Se os alemães alcançarem Mon­treal, fecharemos as portas, inclusive as do Continental Trust. Em todo caso, vencemos esses calhordas da última vez e os ven­ceremos de novo. A única diferença é que, desta vez, poderei tomar parte na guerra. Bom dia, sr. Fenton.

“Jamais entenderei o que se passa na cabeça de Abel Ros­novski”, refletiu Curtis Fenton, desligando o telefone. Seus pen­samentos transferiram-se para a outra solicitação de Abel: os detalhes sobre as ações do Lester. Tal pedido o preocupava ainda mais. Embora não houvesse mais nenhuma relação entre William Kane e Abel Rosnovski, receava pelos resultados dessa decisão, caso seu cliente adquirisse uma quantidade considerável de ações do Lester. Conformou-se, no entanto, em não manifestar suas opiniões a Rosnovski, imaginando que chegaria o dia em que um deles pudesse explicar o fim que ambos perseguiam.

Abel, por sua vez, perguntava-se se não deveria contar a Curtis Fenton a razão pela qual desejava comprar ações do Lester. Concluíra, porém, que, quanto menos pessoas tomassem conhe­cimento de seus planos, melhor.

Afastou temporariamente William Kane do pensamento e pediu à secretária que localizasse George, agora vice-presidente do Grupo Baron. George crescera juntamente com Abel e acaba­ra por se transformar no seu lugar-tenente de maior confiança. Sentado em seu escritório do quadragésimo segundo andar do Baron de Chicago, Abel baixou o olhar para o lago Michigan, fixando-o sobre a Costa de Ouro, como ficara conhecida, mas com os pensamentos voltados para a Polônia. Perguntava-se se viveria o suficiente para rever o castelo, agora dentro das fron­teiras russas, sob o domínio de Stálin. Estava ciente de que ja­mais se fixaria na Polônia, mas ainda esperava que o castelo lhe fosse restituído. A simples idéia de que os alemães ou os russos ocupariam de novo o seu lar esplêndido fê-lo desejar...

A chegada de George interrompeu-lhe os pensamentos.

— Queria falar comigo, Abel?

George era o único membro do grupo que ainda chamava pelo nome o Barão de Chicago.

— Queria, George. Se eu precisar me ausentar por alguns meses, acha que pode ir tocando os hotéis?

— Sem dúvida — disse George. — Finalmente vai tirar as férias que pretende?

— Não. Vou lutar na guerra.

— O quê?! O que foi que disse?!

— Amanhã cedo vou a Nova Iorque alistar-me no Exército.

— Mas você enlouqueceu! Poderá morrer!

— Bem, não é nisso que estou pensando — replicou Abel. — Pensei apenas em matar alguns alemães. Esses canalhas não me pegaram da primeira vez, e não vou deixar que me peguem agora.

George argumentou que os Estados Unidos podiam vencer a guerra sem a colaboração de Abel. Zaphia também se opôs; odiava a própria idéia da guerra. A pequena Florentyna, que aca­bara de fazer oito anos, explodiu num choro. Não sabia exata­mente o que significava a guerra, mas compreendia que o pai fica­ria longe por muito, muito tempo.

A despeito das objeções, no dia seguinte Abel entrou num avião pela primeira vez e voou para Nova Iorque. Os Estados Unidos inteiros pareciam tomar direções opostas, a cidade repleta de jovens vestidos de uniforme cáqui e despedindo-se de pais, namoradas e esposas, todos assegurando um ao outro que a guer­ra terminaria dentro de poucas semanas, mas ninguém acreditando nisso.

Abel chegou ao Baron de Nova Iorque a tempo de jantar. O restaurante estava cheio de jovens, garotas que se agarravam desesperadamente a soldados, marinheiros e pilotos, enquanto Frank Sinatra cantava ao ritmo da orquestra de Tommy Dorsey. Observando-os dançar na pista, Abel pensava em quantos deles teriam de novo a oportunidade de divertir-se numa noite como essa. Inevitavelmente, lembrou-se de Sammy explicando-lhe de que modo tornara-se maître no restaurante do Plaza. Três homens que ocupavam postos superiores retornaram do front aleijados. Nenhum daqueles jovens poderia imaginar o que de fato era uma guerra. Abel não participou da festa — se é que se podia cha­má-la assim. Em vez disso, recolheu-se ao quarto.

De manhã, pôs um terno preto e rumou para o posto de recrutamento da Times Square. Escolhera Nova Iorque para alis­tar-se porque receava ser reconhecido por alguém em Chicago e mandado para uma poltrona de executivo. O posto estava mais cheio do que a pista de dança na noite anterior, mas ali ninguém se agarrava a ninguém. Abel esperou a manhã inteira, até final­mente preencher um formulário que, no seu próprio escritório, não lhe teria tomado mais de três minutos. Não pôde deixar de reparar que os outros recrutas pareciam bem mais preparados que ele. Permaneceu em fila por mais duas horas, e por fim veio o momento de ser entrevistado por um sargento, que lhe perguntou em que trabalhava.

— Gerente de hotel — respondeu, e desandou a contar ao oficial suas experiências da Primeira Guerra Mundial. Sem dizer nada, o sargento fitou o homem de um metro e sessenta e sete e oitenta e seis quilos com uma expressão de incredulidade. Se Abel lhe tivesse dito que era o Barão de Chicago, o oficial não teria duvidado de suas histórias sobre encarceramento e fugas, mas ele preferiu guardar tais informações e receber o tratamento dado a qualquer cidadão comum.

— Volte amanhã cedo para exame médico — foi tudo o que o sargento disse depois que Abel terminou o monólogo, e ajuntou, como se o comentário fizesse parte do seu dever: — Obrigado por se apresentar como voluntário.

Na manhã seguinte, Abel ficou horas na fila até submeter-se a um exame completo. O médico foi desagradavelmente sincero quanto à sua condição física. Sua posição e seu sucesso, ao longe daqueles anos, tinham-no protegido contra tal tipo de comentário. Ao saber da classificação em que o médico o enquadrara, em 4F, foi como se, de repente, despertasse.

— Está com excesso de peso, seus olhos são um pouco ruins, seu coração está fraco e você manca. Francamente, Ros­novski, está sem condições. Não podemos mandar ao campo de batalha soldados que, muito provavelmente, terão um ataque car­díaco antes mesmo de enfrentar o primeiro inimigo. O que não quer dizer que não possamos utilizar os seus serviços; se estiver interessado, nessa guerra há uma série de trabalhos burocráticos que precisam ser feitos.

Abel sentiu vontade de esmurrá-lo, mas sabia que isso não o ajudaria a vestir um uniforme.

— Não, obrigado... senhor. Quero lutar contra os alemães, não enviar-lhes cartas.

Voltou sem ânimo para o hotel, mas não se deu por vencido. Resolveu fazer nova tentativa no dia seguinte. Foi a outro posto de recrutamento, mas retornou ao Baron com o mesmo desânimo. Reconheceu que o segundo médico fora bem mais educado, em­bora igualmente firme quanto às suas condições físicas, enquadrando-o de novo na classificação 4F. Sem dúvida nenhuma, não iriam aceitá-lo para lutar contra quem quer que fosse naquele estado de saúde.

Na manhã seguinte, procurou uma academia de ginástica na West 57th Street e contratou um instrutor particular que lhe ajei­tasse o físico. Durante três meses, todos os dias exercitou-se para perder peso e pôr-se em forma. Boxeou, lutou, correu, saltou, pulou corda, levantou peso e fez regime. Quando chegou aos ses­senta e seis quilos, o instrutor garantiu-lhe que dificilmente ga­nharia melhor forma ou ficaria mais magro. Abel voltou ao pri­meiro posto de recrutamento e preencheu o formulário sob o nome de Wladek Koskiewicz. O novo sargento deu-lhe esperança, e o oficial médico, após submetê-lo a uma série de exames, admitiu-o como reservista, dizendo-lhe que aguardasse a convocação.

– Mas quero lutar na guerra agora mesmo — protestou Abel. –Quero lutar contra aqueles bastardos.

– Nós o avisaremos, sr. Koskiewicz — disse o sargento. — Mantenha a forma e fique preparado, por favor. Não sabemos quando precisaremos do senhor.

Abel saiu, furioso por ver que os americanos, mais jovens e magros, eram prontamente aceitos. Ao passar pela porta, absorto em sua próxima jogada, chocou-se contra um homem encorpado e desengonçado, os ombros ornados com algumas estrelas.

– Desculpe, senhor — falou, levantando os olhos e re­cuando, temeroso.

— Jovem... — disse o general.

Abel continuou a afastar-se, não achando que o oficial o cha­mava, uma vez que ninguém o chamava de jovem havia... nem queria saber há quanto tempo, apesar de ter apenas trinta e cinco anos.

— Jovem — o general insistiu, erguendo um pouco mais a voz.

Abel virou-se para trás.

— Eu, senhor?

— Sim, você.

Abel caminhou até o general.

— Por favor, venha ao meu escritório, sr. Rosnovski.

“Diabo”, refletiu Abel, “esse homem sabe quem eu sou, e agora ninguém vai me deixar lutar nesta guerra.”

O escritório improvisado do oficial ficava nos fundos do edifício, uma saleta com uma mesa, duas cadeiras de madeira, a pintura em verde da parede descascando e uma porta escancarada. Abel jamais permi­tiria que um funcionário do Baron trabalhasse num ambiente desse tipo.

— Sr. Rosnovski — o general começou, transpirando ener­gia —, meu nome é Mark Clark, e sou comandante do 5.° Exér­cito. Acabo de chegar de Governors Island, onde passei o dia fazendo uma inspeção, de modo que topar com o senhor, literal­mente, foi uma surpresa agradável. Há muito tempo que o admi­ro. Sua história alegra o coração de todos os americanos. Agora, diga-me, o que está fazendo neste posto de recrutamento?

– O que é que o senhor acha? — disse Abel, sem pensar. Desculpe, senhor — emendou em seguida. — Não quis ser grosseiro. Acontece que ninguém me deixa entrar nessa droga de guerra.

— E o que quer fazer nessa droga de guerra?

— Alistar-me e lutar contra os alemães.

— Como soldado de infantaria? — perguntou, incrédulo, o general.

— Isso mesmo. Não vai precisar de um grande contingente?

— Naturalmente, mas posso utilizar suas qualidades de uma maneira mais proveitosa.

— Farei qualquer coisa — disse Abel —, qualquer coisa.

— Fará mesmo? — E seu eu pedir que coloque à minha disposição o seu hotel de Nova Iorque, para servir de centro de operações do Exército? Hein? Porque, sinceramente, sr. Ros­novski, isso me seria de mais utilidade do que se o senhor con­seguisse matar uma dúzia de alemães.

— O Baron é seu — disse. — Então, vai me deixar ir para a guerra?

— Sabe que o senhor é louco, sr. Rosnovski? — disse o general Clark.

— Sou polonês — disse Abel.

Os dois riram.

— Com­preendo — continuou em tom mais grave.

— Nasci perto de Slonim. Vi os alemães se apossarem de minha casa, os russos vio­lentarem minha irmã. Depois fugi de um campo de prisioneiros russo e tive muita sorte de chegar aos Estados Unidos. Não sou louco. Esta é a única nação do mundo onde a gente pode chegar sem nada e virar milionário dando duro no trabalho, independen­temente do passado. Agora esses canalhas estão fazendo outra guerra. Não sou louco, não, general. Sou um ser humano.

— Bem, se está tão ansioso assim para colaborar, sr. Ros­novski, posso usá-lo, mas não do jeito que imagina. O general Denvers precisa de alguém que assuma as responsabilidades do quartel-general do 5.° Exército enquanto estiver combatendo nas linhas de frente. Se acredita que Napoleão tinha razão quando afirmou que o exército marcha conforme o próprio estômago, o senhor poderá desempenhar um papel vital. O serviço exige o posto de major. Esta é a única maneira, sem nenhuma dúvida, de o senhor ajudar os Estados Unidos a ganhar a guerra. O que me diz?

— Aceito, general.

— Obrigado, sr. Rosnovski.

O general apertou uma campainha surda instalada na mesa, e um tenente bastante jovem entrou, fazendo a continência.

— Tenente, leve o major Rosnovski ao pessoal e depois traga-o de volta.

– Sim, senhor. — O tenente dirigiu-se a Abel. — Por favor, queira me acompanhar.

Abel, ao alcançar a porta, virou-se.

— Obrigado, general.

 

Abel passou o fim de semana em Chicago, na companhia de Zaphia e Florentyna. Zaphia perguntou-lhe o que deveria fazer com os seus quinze ternos.

— Guarde-os — respondeu, intrigado com a pergunta. — Minha intenção não é morrer nessa guerra.

— Sei que não, Abel — ela retrucou. — Isso nem me passou pela cabeça. É que agora cabem três de você dentro deles.

Abel riu e doou os ternos ao centro polonês de refugiados. Retornou a Nova Iorque, foi ao Baron, cancelou as reservas de quartos e, doze dias mais tarde, entregou o prédio ao 5.° Exército. A imprensa saudou a decisão de Abel como um “gesto altruísta”, digno de um homem que fora ele próprio um refugiado da Pri­meira Guerra Mundial.

Três meses depois, convocaram-no para o serviço ativo, quan­do então organizou o funcionamento regular do Baron de Nova Iorque para o general Clark, e posteriormente apresentou-se em Fort Benning, onde concluiu o programa de treinamento de ofi­ciais. Finalmente, recebeu instruções de reunir-se ao general Den­vers no 5.° Exército, e soube que partiria para certa região da África do Norte. Imaginou que algum dia acabaria na Alemanha.

Um dia antes de partir, fez um testamento, solicitando aos executores que oferecessem o Grupo Baron a David Maxton em condições favoráveis, e dividindo os bens restantes entre Zaphia e Florentyna. Pela primeira vez, em quase vinte anos, considerava a perspectiva da morte, embora não visse de que modo poderia morrer na cantina do regimento.

Enquanto o navio do Exército deixava o porto de Nova Iorque, Abel contemplou a Estátua da Liberdade. Era viva a sen­sação de quando a vira pela primeira vez, quase vinte anos antes. Depois que o navio passou pela senhora, não tornou a olhá-la, mas falou em voz alta:

– Da próxima vez que eu passar aqui, sua cadela francesa, os Estados Unidos já terão vencido a guerra.

Abel atravessou a Atlântico, levando dois dos cozinheiros-chefes mais qualificados e cinco empregados da cozinha. O navio atracou em Argel em 1.° de fevereiro de 1943. Abel passou pouco menos de um ano sob o sol, em meio à poeira e à areia do deserto, procurando garantir a boa alimentação de todos os membros da divisão.

— Comemos mal, mas enxergamos melhor que ninguém — comentou o general Clark.

Abel requisitou para fins militares o único bom hotel de Argel e transformou o edifício no QG do general Clark. Em­bora não deixasse de compreender o quanto era valioso o seu papel, ansiava por lançar-se à verdadeira luta, mas os majores incumbidos das provisões só raramente eram enviados à frente de batalha.

Escreveu a Zaphia e a George e acompanhou o crescimento da adorada filha Florentyna por fotografias. Chegou a receber uma carta de Curtis Fenton, informando-o de que o Grupo Baron, devido ao contínuo movimento de soldados e civis, que lotavam os hotéis dos Estados Unidos, vinha obtendo lucros ainda mais expressivos. Abel lamentou não poder presenciar a inauguração do hotel de Montreal, onde George o representava. Pela primeira vez estaria ausente da inauguração de um Baron, mas George es­creveu-lhe relatando em minúcias o grande sucesso do novo hotel. Abel começara a perceber a obra de vulto que realizara nos Esta­dos Unidos e a sentir grande desejo de retornar à terra que agora se lhe afigurava um lar.

Logo enfadou-se com a África, com os equipamentos do rancho, os feijões cozidos, as mantas e os moscadeiros. Havia uma ou duas escaramuças encarniçadas no deserto, a oeste, ou pelo menos assim lhe disseram os homens que haviam voltado, mas nunca vira nenhum combate propriamente dito, embora, amiúde, quando levava comida ao front, ouvisse rajadas que o deixavam ainda mais irascível. Certo dia emocionou-se: o 5.° Exér­cito, sob o comando do general Clark, recebera ordens de invadir a Europa pelo Sul.

O 5.° Exército desembarcou na costa da Itália em embar­cações anfíbias, sob a cobertura tática dos aviões americanos. De­frontaram-se com uma forte resistência, primeiro em Anzio, e, em seguida, em Monte Cassino, mas Abel nunca se envolveu diretamente num combate, e começava a recear que a guerra ter­minasse sem que ele chegasse a participar de uma só batalha. Não conseguira arquitetar nenhum plano que o levasse às linhas de frente. Foi promovido a tenente-coronel e mandado a Londres, onde ficou aguardando ordens posteriores. Não lhe fora dada a oportunidade de lutar.

 

Com o Dia D, começava o grande ataque à Europa pela costa ocidental. Os Aliados entraram na França, e, no dia 25 de agosto de 1944, libertaram Paris. Enquanto os americanos e os combatentes da Resistência francesa marchavam ao longo da Champs-Élysées, logo atrás do general De Gaulle, saudados como heróis, Abel contemplava a cidade ainda deslumbrante, e, mais uma vez, decidiu onde construiria o seu primeiro Baron da França.

Os Aliados subiram pelo norte da França, atravessaram a fronteira alemã e por fim avançaram rumo a Berlim. Abel fora transferido para o 1.° Exército, sob o comando do general Omar Bradley. As provisões eram enviadas principalmente pela Ingla­terra: os suprimentos regionais praticamente inexistiam, visto que os alemães, batendo em retirada, arrasavam invariavelmente as cidades por que passavam. A cada cidade que chegava, Abel não precisava mais que umas poucas horas para apoderar-se das pro­visões restantes, antes que outros oficiais intendentes americanos descobrissem exatamente onde encontrá-las. Os oficiais ingleses e americanos compraziam-se em jantar com a 9.a Divisão Blindada, e, quando se retiravam, mostravam-se curiosos por saber de que modo se conseguiam alimentos tão bons. Em certa ocasião, quan­do o general George S. Patton reuniu-se num jantar com Bradley, Abel foi apresentado ao famoso general, o qual, com as suas tro­pas em ação, costumava brandir o revólver de cabo de marfim.

— Foi a melhor refeição que fiz durante esta guerra mal­dita — comentou Patton.

 

Em fevereiro de 1945, Abel estava prestes a completar três anos de serviço e não ignorava que a guerra terminaria em ques­tão de meses. O general Bradley mandava-lhe notas de congra­tulação e dava-lhe condecorações sem valor algum, com as quais ele adornava o uniforme, que se ia tornando apertado à medida que engordava. Nada disso o apaziguava. Implorava ao general que o deixasse participar de pelo menos uma batalha, mas Bra­dley nem sequer o ouvia.

Embora fosse função de um subordinado levar os caminhões de viveres às linhas de frente e lá supervisionar as refeições das tropas, Abel amiúde incumbia-se dessa tarefa. A exemplo da época em que administrava seus hotéis, não revelava ao pessoal em que momento ou em que lugar apareceria, agindo sempre de maneira inesperada.

Num certo dia de março, Abel, impressionado com o fluxo contínuo de macas cobertas por mantas, resolveu ir ver a guerra bem de perto com os seus próprios olhos. Não mais suportando assistir à chegada de mortos e feridos, organizou pessoalmente os catorze caminhões de víveres e levou consigo um tenente, um sargento, dois cabos e vinte e oito soldados.

A frente de luta ficava a apenas trinta quilômetros de onde ele estava, mas o avanço se fazia lento e cansativo naquela manhã. Abel dirigia o primeiro caminhão — sentindo-se um pouco como se fosse o general Patton —, abrindo caminho na lama em meio à chuva violenta; várias vezes ele teve de tirar o caminhão da estrada e dar passagem às ambulâncias que retornavam. Os corpos feridos eram muito mais importantes que os estômagos vazios. Desejou que a maior parte daqueles corpos estivessem apenas fe­ridos; mas só vez ou outra um sinal de cabeça ou um aceno sugeria indício de vida. Abel convencia-se de que algo grave acon­tecia nas proximidades de Remagen. Seu coração batia acelerado, e ele teve certeza de que, dessa vez, de alguma maneira ele se veria envolvido no combate.

Finalmente, atingiu o local de comando, ouvindo o fogo do inimigo a distância, e, com raiva, golpeou a perna, enquanto seus olhos seguiam as macas que traziam de volta, não sabia de onde, dezenas de camaradas mortos e feridos. Afligia-o pensar que só teria uma noção da verdadeira guerra quando esta estivesse nas páginas da História. Imaginava que qualquer leitor do New York Times estaria mais bem informado que ele próprio.

O comboio liderado por Abel parou ao lado da cozinha de campo. Ele saltou do caminhão e protegeu-se contra a chuva forte, envergonhando-se pelo fato de que aqueles seus soldados, a apenas poucos quilômetros dali, haviam procurado proteger-se das balas. Abel supervisionou o descarregamento de cem galões de sopa, uma tonelada de carne em salmoura, duzentas galinhas, meia tonelada de manteiga, três toneladas de batatas e latas de feijão cozido de cinqüenta quilos — além das inevitáveis rações K —, prontos para serem servidos àqueles que partiam para o front ou dele voltavam. Quando entrou na barraca do refeitório, encontrou-a cheia de mesas compridas e bancos vazios. Instruiu os chefes de cozinha, que preparariam a refeição, e os ordenanças, que come­çariam a descascar mil batatas, e saiu à procura do oficial coman­dante.

Dirigiu-se diretamente à barraca do general-de-brigada John Leonard, decidido a saber o que estava acontecendo, passando a todo instante pelas macas em que estavam soldados mortos ou — o que era pior — quase mortos, cuja visão causaria impacto a um homem comum, mas que, em Remagen, tinha a aparência de normalidade. Antes que pudesse entrar na barraca, o general Leo­nard, seguido do ajudante-de-ordens, saiu apressado. Enquanto andava, falou com Abel:

— Qual é o problema, coronel?

— Comecei a preparar a comida para o seu batalhão, se­gundo ordens de ontem à noite, senhor. O que... ?

— Não se preocupe com a comida agora, coronel. Hoje, à primeira luz do dia, o tenente Burrows, da 9.ª Divisão, descobriu uma ponte ainda de pé ao norte de Remagen. Ordenei a travessia imediata, para estabelecer uma cabeça-de-ponte na margem leste do rio. Os alemães têm conseguido explodir todas as pontes do Reno. Não vamos ficar esperando a comida, enquanto eles podem destruir também aquela.

— A 9.ª Divisão chegou a atravessá-la? — perguntou Abel, ofegando.

— Claro que sim — respondeu o general. — Mas, quando atingiu a floresta além do rio, encontrou forte resistência. Eles nos atacaram de emboscada, e só Deus sabe quantos homens perde­mos. Por isso, coronel, é melhor que coma a sua comida sozinho, porque, neste momento, só me interessa trazer de volta os sobre­viventes.

— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Abel.

O comandante deteve-se por um instante e olhou o coronel rechonchudo.

— Quantos homens estão sob seu comando?

— Um tenente, um sargento, dois cabos e vinte e oito sol­dados. Trinta e três ao todo, senhor, incluindo eu.

– Bem. Apresente-se ao médico-chefe com os seus homens e vá buscar o maior número de feridos e mortos que puder.

– Sim, senhor — e Abel correu à barraca da cozinha, onde encontrou seus comandados sentados num canto, fumando.

– Levantem-se, bando de preguiçosos! Para variar, temos muito trabalho a fazer.

– Trinta e dois homens puseram-se na posição de sentido.

— Sigam-me — gritou Abel —, depressa!

Todos o acompanharam, correndo em direção ao hospital de campanha. Um médico jovem instruía dezesseis oficiais médicos. Abel surgiu à entrada da barraca, acompanhado de seus homens despreparados e ofegantes.

— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou o médico.

— Não, eu é que espero poder ajudá-lo — respondeu Abel. — Trouxe comigo trinta e dois homens, recebi ordem do general Leonard de nos reunir ao seu grupo.

O médico arregalou os olhos, surpreso.

— Ótimo, senhor.

— Não me chame de senhor — disse Abel. — Estamos aqui para ajudá-lo.

— Sim, senhor — falou de novo o médico.

Ele entregou a Abel um estojo com faixas da Cruz Vermelha, que os cozinheiros, os ordenanças e os descascadores de batata começaram a pôr no braço, enquanto ouviam as instruções que o médico lhes dava, fornecendo-lhes detalhes do confronto na floresta, do outro lado da ponte Ludendorff.

— A 9.ª Divisão sofreu baixas graves — prosseguiu. — Os soldados que têm experiência de primeiros socorros ficam na zona de combate, e os outros trazem para cá quantos feridos puderem.

Abel exultava com a oportunidade de, pelo menos uma só vez, fazer alguma coisa útil. O médico, agora no comando de quarenta e nove homens, distribuiu dezoito macas, e cada soldado recebeu uma mochila de curativos de emergência. Em seguida, levou o grupo heterogêneo até a ponte Ludendorff. Abel seguia-o, apenas um metro atrás dele. Na estrada de barro, debaixo de chuva, puseram-se a cantar; calaram-se quando alcançaram a ponte e os padioleiros mostraram-lhes o contorno nítido de um corpo coberto apenas com mantas. Formando uma única coluna, cruza­ram a ponte em silêncio e desceram por uma trilha ao lado da estrada, de onde puderam ver os resultados da explosão provocada pelos alemães, que felizmente não destruíra as fundações da ponte. Rumaram para a floresta, ouvindo os disparos. Abel excitava-se com a proximidade do inimigo, ao mesmo tempo horrorizado com aquilo que este era capaz de infligir aos seus compatriotas. Para onde se virasse, ouvia gemidos de dor de seus camaradas. Cama­radas que, pouco antes, nesse dia, acreditavam ansiosamente que o fim da guerra estava próximo — mas não tão próximo.

Abel observou o jovem médico deter-se repetidas vezes para ajudar, da melhor maneira possível, cada ferido que encontrava, Por vezes, sem hesitar, ele matava misericordiosamente um sol­dado, certo de que não havia esperança alguma de salvá-lo. Abel correu de soldado para soldado, colocando em macas os que se achavam impossibilitados de mover-se e indicando aos que podiam andar a direção que os levaria de volta à ponte Ludendorff. Quan­do os grupos atingiram a borda da floresta, apenas o médico, um dos descascadores de batata e Abel ficaram para trás; os mortos e os feridos iam sendo carregados para o campo pelos outros homens.

Enquanto os três penetravam pela floresta, os disparos ini­migos soavam próximos. Abel avistou o perfil de uma metralha­dora, já danificada, escondida entre a vegetação e ainda apontada para a ponte. De súbito, uma rajada cortou o ar tão estrepitosamente que, pela primeira vez, ele tomou consciência de que o inimigo se encontrava bem próximo. Estendeu-se no chão e aguar­dou, os sentidos extremamente alertas. De repente, houve uma nova eclosão de rajadas. Num salto, ergueu-se e avançou correndo, seguido pelo médico e pelo descascador de batatas, embora relu­tantes. Correram algumas centenas de metros e, finalmente, depa­raram com uma extensão de relva viçosa, uma depressão coberta de flores alvas de açafrão e repleta de corpos de soldados ameri­canos. Abel e o médico aproximaram-se dos corpos.

— Foi um massacre — gritou Abel, enraivecido, enquanto ouvia os disparos que se distanciavam.

O médico não fez nenhum comentário: aquilo o chocara três anos atrás.

— Não se preocupe com os mortos — foi tudo o que falou. — Veja se algum está vivo.

— Aqui — bradou Abel, ajoelhando-se ao lado de um sar­gento imerso na lama. Os olhos estavam despedaçados.

— Está morto, coronel — disse o médico, não tornando a olhar.

Abel correu até outro corpo, e assim sucessivamente. Era sempre a mesma constatação, porém, somente a visão de uma cabeça decepada, enfiada na lama, impediu Abel de prosseguir. Desviou o olhar, mas, atraído, tornou a olhá-la: era como o busto de um deus grego que jamais se moveria. Qual uma criança, ele recitou as palavras que aprendera aos pés do barão: — “Sangue e morte serão tão comuns, e as coisas mais ter­ríveis tão familiares, que as mães só saberão sorrir ao contemplar seus filhos esquartejados pelas mãos da guerra.” Nada muda? — perguntou Abel, revoltado.

— Nada, a não ser o campo de batalha — respondeu o mé­dico.

Depois de contar trinta homens — ou eram quarenta? —, Abel reuniu-se ao médico, que procurava salvar a vida de um ca­pitão, o qual, exceto por um olho cerrado e a boca, fora inteira­mente envolto em ataduras já ensopadas de sangue. Abel postou-se ao lado do médico, impotente, olhando a insígnia no ombro do capitão — da 9.ª Divisão Blindada — e lembrando-se das pala­vras do general Leonard: “Só Deus sabe quantos homens per­demos hoje”.

— Malditos alemães! — exclamou Abel.

— Sim, senhor — comentou o médico.

— Ele está morto? — indagou Abel.

— Deveria estar — replicou o médico automaticamente. — Está perdendo tanto sangue que é só uma questão de tempo. — Ergueu os olhos. — Coronel, não há nada a fazer aqui. Leve este para o hospital antes que morra. Diga ao comandante da base que eu vou depois e que preciso de quantos homens ele puder arranjar.

— Certo — disse Abel, ajudando o médico a carregar cuidadosamente o capitão e colocá-lo numa padiola.

Abel e o descascador de batatas retornaram ao hospital de campanha a passos lentos e pesados, pois o médico lhes dissera que, ao menor movimento brusco da padiola, a perda de sangue seria ainda maior. Abel não permitiu ao descascador um só ins­tante de descanso durante o trajeto de três quilômetros até a base. Queria dar àquele homem a oportunidade de continuar vivo e então retornar à floresta para reencontrar-se com o médico.

Durante mais de uma hora, caminharam penosamente na lama, debaixo de chuva intermitente, e Abel receou que o capi­tão tivesse morrido. Finalmente, alcançaram o hospital, exaustos. Abel entregou o ferido aos cuidados da equipe médica.

Enquanto era carregado lentamente, o capitão abriu o olho não-enfaixado e o fixou em Abel. Tentou levantar um braço. Abel fez uma continência, sentindo uma tremenda vontade de pular de alegria ao ver o olho abrir-se e a mão mexer. Como pedira para que o homem vivesse!

Deixou o hospital, e, quando se punha a caminho da floresta, acompanhado de seu pequeno grupo de homens, foi detido por um oficial.

– Coronel — disse —, procurei-o por toda parte. Trezen­tos homens estão famintos! Que diabo, onde andou todo esse tempo?

— Fazendo uma coisa útil, para quebrar a rotina.

Pensando no jovem capitão, Abel fez meia-volta e rumou vagarosamente para a cozinha de campanha.

Para esses dois homens, a guerra tinha acabado.

 

Os padioleiros carregaram o capitão para dentro de uma bar­raca e deitaram-no cuidadosamente na mesa de cirurgia. O capitão William Kane da 9.ª Divisão percebeu o olhar de tristeza da en­fermeira que o fitava, mas achava-se impossibilitado de ouvi-la, ou por causa das bandagens que lhe envolviam a cabeça ou por­que ficara surdo. Observava-lhe os movimentos dos lábios, mas deles nada apreendia. Baixou as pálpebras e pensou. Pensou um bocado sobre o passado; pensou um pouco sobre o futuro; pensou muito depressa, temendo morrer. Sabia que, caso vivesse, lhe so­braria bastante tempo para pensar. Seus pensamentos agarraram-se a Kate, em Nova Iorque. A enfermeira viu duas lágrimas no canto dos seus olhos. Kate não aceitara a decisão dele de alistar-se. Ele sabia que ela jamais o compreenderia, e, sabendo também que não teria sido capaz de justificar-se, desistira de convencê-la. E agora a lembrança daquele rosto desesperado o perseguia. Nunca chegara de fato a refletir sobre a morte — nenhum homem o faz —, contudo, nesse momento, desejava tão-somente viver e voltar para sua família.

Ao deixar o Lester, William incumbira Ted Leach e Tony Simmons da administração do banco, até a sua volta... até a sua volta. Caso não voltasse, ambos não tinham nenhuma orientação de como proceder. Ambos não o compreenderam. Poucos dias depois, quando se alistou, mal pôde olhar os filhos. Richard, aos dez anos, fora sozinho à estação e contivera as lágrimas até o momento de ouvir que não poderia ir lutar com o pai contra os alemães.

William fora primeiramente enviado a uma escola de oficiais da Reserva, em Vermont. A última vez que estivera em Vermont fora com Matthew, para esquiar, subindo devagar as colinas e descendo-as muito depressa. Agora a viagem era lenta, tanto na subida quanto na descida. O curso tivera a duração de três me­ses, e, pela primeira vez, desde que deixara Harvard, ele retomara a boa forma física.

Cumprira sua primeira missão militar em Londres, repleta de americanos, onde servira como oficial de ligação entre ameri­canos e ingleses. Fora acantonado em Dorchester, de que o Minis­tério da Guerra britânico se apossara e que, posteriormente, o Exército americano utilizara. William lera em algum lugar que Abel Rosnovski tinha procedido da mesma maneira com o Baron de Nova Iorque, o que, na época, aprovara inteiramente. Os blecautes, as bombas voadoras e os alarmes de ataques aéreos evidenciavam que ele se encontrava no meio da guerra, mas se sentia estranhamente alheio ao que estava ocorrendo a apenas algumas centenas de quilômetros do Hyde Park. Durante toda a sua vida sempre fora de tomar iniciativas, e jamais um especta­dor. Deslocar-se entre o quartel-general de Eisenhower, na St. James, e o centro de operações de guerra de Churchill, na Storey’s Gate, não correspondia à sua idéia de tomar iniciativa. Era como se, durante todo o curso da guerra, não fosse ter a opor­tunidade de enfrentar os alemães cara a cara, a menos que eles invadissem a Trafalgar Square.

Quando parte do 1.° Exército estacionou na Escócia, para exercícios de treinamento com os Black Watch[1], William fora enviado como observador, com a missão de transmitir os resulta­dos de suas averiguações. A longa e demorada viagem de ida e volta à Escócia, em um trem que parava constantemente, fê-lo compreender que já estava se tornando um brilhante mensageiro e levou-o a perguntar-se o motivo por que se havia alistado. A Escócia, William logo descobriu, era diferente. Ali, ao menos, respirava o ar do preparo da guerra. Assim que retornou a Lon­dres, solicitou transferência imediata para o 1.° Exército. O co­ronel que o comandava, e que jamais deixara na burocracia um homem que desejasse lutar, consentira na transferência.

Três dias depois, William estava de volta à Escócia, inte­grando seu novo regimento e começando o treinamento com as tropas americanas em Inveraray, que se preparavam para uma in­vasão que, todos sabiam, não tardaria. O treinamento fora penoso e intenso. As noites de luta em combates simulados com os Black Watch, nas colinas escocesas, contrastavam significativamente com as noites de Dorchester, quando ele escrevia relatórios.

Três meses depois, saltaram de pára-quedas no Norte da França e reuniram-se ao Exército de Omar N. Bradley. O cheiro da vitória pairava no ar, e William desejou ser o primeiro soldado a pisar em Berlim.

0 1.° Exército avançou em direção ao Reno, determinado a atravessar quaisquer pontes que encontrasse à frente. Nessa ma­nhã, o capitão Kane recebera ordens de prosseguir com sua tropa, cruzar a ponte Ludendorff e travar combate com o inimigo cerca de um quilômetro ao norte de Remagen, numa floresta situada na margem oposta do rio. Ele, no alto de uma colina, observou a 9.a Divisão atravessar a ponte, receando o momento de vê-la ir pelos ares.

O coronel conduzia seu próprio batalhão à frente. Liderando os duzentos e vinte homens sob o seu comando, a maioria dos quais, tal como ele próprio, indo à luta pela primeira vez, William o seguia. Não havia mais treinamentos com escoceses astutos que simulavam matá-lo com cartuchos de festim, e muito menos, de­pois do confronto, iriam todos reunir-se num refeitório. O que havia eram alemães com balas de verdade; o que havia era a morte — e, talvez, nenhum futuro.

Quando William e seus homens alcançaram as primeiras árvores, não encontrando resistência, resolveram penetrar mais fundo na floresta. A caminhada era lenta, monótona, e William começava a achar que a 9.ª Divisão havia realizado um trabalho completo, de modo que lhe cabia apenas acompanhá-la. De sú­bito, porém, sem saber como, viram-se emboscados, alvo de metralha e morteiros. O mundo inteiro parecia desabar sobre eles de uma só vez. Os homens de William atiraram-se ao chão, tentan­do proteger-se entre as árvores, mas em apenas alguns instantes metade do pelotão se perdeu. A batalha, se podia chamá-la assim, durou menos de um minuto. William não chegou a ver um alemão sequer. Agachou-se entre a vegetação rasteira molhada e ficou ali mais alguns instantes. Em seguida, com espanto, avistou mais Pelotões saindo da floresta. Abandonou a árvore que escolhera como escudo e correu para avisá-los da emboscada. A primeira bala atingiu-o na cabeça, e, enquanto tombava sobre a lama do solo alemão, continuando a acenar desesperadamente aos camara­das que avançavam, uma segunda bala acertou-o no pescoço, e uma terceira, e derradeira, no peito. William permaneceu imóvel, mergulhando no barro, e aguardou o instante de morrer, sem ao menos ter visto o inimigo — uma morte suja e nada heróica.

Depois disso, a única coisa que pôde perceber foi que estava sendo transportado numa padiola. Não ouvia nem via nada, o que o levou a pensar se era noite ou se tinha ficado cego.

Isso lhe pareceu uma longa jornada. Quando abriu o olho, deteve-o sobre um coronel baixote e gordo que, mancando, saía de uma barraca. Havia nele qualquer coisa familiar. Os padioleiros conduziram-no à barraca que servia de hospital e colocaram-no na mesa de cirurgia. William resistiu ao sono, receando que a morte estivesse chegando, até que finalmente adormeceu.

 

William acordou. Percebeu que dois homens procuravam movê-lo. Eles o viraram com todo o cuidado e pouco depois es­petaram-lhe uma agulha. William sonhou com Kate, com a mãe, e depois com Matthew, que brincava com seu filho Richard. Dormiu.

 

Acordou. Tinham-no transferido para outra cama. Uma leve esperança substituíra em sua mente o pensamento da morte inevi­tável. Ele permaneceu imóvel, o olho aberto fitando o teto de lona da barraca, incapaz de mexer a cabeça. Um enfermeiro se aproximou, examinou um quadro e depois o observou. Dormiu.

 

Acordou. Quanto tempo havia passado? Outro enfermeiro. Dessa vez ele pôde ver um pouco melhor e — alívio, oh, alívio! — mexeu a cabeça, ainda que sentisse muita dor. Permaneceu acordado tanto quando pôde; queria continuar vivo. Adormeceu.

 

Acordou. Quatro médicos o examinavam, mas o que con­cluíam? Não os ouvia. Nada podia saber.

Tiraram-no dali pela segunda vez. Agora ele tinha condições de ficar atento, e percebeu que o colocavam numa ambulância. As portas fecharam-se, o motor roncou e a ambulância começou a se locomover sobre o terreno acidentado; um outro enfermeiro, sen­tado ao seu lado, segurava-o, evitando que sofresse fortes sola­vancos. A viagem parecia durar muito, mas ele perdera qualquer noção de tempo. A ambulância alcançou um terreno mais plano e pouco depois parou. De novo removeram-no. Dessa vez, andaram sobre uma superfície plana, subiram alguns degraus e então en­traram num quarto escuro. Detiveram-se alguns segundos, e de­pois o quarto começou a se locomover; um outro veículo, talvez. O quarto arrancou. Um enfermeiro aplicou-lhe outra agulha, e ele não se lembrou de mais nada até o instante em que sentiu um avião aterrizando. Removeram-no mais uma vez. Outra am­bulância, outro enfermeiro, outro odor, outra cidade. Nova Iorque, ou, pelo menos, os Estados Unidos, ele refletiu. Não havia cheiro igual em todo o mundo. A nova ambulância percorreu outra su­perfície plana, parando e andando, continuadamente, até que, fi­nalmente, pareceu chegar ao destino. Transportaram-no outra vez, e outra vez subiram degraus, e entraram num quarto de paredes brancas. Colocaram-no numa cama confortável. Sentiu a cabeça pousar num travesseiro, e, quando tornou a acordar, achou que estava completamente sozinho. Seus olhos, então, entraram em foco, e ele viu que Kate estava parada, de pé, à sua frente. Expe­rimentou erguer a mão e tocá-la, tentou falar, mas nenhuma pala­vra veio aos lábios. Ela sorriu, e ele também, embora seu sorriso não pudesse ser percebido. Quando voltou a acordar, Kate con­tinuava ali, mas com outro vestido. Ou tinha ela ido e vindo várias vezes? Ela sorriu de novo. Quanto tempo havia passado? Tentou mexer um pouco a cabeça e viu o filho Richard, tão alto, tão bonito... Queria ver as filhas, mas não era capaz de mexer mais uma vez a cabeça. Elas entraram no seu campo de visão: Virgínia — como podia ter crescido tanto? — e Lucy — não era possível! Mas onde tinham ido parar aqueles anos? Dormiu.

 

Acordou. O quarto estava vazio, mas agora conseguia mexer a cabeça. Algumas ataduras haviam sido retiradas, e ele enxergava com maior nitidez; experimentou dizer alguma coisa, mas nenhuma palavra foi articulada. Adormeceu.

 

Acordou. Menos ataduras que antes. Kate estava ali de novo, o cabelo claro mais comprido, caído sobre os ombros, os olhos meigos e grandes, o sorriso inesquecível, tão bela, tão bela! Pro­nunciou o seu nome:

— Kate.

Ela sorriu. Ele adormeceu.

 

Acordou. Ainda menos ataduras que antes. Dessa vez, seu filho falou:

— Oi, papai.

— Oi, Richard — ele pôde responder.

Mas não reconheceu o tom de sua própria voz. A enfermeira o ajudou a sentar-se para que pudesse cumprimentar a família, e ele lhe agradeceu. Um médico pôs a mão sobre o seu ombro.

— O pior já passou, sr. Kane. Logo estará recuperado e po­derá voltar para casa.

Kate, acompanhada de Virgínia e Lucy, entrou no quarto e abriu um sorriso. Quantas perguntas queria lhe fazer! Por onde começaria? Havia hiatos de memória que precisavam ser preen­chidos. Kate lhe disse que por pouco escapara da morte. Ele sabia disso, mas ignorava que mais de um ano tinha transcorrido desde que sua divisão caíra naquela emboscada na floresta de Remagen.

Passados os meses de inconsciência, a vida ficava menos pa­recida com a morte? Richard tinha quase doze anos, e já esperava o momento de ingressar em Harvard. Virgínia tinha nove, e Lucy, quase sete. Seus vestidos pareciam curtos demais. Seria necessá­rio começar a conhecê-las de novo.

Kate tornara-se mais bela do que a imagem de que ele se recordava. Contou-lhe que nunca chegara a encarar o fato de que ele poderia ter morrido, que Richard ia muito bem na Buckley, e que Virgínia e Lucy precisavam de um pai. Ela concentrou ener­gias e lhe disse que seu rosto e seu peito haviam ficado marcados por cicatrizes que jamais desapareceriam, e agradeceu a Deus pela convicção dos médicos de que sua mente estava perfeita e que sua visão poderia ser recobrada. Tudo o que ela desejava agora era ajudá-lo a recuperar-se. Kate, aos poucos, William, rapida­mente.

Cada membro da família desempenhou a sua função no pro­cesso. Primeiro a voz, depois a visão, e enfim a fala. Richard ajudou o pai a andar até que ele pudesse dispensar as muletas. Lucy ajudou-o na alimentação, até que ele pôde alimentar-se so­zinho. E Virgínia leu Mark Twain para ele. William não sabia a quem as leituras mais beneficiavam, mas ambos deliciaram-se. Então, finalmente, passado o Natal, concederam-lhe alta e ele voltou para casa.

De volta à East 68th Street, William recobrou-se mais rapi­damente. Os médicos previam que, dentro de seis meses, ele estaria em condições de retomar o trabalho no banco. Embora marcado por pequenas cicatrizes, estava completamente recupe­rado, de modo que lhe permitiram receber visitas.

O primeiro visitante foi Ted Leach, que ficou algo chocado com a aparência de William. Mais um fato com que teria de aprender a viver. Ted Leach transmitiu-lhe notícias que só lhe deram satisfação. O Lester fizera avanços durante a ausência dele, e todos ansiavam pelo retorno do presidente. A visita de Tony Simmons trouxe-lhe notícias que o entristeceram. Alan Lloyd e Rupert Cork-Smith haviam falecido. Ele sentiria falta da sensatez de ambos. Thomas Cohen também o visitou, para lhe dizer que se alegrava em vê-lo recuperado e para provar, embora isso não fosse necessário, que os tempos haviam mudado. Informou que agora estava mais ou menos aposentado e que muitos de seus clientes seriam atendidos pelo filho Thaddeus, que acabara de abrir um escritório em Nova Iorque. William observou que pai e filho haviam recebido nomes de apóstolos. Thomas Cohen riu e expres­sou a vontade de que o sr. Kane continuasse a recorrer aos ser­viços da firma. William assegurou-lhe que continuaria a fazê-lo.

— A propósito, tenho uma pequena informação a lhe dar.

William ouviu calado o velho advogado, e ficou furioso, muito furioso.

 

No dia 7 de maio de 1945, enquanto o general Alfred Jodl assinava a rendição incondicional em Reims, Abel desembarcava numa Nova Iorque preparada para comemorar a vitória e o fim da guerra. Mais uma vez, jovens uniformizados enchiam as ruas, mas agora nos seus rostos havia júbilo em lugar de medo. Abel ficou penalizado com tantos homens pernetas, manetas, cegos ou severamente deformados. Para eles, a guerra jamais teria fim, fosse qual fosse o pedaço de papel assinado a seis mil quilôme­tros dali.

Quando Abel entrou no Baron Hotel com o uniforme de co­ronel, ninguém o reconheceu. E como o reconheceriam? Dois anos antes, quando vestia roupas civis, seu rosto jovem era liso. O que viam agora era o rosto de um homem que aparentava muito mais que seus trinta e nove anos, e as rugas profundas da fronte indicavam que a guerra lhe imprimira marcas indeléveis. Abel tomou o elevador que o levaria ao escritório do quadragésimo segundo andar, e um guarda de segurança o interpelou com firmeza, dizendo-lhe estar em andar errado.

— Onde está George Novak? — perguntou Abel.

— Em Chicago, coronel — respondeu o guarda.

— Bem, ligue para ele.

— Devo fazê-lo em nome de quem?

— De Abel Rosnovski.

A voz familiar de George crepitou na linha com um caloroso “bem-vindo”. Imediatamente, Abel sentiu quão agradável era tor­nar à casa. Em lugar de passar a noite em Nova Iorque, resolveu voar mil e trezentos quilômetros até Chicago, levando os relató­rios atualizados que George elaborara, com o propósito de estu­dá-los durante a viagem. Examinou com atenção a administração do Grupo Baron ao longo do período da guerra, constatando que George fizera bem em manter o grupo em compasso de espera durante a sua ausência. Sua administração cautelosa não dava a Abel motivos de queixa; os lucros continuavam elevados, reduzi­ram-se as despesas com pessoal, muitos convocados para a guerra, e, além disso, os hotéis tinham continuado cheios devido ao fluxo ininterrupto de soldados por todo o país. Abel concluiu que come­çaria a formar sem demora um novo quadro de pessoal, antes que outros hotéis contratassem os melhores entre aqueles que retor­navam da guerra.

Ao chegar ao Aeroporto Midway, no terminal 11C, Abel avistou George, que o esperava na saída. George pouco mudara, exceto por alguns quilos a mais e alguns fios de cabelo a menos. Decorrida uma hora, em que ambos puseram em dia os três anos passados e trocaram histórias vividas, era como se Abel nunca houvesse partido. Ele sempre seria grato ao Black Arrow, pois fora ele o responsável por colocar em seu caminho o seu vice-presidente.

George, porém, foi impiedoso com respeito à coxeadura de Abel, que agora, depois da guerra, parecia mais acentuada.

— O Hopalong Cassidy do ramo hoteleiro — disse ele, zom­bando. — Falta-lhe uma perna em que se apoiar.

— Só um polonês estúpido faria uma piada dessas — re­plicou Abel.

George fitou Abel, mostrando-se levemente magoado, como um cãozinho quando leva bronca do dono.

– Graças a Deus tive um polonês estúpido tomando con­ta de tudo enquanto eu procurava alemães — ajuntou Abel, tranqüilizando-o.

Antes de ir para casa, Abel não resistiu a dar uma espiadela no Baron de Chicago. O fino verniz de suntuosidade desgastara-se. Havia ali muita coisa necessitando de uma reforma. Mas isso teria de esperar, pois, nesse instante, ele desejava sobretudo rever a esposa e a filha. Foi então que teve a primeira surpresa. Ao longo daqueles três anos, George pouco mudara, mas Florentyna, agora com seus onze anos, desabrochara numa linda moça, e Zaphia por sua vez, embora estivesse com apenas trinta e oito anos, engordara, tornara-se desleixada e, decididamente, parecia uma mulher de meia-idade.

Em primeiro lugar, ambos não sabiam ao certo de que modo se deviam tratar. Passadas algumas semanas, Abel começou a en­tender que o relacionamento não voltaria jamais a ser o mesmo. Zaphia importava-se pouco em estimular Abel, e nem mesmo sen­tia o menor orgulho por suas realizações. Abel aborreceu-se por essa completa falta de interesse e experimentou envolvê-la mais uma vez em sua vida. Zaphia, porém, reagiu de maneira negativa às suas sugestões. Parecia contentar-se com fechar-se em casa e manter-se o mais distante possível de tudo o que dizia respeito ao Grupo Baron. Conformando-se com o fato de que ela não mu­daria, Abel perguntou-se por quanto tempo mais conseguiria per­manecer-lhe fiel. Enquanto Florentyna o encantava, Zaphia, sem o aspecto e o corpo de antigamente, só o deixava indiferente. Quando dormiam juntos, ele evitava amá-la, e, nas raras ocasiões em que o faziam, pensava em outra mulher. Começou a inventar justificativas para ficar longe de Chicago e do rosto abatido e si­lenciosamente acusador de Zaphia.

Abel passou a fazer viagens demoradas aos hotéis, levando consigo Florentyna nos períodos de férias escolares. Nos seis pri­meiros meses após o seu regresso, visitou todos os hotéis do Grupo Baron, empregando o mesmo método que utilizara quando entrara de posse da empresa, depois da morte de Davis Leroy. No prazo de um ano, todos os hotéis haviam retomado o alto padrão que Abel exigia. Ele, porém, não via o momento de dar mais um passo à frente. Na reunião trimestral do grupo, informou a Curtis Fenton que a equipe de pesquisa de mercado o aconse­lhara a construir um hotel no México e outro no Brasil; a propósito, ele já estava à procura dos terrenos em que se ergue­riam os novos hotéis.

— O Baron da Cidade do México e o Baron do Rio de Ja­neiro — disse Abel, deliciando-se com a ressonância dos nomes.

— Bem, o senhor conta com fundos suficientes para cobrir os custos das obras — comentou Curtis Fenton. — Durante sua ausência, sem dúvida o numerário foi se acumulando. Seria pra­ticamente viável construir um Baron em cada lugar de sua esco­lha. Só Deus sabe onde o senhor irá parar.

— Um dia, sr. Fenton, construirei um Baron em Varsóvia. Só então pensarei em parar — acrescentou Abel. — Posso ter derrotado os alemães, mas ainda tenho umas contas a acertar com os russos.

Curtis Fenton riu. Nessa noite, ao contar o episódio à es­posa, é que Fenton pôde compreender com que seriedade Abel Rosnovski lhe dissera aquilo... um Baron em Varsóvia.

— Pois bem, como ficou a minha situação com o banco de Kane?

Curtis Fenton perturbou-se com a repentina mudança de tom de Abel. Sem dúvida alguma, ele teimava em responsabilizar Kane pelo suicídio de Davis Leroy, e isso preocupava o banqueiro. Ele abriu uma pasta especial e pôs-se a ler.

— As ações do Lester, Kane & Company acham-se dividi­das entre catorze membros da família Lester e seis funcionários, antigos e recentes, mas o sr. Kane é o maior acionista, detendo oito por cento delas.

— Algum membro da família Lester tem intenção de vender uma parte? — inquiriu Abel.

— Se oferecermos um preço justo, possivelmente. A srta. Susan Lester, filha do falecido Charles Lester, deu-nos motivos para crer que poderia desfazer-se da parte dela, e o sr. Peter Parfitt, que foi vice-presidente do Lester, demonstrou interesse nisso por ocasião das nossas tentativas de negociação.

— E que porcentagem os dois detêm?

— Susan Lester, seis por cento, e o sr. Peter Parfitt, apenas dois por cento.

— Quanto pedem pelas ações?

Curtis Fenton examinou a papelada dentro da pasta, enquan­to Abel passava os olhos pelo último relatório anual do Lester. Deteve-se ao deparar com o artigo 7.

— A srta. Susan Lester quer dois milhões de dólares pelos seus seis por cento, e o sr. Parfitt, um milhão pelos seus dois por cento.

— O sr. Parfitt é guloso — comentou Abel. — Esperemos, portanto, que ele fique faminto. Compre já as ações da srta. Susan Lester, mas sem revelar a quem o senhor está representan­do. Informe-me quando o sr. Parfitt mudar de idéia.

Curtis Fenton tossiu.

— Algo o preocupa, sr. Fenton? — perguntou Abel.

Curtis Fenton hesitou.

— Não, nada — disse o banqueiro, de modo pouco convin­cente.

— A partir de hoje, um novo homem se encarregará das minhas contas. O senhor por certo o conhece... Henry Osborne.

— Osborne, o deputado? — indagou Curtis Fenton.

— Ele mesmo. Conhece-o?

— Conheço a reputação dele — disse Fenton, com um fraco tom de desaprovação.

Abel ignorou o subentendido nessa observação. Estava perfeitamente ciente da reputação de Henry, mas, como este se acha­va em condições de passar por cima de todos os intermediários da burocracia e de obter rapidamente decisões políticas, julgou que valeria a pena correr o risco. Sem falar no laço comum que os unia: aversão a Kane.

— Convidei também o sr. Osborne para ser um dos direto­res do Grupo Baron, com a responsabilidade exclusiva da conta de Kane. Essa informação, como de praxe, deve permanecer den­tro de limites estritamente confidenciais.

— Como queira — disse Fenton, desgostoso, receando reve­lar a Abel Rosnovski suas dúvidas pessoais.

— Informe-me assim que fechar o negócio com a srta. Susan Lester.

— Pois não, sr. Rosnovski — disse Curtis Fenton, sem erguer a cabeça.

À hora do almoço, Abel voltou ao Baron, onde Henry Os­borne o esperava.

— Deputado — disse Abel quando o encontrou no vestíbulo.

— Barão — respondeu Henry. Rindo-se, e de braços dados, dirigiram-se ambos ao salão e sentaram-se à mesa do fundo.

Abel chamou a atenção de um garçom por estar com um botão a menos no uniforme.

— Como está a sua esposa, Abel?

— Ótima. E a sua, Henry?

— Muito bem.

Ambos mentiam.

— Tem alguma notícia boa a me dar?

— Sim. Já tomei providências para conseguir aquela con­cessão de Atlanta que me pediu — disse Henry, num tom de voz conspiratório. — Os documentos necessários serão logo apro­vados. No primeiro dia do mês você já poderá começar a construir o Baron de Atlanta.

— Não estamos fazendo nada muito ilegal, estamos?

— Nada que seus concorrentes não façam, isso eu lhe posso garantir, Abel. — Henry Osborne riu.

— Alegra-me ouvir isso, Henry. Não quero criar problemas com a lei.

— Não, não — fez Henry. — Só eu e você estamos por dentro dos fatos.

— Ótimo. Você me tem sido muito útil nestes anos todos, Henry, e eu mal o recompensei pelos serviços que me prestou no passado. O que me diz de tornar-se diretor do Grupo Baron?

— Oh, Abel, isso me lisonjeia.

— Não me venha com essa. São inestimáveis os seus esfor­ços para obter esses alvarás municipais e estaduais. Eu nunca encontraria tempo para lidar com os políticos e burocratas. Em todo caso, Henry, eles preferem relacionar-se com um homem de Harvard, mesmo que ele só lhes entreabra as portas e, assim, os decepcione.

— E você me tem recompensado generosamente por isso, Abel.

— Não mais do que você merece. Por ora, quero incumbi-lo de um trabalho bem mais importante para nós dois. Essa tarefa, que não tomará muito do seu tempo, requer sigilo absoluto. Ela nos dará a oportunidade de tirarmos uma desforra do nosso amigo comum lá de Boston, o sr. William Kane.

O maître d’hôtel apareceu com dois enormes filés de alcatra ao ponto. Henry aguçou os ouvidos e escutou os planos que Abel elaborara contra William Kane.

 

Poucos dias depois, precisamente a 8 de maio de 1946, Abel foi a Nova Iorque participar da comemoração do primeiro ani­versário da vitória na Europa. Preparara um jantar para mais de mil veteranos poloneses no Baron Hotel. O general Kazimierz Sosnkowski, comandante-em-chefe das forças polonesas na França depois de 1943, era o convidado de honra. Abel aguardara o evento com ansiedade e impaciência durante semanas, e levou Florentyna junto com ele, deixando Zaphia em Chicago.

Na noite da comemoração, o salão de banquetes do Baron de Nova Iorque brilhava na sua grandiosidade, as cento e vinte mesas ornadas com as estrelas e as listras da bandeira americana e o branco e vermelho da bandeira polonesa. Fotografias enormes de Eisenhower, Patton, Bradley, Clark, Paderewski e Sikorski en­feitavam as paredes. Abel sentou-se à cabeceira da mesa, tendo à sua direita o general, e à sua esquerda, Florentyna.

O general Sosnkowski levantou-se para falar aos convivas, e anunciou que o tenente-coronel Rosnovski havia sido nomeado presidente vitalício da Sociedade dos Veteranos Poloneses, como reconhecimento ao seu sacrifício pessoal pela causa polaco-americana, e, em particular, por ter cedido generosamente o Baron de Nova Iorque desde o início até o fim da guerra. Alguém que havia bebido um pouco mais da conta gritou do fundo do salão:

— Nós, que sobrevivemos aos alemães, também precisamos sobreviver à comida de Abel.

O milhar de veteranos explodiu em gargalhadas e, depois de vivas e brindes com vodca de Dantzig, tornou a ficar em silêncio. O general voltou a discorrer sobre a situação da Polô­nia no pós-guerra, submetida pelo tacão da Rússia stalinista, exortando os compatriotas expatriados a não desistir da campa­nha pela soberania definitiva de sua terra natal. Abel esforça­va-se por crer que a Polônia um dia voltaria a ser livre, e que ainda viveria para ver a restituição de seu castelo, embora sou­besse que, nisso, estava sendo pouco realista, visto que Stálin fora bem-sucedido no acordo de Ialta.

O general prosseguiu, relembrando aos convidados que polaco-americanos haviam sacrificado mais vidas e mais dinheiro na guerra do que qualquer outro grupo étnico dos Estados Unidos.

— Quantos americanos acreditariam que a Polônia perdeu seis milhões de seus filhos, enquanto a Tchecoslováquia perdeu cem mil? Alguns observadores nos criticam por não nos termos rendido assim que tivemos certeza de que seríamos vencidos. Mas como uma nação que organizou um ataque de soldados da cavalaria contra os poderosos tanques nazistas poderia acreditar que havia sido derrotada? E hoje, meus amigos, posso lhes afir­mar: nós ainda não fomos derrotados.

Todos os poloneses o aplaudiram entusiasticamente.

Abel entristeceu-se ao imaginar que a grande maioria dos americanos ainda riria à menor lembrança dos esforços dos po­loneses na guerra — ou, o que poderia ser ainda mais engraçado, do herói de guerra polonês. O general aguardou que se fizesse silêncio absoluto, e passou a narrar, para uma assistência extre­mamente atenta, a história de Abel, que conduzira um pequeno grupo de homens no resgate de soldados que haviam sido mortos ou feridos na batalha de Remagen. O general encerrou o discurso, e, tão logo sentou-se, os veteranos puseram-se de pé, saudando ruidosamente os dois homens. Florentyna sentiu um profundo orgulho do pai.

Abel surpreendeu-se ao verificar que a história havia sido publicada nos jornais matutinos, uma vez que as realizações po­lonesas só raramente recebiam a atenção de quaisquer meios de comunicação, exceto do Dziennik Zwiazkiwy. Duvidava que, não fosse ele o Barão de Chicago, a imprensa se tivesse dado ao tra­balho de cobrir o acontecimento. Abel deleitou-se com a sua re­cente glória de herói americano e dedicou a maior parte do dia aos fotógrafos e repórteres que o procuravam.

À noite, Abel experimentou uma sensação de abatimento. O general partira para Los Angeles, e para outra solenidade, Flo­rentyna voltara à escola de Lake Forest, George encontrava-se em Chicago, e Henry Osborne, em Washington. O hotel parecia-lhe vasto e vazio, e ele não sentia o menor desejo de voltar para Zaphia, em Chicago.

Resolveu jantar mais cedo e reler os relatórios semanais enviados pelos outros hotéis do grupo, antes de retornar ao anexo contíguo ao escritório. Raramente comia sozinho na suíte par­ticular, não querendo perder a oportunidade de ser servido em um dos salões sempre que fosse possível; era essa uma das me­lhores maneiras de manter contato com a vida do hotel. Quanto mais hotéis conquistava, ou construía, mais temia perder contato com os empregados.

Tomou o elevador para o térreo e parou no balcão de recep­ção para perguntar quantos hóspedes estavam registrados nessa noite. Uma mulher deslumbrante, que assinava o registro, cha­mou-lhe a atenção. Admitia conhecer o perfil, mas não tinha ab­soluta certeza. “Está na casa dos trinta”, refletiu. Terminando de escrever, a mulher voltou-se e olhou para ele.

– Abel. Que bom revê-lo!

— Deus do céu! Melanie! Quase não a reconheci.

— Mas quem não o reconheceria, Abel?

— Não sabia que estava em Nova Iorque.

— Só por uma noite. Vim resolver algumas coisas para a minha revista.

— Trabalha como jornalista? — perguntou ele com uma ponta de descrença.

— Não, sou assessora de economia de um grupo editorial com sede em Dallas. Mandaram-me para cá num projeto de pes­quisa de mercado.

— Oh, deve ser coisa importante.

— Pois garanto a você que não é nada importante — disse Melanie —, mas pelo menos isso me distrai.

— Por acaso está com um tempo livre? Eu gostaria de convidá-la para jantar.

— É uma excelente idéia, Abel, mas, se não se importa de esperar, preciso tomar um banho e trocar de roupa.

— Claro que não me importo. Estarei no salão principal. Espero-a à minha mesa, digamos, daqui a uma hora, está bem?

Ela sorriu, concordando, e acompanhou o boy com a valise até o elevador. Abel sentiu agradável perfume quando ela passou por ele.

Abel ocupou aquela hora verificando o salão, certificando-se de que as flores de sua mesa eram frescas, e foi à cozinha sele­cionar os pratos que ofereceria a Melanie. Por fim, não tendo coisa melhor a fazer, sentiu-se impelido a sentar-se. A todo ins­tante consultava o relógio e olhava para o salão, esperando vê-la. Ela estava demorando mais de uma hora, mas valeria a pena. Quando, repentinamente, ela apareceu na entrada, trajando um vestido longo e justo, e inequivocamente caro, que brilhava sob as luzes do salão, ostentava uma aparência arrebatadora. O maître conduziu-a à mesa de Abel. Ele levantou-se para recebê-la, en­quanto um garçom abria uma garrafa de champanhe Krug e servia as duas taças.

Seja bem-vinda, Melanie — começou Abel, erguendo a aça. – É bom vê-la aqui no Baron.

– É bom ver o Barão, principalmente agora nesta come­moração.

— Como assim? — perguntou Abel.

— Li sobre o grande jantar no New York Post desta noite, e soube que você chegou a arriscar a vida para salvar os soldados feridos em Remagen. A história me deixou grudada naquela pá­gina desde a estação até aqui. Pintaram-no como um misto de Audie Murphy e do soldado desconhecido.

— Exagero deles.

— Ao que me lembre, você nunca foi modesto antes, Abel. Por isso só posso acreditar que o que li é verdade.

Ele serviu-lhe champanhe.

- A verdade é que sempre senti um pouco de medo de você, Melanie.

— Barão com medo de alguém? Não acredito!

— Bem, não sou nenhum cavalheiro do Sul, como certa vez você me deixou bem claro, lembra-se?

— E você nunca me fez esquecê-lo. — Ela sorriu, provocantemente. — Casou com a sua bela garota polonesa?

— Sim, casei.

— E tudo saiu como esperava?

— Mais ou menos. Hoje ela está gorda, quarentona, e não me atrai mais.

— E a próxima coisa que vai me dizer é que ela não o compreende — disse Melanie, com um tom de voz que, traiçoei­ramente, revelava o prazer que sentira ao ouvir a resposta.

— E você encontrou o seu marido? — perguntou Abel.

— Oh, sim — Melanie respondeu. — Casei-me com um autêntico cavalheiro do Sul que tinha todas as credenciais em dia.

— Meus parabéns — comentou Abel.

— Divorciei-me dele no ano passado... com uma pensão e tanto.

— Oh, lamento — disse Abel, mas mostrando-se satisfeito. — Mais champanhe?

— Por acaso está tentando me seduzir, Abel?

— Não antes que você termine a sopa, Melanie. Até mes­mo a primeira geração de imigrantes poloneses tem o seu padrão de comportamento, embora, confesso, seja a minha vez de se­duzi-la.

— Nesse caso, Abel, devo alertá-lo de que, desde o meu divórcio, não dormi com nenhum homem. Não me faltaram pro­postas, mas nenhum me pareceu merecedor disso. Muitas mãos bobas e nenhuma afeição.

Após o salmão defumado, a vitela, o crême brûlée e um Mouton Rothschild anterior à guerra, tinham já revisto suas vidas desde o último encontro.

– Aceita um café na cobertura, Melanie?

– Depois de uma refeição tão boa, será que tenho escolha?

Abel sorriu e acompanhou-a pelo salão até o elevador. Ao entrar nele, ela vacilou um pouco no alto de seus sapatos. Abel apertou o botão de número 42. Melanie olhou a sucessão pulsante dos números.

— Por que falta o décimo sétimo andar? — indagou com inocência.

Abel não encontrou palavras com que responder. Melanie reiniciou a conversa.

– A última vez que tomei café no seu quarto...

— Não me faça lembrar disso — disse Abel, recordando-se de sua própria vulnerabilidade.

Quando saíram do elevador no quadragésimo segundo andar, um moço abriu-lhes a porta da suíte.

— Deus meu! — exclamou Melanie, passeando o olhar pelo interior da cobertura. — Sem dúvida, Abel, você adaptou-se ao modo de vida dos multimilionários. Nunca em toda a minha vida vi algo tão extravagante!

Ia aproximar-se dela, mas uma leve batida na porta fê-lo deter-se. Um garçom apareceu com um bule de café e uma gar­rafa de Rémy Martin.

— Obrigado, Mike — disse Abel. — Está dispensado. Não queremos mais nada esta noite.

— Não? — Ela falou, sorrindo.

O garçom, não fosse negro, teria denunciado o rubor. Re­tirou-se sem demora.

Abel serviu o café e o conhaque a Melanie. Ela os sorveu devagar, sentando-se no chão com as pernas cruzadas. Se não sentisse desconforto na posição, Abel teria feito o mesmo. Assim, preferiu deitar-se ao lado dela. Melanie acariciou-lhe o cabelo e, a título de experimentação, Abel começou a deslizar a mão pela sua perna. Deus do céu! Como se lembrava destas pernas! Beija­ram-se, e Melanie, com um movimento do pé, livrou-se do sapato, que, indo de encontro à xícara, entornou o resto de café no ta­pete persa.

— Oh! — exclamou. — Estraguei o seu tapete tão bonito!

— Não se incomode com isso. — Envolveu-a com os braços, começando a abrir-lhe o zíper do vestido.

Melanie desabotoou-lhe a camisa, e Abel tentou tirá-la en­quanto a beijava, mas as abotoaduras obrigaram-no a parar, e, em vez de despir-se, ele a ajudou a desfazer-se do vestido. Seu corpo conservava a mesma beleza e era exatamente como ele o guardara na lembrança, a não ser que se tornara sedutoramente mais cheio. Oh, os seios rijos e as pernas longas e formosas. De­sistindo de tentar vencer a batalha contra as abotoaduras com uma só mão, ele a soltou e despiu-se, ciente de que seu corpo fazia um contraste físico violento diante da beleza dela. Tomara fosse verdade tudo o que ele tinha lido sobre a atração das mulheres pela força masculina! Ela não esboçara nenhuma careta de des­gosto, como o fizera ao vê-lo nu pela primeira vez. Delicadamen­te, ele acariciou-lhe os seios e puxou-lhe as pernas para os lados. O tapete persa parecia mais funcional que a cama. Enquanto se beijavam, Melanie tentou desnudar-se completamente. Por um instante desistiu, e finalmente tirou tudo, menos — ele pediu — as ligas e as meias de náilon.

Quando a ouviu gemer, Abel pôde perceber quanto tempo vivera sem experimentar êxtase semelhante, e — em seguida — quão rápida era a sensação. Durante longos momentos, perma­neceram calados, meio ofegantes.

Foi então que Abel sorriu.

— Do que está rindo?

— De nada — respondeu Abel, lembrando-se de que, se­gundo o dr. Johnson, a posição era engraçada, e o prazer, mo­mentâneo.

Ele girou para o tapete, aliviando-a do peso de seu corpo, e Melanie descansou a cabeça em seu ombro. Abel sentia-se sur­preso por não mais desejar ficar junto dela, e, enquanto conti­nuava ali deitado, imaginando como mandá-la embora sem ser rude, ela falou:

— Sinto muito, Abel, mas não poderei ficar a noite toda. Tenho um compromisso logo cedo e vou precisar dormir um pouco. Não quero aparecer com cara de quem passou a noite deitada no seu tapete persa.

— Tem de ir? — Deu a impressão de estar surpreendido, mas não muito.

– Lamento, querido, mas tenho — Ela levantou-se e foi ao banheiro.

Abel observou-a vestir-se e ajudou-a a fechar o zíper. Era bem mais fácil pôr o vestido com vagar do que tirá-lo com pressa. À saída, ele beijou-lhe as mãos como um cavalheiro.

— Espero que logo nos vejamos de novo — disse ele, men­tindo.

— Também espero — certa de que a intenção dele não era essa.

Abel fechou a porta logo que ela saiu e pegou o telefone à cabeceira da cama.

— Em que quarto a srta. Melanie Leroy está hospedada? — perguntou.

Houve um momento de silêncio. Ele pôde ouvir o ruído dos cartões de registro sendo manuseados rapidamente. Bateu impaciente os dedos na mesa.

— Não há nenhuma senhorita registrada com esse nome, senhor — responderam-lhe finalmente. — Encontrei o nome de uma certa sra. Melanie Seaton, de Dallas, Texas, que chegou hoje à noite e partirá amanhã cedo.

— Sim, é ela mesma — disse Abel. — Note bem, a conta dela eu pago.

— Pois não, senhor.

Abel tomou um demorado banho frio e preparou-se para deitar. Sentindo-se tranqüilo, foi até a lareira, onde estava a lâm­pada que iluminara o seu primeiro ato adúltero, e, antes de des­ligá-la, notou que a mancha de café no tapete persa já havia se­cado.

— Cadelinha estúpida! — exclamou em voz alta, e apagou a luz.

 

Depois dessa noite, Abel observou que muitas outras man­chas de café foram aparecendo no tapete persa ao longo dos meses seguintes, umas causadas pelas garçonetes, outras pelas visitantes noturnas, enquanto ele e Zaphia distanciavam-se mais e mais um do outro. O que ele não previra, porém, é que ela contratasse um detetive particular para investigar-lhe a vida e, depois, requeresse o divórcio. O divórcio era praticamente estranho ao círculo de amigos poloneses de Abel, pois o mais comum era a separação ou simples abandono. Cônscio de que tal procedimento nada de bom acrescentaria ao seu prestígio dentro da comunidade polonesa, e certo de que o divórcio não favorecia as ambições sociais ou políticas que almejava concretizar, Abel chegou mesmo a tentar dissuadir Zaphia do intento. Mas ela estava decidida a levar o processo do divórcio até as últimas conseqüências. Surpreso, Abel constatou que a mulher que per­manecera inalterada ante o seu triunfo era, nas palavras de Geor­ge, um demoniozinho de saias em sua obsessão de vingança.

Ao consultar seu próprio advogado, Abel soube, pela segun­da vez, quantas garçonetes e quantas convidadas haviam passado pela sua cobertura durante o último ano. Desistiu de lutar e insis­tiu apenas na custódia de Florentyna, agora com treze anos, seu primeiro e verdadeiro amor na vida. Depois de muito relutar, Zaphia aceitou as condições de Abel: a pensão de quinhentos mil dólares, a escritura da casa de Chicago, e o direito de ver Flo­rentyna no último fim de semana de cada mês.

Abel transferiu para Nova Iorque o centro de comando e a casa permanente, e George o apelidou de Barão Exilado em Chicago, visto que percorria os Estados Unidos de norte a sul, construindo hotéis, e só retornava a Chicago quando precisava entrevistar-se com Curtis Fenton.

 

A carta aberta permanecia sobre uma mesa da sala de estar, ao lado da cadeira de William. Vestido com um roupão, ele sen­tou-se e releu-a pela terceira vez, tentando imaginar por que mo­tivo Abel Rosnovski insistia em comprar as ações do Lester e por que nomeara Henry Osborne um dos diretores do Grupo Baron.

O novato sr. Cohen revelou-se a versão mais jovem do pai: quando chegou a East 68,h Street não houve necessidade de apresentações. Seu cabelo começava a ficar grisalho e ralo exatamente nas mesmas regiões, e o corpo redondo encerrava-se dentro de um terno exatamente igual. Talvez fosse, com efeito, o mesmo terno. William fitou-o, e não apenas porque ele se assemelhava tanto ao pai.

— Sr. Kane, lembra-se de mim? — perguntou o advogado.

— Meu Deus! — William exclamou. — O grande debate de Harvard! Mil novecentos e vinte e...

— Vinte e oito. O senhor venceu o debate e sacrificou-se como sócio do clube Porcellian.

William explodiu numa gargalhada.

– Talvez tenhamos mais sucesso na mesma equipe, se o seu ardor pelo socialismo lhe permitir atuar ao lado de um capitalista descarado.

Levantou-se para saudar Thaddeus Cohen. Por um instante, ambos comportaram-se como bacharelandos. William sorriu.

— E você, que não chegou nem a tomar aquele drinque no Porcellian, o que quer beber?

Thaddeus Cohen recusou a oferta.

— Não bebo — falou, piscando o olho da mesma maneira conciliatória de que William tão bem se lembrava. — E... receio que me tenha tornado um capitalista descarado também.

A cabeça do pai estava no seu pescoço não apenas fisica­mente, mas também mentalmente. Thaddeus fez um claro relato do histórico de Rosnovski e de Osborne, sem deixar de lado as minúcias. William explicou com precisão o que queria dele.

— Um relatório completo e outro, atualizado, a cada três meses, como fazíamos no passado. O sigilo continua sendo de suprema importância — ajuntou —, mas quero saber de tudo o que puder obter. Por que Abel Rosnovski está comprando ações do Lester? Ele ainda acredita que sou o responsável pela morte de Davis Leroy? Ainda continua a combater o Kane & Cabot, mesmo agora, que faz parte do Lester? Que papel Henry Osbor­ne desempenha nisso tudo? Seria conveniente um encontro com Rosnovski, principalmente se eu contasse a ele que foi o banco, e não eu pessoalmente, que rejeitou o apoio financeiro ao Grupo Richmond?

A pena de Thaddeus Cohen escrevia com a mesma fúria da do pai no passado.

— Essas perguntas deverão ser respondidas o mais depressa possível, para que eu possa refletir sobre a necessidade de informar meu conselho.

Enquanto fechava a pasta de couro, Thaddeus Cohen abriu o mesmo sorriso reservado do pai.

— Lamento que esteja enfrentando problemas desse tipo, agora que ainda está em convalescença. Assim que tiver confirmado os fatos, virei procurá-lo. Deteve-se ao chegar à porta. – Admiro-o muito pelo que fez em Remagen.

Nos meses seguintes, William recuperou rapidamente a sen­sação de bem-estar e de vigor, e as cicatrizes do rosto e do peito foram desaparecendo até ficar imperceptíveis. À noite, Kate sen­tava-se ao seu lado, e, quando ele adormecia, sussurrava: “Agra­deço a Deus por tê-lo poupado”. As insuportáveis dores de cabe­ça e os períodos de amnésia aos poucos desapareceram, e o braço direito readquirira a força anterior. Kate insistira em que ele só voltasse ao trabalho depois de um longo e restaurador cruzeiro pelas Antilhas. Desde as férias de Londres, em que eles tinham convivido durante duas semanas, William nunca se sentira tão tranqüilo na companhia de Kate. Ela se regozijava com o fato de no navio não haver bancos que o ocupassem, embora receasse que bastaria mais uma semana a bordo para que William passasse a encarar a nave oscilante como a mais recente aquisição do Lester, propondo-se a reorganizar a tripulação, as rotas, a distribuição de horários, e até mesmo a maneira com que dirigiam “o barco”, como ele teimava em chamar o imenso transatlântico. Quando o navio atracou no porto de Nova Iorque, William estava bron­zeado e impaciente, mas Kate não conseguiu dissuadi-lo de re­tornar prontamente ao banco.

Logo ele se envolveu profundamente nos problemas do Les­ter. Uma nova espécie de homens, endurecidos pela guerra, em­preendedores e ágeis, dirigia os bancos mais modernos dos Estados Unidos, seguidos de perto pelo olhar vigilante de Truman, o homem que, surpreendentemente, saíra vitorioso e continuaria um segundo período na Casa Branca, após o mundo ter sido informa­do de que fatalmente Dewey ganharia a eleição. Como se insa­tisfeito com suas previsões, o Tribune anunciou que Thomas E. Dewey, de fato, havia ganho a eleição, embora Harry S. Truman permanecesse na Casa Branca. William pouco sabia a respeito do pequeno ex-senador do Missouri, a não ser o que lera nos jornais, e, como fiel republicano, confiava em que o partido viesse a en­contrar o homem certo para liderá-lo na campanha de 1952.

O primeiro relatório de Thaddeus Cohen chegou-lhe às mãos; Abel Rosnovski insistia na obtenção das ações do Lester e entra­ra em contato com todos os beneficiários do testamento, mas efe­tivara um só acordo. Susan Lester recusara-se a receber o advo­gado de William, de modo que fora impossível descobrir o moti­vo pelo qual ela vendera os seus seis por cento. Só se podia afir­mar com segurança que não havia motivo financeiro algum que justificasse sua atitude.

O documento de Cohen era admiravelmente pormenorizado.

Henry Osborne, ao que parecia, fora nomeado um dos dire­tores do Grupo Baron em maio de 1946, responsabilizando-se especificamente pela conta do Lester. O mais importante, porém, era que Abel Rosnovski comprara as ações de Susan Lester, mas as investigações não haviam conseguido apurar se elas estariam com ele ou com Osborne. Rosnovski possuía agora seis por cento do banco, e, tudo indicava, estava disposto a pagar outros setecentos e cinqüenta mil dólares pelos dois por cento de Peter Parfitt. William não ignorava o que Abel Rosnovski seria capaz de fazer quando estivesse de posse de oito por cento. Mais preo­cupante ainda era o fato de que a taxa de crescimento do Lester era inferior à do Grupo Baron, que já vinha competindo com seus principais rivais, como o Hilton e o Sheraton. William co­meçava a achar melhor convocar os diretores do conselho e trans­mitir-lhes as informações obtidas, e considerou a possibilidade de se entrevistar com Abel Rosnovski pessoalmente. Após algumas noites em claro, pediu conselho a Kate.

— Não faça nada — sugeriu ela — até confirmar se as in­tenções dele são tão demolidoras quanto pensa. Afinal, poderá descobrir que tudo não passa de tempestade em copo d’água.

— Com Henry Osborne à frente, como capanga, esteja certa de que a tempestade transbordará do copo: nada disso me parece inocente. Não posso me sentar e aguardar que o plano que armou contra mim seja descoberto.

— William, é bem possível que ele tenha mudado. Vocês tiveram alguns poucos contatos há mais de vinte anos!

— Al Capone possivelmente também teria mudado, se ti­vesse a oportunidade de cumprir a sentença. Jamais saberemos da verdade, mas não me disponho a fazer uma aposta.

Kate não disse mais nada, mas William resolveu seguir-lhe o conselho e limitou-se a examinar com extrema atenção os rela­tórios trimestrais de Thaddeus Cohen, esperando que a intuição de Kate fosse correta.

 

A partir do desenvolvimento dos Estados Unidos no pós-guerra, o Grupo Baron passou a beneficiar-se de grandes lucros, desde os anos 20 não se conseguia ganhar tanto dinheiro tão depressa — e, nos primeiros anos da década de 50, todos come­çaram a acreditar que a situação duraria para sempre. Mas o sucesso financeiro não bastava para contentar Abel; à medida que envelhecia preocupava-se mais com o lugar da Polônia no mundo do pós-guerra e achava que o êxito não lhe dava o direito de ser um espectador acomodado a mais de seis mil quilômetros de dis­tância do país. O que lhe havia dito mesmo Pawel Zaleski, o cônsul polonês na Turquia? “Quem sabe, no curso da sua exis­tência, o senhor não assista ao reerguimento de sua Polônia?” Abel fizera o possível para influenciar e persuadir o Congresso americano a adotar uma posição mais combativa com respeito ao controle russo de seus satélites da Europa Oriental. Quando observava o surgimento de um governo socialista fantoche atrás do outro, Abel tinha a impressão de que havia arriscado a vida por nada. Passou então a pressionar os políticos de Washington, a dar esclarecimentos a jornalistas e a organizar jantares em Chica­go e Nova Iorque e outros centros da comunidade polaco-americana, até o momento em que a causa polonesa propriamente acabou por se transformar em sinônimo do Barão de Chicago.

O dr. Teodor Szynanowski, antigo professor de História da Universidade de Cracóvia, escreveu no jornal Freedom um candente editorial sobre “A luta por seu reconhecimento”, referin­do-se a Abel e propondo entrar em contato com ele com o pro­pósito de ver em que mais poderia ajudar. O professor era um homem idoso, e, quando Abel foi introduzido em seu escritório, surpreendeu-se com sua aparência frágil, que contrastava forte­mente com o vigor de suas opiniões. O velho cumprimentou Abel calorosamente e serviu-lhe vodca de Dantzig.

— Barão Rosnovski — disse ele, estendendo-lhe o copo —, há muito o admiro por seu trabalho incansável em favor de nos­sa causa. E, embora façamos poucos avanços, o senhor nunca parece perder a fé.

— Por que deveria perdê-la? Sempre acreditei que tudo é possível nos Estados Unidos.

— Mas receio, barão, que os homens que vêm tentando influenciar o processo sejam os mesmos que permitiram a criação desse estado de coisas. Eles jamais farão qualquer coisa de posi­tivo no sentido de libertar nossa gente.

— Não compreendo onde quer chegar, professor — disse Abel. — Por que não nos ajudarão?

O professor recostou-se na cadeira.

— Não ignora, barão, que os exércitos americanos recebe­ram instruções específicas para afrouxar o avanço em direção ao Leste, a fim de que os russos pudessem pôr as mãos sobre a Europa central e dela tomassem tudo quanto fosse possível. Patton tinha condições de entrar em Berlim muito antes dos russos, mas Eisenhower ordenou-lhe que não o fizesse. Foram nossos líderes em Washington — os mesmos homens que você está tentando convencer a colocar de volta na Europa armas e soldados — que deram tais instruções a Eisenhower.

— Mas naquele momento era impossível saber no que se tornaria a União Soviética. Os russos eram nossos aliados. Con­cordo que, em 1945, fomos indecisos e conciliatórios com eles, mas não podemos afirmar que os americanos tenham traído direta­mente a nosso povo.

Antes de continuar, Szymanowski reclinou-se mais uma vez e, enfastiado, cerrou as pálpebras.

— Gostaria que tivesse tido a oportunidade de conhecer meu irmão, barão. Só na semana passada recebi a notícia de que ele morreu há seis meses, num campo soviético em nada diferente daquele de que o senhor fugiu.

Abel fez menção de se aproximar, como se fosse expressar suas condolências, mas Szymanowski levantou a mão.

— Não, não diga nada. O senhor conheceu os campos. De­veria ser o primeiro a compreender que a compaixão não tem mais importância. Precisamos mudar o mundo, barão, enquanto os outros dormem. — Fez uma pausa. — Os americanos man­daram meu irmão para a Rússia.

Abel fitou-o cheio de assombro.

— Os americanos? Como isso é possível? Seu irmão foi capturado na Polônia pelos russos...

— Meu irmão nunca foi prisioneiro na Polônia. Conseguiu fugir de um campo de guerra alemão, próximo de Frankfurt. Os americanos mantiveram-no num campo de refugiados durante um mês e depois entregaram-no aos russos.

— Não pode ser verdade. Por que fariam isso?

— Os russos queriam que todos os eslavos fossem repatria­dos. Para serem exterminados ou escravizados. Os que escaparam a Hitler não escaparam a Stálin. E posso provar que meu irmão ficou no setor americano por mais de um mês.

— Mas ele foi o único a ser entregue aos russos ou havia muitos outros?

— Ele não foi o único; havia muitos outros — disse Szy­manowski, sem demonstrar emoção alguma. Centenas de milha­res. Talvez milhões. Não creio que venhamos a conhecer os nú­meros exatos. Provavelmente as autoridades americanas não se preocuparam em fazer registros precisos da Operação Kee Chanl.

— Operação Kee Chanl? Por que nunca se menciona esse tipo de coisa? Naturalmente, se as pessoas viessem a saber que nós, americanos, enviamos prisioneiros libertados para, afinal, mor­rer na Rússia, ficariam horrorizadas.

— Não existem provas, não existe nenhuma documentação conhecida relacionada à Operação Kee Chanl. Mark Clark — que Deus o tenha! — desobedeceu a certas ordens, e alguns poucos prisioneiros foram alertados por soldados amigos, de modo que conseguiram fugir antes de serem enviados aos campos. Mas ago­ra estão mortos, e jamais teriam confessado o que aconteceu. Um dos desafortunados estava com meu irmão. De qualquer mo­do, já é tarde demais.

— Mas o povo americano precisa saber disso. Organizarei um comitê, imprimirei panfletos, farei discursos. Com certeza o Congresso nos ouvirá, se contarmos a verdade.

— Barão, acho que é tarefa muito difícil, até mesmo para o senhor.

Abel levantou-se.

— Não o estou subestimando, amigo — continuou o pro­fessor. — Acontece que ainda não compreendeu a mentalidade dos líderes do mundo. Os Estados Unidos concordaram em entre­gar aqueles pobres-diabos, porque assim exigiu Stálin. Tenho certeza de que jamais imaginaram que fosse haver julgamentos, campos de trabalho forçado e execuções. Mas hoje, quando entra­mos nos anos 50, quem confessará ter sido indiretamente res­ponsável por esse ato? Não, ninguém o fará. Talvez daqui a cem anos. Mas, até lá, todos, com exceção de uns poucos historiado­res, terão esquecido que a Polônia perdeu mais vidas na guerra do que qualquer outra nação, inclusive a Alemanha. Cheguei a pensar que o senhor chegaria à conclusão de que deve desempe­nhar um papel na política.

— Já andei pensando nisso, mas não concebo de que forma o faria.

— Tenho algumas idéias sobre o assunto, barão. Mantenha-se em contato comigo.

O velho levantou-se com esforço e abraçou Abel.

— Enquanto isso, faça o que puder pela causa, mas não se assuste quando encontrar portas fechadas.

Assim que voltou ao Baron, Abel pediu à telefonista que ligasse para o escritório do senador Douglas. Paul Douglas era o senador liberal democrata de Illinois, eleito com o apoio da má­quina eleitoral de Chicago, e sempre se mostrara útil e receptivo a quaisquer pedidos de Abel no passado, ciente do fato de que seu eleitorado abrangia a maior comunidade polonesa do país. Seu se­cretário, Adam Tomaszewicz, sempre se relacionara com os repre­sentantes poloneses.

— Alô, Adam, é Abel Rosnovski quem fala. Tenho um as­sunto assaz perturbador para conversar com o senador. Poderia marcar uma entrevista com ele?

— Lamento, mas ele não se encontra na cidade hoje, sr. Ros­novski. Acredito que ele terá enorme satisfação em conversar com o senhor tão logo volte, na quinta-feira. Direi a ele que lhe tele­fone. Posso informá-lo antecipadamente do assunto?

— Mas é claro, e, sendo polonês, o assunto é do seu interes­se. Soube, de fontes seguras, que as autoridades americanas na Alemanha colaboraram no retorno de cidadãos poloneses refugia­dos para os territórios ocupados pela União Soviética. Muitos fo­ram em seguida mandados aos campos de trabalho forçado russos, e nunca mais se ouviu falar deles.

Houve um silêncio momentâneo do outro lado da linha.

— Darei a informação ao senador assim que ele voltar, sr. Rosnovski — disse Adam Tomaszewicz. — Obrigado por ter tele­fonado.

 

Na quinta-feira, o senador não entrou em contato com Abel. Nem mesmo na sexta-feira ou no fim de semana. Na segunda-feira, pela manhã, Abel tornou a ligar para o escritório dele. Adam Tomaszewicz atendeu.

— Oh, olá, sr. Rosnovski. — Abel teve a impressão de que ele hesitara. — Há um recado do senador para o senhor. Sabe como é, ele tem estado muito ocupado com os projetos de lei que deverão ser votados antes que o Congresso entre em recesso. Ele o procurará assim que tiver um tempo livre.

— Deu meu recado a ele?

— Naturalmente. Na opinião dele, esses rumores fazem parte da propaganda antiamericana. Disse que, segundo lhe con­tou pessoalmente um dos chefes da comissão de inquérito, os soldados americanos receberam ordens de não libertar os refugia­dos de guerra que se encontravam sob seu controle.

Tomaszewicz falava como se estivesse lendo atentamente uma declaração escrita, e Abel percebeu que havia acabado de encontrar a primeira porta fechada. O senador Douglas nunca o evitara até então.

Abel desligou o telefone e discou o número de outro sena­dor, esperando que esse o ouvisse com atenção e não se evadisse com base em opiniões alheias.

Uma funcionária do escritório do senador Joseph McCarthy o atendeu e perguntou quem queria falar com o senador.

— Vou procurá-lo — disse a voz feminina e jovem, depois de ouvir de Abel a explicação do motivo por que desejava falar com o senador. McCarthy aproximava-se do ápice de seu poder, e Abel esperou ter a sorte de conversar longamente com ele.

— Sr. Rosenevski... — foram as primeiras palavras de Mc­Carthy.

Deturpara-lhe o nome de propósito ou a ligação estava ruim?

— ... mas que assunto é esse, tão urgente e tão grave, a ponto de o senhor querer falar comigo? — perguntou o senador.

Abel ficou hesitante, estava um tanto perturbado ao falar diretamente com McCarthy.

— Confie em mim, pois sei guardar segredos — disse o senador, que percebera nitidamente a sua hesitação.

— Confiarei, já que me garante o sigilo — disse Abel, e fez uma pausa para ordenar os pensamentos. — Senador, o senhor tem sido um porta-voz leal de todos nós que desejamos ver as nações da Europa oriental libertas do jugo do comunismo.

— Assim tenho sido, assim tenho sido. E alegro-me por reconhecê-lo, sr. Rosenevski.

Dessa vez Abel teve certeza de que ele pronunciara o nome erradamente de propósito, mas preferiu não dizer nada.

— Quanto à Europa oriental — prosseguiu o senador —, o senhor deve compreender que, tão-somente quando os traidores forem expulsos de dentro do nosso governo, nós poderemos to­mar medidas reais para libertar o seu país.

— É sobre esse assunto que gostaria de conversar com o senhor, senador. O senhor alcançou excelentes resultados ao de­nunciar a traição no interior do nosso governo. Até agora, porém, um dos maiores crimes cometidos pelos comunistas não foi divul­gado.

— A que grande crime se refere, sr. Rosenevski? Desde que cheguei a Washington não paro de descobrir crimes.

— Refiro-me — Abel endireitou o corpo na cadeira — à repatriação forçada de milhares de cidadãos poloneses feita pelas autoridades americanas ao término da guerra. Inimigos inocentes do comunismo foram mandados de volta à Polônia e em seguida à União Soviética, para lá serem escravizados e até mesmo assas­sinados.

Abel aguardou uma resposta, mas ouviu apenas o silêncio. Houve um clique na linha. Alguém mais estaria escutando a con­versa?

— Como pode ser tão idiota, Rosenevski? — o senador estava completamente mudado. Como se atreve a me telefonar para dizer que os americanos — os leais soldados dos Estados Unidos — mandaram milhares de poloneses de volta à Rússia se ninguém ouviu uma só palavra sobre isso? Pede-me para acre­ditar nessa bobagem? Nem mesmo um polonês seria tão estúpi­do! Posso imaginar que tipo de pessoa aceita uma mentira dessa sem nenhuma prova! Também quer que eu acredite que os sol­dados americanos são desleais? É o que quer? Diga-me, sr. Rosenevski, diga-me, o que está acontecendo com pessoas como o senhor? Será que é tão imbecil a ponto de não identificar uma propaganda comunista, mesmo quando a enfiam bem na sua cara? Precisa roubar o tempo de um senador sobrecarregado de traba­lho por causa de um boato cozinhado com a lama do Pravda, sim­plesmente com o intuito de provocar agitação nas comunidades de imigrantes dos Estados Unidos?

Abel permaneceu sentado, inerte, chocado com a explosão. Antes que o senador chegasse ao meio daquela invectiva, perce­beu que qualquer contra-argumento seria despropositado. Aguar­dou o fim do discurso histriônico e sentiu-se feliz por seu espanto não poder ser visto pelo senador.

— Senador, sem dúvida o senhor está com a razão, e só posso lamentar o fato de ter lhe tomado o tempo — comentou Abel calmamente. — Eu não havia pensado no assunto sob esse ponto de vista.

— Isso apenas ilustra até onde podem ir as artimanhas da­queles calhordas comunistas — disse McCarthy, apaziguado. — Não tire os olhos de cima deles. Em todo caso, agora o senhor estará alerta contra o crescente perigo que ameaça o povo ameri­cano.

— Sem dúvida, senador. Obrigado, mais uma vez, por se ter dado ao trabalho de atender-me pessoalmente. Adeus, senador.

— Passe bem, sr. Rosenovski.

Abel ouviu o ruído do fone cair sobre o gancho e achou bastante parecido ao de uma porta que se fechava.

 

William só tomou consciência de que envelhecia quando Kate, de brincadeira, chamou sua atenção para os fios de cabelo grisalho, que ele costumava contar, mas que agora iam além da conta. Richard começara a levar para casa as moças que julgava atraentes. William quase sempre aprovava as jovens senhoritas, como as chamava, provavelmente porque se pareciam demais com Kate, que, refletia ele, na meia-idade estava bela como nunca. As filhas, Virgínia e Lucy, agora também tornando-se jovens senho­ritas, tinham se transformado na imagem da mãe, o que lhe trou­xera grande felicidade. Virgínia revelava pendores artísticos, e as paredes da cozinha e dos quartos de criança estavam sempre co­bertas de suas últimas obras de gênio, como Richard, gracejando, as apelidava. A desforra de Virgínia chegou no dia em que Richard começou a tomar aulas de violoncelo, e até mesmo os criados co­chichavam comentários desagradáveis toda vez que o arco tocava as cordas. Lucy adorava os dois irmãos, e, sem nenhum juízo crítico, considerava Virgínia igual a Picasso, e Richard, o novo Casals. William começou a imaginar o que o futuro reservaria aos filhos quando ele não mais estivesse entre eles. Aos olhos de Kate, os três filhos faziam progressos satisfatórios. Richard, então na St. Paul’s School, fizera avanços apreciáveis com o vio­loncelo e chegara a ser escolhido para tocar num concerto da es­cola, enquanto Virgínia pintava tão bem a ponto de um de seus quadros ter sido pendurado na sala da frente. Mas ficara evidente para toda a família que Lucy se tornaria a beleza personificada, quando, com apenas onze anos, começara a receber bilhetinhos de amor dos garotos que, até aquele momento, só se interessavam por beisebol.

Em 1951, Richard fora aceito em Harvard, e, embora não tivesse ganho a bolsa máxima para o curso de matemática, Kate apressou-se a fazer William ver que o menino jogava beisebol e tocava violoncelo na St. PauPs, dois talentos que ele mesmo nun­ca se vira tentado a desenvolver. William, no íntimo, orgulhava-se das habilidades de Richard, mas resmungou a Kate que não conhecera muitos banqueiros que tivessem jogado beisebol ou tocado violoncelo.

Os negócios bancários tinham entrado num período de ex­pansão desde que os americanos passaram a acreditar numa paz duradoura. William logo se viu mergulhado num trabalho exces­sivo, e, por um curto tempo, colocara em segundo plano a amea­ça que era Abel Rosnovski e todos os problemas relacionados a ele.

Os relatórios trimestrais de Thaddeus Cohen acusavam que Rosnovski havia embarcado numa viagem que não pretendia in­terromper, e que, através de uma terceira pessoa, deixava todos os acionistas, com exceção de William, a par do seu interesse nas ações do Lester. William perguntava-se se aquela linha de con­duta não o estaria levando a um confronto direto com o polonês. Pressentia que, mais cedo ou mais tarde, precisaria informar o conselho do Lester sobre as manobras de Rosnovski, e, possivel­mente, apresentar sua demissão, caso o banco se colocasse sob estado de sítio, uma decisão que resultaria na vitória total de Abel Rosnovski — razão por que não a encarava com severidade. Entendia que, se tivesse de lutar pela sua vida, lutaria, e, se um dos dois tivesse de ser derrotado, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir que não fosse ele próprio.

A questão a respeito do programa de investimento de Abel Rosnovski finalmente foi-lhe tirada das mãos.

No início de 1951, o banco fora convidado a representar uma das novas companhias de aviação dos Estados Unidos, a Interstate Airways, quando a Federal Aviation Administration concedeu franquia de vôo entre as costas Leste e Oeste. A Inters­tate procurara o Lester em virtude da necessidade de levantar trinta milhões de dólares, o capital requerido pelos regulamentos do governo.

William julgou vantajoso apoiar a companhia aérea e todo o projeto, e, virtualmente, dedicou todo o seu tempo à elaboração de uma oferta pública com o fim de levantar aquela soma. O banco, que atuava como responsável pelo projeto, aplicou todos os recursos no novo empreendimento. Era o maior projeto de William desde que retornara ao banco, e, ao recorrer ao mercado para conseguir os trinta milhões de dólares, ele compreendeu que a sua reputação pessoal estava em jogo. No mês de julho, anun­ciados os detalhes da oferta, o capital foi subscrito em questão de dias. William recebeu pródigos elogios enviados dos quatro cantos do país pela forma com que conduzira o projeto e o sus­tentara até o sucesso final. Ele próprio não pôde conter a alegria diante dos resultados — pelo menos até ler o relatório seguinte de Thaddeus Cohen, quando soube que dez por cento das ações da companhia aérea haviam sido adquiridas por uma das empre­sas que defendiam os interesses de Abel Rosnovski.

William concluiu que chegara o momento de comunicar a Ted Leach e Tony Simmons os seus piores temores. Chamou Tony a Nova Iorque, reuniu os dois vice-presidentes no seu gabinete e relatou-lhes a saga de Abel Rosnovski e Henry Osborne.

— Por que não nos informou antes sobre isso? — foi a primeira reação de Tony Simmons.

— No Kane & Cabot, estive em contato com centenas de companhias semelhantes ao Grupo Richmond, Tony, e naquela época não imaginei que ele levaria tão a sério a idéia da desforra. Só me convenci de que, de fato, se tratava de uma obsessão quando Rosnovski comprou dez por cento da Interstate Airways.

— Talvez esteja se assustando à toa — tranqüilizou-o Ted Leach. — De uma coisa tenho certeza: não seria prudente infor­mar os diretores do conselho. Estamos a poucos dias do lança­mento de uma nova companhia, e a última coisa que queremos é o pânico.

— Estou de pleno acordo — disse Tony Simmons. — Por que não esclarece tudo pessoalmente com esse Rosnovski?

— Tenho a impressão de que é exatamente isso o que ele quer que eu faça — respondeu William. — Ele veria confirmado o fato de que o banco se sente assediado.

— Não acha que ele mudaria de atitude se lhe contasse o quanto tentou, sem sucesso, convencer o banco a financiar o Grupo Richmond e que...

— Nada me faz crer que ele ainda não saiba disso — disse William. — Ele parece estar a par de tudo o que acontece.

— Nesse caso, na sua opinião, o que o banco deveria fazer em relação a Rosnovski? — indagou Ted Leach. — Sem dúvida não conseguiremos impedi-lo de comprar nossas ações, visto que existem pessoas dispostas a vendê-las. Se nós mesmos as comprás­semos, longe de impedi-lo, faríamos exatamente o jogo dele, au­mentando o valor de suas ações e comprometendo a nossa pró­pria situação financeira. Vocês podem estar certos de que ele se divertiria muito em nos ver sofrer. Harry Truman está de olho em bancos importantes como o nosso, e, além disso, às portas das eleições, nada agradaria mais aos democratas do que um es­cândalo na área bancária.

– A meu ver — disse William —, pouco temos a fazer, mas era meu dever colocá-los a par das intenções de Rosnovski, prevenindo-os para o caso de ele nos preparar uma nova surpresa.

– Acredito ainda na possibilidade, remota talvez — pon­derou Tony Simmons —, de que não haja maldade alguma nisso tudo, e de que, no fundo, ele simplesmente o respeite como investidor talentoso.

— Tony, como pode me dizer isso sabendo que meu pa­drasto está envolvido no caso? Acha que Rosnovski empregou Henry Osborne para promover a minha carreira bancária? Evi­dentemente você não conhece Rosnovski tanto quanto eu. Há vinte anos ou mais venho acompanhando a vida dele. Não está acostu­mado a perder; continua lançando os dados até finalmente sair vitorioso. Não o conheceria tão bem, se fosse um membro da minha família. Ele irá...

— Não vá ficar paranóico, William, eu espero que...

— Tony, não vou ficar paranóico!? Basta lembrar-se do po­der que o estatuto do banco propicia a quem tiver oito por cento das ações do banco, graças a um artigo que eu próprio incluí nele para defender-me de um eventual afastamento. O homem já pos­sui seis por cento, e, se isso, por si só, não prenuncia um péssimo futuro, lembre-se de que Rosnovski poderia fazer a Interstate Airways desaparecer do mapa colocando de uma só vez no mer­cado todas as suas ações.

— Mas ele nada ganharia com isso — disse Ted Leach. — Pelo contrário, perderia muito dinheiro.

— Acreditem em mim, vocês não sabem como funciona a cabeça de Abel Rosnovski — disse William. — Ele tem a cora­gem de um leão. Um prejuízo nada significaria para ele. Conven­ci-me muito depressa de que o único interesse dele é emparelhar-se comigo. Sim, é claro que, se se desfizesse das ações, perderia muito dinheiro, mas poderá sempre recorrer aos hotéis. São vinte e um agora, como sabem, e ele deve estar ciente de que, se da noite para o dia as ações da Interstate Airways sofrerem uma queda, nós também seremos derrotados. Como banqueiros, nossa credibilidade depende da confiança de um público volúvel, con­fiança que Abel Rosnovski poderá esmigalhar como e quando lhe convier.

— Vamos com calma, William — disse Tony Simmons. — Nada disso aconteceu até agora. Já que ficamos sabendo das in­tenções de Rosnovski, vamos vigiar de perto as atividades dele e contra-atacá-las. Em primeiro lugar, temos de garantir que nin­guém mais venda as ações do Lester antes de oferecê-las a você. O banco o apoiará sempre em todas as medidas que quiser tomar. Quanto a você, sou da opinião de que deveria conversar com Rosnovski pessoalmente e ser franco com ele. Pelo menos assim saberemos da seriedade dos propósitos dele e nos prepararemos segundo o que verificarmos.

— Sua opinião também é essa, Ted? — perguntou William.

— Sim, concordo com Tony. Você deve entrar em contato com o homem diretamente. É do interesse do banco descobrir se as intenções dele são ou não inofensivas.

William permaneceu em silêncio alguns momentos.

— Se vocês dois pensam dessa maneira, eu tentarei — disse finalmente. — Preciso ressalvar, porém, que não estou de acordo com vocês. Mas é possível que eu esteja por demais envolvido no caso para fazer um julgamento imparcial. Peço-lhes alguns dias para pensar na melhor maneira de procurá-lo, e então comunica­rei a vocês os resultados.

Depois que os dois vice-presidentes deixaram o gabinete, William ficou refletindo sobre a decisão que concordara em tomar, seguro de que, devido à implicação de Henry Osborne no caso, haveria poucas possibilidades de ser bem sucedido no confronto com Abel Rosnovski.

 

Quatro dias depois, William fechou-se na sala, depois de ter dito à secretária que não deveria ser interrompido em hipótese alguma. Sabia que Abel Rosnovski estava no escritório do Baron de Nova Iorque: havia colocado no hotel um homem cuja única tarefa era informar o momento em que Rosnovski aparecesse. O homem lhe telefonou: Abel Rosnovski chegara às oito e vinte e sete da manhã, subira para o quadragésimo segundo andar e não mais fora visto. William pediu à telefonista que ligasse para o Baron Hotel.

— Baron de Nova Iorque.

— O sr. Rosnovski, por favor — pediu William, nervoso.

A ligação foi transferida para a secretária de Abel.

— O sr. Rosnovski, por favor — repetiu. Dessa vez a voz saíra um pouco mais firme.

— Quem deseja falar com ele?

— William Kane.

Houve um longo silêncio — ou simplesmente pareceu longo a William?

— Não sei se ele está, sr. Kane. Um momento, vou verificar.

Outro longo silêncio.

— Sr. Kane?

— Sr. Rosnovski?

— Em que posso ajudá-lo, sr. Kane? — a voz era calma e com leve sotaque.

Embora William tivesse preparado o começo da conversa, não ignorava que falava com ansiedade.

— Estou um pouco preocupado com os títulos do Lester que adquiriu, sr. Rosnovski, e também com a forte posição que con­quistou numa das companhias que representamos. Penso que já é hora de nos encontrarmos e conversarmos sobre seus propósitos. Gostaria ainda que tomasse conhecimento de um assunto parti­cular.

Outro longo silêncio. A ligação teria sido interceptada?

— Não há condições possíveis de nos encontrarmos, sr. Kane. Sei o suficiente a seu respeito, e não estou disposto a ouvir suas desculpas com relação ao passado. Mantenha os olhos aber­tos o tempo todo e perceberá nitidamente quais são os meus pro­pósitos. Compreenderá que diferem muito daqueles que constam do Gênese, sr. Kane. Um dia o senhor terá o impulso de atirar-se pela janela do décimo segundo andar de um dos meus hotéis, porque as suas próprias ações do Lester lhe darão muita dor de cabeça. Preciso apenas de mais dois por cento para recorrer ao artigo 7, e nós dois sabemos o que isso significa, não sabemos? Então, provavelmente, o senhor experimentará pela primeira vez aquilo que senti por Davis Leroy, que imaginou durante meses o que o banco faria da vida dele. Agora o senhor pode sentar-se e imaginar, durante anos, o que farei com a sua vida assim que obtiver os oito por cento.

As palavras de Abel Rosnovski arrefeceram William, mas ele conseguiu, de algum modo, aparentar serenidade, mas ao mesmo tempo batia, irritado, o punho na mesa.

— Compreendo como se sente, sr. Rosnovski, mas ainda acredito que seria sensato conversarmos a fim de esclarecermos todas as questões. Existem um ou dois aspectos que, estou certo, o senhor desconhece.

— Por exemplo, de que maneira enganou Henry Osborne, privando-o de quinhentos mil dólares, sr. Kane?

William emudeceu por alguns instantes e desejou explodir, mas uma vez mais conseguiu controlar-se.

— Não, sr. Rosnovski, o que eu quero lhe falar não diz respeito ao sr. Henry Osborne. Trata-se de um assunto pessoal que tem a ver apenas com o senhor. Entretanto, devo garantir-lhe, e com uma certa ênfase, que nunca privei o sr. Henry Os­borne de um só centavo.

— A versão de Henry é outra. Ele diz que o senhor foi responsável pela morte de sua própria mãe, a fim de não ter que saldar com ele uma dívida. Depois de testemunhar o modo com que tratou Davis Leroy, sinto-me inclinado a acreditar nessa his­tória.

William nunca precisara esforçar-se tanto para controlar suas emoções. Só depois de alguns segundos encontrou uma resposta.

— Aceita a minha sugestão de esclarecermos todo esse mal-entendido de uma vez para sempre, encontrando-nos num lugar isolado, à sua escolha, onde ninguém poderá nos reconhecer?

— Existe apenas um lugar onde ninguém o reconheceria, sr. Kane.

— Onde fica? — perguntou William.

— No paraíso — retrucou Abel, devolvendo o fone ao gancho.

 

— Quero falar imediatamente com Henry Osborne — disse Abel à secretária.

Tamborilou os dedos sobre a mesa, enquanto a secretária, durante quinze minutos, tentava encontrar o deputado Osborne, o qual, como veio a saber, estivera mostrando o Capitólio a al­guns de seus eleitores.

— É você, Abel?

– Sim, Henry. Pensei que gostaria de ser o primeiro a saber que Kane descobriu tudo. A partir de agora, nossa batalha será travada em campo aberto.

— Como assim, descobriu tudo? Acha que ele sabe que estou implicado? — perguntou Henry, mostrando ansiedade.

— Sem sombra de dúvida. E sabe também das contas espe­ciais da companhia, das minhas ações do Lester e da Interstate Airways.

— Mas como foi descobrir tudo e com tantos detalhes? Só você e eu sabemos das contas especiais.

— E Curtis Fenton — disse, interrompendo-o.

— Tem razão. Mas ele não informaria Kane. Nunca.

— Deve tê-lo informado. Quem mais o faria? Não se es­queça de que Kane tratou diretamente com Curtis Fenton quando tomei posse do Grupo Richmond. Imagino que durante todo este tempo eles tenham se mantido em contato de alguma forma.

— Jesus!

— Você me parece preocupado, Henry.

— Se William Kane sabe de tudo, a regra do jogo já é outra. Estou avisando, Abel, ele não é homem de perder.

— Muito menos eu — replicou Abel. — E depois William Kane não me mete medo; não, enquanto eu tiver os dados na mão. Quantas ações temos nos negócios de Kane?

— Seis por cento do Lester, dez por cento da Interstate Airways, e alguns pingados em outras companhias a que eles estão ligados. Faltam-lhe apenas dois por cento do Lester para que você possa recorrer ao artigo 7, mas Peter Parfitt continua resistindo.

— Excelente — exclamou Abel. — A situação não poderia ser melhor. Vá insistindo com Parfitt, mas lembre-se de que, en­quanto William não chegar perto dele, não tenho pressa. Por enquanto, deixemos Kane à espera do nosso próximo passo. E não faça nada enquanto eu não voltar da Europa. Depois de ter conversado pelo telefone com o sr. Kane nesta manhã, posso ga­rantir a você, para usar uma expressão de cavalheiro, que ele está transpirando. Mas eu não estou. Ele que continue assim, porque não tenho a menor intenção de me mexer até me sentir forte e preparado.

— Ótimo. Se acontecer alguma coisa preocupante deste lado do mundo, eu o informarei.

— Ponha isto na sua cabeça, Henry. não há nada com que nos preocupar. Pegamos o seu amigo, o sr. Kane, pelas bolas, e a partir de agora pretendo ir espremendo-as bem devagarinho.

— Vou gostar de ver isso. — Henry demonstrou certo contentamento.

— Às vezes acho que você odeia Kane mais do que eu mesmo.

Henry deu um riso nervoso.

— Faça uma boa viagem à Europa.

Abel pôs o fone no gancho e fitou o vazio, refletindo sobre o seu próximo passo, os dedos ainda batendo ruidosamente na mesa. A secretária entrou.

— Ligue para o sr. Curtis Fenton, do Continental Trust Bank — pediu, sem olhá-la. Os dedos continuaram a bater na mesa. Os olhos continuavam a fitar o vazio. Momentos depois, o telefone tilintou.

— Fenton?

— Bom dia, sr. Rosnovski, como tem passado?

— Quero encerrar todas as minhas contas no seu banco.

Não houve resposta do outro lado da linha.

— Fenton, você me ouviu?

— Ouvi — o banqueiro estava estupefato. — Posso saber por quê, sr. Rosnovski?

— Porque meu apóstolo predileto nunca foi Judas, Fenton, eis por quê. A partir deste instante, você não pertence mais ao conselho do Grupo Baron. Em breve receberá instruções por es­crito que confirmarão esta conversa e indicarão para que banco as contas deverão ser transferidas.

— Mas não entendo por quê, sr. Rosnovski. O que fiz...?

Ao ver a filha entrar no escritório, Abel desligou.

— A conversa não parecia agradável, papai.

— Não era agradável mesmo, mas não tinha nada a ver com você, querida. — Abel mudou imediatamente o tom de voz. — Conseguiu comprar as roupas de que precisava para ir à Europa?

— Sim, papai, obrigada, mas acontece que não sei direito qual é a moda de Londres e Paris. Espero ter comprado as roupas certas. Não queria chamar a atenção de todo mundo, como se fosse um dedão enfaixado.

— Vai chamar a atenção, sim, minha querida, mas por ser a coisinha mais linda que os ingleses viram nos últimos tempos. Com o seu bom gosto nato e o seu senso de cor, ninguém vai achar que conseguiu as roupas com o talão de racionamento. Os jovens europeus disputarão a sua companhia, mas eu estarei lá para defendê-la. Agora proponho irmos almoçar e conversar sobre o que faremos enquanto estivermos em Londres.

Dez dias mais tarde, depois de Florentyna ter passado um longo fim de semana com a mãe — Abel não perguntou por ela – os dois voaram do Aeroporto de Idlewild, de Nova Iorque ao Heathrow, de Londres. O vôo, num Boeing 377, durou quase catorze horas, e, embora tivessem repousado, quando chegaram ao Claridge’s, na Brook Street, a única coisa que queriam era um longo período de sono.

Abel ia à Europa por três motivos: primeiro, para confirmar os contratos de construção de novos hotéis Baron em Londres, Paris e, provavelmente, Roma; segundo, dar a Florentyna a opor­tunidade de conhecer a Europa antes de entrar para Radcliffe, onde estudaria línguas modernas; e, terceiro, e o mais importante, revisitar o castelo da Polônia e verificar se havia alguma possi­bilidade, a mais remota que fosse, de provar o seu direito de pro­priedade.

Londres revelou-se um sucesso para ambos. Os consultores de Abel tinham localizado um terreno próximo do Hyde Park, e ele instruiu seus procuradores a iniciar imediatamente as nego­ciações de compra e providenciar os alvarás, indispensáveis para que a Inglaterra se orgulhasse de também possuir um Baron Hotel. Florentyna achou desagradável a austeridade da Londres de pós-guerra, conhecendo a extravagância de sua própria terra, mas os londrinos pareciam não se intimidar pelos estragos que a guerra causara à cidade, acreditando ainda serem uma potência mundial. Foi convidada para almoços, jantares e bailes, e o pai viu confirmada a sua opinião sobre o gosto da filha pelas roupas e sobre a reação dos jovens europeus. Ela voltava toda noite com os olhos brilhantes de alegria e com histórias das novas conquis­tas que fizera — e que esquecia completamente na manhã se­guinte. Sem conseguir decidir-se, Florentyna uma hora queria casar-se com um dos etonianos da Guarda de Granadeiros que a saudavam a todo momento, outra com um membro da Câmara dos Lordes que estava a serviço da corte do rei. Ela não sabia precisamente o que “a serviço” significava, mas ele sabia perfei­tamente de que modo tratar uma senhorita.

Em Paris, pai e filha prosseguiram no mesmo ritmo, e, visto que ambos falavam o francês, relacionaram-se tão bem com os parisienses como com os ingleses. Em geral, Abel aborrecia-se na segunda semana de quaisquer férias, e logo contava quantos dias faltavam para retomar o trabalho. Isso, porém, não corria na companhia de Florentyna. A menina convertera-se, desde que ele se separara de Zaphia, no centro de sua vida e na única herdeira de sua fortuna.

Veio o momento de deixarem Paris, mas nenhum dos dois mostrava-se disposto a fazê-lo. Assim, com o propósito de pro­longar a estada na cidade por mais alguns dias, Abel alegou a necessidade de concluir as negociações de compra de um famoso hotel, agora decadente, situado no Boulevard Raspail. Não noti­ficou o proprietário, um certo M. Neuffe — aparentemente, se isso era possível, mais decadente do que o próprio hotel —, de que planejava demolir o edifício e começar do nada. Quando M. Neuffe assinou os documentos poucos dias depois, Abel deter­minou a derrubada do prédio, e, sem nenhuma outra justifica­tiva que o prendesse a Paris, voou com Florentyna com destino a Roma.

Após a cordialidade inglesa e a alegria da capital francesa, a taciturna e dilapidada Cidade Eterna logo lhes baixou o ânimo, pois para os romanos parecia não existir passado. Em Londres, tinham feito longas caminhadas pelos magníficos parques reais, contemplado edifícios históricos, e Florentyna havia dançado até as primeiras horas da madrugada. Em Paris, tinham ido ao Opera, almoçado às margens do Sena, e, descendo o rio de barco, passa­vam por Notre-Dame e ceavam no Quartier Latin. Em Roma, Abel encontrou uma esmagadora sensação de instabilidade finan­ceira, o que o levou a arquivar os planos de construir um Baron na capital italiana. Florentyna, uma vez mais pressentindo a an­siedade do pai por rever o castelo da Polônia, sugeriu que deixas­sem a Itália um dia antes do previsto.

Foi mais difícil vencer a burocracia para conseguir um visto de entrada num país da Cortina de Ferro do que para obter o alvará de construção de um novo hotel de quinhentos quartos em Londres. Um visitante menos persistente por certo teria de­sistido, mas, com os vistos devidamente firmados em seus passa­portes, Abel e Florentyna alugaram um automóvel e dirigiram-se para Slonim. Os dois viajantes foram obrigados a esperar durante horas na fronteira polonesa, contando apenas com a vantagem de Abel falar fluentemente a língua. Se os guardas soubessem por que seu polonês era tão bom, sem dúvida teriam assumido uma posição completamente diferente ao conceder-lhe o visto de entra­da. Abel trocou quinhentos dólares em dinheiro polonês — o que pelo menos pareceu agradar aos poloneses — e prosseguiu a jor­nada de carro. Quanto mais se aproximavam de Slonim, mais Flo­rentyna podia compreender o significado dessa viagem para o pai.

— Papai, não me lembro de tê-lo visto tão entusiasmado com alguma coisa.

— Foi aqui que nasci — explicou. — Depois de passar tanto tempo na América, onde todos os dias as coisas estão mudando, é quase um sonho voltar a um lugar em que nada mudou desde que parti.

Continuaram avançando em direção a Slonim, e Abel ficou muito atento, ao rever o lugar de sua infância. Ele estava ao mes­mo tempo chocado e revoltado com a desolação dos pequenos chalés, antes conservados e asseados. Recuando quase quarenta anos no tempo, ouviu sua própria voz de criança perguntando ao barão se a hora dos povos dominados da Europa havia chegado e se ele poderia desempenhar o seu papel; seus olhos marejaram-se ao pensar em quão curta havia sido aquela hora, e quão pe­queno o papel que desempenhara.

Quando completaram a curva que ia dar na propriedade do barão e encontraram os grandes portões de ferro que conduziam ao castelo, mas que ainda não podia ser visto, Abel riu muito alto, tomado de entusiasmo, e parou o carro.

— Está exatamente igual. Nada mudou. Venha comigo. Co­mecemos pela choupana onde passei os primeiros cinco anos da minha vida. Não acredito que alguém esteja morando lá. Depois entraremos no castelo.

Florentyna acompanhou o pai, que, com segurança, desceu por uma vereda e penetrou numa floresta de carvalhos e de bétulas cobertas de musgo, que por mais um século continuaria a mesma. Após uma caminhada de cerca de vinte minutos, saíram numa clareira. Diante deles estava a choupana do armador de laços. Abel não se lembrava mais de como era minúsculo o seu primeiro lar: será que de fato tinham morado nove pessoas den­tro dela? O telhado de sapé desmantelara-se, e a casa, com as pedras erodidas e as janelas quebradas, dava a impressão de estar desabitada. A horta, antes tão bem organizada, perdia-se no ema­ranhado de vegetação rasteira.

Teriam abandonado a choupana? Florentyna pegou no braço do pai e lentamente conduziu-o à porta da frente. Ali Abel parou. Florentyna bateu de leve à porta. Em silêncio, esperaram. Floren­tyna bateu de novo, um pouco mais forte, e então escutaram al­gum ruído, no interior da habitação.

— Já vai, já vai — disse uma mulher em polonês, num tom de queixa. Pouco a pouco a porta foi se abrindo. Apareceu uma velha magra e encurvada, toda vestida de preto. Fios de cabelo branco escapavam por debaixo do lenço que lhe cobria a cabeça, e seus olhos acinzentados fitaram vagamente os visitantes.

— Não é possível — murmurou Abel.

— O que querem? — perguntou a velha senhora, com des­confiança.

Não tinha dentes, e as linhas de seu nariz, boca e bochechas formavam um arco côncavo perfeito.

— Podemos entrar e conversar com a senhora? — falou Abel em polonês.

O olhar dela, receoso, passou de um para o outro.

— A velha Helena não fez nada de errado — disse ela num lamento.

— Eu sei — Abel falou com brandura. — Tenho notícias para a senhora.

Ainda relutando um pouco, ela consentiu que entrassem no cômodo vazio e frio, mas não lhes ofereceu assento. O cômodo era o mesmo: duas cadeiras, uma mesa, e a lembrança de que, até o dia em que saíra pela última vez da choupana, não sabia o que era um tapete. Florentyna sentiu frio.

— Não consigo avivar o fogo — disse, ofegante, a velha senhora, cutucando a lareira com a ponta de sua bengala. A ma­deira fracamente esbraseada não ardeu, e em vão ela rebuscou nos bolsos. — Papel, preciso de papel. — Voltou-se para ele, pela primeira vez revelando uma centelha de interesse. — Não tem nenhum papel?

Abel fitou-a com insistência.

— Não se lembra de mim?

— Não, não sei quem é você.

— Sabe, sim, Helena. Eu me chamo... Wladek.

— Conheceu o meu pequeno Wladek?

— Eu sou Wladek!

— Oh, não — disse ela, com ar distante e melancólico. — Um menino bom demais para ficar comigo. Tinha a marca de Deus. O barão levou-o embora e fez dele um anjo, sim, levou em­bora o pequetito da matka...

Sua voz falhou e por fim apagou-se. Ela sentou-se, mas suas mãos senis e enrugadas mantiveram-se ocupadas no regaço.

— Estou de volta — disse Abel, insistindo ainda mais, po­rém a velha mulher não lhe deu atenção. A voz cansada tremulou, como se ela estivesse completamente sozinha na casa.

— Mataram meu marido, meu Jasio, e mandaram meus filhos queridos para os campos, menos a pequena Sophia. Escondi-a até eles irem embora. — A voz soou monótona e conformada.

— E o que aconteceu com a pequena Sophia?

— Na outra guerra, os russos a levaram — disse insensivelmente.

Abel estremeceu.

A velha deixou as recordações, voltando-se para ele.

— O que quer? Por que está me fazendo tantas perguntas?

— Quero que conheça minha filha, Florentyna.

— Tive uma filha chamada Florentyna, mas só restei eu.

— Mas eu... — Abel começou a abrir a camisa.

Florentyna o impediu.

— Nós sabemos — disse ela, sorrindo para a velha senhora.

— Como pode saber? Foi há tanto tempo, bem antes de você nascer.

— Contaram-nos lá na aldeia — disse Florentyna.

— Não tem papel? — tornou a velha senhora. — Preciso de papel para atiçar o fogo.

Abel lançou um olhar desamparado para Florentyna.

— Não — respondeu —, desculpe-nos, não temos nenhum papel.

— O que querem de mim? — reiterou a velha, de novo hostil.

— Nada — disse Abel, conformando-se com o fato de que ela não se lembraria dele. — Só passamos para dizer bom-dia. — Tirou a carteira do bolso, puxou as notas novas que trocara na fronteira e entregou-as à mulher.

— Obrigada, obrigada — disse ela ao pegar as notas, os olhos lacrimejando de alegria.

Abel inclinou-se para a frente com a intenção de beijar a mãe adotiva, mas ela recuou.

Florentyna pegou o pai pelo braço e conduziu-o para fora da choupana, e ambos desceram pela trilha da floresta, tomando a direção do carro.

A velha ficou olhando pela janela até perdê-los de vista.

Pegou então as notas novas, amassou cada uma delas, fazendo pequenas bolas, e colocou-as cuidadosamente dentro da lareira. Incendiaram-se imediatamente. Ela dispôs gravetos e pequenos lenhos sobre as notas que ardiam, e, devagar, sentou-se ao pé do fogo, o melhor fogo que tinha em muitas semanas, esfregando as mãos e aquecendo-as no reconfortante calor.

Abel permaneceu calado no caminho de volta ao carro, até avistar de novo os portões de ferro. Em seguida, esforçando-se por esquecer a choupana, prometeu a Florentyna:

— Daqui a pouco você vai conhecer o castelo mais bonito do mundo.

— Ah, papai, pare de exagerar.

— Do mundo — repetiu Abel calmamente.

Florentyna riu.

— Depois eu lhe digo se ele se compara a Versalhes.

Entraram no carro, Abel cruzou os portões, lembrando-se do veículo em que passara por eles pela última vez, e começou a subir a longa alameda até o castelo. Transbordava de lembran­ças do passado. Dias felizes de criança na companhia do barão e de Leon, dias infelizes em que fora levado pelos russos do castelo querido, a imaginar se algum dia tornaria a vê-lo. Mas agora, ele, Wladek Koskiewicz, estava de volta, em triunfo, para reclamar o que lhe pertencia.

O carro avançava pela estrada tortuosa, e ambos permane­ciam calados, imersos num silêncio cheio de expectativa, até que, finalmente, contornando a última curva, tiveram a primeira vista do que tinha sido o lar do barão Rosnovski. Abel parou o carro e olhou fixamente seu castelo. Nem um nem outro disse nada, simplesmente olharam, os olhos arregalados, descrentes ante a des­truição e os restos bombardeados de seu sonho.

Abel e Florentyna desceram vagarosamente do carro, em silêncio. Florentyna segurou a mão do pai, apertando-a muito, muito, enquanto as lágrimas escorriam pelas faces dele. Apenas uma parede mantinha-se precariamente de pé, uma lembrança de sua passada glória; o resto não era mais que amontoados de cascalhos e pedras vermelhas. Ele não suportaria falar-lhe dos grandes salões, dos corredores, das cozinhas e dos quartos de dormir. Ca­minhou para o local das três sepulturas, agora forrado de capim viçoso, onde jaziam o barão, o amigo Leon, e a adorada Floren­tyna. Demorou-se diante de cada um deles e desejou que Leon e Florentyna estivessem vivos agora. Ajoelhou-se junto das sepul­turas. As visões apavorantes de seus derradeiros instantes retor­naram com toda a força. A filha ficou ao seu lado, a mão pousada em seu ombro, calada. Só depois de um longo tempo Abel ergueu-se, sem pressa, e caminharam sobre as ruínas. Lajes marcavam o lugar onde antes salões magníficos se haviam enchido de risos. Abel continuava emudecido. De mãos dadas, chegaram às masmorras. Abel sentou-se no chão do pequeno e úmido cubículo, perto da abertura gradeada, ou daquilo que dela restava. Girou muitas vezes a pulseira em torno do pulso.

— Foi aqui que seu pai viveu quatro anos.

— Não é possível! — exclamou Florentyna, que não se sentou.

— Agora está melhor do que naquele tempo — disse Abel. — Pelo menos agora há ar fresco, pássaros, sol, e uma sensação de liberdade. Naquele tempo não havia nada, somente escuridão, morte, cheiro de morte, e, o pior de tudo, a expectativa da morte.

— Vamos, papai, vamos embora. Ficar aqui só poderá fazer-lhe mal.

Florentyna conduziu o pai indeciso até o carro e dirigiu sem pressa pelo caminho abaixo. Abel não tornou a olhar para as ruí­nas do castelo quando atravessaram pela última vez os portões de ferro.

No percurso até Varsóvia, ele quase não falou, e Florentyna desistiu de tentar reanimá-lo. Quando o ouviu dizer: “Só me resta uma coisa a realizar nesta vida”, Florentyna sentiu curiosidade de saber o que isso. significava, mas não lhe pediu explicação. Con­seguiu, entretanto, convencê-lo a passar outra semana em Londres antes de regressarem, o que, estava convencida, devolveria ao pai o entusiasmo e talvez o ajudasse a esquecer a lembrança da mãe adotiva, idosa e insana, e das ruínas do castelo na Polônia.

No dia seguinte, voaram para Londres. Abel sentia-se satis­feito por estar de volta a um país que lhe oferecia a oportunidade de comunicar-se rapidamente com os Estados Unidos. Depois que se instalaram no Claridge’s, Florentyna saiu para rever amigos e fazer novas amizades. Abel dedicou-se a ler todos os jornais da coleção do hotel, na esperança de atualizar-se sobre os fatos. Não gostava da sensação de que muitas coisas podiam acontecer na sua ausência; isso lhe lembrava, com extrema nitidez, que o mun­do podia muito bem continuar sem ele.

Uma pequena notícia, numa das páginas internas da edição de sábado do Times, chamou-lhe a atenção. Sim, coisas tinham acontecido durante a sua ausência. Um Vickers Viscount da Inter­state Airways espatifara-se logo depois de decolar do aeroporto da Cidade do México na manhã do dia anterior. Dezessete pas­sageiros e a tripulação tinham morrido. As autoridades mexicanas imediatamente atribuíram a causa do acidente à péssima assistên­cia técnica que a Interstate oferecia aos seus aviões.

“Hoje é sábado, e provavelmente ele estará de volta a Chica­go”, refletiu Abel. Folheou a agenda de telefones à procura do número. E solicitou à telefonista uma ligação internacional.

— Haverá uma espera de cerca de trinta minutos — expli­cou uma voz inglesa, formal mas nada desagradável.

— Obrigado — disse Abel, e deitou-se na cama ao lado do telefone, pondo-se a refletir. Vinte minutos depois, o telefone tocou.

— A sua ligação internacional, senhor — disse a mesma voz formal.

— Abel, é você? Onde está?

— Sou eu, sim, Henry. Estou em Londres.

— Já falou? — disse a voz feminina, entrando na linha.

— Eu nem comecei — disse Abel.

— Desculpe, senhor. Quis dizer se o senhor já está falando com os Estados Unidos.

— Oh, sim, obrigado. Puxa vida, Henry, eles aqui falam uma língua completamente diferente.

Henry Osborne riu.

— Agora escute. Leu a notícia sobre o desastre do avião da Interstate no aeroporto da Cidade do México?

— Sim, li —- disse Henry —, mas não há por que se preo­cupar. O avião estava devidamente segurado, e a companhia está inteiramente coberta, de modo que não sofreu nenhum prejuízo e o capital continua intacto.

— O seguro é a última coisa que me interessa — disse Abel. -i- Esta é nossa melhor oportunidade de testarmos a resistência da constituição física do sr. Kane.

— Acho que não entendi, Abel. O que quer dizer?

— Ouça-me com atenção. Vou lhe explicar exatamente o que quero que você faça quando a Bolsa de Valores abrir na ma­nhã de segunda-feira. Na terça-feira estarei de volta a Nova Iorque para reger pessoalmente o crescendo final.

Henry Osborne ouviu-o atentamente. Vinte minutos depois, Abel recolocou o fone no gancho. Agora ele tinha falado.

 

William compreendeu que Abel Rosnovski poderia causar-lhe mais aborrecimentos na manhã em que Curtis Fenton lhe tele­fonou informando-o de que o Barão de Chicago fechara todas as contas bancárias do grupo no Continental Trust e estava acusan­do a ele, Fenton, de deslealdade e conduta antiética.

— Pensei estar agindo corretamente ao escrever-lhe sobre as aquisições que o sr. Rosnovski fizera das ações do Lester — disse o banqueiro, desgostoso —, e no fim acabei perdendo um dos meus clientes mais importantes. Nem sei como os diretores do conselho entenderão isso.

William formulou uma desculpa inadequada e procurou con­solar Fenton, prometendo conversar com os superiores dele. Con­tudo, na verdade, preocupava-se bem mais com o próprio golpe de Abel Rosnovski.

Quase um mês depois, descobriu a natureza desse golpe. Ve­rificava a correspondência da manhã de segunda-feira, quando recebeu um telefonema de seu corretor: alguém havia colocado na Bolsa ações da Interstate Airways no valor de um milhão de dólares. William viu-se obrigado a comprar as ações com o di­nheiro de seu próprio depósito, e, para tanto, expediu imediata­mente uma ordem de compra. Às duas horas dessa mesma tarde, outro lote de um milhão de dólares foi colocado no mercado. Antes que William pudesse resgatá-lo, o preço começou a cair. Quando a Bolsa de Valores de Nova Iorque fechou,- às quinze horas em ponto, o valor da Interstate Airways havia baixado um terço.

Às dez horas e dez minutos da manhã seguinte, William re­cebeu um telefonema do agora alvoroçado corretor. Outras ações no valor de um milhão de dólares tinham sido jogadas no merca­do ao soar a sineta de abertura do pregão. O corretor relatou que o último dumping tivera o efeito de uma avalanche: as ordens de venda da Interstate desabavam de todos os cantos, os preços haviam baixado, e as ações estavam sendo vendidas a apenas alguns cents cada. Vinte e quatro horas antes, o título da Interstate estivera cotado a quatro dólares e meio.

William incumbiu Alfred Rodgers, o secretário da compa­nhia, de convocar uma reunião do conselho para a segunda-feira seguinte. Precisava de tempo para descobrir o responsável pelo dumping. Na quarta-feira, já havia abandonado qualquer tenta­tiva de sustentar a Interstate mediante a compra pessoal de todas as ações que surgiam no mercado. No fechamento do expediente, a Securities & Exchange Commission divulgou que faria uma sin­dicância em todas as transações da Interstate. William sabia que o conselho do Lester, a partir desse momento, tinha de resolver se defenderia a companhia aérea durante os três ou seis meses que a SEC levaria para concluir as investigações, ou se consenti­ria na sua falência. Ambas as alternativas pareciam desastrosas, tanto para o bolso de William quanto para a reputação do banco.

No dia seguinte, informado por Thaddeus Cohen, William soube, sem nenhuma surpresa, que a empresa que despejara as ações da Interstate no valor de três milhões de dólares era a Guaranty Investment Corporation, uma das empresas que represen­tavam Abel Rosnovski. Um porta-voz da empresa publicara um pequeno e plausível comunicado explicando as razões da venda: tinham se preocupado com o futuro da companhia após a decla­ração do governo do México sobre os recursos precários de ma­nutenção da Interstate Airways.

— Declaração que o faz responsável! — disse William, in­dignado. — O governo mexicano não fez nenhuma declaração digna de confiança desde que proclamou a vitória de Speedy González na corrida de cem metros nas Olimpíadas de Helsinque.

Os meios de comunicação tiraram o máximo proveito do comunicado da Guaranty Investment, e, na sexta-feira, a Federal Aviation Administration interditou os vôos da companhia aérea até que se processasse uma investigação minuciosa dos recursos de manutenção.

William confiava em que a Interstate nada tinha a temer de tal investigação, mas a medida trouxera enormes prejuízos para as reservas de passagens a curto prazo. Nenhuma companhia aérea pode obter recursos com os aviões paralisados, só pode ganhar dinheiro quando os aparelhos estão no ar.

Para agravar ainda mais os problemas de William, outras grandes empresas, representadas pelo Lester, começaram a recon­siderar seus compromissos futuros. A imprensa não tardou em salientar que o Lester era o subscritor da Interstate Airways. Surpreendentemente, as ações da Interstate começaram a ser com­pradas de novo ao final da tarde de sexta-feira, e William logo compreendeu por quê. Thaddeus Cohen mais tarde confirmou-lhe a constatação: o comprador era Abel Rosnovski. Vendera as ações da Interstate na alta, e agora as recomprava em pequenos lotes, enquanto se encontravam na baixa. William balançou a cabeça num sinal de invejosa admiração. Rosnovski fazia uma pequena fortuna à custa da falência de William, tanto em termos de repu­tação, quanto financeiros.

William concluiu que, embora o Grupo Baron houvesse ar­riscado mais de três milhões de dólares, poderia terminar com grande margem de lucro. Ademais, ficara evidente que Abel Ros­novski não se alarmava com um prejuízo temporário, que, em todo caso, poderia utilizar como amortização do imposto de renda. Ele se interessava tão-somente na total ruína da reputação do Lester.

Na reunião do conselho, na segunda-feira, William explicou toda a história do conflito entre ele e Rosnovski e apresentou sua demissão. Ela não foi aceita, nem mesmo se procedeu a uma votação, mas houve murmurações, e William estava ciente de que, caso Rosnovski voltasse a atacar, seus colegas não adotariam pela segunda vez uma posição de tolerância.

O conselho debateu a questão do apoio à Interstate Airways. Tony Simmons convenceu-os de que o inquérito da F.A.A. resul­taria em favor do banco, e que a Interstate, no devido tempo, recuperaria todo o dinheiro perdido. Tony viu-se obrigado a ad­mitir a William, após a reunião, que a decisão apenas auxiliaria Rosnovski naquela longa corrida, mas que o banco não via outra alternativa, se quisesse preservar sua reputação.

Os fatos vieram comprovar o acerto de suas previsões. Quan­do, finalmente, a SEC publicou os resultados de suas investiga­ções, declarou o Lester “irrepreensível”, embora reservasse duras palavras à Guaranty Investment Corporation. Nessa manhã, o mercado de valores voltou a negociar com os títulos da Interstate, e William surpreendeu-se com a elevação das cotações. Em pouco tempo o título alcançou os anteriores quatro dólares e meio.

Thaddeus Cohen inteirou William de que o comprador prin­cipal fora, outra vez, Abel Rosnovski.

— Era só o que me faltava neste momento — disse Wil­liam. — Ele não apenas consegue um grande lucro com toda esta transação, como de agora em diante poderá repetir o mesmo pro­cedimento quando lhe der na telha.

— Sem dúvida — disse Thaddeus Cohen —, era exatamente o que lhe faltava.

— O que está querendo sugerir, Thaddeus? — perguntou William. — Nunca soube que falava por enigmas.

— O sr. Abel Rosnovski cometeu o primeiro erro de julga­mento, porque está infringindo a lei e dando-lhe a oportunidade de apanhá-lo. Provavelmente ele não percebeu que praticava algo ilegal, com procedimentos errados.

— De que está falando? — indagou William.

— É simples — respondeu Thaddeus Cohen. — Por causa de sua obsessão por Rosnovski, e da dele por você, ambos passa­ram por cima do óbvio: quem vende ações com o único propósito de provocar uma baixa no mercado, a fim de nessa circunstância reaver as mesmas ações e com elas obter um certo lucro, infringe a norma 10b-5 da Securities & Exchange Commission, e comete um delito de fraude. Na minha opinião, não resta dúvida de que o lucro rápido não era o propósito do sr. Rosnovski. Com efeito, sabemos perfeitamente que ele pretendia tão-somente colocá-lo numa situação embaraçosa. Mas quem irá acreditar em Rosnovski se ele disser que despejou os títulos por que julgara a companhia precária, quando ele próprio comprou os mesmos títulos assim que baixaram de preço? Resposta: ninguém e, certamente, nem a SEC. Amanhã enviar-lhe-ei um relatório completo por escrito, William, onde fornecerei todas as implicações legais.

— Obrigado — disse o amigo, exultante com a nova.

Às nove horas da manhã seguinte, o relatório de Thaddeus Cohen já se encontrava sobre a mesa de William. Depois de ler os pontos principais com a máxima atenção, ele convocou nova reunião do conselho. Os diretores concordaram com as medidas que William resolvera tomar. Thaddeus Cohen recebeu instru­ções de redigir cuidadosamente um comunicado à imprensa, o qual foi entregue nessa mesma noite. O Wall Street Journal, de manhã, trazia na primeira página:

 

O presidente do Lester Bank, William Kane, afirma ter ra­zões para acreditar que as ordens de venda das ações da Interstate Airways, companhia subscrita pelo Lester, emitidas em novembro de 1952 pela Guaranty Investment Corporation, objetivavam uni­camente obter um lucro ilegal.

Confirmou-se que a Guaranty Investment Corporation foi a responsável pela colocação no mercado de um lote da Interstate no valor de um milhão de dólares à abertura da Bolsa na segunda-feira, 12 de maio de 1952. Seis horas mais tarde, chegava ao mer­cado outro lote de um milhão de dólares. A Guaranty Investment Corporation emitiu nova ordem de venda de um terceiro milhão de dólares quando a Bolsa reabriu no dia seguinte, 13 de maio. Com isso, as ações caíram, numa baixa recorde. Como resultado do inquérito da SEC, que provou não ter havido nenhuma nego­ciação ilegal por parte do Lester e da Interstate Airways, o mer­cado tornou a reagir, negociando as ações ao preço da baixa. A Guaranty Investment apressou-se em readquirir as ações aos pre­ços mais baixos possíveis. Continuou a comprá-las até recuperar a quantia de três milhões de dólares correspondente aos títulos que havia soltado anteriormente no mercado.

O presidente e os diretores do Lester enviaram duplicata de todos os documentos pertinentes à Divisão de Fraude da Se­curities & Exchange Commission, solicitando-lhe a abertura de uma completa sindicância.

 

A matéria prosseguia com a publicação integral da norma 10b-5 da SEC, e comentava ser esse, exatamente, o tipo de caso que o presidente Truman andava esperando; o cartum que ilus­trava a matéria ao pé da página mostrava Harry S. Truman pe­gando um homem de negócios com a mão na botija.

Enquanto lia a notícia, William sorria, certo de que nunca mais teria aborrecimentos provocados por Abel Rosnovski.

 

Abel franziu á testa e permaneceu calado, enquanto Henry Osborne relia a notícia em voz alta. Abel ergueu os olhos, batendo os dedos na mesa num sinal de irritação.

— Os homens de Washington — disse Osborne — estão decididos a levar o caso até o fim.

— Mas, Henry, você sabe muito bem que não vendi as ações da Interstate para desferir um golpe mortal no mercado de valores — disse Abel. — De modo algum meu interesse era o lucro.

– Sei disso — falou Henry —, mas experimente convencer a Comissão de Finanças do Senado de que o Barão de Chicago não tinha interesse em lucros financeiros, de que tudo o que ele queria era mostrar o ódio que sente por William Kane. Vão ridi­cularizá-lo na corte, ou no Senado, para ser mais preciso.

— Droga! E agora, o que devo fazer?

— Bem, em primeiro lugar deve aguardar bem quieto no seu canto até que venha a bonança. Comece a rezar para que um escândalo bem maior estoure na praça e ocupe toda a atenção de Truman, ou então para que os políticos se envolvam na campa­nha eleitoral, e não tenham tempo de exigir um inquérito. Com sorte, a nova administração poderá até mesmo deixar o caso de lado. Mas faça o que fizer, Abel, não compre mais nenhuma ação ligada ao Lester, do contrário acabará pegando uma pena pesa­da. Deixe-me ver o que posso conseguir com os democratas de Washington.

— Lembre ao pessoal de Harry Truman que dei cinqüenta mil dólares para a campanha durante a última eleição, e que pre­tendo fazer o mesmo com Adlai.

— Já fiz esse lembrete — disse Henry. — Aliás, aconselho-o a dar cinqüenta mil dólares aos republicanos também.

— Eles estão fazendo de um argueiro um cavaleiro — disse Abel. — Um argueiro que Kane transformará em cavaleiro se lhe dermos a oportunidade. — Seus dedos continuaram a bater no tampo da mesa.

 

O relatório trimestral seguinte, enviado por Thaddeus Cohen, mostrou que Abel Rosnovski havia interrompido a compra e a venda de títulos em quaisquer das companhias do Lester. Ao que parecia, concentrava todas as suas energias na construção de hotéis na Europa. Na opinião de Cohen, Rosnovski estava na moita, esperando que a SEC apresentasse as conclusões sobre o caso Interstate.

Por várias vezes William recebeu no banco a visita dos re­presentantes da SEC. Falou-lhes com franqueza, mas eles nunca lhe disseram nada sobre o andamento do inquérito. Finalmente, deram por terminada a sindicância e agradeceram a William a colaboração. E William nunca mais teve notícias deles.

Uma vez que as eleições para a presidência se aproximavam, e Truman parecia esforçar-se por dissolver o truste industrial Du Pont, William começou a recear que Abel Rosnovski saísse ileso do incidente. Não conseguia deixar de imaginar que Henry Os­borne puxara alguns cordões no Congresso. Lembrou-se de que Cohen certa vez sublinhara uma observação atinente a uma doação de cinqüenta mil dólares feita pelo Grupo Baron para os fundos da campanha de Harry Truman. Agora, ao ler no último relatório de Cohen, William surpreendia-se de que Rosnovski repetisse o mesmo gesto com Adiai Stevenson, o candidato democrata à pre­sidência, ao mesmo tempo que doava outros cinqüenta mil dólares para a campanha de Eisenhower. Cohen, de novo, sublinhara a informação.

William, que jamais pensara em apoiar financeiramente para um cargo público alguém que não fosse republicano, esperava que o general Eisenhower, o candidato que emergira na primeira vota­ção da convenção de Chicago, derrotasse Adlai Stevenson, embora estivesse cônscio de que, muito provavelmente, e ao contrário dos democratas, uma administração republicana não aceitaria levar avante um inquérito sobre manipulação de títulos.

Quando o general Dwight D. Eisenhower — a nação pa­receu ter gostado de Ike[2] — foi eleito o trigésimo quarto presi­dente dos Estados Unidos, no dia 4 de novembro de 1952, Wil­liam pressupôs que Abel Rosnovski se havia safado de quaisquer acusações, mas que aquela experiência o convencera a jamais tor­nar a envolver-se com os negócios do Lester. Uma pequena com­pensação para William, resultante da eleição, fora que Henry Osborne perdera a cadeira no Congresso para um candidato repu­blicano. O paletó de Eisenhower tinha abas de fraque, e o rival de Osborne nelas se pendurara. Thaddeus Cohen sentia-se incli­nado a crer que Henry Osborne deixara de exercer sobre Abel Rosnovski a mesma influência que antes exercera. Em Chicago, comentava-se que, desde o divórcio da esposa abastada, Osborne devia elevadas somas a Rosnovski e voltara a jogar.

William sentia-se mais satisfeito e tranqüilo que nos últimos tempos, e esperava tomar parte na era próspera e pacífica pro­metida por Eisenhower no discurso de posse.

O primeiro ano de governo do novo presidente ia chegando ao final, e William pôs em segundo plano as ameaças de Rosnovski, pensando nelas como coisas do passado. Afirmou a Thad­deus Cohen que, acreditava, jamais ouviriam falar de Abel Ros­novski. O advogado não fez nenhum comentário. Não lhe solici­taram que fizesse algum.

William deu tudo de si na construção do Lester, fosse em tamanho, fosse em reputação, mais e mais consciente de que o fazia tanto pelo filho quanto por si mesmo. Alguns funcionários do banco já se referiam a ele como “o velho”.

— Um dia isso aconteceria — disse Kate.

— Mas por que não aconteceu com você? — replicou Wil­liam.

Kate fitou-o com um sorriso nos lábios.

— Agora descobri por que você fechou tantos negócios com homens frívolos...

William riu.

— E com uma bela mulher — ajuntou.

Como apenas dali a um ano Richard completaria vinte e um anos, William emendou as disposições de seu testamento. Reser­vou cinco milhões de dólares para Kate, dois para cada filha, e o restante da fortuna deixou para Richard, considerando, com tristeza, a parcela dos impostos sobre os bens. Deixou ainda um milhão de dólares para Harvard.

Richard soube tirar proveito de seus quatro anos em Har­vard. No início do quarto ano, não apenas se dedicou à conquista de uma Summa cum laude, como também tocava violoncelo na orquestra da universidade, além de ser o lançador do time de beisebol, que até o próprio William aprendera a admirar. Como Kate costumava perguntar, com certo orgulho, quantos estudantes jogavam beisebol no time de Harvard contra o de Yale nas tardes de sábado e ainda tocavam violoncelo no concerto da universi­dade nas noites de domingo?

O último ano passou depressa, e quando Richard deixou Harvard, munido de um diploma de bacharel em Matemática, de um violoncelo e de um bastão de beisebol, tudo de que precisava antes de ingressar na Escola de Administração, do outro lado do rio Charles, eram umas férias restauradoras. Viajou para Barba­dos com uma garota chamada Mary Bigelow, cuja existência os pais dele felizmente ignoravam. A srta. Bigelow estudara música, entre outras coisas, em Vassar, e, depois de dois meses, retornan­do praticamente com o mesmo bronzeado dos ilhéus, Richard levou-a para casa a fim de apresentá-la aos pais. William aprovou a srta. Bigelow; afinal, era sobrinha-neta de Alan Lloyd.

Richard voltou à Escola de Administração de Harvard no dia 1.° de outubro de 1952, dando início, assim, ao seu curso de pós-graduação. Assim que fixou residência na Red House, ele jogou fora todos os móveis de bambu de William, removeu o papel de parede com padrões ondulados de cores vivas, que Matthew Lester um dia julgara tão moderno, e instalou um tapete de canto a canto da sala de estar, uma mesa de carvalho na sala de jantar, uma máquina de lavar pratos na cozinha, e, bem mais do que esporadicamente, a srta. Bigelow no quarto de dormir.

    

                                                               1952-1963

 

Em outubro de 1952, Abel regressou imediatamente de uma viagem a Istambul logo que lhe telegrafaram sobre o ataque car­díaco fulminante de David Maxton. Compareceu com George e Florentyna ao funeral, realizado em Chicago, e, ao final da ceri­mônia, convidou a sra. Maxton a hospedar-se num Baron, em qualquer parte do mundo, quando lhe aprouvesse. Ela não com­preendeu o motivo daquele gesto tão generoso de Abel Rosnovski.

Retornando a Nova Iorque no dia seguinte, Abel viu com alegria, sobre a escrivaninha do escritório do quadragésimo se­gundo andar, um relatório enviado por Henry Osborne, onde ele assinalava o tempo de bonança. Na opinião de Henry, dificilmente o novo governo de Eisenhower exigiria um inquérito sobre o fiasco da Interstate Airways, ainda mais agora que os títulos ha­viam mantido a estabilidade durante todo um ano. Não surgira, portanto, nenhum incidente que por azar reacendesse qualquer interesse no escândalo. O vice-presidente de Eisenhower, Richard M. Nixon, parecia absorvido na caça ao espectro dos comunistas que haviam escapado a Joe McCarthy.

Nos dois anos seguintes, Abel dedicou-se inteiramente à cons­trução de seus hotéis na Europa. Inaugurou o Baron de Paris em 1953, e o de Londres ao final de 1954. Havia outros hotéis Baron em fases diversas de construção em Bruxelas, Roma, Amsterdã, Genebra, Bonn, Edimburgo, Cannes e Estocolmo, num programa de expansão que abrangia um período de dez anos.

Abel se sobrecarregara tanto de trabalho que tivera pouquís­simo tempo para deter-se na prosperidade crescente de William Kane. Não fizera nenhuma tentativa de comprar títulos do Lester ou de companhias subsidiárias, embora conservasse os que pos­suía, na esperança de que se apresentasse nova oportunidade de desferir outro golpe em William Kane. Da próxima vez, prome­tera a si mesmo, teria mais cuidado para não infringir a lei.

Durante as viagens de Abel ao exterior, cada vez mais fre­qüentes, George assumia a direção do Grupo Baron. Abel alimen­tava o sonho de que Florentyna integrasse o conselho tão logo saísse de Radcliffe, em junho de 1955. Tinha já decidido que a filha dirigiria todas as lojas dos hotéis e tomaria para si a respon­sabilidade de consolidar as vendas, visto que a organização rapida­mente se transformava num império.

Florentyna entusiasmou-se com a perspectiva, mas insistia em querer ganhar experiência noutra organização antes de inte­grar o grupo do pai. Não julgava substitutos da experiência seus dons inatos para o desenho, a cor e a organização. Abel propôs-lhe estagiar na Suíça, sob a orientação de M. Maurice, na renomada École Hôtelière de Lausanne. Esquivando-se à idéia, Floren­tyna justificou que só assumiria a direção das lojas depois de trabalhar dois anos num magazine de Nova Iorque. Resolvera ser empregada por mérito, “não apenas por ser a filha do meu pai”. Abel concordou plenamente com ela.

— Um magazine de Nova Iorque? Vai ser fácil — disse ele. — Telefonarei a Walter Hoving, da Tiffany, e ele a colocará num posto importante.

— Não. — Florentyna revelava ter herdado a teimosia do pai. — Qual é o cargo correspondente ao de ajudante de garçom no Plaza Hotel?

— Uma balconista numa loja de departamentos — disse Abel, rindo.

— Pois então serei justamente uma balconista.

Abel interrompeu o riso.

— Está falando sério? Com um diploma de Radcliffe e o conhecimento e experiência que ganhou com as viagens à Europa, quer ser uma balconista anônima?

— Você foi garçom no Plaza até chegar o momento de orga­nizar um dos grupos hoteleiros mais bem-sucedidos do mundo, e isso não lhe causou mal algum — retrucou Florentyna.

Abel sabia reconhecer uma derrota. Bastou olhar nos olhos cinza-azulados da bela filha para certificar-se de que ela estava resolvida a levar avante seu plano e de que nenhum argumento persuasivo, conciliador ou não, iria demovê-la.

Depois de graduar-se em Radcliffe, Florentyna viajou com o pai durante um mês pela Europa, acompanhando de perto os avanços dos recentes hotéis Baron. Ela inaugurou oficialmente o Baron de Bruxelas, e na oportunidade conquistou o gerente, que era jovem, bonito e falava francês, e a quem Abel acusou de cheirar a alho. Ela renunciou ao jovem três dias depois, ao chegarem à fase dos beijos, mas jamais confessaria ao pai que o motivo do rompimento fora o alho.

Florentyna retornou com o pai a Nova Iorque e sem demora candidatou-se ao cargo de “vendedora balconista auxiliar” na Bloomingdale’s (conforme anúncio que saíra nos classificados). Ao preencher o formulário de proposta de emprego, deu o nome de Jessie Kovats, certa de que ninguém a deixaria em paz se soubes­sem que era a filha do Barão de Chicago.

A despeito das objeções do pai, saiu da suíte do Baron Hotel e começou a procurar um lugar para si própria. Mais uma vez, Abel acedeu e ofereceu a Florentyna um apartamento, pequeno mas elegante, pertencente a uma cooperativa, situado na 57th Street, próximo do rio East, como presente pelo seu vigésimo segundo aniversário.

Florentyna, que já se havia habituado a um tipo de vida em Nova Iorque, adorava as atividades sociais intensas, mas resolvera ocultar dos amigos seu emprego na Bloomingdale’s. Receava que lhe fizessem visitas e, numa questão de dias, todo o disfarce, engenhosamente elaborado, fosse por água abaixo, impossibilitando-a de continuar a ser tratada como uma aprendiz comum.

Diante das perguntas curiosas dos amigos, simplesmente res­pondia que andava ajudando o pai na direção das lojas dos hotéis. Nenhum deles deu maior importância à sua explicação.

Jessie Kovats — ela demorou algum tempo até acostumar-se com o nome — começou a trabalhar na seção de cosméticos. De­pois de seis meses, sentia-se preparada para dirigir sua própria loja. As moças da Bloomingdale’s trabalhavam aos pares, do que Florentyna imediatamente procurou tirar proveito, escolhendo como colega uma das moças mais preguiçosas do departamento. Tal arranjo convinha a ambas, visto Florentyna ter escolhido uma loira inculta e deslumbrante, chamada Maisie, que tinha apenas dois interesses na vida: o ponteiro do relógio assinalando as de­zoito horas e os homens. O primeiro fato acontecia uma vez por dia, o segundo, o dia inteiro.

Logo as duas garotas tornaram-se companheiras, embora não necessariamente amigas. Florentyna aprendeu com a parceira como trabalhar pouco sem ser notada pelo gerente, e ainda como ser notada por um homem.

Depois de trabalharem juntas durante seis meses, os lucros do balcão de cosméticos elevaram-se, apesar do fato de Maisie passar a maior parte do tempo experimentando os produtos, em lugar de vendê-los. Era capaz de ficar duas horas só retocando as unhas. Florentyna, ao contrário, tinha um talento natural para vendas, que um curso noturno jamais ofereceria. Tal fator, asso­ciado à sua capacidade de aprender rapidamente, deu aos seus chefes, após algumas semanas, a impressão de que ela já traba­lhava ali havia anos.

A parceria com Maisie servia a Florentyna como uma luva, e, quando ela foi transferida para a seção de roupas, por mútuo acordo Maisie a acompanhou. Mais uma vez, ela passava grande parte do tempo experimentando os vestidos, enquanto Floren­tyna os vendia. Maisie possuía a habilidade de atrair os homens — a reboque de suas esposas ou de suas namoradas — indepen­dentemente das mercadorias que vendia, simplesmente olhando-os. Assim que eles eram apanhados na armadilha, Florentyna entrava e vendia-lhes algum artigo. Parecia quase impossível que aquela associação surtisse efeito na seção de roupas, mas Florentyna con­seguia que as vítimas de Maisie fizessem compras, e raros eram os que escapavam sem esvaziar a carteira em algumas notas.

Naqueles seis meses, os lucros de novo elevaram-se, induzindo o supervisor a concluir que as duas garotas, juntas, trabalhavam bem. Florentyna não disse nada que contrariasse tal impressão. Enquanto as demais auxiliares da loja viviam se queixando de que suas parceiras dedicavam-se pouco ao trabalho, Florentyna nunca deixava de exaltar Maisie como a colega de trabalho ideal, que muito lhe ensinara sobre o funcionamento de uma grande loja. Absteve-se de referir-se aos conselhos úteis transmitidos por Maisie sobre como tratar os homens.

O maior elogio que uma auxiliar recebe na Bloomingdale’s é ficar no balcão em frente à entrada da Lexington Avenue: é a primeira pessoa que os fregueses avistam ao entrar pelas portas principais. Trabalhar ali correspondia a uma pequena promoção, e era raro uma garota ser convidada a vender naquela seção antes de completar cinco anos na loja. Maisie estava na Bloomingdale’s desde os dezessete anos, havia cinco anos já, enquanto Flo­rentyna acabara de completar um ano. Contudo, impressionado com os resultados do trabalho de ambas, o gerente resolveu ex­perimentá-las na papelaria, situada no térreo. Maisie não via como tirar qualquer vantagem pessoal da papelaria, visto que não liga­va muito para a leitura, ainda menos para escrever. Mesmo de­pois de um ano de convivência, Florentyna duvidava de que ela pudesse ler ou escrever alguma coisa. Entretanto, Maisie sentiu-se satisfeita com o novo posto, uma vez que adorava ser o centro das atenções. E assim as duas garotas prosseguiram formando a dupla perfeita.

Abel confessou a George que um dia foi à Bloomingdale’s para observar Florentyna trabalhando, e precisava admitir que, inegavelmente, ela era danada de eficiente. Assegurou ao vice-presidente que mal podia esperar o momento de vê-la concluir os dois anos de treinamento para poder contratá-la. Ambos con­cordaram em que, quando deixasse a Bloomingdale’s, ela seria eleita vice-presidente do grupo, respondendo particularmente pelas lojas do hotel. Tal pai, tal filha. Abel tinha certeza de que Florentyna encontraria poucos problemas para dar conta da in­cumbência que ele lhe havia reservado.

Nos últimos seis meses de Bloomingdale’s, Florentyna en­carregou-se de seis balcões, como supervisora auxiliar. As novas tarefas incluíam o controle do estoque, das funcionárias das cai­xas e a supervisão geral de dezoito balconistas. A Bloomingdale’s concluíra que Jessie Kovats era a candidata ideal à futura encar­regada de compras.

Florentyna, porém, não havia ainda informado aos seus em­pregadores que em breve sairia para trabalhar com o pai, como vice-presidente do Grupo Baron. À medida que o tempo ia pas­sando, Florentyna perguntava-se sobre o futuro da pobre Maisie quando ela deixasse a loja. Maisie tinha como certo que Jessie ficaria na Bloomingdale’s por toda a vida — pois todo mundo não ficava? — e não se dera ao trabalho de pensar duas vezes sobre a questão. Ocorrera a Florentyna oferecer-lhe um emprego numa das lojas do Baron de Nova Iorque. Enquanto ficasse atrás de um balcão em que os homens gastavam o dinheiro, Maisie seria sempre valiosa.

Certa tarde, Maisie interrompeu o atendimento de uma fre­guesa — trabalhavam então na seção de luvas, cachecóis e gorros de lã —, puxou Florentyna de lado e mostrou um rapaz que olha­va as luvas.

— O que acha dele? — perguntou, com um risinho. Florentyna lançou o olhar sobre o mais recente objeto do desejo de Maisie com o costumeiro desinteresse. Viu-se obrigada a reconhecer, entretanto, que o rapaz de fato era atraente, e, pelo menos dessa vez, quase sentiu inveja de Maisie.

— Maisie, eles só querem uma coisa.

— Eu sei — disse Maisie —, e esse aí vai tê-la.

— Ele vai gostar de ouvir isso — comentou Florentyna com um sorriso, e, virando-se, atendeu à freguesa, já irritada com a indiferença da moça. Maisie aproveitou-se da decisão da colega e, apressada, foi até o jovem que precisava de luvas. Florentyna observou-os com o canto do olho. Receando que ela, como super­visora, vigiasse o comportamento de Maisie, o rapaz olhou-a ner­vosamente. Maisie deu uma risadinha contida, e o rapaz partiu com um par de luvas de couro azul-escuras.

— E então, ele correspondeu às suas expectativas? — per­guntou Florentyna, com uma leve ponta de inveja pela nova conquista de Maisie.

— Não — respondeu Maisie. — Mas tenho certeza de que vai voltar — acrescentou, risonha.

A previsão de Maisie estava correta, no dia seguinte ele apa­receu, mostrando um embaraço ainda maior.

— É melhor você ir atendê-lo — disse Florentyna.

Maisie foi até o rapaz. Florentyna quase estourou de rir quando, dali a alguns minutos, o rapaz partiu levando um outro par de luvas azul-escuras.

— Dois pares! — comentou Florentyna. — Olhe, em nome da Bloomingdale’s, posso dizer que ele merece você.

— É, só que não me convidou para um passeio — disse Maisie.

— O quê? — brincou Florentyna, com um ar de descrença. — Luva deve ser o fetiche dele.

— É uma pena — disse Maisie. — Um rapaz tão bonito!

— É, não é mau, não — disse Florentyna.

No dia seguinte, quando o jovem entrou na loja, Maisie adian­tou-se, deixando uma freguesa falando sozinha. Sem demora, Flo­rentyna tomou seu lugar, de novo observando Maisie disfarçada-mente. Dessa vez, os dois pareciam conversar a sério, e, final­mente, o rapaz foi embora com outro par de luvas azul-escuras.

— É um homem e tanto — arriscou-se Florentyna.

— Se é — replicou Maisie —, mas ainda não me convidou para sair.

Florentyna ficou boquiaberta.

— Escute — disse Maisie, um tanto ansiosa —, não quer atendê-lo, se ele vier amanhã? Acho que tem receio de falar comi­go diretamente. Talvez ache mais fácil marcar um encontro por seu intermédio.

Florentyna riu.

— Uma Viola para o seu Orsino[3].

— Quê? — disse Maisie.

— Nada, não — falou Florentyna. — Será que consigo ven­der-lhe um par de luvas?

Se podia dizer alguma coisa, aquele homem era no mínimo persistente, refletiu Florentyna, quando no dia seguinte, à mesma hora, ele atravessou as portas principais e aproximou-se imediata­mente do balcão. Maisie cutucou-a pelas costas, e Florentyna achou que agora era a sua vez de divertir-se.

— Boa tarde, senhor.

— Oh, boa tarde — disse o jovem, um tanto surpreso... ou desapontado?

— O que deseja? — perguntou Florentyna.

— Nada... quero dizer, um par de luvas — acrescentou ele, pouco convincente.

— Pois não, senhor. Já viu estas, em azul-escuro? De couro. Na certa temos o seu número, se é que não vendemos tudo.

O jovem fitou-a com desconfiança quando ela lhe estendeu as luvas. Experimentou-as. Eram um pouco grandes. Florentyna mostrou-lhe outro par, mas eram um pouco pequenas. Desviou o olhar para Maisie, como que buscando inspiração, mas viu-a cercada por alguns fregueses; Maisie, porém, achou uma brecha para olhar o jovem e dar-lhe um sorriso. Ele retribuiu o sorriso timidamente. Florentyna mostrou-lhe outro par. Serviram à per­feição.

— Creio que era o que o senhor procurava — disse Floren­tyna.

— Não, não exatamente — respondeu o freguês, embara­çado.

Florentyna resolveu que era tempo de tirar o homem dessa dificuldade, e, baixando a voz, disse-lhe:

— Vou dar uma ajuda a Maisie. Por que você não a con­vida para sair? Tenho certeza de que ela aceitará seu convite.

— Oh, não — disse o jovem. — Não está me entendendo. Não é com ela que quero sair... é com você.

Florentyna perdeu a fala. O jovem, por sua vez, pareceu recobrar a coragem.

— Aceita jantar comigo esta noite?

Ela ouviu-se dizendo:

— Aceito.

— Vou buscar você em sua casa?

— Não — falou Florentyna, com certa veemência. A última coisa que queria era que alguém entrasse no seu apartamento, pois então ficaria claro que ela não era balconista. — Vamos nos encontrar num restaurante — ajuntou apressadamente.

— Onde gostaria de jantar?

Florentyna tentou lembrar-se de um lugar modesto.

— No Allen, na 73rd com a Third? — ele aventurou.

— Ótimo — disse Florentyna, imaginando que Maisie teria sabido lidar melhor com essa situação.

— Que tal por volta das oito horas?

— Por volta das oito horas — concordou.

O jovem partiu com um sorriso. Florentyna seguiu-o com o olhar até perdê-lo de vista, e então, subitamente, lembrou-se de que ele se tinha ido sem comprar o par de luvas.

 

Demorou-se escolhendo o vestido que usaria nessa noite. Queria garantir que nenhum traje saído das mãos de Bergdorf Goodman a denunciasse. Havia comprado um pequeno guarda-roupa especialmente para trabalhar na Bloomingdale’s, mas as rou­pas serviam exclusivamente para o dia, e nunca chegara a usar nenhuma delas à noite. Se o rapaz — santo Deus!, nem sabia o nome dele — a tomava por uma balconista, por que desiludi-lo? Notou que aguardava o encontro com uma ansiedade bem maior do que esperava.

Saiu do apartamento da East 57th Street pouco antes das oito horas e precisou esperar alguns minutos até conseguir um táxi.

— Allen, por favor — disse ao motorista.

— Na Third Avenue?

— Sim.

— Certo, senhorita — replicou ele.

Quando chegou ao restaurante, estava um pouco atrasada. Seus olhos procuraram o jovem rapaz. Descobriu-o de pé, junto ao balcão do bar, fazendo-lhe sinal. Vestia calças de flanela cinza e um blazer azul. “Discreto”, pensou Florentyna, “mas muito elegante.”

— Desculpe-me o atraso.

— Não se preocupe. O que importa é que você veio.

— Pensou que eu não viria?

— Estava em dúvida. — Ele sorriu. — Mas ainda não sei seu nome.

— Jessie Kovats — respondeu Florentyna. — E o seu?

— Richard Kane — e o rapaz estendeu a mão.

Ela o cumprimentou. Ele demorou-se um pouco no aperto de mão.

— E o que costuma fazer, quando não compra luvas na Bloomingdale’s? — brincou ela.

— Estudo Administração em Harvard.

— Surpreende-me que lá eles não ensinem que a grande maioria das pessoas tem só duas mãos,

Ele riu e conservou nos lábios um sorriso tão sereno e amá­vel que Florentyna desejou começar de novo e dizer-lhe que, tal­vez, já tivessem estado perto um do outro, em Cambridge, quan­do ela estudava em Radcliffe.

— Vamos fazer o pedido? — disse ele, pegando-a pelo braço e conduzindo-a a uma mesa.

Florentyna examinou o cardápio afixado num quadro.

— Bife à Salisbury?

— Um outro nome que dão ao hambúrguer — disse Richard.

Ambos riram, do jeito que riem duas pessoas que não se conhecem, mas que querem se conhecer. Ela reparou na expres­são de surpresa dele: ele percebia que ela havia notado a incon­veniência da observação dele.

Raramente Florentyna se sentira tão bem na companhia de alguém. Richard falou sobre a cidade de Nova Iorque, sobre tea­tro e música — sem dúvida, seu primeiro amor — de uma ma­neira tão agradável e encantadora que ela só pôde ficar à vontade. Podia vê-la como balconista, mas tratava-a como se pertencesse a uma família tradicional e culta. Ele, por sua vez, não desejava demonstrar surpresa ao constatar nela a paixão pelas mesmas coisas, porque, ao fazer-lhe algumas perguntas, ouviu dela que não passava de uma garota polonesa que vivia em Nova Iorque com os pais. À medida que a noite avançava, a dissimulação ia se tornando mais e mais insuportável. “Entretanto”, refletiu ela, “depois desta noite talvez nunca mais nos vejamos, e, então, tudo isso não terá importância.”

Quando afinal a noite terminou, e nenhum dos dois se sentia disposto a continuar tomando café, saíram do Allen. Richard ace­nava para os táxis, mas todos passavam ocupados.

— Onde você mora?

— Na 57th Street — respondeu ela espontaneamente.

— Então vamos indo a pé — propôs Richard, segurando-lhe a mão.

Ela aquiesceu à idéia com um sorriso. Começaram a andar, parando de vez em quando para olhar as vitrines, rindo e conver­sando. Nem sequer notaram que agora os táxis passavam vazios. Levaram uma hora até vencer os dezesseis quarteirões, e durante esse tempo Florentyna quase lhe contou a verdade. Quando che­garam à 57th Street, ela se deteve diante de um prédio de aparta­mentos, pequeno e velho, distante algumas centenas de metros de seu próprio apartamento.

— Meus pais moram aqui — disse.

Ele mostrou-se hesitante e em seguida soltou-lhe a mão.

— Não gostaria de ver-me de novo? — perguntou Richard.

— Gostaria — respondeu Florentyna, de um jeito cortês, mas indiferente.

— Amanhã? — perguntou Richard, acanhado.

— Amanhã?

— Sim, poderíamos ir ao Blue Angel ver Bobby Short. — Tomou-lhe a mão mais uma vez. — É um pouco mais romântico que o Allen.

Florentyna ficou momentaneamente perturbada. Não havia feito planos que incluíssem Richard logo no dia seguinte.

— Mas não é obrigada a ir, se não quiser — ajuntou ele, antes que ela pudesse se refazer.

— Eu iria adorar — disse ela, segura de si.

— Vou jantar com meu pai, e poderei vir buscá-la às dez em ponto.

— Não, não — disse Florentyna. — Encontro você lá. Fica só a duas quadras daqui.

— Dez horas em ponto, então — e inclinando-se, beijou-a delicadamente na face. — Boa noite, Jessie — e retomou a pé o mesmo trajeto.

Florentyna caminhou devagar em direção ao apartamento, arrependida de ter dito tantas mentiras. Mesmo assim, aquilo poderia acabar dali a alguns dias. Mas, no fundo, seria bom que não acabasse.

Maisie, que ainda não a tinha perdoado, passou a maior parte do dia seguinte perguntando-lhe tudo a respeito de Richard. E a todo instante, embora sem sucesso, Florentyna procurava mudar de assunto.

Quando a loja cerrou as portas, Florentyna saiu, pela pri­meira vez em dois anos, antes de Maisie. Tomou um demorado banho de chuveiro, pôs o vestido mais bonito que tinha à mão e foi ao Blue Angel. Quando chegou, Richard esperava-a em frente à chapelaria. Ele pegou-lhe a mão e caminharam para den­tro do salão; flutuava no ar a voz de Bobby Short: “Está me contando a verdade, ou sou apenas outra mentira?”

Ao avistar Florentyna, Short ergueu o braço e saudou-a. Ela fingiu não notá-lo. Short havia se apresentado no Baron duas ou três vezes, e jamais Florentyna podia imaginar que ele a reconhe­ceria. Richard mostrou-se intrigado, e supôs que a saudação tivesse sido dirigida a outra pessoa. Ao sentarem-se a uma das mesas do salão envolto em penumbra, Florentyna ficou de costas para o piano, confiando em que aquilo não tornaria a acontecer.

Richard pediu uma garrafa de vinho e, sem soltar-lhe a mão, perguntou como tinha sido o seu dia. Florentyna não queria falar nada sobre isso; queria dizer a verdade.

— Richard, há uma coisa que preciso...

— Oi, Richard!

Um homem alto e bem-apessoado surgiu ao lado de Richard.

— Oi, Steve. Quero apresentá-lo a Jessie Kovats. Steve Mellon... Eu e Steve estudamos juntos em Harvard.

Florentyna ouviu-os conversar sobre os Yankees[4], as desvan­tagens do governo de Eisenhower, o golfe, e por que Yale ia de mal a pior. A certa altura Steve retirou-se com um cumprimento:

— Prazer em conhecê-la, Jessie.

Finalmente estavam sozinhos.

Richard começou a discorrer sobre seus planos para depois do curso de Administração, dizendo que esperava vir a Nova Iorque e trabalhar com o pai no Lester. Florentyna já tinha ou­vido esse nome antes, mas não se lembrava em que contexto. Por algum motivo, sentiu certo receio. Passaram longo tempo rindo, comendo, conversando, sem se levantarem da mesa, de mãos dadas, ouvindo Bobby Short. A caminho de casa, Richard parou na esquina da 57th Street e beijou-a pela primeira vez. Ela não se recordava de algum outro momento em que tivesse estado tão compenetrada para um primeiro beijo. Quando ele a deixou na 57th Street, ela levou consigo as mentiras, sem ter ouvido um “até amanhã”. Sentia, com tristeza, que tudo terminaria ali.

Mas na segunda-feira, na Bloomingdale’s, surpreendeu-se, e com que alegria, ao receber um telefonema de Richard convidando-a a sair na noite de sexta-feira.

 

Passaram juntos a maior parte do fim de semana: um con­certo, um filme — e até foram ver os New York Knicks. Ter­minado o fim de semana, Florentyna constatou que havia dito tantas mentiras inofensivas sobre o seu passado que mal podia sustentá-las de forma coerente, surpreendendo Richard por mais de uma vez, de tal maneira se contradizia. Parecia-lhe quase im­possível contar-lhe uma história inteiramente diferente, embora verdadeira. Richard retornou a Harvard, na noite de domingo, e Florentyna convenceu-se de que a simulação seria o seu menor problema se o relacionamento chegasse ao fim. Mas Richard tele­fonou-lhe todos os dias durante a semana e passou os fins de semana seguintes na sua companhia: ela começava a compreender que o relacionamento não terminaria com tanta facilidade. Esta­va ficando apaixonada. Reconhecendo isto, decidiu que revelaria a ele toda a verdade na semana seguinte.

 

Richard atravessou a aula daquela manhã perdido em deva­neios. Tão apaixonado estava que não conseguia concentrar a atenção na “Depressão de 29”. De que maneira, refletia, contaria aos pais que pretendia casar-se com uma moça polonesa que trabalhava no balcão de cachecóis, luvas e gorros de lã da Bloomingdale’s? De modo algum compreendia como podia ela ser tão pouco ambiciosa, quando, inegavelmente, era brilhante: na certa, caso tivesse tido as oportunidades que ele próprio tivera, a Bloomingdale’s não teria entrado em sua vida. Concluiu que seus pais de alguma maneira aprenderiam a aceitar a sua escolha, porque, no fim de semana, pediria Jessie em casamento.

Toda tarde de sexta-feira, quando visitava os pais em Nova Iorque, Richard deixava a casa da East 68th Street e, passando pela Bloomingdale’s, sempre comprava alguma coisa, normalmen­te um artigo de pouca utilidade, só para que Jessie soubesse que ele estava na cidade. Já possuía um par de luvas para cada pes­soa de seu relacionamento. Nessa sexta-feira, disse à mãe que iria sair com o propósito de comprar algumas lâminas de barbear.

— Não é preciso, querido, use as de seu pai.

— Não, não, não se preocupe. Acho bom comprar algumas. – De qualquer maneira, não usamos o mesmo tipo de lâmina — acrescentou, sem nenhuma convicção. — Volto daqui a uns mi­nutos.

Quase correu as oito quadras até a Bloomingdale’s e con­seguiu entrar precisamente pouco antes de as portas serem baixa­das. Ia encontrar-se com Jessie às sete e meia, mas nunca des­prezava qualquer oportunidade de vê-la. Steve dissera-lhe certa vez que amor era coisa de otário. Nessa manhã, enquanto se barbeava, escrevera no espelho coberto de vapor: Sou um otário.

Quando chegou ao balcão de Jessie, porém, não a viu. Maisie encostara-se a um canto, lixando a unhas, e ele perguntou-lhe por Jessie. Maisie ergueu os olhos, com cara de quem havia sido interrompida no meio da atividade mais importante do dia.

— Não está, já foi para casa, Richard. Saiu há poucos se­gundos. Não deve estar muito longe. Mas você não ia se encon­trar com ela mais tarde?

Richard saiu para a Lexington Avenue sem responder. Pro­curou Jessie entre as moças que se precipitavam para casa, e, repen­tinamente, avistou-a do outro lado da rua, caminhando em direção à Fifth Avenue. Compreendendo que, evidentemente, não estava indo para casa, com certa culpa decidiu segui-la. Quando ela alcançou a Scribner, na 48th Street, ele se deteve e observou-a entrar na livraria. Se quisesse comprar algum livro, tê-lo-ia feito na própria Bloomingdale’s. Sentiu-se confuso. Espiou pela vitrina: Jessie conversava com o vendedor, que se retirou por alguns ins­tantes e voltou com dois livros. Num relance, distinguiu os títulos: A sociedade afluente, de John Kenneth Galbraith, e A Rússia por dentro, hoje, de John Gunther. Jessie pagou-os com cheque — o que o intrigou — e saiu, enquanto ele se escondia rapida­mente, virando a esquina.

— Mas quem é ela? — perguntou-se Richard, em voz alta, observando-a entrar na Bendel. O porteiro a cumprimentou respeitosamente, dando a clara impressão de conhecê-la. Mais uma vez Richard espiou pela vitrine e viu que os assistentes se alvo­roçavam à sua volta, com um respeito mais do que circunstancial. Uma velha senhora apareceu com um pacote, que, era evidente, Florentyna fora buscar. Abriu-o e retirou um vestido de noite simples e maravilhoso. Florentyna sorriu e aquiesceu, enquanto o assistente guardava o vestido numa caixa marrom e branca. Os lábios de Florentyna moveram-se, articulando a palavra “obriga­da”, e ela dirigiu-se para a porta sem ao menos pagar pela com­pra. Richard ficou hipnotizado pela cena, e quase não pôde evitar de encontrar-se com ela, que saía da loja, apressada, e entrava num táxi. Ele tomou outro táxi e pediu ao motorista que a se­guisse. Quando o veículo passou pelo pequeno prédio diante do qual eles normalmente se despediam, ele começou a sentir um mal-estar. Não era de admirar que ela jamais o tivesse convidado a entrar. O táxi da frente continuou por mais uma centena de metros e então parou diante de um esplêndido edifício novo de apartamentos. O porteiro uniformizado abriu a porta para ela. Com um misto de raiva e de pasmo, ele desceu do táxi e cami­nhou para as portas atrás das quais ela havia desaparecido.

— Ei, chapa, noventa e cinco cents — gritou uma voz atrás dele.

— Oh, desculpe — disse Richard, e entregou ao chofer uma nota de cinco dólares, sem interesse no troco.

— Obrigado — disse o motorista. — Alguém está contente hoje.

Richard correu e alcançou Florentyna no elevador. Ela viu a porta abrir-se e fitou-o, emudecida, os olhos arregalados.

— Quem é você? — inquiriu Richard.

— Richard — gaguejou ela. — Hoje à noite eu ia contar-lhe tudo. Até agora não encontrei uma boa oportunidade para isso.

— Pois sim, que ia me contar — disse ele, seguindo-a até o apartamento. — Fez-me de bobo todos esses três meses. Chegou a hora de me dizer toda a verdade.

Florentyna nunca vira Richard nervoso, e imaginou que aquele era um momento raro. Ele adiantou-se bruscamente e ins­pecionou o apartamento. Depois do vestíbulo havia uma imensa sala de estar com um belíssimo tapete oriental. Um imponente relógio de parede fora colocado em frente a uma mesa, sobre a qual descansava um vaso de flores. O aposento era admirável, inclusive para os padrões da casa de Richard.

— Não sabia que uma balconista podia se dar ao luxo de ter um ambiente tão confortável — disse Richard. — Qual dos seus amantes a sustenta?

Florentyna esbofeteou-o com tanta força que a palma da mão ardeu.

— Como se atreve? Saia da minha casa!

Ouvindo as próprias palavras, ela começou a chorar. Não queria que ele se fosse, nunca!

Richard abraçou-a.

— Oh, meu Deus, perdoe-me — ele disse. — Por favor, perdoe-me o que eu falei. Eu a amo tanto, mas tanto, que imagi­nei que a conhecesse bem. E agora acabo de descobrir que nada sei sobre a sua vida.

— Richard, eu o amo também, e peço-lhe que me desculpe por ter batido em você. Minha intenção não era enganá-lo, mas não existe ninguém mais na minha vida, juro. — Sua voz frag­mentou-se.

— Eu o mereci — disse ele, beijando-a.

Abraçados um ao outro, eles caíram sobre o sofá e durante alguns instantes ficaram imóveis. Suavemente, ele acariciou-lhe o cabelo, só parando quando os soluços cessaram. Ajude-me a tirar o vestido, ela desejou dizer, mas permaneceu calada, deslizando os dedos pelo espaço existente entre os dois primeiros botões da camisa dele. Richard pareceu indeciso em fazer algum movimento.

— Quer dormir comigo? — perguntou ela calmamente.

— Não, quero ficar acordado ao seu lado durante toda a noite.

Sem dizer mais nada, despiram-se e ele a acarinhou com ter­nura e amaram-se, suave e timidamente, temerosos de ferir um ao outro, procurando o mútuo prazer. Por fim, ela ficou com a cabeça sobre o ombro dele.

— Eu amo muito você — segredou Richard. — Desde a primeira vez em que a vi. Quer se casar comigo? Não me inte­ressa quem você é, Jessie, ou o que faz. Só sei que preciso ficar com você para o resto da minha vida.

— Também quero me casar com você, Richard, mas antes devo lhe dizer a verdade.

Florentyna cobriu a nudez de ambos com a jaqueta dele e contou-lhe tudo a seu respeito, terminando com a explicação de como fora trabalhar na Bloomingdale’s. Ao concluir a sua história, Richard não fez comentário algum.

— Já deixou de me amar? — perguntou ela. — Agora que sabe quem sou de fato?

— Querida — disse Richard, com serenidade —, meu pai odeia o seu.

— Como assim?

— Isso mesmo. A única vez que ouvi alguém pronunciar o nome de seu pai na presença dele, meu pai perdeu o controle e disse que o único propósito da vida do seu pai era arruinar a família Kane.

— O quê? Por quê? — indagou ela, chocada. — Nunca ouvi falar no seu pai antes. Como é que eles podem se conhecer?

Era a vez de Richard contar-lhe tudo o que a mãe lhe reve­lara sobre a rixa entre os pais deles.

— Oh, meu Deus! — exclamou ela. — Isso deve relacio­nar-se à “deslealdade” a que papai se referiu quando, depois de vinte e cinco anos, transferiu de banco as contas dele. O que faremos?

— Dizer-lhes a verdade — falou Richard —, que nos co­nhecemos casualmente, que nos apaixonamos e vamos nos casar, façam o que fizerem para nos impedir.

— Esperemos algumas semanas — disse Florentyna.

— Para quê? — perguntou Richard. — Acha que seu pai tentará dissuadi-la de casar-se comigo?

— Não, Richard — respondeu, tocando-o delicadamente, enquanto tornava a pousar a cabeça sobre o ombro dele. — Nun­ca, meu querido. Mas, antes de chegarmos com um fato consuma­do, procuremos colocar a situação de maneira mais amena. Em todo caso, talvez não se detestem tanto quanto você imagina. Afinal, como você disse, o caso da empresa aérea foi há quase cinco anos.

— Garanto-lhe que não é imaginação minha. Meu pai ficaria indignado se nos visse juntos, mesmo que não soubesse que pen­samos em nos casar.

— Outra razão para não os informarmos agora. Isso nos dará tempo de refletir sobre a melhor maneira de proceder.

Ele a beijou de novo.

— Jessie, eu a amo.

— Florentyna.

— Eis aí uma coisa com que vou ter de me acostumar — disse. — Florentyna, eu a amo.

 

Durante o mês que se seguiu, Florentyna e Richard procura­ram inventariar a inimizade entre os dois homens — Florentyna fazendo à mãe e a George Novak perguntas cuidadosamente ela­boradas; Richard estudando os arquivos do pai. A intensidade do ódio deixou-os pasmos. A cada descoberta, tornava-se mais claro que não haveria maneira moderada de dar-lhes a notícia. Nas quatro semanas seguintes, eles aproveitaram todos os mo­mentos livres desfrutando a companhia um do outro. Richard mostrava-se sempre atencioso e gentil, e nada lhe parecia impos­sível. Chegara ao extremo de fazê-lo tirar da cabeça o problema que, sabiam, inevitavelmente enfrentariam, cedo ou tarde. Iam ao teatro, patinavam, e, aos domingos, caminhavam pelo Central Park, sempre terminando por deitar-se antes do anoitecer. Com Richard, Florentyna assistira ao jogo dos Yankees, que “não conseguia compreender”, e à Filarmônica de Nova Iorque, que “adorava”. Difícil era acreditar que Richard realmente tocasse violoncelo, o que ele provou oferecendo-lhe um recital particular. Quando ele terminou de executar a sonata de Brahms, a sua pre­ferida, ela o aplaudiu com entusiasmo, e não notou que ele a olhava fundo nos seus olhos acinzentados.

— Vamos ter de contar-lhes — murmurou ele, pondo o arco na estante e apertando-a contra o peito.

— Eu sei. Mas não quero magoar papai.

Chegara a vez de ele dizer:

— Eu sei.

Florentyna evitou olhá-lo.

— Papai virá de Washington na próxima sexta-feira.

— Então será na próxima sexta-feira — disse Richard, estreitando-a de maneira tal que ela mal podia respirar.

Richard retornou a Harvard na manhã de segunda-feira. Os jovens conversavam por telefone todas as noites, jamais perdendo o ânimo, certos de que nada os deteria.

Na sexta-feira, Richard chegou a Nova Iorque mais cedo que o habitual, e, como Florentyna pedira dispensa na parte da tarde, passaram juntos pelo menos uma hora. Obedecendo ao sinal ver­melho, na esquina da 57th Street com a Park Avenue, os dois pararam. Richard voltou-se para Florentyna e pela segunda vez pediu-a em casamento. Tirando do bolso uma pequena caixa de couro vermelho, ele a abriu e dela retirou um anel, que colocou no dedo anular da mão esquerda dela. Era uma safira engastada entre diamantes, tão lindos que dos seus olhos brotaram lágrimas; o anel ajustara-se perfeitamente a seu dedo. Os transeuntes olha­vam-nos com estranheza, visto que continuavam abraçados ali na esquina, ignorando o sinal verde. Quando, finalmente, obedece­ram ao comando do farol, despediram-se com um beijo, ela desceu, e cada qual tomou direções opostas, decididos a enfrentar os res­pectivos pais. Haviam combinado encontrar-se no apartamento de Florentyna tão logo cumprissem a dura missão. Apesar das lágri­mas, Florentyna tentou sorrir.

Enquanto andava rumo ao Baron Hotel, de vez em quando baixava o olhar e contemplava o anel. Ali, no dedo, ele lhe cau­sava uma sensação nova e estranha, e ela imaginava que os olhos dos passantes eram atraídos pela magnífica safira; ficara lindo, junto do anel antigo que, antes, fora seu predileto. Ela tomara-se de assombro quando Richard o colocara em seu dedo. A questão da rivalidade entre seus pais, porém, obrigava-a a esquecer anéis e quaisquer outras coisas que faziam a felicidade de um noivado. Florentyna tocou a safira rodeada de diamantes e com isso sentiu fortalecida a sua coragem, embora estivesse ciente de que cami­nhava cada vez mais devagar à medida que se aproximava do hotel.

Quando passou pelo balcão de recepção, o recepcionista a informou de que o pai se encontrava na cobertura com George Novak. Ele telefonou para lá e avisou que Florentyna estava su­bindo. O elevador alcançou muito depressa o quadragésimo se­gundo andar, e, antes de deixar a segurança de suas quatro paredes, Florentyna hesitou. Pisou o tapete verde e escutou o ruído da porta do elevador que se fechava atrás de si. Ficou parada, soli­tária, no corredor, e, após esperar alguns instantes, bateu leve­mente à porta. Abel abriu-a sem demora.

— Florentyna, que surpresa! Entre, minha querida. Não esperava vê-la hoje.

George Novak estava à janela, olhando a Park Avenue, que se estendia lá embaixo. Voltou-se e saudou a afilhada. Com o olhar, Florentyna implorou-lhe que saísse. Se ele ficasse, na certa ela perderia a coragem. Vá, vá, vá, dizia ela consigo mesma. George pressentiu-lhe a ansiedade prontamente.

— Abel, preciso voltar ao trabalho. Um chato de um marajá hospedou-se aqui hoje à tarde.

— Diga-lhe que leve os elefantes para passear no Plaza — comentou Abel, alegremente. — Agora que Florentyna chegou, fique e tome outro drinque.

George lançou um olhar a Florentyna.

— Não, Abel, tenho de ir. O homem ocupou o trigésimo terceiro andar inteiro. No mínimo espera ser recebido pelo vice-presidente. Boa noite, Florentyna — disse, beijando-a na face e apertando-lhe rapidamente o braço, como se soubesse que ela pre­cisava de força. Deixou-os sozinhos e, de súbito, Florentyna de­sejou que ele não tivesse saído.

— Como vai a Bloomingdale’s? — perguntou Abel, passan­do a mão afetuosamente na cabeça da filha e desmanchando-lhe o cabelo. — Já lhes contou que logo, logo perderão a melhor supervisora que contrataram nos últimos anos? Garanto que fica­rão boquiabertos ao ouvirem falar que o próximo trabalho de Jessie Kovats será inaugurar o Baron de Cannes. — E gargalhou muito alto.

— Vou me casar — disse Florentyna, estendendo timida­mente a mão esquerda. Não tinha nada a acrescentar, e, assim, simplesmente esperou a reação do pai.

— Uma decisão um tanto repentina, não acha? — disse Abel, mais do que espantado.

— Na verdade, não, papai. Eu o conheço há algum tempo.

— Eu conheço o moço? Já o vi?

— Não, papai, não o conheceu.

— De onde ele é? Quais são os antecedentes dele? É po­lonês? Florentyna, por que fez tanto segredo da existência desse rapaz?

— Ele não é polonês, papai. Ele é filho de um banqueiro.

Abel empalideceu e, pegando o copo, num só gole tomou toda a bebida. Florentyna sabia precisamente o que se passava na ca­beça dele ao vê-lo servir-se de nova dose. Resolveu dizer tudo sem delongas.

— Papai, o nome dele é Richard Kane.

Abel girou o rosto e olhou-a de frente.

— Filho de William Kane? — inquiriu.

— Sim — respondeu Florentyna.

— Você pensa em se casar com o filho de William Kane? Sabe o que esse homem fez comigo? Ele é o responsável pela morte do meu melhor amigo. Sim, esse homem levou Davis Leroy ao suicídio e, não satisfeito com isso, tentou levar-me à fa­lência. Se David Maxton não me tivesse salvado a tempo, Kane teria se apossado dos meus hotéis e os teria vendido num abrir e fechar de olhos. E onde eu teria ido parar, se William Kane tivesse vencido? Você ia sentir-se muito feliz por trabalhar como balconista da Bloomingdale’s. Já pensou nisso, Florentyna?

— Já, papai. E durante estas últimas semanas pensei em outras coisas também. Richard e eu não nos conformamos com o ódio que existe entre você e o pai dele. Nesse momento, ele o está enfrentando.

— Pois posso dizer de que maneira ele reagirá. Ficará fu­rioso. Aquele homem não permitirá que o filho precioso e aris­tocrático se case com você. Por isso, jovem senhorita, trate de tirar da cabeça essa idéia maluca.

Ele erguera a voz ao seu mais alto timbre.

— Não posso, pai — respondeu ela tranqüilamente. — Nós nos amamos, e precisamos da sua bênção, não de sua ira.

— Florentyna, escute-me — disse Abel, com o rosto verme­lho de cólera. — Proíbo-a de rever esse filho de Kane. Está me entendendo?

— Estou, sim. Acontece que vou vê-lo. Não vou me separar de Richard só porque você odeia o pai dele.

Surpreendeu-se apertando o dedo em que estava o anel, leve­mente trêmula.

— Isso de nada adiantará — comentou Abel. — Nunca consentirei nesse casamento. Minha própria filha me abandonan­do por causa do filho do calhorda do Kane. Pois eu digo que não se casará com ele!

— Não o estou abandonando, não. Se fosse verdade, teria fugido com ele. Como faria isso com você? Tenho mais de vinte e um anos de idade e vou me casar com Richard. Pretendo viver o resto da minha existência na companhia dele. Papai, por favor, ajude-nos. Não gostaria de conhecê-lo? Assim compreenderia o que estou sentindo neste momento.

— Ele jamais entrará na minha casa. Não quero conhecer nenhum filho de William Kane. Nunca, ouviu?

— Então sou obrigada a deixá-lo.

— Florentyna, se você me deixar para se casar com o filho de Kane, não lhe darei nem um centavo. Ouviu bem? — Abel abrandou a voz. — Reflita com sensatez, garota, você o esque­cerá. Ainda é jovem, existem dezenas de homens que dariam a vida para casar-se com você.

— Não me interessam dezenas de homens — disse Floren­tyna. — Encontrei o homem com quem vou me casar, e ele não tem culpa nenhuma de ser filho de Kane. Nenhum de nós esco­lheu o pai que tem.

— Se não se sente bem na minha família, então vá embora — berrou Abel. — E juro que nunca mais vou querer ouvir o seu nome. — Deu-lhe as costas e pôs-se a olhar pela janela. — Florentyna, aviso-a pela última vez... não se case com esse rapaz.

— Papai, vamos nos casar. Embora já tenhamos passado da idade de pedir consentimento, pedimos a sua aprovação.

Abel aproximou-se dela.

— Está grávida? É por isso? Tem de se casar?

— Não, papai.

— Já dormiu com ele?

A pergunta perturbou-a, mas ela não vacilou.

— Já — respondeu. — Muitas vezes.

Abel ergueu o braço e bateu-lhe no rosto. A pulseira de prata atingiu-lhe o canto dos lábios, fazendo-a perder o equilí­brio. O sangue começou a escorrer-lhe pelo queixo. Ela voltou-se, correu para fora da sala e, chorando, depois de apertar o botão do elevador, levou a mão ao lábio, que sangrava. A porta abriu-se, e George saiu do elevador. Num relance, ela notou a expressão de espanto no rosto dele. Entrou, apressada, e apertou insistente­mente o botão do térreo. Enquanto a porta se fechava devagar, George, estático, viu que ela chorava.

Ao descer à rua, Florentyna pegou um táxi e foi para o apartamento. No percurso, enxugou o sangue com um lenço de papel. Richard já se encontrava lá, debaixo da marquise, a cabeça baixa, o aspecto abatido.

Ela saltou do táxi e disparou na direção dele. Subiram para o apartamento, ela abriu a porta e rapidamente fechou-a, felizmen­te sentindo-se segura.

— Eu amo você, Richard.

— Também a amo — e Richard a envolveu nos braços.

— Nem preciso perguntar como seu pai reagiu — disse Florentyna, agarrando-se a ele desesperadamente.

— Nunca o vi tão furioso — comentou Richard. — Chamou seu pai de mentiroso e vigarista, nada mais que um imigrante polonês oportunista. Perguntou-me por que não me casava com alguém do meu meio.

— E o que lhe respondeu?

— Disse-lhe que uma criatura adorável como você jamais poderia ser substituída por ninguém de nenhuma família rica, tradicional e conveniente, e daí ele perdeu a cabeça completa­mente.

Florentyna não se desprendia de Richard enquanto ele falava.

— Ameaçou não me dar mais nem um centavo, se me casar com você — prosseguiu. — Quando eles compreenderão que não ligamos a mínima para essa droga de dinheiro? Tentei conquistar o apoio de mamãe, mas nem ela conseguiu acalmá-lo. Insistiu em que ela nos deixasse a sós. Nunca o vi tratar mamãe daquele jeito.

Ela chorava, o que só reforçou minha decisão. Retirei-me e dei­xei-o falando sozinho. Santo Deus, só espero que não desconte em Virgínia e Lucy. O que aconteceu quando você saiu de lá?

— Papai me bateu — disse Florentyna, controlando-se. — E pela primeira vez em toda a vida. Tenho a impressão de que será capaz de matá-lo, se nos vir juntos. Richard, meu querido, temos de ir embora daqui antes que ele descubra onde você está. E é evidente que virá para cá em primeiro lugar. Tenho tanto medo!

— Florentyna, não precisa ficar com medo. Partiremos hoje à noite, para muito longe, e meu pai e o seu que vão para o in­ferno.

— Quanto tempo levará para pegar suas coisas? — pergun­tou Florentyna.

— Não posso ir buscá-las — disse Richard. — Não posso voltar para casa agora. Arrume você as suas coisas e vamos embora. Tenho mais ou menos cem dólares comigo. Que acha de se casar com um homem que tem cem dólares?

— Acho que é bem mais do que espera uma balconista, e, pensando bem, sempre quis ser uma mulher que prove seu pró­prio sustento. Você só precisará de uma mulher prendada — Florentyna ajuntou, enquanto remexia na bolsa. — Bem, tenho duzentos e doze dólares e o cartão do American Express. Sendo assim, você me deve cinqüenta e seis dólares, Richard Kane, mas aceito que pague um dólar por ano.

Em trinta minutos Florentyna já havia arrumado a bagagem. Sentou-se à escrivaninha, escreveu um bilhete e deixou o envelope no criado-mudo.

Richard chamou um táxi. Florentyna sentiu-se satisfeita ao observar que Richard era hábil em lidar com uma situação crítica, o que a tranqüilizou.

— Idlewild — disse ao motorista, e colocou as três maletas de Florentyna no bagageiro.

No aeroporto, ele comprou passagens para San Francisco. Haviam escolhido essa cidade simplesmente porque lhes parecera o ponto mais distante no mapa dos Estados Unidos.

Às sete e meia, o Super Constellation 1049 da American Airlines taxiou, iniciando o vôo.

Richard ajudou Florentyna a apertar o cinto de segurança. Ela lhe sorriu.

— Sabe quanto o amo, sr. Kane?

— Sim, eu sei... sra. Kane — retrucou.

 

Abel e George chegaram ao apartamento de Florentyna pouco depois que ela e Richard tinham partido para o aeroporto. Abel, compungido, arrependera-se da bofetada que dera na filha. Mas não fizera conjeturas sobre o que seria sua vida sem sua única filha. Se pudesse localizá-la em tempo, acreditava que, com argumentação paciente, conseguiria persuadi-la a desistir do casa­mento com aquele rapaz. Estava disposto a oferecer-lhe tudo, desde que o casamento não se realizasse.

George apertou a campainha, enquanto Abel esperava ao lado da porta. Não houve resposta. George apertou de novo o botão e aguardou alguns segundos. Em seguida, Abel usou a chave que Florentyna lhe havia dado para um caso de emergência. Olharam em todos o cômodos, sem em verdade esperar encontrá-la.

— Já deve ter ido embora — comentou George.

— Sim, mas para onde? — indagou Abel, reparando no en­velope sobre o criado-mudo. Recordou-se de uma carta que tam­bém lhe foi deixada ao lado de uma cama intocada. Rasgou o envelope e leu o bilhete.

 

         Querido papai,

Por favor, perdoe-me por ter fugido, mas amo Richard, e não será o seu ódio pelo pai dele que me fará desistir. Nós nos casaremos o mais depressa possível. Não faça nada, porque isso não adiantará. Se algum dia, de algum modo, fizer mal a ele, também estará fazendo mal a mim. Só voltaremos a Nova Iorque quando você puser um fim à inimizade entre a nossa família e a de Kane. Amo-o bem mais do que imagina, e sempre lhe serei grata por tudo o que fez por mim. Que não seja este o fim do nosso relacionamento, mas, enquanto não mudar sua maneira de per as coisas, “jamais pergunte ao vento que sopra na campina — inútil é tentar descobrir o que aconteceu”.

                     A filha que o ama, Florentyna.

 

Abel sentou-se na cama e deu o bilhete a George, que o leu, pasmo, e perguntou:

— Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Pode, George. Quero minha filha de volta, mesmo que isso signifique tratar diretamente com o calhorda do Kane. Só estou certo de uma coisa: ele fará qualquer sacrifício para impe­dir esse casamento. Telefone para ele.

George demorou a localizar o número de William Kane, pois não constava da lista. Teve de insistir em que se tratava de um caso de família urgente para que o funcionário do Lester o for­necesse. Abel continuou sentado na cama, a carta de Florentyna na mão, lembrando-se de quando, ainda menininha, aprendera com ele o velho provérbio polonês que acabara de citar. Completou-se a ligação para a residência de Kane, e uma voz masculina atendeu.

— Por gentileza, gostaria de conversar com o sr. William Kane — disse George.

— Quem deseja falar com ele? — A voz era imperturbável.

— O sr. Abel Rosnovski — disse George.

— Vou ver se ele está, senhor.

— Devia ser o mordomo de Kane. Foi chamá-lo — explicou George, passando o fone a Abel.

Abel aguardou, batendo os dedos no criado-mudo.

— William Kane falando.

— Aqui é Abel Rosnovski.

— É mesmo? — A voz de William saiu gélida. — E desde quando, precisamente, o senhor resolveu unir meu filho à sua filha? Por certo, à época em que brilhantemente fracassou em arruinar o meu banco?

— Ora, deixe de ser... — Abel conteve-se. — Tanto quan­to você, quero impedir esse casamento. Nunca tentei raptar seu filho. Aliás, só hoje vim a saber da existência dele. O amor que sinto pela minha filha é muito mais intenso do que o ódio que tenho por você, e não quero perdê-la. Que tal unirmos nossos esforços e planejarmos alguma coisa?

— Não. Uma vez lhe fiz a mesma proposta, sr. Rosnovski, e o senhor deixou bem claro quando e onde iria encontrar-se comigo. Posso esperar até lá, pois estou certo de que logo desco­brirá que quem vai estar lá será o senhor, não eu.

— Mas qual a vantagem de revolver o passado justamente agora, Kane? Se sabe onde eles estão, conseguiremos impedi-los. Isso você também quer. Ou a droga de sua arrogância é tal que o obriga a ficar parado, não impedindo o casamento de seu filho com a minha filha, em vez de ajudar?

Quando disse “ajudar”, ouviu um clique. Enterrou o rosto nas mãos e chorou. George levou-o de volta ao Baron.

Durante toda a noite e o dia seguinte, Abel fez de tudo para localizar Florentyna. Telefonou até mesmo para a mãe dela, que, conforme revelou, soubera tudo sobre Richard Kane pela própria filha.

— Pareceu-me um ótimo rapaz — acrescentou ela, cheia de ódio.

— Sabe onde estão agora? — indagou Abel, impaciente.

— Sei.

— Onde?

— Descubra sozinho.

Outro clique.

Abel pôs anúncios em jornais e até comprou horários nas rádios. Recorreu à polícia, mas esta, considerando que Florentyna já havia completado vinte e um anos, limitou-se a fazer um alerta geral. Por fim, ele se viu obrigado a admitir que, quando a filha fosse encontrada, sem dúvida alguma já estaria casada.

Releu o bilhete vezes sem conta, e decidiu jamais magoar o rapaz, fosse como fosse. Quanto ao pai, o caso era bem diferente. Ele, Abel Rosnovski, ajoelhara-se aos pés dele, suplicara, e ainda assim o calhorda recusara-se a ouvi-lo. Jurou que, quando se apre­sentasse a oportunidade, acabaria com William Kane de uma vez para sempre. George atemorizou-se com a intensidade da ira do velho amigo.

— Devo cancelar a viagem à Europa?

Abel esquecera por completo que acompanharia Florentyna à Europa ao final desse mês, quando ela completaria dois anos na Bloomingdale’s. Ela inauguraria os hotéis Baron de Edimburgo e de Cannes. Pouco se importava agora com quem inauguraria o quê, ou se os hotéis seriam ou não inaugurados.

— Não posso cancelar a viagem — respondeu Abel. — Irei eu mesmo inaugurar os hotéis. Mas enquanto eu estiver fora, George, descubra exatamente onde Florentyna está, sem que ela o saiba. Ela não deve pensar que mandei espioná-la; jamais me perdoaria isso. A melhor pista poderá ser Zaphia, mas tome cuida­do, porque ela poderá tirar partido do que aconteceu. É evidente que conversou com Florentyna a respeito de tudo sobre o filho de Kane.

— Quer que Osborne faça alguma coisa com os títulos de Kane?

— Não, por ora absolutamente nada. O momento não é pro­pício para acabarmos com Kane. Quando eu o fizer, estarei certo de que será de uma vez por todas. Por enquanto, esqueça Kane. Nunca se sabe se precisarei tornar a procurá-lo. Concentre todos os seus esforços na busca de Florentyna.

George prometeu que, quando ele regressasse, já a teria loca­lizado.

 

Abel inaugurou o Baron de Edimburgo vinte dias depois. O hotel erguia-se, majestoso, sobre uma colina que dominava a Ate­nas do Norte. Eram os detalhes as fontes de aborrecimento de Abel toda vez que abria um novo hotel, e, tão logo chegava ao lugar, sempre os inspecionava. Um leve choque elétrico ao apertar um interruptor, causado pelos tapetes de náilon; o serviço de quarto que atrasava quarenta minutos; ou uma cama pequena de­mais para um hóspede gordo ou muito alto. A imprensa apres­sou-se em salientar que a filha do Barão de Chicago não estaria presente à cerimônia de inauguração. Um dos colunistas sociais, do Sunday Express, insinuou uma desavença familiar e comentou que Abel não mostrava aquela personalidade exuberante e cheia de verve a que todos se tinham acostumado. Sem conseguir ser convincente, Abel negou a sugestão, replicando estar com mais de cinqüenta anos — uma idade pouco indicada à expansividade, con­forme o seu relações-públicas o instruíra. A imprensa não se deixou convencer, e, no dia seguinte, o Daily Mail publicou a fotografia de uma placa de bronze que fora encontrada no lixo, em que se lia:

 

             Baron de Edimburgo,

             inaugurado por

             Florentyna Rosnovski

             17 de outubro de 1957

 

Abel voou para Cannes. Outro hotel esplêndido, sobranceando o Mediterrâneo. Nem isso, porém, afastava Florentyna de sua lem­brança. Outra placa jogada no lixo, agora em francês. Sem ela, a inauguração correu como um funeral.

Abel temia haver perdido a filha para o resto da vida. Para matar a solidão, dormia com mulheres proibitivamente caras ou baratas. Nenhuma podia ajudá-lo. O filho de William Kane tomara posse da única pessoa que ele realmente amava. A França não mais o entusiasmava, e, tão logo cumpriu os seus deveres, partiu para Bonn, onde concluiu as negociações para a construção do primeiro Baron da Alemanha. Manteve-se em contato telefônico permanen­te com George, mas Florentyna não fora encontrada, e, com re­lação a Henry Osborne, havia notícias perturbadoras.

— Está devendo de novo muito dinheiro aos corretores de apostas — disse George.

— Adverti-o, da última vez, de que eu já estava farto de afiançá-lo. Desde que perdeu a cadeira no Congresso não tem sido útil a ninguém. Imagino que, ao voltar, serei obrigado a lidar diretamente com a questão.

— Ele tem feito ameaças — informou George.

— Isso não é novidade. Nunca me preocupei com elas. Seja lá o que queira, terá de esperar pela minha volta. Diga isso a ele.

— Quando volta?

— Daqui a três ou quatro semanas, no máximo. Quero dar uma espiada na Turquia e no Egito. O Hilton já começou a cons­truir lá, e ando curioso por descobrir o motivo. A propósito, George, os especialistas disseram-me que não haverá condições de nos comunicarmos enquanto eu estiver no Oriente Médio. Aque­les árabes ainda não descobriram como se comunicar uns com os outros, quanto mais com o exterior. Por isso, vá tocando as coisas sozinho, como sempre, até que eu torne a entrar em contato com você.

Por mais de três semanas, Abel visitou terrenos onde pode­ria construir novos hotéis nos Estados árabes. Eram inúmeros os seus consultores, e cada um deles dizia-se possuidor de um título de príncipe e assegurava-lhe estar em posição de exercer influên­cia sobre um ministro, na qualidade de amigo pessoal ou primo distante. Contudo, Abel sempre acabava descobrindo que o con­sultor era amigo do ministro inadequado ou um primo distante demais da pessoa certa. A única conclusão sólida a que Abel che­gou, após vinte e três dias de poeira, areia e calor, tomando soda, não uísque, foi que as previsões de seus consultores sobre as re­servas petrolíferas do Oriente Médio eram exatas; os Estados do golfo Pérsico iriam precisar, a longo prazo, de muitos hotéis, e o Grupo Baron teria de iniciar seus planos, se não quisesse ser passado para trás.

Por intermédio de sua corte de príncipes, Abel dispunha de vários terrenos em que poderia construir os hotéis, mas faltava-lhe tempo para descobrir quais os homens realmente capacitados. Opunha-se ao suborno apenas quando o dinheiro chegava nas mãos erradas. Nos Estados Unidos, Henry Osborne pelo menos conhecia os funcionários que mereciam trato especial. Abel organizou um pequeno escritório em Bahrein e deixou claro ao representante local que o Grupo Baron procurava terrenos nos quatro cantos do mundo árabe, e não príncipes ou primos de ministros.

Foi em Istambul que ele imediatamente encontrou o lugar perfeito, voltado para o Bósforo, a algumas centenas de metros da antiga embaixada inglesa. Imóvel, os pés sobre a terra arenosa de sua mais recente aquisição, Abel recordou a última vez em que ali estivera. Cerrou o punho e segurou o pulso da mão direita. Pôde escutar de novo os urros da multidão — e, embora trinta anos já tivessem transcorrido, de novo sentiu medo e náusea.

Cansado das viagens, retornou a Nova Iorque. Durante a in­terminável jornada, pensara muito em Florentyna, sempre com a esperança de que George a tivesse localizado. Como de hábito, George aguardava-o no aeroporto. Seu rosto nada dizia.

— Quais são as novidades? — começou Abel, sentando-se no Cadillac, enquanto o motorista colocava a bagagem no porta-malas.

— Umas boas, outras más — respondeu George, apertando um botão ao lado de sua janela. Uma divisória de vidro subiu, separando-os do banco do motorista. — Florentyna entrou em contato com a mãe. Está morando num pequeno apartamento em San Francisco.

— Casada? — inquiriu Abel.

— Casada.

Ficaram calados por alguns momentos.

— E o filho de Kane? — perguntou Abel.

— Trabalha num banco. Ao que parece, muita gente o re­cusou no início, porque, comentava-se, não havia terminado o curso de Administração em Harvard, e o pai não quis lhe dar referências. Não são poucos os que se recusaram a empregá-lo, visto que isso significava perder as transações com o pai. Por fim, foi contratado como contador pelo Bank of America. Um posto baixo, considerando as suas qualificações.

— E Florentyna?

— Trabalha como subgerente numa loja de modas chamada Wayout Columbus, próxima ao Golden Gate Park. Ela tem ten­tado fazer empréstimos em alguns bancos.

— Por quê? Algum problema? — Abel ficou apreensivo.

— Não, está procurando levantar capital para abrir sua pró­pria loja.

— De quanto ela precisa?

— Apenas trinta e quatro mil dólares, o preço do aluguel de um pequeno prédio em Nob Hill.

Abel recostou-se no banco, refletindo, e os dedos curtos ba­tendo contra a janela do carro.

— Providencie que ela consiga esse dinheiro, George. Faça com que pareça uma transação de empréstimo comum. E que não haja a menor suspeita de que eu estou lhe dando o dinheiro. — Continuou tamborilando os dedos. — George, isso terá que ficar entre nós.

— Farei como quiser, Abel.

— E mantenha-me informado de cada movimento dela, mes­mo os mais banais.

— E quanto a ele?

— Não estou interessado nele. E quais são as más notícias?

— Outro problema com Henry Osborne. Ao que parece, deve dinheiro a todo mundo. Soube também, com segurança, que você é a única fonte de rendimentos dele. Começou a fazer amea­ças veladas. Afirma que você fechou os olhos a subornos na época em que começávamos a organizar o grupo. Segundo ele, guardou toda a papelada desde o primeiro dia em que se encontrou com você, quando combinaram um pagamento adicional do seguro, logo depois do incêndio do Richmond de Chicago, e que hoje seu ar­quivo já tem oito centímetros de espessura.

— Amanhã acerto tudo com Henry — disse Abel.

Enquanto percorriam a Manhattan, George pôs Abel a par dos negócios do grupo, todos satisfatórios, à exceção do Baron de Lagos, que sofrera novo golpe de algum concorrente. Abel nunca se preocupara com isso.

Na manhã seguinte, Abel chamou Henry Osborne ao escri­tório. Parecia envelhecido e desgastado, e o rosto, antes suave e formoso, vincava-se de rugas acentuadas. Não fez referência à pasta de oito centímetros de espessura.

— Preciso de dinheiro para me safar de uma enrascada — disse Henry. — Sabe, tenho tido um bocado de azar.

— Outra vez, Henry? Devia enxergar melhor a sua idade. Nasceu para perder com cavalos e mulheres. Quanto quer agora?

— Dez mil seriam suficientes — arriscou Henry.

— Dez mil! — exclamou Abel, escandindo bem. — Que pensa que eu sou? Uma mina de ouro? Da última vez foram cinco mil.

— Inflação — alegou Henry, com um risinho sem graça.

— Esta é a última vez, compreende? — e Abel pegou o talão de cheque. — Se me procurar mais uma vez, Henry, afasto-o do conselho dos diretores e deixo-o na miséria.

— Você é um amigão, Abel. Prometo não o procurar mais. Prometo, sim, nunca mais. — Tirou um Romeo y Julliyta do umedecedor sobre a mesa, em frente a Abel, e o acendeu. — Obri­gado, Abel, você nunca se arrependerá dessa decisão.

Henry retirou-se, soltando baforadas no charuto, enquanto George entrava. George esperou que a porta se fechasse.

— O que houve com Henry?

— Dei dinheiro a ele, pela última vez — explicou Abel. — Não sei por quê... custou-me dez mil dólares.

— Santo Deus! Sinto-me o irmão do filho pródigo — co­mentou George. — Porque ele vai voltar. Sou capaz de apostar.

— Melhor que não o faça — disse Abel —, porque me enchi dele. Seja lá o que tenha feito por mim no passado, estamos quites agora. Quais as últimas notícias sobre Florentyna?

— Florentyna está bem, mas você acertou com respeito a Zaphia: ela tem feito viagens mensais a San Francisco para vê-los.

— Maldita mulher! — exclamou Abel.

— A sra. Kane também esteve ausente duas vezes — ajuntou George.

— E Kane?

— Nem sinal de que venha a se acalmar...

— Esta é uma coisa que temos em comum — disse Abel.

— Fiz um acerto, em benefício dela, com o Crocker Natio­nal Bank de San Francisco — prosseguiu George. — Ela tentou obter o empréstimo há menos de uma semana. O acordo parecerá uma operação normal. De fato, cobrarão meio por cento mais que o habitual, de modo que não haverá razão para suspeitas. O que ela nunca saberá, porém, é que o empréstimo está sendo coberto pelo nosso fiador.

— Obrigado, George, seu trabalho foi perfeito. Aposto dez dólares com você como dentro de dois anos ela pagará o emprés­timo e nunca mais fará outro.

— Eu ia querer uma vantagem de cinco contra um nessa aposta — disse George. — Por que não experimenta com Henry? Ele adora uma aposta.

Abel riu.

— George, não deixe de me informar de tudo o que ela fizer. Tudo.

 

William analisava o relatório trimestral de Thaddeus Cohen e concluiu que tudo havia sido sumariado. Apenas uma coisa con­tinuava a preocupá-lo: por que Abel Rosnovski nada fazia com o seu grande patrimônio do Lester? Era difícil esquecer que ele possuía seis por cento das ações do banco e que, com mais dois por cento, poderia recorrer ao artigo 7 dos estatutos do Lester. Por certo, Rosnovski não temia mais os regulamentos da SEC, mormente agora, que o governo de Eisenhower entrava no segun­do ano e nunca se mostrara interessado em examinar o inquérito anterior.

Ficara fascinado ao ler que Henry Osborne encontrava-se mais uma vez com problemas financeiros e que Rosnovski conti­nuava a cobri-lo. Perguntava-se por quanto tempo essa situação se arrastaria e o que Henry prepararia para Rosnovski. Seria possí­vel que Rosnovski, ocupado com tantos problemas, tivesse se esquecido de William Kane? O relatório de Cohen fizera uma revisão do desenvolvimento dos oito hotéis que Rosnovski cons­truía em todo o mundo. O Baron de Londres perdia dinheiro, e o de Lagos havia sido desativado. Ainda assim, o grupo crescia. William releu o recorte do Sunday Express que noticiava a ausên­cia de Florentyna na inauguração do Baron de Edimburgo, e pen­sou no filho. Em seguida, fechou o relatório e guardou a pasta no cofre, convencido de que nada de importante havia. O motorista levou-o para casa.

Estava arrependido de ter perdido a calma com Richard. Em­bora não quisesse a filha de Rosnovski na vida dele, desejou não ter voltado as costas ao único filho homem de maneira definitiva.

Kate intercedera por Richard, e ela e William haviam discutido o assunto longa e amargamente — fato raro em sua vida —, e, no entanto, não tinham chegado a um acordo satisfatório. Kate experimentara todas, as táticas possíveis, da persuasão lógica às lágrimas, porém nada demovera William. Virgínia e Lucy tam­bém sentiam falta do irmão.

— Não haverá mais ninguém que veja meus quadros com olhos críticos — comentou Virgínia.

— Não prefere dizer: com olhos zombeteiros? — inquiriu Kate.

Virgínia tentou sorrir.

Lucy adquirira o hábito de trancar-se no banheiro, abrir a torneira da pia e escrever secretamente cartas a Richard, que jamais compreendeu por que lhe chegavam com algum borrão. Ninguém se atrevia a mencionar o nome de Richard diante de William, o que começava a distanciar os membros da família.

Ele tentara ficar mais tempo no banco, respeitando o horário de trabalho, como se isso o ajudasse. Não o ajudou, porém. O banco, mais uma vez, passara a exigir muito dele, exatamente quando sentia a necessidade de um descanso. Nos dois últimos anos, nomeara seis novos vice-presidentes, na esperança de que lhe tirassem dos ombros grande parte do fardo. As conseqüências fo­ram o contrário do que desejava. Eles haviam gerado mais trabalho e mais decisões de sua parte, e o mais brilhante deles, Jake Thomas, mostrava-se o candidato provável a tirá-lo da cadeira da pre­sidência, caso Richard não desistisse da filha de Rosnovski. Embora os lucros do banco a cada ano se elevassem, William já não tinha interesse em ganhar dinheiro. Talvez estivesse enfrentando o mes­mo problema que havia desafiado Charles Lester: não contava com um filho a quem deixar a fortuna e a presidência, agora que havia afastado Richard de sua vida, agora que havia refeito o tes­tamento e desmantelado seu depósito.

 

No ano das bodas de prata, William resolveu levar Kate e as garotas à Europa, em longas férias, esperando com isso tirar da lembrança o filho Richard. Voaram para Londres em um Boeing 707 e hospedaram-se no Ritz. O hotel reacendeu em Wil­liam e Kate recordações alegres de sua primeira viagem à Europa. Fizeram uma viagem sentimental a Oxford e mostraram a Virgínia e Lucy a cidade universitária, seguindo depois para Stratford-on-Avon, para assistir a uma peça de Shakespeare: Ricardo III, com Laurence Olivier. Preferiram ter visto um rei com outro nome.

Deixaram Stratford, e, na volta, pararam na igreja de Henley-on-Thames, onde William e Kate se haviam casado. Planejaram hospedar-se no Bell Inn, mas não havia vagas. De volta a Londres, William e Kate iniciaram uma discussão no carro, porque não entravam num acordo sobre quem os havia casado, se o reverendo Tukesbury ou o reverendo Dukesbury. Até alcançarem o Ritz, não chegaram a nenhuma conclusão satisfatória. Concordaram, porém, numa única coisa: o novo teto da igreja da paróquia já estava bem velho.

Nessa noite, quando foram deitar-se, William beijou Kate carinhosamente. E brincou:

— O melhor investimento de quinhentas libras que fiz até hoje na vida.

Depois de visitarem todos os lugares ingleses comumente vi­sitados pelos turistas americanos dignos desse nome, e muitos outros que eles comumente não visitam, partiram para a Itália. Em Roma, as meninas beberam vinho italiano de péssima quali­dade e, na noite do aniversário de Virgínia, passaram mal, en­quanto William comeu massas em excesso e engordou três quilos. Todos eles teriam se sentido bem mais felizes se pudessem falar sobre o proibido assunto Richard. Nessa noite, Virgínia chorou, e Kate procurou confortá-la.

— Por que ninguém tem coragem de dizer a papai que certas coisas são bem mais importantes do que o orgulho? — interrogou Virgínia.

Kate não respondeu.

Quando regressaram a Nova Iorque, William sentia-se reanimado e ansioso por atirar-se de novo ao trabalho no banco. Em sete dias, perdeu os três quilos.

À medida que os meses foram passando, as coisas voltaram à rotina, que só foi quebrada quando Virgínia, ainda uma rosa amarela em botão, anunciou que ia se casar com um estudante da Faculdade de Direito da Virgínia. A notícia surpreendeu William.

— Ela é muito nova — objetou.

— Virgínia tem vinte e dois anos — retrucou Kate. — Não é mais criança. E... como você se sentiria como avô? — ajuntou, arrependendo-se logo da pergunta.

— O que quer dizer? — William ficou horrorizado. — Vir­gínia está grávida, é isso?

— Oh, não, tenha dó! — exclamou Kate, e então disse no tom mais brando que pôde: — Richard e Florentyna são pais.

— Como sabe?

— Richard escreveu-me dando a boa nova — respondeu Kate. — Não acha que já é tempo de dar-se por vencido, William?

— Nunca! — Furioso, retirou-se do aposento.

Kate suspirou, aborrecida: ele nem perguntara se era avô de um menino ou de uma menina.

O casamento de Virgínia realizou-se na Igreja da Trindade, em Boston, numa agradável tarde de primavera, no final de março do ano seguinte. William aprovara sem nenhuma ressalva David Telford, o jovem advogado com quem Virgínia escolhera viver o resto de sua existência.

Virgínia quisera Richard como padrinho, e Kate insistira com William para que o convidasse para o casamento, mas ele teimosa­mente não lhe atendeu. Era o dia mais feliz na vida de Virgínia, e ela queria que o pai e Richard estivessem juntos na fotografia que seria tirada na porta da igreja. No fundo, William quisera concordar, mas sabia que Richard não compareceria sem a filha de Rosnovski. No dia da cerimônia, Richard enviou um presente e um telegrama à irmã. William não consentiu que o telegrama fosse lido depois da recepção.

 

No escritório do quadragésimo segundo andar do Baron de Nova Iorque, Abel aguardava a chegada de um encarregado de angariar fundos para a campanha de Kennedy. O homem estava vinte minutos atrasado. Impaciente, Abel tamborilava com os dedos na escrivaninha, quando repentinamente a secretária entrou.

— O sr. Vincent Hogan deseja vê-lo, senhor.

Abel ergueu-se da cadeira prontamente.

— Entre, sr. Hogan — disse, batendo a palma da mão nas costas do jovem simpático que mal acabara de entrar. — Como está?

— Muito bem, sr. Rosnovski. Desculpe-me o atraso — disse com sotaque inegavelmente bostoniano.

— Nem me dei conta disso. Aceita uma bebida, sr. Hogan?

— Não, obrigado, sr. Rosnovski. Não bebo quando preciso visitar muitas pessoas num mesmo dia.

— Está muito certo. Espero que não se importe se eu beber alguma coisa — disse Abel. — Sabe, não fiz planos de ver muita gente hoje.

Hogan riu, sabendo que, durante todo o dia, teria de rir das piadinhas de muita gente.

Abel pôs uísque num copo.

— Pois bem, em que lhe posso ser útil, sr. Hogan?

— Bem, sr. Rosnovski, esperamos que o partido possa de novo contar com a sua colaboração.

— Sempre fui democrata, como sabe, sr. Hogan. Apoiei Franklin Delano Roosevelt, Hary Truman e Adlai Stevenson, em­bora não entendesse grande parte do que Adlai estava falando.

Os dois riram fingidamente.

— Também ajudei meu velho amigo, Dick Daley, em Chica­go, e apoiei o jovem Ed Muskie, filho de imigrante polonês, como sabe, desde 1954, em sua campanha para governador do Maine.

— O senhor foi um patrono leal do partido, disso não res­tam dúvidas, sr. Rosnovski — comentou Vincent Hogan, num tom que indicava que o tempo para uma conversa banal tinha se esgotado. — Sabemos, também, que os democratas, inclusive o deputado Osborne, fizeram-lhe em troca alguns favores. Acredito que seja desnecessário entrar em detalhes sobre aquele pequeno mas desagradável incidente.

— Isso foi há muito tempo, um passado que se acha bem longe.

— Concordo — disse o sr. Hogan —, e, embora a maioria dos multimilionários que venceram com os próprios esforços não tolere ver seus negócios inspecionados de perto, o senhor será o primeiro a reconhecer que temos de ser particularmente caute­losos. O candidato, como o senhor compreende, não se pode per­mitir correr riscos pessoais, visto que se aproximam as eleições. Nixon adoraria um escândalo a esta altura da competição.

— Compreendemos um ao outro perfeitamente, sr. Hogan. Posto isto, quanto esperam receber de mim para a campanha elei­toral?

— Preciso de todos os centavos que me caírem nas mãos. - As palavras de Hogan foram saindo comedidas e pausadas. — Nixon tem conseguido muito apoio em todo o país, e será um páreo duro colocarmos nosso homem na Casa Branca.

— Bom, apoiarei Kennedy, se ele me apoiar. Creio que a questão é bem simples.

— Ele se sente feliz em apoiá-lo, sr. Rosnovski. Todos nós estamos cientes de que o senhor, neste momento, é o pilar da comunidade polonesa, e o próprio senador Kennedy não ignora a corajosa posição adotada pelo senhor em favor de seus compa­triotas, ainda escravizados nos campos de trabalho forçado da Cor­tina de Ferro, sem falar de sua cooperação durante a guerra. Fui autorizado a informá-lo de que o candidato concordou em inau­gurar o seu novo hotel em Los Angeles numa de suas viagens durante a campanha.

— Esta é uma ótima notícia — observou Abel.

— O candidato tem também plena consciência do seu de­sejo de que a Polônia tenha uma posição preferencial no comércio exterior com os Estados Unidos.

— Nada mais que justo, se considerarmos nossa prestação de serviço na última guerra — disse Abel, fazendo uma breve pausa. — E quanto àquela outra questãozinha?

— O senador Kennedy está estudando a opinião polaco-americana neste momento, e, por ora, não verificamos quaisquer objeções. Naturalmente, ele não poderá chegar a uma conclusão definitiva enquanto não for eleito.

— Oh, sim, naturalmente. Duzentos e cinqüenta mil dóla­res o ajudariam na tomada dessa decisão?

Vincent permaneceu calado.

— Sejam então duzentos e cinqüenta mil dólares. O dinhei­ro estará no seu escritório no final da semana, sr. Hogan. Palavra de honra.

A transação estava fechada, o acordo, concluído.

Abel levan­tou-se.

— Por favor, transmita ao senador Kennedy meus melho­res cumprimentos, e diga-lhe que, é claro, espero que ele se torne o próximo presidente dos Estados Unidos. Sempre detestei Ri­chard Nixon, depois do tratamento desprezível que deu a Helen Gahagan Douglas, e, em todo caso, tenho razões pessoais para não querer Henry Cabot Lodge na vice-presidência.

— Terei imenso prazer em transmitir-lhe a sua mensagem — disse o sr. Hogan —, e obrigado por continuar a apoiar o Partido Democrata, e, em especial, o nosso candidato. — O bostoniano estendeu a mão.

Abel apertou-a.

— Mantenha-se em contato comigo, sr. Hogan. Liberei essa soma de dinheiro, mas espero um retorno do meu investimento.

— Compreendo-o perfeitamente — replicou Vincent Hogan.

Abel acompanhou o visitante até o elevador, e, sorridente, voltou ao escritório. Seus dedos começaram a bater de novo con­tra o tampo da mesa. A secretária reapareceu.

— Peça ao sr. Novak que venha até aqui — ele disse.

Logo depois, George deixou seu escritório e foi ter com Abel.

— Acho que vencemos mais esta, George.

— Felicitações, Abel, fico contente. Se Kennedy for o pró­ximo presidente, um dos seus sonhos mais ambiciosos será con­cretizado. Florentyna se sentirá orgulhosa de você.

Abel sorriu ao ouvir o nome da filha.

— Sabe o que aquela garota atrevida fez? — perguntou, rindo. — Viu o Los Angeles Times da semana passada, George?

George fez que não com a cabeça, e Abel entregou-lhe o jornal. Uma notícia fora assinalada em vermelho. George leu em voz alta:

 

“Florentyna Kane inaugurou sua terceira loja em Los Angeles. Proprietária de duas lojas em San Francisco, ela planeja abrir uma quarta em San Diego antes do final do ano. As Floren­tyna’s, como são chamadas, rapidamente vão sendo para a Cali­fórnia o que Balenciaga é para Paris.”

 

George riu, baixando o jornal.

— Ela mesma deve ter escrito esta nota — observou Abel. — Não vejo a hora de ela abrir uma Florentyna’s em Nova Ior­que. Aposto como o fará dentro de cinco anos, dez no máximo. Quer apostar, George?

— Não aceitei a primeira aposta, Abel, se está bem lem­brado. Se a tivesse aceito, dez dólares teriam voado do meu bolso.

Abel ergueu os olhos, a voz mais branda.

— Acha que ela iria ver o senador Kennedy inaugurar o novo Baron de Los Angeles, George? Acha isso possível?

— Não, se o filho de Kane não for convidado também.

— Isso nunca — disse Abel. — O filho de Kane não me interessa. Li o seu último relatório, George. Ele deixou o Bank of America e foi trabalhar com Florentyna. Incapaz de segurar um bom emprego, vive à sombra do sucesso de minha filha.

— Está se transformando num leitor preconceituoso, Abel. Sabe muito bem que as coisas não aconteceram exatamente desse modo. Esclareci as circunstâncias em detalhes. Kane responsabi­liza-se pelas finanças, enquanto Florentyna dirige as lojas, e esta associação tem sido extremamente funcional. Nunca se esqueça de que um banco importante ofereceu a Kane a oportunidade de dirigir uma agência européia, mas Florentyna pediu-lhe que a ajudasse, uma vez que não conseguia dar conta do controle das finanças. Abel, você precisa enfrentar o fato de que o casamento dos dois é um sucesso. Sei quanto é difícil engolir isso, mas por que não desce do seu pedestal e vai conhecer o rapaz?

— George, você é o meu melhor amigo. Ninguém no mundo se atreveria a falar comigo desse jeito. Por isso, ninguém sabe melhor do que você por que não desço do pedestal, não enquanto o calhorda do Kane não se dispuser a encontrar-se comigo no meio do caminho. Mas até lá, não pretendo rastejar de novo, não enquanto ele viver para me observar.

— Abel, e se você morrer primeiro? Vocês dois têm a mesma idade.

— Então eu estaria derrotado, e Florentyna herdaria tudo.

— Você me disse que ela não herdaria absolutamente nada. Disse-me que alteraria o testamento em benefício do neto.

— Como faria isso, George? Quando chegou o momento de assinar os documentos, não consegui, simplesmente. Mas que dia­bo! O danado daquele neto no fim vai acabar herdando as duas fortunas.

Abel tirou uma carteira do bolso interno do paletó, passou às pressas pelas fotografias antigas de Florentyna e puxou a foto mais recente do neto, que entregou a George.

— O garotinho é bonito — disse George.

— Naturalmente — disse Abel. — Parece com a mãe.

George riu.

— Ei, Abel, nunca vai desistir, não é mesmo?

— Como acha que chamam esse molequinho?

— Que está dizendo? Você sabe qual é o nome dele.

— Não, não, como acha que o chamam de verdade?

— De que jeito vou saber?

— Pois então descubra — desafiou Abel. — Interessa-me saber.

— E de que maneira vou consegui-lo? Terei de contratar alguém para segui-los enquanto empurram o carrinho pelo Golden Gate Park. Você me deu instruções bastante claras de que Flo­rentyna não deve saber que você se interessa pela vida dela e do filho de Kane.

— Isso me faz lembrar de que tenho uma pequena conta a acertar com o pai dele — disse Abel.

— Que fará com as ações do Lester? — indagou George.

– Peter Parfitt tem mostrado interesse em vender os dois por cento, mias eu não confiaria em Henry nessa negociação. Com esses dois implicados na venda, todo mundo tira uma parte na transação, menos você.

— Não vou fazer nada. Com a mesma intensidade com que odeio Kane, não quero me meter em complicações com ele até sabermos os resultados das eleições. Assim, a situação permane­cerá em suspenso por ora. Se Kennedy perder, compro os dois por cento de Parfitt e coloco em prática o plano que já discuti­mos. Não se preocupe com Henry Osborne; já o excluí da pasta de Kane. A partir de agora, eu manobro sozinho.

— Pois eu me preocupo, Abel. Sei que ele deve de novo à metade dos corretores de apostas de Chicago, e não me causaria surpresa alguma se, de uma hora para outra, ele viesse a Nova Iorque.

— Henry não me procurará. Expliquei-lhe a situação com muita clareza da última vez. Disse-lhe que não lhe daria um cen­tavo mais. Se voltar a me pedir dinheiro, simplesmente perderá a cadeira do conselho, e, com ela, seu único rendimento.

— Isso me preocupa ainda mais. Digamos que ele vá pedir dinheiro diretamente a Kane.

— Impossível, George. Henry é o único homem vivo que odeia Kane ainda mais do que eu, e não sem razão.

— Como pode ter tanta certeza disso?

— A mãe de William Kane foi a segunda esposa de Henry — explicou Abel —, e o jovem William com apenas dezesseis anos, expulsou-o de casa.

— Meus Deus! Como sabe isso?

— Não há nada que eu não saiba a respeito de William Kane. Ou, a propósito, a respeito de Henry. Absolutamente nada, a começar pelo fato de que nascemos no mesmo dia. E sou capaz de apostar a minha perna boa que também não há nada que ele não saiba a meu respeito. Assim, seremos prudentes a partir de agora. Mas não é necessário temer que Henry se converta num chamariz. Ele preferiria morrer a admitir que seu nome real é Vittorio Tosna e que certa vez cumpriu sentença.

— Meu Deus! Henry ainda não percebeu que você sabe de tudo isso?

— Não, ainda não. Fiz segredo disso durante anos, sempre acreditando, George, que, se um homem o ameaça em determi­nado momento, então você pode erguer um pouco mais a manga da camisa, e não o braço. Nunca confiei em Henry, desde o dia em que ele me sugeriu burlar a Companhia de Seguros contra Aci­dentes Great Western, mesmo trabalhando para ela, embora eu seja o primeiro a admitir que ele me foi deveras útil. Estou certo de que não me criará problemas no futuro, porque sem o salário de diretor ele se transformará num duro da noite para o dia. Por­tanto, George, esqueça Henry e procuremos ser um pouco mais otimistas. Quando fica pronto o Baron de Los Angeles?

— Meados de setembro.

— Perfeito. Pouco mais de um mês antes da eleição. Quan­do Kennedy inaugurar o hotel, a notícia sairá na primeira página de todos os jornais da América.

 

William retornou a Nova Iorque, vindo de um encontro de banqueiros em Washington. Um recado o esperava: que entrasse em contato com Thaddeus Cohen imediatamente. Havia muito não conversara com Cohen, visto que Abel Rosnovski não lhe causava problemas desde a conversa frustrada por telefone, às vés­peras do casamento de Richard e Florentyna, havia quase três anos. Os relatórios trimestrais consecutivos confirmavam mera­mente que Rosnovski não comprava nem vendia os títulos do banco. Entretanto, William telefonou para Thaddeus Cohen sem demora, e com certa apreensão. O advogado lhe disse que desco­brira por acaso uma certa informação que não desejava transmitir por telefone. William solicitou-lhe que o procurasse no banco quando lhe fosse conveniente.

Thaddeus Cohen chegou quarenta minutos depois. William ouviu-o num silêncio reverente.

Quando o advogado terminou, William disse:

— Seu pai jamais concordaria com métodos tão sub-reptí­cios.

— Nem o seu — replicou Thaddeus Cohen —, mas eles não tiveram de lidar com gente como Abel Rosnovski.

— O que o faz pensar que seu plano dará resultado?

— Veja o caso de Bernard Goldfine e Sherman Adams. Ape­nas mil seiscentos e quarenta e dois dólares implicados em recibos de hotéis e um casaco de vicunha, mas sem dúvida o presidente se enfureceu quando Adams foi acusado de receber tratamento especial como assessor presidencial. Sabemos que a ambição do sr. Rosnovski vai bem além disso. Seria, portanto, mais fácil trazê-lo ao chão.

— Quanto isso me vai custar?

— Vinte e cinco mil dólares, se tanto, mas talvez eu con­siga fazer tudo por menos.

— Como terá certeza de que Abel Rosnovski não saberá que estou implicado?

— Utilizarei uma terceira pessoa, que não saberá o seu nome e atuará como intermediária.

— E se você vencer esta competição, o que nos recomen­dará fazer?

— O senhor enviará todos os detalhes ao senador John Ken­nedy. Posso garantir que isso arrasará os planos ambiciosos de Abel Rosnovski de uma vez por todas, porque, a partir do mo­mento em que a credibilidade dele for abalada, ele estará des­gastado e impossibilitado de invocar o artigo 7 dos estatutos do banco — mesmo que detenha oito por cento das ações do Lester.

— Talvez... caso Kennedy se torne o presidente — disse William. — Mas o que acontecerá se Nixon ganhar a eleição? Ele está na frente nas pesquisas de opinião pública, e eu pessoal­mente acho que ele tem mais chances do que Kennedy. Imagina mesmo que os Estados Unidos colocarão um católico romano na Casa Branca? Eu não creio. Por outro lado, reconheço ser pe­queno o investimento de vinte e cinco mil dólares, desde que exista a possibilidade de acabar com Abel Rosnovski de uma vez por todas e eu possa continuar com segurança no banco.

— Se Kennedy for eleito presidente...

William abriu a gaveta da escrivaninha, de onde tirou um talão de cheques de sua conta particular e escreveu os algarismos: dois, cinco, zero, zero, zero.

 

A previsão de Abel, de que a inauguração do Baron pelo senador Kennedy sairia na primeira página dos jornais, não se realizou de todo. Embora o candidato tivesse realmente inaugu­rado o hotel, precisara comparecer a dezenas de outros eventos em Los Angeles no mesmo dia e enfrentar Nixon num debate pela televisão na noite seguinte. Contudo, a inauguração do mais novo Baron ganhou cobertura razoavelmente grande na imprensa nacional, e Vincent Hogan garantiu a Abel, particularmente, que Kennedy não esquecera aquela outra questãozinha. A loja de Flo­rentyna situava-se a poucas centenas de metros dali, mas pai e filha não chegaram a se encontrar.

Quando os resultados das eleições de Illinois foram divulga­dos, e John F. Kennedy parecia com certeza ser o trigésimo quinto presidente dos Estados Unidos, Abel bebeu à saúde do prefeito Daley e comemorou a vitória na sede do Comitê Nacional Demo­crata, na Times Square. Só foi rever a cama de sua casa por volta das cinco da manhã.

— Droga! Eu tenho muita coisa para comemorar — falou a George. — Serei o próximo... — e caiu no sono antes de ter­minar a sentença.

George sorriu e carregou-o para a cama.

William acompanhava os resultados da eleição na tranqüili­dade de seu escritório na East 68th Street. Após os resultados de Illinois, confirmados às dez horas da manhã seguinte (William nunca confiara no prefeito Daley), Walter Cronkite declarou na televisão que a grita estava em todos os bares, e William discou para a casa de Thaddeus Cohen.

Tudo o que disse foi:

— Os vinte e cinco mil dólares foram um investimento muito bem empregado, Thaddeus. Precisamos agora ter a certeza de que o sr. Rosnovski não terá um período de lua-de-mel. Mas não faça nada antes que ele viaje para a Turquia.

William pôs o fone no gancho e deitou-se. Decepcionara-se com a derrota de Nixon para Kennedy, e lamentava que o seu primo distante, Henry Cabot Lodge, não tivesse sido eleito vice-presidente. Mas o prazer de um é...

Abel recebeu convite para um dos bailes da posse do pre­sidente Kennedy, em Washington, e pensou numa única pessoa com a qual gostaria de partilhar a honra. Conversou sobre isso com George e teve de concordar que Florentyna jamais o acom­panharia, a menos que se convencesse de que ele acabaria a ini­mizade com o pai de Richard. Assim, concluiu, iria sozinho.

A fim de comparecer à comemoração em Washington, Abel teve de adiar por alguns dias sua última viagem à Europa e ao Oriente Médio. Não faltaria à posse, e, ademais, era possível pro­telar a data de inauguração do Baron de Istambul.

Mandou fazer especialmente para a ocasião um terno azul-escuro, bastante discreto, e ocupou a suíte presidencial do Baron de Washington no dia da posse. Observou com prazer o jovem e vigoroso presidente fazer o discurso, impregnado de esperança e de promessas para o futuro.

 

“... Uma nova geração de americanos, nascida neste sé­culo (Abel identificava-se pela metade), preparada pela guerra (Abel identificava-se por inteiro), disciplinada por uma paz amarga e difícil (Abel de novo identificava-se). Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer pelo seu país.”

 

A multidão aplaudiu, e todos ignoraram a neve, que fracas­sara em abafar o impacto do brilhante discurso de John F. Ken­nedy.

Abel voltou entusiasmado ao Baron de Washington. Tomou um banho e, para o jantar, vestiu gravata branca e fraque, espe­cialmente confeccionado para a ocasião. Diante do espelho, teve de reconhecer que não era a última palavra em elegância. Seu alfaiate fizera o possível, e tivera de recortar três ternos novos cada vez mais largos nos últimos três anos. Florentyna o teria cen­surado por aqueles centímetros desnecessários, como costumava chamá-los, e, por ela, ele certamente teria tomado alguma atitude para corrigi-los. Por que seus pensamentos se voltavam para Flo­rentyna? Verificou as medalhas. Primeiro, a medalha dos vetera­nos poloneses, depois, as condecorações por seus serviços no de­serto e na Itália, e então as medalhas de cutelaria, como passara a chamá-las, pelos notáveis serviços de faca e garfo.

Haveria sete bailes de posse nessa noite, e o convite de Abel endereçava-o ao D. C. Armoury. Ele sentou-se à mesa dos demo­cratas poloneses de Nova Iorque e de Chicago. Havia muito o que comemorar. Edmund Muskie estava no Senado, e outros dez democratas poloneses tinham sido eleitos para o Congresso. Nin­guém mencionou os dois novos republicanos poloneses eleitos. Abel teve uma noite alegre na companhia de dois velhos amigos, membros fundadores do Congresso Polaco-Americano como ele. Ambos perguntaram por Florentyna.

O jantar foi interrompido pela entrada de John F. Kennedy e sua bela esposa, Jacqueline. Ficaram cerca de quinze minutos, conversaram rapidamente com pessoas cuidadosamente seleciona­das, e depois se retiraram. Embora não tivesse de fato conversado com o presidente, apesar de ter se levantado da mesa e se colo­cado estrategicamente no caminho dele, Abel conseguiu trocar algumas palavras com Vincent Hogan no momento em que ele saía com a comitiva de Kennedy.

— Sr. Rosnovski, que fortuito encontro.

Abel gostaria de explicar ao jovem que com ele nada era for­tuito, mas esse não era o lugar nem o momento apropriado. Ho­gan pegou Abel pelo braço e, apressado, levou-o para trás de uma grande coluna de mármore.

— Sr. Rosnovski, por ora não tenho muito a lhe dizer, por­que preciso ficar ao lado do presidente, mas creio que o senhor pode aguardar um telefonema nosso num futuro muito próximo. Evidentemente, o presidente tem de atender no momento a uma série de compromissos.

— Evidentemente — disse Abel.

— Mas espero — continuou Vincent Hogan — que, no seu caso, tudo se confirme no mais tardar no fim de março ou começo de abril. Posso ser o primeiro a felicitá-lo, sr. Rosnovski? Confio que o senhor corresponderá às expectativas do presidente.

Abel observou Vincent Hogan correr atrás do séquito de Kennedy, que já entrava nas limusines.

— Parece muito satisfeito consigo mesmo — disse um dos amigos poloneses, quando ele voltou à mesa e, sentando-se atacou o filé duro, que dentro do Baron não seria servido jamais. — Kennedy convidou-o para ser o novo secretário de Estado?

Todos caíram na gargalhada.

— Não, ainda — respondeu Abel. — Mas me disse que as acomodações da Casa Branca não têm a mesma classe dos hotéis Baron.

Abel voltou de avião para Nova Iorque na manhã do dia se­guinte, depois de ter visitado pela primeira vez a capela polo­nesa de Nossa Senhora de Czestochowa, no National Shrine. Lem­brou-se das duas Florentynas. O Aeroporto Nacional de Washing­ton perdia-se na desordem, e, três horas depois da planejada, Abel chegou finalmente ao Baron de Nova Iorque. George reuniu-se a ele no jantar e só soube que tudo correra bem quando Abel pediu uma garrafa de Dom Pérignon.

— Esta noite vamos comemorar — disse Abel. — Vi Hogan na festa e a minha nomeação será confirmada dentro de algumas semanas. Farão o anúncio oficial após o meu regresso do Oriente Médio.

— Meus parabéns, Abel. Não conheço outra pessoa mere­cedora dessa honra.

— Obrigado, George. E garanto que sua recompensa não será no céu, porque, quando tudo estiver oficializado, nomearei você presidente do Grupo Baron durante a minha ausência.

George bebeu outra taça de champanhe. A garrafa chegava à metade.

— Abel, quanto tempo ficará fora desta vez?

— Apenas três semanas. Quero averiguar se aqueles árabes não estão me roubando pelas costas. Depois vou à Turquia inau­gurar o Baron de Istambul. Penso que passarei por Londres e Paris.

George serviu mais champanhe.

 

Abel ficou em Londres três dias além do previsto, procuran­do localizar os problemas do hotel, que o gerente atribuía aos sindicatos ingleses. O Baron de Londres revelara-se um dos pou­cos fracassos de Abel, embora ele nunca tivesse tido condições de descobrir por que o hotel constantemente perdia dinheiro. Se dependesse apenas dele, o hotel já teria sido fechado, mas o Grupo Baron de alguma forma precisava se fazer presente na capital da Inglaterra. Ele despediu o gerente e nomeou outro.

Com o Baron de Paris ocorria exatamente o contrário. O hotel era um dos mais bem-sucedidos da Europa, e certa vez Abel confessara a Florentyna, com a mesma relutância com que um pai confessa ter uma filha predileta, que o Baron de Paris era o seu hotel favorito. No Boulevard Raspail, Abel encontrou tudo bem organizado. Por isso passou apenas dois dias em Paris antes de partir para o Oriente Médio.

Contava agora com terrenos em cinco dos Estados do golfo Pérsico, mas apenas o Baron de Riad achava-se em fase de cons­trução. Fosse ele mais jovem, teria ficado no Oriente Médio uns dois anos com o único propósito de conhecer melhor os árabes. Mas não suportava a areia, o sol e a incerteza de não saber quan­do poderia pedir um uísque. Imaginou estar ficando velho, porque já não tolerava também os “nativos”. Deixou-os sob a responsabili­dade de um de seus jovens vice-presidentes auxiliares, que só receberia autorização de retornar para gerenciar os ateus dos Es­tados Unidos depois de tê-lo conseguido, com sucesso, com os santos e abençoados filhos do Oriente Médio.

Deixando o pobre vice-presidente no inferno particular mais rico do mundo, Abel rumou para a Turquia.

Abel fora à Turquia diversas vezes nos últimos anos, a fim de acompanhar a construção do Baron de Istambul. Para ele, sempre, existia alguma coisa de especial na antiga Constantinopla. Abel aguardava com ansiedade o momento de inaugurar um Baron na cidade que abandonara para começar vida nova nos Estados Unidos.

Enquanto esvaziava a valise noutra suíte presidencial, Abel viu quinze convites que aguardavam sua confirmação. Era comum ele receber convites à época da inauguração de algum hotel; uma galáxia de caras-de-pau que desejavam ser convidados a qualquer festa de inauguração aparecia no cenário como num passe de má­gica. Nessa ocasião, contudo, dois convites para jantar constituíam agradável surpresa para Abel, pois partiam de dois homens que, certamente, jamais poderiam ser considerados caras-de-pau: os em­baixadores dos Estados Unidos e da Inglaterra. Era particular­mente irresistível para Abel um convite para jantar na velha em­baixada inglesa, visto que havia quase quarenta anos ele não pisava no edifício.

Nessa noite, Abel jantou como convidado de sir Bernard Burrows, o embaixador de Sua Majestade na Turquia. Para sua surpresa, reservaram-lhe um lugar à direita da esposa do embai­xador, um privilégio que, no passado, não lhe concederam. Ter­minado o jantar, ele observou a curiosa tradição inglesa: as damas retiram-se do salão, enquanto os cavalheiros permanecem, fuman­do charutos e bebendo vinho do Porto ou conhaque. Abel foi convidado a reunir-se ao embaixador americano, Fletcher Warren, e a tomar vinho do Porto no escritório de sir Bernard. Este per­suadia o embaixador americano a também convidar o Barão de Chicago para um jantar.

— Os ingleses sempre foram presunçosos — disse o embai­xador americano, acendendo um charuto cubano.

— Há um problema com os americanos — disse sir Ber­nard. — Não reconhecem quando estão derrotados.

Abel escutava a caçoada dos dois diplomatas, perguntando-se por que motivo havia sido chamado a essa reunião. Sir Bernard ofereceu vinho a Abel, e o embaixador americano ergueu a taça.

— A Abel Rosnovski.

Sir Bernard também ergueu a taça.

— Entendo que as congratulações são oportunas — disse. Abel ficou embaraçado e olhou para Fletcher Warren, pe­dindo-lhe ajuda.

— Oh, deixei escapar algum segredo, Fletcher? — pergun­tou sir Bernard, voltando-se para o embaixador americano. — Você me disse que a nomeação era conhecida por todos, meu camarada.

— Por quase todos — disse Fletcher Warren. — Os in­gleses não conseguem guardar um segredo muito tempo.

— Foi por isso que o seu pessoal levou todo aquele tempo para descobrir que estávamos em guerra com a Alemanha? — replicou sir Bernard.

— E depois entrou para garantir a vitória?

— E a glória — disse sir Bernard.

O embaixador americano riu.

— Fui informado de que o anúncio oficial será feito dentro de poucos dias.

Os dois homens fixaram o olhar em Abel, que permaneceu calado.

— Bem, que seja eu o primeiro a felicitá-lo, Excelência — disse sir Bernard. — Desejo-lhe muitas felicidades no seu novo cargo.

Abel enrubesceu ao ouvir em alta voz o tratamento que ele próprio amiúde sussurrara para si mesmo ao barbear-se diante do espelho nos últimos meses.

— Precisa acostumar-se a ser chamado de Excelência — prosseguiu o embaixador inglês —, e a uma porção de coisas piores, em particular as chatas solenidades a que terá de compa­recer. Se tem agora algum problema para manter a forma, será insignificante comparado aos problemas inerentes ao seu man­dato. Ainda viverá para agradecer à guerra fria. Ela é que o aju­dará a manter sua vida social dentro de certos limites.

O embaixador americano sorriu.

— Meus parabéns, Abel, e, se me permite, gostaria de acres­centar as minhas felicitações pela continuidade do seu sucesso. Quando esteve na Polônia pela última vez?

— Voltei apenas uma vez, e para uma curta visita, há pou­cos anos. Era um desejo antigo.

— Bem, pois você retornará em triunfo — disse Fletcher Warren. — Está familiarizado com a nossa embaixada em Varsóvia?

— Não, não estou — confessou Abel.

— O prédio não é nada mau — comentou sir Bernard. — Recordo-lhe que vocês, colonizados, só conseguiram consolidar-se na Europa após a Segunda Guerra Mundial. A comida, porém, é horrível. Espero que tome providências a respeito disso, sr. Rosnovski. E, na minha opinião, a única maneira de remediar isso será construir um Baron em Varsóvia. Como embaixador, acredito que isso é o mínimo que esperarão de um velho polonês.

Abel viu-se tomado por um estado de euforia, rindo e divertindo-se com as anedotas banais de sir Bernard. Notou que bebia vinho do Porto um pouco além da conta, sentindo-se à vontade consigo mesmo e com o mundo. Ansiava pela hora de retornar aos Estados Unidos e contar a Florentyna a novidade, agora que a nomeação, ao que parecia, era oficial. Ela se orgulharia dele. Abel resolveu, naquele instante, que tão logo chegasse a Nova Iorque iria direto para San Francisco fazer as pazes com ela. Ela o queria havia muito, e para ele não existiam mais desculpas. De alguma maneira, faria um esforço para gostar do filho de Kane. Precisava parar de chamá-lo de “filho de Kane”. Qual era o nome dele? Richard? Sim, Richard. Ao tomar essa decisão, sentiu uma repentina sensação de alívio.

Quando os três homens retornaram ao salão principal de recepção e às senhoras, Abel aproximou-se do embaixador inglês e, pondo a mão no ombro dele, disse:

— Devo partir, Excelência.

A esposa do embaixador desejou-lhe boa noite à porta.

— Boa noite, lady Burrows, e obrigado por esta noite ines­quecível.

Ela sorriu.

— Sei que não deveria referir-me a isso, sr. Rosnovski, mas aceite minhas congratulações pela sua nomeação. Por certo, sente-­se orgulhoso de voltar à sua terra natal como representante de seu país.

— Sinto-me — respondeu Abel simplesmente.

Sir Bernard acompanhou-o até o último degrau de mármore da entrada da embaixada inglesa, onde o carro o aguardava. O motorista abriu a porta.

— Boa noite, sr. Rosnovski — disse sir Bernard —, e boa sorte em Varsóvia. A propósito, espero que tenha apreciado sua primeira refeição na embaixada inglesa.

— Segunda, na verdade, sir Bernard.

— Já esteve aqui antes, meu velho? Quando verificamos o livro de convidados, não encontramos o seu nome.

— Não — disse Abel. — Meu último jantar na embaixada inglesa foi na cozinha. Não creio que lá eles tivessem uma lista de convidados, mas foi o melhor dos jantares a que compareci em muitos anos.

Abel sorriu enquanto subia no carro. Percebeu que sir Ber­nard hesitava se devia ou não acreditar no que lhe dissera. Du­rante o trajeto de volta ao Baron, Abel tamborilou com os dedos na vidraça e cantarolou. Gostaria de poder voltar aos Estados Unidos na manhã seguinte, mas não seria recomendável recusar o convite de Fletcher Warren para jantar na embaixada ameri­cana na noite seguinte. “Uma coisa que um futuro embaixador não deve fazer, velho camarada”, ter-lhe-ia dito sir Bernard.

O jantar na embaixada americana foi outra reunião agradá­vel. Abel teve de explicar aos convivas de que modo chegara a comer na cozinha da embaixada inglesa. Quando terminou de contar-lhes a verdadeira história, eles o fitaram com um ar de admiração e de surpresa. Não estava certo se todos haviam acre­ditado na história de como quase perdera a mão, mas todos con­templaram com admiração a pulseira de prata, e, também nessa noite, chamaram-no de “Excelência”.

 

No dia seguinte, Abel levantou-se cedo, pronto para tomar o avião que o levaria aos Estados Unidos. O DC8 pousou em Belgrado, onde permaneceu dezesseis horas, para abastecimento e reparo mecânico. Defeito no trem de pouso, informaram-no. Ele sentou-se no saguão do aeroporto, tomando um café iugos­lavo intragável. O contraste entre a embaixada inglesa e o bar do aeroporto de um país de governo comunista não escapou à atenção de Abel. Por fim o aparelho decolou, com escala em Amsterdã, onde Abel teve de embarcar noutro avião.

Finalmente, o avião chegou a Idlewild. A viagem tinha du­rado trinta e seis horas. Abel estava tão fatigado que mal conse­guia andar. Tão logo deixou a alfândega do aeroporto, viu-se rodeado de repórteres. Máquinas fotográficas disparavam flashes. Abel abriu um sorriso. “Saiu a nomeação”, pensou. “Agora é oficial.” Empertigou-se quanto pôde, e, com vagar e dignidade, caminhou, disfarçando a coxeadura. Não avistara George, apenas os fotógrafos, que, para conseguir as fotos, acotovelavam-se de qualquer jeito.

De repente, ele viu George, afastado, o rosto pálido como a morte. O coração de Abel acelerou quando, ao passar pela bar­reira, um jornalista, em vez de perguntar-lhe como se sentia como o primeiro polaco-americano nomeado embaixador em Varsóvia, gritou:

— Tem alguma coisa a dizer sobre as denúncias?

Os flashes espocavam com a mesma rapidez com que eram feitas as perguntas:

— Sr. Rosnovski, as acusações procedem?

— Qual é a soma exata que o senhor deu ao deputado Henry Osborne?

— O senhor nega as denúncias?

— Voltou aos Estados Unidos para responder a julgamento?

Os jornalistas anotavam respostas que Abel nem chegara a dar.

— Tirem-me daqui! — gritou ele mais alto que o grupo.

George avançou, comprimido entre os repórteres, alcançou Abel e retornou com ele, abrindo passagem aos empurrões e final­mente fazendo-o entrar no Cadillac que os esperava. Abel abai­xou-se e escondeu a cabeça entre as mãos, enquanto as câmaras não paravam os flashes. George ordenou ao motorista que arran­casse.

— Para o Baron, senhor?

— Para o apartamento da srta. Rosnovski, na 57th Street.

— Por quê? — inquiriu Abel.

— Porque a imprensa está na porta do Baron.

— Não compreendo — disse Abel. -— Em Istambul tratam-me como embaixador já nomeado. Volto para casa e sou recebido como criminoso! George, afinal, o que está acontecendo?

— Quer saber tudo agora ou prefere conversar com o seu advogado? — perguntou George.

— Quem é ele? Quem vai me defender?

— H. Trafford Jilks, é o melhor advogado.

— E o mais caro, também.

— Abel, achei que a esta altura não ia se importar com dinheiro.

— Tem razão, George. Desculpe-me. Onde ele está?

— Falei com ele no Palácio da Justiça, mas ele me prometeu ir para o apartamento assim que fosse possível.

— Não, George, não vou esperar tanto tempo. Por Deus, conte-me o que aconteceu. Diga tudo, por pior que seja.

George respirou fundo.

— Há uma ordem de prisão contra você.

— E qual é a maldita acusação?

— Suborno de funcionários do governo.

— Nunca me envolvi diretamente com nenhum funcionário do governo em toda a minha vida — protestou.

— Sei disso, mas Henry Osborne, sim, e parece que fez tudo em seu nome.

— Oh, meu Deus! — exclamou Abel. — Eu jamais deveria ter empregado esse homem. Fiquei cego pelo ódio que nós dois devotamos a Kane. Ainda assim, não posso acreditar que Henry tenha denunciado tudo, porque ele próprio estaria implicado no caso.

— Mas Henry sumiu — disse George —, e de repente, misteriosamente, todas as dívidas dele foram saldadas.

— William Kane — e Abel rangeu os dentes.

— Nada descobrimos que o envolva no caso — explicou George. — Não existe o menor indício de que ele tenha armado essa trama.

— E quem precisa de indícios? Diga-me: como as autori­dades obtiveram os detalhes?

— Um pacote, contendo uma pasta de documentos, foi en­viado anonimamente ao Departamento da Justiça em Washington.

— Com o carimbo do correio de Nova Iorque, sem dúvida — disse Abel.

— Não. De Chicago.

Abel silenciou por alguns momentos.

— Não é possível que Henry tenha remetido as provas — observou, repentinamente. — Isso não tem o menor sentido.

— Como pode ter certeza disso? — perguntou George.

— Porque você disse que as dívidas dele foram pagas e o Departamento não faria tamanha despesa, a menos que fosse para prender Al Capone. Henry deve ter vendido o arquivo dele a alguém. Mas a quem? A única coisa que podemos ter como certa é que ele jamais daria qualquer informação diretamente a Kane.

— Não diretamente? — perguntou George.

– Não. Sabendo que Henry se achava endividado até o pescoço, ameaçado pelos corretores de apostas, Kane deve ter conseguido um intermediário para fazer o negócio.

— Isso tem sentido, Abel, e, certamente, não foi preciso contratar um superdetetive para descobrir a extensão dos pro­blemas financeiros de Henry. Eram mais do que conhecidos por qualquer um nos bares de Chicago. Mas não tire conclusões apres­sadas. Vejamos o que o seu advogado tem a dizer.

O Cadillac estacionou em frente ao apartamento em que Florentyna morara, que Abel mantinha intacto, na esperança de que a filha retornasse algum dia. H. Trafford Jilks esperava-os, sentado no vestíbulo. Feita a apresentação por George, subiram para o apartamento. George serviu uma dose de uísque a Abel. Ele o bebeu de um só trago e devolveu o copo a George, que novamente o serviu.

— Quais são as más notícias, sr. Jilks? Terminemos logo com isso.

— Sinto muito, sr. Rosnovski — começou o homem. — O sr. Novak falou-me da sua nomeação.

— Isso acabou, de modo que podemos esquecer também o “Excelência”. Acredite-me: nem Vincent Hogan se lembra mais do meu nome. Vamos, sr. Jilks, o que é que terei de enfrentar?

— Processaram-no por dezessete acusações de suborno e corrupção de funcionários em catorze Estados. Entrei em enten­dimentos com o Departamento de Justiça para que o senhor seja detido neste apartamento amanhã de manhã, e eles não fazem objeção em libertá-lo mediante fiança.

— Confortador — disse Abel —, mas, e se puderem provar as acusações?

— Oh, talvez consigam provar algumas das acusações — disse H. Trafford Jilks, sem se perturbar —, mas, enquanto Hen­ry Osborne continuar desaparecido, eles encontrarão dificuldade em pressioná-lo com algumas delas. Mas terá de conviver com o fato, sr. Rosnovski, de que já sofreu a maioria dos prejuízos, seja o senhor culpado ou não.

— Entendo perfeitamente — disse Abel, olhando de re­lance uma foto sua na primeira página do Daily News. — Sr. Jilks, descubra quem comprou aqueles documentos de Henry Osborne. Utilize quantas pessoas achar necessárias. O dinheiro não me preocupa. Mas descubra quem os comprou, e depressa, porque, se ficar provado que foi William Kane, acabarei com ele de uma vez para sempre.

— Procure não se envolver com outros problemas — disse H. Trafford Jilks. — O senhor já tem problemas demais.

— Não se preocupe — disse Abel. — Quando eu acabar com Kane, será legal, e estarei bem seguro a bordo.

— Sr. Rosnovski, ouça-me com atenção. Esqueça-se por enquanto de William Kane e comece a se preocupar com o seu julgamento, que é iminente, porque ele será, talvez, o mais im­portante acontecimento de sua vida, a menos que não se impor­te em passar os próximos dez anos na cadeia. Muito bem, por ora é só. Deite-se e procure dormir. Nesse ínterim, distribuirei à imprensa uma pequena declaração negando as acusações e di­zendo que temos explicações detalhadas capazes de inocentá-lo por completo.

— E temos? — perguntou George, esperançoso.

— Não — respondeu Jilks —, mas com isso ganharei tempo para pensar. Quando o sr. Rosnovski examinar a relação de nomes daquela pasta, não receberei com surpresa o fato de ele nunca ter tido contato direto com qualquer um deles. É possível que Henry Osborne tenha sempre agido como intermediário, sem que o sr. Rosnovski soubesse realmente o que acontecia. Meu trabalho, então, será provar que Osborne abusou da autoridade como di­retor do grupo. Por favor, sr. Rosnovski, se chegou a encon­trar-se com alguma das pessoas mencionadas, avise-me, em nome de Deus, porque, esteja certo, o Departamento de Justiça as fará sentar-se no banco das testemunhas e elas deporão contra nós. Mas só começaremos a nos preocupar com isso a partir de ama­nhã. Agora vá dormir. Deve estar exausto depois dessa viagem. Nós nos veremos amanhã cedo.

 

Abel foi detido discretamente no apartamento da filha às oito e meia da manhã, e levado por um oficial ao Tribunal Fe­deral, do Distrito Sul de Nova Iorque. Os ornamentos de cores vivas do Dia de São Valentim nas vitrines das lojas aumentavam a sensação de solidão de Abel. Jilks esperava que as providências tomadas afastassem a imprensa, mas, quando Abel chegou ao tri­bunal, novamente viu-se cercado de repórteres e fotógrafos. De­pois de ouvir críticas severas, ele entrou, seguindo George e acompanhado do advogado Jilks, que vinha logo atrás. Em silên­cio, sentaram-se na ante-sala e aguardaram.

Finalmente, foram chamados, a audiência durou apenas alguns minutos, e Abel teve uma espécie de estranha decepção. O oficial leu as acusações, H. Trafford Jilks respondeu “inocente” a cada uma delas, e solicitou a estipulação de fiança. O promotor, cum­prindo o acordo, não opôs objeções. Jilks pediu ao juiz Prescott no mínimo três meses para preparar a defesa. O juiz marcou a data do julgamento para o dia 17 de maio e, aparentemente desinteressado, passou à causa seguinte.

Abel estava livre de novo, livre para enfrentar a imprensa e os flashes. George instruíra o motorista a aguardá-los ao pé da escada, com a porta do carro aberta. O motor já havia sido acio­nado, e o motorista de Abel precisou manobrar habilidosamente a fim de esquivar-se dos repórteres insistentes, que ainda pro­curavam fazer perguntas. O carro não retornou ao apartamento da 57th Street enquanto o motorista não teve certeza de que nin­guém o seguia. Abel permaneceu imerso em silêncio. Quando, afinal, chegaram, ele voltou-se para George e colocou o braço no ombro dele.

— George, escute bem o que vou lhe dizer. Você dirigirá o grupo pelo menos durante os três meses de que o sr. Jilks precisa para elaborar a defesa. Tomara que, depois desse tempo, não precise dirigi-lo sozinho — observou Abel, procurando sorrir.

— Abel, é evidente que não precisarei. Jilks irá livrá-lo, vai ver. — Pegou a pasta e apertou o braço de Abel. — Sorria — disse, e foi embora.

— Não sei o que eu faria sem George — disse Abel ao advogado, enquanto se acomodavam na sala. — Há quase qua­renta anos, viajamos para cá no mesmo navio, e comemos o pão que o diabo amassou. Agora parece que comeremos mais algum pedaço desse pão! Sr. Jilks, continuemos. Nenhuma pista de Henry Osborne?

— Não, mas coloquei seis homens à procura dele. A Justiça colocou outros seis e, desse modo, o encontraremos. Mas, natural­mente, queremos ser os primeiros.

— E quanto ao comprador dos documentos de Osborne? – perguntou Abel.

— Alguns homens de minha confiança em Chicago foram encarregados dessa tarefa.

— Bom — comentou Abel. — Agora, examinemos a relação dos nomes que o senhor deixou ontem à noite.

Trafford Jilks começou com a leitura da denúncia e em se­guida repassou minuciosamente todas as acusações.

Após três semanas de entrevistas constantes, Jilks conven­ceu-se de que Abel nada mais tinha a dizer-lhe e consentiu que ele descansasse. Naquelas três semanas, nada se soube do para­deiro de Henry Osborne, fosse através dos investigadores de Jilks ou dos oficiais. Os de Jilks fracassaram também em des­cobrir o homem a quem Henry vendera as informações e come­çavam a concluir que Abel estava com a razão.

À medida que a data do julgamento se aproximava, Abel começou a encarar a possibilidade de realmente ir para a cadeia. Estava então com cinqüenta e cinco anos, e receava, tanto quan­to se sentia envergonhado, a perspectiva de passar os últimos anos de sua vida do mesmo modo que os primeiros. Como H. Trafford Jilks assinalara, se fosse considerado culpado, havia o suficiente na pasta de Osborne para levá-lo à prisão por um longo período. Abel enfurecia-se com a injustiça dessa situação. Os delitos praticados por Henry Osborne em seu nome tinham sido consideráveis, porém não excepcionais; ele duvidava que qual­quer negócio florescesse, ou que qualquer dinheiro pudesse ter sido ganho, sem as doações e os subornos que Trafford Jilks documentara com precisão revoltante. Abel recordou-se com amargura do rosto suave e impassível do jovem William Kane, sentado em seu gabinete em Boston, havia tantos anos, com uma pilha de dinheiro herdado, cujas origens, provavelmente ignominiosas, jaziam soterradas sob gerações de respeitabilidade. Então Florentyna lhe escreveu uma carta tocante, com algumas fotogra­fias do filho, dizendo-lhe que ainda o amava e respeitava, e que acreditava na sua inocência.

Três dias antes da data marcada para o julgamento, o Tri­bunal de Justiça localizou Henry Osborne em Nova Orleans. Sem dúvida não o teriam encontrado, não estivesse ele internado num hospital com duas pernas quebradas. Um dedicado policial descobrira que Henry sofrera as contusões por se ter negado a pagar dívidas de jogo. Ninguém gosta disso em Nova Orleans.

O policial somou dois e dois, obteve quatro, e, após essa conclu­são, Osborne, com as duas pernas engessadas, foi levado numa cadeira de rodas até o aeroporto, colocado num avião da Eastern Airlines e enviado para Nova Iorque.

No dia seguinte, foi acusado de maquinação de fraude. Ne­garam-lhe prestar fiança. Trafford Jilks solicitou ao tribunal per­missão para interrogá-lo. Sua solicitação foi atendida, mas a entrevista não o contentou. Ficara evidente que Osborne havia já feito um acordo com o governo, prometendo depor contra Abel em troca de uma atenuação das acusações que se faziam contra ele próprio.

– Sem dúvida, as acusações contra Osborne serão surpre­endentemente menores — comentou o advogado secamente.

– Então o jogo é esse — disse Abel. — Levo na cabeça e ele escapa. Agora jamais descobriremos a quem ele vendeu os documentos.

– Não, sr. Rosnovski, aí o senhor se engana. Ele se dispôs a falar apenas sobre isso. Declarou que não venderia os documen­tos a William Kane em hipótese alguma. Um homem de Chicago, chamado Harry Smith, pagou em dinheiro vivo ao sr. Osborne pelas provas, e, acredite ou não, Harry Smith não é mais que uma invenção, pois existem dezenas de Harry Smiths em Chi­cago, e nenhum deles corresponde às descrições feitas por Os­borne.

— Encontre o tal “Smith”. — disse Abel. — Encontre-o antes do início do julgamento.

— Isso já foi providenciado — respondeu Jilks. — Se o homem estiver em Chicago, poremos as mãos nele dentro de uma semana. Segundo Osborne, Smith garantiu que utilizaria a do­cumentação apenas para fins estritamente pessoais. Não tencionava entregá-la a nenhuma autoridade.

— Então por que esse Smith quis detalhes?

— Chantagem, presumo. Por essa razão Osborne desapare­ceu: para evitar o senhor. Reflita sobre isso, sr. Rosnovski, e verá que ele pode estar dizendo a verdade. Afinal, também ele correria um perigo extremo com as revelações, e, ao saber que os documentos tinham ido parar na Justiça, deve ter se sentido tão desesperado quanto o senhor. Não me surpreende que ele tenha desaparecido, e, ao ser apanhado, tenha aceitado depor contra o senhor.

— Sabe — disse Abel — só empreguei esse homem porque ele odiava William Kane, como eu, e, no entanto, Kane nos pegou a ambos.

— Não existem provas do envolvimento do sr. Kane — disse Jilks.

— Não preciso de provas.

O julgamento foi adiado a pedido do procurador do governo, que solicitou mais tempo para interrogar Henry Osborne antes de apresentar suas alegações, uma vez que, naquele momento, ele era a sua principal testemunha. Trafford Jilks objetou com ve­emência e informou ao tribunal que a saúde de seu cliente, que não era mais um rapazote, seria prejudicada com a tensão cau­sada pelas falsas acusações. À contestação não sensibilizou o juiz Prescott, que concordou com a solicitação do governo e protelou o julgamento por mais trinta dias.

O mês arrastou-se, e, dois dias antes do julgamento, Abel estava conformado em ser considerado culpado e enfrentar uma longa sentença. Nesse ínterim, um investigador de H. Trafford Jilks localizou em Chicago um Harry Smith, detetive particular, que usara esse nome seguindo estritamente as instruções de seu cliente, uma firma de advogados de Nova Iorque. Tal descoberta custou a Jilks mil dólares. Só vinte e quatro horas depois Harry Smith revelou que o escritório de advogados envolvido era Cohen, Cohen & Yablons.

— O advogado de Kane — disse Abel logo que recebeu a informação.

— Tem certeza? — indagou Jilks. — Sabendo o que sabe­mos de William Kane, para mim ele seria a última pessoa a utilizar os serviços de uma firma judia.

— Há algum tempo atrás, quando comprei os hotéis que pertenceram ao banco de Kane, alguns dos documentos foram subscritos por Thomas Cohen. Por alguma razão, o banco utilizou dois advogados na realização do negócio.

— O que quer que eu faça a esse respeito? — perguntou George.

— Nada — respondeu Trafford Jilks. — Não quero mais complicações antes do julgamento. Está me compreendendo, sr. Rosnovski?

— Sim. Eu acerto contas com Kane depois do julgamento. Agora, sr. Jilks, ouça-me, e ouça-me com atenção. Diga a Osborne imediatamente que os documentos foram vendidos a William Kane por Harry Smith e que Kane se utilizou deles para vingar-se de nós dois. E dê uma ênfase a esse “nós dois”. Garanto que quando Osborne souber disso não abrirá a boca no banco de tes­temunhas, não importa que promessas tenha feito à Justiça. Hen­ry Osborne é o único homem vivo que odeia Kane mais do que eu.

— Como quiser — disse Jilks, demonstrando que não fora persuadido. — No entanto, sr. Rosnovski, devo alertá-lo de que Osborne ainda o culpa, e até este momento não se acha do seu lado de maneira alguma.

— Acredite no que estou dizendo, sr. Jilks. Ele mudará de atitude quando souber que Kane está implicado no caso.

 

  1. Trafford Jilks obteve permissão para conversar dez mi­nutos com Henry Osborne na cela, nessa mesma noite. Osborne ouviu-o, mas não disse nada. Jilks estava convencido de que a notícia não causara nenhuma impressão à principal testemunha do governo, e resolveu só contar o resultado da conversa a Abel Rosnovski na manhã seguinte. Preferia que seu cliente dormisse bem na noite anterior ao julgamento.

 

Quatro horas antes do início do julgamento, Henry Osborne foi encontrado morto na cela pelo guarda que lhe levara o café da manhã. Utilizara a gravata de Harvard para enforcar-se.

O julgamento iniciou-se com as alegações do governo, que, sem a testemunha principal, recorreu a uma prorrogação do tem­po. Depois de ouvir outro protesto de H. Trafford Jilks, apelan­do para o estado de saúde de seu cliente, o juiz Prescott recusou-lhe o pedido. O público acompanhava o andamento do julgamento do Barão de Chicago através da televisão e dos jornais, e, para espanto de Abel, Zaphia sentou-se na galeria do tribunal, apa­rentemente satisfeita com a aflição dele. Após nove dias no Tri­bunal, o promotor não ignorava que suas alegações não se susten­tavam satisfatoriamente e propôs um acordo a H. Trafford Jilks. Durante um intervalo de sessão, Jilks inteirou Abel da proposta.

— Eles retirarão as acusações principais de suborno, se o senhor admitir duas acusações menores, de procurar influenciar um funcionário público.

— Em quanto o senhor calcula as minhas chances de sair livre, se me negar a fazer esse acordo?

— Cinqüenta por cento, eu diria.

— E se não sair livre?

— O juiz Prescott é duro. A sentença seria de seis anos, nem um dia a menos.

— Se eu faço o acordo, admitindo a culpa de duas acusações menores, o que acontecerá?

— Uma multa pesada. Seria uma surpresa ir além disso — afirmou Jilks.

Abel meditou sobre as duas alternativas por alguns segundos.

— Eu me confessarei culpado. Vamos acabar logo com isso.

Os procuradores do governo comunicaram ao juiz que reti­ravam quinze das acusações contra Abel Rosnovski. H. Trafford Jilks levantou-se e anunciou ao tribunal que o cliente desejava alterar suas declarações, confessando-se culpado das duas acusa­ções de delito leve que restavam. O júri foi dispensado, e o juiz Prescott mostrou-se assaz severo com Abel, lembrando-o de que o direito de negociar não incluía o direito de subornar funcioná­rios públicos. O suborno era um crime, ainda mais grave quando tolerado por um homem capaz e inteligente, que não deveria descer a nível tão baixo. Em outros países, acrescentou o juiz oportunamente, fazendo Abel sentir-se mais uma vez um imi­grante inexperiente, talvez o suborno fosse um procedimento co­mum, mas não era o caso dos Estados Unidos da América. O juiz Prescott deu uma sentença de seis meses, com direito a sursis, e multa de vinte e cinco mil dólares, mais as custas do processo.

George conduziu Abel de volta ao Baron; e sentaram-se na cobertura, os copos de uísque na mão, mudos por mais de uma hora. Abel finalmente rompeu o silêncio.

— George, entre em contato com Peter Parfitt e pague-lhe o milhão de dólares que ele pede pelos dois por cento do Lester. Invocarei o artigo 7 do estatuto e matarei William Kane em sua própria sala de reuniões.

George anuiu melancolicamente.

 

Poucos dias depois, o Departamento de Estado anunciou que a Polônia havia recebido o status de prioridade no comércio exterior com os Estados Unidos e que o novo embaixador ameri­cano em Varsóvia seria John Moors Cabot.

 

Em certa e amarga noite de fevereiro, William recostou-se numa cadeira e releu o relatório de Thaddeus Cohen. Henry Osborne tinha entregue todas as informações de que Kane pre­cisava para derrotar Abel Rosnovski, pegara os vinte e cinco mil dólares e desaparecera. “Absolutamente coerente com o caráter dele”, refletiu William, guardando no cofre o dossiê manuseado e envelhecido de Rosnovski. O original havia sido enviado ao Departamento da Justiça em Washington por Thaddeus Cohen alguns dias antes.

Quando Abel voltou da Turquia, sendo detido em seguida, William esperou uma retaliação por parte dele e preparou-se para o despejo das ações da Interstate Airways no mercado de valores. E dessa vez preparou-se bem. Havia já alertado o corretor de que as ações da Interstate apareceriam no mercado em grandes quan­tidades e sem aviso prévio. Suas instruções tinham sido claras. As ações deveriam ser compradas imediatamente, para evitar a baixa dos preços. Ele empregaria o dinheiro de seu depósito como medida de curto prazo, a fim de não criar contratempos para o banco. Fizera também circular um memorando entre todos os acionistas do Lester, solicitando-lhes que não vendessem quaisquer títulos da Interstate sem antes consultá-lo.

Contudo, as semanas foram passando e Abel Rosnovski não dera nenhum passo adiante. William começou então a crer que Thaddeus Cohen acertara ao prever que ele nada descobriria quanto à autoria das denúncias. Sem dúvida, Rosnovski estaria colocando toda a culpa nas costas de Henry Osborne.

Thaddeus Cohen tinha certeza de que, com as provas for­necidas por Osborne, Abel Rosnovski acabaria atrás das grades por um período bastante longo, impedido até de julgar possível algum dia recorrer ao artigo 7 e assim constituir uma ameaça ao banco. William esperava também que o veredicto devolvesse o bom senso a Richard, e que o filho então voltasse para casa. Certamente, as recentes revelações só poderiam afastá-lo da filha de Rosnovski e levá-lo a compreender que a razão sempre estivera com o pai.

William receberia Richard de braços abertos. Havia naquele momento um vazio no conselho do Lester, criado pela aposenta­doria de Tony Simmons e pela morte de Ted Leach. Richard precisaria retornar a Nova Iorque antes que William completasse sessenta e cinco anos, o que ocorreria dali a dez anos; caso con­trário, pela primeira vez em mais de um século, um Kane não se sentaria à cabeceira da mesa da sala do conselho. Cohen rela­tou que Richard havia feito uma série de brilhantes realizações nas lojas de Florentyna; mas, claro, a oportunidade de tornar-se o próximo presidente do Lester significaria muito mais para Ri­chard do que viver ao lado da filha de Rosnovski.

Outro fator que preocupava William era que ele não apre­ciava a nova geração de diretores do banco. Jake Thomas, o novo vice-presidente, surgia como o favorito na sucessão à pre­sidência. Podia ter estudado em Princeton, onde se graduara como membro do Phi Beta Kappa[5], mas era vulgar — demasia­do vulgar —, ambicioso demais, de modo algum o homem ideal para ser presidente do Lester. William teria de agarrar-se à posição até completar sessenta e cinco anos, e, até lá, tentaria convencer Richard a trabalhar no Lester. William estava perfei­tamente ciente de que Kate preferia que Richard voltasse com Florentyna, se assim quisesse, mas, à medida que os anos iam transcorrendo, ele sentia maior dificuldade em abrir mão de sua decisão. Graças a Deus que o casamento de Virgínia dera certo! Ela agora esperava um filho. Se Richard se recusasse a abandonar a filha de Rosnovski e voltar para casa, ainda restava Virgínia, a quem ele legaria todos os seus bens — a não ser que nascesse um menino.

William estava sentado à escrivaninha do banco quando teve o primeiro ataque cardíaco. Nada de muito sério. Os médicos aconselharam-lhe repouso, e com isso ele ainda viveria por mais vinte anos. William disse ao médico, outro jovem brilhante — sentia saudade de Andrew MacKenzie! —, que desejava viver apenas outros dez anos, quando então encerraria o seu exercício na presidência do banco.

Nas poucas semanas em que ficara em casa, em convales­cença, com relutância concedera a Jake Thomas a responsabilidade total das decisões do banco. Tão logo pôde retornar ao trabalho, porém, retomou rapidamente sua posição de presidente, receando que Thomas tivesse se imbuído de excessiva autoridade durante a sua ausênia. De tempos em tempos, Kate reunia um pouco de coragem e pedia-lhe permissão para aproximar-se diretamente do filho Richard, mas William, obstinadamente, dizia:

— O rapaz sabe que poderá voltar para casa quando quiser. Basta cortar o relacionamento com aquela moça ardilosa.

No dia do suicídio de Henry Osborne, William sofreu o segundo ataque cardíaco. Kate sentou-se ao lado de sua cama durante a noite toda, temendo que ele morresse, mas o julga­mento de Abel Rosnovski mantinha-o vivo. William acompanhava o julgamento diariamente e não ignorava que o suicídio de Os­borne o colocaria numa posição ainda mais forte. Quando Ros­novski foi inocentado, com apenas uma sentença de seis meses, com direito a sursis, e multa de vinte e cinco mil dólares, a leveza da pena não o surpreendeu em absoluto. Não era difícil imaginar que o governo havia feito um acordo com o excelente advogado de Rosnovski.

William, porém, surpreendeu-se com um leve sentimento de culpa e de alívio pelo fato de Abel não ter sido enviado à prisão.

Terminado o julgamento, William não se preocupou com a possibilidade de Rosnovski vender as ações da Interstate Airways. Ele continuava preparado para isso. Nada, entretanto, aconteceu, e com o decorrer das semanas, William perdeu o interesse pelo Barão de Chicago e concentrou os pensamentos em Richard, a quem agora desejava rever desesperadamente. “A velhice e o temor da morte geram mudanças súbitas no coração”, lera certa vez. Numa manhã de setembro, ele comunicou a Kate a sua von­tade. Ela não ousou perguntar-lhe o que o havia feito mudar de idéia; bastava-lhe o fato de que William desejava ver seu único filho homem.

— Vou telefonar para Richard em San Francisco neste ins­tante e convidar os dois — disse-lhe ela, agradavelmente surpresa com o marido, que não se chocara com a palavra “dois”.

— Será maravilhoso — comentou William com serenidade. — Por favor, diga a Richard que desejo vê-lo de novo antes de morrer.

— Não seja tolo, meu bem. O médico disse que, se não se preocupar, você viverá mais vinte anos.

— Só quero encerrar meu mandato de presidente do banco e ver Richard ocupando a minha cadeira na direção. Isso já será o bastante. Por que não vai a San Francisco de novo e diz pessoalmente a Richard o que desejo, Kate?

— O que quer dizer com “de novo”? — indagou Kate, inquieta.

William sorriu.

— Sei que já foi lá várias vezes, minha querida. Nestes últimos anos, toda vez que viajei a negócios você me apareceu com a desculpa de visitar sua mãe. Quando ela faleceu, no ano passado, porém, suas desculpas tornaram-se pouco convincentes. Estamos casados há vinte e oito anos, e, hoje, acredito eu, co­nheço todos os seus hábitos. Continua bela como no dia em que a conheci, minha querida, mas não acredito que, aos cinqüenta e quatro anos, você tenha um amante. Como vê, não me foi nada difícil concluir que andava visitando Richard.

— Sim, visitei Richard — disse Kate. — Por que nunca me contou que sabia?

— Porque, aqui no fundo do coração, isso me dava alegria — disse William. — Detestava a idéia de que ele pudesse perder o contato comigo e com você. Como ele tem passado?

— Os dois vão muito bem, e você já tem uma netinha e um netinho.

— Uma netinha e um netinho — repetiu William.

— Hum, hum, e ela se chama Annabel — disse Kate.

— E meu neto? — William perguntava o nome pela pri­meira vez.

Kate lhe disse o nome, e ele não pôde conter o riso. Era apenas uma meia verdade.

— Muito bem. Vá a San Francisco e veja o que consegue. Diga-lhe que o amo. — Lembrou-se de que certa vez ouvira outro velho, prestes a perder o filho, dizer a mesma coisa.

A alegria de Kate nessa noite parecia ser única em tantos anos. Ela telefonou para Richard avisando que na semana seguinte lhes faria uma visita, e que, com ela, seguiam boas notícias.

Kate retornou três semanas depois, e William ouviu, com satisfação, que Florentyna e Richard viriam visitá-los no final de novembro, pois só então poderiam deixar San Francisco. Kate chegara com muitas histórias sobre o sucesso de ambos, sobre como o jovem William Kane era a imagem do avô, e como todos não esperavam a hora de voltar a Nova Iorque para revê-los.

William ouvia com atenção, feliz e em paz consigo mesmo. Temia que, se Richard demorasse muito a voltar, jamais chegasse a fazê-lo. A presidência do banco cairia nos braços de Jake Thomas. William afastou esse pensamento.

 

William voltou ao banco com disposição na segunda-feira seguinte, após uma longa ausência causada pelo segundo ataque, mas bem recuperado e decidido a reassumir a presidência, a fim de abrir as portas ao seu único filho. Ao chegar, foi saudado pelo porteiro, que o informou que Jake Thomas o procurava e que tentara encontrá-lo em casa. William agradeceu ao funcionário, um dos mais antigos, o único que servia o Lester havia mais anos que o próprio presidente.

— Nada é tão importante que não possa esperar — disse.

— Não, senhor.

William dirigiu-se vagarosamente ao seu gabinete. Quando abriu a porta, viu Jake Thomas sentado à vontade em sua cadeira, conferenciando com três outros diretores.

— Acho que fiquei muito tempo afastado — comentou William, rindo. — Não sou mais o presidente do conselho?

— Naturalmente que é. Seja bem-vindo, William — disse Jake Thomas, levantando-se prontamente da cadeira do presi­dente.

William achava impossível acostumar-se a ser chamado por Jake Thomas pelo primeiro nome. A nova geração era muito confiada. Conheciam-se havia tão poucos anos, e esse homem não podia ter mais de quarenta anos.

— Qual é o problema? — perguntou.

— Abel Rosnovski — respondeu Jake Thomas, o rosto impassível.

William sentiu um frio na boca do estômago e sentou-se na cadeira mais próxima.

— O que ele quer agora? — indagou, enfarado. — Não me deixará viver em paz meus últimos dias?

Jake Thomas aproximou-se.

— Ele pretende recorrer ao artigo 7 e convocar uma reunião de acionistas com o único propósito de destituí-lo da presidência.

— Não pode fazer isso. Não detém os necessários oito por cento, e os estatutos do banco especificam com clareza que o presidente deve ser notificado imediatamente se alguma pessoa não-pertencente ao conselho adquirir oito por cento das ações.

— Ele afirma que amanhã pela manhã estará em poder dos oito por cento.

— Não, não — disse William. — Tenho mantido um con­trole cuidadoso de todo o patrimônio. Ninguém venderia a Ros­novski. Ninguém.

— Peter Parfitt — disse Jake Thomas.

— Não — tornou William com um sorriso de triunfo. — Comprei-lhe as ações há um ano, através de um intermediário.

Jake Thomas ficou pasmo, e, por alguns segundos, todos permaneceram emudecidos. Só então William compreendeu com que fervor Thomas desejava ser o próximo presidente do Lester.

— Bem — disse Jake Thomas —, precisamos encarar o fato de que ele afirma que terá os oito por cento amanhã pela manhã, o que o habilitaria a eleger três diretores para o conse­lho e ditar qualquer mudança de orientação por três meses. Ele estaria utilizando as próprias cláusulas colocadas pelo senhor no estatuto de incorporação com o intuito de proteger a sua posição a longo prazo. Ele pretende ainda anunciar essa decisão por todo o país. Como alternativa, está ameaçando assumir a posse do Lester utilizando o Grupo Baron como veículo, caso seus planos encontrem resistência. Deixou bem claro que existe apenas uma maneira de fazê-lo desistir do plano.

— E qual é? — perguntou William.

— Quer que o senhor se demita da presidência do banco — respondeu Jake Thomas.

— Isso é chantagem — disse William, quase gritando.

— Talvez, mas, se o senhor não se demitir até o meio-dia da próxima segunda-feira, ele fará o comunicado a todos os acio­nistas. Já reservou espaço em quarenta jornais e revistas.

— Aquele homem enlouqueceu — disse William.

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa.

— E há mais — acrescentou Jake Thomas. — Exigiu que nenhum Kane o substitua na diretoria durante os próximos dez anos, e que sua demissão não seja justificada por doença ou, com efeito, por quaisquer outras razões — concluiu, estendendo a William um documento em que havia o timbre do Grupo Baron.

— Louco! — William reconheceu o timbre num relance.

— Entretanto, convoquei uma reunião de conselho para amanhã — disse Jake Thomas. — Às dez horas. Creio que de­vemos estudar as exigências dele detalhadamente, William.

Os quatro diretores retiraram-se, deixando William sozinho no gabinete. Ninguém o procurou durante o dia. Ele permaneceu sentado à escrivaninha, buscando comunicar-se com os demais diretores, mas só conseguiu conversar rapidamente com um ou dois, e mesmo assim não estava certo de ter garantido o apoio deles. Compreendeu que a reunião constituiria uma luta cerrada, mas, contanto que ninguém mais detivesse oito por cento das ações, ele estaria seguro. Começou a elaborar uma estratégia com o fim de conservar o controle de seu próprio conselho. Examinou a relação dos acionistas: até onde podia se assegurar, nenhum deles tivera a intenção de transferir suas ações. Sorriu. Abel Rosnovski fracassara nesse golpe. William voltou mais cedo para casa à noite, dizendo a Kate tão-somente que cancelasse a visita a Richard. Em seguida, fechou-se no escritório e meditou sobre as táticas que empregaria para enfrentar Abel Rosnovski pela última vez. Dei­tou-se às três horas da madrugada, já com a decisão tomada sobre o que teria de ser feito. Jake Thomas deveria ser afastado da diretoria e substituído por Richard.

Na manhã seguinte, William chegou antes da hora marcada para a reunião do conselho. Ficou no gabinete, repassando as notas que fizera, confiante na vitória. Acreditava que seu plano levara todos os aspectos em consideração. Às cinco para as dez, a secretária chamou-o no interfone.

— O sr. Rosnovski está ao telefone e deseja falar com o senhor.

— Quem?

— O sr. Rosnovski.

— O sr. Rosnovski — repetiu William, incrédulo. — Po­nha-o na linha — disse, com voz trêmula.

— Pois não.

— Sr. Kane?

O leve sotaque que William jamais esquecera.

— Sim, o que quer desta vez?

— De acordo com os estatutos do banco, devo informá-lo de que agora detenho oito por cento das ações do Lester e pre­tendo recorrer ao artigo 7, a menos que minhas exigências ante­riores sejam cumpridas até o meio-dia de segunda-feira.

— Como obteve os dois por cento restantes? — gaguejou William.

Abel desligou. Imediatamente, William pôs-se a examinar a lista de acionistas, numa tentativa de descobrir quem o havia traído. Ainda tremia, quando a secretária tornou a chamá-lo.

— A reunião vai começar, senhor.

Às dez horas em ponto, William entrou na sala de reuniões. Tomou seu lugar, e, passando os olhos pelos circunstantes, de súbito percebeu quão pouco conhecia aqueles jovens diretores. Da última vez em que precisara lutar, nessa mesma sala, também não conhecia os diretores, mas vencera. Sorriu, razoavelmente confiante em que poderia ainda bater Abel Rosnovski. Ergueu-se e dirigiu-se ao conselho.

— Senhores, esta reunião foi convocada porque o banco recebeu uma demanda do sr. Abel Rosnovski, do Grupo Baron, um criminoso confesso, que teve a desfaçatez de desafiar-me diretamente, afirmando que usaria a posse de oito por cento do patrimônio do meu banco para nos envolver em dificuldades financeiras. Se a sua tática fracassasse, ele tentaria uma licitação de sucessão inversa, a menos que eu renuncie ao cargo da presi­dência do banco e do conselho sem nenhuma explicação. Os se­nhores todos sabem que dentro de nove anos encerro os meus serviços a este banco, aposentando-me. Caso eu me afaste antes, minha demissão seria mal interpretada no mundo financeiro.

William baixou o olhar, consultou as notas e resolveu jogar o seu ás.

— Senhores, ofereço-lhes como garantia todo o meu patri­mônio de ações, mais dez milhões de dólares da minha conta pessoal, e coloco-os à disposição do banco, a fim de que possam rebater quaisquer medidas tomadas pelo sr. Rosnovski e ao mes­mo tempo proteger o Lester contra qualquer prejuízo financeiro. Nessas circunstâncias, senhores, espero poder contar com o seu total apoio nesta batalha contra Abel Rosnovski. Estou certo de que os senhores não são homens de ceder a chantagens.

A sala mergulhou em silêncio. William sentiu que tinha ven­cido, mas então Jake Thomas perguntou-lhe se o conselho poderia levantar algumas questões sobre suas relações com Abel Rosnovski. O pedido colheu William de surpresa, mas ele concordou, sem mostrar nenhuma hesitação. Jake Thomas não o amedrontava.

— Esta vingança entre o senhor e Abel Rosnovski — disse Jake Thomas — vem se arrastando por mais de trinta anos. Acredita que, se viéssemos a seguir os seus planos, o caso estaria encerrado?

— O que mais esse homem poderá fazer? O que mais po­derá ele fazer? — gaguejou William, buscando com o olhar um apoio da diretoria.

— Não teremos certeza enquanto ele não agir, mas, com oito por cento das ações do banco, terá tanto poder quanto o senhor — observou o novo diretor, que, contra a vontade de William, tinha muito a dizer. — E tudo o que sabemos é que nenhum dos senhores pretende abandonar tal inimizade. Embora o senhor tenha oferecido dez milhões de dólares para proteger nossa situa­ção financeira, se o sr. Rosnovski passar a deter as decisões de planejamento, e o poder de convocar reuniões por representação, de promover licitações de sucessão, sem nenhum interesse na clien­tela do banco, sem dúvida causará pânico. O banco e as empre­sas subsidiárias, às quais devemos servir como diretores, ficarão, na melhor das hipóteses, profundamente embaraçados, e, na pior, finalmente arruinados.

— Não, não — disse William. — Com o meu apoio pessoal conseguiremos enfrentá-lo.

— O que precisamos decidir hoje — continuou o diretor — é se existem condições de o conselho enfrentar o sr. Rosnovski. Talvez estejamos destinados a ser perdedores nesse combate.

— Não, se eu cobrir o custo com o meu patrimônio pessoal — disse William.

— Isso o senhor poderá fazer — disse Jake Thomas —, mas não estamos discutindo exatamente dinheiro. Outros proble­mas, bem maiores, surgirão para o banco. Agora que Rosnovski tem poderes para recorrer ao artigo 7, fará de nós gato e sapato. O banco se arriscaria a passar o tempo todo nada fazendo além de tentar prever as artimanhas de Abel Rosnovski.

Jake Thomas fez uma pausa e esperou que sua declaração surtisse efeito. William permaneceu calado. Em seguida, Thomas lançou um olhar para William e prosseguiu.

— Gostaria de fazer-lhe uma pergunta bastante séria, senhor presidente, que preocupa a cada um dos que se sentam em torno desta mesa. Espero que o senhor responda a ela com franqueza, por mais desagradável que seja.

William ergueu os olhos, curioso por saber qual seria a per­gunta. O que teriam andado discutindo às suas costas? Quem Jake Thomas achava que era? William sentiu que começava a perder a iniciativa.

— Responderei a tudo o que o conselho perguntar — res­pondeu William. — Não temo nada e a ninguém — disse, olhan­do diretamente para Jake Thomas.

— Obrigado — disse Jake Thomas. — Senhor presidente, de alguma forma envolveu-se com o envio ao Departamento da Justiça em Washington dos documentos que levaram Abel Ros­novski a ser detido e acusado de fraude, mesmo sabendo que ele era um acionista de grande participação no banco?

— Foi ele quem lhe contou isso? — perguntou William.

— Foi. Ele afirma ter sido o senhor o único responsável pela sua prisão.

William silenciou alguns segundos, refletindo sobre a respos­ta, enquanto examinava suas anotações. Elas não o ajudavam. Não lhe ocorrera que essa questão pudesse ser levantada, mas nunca, em mais de trinta e três anos, mentira ao conselho. Não era agora que o faria.

— Sim, envolvi-me — disse, quebrando o silêncio. — A informação chegou às minhas mãos, e julguei não ser mais que meu dever entregá-la à Justiça.

— E como as informações chegaram às suas mãos?

William fez que não ouviu.

— Creio que todos nós conhecemos a resposta, senhor pre­sidente — disse Jake Thomas. — Além do mais, o senhor passou essas informações às autoridades sem nos pôr a par de sua atitude, e, ao fazê-lo, colocou-nos em perigo. Nossa reputação, nossa car­reira, tudo o que há de mais caro ao banco foi ameaçado por uma rixa pessoal.

— Mas Rosnovski tentou arruinar-me — disse William, ciente de que gritava.

— E para arruiná-lo o senhor colocou em risco a estabili­dade e a reputação do banco!

— O banco é meu! — disse William.

— Não é! — disse Jake Thomas. — O senhor detém oito por cento das ações, tal como o sr. Rosnovski, e no momento é o presidente do Lester. Mas não pode usar o banco caprichosa­mente, sem sequer consultar os demais diretores.

— Nesse caso, solicito ao conselho um voto de confiança — disse William. — Peço-lhes que me dêem seu apoio contra Abel Rosnovski.

— Não é o caso de um voto de confiança — afirmou o diretor. — Devemos decidir se o senhor é ou não o homem certo para dirigir este banco nas atuais circunstâncias. Concorda, senhor presidente?

— Assim seja — disse William, desviando o olhar. — O conselho deve resolver se quer encerrar a minha carreira em des­graça justamente agora, depois de quase um quarto de século de serviço, ou se se renderá às ameaças de um criminoso confesso.

Jake Thomas fez um sinal de cabeça para o secretário da diretoria, e as cédulas de votação foram distribuídas aos mem­bros do conselho. Aos olhos de William, era como se tudo tives­se sido resolvido antes do início da reunião. Passeou o olhar pelos vinte e nove homens reunidos em torno da mesa. Alguns ele próprio havia escolhido; outros, porém, não conhecia bem. Sou­bera certa vez que um pequeno grupo de jovens diretores apoiava abertamente o Partido Democrata e John Kennedy. Alguns deles encaravam-no; outros, não. Certamente o apoiariam, não permi­tindo que Rosnovski o vencesse. Não nesse momento. “Por favor, deixem-me chegar ao fim da minha carreira presidencial”, disse para si mesmo, “e depois irei embora calmamente, sem nenhuma inquietação — mas não, não desse modo.”

Observou os membros do conselho devolverem as cédulas ao secretário, que começou a abri-las devagar. A sala estava em silêncio, todos os olhos voltados para o funcionário. Ele abriu as últimas cédulas e anotou meticulosamente, em duas colunas distintas, os votos a favor e os contra numa folha de papel que tinha diante de si. William viu que uma das listas de nomes era maior que a outra, mas sua vista fraca não lhe permitia discernir qual delas continha os votos a seu favor. Não se sentia capaz de aceitar que chegara o dia em que, no seu próprio con­selho, estava havendo uma disputa de votos entre ele e Abel Rosnovski.

O funcionário disse o resultado. William não acreditou no que tinha ouvido. Por dezessete votos contra doze, ele havia per­dido a confiança do conselho. Conseguiu levantar-se. Abel Ros­novski vencera-o na batalha final. Enquanto o presidente se retirava da sala, todos permaneceram silenciosos. William retor­nou ao gabinete presidencial, pegou o casaco, deteve-se para olhar uma última vez o retrato de Charles Lester e então, vagarosa­mente, percorreu o corredor e atravessou a porta de saída.

O porteiro lhe disse:

— É bom vê-lo de volta, senhor presidente. Até amanhã, senhor.

William jamais tornaria a vê-lo. Voltou-se e apertou a mão do homem que lhe indicara a sala de reuniões do conselho trinta e três anos atrás.

O homem, surpreso pelo cumprimento, falou:

— Boa noite, senhor — e acompanhou William com o olhar, que entrava no carro ali, pela última vez.

Seu motorista levou-o para casa. Ao descer na East 68th Street, William caiu sobre os degraus da entrada. O motorista e Kate ajudaram-no a entrar. Kate notou que ele chorava e abra­çou-o.

— O que aconteceu, William?!

— Fui posto para fora do meu próprio banco — lamentou. — Meu conselho perdeu a confiança em mim. Por interesse, apoia­ram Abel Rosnovski.

Kate levou-o com certo esforço à cama e permaneceu sen­tada ao lado dele toda a noite. Ele não falou em nenhum mo­mento. E nem conseguiu dormir.

 

O Wall Street ]ournal, na manhã seguinte, dizia simples­mente: William Lowell Kane, diretor-presidente do Lester, demi­tiu-se após uma reunião de diretoria, ontem.

Não havia nenhuma referência a doença ou qualquer expli­cação de seu afastamento repentino, nem sequer insinuação de que seu filho ocuparia a cadeira presidencial. William sabia que os rumores correriam pela Wall Street, e que todos imaginariam o pior. Permaneceu sentado na cama, solitário, indiferente a este mundo.

 

No mesmo dia, Abel leu a pequena notícia da demissão de William Kane no Wall Street. Telefonou para o Lester e pediu que chamassem o novo presidente. Segundos depois, Jake Thomas o atendeu.

— Bom dia, sr. Rosnovski.

— Bom dia, sr. Thomas. Quero confirmar que, nesta manhã, transferirei todas as minhas ações da Interstate Airways ao banco, ao preço do mercado, e lhe entregarei os meus oito por cento do Lester, pessoalmente, por dois milhões de dólares.

— Obrigado, sr. Rosnovski, é muita generosidade de sua parte.

— Não há por que agradecer, senhor presidente, cumpro apenas o acordo que fizemos, quando o senhor me vendeu os seus dois por cento — disse Abel Rosnovski.

 

                                                                   1963-1967

 

Abel estava surpreso de sentir tão pouca satisfação com esse último triunfo.

George tentou persuadi-lo a ir a Varsóvia procurar terreno para a construção de um Baron, mas Abel não se mostrou dis­posto à viagem Com a velhice, tornara-se medroso, e receava morrer no exterior sem rever Florentyna. Durante meses, desin­teressou-se das atividades do grupo. Quando John F. Kennedy foi assassinado, no dia 22 de novembro de 1963, Abel entrou numa depressão ainda maior e temeu pelo destino dos Estados Unidos. Finalmente, George convenceu-o de que uma viagem ao exterior não lhe faria mal algum e que, quando voltasse, as coisas provavelmente estariam melhores.

Abel viajou para Varsóvia, onde conseguiu um acordo alta­mente confidencial que lhe possibilitaria a construção do primeiro Baron num país comunista. Seu domínio da língua causou im­pressão nos varsovianos, e ele não pôde deixar de orgulhar-se por ter chegado antes do Holliday Inn e do Intercontinental ao outro lado da Cortina de Ferro. Não se conformava... E não se conformou também quando Lyndon Johnson nomeou John Gronowski o primeiro polaco-americano a representar os Estados Unidos na embaixada de Varsóvia. Mas agora nada parecia dar-lhe satisfação. Derrotara Kane e perdera a própria filha; pergun­tava a si mesmo se aquele homem não estaria sentindo a mesma coisa. Deixando Varsóvia, excursionou pelo mundo, hospedando-se em seus hotéis, acompanhando a construção dos novos. Abriu o Baron da Cidade do Cabo, na África do Sul, e voltou à Alema­nha para inaugurar o de Düsseldorf.

Ficou seis meses no seu Baron predileto, em Paris, vaguean­do pelas ruas durante o dia e assistindo à ópera à noite, na espe­rança de reavivar as recordações de Florentyna.

Por fim, deixou Paris e retornou a Nova Iorque, após um longo exílio. Ao descer os degraus da escada de metal de um Air France 707, no Aeroporto Kennedy, o corpo encurvado, a cabeça calva coberta por um chapéu, ninguém o reconheceu. George estava lá para saudá-lo, o fiel e honesto George, aparen­temente bem mais velho. No trajeto para o hotel, George, como sempre, informou-o das novidades do grupo. Os lucros haviam aumentado significativamente, graças aos seus entusiásticos exe­cutivos, que trabalhavam com afinco em cada cidade importante do mundo. Eram agora setenta e dois hotéis e vinte e dois mil funcionários. Abel não dava mostras de estar ouvindo. Queria tão-somente notícias de Florentyna.

— Ela está bem — disse George — e virá a Nova Iorque no início do próximo ano.

— Por quê? — indagou Abel, subitamente interessado.

— Virá abrir uma de suas lojas na Fifth Avenue.

— Fifth Avenue?

— A décima primeira Florentyna’s — informou George.

— Você a viu?

— Sim.

— Está bem? Está feliz?

— Ambos estão bem felizes. E vitoriosos. Abel, você devia orgulhar-se deles. Seu neto é um garoto e tanto, e sua neta é linda. A imagem de Florentyna quando tinha a mesma idade.

— Ela quer me ver? — inquiriu Abel.

— E você quer ver o marido dela?

— Não, George. Não vou me encontrar com aquele rapaz, enquanto o pai dele estiver vivo.

— E se você morrer primeiro?

— Não deve acreditar em tudo o que a Bíblia diz.

Abel e George permaneceram em silêncio o resto do percurso e, à noite, Abel jantou sozinho em sua suíte.

Nos seis meses que se seguiram, ele não saiu uma vez sequer da cobertura.

 

Quando Florentyna Kane abriu a butique na Fifth Avenue, em março de 1967, quase toda a Nova Iorque parecia ter com­parecido à festa, exceto William Kane e Abel Rosnovski.

Kate e Lucy saíram para a inauguração da Florentyna’s, dei­xando William na cama, a resmungar.

George deixou Abel sozinho na suíte. Ele tentara convencer Abel a acompanhá-lo à inauguração, mas o velho resmungou que a filha havia inaugurado dez lojas sem a presença dele e mais uma não lhe faria nenhuma diferença. George disse que ele não passava de um velho tolo e cabeçudo e foi sozinho à Fifth Avenue. Quan­do chegou à moderna e magnífica butique, com tapetes fofos e móveis suecos recentes — lembrara-lhe o modo como Abel cos­tumava fazer as coisas —, George encontrou Florentyna, que ves­tia um longo, azul, com o agora famoso F na gola alta. Ela lhe ofereceu champanhe e apresentou-o a Kate e Lucy, que conversa­vam com Zaphia. Kate e Lucy Kane mostravam-se inequivoca­mente felizes, e surpreenderam George ao lhe perguntarem por Abel Rosnovski.

— Eu disse a Abel que ele é um velho tolo e cabeçudo por perder uma festa dessa. E o sr. Kane não veio?

George ficou satisfeito com a resposta alegremente dissimu­lada de Kate Kane.

 

William ainda resmungava, enquanto lia, no New York Ti­mes, alguma coisa sobre Johnson ter desferido seu ataque contra o Vietnã. Dobrou o jornal e desceu da cama. Começou a vestir-se preguiçosamente, e, ao terminar, olhou-se no espelho. Tinha o aspecto de um banqueiro. Franziu a testa. Com que outra coisa poderia se parecer? Pôs um pesado sobretudo e o velho chapéu Homburg, apanhou a bengala preta de cabo prateado, que Rupert Cork-Smith lhe dera, e, talvez por alguma razão, saiu para a rua. Era a primeira vez que saía sozinho, refletiu, em quase todos aqueles três anos, desde que tivera o último ataque cardíaco grave. A criada estranhou vê-lo deixar a casa sem nenhuma companhia.

Era uma noite quente de primavera, mas William, tendo permanecido dentro de casa muito tempo, sentia frio. Ele demo­rou longo tempo até alcançar o Fifth Avenue com a 56th Street, e, quando finalmente chegou, era tal o número de pessoas do lado de fora da Florentyna’s que por um instante ele pensou não ter força suficiente para abrir caminho entre a multidão. Ficou para­do à beira da calçada, observando as pessoas se divertirem. Gente jovem, feliz e entusiasmada, de algum modo conseguindo passar e entrar na bela loja Florentyna’s. Algumas moças usavam as mi­nissaias importadas de Londres. O que viria depois?, refletiu Wil­liam, quando, de súbito, avistou o filho conversando com Kate. Transformara-se num belo homem — alto, seguro e sereno; havia nele qualquer coisa de imponente que lhe lembrava o próprio pai. Mas na agitação e movimentação incessantes, não podia ima­ginar qual de todas aquelas moças era Florentyna. Ficou ali de pé, parado, quase uma hora, a entreter-se com o entra-e-sai, e las­timou os anos que sua obstinação o fizera desperdiçar.

O vento começara a soprar veloz pela Fifth Avenue. William esquecera que em março o vento podia tornar-se muito frio. Levantou a gola do sobretudo. Precisava voltar para casa, porque todos iriam jantar lá nessa noite, e pela primeira vez ele ia ver Florentyna e os netos. Seu neto e a pequena Annabel, e o pai deles, seu filho amado. Dissera a Kate que tinha sido um tolo, e pediu-lhe que o perdoasse. Lembrava-se de que ela apenas lhe havia dito: “Sempre amarei você”. Florentyna escrevera-lhe. Tão generosa a sua carta! Ela fora extremamente compreensiva e amá­vel com respeito ao passado. Terminara dizendo: “Estou ansiosa por conhecê-lo”.

Precisava voltar para casa. Kate ficaria aborrecida com ele, se descobrisse que estivera na rua sozinho e com aquele vento frio. Mas tinha de ver a inauguração da loja. De alguma maneira, esta­ria na companhia deles. Agora iria embora e os deixaria divertindo-se com a festa. Depois do jantar, eles lhe contariam tudo sobre a inauguração. Mas ele não diria que estivera lá. Guardaria esse segredo, sempre.

Quando se voltou para tomar o rumo de casa, William viu, a poucos metros de onde estava, um velho que vestia um casaco preto, chapéu enfiado até as orelhas e cachecol em torno do pes­coço. Ele também sentia frio. Essa não era uma noite para velhos, pensou William, andando na direção do outro. E então, de súbito, viu a pulseira de prata no pulso do velho, um pouco abaixo do punho do casaco. Num lampejo, recordou-se de tudo, juntando as peças de suas lembranças pela primeira vez. Primeiro Plaza, depois Boston, depois a Alemanha e, agora, a Fifth Avenue. O homem virou-se e começou a andar em sua direção. Devia estar parado ali há muito tempo, porque seu rosto estava roxo de frio. Os olhos inequivocamente azuis fitaram William. Uns poucos metros separavam um do outro. Ao se cruzarem, William tirou o chapéu para o velho. Ele respondeu numa saudação, e continua­ram a caminhar, cada um para um lado, sem terem trocado uma só palavra.

“Preciso ir para casa”, pensou William, “antes que eles vol­tem.” A alegria de ver Richard e os dois netinhos devolvia-lhe o prazer de viver. Queria conhecer Florentyna, pedir-lhe perdão, e confiava em que ela compreendesse o que ele próprio mal com­preendia. “Uma moça e tanto!”, diziam-lhe.

Quando chegou à East 68th Street, procurou, atrapalhado, a chave e abriu a porta da frente. “Ligue todas as luzes”, dissera à criada, “e acenda o fogo da lareira, para que todos sintam con­forto.” Estava muito contente, e muito, muito cansado.

— Abra as cortinas — disse —, e acenda as velas dos cas­tiçais da mesa da sala de jantar. Temos muito o que comemorar.

William não via o momento de eles chegarem. Sentou-se na cadeira de couro vermelho-acastanhado ao lado do fogo vivo, e com felicidade pensou na noite que tinha pela frente. Netos à sua volta, os anos que perdera. Quando o netinho teria dito “três” pela primeira vez? Uma oportunidade de enterrar o passado e ga­nhar a remissão de agora em diante. A sala estava muito acolhe­dora e aquecida, depois daquele vento gélido; mas valera a pena fazer aquela jornada.

Minutos depois, ele ouviu um rumor agitado que vinha da escada, e surgiu a empregada, que lhe disse que o filho acabara de chegar. Estava no vestíbulo com a mãe, a esposa e as duas crianças mais graciosas que ela tinha visto na vida. E então saiu correndo para servir o jantar ao sr. Kane na hora marcada. Ele queria que tudo saísse perfeito nessa noite.

Richard entrou na sala com Florentyna. Ela estava radiante.

— Papai quero apresentar-lhe minha esposa.

William Lowell Kane ter-se-ia voltado para recebê-los, mas não podia. Estava morto.

 

Abel colocou o envelope sobre o criado-mudo. Ainda não estava vestido. Ultimamente, era raro levantar-se antes do meio-dia. Experimentou tirar a bandeja do café da manhã de cima dos joelhos e pô-la no chão, um movimento de inclinação que seu corpo não. mais oferecia. Inevitavelmente, acabava deixando a bandeja cair num estrondo. Nesse dia não foi diferente. Pouco lhe importava isso. Pegou o envelope outra vez e leu a comu­nicação em voz alta pela segunda vez.

 

— “Recebemos do falecido sr. Curtis Fenton, que foi gerente do Continental Trust Bank, na La Salle Street, em Chicago, a instrução de enviar-lhe a carta aqui inclusa, quando da efetiva­ção de determinadas circunstâncias. Por gentileza, acuse o recebi­mento desta carta assinando a cópia também inclusa, e remetendo-a de volta no envelope previamente selado e sobrescrito que estamos anexando a esta.” – Malditos advogados! — exclamou Abel, e, rasgando o envelope, abriu a carta.

 

           Prezado sr. Rosnovski:

Esta carta permaneceu sob a guarda de meus advogados até a data de hoje por motivos que lhe ficarão claros à medida que a for lendo.

Quando, em 1951, o senhor encerrou suas contas no Conti­nental Trust, depois de o banco tê-lo servido por mais de vinte anos, naturalmente senti-me desconsolado e deveras preocupado. Minha preocupação foi motivada não por ter perdido um dos clien­tes do banco mais estimados, embora o fato fosse lamentável, mas porque o senhor entendeu que eu havia agido de má fé. O que o senhor desconhecia, àquela época, era que eu havia recebido ins­truções específicas de seu financiador de não lhe revelar deter­minados fatos.

O senhor veio ao banco pela primeira vez, em 1929, e soli­citou um apoio financeiro para liquidar as dívidas contraídas pelo sr. Davis Leroy, de modo que pudesse assumir a propriedade dos hotéis que integravam o Grupo Richmond. Não obstante ter ten­tado contatar diversos financistas, fracassei em encontrar um fi­nanciador. Interessei-me pessoalmente pelo seu caso, porque acre­ditava que o senhor possuía um faro excepcional para a carreira escolhida. Deu-me enorme satisfação constatar, na minha velhice, que minha confiança não fora imerecida. Devo acrescentar, a este ponto, que também me senti grandemente responsável por tê-lo aconselhado a comprar os vinte e cinco por cento do Grupo Rich­mond de minha cliente, a srta. Amy Leroy, embora ignorasse a difícil situação financeira por que passava naquele momento o sr. Leroy. Fiz uma digressão.

Não consegui encontrar um financiador para o senhor, e já estava prestes a perder todas as esperanças, quando, naquela ma­nhã de segunda-feira, o senhor me procurou. Creio que se recorda daquele dia. Apenas trinta minutos antes de sua entrevista, eu havia recebido um telefonema de um financista que se oferecia para emprestar-lhe o dinheiro necessário, e que, tal como eu, de­positava grande confiança no senhor. A única condição que ele impusera, tal como eu o informei naquela oportunidade, era que ele insistia em permanecer no anonimato, devido a um conflito potencial entre sua profissão e seus interesses particulares. Eu havia considerado os termos oferecidos por ele, que lhe possibili­tavam um eventual ganho do controle do Grupo Richmond, extre­mamente generosos, e o senhor, legitimamente, tirou deles bom proveito. Com efeito, quando, através de seus próprios esforços, o senhor conseguiu saldar o investimento inicial, seu financiador regozijou-se com o fato.

Depois de 1951, perdi o contato com ambos, mas, após apo­sentar-me do banco, soube, através dos jornais, de um lamentável incidente que envolvia o seu financiador, o que me levou a escre­ver esta carta, considerando a possibilidade de que eu viesse a morrer antes dos senhores.

Escrevo-lhe não para provar as minhas intenções honestas em todo este caso, mas para que o senhor não continue a viver na ilusão de que o seu financiador e benfeitor foi o sr. David Maxton, do Stevens Hotel. O sr. Maxton era um grande admi­rador seu, mas nunca chegou a procurar-me no banco com a in­tenção de ajudá-lo. O cavalheiro que tornou possível a existência do Grupo Baron, por sua capacidade de previsão e nobreza de caráter, foi William Lowell Kane, presidente do Lester de Nova Iorque.

Solicitei ao sr. Kane que o informasse de seu envolvimento pessoal, mas ele se recusou a quebrar a cláusula da escritura de seu legado, segundo a qual nenhum beneficiário deveria ser intei­rado dos investimentos da herança da família. Depois de o senhor ter pago o empréstimo, e de, mais tarde, ele ter descoberto o en­volvimento pessoal de Henry Osborne com o Grupo Baron, o sr. Kane tornou-se ainda mais inflexível no sentido de que o senhor jamais fosse informado desse fato.

Deixei instruções para que esta carta seja destruída, caso o senhor venha a falecer antes do sr. Kane. Nessa circunstância, ele receberá uma carta, explicando-lhe o seu total desconhecimento da generosidade dele.

Seja quem for que receba a carta de meu punho, foi um privilégio poder tê-los servido.

                   Para sempre, seu fiel criado, Curtis Fenton.

 

Abel pegou o telefone no criado-mudo.

— Chame George — disse. — Quero vestir-me.

 

O funeral de William Lowell Kane teve grande acompanha­mento. Richard e Florentyna ficaram a um lado de Kate; Virgí­nia e Lucy, do outro. A avó Kane teria aprovado a cerimônia. Três senadores, cinco deputados, dois bispos, a maior parte dos presidentes dos principais bancos e o editor do Wall Street Jour­nal estavam presentes, Jake Thomas e todos os diretores do con­selho do Lester também estavam presentes, compungidos, numa oração a Deus, em quem William nunca acreditara realmente.

Ninguém notou a presença de dois homens idosos, de pé, atrás da multidão, também de cabeça baixa, dando a impressão de não pertencerem ao mesmo grupo. Haviam chegado com alguns minutos de atraso e partiram imediatamente após o ofício reli­gioso. Quando o homem mais baixo se afastava, apressado, Flo­rentyna julgou ter reconhecido nele um andar claudicante. Ela falou a Richard de sua suspeita, mas ambos não comentaram o fato com Kate Kane.

Alguns dias depois, o mais alto dos dois homens procurou Florentyna na loja da Fifth Avenue. Lera em um jornal que ela estaria de volta a San Francisco e precisava que lhe fizesse um favor antes de partir. Ela o ouviu com atenção e, com alegria, consentiu no seu pedido.

Richard e Florentyna Kane chegaram ao Baron Hotel na tarde seguinte. George Novak os esperava e os acompanhou ao quadragésimo segundo andar. Passados dez anos, Florentyna mal reconheceu o pai, agora pregado na cama, os óculos de lentes de meia-lua fixos na ponta do nariz, ainda sem travesseiro, mas com um sorriso provocador. Conversaram sobre os dias felizes de suas vidas, e ambos riram um pouco e choraram muito.

— Richard, perdoe-nos — disse Abel. — Nós, poloneses, somos uma raça sentimental.

— Eu sei, meus filhos são meio poloneses — disse Richard.

Mais tarde, nessa noite, jantaram juntos, “uma esplêndida carne de vitela assada, apropriada ao retorno da filha pródiga”, disse Abel.

Falaram sobre o futuro e sobre o desenvolvimento do grupo.

— Devíamos ter uma Florentyna’s em cada hotel — disse Abel.

Ela riu e concordou.

Abel disse a Richard o quanto sentia tudo o que fizera ao pai dele, revelando em detalhes os erros que havia cometido ao longo dos anos. Contou-lhe como em nenhum momento lhe pas­sara pela cabeça que seu benfeitor pudesse ter sido William Kane, e como gostaria de ter tido uma oportunidade de poder agradecer pessoalmente pelo que ele lhe fizera.

— Ele o teria compreendido — disse Richard.

— Nós nos encontramos, sabe, no dia em que ele morreu — disse Abel.

Florentyna e Richard olharam-no, espantados.

— Oh, sim — continuou Abel. — Passamos um pelo outro na Fifth Avenue. Ele estava lá, observando de longe a inaugu­ração de sua loja. Tirou o chapéu para mim. Aquilo foi o sufi­ciente, o suficiente.

Abel tinha apenas um pedido a fazer a Florentyna. Que ela e Richard o acompanhassem na viagem a Varsóvia dali a nove meses, quando inauguraria o seu mais novo Baron Hotel.

— Podem imaginar? — falou ele, de novo entusiasmado, tamborilando com os dedos no criado-mudo. — O Baron de Var­sóvia. Agora, sim, existe um Baron que só poderá ser aberto pelo presidente do Grupo Baron.

 

Durante os meses seguintes, os Kanes visitaram Abel com regularidade, e Florentyna tornou a aproximar-se muito do pai. Abel aprendeu a admirar Richard e o bom senso que temperava todas as ambições da filha. Ele adorava o neto. E a pequena Annabel era — como era mesmo a medonha expressão moderna? — “demais”.

Raras vezes em sua vida Abel sentira-se tão feliz, e começou então a fazer planos para o seu retorno triunfante à Polônia e para a inauguração do Baron de Varsóvia.

 

A presidente do Grupo Baron inaugurou o Baron de Var­sóvia seis meses mais tarde do que o previsto. Os contratos de construção processavam-se morosamente em Varsóvia, exatamen­te como em qualquer outra parte do mundo.

Em seu primeiro discurso como presidente do grupo, Flo­rentyna disse aos convidados que o orgulho que sentia por aquele magnífico hotel misturava-se a um sentimento de tristeza pelo fato de seu falecido pai não poder estar presente para inaugurar ele mesmo o Baron de Varsóvia.

Em seu testamento, Abel deixara tudo para Florentyna, com a única exceção de um pequeno legado. O testamento descrevia a dádiva como uma pesada pulseira de prata rara, mas de valor inestimável, na qual estava gravada uma inscrição: Barão Abel Rosnovski.

O herdeiro desse legado era seu neto, William Abel Kane.

 

[1] Tropas regulares da Alta Escócia, criadas em 1739, que depois passaram a ser chamadas de Royal Highlanders. Deve-se o nome original às cores escuras dos tecidos axadrezados dos uniformes. (N. do T.)

[2] No original, referência ao slogan político “I like Ike”, em que o jogo sonoro das palavras aproxima o sujeito que ama e o sujeito que é amado. (N. do T.)

[3] Uma Viola para o seu Orsino. Personagens de Twelfth Night, de Shakespeare. Viola, a heroína, após diversas situações farsescas, casa-se com Orsino, duque de Ilíria.

[4] Yankees. Referência ao clube de beisebol de Nova Iorque do American League. (N. do T.)

[5] Phi Beta Kappa. Círculo americano, muito fechado, cujos membros são geralmente estudantes universitários que se distinguiram por seus méritos acadêmicos. (N. do T.)

 

                                                                                Jeffrey Archer  

 

                      

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