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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAIM E ABEL - P.2 / Jeffrey Archer
CAIM E ABEL - P.2 / Jeffrey Archer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na manhã do dia seguinte, Abel voltou a Chicago ainda preo­cupado e irritado com a intransigência de William Kane. Enquanto parava um táxi e se sentava no banco de trás, não ouviu direito o que o jornaleiro gritava junto à banca de jornais da esquina.

— Richmond Hotel, por favor.

— É repórter? — perguntou o motorista, dirigindo-se à State Street.

— Não, por que pergunta?

— Oh, porque pediu para levá-lo ao Richmond. Hoje aquilo lá está cheio de repórteres.

Abel não se lembrava de nenhuma programação marcada para esse dia que pudesse chamar a atenção da imprensa.

— Se não é jornalista — continuou o homem —, acho me­lhor levá-lo a outro hotel.

— Por quê? — indagou Abel, ainda mais curioso.

— Se fez reserva lá... o Richmond pegou fogo.

Quando o carro virou a esquina do quarteirão, Abel deparou com a carcaça fumacenta do Richmond Hotel. Viaturas policiais, caminhões do corpo de bombeiros, madeiras carbonizadas, água alagando a rua. Ele desceu do carro e olhou os escombros da capi­tânia do grupo de Davis Leroy.

 

 

 

 

"O polonês se mantém sereno diante da desgraça", refletiu Abel, cerrando o punho e socando-o contra a perna aleijada. Não sentiu dor — nada lhe restara que pudesse lhe doer.

— Filhos da puta! — bradou. — Já fui humilhado mais que isso, mas vou derrotar cada um de vocês! Alemães, russos, turcos, o filho da puta do Kane, e agora isto! Todo mundo! Vou vencer todos vocês! Ninguém vai destruir Abel Rosnovski!

O subgerente avistou Abel, que gesticulava ao lado do táxi, e correu até ele. Abel esforçou-se por acalmar-se.

— Os empregados e os hóspedes saíram do hotel a salvo? — perguntou.

— Sim, graças a Deus. O hotel estava quase vazio. Foi fácil evacuá-lo. Uma ou duas pessoas machucaram-se e queimaram-se, mas já foram levadas ao hospital. Não há com que se preocupar.

— Bom, isso já é um alívio. Graças a Deus, o hotel estava segurado, se não me engano, em mais de um milhão. Essa des­graça ainda pode se tornar a nossa salvação.

— Creio que não, se o que os jornais dizem for verdadeiro.

— Como assim? — perguntou Abel.

— Leia o senhor mesmo, chefe — respondeu o subgerente.

Abel foi à banca de jornais e pagou ao menino dois cents pela última edição do Tribune. A manchete explicava tudo.

 

FOGO NO RICHMOND HOTEL

INCÊNDIO PREMEDITADO?

 

Incrédulo, Abel balançou a cabeça e releu a manchete.

— Que mais poderá acontecer? — murmurou.

— Algum problema, senhor? — quis saber o jornaleiro.

— Um probleminha — respondeu Abel, e foi ter com o subgerente.

— Quem está encarregado do inquérito policial?

— Aquele oficial debruçado no carro da polícia — disse o subgerente, apontando um homem magro e alto, prematuramente calvo. — Tenente 0'Malley.

— Tinha de ser ele — comentou Abel. — Leve o pessoal para dentro do anexo e diga-lhes que conversarei com eles ama­nhã de manhã, às dez horas em ponto. Se alguém quiser me ver antes disso, estarei no Stevens até colocar as coisas em ordem.

— Tudo se esclarecerá, chefe.

Abel aproximou-se do tenente 0'Malley e apresentou-se. O policial curvou um pouco o corpo ao apertar a mão de Abel.

— Ah, o desaparecido ex-gerente voltou aos seus escombros.

— Não vejo graça nisso, tenente — replicou Abel.

— Desculpe — disse. — Não é engraçado mesmo. A noite foi longa demais. Vamos sair daqui e tomar alguma coisa.

O policial pegou Abel pelo cotovelo e o guiou ao outro lado da Michigan Avenue, em direção ao bar da esquina. O tenente 0'Malley pediu dois milk shakes.

Abel riu quando puseram diante dele a mistura branca e es­pumosa. Como jamais tivera juventude, esse era o seu primeiro milk shake.

— Sei, sei, é bem gozado. Todo mundo nesta cidade quebra a lei tomando bourbon ou cerveja — comentou o investigador. — Alguém tem de jogar esse jogo à risca. Em todo caso, a lei seca não vai durar a vida inteira, e até meus problemas começa­rão de novo porque os gângsteres descobrirão que eu gosto mesmo é de milk shake.

Abel riu pela segunda vez.

— Mas falemos dos seus problemas, sr. Rosnovski. Em pri­meiro lugar, devo dizer que perca as esperanças de receber o dinheiro do seguro do hotel. Os peritos fizeram uma inspeção pente-fino nos escombros e constataram que no local havia que­rosene. Não houve a menor tentativa de disfarçar. O porão inteiro apresentava vestígios do líquido. Bastou um fósforo e...

– Tem idéia de quem seja o responsável? — perguntou Abel.

– Eu faço as perguntas, está certo? Tem idéia de alguma pessoa que tivesse motivos para se vingar, a ponto de destruir o hotel ou atentar contra o senhor pessoalmente?

– Mais ou menos cinqüenta pessoas, tenente — resmungou Abel. — Quando cheguei aqui, fiz uma limpeza no hotel, joguei fora um latão cheio de vermes. Posso lhe dar uma relação, se isso puder ajudar.

— Acho que poderia, mas do jeito que vão os comentários lá fora, não será necessário — disse o tenente. — De qualquer modo, se conseguir alguma informação precisa, por favor, sr. Ros­novski, procure-me. Procure-me, porque, e isso é uma advertência, seus inimigos o esperam lá fora. — E indicou a rua que formi­gava.

— O que quer dizer? — perguntou Abel.

— Alguém afirma que foi o senhor que pôs fogo no hotel, porque perdeu tudo com a crise e precisava do dinheiro do seguro.

Abel saltou fora do banco.

— Fique calmo, fique calmo. Sei que passou o dia inteiro em Boston, e, o que é mais importante, goza da reputação, nesta cidade, de pôr hotéis em pé, não abaixo. Mas alguém pôs o Rich­mond abaixo, e pode apostar como vou descobrir o culpado. Por enquanto, deixemos as coisas como estão. — Num giro, ele saltou do banco. — O milk shake é por minha conta, sr. Rosnovski. Espero precisar de um favor seu no futuro.

Sorriu para a garota da caixa, admirando-lhe os tornozelos e amaldiçoando a nova moda das saias longas. Deu-lhe cinqüenta cents.

— O troco é seu, doçura.

— Obrigada — respondeu a garota.

— Ninguém gosta de mim — disse o tenente.

Abel riu pela terceira vez, o que, uma hora atrás, não ima­ginou fosse possível.

— A propósito — tornou a falar o tenente quando chega­ram à porta —, o pessoal do seguro anda procurando o senhor. Esqueci o nome do sujeito, mas logo estará aqui, creio eu. Não o encoste contra a parede. Se ele achar que o senhor está impli­cado, a culpa não é dele. Não suma, sr. Rosnovski. Vou querer conversar com o senhor outra vez.

Abel observou o tenente desaparecer no meio da multidão de curiosos e encaminhou-se calmamente para o Stevens Hotel onde reservou um quarto para passar a noite. A recepcionista, que já registrara a entrada da maioria dos hóspedes do Richmond, não pôde deixar de achar graça no fato de também acolher o gerente. Em seu quarto, Abel sentou-se para escrever uma carta formal ao sr. William Kane, aludindo ao incêndio e dizendo-lhe que, aproveitando a imprevista ociosidade, faria uma visita aos demais hotéis do grupo. Abel não via sentido em permanecer em Chicago aquecendo-se com o rescaldo do Richmond, na vã espe­rança de que surgisse alguém que lhe prestasse fiança.

Depois do desjejum de primeira classe do Stevens — ele sem­pre se sentia à vontade num hotel organizado —, na manhã se­guinte, Abel dirigiu-se ao Continental Trust, onde relatou a Curtis Fenton a atitude do Kane & Cabot para com ele ou, sendo mais preciso, a atitude de William Kane. Embora ciente da inutilidade da proposta, acrescento que procurava um comprador para o Grupo Richmond, que estava à venda por dois milhões de dólares.

— O incêndio só nos complicará o processo, mas verei o que posso fazer — disse Fenton, mostrando-se mais solícito do que Abel esperara. — Na época em que o senhor comprou os vinte e cinco por cento das ações do grupo que pertenciam à srta. Leroy, eu lhe disse que considerava os hotéis um bem valioso e que se tratava de um bom negócio. Não obstante a crise, não vejo razão para mudar minha opinião, sr. Rosnovski. Acompanhei-o na ge­rência do seu hotel durante dois anos, e, caso a decisão estivesse nas minhas mãos, eu o apoiaria. Receio, porém, que meu banco jamais concorde em financiar o Grupo Richmond. Há muito vimos acompanhando os resultados financeiros do grupo e não será agora que confiaremos no seu futuro. E o incêndio foi a última gota, se me permitir usar a expressão. Entretanto, tenho alguns conta­tos fora daqui e verifiquei se posso fazer alguma coisa para ajudá-lo. Nesta cidade o senhor tem mais admiradores do que imagina, sr. Rosnovski.

Depois de ouvir os comentários do tenente 0'Malley, Abel perguntou-se se de fato contava com algum amigo em Chicago. Agradeceu a Curtis Fenton, foi ao guichê do banco e fez uma retirada de cinco mil dólares, da conta do hotel. Permaneceu no anexo do Richmond durante toda a manhã. Entregou aos funcio­nários duas semanas de salário e disse-lhes que poderiam conti­nuar no anexo por um mês ou até encontrarem outro emprego. Em seguida, regressou ao Stevens, guardou as roupas novas, que comprara para substituir as destruídas no incêndio, e preparou-se para uma excursão aos hotéis restantes do grupo.

Com o Buick que comprara pouco antes da crise do mercado, desceu primeiro para o Sul, começando pelo Richmond de St. Louis. As visitas aos hotéis tomaram-lhe cerca de um mês. Embora estes estivessem em declínio, e, sem exceção, perdendo dinheiro, nenhum deles, na visão de Abel, era caso perdido. Todos tinham o privilégio da boa localização; alguns estavam situados nos me­lhores lugares da cidade. "O velho Leroy fora bem mais perspicaz que o filho", refletiu Abel. Examinou cuidadosamente todas as apólices de seguro; tudo em ordem. Quando finalmente chegou ao Richmond de Dallas, assegurara-se de uma única coisa: quem comprasse o grupo por dois milhões de dólares faria excelente negócio. Desejou ter recursos para efetuar a compra, pois sabia com exatidão que medidas deveriam ser tomadas para que o grupo se tornasse lucrativo.

Ao retornar a Chicago, quase quatro semanas depois, hospe­dou-se no Stevens, onde alguns recados o aguardavam. O tenente 0'Malley queria vê-lo, assim como William Kane, Curtis Fenton e um homem chamado Henry Osborne.

Começou com a lei. Depois de uma breve conversa telefônica com 0'Malley, concordou em encontrá-lo no bar da Michigan Avenue. Abel sentou-se num banco alto, as costas contra o balcão, fitando a carcaça destroçada do Richmond Hotel enquanto espe­rava o tenente. 0'Malley chegou alguns minutos atrasado, mas não se incomodou em desculpar-se, sentando-se em frente a Abel.

— Por que este encontro? — perguntou Abel.

— Deve-me um favor — disse o tenente —, e ninguém em Chicago que me deva um milk shake sai sem me dar um alô.

Abel pediu dois, um grande, outro médio.

— O que foi que descobriu? — indagou Abel, passando ao investigador dois canudinhos listrados em vermelho e branco.

— O pessoal do corpo de bombeiros estava certo. O incêndio foi premeditado. Prendemos um sujeito chamado Desmond Pacey, ex-gerente do Richmond. Foi na sua época, certo?

— Infelizmente, foi — disse Abel.

— Por que diz isso? — perguntou o tenente.

— Despedi Pacey porque desviava dinheiro. Ele disse que ia se vingar, mesmo que fosse a última coisa da vida dele. Não dei atenção à ameaça. Na minha vida, tenente, recebi tantas ameaças que não podia levar mais nenhuma a sério, ainda mais vinda de um indivíduo como Pacey.

— Bem, nós o levamos a sério, saiba disso. E não só eu, também o pessoal da seguradora, porque eu soube que não vão lhe pagar um penny sequer enquanto não ficar provado que não houve conluio entre você e Pacey.

— Era só o que me faltava — disse Abel. — Como pode ter certeza de que foi Pacey?

— Nós o localizamos no pronto-socorro do hospital do dis­trito no mesmo dia do incêndio. Numa investigação de rotina, pedimos ao hospital que nos fornecesse os nomes das pessoas que haviam entrado com queimaduras graves. Por acaso — diaria­mente o acaso faz parte do trabalho da polícia, já que nem todos nascemos para ser Sherlock Holmes —, a mulher de um sar­gento, que foi copeira no Richmond, contou-nos que ele tinha sido gerente. Até eu sei que dois e dois são quatro. O cara se abriu depressa, nada preocupado por ter sido apanhado, aparentemente só interessado no que chamou de Dia do Massacre de São Valentim. Só agora estou entendendo qual era o objeto da vingança dele, mas não fiquei surpreso. Isso esclarece todo o caso, sr. Rosnovski.

O tenente sorveu o milk shake pelo canudinho até que o ruído gorgolejante o convenceu de que o copo estava seco.

— Aceita outro milk shake?

— Não, eu paro por aqui. Tenho um dia difícil pela frente. — Desceu do banco. — Boa sorte, sr. Rosnovski. Se provar aos homens do seguro que não tinha nenhum envolvimento com Pacey, receberá o dinheiro. Farei o que puder para ajudá-lo quan­do o caso chegar ao tribunal. Não suma.

Abel o observou desaparecer atrás da porta. Deu à garçonete um dólar e saiu para o passeio, olhando o terreno vazio, o terreno onde, menos de um mês antes, erguia-se o Richmond Hotel. Deu meia-volta e retornou ao Stevens, imerso em pensa­mentos.

Havia outro recado de Henry Osborne, que não tinha deixa­do nenhuma indicação de quem era. Havia uma só maneira de descobri-lo. Telefonou para Osborne, que se identificou como ins­petor da Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western, com a qual o hotel estava segurado. Abel marcou uma entrevista com o homem ao meio-dia. Em seguida, telefonou para William Kane em Boston e forneceu-lhe um relatório sobre os hotéis que havia vistoriado.

– Gostaria de tornar a dizer, sr. Kane, que eu poderia transformar os prejuízos em lucros, caso o seu banco me desse tempo e apoio. Sei que conseguiria fazer com os demais hotéis o que fiz em Chicago.

– Provavelmente o senhor o conseguiria, sr. Rosnovski, mas receio que terá de fazê-lo sem o dinheiro do Kane & Cabot. Devo lembrá-lo de que restam ao senhor apenas cinco dias para encon­trar um financiador. Bom dia, senhor.

— Banqueiro esnobe! — disse Abel, depois de desfeita a ligação. — Não sou fino o suficiente para receber o seu dinheiro, não é? Mas algum dia o serei, seu bastardo!

O próximo compromisso constante da agenda de Abel era com o homem do seguro. Henry Osborne era um homem alto e bem-apessoado, de olhos escuros e cabelo negro, que começava a ficar grisalho. Tinha uma distinção e afabilidade com as quais Abel encontrou afinidades. Osborne pouco acrescentou à histó­ria do tenente 0'Malley. A Companhia de Seguros contra Aci­dentes Great Western nada lhe pagaria enquanto a polícia não apurasse a suspeita de crime contra Desmond Pacey, e até que se provasse que Abel não estava envolvido com ele. Henry Osborne pareceu extremamente compreensivo com respeito à questão.

— O Grupo Richmond tem dinheiro suficiente para reerguer o hotel? — perguntou Osborne.

— Nem um cent — respondeu Abel. — O resto do grupo está hipotecado até a alma, e o banco vem me coagindo a vender a propriedade.

— Por que você? — indagou Osborne.

Abel explicou-lhe como adquirira as ações do grupo sem em verdade ser dono dos boteis. Henry Osborne mostrou-se surpreso.

— Naturalmente, o banco não ignora sua capacidade de diri­gir o hotel. Todos os homens de negócios de Chicago sabem que o senhor foi o primeiro gerente a dar lucros a Davis Leroy. Com­preendo que os bancos estejam passando por um momento difícil, mas eles próprios deveriam saber em que momento abrir uma exceção em nome de um bom investimento.

— Mas este banco, não.

– O Continental Trust? — perguntou Osborne. — Sempre achei o velho Curtis Fenton um tanto rígido, embora bastante tratável.

— Não é o Continental. Os hotéis pertencem a um banco de Boston chamado Kane & Cabot.

Henry Osborne empalideceu e deixou-se cair sentado.

— Está se sentindo bem? — perguntou Abel.

— Sim, estou.

— O senhor conhece o Kane & Cabot?

— Informação confidencial?

— Claro.

— Bem, uma vez, há algum tempo, minha companhia fez um negócio com ele. — Osborne pareceu titubear. — E acabamos levando-o à Justiça.

— Por quê?

— Não posso dar os detalhes. Um negócio desastroso. Diga­mos apenas que um dos diretores não foi inteiramente honesto e franco conosco.

— Qual deles? — perguntou Abel.

— Com quem você fez o contato? — inquiriu Osborne.

— Um diretor chamado William Kane.

Osborne pareceu titubear pela segunda vez.

— Tome cuidado — disse. — Ele é o filho da puta mais desprezível do mundo. Posso revelar-lhe toda a verdade sobre ele, se o quiser, mas isso terá de ficar exclusivamente entre nós.

— Sem dúvida não devo a ele nenhum favor — disse Abel. — Eu o procurarei, sr. Osborne. Ainda tenho uma dívida a acertar com o jovem sr. Kane pelo tratamento que deu a Davis Leroy.

— Bom, se William Kane está metido nisso, conte comigo de maneira incondicional — disse Henry Osborne, levantando-se da cadeira. — Mas que isso fique somente entre nós. E se no tribunal ficar provado que Desmond Pacey pôs fogo no Rich­mond sem a participação de ninguém, a companhia o indenizará no mesmo dia. Depois, quem sabe, possamos fazer algum outro negócio com todos os seus hotéis.

— Quem sabe — disse Abel.

Ele voltou ao Stevens e resolveu jantar e verificar a quali­dade da comida no restaurante principal. Encontrou outro comu­nicado na portaria. David Maxton o convidava para um almoço às treze horas.

— David Maxton — pronunciou Abel em voz alta, atraindo a atenção da recepcionista. — De onde conheço esse nome? — perguntou à moça, que o olhava.

— Ele é o proprietário deste hotel, sr. Rosnovski.

– Ah, sim, é claro. Por favor, diga ao sr. Maxton que terei prazer em almoçar com ele. — Consultou o relógio. — Pode lhe dizer também que provavelmente me atrasarei alguns minutos?

– Certamente, senhor — disse a moça.

Abel subiu apressado para o quarto, e vestiu uma camisa branca, curioso por saber o que David Maxton poderia querer dele.

Quando desceu, o restaurante estava lotado. O garçom o conduziu à mesa de um reservado, onde o proprietário do Stevens estava sentado, sozinho. Ele levantou-se para cumprimentar Abel.

— Abel Rosnovski, senhor.

— Eu o conheço — disse Maxton —, ou, para ser mais preciso, conheço sua reputação. Sente-se e façamos nossos pedidos.

Abel viu-se forçado a admirar o Stevens. Tanto o serviço quanto a comida, sob todos os aspectos, eram tão bons como os do Plaza. Se sonhasse possuir o melhor hotel de Chicago, sem dúvida teria de superar o Stevens.

O garçom reapareceu trazendo os cardápios. Abel recusou polidamente a entrada e escolheu um bife, a forma mais rápida de constatar se um restaurante trabalha com o açougueiro certo. David Maxton não olhou o cardápio, pedindo simplesmente sal­mão. O garçom afastou-se às pressas.

— Deve estar curioso por saber por que razão o convidei para almoçar comigo, sr. Rosnovski.

— Imaginei — respondeu Abel, sorrindo — que o senhor me proporia gerenciar o Stevens.

— Pois acertou em cheio, sr. Rosnovski.

Dessa vez foi Maxton que riu. Abel perdeu a fala. Mesmo a chegada do garçom, que empurrava um carrinho com a mais excelente das carnes, não lhe serviu de ajuda. A trinchadeira aguardou. Maxton espremeu limão sobre o salmão e prosseguiu:

— Meu gerente irá se aposentar daqui a cinco meses, após vinte e dois anos de serviço leal, e o subgerente também deverá se aposentar logo em seguida. Por isso, ando à procura de um ho­mem que saiba varrer muito bem.

— Este local me parece um brinco — disse Abel.

— Sempre espero maior higiene, sr. Rosnovski. Nunca de­vemos nos permitir um repouso — disse Maxton. — Acompanhei com muito interesse suas atividades. Não se poderia classificar o Richmond de hotel se o senhor não tivesse assumido a direção. Para ser mais exato, antes do senhor aquilo era uma espelunca. Dois ou três anos mais, se o senhor tivesse tido a oportunidade, que lhe foi tirada por um piromaníaco, e Richmond se teria tornado um concorrente do Stevens.

— Batatas, senhor?

Abel levantou os olhos e viu uma graciosa garçonete.

Ela lhe sorriu.

— Não, obrigado — respondeu. — Sabe, sr. Maxton, sinto-me lisonjeado pelos seus comentários e pela sua oferta.

— Creio que aqui o senhor seria feliz. O Stevens é um hotel bem organizado, e eu estaria disposto a lhe pagar de início cin­qüenta dólares por semana, mais dois por cento sobre os lucros. Poderia começar quando desejasse, sr. Rosnovski.

— Preciso de alguns dias para pensar nessa oferta generosa, sr. Maxton — disse Abel —, mas, confesso, sinto-me tentado a aceitar. Entretanto, restam-me alguns problemas legados pelo Rich­mond que requerem solução.

— Vagem, senhor? — A mesma garçonete, o mesmo sorriso.

O rosto era-lhe familiar. Abel tinha quase certeza de que a vira antes. Talvez tivesse trabalhado no Richmond.

— Sim, por favor.

Ele a observou enquanto se afastava. Algo nela o intrigava.

— Convido-o a ficar alguns dias no hotel — propôs Maxton — Assim, verá de que modo trabalhamos. Isso o ajudará a tomar uma decisão.

— Não é necessário, sr. Maxton. Um único dia foi suficiente para descobri-lo. O problema é que sou proprietário do Grupo Richmond.

O rosto de David Maxton registrou surpresa.

— Não sabia disso. Imaginei que a filha do velho Davis Leroy passaria a ser a proprietária.

— A história é longa — disse Abel, e explicou-lhe como se tornara dono das ações do grupo. — O problema é muito simples, sr. Maxton. O que quero de fato é conseguir os dois milhões de dólares e fazer desse grupo algo valioso. Algo que recompense os meus esforços.

— Compreendo — disse Maxton, olhando, embaraçado, o prato vazio.

O garçom levou o prato embora.

— Aceita um café? — A mesma garçonete. O mesmo rosto familiar.

Abel começava a se sentir intrigado.

— Disse-me que Curtis Fenton, do Continental Trust, pro­cura um comprador em seu nome?

— Há quase um mês ele o vem procurando — disse Abel. – Aliás hoje à tarde saberei se obteve algum sucesso, mas não tenho ilusões.

– Bom, isso é muito interessante. Ignorava que o Grupo Richmond se encontrava à venda. De qualquer maneira, poderia manter-me informado?

– Naturalmente — disse Abel.

– Quanto tempo o banco de Boston lhe deu para conseguir os dois milhões?

– Alguns dias, apenas. Assim não tardarei em comunicar-lhe a minha decisão.

– Obrigado — disse Maxton. — Foi um prazer este en­contro, sr. Rosnovski. Gostaria muito de poder contar com o se­nhor — acrescentou, apertando calorosamente a mão de Abel.

— Obrigado — disse Abel.

Retirando-se, ao passar pela garçonete ela lhe sorriu. Abel aproximou-se do garçom que o servira e perguntou-lhe o nome da moça.

— Desculpe-me, senhor, mas não podemos dar aos fregueses o nome de nenhum dos nossos funcionários; isso contraria as nor­mas da empresa. Se quiser fazer alguma queixa, por gentileza, faça-a diretamente a mim.

— Não tenho queixa alguma a fazer — disse Abel. — Pelo contrário, o almoço foi excelente.

Com uma oferta de trabalho dentro do bolso, Abel sentiu-se mais seguro para enfrentar Curtis Fenton. Com certeza o ban­queiro não havia conseguido um comprador. Mesmo assim, dirigiu-se rapidamente para o Continental Trust. Apreciava a idéia de gerenciar o melhor hotel de Chicago. Talvez o transformasse no melhor hotel dos Estados Unidos. Tão logo chegou ao banco, in­troduziram-no no gabinete de Curtis Fenton. O banqueiro alto e magro — usava o mesmo terno diariamente ou possuía três idên­ticos? — ofereceu-lhe uma cadeira, e um sorriso largo rasgou-lhe o rosto, habitualmente austero.

— Sr. Rosnovski, é muito bom poder revê-lo. Se tivesse vindo pela manhã, eu não teria nenhuma notícia a lhe dar, mas exatamente há poucos minutos recebi o telefonema de uma pessoa interessada.

O coração de Abel bateu depressa, cheio de surpresa e ale­gria. Ele permaneceu em silêncio alguns segundos e depois falou:

— Pode me dizer de quem se trata?

- Receio que não. A pessoa em questão pediu-me que a mantivesse no anonimato, uma vez que o investimento seria de natureza privada e de certa forma incompatível com o ramo em que o interessado trabalha.

— David Maxton — murmurou Abel, a meia voz. — Que Deus o abençoe!

Curtis Fenton não respondeu e prosseguiu:

— Como disse, sr. Rosnovski, não tenho autorização para...

— Concordo, concordo — disse Abel. — Daqui a quanto tempo poderá me comunicar a decisão definitiva do cavalheiro?

— Não sei dizer no momento, mas na segunda-feira já terei obtido mais informações. Assim, se o senhor tiver a intenção de deixá-lo de lado...

— Deixá-lo de lado? — disse Abel. — O senhor está lidando com a minha vida inteira.

— Nesse caso, marquemos uma entrevista para a segunda-feira de manhã.

Enquanto Abel descia a Michigan Avenue, de volta ao Ste­vens, um chuvisqueiro começou a cair. E ele cantarolou, alegre. Tomou o elevador, que o levou ao quarto, e telefonou a William Kane, solicitando-lhe extensão de prazo até a segunda-feira, já que possivelmente havia encontrado um comprador. Kane de início resistiu, mas acabou por concordar.

– Bastardo — repetiu Abel diversas vezes, enquanto colo­cava o fone no gancho. — Só mais um tempinho, Kane. Vai viver para lamentar a morte de Davis Leroy.

Abel sentou-se na ponta da cama, tamborilando os dedos na borda da grade, sem saber como passaria o tempo até segunda-feira. Desceu despreocupadamente ao saguão. Lá estava ela de novo, a garçonete que o servira ao almoço, agora servindo o chá no Tropical Garden. Levado pela curiosidade, ele entrou no salão e sentou-se a um canto. Ela se aproximou.

— Boa tarde, senhor — disse. — Aceita tomar um chá?

O mesmo sorriso familiar mais uma vez.

– Nós nos conhecemos, não é mesmo? — perguntou Abel.

— É verdade, Wladek.

Abel encolheu-se ao ouvir seu antigo nome e enrubesceu imperceptivelmente, recordando que aquele cabelo claro e curto fora longo e macio, e os olhos velados, convidativos.

– Zaphia! Chegamos aos Estados Unidos no mesmo navio! Mas claro, você ia para Chicago. O que faz por aqui?

– Trabalho, como pode ver. Aceita um chá, senhor?

Abel entusiasmou-se com o sotaque polonês.

– Jante comigo esta noite — disse.

– Não posso, Wladek. Os funcionários estão proibidos de sair com fregueses. Se sairmos, seremos automaticamente despe­didos.

— Mas não sou um freguês — disse Abel. — Sou um velho amigo.

— E quem é que vinha me visitar em Chicago logo que acer­tasse a vida, hein? Pois você acertou sua vida e nem se lembrou de que eu estava aqui — disse Zaphia.

— Eu sei, eu sei. Peço-lhe desculpas. Zaphia, jante comigo esta noite. Só esta vez — insistiu.

— Só esta vez — repetiu ela.

— Espero-a no restaurante do Brundage, às sete em ponto. É uma hora boa para você?

Ao ouvir o nome do restaurante, Zaphia perturbou-se. Na certa era o mais caro de Chicago, e, se ela não se sentiria à von­tade trabalhando lá como garçonete, muito menos como freguesa.

— Não, vamos a um lugar mais simples, Wladek.

— Qual, então? — perguntou Abel.

— Conhece o Sausage, na esquina da 43rd Street?

— Não conheço — confessou ele —, mas posso encontrá-lo. Às sete horas.

— Às sete horas, Wladek. Vai ser fantástico. A propósito, não aceita um chá?

— Obrigado, vou dispensá-lo.

Ela sorriu e afastou-se. Durante alguns minutos, ele ficou ali sentado, vendo-a trabalhar. Estava muito mais bonita que naquela época. Passar o tempo até a segunda-feira afinal não ia ser tão aborrecido.

O Sausage trouxe-lhe de volta as piores recordações dos pri­meiros dias nos Estados Unidos. Abel sorveu uns goles de cerveja de gengibre enquanto esperava Zaphia, e toda vez que os garçons jogavam os pratos de comida descuidadamente sobre as mesas, fazia uma careta de reprovação profissional. Não seria capaz de dizer o que lhe parecia pior: o serviço ou a comida. Com quase vinte minutos de atraso, Zaphia apareceu à porta, elegante como uma chapeleira, num vestido plissado amarelo cuja barra parecia ter sido levantada recentemente alguns centímetros só para acom­panhar a ultima moda, mas ainda assim revelando os atrativos de um corpo que antes fora franzino. Seus olhos acinzentados per­correram as mesas à procura de Wladek. Ao sentir-se observada pelos homens, um rubor coloriu-lhe as bochechas.

— Boa noite. Wladek — cumprimentou-o em polonês.

Abel levantou-se e ofereceu-lhe a sua cadeira, próxima do fogo.

— Alegra-me que tenha vindo — respondeu ele em inglês.

Ela fez um ar de perplexidade momentâneo e, em seguida, disse em inglês:

— Desculpe-me o atraso.

— Oh, nem notei. Quer beber alguma coisa, Zaphia?

— Não, obrigada.

Permaneceram calados alguns segundos, e de repente reto­maram a fala ao mesmo tempo.

— Nem me lembrava de como você era bonita... — disse Abel.

— Como foi que você... — disse Zaphia.

Ela sorriu, tímida, e Abel sentiu-se tentado a tocá-la. Lem­brava-se de ter experimentado a mesma sensação da primeira vez que a vira, mais de oito anos antes.

— Como vai George? — ela perguntou.

— Há mais de dois anos que não nos vemos — Abel res­pondeu, com um súbito sentimento de culpa. — Trabalhei duro num hotel aqui em Chicago e depois...

— Fiquei sabendo — disse Zaphia. — Puseram fogo no hotel.

— Por que nunca apareceu para me dizer um alô?

— Pensei que não fosse se lembrar de mim, Wladek, e tinha razão.

— E como chegou a me reconhecer? — perguntou. — Ganhei alguns quilos.

— A pulseira de prata — ela disse singelamente.

Abel olhou para o pulso e riu.

— Devo muito à minha pulseira, e agora ela nos aproxima de novo.

Zaphia evitou o olhar dele.

— O que anda fazendo, sem o hotel para dirigir?

— Estou procurando emprego — respondeu, não querendo mencionar a oportunidade de gerenciar o Stevens só para não inti­midá-la.

— Vai abrir uma boa vaga no Stevens. Meu namorado me contou.

– Seu namorado contou? — perguntou ele, repetindo as palavras.

– Foi — respondeu. — Logo, logo, o hotel vai precisar de um novo subgerente. Por que não se candidata? Você tem boas chances de conseguir o emprego, Wladek. Sempre achei que aqui na América você ia fazer sucesso.

­- É, talvez me candidate. Bondade sua lembrar-se de mim. E por que seu namorado não se candidata?

– Ah, não, ele é muito inexperiente. É um simples garçom do restaurante.

De súbito, Wladek desejou trocar de função com ele.

— Vamos jantar? — perguntou.

— Não estou acostumada a comer fora — Zaphia respondeu.

Indecisa, passou os olhos pelo cardápio. Abel, percebendo que ela ainda lia mal em inglês, fez o pedido pelos dois.

Zaphia jantou com gosto e elogiou a comida insossa. Abel achou revigorante esse entusiasmo ingênuo, tão diferente da so­fisticação maçante de Melanie. Cada um contou ao outro a história de sua vida nos Estados Unidos. Zaphia trabalhava como domés­tica e chegara a garçonete no Stevens, onde estava havia seis anos. Abel foi relatando todas as suas experiências, até que, de repente, ela lançou um olhar ao relógio de pulso.

— Wladek, está na hora, já passa das onze, e o café é às seis da manhã.

Abel não se dera conta de que quatro horas já se haviam passado. Teria tido prazer em conversar com ela pelo resto da noite, lisonjeado pela afeição respeitosa que lhe fora francamente confessada.

— Zaphia, posso vê-la outra vez? — perguntou, enquanto, de braços dados, andavam rumo ao Stevens.

— Se você quiser, Wladek.

Pararam à entrada de serviço, nos fundos do hotel.

– Eu entro por aqui — ela disse. — Quando se tornar sub­gerente, Wladek, vão deixá-lo entrar pela porta da frente.

— Importa-se de me chamar de Abel?

– Abel? — disse ela, pronunciando o nome como se ex­perimentasse uma luva nova. — Mas você se chama Wladek.

– Eu me chamava Wladek, mas não me chamo mais. Meu nome é Abel Rosnovski.

– Abel é um nome engraçado, mas combina com você — disse. — Obrigado pelo jantar, Abel. Gostei de ver você de novo. Boa noite.

— Boa noite, Zaphia.

Abel viu-a desaparecer pela entrada de serviço, deu a volta no quarteirão com passos lentos e entrou no hotel pela porta da frente. Inesperadamente — mas não pela primeira vez —, sentiu-se muito só.

Passou a semana pensando em Zaphia e recordando as ima­gens associadas a ela — o cheiro fétido dos alojamentos da ter­ceira classe do navio, as filas desordenadas formadas pelos imi­grantes na Ellis Island e, sobretudo, o breve, mas arrebatado, encontro no bote salva-vidas. Fez todas as refeições no restaurante do hotel só para ficar perto dela e poder observar seu namorado. Chegou à conclusão de que devia ser o rapazola espinhento. Achou que ele devia ter espinhas, precisava que ele tivesse espinhas, e, oh, sim, ele tinha espinhas. E era, para sua tristeza, o rapaz mais bonito entre os garçons, com as espinhas e tudo.

Abel quis sair com Zaphia no sábado, mas ela trabalharia o dia inteiro. Contudo, conseguiu acompanhá-la à missa no domingo, quando ouviu, com uma mistura de nostalgia e exasperação, as orações inesquecíveis que o sacerdote polonês entoava. Desde os dias do castelo da Polônia, era a primeira vez que entrava numa igreja. Naquele tempo, ainda não tinha visto ou suportado as cruel­dades que, agora, o impediam de acreditar num deus benevolente. Sua recompensa por ter assistido à missa veio quando Zaphia, no caminho de volta ao hotel, deixou-o pegar sua mão.

— E então, pensou na vaga do Stevens? — indagou.

– A primeira coisa que vou saber amanhã cedo será a de­cisão final tomada por eles.

– Oh, Abel, isso me alegra muito! Tenho certeza de que você dará um ótimo subgerente.

— Obrigado — disse Abel, ciente de que estavam falando de coisas diferentes.

– Não quer tomar sopa com meus primos hoje à noite? – perguntou. — Passo todos os domingos na companhia deles.

— Sim, eu gostaria muito.

Os primos de Zaphia moravam bem ali perto do Sausage, no coração da cidade. Espantaram-se deveras vendo-a chegar acom­panhada de um amigo que dirigia um Buik novo. A família, como Zaphia os chamava, era formada de duas irmãs, Katya e Janina, e do marido de Katya, Janek. Abel ofereceu um rama­lhete de rosas às irmãs e, em seguida, sentou-se, respondendo, num polonês fluente, a todas as suas perguntas sobre as perspec­tivas do seu futuro. Zaphia mostrou-se embaraçada, mas Abel sabia que em todos os lares polaco-americanos o mesmo procedi­mento era adotado com cada novo namorado. Esforçou-se por não mencionar suas conquistas desde os primeiros dias no açougue, porque notou que Janek não desviava dele o seu olhar de inveja. Katya pôs na mesa um prato polonês simples de pierogi e bigos, que Abel teria comido com mais gosto quinze anos antes. Des­preocupou-se com Janek, que considerou um caso perdido, e con­centrou sua atenção nas irmãs, procurando ganhar-lhes a simpatia. Davam a impressão de simpatizar com ele. Talvez também simpa­tizassem com o espinhento. Não, isso não era justo. Ele nem po­lonês era — ou quem sabe até fosse —, Abel não sabia o nome dele e jamais ouvira sua voz.

Quando retornavam ao Stevens, Zaphia lhe perguntou, num lampejo do coquetismo de que ele se recordava, se era seguro um homem dirigir um automóvel e ao mesmo tempo segurar a mão de uma dama. Abel riu e repôs a mão no volante, onde a deixou durante o resto do percurso até o hotel.

— Vai ter tempo de me ver amanhã? — ele perguntou.

— Acho que sim, Abel. É possível que amanhã mesmo você já seja meu chefe. Em todo caso, boa sorte.

Abel sorriu enquanto a observava encaminhar-se à porta dos fundos, imaginando como ela reagiria ao tomar conhecimento das conseqüências da decisão da manhã seguinte. Só saiu dali quando ela desapareceu pela entrada de serviço.

­– Subgerente — falou, rindo bem alto enquanto se deitava, perguntando-se que notícia lhe daria Curtis Fenton pela manhã. Atirando o travesseiro no chão, tratou de afastar Zaphia do pensa­mento.

Acordou minutos antes das cinco horas. Telefonou à recepção solicitando a edição matutina do Tribune, o quarto ainda mer­gulhado na penumbra. Durante algum tempo, manteve-se interes­sado na pagina de economia. Às sete horas em ponto, quando o restaurante abriu, já se encontrava vestido e pronto para descer e tomar cate. Zaphia não trabalhava no salão principal nessa manhã, mas lá estava o namorado espinhento, o que lhe causou um pressentimento de mau agouro. Abel tomou o café e voltou ao quarto; não soube que Zaphia entrara em serviço cinco minutos antes. Diante do espelho, pela vigésima vez examinou a gravata e de novo consultou o relógio. Calculou que, andando devagar, chegaria ao banco quando as portas estivessem se abrindo. Com efeito, chegou cinco minutos antes da hora e deu uma volta pelo quarteirão, contemplando, distraído, as vitrines de jóias caras, de modelos de rádio novos e de ternos feitos a mão. Compraria algum dia roupas de tal qualidade? Retornou ao banco às nove horas e quatro minutos.

— O sr. Fenton no momento está ocupado. Prefere esperar ou voltar daqui a meia hora? — perguntou a secretária.

— Eu volto depois — respondeu, não querendo demonstrar muita ansiedade.

Foram os trinta minutos mais longos de que se recordava desde que chegara a Chicago. Observara com atenção todas as vitrines de La Salle Street, inclusive as de roupas femininas, que lhe fizeram pensar com alegria em Zaphia.

Tornou a entrar no Continental Trust, e a secretária lhe disse:

— O sr. Fenton o receberá agora.

Abel entrou na sala do gerente, sentindo que suas mãos trans­piravam.

— Bom dia, sr. Rosnovski. Sente-se, por favor.

Curtis Fenton tirou da gaveta uma pasta, em que Abel con­seguiu ler Confidencial.

— Bem — começou ele —, espero que minhas novas sejam do seu agrado. O interessado se dispõe a efetuar a compra dos hotéis em termos que eu classificaria de favoráveis.

— Graças a Deus! — exclamou Abel.

Fingindo não tê-lo ouvido, Curtis Fenton prosseguiu:

— De fato, em termos muito favoráveis. Ele se responsa­bilizará pela liquidação da dívida de dois milhões do sr. Leroy e ao mesmo tempo formará, juntamente com o senhor, uma nova empresa, na qual as ações se dividirão sessenta por cento para ele e quarenta por cento para o senhor. Seus quarenta por cento, por conseguinte, ficam avaliados em oitocentos mil dólares, que a nova empresa considerará um empréstimo, empréstimo sobre o qual re­cairão juros de quatro por cento, num prazo que não deverá exce­der dez anos, e o qual poderá ser pago com os lucros da companhia à mesma taxa. Quer dizer, se a companhia atingir num ano o lucro de cem mil dólares, quarenta mil serão destinados ao pagamento do empréstimo de oitocentos mil dólares, mais os juros de quatro por cento. Se o senhor conseguir saldar essa dívida em menos de dez anos, terá preferência na compra dos sessenta por cento res­tantes da companhia por três milhões de dólares. Essa condição dará ao meu cliente um excelente retorno do seu investimento e ao senhor a oportunidade de ser o único proprietário do Grupo Richmond. Além disso, o senhor receberá um salário anual de cinco mil dólares e a posição de presidente do grupo, o que lhe dará um controle completo e diário dos hotéis. 0 senhor se obri­gará a me consultar tão-somente em assuntos financeiros. Fui incumbido da tarefa de mediar as questões entre o senhor e o interessado e de representar os interesses dele na direção do novo Grupo Richmond. Senti-me honrado com a escolha. Meu cliente não pretende envolver-se pessoalmente. Como já disse, po­derá haver um conflito de interesses profissionais nesta transação, mas estou certo de que o senhor compreenderá perfeitamente esse aspecto. Ele também insiste em que o senhor nada faça no sentido de descobrir-lhe a identidade. Deu-lhe catorze dias para refletir sobre as condições, que não poderão ser reformuladas, uma vez que ele as considera, e nisso estou de pleno acordo, mais do que vantajosas.

Abel não conseguiu falar.

— Sr. Rosnovski, por favor, diga-me alguma coisa.

— Não preciso de catorze dias para tomar uma decisão — disse Abel, afinal. — Aceito as condições do seu cliente. Por favor, agradeça-lhe por mim e diga-lhe que sem dúvida nenhuma respeitarei seu desejo de permanecer no anonimato.

— Formidável — disse Curtis Fenton, permitindo-se um sorriso forçado. — Agora, restam alguns pequenos pontos. Os hotéis do grupo deverão abrir suas contas nas filiais do Continental Trust, e a conta principal continuará aqui, sob meu controle di­reto. Em troca dos meus serviços, receberei mil dólares anuais como diretor da nova empresa.

– Alegra-me que ganhe alguma coisa com a transação — falou Abel.

– Como? — disse o banqueiro.

— Será um prazer tê-lo como colega de trabalho, sr. Fenton.

– Seu sócio também depositou neste banco duzentos e cin­qüenta mil dólares destinados ao funcionamento dos hotéis durante os próximos meses. Considere-os um empréstimo a quatro por cento. Deve avisar-me caso julgue essa quantia insuficiente para suas necessidades. Ao meu ver, sua reputação só aumentaria junto ao meu cliente se julgasse a quantia suficiente.

— Procurarei não me esquecer disso — falou Abel em tom solene, tentando imitar a elocução do banqueiro.

Curtis Fenton abriu a gaveta da escrivaninha e dela tirou um enorme charuto cubano.

— O senhor fuma?

— Fumo — respondeu Abel, que nunca na vida fumara um charuto.

Tossindo a fumaça, Abel desceu toda a La Salle Street rumo ao Stevens. Sobranceiro, David Maxton estava parado no saguão do hotel quando Abel entrou. Com certo alívio, apagou o charuto que fumara quase inteiro e correu para ele.

— Sr. Rosnovski, parece-me um homem feliz esta manhã.

— Estou feliz, senhor, e sinto não poder trabalhar como gerente do seu hotel.

— Também o sinto, sr. Rosnovski, mas, falando francamen­te, a notícia não me surpreende.

— Agradeço-lhe por tudo — falou Abel, imprimindo à frase e ao olhar toda a emoção que pôde reunir.

Abel despediu-se de David Maxton e foi ao restaurante pro­curar Zaphia, que já havia largado o serviço. Tomou o elevador para o quarto, reacendeu o charuto, deu uma tragada cautelosa e telefonou para o Kane & Cabot. Uma secretária transferiu a liga­ção para William Kane.

— Sr. Kane, consegui levantar o dinheiro que me tornará proprietário do Grupo Richmond. Hoje mesmo o sr. Curtis Fenton, gerente do Continental Trust, entrará em contato com o senhor e lhe dará os detalhes. Portanto, não haverá necessidade de colocar os hotéis à venda.

Seguiu-se um breve silêncio. Abel imaginou o quanto essa notícia irritaria William Kane.

— Obrigado, sr. Rosnovski, por manter-me informado. Acho que nem preciso lhe dizer o quanto estou feliz por ter conseguido um financiador. Desejo-lhe um futuro de muitos sucessos.

— Sinto não poder desejar-lhe o mesmo, sr. Kane.

E desligou o telefone, deitando-se na cama e pensando no futuro.

— Um dia — prometeu, olhando para o teto —, hei de com­prar o seu maldito banco e fazê-lo saltar do décimo sétimo andar de um hotel.

Pegou de novo o telefone e pediu à telefonista que ligasse para a Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western. Queria falar com o sr. Henry Osborne.

 

William pôs o fone no gancho, mais aborrecido do que irri­tado com a expressão provocadora de Abel Rosnovski. Lamentava não ter conseguido convencer o banco a financiar o pequeno po­lonês, o qual, ele acreditava firmemente, reergueria o Grupo Richmond. Para concluir sua participação no caso, informou à co­missão financeira que Abel Rosnovski havia arranjado um finan­ciador e preparou os documentos legais para a posse dos hotéis, o que encerrou o caso do Grupo Richmond.

William exultou quando, poucos dias depois, Matthew che­gou a Boston para assumir o cargo de gerente do departamento de investimentos do banco. Charles Lester não fizera segredo do fato de que qualquer experiência que o filho adquirisse num esta­belecimento concorrente só seria benéfica para o longo estágio que o levaria a ocupar a presidência do Lester. A carga de trabalho que pesava sobre William foi imediatamente repartida, mas seu tempo encurtou-se ainda mais. Resistindo, num tom de brincadeira, ele deixava-se arrastar às quadras de tênis e às piscinas a cada momento de folga, mas disse um "não" decidido à sugestão de Matthew de esquiarem em Vermont. A imprevista atividade ao menos serviu para mitigar sua solidão e a ansiedade por estar ao lado de Kate.

Matthew não escondeu sua descrença.

Preciso conhecer a mulher que consegue fazer William Kane devanear numa reunião de diretoria em que se discute a pos­sibilidade de o banco comprar mais ouro.

- Vai entender quando a conhecer, Matthew. Aposto como concordará que ela é um investimento muito melhor que o ouro.

- Acredito em você. Eu é que não quero contar a Susan. Ela ainda o acha o único homem do mundo.

William riu. Susan nunca lhe passara pela cabeça.

 

A pequena pilha de cartas de Kate, que crescia toda semana, ficava guardada a chave na escrivaninha de William na Red House. William relia as cartas e, em pouco tempo, praticamente chegou a decorá-las. Afinal recebeu a que estivera esperando, conveniente­mente datada.

 

Buckhurst Park, 14 de fevereiro de 1930

Meu querido William,

Finalmente encaixotei, vendi a preços baixos, dei ou de algu­ma forma me desfiz de todas as coisas que haviam sobrado. Che­garei a Boston no dia 19. Que acontecerá se todo este maravilhoso encanto estourar como uma bolha no frio de inverno da costa Leste? Meu Deus, peço que isso não aconteça. Não fosse por você, não sei como teria conseguido suportar a solidão de todos estes meses.

Com amor, Kate

 

Na noite anterior à chegada de Kate, William resolveu não apressá-la a tomar nenhuma decisão que mais tarde ambos pudes­sem lamentar. Era-lhe impossível avaliar até onde tinham evoluído os sentimentos dela, uma vez que ela se achava num estado de espírito peculiar, causado pela morte do marido, como dissera a Matthew.

— Não seja patético! — disse Matthew. — Você está apai­xonado e deve encarar esse fato.

Ao avistar Kate na estação, William por pouco não abandonou imediatamente suas intenções de agir com prudência, tomado pela alegria de ver aquele sorriso encantador que lhe iluminava o rosto. Abriu caminho através da massa de viajantes e abraçou-a com tal força que ela mal pôde respirar.

— Seja bem-vinda, Kate.

Estava na iminência de beijá-la, quando ela se esquivou. Sen­tiu-se um tanto surpreso.

— William, quero apresentá-lo aos meus pais.

Nessa noite, William jantou com a família de Kate, e passou a vê-la todos os dias em que conseguia escapar dos problemas do banco ou da raquete de tênis de Matthew, mesmo que por apenas duas horas. Depois de tê-la conhecido, Matthew ofereceu a William todas as suas ações em ouro em troca de uma só Kate.

— Nunca vendo nada abaixo do preço — replicou William.

— Nesse caso, teimo em que me conte — pediu Matthew — onde se pode encontrar uma mulher tão valiosa como essa.

– No departamento de liquidação de dívidas, onde mais? — respondeu William.

– Pois então, William, tome posse dela depressinha, porque, se não o fizer, pode estar certo de que eu o farei.

Os prejuízos do Kane & Cabot, decorrentes da crise de 1929, foram de sete milhões de dólares, um valor mediano, considerando-se a grandeza do banco. Muitos dos bancos tão importantes quanto o Kane haviam tido prejuízos menores, e William se viu obrigado a proceder a um plano de contenção ininterrupto durante todo o ano de 1930, medida que o sujeitava a dificuldades permanentes.

Quando Franklin Delano Roosevelt foi eleito presidente dos Estados Unidos, sustentando um programa de auxílio, recupera­ção e reforma, William temeu que o New Deal pouco tivesse a oferecer ao Kane & Cabot. Os negócios iam se recuperando lenta­mente, obrigando-o a fazer com cautela quaisquer empreendimen­tos de expansão.

Nesse ínterim, Tony Simmons, que ainda dirigia a filial de Londres, ampliava o campo de suas atividades, e, durante os dois primeiros anos, alcançou lucros respeitáveis para o Kane & Cabot. Os resultados de seu trabalho impunham-se como supe­riores aos do de William, que mal se fizeram notar no decorrer do mesmo período.

Passados alguns meses do ano de 1932, Alan Lloyd chamou Tony Simmons de volta a Boston, solicitando-lhe que apresen­tasse ao conselho um relatório completo das atividades do banco em Londres. Tão logo reapareceu, Simmons anunciou sua inten­ção de assumir a presidência quando Alan Lloyd se aposentasse, dali a quinze meses. William viu-se tomado completamente de surpresa, pois excluíra tal possibilidade desde que Simmons desa­parecera em Londres sob uma nuvem de descrédito. Pareceu-lhe injusto que aquela nuvem se tivesse dissipado, não pela acuidade de Simmons, mas simplesmente pelo fato de que a economia inglesa apresentava aspectos mais positivos; estava menos inativa que a americana durante o mesmo período.

Tony Simmons retornou a Londres, onde cumpriu outro ano de êxitos. Na primeira reunião após seu regresso a Boston, dirigiu-se ao conselho envolto numa aura de glória, anunciando as cifras da filial de Londres referentes ao final do terceiro ano, que mostravam lucro superior a um milhão de dólares, um novo re­corde. William comunicou um lucro consideravelmente menor concernente ao mesmo período. O regresso repentino de Tony Simmons, totalmente merecedor de estima, confrontou William com um novo problema. Teria poucos meses para convencer o conselho a apoiá-lo antes que o impulso de seu adversário se tor­nasse irrefreável.

Kate ouvia com atenção os problemas de William durante horas, fazendo comentários compreensivos, oferecendo-lhe respos­tas em que se manifestava solidária, ou repreendendo-o por deixar-se impressionar demais. Matthew, atuando como os olhos e os ouvidos de William, dissera-lhe que, pelo que pudera apurar, a votação seria dividida entre os que o consideravam demasiado jovem para ocupar um posto de tal responsabilidade e os que ainda julgavam Tony Simmons culpado pelos prejuízos de 1929. Ao que parecia, a maior parte dos membros não executivos do conselho, que não trabalhavam diretamente com William, influen­ciavam-se mais pela diferença de idade dos dois rivais do que por qualquer um dos outros fatores. Em mais de uma oportunidade, Matthew ouviu: "A vez de William há de chegar". Certa feita, a título de curiosidade, Matthew encarnou o espírito de Satã:

— Só com as suas participações no banco, William, você conseguiria afastar toda a diretoria, substituir os membros por homens da sua escolha e eleger-se presidente.

William não ignorava que tal medida o colocaria no topo, mas desprezava táticas dessa natureza e não poderia levá-las a sério; desejava tornar-se presidente unicamente por seus próprios mé­ritos. Afinal, era assim que seu pai alcançara o posto, e era isso o que Kate esperava dele.

Em 2 de janeiro de 1934, Alan Lloyd fez circular entre todos os membros do conselho a convocação para uma reunião no dia do seu sexagésimo quinto aniversário e cujo único propósito seria a eleição de seu sucessor. O dia da votação crucial foi se aproxi­mando, e Matthew encarregava-se praticamente sozinho do depar­tamento de investimentos; Kate, por sua vez, cuidava das refei­ções dos dois amigos, que trabalhavam incansavelmente no último estágio da campanha. Matthew nunca se queixou da sobrecarga de trabalho imposta por William, que durante horas a fio ia pla­nejando suas jogadas com o fito de conquistar o posto. Ciente de que Matthew nada obteria com o seu sucesso, uma vez que um dia assumiria a posição máxima do banco do pai em Nova Iorque — um negócio bem mais grandioso do que o Kane & Cabot —, William confiava em poder oferecer a Matthew no futuro o mes­mo apoio abnegado que ele agora lhe oferecia.

E esse tempo viria mais cedo do que ele imaginava.

 

No dia em que Alan Lloyd completava seus sessenta e cinco anos estavam presentes ao banco os dezessete membros do con­selho. A reunião foi aberta por Alan, como presidente; fez um discurso de despedida de apenas catorze minutos, mas que William pensou não ter fim. Tony Simmons batia nervosamente a caneta no caderno de anotações amarelo que tinha diante de si e de vez em quando erguia os olhos para William. Nenhum dos dois ouvia com atenção o discurso de Alan. Por fim, Alan sentou-se sob aplausos sonoros, de uma sonoridade apropriada a dezesseis ban­queiros de Boston. Quando a salva de palmas foi enfraquecendo, Alan Lloyd levantou-se pela última vez como presidente do Kane & Cabot.

— E agora, senhores, devemos eleger meu sucessor. O con­selho tem dois candidatos ilustres, o diretor da nossa divisão estrangeira, o sr. Anthony Simmons, e o diretor do departamento de investimentos, o sr. William Kane. Ambos são sobejamente conhecidos dos senhores, e não tenho a menor intenção de lhes falar exaustivamente a respeito de seus méritos. Em vez disso, peço a cada candidato que se pronuncie diante do conselho com rela­ção à maneira com que encara o futuro do Kane & Cabot, caso seja eleito presidente.

William foi o primeiro a se erguer, como haviam combinado os concorrentes na noite anterior, depois de um cara ou coroa, e falou ao conselho durante vinte minutos, explicando em deta­lhes que sua meta seria avançar por novos campos a que, até então, o banco não se havia aventurado. Em particular, queria ampliar as bases do banco e afastá-lo de uma Nova Inglaterra em crise, transferindo-o para perto do centro bancário, que, acredi­tava, naquele momento era Nova Iorque. Mencionou até mesmo a possibilidade de criar uma companhia holding que poderia vir a se especializar em operações bancárias comerciais. A essa enunciação, certos membros mais velhos do conselho balançaram a cabeça, descrentes. Queria que o banco tivesse em vista a expansão, que desafiasse a nova geração de financistas que agora liderava a América, e queria ver o Kane & Cabot entrar na segunda metade do século XX como uma das maiores instituições financeiras dos Estados Unidos. Quando se sentou, sentiu-se satisfeito ao ouvir os murmúrios de aprovação. Seu discurso, como um todo, havia sido bem recebido pelo conselho.

Tony Simmons começou a falar, seguindo uma linha bem mais conservadora: o banco deveria consolidar sua posição nos próximos anos, avançando com muita cautela por áreas cuidadosamente es­colhidas e fixando-se nos moldes tradicionais das operações ban­cárias, graças às quais o Kane & Cabot gozava da atual reputação. Aprendera a lição da prudência durante o crack, e sua maior preo­cupação, acrescentou — provocando risos —, era certificar-se de que o Kane & Cabot entrasse na segunda metade do século XX pura e simplesmente. Tony falou de modo circunspecto e com uma segurança que William, por ser jovem demais, não demonstrara. Tony voltou a sentar-se, e William não pôde avaliar exatamente qual a preferência do conselho, embora ainda acreditasse que a maioria se inclinava a optar pela expansão e não pela imobilidade.

Alan Lloyd informou aos demais diretores que nem ele nem os dois candidatos participariam da votação. Os catorze eleitores receberam as cédulas e preencheram-nas, devolvendo-as a Alan, que, atuando como escrutinador, deu início à lenta contagem. Wil­liam não teve forças para tirar os olhos de seu bloco de anotações, rabiscado e marcado com as impressões de sua mão suada. Alan concluiu a tarefa, e o silêncio encheu a sala. Ele anunciou seis votos a favor de William, seis a favor de Simmons, e duas absten­ções. Conversas sussurradas entre membros da diretoria quebraram o silêncio, e Alan pediu ordem. William respirou fundo, de ma­neira audível, ferindo o silêncio que novamente se estabelecera. Alan Lloyd fez uma pausa e então disse:

— Creio que a medida apropriada numa circunstância como esta é procedermos a uma segunda votação. Se um dos dois mem­bros que se abstiveram na primeira votação sentir-se mais propenso a apoiar um dos candidatos nesta segunda oportunidade, um deles será considerado eleito por maioria.

As pequenas cédulas foram redistribuídas. Desta vez William nem sequer teve forças de acompanhar o processo. Enquanto os membros registravam as suas escolhas, ele ouvia o ruído das penas de aço arranhando os papéis. Uma vez mais as cédulas chegaram às mãos de Alan Lloyd. Novamente ele se abriu devagar, uma a uma, mas desta vez pronunciando em voz alta os nomes que ia lendo.

— William Kane.

Anthony Simmons, Anthony Simmons, Anthony Simmons.

Três votos contra um para Tony Simmons.

William Kane, William Kane.

Anthony Simmons

William Kane, William Kane, William Kane.

Seis contra quatro para William.

Anthony Simmons, Anthony Simmons.

William Kane.

Sete votos contra seis em favor de William.

William sentiu, a respiração presa, que Alan Lloyd demo­rava toda uma existência ao ir abrindo a última cédula.

– Anthony Simmons — declarou. — O total de votos é sete, senhores.

William sabia que, nesse instante, Alan Lloyd via-se obriga­do a dar o voto decisivo, e, embora jamais tivesse revelado a ninguém a quem apoiaria, William sempre imaginara que, se a votação chegasse a um impasse, Alan o apoiaria em detrimento de Tony Simmons.

— Como a votação duas vezes resultou num empate, e como acredito que nenhum membro do conselho mudará seu ponto de vista, devo lançar meu voto para o candidato que, ao meu ver, me sucederá na presidência do Kane & Cabot. Estou certo de que nenhum dos senhores inveja minha posição, mas não vejo outra alternativa senão sustentar meu próprio julgamento e apoiar o homem que sinto preparado para a presidência. E este homem, senhores, é Tony Simmons.

William mal pôde acreditar no que ouviu. O próprio Tony Simmons dava a impressão de ter levado um choque. Ele se ergueu da cadeira em frente a William sob uma salva de palmas e, tro­cando de lugar com Alan Lloyd, sentou-se à ponta da mesa, falan­do ao Kane & Cabot pela primeira vez como presidente. Agradeceu ao conselho o apoio que lhe fora dispensado e louvou William por jamais ter lançado mão do privilégio de sua posição financeira e familiar com o intuito de influenciar a votação. Convidou-o para ser o vice-presidente e propôs que Matthew Lester assumisse a diretoria, em substituição a Alan Lloyd. Ambas as propostas fo­ram aceitas por unanimidade.

William permaneceu sentado, contemplando o retrato do pai, perfeitamente consciente de que falhara.

 

Abel apagou pela segunda vez o Corona e prometeu a si mesmo não acender outro charuto enquanto não obtivesse os dois milhões de dólares de que precisava para o controle absoluto do Grupo Richmond. Não, estes não eram tempos favoráveis a cha­rutos grandes, pois o índice Dow-Jones baixara ao ponto mais ínfimo da história, e a população, na esperança de obter um prato de sopa, formava longas filas nas principais cidades dos Estados Unidos. Abel fitou o teto e propôs-se a analisar as prioridades. Antes de qualquer coisa, precisava salvar o melhor quadro de fun­cionários do Richmond de Chicago.

Saltou da cama, vestiu a jaqueta e rumou para o anexo do hotel, onde ainda moravam muitos dos que, após o incêndio, não haviam conseguido colocação. Tornou a empregar os homens em que depositava maior confiança, e aos que pretendiam deixar Chicago ofereceu trabalho num dos dez hotéis restantes. Deixou clara sua posição: numa época em que o desemprego atingira um índice recorde, seus empregos só seriam garantidos caso os hotéis começassem a dar lucros. Acreditava que os demais hotéis do grupo vinham sendo dirigidos da mesma maneira corrupta com que o fora o antigo Richmond de Chicago; desejava mudar essa situação — e rapidamente. Seus três subgerentes foram distribuí­dos em três hotéis, o Richmond de Dallas, o de Cincinnati e o de St. Louis. Nomeou novos subgerentes destinados aos sete hotéis restantes, Houston, Mobile, Charleston, Atlanta, Memphis, Nova Orleans e Louisville. Os hotéis do velho Leroy situavam-se todos no Sul e Centro-Oeste, incluindo o Richmond de Chicago, o único construído pelo próprio Davis Leroy. Durante três semanas Abel ocupou-se em colocar os velhos funcionários de Chicago em seus novos postos.

Abel resolveu estabelecer seu escritório central no anexo do Richmond de Chicago e abrir um pequeno restaurante no térreo. Pareceu-lhe mais sensato ficar próximo de seu financiador e ban­queiro e instalar-se num dos hotéis do Sul. Ademais, Zaphia esta­va em Chicago, e Abel sentia, com certa segurança, que em curto espaço de tempo ela desmancharia o namoro com o jovem espi­nhento e se apaixonaria por ele. Zaphia era a única mulher que conhecera capaz de despertar-lhe o sentimento de confiança em si mesmo. Quando se preparou para ir a Nova Iorque com o propó­sito de recrutar pessoal especializado, conseguiu obter dela a promessa de que jamais tornaria a se encontrar com o namorado espinhento.

– Que ele se encha de espinhas — Abel falou em voz alta – mas que não seja mais o namorado dela.

Na noite anterior à sua partida, dormiram juntos pela pri­meira vez. Ela era terna, rechonchuda, risonha e deliciosa.

O carinho e a habilidade de Abel deixaram Zaphia surpresa.

– Quantas garotas você teve depois do Black Arrow? — brincou.

— Nenhuma de quem eu realmente gostasse.

— Mas o bastante para fazer você me esquecer — ela acrescentou.

— Nunca a esqueci — disse mentindo, convencido de que o único modo de parar a conversa era continuar beijando-a.

Ao chegar a Nova Iorque sua primeira decisão foi procurar George, que encontrou desempregado e morando num sotão da East 3rd Street. Abel esquecera-se do inferno que eram aqueles casarões quando divididos por vinte famílias. O mau cheiro de alimento deteriorado emanava de cada cômodo, onde aparelhos sanitários não funcionavam e leitos eram compartilhados por três pessoas durante as vinte e quatro horas. A padaria havia sido fe­chada, e o tio de George precisara empregar-se numa grande usina situada nos arredores de Nova Iorque. George, que não conseguira colocação na usina, deu pulos de alegria quando Abel lhe ofereceu uma vaga no Grupo Richmond — em qualquer fun­ção.

Abel recrutou três novos empregados: um especialista em massas, um chefe de contabilidade e um chefe de garçons. Em se­guida, ele e George regressaram a Chicago com o plano de organi­zar o anexo do Richmond. Abel sentia-se satisfeito com os resulta­dos da viagem. A maioria dos hotéis da costa Leste havia reduzido ao mínimo o número de funcionários, o que lhe dera a oportunidade de escolher gente experimentada, um, inclusive, do próprio Plaza.

No início do mês de março, Abel e George partiram numa excursão aos demais hotéis do grupo. Abel insistiu com Zaphia para que os acompanhasse, oferecendo-lhe até mesmo a oportunidade de trabalhar num hotel de sua escolha, mas ela não arredaria pé de Chicago, a única cidade que lhe era familiar. Numa concessão tácita, enquanto Abel estivesse fora da cidade, ela moraria no cômodo dele no anexo do Richmond. George, que, junto com sua cidadania americana e formação católica, havia adquirido a mo­ral da classe média, ressaltando a Abel as vantagens do casamento. Abel, solitário, hóspede de uma sucessão interminável de quartos de hotel impessoais, mostrou-se um ouvinte interessado.

Não foi surpresa para Abel encontrar os demais hotéis em situação precária, em alguns casos dirigidos com desonestidade. Mas, ante o desemprego em escala nacional, grande parte do pes­soal se sentira encorajada a recebê-lo como o salvador dos destinos do grupo. Não lhe pareceu necessário despedir os funcionários da maneira devastadora que utilizara em Chicago. Já não estavam lá muitos dos que conheciam sua reputação e temiam seus métodos. Algumas cabeças tiveram de rolar, e, inevitavelmente, estavam presas aos pescoços dos mais antigos funcionários do Grupo Rich­mond, não inclinados a mudar seus procedimentos nada ortodoxos simplesmente por causa da morte de Davis Leroy. Em muitos casos, Abel percebeu que a transferência de pessoal de um hotel a outro gerava uma nova atitude. Ao final do seu primeiro ano como presidente, o Grupo Richmond funcionava apenas com a metade do quadro utilizado no passado e apresentava um prejuízo de apenas pouco mais que cem mil dólares. A renovação do pes­soal antigo se fazia mais lenta; a confiança que Abel depositava no futuro do grupo era contagiante.

Abel impôs a si mesmo a tarefa de recuperar-se até o ano de 1932. Pressentia que a única maneira de alcançar uma melhora tão rápida em termos econômicos seria permitir que cada gerente do grupo se sentisse responsável pelo próprio hotel sob seu con­trole, com o estímulo de uma participação nos lucros, bem à ma­neira com que Davis Leroy o fisgara para o Richmond de Chicago.

Abel transferiu-se de hotel para hotel, não permanecendo no mesmo lugar por mais de três semanas. A não ser George, o fiel, o substituto de seus olhos e ouvidos em Chicago, ninguém sabia que hotel receberia sua próxima visita. Durante meses, Abel só quebrou a exaustiva rotina para visitar Zaphia ou Curtis Fenton.

Após uma avaliação completa da situação financeira do grupo, Abel viu-se obrigado a tomar mais algumas medidas desagradá­veis. A mais drástica foi fechar temporariamente dois hotéis, o de Mobile e o de Charleston, que vinham perdendo tanto dinheiro que poderiam tornar-se o sorvedouro do resto das finanças. O quadro de pessoal dos demais hotéis soube da medida e tratou de trabalhar com maior empenho. Toda vez que retornava ao pe­queno escritório do anexo do Richmond de Chicago, Abel encon­trava uma pilha de memorandos cheios de problemas que reque­riam imediata atenção — canos estourados em banheiros, baratas, nas cozinhas, explosões de ânimo nos restaurantes e o inevitável freguês insatisfeito que ameaçava abrir um processo contra o grupo.

Henry Osborne fez sua reentrada na vida de Abel com uma oferta bem recebida: a Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western reconhecia não ter havido envolvimento de Abel no sinistro, e iria indenizá-lo em setecentos e cinqüenta mil dóla­res. As provas apresentadas pelo tenente 0'Malley foram satis­fatórias. Abel compreendeu que lhe devia bem mais do que um milk shake. Satisfeito, pretendia fixar a negociação nesse valor, que considerava justo, mas Osborne sugeriu-lhe que requeresse uma soma maior, de cuja diferença ele extrairia uma porcentagem. Depois dessa proposta, Abel, cujos defeitos jamais incluíram o peculato, passou a precaver-se contra ele: se Osborne se dispunha tão prontamente a ser desleal com sua própria companhia, sem dúvida não teria escrúpulos em lesá-lo quando lhe conviesse.

Na primavera de 1932, Abel ficou um tanto surpreso ao re­ceber uma carta de Melanie Leroy, que se mostrava mais amável no modo de expressar do que o fora pessoalmente. Sentindo-se lisonjeado, e até mesmo excitado, Abel telefonou-lhe, convidando-a para jantar no Stevens, uma decisão que ele lamentou ter tomado, logo que puseram os pés no restaurante, pois lá estava Zaphia, na sua simplicidade, cansada e vulnerável. Melanie, ao contrário, tinha um aspecto arrebatador com seu vestido longo verde-menta, a re­velar nitidamente como era seu corpo se o verde-menta não o cobrisse. Seus olhos, provavelmente extraindo audácia do vestido, pareciam ainda mais verdes e mais cativantes do que nunca.

– Alegra-me vê-lo tão bem, Abel — observou ela, sentando-se a uma mesa no centro do salão —, e, naturalmente, todos comentam as mudanças que vem fazendo no Grupo Richmond.

– No Grupo Baron — corrigiu-a.

Melanie corou levemente.

- Oh, não sabia que tinha mudado o nome do grupo.

– Pois é, mudei-o no ano passado — mentiu. Com efeito, acabara de resolver que todos os hotéis do grupo a partir desse instante seriam conhecidos como Baron Hotel. Por que nunca pensara nisso antes?

— Um nome apropriado — comentou Melanie, sorrindo.

Abel percebeu que Zaphia olhava fixamente para eles, do outro lado do salão, mas, a essa altura, ele não podia fazer nada.

— Não está trabalhando? — perguntou Abel, escrevendo as palavras "Grupo Baron" nas costas do cardápio.

— Não. Pelo menos no momento. Mas as coisas melhoraram um pouco. Uma mulher formada em Ciências Humanas nesta ci­dade não tem o que fazer senão esperar que todos os homens se empreguem, e só então, com o que resta de esperança, tentar achar uma vaga.

— Se quiser trabalhar no Grupo Baron — disse Abel, enfa­tizando um pouco o nome —, basta avisar-me.

— Oh, não, não — respondeu Melanie. — Não estou em apuros.

Sem demora, ele tratou de mudar de assunto, falando de mú­sica e teatro. Conversar com ela constituía um desafio desusado e agradável; ela o provocava, porém, com inteligência. Fazia-o sen­tir-se mais seguro em sua companhia do que no passado. O jantar estendeu-se até as onze horas, e quando todos deixaram o restau­rante, inclusive Zaphia, com os olhos evidentemente avermelhados, Abel levou Melanie de carro para casa. Dessa vez ela o convidou para entrar e tomar um drinque. Ele sentou-se numa extremidade do sofá, enquanto ela lhe servia um uísque e punha um disco na vitrola.

— Não posso me demorar — falou Abel. — Amanhã vou ter um dia cheio.

— Eu é que deveria dizer isso, Abel. Não precisa sair cor­rendo. A noite foi muito agradável, exatamente como nos velhos tempos.

Ela sentou-se ao lado dele, e o vestido subiu-lhe pelas pernas, deixando os joelhos à mostra. Não exatamente como nos velhos tempos, pensou ele. Que pernas extraordinárias! Ele nem sequer tentou resistir quando ela apertou seu corpo contra o dele. Logo ele percebeu que a estava beijando — ou ela é que o estava bei­jando? Suas mãos deslizaram livremente por aquelas pernas e, em seguida, procuraram-lhe os seios. Dessa vez ela não o repeliu. E foi ela que, de repente, pegou-o pelas mãos e levou-o ao quarto de dormir, onde dobrou a colcha com movimentos metódicos e, voltando-lhe as costas, pediu-lhe que puxasse o zíper do vestido. Nervoso e incrédulo, Abel obedeceu-lhe, e antes de despir-se, apa­gou a luz. Depois desses preparativos, não lhe foi difícil colocar em prática os ensinamentos esmerados de Joyce. Por certo a própria Melanie demonstrava ter alguma experiência; nunca na vida Abel desfrutara tanto de um ato de amor, e ele pode entregar-se, feliz, a um sono profundo.

Pela manhã, Melanie preparou-lhe o café e satisfez-lhe todos os pedidos, até que chegou o momento da partida.

– Acompanharei o Grupo Baron com um interesse renovado – disse ela. – Mas sei que ninguém duvida de que será um tre­mendo sucesso.

– Obrigado — disse Abel —, pelo café e pela noite ines­quecível.

– Eu estou pensando... acho que a gente poderia se ver de novo um dia desses — ajuntou Melanie.

— Eu gostaria muito — respondeu Abel.

Ela o beijou no rosto como uma esposa que se despede do marido que parte para o trabalho.

— Com que tipo de mulher pensa em se casar? — pergun­tou ela com ingenuidade, enquanto o ajudava a vestir o sobretudo.

Ele a fitou e sorriu com doçura.

— Quando eu tiver de tomar uma decisão dessas, Melanie, pode estar certa de que só serei influenciado pelos seus pontos de vista.

— Como assim? — indagou Melanie, melindrada.

— Simplesmente pedirei seus conselhos — respondeu Abel, dirigindo-se para a porta. — E, por favor, veja se arranja uma ótima moça polonesa que me queira por esposo.

 

Abel e Zaphia casaram-se um mês depois. O primo de Zaphia, Janek, conduziu-a ao altar, e George foi padrinho do noivo. A recepção teve lugar no Stevens, e os comes e bebes foram até a manhã seguinte. Seguindo a tradição, cada homem que dançava com Zaphia pagava-lhe uma quantia simbólica, e George, trans­pirando, girava pelo salão tentando fotografar os convidados em muitos instantâneos e poses. Depois da ceia da meia-noite, com­posta de barszcz, pierogi e bigos e regada a vinho branco, conha­que e vodca de Dantzig, Abel e Zaphia puderam retirar-se para a suíte dos noivos.

Na manhã seguinte, Abel ouviu com agradável surpresa Curtis Fenton comunicar-lhe que a conta pela recepção no Ste­vens fora coberta pelo sr. Maxton, e que esse gesto deveria ser considerado um presente de casamento. O dinheiro economizado para a recepção serviu de entrada na compra de uma casinha na Rigg Street.

Pela primeira vez na vida, Abel possuía uma casa própria.

 

Em fevereiro de 1934, William resolveu passar um mês de férias na Inglaterra, antes de tomar uma resolução definitiva so­bre o seu futuro; chegara mesmo a pensar em demitir-se do con­selho mas foi convencido por Matthew de que seu pai, nas mes­mas circunstâncias, não faria isso. Matthew parecia bem mais abalado com a derrota do amigo do que o próprio William. Na semana seguinte à eleição, por duas vezes fora trabalhar com sinais evidentes de ressaca e deixara pela metade uma importante tarefa. William concluiu que o melhor seria não fazer nenhum comentário sobre o incidente e convidou-o para jantar na compa­nhia dele e de Kate. Alegando excesso de trabalho, Matthew de­clinou do convite. William não teria ligado para a recusa se, nessa mesma noite, não o tivesse visto no Ritz Carlton jantando com uma mulher deveras encantadora, que, William podia jurar, era casada com um dos chefes de departamento do Kane & Cabot. Kate apenas comentou que Matthew não lhe parecia bem.

William, ocupado com a iminente viagem à Europa, prestou menos atenção ao estranho comportamento do amigo do que o faria normalmente. Na última hora, sentindo que não conseguiria passar sozinho um mês na Europa, pediu a Kate que o acompa­nhasse. Para sua surpresa e alegria, ela aceitou o convite.

William e Kate embarcaram rumo à Inglaterra no Mauritânia, ocupando cabines separadas. Logo depois de se terem acomodado no Ritz, em apartamentos separados, e não no mesmo andar, William apresentou-se à filial de Londres do Kane & Cabot, na Lombard Street, e cumpriu o aparente propósito da viagem re­examinando as atividades européias do banco. A disposição dos funcionários era grande, e Tony Simmons, sem dúvida alguma, fora um gerente estimado; William apenas resmungou sua apro­vação.

Ele e Kate passaram juntos duas semanas magníficas em Londres, Hampshire e Lincolnshire, visitando certos terrenos que William comprara havia alguns meses, ao todo mais de doze mil acres. O retorno financeiro de terras para a lavoura nunca era alto, explicou William a Kate, mas "a terra sempre estará aqui, se as coisas voltarem a se agravar nos Estados Unidos".

Poucos dias antes da data marcada para o regresso aos Estados Unidos, Kate quis conhecer Oxford, e William concordou em levá-la até lá de carro logo cedo na manhã seguinte. Alugaram um Morris novo, um carro que ele nunca tinha dirigido. Na cidade universitária, passaram o dia visitando as faculdades: Magdalen, que se erguia, soberba, junto ao rio; Christchurch, portentosa, mas sem claustro; e Merton, onde eles simplesmente sentaram sobre a relva e sonharam.

— Não é permitido sentar na grama, senhor — soou a voz de um zelador.

Riram, e de mãos dadas, como dois colegiais, caminharam ao longo do Cherwell, observando oito Matthews extenuarem-se para fazer um barco de competição deslizar o mais depressa possível. William já não podia imaginar uma vida sem Kate em nenhuma parte do mundo.

No meio da tarde, tomaram o caminho de volta a Londres, e, quando alcançaram Henley-on-Thames, pararam para tomar chá no Bell Inn, que dava frente para o rio. Depois das broas e de um grande bule de chá inglês forte (Kate, temerária, misturou-o apenas com leite, mas William adicionou água quente para en­fraquecê-lo), Kate sugeriu que voltassem antes de escurecer, para que pudessem apreciar a vista do campo. Mas quando William recolocou a manivela no Morris, a despeito de seus esforços, não conseguiu fazer o motor funcionar. Por fim, ele se deu por ven­cido e, visto que a noite se aproximava, concluiu que a passariam em Henley. Retornou ao balcão de recepção do Bell Inn e pediu dois quartos.

— Sinto muito, senhor, mas disponho apenas de um quarto para duas pessoas — informou o recepcionista.

William refletiu por um momento, um tanto indeciso, e então disse:

— Ficaremos com ele.

Kate revelava uma fisionomia cheia de surpresa, mas não disse nada; o recepcionista olhou-a com desconfiança.

— Sr. e sra... ?

— Sr. e sra. William Kane — completou William com fir­meza. — Voltaremos mais tarde.

— Devo colocar sua bagagem no quarto, senhor? — pergun­tou o empregado.

— Não temos bagagem — respondeu William, sorrindo.

— Pois não, senhor.

Kate acompanhou William pela Henley High Street acima, até que ele se deteve em frente a uma igreja.

– William, posso perguntar o que estamos fazendo? — indagou.

– Uma coisa que devia ter feito há muito tempo.

Kate absteve-se de outras perguntas.

Entraram na sacristia, ali estava o sacristão, ocupado em empilhar alguns hinários.

– Onde posso encontrar o vigário? — perguntou William.

O sacristão empertigou-se e olhou-o, compadecido.

– No vicariato, eu diria.

– Onde fica o vicariato? — tornou William.

– Vocês são americanos, não são, senhor?

— Somos — falou William, já impaciente.

– O vicariato é a próxima residência em direção à igreja, não é? — falou o sacristão.

— Imagino que sim — disse William. — O senhor pode ficar aqui uns dez minutos?

– E por que eu deveria ficar, senhor?

William enfiou a mão no bolso interno do paletó, de onde tirou uma nota nova de cinco libras.

— Isto é para garantir que o senhor permanecerá aqui du­rante quinze minutos, por favor.

O sacristão estudou com cuidado a nota de cinco libras e disse:

— Americanos. Oh, sim, senhor.

William deixou o homem com a nota nas mãos e correu com Kate para fora da igreja. Ao passarem pelo quadro de avisos da varanda, ele leu: O vigário dessa paróquia é o reverendo Simon Tukesbury, M. A. (Cambridge); junto dessa declaração, pendu­rado num prego, havia um apelo relativo à colocação de um novo telhado na igreja. Cada penny destinado a somar as quinhentas libras necessárias será de boa ajuda, dizia o cartaz, em letras tre­midas. William saiu apressado rumo ao vicariato, sempre segui­do de Kate, que caminhava poucos metros atrás dele. Uma se­nhora gorda, de bochechas rosadas e sorridente, abriu-lhes a por­ta, atendendo às suas batidas destemidas.

– Sra. Tukesbury? — inquiriu William.

– Eu mesma — sorriu.

– Posso falar com seu esposo?  

– Ele está tomando chá no momento. O senhor não gosta­ria de voltar um pouco mais tarde?

— Receio que seja urgentíssimo — insistiu.

Kate já o havia alcançado, mas permaneceu calada.

— Bom, nesse caso creio que o senhor deve entrar.

A residência datava do início do século XVI, e a saleta de paredes de pedra conservava-se aquecida pelo fogo de uma larei­ra. O vigário, alto e magro, sentado à mesa comendo sanduíches de pepino cortado em rodelas muito finas, ergueu-se para rece­bê-los.

— Boa tarde, senhor... ?

— Kane, senhor, William Kane.

— Em que posso ajudá-lo, sr. Kane?

— Kate e eu — disse William — queremos nos casar.

— Oh, isso é maravilhoso! — exclamou a sra. Tukesbury.

— Sem dúvida — observou o vigário. — O senhor é nosso paroquiano? Confesso que não me lembro de...

— Não, senhor, sou americano. Assisto aos cultos na Cate­dral de St. Paul, em Boston.

— Massachusetts, presumo, não Lincolnshire — observou o reverendo Tukesbury.

— Exato — disse William, esquecido, por um segundo, de que havia uma Boston na Inglaterra.

— Esplêndido — disse o vigário, erguendo as mãos como se os fosse abençoar. — E em que data pretendem unir suas almas?

— Agora, senhor.

— Agora, senhor? — indagou, surpreso, o vigário. — Sr. Kane, desconheço as tradições que cercam a solene, santa e uni­ficadora instituição do matrimônio nos Estados Unidos, embora às vezes a gente leia sobre incidentes estranhos envolvendo alguns de seus compatriotas da Califórnia. Quanto a mim, porém, creio não ser mais que meu dever informá-lo de que aqueles costumes ainda não foram aceitos em Henley-on-Thames. Na Inglaterra, em qualquer paróquia, o senhor deve aguardar um mês completo antes de casar-se, e os proclamas são lidos em três ocasiões dife­rentes, a menos que haja circunstâncias muito especiais e atenuan­tes. Mesmo em tais circunstâncias, eu seria obrigado a consultar o bispo, o que não faria em menos de três dias — acrescentou o sr. Tukesbury, os braços rigidamente colados no corpo.

Kate falou pela primeira vez:

— Quanto lhe falta para colocar o novo telhado da igreja?

– Ah o telhado. É uma história muito triste, mas não pre­tendo contá-la agora. Sabe, desde o início do século XI.

– De quanto precisa? — perguntou William, apertando a mão de Kate.

– Esperamos levantar quinhentas libras. Ate agora obtivemos uma quantia satisfatória: vinte e sete libras, quatro xelins e quatro pence, em apenas sete semanas.

– Não, não, querido — interveio a sra. Tukesbury. — Es­queceu-se de contar uma libra, onze xelins e dois pence que con­seguimos com o bazar da semana passada.

– De fato, esqueci-me disso, querida. Que descuidado fui eu em não considerar a sua contribuição pessoal! Com isso, temos um total de... — começou o reverendo Tukesbury, fazendo cálculos de cabeça e erguendo os olhos para o alto em busca de inspiração.

William retirou a carteira do bolso interno, fez um cheque de quinhentas libras e, em silêncio, ofertou-o ao reverendo Tukesbury.

— Eu... bem, eu compreendo que as circunstâncias são muito especiais, sr. Kane — murmurou o vigário, tomado de surpresa e mudando o tom de voz. — Vocês já foram casados?

— Eu fui — disse Kate. — Meu marido morreu num de­sastre de avião há quatro anos.

— Oh, que terrível! — exclamou a sra. Tukesbury. — Sinto muito, eu não...

— Shush, minha querida! — pediu o homem de Deus, mais interessado no telhado da igreja que nos sentimentos da esposa. — E o senhor?

— Nunca me casei — respondeu William.

— Vou telefonar ao bispo. — Segurando firme na mão o cheque de William, o reverendo desapareceu na sala contígua.

A sra. Tukesbury convidou-os a sentar-se, ofereceu-lhes o prato de sanduíches de pepino e continuou a falar. Sem prestar atenção às suas palavras, William e Kate fitavam-se demoradamente.

O vigário retornou três sanduíches de pepino mais tarde.

– É extremamente irregular, extremamente irregular, mas o bispo concordou, desde que o senhor, amanhã cedo, legitime a cerimônia na embaixada americana, e tão logo regresse a seu pais a confirme junto ao bispo de sua igreja em Boston, Massa­chusetts.

Ele ainda segurava firmemente o cheque de quinhentas libras.

— Agora só precisamos de duas testemunhas — prosseguiu. — Minha esposa será uma delas. Esperemos que o sacristão não tenha ido embora, assim ele será a outra.

— Garanto que não foi embora — disse William.

— Como pode ter tanta certeza disso, sr. Kane?

— Ele me custou um por cento.

— Um por cento? — inquiriu o reverendo Tukesbury, desconcertado.

— Um por cento do telhado da sua igreja — explicou William.

O vigário conduziu William, Kate e a esposa pelo caminho estreito, de volta à igreja, e deu uma piscadela ao sacristão, que continuava esperando.

— De fato, vejo que o sr. Sprogget permaneceu em seu posto... Nunca fez isso por mim. Sem dúvida sabe conquistar as pessoas, sr. Kane.

Simon Tukesbury pôs os paramentos e uma sobrepeliz, en­quanto, estupefato, o sacristão acompanhava a cena.

William voltou-se para Kate e beijou-a delicadamente.

— Sei que nestas circunstâncias é uma pergunta idiota, mas você me aceita como esposo?

— Por Deus! — exclamou o reverendo Tukesbury, que em todos os seus cinqüenta e sete anos de vida mortal nunca blasfe­mara. — O senhor ainda não a tinha consultado?

Quinze minutos depois, o sr. e a sra. William Kane deixaram a igreja paroquial de Henley-on-Thames, em Oxfordshire. A sra. Tukesbury precisara providenciar as alianças na última hora, ti­rando duas argolinhas da cortina da sacristia. Serviram perfeita­mente, como que sob encomenda. O reverendo Tukesbury conse­guira o telhado novo, e o sr. Sprogget, uma história para contar aos amigos da Green Man, onde gastaria quase todas as suas cinco libras.

Já fora da igreja, o vigário entregou a William um papel.

— Dois xelins e seis pence, por favor.

— Por quê? — perguntou William.

— Sua certidão de casamento, sr. Kane.

— O senhor deveria trabalhar em um banco — comentou William, entregando-lhe uma moeda de cinco xelins.

William desceu com a noiva a High Street, imerso num silêncio feliz, e voltaram ao Bell Inn. Deliciaram-se com um tranqüilo jantar no restaurante datado do século XV, com vigas de carva­lho no teto, e recolheram-se minutos depois das nove horas. En­quanto subiam a velha escada de madeira em direção ao quarto, o recepcionista voltou-se para o porteiro e deu uma piscadela.

– Se eles são casados, eu sou o rei da Inglaterra.

William começou a cantarolar o God Save the King.

Na manhã seguinte, o sr. e a sra. Kane tomaram um café demorado, enquanto aguardavam o conserto do carro. (Tudo de que precisava era uma correia de ventilador nova, o pai lhe teria dito.) Um garçom bastante jovem serviu-lhes o café.

– Gosta de café preto ou com um pouco de leite? — indagou William com ingenuidade.

Um casal de velhinhos deu-lhes um sorriso cordial.

— Com leite, por favor — disse Kate, estendendo o braço e tocando suavemente a mão de William.

Ele lhe sorriu, reparando de súbito que o salão inteiro os observava.

Retornaram a Londres na refrescante atmosfera da prima­vera que se iniciava, passando por Henley-on-Thames, e depois subiram por Berkshire e Middlesex rumo a Londres.

— Notou com que olhar o porteiro a observou esta manhã, meu bem? — perguntou William.

— Notei. Acho que deveríamos ter lhe mostrado nossa cer­tidão de casamento.

— Oh, não, não. Isso teria desfeito a imagem que ele faz das americanas, todas mulheres impudicas. Ele não diria à mulher, à noite em casa, que realmente somos casados.

Quando chegaram ao Ritz, ainda a tempo para o almoço, o chefe da recepção surpreendeu-se com William, ao ouvir o pe­dido de cancelamento do quarto de Kate. Pouco depois, ouviram-no comentar:

— O jovem sr. Kane me parecia um verdadeiro cavalheiro. Seu falecido e distinto pai jamais se teria comportado desse modo.

William e Kate embarcariam no Aquitania com destino a Nova Iorque, mas antes cuidaram de apresentar-se à embaixada americana na Grosvenor Gardens para informar ao cônsul de seu recente casamento. O cônsul deu-lhes um longo formulário para preencher, cobrou-lhes uma taxa de uma libra e fê-los esperar por mais de uma hora. A embaixada americana, ao que parecia, não precisava de um novo telhado. William teve a idéia de ir ao Car­tier, na Bond Street, com o propósito de comprar as alianças de casamento, mas Kate não concordou — nada a separaria da precio­sa argolinha de cortina.

 

William encontrou dificuldade em adaptar-se ao trabalho sob a orientação do novo presidente. As normas do New Deal esta­vam na iminência de ser aprovadas por lei com uma rapidez inusi­tada, e William e Tony julgaram impossível avaliar se as implica­ções com respeito aos investimentos seriam boas ou más. Expansão houve — ao menos numa frente —, pois logo que retornaram aos Estados Unidos Kate anunciou que estava grávida, uma notícia que encheu de alegria os seus pais e o marido. William procurou intro­duzir algumas alterações em seu horário de trabalho com o intuito de desempenhar seu novo papel de homem casado, mas via-se cada vez mais debruçado sobre a escrivaninha, varando as noites de um verão muito quente. Kate, serena e feliz em sua camisola maternal estampada de flores, inspecionava sistematicamente o quarto de crianças da Red House. Pela primeira vez na vida, William saía do escritório ansioso por voltar para casa. Quando lhe restava alguma tarefa a concluir, punha os documentos numa pasta e os levava, hábito que adotou durante toda a vida de casado.

Enquanto Kate e a expectativa pela chegada do bebê, que nasceria na época do Natal, enchiam-lhe o lar de alegria, Mat­thew só lhe dava aborrecimentos. Contraíra o hábito de beber, e, sem qualquer explicação, chegava ao escritório com atraso. Os meses foram transcorrendo, e William concluiu ser impossível continuar confiando nas estimativas do amigo. No início, preferiu omitir-se, na esperança de que tal comportamento, tão contrário ao caráter dele — e talvez passageiro —, não fosse mais que uma reação à revogação da lei seca. Mas não se tratava disso, e o problema foi se agravando. A última gota ocorreu numa ma­nhã de novembro, quando Matthew apareceu com duas horas de atraso, evidentemente de ressaca, e cometeu um erro, simples e injustificado, ao liquidar importante investimento, o que resultou em prejuízo para um cliente que tinha condições de conseguir um lucro considerável. Chegara o momento, William não duvi­dava, de terem uma conversa desagradável, mas absolutamente necessária. Matthew admitiu o erro e, consternado, desculpou-se. William sentiu-se aliviado depois do desabafo e pensou em con­vidá-lo para o almoço. Nisso, coisa que nunca acontecera antes, a secretária entrou, esbaforida, no gabinete.

– Sua esposa, senhor. Levaram-na para o hospital.

– Por quê? — perguntou William, perplexo.

– A criança — disse a secretária.

– Mas a criança é esperada para daqui a seis semanas — comentou ele, incrédulo.

– Sei disso, senhor, mas o dr. MacKenzie parecia apreensivo e pediu que o senhor vá rapidamente para o hospital.

Matthew, apático segundos atrás, tomou a dianteira e levou William. Ambos, preocupados, pareciam recordar a morte da mãe de William e da criança natimorta.

– Oh, não, Deus meu, Kate não! — disse Matthew, entran­do com o carro no estacionamento do hospital.

William não precisou que lhe indicassem a Maternidade Anne Kane, que Kate inaugurara oficialmente apenas seis meses antes. Uma enfermeira, parada diante da porta da sala de parto, informou-o de que o dr. MacKenzie estava atendendo sua esposa e que ela havia perdido muito sangue. Atarantado, William ficou andando pelo corredor, aguardando, estonteado, exatamente como anos atrás. A cena era-lhe demasiado familiar. Ser presidente do banco não tinha a menor importância diante da possibilidade de perder Kate. Quando ela lhe dissera pela última vez: "Eu te amo"? Matthew não abandonava o amigo um só instante; sen­tava-se ao lado dele, andava ao lado dele de um lado para outro, parava quando ele parava, ambos em silêncio. Nada havia a dizer. Toda vez que uma enfermeira entrava ou saía da sala de partos, William consultava o relógio de pulso. Os segundos converteram-se em minutos, os minutos em horas. Finalmente o dr. MacKen­zie apareceu. Gotas de suor brilhavam em sua fronte, e uma máscara cirúrgica cobria-lhe o nariz e a boca. William não con­seguia surpreender nenhuma expressão no rosto do médico. Quan­do por fim ele retirou a máscara, revelou-se um sorriso.

— Parabéns, William, nasceu um menininho, e Kate está passando muitíssimo bem.

— Graças a Deus! — exclamou William, quase sem fôlego, agarrando-se a Matthew.

— Respeito muito o Todo-poderoso — observou o dr. Mac­Kenzie. — Mas confesso que tive uma grande participação nesse parto.

William riu.

— Posso vê-la?

– Não, não, agora não. Dei-lhe um sedativo e ela adorme­ceu. Perdeu sangue em excesso, mas amanhã se sentirá melhor. Um pouco fraca, talvez, mas em condições de recebê-lo. Natu­ralmente, ninguém o impedirá de ver seu filho. Não se assuste com o tamanho dele, porém. Lembre-se de que é bastante pre­maturo.

O médico conduziu William e Matthew pelo corredor até uma sala envidraçada, onde eles viram nos berços seis cabecinhas rosadas.

— É aquele ali — disse o dr. MacKenzie, indicando a criança que acabava de chegar.

William olhou o rostinho feioso com ar de desconfiança, sentindo desmoronar a imagem de um menino bonito que acalentara até então.

— Bem, eu digo uma coisa sobre esse guri — disse o médico, animadamente. — É bem mais bonito que você nessa idade, e olhe que você não saiu tão feio assim.

William soltou uma gargalhada de alívio.

— Que nome vai dar a ele?

— Richard Higginson Kane.

O médico pôs a mão afetuosamente no ombro do pai.

— Espero viver o bastante para fazer o parto do primeiro filho de Richard.

William telegrafou imediatamente para o reitor da St. Paul's School, que reservou uma vaga para o menino no ano de 1943, e, em seguida, o pai e seu amigo Matthew embebedaram-se e chegaram com atraso na manhã seguinte para ver Kate. William levou Matthew para dar uma outra olhada no pequeno Richard.

— Ô coisinha feia — disse Matthew —, nada parecido com a linda mãe que tem.

— Foi o que eu pensei — disse William.

— Mas é a cara do pai.

William voltou ao quarto de Kate, já repleto de flores.

— Gostou do seu filho? — perguntou Kate ao marido. — Ele se parece tanto com você!

— Vou chamar para a briga a próxima pessoa que me disser isso —falou William. — É a coisinha mais feia que já vi.

— Oh, não — fez Kate, fingindo-se indignada. — Ele é lindo!

— Só mesmo a mãe para gostar daquela cara — falou William, apertando a esposa entre os braços.

Ela o envolveu com os braços, feliz com a sua felicidade.

– O que a vovó Kane diria se visse nosso primogênito vir ao mundo antes de completados oito meses de casamento? "Longe de mim ser maldizente, mas quem quer que nasça antes de um ano e três meses de casamento deve ser considerado de paternidade duvidosa; antes dos nove meses, definitivamente ina­ceitável" — arrematou William. — A propósito, Kate, esqueci-me de dizer-lhe uma coisa antes que a trouxessem para o hos­pital.

— O quê?

— Eu amo você.

Kate e Richard ficaram no hospital quase três semanas. Kate só se recuperou completamente depois do Natal. Richard, por sua vez, crescia como uma erva do campo, sem que ninguém o tivesse informado de que era um Kane, e ninguém sequer ima­ginara fazê-lo. William entrou na história da família como o pri­meiro Kane a trocar uma fralda e empurrar um carrinho. Kate orgulhava-se dele, e até mesmo surpreendia-se. William comentou com Matthew que já era hora de encontrar uma boa mulher e arrumar sua vida. Matthew riu, defendendo-se.

— Positivamente você está envelhecendo. Daqui a pouco, vou achar uns fiozinhos brancos no seu cabelo.

Mas um ou dois fios já haviam aparecido durante a batalha da sucessão à presidência. Matthew não os notara.

 

William não sabia ao certo em que momento começara a se deteriorar seu relacionamento com Tony Simmons. Invaria­velmente, Tony vetava um plano de ação atrás de outro, numa atitude negativa que de novo levou William a pensar seriamente em demitir-se. Matthew havia retomado o hábito de beber, e não ajudava o amigo em nada. O período de regeneração não durara mais que uns poucos meses, e, agravando ainda mais as coisas, ele passara a beber com maior freqüência, chegando atrasado ao banco todos os dias. William sentia-se indeciso quanto à forma com que lidaria com essa nova situação, e, aos poucos, foi assu­mindo o trabalho de Matthew. Ao final de cada dia, William reexaminava a correspondência de Matthew e respondia aos tele­fonemas por ele ignorados.

Na primavera de 1936, quando os investidores haviam recuperado a confiança e os depositantes começaram a retornar, William resolveu voltar experimentalmente ao mercado de va­lores, mas Tony vetou a sugestão com um memorando interno que enviou ao conselho financeiro. William irrompeu esbrave­jando no gabinete de Tony e perguntou-lhe se sua renúncia ao cargo seria bem-recebida.

— É evidente que não, William. Quero simplesmente que você reconheça que minha política foi sempre dirigir este banco de maneira cautelosa, e não é minha intenção retornar ao merca­do com o dinheiro dos nossos investidores.

— Mas estamos perdendo dinheiro para outros bancos, en­quanto ficamos sentados aqui, à margem, vendo-os aproveitar a situação atual. Bancos que, dez anos atrás, nem sequer teríamos considerado concorrentes, em breve nos passarão a perna.

— Passarão a perna em quê, William? Não na reputação. Lucros rápidos, talvez, mas não reputação.

— Mas estou interessado é em lucros — disse William. — Na minha opinião, o dever de um banco é propiciar aos investi­dores ótimos lucros, e não ficar marcando passo inutilmente.

— Prefiro imobilizar-me a perder a reputação, uma repu­tação que este banco construiu graças a seu avô e a seu pai du­rante quase meio século.

— Perfeito, mas ambos estavam sempre atentos às novas oportunidades de expandir as atividades do banco.

— Isso foi nos bons tempos — disse Tony..

— E nos maus, também — retrucou William.

— William, por que tanta irritação? Ainda dirige o seu departamento com inteira liberdade.

—- A duras penas o faço! Você bloqueia a menor sugestão de qualquer empreendimento.

— William, sejamos honestos um com o outro. Uma das razões por que tenho sido particularmente cauteloso nos últimos tempos é que não podemos mais confiar nas estimativas de Mat­thew.

— Deixe Matthew fora desta questão. É a mim que você bloqueia; sou eu o chefe do departamento.

— Sinto, mas não posso deixar de incluir Matthew nesta questão. Bem que gostaria de poder fazê-lo. A responsabilidade global e final do conselho pelas ações de quem quer que seja cabe a mim, e ele é o braço direito do mais importante departa­mento do banco.

— Certo, e, portanto, de minha responsabilidade, porque o departamento sou eu.

— Não, William, não importa o tempo de amizade e o nível de intimidade existente entre vocês, você não pode continuar sendo o único responsável pelo fato de Matthew chegar ao trabalho embriagado às onze da manha.

– Ora não exagere!

– Não estou exagerando, William. Este banco vem tolerando Matthew Lester há mais de um ano, e a única coisa que me impediu de revelar a você minhas preocupações foi justamente seu relacionamento pessoal com ele e sua família. Não lamen­taria confesso, vê-lo apresentar a carta de demissão. Um homem de caráter já a teria apresentado há muito tempo, e os amigos dele o teriam aconselhado a fazê-lo.

– Nunca — disse William. — Se ele sair, eu também saio.

– Que seja assim, então, William — falou Tony. — Minha primeira responsabilidade é com os investidores, não com seus antigos colegas de escola.

– Tony, você vai se arrepender por ter dito isso — disse William, retirando-se tempestuosamente e retornando à sua sala, ainda fora de si.

— Onde está o sr. Lester? — perguntou à secretaria, ao passar por ela.

— Ainda não chegou, senhor.

Encolerizado, consultou o relógio.

— Assim que ele chegar, diga-lhe que quero vê-lo.

— Sim, senhor.

William andou de um lado para outro na sala, praguejando. Tudo o que Tony Simmons falara sobre Matthew era correto, o que só agravava a situação. Procurou reconsiderar o passado, refletindo sobre o momento em que tudo começara, buscando uma simples explicação. Seus pensamentos foram interrompidos pela secretária.

— O sr. Lester acabou de chegar, senhor.

Matthew entrou demonstrando embaraço, com todos os in­dícios de recente bebedeira. Envelhecera nesse último ano, sua tez perdera a cor saudável e o vigor. William mal o reconhecia como o homem de quem fora o amigo mais íntimo durante quase vinte anos.

— Matthew, onde diabo você esteve?

— Acordei tarde — respondeu Matthew, coçando o rosto, desajeitado. — Mais exatamente, dormi tarde.

– Em outras palavras, bebeu demais.

— Não, nem tanto. Sabe, foi uma nova namorada que não me deixou dormir. Uma mulher insaciável.

— Matthew, quando vai parar? Já dormiu com quase todas as mulheres solteiras de Boston.

— Também não exagere, William! Sobraram uma ou duas; pelo menos, espero que sim. Depois, não esqueça os milhares de casadas.

— Piada de mau gosto, Matthew.

— Oh, William, o que é que há? Veja se me dá uma folga!

— Dar-lhe uma folga? Tony Simmons acaba de cair em cima de mim por sua causa. E tem mais: a razão está toda com ele. Você leva para a cama qualquer uma que use saia, e, o que é pior, está se matando de beber. Suas estimativas têm sido de­sastrosas. Por quê, Matthew? Só me diga por quê. Deve haver alguma explicação. Até um ano atrás você era um dos homens mais confiáveis que encontrei na minha vida. O que está acon­tecendo, Matthew? Que devo dizer a Tony Simmons?

— Diga a Simmons que vá para o inferno e meta-se com os assuntos dele.

— Matthew, seja sensato. Este assunto é dele. Estamos di­rigindo um banco. Você entrou aqui como diretor por recomen­dação minha.

— E agora não estou correspondendo aos seus padrões de exigência, não é o que quer dizer?

— Não, não é isso o que estou dizendo.

— Então que diabo está dizendo?

— Que sossegue e trabalhe algumas semanas. Em pouco tempo todo mundo vai esquecer este incidente.

— Não quer mais nada?

— Não.

— Farei o que me pede, mestre — disse Matthew, batendo os calcanhares um contra o outro e retirando-se.

— Diabo! — exclamou William.

À tarde, William quis repassar a carteira de um cliente com Matthew mas ninguém conseguiu localizá-lo. Ele não voltara ao banco depois do almoço, e não estava em casa. Nem mesmo o prazer de colocar o jovem Richard no berço nessa noite afastou Matthew e seus problemas do pensamento de William. Richard já falava "dois", e William ensinava-lhe a falar "três", mas ele teimava em pronunciar "teis".

— Se não consegue falar "três", Richard, como é que um dia vai ser banqueiro, hein? — perguntava ao filho, quando Kate entrou no quarto.

– Talvez ele acabe fazendo alguma coisa de proveitoso — disse Kate.

– O que pode ser mais proveitoso do que um banco? — indagou William.

– Ora, ele poderá ser músico, jogador de beisebol ou, quem sabe, presidente dos Estados Unidos.

– Dos três, prefiro que seja jogador de beisebol. Das que você sugeriu, é a única profissão que paga bom salário — co­mentou William, colocando Richard no berço.

As últimas palavras de Richard, antes do dormir, foram:

— Teis, papá.

William deu-se por vencido. Não era o seu dia.

— Você me parece exausto, querido. Espero que não tenha esquecido a festa de Andrew MacKenzie.

— Diabo! Pois não é que me esqueci completamente? A que horas ele nos espera?

— Daqui a uma hora.

— Bem, primeiro vou tomar um banho quente demorado.

— Achava que isso era um privilégio feminino — disse Kate.

— É que esta noite preciso relaxar. O dia me acabou com os nervos.

— Tony o importunou de novo?

— Sim, desta vez, porém, com razão. Queixou-se do hábito de beber de Matthew. Ainda bem que não mencionou o fato de ele ser mulherengo. Já se tornou impossível levar Matthew a uma reunião sem que a filha mais velha dos anfitriões, ou mesmo a esposa do anfitrião, não precise se trancar em algum lugar como medida de segurança. Pode preparar-me o banho?

William ficou na banheira mais de meia hora, e Kate pre­cisou arrastá-lo de lá de dentro antes que pegasse no sono. Ape­sar de Kate tê-lo apressado, chegaram à casa de MacKenzie com atraso de vinte minutos, a tempo de surpreender Matthew, já a caminho da embriaguez, tentando seduzir a esposa de um deputado. William quis intervir, mas foi dissuadido por Kate.

– Não diga nada — murmurou.

– Não posso ficar aqui parado vendo-o destruir-se na minha frente — disse William. — É o meu melhor amigo. Tenho de fazer alguma coisa.

Por fim, ele acatou o conselho de Kate e passou uma noite desagradável, vendo Matthew ir se embebedando pouco a pouco. Tony Simmons, no outro extremo da sala, olhava de maneira penetrante para William, que, aliviado, viu Matthew sair cedo, acompanhado da única mulher solitária da festa. Após a partida de Matthew, William sentiu-se mais tranqüilo.

— Como tem passado o pequeno Richard? — perguntou Andrew MacKenzie.

— Ele não consegue falar "três" — respondeu William.

— Talvez tenha tendência para alguma coisa civilizada — comentou o dr. MacKenzie.

— Justamente o que pensei — disse Kate. — Olhe que ótima idéia, William: ele poderá ser médico.

— Sem dúvida alguma — disse Andrew. — Não conheço médicos que saibam contar além de dois.

— A não ser quando nos mandam suas contas — retrucou William.

Andrew riu.

— Kate, aceita outro drinque?

— Não, obrigada, Andrew. Já estamos de saída. Se nos de­morarmos, é provável que só restem Tony Simmons e William, e ambos conseguem contar além de dois. Já imaginou passar o resto da noite conversando sobre assuntos bancários?

— Tem toda a razão — disse William. — Obrigado, An­drew, por esta excelente reunião. A propósito, peço-lhe desculpas pelo comportamento de Matthew.

— Mas por quê? — perguntou o dr. MacKenzie.

— Ora, Andrew. Ele não só estava bêbado, como nenhuma das mulheres aqui presentes sentiu-se tranqüila em ficar sozinha com ele.

— Eu faria o mesmo se estivesse na situação dele — disse o médico.

— Por que diz isso? — perguntou William. — Não pode desculpar o comportamento dele apenas porque ele é solteiro.

— Não, claro que não, mas procuro entendê-lo e imaginar que, com um problema como o dele, até eu poderia ser meio irresponsável.

— Não entendo — observou Kate.

— Deus do céu! — disse o dr. MacKenzie. — Ele é o seu melhor amigo e não lhe contou?

— Contou o quê? — disseram os dois ao mesmo tempo.

O dr. MacKenzie fitou-os, um ar de descrença estampado no rosto.

— Venham comigo ao meu escritório.

William e Kate acompanharam o médico até uma saleta for­rada de livros de medicina, intercalados por fotografias não emol­duradas dos seus tempos de estudante da Cornell.

– Kate, sente-se, por favor — disse. — William, não me desculpo pelo que vou dizer agora, porque achei que soubesse que Matthew sofre de uma doença bastante grave, com efeito, uma doença mortal. Ele está com o mal de Hodgkin. Matthew sabe disso há mais de um ano.

William caiu sentado na cadeira, por alguns segundos inca­pacitado de falar.

— Mal de Hodgkin?

— Uma inflamação e dilatação dos gânglios linfáticos, quase sempre fatal — explicou o médico num tom formal.

Pasmo, William balançou a cabeça negativamente.

— Por que ele não me contou?

— Vocês se conhecem desde os tempos de colégio. Acho que é o orgulho de Matthew que o impede de sobrecarregar os outros com seus problemas. Prefere morrer sozinho a que saibam do que está sofrendo. Nestes últimos seis meses, pedi-lhe que contasse ao pai, e, por certo, quebrei minha promessa profissional contan­do a vocês, William, como o faço agora, mas apenas para que não continue a responsabilizá-lo por algo sobre o que ele não possui o menor controle.

— Obrigado, Andrew — disse William. — Como pude ser tão cego e tão estúpido?

— Não vá culpar-se agora — disse o dr. MacKenzie. — Não havia como saber.

– Tem certeza de que não há esperança? Não existem clínicas, especialistas? Dinheiro não seria problema e...

— O dinheiro não compra tudo, William, e eu mesmo já consultei os três melhores especialistas dos Estados Unidos, além de um da Suíça. Infelizmente, todos concordam com o meu diag­nostico e a ciência médica não descobriu ainda a cura para o mal de Hodgkin.

– Quanto tempo lhe resta de vida? — perguntou Kate, a voz quase sufocada.

– Seis meses no máximo, mais provavelmente três.

– E eu pensando que eu é que tinha problemas — murmu­rou William. Apertou fortemente a mão de Kate, como se nela estivesse a salvação. — Precisamos ir, Andrew. Obrigado por nos ter contado.

— Ajude-o de todas as maneiras possíveis — disse o médico —, mas, pelo amor de Deus, seja compreensivo. Deixe-o fazer o que bem entender. São os últimos meses de Matthew, não os seus. E que nunca ele venha a descobrir que eu lhe contei a ver­dade.

William dirigiu o carro em silêncio. Tão logo entraram na Red House, William telefonou para a mulher com quem Mat­thew saíra da festa.

— Posso falar com Matthew Lester?

— Ele não está aqui — respondeu ela, a voz um tanto irri­tada. — Ele me arrastou para o Revue Club, mas, quando chega­mos lá, estava bêbado demais. Recusei-me a ficar com ele. — E desligou.

O Revue Club... William tinha uma vaga lembrança de ter visto o luminoso oscilando numa barra de ferro, mas não con­seguia lembrar-se exatamente onde ficava o lugar. Verificou na lista telefônica, avançou com o carro em direção à zona norte da cidade e, afinal, depois de perguntar a um transeunte, localizou o clube. Bateu à porta. O postigo abriu-se.

— O senhor é sócio?

— Não — respondeu William com firmeza, e enfiou uma nota de dez dólares através da grade.

O postigo fechou-se, a porta se abriu. William entrou e pa­rou no meio da pista de dança, sentindo-se esquisito dentro do elegante terno de banqueiro. Os casais que dançavam entrelaça­dos giravam à sua volta, sem perturbar-se com a sua presença. Os olhos de William através da nuvem de fumaça que envolvia o salão buscaram Matthew, mas ele não se achava ali. Repenti­namente, William teve a impressão de reconhecer uma das mo­ças que haviam saído com ele recentemente, uma que, tinha quase certeza, vira saindo do apartamento do amigo numa certa manhã. Ela estava sentada, com as pernas cruzadas, a um canto recuado, na companhia de um marinheiro. William se encaminhou para lá.

— Desculpe-me, senhorita.

Ela voltou-lhe os olhos, mas, era evidente, não o reconheceu.

— A dama está comigo, caia fora — disse o marinheiro.

— Viu Matthew Lester?

— Matthew? Que Matthew?

– Eu disse pra você dar o fora — tornou o marinheiro, pondo-se de pé.

– Se disser mais alguma coisa — disse William —, parto sua cara.

O marinheiro que já vira aquele ódio nos olhos de outro homem, e lembrando-se de que quase perdera um olho por aceitar o desafio, preferiu sentar-se de novo.

– Onde está Matthew?

– Ah, benzinho, sei lá eu de Matthew! — Também ela se sentia atemorizada.

– Um metro e oitenta, loiro, vestido assim como eu, e, provavelmente, bêbado.

– Oh, você fala de Martin. O nome dele aqui é Martin, benzinho, não Matthew. — A moça estava mais tranqüila agora. – Bem, deixe-me ver, com quem ele saiu hoje? — Girou a cabeça em direção ao bar e gritou para o rapaz que estava atrás do balcão: — Terry, com quem Martin saiu hoje à noite?

O rapaz tirou o toco de cigarro do canto da boca.

— Jenny — disse, e pôs o cigarro apagado no mesmo lugar.

— Jenny, isso mesmo — disse a moça. — Agora, deixe-me ver, Jenny é apressadinha. Um cara nunca fica com ela mais que meia hora, acho que eles voltam logo.

— Obrigado — disse William.

Ele esperou quase uma hora sentado diante do balcão, to­mando um uísque aguado, sentindo-se a cada minuto mais deslo­cado. De súbito, o rapaz do balcão, que ainda mantinha o cigarro apagado no canto da boca, fez um gesto indicando a mulher que acabara de entrar.

— Jenny é aquela — informou.

Matthew não estava com ela.

Com um sinal, o rapaz chamou-a ao balcão. Jenny, magra, baixa, morena e de certa forma atraente, piscou para William e, ondulante, aproximou-se dele.

– Esperando por mim, benzinho? Agora estou aqui só pra você. Dez dólares, meia hora.

– Não, não quero você — respondeu William.

— Que encantador! — disse Jenny.

– Procuro o homem que esteve com você: Matthew, digo, Martin.

– Martin estava bêbado demais pra levantar, nem com um guindaste. Mas me pagou os dez dólares. Sempre me paga. É de fato um cavalheiro.

— Onde ele foi? — perguntou William, impaciente.

— Não sei. Estava chateado e saiu andando por aí. Pra casa, acho.

William saiu para a rua. O vento gélido feriu-lhe o rosto, mas ele não precisava ser reanimado. Afastou-se do clube rodan­do o carro devagar, fazendo o caminho que levava ao apartamento de Matthew, olhando atentamente cada pessoa que passava. Al­gumas, apressadas, intrigadas por seu olhar penetrante; outras tentavam entabular uma conversa. Ao passar em frente a um café que costumava ficar aberto a noite inteira, através da vidra­ça avistou Matthew, trançando as pernas entre as mesas com uma xícara na mão. William estacionou o carro, entrou no café e sen­tou-se ao lado dele. Matthew debruçara-se sobre uma mesa, ten­do ao lado a xícara de café entornado e intocado. De tão bêbado, não reconheceu William.

— Matthew, sou eu — falou William, fitando o homem encolhido sobre si mesmo. As lágrimas começaram a descer pelas suas faces.

Matthew ergueu a cabeça para olhá-lo, esparramando o resto de café que sobrara na xícara.

— Ô meu velho, você está chorando. Perdeu a mulher, foi?

— Não, meu amigão — disse William.

— Está cada vez mais difícil conseguir uma mulher.

— Sei disso — falou William.

— Tenho um amigo do peito — disse Matthew, enrolando as palavras. — Ele sempre me apoiou, mas hoje, pela primeira vez, discutimos. Culpa minha, eu sei. Sabe, falhei feio com ele.

— Não falhou, não — disse William.

— Como é que pode saber? — perguntou Matthew, irrita­do. — Você não merece nem conhecê-lo.

— Vamos para casa, Matthew.

— Meu nome é Martin — disse Matthew.

— Desculpe, Martin, vamos embora para casa.

— Não, quero ficar aqui. Vem uma garota aí mais tarde. Acho que agora estou preparado.

— Em casa tenho um uísque velho e muito bom — disse William. — Por que não vem comigo?

— Tem mulher lá?

— Sim, uma porção delas.

— Se é assim, eu vou.

William suspendeu Matthew e segurou-o por debaixo do braço, guiando-o devagar pelo salão em direção à porta. Só então notou o quanto Matthew era pesado. Quando passaram por dois policiais, sentados no canto do balcão, William ouviu um deles dizer ao outro:

– Lá vão as bichinhas.

William ajudou Matthew a entrar no carro e o levou a Beacon Hill. Kate os esperava.

– Devia ter se deitado, querida.

– Não consegui dormir. Acho que ele está fora de si.

– Essa é a mulher que me prometeu — disse Matthew.

– É, sim, ela vai cuidar de você — disse William, e, com a ajuda de Kate, levou-o para o quarto de hóspedes e deitou-o na cama.

Kate começou a despi-lo.

— Não vai tirar a roupa também, querida? — disse. — Paguei dez dólares.

— Depois que você se deitar — respondeu Kate branda­mente.

— Por que essa carinha de tristeza, bela dama? — per­guntou Matthew.

— Porque o amo — disse Kate, sentindo que as lágrimas lhe brotavam dos olhos.

— Não chore, não — disse Matthew —, não há por que chorar. Desta vez vou conseguir, vai ver só.

Depois que Matthew estava despido, William cobriu-o com um lençol e um cobertor. Kate apagou a luz.

— Você prometeu vir deitar-se comigo — disse Matthew, com voz de sono.

Ela fechou a porta sem fazer ruído.

William dormiu sentado numa cadeira do lado de fora do quarto, temendo que Matthew acordasse de madrugada e tentasse ir embora. Kate acordou-o pela manhã, antes de levar café a Matthew.

– Kate, o que estou fazendo aqui? — foram as primeiras palavras de Matthew.

– Veio conosco para cá, depois que saímos da festa de Andrew MacKenzie ontem à noite — respondeu Kate, com a voz fraca.

— Não, não vim, não. Fui ao Revue Club com aquela mu­lher horrível. Patrícia qualquer coisa, ou sei lá quem, que se recusou a ficar comigo. Meu Deus, sinto-me um bagaço. Posso tomar um suco de tomate? Não quero ser insociável, mas a última coisa que farei é comer de manhã.

— Naturalmente, Matthew.

William entrou no quarto. Matthew ergueu os olhos para ele. Em silêncio, entreolharam-se.

— Você sabe, não sabe? — perguntou Matthew, repentina­mente.

— Sei — respondeu William —, e me comportei como um idiota. Espero que me perdoe.

— Não chore, William. Não o vejo fazer isso desde os doze anos, quando Covington estava batendo em você e eu precisei tirá-lo de cima de você. Lembra-se? O que será que Covington anda fazendo agora? Talvez esteja cuidando de um bordel em Tijuana; ele nasceu para isso. Mas veja, se Covington for o ge­rente, o lugar deve ser excelente. Leve-me para lá. Não chore, William. Gente grande não chora. Nada poderá ser feito. Con­sultei especialistas de Nova Iorque, de Los Angeles, até de Zuri­que. Eles não podem fazer nada. Importa-se se não for trabalhar de manhã? Estou me sentindo meio indisposto. Acorde-me se dormir demais ou der algum trabalho, que eu vou para casa.

— Sua casa é aqui — disse William.

A expressão de Matthew transformou-se.

— William, pode contar a meu pai? Não posso encará-lo. Você também é filho único, compreende o problema.

— Sim, eu conto — disse William. — Amanhã vou a Nova Iorque e conto, desde que me prometa ficar com Kate e comigo. Não o impedirei de beber, se é o que quer, ou de possuir quantas mulheres quiser, mas precisa ficar aqui.

— William, essa foi a melhor proposta que recebi ultima­mente. Agora acho que vou dormir um pouco mais. Ando muito cansado.

William esperou Matthew cair num sono pesado e tirou o copo semi vazio de sua mão. Uma mancha de tomate avermelhava o lençol.

— Não morra — disse calmamente. — Por favor, Matthew, não morra. Esqueceu-se de que você e eu vamos dirigir o maior banco da América?

Na manhã seguinte, William procurou Charles Lester em Nova Iorque. Ao saber da notícia, o homem pareceu envelhecer de repente e encolheu-se em sua cadeira.

– Obrigado, William, por ter vindo me contar pessoal­mente. Quando Matthew parou de me fazer as visitas mensais, imaginei que alguma coisa ia mal. Eu o verei todos os fins de semana. Ele ficará com você e Kate, e eu tentarei não demons­trar o quanto a notícia me feriu. Deus sabe o que ele fez para merecer isso. Desde que minha esposa faleceu, fiz tudo por Matthew, e agora nada do que construí ficará com ele. Susan não se interessa pelo banco.

— Vá a Boston quando desejar, senhor. Será sempre bem recebido.

— Obrigado, William, por tudo o que tem feito por Matthew.

O velho fitou William demoradamente.

— Gostaria que seu pai estivesse vivo e visse quanto o filho dele merece o nome Kane. Se ao menos eu pudesse ocupar o lugar de Matthew e deixá-lo viver...

— Devo voltar logo, senhor.

— Oh, sim, naturalmente. Diga-lhe que recebi a notícia de uma forma corajosa. Não diga nada em contrário.

— Sim, senhor.

William retornou a Boston à noite. Matthew continuara na casa em companhia de Kate, e, sentado na varanda, lia o mais recente sucesso da literatura norte-americana, ... E o vento levou. Ergueu os olhos quando William abriu as portas envidraçadas e passou.

– Como foi que meu velho recebeu a notícia?

— Ele chorou — disse William.

– O Presidente do Lester chorou? — disse Matthew. — Que os acionistas nunca saibam disso.

Matthew parou de beber e entregou-se ao trabalho até os últimos dias. William admirou-o pelo esforço, mas aos poucos foi conseguindo dele maior moderação. Matthew dava conta de todo o trabalho e, ao final do dia, provocava William verificando-lhe a correspondência. Durante a noite, antes da ceia, Matthew jogava tênis ou competia com ele no remo.

– Saberei que estou morto quando não puder mais derrotá-lo – motejou.

Matthew não se internou no hospital, preferindo ficar na Red House. As semanas arrastavam-se, mas, para William, preci­pitavam-se. Ele acordava todas as manhãs com o receio de que Matthew já não estivesse vivo.

Matthew morreu numa sexta-feira, sem ter lido as quarenta páginas finais de ... E o vento levou.

 

O funeral foi em Nova Iorque, e William e Kate ficaram ao lado de Charles Lester. No espaço de seis meses, ele se conver­tera num homem envelhecido, e, de pé diante dos túmulos da esposa e do único filho, confessara a William não ver mais sen­tido em continuar vivo. William nada comentou; nenhuma palavra sua aliviaria o sofrimento desse pai. William e Kate voltaram a Boston no dia seguinte. Sem Matthew, a Red House enchera-se de um vazio perturbador. Os últimos meses haviam sido ao mes­mo tempo os mais felizes e infelizes da vida de William. A morte viera para aproximá-lo intimamente, tanto de Matthew quanto de Kate, coisa que a vida normal não lhe teria propiciado.

Ao retornar ao banco após a morte de Matthew, William viu-se impossibilitado de readaptar-se à rotina normal. Levanta­va-se e dirigia-se para a sala de Matthew, a quem antigamente pediria um conselho, com quem daria boas gargalhadas. Simples­mente, procurava confirmar-lhe a existência — mas ele já não estava mais lá. Passaram-se semanas até que William abandonasse tal hábito.

Tony Simmons mostrava-se compreensivo, o que lhe era de pouca valia. William perdera todo o interesse pelas atividades bancárias, até mesmo pelo Kane & Cabot, atravessando meses a ruminar o remorso pela morte de Matthew. Sempre acreditara que ele e Matthew cresceriam juntos e juntos cumpririam um destino comum. Ninguém ousava comentar que a qualidade do desempenho de William deixara de corresponder aos altos padrões usuais. A própria Kate preocupava-se com William, horas e horas entregue à solidão.

Certa manhã, ao despertar, Kate o viu sentado na beira da cama, a fitá-la intensamente. Ela abriu e fechou as pálpebras, sonolenta.

— O que é, meu bem?

— Nada, apenas estou olhando a minha maior riqueza, certificando-me de que não será eterna.

 

No final de 1932, os Estados Unidos ainda se debatiam contra a Depressão. Abel começou a preocupar-se com o futuro do Grupo Baron. Nos dois últimos anos, dois mil bancos tinham falido, e a cada semana muitos outros fechavam as portas. Nove milhões de pessoas estavam desempregadas, uma situação cuja única vantagem era assegurar a Abel a possibilidade de manter em seus hotéis um pessoal altamente profissionalizado. Entretanto, o Grupo Baron perdera setenta e dois mil dólares num ano para o qual ele previra a estabilização financeira, e Abel perguntava a si mesmo se os fundos e a paciência de seu financiador suporta­riam durante mais algum tempo.

Abel começara a tomar um interesse ativo na política du­rante a bem-sucedida campanha de Anton Cermak, candidato a prefeito de Chicago. Cermak convencera Abel a entrar para o Partido Democrata, que havia lançado uma virulenta campanha contra a lei seca; Abel apoiou Cermak sem reservas, visto que o proibicionismo prejudicava o negócio de hotelaria. O fato de o próprio Cermak ser um imigrante, vindo da Tchecoslováquia, criou uma estreita e imediata ligação entre os dois homens, e Abel, com prazer, viu-se escolhido como delegado da convenção demo­crata, que ocorreu nesse ano e onde Cermak conseguiu pôr aos seus pés uma multidão de eleitores ao pronunciar as seguintes palavras: "É verdade, não vim para cá no Mayflower, mas foi para cá que vim tão logo pude".

Na convenção, Cermak apresentou Abel a Franklin Delano Roosevelt, que o impressionou de maneira inesquecível. Roosevelt ganhou sem dificuldades as eleições, e, em todo o país, colocou na administração os candidatos democratas. Um dos vereadores recém-eleitos para a Câmara de Chicago fora Henry Osborne. Quando Anton Cermak, semanas mais tarde, foi morto por uma bala assassina destinada a Franklin D. Roosevelt, Abel resolveu contribuir, com grande quantidade de tempo e de dinheiro, para a causa dos democratas poloneses de Chicago.

Durante o ano de 1933, o banco perdera apenas vinte e três mil dólares, e um dos hotéis, o Baron de St. Louis, realmente apresentou lucros. Quando o presidente Roosevelt dirigiu à nação a primeira de suas "conversas ao pé do fogo", em 12 de março, exortou os compatriotas a uma vez mais terem fé nos Estados Unidos; Abel, com a esperança fortalecida, decidiu rea­brir os dois hotéis que havia fechado no ano anterior.

Zaphia mostrava-se cada vez mais intolerante com as longas viagens de Abel a Charleston e a Mobile, para cuidar dos dois hotéis. Nunca desejara que ele fosse algo mais que o subgerente do Stevens, um posto cujo ritmo tinha condições de acompanhar. Tal ritmo, porém, agora se acelerava a cada mês, levando-a a tomar consciência de que começara a ficar para trás em relação às ambições de Abel, que, temia, parecia ir perdendo o interesse por ela.

Zaphia começara também a preocupar-se com o fato de não ter filhos, e, consultando médicos, certificou-se de que nada a impedia de engravidar. Certo médico sugeriu-lhe que Abel tam­bém se submetesse a um exame, mas Zaphia, escrupulosa, ponde­rou que a menor menção do assunto seria interpretada por ele como uma ofensa à sua virilidade. Finalmente, após a questão ter sido protelada a ponto de dificultar um entendimento, Zaphia constatou irregularidade no seu período menstrual. Esperançosa, aguardou a passagem de um mês antes de contar o fato a Abel ou mesmo de consultar o médico. Este confirmou-lhe que, afinal, engravidara. Para alegria de Abel, Zaphia deu à luz uma menina no dia do ano-novo de 1934. Batizaram-na de Florentyna em homenagem à irmã dele. Estonteado, Abel pôs os olhos admira­dos sobre a criança, e, a partir desse instante, Zaphia compreen­deu que deixara de ser o primeiro amor da vida dele. George e o primo de Zaphia foram os kums da menina, e Abel ofereceu um jantar polonês tradicional de dez pratos na noite do batismo. Foram oferecidas à criança centenas de presentes, inclusive um anel, de rara antigüidade e beleza, enviado pelo financiador de Abel, que pôde retribuir o presente quando, no final do ano, o Grupo Baron apresentou um lucro de sessenta e três mil dólares. Apenas o Baron de Mobile continuava perdendo dinheiro.

Após o nascimento de Florentyna, Abel passava grande parte do tempo em Chicago, o que o levou a concluir ter chegado o momento de construir ali também um Baron Hotel. Os hotéis da cidade prosperavam graças às conseqüências do mercado mun­dial. Abel pretendia fazer do novo hotel o capitânia do grupo em memória de Davis Leroy. A companhia ainda era proprietária do terreno da Michigan Avenue em que se erguera o antigo Rich­mond, e, embora tivesse recebido diversas ofertas de compra,

Abel o conservava, na esperança de um dia atingir condições que lhe permitissem reconstruir o hotel. O projeto requeria capital, e Abel resolveu empregar os setecentos e cinqüenta mil dólares recebidos da companhia de seguros na realização das primeiras obras. Tão logo formulou os planos, conversou com Curtis Fenton sobre suas intenções. Fazia uma única ressalva: se David Maxton não queria um rival para o Stevens, estaria disposto a renunciar a todo o projeto; na sua opinião, era o mínimo que poderia fazer naquelas circunstâncias. Poucos dias mais tarde, Curtis Fenton comunicou-lhe que o financiador estava satisfeito com a idéia de um Baron Hotel em Chicago.

Com a colaboração do vereador Henry Osborne, que, com a sua influência junto à Câmara, obtivera o alvará de licença em tempo recorde, a obra ficou pronta em doze meses. O edifício foi inaugurado em 1936 pelo prefeito de Chicago, Edward J. Kelly, que, após a morte de Anton Cermak, tornara-se o principal organizador da máquina democrata. Em memória de Davis Leroy, o hotel não tinha "décimo sétimo" andar — característica tam­bém de cada novo Baron que Abel veio a construir.

Os dois senadores de Illinois estiveram presentes e discur­saram para os dois mil convidados. Era soberbo o Baron de Chicago, tanto no projeto quanto no acabamento. Mais de um milhão de dólares haviam sido investidos no hotel, e a impressão que se tinha era a de que cada dólar fora aplicado criteriosa­mente. Os salões públicos, vastos e suntuosos, de teto alto reves­tido de estuque, receberam ornamentos em tons azuis matizados de verde, agradáveis e tranqüilizantes. A letra B verde-escura fora trabalhada em relevo, muito discreta, porém onipresente, adornando desde a bandeira a drapejar no topo do edifício de quarenta e dois andares até a lapela do mais jovem dos mensa­geiros.

Este hotel traz a marca distintiva do sucesso — afirmou Hamilton Lewis, senador de Illinois —, e isso porque, senhores, é o homem e não o edifício que será sempre conhecido como o "Barão de Chicago".

Abel sorriu com indisfarçada satisfação, enquanto os dois mil convidados ratificavam com aplausos as palavras do orador.

Ao apresentar seus agradecimentos, Abel falou de maneira sucinta, expressando-se com segurança e recebendo calorosa ovação. Começava a sentir-se à vontade entre os ilustres homens de negócios e políticos. Zaphia andava de um lado para outro, es­quecida, durante a pródiga cerimônia: a situação era difícil demais para ela. Não compreendia nem se importava com o sucesso da carreira do marido; e, embora contasse com um guarda-roupa dos mais caros, vestia-se de maneira antiquada e sentia-se deslocada, ciente de que com isso aborrecia Abel. Ela parou ao lado do ma­rido, que conversava com Henry Osborne.

— Este é o ponto máximo de sua vida — dizia Henry, dando uns tapinhas nas costas de Abel.

— Ponto máximo... Mas acabei de fazer trinta anos — respondeu ele.

Quando Abel pôs um braço nos ombros de Henry, o flash de uma máquina fotográfica estourou. Ele sorriu, deliciando-se pela primeira vez com o prazer de ser visto como uma personali­dade pública.

— Vou encher o mundo de hotéis Baron — falou, alto e bom som, para que o repórter o ouvisse. — Quero tornar-me aqui nos Estados Unidos o que César Ritz foi na Europa. Agar­re-se a mim, Henry, e aprecie a cavalgada.

 

Na manhã do dia seguinte, durante o café, Kate chamou a atenção do marido para pequena notícia, na página 17 da Globe, que relatava a abertura do Baron de Chicago.

William sorriu ao ler. O Kane & Cabot dormira no ponto, fechando os ouvidos ao seu conselho de dar apoio financeiro ao Grupo Richmond. William constatava, satisfeito, que seu julga­mento sobre Rosnovski fora correto, embora o banco tivesse per­dido um ótimo negócio. Seu sorriso aumentou quando ele leu o cognome: "Barão de Chicago". De súbito, sentiu um mal-estar. Examinou a fotografia que acompanhava a notícia. Não se en­ganara. A própria legenda confirmava sua primeira impressão: Abel Rosnovski, presidente do Grupo Baron, em conversa com Mieczyslaw Szymczak, diretor da Comissão da Reserva Federal, e o vereador Henry Osborne.

William deixou cair o jornal sobre a mesa e ficou pensando alguns momentos. Assim que chegou ao banco telefonou para Thomas Cohen, dos escritórios Cohen, Cohen & Yablons.

– Sr Kane há quanto tempo! — Foram as primeiras pa­lavras de Thomas Cohen. - Causou-me tristeza saber do faleci­mento de seu amigo, Matthew Lester. E como vão passando sua esposa e seu filho... Richard, não e mesmo?

William sempre admirara a capacidade de Thomas Cohen de lembrar-se de nomes e de relacionamentos.

– Sim, isso mesmo. Vão bem, obrigado, sr. Cohen.

– Bem, sr. Kane, em que posso ajudá-lo desta vez? —

Thomas Cohen também lembrou-se de que William era um ho­mem de poucas palavras.

– Quero contratar, por intermédio do senhor, os serviços de um investigador de confiança. Não gostaria que meu nome fosse ligado a essa investigação, mas preciso que pesquisem de novo a vida de Henry Osborne. Tudo o que fez desde que saiu de Boston, e, em especial, que tipo de relação existe entre ele e Abel Rosnovski, do Grupo Baron.

— Sim — disse o advogado, depois de uma pausa.

— Pode dar-me alguma informação dentro de uma semana?

— Duas semanas, por favor, sr. Kane, duas.

— Dossiê completo em cima da minha mesa dentro de duas semanas, sr. Cohen?

— Duas semanas, sr. Kane.

Como de praxe, Thomas Cohen cumpriu a promessa, e, na manhã do décimo quinto dia, William tinha diante de si um re­latório completo. Leu-o com extrema atenção. Aparentemente, entre Abel Rosnovski e Henry Osborne não havia nenhum rela­cionamento comercial formal. Rosnovski, ao que parecia, via em Osborne um contato político útil, e nada mais que isso. Quanto a Osborne, saltara de emprego em emprego desde que saíra de Boston, terminando nos escritórios centrais da Companhia de Seguros contra Acidentes Great Western. Com toda a probabili­dade, foi desse modo que Osborne entrara em contato com Abel Rosnovski, visto que o antigo Richmond sempre fora segurado pela Great Western. Quanto ao incêndio do hotel, a seguradora inicialmente se recusara a pagar a Abel a indenização. Um certo Desmond Pacey, o gerente, fora condenado a dez anos de prisão por crime doloso, e por um momento suspeitou-se de que Abel estivesse implicado no ocorrido. Na falta de provas, pouco tempo depois a seguradora lhe pagara a soma de setecentos e cinqüenta mil dólares. Osborne, prosseguia o relatório, é agora vereador, e, sabe-se, ambicionava ser deputado. Recentemente, casara-se com a srta. Marie Axton, filha de um abastado proprietário de um laboratório farmacêutico, e até o momento não tinha filhos.

William releu o relatório com o intuito de certificar-se de que nada lhe escapara, nem mesmo o detalhe mais insignificante. Embora não lhe parecesse aconselhável entrar em contato com os dois homens, pressentiu que a associação entre Abel Rosnovski e Henry Osborne, que o odiavam por motivos diversos, era poten­cialmente perigosa. Enviou pelo correio um cheque a Thomas Cohen e solicitou-lhe que atualizasse trimestralmente os relató­rios, mas, à medida que transcorriam os meses e os informes trimestrais não revelavam nada de novo, deixou de preocupar-se, acreditando ter se impressionado indevidamente com a fotografia publicada no Globe de Boston.

 

Na primavera de 1937, Kate presenteou o marido com uma filha, a quem deram o nome de Virgínia. De novo William tro­cava fraldas, e estava a tal ponto fascinado pela little lady que todas as noites Kate a tirava de seus braços com receio de que depois ela não conseguisse pegar no sono. Richard, então com dois anos e meio, não deu muita importância à recém-chegada, mas o tempo e um soldadinho montado num cavalinho de ma­deira contribuíram para apaziguar-lhe o ciúme.

No final do ano, o departamento de William no Kane & Cabot obtivera um lucro vantajoso para o banco. Ele deixava a letargia a que se entregara desde a morte de Matthew e rapi­damente recuperava a reputação de sagaz investidor no mercado de valores. Até mesmo Smith, o especialista em "vendas a curto prazo", confessara ter apenas aperfeiçoado uma técnica desenvol­vida por William Kane, de Boston. A própria direção de Tony Simmons tornara-se para ele menos desagradável. Entretanto, in­timamente William inquietava-se com a perspectiva de que, en­quanto Tony Simmons não se aposentasse, e isso só ocorreria dali a quinze anos, não poderia assumir a presidência do banco. Ocor­reu-lhe a idéia de procurar trabalho em outro banco.

 

William e Kate habituaram-se a visitar Charles Lester em Nova Iorque um fim de semana por mês. Três anos após a morte de Matthew, o homem envelhecera acentuadamente. Comentava-se nos círculos financeiros que ele havia perdido todo o interesse pelo trabalho e só raramente era visto no banco. William per­guntava-se quanto tempo mais ele conseguiria viver quando, su­bitamente, três semanas mais tarde, foi informado do seu faleci­mento. William viajou para Nova Iorque e esteve presente aos funerais. Quase todos os conhecidos compareceram, inclusive c vice-presidente dos Estados Unidos, John Nance Garner. Termi­nado o funeral, William e Kate voltaram de trem para Boston, cônscios de que tinham acabado de perder o último vínculo com a família Lester.

Seis meses depois, William recebeu uma notificação de Sullivan e Cromwell, ilustres advogados de Nova Iorque, na qual lhe solicitavam que gentilmente comparecesse à leitura do testa­mento do falecido Charles Lester em seus escritórios da Wall Street. William decidiu ir, mais por lealdade à família Lester do que por curiosidade de saber o que o velho Charles Lester havia lhe deixado. Esperava receber uma pequena lembrança que o aproximasse permanentemente da memória de Matthew e que pudesse figurar ao lado do "Remo de Harvard", ainda pendu­rado na parede do quarto de hóspedes da Red House. Ansiava ainda pela oportunidade de reatar as relações com alguns mem­bros da família Lester, que conhecera quando passara com Matthew as férias do colégio e da faculdade.

Dirigindo um Daimler recentemente adquirido, William chegou a Nova Iorque na noite anterior à leitura do testamento e hospedou-se no Harvard Club. A leitura estava marcada para as dez horas em ponto da manhã seguinte. Ao entrar nos escri­tórios de Sullivan e Cromwell, William deparou, surpreso, com a presença de mais de cinqüenta pessoas. Muitas delas voltaram-se para olhá-lo tão logo ele deu os primeiros passos para cumpri­mentar os primos e as tias de Matthew, bem mais envelhecidos do que ele imaginara; concluiu que deveriam pensar o mesmo a seu respeito. Procurou com os olhos a irmã de Matthew, Susan, mas não a viu. Às dez horas, pontualmente, o sr. Arthur Crom­well entrou na sala acompanhado de um secretário, que carregava sob o braço uma pasta de couro acastanhado. Fez-se um silêncio carregado de expectativa. O advogado começou por explicar à assistência de futuros beneficiários que o conteúdo do testamento só estava sendo dado a conhecer seis meses após a morte de Charles Lester em atendimento à sua própria vontade: visto não ter um herdeiro da fortuna, o sr. Lester desejara que, após sua morte o pó assentasse antes de que suas intenções se fizessem co­nhecidas.

William estudou os rostos concentrados ao seu redor, atentos a cada palavra do advogado. Arthur Cromwell levou aproximada­mente uma hora para concluir a leitura do testamento. Depois de recitar a habitual doação testamentária aos membros da famí­lia, às instituições de caridade e à Universidade de Harvard, Cromwell revelou que Charles Lester dividira a fortuna pessoal entre todos os parentes, considerando-os segundo os graus de parentesco. Susan, a filha, ficava com a posse da maior parte dos bens, enquanto os cinco sobrinhos e as três sobrinhas receberiam cada qual uma parte eqüitativa do restante. Todo o dinheiro e todos os valores em ações seriam administrados pelo banco até que os herdeiros completassem trinta anos de idade. Outros pri­mos, tias e parentes distantes foram contemplados com pagamen­tos em dinheiro.

William ficou surpreso quando o sr. Cromwell anunciou:

— E assim ficam dispostos todos os bens conhecidos do falecido Charles Lester.

As pessoas agitaram-se ruidosamente em seus assentos, e um rumor nervoso quebrou o silêncio.

— Não termina aqui, porém, a última vontade e o testa­mento do sr. Charles Lester — prosseguiu o imperturbável advo­gado.

Todos aquietaram-se, receando um raio tardio e indesejável. O sr. Cromwell continuou: — Lerei as palavras do sr. Charles Lester: "Fui sempre da opinião de que um banco, assim como a sua reputação, depende dos indivíduos que nele trabalham. Como é do conhecimento de todos, minha vontade era que meu filho Matthew me sucedesse na presidência do Lester, mas sua morte trágica e prematura interpôs-se em nosso caminho. Até este momen­to, nunca antes revelei o nome da pessoa que escolhi como meu su­cessor no banco. Desejo, portanto, tornar pública a minha vontade de que William Lowell Kane, filho de um dos meus amigos mais queridos, o falecido Richard Lowell Kane, e no momento vice-presidente do Kane & Cabot, seja nomeado presidente do Lester's Bank and Trust Company na próxima reunião do conselho".

Seguiu-se um tumulto. Todos voltaram-se para procurar na sala o misterioso sr. William Lowell Kane, de quem poucos, com a exceção dos membros mais próximos da família Lester, tinham ouvido falar.

— Ainda não terminei — disse calmamente Arthur Crom­well.

Mais uma vez fez-se silêncio, enquanto os membros da as­sistência, prevendo a explosão de uma outra surpresa, trocavam olhares receosos. O advogado retomou a palavra.

– Todas as outorgas e a divisão das ações do Lester's Bank and Trust Company serão transmitidas na condição expressa de que os beneficiários votem no sr. Kane na próxima reunião anual do conselho e continuem a fazê-lo pelo menos durante os cinco anos seguintes, a não ser que o próprio sr. Kane declare não aceitar a presidência.

Sobreveio um novo tumulto. William desejou estar a quilô­metros de distância dali, sentindo-se delirantemente feliz e ao mesmo tempo percebendo que naquela sala era a pessoa mais de­testada.

– Isso conclui a última vontade e o testamento do falecido Charles Lester — disse o sr. Cromwell.

Mas foi ouvido somente pelos que se sentavam na primeira fila de cadeiras.

William ergueu os olhos. Susan Lester vinha na sua direção. Não era mais a menina gorduchinha, mas as sardas graciosas ha­viam permanecido. Ele sorriu para ela, que passou sem sequer tomar conhecimento de sua presença. William franziu o cenho.

Sem dar importância aos murmúrios, um homem encorpado e grisalho, usando terno de tecido riscado e uma gravata cinza-prata, aproximou-se rapidamente de William.

— É William Kane, não é, senhor?

— Sim, sou — respondeu William, irrequieto.

— Meu nome é Peter Parfitt — disse o desconhecido.

— O vice-presidente do banco — disse William.

— Correto, senhor — falou. — Não o conhecia pessoal­mente, apenas a sua reputação, e julgo-me um homem de sorte por ter me relacionado com seu distinto pai. O fato de Charles Lester tê-lo considerado o homem adequado para a presidência do banco é deveras auspicioso.

William nunca se sentira tão reconfortado em sua vida.

— Onde o senhor está hospedado aqui em Nova Iorque? — continuou Peter Parfitt, antes de que William lhe agradecesse.

— No Harvard Club.

– Esplêndido. Posso perguntar-lhe se dispõe de tempo para jantar comigo esta noite?

Eu havia planejado retornar a Boston esta noite — ex­plicou William —, mas creio que terei de ficar em Nova Iorque por mais alguns dias.

– Ótimo. Aguardo-o em casa, digamos, às oito horas em ponto.

O banqueiro entregou-lhe um cartão com o endereço escrito em letras cursivas e gravado em cobre.

— Terei prazer em conversar com o senhor num ambiente mais convidativo.

— Obrigado, senhor — disse William, guardando o cartão no bolso, enquanto outras pessoas começavam a cercá-lo. Algumas lançavam-lhe olhares francamente hostis; outras aguardavam o momento de cumprimentá-lo.

Quando, finalmente, William conseguiu retirar-se e voltar ao Harvard Club, telefonou para Kate e transmitiu-lhe as novas.

— Matthew ficaria feliz por você, querido — disse ela cal­mamente.

— Eu sei — disse William.

— Quando estará de volta?

— Só Deus sabe. Esta noite jantarei com o sr. Peter Parfitt, vice-presidente do banco de Lester. Ele foi bastante solícito co­migo, o que me torna a vida bem mais simples. Passarei a noite aqui no clube. Amanhã eu lhe telefono para dizer como estão indo as coisas.

— Está bem, querido.

— Tudo tranqüilo aí?

— Bem, nasceu o primeiro dente de Virgínia, e agora ela acha que merece atenção especial. Mandei Richard ir dormir mais cedo porque foi malcriado com a babá. E todos nós estamos com saudade de você.

— Ligo amanhã — disse William, rindo.

— Ligue, por favor. A propósito, meus parabéns. Concordo com a escolha de Charles Lester, mesmo detestando a idéia de morar em Nova Iorque.

Pela primeira vez, William tinha de pensar em mudar-se para Nova Iorque.

 

Às oito horas em ponto dessa noite, William chegou à casa de Peter Parfitt, na East 64th Street, e, tomado de surpresa, viu que o anfitrião vestira traje a rigor. Sentiu-se ligeiramente em­baraçado e desconfortável em seu terno escuro de banqueiro. Apressou-se em explicar à anfitriã que resolvera antecipar sua partida para Boston nessa noite. Diana Parfitt, que, soube depois, era a segunda esposa de Peter, não poderia ter sido mais encan­tadora para com seu hóspede, e, aparentemente, estava contente com o fato de William ter sido escolhido para ocupar a cadeira presidencial do banco de Lester. Durante o curso do excelente jantar, William não resistiu à tentação de perguntar a Peter Parfitt de que maneira, segundo a visão dele, o resto da diretoria reagiria aos desejos de Charles Lester.

– Todos estarão de acordo — disse Farritt. — Já tive a oportunidade de conversar com muitos deles. Na manhã de se­gunda-feira haverá uma reunião em que se confirmará sua escolha. Vejo apenas uma nuvem escura no horizonte.

– O quê? — perguntou William, não querendo parecer preocupado.

– Bem, entre mim e você ha um outro vice-presidente, Ted Leach, que, naturalmente, esperava ser nomeado presidente. Com efeito, indo um pouco mais longe, eu diria que ele chegara a antecipar essa nomeação. Todos nós sabíamos perfeitamente que isso jamais poderia ocorrer antes da leitura do testamento, mas Charles Lester parece ter chocado Ted com suas cláusulas.

— Ele quererá se opor a mim? — perguntou William.

— Receio que sim, mas não precisa se preocupar.

— Confesso — disse Diana Parfitt, examinando o suflê demasiado raso diante dela — que nunca simpatizei com esse homem.

— Minha querida — reprovou Parfitt —, não temos o di­reito de fazer comentários sobre Ted na ausência dele. Esperemos que o sr. Kane o julgue por si mesmo. Quanto a mim, não duvido de que o conselho confirmará a indicação do sr. Kane na reunião de segunda-feira, e creio mesmo ser possível que Ted Leach peça demissão.

— Não me faria bem saber que alguém se demitiu por minha causa — disse William.

— É um sentimento louvável, sr. Kane — observou Parfitt. - Mas não se aborreça com um mero golpe de vento. Confio em que a situação esteja sob absoluto controle. Amanhã o senhor voltará tranqüilamente para Boston e eu o manterei informado sobre o curso dos acontecimentos.

- Talvez fosse aconselhável que eu comparecesse ao banco pela manhã. Seus colegas não acharão um tanto estranho que eu não procure conhecê-los?

– Não, não. Dadas as circunstâncias, não acho nada aconselhável. De fato, o mais aconselhável é que o senhor não se ponha no caminho deles, pelo menos até segunda-feira, quando a reunião terá dado os seus frutos. Detestarão parecer menos independentes, e é provável que já se sintam como nobres ca­rimbos. Aceite meu conselho, Bill. Vá para Boston, e na segun­da-feira, antes do meio-dia, receberá notícias minhas.

Com relutância, William aceitou a sugestão de Peter Parfitt e continuou com eles uma agradável conversa sobre em que lugar ele e Kate deveriam ficar em Nova Iorque antes de encon­trar uma moradia permanente. Com certa surpresa, William no­tou que Peter Parfitt parecia não querer discutir seus próprios pontos de vista sobre atividades bancárias, o que, deduziu, talvez se devesse à presença de Diana Parfitt. A ótima noite terminou com um relativo excesso de doses de conhaque, e William só retornou ao Harvard Club por volta da uma hora da madrugada.

 

Tão logo chegou a Boston, William informou Tony Simmons dos fatos ocorridos em Nova Iorque, visto que não dese­java que ele viesse a saber da designação através de nenhuma outra pessoa. Tony revelou-se surpreendentemente otimista com respeito à notícia.

— Lamento que esteja nos deixando, William. O Lester pode ser duas ou três vezes mais importante que o Kane & Cabot, mas não teremos como substituí-lo, e espero que reflita com muito cuidado antes de aceitar a designação.

William ficou pasmo, e não conseguiu ocultar sua surpresa.

— Francamente, Tony, pensei que você se sentiria feliz de me ver pelas costas.

— William, quando você acreditará que, em primeiro lu­gar, meu interesse foi sempre o banco, e que em tempo algum duvidei que você seja um dos maiores consultores de investi­mentos dos Estados Unidos de hoje? Se sair do Kane & Cabot agora, muitos dos mais importantes clientes do banco evidente­mente quererão acompanhá-lo.

— Eu jamais transferiria meu próprio dinheiro para o banco de Lester — disse William —, e não acredito que os clientes do banco me acompanhariam se eu o fizesse.

— Naturalmente, você não pediria a eles que o fizessem, William, mas alguns deles insistirão que você continue a admi­nistrar suas carteiras. A exemplo de seu pai e de Charles Lester, eles acreditam, e corretamente, que o negócio bancário depende de pessoas e de reputação.

 

William e Kate passaram um fim de semana tenso, aguar­dando a segunda-feira, e com ela o resultado da reunião do con­selho em Nova Iorque. Durante toda a manhã da segunda-feira, William trabalhou com os nervos à flor da pele, atendendo ele mesmo a todos os telefonemas; mas a manhã foi se arrastando, até que a tarde chegou sem que ele tivesse recebido notícia al­guma. William não saiu da sala na hora do almoço, até que final­mente pouco depois das dezessete horas, Peter Parfitt telefonou-lhe.

– Bill, lamento, mas houve alguns imprevistos — come­çou ele.

O coração de William ameaçou parar.

— Não há nada com que deva se preocupar, visto que, acredito, a situação continua sob controle. Ocorre, porém, que o conselho reivindicou o direito de impugnar sua nomeação apre­sentando seu próprio candidato. Alguns dos membros levantaram aspectos legais, chegando ao ponto de dizer que a cláusula perti­nente do testamento não tem validade real. Incumbiram-me da desagradável tarefa de convidá-lo a competir com o candidato do conselho.

— Quem será o candidato do conselho? — perguntou Wil­liam .

— Nenhum nome foi mencionado até o momento, mas creio que será Ted Leach. Ninguém demonstrou interesse em concorrer com você.

— Preciso de um pouco de tempo para pensar — respondeu William. — Quando será a próxima reunião?

— Dentro de uma semana — disse Parfitt. Mas não se deixe perturbar por Ted Leach. Confio em que você o derrotará. Eu o informarei de quaisquer alterações no decorrer da semana.

— Peter, não acha melhor que eu vá a Nova Iorque?

— Não, não por ora. Ao meu ver, isso em nada ajudaria.

William agradeceu-lhe e desligou o telefone. Pegou a pasta de couro e deixou a sala, sentindo-se de certa forma deprimido. Tony Simmons, carregando uma valise, encontrou-o no estaciona­mento privativo.

— Tony, não sabia que estava saindo da cidade.

— Estou indo para o jantar mensal dos banqueiros em Nova Iorque. Amanhã à tarde estarei de volta. Não temo abandonar o Kane & Cabot por vinte e quatro horas, uma vez que ele estará nas mãos hábeis do futuro presidente do Lester.

William riu.

— Talvez eu já seja o ex-presidente — disse, e relatou os últimos acontecimentos. Mais uma vez, William surpreendeu-se com o comportamento de Tony Simmons.

— É verdade que Ted Leach sempre desejou tornar-se pre­sidente do banco de Lester — observou com ar meditativo. — Os círculos financeiros sempre souberam disso. Mas como ele sem­pre foi um funcionário leal, custa-me acreditar que se opusesse à vontade expressa de Charles Lester.

— Não sabia que você o conhecia — disse William.

— Oh, não o conheço bem — disse Tony. — Quando estudávamos em Yale, estava um ano na minha frente, e hoje nos vemos de vez em quando, no encontro dos banqueiros. Aliás, como presidente, você se verá obrigado a freqüentar esses mal­ditos jantares. Hoje à noite ele estará lá. Se quiser, posso con­versar com ele.

— Sim, por favor, mas com cautela, está bem?

— Meu caro William, você passou quase dez anos acusando-me de ser por demais cauteloso.

— Desculpe-me, Tony. É curioso como o julgamento de uma pessoa se ofusca quando ela se defronta com problemas pessoais, por mais seguro que esse mesmo julgamento possa ser ao se lidar com estranhos. Ponho minha vida nas suas mãos, e disponho-me a seguir seus conselhos.

— Muito bem, deixe por minha conta. Verei o que Leach pensa de tudo isso e ligarei para você amanhã, sem falta.

Poucos minutos depois da meia-noite, Tony telefonou de Nova Iorque, acordando William de um sono profundo.

— Acordei-o, William.

— Sim, quem está falando?

— Tony Simmons.

William acendeu a luz do abajur da cabeceira da cama e lançou um olhar para o despertador. Meia-noite e dez.

— Não ia me ligar pela manhã?

Tony riu.

— Receio que a notícia que vou lhe dar não seja muito agradável. O candidato à presidência do banco de Lester, seu oponente, portanto, chama-se Peter Parfitt.

— O quê? — disse William, despertando realmente.

— Ele vem tentando convencer o conselho a apoiá-lo con­tra você. Ted Leach, confirmando minhas suspeitas, concorda com a sua designação. Acontece que o conselho dividiu-se ao meio.

– Com os diabos! Em primeiro lugar, Tony, quero agra­decer a você. Em segundo, só uma pergunta: o que devo fazer?

– Se quer ser o próximo presidente do Lester's Bank, corra já para cá, antes que os membros do conselho comecem a perguntar por que você anda escondido aí em Boston.

– Escondido?

– É o que Parfitt tem dito aos diretores nos últimos dias.

– Que filho da puta! Bastardo!

– A propósito, nada posso assegurar sobre a ascendência legítima de Parfitt.

William deu uma risada.

– Venha já e hospede-se no Yale Club. — Discutiremos a questão amanhã cedo.

— Chegarei o mais depressa possível — disse William.

— Talvez eu esteja dormindo quando você chegar. Será a sua vez de me acordar.

William pôs o fone no gancho e voltou-se para Kate, que felizmente ignorava seus novos problemas. Continuara adorme­cida durante toda a conversa. Como ele gostaria de conseguir o mesmo! Bastava a agitação de uma cortina soprada pelo vento para acordá-lo. Provavelmente dormiria bem após aquela segunda batalha. Rabiscou algumas linhas de explicação a Kate e colocou o bilhete no criado-mudo ao seu lado. Vestiu-se, fez a mala — dessa vez não esqueceu o traje a rigor — e partiu para Nova Iorque.

As estradas estavam vazias, e, no seu novo Daimler, a via­gem demorou apenas cinco horas. Entrou na cidade de Nova Iorque juntamente com os varredores, carteiros, jornaleiros e o sol da manhã. Registrou seu nome no Yale Club quando o re­lógio do saguão dava uma badalada. Eram seis horas e quinze minutos. Desfez a mala e resolveu descansar durante uma hora, antes de acordar Tony. E ele mesmo foi acordado por uma batida insistente na porta. Ainda sonado, levantou-se, abriu a porta e deparou com Tony Simmons.

— Belo roupão, William — disse Tony, com os dentes à mostra.

Já estava vestido socialmente.

— Devo ter adormecido. Se puder esperar um minuto, saio com você — disse William.

— Não, não, tenho que pegar o trem para Boston. Tome um banho de chuveiro e vista-se. Conversaremos enquanto isso.

William entrou no banheiro e deixou a porta aberta.

— Bem, seu grande problema... — começou Tony.

William enfiou a cabeça pela porta do boxe.

— O barulho da água não me deixa ouvi-lo.

Tony esperou que ele desligasse o chuveiro.

— Seu grande problema é Peter Parfitt. Tinha certeza de que seria o próximo presidente e que o nome dele constaria do testamento de Charles Lester. Ele anda manobrando os diretores contra você, e há muito vem fazendo política de gabinete. Ted Leach pode lhe dar maiores detalhes. Ele gostaria de almoçar com você hoje no Metropolitan Club. Levará dois ou três mem­bros do conselho, nos quais você poderá confiar inteiramente. O conselho, a propósito, continua dividido exatamente ao meio.

William cortou-se com a lâmina de barbear.

— Droga! Em que clube?

— No Metropolitan, na esquina da Fifth Avenue com a East 60th Street.

— Por que lá e não em outro lugar de Wall Street?

— William, quando lidamos com os Peter Parfitts da vida, não passamos telegramas explicando nossas intenções. Conserve o bom senso e tente calmamente encontrar uma saída para a si­tuação. Considerando o que Leach me contou, acredito que você será o vencedor.

William retornou ao quarto com uma toalha na cintura.

— Tentarei — disse. — Com toda a calma.

Tony sorriu.

— Bem, preciso voltar a Boston. O trem sairá da Grand Central dentro de dez minutos. — Consultou o relógio de pulso. — Droga! Seis minutos!

Tony deteve-se à porta do quarto.

— Sabe, seu pai jamais confiou em Peter Parfitt. Cortês demais, costumava ele dizer. Nada mais do que isso: um tanto cortês demais. — Pegou a valise. — William, boa sorte.

— Tony, como posso agradecer-lhe?

— Não pode. Encare isso como uma tentativa minha de expiar a maneira deplorável com que tratei Matthew.

William ficou olhando a porta fechar-se, enquanto punha o peitilho e em seguida ajustava a gravata. Era curioso que, de­pois de ter trabalhado tantos anos com Tony Simmons, só agora, durante esses poucos dias de crise pessoal, viesse a conhecê-lo. Começava a gostar desse homem, começava a confiar nele. Um homem que, em verdade, nunca chegara a notar.

Desceu para o restaurante e fez um desjejum típico do clube: ovo cozido frio, fatia de torrada, manteiga e geléia de laranja inglesa, que pegou da mesa de algum outro hóspede. O boy trouxe-lhe um exemplar do Wall Street Journal, que, numa pá­gina interna, insinuava que nem tudo corria bem na nomeação de William Kane para presidente do Lester's Bank. Pelo menos o Journal não estava a par de nenhuma informação de bastidores.

William retornou ao quarto e solicitou à telefonista que li­gasse para um certo número de Boston. Esperou alguns minutos para ser atendido.

— Desculpe-me, sr. Kane. Não sabia que o senhor estava aguardando na linha. Aceite meus cumprimentos pela sua desig­nação para a presidência do Lester's Bank. Isso significa que no futuro nossos escritórios irão recebê-lo com maior freqüência.

— Isso não dependerá de mim, sr. Cohen.

— Creio que não entendi — replicou o advogado.

William explicou-lhe o curso dos acontecimentos nos últi­mos dias e leu a cláusula principal do testamento de Charles Lester.

Thomas Cohen gastou algum tempo anotando cada palavra, e em seguida leu cuidadosamente as anotações.

— Acha que a vontade dele resistiria a um processo judicial? — perguntou William.

— Quem sabe? Lembro-me de um antecedente numa situa­ção semelhante. No século XIX, um membro do Parlamento certa vez ligou seu eleitorado através de um testamento; ninguém se opôs a isso, e o beneficiário tornou-se primeiro-ministro. Mas isso foi há mais de um século — e na Inglaterra. Agora, neste caso, se o conselho resolveu contestar o testamento do sr. Lester, e você levar a decisão dele ao tribunal, eu não saberia prever para que lado oscilaria o julgamento do juiz. Lorde Melbourne não teve de contender com um juiz de sucessões do condado de Nova Iorque. Contudo, eis um interessante enigma legal, sr. Kane.

— O que aconselha? — indagou William.

– Sou judeu, sr. Kane. Vim para este país de navio, saído da Alemanha, no início do século, e sempre precisei lutar muito pelo que quis. Realmente deseja ser presidente do Lester?

— Sim, sr. Cohen, desejo.

– Então ouça um velho que, com o correr dos anos, passou a respeitá-lo muito, e, se me permite dizê-lo, com alguma afeição. Direi exatamente o que eu faria se me defrontasse com uma si­tuação tão desagradável.

Uma hora depois, William desligou o telefone, e, dispondo ainda de algum tempo, resolveu dar um passeio pela Park Avenue. Passou por um terreno em que se construía um edifício enorme. Uma placa grande e bem-feita anunciava: O próximo Baron Hotel será construído aqui. Quando você se hospedar no Baron, nunca mais vai querer ficar em outro hotel. William sorriu pela primeira vez nessa manhã, e, a passos mais vagarosos, encaminhou-se para o Metropolitan Club.

Ted Leach, um homem baixote e janota, de cabelo castanho-escuro e bigode um pouco mais claro, esperava-o no saguão. Conduziu William até o bar. William contemplou admirado a decoração em estilo renascentista do clube, construído por Otto Kuhn e Standford White em 1891. J. P. Morgan fundara o clube quando um de seus melhores amigos perdera a votação na Union League.

— Um gesto bem extravagante, até mesmo para um amigo íntimo — opinou Ted Leach, procurando iniciar uma conversa. — O que quer beber, sr. Kane?

— Xerez, por favor — disse William.

Um garçom, com impecável uniforme azul, voltou minutos depois trazendo o xerez e um scotch com água. O sr. Leach não precisara fazer o seu pedido.

— À saúde do próximo presidente do Lester's Bank — disse Ted Leach, erguendo seu copo.

William hesitou.

— Não beba, sr. Kane. Como sabe, nunca se deve beber à própria saúde.

William sorriu, sem saber como responder.

Pouco depois, dois homens de meia-idade aproximaram-se deles, ambos de estatura elevada e muito seguros em seus ternos cinza, colarinhos engomados e gravatas escuras. Se estivessem andando pela Wall Street, William não os notaria. Mas ali, no interior do Metropolitan Club, ele os observou detidamente.

— O sr. Alfred Rodgers e o sr. Winthrop Davies — disse Ted Leach, apresentando-os.

William sorriu com reserva, duvidando ainda de que esses homens estivessem do seu lado. Os dois recém-chegados também o estudavam. Por um momento, houve um silêncio constrangedor.

— Por onde começamos? — disse Rodgers, deixando cair o monóculo enquanto falava.

– Diretamente pelo almoço — disse Ted Leach.

Os três homens evidentemente sabiam que caminho tomar. William os acompanhou. O restaurante do segundo andar era amplo, o teto, igualmente alto e soberbo. O maître guiou-os à mesa diante da janela que dava para o Central Park. Ali ninguém os ouviria.

– Façamos os pedidos e depois conversaremos — sugeriu Ted Leach.

Através da janela, William vislumbrou o Plaza Hotel. Re­cordou o dia em que, com as avós e Matthew, comemorara a sua graduação — mas havia algo mais, relacionado ao chá no Plaza, de que não conseguia lembrar-se.

— Sr. Kane, coloquemos as cartas na mesa — começou Ted Leach. — A decisão de Charles Lester de apontá-lo como presi­dente do banco foi recebida com surpresa, para falar sem rodeios. Entretanto, se o conselho não quiser acatar a vontade dele, por certo o banco mergulhará num caos, e nenhum de nós deseja que isso aconteça. Lester era um homem sagaz, e terá tido suas razões para apontá-lo como o próximo presidente, o que, diga-se, do meu ponto de vista, é uma excelente escolha.

William ouvira uma frase semelhante antes — dita por Peter Parfitt.

— Nós três — Winthrop Davies interveio — devemos mui­to a Charles Lester, e cumpriremos a vontade dele, ainda que isso nos custe a posição de membros do conselho.

— E talvez isso ocorra de fato — completou Ted Leach —, caso Peter Parfitt assuma a presidência.

— Desculpem-me, senhores — disse William —, nunca pre­tendi causar tanto embaraço. Se minha designação os surpreendeu, asseguro-lhes que eu a recebi como um raio em céu azul. Imaginei que receberia apenas uma lembrança pessoal de Matthew, nunca, porém, a responsabilidade de dirigir toda uma instituição finan­ceira.

— Compreendemos a situação em que foi colocado, sr. Kane —- comentou Ted Leach —, e deve depositar sua confiança em nós quando dizemos que estamos aqui para ajudá-lo. Temos plena consciência de que encontra dificuldade em acreditar em nossa palavra, mormente após o modo com que Peter Parfitt o tratou e as táticas que ele vem empregando às suas costas com o pro­pósito de arrebatar-lhe o cargo.

– Preciso acreditar nos senhores, sr. Leach, porque não vejo outra alternativa senão colocar-me em suas mãos e seguir seus conselhos, no que diz respeito ao modo como devo encarar a presente situação.

— Obrigado — disse Leach. — A situação é bastante sim­ples. A campanha de Peter Parfitt é bem organizada, e ele sabe que está agindo a partir de uma posição forte. Nós, por conse­guinte, sr. Kane, se quisermos ter alguma oportunidade de vencê-lo, temos de nos abrir um com o outro. Estou supondo, eviden­temente, que o senhor esteja disposto a levar esta luta em frente.

—- Se não estivesse, sr. Leach, não teria aceito o seu con­vite. Agora que o senhor expôs a situação de uma forma sucinta, talvez me permita sugerir uma maneira de derrotarmos o sr. Parfitt.

— Naturalmente — disse Ted Leach.

Os três homens concentraram a atenção na exposição de William.

— Tem razão quando diz que Parfitt se sente numa posição forte, porque sempre esteve à frente no ataque, sempre anteci­pando os acontecimentos. Pois bem, sugiro ter chegado o mo­mento de invertermos essa tendência e conduzirmos o ataque onde e quando ele menos espera — no interior do próprio ga­binete.

— De que modo o faremos, sr. Kane? — inquiriu Win­throp Davies com ar de assombro.

— Eu direi, desde que, primeiro, os senhores me permitam perguntar algumas coisas. Quantos diretores responsáveis em tempo integral existem com direito a voto no conselho?

— Dezesseis — respondeu Ted Leach no mesmo instante.

— E a quem estão apoiando neste exato momento?

— Esta é uma pergunta difícil de responder, sr. Kane — interveio Winthrop Davies. Ele tirou um envelope amarrotado do bolso interno do paletó e, antes de prosseguir, examinou sua face interna. — Com segurança, poderemos contar com seis votos. Peter Parfitt conta com cinco. Hoje pela manhã, fiquei surpreso ao saber que Rupert Cork-Smith, que fora o amigo mais próximo de Charles Lester, recusa-se a apoiá-lo, sr. Kane. É de fato estranho, porque sei que não simpatiza com Parfitt. Essa adesão empata a votação.

— Com isso — ajuntou Ted Leach —, teremos tempo até quinta-feira para descobrir como os outros quatro membros do conselho reagirão à sua nomeação.

– Por que quinta-feira? — indagou William.

– Porque nesse dia haverá uma reunião geral — respondeu Leach, alisando o bigode, o que, William observara, ele sempre fazia ao começar a falar. — O mais importante: o tópico princi­pal da agenda será a eleição do novo presidente.

– Soube que a próxima reunião não ocorreria antes de segunda-feira — disse William, perplexo.

– Soube por quem? — perguntou Davies.

— Peter Parfitt — respondeu William.

— As táticas de Parfitt — comentou Ted Leach — nem sempre são as de um cavalheiro.

— Descobri muitas coisas sobre esse cavalheiro — disse William, enfatizando as palavras com ironia. — O suficiente para ter certeza de que será impossível evitar um confronto.

— É mais fácil falar do que fazer, sr. Kane. Neste preciso momento, ele está na direção — disse Winthrop Davies —, e não vejo como tirá-lo de lá.

— Ligando o semáforo vermelho — respondeu William. — Quem do conselho está autorizado a convocar uma reunião?

— Enquanto o conselho estiver sem presidente, os dois vice-pre-sidentes — informou Ted Leach. — O que equivale a dizer, Peter Parfitt ou eu mesmo.

— Quantos membros são necessários para que haja quorum?

— Nove — informou Davies.

— Se o senhor é um dos dois vice-presidentes, sr. Leach, quem é seu assessor?

— Eu — disse Alfred Rodgers, que até então falara pouco, revelando uma virtude que William sempre julgara indispensável num assessor.

— Sr. Rodgers, qual é o prazo de notificação de uma reunião urgente?

— Os diretores devem ser informados pelo menos vinte e quatro horas antes da reunião, embora isso só tenha acontecido durante a quebra da Bolsa, em 1929. Charles Lester fazia suas comunicações com três dias de antecedência.

— Mas as normas do banco permitem a comunicação de uma reunião urgente com apenas vinte e quatro horas de antecedência? — indagou William.

– Permitem, sr. Kane — confirmou Alfred Rodgers, o monóculo ajustado com firmeza na direção de William.

– Excelente. Convoquemos a nossa reunião de conselho.

Os três banqueiros arregalaram os olhos para William, como se o tivessem ouvido mal.

— Pensem bem, senhores — continuou William. — O sr. Leach, na qualidade de vice-presidente, convoca a reunião, e o sr. Rodgers, como seu assessor, comunica-a a todos os diretores.

— Para que dia quer essa reunião? — perguntou Ted Leach.

— Para amanhã à tarde. — William consultou o relógio de pulso. — Três horas.

— Deus do céu! — exclamou Alfred Rodgers. — Estamos em cima do prazo. Não sei se...

— Em cima do prazo de Parfitt, não é o que quer dizer? — disse William.

— Tem razão — comentou Ted Leach —, se é que você sabe exatamente o que pretende com essa reunião.

— Deixe comigo a reunião. Apenas me garanta que ela será devidamente convocada e que todos os diretores serão correta­mente informados.

— Estou curioso por saber como Peter Parfitt reagirá — disse Ted Leach.

— Não se preocupe com Parfitt — disse William. — Nesse tempo todo, este foi o erro. Invertamos a situação e façamos com que ele se preocupe conosco. Desde que ele seja o último diretor a receber a comunicação, vinte e quatro horas antes, nada teremos a temer. Não lhe daremos tempo suficiente para planejar um con­tra-ataque. E, senhores, não se assustem com o que eu disser ou fizer amanhã. Confiem na minha decisão e estejam lá para me dar seu apoio.

— Não acha que deveríamos saber exatamente em que está pensando?

— Não, sr. Leach, os senhores devem comparecer à reunião como diretores imparciais que cumprirão nada mais do que o seu dever.

Ted Leach e seus dois colegas começaram a compreender por que Charles Lester havia escolhido William Kane para ocupar a cadeira da presidência. Saíram do Metropolitan Club bem mais seguros do que quando entraram, apesar de ignorarem inteira­mente o rumo da reunião do conselho que estavam na iminência de convocar. William, por outro lado, tendo realizado a primeira parte das instruções de Thomas Cohen, não via o momento de pôr em andamento a segunda parte.

Passou grande parte da tarde e da noite fechado no quarto do Yale Club, refletindo meticulosamente sobre as táticas que empresaria na reunião do dia seguinte. Interrompeu-se unicamen­te para telefonar para Kate.

– Querido, onde está agora? — disse ela. — Esgueirando-se na calada da noite para onde nem sequer imagino?

– Aquecido nos braços de minha amante de Nova Iorque – brincou William.

— Pobre mulher! Provavelmente não sabe com quem se envolveu. Que conselho ela lhe dá sobre o caso do diabólico sr. Parfitt?

— Não tive tempo de perguntar-lhe. Sabe como é, nós nos ocupamos com outras coisas. Mas já que estamos conversando, qual é o seu conselho?

— Não tome medidas que Charles Lester ou seu pai jamais tomariam se estivessem na mesma situação — disse, de súbito falando em tom sério.

— Possivelmente eles estão jogando golfe na oitava nuvem e fazendo apostas enquanto nos observam o tempo todo.

— Faça o que fizer, William, se se lembrar de que está sendo observado por eles, não chegará a cometer um erro grave demais.

 

Quando a manhã raiou, William já se achava acordado, pois dormira a intervalos breves e agitados. Pouco antes das seis, le­vantou-se, tomou um banho de chuveiro frio, deu uma longa caminhada pelo Central Park, esperando acalmar-se, e retornou ao Yale Club, onde fez uma refeição ligeira. Havia um recado no saguão — de sua esposa. Ao ler pela segunda vez a mensagem, não pôde conter o riso: Se não estiver muito ocupado, poderia comprar uma luva de beisebol para Richard? Pegou em seguida o Wall Street Journal; ainda publicava matéria sobre a turbulên­cia da sucessão da presidência do Lester's Bank. Dessa vez trazia a versão de Peter Parfitt, que sugeria que sua nomeação muito provavelmente seria confirmada na reunião que se realizaria na quinta-feira. William perguntava-se que versão seria publicada na edição do dia seguinte. Oh, não podia esquecer de dar uma olhadela na edição do Journal de amanhã. Dedicou a manhã toda a reexaminar os artigos de incorporação e os estatutos do banco. Preferiu não almoçar, mas encontrou tempo para passar pela Schwalts e comprar a luva, de beisebol para Richard.

Às catorze e trinta, tomou um táxi, que o levou ao banco, na Wall Street, onde chegou alguns minutos antes das quinze horas. O porteiro perguntou-lhe se havia marcado alguma entre­vista.

— Sou William Kane.

— Sim, senhor. Naturalmente irá à sala de reuniões.

"Deus do céu", exclamou William para si mesmo. "Não consigo me lembrar onde fica a sala."

O porteiro notou seu embaraço.

— Pegue o corredor à esquerda. É a segunda porta à direita.

— Obrigado — disse William, procurando caminhar com passos firmes ao longo do corredor. Até esse momento, julgara tola a expressão "friozinho na barriga". As batidas de seu cora­ção soavam mais altas que o tique-taque do relógio do saguão; não se espantaria de ouvir a si próprio batendo as três horas.

Ted Leach postara-se à entrada da sala de reuniões.

— Vai haver complicação — disse ele.

— Ótimo — respondeu William. — Charles Lester a teria apreciado. Ele enfrentaria a complicação de cabeça erguida.

William entrou na portentosa sala revestida de painéis de carvalho e nem precisou contar as cabeças para certificar-se de que todos os diretores haviam comparecido. Essa reunião não era do tipo a que um diretor se permitiria faltar. As conversas cessaram assim que William entrou, e todos se voltaram para olhá-lo. Sem perder tempo, William sentou-se na cadeira do pre­sidente, à cabeceira da longa mesa de mogno. Peter Parfitt mal teve tempo de atinar com o que estava acontecendo.

— Sentem-se, senhores, por favor — disse William, esfor­çando-se para que a voz soasse firme.

Ted Leach e alguns diretores sentaram-se incontinenti; ou­tros mostraram-se relutantes. Os murmúrios começaram.

William percebeu que dois diretores, que não conhecia, esta­vam prestes a erguer-se e interpelá-lo.

— Antes que algum dos senhores diga alguma coisa, se me permitem, gostaria de fazer uma declaração de abertura. Depois disso, os senhores decidirão como continuar. Creio que é o míni­mo que podemos fazer para que a vontade de Charles Lester seja cumprida.

Os dois homens sentaram-se.

— Obrigado, senhores. Dando início à reunião, eu gostaria de esclarecer a todos aqui presentes que não desejo de modo algum tornar-me presidente deste banco... — fez uma pausa com o intuito de impressioná-los — a menos que isso seja vonta­de da maioria dos diretores.

Todos os olhos agora se concentravam sobre William.

– Senhores, atualmente sou vice-presidente do Kane & Cabot e detentor de cinqüenta por cento das ações dessa institui­ção. O Kane & Cabot foi fundado por meu avô, e, acredito, pode ser comparado vantajosamente ao Lester's Bank em termos de re­putação, embora não em importância. Se eu precisasse deixar Boston e transferir-me para Nova Iorque com o propósito de me tornar presidente do Lester, de acordo com os desejos de Charles Lester, confesso, essa mudança não seria fácil, nem para mim nem para a minha família. Entretanto, como Charles Lester de­sejou que eu fizesse exatamente isso — e ele não era o tipo de homem capaz de propostas levianas —, sinto-me inclinado, se­nhores, a respeitar seriamente os desejos dele. Gostaria ainda de acrescentar que seu filho, Matthew Lester, foi meu melhor ami­go durante quinze anos, e considero trágico que eu, e não ele, esteja hoje se dirigindo aos senhores como presidente nomeado.

Alguns diretores assentiram com a cabeça.

— Senhores, se hoje tiver a felicidade de conquistar seu apoio, sacrificarei tudo o que tenho em Boston para colocar-me a seu serviço. Espero ser desnecessário fornecer-lhes um relato detalhado de minha experiência nas atividades bancárias. Suponho que qualquer um dos diretores aqui presentes que tenha lido o testamento de Charles Lester certamente refletiu sobre a razão pela qual fui escolhido para sucedê-lo. Meu próprio presidente, Anthony Simmons, que muitos dos senhores conhecem, pediu-me que permanecesse no Kane & Cabot. Ontem mesmo eu teria in­formado o sr. Parfitt de minha decisão final, caso ele tivesse se dado ao trabalho de me telefonar e procurar ele mesmo tal infor­mação. Senti-me honrado em jantar com o sr. e sra. Parfitt em sua casa na noite da última sexta-feira, e, naquela ocasião, o sr. Parfitt assegurou-me não estar interessado na presidência deste banco. Meu único rival, na opinião dele, era o sr. Edward Leach, outro vice-presidente. A partir daquele momento, consultei o sr. Leach, e por ele soube que contaria com seu apoio. Presumi, por conseguinte, que ambos os vice-presidentes me apoiavam. Depois de ler o Wall Street Journal desta manhã, embora desde os oito anos de idade nunca tenha dado crédito às suas previsões — os diretores riram —, achei que deveria comparecer à reunião de hoje para me assegurar de que não havia perdido o apoio dos dois vice-presidentes e de que a notícia do Journal era imprecisa. O sr. Leach convocou esta reunião, e, nesta conjuntura, sinto-me obrigado a perguntar a ele se ainda me apóia na sucessão de Char­les Lester como o próximo presidente do banco.

William olhou na direção de Ted Leach, que mantivera a cabeça inclinada. Era palpável a espera do veredicto. Se ele bai­xasse o polegar, isso significaria que os parfittianos devorariam os cristãos.

Ted Leach ergueu a cabeça devagar.

— Apoio o sr. Kane sem nenhuma reserva.

William encarou Peter Parfitt pela primeira vez. O homem suava abundantemente, e, ao falar, não afastou o olhar do bloco de anotações amarelo que tinha diante de si.

— Bem, alguns membros do conselho — começou — opina­ram que eu devia descer à arena...

— Então mudou de idéia com respeito ao seu apoio à minha nomeação e à vontade de Charles Lester? — interrompeu-o Wil­liam, imprimindo à voz um leve tom de surpresa.

Peter Parfitt ergueu um pouco a cabeça.

— Sr. Kane, o problema não é assim tão simples como pensa.

— Sim ou não, sr. Parfitt?

— Sim, devo opor-me ao senhor — disse Parfitt, repentina e vigorosamente.

— Mesmo depois de dizer-me, na última sexta-feira, não ter interesse na presidência?

— Eu gostaria de ter a oportunidade de definir minha po­sição — disse Parfitt —, antes que o senhor exagere nas suas suposições. A sala de reuniões ainda não é sua, sr. Kane.

— Certamente, sr. Parfitt.

Até esse ponto, a reunião tomara o curso planejado por William. Seu discurso fora cuidadosamente elaborado e pronun­ciado. Peter Parfitt arcava com a desvantagem de ter perdido a iniciativa, sem falar que em público fora chamado de mentiroso. Levantou-se.

— Senhores — começou, como se procurasse as palavras. — Bem...

Os olhares tinham se fixado em Parfitt. William aproveitou a oportunidade para relaxar e estudar as expressões dos demais diretores.

— Vários membros do conselho vieram até mim, em par­ticular, depois do jantar com o sr. Kane, e entendi que não era mais que meu dever levar em consideração suas vontades e ofe­recer minha candidatura à eleição. Nunca, em nenhum momento, pensei em me opor à vontade de Charles Lester, a quem sempre admirei e respeitei. Naturalmente, eu teria informado o sr. Kane das minhas intenções, antes da reunião marcada para amanhã, mas confesso que os acontecimentos de hoje me tomaram de surpresa.

Fez uma pausa, respirou fundo e retomou a palavra.

– Servi a este banco durante vinte e dois anos, seis dos quais como vice-presidente. Creio, portanto, ter direito a concor­rer a essa cadeira. Eu me sentiria feliz se o sr. Kane integrasse o conselho, mas agora sinto-me incapaz de apoiá-lo na sua indi­cação como presidente. Espero que meus colegas da diretoria apóiem um homem que tem trabalhado em benefício deste banco por mais de vinte anos, mas, jamais, que elejam um homem es­tranho e desconhecido, por causa do capricho de um homem per­turbado no mais íntimo de si pela morte de seu único filho. Obri­gado, senhores.

E sentou-se.

Dadas as circunstâncias, William ficou de certo modo impres­sionado pelo discurso, mas Parfitt não se beneficiara do conselho do sr. Cohen, para quem, numa concorrência cerrada, era funda­mental a força da última palavra. William levantou-se de novo.

— Senhores, o sr. Parfitt afirmou que sou pessoalmente desconhecido dos senhores. Por conseguinte, não quero que fi­quem com nenhuma dúvida a respeito do tipo de homem que sou. Eu sou, como já disse, neto e filho de banqueiros. Durante toda a minha vida fui banqueiro, e seria desonesto de minha parte dizer que não me daria satisfação poder prestar meus serviços ao Lester's Bank na qualidade de presidente. Se, por outro lado, depois de tudo o que ouviram hoje nesta sala, os senhores resol­verem apoiar o sr. Parfitt para a presidência, que assim seja. Voltarei a Boston e servirei com muita alegria ao meu banco. Ademais, anunciarei publicamente que não desejo ser presidente do Lester's Bank, e isso os protegerá contra quaisquer alegações de que os senhores foram negligentes quanto ao cumprimento das disposições do testamento de Charles Lester. Não existem, porém, condições que me permitam ser útil ao conselho sob a presidência do sr. Parfitt. Nesse ponto pretendo ser absoluta­mente franco. Venho à presença dos senhores com a grave des­vantagem de ser, nas palavras do sr. Parfitt, "um homem estranho e desconhecido". Tenho, por outro lado, a vantagem de ter recebido o apoio de um homem que não pode estar presente. Um homem que todos respeitaram e admiraram, um homem que nunca foi conhecido por ser dado a caprichos e por tomar deci­sões apressadas. Proponho, pois, a este conselho que não perca mais nenhum minuto de seu tempo valioso e passe à votação para a escolha do próximo presidente. Se algum dos senhores tem al­guma dúvida a respeito da minha capacidade de dirigir este ban­co, então, nesse caso, só posso sugerir que vote no sr. Parfitt. Eu próprio não votarei nesta eleição, senhores, e presumo que o sr. Parfitt fará o mesmo.

— Você não pode votar — disse Peter Parfitt, nitidamente irritado. — Ainda não é membro deste conselho. Eu sou, e vo­tarei.

— Assim seja, sr. Parfitt. Ninguém poderá dizer que não lhe foi dada a oportunidade de ganhar todos os votos possíveis.

William aguardou que suas palavras surtissem efeito, e, quan­do um diretor que lhe era desconhecido deu sinais de que iria interrompê-lo, continuou a falar.

— Pedirei ao sr. Rodgers, como oficial, que se encarregue dos procedimentos eleitorais. Quando os senhores tiverem termi­nado de votar, por gentileza, entreguem as cédulas a ele.

O monóculo de Alfred Rodgers saltara periodicamente de seu rosto durante toda a reunião. Com as mãos trêmulas, ele distribuiu as cédulas aos diretores. Cada eleitor escreveu o nome de seu candidato, e as cédulas voltaram às suas mãos.

— Considerando-se a situação, sr. Rodgers, talvez seja pru­dente contar os votos em voz alta. Desse modo, evitaremos erros inadvertidos e não precisaremos proceder a uma segunda votação.

— Certamente, sr. Kane.

— Está de acordo, sr. Parfitt?

Sem erguer o olhar, Peter Parfitt acenou afirmativamente.

— Obrigado. Sr. Rodgers, tenha a bondade de ler os votos em voz alta.

O assessor abriu a primeira cédula.

— Parfitt. Abriu a segunda.

— Parfitt — repetiu.

A jogada não podia mais ser controlada por William. Todos os anos em que ambicionara aquele prêmio, que há muito tempo prometera a Charles Lester conquistar, estavam ameaçados de ter um fim em questão de segundos.

– Kane. Parfitt. Kane.

Três votos contra dois; estava perdendo. Teria a mesma sorte que tivera na competição com Tony Simmons?

— Kane. Kane. Parfitt.

Quatro a quatro. Do outro lado da mesa, Parfitt transpirava. E ele próprio, William, não se sentia exatamente tranqüilo.

— Parfitt.

A fisionomia de William não revelava expressão alguma. Parfitt permitiu-se um sorriso. Cinco votos contra quatro.

— Kane. Kane. Kane.

O sorriso esvaneceu-se.

Dois mais, só dois mais, pedia William, quase em voz alta.

— Parfitt. Parfitt.

O oficial demorou longo tempo abrindo uma cédula que alguém dobrara e redobrara diversas vezes.

— Kane.

Oito votos contra sete, a favor de William.

O último pedaço de papel começara a ser aberto. William sondou os lábios de Alfred Rodgers. Os olhos do oficial ergue­ram-se. Nesse instante, ele era o homem mais importante da sala.

— Kane.

A cabeça de Parfitt naufragou nas profundezas de suas mãos.

— Senhores, o resultado da contagem deu nove votos para o sr. William Kane, e sete votos para o sr. Peter Parfitt. Portanto, declaro o sr. William Kane eleito presidente do Lester's Bank.

Um silêncio reverente desabou sobre a sala, e todas as ca­beças, exceto a de Peter Parfitt, voltaram-se para William. Todos os diretores aguardaram o primeiro gesto do novo presidente.

William expirou profundamente e pôs-se de pé mais uma vez, agora para olhar de frente a diretoria.

— Obrigado, senhores, pela confiança que depositaram em mim. Era a vontade de Charles Lester que eu fosse o próximo presidente, e fico contente de que a tenham confirmado através de seus votos. É minha intenção servir a este banco com o máxi­mo da minha capacidade, o que, de fato, não conseguirei sem a ajuda sincera do conselho. Se o sr. Parfitt puder fazer a gentileza de...

Peter Parfitt, esperançoso, ergueu o olhar.

— ...acompanhar-me ao gabinete do presidente por alguns minutos, ser-lhe-ia imensamente grato. Depois de conversar com o sr. Parfitt, gostaria de ver o sr. Leach. Confio em que amanhã eu possa ter uma entrevista individual com todos os senhores. A próxima reunião do conselho será a mensal. Esta sessão está suspensa.

Os diretores levantaram-se e iniciaram uma conversação. Wil­liam apressou-se em direção ao corredor, evitando o olhar de Peter Parfitt. Ted Leach alcançou-o e conduziu-o ao gabinete da presidência.

— Arriscou-se demasiado — disse Ted Leach. — Por pouco não venceu. O que faria se tivesse perdido a votação?

— Voltaria a Boston — disse William, aparentemente nada perturbado.

Ted Leach abriu para William a porta da sala da presidência, que continuava quase exatamente como na sua recordação; talvez fosse um pouco mais ampla, quando, ainda estudante da escola preparatória, dissera a Charles Lester que um dia dirigiria aquele banco. Contemplou o retrato do grande homem que pendia da parede, atrás da mesa, e piscou para o falecido presidente. Em seguida, sentou-se na enorme cadeira forrada de couro vermelho e apoiou o cotovelo sobre o tampo da mesa de mogno. Tirou um pequeno livro de capa de couro do bolso da jaqueta e colocou-o sobre a mesa à sua frente. Nesse instante, uma batida na porta. Um homem idoso entrou, apoiando-se pesadamente numa bengala preta de cabo prateado. Ted Leach deixou-os sozinhos.

— Meu nome é Rupert Cork-Smith — disse, com um leve sotaque inglês.

William levantou-se e cumprimentou-o. Era o mais antigo membro do conselho. O cabelo branco, as suíças longas e um relógio de ouro maciço remetiam-no a uma época passada, mas sua reputação de homem íntegro tornara-se lendária nos círculos bancários. Nenhum homem via necessidade de assinar um contrato com Rupert Cork-Smith: sua palavra sempre fora uma garantia. Fitou William nos olhos.

— Votei contra o senhor, e, naturalmente, esperará ver mi­nha carta de demissão sobre sua mesa dentro de uma hora.

— Não quer sentar-se, senhor? — disse William, cortesmente.

— Obrigado — respondeu.

— O senhor deve ter conhecido meu pai e meu avô.

– Tive esse privilégio. Seu avô e eu estudamos juntos em Harvard, e ainda me lembro com tristeza da morte trágica de seu pai.

– E Charles Lester? — perguntou William.

– Foi grande amigo meu. As cláusulas do testamento me remoeram a consciência. Não fiz segredo algum de que minha escolha não cairia sobre Peter Parfitt. Preferiria Ted Leach como presidente, mas, como nunca me abstive de nada na minha vida, concluí que deveria apoiar o candidato oponente, visto que jamais poderia votar num homem desconhecido por mim.

– Admiro sua honestidade, sr. Cork-Smith, mas agora sou responsável por este banco. Preciso do senhor neste momento bem mais do que o senhor precisa de mim. Por isso, como mais jovem, peço-lhe que não se demita.

O velho ergueu a cabeça e fixou o olhar nos olhos de William.

— Não sei se adiantaria, meu jovem. Não sei mudar minhas posições da noite para o dia — disse Cork-Smith, ambas as mãos descansando sobre a bengala.

— Dê-me seis meses, senhor, e se até lá continuar pensando da mesma maneira, não o dissuadirei de sua intenção.

Permaneceram em silêncio alguns segundos, e, a seguir, Cork-Smith tornou a falar.

— Charles Lester estava certo: o senhor é o filho de Richard Kane.

— Continuará a servir a este banco, senhor?

— Sim, meu jovem. Não há ninguém mais tolo que um velho tolo, sabia?

Rupert Cork-Smith levantou-se vagarosamente com o apoio da bengala. William procurou ajudá-lo, mas o homem recusou a ajuda com um gesto de mão.

— Boa sorte, meu rapaz. Conte com o meu total apoio.

Quando lhe abriu a porta, William avistou Peter Parfitt, que aguardava no corredor. Depois que Rupert Cork-Smith se afastou, os dois homens continuaram em silêncio. Peter Parfitt entrou tempestuosamente.

— Bem, lutei e perdi. Um homem não pode ir além disso. – E riu. — Nenhuma mágoa, Bill? — Estendeu a mão.

— Nada de mágoa, sr. Parfitt. Como o senhor disse acertadamente, lutou e perdeu, e agora pedirá a demissão de seu cargo neste banco.

— Pedirei o quê? — disse Parfitt.

— A sua demissão — tornou William.

— Isso é uma tremenda punição, não Bill? Minha atitude não era assim tão pessoal. Eu simplesmente senti que...

— Não o quero no meu banco, sr. Parfitt. Está desligado a partir desta noite, para nunca mais pôr os pés aqui.

— E se eu disser que não? Tenho muito dinheiro em ações, tenho ainda quem me apóie no conselho. Você sabe disso. E mais: posso levá-lo à justiça.

— Nesse caso, recomendo-lhe ler os estatutos do banco, sr. Parfitt, que estudei durante toda a manhã.

William pegou o pequeno livro de capa de couro que estava sobre a mesa e virou algumas folhas. Localizou o parágrafo que havia assinalado de manhã e leu:

— "O presidente se reserva o direito de dispensar qualquer acionista em quem tenha perdido a confiança." — Ergueu os olhos. — Perdi a confiança no senhor, e, portanto, o senhor se demite, recebendo dois anos de indenização. Se, por outro lado, o senhor forçar-me a dispensá-lo, providenciarei para que saia do banco levando tão-somente suas ações. O senhor é quem sabe.

— Não me dará uma oportunidade?

— Dei-a na noite da última sexta-feira. E o senhor mentiu e trapaceou. Não quero burla no cargo de vice-presidente. Ou o senhor se demite, ou eu o ponho no olho da rua.

— Vá para o inferno, Kane. Demito-me.

— Ótimo. Sente-se e escreva a carta já.

— Não. Eu a entregarei amanhã cedo, quando estiver mais tranqüilo. — E rumou para a porta.

— Agora! Ou eu o despedirei! — insistiu William.

Peter Parfitt titubeou e em seguida voltou, afundando-se pesadamente na cadeira ao lado da mesa. William deu-lhe uma folha do próprio banco e uma pena para escrever. Parfitt tirou do bolso uma caneta e começou a escrever. Quando terminou, William pegou a carta e leu-a atentamente.

— Bom-dia, sr. Parfitt.

Peter Parfitt deixou a sala sem dizer mais nenhuma palavra.

Momentos depois, Ted Leach entrou.

— Queria me ver, senhor presidente?

— Sim. Quero designá-lo vice-presidente geral do banco. O sr. Parfitt achou que seria melhor para ele demitir-se.

— Oh, isso me surpreende, eu pensei que...

William entregou-lhe a carta. Ted Leach leu-a e então lançou um olhar para William.

– Honra-me ser o vice-presidente geral. Obrigado por con­fiar em mim.

– Muito bem. Ficaria agradecido se pudesse tomar as me­didas necessárias para que, durante os dois próximos dias, eu possa entrevistar todos os diretores. Começarei a trabalhar ama­nhã a partir das oito horas em ponto.

— Sim, sr. Kane.

– Por gentileza, entregue a carta de demissão do sr. Parfitt ao assessor.

— Como queira, senhor presidente.

— Meu nome é William. Um outro erro cometido pelo sr. Parfitt.

Ted Leach ensaiou um sorriso tímido.

— Eu o verei amanhã cedo... — hesitou — William.

Ele saiu e William sentou-se na cadeira de Charles Lester e, repentinamente, tomado por uma inusitada explosão de alegria, fez a cadeira girar até sentir-se estonteado. Em seguida, olhando pela janela, contemplou a Wall Street, que se estendia lá embai­xo, exultando com a multidão azafamada, deleitando-se com a visão dos outros grandes bancos das casas de câmbio dos Estados Unidos. Agora ele fazia parte de tudo aquilo.

— Por favor, quem é o senhor? — A voz feminina ecoou na sala.

William girou a cadeira e deparou com uma mulher de meia-idade, vestida com discrição, e com expressão muito sisuda.

— Faço-lhe a mesma pergunta — retrucou William.

— Sou a secretária do presidente — e ela empertigou-se.

— E eu — disse William — sou o presidente.

 

Nas semanas que se seguiram, William fez a mudança da família para Nova Iorque, onde encontraram uma casa situada na East 68th Street inteiramente satisfatória para Kate, e com um pequeno jardim. Demoraram bem mais do que o previsto para adaptar-se à nova vida. Nos primeiros três meses, visto que pro­curava desligar-se de Boston para levar a bom termo o trabalho em Nova Iorque, William desejara que os dias tivessem quarenta e oito horas, e não tardou em descobrir o quanto lhe era difícil cortar o cordão umbilical. Tony Simmons mostrou-se muito prestativo, e William começou a compreender por que Alan Lloyd o apoiara para a presidência do Kane & Cabot, disposto a admitir que de fato Alan estivera com a razão.

Em pouco tempo a vida de Kate encheu-se de ocupações. Vir­gínia já engatinhava por toda a sala, e bastava que Kate lhe desse as costas para que ela entrasse no escritório de William; Richard queria um casaquinho de lã grossa novo, igual ao de todos os me­ninos de Nova Iorque. Na posição de esposa do presidente de um banco nova-iorquino, Kate regularmente oferecia coquetéis e jantares, retirando-se habilmente no momento preciso, para que determinados diretores e importantes clientes tivessem a oportuni­dade de consultar William e ouvir-lhe os conselhos. Kate lidava com todas as situações de forma encantadora, e William sentia-se eternamente agradecido ao departamento de liquidações do Kane & Cabot por ter lhe dado seus maiores bens. Quando ela o infor­mou de que seria mãe pela terceira vez, tudo o que ele fez foi perguntar: "Mas como encontrei tempo para isso?" Virgínia vi­brou com a notícia, embora não compreendesse perfeitamente por que a mamãe estava ficando tão gorda. Richard, por sua vez, re­cusou-se a falar sobre o assunto.

Depois de meio ano, o embate com Peter Parfitt já era uma coisa do passado, e William tornara-se o inconteste presidente do Lester e uma personalidade reconhecida dentro dos círculos financeiros de Nova Iorque. Poucos meses depois, William pen­sava em qual seria sua nova meta. Realizara a ambição de sua vida ascendendo à presidência do banco aos trinta e três anos de idade, embora, ao contrário de Alexandre, sentisse que ainda exis­tiam mais mundos a serem conquistados, e não contava com tem­po e disposição para se sentar e lamentar.

Kate deu à luz o terceiro filho ao final do primeiro ano da presidência de William, uma segunda menina, a quem deram o nome de Lucy. William ensinou Virgínia, que agora estava an­dando, a balançar o berço de Lucy; enquanto isso, Richard, com quase cinco anos e prestes a entrar no jardim de infância da Buckley School, aproveitou o advento como uma oportunidade de pedir ao pai um novo bastão de beisebol.

No primeiro ano de William como presidente, os lucros subi­ram ligeiramente, e, para o segundo ano, faziam-se previsões de um crescimento considerável.

 

No dia 1.° de setembro de 1939 as tropas de Hitler inva­diram a Polônia.

Umas das primeiras reações de William foi pensar em Abel Rosnovski e no seu novo Baron da Park Avenue, prestes a se transformar no hotel mais fino de Nova Iorque. Os relatórios tri­mestrais de Thomas Cohen mostravam que Rosnovski fora se fortalecendo passo a passo, embora suas últimas idéias de expan­são na Europa devessem ser adiadas. Cohen ainda não encontrara indícios de uma associação direta entre Henry Osborne e Abel Rosnovski, mas confessara que se tornava cada vez mais difícil a comprovação de todos os dados de que precisava.

William jamais imaginara que os Estados Unidos iriam se envolver na guerra européia; manteve em funcionamento a filial do Lester em Londres, com o intuito de mostrar claramente de que lado se achava. Em nenhum instante pensou em vender os doze mil acres de terras de Hampshire e Lincolnshire. Tony Sim­mons, em Boston, por outro lado, informara William de que pensava em fechar a filial londrina do Kane & Cabot. William valeu-se dos problemas criados em Londres pela guerra como des­culpa para visitar sua querida Boston e entrevistar-se com Tony.

Os dois presidentes relacionavam-se em termos amigáveis, visto que não mais tinham motivos para se verem como rivais. Com efeito, tinham se engajado numa rotina em que um usava o outro como trampolim para novas idéias. Como Tony havia previsto, o Kane & Cabot perdeu alguns dos clientes mais ilustres quando William assumiu a presidência do Lester. Mas William sempre cuidou de comunicar a Tony a decisão de cada cliente que resolvesse transferir sua conta para o Lester, e jamais chegou a solicitar a transferência de nenhuma delas. Acomodaram-se à mesa do canto do Locke-Ober, na hora do almoço, e Tony Sim­mons procurou ser breve ao reiterar sua intenção de fechar a filial de Londres do Kane & Cabot.

— A razão principal é simples — disse Tony, bebendo um gole de borgonha, aparentemente sem pensar na possibilidade de os tacões alemães esmagarem as uvas das vinhas da França. — Se não procurarmos diminuir as despesas retirando-nos de Londres, o banco perderá dinheiro.

— Naturalmente perderá algum dinheiro — disse William —, mas precisamos dar apoio à Inglaterra.

— Por quê? — perguntou Tony. — Somos uma instituição bancária, não uma sociedade de patronos.

— E a Inglaterra não é uma equipe de beisebol, Tony; é uma nação a cujo povo devemos toda a nossa herança...

— Você deveria entrar para a política — comentou Tony. — Começo a acreditar que está esbanjando talento na atividade bancária. Creio, porém, existir uma razão mais forte para fechar­mos a filial. Se Hitler invadir a Inglaterra, assim como o fez com a Polônia e a França — e estou certo de que é o que pretende fazer —, o banco será tomado e perderemos tudo que lucramos em Londres.

— Só passando sobre o meu cadáver — disse William. — Se Hitler puser um pé no solo inglês, os Estados Unidos entrarão na guerra no mesmo dia.

— Nunca — disse Tony. — Franklin Delano Roosevelt dis­se: "Toda ajuda, sem guerra". E os defensores dos Estados Unidos se unirão num clamor de protesto.

— Jamais dê ouvidos a um político — disse William. — Principalmente a Roosevelt. Quando ele diz "nunca", isso significa apenas "não hoje", ou, pelo menos, "não esta manhã". Lembre-se do que Wilson nos disse em 1916.

Tony riu.

— Quando se candidatará ao Senado, William?

— A esta pergunta posso responder com segurança: nunca.

— Respeito seus sentimentos, William, mas quero fechar a filial.

— O presidente é você — replicou William. — Se o con­selho o apoiar, estará apto a fechar a filial amanhã mesmo, e eu jamais usaria minha posição contra uma decisão majoritária.

— Até o dia em que você fizer dos dois bancos um só, e então a decisão será sua.

— Tony, disse-lhe certa vez que não o faria enquanto você fosse o presidente. Uma promessa que pretendo honrar.

— Mas acho que deveríamos fundi-los.

— O quê? — perguntou William, entornando o borgonha na toalha da mesa, não conseguindo acreditar no que acabara de ouvir. — Por Deus, Tony, uma coisa eu lhe digo: você é um sujeito imprevisível.

— Acima de tudo, penso sempre nos interesses do banco, William. Reflita um pouco sobre a situação atual. Nova Iorque é agora, mais do que nunca, o centro das finanças dos Estados Unidos. Quando a Inglaterra for esmagada por Hitler, Nova Iorque se converterá no centro das finanças do mundo. E é aí que o Kane & Cabot precisará estar. Ademais, com a fusão, esta­remos criando uma instituição mais abrangente, porque nossas atividades são complementares. O Kane & Cabot sempre se de­dicou ao financiamento das indústrias naval e pesada, enquanto o Lester's Bank pouco fez nessa área. Inversamente, vocês têm se dedicado a seguros, e nós raramente o fazemos. Sem mencionar o fato de que, em várias cidades, mantemos desnecessariamente duas agências.

– Tony, concordo com tudo o que disse, mas ainda assim quero continuar na Inglaterra.

– Exatamente para provar meu ponto de vista, William. A filial londrina do Kane & Cabot seria fechada, mas conservaríamos a do Lester's Bank. Posteriormente, se Londres passasse por maus momentos, não nos afetaria tanto, porque estaríamos consolidados e fortalecidos.

— Mas a que conclusão chegaria se eu lhe dissesse que, enquanto as restrições aos bancos mercantis feitas por Roosevelt só nos permitirem obter resultados num único Estado, uma fusão só seria bem-sucedida se toda a operação fosse orientada a partir de um centro em Nova Iorque, convertendo Boston numa mera agência da empresa detentora?

— Eu o apoiaria — disse Tony, e ajuntou: — Inclusive poderia pensar em operações comerciais e abandonar o investi­mento direto.

— Não, Tony. Franklin Delano Roosevelt impede que um homem honesto atue nas duas frentes, e, em todo o caso, papai sempre acreditou ser possível servir um grupo pequeno de ricos ou um grupo grande de pobres, e dessa forma o Lester continuará nas tradicionais operações mercantis, ao menos enquanto eu for o presidente. Se resolvêssemos pôr em prática tal fusão, porém, não prevê problemas gigantescos?

— E poucos deles não conseguiríamos superar, desde que ambas as partes tenham boa vontade. Mas terá de refletir sobre as implicações, William, visto que, sem dúvida alguma, você perderia o controle total do novo banco como acionista minoritá­rio, o que o tornaria vulnerável a uma oferta de encampação.

— Pois eu correria esse risco, desde que fosse o presidente de uma das maiores instituições financeiras dos Estados Unidos.

 

Nessa noite, William retornou eufórico a Nova Iorque e con­vocou uma reunião dos diretores do Lester, para expor a proposta de Tony Simmons. Ao verificar que, em princípio, o conselho aprovava a fusão, tratou de instruir cada gerente do banco no sentido de refletir detidamente sobre o plano.

Os chefes de departamento demoraram três meses para apresentar um relatório ao conselho, e todos chegaram à mesma conclusão: havia consenso para a fusão, visto que os dois bancos, sob vários aspectos, se complementavam. Com agências espalhadas, por todos os Estados Unidos e filiais na Europa, ambos tinham muito a oferecer um ao outro. Além do mais, o presidente do Lester continuaria detendo cinqüenta e um por cento do Kane & Cabot, transformando a fusão simplesmente numa casamento de interesse. Alguns dos diretores do conselho do Lester's Bank não compreenderam por que William não havia tido antes tal idéia. Ted Leach era da opinião de que Charles Lester pensava justamente nisso quando nomeara William seu sucessor.

Os detalhes da absorção foram negociados durante quase um ano inteiro, e advogados trabalharam intensamente até as primeiras horas da madrugada a fim de completar a documen­tação necessária. Depois da fusão, William continuou sendo o maior acionista, com oito por cento da nova companhia, e foi no­meado presidente do novo banco. Tony Simmons continuou em Boston, como vice-presidente, e Ted Leach, em Nova Iorque, como outro vice-presidente. O novo banco mercantil foi rebatizado de Lester, Kane & Company, mas ainda era chamado de Lester.

William resolveu dar uma entrevista à imprensa de Nova Iorque para anunciar ao mundo financeiro a próspera fusão dos dois bancos, e escolheu uma segunda-feira, 8 de dezembro de 1941. A entrevista à imprensa foi cancelada, porque na manhã anterior à sua realização os japoneses haviam atacado Pearl Harbor.

Os boletins informativos haviam sido enviados aos jornais alguns dias antes, mas na manhã de quinta-feira as páginas de economia, compreensivelmente, destinaram um espaço insignifi­cante ao anúncio da fusão. A falta de destaque já não era a preo­cupação principal na mente de William.

Não tinha idéia de como ou quando contaria a Kate que pretendia alistar-se. Quando Kate soube de sua decisão, horrori­zou-se e esforçou-se prontamente por fazê-lo voltar atrás.

— O que imagina poder fazer que milhões de outros não possam? — inquiriu.

— Não estou muito certo quanto a isso — respondeu Wil­liam. — Tudo o que sei é que devo fazer o que papai ou vovô teriam feito diante das mesmas circunstâncias.

– Sem sombra de dúvida, eles teriam feito o melhor no interesse do banco.

– Não – replicou William vivamente. — teriam feito o melhor no interesse da América.

 

Abel leu a notícia sobre o Lester, Kane & Company, publi­cada na seção de economia do Chicago Tribune. Como um grande espaço fora dedicado às conseqüências do ataque japonês a Pearl Harbor, a curta notícia lhe teria passado despercebida se não hou­vesse junto uma foto pequena e antiga de William Kane, tão an­tiga, de fato, que ele se parecia com o Kane que Abel visitara em Boston havia mais de dez anos. Evidentemente, um Kane jovem demais, que não correspondia ao brilhante presidente do recém-formado Lester, Kane & Company, segundo a descrição do jornal. A nota prosseguia, em tom profético: O novo banco, uma fusão do Lester de Nova Iorque com o Kane & Cabot de Boston, poderá tornar-se uma das mais importantes instituições financei­ras dos Estados Unidos em virtude da união dos dois bancos de famílias ilustres, por decisão de William Kane. Até onde o Tribune pôde apurar, as ações estão em poder de cerca de vinte pessoas relacionadas ou estreitamente ligadas às duas famílias.

Abel sentiu grande prazer ao ler a última informação, por compreender que o controle absoluto escapara às mãos de Kane. Releu a notícia. Desde a época em que se haviam digladiado, sem dúvida Kane ascendera em posição, mas também ele o fizera, e, contudo, faltava-lhe acertar uma velha dívida com o recém-nomeado presidente do Lester. Tão apreciável fora o crescimento do Grupo Baron ao longo de uma década que Abel conseguira liquidar os empréstimos, cumprir à risca o acordo inicial firmado com o financiador e assegurar a detenção dos cem por cento da empresa no prazo de dez anos, conforme fora estipulado.

No último trimestre de 1939, Abel conseguiu saldar o em­préstimo, obtendo em 1940 lucros acima do limite de meio mi­lhão de dólares. Tal marco coincidira com a abertura de dois novos hotéis Baron, em Washington e San Francisco. Durante esse período, embora tenha sido um marido pouco dedicado, dificil­mente se poderia ter tornado pai mais afetuoso. Zaphia, que desejava com ardor um segundo filho, após muito insistir con­venceu-o a consultar um médico. Ao tomar conhecimento de que quase com certeza não teria outro filho, devido a uma produção insuficiente de espermatozóides, provavelmente causada por en­fermidades ou pela desnutrição à época da dominação alemã e russa, Abel perdeu as esperanças e cuidou de proporcionar tudo a Florentyna.

A fama de Abel espalhava-se agora pelos Estados Unidos, e a imprensa passara a referir-se a ele como o "Barão de Chica­go". Ele não ligava mais importância às chacotas que lhe faziam pelas costas. Wladek Koskiewicz havia chegado, e, o que era mais importante, chegara para ficar. Em 1941, seus treze hotéis apre­sentaram um lucro apenas um pouco abaixo de um milhão, e, com o recente aumento de capital, ele resolveu dar prossegui­mento a seus planos de expansão.

Mas então os japoneses atacaram Pearl Harbor.

Abel enviava somas consideráveis de dinheiro à Cruz Ver­melha inglesa, para auxiliar seus compatriotas, desde o terrível dia de setembro de 1939, quando os nazistas invadiram a Polônia, para enfrentar os russos mais tarde em Brest-Litovsk e, mais uma vez, dividir entre si a sua terra natal. Travara uma batalha dentro do Partido Democrata e na imprensa, com o objetivo de levar os Estados Unidos, ainda relutantes, a entrar na guerra, mesmo que fosse preciso lutar ao lado dos russos. Até ali seus esforços ha­viam resultado inúteis, mas, num domingo de dezembro, quando as estações de rádio relatavam em altos brados todos os detalhes da guerra a uma nação perplexa, Abel teve a certeza de que, a partir daquele instante, os Estados Unidos estavam envolvidos no conflito. Em 11 de dezembro, o presidente Roosevelt disse à nação que a Alemanha e a Itália haviam declarado guerra aos Estados Unidos. A intenção de Abel era alistar-se, mas, antes disso havia uma declaração de guerra que ele próprio queria fazer, e, com tal propósito, fez uma ligação para Curtis Fenton, do Continental Trust Bank. Com o decorrer do tempo, Abel passara a confiar na capacidade de julgamento de Fenton, e, após assu­mir o comando total do Grupo Baron, conservara-o no conselho a fim de preservar um estreito vínculo entre o grupo e o Conti­nental Trust.

Curtis Fenton, com a formalidade costumeira e a cortesia de sempre, atendeu ao telefone.

— Qual é o saldo da conta de reserva do grupo? — per­guntou Abel.

Curtis Fenton pegou a pasta assinalada com uma Conta n.º 6, lembrando-se da época em que todos os negócios do sr. Rosnovs­ki podiam constar de uma só pasta. Examinou algumas cifras.

— Um pouco menos de dois milhões de dólares — disse.

– Ótimo — disse Abel. — Quero que o senhor faça algumas pesquisas sobre o recém-formado Lester, Kane & Company. Des­cubra os nomes de todos os acionistas, que porcentagem detêm, e se existem possibilidades de venderem suas ações. Tudo deverá ser feito sem o conhecimento do presidente do banco, o sr. Wil­liam Kane, e sem que o meu nome seja mencionado.

Curtis Fenton suspendeu a respiração e não disse nada. Fe­lizmente Abel Rosnovski não lhe podia ver o rosto surpreso. "Por que razão ele deseja aplicar dinheiro em algo relacionado com William Kane?" Fenton havia lido no Wall Street Journal a res­peito da incorporação dos dois bancos renomados. Em parte por causa de Pearl Harbor, em parte por causa da dor de cabeça da mulher, também ele quase não notara a notícia. A solicitação de Rosnovski lhe fez lembrar que tinha de enviar um telegrama de congratulações a William Kane. Fez uma anotação a lápis ao pé da pasta do Grupo Baron, enquanto ouvia as instruções de Abel.

— Quando tiver informações completas, me telefone, não me escreva.

— Pois não, sr. Rosnovski.

"Alguém deve estar a par do que aconteceu entre esses dois", Curtis Fenton disse para si mesmo, "mas eu o ignoro completa­mente."

Abel prosseguiu:

— Inclua também em seu relatório trimestral, e com deta­lhes, todas as declarações oficiais feitas pelo Lester, e quais as companhias com que está envolvido.

— Sem dúvida, sr. Rosnovski.

— Obrigado, sr. Fenton. A propósito, minha equipe de pes­quisa de mercado aconselhou-me abrir um novo Baron em Mon­treal.

— A guerra não o preocupa, sr. Rosnovski?

— Oh, não de modo algum. Se os alemães alcançarem Mon­treal, fecharemos as portas, inclusive as do Continental Trust. Em todo caso, vencemos esses calhordas da última vez e os ven­ceremos de novo. A única diferença é que, desta vez, poderei tomar parte na guerra. Bom dia, sr. Fenton.

"Jamais entenderei o que se passa na cabeça de Abel Ros­novski", refletiu Curtis Fenton, desligando o telefone. Seus pen­samentos transferiram-se para a outra solicitação de Abel: os detalhes sobre as ações do Lester. Tal pedido o preocupava ainda mais. Embora não houvesse mais nenhuma relação entre William Kane e Abel Rosnovski, receava pelos resultados dessa decisão, caso seu cliente adquirisse uma quantidade considerável de ações do Lester. Conformou-se, no entanto, em não manifestar suas opiniões a Rosnovski, imaginando que chegaria o dia em que um deles pudesse explicar o fim que ambos perseguiam.

Abel, por sua vez, perguntava-se se não deveria contar a Curtis Fenton a razão pela qual desejava comprar ações do Lester. Concluíra, porém, que, quanto menos pessoas tomassem conhe­cimento de seus planos, melhor.

Afastou temporariamente William Kane do pensamento e pediu à secretária que localizasse George, agora vice-presidente do Grupo Baron. George crescera juntamente com Abel e acaba­ra por se transformar no seu lugar-tenente de maior confiança. Sentado em seu escritório do quadragésimo segundo andar do Baron de Chicago, Abel baixou o olhar para o lago Michigan, fixando-o sobre a Costa de Ouro, como ficara conhecida, mas com os pensamentos voltados para a Polônia. Perguntava-se se viveria o suficiente para rever o castelo, agora dentro das fron­teiras russas, sob o domínio de Stálin. Estava ciente de que ja­mais se fixaria na Polônia, mas ainda esperava que o castelo lhe fosse restituído. A simples idéia de que os alemães ou os russos ocupariam de novo o seu lar esplêndido fê-lo desejar...

A chegada de George interrompeu-lhe os pensamentos.

— Queria falar comigo, Abel?

George era o único membro do grupo que ainda chamava pelo nome o Barão de Chicago.

— Queria, George. Se eu precisar me ausentar por alguns meses, acha que pode ir tocando os hotéis?

— Sem dúvida — disse George. — Finalmente vai tirar as férias que pretende?

— Não. Vou lutar na guerra.

— O quê?! O que foi que disse?!

— Amanhã cedo vou a Nova Iorque alistar-me no Exército.

— Mas você enlouqueceu! Poderá morrer!

— Bem, não é nisso que estou pensando — replicou Abel. — Pensei apenas em matar alguns alemães. Esses canalhas não me pegaram da primeira vez, e não vou deixar que me peguem agora.

George argumentou que os Estados Unidos podiam vencer a guerra sem a colaboração de Abel. Zaphia também se opôs; odiava a própria idéia da guerra. A pequena Florentyna, que aca­bara de fazer oito anos, explodiu num choro. Não sabia exata­mente o que significava a guerra, mas compreendia que o pai fica­ria longe por muito, muito tempo.

A despeito das objeções, no dia seguinte Abel entrou num avião pela primeira vez e voou para Nova Iorque. Os Estados Unidos inteiros pareciam tomar direções opostas, a cidade repleta de jovens vestidos de uniforme cáqui e despedindo-se de pais, namoradas e esposas, todos assegurando um ao outro que a guer­ra terminaria dentro de poucas semanas, mas ninguém acreditando nisso.

Abel chegou ao Baron de Nova Iorque a tempo de jantar. O restaurante estava cheio de jovens, garotas que se agarravam desesperadamente a soldados, marinheiros e pilotos, enquanto Frank Sinatra cantava ao ritmo da orquestra de Tommy Dorsey. Observando-os dançar na pista, Abel pensava em quantos deles teriam de novo a oportunidade de divertir-se numa noite como essa. Inevitavelmente, lembrou-se de Sammy explicando-lhe de que modo tornara-se maître no restaurante do Plaza. Três homens que ocupavam postos superiores retornaram do front aleijados. Nenhum daqueles jovens poderia imaginar o que de fato era uma guerra. Abel não participou da festa — se é que se podia cha­má-la assim. Em vez disso, recolheu-se ao quarto.

De manhã, pôs um terno preto e rumou para o posto de recrutamento da Times Square. Escolhera Nova Iorque para alis­tar-se porque receava ser reconhecido por alguém em Chicago e mandado para uma poltrona de executivo. O posto estava mais cheio do que a pista de dança na noite anterior, mas ali ninguém se agarrava a ninguém. Abel esperou a manhã inteira, até final­mente preencher um formulário que, no seu próprio escritório, não lhe teria tomado mais de três minutos. Não pôde deixar de reparar que os outros recrutas pareciam bem mais preparados que ele. Permaneceu em fila por mais duas horas, e por fim veio o momento de ser entrevistado por um sargento, que lhe perguntou em que trabalhava.

— Gerente de hotel — respondeu, e desandou a contar ao oficial suas experiências da Primeira Guerra Mundial. Sem dizer nada, o sargento fitou o homem de um metro e sessenta e sete e oitenta e seis quilos com uma expressão de incredulidade. Se Abel lhe tivesse dito que era o Barão de Chicago, o oficial não teria duvidado de suas histórias sobre encarceramento e fugas, mas ele preferiu guardar tais informações e receber o tratamento dado a qualquer cidadão comum.

— Volte amanhã cedo para exame médico — foi tudo o que o sargento disse depois que Abel terminou o monólogo, e ajuntou, como se o comentário fizesse parte do seu dever: — Obrigado por se apresentar como voluntário.

Na manhã seguinte, Abel ficou horas na fila até submeter-se a um exame completo. O médico foi desagradavelmente sincero quanto à sua condição física. Sua posição e seu sucesso, ao longe daqueles anos, tinham-no protegido contra tal tipo de comentário. Ao saber da classificação em que o médico o enquadrara, em 4F, foi como se, de repente, despertasse.

— Está com excesso de peso, seus olhos são um pouco ruins, seu coração está fraco e você manca. Francamente, Ros­novski, está sem condições. Não podemos mandar ao campo de batalha soldados que, muito provavelmente, terão um ataque car­díaco antes mesmo de enfrentar o primeiro inimigo. O que não quer dizer que não possamos utilizar os seus serviços; se estiver interessado, nessa guerra há uma série de trabalhos burocráticos que precisam ser feitos.

Abel sentiu vontade de esmurrá-lo, mas sabia que isso não o ajudaria a vestir um uniforme.

— Não, obrigado... senhor. Quero lutar contra os alemães, não enviar-lhes cartas.

Voltou sem ânimo para o hotel, mas não se deu por vencido. Resolveu fazer nova tentativa no dia seguinte. Foi a outro posto de recrutamento, mas retornou ao Baron com o mesmo desânimo. Reconheceu que o segundo médico fora bem mais educado, em­bora igualmente firme quanto às suas condições físicas, enquadrando-o de novo na classificação 4F. Sem dúvida nenhuma, não iriam aceitá-lo para lutar contra quem quer que fosse naquele estado de saúde.

Na manhã seguinte, procurou uma academia de ginástica na West 57th Street e contratou um instrutor particular que lhe ajei­tasse o físico. Durante três meses, todos os dias exercitou-se para perder peso e pôr-se em forma. Boxeou, lutou, correu, saltou, pulou corda, levantou peso e fez regime. Quando chegou aos ses­senta e seis quilos, o instrutor garantiu-lhe que dificilmente ga­nharia melhor forma ou ficaria mais magro. Abel voltou ao pri­meiro posto de recrutamento e preencheu o formulário sob o nome de Wladek Koskiewicz. O novo sargento deu-lhe esperança, e o oficial médico, após submetê-lo a uma série de exames, admitiu-o como reservista, dizendo-lhe que aguardasse a convocação.

– Mas quero lutar na guerra agora mesmo — protestou Abel. –Quero lutar contra aqueles bastardos.

– Nós o avisaremos, sr. Koskiewicz — disse o sargento. — Mantenha a forma e fique preparado, por favor. Não sabemos quando precisaremos do senhor.

Abel saiu, furioso por ver que os americanos, mais jovens e magros, eram prontamente aceitos. Ao passar pela porta, absorto em sua próxima jogada, chocou-se contra um homem encorpado e desengonçado, os ombros ornados com algumas estrelas.

– Desculpe, senhor — falou, levantando os olhos e re­cuando, temeroso.

— Jovem... — disse o general.

Abel continuou a afastar-se, não achando que o oficial o cha­mava, uma vez que ninguém o chamava de jovem havia... nem queria saber há quanto tempo, apesar de ter apenas trinta e cinco anos.

— Jovem — o general insistiu, erguendo um pouco mais a voz.

Abel virou-se para trás.

— Eu, senhor?

— Sim, você.

Abel caminhou até o general.

— Por favor, venha ao meu escritório, sr. Rosnovski.

"Diabo", refletiu Abel, "esse homem sabe quem eu sou, e agora ninguém vai me deixar lutar nesta guerra."

O escritório improvisado do oficial ficava nos fundos do edifício, uma saleta com uma mesa, duas cadeiras de madeira, a pintura em verde da parede descascando e uma porta escancarada. Abel jamais permi­tiria que um funcionário do Baron trabalhasse num ambiente desse tipo.

— Sr. Rosnovski — o general começou, transpirando ener­gia —, meu nome é Mark Clark, e sou comandante do 5.° Exér­cito. Acabo de chegar de Governors Island, onde passei o dia fazendo uma inspeção, de modo que topar com o senhor, literal­mente, foi uma surpresa agradável. Há muito tempo que o admi­ro. Sua história alegra o coração de todos os americanos. Agora, diga-me, o que está fazendo neste posto de recrutamento?

– O que é que o senhor acha? — disse Abel, sem pensar. Desculpe, senhor — emendou em seguida. — Não quis ser grosseiro. Acontece que ninguém me deixa entrar nessa droga de guerra.

— E o que quer fazer nessa droga de guerra?

— Alistar-me e lutar contra os alemães.

— Como soldado de infantaria? — perguntou, incrédulo, o general.

— Isso mesmo. Não vai precisar de um grande contingente?

— Naturalmente, mas posso utilizar suas qualidades de uma maneira mais proveitosa.

— Farei qualquer coisa — disse Abel —, qualquer coisa.

— Fará mesmo? — E seu eu pedir que coloque à minha disposição o seu hotel de Nova Iorque, para servir de centro de operações do Exército? Hein? Porque, sinceramente, sr. Ros­novski, isso me seria de mais utilidade do que se o senhor con­seguisse matar uma dúzia de alemães.

— O Baron é seu — disse. — Então, vai me deixar ir para a guerra?

— Sabe que o senhor é louco, sr. Rosnovski? — disse o general Clark.

— Sou polonês — disse Abel.

Os dois riram.

— Com­preendo — continuou em tom mais grave.

— Nasci perto de Slonim. Vi os alemães se apossarem de minha casa, os russos vio­lentarem minha irmã. Depois fugi de um campo de prisioneiros russo e tive muita sorte de chegar aos Estados Unidos. Não sou louco. Esta é a única nação do mundo onde a gente pode chegar sem nada e virar milionário dando duro no trabalho, independen­temente do passado. Agora esses canalhas estão fazendo outra guerra. Não sou louco, não, general. Sou um ser humano.

— Bem, se está tão ansioso assim para colaborar, sr. Ros­novski, posso usá-lo, mas não do jeito que imagina. O general Denvers precisa de alguém que assuma as responsabilidades do quartel-general do 5.° Exército enquanto estiver combatendo nas linhas de frente. Se acredita que Napoleão tinha razão quando afirmou que o exército marcha conforme o próprio estômago, o senhor poderá desempenhar um papel vital. O serviço exige o posto de major. Esta é a única maneira, sem nenhuma dúvida, de o senhor ajudar os Estados Unidos a ganhar a guerra. O que me diz?

— Aceito, general.

— Obrigado, sr. Rosnovski.

O general apertou uma campainha surda instalada na mesa, e um tenente bastante jovem entrou, fazendo a continência.

— Tenente, leve o major Rosnovski ao pessoal e depois traga-o de volta.

– Sim, senhor. — O tenente dirigiu-se a Abel. — Por favor, queira me acompanhar.

Abel, ao alcançar a porta, virou-se.

— Obrigado, general.

 

Abel passou o fim de semana em Chicago, na companhia de Zaphia e Florentyna. Zaphia perguntou-lhe o que deveria fazer com os seus quinze ternos.

— Guarde-os — respondeu, intrigado com a pergunta. — Minha intenção não é morrer nessa guerra.

— Sei que não, Abel — ela retrucou. — Isso nem me passou pela cabeça. É que agora cabem três de você dentro deles.

Abel riu e doou os ternos ao centro polonês de refugiados. Retornou a Nova Iorque, foi ao Baron, cancelou as reservas de quartos e, doze dias mais tarde, entregou o prédio ao 5.° Exército. A imprensa saudou a decisão de Abel como um "gesto altruísta", digno de um homem que fora ele próprio um refugiado da Pri­meira Guerra Mundial.

Três meses depois, convocaram-no para o serviço ativo, quan­do então organizou o funcionamento regular do Baron de Nova Iorque para o general Clark, e posteriormente apresentou-se em Fort Benning, onde concluiu o programa de treinamento de ofi­ciais. Finalmente, recebeu instruções de reunir-se ao general Den­vers no 5.° Exército, e soube que partiria para certa região da África do Norte. Imaginou que algum dia acabaria na Alemanha.

Um dia antes de partir, fez um testamento, solicitando aos executores que oferecessem o Grupo Baron a David Maxton em condições favoráveis, e dividindo os bens restantes entre Zaphia e Florentyna. Pela primeira vez, em quase vinte anos, considerava a perspectiva da morte, embora não visse de que modo poderia morrer na cantina do regimento.

Enquanto o navio do Exército deixava o porto de Nova Iorque, Abel contemplou a Estátua da Liberdade. Era viva a sen­sação de quando a vira pela primeira vez, quase vinte anos antes. Depois que o navio passou pela senhora, não tornou a olhá-la, mas falou em voz alta:

– Da próxima vez que eu passar aqui, sua cadela francesa, os Estados Unidos já terão vencido a guerra.

Abel atravessou a Atlântico, levando dois dos cozinheiros-chefes mais qualificados e cinco empregados da cozinha. O navio atracou em Argel em 1.° de fevereiro de 1943. Abel passou pouco menos de um ano sob o sol, em meio à poeira e à areia do deserto, procurando garantir a boa alimentação de todos os membros da divisão.

— Comemos mal, mas enxergamos melhor que ninguém — comentou o general Clark.

Abel requisitou para fins militares o único bom hotel de Argel e transformou o edifício no QG do general Clark. Em­bora não deixasse de compreender o quanto era valioso o seu papel, ansiava por lançar-se à verdadeira luta, mas os majores incumbidos das provisões só raramente eram enviados à frente de batalha.

Escreveu a Zaphia e a George e acompanhou o crescimento da adorada filha Florentyna por fotografias. Chegou a receber uma carta de Curtis Fenton, informando-o de que o Grupo Baron, devido ao contínuo movimento de soldados e civis, que lotavam os hotéis dos Estados Unidos, vinha obtendo lucros ainda mais expressivos. Abel lamentou não poder presenciar a inauguração do hotel de Montreal, onde George o representava. Pela primeira vez estaria ausente da inauguração de um Baron, mas George es­creveu-lhe relatando em minúcias o grande sucesso do novo hotel. Abel começara a perceber a obra de vulto que realizara nos Esta­dos Unidos e a sentir grande desejo de retornar à terra que agora se lhe afigurava um lar.

Logo enfadou-se com a África, com os equipamentos do rancho, os feijões cozidos, as mantas e os moscadeiros. Havia uma ou duas escaramuças encarniçadas no deserto, a oeste, ou pelo menos assim lhe disseram os homens que haviam voltado, mas nunca vira nenhum combate propriamente dito, embora, amiúde, quando levava comida ao front, ouvisse rajadas que o deixavam ainda mais irascível. Certo dia emocionou-se: o 5.° Exér­cito, sob o comando do general Clark, recebera ordens de invadir a Europa pelo Sul.

O 5.° Exército desembarcou na costa da Itália em embar­cações anfíbias, sob a cobertura tática dos aviões americanos. De­frontaram-se com uma forte resistência, primeiro em Anzio, e, em seguida, em Monte Cassino, mas Abel nunca se envolveu diretamente num combate, e começava a recear que a guerra ter­minasse sem que ele chegasse a participar de uma só batalha. Não conseguira arquitetar nenhum plano que o levasse às linhas de frente. Foi promovido a tenente-coronel e mandado a Londres, onde ficou aguardando ordens posteriores. Não lhe fora dada a oportunidade de lutar.

 

Com o Dia D, começava o grande ataque à Europa pela costa ocidental. Os Aliados entraram na França, e, no dia 25 de agosto de 1944, libertaram Paris. Enquanto os americanos e os combatentes da Resistência francesa marchavam ao longo da Champs-Élysées, logo atrás do general De Gaulle, saudados como heróis, Abel contemplava a cidade ainda deslumbrante, e, mais uma vez, decidiu onde construiria o seu primeiro Baron da França.

Os Aliados subiram pelo norte da França, atravessaram a fronteira alemã e por fim avançaram rumo a Berlim. Abel fora transferido para o 1.° Exército, sob o comando do general Omar Bradley. As provisões eram enviadas principalmente pela Ingla­terra: os suprimentos regionais praticamente inexistiam, visto que os alemães, batendo em retirada, arrasavam invariavelmente as cidades por que passavam. A cada cidade que chegava, Abel não precisava mais que umas poucas horas para apoderar-se das pro­visões restantes, antes que outros oficiais intendentes americanos descobrissem exatamente onde encontrá-las. Os oficiais ingleses e americanos compraziam-se em jantar com a 9.a Divisão Blindada, e, quando se retiravam, mostravam-se curiosos por saber de que modo se conseguiam alimentos tão bons. Em certa ocasião, quan­do o general George S. Patton reuniu-se num jantar com Bradley, Abel foi apresentado ao famoso general, o qual, com as suas tro­pas em ação, costumava brandir o revólver de cabo de marfim.

— Foi a melhor refeição que fiz durante esta guerra mal­dita — comentou Patton.

 

Em fevereiro de 1945, Abel estava prestes a completar três anos de serviço e não ignorava que a guerra terminaria em ques­tão de meses. O general Bradley mandava-lhe notas de congra­tulação e dava-lhe condecorações sem valor algum, com as quais ele adornava o uniforme, que se ia tornando apertado à medida que engordava. Nada disso o apaziguava. Implorava ao general que o deixasse participar de pelo menos uma batalha, mas Bra­dley nem sequer o ouvia.

Embora fosse função de um subordinado levar os caminhões de viveres às linhas de frente e lá supervisionar as refeições das tropas, Abel amiúde incumbia-se dessa tarefa. A exemplo da época em que administrava seus hotéis, não revelava ao pessoal em que momento ou em que lugar apareceria, agindo sempre de maneira inesperada.

Num certo dia de março, Abel, impressionado com o fluxo contínuo de macas cobertas por mantas, resolveu ir ver a guerra bem de perto com os seus próprios olhos. Não mais suportando assistir à chegada de mortos e feridos, organizou pessoalmente os catorze caminhões de víveres e levou consigo um tenente, um sargento, dois cabos e vinte e oito soldados.

A frente de luta ficava a apenas trinta quilômetros de onde ele estava, mas o avanço se fazia lento e cansativo naquela manhã. Abel dirigia o primeiro caminhão — sentindo-se um pouco como se fosse o general Patton —, abrindo caminho na lama em meio à chuva violenta; várias vezes ele teve de tirar o caminhão da estrada e dar passagem às ambulâncias que retornavam. Os corpos feridos eram muito mais importantes que os estômagos vazios. Desejou que a maior parte daqueles corpos estivessem apenas fe­ridos; mas só vez ou outra um sinal de cabeça ou um aceno sugeria indício de vida. Abel convencia-se de que algo grave acon­tecia nas proximidades de Remagen. Seu coração batia acelerado, e ele teve certeza de que, dessa vez, de alguma maneira ele se veria envolvido no combate.

Finalmente, atingiu o local de comando, ouvindo o fogo do inimigo a distância, e, com raiva, golpeou a perna, enquanto seus olhos seguiam as macas que traziam de volta, não sabia de onde, dezenas de camaradas mortos e feridos. Afligia-o pensar que só teria uma noção da verdadeira guerra quando esta estivesse nas páginas da História. Imaginava que qualquer leitor do New York Times estaria mais bem informado que ele próprio.

O comboio liderado por Abel parou ao lado da cozinha de campo. Ele saltou do caminhão e protegeu-se contra a chuva forte, envergonhando-se pelo fato de que aqueles seus soldados, a apenas poucos quilômetros dali, haviam procurado proteger-se das balas. Abel supervisionou o descarregamento de cem galões de sopa, uma tonelada de carne em salmoura, duzentas galinhas, meia tonelada de manteiga, três toneladas de batatas e latas de feijão cozido de cinqüenta quilos — além das inevitáveis rações K —, prontos para serem servidos àqueles que partiam para o front ou dele voltavam. Quando entrou na barraca do refeitório, encontrou-a cheia de mesas compridas e bancos vazios. Instruiu os chefes de cozinha, que preparariam a refeição, e os ordenanças, que come­çariam a descascar mil batatas, e saiu à procura do oficial coman­dante.

Dirigiu-se diretamente à barraca do general-de-brigada John Leonard, decidido a saber o que estava acontecendo, passando a todo instante pelas macas em que estavam soldados mortos ou — o que era pior — quase mortos, cuja visão causaria impacto a um homem comum, mas que, em Remagen, tinha a aparência de normalidade. Antes que pudesse entrar na barraca, o general Leo­nard, seguido do ajudante-de-ordens, saiu apressado. Enquanto andava, falou com Abel:

— Qual é o problema, coronel?

— Comecei a preparar a comida para o seu batalhão, se­gundo ordens de ontem à noite, senhor. O que... ?

— Não se preocupe com a comida agora, coronel. Hoje, à primeira luz do dia, o tenente Burrows, da 9.ª Divisão, descobriu uma ponte ainda de pé ao norte de Remagen. Ordenei a travessia imediata, para estabelecer uma cabeça-de-ponte na margem leste do rio. Os alemães têm conseguido explodir todas as pontes do Reno. Não vamos ficar esperando a comida, enquanto eles podem destruir também aquela.

— A 9.ª Divisão chegou a atravessá-la? — perguntou Abel, ofegando.

— Claro que sim — respondeu o general. — Mas, quando atingiu a floresta além do rio, encontrou forte resistência. Eles nos atacaram de emboscada, e só Deus sabe quantos homens perde­mos. Por isso, coronel, é melhor que coma a sua comida sozinho, porque, neste momento, só me interessa trazer de volta os sobre­viventes.

— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Abel.

O comandante deteve-se por um instante e olhou o coronel rechonchudo.

— Quantos homens estão sob seu comando?

— Um tenente, um sargento, dois cabos e vinte e oito sol­dados. Trinta e três ao todo, senhor, incluindo eu.

– Bem. Apresente-se ao médico-chefe com os seus homens e vá buscar o maior número de feridos e mortos que puder.

– Sim, senhor — e Abel correu à barraca da cozinha, onde encontrou seus comandados sentados num canto, fumando.

– Levantem-se, bando de preguiçosos! Para variar, temos muito trabalho a fazer.

– Trinta e dois homens puseram-se na posição de sentido.

— Sigam-me — gritou Abel —, depressa!

Todos o acompanharam, correndo em direção ao hospital de campanha. Um médico jovem instruía dezesseis oficiais médicos. Abel surgiu à entrada da barraca, acompanhado de seus homens despreparados e ofegantes.

— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou o médico.

— Não, eu é que espero poder ajudá-lo — respondeu Abel. — Trouxe comigo trinta e dois homens, recebi ordem do general Leonard de nos reunir ao seu grupo.

O médico arregalou os olhos, surpreso.

— Ótimo, senhor.

— Não me chame de senhor — disse Abel. — Estamos aqui para ajudá-lo.

— Sim, senhor — falou de novo o médico.

Ele entregou a Abel um estojo com faixas da Cruz Vermelha, que os cozinheiros, os ordenanças e os descascadores de batata começaram a pôr no braço, enquanto ouviam as instruções que o médico lhes dava, fornecendo-lhes detalhes do confronto na floresta, do outro lado da ponte Ludendorff.

— A 9.ª Divisão sofreu baixas graves — prosseguiu. — Os soldados que têm experiência de primeiros socorros ficam na zona de combate, e os outros trazem para cá quantos feridos puderem.

Abel exultava com a oportunidade de, pelo menos uma só vez, fazer alguma coisa útil. O médico, agora no comando de quarenta e nove homens, distribuiu dezoito macas, e cada soldado recebeu uma mochila de curativos de emergência. Em seguida, levou o grupo heterogêneo até a ponte Ludendorff. Abel seguia-o, apenas um metro atrás dele. Na estrada de barro, debaixo de chuva, puseram-se a cantar; calaram-se quando alcançaram a ponte e os padioleiros mostraram-lhes o contorno nítido de um corpo coberto apenas com mantas. Formando uma única coluna, cruza­ram a ponte em silêncio e desceram por uma trilha ao lado da estrada, de onde puderam ver os resultados da explosão provocada pelos alemães, que felizmente não destruíra as fundações da ponte. Rumaram para a floresta, ouvindo os disparos. Abel excitava-se com a proximidade do inimigo, ao mesmo tempo horrorizado com aquilo que este era capaz de infligir aos seus compatriotas. Para onde se virasse, ouvia gemidos de dor de seus camaradas. Cama­radas que, pouco antes, nesse dia, acreditavam ansiosamente que o fim da guerra estava próximo — mas não tão próximo.

Abel observou o jovem médico deter-se repetidas vezes para ajudar, da melhor maneira possível, cada ferido que encontrava, Por vezes, sem hesitar, ele matava misericordiosamente um sol­dado, certo de que não havia esperança alguma de salvá-lo. Abel correu de soldado para soldado, colocando em macas os que se achavam impossibilitados de mover-se e indicando aos que podiam andar a direção que os levaria de volta à ponte Ludendorff. Quan­do os grupos atingiram a borda da floresta, apenas o médico, um dos descascadores de batata e Abel ficaram para trás; os mortos e os feridos iam sendo carregados para o campo pelos outros homens.

Enquanto os três penetravam pela floresta, os disparos ini­migos soavam próximos. Abel avistou o perfil de uma metralha­dora, já danificada, escondida entre a vegetação e ainda apontada para a ponte. De súbito, uma rajada cortou o ar tão estrepitosamente que, pela primeira vez, ele tomou consciência de que o inimigo se encontrava bem próximo. Estendeu-se no chão e aguar­dou, os sentidos extremamente alertas. De repente, houve uma nova eclosão de rajadas. Num salto, ergueu-se e avançou correndo, seguido pelo médico e pelo descascador de batatas, embora relu­tantes. Correram algumas centenas de metros e, finalmente, depa­raram com uma extensão de relva viçosa, uma depressão coberta de flores alvas de açafrão e repleta de corpos de soldados ameri­canos. Abel e o médico aproximaram-se dos corpos.

— Foi um massacre — gritou Abel, enraivecido, enquanto ouvia os disparos que se distanciavam.

O médico não fez nenhum comentário: aquilo o chocara três anos atrás.

— Não se preocupe com os mortos — foi tudo o que falou. — Veja se algum está vivo.

— Aqui — bradou Abel, ajoelhando-se ao lado de um sar­gento imerso na lama. Os olhos estavam despedaçados.

— Está morto, coronel — disse o médico, não tornando a olhar.

Abel correu até outro corpo, e assim sucessivamente. Era sempre a mesma constatação, porém, somente a visão de uma cabeça decepada, enfiada na lama, impediu Abel de prosseguir. Desviou o olhar, mas, atraído, tornou a olhá-la: era como o busto de um deus grego que jamais se moveria. Qual uma criança, ele recitou as palavras que aprendera aos pés do barão: — "Sangue e morte serão tão comuns, e as coisas mais ter­ríveis tão familiares, que as mães só saberão sorrir ao contemplar seus filhos esquartejados pelas mãos da guerra." Nada muda? — perguntou Abel, revoltado.

— Nada, a não ser o campo de batalha — respondeu o mé­dico.

Depois de contar trinta homens — ou eram quarenta? —, Abel reuniu-se ao médico, que procurava salvar a vida de um ca­pitão, o qual, exceto por um olho cerrado e a boca, fora inteira­mente envolto em ataduras já ensopadas de sangue. Abel postou-se ao lado do médico, impotente, olhando a insígnia no ombro do capitão — da 9.ª Divisão Blindada — e lembrando-se das pala­vras do general Leonard: "Só Deus sabe quantos homens per­demos hoje".

— Malditos alemães! — exclamou Abel.

— Sim, senhor — comentou o médico.

— Ele está morto? — indagou Abel.

— Deveria estar — replicou o médico automaticamente. — Está perdendo tanto sangue que é só uma questão de tempo. — Ergueu os olhos. — Coronel, não há nada a fazer aqui. Leve este para o hospital antes que morra. Diga ao comandante da base que eu vou depois e que preciso de quantos homens ele puder arranjar.

— Certo — disse Abel, ajudando o médico a carregar cuidadosamente o capitão e colocá-lo numa padiola.

Abel e o descascador de batatas retornaram ao hospital de campanha a passos lentos e pesados, pois o médico lhes dissera que, ao menor movimento brusco da padiola, a perda de sangue seria ainda maior. Abel não permitiu ao descascador um só ins­tante de descanso durante o trajeto de três quilômetros até a base. Queria dar àquele homem a oportunidade de continuar vivo e então retornar à floresta para reencontrar-se com o médico.

Durante mais de uma hora, caminharam penosamente na lama, debaixo de chuva intermitente, e Abel receou que o capi­tão tivesse morrido. Finalmente, alcançaram o hospital, exaustos. Abel entregou o ferido aos cuidados da equipe médica.

Enquanto era carregado lentamente, o capitão abriu o olho não-enfaixado e o fixou em Abel. Tentou levantar um braço. Abel fez uma continência, sentindo uma tremenda vontade de pular de alegria ao ver o olho abrir-se e a mão mexer. Como pedira para que o homem vivesse!

Deixou o hospital, e, quando se punha a caminho da floresta, acompanhado de seu pequeno grupo de homens, foi detido por um oficial.

– Coronel — disse —, procurei-o por toda parte. Trezen­tos homens estão famintos! Que diabo, onde andou todo esse tempo?

— Fazendo uma coisa útil, para quebrar a rotina.

Pensando no jovem capitão, Abel fez meia-volta e rumou vagarosamente para a cozinha de campanha.

Para esses dois homens, a guerra tinha acabado.

 

Os padioleiros carregaram o capitão para dentro de uma bar­raca e deitaram-no cuidadosamente na mesa de cirurgia. O capitão William Kane da 9.ª Divisão percebeu o olhar de tristeza da en­fermeira que o fitava, mas achava-se impossibilitado de ouvi-la, ou por causa das bandagens que lhe envolviam a cabeça ou por­que ficara surdo. Observava-lhe os movimentos dos lábios, mas deles nada apreendia. Baixou as pálpebras e pensou. Pensou um bocado sobre o passado; pensou um pouco sobre o futuro; pensou muito depressa, temendo morrer. Sabia que, caso vivesse, lhe so­braria bastante tempo para pensar. Seus pensamentos agarraram-se a Kate, em Nova Iorque. A enfermeira viu duas lágrimas no canto dos seus olhos. Kate não aceitara a decisão dele de alistar-se. Ele sabia que ela jamais o compreenderia, e, sabendo também que não teria sido capaz de justificar-se, desistira de convencê-la. E agora a lembrança daquele rosto desesperado o perseguia. Nunca chegara de fato a refletir sobre a morte — nenhum homem o faz —, contudo, nesse momento, desejava tão-somente viver e voltar para sua família.

Ao deixar o Lester, William incumbira Ted Leach e Tony Simmons da administração do banco, até a sua volta... até a sua volta. Caso não voltasse, ambos não tinham nenhuma orientação de como proceder. Ambos não o compreenderam. Poucos dias depois, quando se alistou, mal pôde olhar os filhos. Richard, aos dez anos, fora sozinho à estação e contivera as lágrimas até o momento de ouvir que não poderia ir lutar com o pai contra os alemães.

William fora primeiramente enviado a uma escola de oficiais da Reserva, em Vermont. A última vez que estivera em Vermont fora com Matthew, para esquiar, subindo devagar as colinas e descendo-as muito depressa. Agora a viagem era lenta, tanto na subida quanto na descida. O curso tivera a duração de três me­ses, e, pela primeira vez, desde que deixara Harvard, ele retomara a boa forma física.

Cumprira sua primeira missão militar em Londres, repleta de americanos, onde servira como oficial de ligação entre ameri­canos e ingleses. Fora acantonado em Dorchester, de que o Minis­tério da Guerra britânico se apossara e que, posteriormente, o Exército americano utilizara. William lera em algum lugar que Abel Rosnovski tinha procedido da mesma maneira com o Baron de Nova Iorque, o que, na época, aprovara inteiramente. Os blecautes, as bombas voadoras e os alarmes de ataques aéreos evidenciavam que ele se encontrava no meio da guerra, mas se sentia estranhamente alheio ao que estava ocorrendo a apenas algumas centenas de quilômetros do Hyde Park. Durante toda a sua vida sempre fora de tomar iniciativas, e jamais um especta­dor. Deslocar-se entre o quartel-general de Eisenhower, na St. James, e o centro de operações de guerra de Churchill, na Storey's Gate, não correspondia à sua idéia de tomar iniciativa. Era como se, durante todo o curso da guerra, não fosse ter a opor­tunidade de enfrentar os alemães cara a cara, a menos que eles invadissem a Trafalgar Square.

Quando parte do 1.° Exército estacionou na Escócia, para exercícios de treinamento com os Black Watch[1], William fora enviado como observador, com a missão de transmitir os resulta­dos de suas averiguações. A longa e demorada viagem de ida e volta à Escócia, em um trem que parava constantemente, fê-lo compreender que já estava se tornando um brilhante mensageiro e levou-o a perguntar-se o motivo por que se havia alistado. A Escócia, William logo descobriu, era diferente. Ali, ao menos, respirava o ar do preparo da guerra. Assim que retornou a Lon­dres, solicitou transferência imediata para o 1.° Exército. O co­ronel que o comandava, e que jamais deixara na burocracia um homem que desejasse lutar, consentira na transferência.

Três dias depois, William estava de volta à Escócia, inte­grando seu novo regimento e começando o treinamento com as tropas americanas em Inveraray, que se preparavam para uma in­vasão que, todos sabiam, não tardaria. O treinamento fora penoso e intenso. As noites de luta em combates simulados com os Black Watch, nas colinas escocesas, contrastavam significativamente com as noites de Dorchester, quando ele escrevia relatórios.

Três meses depois, saltaram de pára-quedas no Norte da França e reuniram-se ao Exército de Omar N. Bradley. O cheiro da vitória pairava no ar, e William desejou ser o primeiro soldado a pisar em Berlim.

0 1.° Exército avançou em direção ao Reno, determinado a atravessar quaisquer pontes que encontrasse à frente. Nessa ma­nhã, o capitão Kane recebera ordens de prosseguir com sua tropa, cruzar a ponte Ludendorff e travar combate com o inimigo cerca de um quilômetro ao norte de Remagen, numa floresta situada na margem oposta do rio. Ele, no alto de uma colina, observou a 9.a Divisão atravessar a ponte, receando o momento de vê-la ir pelos ares.

O coronel conduzia seu próprio batalhão à frente. Liderando os duzentos e vinte homens sob o seu comando, a maioria dos quais, tal como ele próprio, indo à luta pela primeira vez, William o seguia. Não havia mais treinamentos com escoceses astutos que simulavam matá-lo com cartuchos de festim, e muito menos, de­pois do confronto, iriam todos reunir-se num refeitório. O que havia eram alemães com balas de verdade; o que havia era a morte — e, talvez, nenhum futuro.

Quando William e seus homens alcançaram as primeiras árvores, não encontrando resistência, resolveram penetrar mais fundo na floresta. A caminhada era lenta, monótona, e William começava a achar que a 9.ª Divisão havia realizado um trabalho completo, de modo que lhe cabia apenas acompanhá-la. De sú­bito, porém, sem saber como, viram-se emboscados, alvo de metralha e morteiros. O mundo inteiro parecia desabar sobre eles de uma só vez. Os homens de William atiraram-se ao chão, tentan­do proteger-se entre as árvores, mas em apenas alguns instantes metade do pelotão se perdeu. A batalha, se podia chamá-la assim, durou menos de um minuto. William não chegou a ver um alemão sequer. Agachou-se entre a vegetação rasteira molhada e ficou ali mais alguns instantes. Em seguida, com espanto, avistou mais Pelotões saindo da floresta. Abandonou a árvore que escolhera como escudo e correu para avisá-los da emboscada. A primeira bala atingiu-o na cabeça, e, enquanto tombava sobre a lama do solo alemão, continuando a acenar desesperadamente aos camara­das que avançavam, uma segunda bala acertou-o no pescoço, e uma terceira, e derradeira, no peito. William permaneceu imóvel, mergulhando no barro, e aguardou o instante de morrer, sem ao menos ter visto o inimigo — uma morte suja e nada heróica.

Depois disso, a única coisa que pôde perceber foi que estava sendo transportado numa padiola. Não ouvia nem via nada, o que o levou a pensar se era noite ou se tinha ficado cego.

Isso lhe pareceu uma longa jornada. Quando abriu o olho, deteve-o sobre um coronel baixote e gordo que, mancando, saía de uma barraca. Havia nele qualquer coisa familiar. Os padioleiros conduziram-no à barraca que servia de hospital e colocaram-no na mesa de cirurgia. William resistiu ao sono, receando que a morte estivesse chegando, até que finalmente adormeceu.

 

William acordou. Percebeu que dois homens procuravam movê-lo. Eles o viraram com todo o cuidado e pouco depois es­petaram-lhe uma agulha. William sonhou com Kate, com a mãe, e depois com Matthew, que brincava com seu filho Richard. Dormiu.

 

Acordou. Tinham-no transferido para outra cama. Uma leve esperança substituíra em sua mente o pensamento da morte inevi­tável. Ele permaneceu imóvel, o olho aberto fitando o teto de lona da barraca, incapaz de mexer a cabeça. Um enfermeiro se aproximou, examinou um quadro e depois o observou. Dormiu.

 

Acordou. Quanto tempo havia passado? Outro enfermeiro. Dessa vez ele pôde ver um pouco melhor e — alívio, oh, alívio! — mexeu a cabeça, ainda que sentisse muita dor. Permaneceu acordado tanto quando pôde; queria continuar vivo. Adormeceu.

 

Acordou. Quatro médicos o examinavam, mas o que con­cluíam? Não os ouvia. Nada podia saber.

Tiraram-no dali pela segunda vez. Agora ele tinha condições de ficar atento, e percebeu que o colocavam numa ambulância. As portas fecharam-se, o motor roncou e a ambulância começou a se locomover sobre o terreno acidentado; um outro enfermeiro, sen­tado ao seu lado, segurava-o, evitando que sofresse fortes sola­vancos. A viagem parecia durar muito, mas ele perdera qualquer noção de tempo. A ambulância alcançou um terreno mais plano e pouco depois parou. De novo removeram-no. Dessa vez, andaram sobre uma superfície plana, subiram alguns degraus e então en­traram num quarto escuro. Detiveram-se alguns segundos, e de­pois o quarto começou a se locomover; um outro veículo, talvez. O quarto arrancou. Um enfermeiro aplicou-lhe outra agulha, e ele não se lembrou de mais nada até o instante em que sentiu um avião aterrizando. Removeram-no mais uma vez. Outra am­bulância, outro enfermeiro, outro odor, outra cidade. Nova Iorque, ou, pelo menos, os Estados Unidos, ele refletiu. Não havia cheiro igual em todo o mundo. A nova ambulância percorreu outra su­perfície plana, parando e andando, continuadamente, até que, fi­nalmente, pareceu chegar ao destino. Transportaram-no outra vez, e outra vez subiram degraus, e entraram num quarto de paredes brancas. Colocaram-no numa cama confortável. Sentiu a cabeça pousar num travesseiro, e, quando tornou a acordar, achou que estava completamente sozinho. Seus olhos, então, entraram em foco, e ele viu que Kate estava parada, de pé, à sua frente. Expe­rimentou erguer a mão e tocá-la, tentou falar, mas nenhuma pala­vra veio aos lábios. Ela sorriu, e ele também, embora seu sorriso não pudesse ser percebido. Quando voltou a acordar, Kate con­tinuava ali, mas com outro vestido. Ou tinha ela ido e vindo várias vezes? Ela sorriu de novo. Quanto tempo havia passado? Tentou mexer um pouco a cabeça e viu o filho Richard, tão alto, tão bonito... Queria ver as filhas, mas não era capaz de mexer mais uma vez a cabeça. Elas entraram no seu campo de visão: Virgínia — como podia ter crescido tanto? — e Lucy — não era possível! Mas onde tinham ido parar aqueles anos? Dormiu.

 

Acordou. O quarto estava vazio, mas agora conseguia mexer a cabeça. Algumas ataduras haviam sido retiradas, e ele enxergava com maior nitidez; experimentou dizer alguma coisa, mas nenhuma palavra foi articulada. Adormeceu.

 

Acordou. Menos ataduras que antes. Kate estava ali de novo, o cabelo claro mais comprido, caído sobre os ombros, os olhos meigos e grandes, o sorriso inesquecível, tão bela, tão bela! Pro­nunciou o seu nome:

— Kate.

Ela sorriu. Ele adormeceu.

 

Acordou. Ainda menos ataduras que antes. Dessa vez, seu filho falou:

— Oi, papai.

— Oi, Richard — ele pôde responder.

Mas não reconheceu o tom de sua própria voz. A enfermeira o ajudou a sentar-se para que pudesse cumprimentar a família, e ele lhe agradeceu. Um médico pôs a mão sobre o seu ombro.

— O pior já passou, sr. Kane. Logo estará recuperado e po­derá voltar para casa.

Kate, acompanhada de Virgínia e Lucy, entrou no quarto e abriu um sorriso. Quantas perguntas queria lhe fazer! Por onde começaria? Havia hiatos de memória que precisavam ser preen­chidos. Kate lhe disse que por pouco escapara da morte. Ele sabia disso, mas ignorava que mais de um ano tinha transcorrido desde que sua divisão caíra naquela emboscada na floresta de Remagen.

Passados os meses de inconsciência, a vida ficava menos pa­recida com a morte? Richard tinha quase doze anos, e já esperava o momento de ingressar em Harvard. Virgínia tinha nove, e Lucy, quase sete. Seus vestidos pareciam curtos demais. Seria necessá­rio começar a conhecê-las de novo.

Kate tornara-se mais bela do que a imagem de que ele se recordava. Contou-lhe que nunca chegara a encarar o fato de que ele poderia ter morrido, que Richard ia muito bem na Buckley, e que Virgínia e Lucy precisavam de um pai. Ela concentrou ener­gias e lhe disse que seu rosto e seu peito haviam ficado marcados por cicatrizes que jamais desapareceriam, e agradeceu a Deus pela convicção dos médicos de que sua mente estava perfeita e que sua visão poderia ser recobrada. Tudo o que ela desejava agora era ajudá-lo a recuperar-se. Kate, aos poucos, William, rapida­mente.

Cada membro da família desempenhou a sua função no pro­cesso. Primeiro a voz, depois a visão, e enfim a fala. Richard ajudou o pai a andar até que ele pudesse dispensar as muletas. Lucy ajudou-o na alimentação, até que ele pôde alimentar-se so­zinho. E Virgínia leu Mark Twain para ele. William não sabia a quem as leituras mais beneficiavam, mas ambos deliciaram-se. Então, finalmente, passado o Natal, concederam-lhe alta e ele voltou para casa.

De volta à East 68th Street, William recobrou-se mais rapi­damente. Os médicos previam que, dentro de seis meses, ele estaria em condições de retomar o trabalho no banco. Embora marcado por pequenas cicatrizes, estava completamente recupe­rado, de modo que lhe permitiram receber visitas.

O primeiro visitante foi Ted Leach, que ficou algo chocado com a aparência de William. Mais um fato com que teria de aprender a viver. Ted Leach transmitiu-lhe notícias que só lhe deram satisfação. O Lester fizera avanços durante a ausência dele, e todos ansiavam pelo retorno do presidente. A visita de Tony Simmons trouxe-lhe notícias que o entristeceram. Alan Lloyd e Rupert Cork-Smith haviam falecido. Ele sentiria falta da sensatez de ambos. Thomas Cohen também o visitou, para lhe dizer que se alegrava em vê-lo recuperado e para provar, embora isso não fosse necessário, que os tempos haviam mudado. Informou que agora estava mais ou menos aposentado e que muitos de seus clientes seriam atendidos pelo filho Thaddeus, que acabara de abrir um escritório em Nova Iorque. William observou que pai e filho haviam recebido nomes de apóstolos. Thomas Cohen riu e expres­sou a vontade de que o sr. Kane continuasse a recorrer aos ser­viços da firma. William assegurou-lhe que continuaria a fazê-lo.

— A propósito, tenho uma pequena informação a lhe dar.

William ouviu calado o velho advogado, e ficou furioso, muito furioso.

 

No dia 7 de maio de 1945, enquanto o general Alfred Jodl assinava a rendição incondicional em Reims, Abel desembarcava numa Nova Iorque preparada para comemorar a vitória e o fim da guerra. Mais uma vez, jovens uniformizados enchiam as ruas, mas agora nos seus rostos havia júbilo em lugar de medo. Abel ficou penalizado com tantos homens pernetas, manetas, cegos ou severamente deformados. Para eles, a guerra jamais teria fim, fosse qual fosse o pedaço de papel assinado a seis mil quilôme­tros dali.

Quando Abel entrou no Baron Hotel com o uniforme de co­ronel, ninguém o reconheceu. E como o reconheceriam? Dois anos antes, quando vestia roupas civis, seu rosto jovem era liso. O que viam agora era o rosto de um homem que aparentava muito mais que seus trinta e nove anos, e as rugas profundas da fronte indicavam que a guerra lhe imprimira marcas indeléveis. Abel tomou o elevador que o levaria ao escritório do quadragésimo segundo andar, e um guarda de segurança o interpelou com firmeza, dizendo-lhe estar em andar errado.

— Onde está George Novak? — perguntou Abel.

— Em Chicago, coronel — respondeu o guarda.

— Bem, ligue para ele.

— Devo fazê-lo em nome de quem?

— De Abel Rosnovski.

A voz familiar de George crepitou na linha com um caloroso "bem-vindo". Imediatamente, Abel sentiu quão agradável era tor­nar à casa. Em lugar de passar a noite em Nova Iorque, resolveu voar mil e trezentos quilômetros até Chicago, levando os relató­rios atualizados que George elaborara, com o propósito de estu­dá-los durante a viagem. Examinou com atenção a administração do Grupo Baron ao longo do período da guerra, constatando que George fizera bem em manter o grupo em compasso de espera durante a sua ausência. Sua administração cautelosa não dava a Abel motivos de queixa; os lucros continuavam elevados, reduzi­ram-se as despesas com pessoal, muitos convocados para a guerra, e, além disso, os hotéis tinham continuado cheios devido ao fluxo ininterrupto de soldados por todo o país. Abel concluiu que come­çaria a formar sem demora um novo quadro de pessoal, antes que outros hotéis contratassem os melhores entre aqueles que retor­navam da guerra.

Ao chegar ao Aeroporto Midway, no terminal 11C, Abel avistou George, que o esperava na saída. George pouco mudara, exceto por alguns quilos a mais e alguns fios de cabelo a menos. Decorrida uma hora, em que ambos puseram em dia os três anos passados e trocaram histórias vividas, era como se Abel nunca houvesse partido. Ele sempre seria grato ao Black Arrow, pois fora ele o responsável por colocar em seu caminho o seu vice-presidente.

George, porém, foi impiedoso com respeito à coxeadura de Abel, que agora, depois da guerra, parecia mais acentuada.

— O Hopalong Cassidy do ramo hoteleiro — disse ele, zom­bando. — Falta-lhe uma perna em que se apoiar.

— Só um polonês estúpido faria uma piada dessas — re­plicou Abel.

George fitou Abel, mostrando-se levemente magoado, como um cãozinho quando leva bronca do dono.

– Graças a Deus tive um polonês estúpido tomando con­ta de tudo enquanto eu procurava alemães — ajuntou Abel, tranqüilizando-o.

Antes de ir para casa, Abel não resistiu a dar uma espiadela no Baron de Chicago. O fino verniz de suntuosidade desgastara-se. Havia ali muita coisa necessitando de uma reforma. Mas isso teria de esperar, pois, nesse instante, ele desejava sobretudo rever a esposa e a filha. Foi então que teve a primeira surpresa. Ao longo daqueles três anos, George pouco mudara, mas Florentyna, agora com seus onze anos, desabrochara numa linda moça, e Zaphia por sua vez, embora estivesse com apenas trinta e oito anos, engordara, tornara-se desleixada e, decididamente, parecia uma mulher de meia-idade.

Em primeiro lugar, ambos não sabiam ao certo de que modo se deviam tratar. Passadas algumas semanas, Abel começou a en­tender que o relacionamento não voltaria jamais a ser o mesmo. Zaphia importava-se pouco em estimular Abel, e nem mesmo sen­tia o menor orgulho por suas realizações. Abel aborreceu-se por essa completa falta de interesse e experimentou envolvê-la mais uma vez em sua vida. Zaphia, porém, reagiu de maneira negativa às suas sugestões. Parecia contentar-se com fechar-se em casa e manter-se o mais distante possível de tudo o que dizia respeito ao Grupo Baron. Conformando-se com o fato de que ela não mu­daria, Abel perguntou-se por quanto tempo mais conseguiria per­manecer-lhe fiel. Enquanto Florentyna o encantava, Zaphia, sem o aspecto e o corpo de antigamente, só o deixava indiferente. Quando dormiam juntos, ele evitava amá-la, e, nas raras ocasiões em que o faziam, pensava em outra mulher. Começou a inventar justificativas para ficar longe de Chicago e do rosto abatido e si­lenciosamente acusador de Zaphia.

Abel passou a fazer viagens demoradas aos hotéis, levando consigo Florentyna nos períodos de férias escolares. Nos seis pri­meiros meses após o seu regresso, visitou todos os hotéis do Grupo Baron, empregando o mesmo método que utilizara quando entrara de posse da empresa, depois da morte de Davis Leroy. No prazo de um ano, todos os hotéis haviam retomado o alto padrão que Abel exigia. Ele, porém, não via o momento de dar mais um passo à frente. Na reunião trimestral do grupo, informou a Curtis Fenton que a equipe de pesquisa de mercado o aconse­lhara a construir um hotel no México e outro no Brasil; a propósito, ele já estava à procura dos terrenos em que se ergue­riam os novos hotéis.

— O Baron da Cidade do México e o Baron do Rio de Ja­neiro — disse Abel, deliciando-se com a ressonância dos nomes.

— Bem, o senhor conta com fundos suficientes para cobrir os custos das obras — comentou Curtis Fenton. — Durante sua ausência, sem dúvida o numerário foi se acumulando. Seria pra­ticamente viável construir um Baron em cada lugar de sua esco­lha. Só Deus sabe onde o senhor irá parar.

— Um dia, sr. Fenton, construirei um Baron em Varsóvia. Só então pensarei em parar — acrescentou Abel. — Posso ter derrotado os alemães, mas ainda tenho umas contas a acertar com os russos.

Curtis Fenton riu. Nessa noite, ao contar o episódio à es­posa, é que Fenton pôde compreender com que seriedade Abel Rosnovski lhe dissera aquilo... um Baron em Varsóvia.

— Pois bem, como ficou a minha situação com o banco de Kane?

Curtis Fenton perturbou-se com a repentina mudança de tom de Abel. Sem dúvida alguma, ele teimava em responsabilizar Kane pelo suicídio de Davis Leroy, e isso preocupava o banqueiro. Ele abriu uma pasta especial e pôs-se a ler.

— As ações do Lester, Kane & Company acham-se dividi­das entre catorze membros da família Lester e seis funcionários, antigos e recentes, mas o sr. Kane é o maior acionista, detendo oito por cento delas.

— Algum membro da família Lester tem intenção de vender uma parte? — inquiriu Abel.

— Se oferecermos um preço justo, possivelmente. A srta. Susan Lester, filha do falecido Charles Lester, deu-nos motivos para crer que poderia desfazer-se da parte dela, e o sr. Peter Parfitt, que foi vice-presidente do Lester, demonstrou interesse nisso por ocasião das nossas tentativas de negociação.

— E que porcentagem os dois detêm?

— Susan Lester, seis por cento, e o sr. Peter Parfitt, apenas dois por cento.

— Quanto pedem pelas ações?

Curtis Fenton examinou a papelada dentro da pasta, enquan­to Abel passava os olhos pelo último relatório anual do Lester. Deteve-se ao deparar com o artigo 7.

— A srta. Susan Lester quer dois milhões de dólares pelos seus seis por cento, e o sr. Parfitt, um milhão pelos seus dois por cento.

— O sr. Parfitt é guloso — comentou Abel. — Esperemos, portanto, que ele fique faminto. Compre já as ações da srta. Susan Lester, mas sem revelar a quem o senhor está representan­do. Informe-me quando o sr. Parfitt mudar de idéia.

Curtis Fenton tossiu.

— Algo o preocupa, sr. Fenton? — perguntou Abel.

Curtis Fenton hesitou.

— Não, nada — disse o banqueiro, de modo pouco convin­cente.

— A partir de hoje, um novo homem se encarregará das minhas contas. O senhor por certo o conhece... Henry Osborne.

— Osborne, o deputado? — indagou Curtis Fenton.

— Ele mesmo. Conhece-o?

— Conheço a reputação dele — disse Fenton, com um fraco tom de desaprovação.

Abel ignorou o subentendido nessa observação. Estava perfeitamente ciente da reputação de Henry, mas, como este se acha­va em condições de passar por cima de todos os intermediários da burocracia e de obter rapidamente decisões políticas, julgou que valeria a pena correr o risco. Sem falar no laço comum que os unia: aversão a Kane.

— Convidei também o sr. Osborne para ser um dos direto­res do Grupo Baron, com a responsabilidade exclusiva da conta de Kane. Essa informação, como de praxe, deve permanecer den­tro de limites estritamente confidenciais.

— Como queira — disse Fenton, desgostoso, receando reve­lar a Abel Rosnovski suas dúvidas pessoais.

— Informe-me assim que fechar o negócio com a srta. Susan Lester.

— Pois não, sr. Rosnovski — disse Curtis Fenton, sem erguer a cabeça.

À hora do almoço, Abel voltou ao Baron, onde Henry Os­borne o esperava.

— Deputado — disse Abel quando o encontrou no vestíbulo.

— Barão — respondeu Henry. Rindo-se, e de braços dados, dirigiram-se ambos ao salão e sentaram-se à mesa do fundo.

Abel chamou a atenção de um garçom por estar com um botão a menos no uniforme.

— Como está a sua esposa, Abel?

— Ótima. E a sua, Henry?

— Muito bem.

Ambos mentiam.

— Tem alguma notícia boa a me dar?

— Sim. Já tomei providências para conseguir aquela con­cessão de Atlanta que me pediu — disse Henry, num tom de voz conspiratório. — Os documentos necessários serão logo apro­vados. No primeiro dia do mês você já poderá começar a construir o Baron de Atlanta.

— Não estamos fazendo nada muito ilegal, estamos?

— Nada que seus concorrentes não façam, isso eu lhe posso garantir, Abel. — Henry Osborne riu.

— Alegra-me ouvir isso, Henry. Não quero criar problemas com a lei.

— Não, não — fez Henry. — Só eu e você estamos por dentro dos fatos.

— Ótimo. Você me tem sido muito útil nestes anos todos, Henry, e eu mal o recompensei pelos serviços que me prestou no passado. O que me diz de tornar-se diretor do Grupo Baron?

— Oh, Abel, isso me lisonjeia.

— Não me venha com essa. São inestimáveis os seus esfor­ços para obter esses alvarás municipais e estaduais. Eu nunca encontraria tempo para lidar com os políticos e burocratas. Em todo caso, Henry, eles preferem relacionar-se com um homem de Harvard, mesmo que ele só lhes entreabra as portas e, assim, os decepcione.

— E você me tem recompensado generosamente por isso, Abel.

— Não mais do que você merece. Por ora, quero incumbi-lo de um trabalho bem mais importante para nós dois. Essa tarefa, que não tomará muito do seu tempo, requer sigilo absoluto. Ela nos dará a oportunidade de tirarmos uma desforra do nosso amigo comum lá de Boston, o sr. William Kane.

O maître d'hôtel apareceu com dois enormes filés de alcatra ao ponto. Henry aguçou os ouvidos e escutou os planos que Abel elaborara contra William Kane.

 

Poucos dias depois, precisamente a 8 de maio de 1946, Abel foi a Nova Iorque participar da comemoração do primeiro ani­versário da vitória na Europa. Preparara um jantar para mais de mil veteranos poloneses no Baron Hotel. O general Kazimierz Sosnkowski, comandante-em-chefe das forças polonesas na França depois de 1943, era o convidado de honra. Abel aguardara o evento com ansiedade e impaciência durante semanas, e levou Florentyna junto com ele, deixando Zaphia em Chicago.

Na noite da comemoração, o salão de banquetes do Baron de Nova Iorque brilhava na sua grandiosidade, as cento e vinte mesas ornadas com as estrelas e as listras da bandeira americana e o branco e vermelho da bandeira polonesa. Fotografias enormes de Eisenhower, Patton, Bradley, Clark, Paderewski e Sikorski en­feitavam as paredes. Abel sentou-se à cabeceira da mesa, tendo à sua direita o general, e à sua esquerda, Florentyna.

O general Sosnkowski levantou-se para falar aos convivas, e anunciou que o tenente-coronel Rosnovski havia sido nomeado presidente vitalício da Sociedade dos Veteranos Poloneses, como reconhecimento ao seu sacrifício pessoal pela causa polaco-americana, e, em particular, por ter cedido generosamente o Baron de Nova Iorque desde o início até o fim da guerra. Alguém que havia bebido um pouco mais da conta gritou do fundo do salão:

— Nós, que sobrevivemos aos alemães, também precisamos sobreviver à comida de Abel.

O milhar de veteranos explodiu em gargalhadas e, depois de vivas e brindes com vodca de Dantzig, tornou a ficar em silêncio. O general voltou a discorrer sobre a situação da Polô­nia no pós-guerra, submetida pelo tacão da Rússia stalinista, exortando os compatriotas expatriados a não desistir da campa­nha pela soberania definitiva de sua terra natal. Abel esforça­va-se por crer que a Polônia um dia voltaria a ser livre, e que ainda viveria para ver a restituição de seu castelo, embora sou­besse que, nisso, estava sendo pouco realista, visto que Stálin fora bem-sucedido no acordo de Ialta.

O general prosseguiu, relembrando aos convidados que polaco-americanos haviam sacrificado mais vidas e mais dinheiro na guerra do que qualquer outro grupo étnico dos Estados Unidos.

— Quantos americanos acreditariam que a Polônia perdeu seis milhões de seus filhos, enquanto a Tchecoslováquia perdeu cem mil? Alguns observadores nos criticam por não nos termos rendido assim que tivemos certeza de que seríamos vencidos. Mas como uma nação que organizou um ataque de soldados da cavalaria contra os poderosos tanques nazistas poderia acreditar que havia sido derrotada? E hoje, meus amigos, posso lhes afir­mar: nós ainda não fomos derrotados.

Todos os poloneses o aplaudiram entusiasticamente.

Abel entristeceu-se ao imaginar que a grande maioria dos americanos ainda riria à menor lembrança dos esforços dos po­loneses na guerra — ou, o que poderia ser ainda mais engraçado, do herói de guerra polonês. O general aguardou que se fizesse silêncio absoluto, e passou a narrar, para uma assistência extre­mamente atenta, a história de Abel, que conduzira um pequeno grupo de homens no resgate de soldados que haviam sido mortos ou feridos na batalha de Remagen. O general encerrou o discurso, e, tão logo sentou-se, os veteranos puseram-se de pé, saudando ruidosamente os dois homens. Florentyna sentiu um profundo orgulho do pai.

Abel surpreendeu-se ao verificar que a história havia sido publicada nos jornais matutinos, uma vez que as realizações po­lonesas só raramente recebiam a atenção de quaisquer meios de comunicação, exceto do Dziennik Zwiazkiwy. Duvidava que, não fosse ele o Barão de Chicago, a imprensa se tivesse dado ao tra­balho de cobrir o acontecimento. Abel deleitou-se com a sua re­cente glória de herói americano e dedicou a maior parte do dia aos fotógrafos e repórteres que o procuravam.

À noite, Abel experimentou uma sensação de abatimento. O general partira para Los Angeles, e para outra solenidade, Flo­rentyna voltara à escola de Lake Forest, George encontrava-se em Chicago, e Henry Osborne, em Washington. O hotel parecia-lhe vasto e vazio, e ele não sentia o menor desejo de voltar para Zaphia, em Chicago.

Resolveu jantar mais cedo e reler os relatórios semanais enviados pelos outros hotéis do grupo, antes de retornar ao anexo contíguo ao escritório. Raramente comia sozinho na suíte par­ticular, não querendo perder a oportunidade de ser servido em um dos salões sempre que fosse possível; era essa uma das me­lhores maneiras de manter contato com a vida do hotel. Quanto mais hotéis conquistava, ou construía, mais temia perder contato com os empregados.

Tomou o elevador para o térreo e parou no balcão de recep­ção para perguntar quantos hóspedes estavam registrados nessa noite. Uma mulher deslumbrante, que assinava o registro, cha­mou-lhe a atenção. Admitia conhecer o perfil, mas não tinha ab­soluta certeza. "Está na casa dos trinta", refletiu. Terminando de escrever, a mulher voltou-se e olhou para ele.

– Abel. Que bom revê-lo!

— Deus do céu! Melanie! Quase não a reconheci.

— Mas quem não o reconheceria, Abel?

— Não sabia que estava em Nova Iorque.

— Só por uma noite. Vim resolver algumas coisas para a minha revista.

— Trabalha como jornalista? — perguntou ele com uma ponta de descrença.

— Não, sou assessora de economia de um grupo editorial com sede em Dallas. Mandaram-me para cá num projeto de pes­quisa de mercado.

— Oh, deve ser coisa importante.

— Pois garanto a você que não é nada importante — disse Melanie —, mas pelo menos isso me distrai.

— Por acaso está com um tempo livre? Eu gostaria de convidá-la para jantar.

— É uma excelente idéia, Abel, mas, se não se importa de esperar, preciso tomar um banho e trocar de roupa.

— Claro que não me importo. Estarei no salão principal. Espero-a à minha mesa, digamos, daqui a uma hora, está bem?

Ela sorriu, concordando, e acompanhou o boy com a valise até o elevador. Abel sentiu agradável perfume quando ela passou por ele.

Abel ocupou aquela hora verificando o salão, certificando-se de que as flores de sua mesa eram frescas, e foi à cozinha sele­cionar os pratos que ofereceria a Melanie. Por fim, não tendo coisa melhor a fazer, sentiu-se impelido a sentar-se. A todo ins­tante consultava o relógio e olhava para o salão, esperando vê-la. Ela estava demorando mais de uma hora, mas valeria a pena. Quando, repentinamente, ela apareceu na entrada, trajando um vestido longo e justo, e inequivocamente caro, que brilhava sob as luzes do salão, ostentava uma aparência arrebatadora. O maître conduziu-a à mesa de Abel. Ele levantou-se para recebê-la, en­quanto um garçom abria uma garrafa de champanhe Krug e servia as duas taças.

Seja bem-vinda, Melanie — começou Abel, erguendo a aça. – É bom vê-la aqui no Baron.

– É bom ver o Barão, principalmente agora nesta come­moração.

— Como assim? — perguntou Abel.

— Li sobre o grande jantar no New York Post desta noite, e soube que você chegou a arriscar a vida para salvar os soldados feridos em Remagen. A história me deixou grudada naquela pá­gina desde a estação até aqui. Pintaram-no como um misto de Audie Murphy e do soldado desconhecido.

— Exagero deles.

— Ao que me lembre, você nunca foi modesto antes, Abel. Por isso só posso acreditar que o que li é verdade.

Ele serviu-lhe champanhe.

- A verdade é que sempre senti um pouco de medo de você, Melanie.

— Barão com medo de alguém? Não acredito!

— Bem, não sou nenhum cavalheiro do Sul, como certa vez você me deixou bem claro, lembra-se?

— E você nunca me fez esquecê-lo. — Ela sorriu, provocantemente. — Casou com a sua bela garota polonesa?

— Sim, casei.

— E tudo saiu como esperava?

— Mais ou menos. Hoje ela está gorda, quarentona, e não me atrai mais.

— E a próxima coisa que vai me dizer é que ela não o compreende — disse Melanie, com um tom de voz que, traiçoei­ramente, revelava o prazer que sentira ao ouvir a resposta.

— E você encontrou o seu marido? — perguntou Abel.

— Oh, sim — Melanie respondeu. — Casei-me com um autêntico cavalheiro do Sul que tinha todas as credenciais em dia.

— Meus parabéns — comentou Abel.

— Divorciei-me dele no ano passado... com uma pensão e tanto.

— Oh, lamento — disse Abel, mas mostrando-se satisfeito. — Mais champanhe?

— Por acaso está tentando me seduzir, Abel?

— Não antes que você termine a sopa, Melanie. Até mes­mo a primeira geração de imigrantes poloneses tem o seu padrão de comportamento, embora, confesso, seja a minha vez de se­duzi-la.

— Nesse caso, Abel, devo alertá-lo de que, desde o meu divórcio, não dormi com nenhum homem. Não me faltaram pro­postas, mas nenhum me pareceu merecedor disso. Muitas mãos bobas e nenhuma afeição.

Após o salmão defumado, a vitela, o crême brûlée e um Mouton Rothschild anterior à guerra, tinham já revisto suas vidas desde o último encontro.

– Aceita um café na cobertura, Melanie?

– Depois de uma refeição tão boa, será que tenho escolha?

Abel sorriu e acompanhou-a pelo salão até o elevador. Ao entrar nele, ela vacilou um pouco no alto de seus sapatos. Abel apertou o botão de número 42. Melanie olhou a sucessão pulsante dos números.

— Por que falta o décimo sétimo andar? — indagou com inocência.

Abel não encontrou palavras com que responder. Melanie reiniciou a conversa.

– A última vez que tomei café no seu quarto...

— Não me faça lembrar disso — disse Abel, recordando-se de sua própria vulnerabilidade.

Quando saíram do elevador no quadragésimo segundo andar, um moço abriu-lhes a porta da suíte.

— Deus meu! — exclamou Melanie, passeando o olhar pelo interior da cobertura. — Sem dúvida, Abel, você adaptou-se ao modo de vida dos multimilionários. Nunca em toda a minha vida vi algo tão extravagante!

Ia aproximar-se dela, mas uma leve batida na porta fê-lo deter-se. Um garçom apareceu com um bule de café e uma gar­rafa de Rémy Martin.

— Obrigado, Mike — disse Abel. — Está dispensado. Não queremos mais nada esta noite.

— Não? — Ela falou, sorrindo.

O garçom, não fosse negro, teria denunciado o rubor. Re­tirou-se sem demora.

Abel serviu o café e o conhaque a Melanie. Ela os sorveu devagar, sentando-se no chão com as pernas cruzadas. Se não sentisse desconforto na posição, Abel teria feito o mesmo. Assim, preferiu deitar-se ao lado dela. Melanie acariciou-lhe o cabelo e, a título de experimentação, Abel começou a deslizar a mão pela sua perna. Deus do céu! Como se lembrava destas pernas! Beija­ram-se, e Melanie, com um movimento do pé, livrou-se do sapato, que, indo de encontro à xícara, entornou o resto de café no ta­pete persa.

— Oh! — exclamou. — Estraguei o seu tapete tão bonito!

— Não se incomode com isso. — Envolveu-a com os braços, começando a abrir-lhe o zíper do vestido.

Melanie desabotoou-lhe a camisa, e Abel tentou tirá-la en­quanto a beijava, mas as abotoaduras obrigaram-no a parar, e, em vez de despir-se, ele a ajudou a desfazer-se do vestido. Seu corpo conservava a mesma beleza e era exatamente como ele o guardara na lembrança, a não ser que se tornara sedutoramente mais cheio. Oh, os seios rijos e as pernas longas e formosas. De­sistindo de tentar vencer a batalha contra as abotoaduras com uma só mão, ele a soltou e despiu-se, ciente de que seu corpo fazia um contraste físico violento diante da beleza dela. Tomara fosse verdade tudo o que ele tinha lido sobre a atração das mulheres pela força masculina! Ela não esboçara nenhuma careta de des­gosto, como o fizera ao vê-lo nu pela primeira vez. Delicadamen­te, ele acariciou-lhe os seios e puxou-lhe as pernas para os lados. O tapete persa parecia mais funcional que a cama. Enquanto se beijavam, Melanie tentou desnudar-se completamente. Por um instante desistiu, e finalmente tirou tudo, menos — ele pediu — as ligas e as meias de náilon.

Quando a ouviu gemer, Abel pôde perceber quanto tempo vivera sem experimentar êxtase semelhante, e — em seguida — quão rápida era a sensação. Durante longos momentos, perma­neceram calados, meio ofegantes.

Foi então que Abel sorriu.

— Do que está rindo?

— De nada — respondeu Abel, lembrando-se de que, se­gundo o dr. Johnson, a posição era engraçada, e o prazer, mo­mentâneo.

Ele girou para o tapete, aliviando-a do peso de seu corpo, e Melanie descansou a cabeça em seu ombro. Abel sentia-se sur­preso por não mais desejar ficar junto dela, e, enquanto conti­nuava ali deitado, imaginando como mandá-la embora sem ser rude, ela falou:

— Sinto muito, Abel, mas não poderei ficar a noite toda. Tenho um compromisso logo cedo e vou precisar dormir um pouco. Não quero aparecer com cara de quem passou a noite deitada no seu tapete persa.

— Tem de ir? — Deu a impressão de estar surpreendido, mas não muito.

– Lamento, querido, mas tenho — Ela levantou-se e foi ao banheiro.

Abel observou-a vestir-se e ajudou-a a fechar o zíper. Era bem mais fácil pôr o vestido com vagar do que tirá-lo com pressa. À saída, ele beijou-lhe as mãos como um cavalheiro.

— Espero que logo nos vejamos de novo — disse ele, men­tindo.

— Também espero — certa de que a intenção dele não era essa.

Abel fechou a porta logo que ela saiu e pegou o telefone à cabeceira da cama.

— Em que quarto a srta. Melanie Leroy está hospedada? — perguntou.

Houve um momento de silêncio. Ele pôde ouvir o ruído dos cartões de registro sendo manuseados rapidamente. Bateu impaciente os dedos na mesa.

— Não há nenhuma senhorita registrada com esse nome, senhor — responderam-lhe finalmente. — Encontrei o nome de uma certa sra. Melanie Seaton, de Dallas, Texas, que chegou hoje à noite e partirá amanhã cedo.

— Sim, é ela mesma — disse Abel. — Note bem, a conta dela eu pago.

— Pois não, senhor.

Abel tomou um demorado banho frio e preparou-se para deitar. Sentindo-se tranqüilo, foi até a lareira, onde estava a lâm­pada que iluminara o seu primeiro ato adúltero, e, antes de des­ligá-la, notou que a mancha de café no tapete persa já havia se­cado.

— Cadelinha estúpida! — exclamou em voz alta, e apagou a luz.

 

Depois dessa noite, Abel observou que muitas outras man­chas de café foram aparecendo no tapete persa ao longo dos meses seguintes, umas causadas pelas garçonetes, outras pelas visitantes noturnas, enquanto ele e Zaphia distanciavam-se mais e mais um do outro. O que ele não previra, porém, é que ela contratasse um detetive particular para investigar-lhe a vida e, depois, requeresse o divórcio. O divórcio era praticamente estranho ao círculo de amigos poloneses de Abel, pois o mais comum era a separação ou simples abandono. Cônscio de que tal procedimento nada de bom acrescentaria ao seu prestígio dentro da comunidade polonesa, e certo de que o divórcio não favorecia as ambições sociais ou políticas que almejava concretizar, Abel chegou mesmo a tentar dissuadir Zaphia do intento. Mas ela estava decidida a levar o processo do divórcio até as últimas conseqüências. Surpreso, Abel constatou que a mulher que per­manecera inalterada ante o seu triunfo era, nas palavras de Geor­ge, um demoniozinho de saias em sua obsessão de vingança.

Ao consultar seu próprio advogado, Abel soube, pela segun­da vez, quantas garçonetes e quantas convidadas haviam passado pela sua cobertura durante o último ano. Desistiu de lutar e insis­tiu apenas na custódia de Florentyna, agora com treze anos, seu primeiro e verdadeiro amor na vida. Depois de muito relutar, Zaphia aceitou as condições de Abel: a pensão de quinhentos mil dólares, a escritura da casa de Chicago, e o direito de ver Flo­rentyna no último fim de semana de cada mês.

Abel transferiu para Nova Iorque o centro de comando e a casa permanente, e George o apelidou de Barão Exilado em Chicago, visto que percorria os Estados Unidos de norte a sul, construindo hotéis, e só retornava a Chicago quando precisava entrevistar-se com Curtis Fenton.

 

A carta aberta permanecia sobre uma mesa da sala de estar, ao lado da cadeira de William. Vestido com um roupão, ele sen­tou-se e releu-a pela terceira vez, tentando imaginar por que mo­tivo Abel Rosnovski insistia em comprar as ações do Lester e por que nomeara Henry Osborne um dos diretores do Grupo Baron.

O novato sr. Cohen revelou-se a versão mais jovem do pai: quando chegou a East 68,h Street não houve necessidade de apresentações. Seu cabelo começava a ficar grisalho e ralo exatamente nas mesmas regiões, e o corpo redondo encerrava-se dentro de um terno exatamente igual. Talvez fosse, com efeito, o mesmo terno. William fitou-o, e não apenas porque ele se assemelhava tanto ao pai.

— Sr. Kane, lembra-se de mim? — perguntou o advogado.

— Meu Deus! — William exclamou. — O grande debate de Harvard! Mil novecentos e vinte e...

— Vinte e oito. O senhor venceu o debate e sacrificou-se como sócio do clube Porcellian.

William explodiu numa gargalhada.

– Talvez tenhamos mais sucesso na mesma equipe, se o seu ardor pelo socialismo lhe permitir atuar ao lado de um capitalista descarado.

Levantou-se para saudar Thaddeus Cohen. Por um instante, ambos comportaram-se como bacharelandos. William sorriu.

— E você, que não chegou nem a tomar aquele drinque no Porcellian, o que quer beber?

Thaddeus Cohen recusou a oferta.

— Não bebo — falou, piscando o olho da mesma maneira conciliatória de que William tão bem se lembrava. — E... receio que me tenha tornado um capitalista descarado também.

A cabeça do pai estava no seu pescoço não apenas fisica­mente, mas também mentalmente. Thaddeus fez um claro relato do histórico de Rosnovski e de Osborne, sem deixar de lado as minúcias. William explicou com precisão o que queria dele.

— Um relatório completo e outro, atualizado, a cada três meses, como fazíamos no passado. O sigilo continua sendo de suprema importância — ajuntou —, mas quero saber de tudo o que puder obter. Por que Abel Rosnovski está comprando ações do Lester? Ele ainda acredita que sou o responsável pela morte de Davis Leroy? Ainda continua a combater o Kane & Cabot, mesmo agora, que faz parte do Lester? Que papel Henry Osbor­ne desempenha nisso tudo? Seria conveniente um encontro com Rosnovski, principalmente se eu contasse a ele que foi o banco, e não eu pessoalmente, que rejeitou o apoio financeiro ao Grupo Richmond?

A pena de Thaddeus Cohen escrevia com a mesma fúria da do pai no passado.

— Essas perguntas deverão ser respondidas o mais depressa possível, para que eu possa refletir sobre a necessidade de informar meu conselho.

Enquanto fechava a pasta de couro, Thaddeus Cohen abriu o mesmo sorriso reservado do pai.

— Lamento que esteja enfrentando problemas desse tipo, agora que ainda está em convalescença. Assim que tiver confirmado os fatos, virei procurá-lo. Deteve-se ao chegar à porta. – Admiro-o muito pelo que fez em Remagen.

Nos meses seguintes, William recuperou rapidamente a sen­sação de bem-estar e de vigor, e as cicatrizes do rosto e do peito foram desaparecendo até ficar imperceptíveis. À noite, Kate sen­tava-se ao seu lado, e, quando ele adormecia, sussurrava: "Agra­deço a Deus por tê-lo poupado". As insuportáveis dores de cabe­ça e os períodos de amnésia aos poucos desapareceram, e o braço direito readquirira a força anterior. Kate insistira em que ele só voltasse ao trabalho depois de um longo e restaurador cruzeiro pelas Antilhas. Desde as férias de Londres, em que eles tinham convivido durante duas semanas, William nunca se sentira tão tranqüilo na companhia de Kate. Ela se regozijava com o fato de no navio não haver bancos que o ocupassem, embora receasse que bastaria mais uma semana a bordo para que William passasse a encarar a nave oscilante como a mais recente aquisição do Lester, propondo-se a reorganizar a tripulação, as rotas, a distribuição de horários, e até mesmo a maneira com que dirigiam "o barco", como ele teimava em chamar o imenso transatlântico. Quando o navio atracou no porto de Nova Iorque, William estava bron­zeado e impaciente, mas Kate não conseguiu dissuadi-lo de re­tornar prontamente ao banco.

Logo ele se envolveu profundamente nos problemas do Les­ter. Uma nova espécie de homens, endurecidos pela guerra, em­preendedores e ágeis, dirigia os bancos mais modernos dos Estados Unidos, seguidos de perto pelo olhar vigilante de Truman, o homem que, surpreendentemente, saíra vitorioso e continuaria um segundo período na Casa Branca, após o mundo ter sido informa­do de que fatalmente Dewey ganharia a eleição. Como se insa­tisfeito com suas previsões, o Tribune anunciou que Thomas E. Dewey, de fato, havia ganho a eleição, embora Harry S. Truman permanecesse na Casa Branca. William pouco sabia a respeito do pequeno ex-senador do Missouri, a não ser o que lera nos jornais, e, como fiel republicano, confiava em que o partido viesse a en­contrar o homem certo para liderá-lo na campanha de 1952.

O primeiro relatório de Thaddeus Cohen chegou-lhe às mãos; Abel Rosnovski insistia na obtenção das ações do Lester e entra­ra em contato com todos os beneficiários do testamento, mas efe­tivara um só acordo. Susan Lester recusara-se a receber o advo­gado de William, de modo que fora impossível descobrir o moti­vo pelo qual ela vendera os seus seis por cento. Só se podia afir­mar com segurança que não havia motivo financeiro algum que justificasse sua atitude.

O documento de Cohen era admiravelmente pormenorizado.

Henry Osborne, ao que parecia, fora nomeado um dos dire­tores do Grupo Baron em maio de 1946, responsabilizando-se especificamente pela conta do Lester. O mais importante, porém, era que Abel Rosnovski comprara as ações de Susan Lester, mas as investigações não haviam conseguido apurar se elas estariam com ele ou com Osborne. Rosnovski possuía agora seis por cento do banco, e, tudo indicava, estava disposto a pagar outros setecentos e cinqüenta mil dólares pelos dois por cento de Peter Parfitt. William não ignorava o que Abel Rosnovski seria capaz de fazer quando estivesse de posse de oito por cento. Mais preo­cupante ainda era o fato de que a taxa de crescimento do Lester era inferior à do Grupo Baron, que já vinha competindo com seus principais rivais, como o Hilton e o Sheraton. William co­meçava a achar melhor convocar os diretores do conselho e trans­mitir-lhes as informações obtidas, e considerou a possibilidade de se entrevistar com Abel Rosnovski pessoalmente. Após algumas noites em claro, pediu conselho a Kate.

— Não faça nada — sugeriu ela — até confirmar se as in­tenções dele são tão demolidoras quanto pensa. Afinal, poderá descobrir que tudo não passa de tempestade em copo d'água.

— Com Henry Osborne à frente, como capanga, esteja certa de que a tempestade transbordará do copo: nada disso me parece inocente. Não posso me sentar e aguardar que o plano que armou contra mim seja descoberto.

— William, é bem possível que ele tenha mudado. Vocês tiveram alguns poucos contatos há mais de vinte anos!

— Al Capone possivelmente também teria mudado, se ti­vesse a oportunidade de cumprir a sentença. Jamais saberemos da verdade, mas não me disponho a fazer uma aposta.

Kate não disse mais nada, mas William resolveu seguir-lhe o conselho e limitou-se a examinar com extrema atenção os rela­tórios trimestrais de Thaddeus Cohen, esperando que a intuição de Kate fosse correta.

 

A partir do desenvolvimento dos Estados Unidos no pós-guerra, o Grupo Baron passou a beneficiar-se de grandes lucros, desde os anos 20 não se conseguia ganhar tanto dinheiro tão depressa — e, nos primeiros anos da década de 50, todos come­çaram a acreditar que a situação duraria para sempre. Mas o sucesso financeiro não bastava para contentar Abel; à medida que envelhecia preocupava-se mais com o lugar da Polônia no mundo do pós-guerra e achava que o êxito não lhe dava o direito de ser um espectador acomodado a mais de seis mil quilômetros de dis­tância do país. O que lhe havia dito mesmo Pawel Zaleski, o cônsul polonês na Turquia? "Quem sabe, no curso da sua exis­tência, o senhor não assista ao reerguimento de sua Polônia?" Abel fizera o possível para influenciar e persuadir o Congresso americano a adotar uma posição mais combativa com respeito ao controle russo de seus satélites da Europa Oriental. Quando observava o surgimento de um governo socialista fantoche atrás do outro, Abel tinha a impressão de que havia arriscado a vida por nada. Passou então a pressionar os políticos de Washington, a dar esclarecimentos a jornalistas e a organizar jantares em Chica­go e Nova Iorque e outros centros da comunidade polaco-americana, até o momento em que a causa polonesa propriamente acabou por se transformar em sinônimo do Barão de Chicago.

O dr. Teodor Szynanowski, antigo professor de História da Universidade de Cracóvia, escreveu no jornal Freedom um candente editorial sobre "A luta por seu reconhecimento", referin­do-se a Abel e propondo entrar em contato com ele com o pro­pósito de ver em que mais poderia ajudar. O professor era um homem idoso, e, quando Abel foi introduzido em seu escritório, surpreendeu-se com sua aparência frágil, que contrastava forte­mente com o vigor de suas opiniões. O velho cumprimentou Abel calorosamente e serviu-lhe vodca de Dantzig.

— Barão Rosnovski — disse ele, estendendo-lhe o copo —, há muito o admiro por seu trabalho incansável em favor de nos­sa causa. E, embora façamos poucos avanços, o senhor nunca parece perder a fé.

— Por que deveria perdê-la? Sempre acreditei que tudo é possível nos Estados Unidos.

— Mas receio, barão, que os homens que vêm tentando influenciar o processo sejam os mesmos que permitiram a criação desse estado de coisas. Eles jamais farão qualquer coisa de posi­tivo no sentido de libertar nossa gente.

— Não compreendo onde quer chegar, professor — disse Abel. — Por que não nos ajudarão?

O professor recostou-se na cadeira.

— Não ignora, barão, que os exércitos americanos recebe­ram instruções específicas para afrouxar o avanço em direção ao Leste, a fim de que os russos pudessem pôr as mãos sobre a Europa central e dela tomassem tudo quanto fosse possível. Patton tinha condições de entrar em Berlim muito antes dos russos, mas Eisenhower ordenou-lhe que não o fizesse. Foram nossos líderes em Washington — os mesmos homens que você está tentando convencer a colocar de volta na Europa armas e soldados — que deram tais instruções a Eisenhower.

— Mas naquele momento era impossível saber no que se tornaria a União Soviética. Os russos eram nossos aliados. Con­cordo que, em 1945, fomos indecisos e conciliatórios com eles, mas não podemos afirmar que os americanos tenham traído direta­mente a nosso povo.

Antes de continuar, Szymanowski reclinou-se mais uma vez e, enfastiado, cerrou as pálpebras.

— Gostaria que tivesse tido a oportunidade de conhecer meu irmão, barão. Só na semana passada recebi a notícia de que ele morreu há seis meses, num campo soviético em nada diferente daquele de que o senhor fugiu.

Abel fez menção de se aproximar, como se fosse expressar suas condolências, mas Szymanowski levantou a mão.

— Não, não diga nada. O senhor conheceu os campos. De­veria ser o primeiro a compreender que a compaixão não tem mais importância. Precisamos mudar o mundo, barão, enquanto os outros dormem. — Fez uma pausa. — Os americanos man­daram meu irmão para a Rússia.

Abel fitou-o cheio de assombro.

— Os americanos? Como isso é possível? Seu irmão foi capturado na Polônia pelos russos...

— Meu irmão nunca foi prisioneiro na Polônia. Conseguiu fugir de um campo de guerra alemão, próximo de Frankfurt. Os americanos mantiveram-no num campo de refugiados durante um mês e depois entregaram-no aos russos.

— Não pode ser verdade. Por que fariam isso?

— Os russos queriam que todos os eslavos fossem repatria­dos. Para serem exterminados ou escravizados. Os que escaparam a Hitler não escaparam a Stálin. E posso provar que meu irmão ficou no setor americano por mais de um mês.

— Mas ele foi o único a ser entregue aos russos ou havia muitos outros?

— Ele não foi o único; havia muitos outros — disse Szy­manowski, sem demonstrar emoção alguma. Centenas de milha­res. Talvez milhões. Não creio que venhamos a conhecer os nú­meros exatos. Provavelmente as autoridades americanas não se preocuparam em fazer registros precisos da Operação Kee Chanl.

— Operação Kee Chanl? Por que nunca se menciona esse tipo de coisa? Naturalmente, se as pessoas viessem a saber que nós, americanos, enviamos prisioneiros libertados para, afinal, mor­rer na Rússia, ficariam horrorizadas.

— Não existem provas, não existe nenhuma documentação conhecida relacionada à Operação Kee Chanl. Mark Clark — que Deus o tenha! — desobedeceu a certas ordens, e alguns poucos prisioneiros foram alertados por soldados amigos, de modo que conseguiram fugir antes de serem enviados aos campos. Mas ago­ra estão mortos, e jamais teriam confessado o que aconteceu. Um dos desafortunados estava com meu irmão. De qualquer mo­do, já é tarde demais.

— Mas o povo americano precisa saber disso. Organizarei um comitê, imprimirei panfletos, farei discursos. Com certeza o Congresso nos ouvirá, se contarmos a verdade.

— Barão, acho que é tarefa muito difícil, até mesmo para o senhor.

Abel levantou-se.

— Não o estou subestimando, amigo — continuou o pro­fessor. — Acontece que ainda não compreendeu a mentalidade dos líderes do mundo. Os Estados Unidos concordaram em entre­gar aqueles pobres-diabos, porque assim exigiu Stálin. Tenho certeza de que jamais imaginaram que fosse haver julgamentos, campos de trabalho forçado e execuções. Mas hoje, quando entra­mos nos anos 50, quem confessará ter sido indiretamente res­ponsável por esse ato? Não, ninguém o fará. Talvez daqui a cem anos. Mas, até lá, todos, com exceção de uns poucos historiado­res, terão esquecido que a Polônia perdeu mais vidas na guerra do que qualquer outra nação, inclusive a Alemanha. Cheguei a pensar que o senhor chegaria à conclusão de que deve desempe­nhar um papel na política.

— Já andei pensando nisso, mas não concebo de que forma o faria.

— Tenho algumas idéias sobre o assunto, barão. Mantenha-se em contato comigo.

O velho levantou-se com esforço e abraçou Abel.

— Enquanto isso, faça o que puder pela causa, mas não se assuste quando encontrar portas fechadas.

Assim que voltou ao Baron, Abel pediu à telefonista que ligasse para o escritório do senador Douglas. Paul Douglas era o senador liberal democrata de Illinois, eleito com o apoio da má­quina eleitoral de Chicago, e sempre se mostrara útil e receptivo a quaisquer pedidos de Abel no passado, ciente do fato de que seu eleitorado abrangia a maior comunidade polonesa do país. Seu se­cretário, Adam Tomaszewicz, sempre se relacionara com os repre­sentantes poloneses.

— Alô, Adam, é Abel Rosnovski quem fala. Tenho um as­sunto assaz perturbador para conversar com o senador. Poderia marcar uma entrevista com ele?

— Lamento, mas ele não se encontra na cidade hoje, sr. Ros­novski. Acredito que ele terá enorme satisfação em conversar com o senhor tão logo volte, na quinta-feira. Direi a ele que lhe tele­fone. Posso informá-lo antecipadamente do assunto?

— Mas é claro, e, sendo polonês, o assunto é do seu interes­se. Soube, de fontes seguras, que as autoridades americanas na Alemanha colaboraram no retorno de cidadãos poloneses refugia­dos para os territórios ocupados pela União Soviética. Muitos fo­ram em seguida mandados aos campos de trabalho forçado russos, e nunca mais se ouviu falar deles.

Houve um silêncio momentâneo do outro lado da linha.

— Darei a informação ao senador assim que ele voltar, sr. Rosnovski — disse Adam Tomaszewicz. — Obrigado por ter tele­fonado.

 

Na quinta-feira, o senador não entrou em contato com Abel. Nem mesmo na sexta-feira ou no fim de semana. Na segunda-feira, pela manhã, Abel tornou a ligar para o escritório dele. Adam Tomaszewicz atendeu.

— Oh, olá, sr. Rosnovski. — Abel teve a impressão de que ele hesitara. — Há um recado do senador para o senhor. Sabe como é, ele tem estado muito ocupado com os projetos de lei que deverão ser votados antes que o Congresso entre em recesso. Ele o procurará assim que tiver um tempo livre.

— Deu meu recado a ele?

— Naturalmente. Na opinião dele, esses rumores fazem parte da propaganda antiamericana. Disse que, segundo lhe con­tou pessoalmente um dos chefes da comissão de inquérito, os soldados americanos receberam ordens de não libertar os refugia­dos de guerra que se encontravam sob seu controle.

Tomaszewicz falava como se estivesse lendo atentamente uma declaração escrita, e Abel percebeu que havia acabado de encontrar a primeira porta fechada. O senador Douglas nunca o evitara até então.

Abel desligou o telefone e discou o número de outro sena­dor, esperando que esse o ouvisse com atenção e não se evadisse com base em opiniões alheias.

Uma funcionária do escritório do senador Joseph McCarthy o atendeu e perguntou quem queria falar com o senador.

— Vou procurá-lo — disse a voz feminina e jovem, depois de ouvir de Abel a explicação do motivo por que desejava falar com o senador. McCarthy aproximava-se do ápice de seu poder, e Abel esperou ter a sorte de conversar longamente com ele.

— Sr. Rosenevski... — foram as primeiras palavras de Mc­Carthy.

Deturpara-lhe o nome de propósito ou a ligação estava ruim?

— ... mas que assunto é esse, tão urgente e tão grave, a ponto de o senhor querer falar comigo? — perguntou o senador.

Abel ficou hesitante, estava um tanto perturbado ao falar diretamente com McCarthy.

— Confie em mim, pois sei guardar segredos — disse o senador, que percebera nitidamente a sua hesitação.

— Confiarei, já que me garante o sigilo — disse Abel, e fez uma pausa para ordenar os pensamentos. — Senador, o senhor tem sido um porta-voz leal de todos nós que desejamos ver as nações da Europa oriental libertas do jugo do comunismo.

— Assim tenho sido, assim tenho sido. E alegro-me por reconhecê-lo, sr. Rosenevski.

Dessa vez Abel teve certeza de que ele pronunciara o nome erradamente de propósito, mas preferiu não dizer nada.

— Quanto à Europa oriental — prosseguiu o senador —, o senhor deve compreender que, tão-somente quando os traidores forem expulsos de dentro do nosso governo, nós poderemos to­mar medidas reais para libertar o seu país.

— É sobre esse assunto que gostaria de conversar com o senhor, senador. O senhor alcançou excelentes resultados ao de­nunciar a traição no interior do nosso governo. Até agora, porém, um dos maiores crimes cometidos pelos comunistas não foi divul­gado.

— A que grande crime se refere, sr. Rosenevski? Desde que cheguei a Washington não paro de descobrir crimes.

— Refiro-me — Abel endireitou o corpo na cadeira — à repatriação forçada de milhares de cidadãos poloneses feita pelas autoridades americanas ao término da guerra. Inimigos inocentes do comunismo foram mandados de volta à Polônia e em seguida à União Soviética, para lá serem escravizados e até mesmo assas­sinados.

Abel aguardou uma resposta, mas ouviu apenas o silêncio. Houve um clique na linha. Alguém mais estaria escutando a con­versa?

— Como pode ser tão idiota, Rosenevski? — o senador estava completamente mudado. Como se atreve a me telefonar para dizer que os americanos — os leais soldados dos Estados Unidos — mandaram milhares de poloneses de volta à Rússia se ninguém ouviu uma só palavra sobre isso? Pede-me para acre­ditar nessa bobagem? Nem mesmo um polonês seria tão estúpi­do! Posso imaginar que tipo de pessoa aceita uma mentira dessa sem nenhuma prova! Também quer que eu acredite que os sol­dados americanos são desleais? É o que quer? Diga-me, sr. Rosenevski, diga-me, o que está acontecendo com pessoas como o senhor? Será que é tão imbecil a ponto de não identificar uma propaganda comunista, mesmo quando a enfiam bem na sua cara? Precisa roubar o tempo de um senador sobrecarregado de traba­lho por causa de um boato cozinhado com a lama do Pravda, sim­plesmente com o intuito de provocar agitação nas comunidades de imigrantes dos Estados Unidos?

Abel permaneceu sentado, inerte, chocado com a explosão. Antes que o senador chegasse ao meio daquela invectiva, perce­beu que qualquer contra-argumento seria despropositado. Aguar­dou o fim do discurso histriônico e sentiu-se feliz por seu espanto não poder ser visto pelo senador.

— Senador, sem dúvida o senhor está com a razão, e só posso lamentar o fato de ter lhe tomado o tempo — comentou Abel calmamente. — Eu não havia pensado no assunto sob esse ponto de vista.

— Isso apenas ilustra até onde podem ir as artimanhas da­queles calhordas comunistas — disse McCarthy, apaziguado. — Não tire os olhos de cima deles. Em todo caso, agora o senhor estará alerta contra o crescente perigo que ameaça o povo ameri­cano.

— Sem dúvida, senador. Obrigado, mais uma vez, por se ter dado ao trabalho de atender-me pessoalmente. Adeus, senador.

— Passe bem, sr. Rosenovski.

Abel ouviu o ruído do fone cair sobre o gancho e achou bastante parecido ao de uma porta que se fechava.

 

William só tomou consciência de que envelhecia quando Kate, de brincadeira, chamou sua atenção para os fios de cabelo grisalho, que ele costumava contar, mas que agora iam além da conta. Richard começara a levar para casa as moças que julgava atraentes. William quase sempre aprovava as jovens senhoritas, como as chamava, provavelmente porque se pareciam demais com Kate, que, refletia ele, na meia-idade estava bela como nunca. As filhas, Virgínia e Lucy, agora também tornando-se jovens senho­ritas, tinham se transformado na imagem da mãe, o que lhe trou­xera grande felicidade. Virgínia revelava pendores artísticos, e as paredes da cozinha e dos quartos de criança estavam sempre co­bertas de suas últimas obras de gênio, como Richard, gracejando, as apelidava. A desforra de Virgínia chegou no dia em que Richard começou a tomar aulas de violoncelo, e até mesmo os criados co­chichavam comentários desagradáveis toda vez que o arco tocava as cordas. Lucy adorava os dois irmãos, e, sem nenhum juízo crítico, considerava Virgínia igual a Picasso, e Richard, o novo Casals. William começou a imaginar o que o futuro reservaria aos filhos quando ele não mais estivesse entre eles. Aos olhos de Kate, os três filhos faziam progressos satisfatórios. Richard, então na St. Paul's School, fizera avanços apreciáveis com o vio­loncelo e chegara a ser escolhido para tocar num concerto da es­cola, enquanto Virgínia pintava tão bem a ponto de um de seus quadros ter sido pendurado na sala da frente. Mas ficara evidente para toda a família que Lucy se tornaria a beleza personificada, quando, com apenas onze anos, começara a receber bilhetinhos de amor dos garotos que, até aquele momento, só se interessavam por beisebol.

Em 1951, Richard fora aceito em Harvard, e, embora não tivesse ganho a bolsa máxima para o curso de matemática, Kate apressou-se a fazer William ver que o menino jogava beisebol e tocava violoncelo na St. PauPs, dois talentos que ele mesmo nun­ca se vira tentado a desenvolver. William, no íntimo, orgulhava-se das habilidades de Richard, mas resmungou a Kate que não conhecera muitos banqueiros que tivessem jogado beisebol ou tocado violoncelo.

Os negócios bancários tinham entrado num período de ex­pansão desde que os americanos passaram a acreditar numa paz duradoura. William logo se viu mergulhado num trabalho exces­sivo, e, por um curto tempo, colocara em segundo plano a amea­ça que era Abel Rosnovski e todos os problemas relacionados a ele.

Os relatórios trimestrais de Thaddeus Cohen acusavam que Rosnovski havia embarcado numa viagem que não pretendia in­terromper, e que, através de uma terceira pessoa, deixava todos os acionistas, com exceção de William, a par do seu interesse nas ações do Lester. William perguntava-se se aquela linha de con­duta não o estaria levando a um confronto direto com o polonês. Pressentia que, mais cedo ou mais tarde, precisaria informar o conselho do Lester sobre as manobras de Rosnovski, e, possivel­mente, apresentar sua demissão, caso o banco se colocasse sob estado de sítio, uma decisão que resultaria na vitória total de Abel Rosnovski — razão por que não a encarava com severidade. Entendia que, se tivesse de lutar pela sua vida, lutaria, e, se um dos dois tivesse de ser derrotado, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir que não fosse ele próprio.

A questão a respeito do programa de investimento de Abel Rosnovski finalmente foi-lhe tirada das mãos.

No início de 1951, o banco fora convidado a representar uma das novas companhias de aviação dos Estados Unidos, a Interstate Airways, quando a Federal Aviation Administration concedeu franquia de vôo entre as costas Leste e Oeste. A Inters­tate procurara o Lester em virtude da necessidade de levantar trinta milhões de dólares, o capital requerido pelos regulamentos do governo.

William julgou vantajoso apoiar a companhia aérea e todo o projeto, e, virtualmente, dedicou todo o seu tempo à elaboração de uma oferta pública com o fim de levantar aquela soma. O banco, que atuava como responsável pelo projeto, aplicou todos os recursos no novo empreendimento. Era o maior projeto de William desde que retornara ao banco, e, ao recorrer ao mercado para conseguir os trinta milhões de dólares, ele compreendeu que a sua reputação pessoal estava em jogo. No mês de julho, anun­ciados os detalhes da oferta, o capital foi subscrito em questão de dias. William recebeu pródigos elogios enviados dos quatro cantos do país pela forma com que conduzira o projeto e o sus­tentara até o sucesso final. Ele próprio não pôde conter a alegria diante dos resultados — pelo menos até ler o relatório seguinte de Thaddeus Cohen, quando soube que dez por cento das ações da companhia aérea haviam sido adquiridas por uma das empre­sas que defendiam os interesses de Abel Rosnovski.

William concluiu que chegara o momento de comunicar a Ted Leach e Tony Simmons os seus piores temores. Chamou Tony a Nova Iorque, reuniu os dois vice-presidentes no seu gabinete e relatou-lhes a saga de Abel Rosnovski e Henry Osborne.

— Por que não nos informou antes sobre isso? — foi a primeira reação de Tony Simmons.

— No Kane & Cabot, estive em contato com centenas de companhias semelhantes ao Grupo Richmond, Tony, e naquela época não imaginei que ele levaria tão a sério a idéia da desforra. Só me convenci de que, de fato, se tratava de uma obsessão quando Rosnovski comprou dez por cento da Interstate Airways.

— Talvez esteja se assustando à toa — tranqüilizou-o Ted Leach. — De uma coisa tenho certeza: não seria prudente infor­mar os diretores do conselho. Estamos a poucos dias do lança­mento de uma nova companhia, e a última coisa que queremos é o pânico.

— Estou de pleno acordo — disse Tony Simmons. — Por que não esclarece tudo pessoalmente com esse Rosnovski?

— Tenho a impressão de que é exatamente isso o que ele quer que eu faça — respondeu William. — Ele veria confirmado o fato de que o banco se sente assediado.

— Não acha que ele mudaria de atitude se lhe contasse o quanto tentou, sem sucesso, convencer o banco a financiar o Grupo Richmond e que...

— Nada me faz crer que ele ainda não saiba disso — disse William. — Ele parece estar a par de tudo o que acontece.

— Nesse caso, na sua opinião, o que o banco deveria fazer em relação a Rosnovski? — indagou Ted Leach. — Sem dúvida não conseguiremos impedi-lo de comprar nossas ações, visto que existem pessoas dispostas a vendê-las. Se nós mesmos as comprás­semos, longe de impedi-lo, faríamos exatamente o jogo dele, au­mentando o valor de suas ações e comprometendo a nossa pró­pria situação financeira. Vocês podem estar certos de que ele se divertiria muito em nos ver sofrer. Harry Truman está de olho em bancos importantes como o nosso, e, além disso, às portas das eleições, nada agradaria mais aos democratas do que um es­cândalo na área bancária.

– A meu ver — disse William —, pouco temos a fazer, mas era meu dever colocá-los a par das intenções de Rosnovski, prevenindo-os para o caso de ele nos preparar uma nova surpresa.

– Acredito ainda na possibilidade, remota talvez — pon­derou Tony Simmons —, de que não haja maldade alguma nisso tudo, e de que, no fundo, ele simplesmente o respeite como investidor talentoso.

— Tony, como pode me dizer isso sabendo que meu pa­drasto está envolvido no caso? Acha que Rosnovski empregou Henry Osborne para promover a minha carreira bancária? Evi­dentemente você não conhece Rosnovski tanto quanto eu. Há vinte anos ou mais venho acompanhando a vida dele. Não está acostu­mado a perder; continua lançando os dados até finalmente sair vitorioso. Não o conheceria tão bem, se fosse um membro da minha família. Ele irá...

— Não vá ficar paranóico, William, eu espero que...

— Tony, não vou ficar paranóico!? Basta lembrar-se do po­der que o estatuto do banco propicia a quem tiver oito por cento das ações do banco, graças a um artigo que eu próprio incluí nele para defender-me de um eventual afastamento. O homem já pos­sui seis por cento, e, se isso, por si só, não prenuncia um péssimo futuro, lembre-se de que Rosnovski poderia fazer a Interstate Airways desaparecer do mapa colocando de uma só vez no mer­cado todas as suas ações.

— Mas ele nada ganharia com isso — disse Ted Leach. — Pelo contrário, perderia muito dinheiro.

— Acreditem em mim, vocês não sabem como funciona a cabeça de Abel Rosnovski — disse William. — Ele tem a cora­gem de um leão. Um prejuízo nada significaria para ele. Conven­ci-me muito depressa de que o único interesse dele é emparelhar-se comigo. Sim, é claro que, se se desfizesse das ações, perderia muito dinheiro, mas poderá sempre recorrer aos hotéis. São vinte e um agora, como sabem, e ele deve estar ciente de que, se da noite para o dia as ações da Interstate Airways sofrerem uma queda, nós também seremos derrotados. Como banqueiros, nossa credibilidade depende da confiança de um público volúvel, con­fiança que Abel Rosnovski poderá esmigalhar como e quando lhe convier.

— Vamos com calma, William — disse Tony Simmons. — Nada disso aconteceu até agora. Já que ficamos sabendo das in­tenções de Rosnovski, vamos vigiar de perto as atividades dele e contra-atacá-las. Em primeiro lugar, temos de garantir que nin­guém mais venda as ações do Lester antes de oferecê-las a você. O banco o apoiará sempre em todas as medidas que quiser tomar. Quanto a você, sou da opinião de que deveria conversar com Rosnovski pessoalmente e ser franco com ele. Pelo menos assim saberemos da seriedade dos propósitos dele e nos prepararemos segundo o que verificarmos.

— Sua opinião também é essa, Ted? — perguntou William.

— Sim, concordo com Tony. Você deve entrar em contato com o homem diretamente. É do interesse do banco descobrir se as intenções dele são ou não inofensivas.

William permaneceu em silêncio alguns momentos.

— Se vocês dois pensam dessa maneira, eu tentarei — disse finalmente. — Preciso ressalvar, porém, que não estou de acordo com vocês. Mas é possível que eu esteja por demais envolvido no caso para fazer um julgamento imparcial. Peço-lhes alguns dias para pensar na melhor maneira de procurá-lo, e então comunica­rei a vocês os resultados.

Depois que os dois vice-presidentes deixaram o gabinete, William ficou refletindo sobre a decisão que concordara em tomar, seguro de que, devido à implicação de Henry Osborne no caso, haveria poucas possibilidades de ser bem sucedido no confronto com Abel Rosnovski.

 

Quatro dias depois, William fechou-se na sala, depois de ter dito à secretária que não deveria ser interrompido em hipótese alguma. Sabia que Abel Rosnovski estava no escritório do Baron de Nova Iorque: havia colocado no hotel um homem cuja única tarefa era informar o momento em que Rosnovski aparecesse. O homem lhe telefonou: Abel Rosnovski chegara às oito e vinte e sete da manhã, subira para o quadragésimo segundo andar e não mais fora visto. William pediu à telefonista que ligasse para o Baron Hotel.

— Baron de Nova Iorque.

— O sr. Rosnovski, por favor — pediu William, nervoso.

A ligação foi transferida para a secretária de Abel.

— O sr. Rosnovski, por favor — repetiu. Dessa vez a voz saíra um pouco mais firme.

— Quem deseja falar com ele?

— William Kane.

Houve um longo silêncio — ou simplesmente pareceu longo a William?

— Não sei se ele está, sr. Kane. Um momento, vou verificar.

Outro longo silêncio.

— Sr. Kane?

— Sr. Rosnovski?

— Em que posso ajudá-lo, sr. Kane? — a voz era calma e com leve sotaque.

Embora William tivesse preparado o começo da conversa, não ignorava que falava com ansiedade.

— Estou um pouco preocupado com os títulos do Lester que adquiriu, sr. Rosnovski, e também com a forte posição que con­quistou numa das companhias que representamos. Penso que já é hora de nos encontrarmos e conversarmos sobre seus propósitos. Gostaria ainda que tomasse conhecimento de um assunto parti­cular.

Outro longo silêncio. A ligação teria sido interceptada?

— Não há condições possíveis de nos encontrarmos, sr. Kane. Sei o suficiente a seu respeito, e não estou disposto a ouvir suas desculpas com relação ao passado. Mantenha os olhos aber­tos o tempo todo e perceberá nitidamente quais são os meus pro­pósitos. Compreenderá que diferem muito daqueles que constam do Gênese, sr. Kane. Um dia o senhor terá o impulso de atirar-se pela janela do décimo segundo andar de um dos meus hotéis, porque as suas próprias ações do Lester lhe darão muita dor de cabeça. Preciso apenas de mais dois por cento para recorrer ao artigo 7, e nós dois sabemos o que isso significa, não sabemos? Então, provavelmente, o senhor experimentará pela primeira vez aquilo que senti por Davis Leroy, que imaginou durante meses o que o banco faria da vida dele. Agora o senhor pode sentar-se e imaginar, durante anos, o que farei com a sua vida assim que obtiver os oito por cento.

As palavras de Abel Rosnovski arrefeceram William, mas ele conseguiu, de algum modo, aparentar serenidade, mas ao mesmo tempo batia, irritado, o punho na mesa.

— Compreendo como se sente, sr. Rosnovski, mas ainda acredito que seria sensato conversarmos a fim de esclarecermos todas as questões. Existem um ou dois aspectos que, estou certo, o senhor desconhece.

— Por exemplo, de que maneira enganou Henry Osborne, privando-o de quinhentos mil dólares, sr. Kane?

William emudeceu por alguns instantes e desejou explodir, mas uma vez mais conseguiu controlar-se.

— Não, sr. Rosnovski, o que eu quero lhe falar não diz respeito ao sr. Henry Osborne. Trata-se de um assunto pessoal que tem a ver apenas com o senhor. Entretanto, devo garantir-lhe, e com uma certa ênfase, que nunca privei o sr. Henry Os­borne de um só centavo.

— A versão de Henry é outra. Ele diz que o senhor foi responsável pela morte de sua própria mãe, a fim de não ter que saldar com ele uma dívida. Depois de testemunhar o modo com que tratou Davis Leroy, sinto-me inclinado a acreditar nessa his­tória.

William nunca precisara esforçar-se tanto para controlar suas emoções. Só depois de alguns segundos encontrou uma resposta.

— Aceita a minha sugestão de esclarecermos todo esse mal-entendido de uma vez para sempre, encontrando-nos num lugar isolado, à sua escolha, onde ninguém poderá nos reconhecer?

— Existe apenas um lugar onde ninguém o reconheceria, sr. Kane.

— Onde fica? — perguntou William.

— No paraíso — retrucou Abel, devolvendo o fone ao gancho.

 

— Quero falar imediatamente com Henry Osborne — disse Abel à secretária.

Tamborilou os dedos sobre a mesa, enquanto a secretária, durante quinze minutos, tentava encontrar o deputado Osborne, o qual, como veio a saber, estivera mostrando o Capitólio a al­guns de seus eleitores.

— É você, Abel?

– Sim, Henry. Pensei que gostaria de ser o primeiro a saber que Kane descobriu tudo. A partir de agora, nossa batalha será travada em campo aberto.

— Como assim, descobriu tudo? Acha que ele sabe que estou implicado? — perguntou Henry, mostrando ansiedade.

— Sem sombra de dúvida. E sabe também das contas espe­ciais da companhia, das minhas ações do Lester e da Interstate Airways.

— Mas como foi descobrir tudo e com tantos detalhes? Só você e eu sabemos das contas especiais.

— E Curtis Fenton — disse, interrompendo-o.

— Tem razão. Mas ele não informaria Kane. Nunca.

— Deve tê-lo informado. Quem mais o faria? Não se es­queça de que Kane tratou diretamente com Curtis Fenton quando tomei posse do Grupo Richmond. Imagino que durante todo este tempo eles tenham se mantido em contato de alguma forma.

— Jesus!

— Você me parece preocupado, Henry.

— Se William Kane sabe de tudo, a regra do jogo já é outra. Estou avisando, Abel, ele não é homem de perder.

— Muito menos eu — replicou Abel. — E depois William Kane não me mete medo; não, enquanto eu tiver os dados na mão. Quantas ações temos nos negócios de Kane?

— Seis por cento do Lester, dez por cento da Interstate Airways, e alguns pingados em outras companhias a que eles estão ligados. Faltam-lhe apenas dois por cento do Lester para que você possa recorrer ao artigo 7, mas Peter Parfitt continua resistindo.

— Excelente — exclamou Abel. — A situação não poderia ser melhor. Vá insistindo com Parfitt, mas lembre-se de que, en­quanto William não chegar perto dele, não tenho pressa. Por enquanto, deixemos Kane à espera do nosso próximo passo. E não faça nada enquanto eu não voltar da Europa. Depois de ter conversado pelo telefone com o sr. Kane nesta manhã, posso ga­rantir a você, para usar uma expressão de cavalheiro, que ele está transpirando. Mas eu não estou. Ele que continue assim, porque não tenho a menor intenção de me mexer até me sentir forte e preparado.

— Ótimo. Se acontecer alguma coisa preocupante deste lado do mundo, eu o informarei.

— Ponha isto na sua cabeça, Henry. não há nada com que nos preocupar. Pegamos o seu amigo, o sr. Kane, pelas bolas, e a partir de agora pretendo ir espremendo-as bem devagarinho.

— Vou gostar de ver isso. — Henry demonstrou certo contentamento.

— Às vezes acho que você odeia Kane mais do que eu mesmo.

Henry deu um riso nervoso.

— Faça uma boa viagem à Europa.

Abel pôs o fone no gancho e fitou o vazio, refletindo sobre o seu próximo passo, os dedos ainda batendo ruidosamente na mesa. A secretária entrou.

— Ligue para o sr. Curtis Fenton, do Continental Trust Bank — pediu, sem olhá-la. Os dedos continuaram a bater na mesa. Os olhos continuavam a fitar o vazio. Momentos depois, o telefone tilintou.

— Fenton?

— Bom dia, sr. Rosnovski, como tem passado?

— Quero encerrar todas as minhas contas no seu banco.

Não houve resposta do outro lado da linha.

— Fenton, você me ouviu?

— Ouvi — o banqueiro estava estupefato. — Posso saber por quê, sr. Rosnovski?

— Porque meu apóstolo predileto nunca foi Judas, Fenton, eis por quê. A partir deste instante, você não pertence mais ao conselho do Grupo Baron. Em breve receberá instruções por es­crito que confirmarão esta conversa e indicarão para que banco as contas deverão ser transferidas.

— Mas não entendo por quê, sr. Rosnovski. O que fiz...?

Ao ver a filha entrar no escritório, Abel desligou.

— A conversa não parecia agradável, papai.

— Não era agradável mesmo, mas não tinha nada a ver com você, querida. — Abel mudou imediatamente o tom de voz. — Conseguiu comprar as roupas de que precisava para ir à Europa?

— Sim, papai, obrigada, mas acontece que não sei direito qual é a moda de Londres e Paris. Espero ter comprado as roupas certas. Não queria chamar a atenção de todo mundo, como se fosse um dedão enfaixado.

— Vai chamar a atenção, sim, minha querida, mas por ser a coisinha mais linda que os ingleses viram nos últimos tempos. Com o seu bom gosto nato e o seu senso de cor, ninguém vai achar que conseguiu as roupas com o talão de racionamento. Os jovens europeus disputarão a sua companhia, mas eu estarei lá para defendê-la. Agora proponho irmos almoçar e conversar sobre o que faremos enquanto estivermos em Londres.

Dez dias mais tarde, depois de Florentyna ter passado um longo fim de semana com a mãe — Abel não perguntou por ela – os dois voaram do Aeroporto de Idlewild, de Nova Iorque ao Heathrow, de Londres. O vôo, num Boeing 377, durou quase catorze horas, e, embora tivessem repousado, quando chegaram ao Claridge's, na Brook Street, a única coisa que queriam era um longo período de sono.

Abel ia à Europa por três motivos: primeiro, para confirmar os contratos de construção de novos hotéis Baron em Londres, Paris e, provavelmente, Roma; segundo, dar a Florentyna a opor­tunidade de conhecer a Europa antes de entrar para Radcliffe, onde estudaria línguas modernas; e, terceiro, e o mais importante, revisitar o castelo da Polônia e verificar se havia alguma possi­bilidade, a mais remota que fosse, de provar o seu direito de pro­priedade.

Londres revelou-se um sucesso para ambos. Os consultores de Abel tinham localizado um terreno próximo do Hyde Park, e ele instruiu seus procuradores a iniciar imediatamente as nego­ciações de compra e providenciar os alvarás, indispensáveis para que a Inglaterra se orgulhasse de também possuir um Baron Hotel. Florentyna achou desagradável a austeridade da Londres de pós-guerra, conhecendo a extravagância de sua própria terra, mas os londrinos pareciam não se intimidar pelos estragos que a guerra causara à cidade, acreditando ainda serem uma potência mundial. Foi convidada para almoços, jantares e bailes, e o pai viu confirmada a sua opinião sobre o gosto da filha pelas roupas e sobre a reação dos jovens europeus. Ela voltava toda noite com os olhos brilhantes de alegria e com histórias das novas conquis­tas que fizera — e que esquecia completamente na manhã se­guinte. Sem conseguir decidir-se, Florentyna uma hora queria casar-se com um dos etonianos da Guarda de Granadeiros que a saudavam a todo momento, outra com um membro da Câmara dos Lordes que estava a serviço da corte do rei. Ela não sabia precisamente o que "a serviço" significava, mas ele sabia perfei­tamente de que modo tratar uma senhorita.

Em Paris, pai e filha prosseguiram no mesmo ritmo, e, visto que ambos falavam o francês, relacionaram-se tão bem com os parisienses como com os ingleses. Em geral, Abel aborrecia-se na segunda semana de quaisquer férias, e logo contava quantos dias faltavam para retomar o trabalho. Isso, porém, não corria na companhia de Florentyna. A menina convertera-se, desde que ele se separara de Zaphia, no centro de sua vida e na única herdeira de sua fortuna.

Veio o momento de deixarem Paris, mas nenhum dos dois mostrava-se disposto a fazê-lo. Assim, com o propósito de pro­longar a estada na cidade por mais alguns dias, Abel alegou a necessidade de concluir as negociações de compra de um famoso hotel, agora decadente, situado no Boulevard Raspail. Não noti­ficou o proprietário, um certo M. Neuffe — aparentemente, se isso era possível, mais decadente do que o próprio hotel —, de que planejava demolir o edifício e começar do nada. Quando M. Neuffe assinou os documentos poucos dias depois, Abel deter­minou a derrubada do prédio, e, sem nenhuma outra justifica­tiva que o prendesse a Paris, voou com Florentyna com destino a Roma.

Após a cordialidade inglesa e a alegria da capital francesa, a taciturna e dilapidada Cidade Eterna logo lhes baixou o ânimo, pois para os romanos parecia não existir passado. Em Londres, tinham feito longas caminhadas pelos magníficos parques reais, contemplado edifícios históricos, e Florentyna havia dançado até as primeiras horas da madrugada. Em Paris, tinham ido ao Opera, almoçado às margens do Sena, e, descendo o rio de barco, passa­vam por Notre-Dame e ceavam no Quartier Latin. Em Roma, Abel encontrou uma esmagadora sensação de instabilidade finan­ceira, o que o levou a arquivar os planos de construir um Baron na capital italiana. Florentyna, uma vez mais pressentindo a an­siedade do pai por rever o castelo da Polônia, sugeriu que deixas­sem a Itália um dia antes do previsto.

Foi mais difícil vencer a burocracia para conseguir um visto de entrada num país da Cortina de Ferro do que para obter o alvará de construção de um novo hotel de quinhentos quartos em Londres. Um visitante menos persistente por certo teria de­sistido, mas, com os vistos devidamente firmados em seus passa­portes, Abel e Florentyna alugaram um automóvel e dirigiram-se para Slonim. Os dois viajantes foram obrigados a esperar durante horas na fronteira polonesa, contando apenas com a vantagem de Abel falar fluentemente a língua. Se os guardas soubessem por que seu polonês era tão bom, sem dúvida teriam assumido uma posição completamente diferente ao conceder-lhe o visto de entra­da. Abel trocou quinhentos dólares em dinheiro polonês — o que pelo menos pareceu agradar aos poloneses — e prosseguiu a jor­nada de carro. Quanto mais se aproximavam de Slonim, mais Flo­rentyna podia compreender o significado dessa viagem para o pai.

— Papai, não me lembro de tê-lo visto tão entusiasmado com alguma coisa.

— Foi aqui que nasci — explicou. — Depois de passar tanto tempo na América, onde todos os dias as coisas estão mudando, é quase um sonho voltar a um lugar em que nada mudou desde que parti.

Continuaram avançando em direção a Slonim, e Abel ficou muito atento, ao rever o lugar de sua infância. Ele estava ao mes­mo tempo chocado e revoltado com a desolação dos pequenos chalés, antes conservados e asseados. Recuando quase quarenta anos no tempo, ouviu sua própria voz de criança perguntando ao barão se a hora dos povos dominados da Europa havia chegado e se ele poderia desempenhar o seu papel; seus olhos marejaram-se ao pensar em quão curta havia sido aquela hora, e quão pe­queno o papel que desempenhara.

Quando completaram a curva que ia dar na propriedade do barão e encontraram os grandes portões de ferro que conduziam ao castelo, mas que ainda não podia ser visto, Abel riu muito alto, tomado de entusiasmo, e parou o carro.

— Está exatamente igual. Nada mudou. Venha comigo. Co­mecemos pela choupana onde passei os primeiros cinco anos da minha vida. Não acredito que alguém esteja morando lá. Depois entraremos no castelo.

Florentyna acompanhou o pai, que, com segurança, desceu por uma vereda e penetrou numa floresta de carvalhos e de bétulas cobertas de musgo, que por mais um século continuaria a mesma. Após uma caminhada de cerca de vinte minutos, saíram numa clareira. Diante deles estava a choupana do armador de laços. Abel não se lembrava mais de como era minúsculo o seu primeiro lar: será que de fato tinham morado nove pessoas den­tro dela? O telhado de sapé desmantelara-se, e a casa, com as pedras erodidas e as janelas quebradas, dava a impressão de estar desabitada. A horta, antes tão bem organizada, perdia-se no ema­ranhado de vegetação rasteira.

Teriam abandonado a choupana? Florentyna pegou no braço do pai e lentamente conduziu-o à porta da frente. Ali Abel parou. Florentyna bateu de leve à porta. Em silêncio, esperaram. Floren­tyna bateu de novo, um pouco mais forte, e então escutaram al­gum ruído, no interior da habitação.

— Já vai, já vai — disse uma mulher em polonês, num tom de queixa. Pouco a pouco a porta foi se abrindo. Apareceu uma velha magra e encurvada, toda vestida de preto. Fios de cabelo branco escapavam por debaixo do lenço que lhe cobria a cabeça, e seus olhos acinzentados fitaram vagamente os visitantes.

— Não é possível — murmurou Abel.

— O que querem? — perguntou a velha senhora, com des­confiança.

Não tinha dentes, e as linhas de seu nariz, boca e bochechas formavam um arco côncavo perfeito.

— Podemos entrar e conversar com a senhora? — falou Abel em polonês.

O olhar dela, receoso, passou de um para o outro.

— A velha Helena não fez nada de errado — disse ela num lamento.

— Eu sei — Abel falou com brandura. — Tenho notícias para a senhora.

Ainda relutando um pouco, ela consentiu que entrassem no cômodo vazio e frio, mas não lhes ofereceu assento. O cômodo era o mesmo: duas cadeiras, uma mesa, e a lembrança de que, até o dia em que saíra pela última vez da choupana, não sabia o que era um tapete. Florentyna sentiu frio.

— Não consigo avivar o fogo — disse, ofegante, a velha senhora, cutucando a lareira com a ponta de sua bengala. A ma­deira fracamente esbraseada não ardeu, e em vão ela rebuscou nos bolsos. — Papel, preciso de papel. — Voltou-se para ele, pela primeira vez revelando uma centelha de interesse. — Não tem nenhum papel?

Abel fitou-a com insistência.

— Não se lembra de mim?

— Não, não sei quem é você.

— Sabe, sim, Helena. Eu me chamo... Wladek.

— Conheceu o meu pequeno Wladek?

— Eu sou Wladek!

— Oh, não — disse ela, com ar distante e melancólico. — Um menino bom demais para ficar comigo. Tinha a marca de Deus. O barão levou-o embora e fez dele um anjo, sim, levou em­bora o pequetito da matka...

Sua voz falhou e por fim apagou-se. Ela sentou-se, mas suas mãos senis e enrugadas mantiveram-se ocupadas no regaço.

— Estou de volta — disse Abel, insistindo ainda mais, po­rém a velha mulher não lhe deu atenção. A voz cansada tremulou, como se ela estivesse completamente sozinha na casa.

— Mataram meu marido, meu Jasio, e mandaram meus filhos queridos para os campos, menos a pequena Sophia. Escondi-a até eles irem embora. — A voz soou monótona e conformada.

— E o que aconteceu com a pequena Sophia?

— Na outra guerra, os russos a levaram — disse insensivelmente.

Abel estremeceu.

A velha deixou as recordações, voltando-se para ele.

— O que quer? Por que está me fazendo tantas perguntas?

— Quero que conheça minha filha, Florentyna.

— Tive uma filha chamada Florentyna, mas só restei eu.

— Mas eu... — Abel começou a abrir a camisa.

Florentyna o impediu.

— Nós sabemos — disse ela, sorrindo para a velha senhora.

— Como pode saber? Foi há tanto tempo, bem antes de você nascer.

— Contaram-nos lá na aldeia — disse Florentyna.

— Não tem papel? — tornou a velha senhora. — Preciso de papel para atiçar o fogo.

Abel lançou um olhar desamparado para Florentyna.

— Não — respondeu —, desculpe-nos, não temos nenhum papel.

— O que querem de mim? — reiterou a velha, de novo hostil.

— Nada — disse Abel, conformando-se com o fato de que ela não se lembraria dele. — Só passamos para dizer bom-dia. — Tirou a carteira do bolso, puxou as notas novas que trocara na fronteira e entregou-as à mulher.

— Obrigada, obrigada — disse ela ao pegar as notas, os olhos lacrimejando de alegria.

Abel inclinou-se para a frente com a intenção de beijar a mãe adotiva, mas ela recuou.

Florentyna pegou o pai pelo braço e conduziu-o para fora da choupana, e ambos desceram pela trilha da floresta, tomando a direção do carro.

A velha ficou olhando pela janela até perdê-los de vista.

Pegou então as notas novas, amassou cada uma delas, fazendo pequenas bolas, e colocou-as cuidadosamente dentro da lareira. Incendiaram-se imediatamente. Ela dispôs gravetos e pequenos lenhos sobre as notas que ardiam, e, devagar, sentou-se ao pé do fogo, o melhor fogo que tinha em muitas semanas, esfregando as mãos e aquecendo-as no reconfortante calor.

Abel permaneceu calado no caminho de volta ao carro, até avistar de novo os portões de ferro. Em seguida, esforçando-se por esquecer a choupana, prometeu a Florentyna:

— Daqui a pouco você vai conhecer o castelo mais bonito do mundo.

— Ah, papai, pare de exagerar.

— Do mundo — repetiu Abel calmamente.

Florentyna riu.

— Depois eu lhe digo se ele se compara a Versalhes.

Entraram no carro, Abel cruzou os portões, lembrando-se do veículo em que passara por eles pela última vez, e começou a subir a longa alameda até o castelo. Transbordava de lembran­ças do passado. Dias felizes de criança na companhia do barão e de Leon, dias infelizes em que fora levado pelos russos do castelo querido, a imaginar se algum dia tornaria a vê-lo. Mas agora, ele, Wladek Koskiewicz, estava de volta, em triunfo, para reclamar o que lhe pertencia.

O carro avançava pela estrada tortuosa, e ambos permane­ciam calados, imersos num silêncio cheio de expectativa, até que, finalmente, contornando a última curva, tiveram a primeira vista do que tinha sido o lar do barão Rosnovski. Abel parou o carro e olhou fixamente seu castelo. Nem um nem outro disse nada, simplesmente olharam, os olhos arregalados, descrentes ante a des­truição e os restos bombardeados de seu sonho.

Abel e Florentyna desceram vagarosamente do carro, em silêncio. Florentyna segurou a mão do pai, apertando-a muito, muito, enquanto as lágrimas escorriam pelas faces dele. Apenas uma parede mantinha-se precariamente de pé, uma lembrança de sua passada glória; o resto não era mais que amontoados de cascalhos e pedras vermelhas. Ele não suportaria falar-lhe dos grandes salões, dos corredores, das cozinhas e dos quartos de dormir. Ca­minhou para o local das três sepulturas, agora forrado de capim viçoso, onde jaziam o barão, o amigo Leon, e a adorada Floren­tyna. Demorou-se diante de cada um deles e desejou que Leon e Florentyna estivessem vivos agora. Ajoelhou-se junto das sepul­turas. As visões apavorantes de seus derradeiros instantes retor­naram com toda a força. A filha ficou ao seu lado, a mão pousada em seu ombro, calada. Só depois de um longo tempo Abel ergueu-se, sem pressa, e caminharam sobre as ruínas. Lajes marcavam o lugar onde antes salões magníficos se haviam enchido de risos. Abel continuava emudecido. De mãos dadas, chegaram às masmorras. Abel sentou-se no chão do pequeno e úmido cubículo, perto da abertura gradeada, ou daquilo que dela restava. Girou muitas vezes a pulseira em torno do pulso.

— Foi aqui que seu pai viveu quatro anos.

— Não é possível! — exclamou Florentyna, que não se sentou.

— Agora está melhor do que naquele tempo — disse Abel. — Pelo menos agora há ar fresco, pássaros, sol, e uma sensação de liberdade. Naquele tempo não havia nada, somente escuridão, morte, cheiro de morte, e, o pior de tudo, a expectativa da morte.

— Vamos, papai, vamos embora. Ficar aqui só poderá fazer-lhe mal.

Florentyna conduziu o pai indeciso até o carro e dirigiu sem pressa pelo caminho abaixo. Abel não tornou a olhar para as ruí­nas do castelo quando atravessaram pela última vez os portões de ferro.

No percurso até Varsóvia, ele quase não falou, e Florentyna desistiu de tentar reanimá-lo. Quando o ouviu dizer: "Só me resta uma coisa a realizar nesta vida", Florentyna sentiu curiosidade de saber o que isso. significava, mas não lhe pediu explicação. Con­seguiu, entretanto, convencê-lo a passar outra semana em Londres antes de regressarem, o que, estava convencida, devolveria ao pai o entusiasmo e talvez o ajudasse a esquecer a lembrança da mãe adotiva, idosa e insana, e das ruínas do castelo na Polônia.

No dia seguinte, voaram para Londres. Abel sentia-se satis­feito por estar de volta a um país que lhe oferecia a oportunidade de comunicar-se rapidamente com os Estados Unidos. Depois que se instalaram no Claridge's, Florentyna saiu para rever amigos e fazer novas amizades. Abel dedicou-se a ler todos os jornais da coleção do hotel, na esperança de atualizar-se sobre os fatos. Não gostava da sensação de que muitas coisas podiam acontecer na sua ausência; isso lhe lembrava, com extrema nitidez, que o mun­do podia muito bem continuar sem ele.

Uma pequena notícia, numa das páginas internas da edição de sábado do Times, chamou-lhe a atenção. Sim, coisas tinham acontecido durante a sua ausência. Um Vickers Viscount da Inter­state Airways espatifara-se logo depois de decolar do aeroporto da Cidade do México na manhã do dia anterior. Dezessete pas­sageiros e a tripulação tinham morrido. As autoridades mexicanas imediatamente atribuíram a causa do acidente à péssima assistên­cia técnica que a Interstate oferecia aos seus aviões.

"Hoje é sábado, e provavelmente ele estará de volta a Chica­go", refletiu Abel. Folheou a agenda de telefones à procura do número. E solicitou à telefonista uma ligação internacional.

— Haverá uma espera de cerca de trinta minutos — expli­cou uma voz inglesa, formal mas nada desagradável.

— Obrigado — disse Abel, e deitou-se na cama ao lado do telefone, pondo-se a refletir. Vinte minutos depois, o telefone tocou.

— A sua ligação internacional, senhor — disse a mesma voz formal.

— Abel, é você? Onde está?

— Sou eu, sim, Henry. Estou em Londres.

— Já falou? — disse a voz feminina, entrando na linha.

— Eu nem comecei — disse Abel.

— Desculpe, senhor. Quis dizer se o senhor já está falando com os Estados Unidos.

— Oh, sim, obrigado. Puxa vida, Henry, eles aqui falam uma língua completamente diferente.

Henry Osborne riu.

— Agora escute. Leu a notícia sobre o desastre do avião da Interstate no aeroporto da Cidade do México?

— Sim, li —- disse Henry —, mas não há por que se preo­cupar. O avião estava devidamente segurado, e a companhia está inteiramente coberta, de modo que não sofreu nenhum prejuízo e o capital continua intacto.

— O seguro é a última coisa que me interessa — disse Abel. -i- Esta é nossa melhor oportunidade de testarmos a resistência da constituição física do sr. Kane.

— Acho que não entendi, Abel. O que quer dizer?

— Ouça-me com atenção. Vou lhe explicar exatamente o que quero que você faça quando a Bolsa de Valores abrir na ma­nhã de segunda-feira. Na terça-feira estarei de volta a Nova Iorque para reger pessoalmente o crescendo final.

Henry Osborne ouviu-o atentamente. Vinte minutos depois, Abel recolocou o fone no gancho. Agora ele tinha falado.

 

William compreendeu que Abel Rosnovski poderia causar-lhe mais aborrecimentos na manhã em que Curtis Fenton lhe tele­fonou informando-o de que o Barão de Chicago fechara todas as contas bancárias do grupo no Continental Trust e estava acusan­do a ele, Fenton, de deslealdade e conduta antiética.

— Pensei estar agindo corretamente ao escrever-lhe sobre as aquisições que o sr. Rosnovski fizera das ações do Lester — disse o banqueiro, desgostoso —, e no fim acabei perdendo um dos meus clientes mais importantes. Nem sei como os diretores do conselho entenderão isso.

William formulou uma desculpa inadequada e procurou con­solar Fenton, prometendo conversar com os superiores dele. Con­tudo, na verdade, preocupava-se bem mais com o próprio golpe de Abel Rosnovski.

Quase um mês depois, descobriu a natureza desse golpe. Ve­rificava a correspondência da manhã de segunda-feira, quando recebeu um telefonema de seu corretor: alguém havia colocado na Bolsa ações da Interstate Airways no valor de um milhão de dólares. William viu-se obrigado a comprar as ações com o di­nheiro de seu próprio depósito, e, para tanto, expediu imediata­mente uma ordem de compra. Às duas horas dessa mesma tarde, outro lote de um milhão de dólares foi colocado no mercado. Antes que William pudesse resgatá-lo, o preço começou a cair. Quando a Bolsa de Valores de Nova Iorque fechou,- às quinze horas em ponto, o valor da Interstate Airways havia baixado um terço.

Às dez horas e dez minutos da manhã seguinte, William re­cebeu um telefonema do agora alvoroçado corretor. Outras ações no valor de um milhão de dólares tinham sido jogadas no merca­do ao soar a sineta de abertura do pregão. O corretor relatou que o último dumping tivera o efeito de uma avalanche: as ordens de venda da Interstate desabavam de todos os cantos, os preços haviam baixado, e as ações estavam sendo vendidas a apenas alguns cents cada. Vinte e quatro horas antes, o título da Interstate estivera cotado a quatro dólares e meio.

William incumbiu Alfred Rodgers, o secretário da compa­nhia, de convocar uma reunião do conselho para a segunda-feira seguinte. Precisava de tempo para descobrir o responsável pelo dumping. Na quarta-feira, já havia abandonado qualquer tenta­tiva de sustentar a Interstate mediante a compra pessoal de todas as ações que surgiam no mercado. No fechamento do expediente, a Securities & Exchange Commission divulgou que faria uma sin­dicância em todas as transações da Interstate. William sabia que o conselho do Lester, a partir desse momento, tinha de resolver se defenderia a companhia aérea durante os três ou seis meses que a SEC levaria para concluir as investigações, ou se consenti­ria na sua falência. Ambas as alternativas pareciam desastrosas, tanto para o bolso de William quanto para a reputação do banco.

No dia seguinte, informado por Thaddeus Cohen, William soube, sem nenhuma surpresa, que a empresa que despejara as ações da Interstate no valor de três milhões de dólares era a Guaranty Investment Corporation, uma das empresas que represen­tavam Abel Rosnovski. Um porta-voz da empresa publicara um pequeno e plausível comunicado explicando as razões da venda: tinham se preocupado com o futuro da companhia após a decla­ração do governo do México sobre os recursos precários de ma­nutenção da Interstate Airways.

— Declaração que o faz responsável! — disse William, in­dignado. — O governo mexicano não fez nenhuma declaração digna de confiança desde que proclamou a vitória de Speedy González na corrida de cem metros nas Olimpíadas de Helsinque.

Os meios de comunicação tiraram o máximo proveito do comunicado da Guaranty Investment, e, na sexta-feira, a Federal Aviation Administration interditou os vôos da companhia aérea até que se processasse uma investigação minuciosa dos recursos de manutenção.

William confiava em que a Interstate nada tinha a temer de tal investigação, mas a medida trouxera enormes prejuízos para as reservas de passagens a curto prazo. Nenhuma companhia aérea pode obter recursos com os aviões paralisados, só pode ganhar dinheiro quando os aparelhos estão no ar.

Para agravar ainda mais os problemas de William, outras grandes empresas, representadas pelo Lester, começaram a recon­siderar seus compromissos futuros. A imprensa não tardou em salientar que o Lester era o subscritor da Interstate Airways. Surpreendentemente, as ações da Interstate começaram a ser com­pradas de novo ao final da tarde de sexta-feira, e William logo compreendeu por quê. Thaddeus Cohen mais tarde confirmou-lhe a constatação: o comprador era Abel Rosnovski. Vendera as ações da Interstate na alta, e agora as recomprava em pequenos lotes, enquanto se encontravam na baixa. William balançou a cabeça num sinal de invejosa admiração. Rosnovski fazia uma pequena fortuna à custa da falência de William, tanto em termos de repu­tação, quanto financeiros.

William concluiu que, embora o Grupo Baron houvesse ar­riscado mais de três milhões de dólares, poderia terminar com grande margem de lucro. Ademais, ficara evidente que Abel Ros­novski não se alarmava com um prejuízo temporário, que, em todo caso, poderia utilizar como amortização do imposto de renda. Ele se interessava tão-somente na total ruína da reputação do Lester.

Na reunião do conselho, na segunda-feira, William explicou toda a história do conflito entre ele e Rosnovski e apresentou sua demissão. Ela não foi aceita, nem mesmo se procedeu a uma votação, mas houve murmurações, e William estava ciente de que, caso Rosnovski voltasse a atacar, seus colegas não adotariam pela segunda vez uma posição de tolerância.

O conselho debateu a questão do apoio à Interstate Airways. Tony Simmons convenceu-os de que o inquérito da F.A.A. resul­taria em favor do banco, e que a Interstate, no devido tempo, recuperaria todo o dinheiro perdido. Tony viu-se obrigado a ad­mitir a William, após a reunião, que a decisão apenas auxiliaria Rosnovski naquela longa corrida, mas que o banco não via outra alternativa, se quisesse preservar sua reputação.

Os fatos vieram comprovar o acerto de suas previsões. Quan­do, finalmente, a SEC publicou os resultados de suas investiga­ções, declarou o Lester "irrepreensível", embora reservasse duras palavras à Guaranty Investment Corporation. Nessa manhã, o mercado de valores voltou a negociar com os títulos da Interstate, e William surpreendeu-se com a elevação das cotações. Em pouco tempo o título alcançou os anteriores quatro dólares e meio.

Thaddeus Cohen inteirou William de que o comprador prin­cipal fora, outra vez, Abel Rosnovski.

— Era só o que me faltava neste momento — disse Wil­liam. — Ele não apenas consegue um grande lucro com toda esta transação, como de agora em diante poderá repetir o mesmo pro­cedimento quando lhe der na telha.

— Sem dúvida — disse Thaddeus Cohen —, era exatamente o que lhe faltava.

— O que está querendo sugerir, Thaddeus? — perguntou William. — Nunca soube que falava por enigmas.

— O sr. Abel Rosnovski cometeu o primeiro erro de julga­mento, porque está infringindo a lei e dando-lhe a oportunidade de apanhá-lo. Provavelmente ele não percebeu que praticava algo ilegal, com procedimentos errados.

— De que está falando? — indagou William.

— É simples — respondeu Thaddeus Cohen. — Por causa de sua obsessão por Rosnovski, e da dele por você, ambos passa­ram por cima do óbvio: quem vende ações com o único propósito de provocar uma baixa no mercado, a fim de nessa circunstância reaver as mesmas ações e com elas obter um certo lucro, infringe a norma 10b-5 da Securities & Exchange Commission, e comete um delito de fraude. Na minha opinião, não resta dúvida de que o lucro rápido não era o propósito do sr. Rosnovski. Com efeito, sabemos perfeitamente que ele pretendia tão-somente colocá-lo numa situação embaraçosa. Mas quem irá acreditar em Rosnovski se ele disser que despejou os títulos por que julgara a companhia precária, quando ele próprio comprou os mesmos títulos assim que baixaram de preço? Resposta: ninguém e, certamente, nem a SEC. Amanhã enviar-lhe-ei um relatório completo por escrito, William, onde fornecerei todas as implicações legais.

— Obrigado — disse o amigo, exultante com a nova.

Às nove horas da manhã seguinte, o relatório de Thaddeus Cohen já se encontrava sobre a mesa de William. Depois de ler os pontos principais com a máxima atenção, ele convocou nova reunião do conselho. Os diretores concordaram com as medidas que William resolvera tomar. Thaddeus Cohen recebeu instru­ções de redigir cuidadosamente um comunicado à imprensa, o qual foi entregue nessa mesma noite. O Wall Street Journal, de manhã, trazia na primeira página:

 

O presidente do Lester Bank, William Kane, afirma ter ra­zões para acreditar que as ordens de venda das ações da Interstate Airways, companhia subscrita pelo Lester, emitidas em novembro de 1952 pela Guaranty Investment Corporation, objetivavam uni­camente obter um lucro ilegal.

Confirmou-se que a Guaranty Investment Corporation foi a responsável pela colocação no mercado de um lote da Interstate no valor de um milhão de dólares à abertura da Bolsa na segunda-feira, 12 de maio de 1952. Seis horas mais tarde, chegava ao mer­cado outro lote de um milhão de dólares. A Guaranty Investment Corporation emitiu nova ordem de venda de um terceiro milhão de dólares quando a Bolsa reabriu no dia seguinte, 13 de maio. Com isso, as ações caíram, numa baixa recorde. Como resultado do inquérito da SEC, que provou não ter havido nenhuma nego­ciação ilegal por parte do Lester e da Interstate Airways, o mer­cado tornou a reagir, negociando as ações ao preço da baixa. A Guaranty Investment apressou-se em readquirir as ações aos pre­ços mais baixos possíveis. Continuou a comprá-las até recuperar a quantia de três milhões de dólares correspondente aos títulos que havia soltado anteriormente no mercado.

O presidente e os diretores do Lester enviaram duplicata de todos os documentos pertinentes à Divisão de Fraude da Se­curities & Exchange Commission, solicitando-lhe a abertura de uma completa sindicância.

 

A matéria prosseguia com a publicação integral da norma 10b-5 da SEC, e comentava ser esse, exatamente, o tipo de caso que o presidente Truman andava esperando; o cartum que ilus­trava a matéria ao pé da página mostrava Harry S. Truman pe­gando um homem de negócios com a mão na botija.

Enquanto lia a notícia, William sorria, certo de que nunca mais teria aborrecimentos provocados por Abel Rosnovski.

 

Abel franziu á testa e permaneceu calado, enquanto Henry Osborne relia a notícia em voz alta. Abel ergueu os olhos, batendo os dedos na mesa num sinal de irritação.

— Os homens de Washington — disse Osborne — estão decididos a levar o caso até o fim.

— Mas, Henry, você sabe muito bem que não vendi as ações da Interstate para desferir um golpe mortal no mercado de valores — disse Abel. — De modo algum meu interesse era o lucro.

– Sei disso — falou Henry —, mas experimente convencer a Comissão de Finanças do Senado de que o Barão de Chicago não tinha interesse em lucros financeiros, de que tudo o que ele queria era mostrar o ódio que sente por William Kane. Vão ridi­cularizá-lo na corte, ou no Senado, para ser mais preciso.

— Droga! E agora, o que devo fazer?

— Bem, em primeiro lugar deve aguardar bem quieto no seu canto até que venha a bonança. Comece a rezar para que um escândalo bem maior estoure na praça e ocupe toda a atenção de Truman, ou então para que os políticos se envolvam na campa­nha eleitoral, e não tenham tempo de exigir um inquérito. Com sorte, a nova administração poderá até mesmo deixar o caso de lado. Mas faça o que fizer, Abel, não compre mais nenhuma ação ligada ao Lester, do contrário acabará pegando uma pena pesa­da. Deixe-me ver o que posso conseguir com os democratas de Washington.

— Lembre ao pessoal de Harry Truman que dei cinqüenta mil dólares para a campanha durante a última eleição, e que pre­tendo fazer o mesmo com Adlai.

— Já fiz esse lembrete — disse Henry. — Aliás, aconselho-o a dar cinqüenta mil dólares aos republicanos também.

— Eles estão fazendo de um argueiro um cavaleiro — disse Abel. — Um argueiro que Kane transformará em cavaleiro se lhe dermos a oportunidade. — Seus dedos continuaram a bater no tampo da mesa.

 

O relatório trimestral seguinte, enviado por Thaddeus Cohen, mostrou que Abel Rosnovski havia interrompido a compra e a venda de títulos em quaisquer das companhias do Lester. Ao que parecia, concentrava todas as suas energias na construção de hotéis na Europa. Na opinião de Cohen, Rosnovski estava na moita, esperando que a SEC apresentasse as conclusões sobre o caso Interstate.

Por várias vezes William recebeu no banco a visita dos re­presentantes da SEC. Falou-lhes com franqueza, mas eles nunca lhe disseram nada sobre o andamento do inquérito. Finalmente, deram por terminada a sindicância e agradeceram a William a colaboração. E William nunca mais teve notícias deles.

Uma vez que as eleições para a presidência se aproximavam, e Truman parecia esforçar-se por dissolver o truste industrial Du Pont, William começou a recear que Abel Rosnovski saísse ileso do incidente. Não conseguia deixar de imaginar que Henry Os­borne puxara alguns cordões no Congresso. Lembrou-se de que Cohen certa vez sublinhara uma observação atinente a uma doação de cinqüenta mil dólares feita pelo Grupo Baron para os fundos da campanha de Harry Truman. Agora, ao ler no último relatório de Cohen, William surpreendia-se de que Rosnovski repetisse o mesmo gesto com Adiai Stevenson, o candidato democrata à pre­sidência, ao mesmo tempo que doava outros cinqüenta mil dólares para a campanha de Eisenhower. Cohen, de novo, sublinhara a informação.

William, que jamais pensara em apoiar financeiramente para um cargo público alguém que não fosse republicano, esperava que o general Eisenhower, o candidato que emergira na primeira vota­ção da convenção de Chicago, derrotasse Adlai Stevenson, embora estivesse cônscio de que, muito provavelmente, e ao contrário dos democratas, uma administração republicana não aceitaria levar avante um inquérito sobre manipulação de títulos.

Quando o general Dwight D. Eisenhower — a nação pa­receu ter gostado de Ike[2] — foi eleito o trigésimo quarto presi­dente dos Estados Unidos, no dia 4 de novembro de 1952, Wil­liam pressupôs que Abel Rosnovski se havia safado de quaisquer acusações, mas que aquela experiência o convencera a jamais tor­nar a envolver-se com os negócios do Lester. Uma pequena com­pensação para William, resultante da eleição, fora que Henry Osborne perdera a cadeira no Congresso para um candidato repu­blicano. O paletó de Eisenhower tinha abas de fraque, e o rival de Osborne nelas se pendurara. Thaddeus Cohen sentia-se incli­nado a crer que Henry Osborne deixara de exercer sobre Abel Rosnovski a mesma influência que antes exercera. Em Chicago, comentava-se que, desde o divórcio da esposa abastada, Osborne devia elevadas somas a Rosnovski e voltara a jogar.

William sentia-se mais satisfeito e tranqüilo que nos últimos tempos, e esperava tomar parte na era próspera e pacífica pro­metida por Eisenhower no discurso de posse.

O primeiro ano de governo do novo presidente ia chegando ao final, e William pôs em segundo plano as ameaças de Rosnovski, pensando nelas como coisas do passado. Afirmou a Thad­deus Cohen que, acreditava, jamais ouviriam falar de Abel Ros­novski. O advogado não fez nenhum comentário. Não lhe solici­taram que fizesse algum.

William deu tudo de si na construção do Lester, fosse em tamanho, fosse em reputação, mais e mais consciente de que o fazia tanto pelo filho quanto por si mesmo. Alguns funcionários do banco já se referiam a ele como "o velho".

— Um dia isso aconteceria — disse Kate.

— Mas por que não aconteceu com você? — replicou Wil­liam.

Kate fitou-o com um sorriso nos lábios.

— Agora descobri por que você fechou tantos negócios com homens frívolos...

William riu.

— E com uma bela mulher — ajuntou.

Como apenas dali a um ano Richard completaria vinte e um anos, William emendou as disposições de seu testamento. Reser­vou cinco milhões de dólares para Kate, dois para cada filha, e o restante da fortuna deixou para Richard, considerando, com tristeza, a parcela dos impostos sobre os bens. Deixou ainda um milhão de dólares para Harvard.

Richard soube tirar proveito de seus quatro anos em Har­vard. No início do quarto ano, não apenas se dedicou à conquista de uma Summa cum laude, como também tocava violoncelo na orquestra da universidade, além de ser o lançador do time de beisebol, que até o próprio William aprendera a admirar. Como Kate costumava perguntar, com certo orgulho, quantos estudantes jogavam beisebol no time de Harvard contra o de Yale nas tardes de sábado e ainda tocavam violoncelo no concerto da universi­dade nas noites de domingo?

O último ano passou depressa, e quando Richard deixou Harvard, munido de um diploma de bacharel em Matemática, de um violoncelo e de um bastão de beisebol, tudo de que precisava antes de ingressar na Escola de Administração, do outro lado do rio Charles, eram umas férias restauradoras. Viajou para Barba­dos com uma garota chamada Mary Bigelow, cuja existência os pais dele felizmente ignoravam. A srta. Bigelow estudara música, entre outras coisas, em Vassar, e, depois de dois meses, retornan­do praticamente com o mesmo bronzeado dos ilhéus, Richard levou-a para casa a fim de apresentá-la aos pais. William aprovou a srta. Bigelow; afinal, era sobrinha-neta de Alan Lloyd.

Richard voltou à Escola de Administração de Harvard no dia 1.° de outubro de 1952, dando início, assim, ao seu curso de pós-graduação. Assim que fixou residência na Red House, ele jogou fora todos os móveis de bambu de William, removeu o papel de parede com padrões ondulados de cores vivas, que Matthew Lester um dia julgara tão moderno, e instalou um tapete de canto a canto da sala de estar, uma mesa de carvalho na sala de jantar, uma máquina de lavar pratos na cozinha, e, bem mais do que esporadicamente, a srta. Bigelow no quarto de dormir.

 

Em outubro de 1952, Abel regressou imediatamente de uma viagem a Istambul logo que lhe telegrafaram sobre o ataque car­díaco fulminante de David Maxton. Compareceu com George e Florentyna ao funeral, realizado em Chicago, e, ao final da ceri­mônia, convidou a sra. Maxton a hospedar-se num Baron, em qualquer parte do mundo, quando lhe aprouvesse. Ela não com­preendeu o motivo daquele gesto tão generoso de Abel Rosnovski.

Retornando a Nova Iorque no dia seguinte, Abel viu com alegria, sobre a escrivaninha do escritório do quadragésimo se­gundo andar, um relatório enviado por Henry Osborne, onde ele assinalava o tempo de bonança. Na opinião de Henry, dificilmente o novo governo de Eisenhower exigiria um inquérito sobre o fiasco da Interstate Airways, ainda mais agora que os títulos ha­viam mantido a estabilidade durante todo um ano. Não surgira, portanto, nenhum incidente que por azar reacendesse qualquer interesse no escândalo. O vice-presidente de Eisenhower, Richard M. Nixon, parecia absorvido na caça ao espectro dos comunistas que haviam escapado a Joe McCarthy.

Nos dois anos seguintes, Abel dedicou-se inteiramente à cons­trução de seus hotéis na Europa. Inaugurou o Baron de Paris em 1953, e o de Londres ao final de 1954. Havia outros hotéis Baron em fases diversas de construção em Bruxelas, Roma, Amsterdã, Genebra, Bonn, Edimburgo, Cannes e Estocolmo, num programa de expansão que abrangia um período de dez anos.

Abel se sobrecarregara tanto de trabalho que tivera pouquís­simo tempo para deter-se na prosperidade crescente de William Kane. Não fizera nenhuma tentativa de comprar títulos do Lester ou de companhias subsidiárias, embora conservasse os que pos­suía, na esperança de que se apresentasse nova oportunidade de desferir outro golpe em William Kane. Da próxima vez, prome­tera a si mesmo, teria mais cuidado para não infringir a lei.

Durante as viagens de Abel ao exterior, cada vez mais fre­qüentes, George assumia a direção do Grupo Baron. Abel alimen­tava o sonho de que Florentyna integrasse o conselho tão logo saísse de Radcliffe, em junho de 1955. Tinha já decidido que a filha dirigiria todas as lojas dos hotéis e tomaria para si a respon­sabilidade de consolidar as vendas, visto que a organização rapida­mente se transformava num império.

Florentyna entusiasmou-se com a perspectiva, mas insistia em querer ganhar experiência noutra organização antes de inte­grar o grupo do pai. Não julgava substitutos da experiência seus dons inatos para o desenho, a cor e a organização. Abel propôs-lhe estagiar na Suíça, sob a orientação de M. Maurice, na renomada École Hôtelière de Lausanne. Esquivando-se à idéia, Floren­tyna justificou que só assumiria a direção das lojas depois de trabalhar dois anos num magazine de Nova Iorque. Resolvera ser empregada por mérito, "não apenas por ser a filha do meu pai". Abel concordou plenamente com ela.

— Um magazine de Nova Iorque? Vai ser fácil — disse ele. — Telefonarei a Walter Hoving, da Tiffany, e ele a colocará num posto importante.

— Não. — Florentyna revelava ter herdado a teimosia do pai. — Qual é o cargo correspondente ao de ajudante de garçom no Plaza Hotel?

— Uma balconista numa loja de departamentos — disse Abel, rindo.

— Pois então serei justamente uma balconista.

Abel interrompeu o riso.

— Está falando sério? Com um diploma de Radcliffe e o conhecimento e experiência que ganhou com as viagens à Europa, quer ser uma balconista anônima?

— Você foi garçom no Plaza até chegar o momento de orga­nizar um dos grupos hoteleiros mais bem-sucedidos do mundo, e isso não lhe causou mal algum — retrucou Florentyna.

Abel sabia reconhecer uma derrota. Bastou olhar nos olhos cinza-azulados da bela filha para certificar-se de que ela estava resolvida a levar avante seu plano e de que nenhum argumento persuasivo, conciliador ou não, iria demovê-la.

Depois de graduar-se em Radcliffe, Florentyna viajou com o pai durante um mês pela Europa, acompanhando de perto os avanços dos recentes hotéis Baron. Ela inaugurou oficialmente o Baron de Bruxelas, e na oportunidade conquistou o gerente, que era jovem, bonito e falava francês, e a quem Abel acusou de cheirar a alho. Ela renunciou ao jovem três dias depois, ao chegarem à fase dos beijos, mas jamais confessaria ao pai que o motivo do rompimento fora o alho.

Florentyna retornou com o pai a Nova Iorque e sem demora candidatou-se ao cargo de "vendedora balconista auxiliar" na Bloomingdale's (conforme anúncio que saíra nos classificados). Ao preencher o formulário de proposta de emprego, deu o nome de Jessie Kovats, certa de que ninguém a deixaria em paz se soubes­sem que era a filha do Barão de Chicago.

A despeito das objeções do pai, saiu da suíte do Baron Hotel e começou a procurar um lugar para si própria. Mais uma vez, Abel acedeu e ofereceu a Florentyna um apartamento, pequeno mas elegante, pertencente a uma cooperativa, situado na 57th Street, próximo do rio East, como presente pelo seu vigésimo segundo aniversário.

Florentyna, que já se havia habituado a um tipo de vida em Nova Iorque, adorava as atividades sociais intensas, mas resolvera ocultar dos amigos seu emprego na Bloomingdale's. Receava que lhe fizessem visitas e, numa questão de dias, todo o disfarce, engenhosamente elaborado, fosse por água abaixo, impossibilitando-a de continuar a ser tratada como uma aprendiz comum.

Diante das perguntas curiosas dos amigos, simplesmente res­pondia que andava ajudando o pai na direção das lojas dos hotéis. Nenhum deles deu maior importância à sua explicação.

Jessie Kovats — ela demorou algum tempo até acostumar-se com o nome — começou a trabalhar na seção de cosméticos. De­pois de seis meses, sentia-se preparada para dirigir sua própria loja. As moças da Bloomingdale's trabalhavam aos pares, do que Florentyna imediatamente procurou tirar proveito, escolhendo como colega uma das moças mais preguiçosas do departamento. Tal arranjo convinha a ambas, visto Florentyna ter escolhido uma loira inculta e deslumbrante, chamada Maisie, que tinha apenas dois interesses na vida: o ponteiro do relógio assinalando as de­zoito horas e os homens. O primeiro fato acontecia uma vez por dia, o segundo, o dia inteiro.

Logo as duas garotas tornaram-se companheiras, embora não necessariamente amigas. Florentyna aprendeu com a parceira como trabalhar pouco sem ser notada pelo gerente, e ainda como ser notada por um homem.

Depois de trabalharem juntas durante seis meses, os lucros do balcão de cosméticos elevaram-se, apesar do fato de Maisie passar a maior parte do tempo experimentando os produtos, em lugar de vendê-los. Era capaz de ficar duas horas só retocando as unhas. Florentyna, ao contrário, tinha um talento natural para vendas, que um curso noturno jamais ofereceria. Tal fator, asso­ciado à sua capacidade de aprender rapidamente, deu aos seus chefes, após algumas semanas, a impressão de que ela já traba­lhava ali havia anos.

A parceria com Maisie servia a Florentyna como uma luva, e, quando ela foi transferida para a seção de roupas, por mútuo acordo Maisie a acompanhou. Mais uma vez, ela passava grande parte do tempo experimentando os vestidos, enquanto Floren­tyna os vendia. Maisie possuía a habilidade de atrair os homens — a reboque de suas esposas ou de suas namoradas — indepen­dentemente das mercadorias que vendia, simplesmente olhando-os. Assim que eles eram apanhados na armadilha, Florentyna entrava e vendia-lhes algum artigo. Parecia quase impossível que aquela associação surtisse efeito na seção de roupas, mas Florentyna con­seguia que as vítimas de Maisie fizessem compras, e raros eram os que escapavam sem esvaziar a carteira em algumas notas.

Naqueles seis meses, os lucros de novo elevaram-se, induzindo o supervisor a concluir que as duas garotas, juntas, trabalhavam bem. Florentyna não disse nada que contrariasse tal impressão. Enquanto as demais auxiliares da loja viviam se queixando de que suas parceiras dedicavam-se pouco ao trabalho, Florentyna nunca deixava de exaltar Maisie como a colega de trabalho ideal, que muito lhe ensinara sobre o funcionamento de uma grande loja. Absteve-se de referir-se aos conselhos úteis transmitidos por Maisie sobre como tratar os homens.

O maior elogio que uma auxiliar recebe na Bloomingdale's é ficar no balcão em frente à entrada da Lexington Avenue: é a primeira pessoa que os fregueses avistam ao entrar pelas portas principais. Trabalhar ali correspondia a uma pequena promoção, e era raro uma garota ser convidada a vender naquela seção antes de completar cinco anos na loja. Maisie estava na Bloomingdale's desde os dezessete anos, havia cinco anos já, enquanto Flo­rentyna acabara de completar um ano. Contudo, impressionado com os resultados do trabalho de ambas, o gerente resolveu ex­perimentá-las na papelaria, situada no térreo. Maisie não via como tirar qualquer vantagem pessoal da papelaria, visto que não liga­va muito para a leitura, ainda menos para escrever. Mesmo de­pois de um ano de convivência, Florentyna duvidava de que ela pudesse ler ou escrever alguma coisa. Entretanto, Maisie sentiu-se satisfeita com o novo posto, uma vez que adorava ser o centro das atenções. E assim as duas garotas prosseguiram formando a dupla perfeita.

Abel confessou a George que um dia foi à Bloomingdale's para observar Florentyna trabalhando, e precisava admitir que, inegavelmente, ela era danada de eficiente. Assegurou ao vice-presidente que mal podia esperar o momento de vê-la concluir os dois anos de treinamento para poder contratá-la. Ambos con­cordaram em que, quando deixasse a Bloomingdale's, ela seria eleita vice-presidente do grupo, respondendo particularmente pelas lojas do hotel. Tal pai, tal filha. Abel tinha certeza de que Florentyna encontraria poucos problemas para dar conta da in­cumbência que ele lhe havia reservado.

Nos últimos seis meses de Bloomingdale's, Florentyna en­carregou-se de seis balcões, como supervisora auxiliar. As novas tarefas incluíam o controle do estoque, das funcionárias das cai­xas e a supervisão geral de dezoito balconistas. A Bloomingdale's concluíra que Jessie Kovats era a candidata ideal à futura encar­regada de compras.

Florentyna, porém, não havia ainda informado aos seus em­pregadores que em breve sairia para trabalhar com o pai, como vice-presidente do Grupo Baron. À medida que o tempo ia pas­sando, Florentyna perguntava-se sobre o futuro da pobre Maisie quando ela deixasse a loja. Maisie tinha como certo que Jessie ficaria na Bloomingdale's por toda a vida — pois todo mundo não ficava? — e não se dera ao trabalho de pensar duas vezes sobre a questão. Ocorrera a Florentyna oferecer-lhe um emprego numa das lojas do Baron de Nova Iorque. Enquanto ficasse atrás de um balcão em que os homens gastavam o dinheiro, Maisie seria sempre valiosa.

Certa tarde, Maisie interrompeu o atendimento de uma fre­guesa — trabalhavam então na seção de luvas, cachecóis e gorros de lã —, puxou Florentyna de lado e mostrou um rapaz que olha­va as luvas.

— O que acha dele? — perguntou, com um risinho. Florentyna lançou o olhar sobre o mais recente objeto do desejo de Maisie com o costumeiro desinteresse. Viu-se obrigada a reconhecer, entretanto, que o rapaz de fato era atraente, e, pelo menos dessa vez, quase sentiu inveja de Maisie.

— Maisie, eles só querem uma coisa.

— Eu sei — disse Maisie —, e esse aí vai tê-la.

— Ele vai gostar de ouvir isso — comentou Florentyna com um sorriso, e, virando-se, atendeu à freguesa, já irritada com a indiferença da moça. Maisie aproveitou-se da decisão da colega e, apressada, foi até o jovem que precisava de luvas. Florentyna observou-os com o canto do olho. Receando que ela, como super­visora, vigiasse o comportamento de Maisie, o rapaz olhou-a ner­vosamente. Maisie deu uma risadinha contida, e o rapaz partiu com um par de luvas de couro azul-escuras.

— E então, ele correspondeu às suas expectativas? — per­guntou Florentyna, com uma leve ponta de inveja pela nova conquista de Maisie.

— Não — respondeu Maisie. — Mas tenho certeza de que vai voltar — acrescentou, risonha.

A previsão de Maisie estava correta, no dia seguinte ele apa­receu, mostrando um embaraço ainda maior.

— É melhor você ir atendê-lo — disse Florentyna.

Maisie foi até o rapaz. Florentyna quase estourou de rir quando, dali a alguns minutos, o rapaz partiu levando um outro par de luvas azul-escuras.

— Dois pares! — comentou Florentyna. — Olhe, em nome da Bloomingdale's, posso dizer que ele merece você.

— É, só que não me convidou para um passeio — disse Maisie.

— O quê? — brincou Florentyna, com um ar de descrença. — Luva deve ser o fetiche dele.

— É uma pena — disse Maisie. — Um rapaz tão bonito!

— É, não é mau, não — disse Florentyna.

No dia seguinte, quando o jovem entrou na loja, Maisie adian­tou-se, deixando uma freguesa falando sozinha. Sem demora, Flo­rentyna tomou seu lugar, de novo observando Maisie disfarçada-mente. Dessa vez, os dois pareciam conversar a sério, e, final­mente, o rapaz foi embora com outro par de luvas azul-escuras.

— É um homem e tanto — arriscou-se Florentyna.

— Se é — replicou Maisie —, mas ainda não me convidou para sair.

Florentyna ficou boquiaberta.

— Escute — disse Maisie, um tanto ansiosa —, não quer atendê-lo, se ele vier amanhã? Acho que tem receio de falar comi­go diretamente. Talvez ache mais fácil marcar um encontro por seu intermédio.

Florentyna riu.

— Uma Viola para o seu Orsino[3].

— Quê? — disse Maisie.

— Nada, não — falou Florentyna. — Será que consigo ven­der-lhe um par de luvas?

Se podia dizer alguma coisa, aquele homem era no mínimo persistente, refletiu Florentyna, quando no dia seguinte, à mesma hora, ele atravessou as portas principais e aproximou-se imediata­mente do balcão. Maisie cutucou-a pelas costas, e Florentyna achou que agora era a sua vez de divertir-se.

— Boa tarde, senhor.

— Oh, boa tarde — disse o jovem, um tanto surpreso... ou desapontado?

— O que deseja? — perguntou Florentyna.

— Nada... quero dizer, um par de luvas — acrescentou ele, pouco convincente.

— Pois não, senhor. Já viu estas, em azul-escuro? De couro. Na certa temos o seu número, se é que não vendemos tudo.

O jovem fitou-a com desconfiança quando ela lhe estendeu as luvas. Experimentou-as. Eram um pouco grandes. Florentyna mostrou-lhe outro par, mas eram um pouco pequenas. Desviou o olhar para Maisie, como que buscando inspiração, mas viu-a cercada por alguns fregueses; Maisie, porém, achou uma brecha para olhar o jovem e dar-lhe um sorriso. Ele retribuiu o sorriso timidamente. Florentyna mostrou-lhe outro par. Serviram à per­feição.

— Creio que era o que o senhor procurava — disse Floren­tyna.

— Não, não exatamente — respondeu o freguês, embara­çado.

Florentyna resolveu que era tempo de tirar o homem dessa dificuldade, e, baixando a voz, disse-lhe:

— Vou dar uma ajuda a Maisie. Por que você não a con­vida para sair? Tenho certeza de que ela aceitará seu convite.

— Oh, não — disse o jovem. — Não está me entendendo. Não é com ela que quero sair... é com você.

Florentyna perdeu a fala. O jovem, por sua vez, pareceu recobrar a coragem.

— Aceita jantar comigo esta noite?

Ela ouviu-se dizendo:

— Aceito.

— Vou buscar você em sua casa?

— Não — falou Florentyna, com certa veemência. A última coisa que queria era que alguém entrasse no seu apartamento, pois então ficaria claro que ela não era balconista. — Vamos nos encontrar num restaurante — ajuntou apressadamente.

— Onde gostaria de jantar?

Florentyna tentou lembrar-se de um lugar modesto.

— No Allen, na 73rd com a Third? — ele aventurou.

— Ótimo — disse Florentyna, imaginando que Maisie teria sabido lidar melhor com essa situação.

— Que tal por volta das oito horas?

— Por volta das oito horas — concordou.

O jovem partiu com um sorriso. Florentyna seguiu-o com o olhar até perdê-lo de vista, e então, subitamente, lembrou-se de que ele se tinha ido sem comprar o par de luvas.

 

Demorou-se escolhendo o vestido que usaria nessa noite. Queria garantir que nenhum traje saído das mãos de Bergdorf Goodman a denunciasse. Havia comprado um pequeno guarda-roupa especialmente para trabalhar na Bloomingdale's, mas as rou­pas serviam exclusivamente para o dia, e nunca chegara a usar nenhuma delas à noite. Se o rapaz — santo Deus!, nem sabia o nome dele — a tomava por uma balconista, por que desiludi-lo? Notou que aguardava o encontro com uma ansiedade bem maior do que esperava.

Saiu do apartamento da East 57th Street pouco antes das oito horas e precisou esperar alguns minutos até conseguir um táxi.

— Allen, por favor — disse ao motorista.

— Na Third Avenue?

— Sim.

— Certo, senhorita — replicou ele.

Quando chegou ao restaurante, estava um pouco atrasada. Seus olhos procuraram o jovem rapaz. Descobriu-o de pé, junto ao balcão do bar, fazendo-lhe sinal. Vestia calças de flanela cinza e um blazer azul. "Discreto", pensou Florentyna, "mas muito elegante."

— Desculpe-me o atraso.

— Não se preocupe. O que importa é que você veio.

— Pensou que eu não viria?

— Estava em dúvida. — Ele sorriu. — Mas ainda não sei seu nome.

— Jessie Kovats — respondeu Florentyna. — E o seu?

— Richard Kane — e o rapaz estendeu a mão.

Ela o cumprimentou. Ele demorou-se um pouco no aperto de mão.

— E o que costuma fazer, quando não compra luvas na Bloomingdale's? — brincou ela.

— Estudo Administração em Harvard.

— Surpreende-me que lá eles não ensinem que a grande maioria das pessoas tem só duas mãos,

Ele riu e conservou nos lábios um sorriso tão sereno e amá­vel que Florentyna desejou começar de novo e dizer-lhe que, tal­vez, já tivessem estado perto um do outro, em Cambridge, quan­do ela estudava em Radcliffe.

— Vamos fazer o pedido? — disse ele, pegando-a pelo braço e conduzindo-a a uma mesa.

Florentyna examinou o cardápio afixado num quadro.

— Bife à Salisbury?

— Um outro nome que dão ao hambúrguer — disse Richard.

Ambos riram, do jeito que riem duas pessoas que não se conhecem, mas que querem se conhecer. Ela reparou na expres­são de surpresa dele: ele percebia que ela havia notado a incon­veniência da observação dele.

Raramente Florentyna se sentira tão bem na companhia de alguém. Richard falou sobre a cidade de Nova Iorque, sobre tea­tro e música — sem dúvida, seu primeiro amor — de uma ma­neira tão agradável e encantadora que ela só pôde ficar à vontade. Podia vê-la como balconista, mas tratava-a como se pertencesse a uma família tradicional e culta. Ele, por sua vez, não desejava demonstrar surpresa ao constatar nela a paixão pelas mesmas coisas, porque, ao fazer-lhe algumas perguntas, ouviu dela que não passava de uma garota polonesa que vivia em Nova Iorque com os pais. À medida que a noite avançava, a dissimulação ia se tornando mais e mais insuportável. "Entretanto", refletiu ela, "depois desta noite talvez nunca mais nos vejamos, e, então, tudo isso não terá importância."

Quando afinal a noite terminou, e nenhum dos dois se sentia disposto a continuar tomando café, saíram do Allen. Richard ace­nava para os táxis, mas todos passavam ocupados.

— Onde você mora?

— Na 57th Street — respondeu ela espontaneamente.

— Então vamos indo a pé — propôs Richard, segurando-lhe a mão.

Ela aquiesceu à idéia com um sorriso. Começaram a andar, parando de vez em quando para olhar as vitrines, rindo e conver­sando. Nem sequer notaram que agora os táxis passavam vazios. Levaram uma hora até vencer os dezesseis quarteirões, e durante esse tempo Florentyna quase lhe contou a verdade. Quando che­garam à 57th Street, ela se deteve diante de um prédio de aparta­mentos, pequeno e velho, distante algumas centenas de metros de seu próprio apartamento.

— Meus pais moram aqui — disse.

Ele mostrou-se hesitante e em seguida soltou-lhe a mão.

— Não gostaria de ver-me de novo? — perguntou Richard.

— Gostaria — respondeu Florentyna, de um jeito cortês, mas indiferente.

— Amanhã? — perguntou Richard, acanhado.

— Amanhã?

— Sim, poderíamos ir ao Blue Angel ver Bobby Short. — Tomou-lhe a mão mais uma vez. — É um pouco mais romântico que o Allen.

Florentyna ficou momentaneamente perturbada. Não havia feito planos que incluíssem Richard logo no dia seguinte.

— Mas não é obrigada a ir, se não quiser — ajuntou ele, antes que ela pudesse se refazer.

— Eu iria adorar — disse ela, segura de si.

— Vou jantar com meu pai, e poderei vir buscá-la às dez em ponto.

— Não, não — disse Florentyna. — Encontro você lá. Fica só a duas quadras daqui.

— Dez horas em ponto, então — e inclinando-se, beijou-a delicadamente na face. — Boa noite, Jessie — e retomou a pé o mesmo trajeto.

Florentyna caminhou devagar em direção ao apartamento, arrependida de ter dito tantas mentiras. Mesmo assim, aquilo poderia acabar dali a alguns dias. Mas, no fundo, seria bom que não acabasse.

Maisie, que ainda não a tinha perdoado, passou a maior parte do dia seguinte perguntando-lhe tudo a respeito de Richard. E a todo instante, embora sem sucesso, Florentyna procurava mudar de assunto.

Quando a loja cerrou as portas, Florentyna saiu, pela pri­meira vez em dois anos, antes de Maisie. Tomou um demorado banho de chuveiro, pôs o vestido mais bonito que tinha à mão e foi ao Blue Angel. Quando chegou, Richard esperava-a em frente à chapelaria. Ele pegou-lhe a mão e caminharam para den­tro do salão; flutuava no ar a voz de Bobby Short: "Está me contando a verdade, ou sou apenas outra mentira?"

Ao avistar Florentyna, Short ergueu o braço e saudou-a. Ela fingiu não notá-lo. Short havia se apresentado no Baron duas ou três vezes, e jamais Florentyna podia imaginar que ele a reconhe­ceria. Richard mostrou-se intrigado, e supôs que a saudação tivesse sido dirigida a outra pessoa. Ao sentarem-se a uma das mesas do salão envolto em penumbra, Florentyna ficou de costas para o piano, confiando em que aquilo não tornaria a acontecer.

Richard pediu uma garrafa de vinho e, sem soltar-lhe a mão, perguntou como tinha sido o seu dia. Florentyna não queria falar nada sobre isso; queria dizer a verdade.

— Richard, há uma coisa que preciso...

— Oi, Richard!

Um homem alto e bem-apessoado surgiu ao lado de Richard.

— Oi, Steve. Quero apresentá-lo a Jessie Kovats. Steve Mellon... Eu e Steve estudamos juntos em Harvard.

Florentyna ouviu-os conversar sobre os Yankees[4], as desvan­tagens do governo de Eisenhower, o golfe, e por que Yale ia de mal a pior. A certa altura Steve retirou-se com um cumprimento:

— Prazer em conhecê-la, Jessie.

Finalmente estavam sozinhos.

Richard começou a discorrer sobre seus planos para depois do curso de Administração, dizendo que esperava vir a Nova Iorque e trabalhar com o pai no Lester. Florentyna já tinha ou­vido esse nome antes, mas não se lembrava em que contexto. Por algum motivo, sentiu certo receio. Passaram longo tempo rindo, comendo, conversando, sem se levantarem da mesa, de mãos dadas, ouvindo Bobby Short. A caminho de casa, Richard parou na esquina da 57th Street e beijou-a pela primeira vez. Ela não se recordava de algum outro momento em que tivesse estado tão compenetrada para um primeiro beijo. Quando ele a deixou na 57th Street, ela levou consigo as mentiras, sem ter ouvido um "até amanhã". Sentia, com tristeza, que tudo terminaria ali.

Mas na segunda-feira, na Bloomingdale's, surpreendeu-se, e com que alegria, ao receber um telefonema de Richard convidando-a a sair na noite de sexta-feira.

 

Passaram juntos a maior parte do fim de semana: um con­certo, um filme — e até foram ver os New York Knicks. Ter­minado o fim de semana, Florentyna constatou que havia dito tantas mentiras inofensivas sobre o seu passado que mal podia sustentá-las de forma coerente, surpreendendo Richard por mais de uma vez, de tal maneira se contradizia. Parecia-lhe quase im­possível contar-lhe uma história inteiramente diferente, embora verdadeira. Richard retornou a Harvard, na noite de domingo, e Florentyna convenceu-se de que a simulação seria o seu menor problema se o relacionamento chegasse ao fim. Mas Richard tele­fonou-lhe todos os dias durante a semana e passou os fins de semana seguintes na sua companhia: ela começava a compreender que o relacionamento não terminaria com tanta facilidade. Esta­va ficando apaixonada. Reconhecendo isto, decidiu que revelaria a ele toda a verdade na semana seguinte.

 

Richard atravessou a aula daquela manhã perdido em deva­neios. Tão apaixonado estava que não conseguia concentrar a atenção na "Depressão de 29". De que maneira, refletia, contaria aos pais que pretendia casar-se com uma moça polonesa que trabalhava no balcão de cachecóis, luvas e gorros de lã da Bloomingdale's? De modo algum compreendia como podia ela ser tão pouco ambiciosa, quando, inegavelmente, era brilhante: na certa, caso tivesse tido as oportunidades que ele próprio tivera, a Bloomingdale's não teria entrado em sua vida. Concluiu que seus pais de alguma maneira aprenderiam a aceitar a sua escolha, porque, no fim de semana, pediria Jessie em casamento.

Toda tarde de sexta-feira, quando visitava os pais em Nova Iorque, Richard deixava a casa da East 68th Street e, passando pela Bloomingdale's, sempre comprava alguma coisa, normalmen­te um artigo de pouca utilidade, só para que Jessie soubesse que ele estava na cidade. Já possuía um par de luvas para cada pes­soa de seu relacionamento. Nessa sexta-feira, disse à mãe que iria sair com o propósito de comprar algumas lâminas de barbear.

— Não é preciso, querido, use as de seu pai.

— Não, não, não se preocupe. Acho bom comprar algumas. – De qualquer maneira, não usamos o mesmo tipo de lâmina — acrescentou, sem nenhuma convicção. — Volto daqui a uns mi­nutos.

Quase correu as oito quadras até a Bloomingdale's e con­seguiu entrar precisamente pouco antes de as portas serem baixa­das. Ia encontrar-se com Jessie às sete e meia, mas nunca des­prezava qualquer oportunidade de vê-la. Steve dissera-lhe certa vez que amor era coisa de otário. Nessa manhã, enquanto se barbeava, escrevera no espelho coberto de vapor: Sou um otário.

Quando chegou ao balcão de Jessie, porém, não a viu. Maisie encostara-se a um canto, lixando a unhas, e ele perguntou-lhe por Jessie. Maisie ergueu os olhos, com cara de quem havia sido interrompida no meio da atividade mais importante do dia.

— Não está, já foi para casa, Richard. Saiu há poucos se­gundos. Não deve estar muito longe. Mas você não ia se encon­trar com ela mais tarde?

Richard saiu para a Lexington Avenue sem responder. Pro­curou Jessie entre as moças que se precipitavam para casa, e, repen­tinamente, avistou-a do outro lado da rua, caminhando em direção à Fifth Avenue. Compreendendo que, evidentemente, não estava indo para casa, com certa culpa decidiu segui-la. Quando ela alcançou a Scribner, na 48th Street, ele se deteve e observou-a entrar na livraria. Se quisesse comprar algum livro, tê-lo-ia feito na própria Bloomingdale's. Sentiu-se confuso. Espiou pela vitrina: Jessie conversava com o vendedor, que se retirou por alguns ins­tantes e voltou com dois livros. Num relance, distinguiu os títulos: A sociedade afluente, de John Kenneth Galbraith, e A Rússia por dentro, hoje, de John Gunther. Jessie pagou-os com cheque — o que o intrigou — e saiu, enquanto ele se escondia rapida­mente, virando a esquina.

— Mas quem é ela? — perguntou-se Richard, em voz alta, observando-a entrar na Bendel. O porteiro a cumprimentou respeitosamente, dando a clara impressão de conhecê-la. Mais uma vez Richard espiou pela vitrine e viu que os assistentes se alvo­roçavam à sua volta, com um respeito mais do que circunstancial. Uma velha senhora apareceu com um pacote, que, era evidente, Florentyna fora buscar. Abriu-o e retirou um vestido de noite simples e maravilhoso. Florentyna sorriu e aquiesceu, enquanto o assistente guardava o vestido numa caixa marrom e branca. Os lábios de Florentyna moveram-se, articulando a palavra "obriga­da", e ela dirigiu-se para a porta sem ao menos pagar pela com­pra. Richard ficou hipnotizado pela cena, e quase não pôde evitar de encontrar-se com ela, que saía da loja, apressada, e entrava num táxi. Ele tomou outro táxi e pediu ao motorista que a se­guisse. Quando o veículo passou pelo pequeno prédio diante do qual eles normalmente se despediam, ele começou a sentir um mal-estar. Não era de admirar que ela jamais o tivesse convidado a entrar. O táxi da frente continuou por mais uma centena de metros e então parou diante de um esplêndido edifício novo de apartamentos. O porteiro uniformizado abriu a porta para ela. Com um misto de raiva e de pasmo, ele desceu do táxi e cami­nhou para as portas atrás das quais ela havia desaparecido.

— Ei, chapa, noventa e cinco cents — gritou uma voz atrás dele.

— Oh, desculpe — disse Richard, e entregou ao chofer uma nota de cinco dólares, sem interesse no troco.

— Obrigado — disse o motorista. — Alguém está contente hoje.

Richard correu e alcançou Florentyna no elevador. Ela viu a porta abrir-se e fitou-o, emudecida, os olhos arregalados.

— Quem é você? — inquiriu Richard.

— Richard — gaguejou ela. — Hoje à noite eu ia contar-lhe tudo. Até agora não encontrei uma boa oportunidade para isso.

— Pois sim, que ia me contar — disse ele, seguindo-a até o apartamento. — Fez-me de bobo todos esses três meses. Chegou a hora de me dizer toda a verdade.

Florentyna nunca vira Richard nervoso, e imaginou que aquele era um momento raro. Ele adiantou-se bruscamente e ins­pecionou o apartamento. Depois do vestíbulo havia uma imensa sala de estar com um belíssimo tapete oriental. Um imponente relógio de parede fora colocado em frente a uma mesa, sobre a qual descansava um vaso de flores. O aposento era admirável, inclusive para os padrões da casa de Richard.

— Não sabia que uma balconista podia se dar ao luxo de ter um ambiente tão confortável — disse Richard. — Qual dos seus amantes a sustenta?

Florentyna esbofeteou-o com tanta força que a palma da mão ardeu.

— Como se atreve? Saia da minha casa!

Ouvindo as próprias palavras, ela começou a chorar. Não queria que ele se fosse, nunca!

Richard abraçou-a.

— Oh, meu Deus, perdoe-me — ele disse. — Por favor, perdoe-me o que eu falei. Eu a amo tanto, mas tanto, que imagi­nei que a conhecesse bem. E agora acabo de descobrir que nada sei sobre a sua vida.

— Richard, eu o amo também, e peço-lhe que me desculpe por ter batido em você. Minha intenção não era enganá-lo, mas não existe ninguém mais na minha vida, juro. — Sua voz frag­mentou-se.

— Eu o mereci — disse ele, beijando-a.

Abraçados um ao outro, eles caíram sobre o sofá e durante alguns instantes ficaram imóveis. Suavemente, ele acariciou-lhe o cabelo, só parando quando os soluços cessaram. Ajude-me a tirar o vestido, ela desejou dizer, mas permaneceu calada, deslizando os dedos pelo espaço existente entre os dois primeiros botões da camisa dele. Richard pareceu indeciso em fazer algum movimento.

— Quer dormir comigo? — perguntou ela calmamente.

— Não, quero ficar acordado ao seu lado durante toda a noite.

Sem dizer mais nada, despiram-se e ele a acarinhou com ter­nura e amaram-se, suave e timidamente, temerosos de ferir um ao outro, procurando o mútuo prazer. Por fim, ela ficou com a cabeça sobre o ombro dele.

— Eu amo muito você — segredou Richard. — Desde a primeira vez em que a vi. Quer se casar comigo? Não me inte­ressa quem você é, Jessie, ou o que faz. Só sei que preciso ficar com você para o resto da minha vida.

— Também quero me casar com você, Richard, mas antes devo lhe dizer a verdade.

Florentyna cobriu a nudez de ambos com a jaqueta dele e contou-lhe tudo a seu respeito, terminando com a explicação de como fora trabalhar na Bloomingdale's. Ao concluir a sua história, Richard não fez comentário algum.

— Já deixou de me amar? — perguntou ela. — Agora que sabe quem sou de fato?

— Querida — disse Richard, com serenidade —, meu pai odeia o seu.

— Como assim?

— Isso mesmo. A única vez que ouvi alguém pronunciar o nome de seu pai na presença dele, meu pai perdeu o controle e disse que o único propósito da vida do seu pai era arruinar a família Kane.

— O quê? Por quê? — indagou ela, chocada. — Nunca ouvi falar no seu pai antes. Como é que eles podem se conhecer?

Era a vez de Richard contar-lhe tudo o que a mãe lhe reve­lara sobre a rixa entre os pais deles.

— Oh, meu Deus! — exclamou ela. — Isso deve relacio­nar-se à "deslealdade" a que papai se referiu quando, depois de vinte e cinco anos, transferiu de banco as contas dele. O que faremos?

— Dizer-lhes a verdade — falou Richard —, que nos co­nhecemos casualmente, que nos apaixonamos e vamos nos casar, façam o que fizerem para nos impedir.

— Esperemos algumas semanas — disse Florentyna.

— Para quê? — perguntou Richard. — Acha que seu pai tentará dissuadi-la de casar-se comigo?

— Não, Richard — respondeu, tocando-o delicadamente, enquanto tornava a pousar a cabeça sobre o ombro dele. — Nun­ca, meu querido. Mas, antes de chegarmos com um fato consuma­do, procuremos colocar a situação de maneira mais amena. Em todo caso, talvez não se detestem tanto quanto você imagina. Afinal, como você disse, o caso da empresa aérea foi há quase cinco anos.

— Garanto-lhe que não é imaginação minha. Meu pai ficaria indignado se nos visse juntos, mesmo que não soubesse que pen­samos em nos casar.

— Outra razão para não os informarmos agora. Isso nos dará tempo de refletir sobre a melhor maneira de proceder.

Ele a beijou de novo.

— Jessie, eu a amo.

— Florentyna.

— Eis aí uma coisa com que vou ter de me acostumar — disse. — Florentyna, eu a amo.

 

Durante o mês que se seguiu, Florentyna e Richard procura­ram inventariar a inimizade entre os dois homens — Florentyna fazendo à mãe e a George Novak perguntas cuidadosamente ela­boradas; Richard estudando os arquivos do pai. A intensidade do ódio deixou-os pasmos. A cada descoberta, tornava-se mais claro que não haveria maneira moderada de dar-lhes a notícia. Nas quatro semanas seguintes, eles aproveitaram todos os mo­mentos livres desfrutando a companhia um do outro. Richard mostrava-se sempre atencioso e gentil, e nada lhe parecia impos­sível. Chegara ao extremo de fazê-lo tirar da cabeça o problema que, sabiam, inevitavelmente enfrentariam, cedo ou tarde. Iam ao teatro, patinavam, e, aos domingos, caminhavam pelo Central Park, sempre terminando por deitar-se antes do anoitecer. Com Richard, Florentyna assistira ao jogo dos Yankees, que "não conseguia compreender", e à Filarmônica de Nova Iorque, que "adorava". Difícil era acreditar que Richard realmente tocasse violoncelo, o que ele provou oferecendo-lhe um recital particular. Quando ele terminou de executar a sonata de Brahms, a sua pre­ferida, ela o aplaudiu com entusiasmo, e não notou que ele a olhava fundo nos seus olhos acinzentados.

— Vamos ter de contar-lhes — murmurou ele, pondo o arco na estante e apertando-a contra o peito.

— Eu sei. Mas não quero magoar papai.

Chegara a vez de ele dizer:

— Eu sei.

Florentyna evitou olhá-lo.

— Papai virá de Washington na próxima sexta-feira.

— Então será na próxima sexta-feira — disse Richard, estreitando-a de maneira tal que ela mal podia respirar.

Richard retornou a Harvard na manhã de segunda-feira. Os jovens conversavam por telefone todas as noites, jamais perdendo o ânimo, certos de que nada os deteria.

Na sexta-feira, Richard chegou a Nova Iorque mais cedo que o habitual, e, como Florentyna pedira dispensa na parte da tarde, passaram juntos pelo menos uma hora. Obedecendo ao sinal ver­melho, na esquina da 57th Street com a Park Avenue, os dois pararam. Richard voltou-se para Florentyna e pela segunda vez pediu-a em casamento. Tirando do bolso uma pequena caixa de couro vermelho, ele a abriu e dela retirou um anel, que colocou no dedo anular da mão esquerda dela. Era uma safira engastada entre diamantes, tão lindos que dos seus olhos brotaram lágrimas; o anel ajustara-se perfeitamente a seu dedo. Os transeuntes olha­vam-nos com estranheza, visto que continuavam abraçados ali na esquina, ignorando o sinal verde. Quando, finalmente, obedece­ram ao comando do farol, despediram-se com um beijo, ela desceu, e cada qual tomou direções opostas, decididos a enfrentar os res­pectivos pais. Haviam combinado encontrar-se no apartamento de Florentyna tão logo cumprissem a dura missão. Apesar das lágri­mas, Florentyna tentou sorrir.

Enquanto andava rumo ao Baron Hotel, de vez em quando baixava o olhar e contemplava o anel. Ali, no dedo, ele lhe cau­sava uma sensação nova e estranha, e ela imaginava que os olhos dos passantes eram atraídos pela magnífica safira; ficara lindo, junto do anel antigo que, antes, fora seu predileto. Ela tomara-se de assombro quando Richard o colocara em seu dedo. A questão da rivalidade entre seus pais, porém, obrigava-a a esquecer anéis e quaisquer outras coisas que faziam a felicidade de um noivado. Florentyna tocou a safira rodeada de diamantes e com isso sentiu fortalecida a sua coragem, embora estivesse ciente de que cami­nhava cada vez mais devagar à medida que se aproximava do hotel.

Quando passou pelo balcão de recepção, o recepcionista a informou de que o pai se encontrava na cobertura com George Novak. Ele telefonou para lá e avisou que Florentyna estava su­bindo. O elevador alcançou muito depressa o quadragésimo se­gundo andar, e, antes de deixar a segurança de suas quatro paredes, Florentyna hesitou. Pisou o tapete verde e escutou o ruído da porta do elevador que se fechava atrás de si. Ficou parada, soli­tária, no corredor, e, após esperar alguns instantes, bateu leve­mente à porta. Abel abriu-a sem demora.

— Florentyna, que surpresa! Entre, minha querida. Não esperava vê-la hoje.

George Novak estava à janela, olhando a Park Avenue, que se estendia lá embaixo. Voltou-se e saudou a afilhada. Com o olhar, Florentyna implorou-lhe que saísse. Se ele ficasse, na certa ela perderia a coragem. Vá, vá, vá, dizia ela consigo mesma. George pressentiu-lhe a ansiedade prontamente.

— Abel, preciso voltar ao trabalho. Um chato de um marajá hospedou-se aqui hoje à tarde.

— Diga-lhe que leve os elefantes para passear no Plaza — comentou Abel, alegremente. — Agora que Florentyna chegou, fique e tome outro drinque.

George lançou um olhar a Florentyna.

— Não, Abel, tenho de ir. O homem ocupou o trigésimo terceiro andar inteiro. No mínimo espera ser recebido pelo vice-presidente. Boa noite, Florentyna — disse, beijando-a na face e apertando-lhe rapidamente o braço, como se soubesse que ela pre­cisava de força. Deixou-os sozinhos e, de súbito, Florentyna de­sejou que ele não tivesse saído.

— Como vai a Bloomingdale's? — perguntou Abel, passan­do a mão afetuosamente na cabeça da filha e desmanchando-lhe o cabelo. — Já lhes contou que logo, logo perderão a melhor supervisora que contrataram nos últimos anos? Garanto que fica­rão boquiabertos ao ouvirem falar que o próximo trabalho de Jessie Kovats será inaugurar o Baron de Cannes. — E gargalhou muito alto.

— Vou me casar — disse Florentyna, estendendo timida­mente a mão esquerda. Não tinha nada a acrescentar, e, assim, simplesmente esperou a reação do pai.

— Uma decisão um tanto repentina, não acha? — disse Abel, mais do que espantado.

— Na verdade, não, papai. Eu o conheço há algum tempo.

— Eu conheço o moço? Já o vi?

— Não, papai, não o conheceu.

— De onde ele é? Quais são os antecedentes dele? É po­lonês? Florentyna, por que fez tanto segredo da existência desse rapaz?

— Ele não é polonês, papai. Ele é filho de um banqueiro.

Abel empalideceu e, pegando o copo, num só gole tomou toda a bebida. Florentyna sabia precisamente o que se passava na ca­beça dele ao vê-lo servir-se de nova dose. Resolveu dizer tudo sem delongas.

— Papai, o nome dele é Richard Kane.

Abel girou o rosto e olhou-a de frente.

— Filho de William Kane? — inquiriu.

— Sim — respondeu Florentyna.

— Você pensa em se casar com o filho de William Kane? Sabe o que esse homem fez comigo? Ele é o responsável pela morte do meu melhor amigo. Sim, esse homem levou Davis Leroy ao suicídio e, não satisfeito com isso, tentou levar-me à fa­lência. Se David Maxton não me tivesse salvado a tempo, Kane teria se apossado dos meus hotéis e os teria vendido num abrir e fechar de olhos. E onde eu teria ido parar, se William Kane tivesse vencido? Você ia sentir-se muito feliz por trabalhar como balconista da Bloomingdale's. Já pensou nisso, Florentyna?

— Já, papai. E durante estas últimas semanas pensei em outras coisas também. Richard e eu não nos conformamos com o ódio que existe entre você e o pai dele. Nesse momento, ele o está enfrentando.

— Pois posso dizer de que maneira ele reagirá. Ficará fu­rioso. Aquele homem não permitirá que o filho precioso e aris­tocrático se case com você. Por isso, jovem senhorita, trate de tirar da cabeça essa idéia maluca.

Ele erguera a voz ao seu mais alto timbre.

— Não posso, pai — respondeu ela tranqüilamente. — Nós nos amamos, e precisamos da sua bênção, não de sua ira.

— Florentyna, escute-me — disse Abel, com o rosto verme­lho de cólera. — Proíbo-a de rever esse filho de Kane. Está me entendendo?

— Estou, sim. Acontece que vou vê-lo. Não vou me separar de Richard só porque você odeia o pai dele.

Surpreendeu-se apertando o dedo em que estava o anel, leve­mente trêmula.

— Isso de nada adiantará — comentou Abel. — Nunca consentirei nesse casamento. Minha própria filha me abandonan­do por causa do filho do calhorda do Kane. Pois eu digo que não se casará com ele!

— Não o estou abandonando, não. Se fosse verdade, teria fugido com ele. Como faria isso com você? Tenho mais de vinte e um anos de idade e vou me casar com Richard. Pretendo viver o resto da minha existência na companhia dele. Papai, por favor, ajude-nos. Não gostaria de conhecê-lo? Assim compreenderia o que estou sentindo neste momento.

— Ele jamais entrará na minha casa. Não quero conhecer nenhum filho de William Kane. Nunca, ouviu?

— Então sou obrigada a deixá-lo.

— Florentyna, se você me deixar para se casar com o filho de Kane, não lhe darei nem um centavo. Ouviu bem? — Abel abrandou a voz. — Reflita com sensatez, garota, você o esque­cerá. Ainda é jovem, existem dezenas de homens que dariam a vida para casar-se com você.

— Não me interessam dezenas de homens — disse Floren­tyna. — Encontrei o homem com quem vou me casar, e ele não tem culpa nenhuma de ser filho de Kane. Nenhum de nós esco­lheu o pai que tem.

— Se não se sente bem na minha família, então vá embora — berrou Abel. — E juro que nunca mais vou querer ouvir o seu nome. — Deu-lhe as costas e pôs-se a olhar pela janela. — Florentyna, aviso-a pela última vez... não se case com esse rapaz.

— Papai, vamos nos casar. Embora já tenhamos passado da idade de pedir consentimento, pedimos a sua aprovação.

Abel aproximou-se dela.

— Está grávida? É por isso? Tem de se casar?

— Não, papai.

— Já dormiu com ele?

A pergunta perturbou-a, mas ela não vacilou.

— Já — respondeu. — Muitas vezes.

Abel ergueu o braço e bateu-lhe no rosto. A pulseira de prata atingiu-lhe o canto dos lábios, fazendo-a perder o equilí­brio. O sangue começou a escorrer-lhe pelo queixo. Ela voltou-se, correu para fora da sala e, chorando, depois de apertar o botão do elevador, levou a mão ao lábio, que sangrava. A porta abriu-se, e George saiu do elevador. Num relance, ela notou a expressão de espanto no rosto dele. Entrou, apressada, e apertou insistente­mente o botão do térreo. Enquanto a porta se fechava devagar, George, estático, viu que ela chorava.

Ao descer à rua, Florentyna pegou um táxi e foi para o apartamento. No percurso, enxugou o sangue com um lenço de papel. Richard já se encontrava lá, debaixo da marquise, a cabeça baixa, o aspecto abatido.

Ela saltou do táxi e disparou na direção dele. Subiram para o apartamento, ela abriu a porta e rapidamente fechou-a, felizmen­te sentindo-se segura.

— Eu amo você, Richard.

— Também a amo — e Richard a envolveu nos braços.

— Nem preciso perguntar como seu pai reagiu — disse Florentyna, agarrando-se a ele desesperadamente.

— Nunca o vi tão furioso — comentou Richard. — Chamou seu pai de mentiroso e vigarista, nada mais que um imigrante polonês oportunista. Perguntou-me por que não me casava com alguém do meu meio.

— E o que lhe respondeu?

— Disse-lhe que uma criatura adorável como você jamais poderia ser substituída por ninguém de nenhuma família rica, tradicional e conveniente, e daí ele perdeu a cabeça completa­mente.

Florentyna não se desprendia de Richard enquanto ele falava.

— Ameaçou não me dar mais nem um centavo, se me casar com você — prosseguiu. — Quando eles compreenderão que não ligamos a mínima para essa droga de dinheiro? Tentei conquistar o apoio de mamãe, mas nem ela conseguiu acalmá-lo. Insistiu em que ela nos deixasse a sós. Nunca o vi tratar mamãe daquele jeito.

Ela chorava, o que só reforçou minha decisão. Retirei-me e dei­xei-o falando sozinho. Santo Deus, só espero que não desconte em Virgínia e Lucy. O que aconteceu quando você saiu de lá?

— Papai me bateu — disse Florentyna, controlando-se. — E pela primeira vez em toda a vida. Tenho a impressão de que será capaz de matá-lo, se nos vir juntos. Richard, meu querido, temos de ir embora daqui antes que ele descubra onde você está. E é evidente que virá para cá em primeiro lugar. Tenho tanto medo!

— Florentyna, não precisa ficar com medo. Partiremos hoje à noite, para muito longe, e meu pai e o seu que vão para o in­ferno.

— Quanto tempo levará para pegar suas coisas? — pergun­tou Florentyna.

— Não posso ir buscá-las — disse Richard. — Não posso voltar para casa agora. Arrume você as suas coisas e vamos embora. Tenho mais ou menos cem dólares comigo. Que acha de se casar com um homem que tem cem dólares?

— Acho que é bem mais do que espera uma balconista, e, pensando bem, sempre quis ser uma mulher que prove seu pró­prio sustento. Você só precisará de uma mulher prendada — Florentyna ajuntou, enquanto remexia na bolsa. — Bem, tenho duzentos e doze dólares e o cartão do American Express. Sendo assim, você me deve cinqüenta e seis dólares, Richard Kane, mas aceito que pague um dólar por ano.

Em trinta minutos Florentyna já havia arrumado a bagagem. Sentou-se à escrivaninha, escreveu um bilhete e deixou o envelope no criado-mudo.

Richard chamou um táxi. Florentyna sentiu-se satisfeita ao observar que Richard era hábil em lidar com uma situação crítica, o que a tranqüilizou.

— Idlewild — disse ao motorista, e colocou as três maletas de Florentyna no bagageiro.

No aeroporto, ele comprou passagens para San Francisco. Haviam escolhido essa cidade simplesmente porque lhes parecera o ponto mais distante no mapa dos Estados Unidos.

Às sete e meia, o Super Constellation 1049 da American Airlines taxiou, iniciando o vôo.

Richard ajudou Florentyna a apertar o cinto de segurança. Ela lhe sorriu.

— Sabe quanto o amo, sr. Kane?

— Sim, eu sei... sra. Kane — retrucou.

 

Abel e George chegaram ao apartamento de Florentyna pouco depois que ela e Richard tinham partido para o aeroporto. Abel, compungido, arrependera-se da bofetada que dera na filha. Mas não fizera conjeturas sobre o que seria sua vida sem sua única filha. Se pudesse localizá-la em tempo, acreditava que, com argumentação paciente, conseguiria persuadi-la a desistir do casa­mento com aquele rapaz. Estava disposto a oferecer-lhe tudo, desde que o casamento não se realizasse.

George apertou a campainha, enquanto Abel esperava ao lado da porta. Não houve resposta. George apertou de novo o botão e aguardou alguns segundos. Em seguida, Abel usou a chave que Florentyna lhe havia dado para um caso de emergência. Olharam em todos o cômodos, sem em verdade esperar encontrá-la.

— Já deve ter ido embora — comentou George.

— Sim, mas para onde? — indagou Abel, reparando no en­velope sobre o criado-mudo. Recordou-se de uma carta que tam­bém lhe foi deixada ao lado de uma cama intocada. Rasgou o envelope e leu o bilhete.

 

Querido papai,

Por favor, perdoe-me por ter fugido, mas amo Richard, e não será o seu ódio pelo pai dele que me fará desistir. Nós nos casaremos o mais depressa possível. Não faça nada, porque isso não adiantará. Se algum dia, de algum modo, fizer mal a ele, também estará fazendo mal a mim. Só voltaremos a Nova Iorque quando você puser um fim à inimizade entre a nossa família e a de Kane. Amo-o bem mais do que imagina, e sempre lhe serei grata por tudo o que fez por mim. Que não seja este o fim do nosso relacionamento, mas, enquanto não mudar sua maneira de per as coisas, "jamais pergunte ao vento que sopra na campina — inútil é tentar descobrir o que aconteceu".

A filha que o ama, Florentyna.

 

Abel sentou-se na cama e deu o bilhete a George, que o leu, pasmo, e perguntou:

— Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Pode, George. Quero minha filha de volta, mesmo que isso signifique tratar diretamente com o calhorda do Kane. Só estou certo de uma coisa: ele fará qualquer sacrifício para impe­dir esse casamento. Telefone para ele.

George demorou a localizar o número de William Kane, pois não constava da lista. Teve de insistir em que se tratava de um caso de família urgente para que o funcionário do Lester o for­necesse. Abel continuou sentado na cama, a carta de Florentyna na mão, lembrando-se de quando, ainda menininha, aprendera com ele o velho provérbio polonês que acabara de citar. Completou-se a ligação para a residência de Kane, e uma voz masculina atendeu.

— Por gentileza, gostaria de conversar com o sr. William Kane — disse George.

— Quem deseja falar com ele? — A voz era imperturbável.

— O sr. Abel Rosnovski — disse George.

— Vou ver se ele está, senhor.

— Devia ser o mordomo de Kane. Foi chamá-lo — explicou George, passando o fone a Abel.

Abel aguardou, batendo os dedos no criado-mudo.

— William Kane falando.

— Aqui é Abel Rosnovski.

— É mesmo? — A voz de William saiu gélida. — E desde quando, precisamente, o senhor resolveu unir meu filho à sua filha? Por certo, à época em que brilhantemente fracassou em arruinar o meu banco?

— Ora, deixe de ser... — Abel conteve-se. — Tanto quan­to você, quero impedir esse casamento. Nunca tentei raptar seu filho. Aliás, só hoje vim a saber da existência dele. O amor que sinto pela minha filha é muito mais intenso do que o ódio que tenho por você, e não quero perdê-la. Que tal unirmos nossos esforços e planejarmos alguma coisa?

— Não. Uma vez lhe fiz a mesma proposta, sr. Rosnovski, e o senhor deixou bem claro quando e onde iria encontrar-se comigo. Posso esperar até lá, pois estou certo de que logo desco­brirá que quem vai estar lá será o senhor, não eu.

— Mas qual a vantagem de revolver o passado justamente agora, Kane? Se sabe onde eles estão, conseguiremos impedi-los. Isso você também quer. Ou a droga de sua arrogância é tal que o obriga a ficar parado, não impedindo o casamento de seu filho com a minha filha, em vez de ajudar?

Quando disse "ajudar", ouviu um clique. Enterrou o rosto nas mãos e chorou. George levou-o de volta ao Baron.

Durante toda a noite e o dia seguinte, Abel fez de tudo para localizar Florentyna. Telefonou até mesmo para a mãe dela, que, conforme revelou, soubera tudo sobre Richard Kane pela própria filha.

— Pareceu-me um ótimo rapaz — acrescentou ela, cheia de ódio.

— Sabe onde estão agora? — indagou Abel, impaciente.

— Sei.

— Onde?

— Descubra sozinho.

Outro clique.

Abel pôs anúncios em jornais e até comprou horários nas rádios. Recorreu à polícia, mas esta, considerando que Florentyna já havia completado vinte e um anos, limitou-se a fazer um alerta geral. Por fim, ele se viu obrigado a admitir que, quando a filha fosse encontrada, sem dúvida alguma já estaria casada.

Releu o bilhete vezes sem conta, e decidiu jamais magoar o rapaz, fosse como fosse. Quanto ao pai, o caso era bem diferente. Ele, Abel Rosnovski, ajoelhara-se aos pés dele, suplicara, e ainda assim o calhorda recusara-se a ouvi-lo. Jurou que, quando se apre­sentasse a oportunidade, acabaria com William Kane de uma vez para sempre. George atemorizou-se com a intensidade da ira do velho amigo.

— Devo cancelar a viagem à Europa?

Abel esquecera por completo que acompanharia Florentyna à Europa ao final desse mês, quando ela completaria dois anos na Bloomingdale's. Ela inauguraria os hotéis Baron de Edimburgo e de Cannes. Pouco se importava agora com quem inauguraria o quê, ou se os hotéis seriam ou não inaugurados.

— Não posso cancelar a viagem — respondeu Abel. — Irei eu mesmo inaugurar os hotéis. Mas enquanto eu estiver fora, George, descubra exatamente onde Florentyna está, sem que ela o saiba. Ela não deve pensar que mandei espioná-la; jamais me perdoaria isso. A melhor pista poderá ser Zaphia, mas tome cuida­do, porque ela poderá tirar partido do que aconteceu. É evidente que conversou com Florentyna a respeito de tudo sobre o filho de Kane.

— Quer que Osborne faça alguma coisa com os títulos de Kane?

— Não, por ora absolutamente nada. O momento não é pro­pício para acabarmos com Kane. Quando eu o fizer, estarei certo de que será de uma vez por todas. Por enquanto, esqueça Kane. Nunca se sabe se precisarei tornar a procurá-lo. Concentre todos os seus esforços na busca de Florentyna.

George prometeu que, quando ele regressasse, já a teria loca­lizado.

 

Abel inaugurou o Baron de Edimburgo vinte dias depois. O hotel erguia-se, majestoso, sobre uma colina que dominava a Ate­nas do Norte. Eram os detalhes as fontes de aborrecimento de Abel toda vez que abria um novo hotel, e, tão logo chegava ao lugar, sempre os inspecionava. Um leve choque elétrico ao apertar um interruptor, causado pelos tapetes de náilon; o serviço de quarto que atrasava quarenta minutos; ou uma cama pequena de­mais para um hóspede gordo ou muito alto. A imprensa apres­sou-se em salientar que a filha do Barão de Chicago não estaria presente à cerimônia de inauguração. Um dos colunistas sociais, do Sunday Express, insinuou uma desavença familiar e comentou que Abel não mostrava aquela personalidade exuberante e cheia de verve a que todos se tinham acostumado. Sem conseguir ser convincente, Abel negou a sugestão, replicando estar com mais de cinqüenta anos — uma idade pouco indicada à expansividade, con­forme o seu relações-públicas o instruíra. A imprensa não se deixou convencer, e, no dia seguinte, o Daily Mail publicou a fotografia de uma placa de bronze que fora encontrada no lixo, em que se lia:

 

Baron de Edimburgo,

inaugurado por

Florentyna Rosnovski

17 de outubro de 1957

 

Abel voou para Cannes. Outro hotel esplêndido, sobranceando o Mediterrâneo. Nem isso, porém, afastava Florentyna de sua lem­brança. Outra placa jogada no lixo, agora em francês. Sem ela, a inauguração correu como um funeral.

Abel temia haver perdido a filha para o resto da vida. Para matar a solidão, dormia com mulheres proibitivamente caras ou baratas. Nenhuma podia ajudá-lo. O filho de William Kane tomara posse da única pessoa que ele realmente amava. A França não mais o entusiasmava, e, tão logo cumpriu os seus deveres, partiu para Bonn, onde concluiu as negociações para a construção do primeiro Baron da Alemanha. Manteve-se em contato telefônico permanen­te com George, mas Florentyna não fora encontrada, e, com re­lação a Henry Osborne, havia notícias perturbadoras.

— Está devendo de novo muito dinheiro aos corretores de apostas — disse George.

— Adverti-o, da última vez, de que eu já estava farto de afiançá-lo. Desde que perdeu a cadeira no Congresso não tem sido útil a ninguém. Imagino que, ao voltar, serei obrigado a lidar diretamente com a questão.

— Ele tem feito ameaças — informou George.

— Isso não é novidade. Nunca me preocupei com elas. Seja lá o que queira, terá de esperar pela minha volta. Diga isso a ele.

— Quando volta?

— Daqui a três ou quatro semanas, no máximo. Quero dar uma espiada na Turquia e no Egito. O Hilton já começou a cons­truir lá, e ando curioso por descobrir o motivo. A propósito, George, os especialistas disseram-me que não haverá condições de nos comunicarmos enquanto eu estiver no Oriente Médio. Aque­les árabes ainda não descobriram como se comunicar uns com os outros, quanto mais com o exterior. Por isso, vá tocando as coisas sozinho, como sempre, até que eu torne a entrar em contato com você.

Por mais de três semanas, Abel visitou terrenos onde pode­ria construir novos hotéis nos Estados árabes. Eram inúmeros os seus consultores, e cada um deles dizia-se possuidor de um título de príncipe e assegurava-lhe estar em posição de exercer influên­cia sobre um ministro, na qualidade de amigo pessoal ou primo distante. Contudo, Abel sempre acabava descobrindo que o con­sultor era amigo do ministro inadequado ou um primo distante demais da pessoa certa. A única conclusão sólida a que Abel che­gou, após vinte e três dias de poeira, areia e calor, tomando soda, não uísque, foi que as previsões de seus consultores sobre as re­servas petrolíferas do Oriente Médio eram exatas; os Estados do golfo Pérsico iriam precisar, a longo prazo, de muitos hotéis, e o Grupo Baron teria de iniciar seus planos, se não quisesse ser passado para trás.

Por intermédio de sua corte de príncipes, Abel dispunha de vários terrenos em que poderia construir os hotéis, mas faltava-lhe tempo para descobrir quais os homens realmente capacitados. Opunha-se ao suborno apenas quando o dinheiro chegava nas mãos erradas. Nos Estados Unidos, Henry Osborne pelo menos conhecia os funcionários que mereciam trato especial. Abel organizou um pequeno escritório em Bahrein e deixou claro ao representante local que o Grupo Baron procurava terrenos nos quatro cantos do mundo árabe, e não príncipes ou primos de ministros.

Foi em Istambul que ele imediatamente encontrou o lugar perfeito, voltado para o Bósforo, a algumas centenas de metros da antiga embaixada inglesa. Imóvel, os pés sobre a terra arenosa de sua mais recente aquisição, Abel recordou a última vez em que ali estivera. Cerrou o punho e segurou o pulso da mão direita. Pôde escutar de novo os urros da multidão — e, embora trinta anos já tivessem transcorrido, de novo sentiu medo e náusea.

Cansado das viagens, retornou a Nova Iorque. Durante a in­terminável jornada, pensara muito em Florentyna, sempre com a esperança de que George a tivesse localizado. Como de hábito, George aguardava-o no aeroporto. Seu rosto nada dizia.

— Quais são as novidades? — começou Abel, sentando-se no Cadillac, enquanto o motorista colocava a bagagem no porta-malas.

— Umas boas, outras más — respondeu George, apertando um botão ao lado de sua janela. Uma divisória de vidro subiu, separando-os do banco do motorista. — Florentyna entrou em contato com a mãe. Está morando num pequeno apartamento em San Francisco.

— Casada? — inquiriu Abel.

— Casada.

Ficaram calados por alguns momentos.

— E o filho de Kane? — perguntou Abel.

— Trabalha num banco. Ao que parece, muita gente o re­cusou no início, porque, comentava-se, não havia terminado o curso de Administração em Harvard, e o pai não quis lhe dar referências. Não são poucos os que se recusaram a empregá-lo, visto que isso significava perder as transações com o pai. Por fim, foi contratado como contador pelo Bank of America. Um posto baixo, considerando as suas qualificações.

— E Florentyna?

— Trabalha como subgerente numa loja de modas chamada Wayout Columbus, próxima ao Golden Gate Park. Ela tem ten­tado fazer empréstimos em alguns bancos.

— Por quê? Algum problema? — Abel ficou apreensivo.

— Não, está procurando levantar capital para abrir sua pró­pria loja.

— De quanto ela precisa?

— Apenas trinta e quatro mil dólares, o preço do aluguel de um pequeno prédio em Nob Hill.

Abel recostou-se no banco, refletindo, e os dedos curtos ba­tendo contra a janela do carro.

— Providencie que ela consiga esse dinheiro, George. Faça com que pareça uma transação de empréstimo comum. E que não haja a menor suspeita de que eu estou lhe dando o dinheiro. — Continuou tamborilando os dedos. — George, isso terá que ficar entre nós.

— Farei como quiser, Abel.

— E mantenha-me informado de cada movimento dela, mes­mo os mais banais.

— E quanto a ele?

— Não estou interessado nele. E quais são as más notícias?

— Outro problema com Henry Osborne. Ao que parece, deve dinheiro a todo mundo. Soube também, com segurança, que você é a única fonte de rendimentos dele. Começou a fazer amea­ças veladas. Afirma que você fechou os olhos a subornos na época em que começávamos a organizar o grupo. Segundo ele, guardou toda a papelada desde o primeiro dia em que se encontrou com você, quando combinaram um pagamento adicional do seguro, logo depois do incêndio do Richmond de Chicago, e que hoje seu ar­quivo já tem oito centímetros de espessura.

— Amanhã acerto tudo com Henry — disse Abel.

Enquanto percorriam a Manhattan, George pôs Abel a par dos negócios do grupo, todos satisfatórios, à exceção do Baron de Lagos, que sofrera novo golpe de algum concorrente. Abel nunca se preocupara com isso.

Na manhã seguinte, Abel chamou Henry Osborne ao escri­tório. Parecia envelhecido e desgastado, e o rosto, antes suave e formoso, vincava-se de rugas acentuadas. Não fez referência à pasta de oito centímetros de espessura.

— Preciso de dinheiro para me safar de uma enrascada — disse Henry. — Sabe, tenho tido um bocado de azar.

— Outra vez, Henry? Devia enxergar melhor a sua idade. Nasceu para perder com cavalos e mulheres. Quanto quer agora?

— Dez mil seriam suficientes — arriscou Henry.

— Dez mil! — exclamou Abel, escandindo bem. — Que pensa que eu sou? Uma mina de ouro? Da última vez foram cinco mil.

— Inflação — alegou Henry, com um risinho sem graça.

— Esta é a última vez, compreende? — e Abel pegou o talão de cheque. — Se me procurar mais uma vez, Henry, afasto-o do conselho dos diretores e deixo-o na miséria.

— Você é um amigão, Abel. Prometo não o procurar mais. Prometo, sim, nunca mais. — Tirou um Romeo y Julliyta do umedecedor sobre a mesa, em frente a Abel, e o acendeu. — Obri­gado, Abel, você nunca se arrependerá dessa decisão.

Henry retirou-se, soltando baforadas no charuto, enquanto George entrava. George esperou que a porta se fechasse.

— O que houve com Henry?

— Dei dinheiro a ele, pela última vez — explicou Abel. — Não sei por quê... custou-me dez mil dólares.

— Santo Deus! Sinto-me o irmão do filho pródigo — co­mentou George. — Porque ele vai voltar. Sou capaz de apostar.

— Melhor que não o faça — disse Abel —, porque me enchi dele. Seja lá o que tenha feito por mim no passado, estamos quites agora. Quais as últimas notícias sobre Florentyna?

— Florentyna está bem, mas você acertou com respeito a Zaphia: ela tem feito viagens mensais a San Francisco para vê-los.

— Maldita mulher! — exclamou Abel.

— A sra. Kane também esteve ausente duas vezes — ajuntou George.

— E Kane?

— Nem sinal de que venha a se acalmar...

— Esta é uma coisa que temos em comum — disse Abel.

— Fiz um acerto, em benefício dela, com o Crocker Natio­nal Bank de San Francisco — prosseguiu George. — Ela tentou obter o empréstimo há menos de uma semana. O acordo parecerá uma operação normal. De fato, cobrarão meio por cento mais que o habitual, de modo que não haverá razão para suspeitas. O que ela nunca saberá, porém, é que o empréstimo está sendo coberto pelo nosso fiador.

— Obrigado, George, seu trabalho foi perfeito. Aposto dez dólares com você como dentro de dois anos ela pagará o emprés­timo e nunca mais fará outro.

— Eu ia querer uma vantagem de cinco contra um nessa aposta — disse George. — Por que não experimenta com Henry? Ele adora uma aposta.

Abel riu.

— George, não deixe de me informar de tudo o que ela fizer. Tudo.

 

William analisava o relatório trimestral de Thaddeus Cohen e concluiu que tudo havia sido sumariado. Apenas uma coisa con­tinuava a preocupá-lo: por que Abel Rosnovski nada fazia com o seu grande patrimônio do Lester? Era difícil esquecer que ele possuía seis por cento das ações do banco e que, com mais dois por cento, poderia recorrer ao artigo 7 dos estatutos do Lester. Por certo, Rosnovski não temia mais os regulamentos da SEC, mormente agora, que o governo de Eisenhower entrava no segun­do ano e nunca se mostrara interessado em examinar o inquérito anterior.

Ficara fascinado ao ler que Henry Osborne encontrava-se mais uma vez com problemas financeiros e que Rosnovski conti­nuava a cobri-lo. Perguntava-se por quanto tempo essa situação se arrastaria e o que Henry prepararia para Rosnovski. Seria possí­vel que Rosnovski, ocupado com tantos problemas, tivesse se esquecido de William Kane? O relatório de Cohen fizera uma revisão do desenvolvimento dos oito hotéis que Rosnovski cons­truía em todo o mundo. O Baron de Londres perdia dinheiro, e o de Lagos havia sido desativado. Ainda assim, o grupo crescia. William releu o recorte do Sunday Express que noticiava a ausên­cia de Florentyna na inauguração do Baron de Edimburgo, e pen­sou no filho. Em seguida, fechou o relatório e guardou a pasta no cofre, convencido de que nada de importante havia. O motorista levou-o para casa.

Estava arrependido de ter perdido a calma com Richard. Em­bora não quisesse a filha de Rosnovski na vida dele, desejou não ter voltado as costas ao único filho homem de maneira definitiva.

Kate intercedera por Richard, e ela e William haviam discutido o assunto longa e amargamente — fato raro em sua vida —, e, no entanto, não tinham chegado a um acordo satisfatório. Kate experimentara todas, as táticas possíveis, da persuasão lógica às lágrimas, porém nada demovera William. Virgínia e Lucy tam­bém sentiam falta do irmão.

— Não haverá mais ninguém que veja meus quadros com olhos críticos — comentou Virgínia.

— Não prefere dizer: com olhos zombeteiros? — inquiriu Kate.

Virgínia tentou sorrir.

Lucy adquirira o hábito de trancar-se no banheiro, abrir a torneira da pia e escrever secretamente cartas a Richard, que jamais compreendeu por que lhe chegavam com algum borrão. Ninguém se atrevia a mencionar o nome de Richard diante de William, o que começava a distanciar os membros da família.

Ele tentara ficar mais tempo no banco, respeitando o horário de trabalho, como se isso o ajudasse. Não o ajudou, porém. O banco, mais uma vez, passara a exigir muito dele, exatamente quando sentia a necessidade de um descanso. Nos dois últimos anos, nomeara seis novos vice-presidentes, na esperança de que lhe tirassem dos ombros grande parte do fardo. As conseqüências fo­ram o contrário do que desejava. Eles haviam gerado mais trabalho e mais decisões de sua parte, e o mais brilhante deles, Jake Thomas, mostrava-se o candidato provável a tirá-lo da cadeira da pre­sidência, caso Richard não desistisse da filha de Rosnovski. Embora os lucros do banco a cada ano se elevassem, William já não tinha interesse em ganhar dinheiro. Talvez estivesse enfrentando o mes­mo problema que havia desafiado Charles Lester: não contava com um filho a quem deixar a fortuna e a presidência, agora que havia afastado Richard de sua vida, agora que havia refeito o tes­tamento e desmantelado seu depósito.

 

No ano das bodas de prata, William resolveu levar Kate e as garotas à Europa, em longas férias, esperando com isso tirar da lembrança o filho Richard. Voaram para Londres em um Boeing 707 e hospedaram-se no Ritz. O hotel reacendeu em Wil­liam e Kate recordações alegres de sua primeira viagem à Europa. Fizeram uma viagem sentimental a Oxford e mostraram a Virgínia e Lucy a cidade universitária, seguindo depois para Stratford-on-Avon, para assistir a uma peça de Shakespeare: Ricardo III, com Laurence Olivier. Preferiram ter visto um rei com outro nome.

Deixaram Stratford, e, na volta, pararam na igreja de Henley-on-Thames, onde William e Kate se haviam casado. Planejaram hospedar-se no Bell Inn, mas não havia vagas. De volta a Londres, William e Kate iniciaram uma discussão no carro, porque não entravam num acordo sobre quem os havia casado, se o reverendo Tukesbury ou o reverendo Dukesbury. Até alcançarem o Ritz, não chegaram a nenhuma conclusão satisfatória. Concordaram, porém, numa única coisa: o novo teto da igreja da paróquia já estava bem velho.

Nessa noite, quando foram deitar-se, William beijou Kate carinhosamente. E brincou:

— O melhor investimento de quinhentas libras que fiz até hoje na vida.

Depois de visitarem todos os lugares ingleses comumente vi­sitados pelos turistas americanos dignos desse nome, e muitos outros que eles comumente não visitam, partiram para a Itália. Em Roma, as meninas beberam vinho italiano de péssima quali­dade e, na noite do aniversário de Virgínia, passaram mal, en­quanto William comeu massas em excesso e engordou três quilos. Todos eles teriam se sentido bem mais felizes se pudessem falar sobre o proibido assunto Richard. Nessa noite, Virgínia chorou, e Kate procurou confortá-la.

— Por que ninguém tem coragem de dizer a papai que certas coisas são bem mais importantes do que o orgulho? — interrogou Virgínia.

Kate não respondeu.

Quando regressaram a Nova Iorque, William sentia-se reanimado e ansioso por atirar-se de novo ao trabalho no banco. Em sete dias, perdeu os três quilos.

À medida que os meses foram passando, as coisas voltaram à rotina, que só foi quebrada quando Virgínia, ainda uma rosa amarela em botão, anunciou que ia se casar com um estudante da Faculdade de Direito da Virgínia. A notícia surpreendeu William.

— Ela é muito nova — objetou.

— Virgínia tem vinte e dois anos — retrucou Kate. — Não é mais criança. E... como você se sentiria como avô? — ajuntou, arrependendo-se logo da pergunta.

— O que quer dizer? — William ficou horrorizado. — Vir­gínia está grávida, é isso?

— Oh, não, tenha dó! — exclamou Kate, e então disse no tom mais brando que pôde: — Richard e Florentyna são pais.

— Como sabe?

— Richard escreveu-me dando a boa nova — respondeu Kate. — Não acha que já é tempo de dar-se por vencido, William?

— Nunca! — Furioso, retirou-se do aposento.

Kate suspirou, aborrecida: ele nem perguntara se era avô de um menino ou de uma menina.

O casamento de Virgínia realizou-se na Igreja da Trindade, em Boston, numa agradável tarde de primavera, no final de março do ano seguinte. William aprovara sem nenhuma ressalva David Telford, o jovem advogado com quem Virgínia escolhera viver o resto de sua existência.

Virgínia quisera Richard como padrinho, e Kate insistira com William para que o convidasse para o casamento, mas ele teimosa­mente não lhe atendeu. Era o dia mais feliz na vida de Virgínia, e ela queria que o pai e Richard estivessem juntos na fotografia que seria tirada na porta da igreja. No fundo, William quisera concordar, mas sabia que Richard não compareceria sem a filha de Rosnovski. No dia da cerimônia, Richard enviou um presente e um telegrama à irmã. William não consentiu que o telegrama fosse lido depois da recepção.

 

No escritório do quadragésimo segundo andar do Baron de Nova Iorque, Abel aguardava a chegada de um encarregado de angariar fundos para a campanha de Kennedy. O homem estava vinte minutos atrasado. Impaciente, Abel tamborilava com os dedos na escrivaninha, quando repentinamente a secretária entrou.

— O sr. Vincent Hogan deseja vê-lo, senhor.

Abel ergueu-se da cadeira prontamente.

— Entre, sr. Hogan — disse, batendo a palma da mão nas costas do jovem simpático que mal acabara de entrar. — Como está?

— Muito bem, sr. Rosnovski. Desculpe-me o atraso — disse com sotaque inegavelmente bostoniano.

— Nem me dei conta disso. Aceita uma bebida, sr. Hogan?

— Não, obrigado, sr. Rosnovski. Não bebo quando preciso visitar muitas pessoas num mesmo dia.

— Está muito certo. Espero que não se importe se eu beber alguma coisa — disse Abel. — Sabe, não fiz planos de ver muita gente hoje.

Hogan riu, sabendo que, durante todo o dia, teria de rir das piadinhas de muita gente.

Abel pôs uísque num copo.

— Pois bem, em que lhe posso ser útil, sr. Hogan?

— Bem, sr. Rosnovski, esperamos que o partido possa de novo contar com a sua colaboração.

— Sempre fui democrata, como sabe, sr. Hogan. Apoiei Franklin Delano Roosevelt, Hary Truman e Adlai Stevenson, em­bora não entendesse grande parte do que Adlai estava falando.

Os dois riram fingidamente.

— Também ajudei meu velho amigo, Dick Daley, em Chica­go, e apoiei o jovem Ed Muskie, filho de imigrante polonês, como sabe, desde 1954, em sua campanha para governador do Maine.

— O senhor foi um patrono leal do partido, disso não res­tam dúvidas, sr. Rosnovski — comentou Vincent Hogan, num tom que indicava que o tempo para uma conversa banal tinha se esgotado. — Sabemos, também, que os democratas, inclusive o deputado Osborne, fizeram-lhe em troca alguns favores. Acredito que seja desnecessário entrar em detalhes sobre aquele pequeno mas desagradável incidente.

— Isso foi há muito tempo, um passado que se acha bem longe.

— Concordo — disse o sr. Hogan —, e, embora a maioria dos multimilionários que venceram com os próprios esforços não tolere ver seus negócios inspecionados de perto, o senhor será o primeiro a reconhecer que temos de ser particularmente caute­losos. O candidato, como o senhor compreende, não se pode per­mitir correr riscos pessoais, visto que se aproximam as eleições. Nixon adoraria um escândalo a esta altura da competição.

— Compreendemos um ao outro perfeitamente, sr. Hogan. Posto isto, quanto esperam receber de mim para a campanha elei­toral?

— Preciso de todos os centavos que me caírem nas mãos. - As palavras de Hogan foram saindo comedidas e pausadas. — Nixon tem conseguido muito apoio em todo o país, e será um páreo duro colocarmos nosso homem na Casa Branca.

— Bom, apoiarei Kennedy, se ele me apoiar. Creio que a questão é bem simples.

— Ele se sente feliz em apoiá-lo, sr. Rosnovski. Todos nós estamos cientes de que o senhor, neste momento, é o pilar da comunidade polonesa, e o próprio senador Kennedy não ignora a corajosa posição adotada pelo senhor em favor de seus compa­triotas, ainda escravizados nos campos de trabalho forçado da Cor­tina de Ferro, sem falar de sua cooperação durante a guerra. Fui autorizado a informá-lo de que o candidato concordou em inau­gurar o seu novo hotel em Los Angeles numa de suas viagens durante a campanha.

— Esta é uma ótima notícia — observou Abel.

— O candidato tem também plena consciência do seu de­sejo de que a Polônia tenha uma posição preferencial no comércio exterior com os Estados Unidos.

— Nada mais que justo, se considerarmos nossa prestação de serviço na última guerra — disse Abel, fazendo uma breve pausa. — E quanto àquela outra questãozinha?

— O senador Kennedy está estudando a opinião polaco-americana neste momento, e, por ora, não verificamos quaisquer objeções. Naturalmente, ele não poderá chegar a uma conclusão definitiva enquanto não for eleito.

— Oh, sim, naturalmente. Duzentos e cinqüenta mil dóla­res o ajudariam na tomada dessa decisão?

Vincent permaneceu calado.

— Sejam então duzentos e cinqüenta mil dólares. O dinhei­ro estará no seu escritório no final da semana, sr. Hogan. Palavra de honra.

A transação estava fechada, o acordo, concluído.

Abel levan­tou-se.

— Por favor, transmita ao senador Kennedy meus melho­res cumprimentos, e diga-lhe que, é claro, espero que ele se torne o próximo presidente dos Estados Unidos. Sempre detestei Ri­chard Nixon, depois do tratamento desprezível que deu a Helen Gahagan Douglas, e, em todo caso, tenho razões pessoais para não querer Henry Cabot Lodge na vice-presidência.

— Terei imenso prazer em transmitir-lhe a sua mensagem — disse o sr. Hogan —, e obrigado por continuar a apoiar o Partido Democrata, e, em especial, o nosso candidato. — O bostoniano estendeu a mão.

Abel apertou-a.

— Mantenha-se em contato comigo, sr. Hogan. Liberei essa soma de dinheiro, mas espero um retorno do meu investimento.

— Compreendo-o perfeitamente — replicou Vincent Hogan.

Abel acompanhou o visitante até o elevador, e, sorridente, voltou ao escritório. Seus dedos começaram a bater de novo con­tra o tampo da mesa. A secretária reapareceu.

— Peça ao sr. Novak que venha até aqui — ele disse.

Logo depois, George deixou seu escritório e foi ter com Abel.

— Acho que vencemos mais esta, George.

— Felicitações, Abel, fico contente. Se Kennedy for o pró­ximo presidente, um dos seus sonhos mais ambiciosos será con­cretizado. Florentyna se sentirá orgulhosa de você.

Abel sorriu ao ouvir o nome da filha.

— Sabe o que aquela garota atrevida fez? — perguntou, rindo. — Viu o Los Angeles Times da semana passada, George?

George fez que não com a cabeça, e Abel entregou-lhe o jornal. Uma notícia fora assinalada em vermelho. George leu em voz alta:

 

— "Florentyna Kane inaugurou sua terceira loja em Los Angeles. Proprietária de duas lojas em San Francisco, ela planeja abrir uma quarta em San Diego antes do final do ano. As Floren­tyna’s, como são chamadas, rapidamente vão sendo para a Cali­fórnia o que Balenciaga é para Paris."

 

George riu, baixando o jornal.

— Ela mesma deve ter escrito esta nota — observou Abel. — Não vejo a hora de ela abrir uma Florentyna's em Nova Ior­que. Aposto como o fará dentro de cinco anos, dez no máximo. Quer apostar, George?

— Não aceitei a primeira aposta, Abel, se está bem lem­brado. Se a tivesse aceito, dez dólares teriam voado do meu bolso.

Abel ergueu os olhos, a voz mais branda.

— Acha que ela iria ver o senador Kennedy inaugurar o novo Baron de Los Angeles, George? Acha isso possível?

— Não, se o filho de Kane não for convidado também.

— Isso nunca — disse Abel. — O filho de Kane não me interessa. Li o seu último relatório, George. Ele deixou o Bank of America e foi trabalhar com Florentyna. Incapaz de segurar um bom emprego, vive à sombra do sucesso de minha filha.

— Está se transformando num leitor preconceituoso, Abel. Sabe muito bem que as coisas não aconteceram exatamente desse modo. Esclareci as circunstâncias em detalhes. Kane responsabi­liza-se pelas finanças, enquanto Florentyna dirige as lojas, e esta associação tem sido extremamente funcional. Nunca se esqueça de que um banco importante ofereceu a Kane a oportunidade de dirigir uma agência européia, mas Florentyna pediu-lhe que a ajudasse, uma vez que não conseguia dar conta do controle das finanças. Abel, você precisa enfrentar o fato de que o casamento dos dois é um sucesso. Sei quanto é difícil engolir isso, mas por que não desce do seu pedestal e vai conhecer o rapaz?

— George, você é o meu melhor amigo. Ninguém no mundo se atreveria a falar comigo desse jeito. Por isso, ninguém sabe melhor do que você por que não desço do pedestal, não enquanto o calhorda do Kane não se dispuser a encontrar-se comigo no meio do caminho. Mas até lá, não pretendo rastejar de novo, não enquanto ele viver para me observar.

— Abel, e se você morrer primeiro? Vocês dois têm a mesma idade.

— Então eu estaria derrotado, e Florentyna herdaria tudo.

— Você me disse que ela não herdaria absolutamente nada. Disse-me que alteraria o testamento em benefício do neto.

— Como faria isso, George? Quando chegou o momento de assinar os documentos, não consegui, simplesmente. Mas que dia­bo! O danado daquele neto no fim vai acabar herdando as duas fortunas.

Abel tirou uma carteira do bolso interno do paletó, passou às pressas pelas fotografias antigas de Florentyna e puxou a foto mais recente do neto, que entregou a George.

— O garotinho é bonito — disse George.

— Naturalmente — disse Abel. — Parece com a mãe.

George riu.

— Ei, Abel, nunca vai desistir, não é mesmo?

— Como acha que chamam esse molequinho?

— Que está dizendo? Você sabe qual é o nome dele.

— Não, não, como acha que o chamam de verdade?

— De que jeito vou saber?

— Pois então descubra — desafiou Abel. — Interessa-me saber.

— E de que maneira vou consegui-lo? Terei de contratar alguém para segui-los enquanto empurram o carrinho pelo Golden Gate Park. Você me deu instruções bastante claras de que Flo­rentyna não deve saber que você se interessa pela vida dela e do filho de Kane.

— Isso me faz lembrar de que tenho uma pequena conta a acertar com o pai dele — disse Abel.

— Que fará com as ações do Lester? — indagou George.

– Peter Parfitt tem mostrado interesse em vender os dois por cento, mias eu não confiaria em Henry nessa negociação. Com esses dois implicados na venda, todo mundo tira uma parte na transação, menos você.

— Não vou fazer nada. Com a mesma intensidade com que odeio Kane, não quero me meter em complicações com ele até sabermos os resultados das eleições. Assim, a situação permane­cerá em suspenso por ora. Se Kennedy perder, compro os dois por cento de Parfitt e coloco em prática o plano que já discuti­mos. Não se preocupe com Henry Osborne; já o excluí da pasta de Kane. A partir de agora, eu manobro sozinho.

— Pois eu me preocupo, Abel. Sei que ele deve de novo à metade dos corretores de apostas de Chicago, e não me causaria surpresa alguma se, de uma hora para outra, ele viesse a Nova Iorque.

— Henry não me procurará. Expliquei-lhe a situação com muita clareza da última vez. Disse-lhe que não lhe daria um cen­tavo mais. Se voltar a me pedir dinheiro, simplesmente perderá a cadeira do conselho, e, com ela, seu único rendimento.

— Isso me preocupa ainda mais. Digamos que ele vá pedir dinheiro diretamente a Kane.

— Impossível, George. Henry é o único homem vivo que odeia Kane ainda mais do que eu, e não sem razão.

— Como pode ter tanta certeza disso?

— A mãe de William Kane foi a segunda esposa de Henry — explicou Abel —, e o jovem William com apenas dezesseis anos, expulsou-o de casa.

— Meus Deus! Como sabe isso?

— Não há nada que eu não saiba a respeito de William Kane. Ou, a propósito, a respeito de Henry. Absolutamente nada, a começar pelo fato de que nascemos no mesmo dia. E sou capaz de apostar a minha perna boa que também não há nada que ele não saiba a meu respeito. Assim, seremos prudentes a partir de agora. Mas não é necessário temer que Henry se converta num chamariz. Ele preferiria morrer a admitir que seu nome real é Vittorio Tosna e que certa vez cumpriu sentença.

— Meu Deus! Henry ainda não percebeu que você sabe de tudo isso?

— Não, ainda não. Fiz segredo disso durante anos, sempre acreditando, George, que, se um homem o ameaça em determi­nado momento, então você pode erguer um pouco mais a manga da camisa, e não o braço. Nunca confiei em Henry, desde o dia em que ele me sugeriu burlar a Companhia de Seguros contra Aci­dentes Great Western, mesmo trabalhando para ela, embora eu seja o primeiro a admitir que ele me foi deveras útil. Estou certo de que não me criará problemas no futuro, porque sem o salário de diretor ele se transformará num duro da noite para o dia. Por­tanto, George, esqueça Henry e procuremos ser um pouco mais otimistas. Quando fica pronto o Baron de Los Angeles?

— Meados de setembro.

— Perfeito. Pouco mais de um mês antes da eleição. Quan­do Kennedy inaugurar o hotel, a notícia sairá na primeira página de todos os jornais da América.

 

William retornou a Nova Iorque, vindo de um encontro de banqueiros em Washington. Um recado o esperava: que entrasse em contato com Thaddeus Cohen imediatamente. Havia muito não conversara com Cohen, visto que Abel Rosnovski não lhe causava problemas desde a conversa frustrada por telefone, às vés­peras do casamento de Richard e Florentyna, havia quase três anos. Os relatórios trimestrais consecutivos confirmavam mera­mente que Rosnovski não comprava nem vendia os títulos do banco. Entretanto, William telefonou para Thaddeus Cohen sem demora, e com certa apreensão. O advogado lhe disse que desco­brira por acaso uma certa informação que não desejava transmitir por telefone. William solicitou-lhe que o procurasse no banco quando lhe fosse conveniente.

Thaddeus Cohen chegou quarenta minutos depois. William ouviu-o num silêncio reverente.

Quando o advogado terminou, William disse:

— Seu pai jamais concordaria com métodos tão sub-reptí­cios.

— Nem o seu — replicou Thaddeus Cohen —, mas eles não tiveram de lidar com gente como Abel Rosnovski.

— O que o faz pensar que seu plano dará resultado?

— Veja o caso de Bernard Goldfine e Sherman Adams. Ape­nas mil seiscentos e quarenta e dois dólares implicados em recibos de hotéis e um casaco de vicunha, mas sem dúvida o presidente se enfureceu quando Adams foi acusado de receber tratamento especial como assessor presidencial. Sabemos que a ambição do sr. Rosnovski vai bem além disso. Seria, portanto, mais fácil trazê-lo ao chão.

— Quanto isso me vai custar?

— Vinte e cinco mil dólares, se tanto, mas talvez eu con­siga fazer tudo por menos.

— Como terá certeza de que Abel Rosnovski não saberá que estou implicado?

— Utilizarei uma terceira pessoa, que não saberá o seu nome e atuará como intermediária.

— E se você vencer esta competição, o que nos recomen­dará fazer?

— O senhor enviará todos os detalhes ao senador John Ken­nedy. Posso garantir que isso arrasará os planos ambiciosos de Abel Rosnovski de uma vez por todas, porque, a partir do mo­mento em que a credibilidade dele for abalada, ele estará des­gastado e impossibilitado de invocar o artigo 7 dos estatutos do banco — mesmo que detenha oito por cento das ações do Lester.

— Talvez... caso Kennedy se torne o presidente — disse William. — Mas o que acontecerá se Nixon ganhar a eleição? Ele está na frente nas pesquisas de opinião pública, e eu pessoal­mente acho que ele tem mais chances do que Kennedy. Imagina mesmo que os Estados Unidos colocarão um católico romano na Casa Branca? Eu não creio. Por outro lado, reconheço ser pe­queno o investimento de vinte e cinco mil dólares, desde que exista a possibilidade de acabar com Abel Rosnovski de uma vez por todas e eu possa continuar com segurança no banco.

— Se Kennedy for eleito presidente...

William abriu a gaveta da escrivaninha, de onde tirou um talão de cheques de sua conta particular e escreveu os algarismos: dois, cinco, zero, zero, zero.

 

A previsão de Abel, de que a inauguração do Baron pelo senador Kennedy sairia na primeira página dos jornais, não se realizou de todo. Embora o candidato tivesse realmente inaugu­rado o hotel, precisara comparecer a dezenas de outros eventos em Los Angeles no mesmo dia e enfrentar Nixon num debate pela televisão na noite seguinte. Contudo, a inauguração do mais novo Baron ganhou cobertura razoavelmente grande na imprensa nacional, e Vincent Hogan garantiu a Abel, particularmente, que Kennedy não esquecera aquela outra questãozinha. A loja de Flo­rentyna situava-se a poucas centenas de metros dali, mas pai e filha não chegaram a se encontrar.

Quando os resultados das eleições de Illinois foram divulga­dos, e John F. Kennedy parecia com certeza ser o trigésimo quinto presidente dos Estados Unidos, Abel bebeu à saúde do prefeito Daley e comemorou a vitória na sede do Comitê Nacional Demo­crata, na Times Square. Só foi rever a cama de sua casa por volta das cinco da manhã.

— Droga! Eu tenho muita coisa para comemorar — falou a George. — Serei o próximo... — e caiu no sono antes de ter­minar a sentença.

George sorriu e carregou-o para a cama.

William acompanhava os resultados da eleição na tranqüili­dade de seu escritório na East 68th Street. Após os resultados de Illinois, confirmados às dez horas da manhã seguinte (William nunca confiara no prefeito Daley), Walter Cronkite declarou na televisão que a grita estava em todos os bares, e William discou para a casa de Thaddeus Cohen.

Tudo o que disse foi:

— Os vinte e cinco mil dólares foram um investimento muito bem empregado, Thaddeus. Precisamos agora ter a certeza de que o sr. Rosnovski não terá um período de lua-de-mel. Mas não faça nada antes que ele viaje para a Turquia.

William pôs o fone no gancho e deitou-se. Decepcionara-se com a derrota de Nixon para Kennedy, e lamentava que o seu primo distante, Henry Cabot Lodge, não tivesse sido eleito vice-presidente. Mas o prazer de um é...

Abel recebeu convite para um dos bailes da posse do pre­sidente Kennedy, em Washington, e pensou numa única pessoa com a qual gostaria de partilhar a honra. Conversou sobre isso com George e teve de concordar que Florentyna jamais o acom­panharia, a menos que se convencesse de que ele acabaria a ini­mizade com o pai de Richard. Assim, concluiu, iria sozinho.

A fim de comparecer à comemoração em Washington, Abel teve de adiar por alguns dias sua última viagem à Europa e ao Oriente Médio. Não faltaria à posse, e, ademais, era possível pro­telar a data de inauguração do Baron de Istambul.

Mandou fazer especialmente para a ocasião um terno azul-escuro, bastante discreto, e ocupou a suíte presidencial do Baron de Washington no dia da posse. Observou com prazer o jovem e vigoroso presidente fazer o discurso, impregnado de esperança e de promessas para o futuro.

 

"... Uma nova geração de americanos, nascida neste sé­culo (Abel identificava-se pela metade), preparada pela guerra (Abel identificava-se por inteiro), disciplinada por uma paz amarga e difícil (Abel de novo identificava-se). Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer pelo seu país."

 

A multidão aplaudiu, e todos ignoraram a neve, que fracas­sara em abafar o impacto do brilhante discurso de John F. Ken­nedy.

Abel voltou entusiasmado ao Baron de Washington. Tomou um banho e, para o jantar, vestiu gravata branca e fraque, espe­cialmente confeccionado para a ocasião. Diante do espelho, teve de reconhecer que não era a última palavra em elegância. Seu alfaiate fizera o possível, e tivera de recortar três ternos novos cada vez mais largos nos últimos três anos. Florentyna o teria cen­surado por aqueles centímetros desnecessários, como costumava chamá-los, e, por ela, ele certamente teria tomado alguma atitude para corrigi-los. Por que seus pensamentos se voltavam para Flo­rentyna? Verificou as medalhas. Primeiro, a medalha dos vetera­nos poloneses, depois, as condecorações por seus serviços no de­serto e na Itália, e então as medalhas de cutelaria, como passara a chamá-las, pelos notáveis serviços de faca e garfo.

Haveria sete bailes de posse nessa noite, e o convite de Abel endereçava-o ao D. C. Armoury. Ele sentou-se à mesa dos demo­cratas poloneses de Nova Iorque e de Chicago. Havia muito o que comemorar. Edmund Muskie estava no Senado, e outros dez democratas poloneses tinham sido eleitos para o Congresso. Nin­guém mencionou os dois novos republicanos poloneses eleitos. Abel teve uma noite alegre na companhia de dois velhos amigos, membros fundadores do Congresso Polaco-Americano como ele. Ambos perguntaram por Florentyna.

O jantar foi interrompido pela entrada de John F. Kennedy e sua bela esposa, Jacqueline. Ficaram cerca de quinze minutos, conversaram rapidamente com pessoas cuidadosamente seleciona­das, e depois se retiraram. Embora não tivesse de fato conversado com o presidente, apesar de ter se levantado da mesa e se colo­cado estrategicamente no caminho dele, Abel conseguiu trocar algumas palavras com Vincent Hogan no momento em que ele saía com a comitiva de Kennedy.

— Sr. Rosnovski, que fortuito encontro.

Abel gostaria de explicar ao jovem que com ele nada era for­tuito, mas esse não era o lugar nem o momento apropriado. Ho­gan pegou Abel pelo braço e, apressado, levou-o para trás de uma grande coluna de mármore.

— Sr. Rosnovski, por ora não tenho muito a lhe dizer, por­que preciso ficar ao lado do presidente, mas creio que o senhor pode aguardar um telefonema nosso num futuro muito próximo. Evidentemente, o presidente tem de atender no momento a uma série de compromissos.

— Evidentemente — disse Abel.

— Mas espero — continuou Vincent Hogan — que, no seu caso, tudo se confirme no mais tardar no fim de março ou começo de abril. Posso ser o primeiro a felicitá-lo, sr. Rosnovski? Confio que o senhor corresponderá às expectativas do presidente.

Abel observou Vincent Hogan correr atrás do séquito de Kennedy, que já entrava nas limusines.

— Parece muito satisfeito consigo mesmo — disse um dos amigos poloneses, quando ele voltou à mesa e, sentando-se atacou o filé duro, que dentro do Baron não seria servido jamais. — Kennedy convidou-o para ser o novo secretário de Estado?

Todos caíram na gargalhada.

— Não, ainda — respondeu Abel. — Mas me disse que as acomodações da Casa Branca não têm a mesma classe dos hotéis Baron.

Abel voltou de avião para Nova Iorque na manhã do dia se­guinte, depois de ter visitado pela primeira vez a capela polo­nesa de Nossa Senhora de Czestochowa, no National Shrine. Lem­brou-se das duas Florentynas. O Aeroporto Nacional de Washing­ton perdia-se na desordem, e, três horas depois da planejada, Abel chegou finalmente ao Baron de Nova Iorque. George reuniu-se a ele no jantar e só soube que tudo correra bem quando Abel pediu uma garrafa de Dom Pérignon.

— Esta noite vamos comemorar — disse Abel. — Vi Hogan na festa e a minha nomeação será confirmada dentro de algumas semanas. Farão o anúncio oficial após o meu regresso do Oriente Médio.

— Meus parabéns, Abel. Não conheço outra pessoa mere­cedora dessa honra.

— Obrigado, George. E garanto que sua recompensa não será no céu, porque, quando tudo estiver oficializado, nomearei você presidente do Grupo Baron durante a minha ausência.

George bebeu outra taça de champanhe. A garrafa chegava à metade.

— Abel, quanto tempo ficará fora desta vez?

— Apenas três semanas. Quero averiguar se aqueles árabes não estão me roubando pelas costas. Depois vou à Turquia inau­gurar o Baron de Istambul. Penso que passarei por Londres e Paris.

George serviu mais champanhe.

 

Abel ficou em Londres três dias além do previsto, procuran­do localizar os problemas do hotel, que o gerente atribuía aos sindicatos ingleses. O Baron de Londres revelara-se um dos pou­cos fracassos de Abel, embora ele nunca tivesse tido condições de descobrir por que o hotel constantemente perdia dinheiro. Se dependesse apenas dele, o hotel já teria sido fechado, mas o Grupo Baron de alguma forma precisava se fazer presente na capital da Inglaterra. Ele despediu o gerente e nomeou outro.

Com o Baron de Paris ocorria exatamente o contrário. O hotel era um dos mais bem-sucedidos da Europa, e certa vez Abel confessara a Florentyna, com a mesma relutância com que um pai confessa ter uma filha predileta, que o Baron de Paris era o seu hotel favorito. No Boulevard Raspail, Abel encontrou tudo bem organizado. Por isso passou apenas dois dias em Paris antes de partir para o Oriente Médio.

Contava agora com terrenos em cinco dos Estados do golfo Pérsico, mas apenas o Baron de Riad achava-se em fase de cons­trução. Fosse ele mais jovem, teria ficado no Oriente Médio uns dois anos com o único propósito de conhecer melhor os árabes. Mas não suportava a areia, o sol e a incerteza de não saber quan­do poderia pedir um uísque. Imaginou estar ficando velho, porque já não tolerava também os "nativos". Deixou-os sob a responsabili­dade de um de seus jovens vice-presidentes auxiliares, que só receberia autorização de retornar para gerenciar os ateus dos Es­tados Unidos depois de tê-lo conseguido, com sucesso, com os santos e abençoados filhos do Oriente Médio.

Deixando o pobre vice-presidente no inferno particular mais rico do mundo, Abel rumou para a Turquia.

Abel fora à Turquia diversas vezes nos últimos anos, a fim de acompanhar a construção do Baron de Istambul. Para ele, sempre, existia alguma coisa de especial na antiga Constantinopla. Abel aguardava com ansiedade o momento de inaugurar um Baron na cidade que abandonara para começar vida nova nos Estados Unidos.

Enquanto esvaziava a valise noutra suíte presidencial, Abel viu quinze convites que aguardavam sua confirmação. Era comum ele receber convites à época da inauguração de algum hotel; uma galáxia de caras-de-pau que desejavam ser convidados a qualquer festa de inauguração aparecia no cenário como num passe de má­gica. Nessa ocasião, contudo, dois convites para jantar constituíam agradável surpresa para Abel, pois partiam de dois homens que, certamente, jamais poderiam ser considerados caras-de-pau: os em­baixadores dos Estados Unidos e da Inglaterra. Era particular­mente irresistível para Abel um convite para jantar na velha em­baixada inglesa, visto que havia quase quarenta anos ele não pisava no edifício.

Nessa noite, Abel jantou como convidado de sir Bernard Burrows, o embaixador de Sua Majestade na Turquia. Para sua surpresa, reservaram-lhe um lugar à direita da esposa do embai­xador, um privilégio que, no passado, não lhe concederam. Ter­minado o jantar, ele observou a curiosa tradição inglesa: as damas retiram-se do salão, enquanto os cavalheiros permanecem, fuman­do charutos e bebendo vinho do Porto ou conhaque. Abel foi convidado a reunir-se ao embaixador americano, Fletcher Warren, e a tomar vinho do Porto no escritório de sir Bernard. Este per­suadia o embaixador americano a também convidar o Barão de Chicago para um jantar.

— Os ingleses sempre foram presunçosos — disse o embai­xador americano, acendendo um charuto cubano.

— Há um problema com os americanos — disse sir Ber­nard. — Não reconhecem quando estão derrotados.

Abel escutava a caçoada dos dois diplomatas, perguntando-se por que motivo havia sido chamado a essa reunião. Sir Bernard ofereceu vinho a Abel, e o embaixador americano ergueu a taça.

— A Abel Rosnovski.

Sir Bernard também ergueu a taça.

— Entendo que as congratulações são oportunas — disse. Abel ficou embaraçado e olhou para Fletcher Warren, pe­dindo-lhe ajuda.

— Oh, deixei escapar algum segredo, Fletcher? — pergun­tou sir Bernard, voltando-se para o embaixador americano. — Você me disse que a nomeação era conhecida por todos, meu camarada.

— Por quase todos — disse Fletcher Warren. — Os in­gleses não conseguem guardar um segredo muito tempo.

— Foi por isso que o seu pessoal levou todo aquele tempo para descobrir que estávamos em guerra com a Alemanha? — replicou sir Bernard.

— E depois entrou para garantir a vitória?

— E a glória — disse sir Bernard.

O embaixador americano riu.

— Fui informado de que o anúncio oficial será feito dentro de poucos dias.

Os dois homens fixaram o olhar em Abel, que permaneceu calado.

— Bem, que seja eu o primeiro a felicitá-lo, Excelência — disse sir Bernard. — Desejo-lhe muitas felicidades no seu novo cargo.

Abel enrubesceu ao ouvir em alta voz o tratamento que ele próprio amiúde sussurrara para si mesmo ao barbear-se diante do espelho nos últimos meses.

— Precisa acostumar-se a ser chamado de Excelência — prosseguiu o embaixador inglês —, e a uma porção de coisas piores, em particular as chatas solenidades a que terá de compa­recer. Se tem agora algum problema para manter a forma, será insignificante comparado aos problemas inerentes ao seu man­dato. Ainda viverá para agradecer à guerra fria. Ela é que o aju­dará a manter sua vida social dentro de certos limites.

O embaixador americano sorriu.

— Meus parabéns, Abel, e, se me permite, gostaria de acres­centar as minhas felicitações pela continuidade do seu sucesso. Quando esteve na Polônia pela última vez?

— Voltei apenas uma vez, e para uma curta visita, há pou­cos anos. Era um desejo antigo.

— Bem, pois você retornará em triunfo — disse Fletcher Warren. — Está familiarizado com a nossa embaixada em Varsóvia?

— Não, não estou — confessou Abel.

— O prédio não é nada mau — comentou sir Bernard. — Recordo-lhe que vocês, colonizados, só conseguiram consolidar-se na Europa após a Segunda Guerra Mundial. A comida, porém, é horrível. Espero que tome providências a respeito disso, sr. Rosnovski. E, na minha opinião, a única maneira de remediar isso será construir um Baron em Varsóvia. Como embaixador, acredito que isso é o mínimo que esperarão de um velho polonês.

Abel viu-se tomado por um estado de euforia, rindo e divertindo-se com as anedotas banais de sir Bernard. Notou que bebia vinho do Porto um pouco além da conta, sentindo-se à vontade consigo mesmo e com o mundo. Ansiava pela hora de retornar aos Estados Unidos e contar a Florentyna a novidade, agora que a nomeação, ao que parecia, era oficial. Ela se orgulharia dele. Abel resolveu, naquele instante, que tão logo chegasse a Nova Iorque iria direto para San Francisco fazer as pazes com ela. Ela o queria havia muito, e para ele não existiam mais desculpas. De alguma maneira, faria um esforço para gostar do filho de Kane. Precisava parar de chamá-lo de "filho de Kane". Qual era o nome dele? Richard? Sim, Richard. Ao tomar essa decisão, sentiu uma repentina sensação de alívio.

Quando os três homens retornaram ao salão principal de recepção e às senhoras, Abel aproximou-se do embaixador inglês e, pondo a mão no ombro dele, disse:

— Devo partir, Excelência.

A esposa do embaixador desejou-lhe boa noite à porta.

— Boa noite, lady Burrows, e obrigado por esta noite ines­quecível.

Ela sorriu.

— Sei que não deveria referir-me a isso, sr. Rosnovski, mas aceite minhas congratulações pela sua nomeação. Por certo, sente-­se orgulhoso de voltar à sua terra natal como representante de seu país.

— Sinto-me — respondeu Abel simplesmente.

Sir Bernard acompanhou-o até o último degrau de mármore da entrada da embaixada inglesa, onde o carro o aguardava. O motorista abriu a porta.

— Boa noite, sr. Rosnovski — disse sir Bernard —, e boa sorte em Varsóvia. A propósito, espero que tenha apreciado sua primeira refeição na embaixada inglesa.

— Segunda, na verdade, sir Bernard.

— Já esteve aqui antes, meu velho? Quando verificamos o livro de convidados, não encontramos o seu nome.

— Não — disse Abel. — Meu último jantar na embaixada inglesa foi na cozinha. Não creio que lá eles tivessem uma lista de convidados, mas foi o melhor dos jantares a que compareci em muitos anos.

Abel sorriu enquanto subia no carro. Percebeu que sir Ber­nard hesitava se devia ou não acreditar no que lhe dissera. Du­rante o trajeto de volta ao Baron, Abel tamborilou com os dedos na vidraça e cantarolou. Gostaria de poder voltar aos Estados Unidos na manhã seguinte, mas não seria recomendável recusar o convite de Fletcher Warren para jantar na embaixada ameri­cana na noite seguinte. "Uma coisa que um futuro embaixador não deve fazer, velho camarada", ter-lhe-ia dito sir Bernard.

O jantar na embaixada americana foi outra reunião agradá­vel. Abel teve de explicar aos convivas de que modo chegara a comer na cozinha da embaixada inglesa. Quando terminou de contar-lhes a verdadeira história, eles o fitaram com um ar de admiração e de surpresa. Não estava certo se todos haviam acre­ditado na história de como quase perdera a mão, mas todos con­templaram com admiração a pulseira de prata, e, também nessa noite, chamaram-no de "Excelência".

 

No dia seguinte, Abel levantou-se cedo, pronto para tomar o avião que o levaria aos Estados Unidos. O DC8 pousou em Belgrado, onde permaneceu dezesseis horas, para abastecimento e reparo mecânico. Defeito no trem de pouso, informaram-no. Ele sentou-se no saguão do aeroporto, tomando um café iugos­lavo intragável. O contraste entre a embaixada inglesa e o bar do aeroporto de um país de governo comunista não escapou à atenção de Abel. Por fim o aparelho decolou, com escala em Amsterdã, onde Abel teve de embarcar noutro avião.

Finalmente, o avião chegou a Idlewild. A viagem tinha du­rado trinta e seis horas. Abel estava tão fatigado que mal conse­guia andar. Tão logo deixou a alfândega do aeroporto, viu-se rodeado de repórteres. Máquinas fotográficas disparavam flashes. Abel abriu um sorriso. "Saiu a nomeação", pensou. "Agora é oficial." Empertigou-se quanto pôde, e, com vagar e dignidade, caminhou, disfarçando a coxeadura. Não avistara George, apenas os fotógrafos, que, para conseguir as fotos, acotovelavam-se de qualquer jeito.

De repente, ele viu George, afastado, o rosto pálido como a morte. O coração de Abel acelerou quando, ao passar pela bar­reira, um jornalista, em vez de perguntar-lhe como se sentia como o primeiro polaco-americano nomeado embaixador em Varsóvia, gritou:

— Tem alguma coisa a dizer sobre as denúncias?

Os flashes espocavam com a mesma rapidez com que eram feitas as perguntas:

— Sr. Rosnovski, as acusações procedem?

— Qual é a soma exata que o senhor deu ao deputado Henry Osborne?

— O senhor nega as denúncias?

— Voltou aos Estados Unidos para responder a julgamento?

Os jornalistas anotavam respostas que Abel nem chegara a dar.

— Tirem-me daqui! — gritou ele mais alto que o grupo.

George avançou, comprimido entre os repórteres, alcançou Abel e retornou com ele, abrindo passagem aos empurrões e final­mente fazendo-o entrar no Cadillac que os esperava. Abel abai­xou-se e escondeu a cabeça entre as mãos, enquanto as câmaras não paravam os flashes. George ordenou ao motorista que arran­casse.

— Para o Baron, senhor?

— Para o apartamento da srta. Rosnovski, na 57th Street.

— Por quê? — inquiriu Abel.

— Porque a imprensa está na porta do Baron.

— Não compreendo — disse Abel. -— Em Istambul tratam-me como embaixador já nomeado. Volto para casa e sou recebido como criminoso! George, afinal, o que está acontecendo?

— Quer saber tudo agora ou prefere conversar com o seu advogado? — perguntou George.

— Quem é ele? Quem vai me defender?

— H. Trafford Jilks, é o melhor advogado.

— E o mais caro, também.

— Abel, achei que a esta altura não ia se importar com dinheiro.

— Tem razão, George. Desculpe-me. Onde ele está?

— Falei com ele no Palácio da Justiça, mas ele me prometeu ir para o apartamento assim que fosse possível.

— Não, George, não vou esperar tanto tempo. Por Deus, conte-me o que aconteceu. Diga tudo, por pior que seja.

George respirou fundo.

— Há uma ordem de prisão contra você.

— E qual é a maldita acusação?

— Suborno de funcionários do governo.

— Nunca me envolvi diretamente com nenhum funcionário do governo em toda a minha vida — protestou.

— Sei disso, mas Henry Osborne, sim, e parece que fez tudo em seu nome.

— Oh, meu Deus! — exclamou Abel. — Eu jamais deveria ter empregado esse homem. Fiquei cego pelo ódio que nós dois devotamos a Kane. Ainda assim, não posso acreditar que Henry tenha denunciado tudo, porque ele próprio estaria implicado no caso.

— Mas Henry sumiu — disse George —, e de repente, misteriosamente, todas as dívidas dele foram saldadas.

— William Kane — e Abel rangeu os dentes.

— Nada descobrimos que o envolva no caso — explicou George. — Não existe o menor indício de que ele tenha armado essa trama.

— E quem precisa de indícios? Diga-me: como as autori­dades obtiveram os detalhes?

— Um pacote, contendo uma pasta de documentos, foi en­viado anonimamente ao Departamento da Justiça em Washington.

— Com o carimbo do correio de Nova Iorque, sem dúvida — disse Abel.

— Não. De Chicago.

Abel silenciou por alguns momentos.

— Não é possível que Henry tenha remetido as provas — observou, repentinamente. — Isso não tem o menor sentido.

— Como pode ter certeza disso? — perguntou George.

— Porque você disse que as dívidas dele foram pagas e o Departamento não faria tamanha despesa, a menos que fosse para prender Al Capone. Henry deve ter vendido o arquivo dele a alguém. Mas a quem? A única coisa que podemos ter como certa é que ele jamais daria qualquer informação diretamente a Kane.

— Não diretamente? — perguntou George.

– Não. Sabendo que Henry se achava endividado até o pescoço, ameaçado pelos corretores de apostas, Kane deve ter conseguido um intermediário para fazer o negócio.

— Isso tem sentido, Abel, e, certamente, não foi preciso contratar um superdetetive para descobrir a extensão dos pro­blemas financeiros de Henry. Eram mais do que conhecidos por qualquer um nos bares de Chicago. Mas não tire conclusões apres­sadas. Vejamos o que o seu advogado tem a dizer.

O Cadillac estacionou em frente ao apartamento em que Florentyna morara, que Abel mantinha intacto, na esperança de que a filha retornasse algum dia. H. Trafford Jilks esperava-os, sentado no vestíbulo. Feita a apresentação por George, subiram para o apartamento. George serviu uma dose de uísque a Abel. Ele o bebeu de um só trago e devolveu o copo a George, que novamente o serviu.

— Quais são as más notícias, sr. Jilks? Terminemos logo com isso.

— Sinto muito, sr. Rosnovski — começou o homem. — O sr. Novak falou-me da sua nomeação.

— Isso acabou, de modo que podemos esquecer também o "Excelência". Acredite-me: nem Vincent Hogan se lembra mais do meu nome. Vamos, sr. Jilks, o que é que terei de enfrentar?

— Processaram-no por dezessete acusações de suborno e corrupção de funcionários em catorze Estados. Entrei em enten­dimentos com o Departamento de Justiça para que o senhor seja detido neste apartamento amanhã de manhã, e eles não fazem objeção em libertá-lo mediante fiança.

— Confortador — disse Abel —, mas, e se puderem provar as acusações?

— Oh, talvez consigam provar algumas das acusações — disse H. Trafford Jilks, sem se perturbar —, mas, enquanto Hen­ry Osborne continuar desaparecido, eles encontrarão dificuldade em pressioná-lo com algumas delas. Mas terá de conviver com o fato, sr. Rosnovski, de que já sofreu a maioria dos prejuízos, seja o senhor culpado ou não.

— Entendo perfeitamente — disse Abel, olhando de re­lance uma foto sua na primeira página do Daily News. — Sr. Jilks, descubra quem comprou aqueles documentos de Henry Osborne. Utilize quantas pessoas achar necessárias. O dinheiro não me preocupa. Mas descubra quem os comprou, e depressa, porque, se ficar provado que foi William Kane, acabarei com ele de uma vez para sempre.

— Procure não se envolver com outros problemas — disse H. Trafford Jilks. — O senhor já tem problemas demais.

— Não se preocupe — disse Abel. — Quando eu acabar com Kane, será legal, e estarei bem seguro a bordo.

— Sr. Rosnovski, ouça-me com atenção. Esqueça-se por enquanto de William Kane e comece a se preocupar com o seu julgamento, que é iminente, porque ele será, talvez, o mais im­portante acontecimento de sua vida, a menos que não se impor­te em passar os próximos dez anos na cadeia. Muito bem, por ora é só. Deite-se e procure dormir. Nesse ínterim, distribuirei à imprensa uma pequena declaração negando as acusações e di­zendo que temos explicações detalhadas capazes de inocentá-lo por completo.

— E temos? — perguntou George, esperançoso.

— Não — respondeu Jilks —, mas com isso ganharei tempo para pensar. Quando o sr. Rosnovski examinar a relação de nomes daquela pasta, não receberei com surpresa o fato de ele nunca ter tido contato direto com qualquer um deles. É possível que Henry Osborne tenha sempre agido como intermediário, sem que o sr. Rosnovski soubesse realmente o que acontecia. Meu trabalho, então, será provar que Osborne abusou da autoridade como di­retor do grupo. Por favor, sr. Rosnovski, se chegou a encon­trar-se com alguma das pessoas mencionadas, avise-me, em nome de Deus, porque, esteja certo, o Departamento de Justiça as fará sentar-se no banco das testemunhas e elas deporão contra nós. Mas só começaremos a nos preocupar com isso a partir de ama­nhã. Agora vá dormir. Deve estar exausto depois dessa viagem. Nós nos veremos amanhã cedo.

 

Abel foi detido discretamente no apartamento da filha às oito e meia da manhã, e levado por um oficial ao Tribunal Fe­deral, do Distrito Sul de Nova Iorque. Os ornamentos de cores vivas do Dia de São Valentim nas vitrines das lojas aumentavam a sensação de solidão de Abel. Jilks esperava que as providências tomadas afastassem a imprensa, mas, quando Abel chegou ao tri­bunal, novamente viu-se cercado de repórteres e fotógrafos. De­pois de ouvir críticas severas, ele entrou, seguindo George e acompanhado do advogado Jilks, que vinha logo atrás. Em silên­cio, sentaram-se na ante-sala e aguardaram.

Finalmente, foram chamados, a audiência durou apenas alguns minutos, e Abel teve uma espécie de estranha decepção. O oficial leu as acusações, H. Trafford Jilks respondeu "inocente" a cada uma delas, e solicitou a estipulação de fiança. O promotor, cum­prindo o acordo, não opôs objeções. Jilks pediu ao juiz Prescott no mínimo três meses para preparar a defesa. O juiz marcou a data do julgamento para o dia 17 de maio e, aparentemente desinteressado, passou à causa seguinte.

Abel estava livre de novo, livre para enfrentar a imprensa e os flashes. George instruíra o motorista a aguardá-los ao pé da escada, com a porta do carro aberta. O motor já havia sido acio­nado, e o motorista de Abel precisou manobrar habilidosamente a fim de esquivar-se dos repórteres insistentes, que ainda pro­curavam fazer perguntas. O carro não retornou ao apartamento da 57th Street enquanto o motorista não teve certeza de que nin­guém o seguia. Abel permaneceu imerso em silêncio. Quando, afinal, chegaram, ele voltou-se para George e colocou o braço no ombro dele.

— George, escute bem o que vou lhe dizer. Você dirigirá o grupo pelo menos durante os três meses de que o sr. Jilks precisa para elaborar a defesa. Tomara que, depois desse tempo, não precise dirigi-lo sozinho — observou Abel, procurando sorrir.

— Abel, é evidente que não precisarei. Jilks irá livrá-lo, vai ver. — Pegou a pasta e apertou o braço de Abel. — Sorria — disse, e foi embora.

— Não sei o que eu faria sem George — disse Abel ao advogado, enquanto se acomodavam na sala. — Há quase qua­renta anos, viajamos para cá no mesmo navio, e comemos o pão que o diabo amassou. Agora parece que comeremos mais algum pedaço desse pão! Sr. Jilks, continuemos. Nenhuma pista de Henry Osborne?

— Não, mas coloquei seis homens à procura dele. A Justiça colocou outros seis e, desse modo, o encontraremos. Mas, natural­mente, queremos ser os primeiros.

— E quanto ao comprador dos documentos de Osborne? – perguntou Abel.

— Alguns homens de minha confiança em Chicago foram encarregados dessa tarefa.

— Bom — comentou Abel. — Agora, examinemos a relação dos nomes que o senhor deixou ontem à noite.

Trafford Jilks começou com a leitura da denúncia e em se­guida repassou minuciosamente todas as acusações.

Após três semanas de entrevistas constantes, Jilks conven­ceu-se de que Abel nada mais tinha a dizer-lhe e consentiu que ele descansasse. Naquelas três semanas, nada se soube do para­deiro de Henry Osborne, fosse através dos investigadores de Jilks ou dos oficiais. Os de Jilks fracassaram também em des­cobrir o homem a quem Henry vendera as informações e come­çavam a concluir que Abel estava com a razão.

À medida que a data do julgamento se aproximava, Abel começou a encarar a possibilidade de realmente ir para a cadeia. Estava então com cinqüenta e cinco anos, e receava, tanto quan­to se sentia envergonhado, a perspectiva de passar os últimos anos de sua vida do mesmo modo que os primeiros. Como H. Trafford Jilks assinalara, se fosse considerado culpado, havia o suficiente na pasta de Osborne para levá-lo à prisão por um longo período. Abel enfurecia-se com a injustiça dessa situação. Os delitos praticados por Henry Osborne em seu nome tinham sido consideráveis, porém não excepcionais; ele duvidava que qual­quer negócio florescesse, ou que qualquer dinheiro pudesse ter sido ganho, sem as doações e os subornos que Trafford Jilks documentara com precisão revoltante. Abel recordou-se com amargura do rosto suave e impassível do jovem William Kane, sentado em seu gabinete em Boston, havia tantos anos, com uma pilha de dinheiro herdado, cujas origens, provavelmente ignominiosas, jaziam soterradas sob gerações de respeitabilidade. Então Florentyna lhe escreveu uma carta tocante, com algumas fotogra­fias do filho, dizendo-lhe que ainda o amava e respeitava, e que acreditava na sua inocência.

Três dias antes da data marcada para o julgamento, o Tri­bunal de Justiça localizou Henry Osborne em Nova Orleans. Sem dúvida não o teriam encontrado, não estivesse ele internado num hospital com duas pernas quebradas. Um dedicado policial descobrira que Henry sofrera as contusões por se ter negado a pagar dívidas de jogo. Ninguém gosta disso em Nova Orleans.

O policial somou dois e dois, obteve quatro, e, após essa conclu­são, Osborne, com as duas pernas engessadas, foi levado numa cadeira de rodas até o aeroporto, colocado num avião da Eastern Airlines e enviado para Nova Iorque.

No dia seguinte, foi acusado de maquinação de fraude. Ne­garam-lhe prestar fiança. Trafford Jilks solicitou ao tribunal per­missão para interrogá-lo. Sua solicitação foi atendida, mas a entrevista não o contentou. Ficara evidente que Osborne havia já feito um acordo com o governo, prometendo depor contra Abel em troca de uma atenuação das acusações que se faziam contra ele próprio.

– Sem dúvida, as acusações contra Osborne serão surpre­endentemente menores — comentou o advogado secamente.

– Então o jogo é esse — disse Abel. — Levo na cabeça e ele escapa. Agora jamais descobriremos a quem ele vendeu os documentos.

– Não, sr. Rosnovski, aí o senhor se engana. Ele se dispôs a falar apenas sobre isso. Declarou que não venderia os documen­tos a William Kane em hipótese alguma. Um homem de Chicago, chamado Harry Smith, pagou em dinheiro vivo ao sr. Osborne pelas provas, e, acredite ou não, Harry Smith não é mais que uma invenção, pois existem dezenas de Harry Smiths em Chi­cago, e nenhum deles corresponde às descrições feitas por Os­borne.

— Encontre o tal "Smith". — disse Abel. — Encontre-o antes do início do julgamento.

— Isso já foi providenciado — respondeu Jilks. — Se o homem estiver em Chicago, poremos as mãos nele dentro de uma semana. Segundo Osborne, Smith garantiu que utilizaria a do­cumentação apenas para fins estritamente pessoais. Não tencionava entregá-la a nenhuma autoridade.

— Então por que esse Smith quis detalhes?

— Chantagem, presumo. Por essa razão Osborne desapare­ceu: para evitar o senhor. Reflita sobre isso, sr. Rosnovski, e verá que ele pode estar dizendo a verdade. Afinal, também ele correria um perigo extremo com as revelações, e, ao saber que os documentos tinham ido parar na Justiça, deve ter se sentido tão desesperado quanto o senhor. Não me surpreende que ele tenha desaparecido, e, ao ser apanhado, tenha aceitado depor contra o senhor.

— Sabe — disse Abel — só empreguei esse homem porque ele odiava William Kane, como eu, e, no entanto, Kane nos pegou a ambos.

— Não existem provas do envolvimento do sr. Kane — disse Jilks.

— Não preciso de provas.

O julgamento foi adiado a pedido do procurador do governo, que solicitou mais tempo para interrogar Henry Osborne antes de apresentar suas alegações, uma vez que, naquele momento, ele era a sua principal testemunha. Trafford Jilks objetou com ve­emência e informou ao tribunal que a saúde de seu cliente, que não era mais um rapazote, seria prejudicada com a tensão cau­sada pelas falsas acusações. À contestação não sensibilizou o juiz Prescott, que concordou com a solicitação do governo e protelou o julgamento por mais trinta dias.

O mês arrastou-se, e, dois dias antes do julgamento, Abel estava conformado em ser considerado culpado e enfrentar uma longa sentença. Nesse ínterim, um investigador de H. Trafford Jilks localizou em Chicago um Harry Smith, detetive particular, que usara esse nome seguindo estritamente as instruções de seu cliente, uma firma de advogados de Nova Iorque. Tal descoberta custou a Jilks mil dólares. Só vinte e quatro horas depois Harry Smith revelou que o escritório de advogados envolvido era Cohen, Cohen & Yablons.

— O advogado de Kane — disse Abel logo que recebeu a informação.

— Tem certeza? — indagou Jilks. — Sabendo o que sabe­mos de William Kane, para mim ele seria a última pessoa a utilizar os serviços de uma firma judia.

— Há algum tempo atrás, quando comprei os hotéis que pertenceram ao banco de Kane, alguns dos documentos foram subscritos por Thomas Cohen. Por alguma razão, o banco utilizou dois advogados na realização do negócio.

— O que quer que eu faça a esse respeito? — perguntou George.

— Nada — respondeu Trafford Jilks. — Não quero mais complicações antes do julgamento. Está me compreendendo, sr. Rosnovski?

— Sim. Eu acerto contas com Kane depois do julgamento. Agora, sr. Jilks, ouça-me, e ouça-me com atenção. Diga a Osborne imediatamente que os documentos foram vendidos a William Kane por Harry Smith e que Kane se utilizou deles para vingar-se de nós dois. E dê uma ênfase a esse "nós dois". Garanto que quando Osborne souber disso não abrirá a boca no banco de tes­temunhas, não importa que promessas tenha feito à Justiça. Hen­ry Osborne é o único homem vivo que odeia Kane mais do que eu.

— Como quiser — disse Jilks, demonstrando que não fora persuadido. — No entanto, sr. Rosnovski, devo alertá-lo de que Osborne ainda o culpa, e até este momento não se acha do seu lado de maneira alguma.

— Acredite no que estou dizendo, sr. Jilks. Ele mudará de atitude quando souber que Kane está implicado no caso.

 

  1. Trafford Jilks obteve permissão para conversar dez mi­nutos com Henry Osborne na cela, nessa mesma noite. Osborne ouviu-o, mas não disse nada. Jilks estava convencido de que a notícia não causara nenhuma impressão à principal testemunha do governo, e resolveu só contar o resultado da conversa a Abel Rosnovski na manhã seguinte. Preferia que seu cliente dormisse bem na noite anterior ao julgamento.

 

Quatro horas antes do início do julgamento, Henry Osborne foi encontrado morto na cela pelo guarda que lhe levara o café da manhã. Utilizara a gravata de Harvard para enforcar-se.

O julgamento iniciou-se com as alegações do governo, que, sem a testemunha principal, recorreu a uma prorrogação do tem­po. Depois de ouvir outro protesto de H. Trafford Jilks, apelan­do para o estado de saúde de seu cliente, o juiz Prescott recusou-lhe o pedido. O público acompanhava o andamento do julgamento do Barão de Chicago através da televisão e dos jornais, e, para espanto de Abel, Zaphia sentou-se na galeria do tribunal, apa­rentemente satisfeita com a aflição dele. Após nove dias no Tri­bunal, o promotor não ignorava que suas alegações não se susten­tavam satisfatoriamente e propôs um acordo a H. Trafford Jilks. Durante um intervalo de sessão, Jilks inteirou Abel da proposta.

— Eles retirarão as acusações principais de suborno, se o senhor admitir duas acusações menores, de procurar influenciar um funcionário público.

— Em quanto o senhor calcula as minhas chances de sair livre, se me negar a fazer esse acordo?

— Cinqüenta por cento, eu diria.

— E se não sair livre?

— O juiz Prescott é duro. A sentença seria de seis anos, nem um dia a menos.

— Se eu faço o acordo, admitindo a culpa de duas acusações menores, o que acontecerá?

— Uma multa pesada. Seria uma surpresa ir além disso — afirmou Jilks.

Abel meditou sobre as duas alternativas por alguns segundos.

— Eu me confessarei culpado. Vamos acabar logo com isso.

Os procuradores do governo comunicaram ao juiz que reti­ravam quinze das acusações contra Abel Rosnovski. H. Trafford Jilks levantou-se e anunciou ao tribunal que o cliente desejava alterar suas declarações, confessando-se culpado das duas acusa­ções de delito leve que restavam. O júri foi dispensado, e o juiz Prescott mostrou-se assaz severo com Abel, lembrando-o de que o direito de negociar não incluía o direito de subornar funcioná­rios públicos. O suborno era um crime, ainda mais grave quando tolerado por um homem capaz e inteligente, que não deveria descer a nível tão baixo. Em outros países, acrescentou o juiz oportunamente, fazendo Abel sentir-se mais uma vez um imi­grante inexperiente, talvez o suborno fosse um procedimento co­mum, mas não era o caso dos Estados Unidos da América. O juiz Prescott deu uma sentença de seis meses, com direito a sursis, e multa de vinte e cinco mil dólares, mais as custas do processo.

George conduziu Abel de volta ao Baron; e sentaram-se na cobertura, os copos de uísque na mão, mudos por mais de uma hora. Abel finalmente rompeu o silêncio.

— George, entre em contato com Peter Parfitt e pague-lhe o milhão de dólares que ele pede pelos dois por cento do Lester. Invocarei o artigo 7 do estatuto e matarei William Kane em sua própria sala de reuniões.

George anuiu melancolicamente.

 

Poucos dias depois, o Departamento de Estado anunciou que a Polônia havia recebido o status de prioridade no comércio exterior com os Estados Unidos e que o novo embaixador ameri­cano em Varsóvia seria John Moors Cabot.

 

Em certa e amarga noite de fevereiro, William recostou-se numa cadeira e releu o relatório de Thaddeus Cohen. Henry Osborne tinha entregue todas as informações de que Kane pre­cisava para derrotar Abel Rosnovski, pegara os vinte e cinco mil dólares e desaparecera. "Absolutamente coerente com o caráter dele", refletiu William, guardando no cofre o dossiê manuseado e envelhecido de Rosnovski. O original havia sido enviado ao Departamento da Justiça em Washington por Thaddeus Cohen alguns dias antes.

Quando Abel voltou da Turquia, sendo detido em seguida, William esperou uma retaliação por parte dele e preparou-se para o despejo das ações da Interstate Airways no mercado de valores. E dessa vez preparou-se bem. Havia já alertado o corretor de que as ações da Interstate apareceriam no mercado em grandes quan­tidades e sem aviso prévio. Suas instruções tinham sido claras. As ações deveriam ser compradas imediatamente, para evitar a baixa dos preços. Ele empregaria o dinheiro de seu depósito como medida de curto prazo, a fim de não criar contratempos para o banco. Fizera também circular um memorando entre todos os acionistas do Lester, solicitando-lhes que não vendessem quaisquer títulos da Interstate sem antes consultá-lo.

Contudo, as semanas foram passando e Abel Rosnovski não dera nenhum passo adiante. William começou então a crer que Thaddeus Cohen acertara ao prever que ele nada descobriria quanto à autoria das denúncias. Sem dúvida, Rosnovski estaria colocando toda a culpa nas costas de Henry Osborne.

Thaddeus Cohen tinha certeza de que, com as provas for­necidas por Osborne, Abel Rosnovski acabaria atrás das grades por um período bastante longo, impedido até de julgar possível algum dia recorrer ao artigo 7 e assim constituir uma ameaça ao banco. William esperava também que o veredicto devolvesse o bom senso a Richard, e que o filho então voltasse para casa. Certamente, as recentes revelações só poderiam afastá-lo da filha de Rosnovski e levá-lo a compreender que a razão sempre estivera com o pai.

William receberia Richard de braços abertos. Havia naquele momento um vazio no conselho do Lester, criado pela aposenta­doria de Tony Simmons e pela morte de Ted Leach. Richard precisaria retornar a Nova Iorque antes que William completasse sessenta e cinco anos, o que ocorreria dali a dez anos; caso con­trário, pela primeira vez em mais de um século, um Kane não se sentaria à cabeceira da mesa da sala do conselho. Cohen rela­tou que Richard havia feito uma série de brilhantes realizações nas lojas de Florentyna; mas, claro, a oportunidade de tornar-se o próximo presidente do Lester significaria muito mais para Ri­chard do que viver ao lado da filha de Rosnovski.

Outro fator que preocupava William era que ele não apre­ciava a nova geração de diretores do banco. Jake Thomas, o novo vice-presidente, surgia como o favorito na sucessão à pre­sidência. Podia ter estudado em Princeton, onde se graduara como membro do Phi Beta Kappa[5], mas era vulgar — demasia­do vulgar —, ambicioso demais, de modo algum o homem ideal para ser presidente do Lester. William teria de agarrar-se à posição até completar sessenta e cinco anos, e, até lá, tentaria convencer Richard a trabalhar no Lester. William estava perfei­tamente ciente de que Kate preferia que Richard voltasse com Florentyna, se assim quisesse, mas, à medida que os anos iam transcorrendo, ele sentia maior dificuldade em abrir mão de sua decisão. Graças a Deus que o casamento de Virgínia dera certo! Ela agora esperava um filho. Se Richard se recusasse a abandonar a filha de Rosnovski e voltar para casa, ainda restava Virgínia, a quem ele legaria todos os seus bens — a não ser que nascesse um menino.

William estava sentado à escrivaninha do banco quando teve o primeiro ataque cardíaco. Nada de muito sério. Os médicos aconselharam-lhe repouso, e com isso ele ainda viveria por mais vinte anos. William disse ao médico, outro jovem brilhante — sentia saudade de Andrew MacKenzie! —, que desejava viver apenas outros dez anos, quando então encerraria o seu exercício na presidência do banco.

Nas poucas semanas em que ficara em casa, em convales­cença, com relutância concedera a Jake Thomas a responsabilidade total das decisões do banco. Tão logo pôde retornar ao trabalho, porém, retomou rapidamente sua posição de presidente, receando que Thomas tivesse se imbuído de excessiva autoridade durante a sua ausênia. De tempos em tempos, Kate reunia um pouco de coragem e pedia-lhe permissão para aproximar-se diretamente do filho Richard, mas William, obstinadamente, dizia:

— O rapaz sabe que poderá voltar para casa quando quiser. Basta cortar o relacionamento com aquela moça ardilosa.

No dia do suicídio de Henry Osborne, William sofreu o segundo ataque cardíaco. Kate sentou-se ao lado de sua cama durante a noite toda, temendo que ele morresse, mas o julga­mento de Abel Rosnovski mantinha-o vivo. William acompanhava o julgamento diariamente e não ignorava que o suicídio de Os­borne o colocaria numa posição ainda mais forte. Quando Ros­novski foi inocentado, com apenas uma sentença de seis meses, com direito a sursis, e multa de vinte e cinco mil dólares, a leveza da pena não o surpreendeu em absoluto. Não era difícil imaginar que o governo havia feito um acordo com o excelente advogado de Rosnovski.

William, porém, surpreendeu-se com um leve sentimento de culpa e de alívio pelo fato de Abel não ter sido enviado à prisão.

Terminado o julgamento, William não se preocupou com a possibilidade de Rosnovski vender as ações da Interstate Airways. Ele continuava preparado para isso. Nada, entretanto, aconteceu, e com o decorrer das semanas, William perdeu o interesse pelo Barão de Chicago e concentrou os pensamentos em Richard, a quem agora desejava rever desesperadamente. "A velhice e o temor da morte geram mudanças súbitas no coração", lera certa vez. Numa manhã de setembro, ele comunicou a Kate a sua von­tade. Ela não ousou perguntar-lhe o que o havia feito mudar de idéia; bastava-lhe o fato de que William desejava ver seu único filho homem.

— Vou telefonar para Richard em San Francisco neste ins­tante e convidar os dois — disse-lhe ela, agradavelmente surpresa com o marido, que não se chocara com a palavra "dois".

— Será maravilhoso — comentou William com serenidade. — Por favor, diga a Richard que desejo vê-lo de novo antes de morrer.

— Não seja tolo, meu bem. O médico disse que, se não se preocupar, você viverá mais vinte anos.

— Só quero encerrar meu mandato de presidente do banco e ver Richard ocupando a minha cadeira na direção. Isso já será o bastante. Por que não vai a San Francisco de novo e diz pessoalmente a Richard o que desejo, Kate?

— O que quer dizer com "de novo"? — indagou Kate, inquieta.

William sorriu.

— Sei que já foi lá várias vezes, minha querida. Nestes últimos anos, toda vez que viajei a negócios você me apareceu com a desculpa de visitar sua mãe. Quando ela faleceu, no ano passado, porém, suas desculpas tornaram-se pouco convincentes. Estamos casados há vinte e oito anos, e, hoje, acredito eu, co­nheço todos os seus hábitos. Continua bela como no dia em que a conheci, minha querida, mas não acredito que, aos cinqüenta e quatro anos, você tenha um amante. Como vê, não me foi nada difícil concluir que andava visitando Richard.

— Sim, visitei Richard — disse Kate. — Por que nunca me contou que sabia?

— Porque, aqui no fundo do coração, isso me dava alegria — disse William. — Detestava a idéia de que ele pudesse perder o contato comigo e com você. Como ele tem passado?

— Os dois vão muito bem, e você já tem uma netinha e um netinho.

— Uma netinha e um netinho — repetiu William.

— Hum, hum, e ela se chama Annabel — disse Kate.

— E meu neto? — William perguntava o nome pela pri­meira vez.

Kate lhe disse o nome, e ele não pôde conter o riso. Era apenas uma meia verdade.

— Muito bem. Vá a San Francisco e veja o que consegue. Diga-lhe que o amo. — Lembrou-se de que certa vez ouvira outro velho, prestes a perder o filho, dizer a mesma coisa.

A alegria de Kate nessa noite parecia ser única em tantos anos. Ela telefonou para Richard avisando que na semana seguinte lhes faria uma visita, e que, com ela, seguiam boas notícias.

Kate retornou três semanas depois, e William ouviu, com satisfação, que Florentyna e Richard viriam visitá-los no final de novembro, pois só então poderiam deixar San Francisco. Kate chegara com muitas histórias sobre o sucesso de ambos, sobre como o jovem William Kane era a imagem do avô, e como todos não esperavam a hora de voltar a Nova Iorque para revê-los.

William ouvia com atenção, feliz e em paz consigo mesmo. Temia que, se Richard demorasse muito a voltar, jamais chegasse a fazê-lo. A presidência do banco cairia nos braços de Jake Thomas. William afastou esse pensamento.

 

William voltou ao banco com disposição na segunda-feira seguinte, após uma longa ausência causada pelo segundo ataque, mas bem recuperado e decidido a reassumir a presidência, a fim de abrir as portas ao seu único filho. Ao chegar, foi saudado pelo porteiro, que o informou que Jake Thomas o procurava e que tentara encontrá-lo em casa. William agradeceu ao funcionário, um dos mais antigos, o único que servia o Lester havia mais anos que o próprio presidente.

— Nada é tão importante que não possa esperar — disse.

— Não, senhor.

William dirigiu-se vagarosamente ao seu gabinete. Quando abriu a porta, viu Jake Thomas sentado à vontade em sua cadeira, conferenciando com três outros diretores.

— Acho que fiquei muito tempo afastado — comentou William, rindo. — Não sou mais o presidente do conselho?

— Naturalmente que é. Seja bem-vindo, William — disse Jake Thomas, levantando-se prontamente da cadeira do presi­dente.

William achava impossível acostumar-se a ser chamado por Jake Thomas pelo primeiro nome. A nova geração era muito confiada. Conheciam-se havia tão poucos anos, e esse homem não podia ter mais de quarenta anos.

— Qual é o problema? — perguntou.

— Abel Rosnovski — respondeu Jake Thomas, o rosto impassível.

William sentiu um frio na boca do estômago e sentou-se na cadeira mais próxima.

— O que ele quer agora? — indagou, enfarado. — Não me deixará viver em paz meus últimos dias?

Jake Thomas aproximou-se.

— Ele pretende recorrer ao artigo 7 e convocar uma reunião de acionistas com o único propósito de destituí-lo da presidência.

— Não pode fazer isso. Não detém os necessários oito por cento, e os estatutos do banco especificam com clareza que o presidente deve ser notificado imediatamente se alguma pessoa não-pertencente ao conselho adquirir oito por cento das ações.

— Ele afirma que amanhã pela manhã estará em poder dos oito por cento.

— Não, não — disse William. — Tenho mantido um con­trole cuidadoso de todo o patrimônio. Ninguém venderia a Ros­novski. Ninguém.

— Peter Parfitt — disse Jake Thomas.

— Não — tornou William com um sorriso de triunfo. — Comprei-lhe as ações há um ano, através de um intermediário.

Jake Thomas ficou pasmo, e, por alguns segundos, todos permaneceram emudecidos. Só então William compreendeu com que fervor Thomas desejava ser o próximo presidente do Lester.

— Bem — disse Jake Thomas —, precisamos encarar o fato de que ele afirma que terá os oito por cento amanhã pela manhã, o que o habilitaria a eleger três diretores para o conse­lho e ditar qualquer mudança de orientação por três meses. Ele estaria utilizando as próprias cláusulas colocadas pelo senhor no estatuto de incorporação com o intuito de proteger a sua posição a longo prazo. Ele pretende ainda anunciar essa decisão por todo o país. Como alternativa, está ameaçando assumir a posse do Lester utilizando o Grupo Baron como veículo, caso seus planos encontrem resistência. Deixou bem claro que existe apenas uma maneira de fazê-lo desistir do plano.

— E qual é? — perguntou William.

— Quer que o senhor se demita da presidência do banco — respondeu Jake Thomas.

— Isso é chantagem — disse William, quase gritando.

— Talvez, mas, se o senhor não se demitir até o meio-dia da próxima segunda-feira, ele fará o comunicado a todos os acio­nistas. Já reservou espaço em quarenta jornais e revistas.

— Aquele homem enlouqueceu — disse William.

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa.

— E há mais — acrescentou Jake Thomas. — Exigiu que nenhum Kane o substitua na diretoria durante os próximos dez anos, e que sua demissão não seja justificada por doença ou, com efeito, por quaisquer outras razões — concluiu, estendendo a William um documento em que havia o timbre do Grupo Baron.

— Louco! — William reconheceu o timbre num relance.

— Entretanto, convoquei uma reunião de conselho para amanhã — disse Jake Thomas. — Às dez horas. Creio que de­vemos estudar as exigências dele detalhadamente, William.

Os quatro diretores retiraram-se, deixando William sozinho no gabinete. Ninguém o procurou durante o dia. Ele permaneceu sentado à escrivaninha, buscando comunicar-se com os demais diretores, mas só conseguiu conversar rapidamente com um ou dois, e mesmo assim não estava certo de ter garantido o apoio deles. Compreendeu que a reunião constituiria uma luta cerrada, mas, contanto que ninguém mais detivesse oito por cento das ações, ele estaria seguro. Começou a elaborar uma estratégia com o fim de conservar o controle de seu próprio conselho. Examinou a relação dos acionistas: até onde podia se assegurar, nenhum deles tivera a intenção de transferir suas ações. Sorriu. Abel Rosnovski fracassara nesse golpe. William voltou mais cedo para casa à noite, dizendo a Kate tão-somente que cancelasse a visita a Richard. Em seguida, fechou-se no escritório e meditou sobre as táticas que empregaria para enfrentar Abel Rosnovski pela última vez. Dei­tou-se às três horas da madrugada, já com a decisão tomada sobre o que teria de ser feito. Jake Thomas deveria ser afastado da diretoria e substituído por Richard.

Na manhã seguinte, William chegou antes da hora marcada para a reunião do conselho. Ficou no gabinete, repassando as notas que fizera, confiante na vitória. Acreditava que seu plano levara todos os aspectos em consideração. Às cinco para as dez, a secretária chamou-o no interfone.

— O sr. Rosnovski está ao telefone e deseja falar com o senhor.

— Quem?

— O sr. Rosnovski.

— O sr. Rosnovski — repetiu William, incrédulo. — Po­nha-o na linha — disse, com voz trêmula.

— Pois não.

— Sr. Kane?

O leve sotaque que William jamais esquecera.

— Sim, o que quer desta vez?

— De acordo com os estatutos do banco, devo informá-lo de que agora detenho oito por cento das ações do Lester e pre­tendo recorrer ao artigo 7, a menos que minhas exigências ante­riores sejam cumpridas até o meio-dia de segunda-feira.

— Como obteve os dois por cento restantes? — gaguejou William.

Abel desligou. Imediatamente, William pôs-se a examinar a lista de acionistas, numa tentativa de descobrir quem o havia traído. Ainda tremia, quando a secretária tornou a chamá-lo.

— A reunião vai começar, senhor.

Às dez horas em ponto, William entrou na sala de reuniões. Tomou seu lugar, e, passando os olhos pelos circunstantes, de súbito percebeu quão pouco conhecia aqueles jovens diretores. Da última vez em que precisara lutar, nessa mesma sala, também não conhecia os diretores, mas vencera. Sorriu, razoavelmente confiante em que poderia ainda bater Abel Rosnovski. Ergueu-se e dirigiu-se ao conselho.

— Senhores, esta reunião foi convocada porque o banco recebeu uma demanda do sr. Abel Rosnovski, do Grupo Baron, um criminoso confesso, que teve a desfaçatez de desafiar-me diretamente, afirmando que usaria a posse de oito por cento do patrimônio do meu banco para nos envolver em dificuldades financeiras. Se a sua tática fracassasse, ele tentaria uma licitação de sucessão inversa, a menos que eu renuncie ao cargo da presi­dência do banco e do conselho sem nenhuma explicação. Os se­nhores todos sabem que dentro de nove anos encerro os meus serviços a este banco, aposentando-me. Caso eu me afaste antes, minha demissão seria mal interpretada no mundo financeiro.

William baixou o olhar, consultou as notas e resolveu jogar o seu ás.

— Senhores, ofereço-lhes como garantia todo o meu patri­mônio de ações, mais dez milhões de dólares da minha conta pessoal, e coloco-os à disposição do banco, a fim de que possam rebater quaisquer medidas tomadas pelo sr. Rosnovski e ao mes­mo tempo proteger o Lester contra qualquer prejuízo financeiro. Nessas circunstâncias, senhores, espero poder contar com o seu total apoio nesta batalha contra Abel Rosnovski. Estou certo de que os senhores não são homens de ceder a chantagens.

A sala mergulhou em silêncio. William sentiu que tinha ven­cido, mas então Jake Thomas perguntou-lhe se o conselho poderia levantar algumas questões sobre suas relações com Abel Rosnovski. O pedido colheu William de surpresa, mas ele concordou, sem mostrar nenhuma hesitação. Jake Thomas não o amedrontava.

— Esta vingança entre o senhor e Abel Rosnovski — disse Jake Thomas — vem se arrastando por mais de trinta anos. Acredita que, se viéssemos a seguir os seus planos, o caso estaria encerrado?

— O que mais esse homem poderá fazer? O que mais po­derá ele fazer? — gaguejou William, buscando com o olhar um apoio da diretoria.

— Não teremos certeza enquanto ele não agir, mas, com oito por cento das ações do banco, terá tanto poder quanto o senhor — observou o novo diretor, que, contra a vontade de William, tinha muito a dizer. — E tudo o que sabemos é que nenhum dos senhores pretende abandonar tal inimizade. Embora o senhor tenha oferecido dez milhões de dólares para proteger nossa situa­ção financeira, se o sr. Rosnovski passar a deter as decisões de planejamento, e o poder de convocar reuniões por representação, de promover licitações de sucessão, sem nenhum interesse na clien­tela do banco, sem dúvida causará pânico. O banco e as empre­sas subsidiárias, às quais devemos servir como diretores, ficarão, na melhor das hipóteses, profundamente embaraçados, e, na pior, finalmente arruinados.

— Não, não — disse William. — Com o meu apoio pessoal conseguiremos enfrentá-lo.

— O que precisamos decidir hoje — continuou o diretor — é se existem condições de o conselho enfrentar o sr. Rosnovski. Talvez estejamos destinados a ser perdedores nesse combate.

— Não, se eu cobrir o custo com o meu patrimônio pessoal — disse William.

— Isso o senhor poderá fazer — disse Jake Thomas —, mas não estamos discutindo exatamente dinheiro. Outros proble­mas, bem maiores, surgirão para o banco. Agora que Rosnovski tem poderes para recorrer ao artigo 7, fará de nós gato e sapato. O banco se arriscaria a passar o tempo todo nada fazendo além de tentar prever as artimanhas de Abel Rosnovski.

Jake Thomas fez uma pausa e esperou que sua declaração surtisse efeito. William permaneceu calado. Em seguida, Thomas lançou um olhar para William e prosseguiu.

— Gostaria de fazer-lhe uma pergunta bastante séria, senhor presidente, que preocupa a cada um dos que se sentam em torno desta mesa. Espero que o senhor responda a ela com franqueza, por mais desagradável que seja.

William ergueu os olhos, curioso por saber qual seria a per­gunta. O que teriam andado discutindo às suas costas? Quem Jake Thomas achava que era? William sentiu que começava a perder a iniciativa.

— Responderei a tudo o que o conselho perguntar — res­pondeu William. — Não temo nada e a ninguém — disse, olhan­do diretamente para Jake Thomas.

— Obrigado — disse Jake Thomas. — Senhor presidente, de alguma forma envolveu-se com o envio ao Departamento da Justiça em Washington dos documentos que levaram Abel Ros­novski a ser detido e acusado de fraude, mesmo sabendo que ele era um acionista de grande participação no banco?

— Foi ele quem lhe contou isso? — perguntou William.

— Foi. Ele afirma ter sido o senhor o único responsável pela sua prisão.

William silenciou alguns segundos, refletindo sobre a respos­ta, enquanto examinava suas anotações. Elas não o ajudavam. Não lhe ocorrera que essa questão pudesse ser levantada, mas nunca, em mais de trinta e três anos, mentira ao conselho. Não era agora que o faria.

— Sim, envolvi-me — disse, quebrando o silêncio. — A informação chegou às minhas mãos, e julguei não ser mais que meu dever entregá-la à Justiça.

— E como as informações chegaram às suas mãos?

William fez que não ouviu.

— Creio que todos nós conhecemos a resposta, senhor pre­sidente — disse Jake Thomas. — Além do mais, o senhor passou essas informações às autoridades sem nos pôr a par de sua atitude, e, ao fazê-lo, colocou-nos em perigo. Nossa reputação, nossa car­reira, tudo o que há de mais caro ao banco foi ameaçado por uma rixa pessoal.

— Mas Rosnovski tentou arruinar-me — disse William, ciente de que gritava.

— E para arruiná-lo o senhor colocou em risco a estabili­dade e a reputação do banco!

— O banco é meu! — disse William.

— Não é! — disse Jake Thomas. — O senhor detém oito por cento das ações, tal como o sr. Rosnovski, e no momento é o presidente do Lester. Mas não pode usar o banco caprichosa­mente, sem sequer consultar os demais diretores.

— Nesse caso, solicito ao conselho um voto de confiança — disse William. — Peço-lhes que me dêem seu apoio contra Abel Rosnovski.

— Não é o caso de um voto de confiança — afirmou o diretor. — Devemos decidir se o senhor é ou não o homem certo para dirigir este banco nas atuais circunstâncias. Concorda, senhor presidente?

— Assim seja — disse William, desviando o olhar. — O conselho deve resolver se quer encerrar a minha carreira em des­graça justamente agora, depois de quase um quarto de século de serviço, ou se se renderá às ameaças de um criminoso confesso.

Jake Thomas fez um sinal de cabeça para o secretário da diretoria, e as cédulas de votação foram distribuídas aos mem­bros do conselho. Aos olhos de William, era como se tudo tives­se sido resolvido antes do início da reunião. Passeou o olhar pelos vinte e nove homens reunidos em torno da mesa. Alguns ele próprio havia escolhido; outros, porém, não conhecia bem. Sou­bera certa vez que um pequeno grupo de jovens diretores apoiava abertamente o Partido Democrata e John Kennedy. Alguns deles encaravam-no; outros, não. Certamente o apoiariam, não permi­tindo que Rosnovski o vencesse. Não nesse momento. "Por favor, deixem-me chegar ao fim da minha carreira presidencial", disse para si mesmo, "e depois irei embora calmamente, sem nenhuma inquietação — mas não, não desse modo."

Observou os membros do conselho devolverem as cédulas ao secretário, que começou a abri-las devagar. A sala estava em silêncio, todos os olhos voltados para o funcionário. Ele abriu as últimas cédulas e anotou meticulosamente, em duas colunas distintas, os votos a favor e os contra numa folha de papel que tinha diante de si. William viu que uma das listas de nomes era maior que a outra, mas sua vista fraca não lhe permitia discernir qual delas continha os votos a seu favor. Não se sentia capaz de aceitar que chegara o dia em que, no seu próprio con­selho, estava havendo uma disputa de votos entre ele e Abel Rosnovski.

O funcionário disse o resultado. William não acreditou no que tinha ouvido. Por dezessete votos contra doze, ele havia per­dido a confiança do conselho. Conseguiu levantar-se. Abel Ros­novski vencera-o na batalha final. Enquanto o presidente se retirava da sala, todos permaneceram silenciosos. William retor­nou ao gabinete presidencial, pegou o casaco, deteve-se para olhar uma última vez o retrato de Charles Lester e então, vagarosa­mente, percorreu o corredor e atravessou a porta de saída.

O porteiro lhe disse:

— É bom vê-lo de volta, senhor presidente. Até amanhã, senhor.

William jamais tornaria a vê-lo. Voltou-se e apertou a mão do homem que lhe indicara a sala de reuniões do conselho trinta e três anos atrás.

O homem, surpreso pelo cumprimento, falou:

— Boa noite, senhor — e acompanhou William com o olhar, que entrava no carro ali, pela última vez.

Seu motorista levou-o para casa. Ao descer na East 68th Street, William caiu sobre os degraus da entrada. O motorista e Kate ajudaram-no a entrar. Kate notou que ele chorava e abra­çou-o.

— O que aconteceu, William?!

— Fui posto para fora do meu próprio banco — lamentou. — Meu conselho perdeu a confiança em mim. Por interesse, apoia­ram Abel Rosnovski.

Kate levou-o com certo esforço à cama e permaneceu sen­tada ao lado dele toda a noite. Ele não falou em nenhum mo­mento. E nem conseguiu dormir.

 

O Wall Street ]ournal, na manhã seguinte, dizia simples­mente: William Lowell Kane, diretor-presidente do Lester, demi­tiu-se após uma reunião de diretoria, ontem.

Não havia nenhuma referência a doença ou qualquer expli­cação de seu afastamento repentino, nem sequer insinuação de que seu filho ocuparia a cadeira presidencial. William sabia que os rumores correriam pela Wall Street, e que todos imaginariam o pior. Permaneceu sentado na cama, solitário, indiferente a este mundo.

 

No mesmo dia, Abel leu a pequena notícia da demissão de William Kane no Wall Street. Telefonou para o Lester e pediu que chamassem o novo presidente. Segundos depois, Jake Thomas o atendeu.

— Bom dia, sr. Rosnovski.

— Bom dia, sr. Thomas. Quero confirmar que, nesta manhã, transferirei todas as minhas ações da Interstate Airways ao banco, ao preço do mercado, e lhe entregarei os meus oito por cento do Lester, pessoalmente, por dois milhões de dólares.

— Obrigado, sr. Rosnovski, é muita generosidade de sua parte.

— Não há por que agradecer, senhor presidente, cumpro apenas o acordo que fizemos, quando o senhor me vendeu os seus dois por cento — disse Abel Rosnovski.

 

Abel estava surpreso de sentir tão pouca satisfação com esse último triunfo.

George tentou persuadi-lo a ir a Varsóvia procurar terreno para a construção de um Baron, mas Abel não se mostrou dis­posto à viagem Com a velhice, tornara-se medroso, e receava morrer no exterior sem rever Florentyna. Durante meses, desin­teressou-se das atividades do grupo. Quando John F. Kennedy foi assassinado, no dia 22 de novembro de 1963, Abel entrou numa depressão ainda maior e temeu pelo destino dos Estados Unidos. Finalmente, George convenceu-o de que uma viagem ao exterior não lhe faria mal algum e que, quando voltasse, as coisas provavelmente estariam melhores.

Abel viajou para Varsóvia, onde conseguiu um acordo alta­mente confidencial que lhe possibilitaria a construção do primeiro Baron num país comunista. Seu domínio da língua causou im­pressão nos varsovianos, e ele não pôde deixar de orgulhar-se por ter chegado antes do Holliday Inn e do Intercontinental ao outro lado da Cortina de Ferro. Não se conformava... E não se conformou também quando Lyndon Johnson nomeou John Gronowski o primeiro polaco-americano a representar os Estados Unidos na embaixada de Varsóvia. Mas agora nada parecia dar-lhe satisfação. Derrotara Kane e perdera a própria filha; pergun­tava a si mesmo se aquele homem não estaria sentindo a mesma coisa. Deixando Varsóvia, excursionou pelo mundo, hospedando-se em seus hotéis, acompanhando a construção dos novos. Abriu o Baron da Cidade do Cabo, na África do Sul, e voltou à Alema­nha para inaugurar o de Düsseldorf.

Ficou seis meses no seu Baron predileto, em Paris, vaguean­do pelas ruas durante o dia e assistindo à ópera à noite, na espe­rança de reavivar as recordações de Florentyna.

Por fim, deixou Paris e retornou a Nova Iorque, após um longo exílio. Ao descer os degraus da escada de metal de um Air France 707, no Aeroporto Kennedy, o corpo encurvado, a cabeça calva coberta por um chapéu, ninguém o reconheceu. George estava lá para saudá-lo, o fiel e honesto George, aparen­temente bem mais velho. No trajeto para o hotel, George, como sempre, informou-o das novidades do grupo. Os lucros haviam aumentado significativamente, graças aos seus entusiásticos exe­cutivos, que trabalhavam com afinco em cada cidade importante do mundo. Eram agora setenta e dois hotéis e vinte e dois mil funcionários. Abel não dava mostras de estar ouvindo. Queria tão-somente notícias de Florentyna.

— Ela está bem — disse George — e virá a Nova Iorque no início do próximo ano.

— Por quê? — indagou Abel, subitamente interessado.

— Virá abrir uma de suas lojas na Fifth Avenue.

— Fifth Avenue?

— A décima primeira Florentyna's — informou George.

— Você a viu?

— Sim.

— Está bem? Está feliz?

— Ambos estão bem felizes. E vitoriosos. Abel, você devia orgulhar-se deles. Seu neto é um garoto e tanto, e sua neta é linda. A imagem de Florentyna quando tinha a mesma idade.

— Ela quer me ver? — inquiriu Abel.

— E você quer ver o marido dela?

— Não, George. Não vou me encontrar com aquele rapaz, enquanto o pai dele estiver vivo.

— E se você morrer primeiro?

— Não deve acreditar em tudo o que a Bíblia diz.

Abel e George permaneceram em silêncio o resto do percurso e, à noite, Abel jantou sozinho em sua suíte.

Nos seis meses que se seguiram, ele não saiu uma vez sequer da cobertura.

 

Quando Florentyna Kane abriu a butique na Fifth Avenue, em março de 1967, quase toda a Nova Iorque parecia ter com­parecido à festa, exceto William Kane e Abel Rosnovski.

Kate e Lucy saíram para a inauguração da Florentyna's, dei­xando William na cama, a resmungar.

George deixou Abel sozinho na suíte. Ele tentara convencer Abel a acompanhá-lo à inauguração, mas o velho resmungou que a filha havia inaugurado dez lojas sem a presença dele e mais uma não lhe faria nenhuma diferença. George disse que ele não passava de um velho tolo e cabeçudo e foi sozinho à Fifth Avenue. Quan­do chegou à moderna e magnífica butique, com tapetes fofos e móveis suecos recentes — lembrara-lhe o modo como Abel cos­tumava fazer as coisas —, George encontrou Florentyna, que ves­tia um longo, azul, com o agora famoso F na gola alta. Ela lhe ofereceu champanhe e apresentou-o a Kate e Lucy, que conversa­vam com Zaphia. Kate e Lucy Kane mostravam-se inequivoca­mente felizes, e surpreenderam George ao lhe perguntarem por Abel Rosnovski.

— Eu disse a Abel que ele é um velho tolo e cabeçudo por perder uma festa dessa. E o sr. Kane não veio?

George ficou satisfeito com a resposta alegremente dissimu­lada de Kate Kane.

 

William ainda resmungava, enquanto lia, no New York Ti­mes, alguma coisa sobre Johnson ter desferido seu ataque contra o Vietnã. Dobrou o jornal e desceu da cama. Começou a vestir-se preguiçosamente, e, ao terminar, olhou-se no espelho. Tinha o aspecto de um banqueiro. Franziu a testa. Com que outra coisa poderia se parecer? Pôs um pesado sobretudo e o velho chapéu Homburg, apanhou a bengala preta de cabo prateado, que Rupert Cork-Smith lhe dera, e, talvez por alguma razão, saiu para a rua. Era a primeira vez que saía sozinho, refletiu, em quase todos aqueles três anos, desde que tivera o último ataque cardíaco grave. A criada estranhou vê-lo deixar a casa sem nenhuma companhia.

Era uma noite quente de primavera, mas William, tendo permanecido dentro de casa muito tempo, sentia frio. Ele demo­rou longo tempo até alcançar o Fifth Avenue com a 56th Street, e, quando finalmente chegou, era tal o número de pessoas do lado de fora da Florentyna's que por um instante ele pensou não ter força suficiente para abrir caminho entre a multidão. Ficou para­do à beira da calçada, observando as pessoas se divertirem. Gente jovem, feliz e entusiasmada, de algum modo conseguindo passar e entrar na bela loja Florentyna's. Algumas moças usavam as mi­nissaias importadas de Londres. O que viria depois?, refletiu Wil­liam, quando, de súbito, avistou o filho conversando com Kate. Transformara-se num belo homem — alto, seguro e sereno; havia nele qualquer coisa de imponente que lhe lembrava o próprio pai. Mas na agitação e movimentação incessantes, não podia ima­ginar qual de todas aquelas moças era Florentyna. Ficou ali de pé, parado, quase uma hora, a entreter-se com o entra-e-sai, e las­timou os anos que sua obstinação o fizera desperdiçar.

O vento começara a soprar veloz pela Fifth Avenue. William esquecera que em março o vento podia tornar-se muito frio. Levantou a gola do sobretudo. Precisava voltar para casa, porque todos iriam jantar lá nessa noite, e pela primeira vez ele ia ver Florentyna e os netos. Seu neto e a pequena Annabel, e o pai deles, seu filho amado. Dissera a Kate que tinha sido um tolo, e pediu-lhe que o perdoasse. Lembrava-se de que ela apenas lhe havia dito: "Sempre amarei você". Florentyna escrevera-lhe. Tão generosa a sua carta! Ela fora extremamente compreensiva e amá­vel com respeito ao passado. Terminara dizendo: "Estou ansiosa por conhecê-lo".

Precisava voltar para casa. Kate ficaria aborrecida com ele, se descobrisse que estivera na rua sozinho e com aquele vento frio. Mas tinha de ver a inauguração da loja. De alguma maneira, esta­ria na companhia deles. Agora iria embora e os deixaria divertindo-se com a festa. Depois do jantar, eles lhe contariam tudo sobre a inauguração. Mas ele não diria que estivera lá. Guardaria esse segredo, sempre.

Quando se voltou para tomar o rumo de casa, William viu, a poucos metros de onde estava, um velho que vestia um casaco preto, chapéu enfiado até as orelhas e cachecol em torno do pes­coço. Ele também sentia frio. Essa não era uma noite para velhos, pensou William, andando na direção do outro. E então, de súbito, viu a pulseira de prata no pulso do velho, um pouco abaixo do punho do casaco. Num lampejo, recordou-se de tudo, juntando as peças de suas lembranças pela primeira vez. Primeiro Plaza, depois Boston, depois a Alemanha e, agora, a Fifth Avenue. O homem virou-se e começou a andar em sua direção. Devia estar parado ali há muito tempo, porque seu rosto estava roxo de frio. Os olhos inequivocamente azuis fitaram William. Uns poucos metros separavam um do outro. Ao se cruzarem, William tirou o chapéu para o velho. Ele respondeu numa saudação, e continua­ram a caminhar, cada um para um lado, sem terem trocado uma só palavra.

"Preciso ir para casa", pensou William, "antes que eles vol­tem." A alegria de ver Richard e os dois netinhos devolvia-lhe o prazer de viver. Queria conhecer Florentyna, pedir-lhe perdão, e confiava em que ela compreendesse o que ele próprio mal com­preendia. "Uma moça e tanto!", diziam-lhe.

Quando chegou à East 68th Street, procurou, atrapalhado, a chave e abriu a porta da frente. "Ligue todas as luzes", dissera à criada, "e acenda o fogo da lareira, para que todos sintam con­forto." Estava muito contente, e muito, muito cansado.

— Abra as cortinas — disse —, e acenda as velas dos cas­tiçais da mesa da sala de jantar. Temos muito o que comemorar.

William não via o momento de eles chegarem. Sentou-se na cadeira de couro vermelho-acastanhado ao lado do fogo vivo, e com felicidade pensou na noite que tinha pela frente. Netos à sua volta, os anos que perdera. Quando o netinho teria dito "três" pela primeira vez? Uma oportunidade de enterrar o passado e ga­nhar a remissão de agora em diante. A sala estava muito acolhe­dora e aquecida, depois daquele vento gélido; mas valera a pena fazer aquela jornada.

Minutos depois, ele ouviu um rumor agitado que vinha da escada, e surgiu a empregada, que lhe disse que o filho acabara de chegar. Estava no vestíbulo com a mãe, a esposa e as duas crianças mais graciosas que ela tinha visto na vida. E então saiu correndo para servir o jantar ao sr. Kane na hora marcada. Ele queria que tudo saísse perfeito nessa noite.

Richard entrou na sala com Florentyna. Ela estava radiante.

— Papai quero apresentar-lhe minha esposa.

William Lowell Kane ter-se-ia voltado para recebê-los, mas não podia. Estava morto.

 

Abel colocou o envelope sobre o criado-mudo. Ainda não estava vestido. Ultimamente, era raro levantar-se antes do meio-dia. Experimentou tirar a bandeja do café da manhã de cima dos joelhos e pô-la no chão, um movimento de inclinação que seu corpo não. mais oferecia. Inevitavelmente, acabava deixando a bandeja cair num estrondo. Nesse dia não foi diferente. Pouco lhe importava isso. Pegou o envelope outra vez e leu a comu­nicação em voz alta pela segunda vez.

 

— "Recebemos do falecido sr. Curtis Fenton, que foi gerente do Continental Trust Bank, na La Salle Street, em Chicago, a instrução de enviar-lhe a carta aqui inclusa, quando da efetiva­ção de determinadas circunstâncias. Por gentileza, acuse o recebi­mento desta carta assinando a cópia também inclusa, e remetendo-a de volta no envelope previamente selado e sobrescrito que estamos anexando a esta." – Malditos advogados! — exclamou Abel, e, rasgando o envelope, abriu a carta.

 

Prezado sr. Rosnovski:

Esta carta permaneceu sob a guarda de meus advogados até a data de hoje por motivos que lhe ficarão claros à medida que a for lendo.

Quando, em 1951, o senhor encerrou suas contas no Conti­nental Trust, depois de o banco tê-lo servido por mais de vinte anos, naturalmente senti-me desconsolado e deveras preocupado. Minha preocupação foi motivada não por ter perdido um dos clien­tes do banco mais estimados, embora o fato fosse lamentável, mas porque o senhor entendeu que eu havia agido de má fé. O que o senhor desconhecia, àquela época, era que eu havia recebido ins­truções específicas de seu financiador de não lhe revelar deter­minados fatos.

O senhor veio ao banco pela primeira vez, em 1929, e soli­citou um apoio financeiro para liquidar as dívidas contraídas pelo sr. Davis Leroy, de modo que pudesse assumir a propriedade dos hotéis que integravam o Grupo Richmond. Não obstante ter ten­tado contatar diversos financistas, fracassei em encontrar um fi­nanciador. Interessei-me pessoalmente pelo seu caso, porque acre­ditava que o senhor possuía um faro excepcional para a carreira escolhida. Deu-me enorme satisfação constatar, na minha velhice, que minha confiança não fora imerecida. Devo acrescentar, a este ponto, que também me senti grandemente responsável por tê-lo aconselhado a comprar os vinte e cinco por cento do Grupo Rich­mond de minha cliente, a srta. Amy Leroy, embora ignorasse a difícil situação financeira por que passava naquele momento o sr. Leroy. Fiz uma digressão.

Não consegui encontrar um financiador para o senhor, e já estava prestes a perder todas as esperanças, quando, naquela ma­nhã de segunda-feira, o senhor me procurou. Creio que se recorda daquele dia. Apenas trinta minutos antes de sua entrevista, eu havia recebido um telefonema de um financista que se oferecia para emprestar-lhe o dinheiro necessário, e que, tal como eu, de­positava grande confiança no senhor. A única condição que ele impusera, tal como eu o informei naquela oportunidade, era que ele insistia em permanecer no anonimato, devido a um conflito potencial entre sua profissão e seus interesses particulares. Eu havia considerado os termos oferecidos por ele, que lhe possibili­tavam um eventual ganho do controle do Grupo Richmond, extre­mamente generosos, e o senhor, legitimamente, tirou deles bom proveito. Com efeito, quando, através de seus próprios esforços, o senhor conseguiu saldar o investimento inicial, seu financiador regozijou-se com o fato.

Depois de 1951, perdi o contato com ambos, mas, após apo­sentar-me do banco, soube, através dos jornais, de um lamentável incidente que envolvia o seu financiador, o que me levou a escre­ver esta carta, considerando a possibilidade de que eu viesse a morrer antes dos senhores.

Escrevo-lhe não para provar as minhas intenções honestas em todo este caso, mas para que o senhor não continue a viver na ilusão de que o seu financiador e benfeitor foi o sr. David Maxton, do Stevens Hotel. O sr. Maxton era um grande admi­rador seu, mas nunca chegou a procurar-me no banco com a in­tenção de ajudá-lo. O cavalheiro que tornou possível a existência do Grupo Baron, por sua capacidade de previsão e nobreza de caráter, foi William Lowell Kane, presidente do Lester de Nova Iorque.

Solicitei ao sr. Kane que o informasse de seu envolvimento pessoal, mas ele se recusou a quebrar a cláusula da escritura de seu legado, segundo a qual nenhum beneficiário deveria ser intei­rado dos investimentos da herança da família. Depois de o senhor ter pago o empréstimo, e de, mais tarde, ele ter descoberto o en­volvimento pessoal de Henry Osborne com o Grupo Baron, o sr. Kane tornou-se ainda mais inflexível no sentido de que o senhor jamais fosse informado desse fato.

Deixei instruções para que esta carta seja destruída, caso o senhor venha a falecer antes do sr. Kane. Nessa circunstância, ele receberá uma carta, explicando-lhe o seu total desconhecimento da generosidade dele.

Seja quem for que receba a carta de meu punho, foi um privilégio poder tê-los servido.

Para sempre,

seu fiel criado, Curtis Fenton.

 

Abel pegou o telefone no criado-mudo.

— Chame George — disse. — Quero vestir-me.

 

O funeral de William Lowell Kane teve grande acompanha­mento. Richard e Florentyna ficaram a um lado de Kate; Virgí­nia e Lucy, do outro. A avó Kane teria aprovado a cerimônia. Três senadores, cinco deputados, dois bispos, a maior parte dos presidentes dos principais bancos e o editor do Wall Street Jour­nal estavam presentes, Jake Thomas e todos os diretores do con­selho do Lester também estavam presentes, compungidos, numa oração a Deus, em quem William nunca acreditara realmente.

Ninguém notou a presença de dois homens idosos, de pé, atrás da multidão, também de cabeça baixa, dando a impressão de não pertencerem ao mesmo grupo. Haviam chegado com alguns minutos de atraso e partiram imediatamente após o ofício reli­gioso. Quando o homem mais baixo se afastava, apressado, Flo­rentyna julgou ter reconhecido nele um andar claudicante. Ela falou a Richard de sua suspeita, mas ambos não comentaram o fato com Kate Kane.

Alguns dias depois, o mais alto dos dois homens procurou Florentyna na loja da Fifth Avenue. Lera em um jornal que ela estaria de volta a San Francisco e precisava que lhe fizesse um favor antes de partir. Ela o ouviu com atenção e, com alegria, consentiu no seu pedido.

Richard e Florentyna Kane chegaram ao Baron Hotel na tarde seguinte. George Novak os esperava e os acompanhou ao quadragésimo segundo andar. Passados dez anos, Florentyna mal reconheceu o pai, agora pregado na cama, os óculos de lentes de meia-lua fixos na ponta do nariz, ainda sem travesseiro, mas com um sorriso provocador. Conversaram sobre os dias felizes de suas vidas, e ambos riram um pouco e choraram muito.

— Richard, perdoe-nos — disse Abel. — Nós, poloneses, somos uma raça sentimental.

— Eu sei, meus filhos são meio poloneses — disse Richard.

Mais tarde, nessa noite, jantaram juntos, "uma esplêndida carne de vitela assada, apropriada ao retorno da filha pródiga", disse Abel.

Falaram sobre o futuro e sobre o desenvolvimento do grupo.

— Devíamos ter uma Florentyna's em cada hotel — disse Abel.

Ela riu e concordou.

Abel disse a Richard o quanto sentia tudo o que fizera ao pai dele, revelando em detalhes os erros que havia cometido ao longo dos anos. Contou-lhe como em nenhum momento lhe pas­sara pela cabeça que seu benfeitor pudesse ter sido William Kane, e como gostaria de ter tido uma oportunidade de poder agradecer pessoalmente pelo que ele lhe fizera.

— Ele o teria compreendido — disse Richard.

— Nós nos encontramos, sabe, no dia em que ele morreu — disse Abel.

Florentyna e Richard olharam-no, espantados.

— Oh, sim — continuou Abel. — Passamos um pelo outro na Fifth Avenue. Ele estava lá, observando de longe a inaugu­ração de sua loja. Tirou o chapéu para mim. Aquilo foi o sufi­ciente, o suficiente.

Abel tinha apenas um pedido a fazer a Florentyna. Que ela e Richard o acompanhassem na viagem a Varsóvia dali a nove meses, quando inauguraria o seu mais novo Baron Hotel.

— Podem imaginar? — falou ele, de novo entusiasmado, tamborilando com os dedos no criado-mudo. — O Baron de Var­sóvia. Agora, sim, existe um Baron que só poderá ser aberto pelo presidente do Grupo Baron.

 

Durante os meses seguintes, os Kanes visitaram Abel com regularidade, e Florentyna tornou a aproximar-se muito do pai. Abel aprendeu a admirar Richard e o bom senso que temperava todas as ambições da filha. Ele adorava o neto. E a pequena Annabel era — como era mesmo a medonha expressão moderna? — "demais".

Raras vezes em sua vida Abel sentira-se tão feliz, e começou então a fazer planos para o seu retorno triunfante à Polônia e para a inauguração do Baron de Varsóvia.

 

A presidente do Grupo Baron inaugurou o Baron de Var­sóvia seis meses mais tarde do que o previsto. Os contratos de construção processavam-se morosamente em Varsóvia, exatamen­te como em qualquer outra parte do mundo.

Em seu primeiro discurso como presidente do grupo, Flo­rentyna disse aos convidados que o orgulho que sentia por aquele magnífico hotel misturava-se a um sentimento de tristeza pelo fato de seu falecido pai não poder estar presente para inaugurar ele mesmo o Baron de Varsóvia.

Em seu testamento, Abel deixara tudo para Florentyna, com a única exceção de um pequeno legado. O testamento descrevia a dádiva como uma pesada pulseira de prata rara, mas de valor inestimável, na qual estava gravada uma inscrição: Barão Abel Rosnovski.

O herdeiro desse legado era seu neto, William Abel Kane.

 

 

[1] Tropas regulares da Alta Escócia, criadas em 1739, que depois passaram a ser chamadas de Royal Highlanders. Deve-se o nome original às cores escuras dos tecidos axadrezados dos uniformes. (N. do T.)

[2] No original, referência ao slogan político "I like Ike", em que o jogo sonoro das palavras aproxima o sujeito que ama e o sujeito que é amado. (N. do T.)

[3] Uma Viola para o seu Orsino. Personagens de Twelfth Night, de Shakespeare. Viola, a heroína, após diversas situações farsescas, casa-se com Orsino, duque de Ilíria.

[4] Yankees. Referência ao clube de beisebol de Nova Iorque do American League. (N. do T.)

[5] Phi Beta Kappa. Círculo americano, muito fechado, cujos membros são geralmente estudantes universitários que se distinguiram por seus méritos acadêmicos. (N. do T.)

 

 

                                                                  Jeffrey Archer

 

 

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