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CAIU O MINISTÉRIO! / França Júnior
CAIU O MINISTÉRIO! / França Júnior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

França Júnior

 

 

 

 

COMÉDIA ORIGINAL DE COSTUMES EM TRÊS ATOS
PERSONAGENS: UM VENDEDOR DE BILHETES DE LOTERIA PRIMEIRO VENDEDOR DE JORNAIS SEGUNDO (idem) TERCEIRO (idem) QUARTO (idem) DR. RAUL MONTEIRO  ERNESTO GOULARTE PEREIRA DESEMBARGADOR ANASTÁCIO FLORINDO FRANCISCO COELHO  BÁRBARA COELHO (sua mulher) MARIQUINHAS (sua filha) FELICIANINHA  FILOMENA BEATRIZ  FILIPE FLECHA  MR. JAMES  CONSELHEIRO FELÍCIO DE BRITO (presidente do Conselho) MINISTRO DA GUERRA MINISTRO DO IMPÉRIO MINISTRO DE ESTRANGEIROS MINISTRO DA JUSTIÇA DR. MONTEIRINHO (ministro da marinha) SENADOR FELIZARDO PEREIRA INÁCIO ARRUDA RIBEIRO AZAMBUJA


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ATO I O teatro representa parte da rua do Ouvidor. Ao fundo a redação do "Globo", a casa imediata, a confeitaria do "Castelões" e o armarinho vizinho. O interior destes estabelecimentos deve ser visto pelos espectadores. Ao subir o pano a escada que comunica o pavimento inferior do escritório do "Globo" com o superior deve estar ocupada por muitos meninos, vendedores de gazetas; algumas pessoas bem vestidas conversam junto ao balcão. Em casa do "Castelões" muita gente conversa e come. No armarinho grupos de moças, encostadas ao balcão, conversam e escolhem fazendas. Grande movimento na rua.
 
CENA I Um vendedor de bilhetes de loteria, 1º, 2º, 3º e 4º vendedores de jornais, Doutor Raul Monteiro e Ernesto.
 
VENDEDOR DE BILHETES  Quem quer os duzentos contos? Os duzentos contos do Ipiranga!
 
PRIMEIRO VENDEDOR DE JORNAIS  A "Gazeta da Tarde", trazendo a queda do ministério, a lista da loteria, também trazendo a crônica parlamentar.
 
SEGUNDO VENDEDOR  A "Gazeta de Notícias". Traz a carta do Doutor Seabra.
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha".
 
QUARTO VENDEDOR A "Espada de Dâmocles", trazendo o grande escândalo da Câmara dos Deputados, a história do ministério, o movimento do porto, e também trazendo o assassinato da rua do Senado.
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha" e o "Cruzeiro".
 
RAUL MONTEIRO (que deve estar parado à porta do "Globo" a ler os telegramas; voltando-se e vendo Ernesto, que sai do "Castelões")  Oh! Ernesto, como vais?
 
ERNESTO  Bem. E tu?
 
RAUL  Então? Nada ainda?
 
ERNESTO  Ouvi dizer agora mesmo no Bernardo que foi chamado para organizar o ministério o Faria Soares.
 
RAUL  Ora! Ora! O Soares partiu ontem com a família para Teresópolis.
 
ERNESTO  É verdade; porém disseram-me que ontem mesmo recebeu o telegrama e que desce hoje. Aí vem o Goularte.
 
RAUL  Homem, o Goularte deve estar bem informado.
 
 
CENA II Os mesmos e Goularte.
 
RAUL  Oh! Goularte, quem foi o chamado?
 
GOULARTE  O Silveira de Assunção.
 
RAUL  O que estás dizendo?
 
GOULARTE  A pura verdade.
 
ERNESTO  Com os diabos! Por esta não esperava eu. Estou aqui, estou demitido.
 
RAUL  Mas isto é de fonte pura?
 
GOULARTE  E até já está organizado o ministério.
 
RAUL  Quem ficou na Fazenda?
 
GOULARTE  O Rocha.
 
RAUL  E na Justiça?
 
GOULARTE  O Brandão. Para a Guerra entrou o Felício; para a Agricultura o Barão de Botafogo.
 
ERNESTO  O Barão de Botafogo?
 
GOULARTE  Sim, pois não o conheces! É o Ladislau Medeiros.
 
ERNESTO  Ah! já sei.
 
GOULARTE  Para Estrangeiros o Visconde de Pedregulho; para a pasta do Império o Serzedelo.
 
RAUL  Misericórdia!
 
GOULARTE  E para a Marinha o Lucas Viriato.
 
RAUL  Lucas Viriato?! Quem é?
 
ERNESTO  Não o conheço.
 
GOULARTE  Eu também nunca o vi mais gordo, mas dizem que é um sujeito muito inteligente.
 
 
CENA III Os mesmos e Comendador Pereira.
 
PEREIRA  Bom dia, meus senhores. (Aperta-lhes as mãos)
 
RAUL  Ora viva, senhor Comendador.
 
PEREIRA  Então, já sabem?
 
RAUL  Acabamos de saber agora mesmo. O presidente do Conselho é o Silveira de Assunção.
 
PEREIRA  Não há tal, foi chamado, é verdade, mas não aceitou.
 
GOULARTE  Mas, senhor Comendador, eu sei... 
 
PEREIRA  Também eu sei que o homem esteve cinco horas em São Cristóvão, e que de lá saiu à meia-noite, sem se haver decidido coisa alguma.
 
RAUL (vendo Anastácio entrar pela direita)  Ora aí está quem nos vai dar notícias frescas.
 
ERNESTO  Quem é?
 
RAUL  O Conselheiro Anastácio, que ali vem. 
 
(Seguem para a direita, e formam um grupo)
 
GOULARTE  Chama-o.
 
 
CENA IV Os mesmos, Anastácio e vendedores.
 
VENDEDOR DE BILHETES (que juntamente com os outros tem passado pela rua, vendendo ao povo os objetos que apregoam durante as cenas anteriores)  Quem quer os duzentos contos do Ipiranga!
 
PRIMEIRO VENDEDOR  A "Gazeta da Tarde", a 40 réis.
 
SEGUNDO VENDEDOR  A "Gazeta de Notícias".
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha". Traz a queda do ministério. 
 
(Saem os vendedores)
 
RAUL  Senhor Conselheiro, satisfaça-nos a curiosidade. Quem é o homem que nos vai governar?
 
ANASTÁCIO  Pois ainda não sabem?
 
GOULARTE  São tantas as versões,...
 
ANASTÁCIO  Pensei que estivessem mais adiantados. Ora ouçam lá. (Tira um papelinho do bolso; todos preparam-se para ouvi-lo com atenção) Presidente do Conselho, Visconde da Pedra Funda; ministro do Império, André Gonzaga.
 
GOULARTE  Bem bom, bem bom.
 
ANASTÁCIO  Da Marinha, Bento Antônio de Campos.
 
RAUL  Não conheço.
 
ERNESTO   Nem eu.
 
GOULARTE  Nem eu.
 
PEREIRA  Nem eu.
 
ANASTÁCIO  Eu também não sei quem seja. Ouvi dizer que é um sujeito dos sertões de Minas.
 
RAUL  E por conseguinte muito entendido em coisas de mar.
 
ANASTÁCIO  Ministro da Fazenda, o Barão do Bico do Papagaio.
 
RAUL  Para a Fazenda?!
 
ANASTÁCIO  Sim, senhor.
 
RAUL  Porém este homem nunca deu provas de si. É pouco conhecido... Nas circunstâncias em que se acha o país.
 
GOULARTE  Não diga isto, e aquele à parte que ele deu ao Ramiro... Lembra-se, senhor Conselheiro?
 
ANASTÁCIO  Não.
 
GOULARTE  Um à parte dado na questão do Xingu.
 
RAUL  Era melhor que o tivessem deixado à parte. Vamos adiante.
 
ANASTÁCIO  Ministro da Guerra, Antônio Horta.
 
ERNESTO  Magnífico!
 
RAUL  Qual magnífico.
 
ANASTÁCIO  Da Agricultura, João Cesário, e fica na pasta dos Estrangeiros o presidente do Conselho.
 
RAUL  Lá estão pondo um telegrama na porta do "Globo". Vamos ver o que é. 
 
(Dirigem-se à porta do "Globo", ao redor da qual reúnem-se todos que estão em cena, e depois retiram-se. Ernesto entra no "Globo")
 
 
CENA V Dona Bárbara Coelho e Mariquinhas.
 
DONA BÁRBARA (entrando com Mariquinhas pela esquerda)  Que maçada. Se eu soubesse que esta maldita rua estava hoje neste estado, não tinha saído de casa.
 
MARIQUINHAS  Pois olhe, mamãe; é assim que eu gosto da rua do Ouvidor.
 
DONA BÁRBARA  Tomara eu já que se organize o ministério, só para assim ver se teu pai sossega. Encasquetou-se-lhe na cabeça que há de ser por força ministro.
 
MARIQUINHAS  E por que não, mamãe? Os outros são melhores do que ele?!
 
DONA BÁRBARA  E vive há três dias encerrado em casa, como um verdadeiro maluco. Por mais que lhe diga — seu Chico, vá para a Câmara, contente-se em ser deputado, que não é pouco, e o homem a dar-lhe. Já quando caiu o outro ministério foi a mesma coisa. Passa o dia inteiro a passear de um lado para o outro; assim que ouve o ruído de um carro, ou o tropel de cavalos corre para a janela, espreita pelas frestas da veneziana, e começa a dizer-me todo trêmulo: — E agora, é agora, Barbinha, mandaram-me chamar. De cinco em cinco minutos pergunta ao criado: — Não há alguma carta para mim? Que aflição de homem, Santo Deus! Aquilo já é moléstia! Parece que se ele não sair ministro desta vez, arrebenta!
 
MARIQUINHAS  Faz papai muito bem. Se eu fosse homem também havia de querer governar.
 
DONA BÁRBARA  Pois eu se fosse homem acabava com câmaras, com governo, com liberais, conservadores e republicanos e reformava este país.
 
 
CENA VI As mesmas e Felicianinha.
 
MARIQUINHAS  Gentes, Dona Felicianinha por aqui!
 
FELICIANINHA (com embrulhos)  É verdade. Como está, Dona Bárbara? (Aperta a mão de Bárbara e de Mariquinhas e beijam-se)
 
MARIQUINHAS  Como vai a Bibi? A Fifina está boa? Há muito tempo que não vejo a Cocota.
 
FELICIANINHA  Todos bons. Eu é que não tenho andado muito boa. Só a necessidade me faria sair hoje de casa.
 
DONA BÁRBARA  É o mesmo que me acontece.
 
FELICIANINHA  Fui ao Palais-Royal experimentar um vestido, fui depois ao dentista, entrei no Godinho para ver umas fitas para o vestido da Chiquinha... 
 
MARIQUINHAS  Nós também estivemos no Godinho. Não viu a Filomena Brito com a filha?
 
FELICIANINHA  Vi, por sinal que tanto uma como a outra estavam caiadas que era um Deus nos acuda.
 
DONA BÁRBARA  Andam constantemente assim. E a sirigaita da filha a estropiar palavras em francês, inglês, alemão e italiano, para mostrar aos circunstantes que já esteve na Europa.
 
FELICIANINHA  Eu acho uma coisa tão ridícula! E o que quer dizer vestir-se a mãe igual à filha!
 
DONA BÁRBARA  E moda cá da na terra. Andam as velhas por aí todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara! Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em Minas nunca vi disto e estou com cinquenta anos!
 
 
 
CENA VII Dona Bárbara, Mariquinhas, Felicianinha, Filomena e Beatriz.
 
MARIQUINHAS  Lá vem a Filomena com a filha.
 
DONA BÁRBARA  Olhem só que sirigaitas!
 
FILOMENA (saindo com Beatriz do armarinho do fundo)  Como está, Dona Bárbara? 
 
(Cumprimentam-se todas, beijando-se)
 
DONA BÁRBARA  Como está, minha amiga?
 
MARIQUINHAS (para Beatriz)  Sempre bonita e interessante.
 
DONA BÁRBARA (para Filomena)  E a senhora cada vez mais moça.
 
FILOMENA  São os seus olhos.
 
FELICIANINHA (para Beatriz)  Como tem passado?
 
BEATRIZ  Assim, assim. Çá vá doucement, ou como dizem os alemães: so, so.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Começa ela com a algaravia.
 
BEATRIZ Não tive o prazer de vê-la no último baile do Cassino. Esteve ravissant, esplendide. O high-life do Rio de Janeiro estava representado em tudo quanto possui de mais recherchè. O salão iluminado a giorno, e a last fashion exibia os seus mais belos esplendores. Prachtvoll, ausgezeichnet, como dizem os alemães.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Olha só para aquilo. Ausgetz... Parece que tem um pedaço de cará fervendo na boca.
 
FILOMENA  A Beatriz causou sensação. Não leram a descrição da sua toilette?
 
DONA BÁRBARA  Ouvi dizer alguma coisa a respeito.
 
FILOMENA  Pois saiu em todos os jornais, no "Globo", na "Gazetinha", na "Gazeta da Tarde", na "Gazeta de Notícias"...
 
BEATRIZ  O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill'or e inteiramente curta.
 
FELICIANINHA  Vestido curto para baile?
 
BEATRIZ  É a última moda.
 
MARIQUINHAS  Onde mandou fazê-lo?
 
FILOMENA  Veio da Europa.
 
BEATRIZ E foi feito pelo Worth.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Com toda a certeza foi feito em casa, com aviamentos comprados em algum armarinho muito cangueiro.
 
FILOMENA  Mas não vale a pena mandar vir vestidos da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisas.
 
BEATRIZ  O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas... enfim, tout ce qu'il y a de camelote.
 
FELICIANINHA  Não é tanto assim.
 
BEATRIZ  Agora mesmo acabamos de encontrar com as filhas do Trancoso, vestidas de um modo... 
 
FILOMENA  É verdade, vinham muito ridículas.
 
BEATRIZ  Escorridas, coitadas, que pareciam um chapéu de sol fechado. Sapristi!
 
FILOMENA  E onde é que foi a mulher do Seabra buscar aquele vestido branco todo cheio de fofinhos e crespinhos!
 
BEATRIZ  Parecia que estava vestida de tripas. C'est incroyable.
 
DONA BÁRBARA Deixe estar que na Europa também se há de ver muita coisa ridícula. Não é só aqui que... 
 
BEATRIZ  Disto lá nunca vi; pelo menos em Paris.
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Desfrutável! (Para Mariquinhas, alto) Menina, vamos embora, que já é tarde.
 
MARIQUINHAS  Adeus, Dona Beatriz.
 
BEATRIZ  Addio. (Beijam-se todas reciprocamente)
 
FILOMENA (para Dona Bárbara) Apareça; sabe que sou, fui e serei sempre sua amiga.
 
DONA BÁRBARA  Da mesma forma. E se assim não fosse também dizia-lhe logo; eu cá sou muito franca.
 
FILOMENA  É por isso é que a estimo e considero. 
 
(Saem Dona Bárbara, Mariquinhas e Felicianinha)
 
 
CENA VIII Beatriz e Filomena.
 
BEATRIZ (vendo Mariquinhas)  Olhe só como vai aquele chapéu especado no alto da cabeça.
 
FILOMENA E a mãe cada vez se veste pior. Não parece que já tem vindo ao Rio. Viste o Doutor Raul?
 
BEATRIZ  Não senhora.
 
FILOMENA  É singular! Por que desapareceu ele lá de casa?
 
BEATRIZ  Não sei! Alguma intriga talvez. Sou tão infeliz... 
 
FILOMENA  Pois olha, aquele era um excelente partido. Moço, talentoso.
 
BEATRIZ  Tout a fait chique.
 
FILOMENA  E tout a fait, (faz sinal de dinheiro) que é o principal.
 
BEATRIZ  Se papai fosse chamado agora para o ministério... 
 
 
CENA IX As mesmas, Raul e Goularte.
 
RAUL (entrando do fundo com Goularte e vendo Beatriz e Filomena)  Oh! diabo! lá está a mulher do Conselheiro Brito com a filha... Se me descobrem estou perdido.
 
GOULARTE Por quê?
 
RAUL Por quê? Porque a filha namora-me, desgraçado, julga-me muito rico, e noutro dia no Cassino, caindo eu na asneira de dizer-lhe que era bela, encantadora, essas banalidades, tu sabes, que costumamos dizer às moças nos bailes, o diabinho da rapariga fez-se vermelha, abaixou os olhos, e disse-me: — Senhor Doutor Raul, por que não me pede a papai?
 
GOULARTE  Pois pede-lhe.
 
RAUL  Nessa não caio eu! É pobre como Jó, e mulher sem isto (Sinal de dinheiro) está se ninando. Vamos embora. 
 
(Saem)
 
 
CENA X Filomena, Beatriz, Mister James e Pereira.
 
FILOMENA  E Mister James? Não me disseste que ele também?... 
 
BEATRIZ  Faz-me a corte, é verdade; porém aquilo é pássaro bisnau, e não cai assim no laço com duas razões.
 
FILOMENA  Dizem que é o inglês mais rico do Rio de Janeiro.
 
BEATRIZ  Isto sei eu.
 
MR. JAMES (saindo do "Castelões" com Pereira e vendo as duas)  How? Mim não póde fica aqui; vai embora depressa, senhor Comendador.
 
PEREIRA Por quê?
 
MR. JAMES  Semana passada, mim estar na baile de Cassino, diz aquele menina, que ele estar bonita; menina estar estúpida, e diz a mim — How? Por que voucê não mi pede a papai?
 
PEREIRA  Bravo! E por que não se casa com ela?
 
MR. JAMES  Oh! no; mim não estar vem a Brasil pra casa. Mim vem aqui pra faz negócia. Menina não tem dinheiro, casamento estar mau negócia. No, no, no quer. Eu vai embora. (Sai para um lado, e Pereira para outro)
 
FILOMENA (tirando uma carteirinha do bolso)  Vejamos o que há ainda a fazer.
 
BEATRIZ  Vamos à Notre-Dame ver os colarinhos e ao Boulevard do Manuel Ribeiro.
 
FILOMENA  É verdade; vamos Já. 
 
(Saem)
 
 
CENA XI Ernesto e Filipe Flecha.
 
FILIPE (saindo do armarinho com uma caixa de papelão debaixo do braço, a Ernesto, que sai do "Globo") Senhor Ernesto, vê aquela mulher?
 
ERNESTO  Qual delas? Uma é a senhora do Conselheiro Brito, a outra é a filha.
 
FILIPE  Aquela mulher é a minha desgraça.
 
ERNESTO  Quem?... A filha?
 
FILIPE  Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana, no "Castelões". Comia uma empada! Com que graça ela segurava a apetitosa iguaria entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. (Imita) Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento.
 
ERNESTO  Mas, desventurado, não sabes?... 
 
FILIPE  Já sei o que vai dizer-me. Que sou um simples caixeiro de armarinho e que não posso aspirar à mão daquele anjo. Mas dentro do peito deste caixeiro pulsa um coração de poeta. Não pode imaginar as torturas por que tenho passado desde o instante em que a vi... Vi-a pela primeira vez no "Castelões"... 
 
ERNESTO  Comia uma empada. Já me disseste.
 
FILIPE  Mas o que ainda não lhe disse é que por causa dela tenho chuchado as maiores descomposturas dos patrões, e que em um belo dia ficarei na rua a tocar leques com bandurras. A sua imagem não me sai um só instante da cabeça. Estou no armarinho; se me encomendam linha dou marcas de lamparinas; se gritam retrós preto trago sabonetes; a um velho que me pediu ontem suspensórios meti-lhe nas mãos uma bisnaga! O homem gritou, o patrão chamoume de burro, os fregueses tomaram pagode comigo. Estou desmoralizado.
 
ERNESTO  Está bom, já sei.
 
FILIPE  Não pode saber, seu Ernesto.
 
ERNESTO  Olha, se o patrão te vê de lá a conversar aqui, estás arranjado.
 
FILIPE  Noutro dia à noite, quando os outros caixeiros dormiam, eu levantei-me, acendi a vela, e escrevi este soneto. (Tira um papel do bolso e lê) Ouça só o princípio: Quando te vejo radiante e bela, Por entre rendas, filós e escumilha Meu coração ardente se humilha, E minha alma murmura é ela!
 
ERNESTO  Magnífico! Está muito bom.
 
FILIPE  Mandei-o para a "Gazetinha". Pois querem saber o que fizeram? (Tirando a "Gazetinha" do bolso e mostrando) Leia. É aqui na correspondência.
 
ERNESTO (lendo)  "Sr. P. F."
 
FILIPE  Filipe Flecha, sou eu.
 
ERNESTO (lendo)  "Os seus versos cheiram a metro e a balcão; o poeta não passa talvez de um caixeiro de armarinho." (Rindo) É boa! É boa!
 
FILIPE  O maldito filó e a escumilha comprometeram-me. Não leio mais este papelucho. (Sobe) Lá está ela parada à porta do Farani.
 
 
CENA XII Os mesmos, 1º Vendedor, 2° Vendedor, 3° idem, 4° idem (saindo do "Globo").
 
PRIMEIRO VENDEDOR  O "Globo" da tarde a 40 réis.
 
SEGUNDO VENDEDOR  O "Globo", trazendo o ministério e a lista da loteria.
 
TERCEIRO VENDEDOR  O "Globo".
 
QUARTO VENDEDOR  O "Globo" a 40 réis.
 
ERNESTO  Vejamos se já há alguma coisa de novo. (Compra. Para Filipe) Não queres saber quem foi chamado para o ministério?
 
FILIPE  Que me importa o ministério? O meu ministério é ela! Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões". Ela comia... 
 
ERNESTO  Uma empada, com os diabos, já sei; não me amoles. (Sai)
 
 
CENA XIII Filipe e Vendedor de Bilhetes.
 
VENDEDOR DE BILHETES A sorte grande do Ipiranga!... Quem quer os duzentos contos!
 
FILIPE  Oh! Como te amo!
 
VENDEDOR (para Filipe)  Não quer os duzentos contos?
 
FILIPE  Deixa-me.
 
VENDEDOR  Fique com este número que é o último.
 
FILIPE  Não quero... 
 
VENDEDOR  Eu tenho um palpite de que o senhor apanha a taluda.
 
FILIPE Homem, vá-se embora.
 
VENDEDOR  Veja só o número.
 
FILIPE (à parte)  Quem sabe se não está aqui a minha felicidade?!
 
VENDEDOR  Então, não se tenta?
 
FILIPE (à parte, tirando dinheiro do bolso)  Lá se vão os últimos vinte e cinco mil réis, que me restam do ordenado deste mês. (Alto) Tome. Não quero ver o número. (Sai o vendedor) Lá seguiu ela para a rua dos Ourives. (Sai correndo)
 
 
 
CENA XIV Mister James e Raul.
 
RAUL (saindo da direita e lendo o "Globo")  "À hora em que entrou a nossa folha para o prelo, ainda não se sabia..." (Continua a ler baixo)
 
MR. JAMES (que vem lendo também o "Globo", entrando por outro lado)  "Os últimos telegramas da Europa anunciam..." (Continua a ler baixo, encontrando-se com Raul)
 
RAUL  Oh! Mister James! Como está?
 
MR. JAMES  How, senhor Raul, como tem passada?
 
RAUL  Então sabe já alguma coisa acerca do ministério?
 
MR. JAMES  Não estar já bem informada. É difícil este crise. Neste país tem duas coisas que não estar bom; é criadas e ministéria. Criadas não quer pára em casa, e ministéria dura três, quatro meses, bumba! Vai em terra. Brasileira não pode suporta governo muite tempa. Quando ministra começa a faz alguma coisa, tudo grita — No presta, homem estar estúpida, homem estar tratanta... 
 
RAUL  Infelizmente é a pura verdade.
 
MR. JAMES  Quando outra sobe diz mesma coisa, muda presidenta de província, subdelegada, inspetor de quarteirão, e país, em vez de anda, estar sempre parada.
 
RAUL  A verdade nua e crua.
 
MR. JAMES  Voucê escusa, se mim diz isto. Tudo quanto faz neste terra não é pra inglês ver?
 
RAUL  Assim dizem.
 
MR. JAMES  Pois então mim estar inglês, mim estar na direita de faz crítica do Brasil.
 
RAUL A maldita política é que tem sido sempre a nossa desgraça.
 
MR. JAMES  Oh! Yes. Vem liberal, faz couse boe, vem conservador desmanche couse boe de liberal.
 
RAUL  E vice-versa.
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
RAUL  E os republicanos?
 
MR. JAMES  How! Não fala em republicanas. Estar gente toda very good. Mas mim não gosta de republicana que faz barulha no meio da rua; governo dá emprega e republicana cala sua boca.
 
RAUL  Mas no número destes que calam a boca com empregos não se compreendem os republicanos evolucionistas; aqueles que, como eu, querem o ideal dos governos sem sangue derramado, sem comoções sociais... 
 
MR. JAMES  Oh! Republicana evolucionista estar a primeira de todos republicanas. Espera de braço cruzado que república aparece; e enquanto república não aparece, republicana estar ministra, deputada, senador, conselheira, tuda. Republicana evolucionista estar partida que tem por partida tira partida de todas as partidas.
 
RAUL  Não é nos partidos que está o nosso mal.
 
MR. JAMES  Sua mal de voucês está no língua. Brasileira fala muito, faz discursa very beautiful, mas país não anda pra adiante com discursa.
 
RAUL  Tem razão.
 
MR. JAMES  País precisa de braças, de comércia, de indústria, de estradas de ferro... 
 
RAUL  É verdade, e a sua estrada para o Corcovado?
 
MR. JAMES  Mim estar em ajuste com companhia. Mas quando pretende compra estrada e que tem promessa de governa pra privilégia, maldita governa cai, e mim deixa de ganha muita dinheira.
 
RAUL  Mas pode obter o privilégio com esta gente.
 
MR. JAMES  Oh! Yes! Para alcança privilégia em que ganha dinheira mim faz tudo, tudo.
 
RAUL  Se eu pudesse alcançar também... 
 
MR. JAMES  Uma privilégia?
 
RAUL  Não; contento-me com um emprego.
 
RAUL  Mas esta notícia é verdadeira?
 
ERNESTO  Está à porta de todos os jornais. Na "Gazetinha", na "Gazeta de Notícias"...
 
GOULARTE  Na "Gazeta da Tarde", no "Cruzeiro"... no "Jornal do Comércio"... 
 
RAUL  Lá estão pregando um papel no "Globo".
 
(Reúnem-se todos junto ao "Globo", menos Raul, Filipe e Mister James, que ficam no proscênio)
 
RAUL (à parte)  Beatriz julga-me rico, ofereço-lhe a mão, que aliás ela já pediu, e apanho um emprego.
 
MR. JAMES (à parte)  Filha de presidenta de conselha estar apaixonada por mim; mim com certeza apanha privilégia.
 
FILIPE (à parte)  Eu amo-a, adoro-a cada vez mais. Ah! que se eu apanho a sorte grande!!
 
RAUL  Está chovendo. (Abre o chapéu-de-chuva)
 
MR. JAMES  É verdade. (Abre o guarda-chuva. Todos abrem guarda-chuvas, menos Filipe)
 
FILIPE (à parte)  Lá vem ela!
 
RAUL (à parte)  Ela!
 
MR. JAMES (vendo Beatriz)  How! 
 
(Ao entrar em cena Beatriz, acompanhada de Filomena, Raul dá-lhe o braço e cobre-a com o chapéu, James dá o braço a Filomena e cobre-a)
 
RAUL  Dou-lhe os meus sinceros parabéns.
 
MR. JAMES  Minhas felicitaçãos.
 
FILOMENA  Obrigada.
 
FILIPE (tomando os embrulhos de Filomena e Beatriz)  Façam o favor, minhas senhoras!
 
BEATRIZ  Não se incomode.
 
FILIPE (à parte)  Que mão, Santo Deus! Estou aqui, estou-lhe em casa.
 
 
 
ATO II Sala elegantemente mobiliada. Portas ao fundo e laterais.
 
CENA I Ernesto e Filipe.
 
ERNESTO (entrando, a Filipe, que deve estar tomando notas em uma pequena carteira)  Filipe?! Por aqui?!
 
FILIPE  E então?
 
ERNESTO  És também pretendente?
 
FILIPE  Não; sou repórter.
 
ERNESTO  Repórter?
 
FILIPE  É verdade. O amor ou é a minha perdição ou há de ser talvez a causa da minha felicidade. Venho aqui todos os dias, extasio-me diante daquelas formas divinas... Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões", ela... 
 
ERNESTO  Comia uma empada.
 
FILIPE  Ah! Já lhe disse?
 
ERNESTO  Milhares de vezes; já sei esta história de cor e salteado. Mas como diabo te fizeste repórter?
 
FILIPE  Desde o dia em que tive a felicidade de encontrar essa mulher na estrada sinuosa, espinhosa, lacrimosa da existência, tornei-me completamente outro homem. A atmosfera do armarinho pesavame, o balcão acachapava-me, o metro desmoralizava-me, e a ideia de ter um patrão encafifava-me... Eu sentia dentro de mim um não sei quê que me dizia: — Filipe Flecha, tu não nasceste para vender agulhas, alfazema e lamparinas marca de pau, ergue a cabeça... 
 
ERNESTO  E ergueste-a.
 
FILIPE  Não, abaixei-a para evitar um cascudo que o patrão pretendia darme em um belo dia em que estava a olhar para a rua, em vez de servir as freguesas, e não voltei mais à loja. Achando-me só, sem em prego, disse com os meus botões: — é preciso que eu faça alguma coisa. Escrever para o público, ver o meu nome em letra redonda, o senhor sabe, foi sempre a minha cachaça. Fiz-me repórter, nas horas vagas escrevo versos, e daqui para jornalista é um pulo.
 
ERNESTO  És mais feliz do que eu.
 
FILIPE  Por quê?
 
ERNESTO  Porque não pretendes sentar-te a uma grande mesa que há neste país, chamada do orçamento, e onde, com bem raras exceções, todos têm o seu talher. Nesta mesa uns banqueteiam-se, outros comem, outros apenas lambiscam. E é para lambiscar um bocadinho, que venho procurar o ministro.
 
FILIPE  Ele não deve tardar.
 
ERNESTO  Fui classificado em primeiro lugar no último concurso da secretaria.
 
FILIPE  Então está com certeza nomeado.
 
ERNESTO  Se a isso não se opuser um senhor de baraço e cutelo, chamado empenho, que tudo ata e desata nesta terra, e a quem até os mais poderosos curvam a cabeça.
 
FILIPE  Aí vem o ministro.
 
 
CENA II Os mesmos, Conselheiro Felício de Brito.
 
ERNESTO (cumprimentando)  Às ordens de Sua Excelência.
 
FILIPE (cumprimentando)  Excelentíssimo.
 
BRITO  O que desejam?
 
ERNESTO  Vinha trazer esta carta para Sua Excelência e implorar-lhe a sua valiosa proteção.
 
BRITO (depois de ler a carta)  Sim, senhor. Diga ao Senhor Senador que hei de fazer todo o possível por servi-lo. Vá descansado.
 
ERNESTO  Eu tenho a observar a Sua Excelência... 
 
BRITO  Já sei, já sei.
 
ERNESTO  Que fui classificado em primeiro lugar.
 
BRITO  Já sei, já sei. Vá. (Ernesto cumprimenta e sai. A Filipe, que deve estar a fazer muitos cumprimentos) O que quer? Ah! É o senhor?
 
FILIPE  Humilíssimo servo de sua excelência. Desejava saber se já há alguma coisa de definitivo.
 
BRITO  Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida a pasta da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades... Não, não diga isto.
 
FILIPE  E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze dias que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro para a Marinha.
 
BRITO  O verdadeiro é não dizer nada. Venha cá logo, e comunicar-lhe-ei então tudo o que houver ocorrido.
 
FILIPE (à parte)  Onde estará ela?
 
BRITO  Vá, vá, venha logo.
 
FILIPE (à parte)  Se eu pudesse vê-la. (Alto) Excelentíssimo. (Cumprimenta e sai)
 
 
CENA III Brito, Filomena e Beatriz.
 
BRITO (toca a campainha; aparece um criado)  Não deixe ninguém entrar nesta sala. 
 
(O criado inclina-se)
 
FILOMENA (que entra com Beatriz, pela esquerda)  E as minhas visitas?
 
BEATRIZ  E as minhas, papai? Voyons. Ça ne se fait pas.
 
BRITO  Porém, minha querida Beatriz, espero aqui os meus colegas, temos que tratar de negócios do Estado, que são negócios muito sério.
 
BEATRIZ  Ça ne fait rien.
 
FILOMENA  Ao menos dê ordem para que deixem entrar Mr. James.
 
BEATRIZ  E o Senhor Raul também.
 
BRITO Valha-me Deus! Vocês alcançam de mim tudo ó que querem. (Para o criado) Quando o Senhor James e o Senhor Raul chegarem, manda-os entrar. (O criado cumprimenta e sai) Estão satisfeitas?
 
BEATRIZ  I love you, meu querido papai.
 
FILOMENA (reparando a sala)  E então? A sala já não parece a mesma!
 
BEATRIZ  E as cortinas estão assorti com a mobília, Mas este tapete é um escarro.
 
FILOMENA  É verdade. Felício, precisamos comprar um tapete. Vi ontem um muito bonito no Costrejean.
 
BRITO  Não compro mais coisa alguma, minha senhora. A senhora pensa porventura que eu aceitei esta prebenda para ainda em cima arruinar-me?
 
FILOMENA  Quando se está em certa posição, não se deve fazer figura ridícula.
 
BEATRIZ  Noblesse oblige, papai.
 
FILOMENA  Não sei o que quer dizer ser ministro e andar de bonde como os outros, ter uma casa modestamente mobiliada, como os outros, não receber, não dar bailes, não dar jantares, como os outros, vestir-se como os outros... 
 
BEATRIZ  É verdade. C'est ridicule.
 
BRITO  Mas, minhas filhas, não há ninguém por aí que não saiba que tenho poucos recursos, que vivo apenas dos meus ordenados. A vida de um homem de Estado é devassada e esmerilhada por todos, desde os mais ínfimos até os mais elevados representantes da escala social. O que dirão se me virem amanhã ostentando um luxo incompatível com os meus haveres?
 
FILOMENA  Se a gente for dar satisfações a tudo o que dizem... 
 
BRITO  E olha que aqui não se cochila para dizer que um ministro é ladrão. O que mais querem vocês de mim? Já obrigaram-me a alugar esta casa em Botafogo.
 
FILOMENA  Devíamos ficar morando em Catumbi?
 
BRITO  E o que tem Catumbi?
 
BEATRIZ  Ora papai.
 
BRITO  Sim, o que tem?
 
BEATRIZ  Não é um bairro como il faut.
 
BRITO  Obrigaram-me a assinar o Teatro Lírico e... camarote.
 
FILOMENA Está visto. Havia de ser interessante ver a família do presidente do Conselho sentada nas cadeiras... 
 
BEATRIZ  Como qualquer Sinhá Ritinha da Prainha ou da Gamboa... Dieu m'en garde! Eu preferiria lá não ir.
 
BRITO  Obrigaram-me mais a ter criados estrangeiros de casaca e gravata branca, quando eu podia perfeitamente arranjar a festa com o Paulo, o Zebedeu e a Maria Angélica.
 
BEATRIZ  Pois não, são frescos, sobretudo o Zebedeu. No outro dia, à mesa de jantar, mamãe disse-lhe: — Vá buscar lá dentro uma garrafa de vinho do Porto, mas tome cuidado, não a sacuda. Quando chegou com a garrafa, mamãe perguntou-lhe: — Sacudiu? — Não senhora, diz ele, mas vou sacudir agora. E começa, zás, zás, zás. (Faz menção de quem sacode) Quelle ímbecile. Aquilo é que os alemães chamam — ein Schafskopf!
 
BRITO  Até a minha roupa vocês querem reformar.
 
FILOMENA  Com franqueza, Felício, a tua sobrecasaca já estava muito sebosa!
 
BEATRIZ  Papai quer fazer a mesma figura que faz o ministro do Império?
 
BRITO  É um homem muito inteligente. Tem um grande tino administrativo.
 
BEATRIZ  Tem, sim, senhor; mas era melhor que ele tivesse um paletó na razão direta da inteligência. E depois, como come, Santo Deus! Segura na faca assim, olhe, (mostra) e mete-a na boca até o cabo, toda atulhada de comida. Choking.
 
BRITO  Em compensação o ministro de Estrangeiros.
 
BEATRIZ  É o melhorzinho deles. Mas não sabe línguas.
 
BRITO  Estás enganada, fala muito bem francês.
 
BEATRIZ  Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor. Diz monsíù, negligè, bordó, e outras que tais.
 
BRITO  Enfim há quinze dias apenas que subi ao poder e já estou cheio de dívidas!
 
FILOMENA  Não é tanto assim.
 
BRITO  Só ao compadre Bastos devo dez contos de réis.
 
FILOMENA  E se não fosse ele, estaríamos representando um papel bem triste.
 
BEATRIZ  Não poderíamos receber às quintas-feiras o high life do Rio de Janeiro.
 
BRITO  Sim, esse high lífe que aqui vem dançar o cotillon, ouvir boa música, saborear-me os vinhos; e que abandonar-me-á com a mesma facilidade com que hoje me adula, no dia em que eu não puder mais dispor dos empregos públicos.
 
BEATRIZ  Papai não tem razão.
 
BRITO  Pois bem, minha filha, quer tenha ou não razão, só te peço uma coisa, e faço igual pedido à tua mãe. Não exijam de mim impossíveis. Vocês sabem que nada lhes posso negar. (Tirando o relógio e vendo as horas) Os meus companheiros não tardam. Vou ao meu gabinete; já volto.
 
 
CENA IV Filomena, Beatriz e Mister James.
 
BEATRIZ (sentando-se e lendo um livro, que deve trazer na mão)  É muito bem escrito este romance de Manzoni.
 
FILOMENA  Um tapete novo aqui deve fazer um vistão. Não achas?
 
MR. JAMES (com um rolo debaixo do braço)  Mim pode entra?
 
FILOMENA  Oh! Mr. James!
 
MR. JAMES  Como está, senhorra? (Para Beatriz) Vosmecê vai bem?
 
FILOMENA  Pensei que não viesse.
 
MR. JAMES  Oh! mim dá palavra que vem; mim não falta sua palavra.
 
BEATRIZ  Assim deve ser.
 
FILOMENA  Trouxe os seus papéis?
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
BEATRIZ  O seu projeto é a great attraction do dia.
 
MR. JAMES  Projeto estar muita grandiosa. (Desenrola o papel e mostra) Carros sai daqui de Cosme Velha, e sobe Corcovada em vinte minutas.
 
BEATRIZ  E estes cachorros que estão aqui pintados?
 
MR. JAMES  Senhorras não entende deste coisa: mim fala com pai de vosmecê, explica o que é todos esses cachorras.
 
FILOMENA  Tudo quanto temos de bom devemos aos senhores estrangeiros.
 
BEATRIZ  C'est vrai. Os brasileiros, com raras exceções, não se ocupam destas coisas.
 
MR. JAMES  Brasileira estar muito inteligenta; mas estar também muito preguiça. Passa vida no rua do Ouvidor a fala de política, pensa só de política de manhã até a noite. Brasileira quer estar deputada, juiz de paz, vereador... Vereador ganha dinheira?
 
FILOMENA  Não, senhor; é um cargo gratuito.
 
MR. JAMES  Então mim não sabe como tudo quer ser vereador. Senhorra já fala com sua marida a respeita de minha projeta?
 
FILOMENA  Não, senhor, mas hei de falar-lhe.
 
MR. JAMES  Sua marida estar engenheira ou agricultor?
 
BEATRIZ  Papai é doutor em Direito.
 
MR. JAMES  É ministra de Império?
 
BEATRIZ  Também doutor em Direito.
 
MR. JAMES  Ministra de Estrangeiras?
 
FILOMENA  Doutor em Direito.
 
MR. JAMES  How! Toda ministéria estar doutor em direita?
 
BEATRIZ  Sim, senhor.
 
MR. JAMES  Na escola de doutor em direita estuda marinha, aprende planta batatas e café, e sabe todas essas coisas de guerra?
 
FILOMENA  Não, senhor.
 
BEATRIZ  Estudam-se leis.
 
MR. JAMES  No Brasil estar tudo doutor em direita. País no indireita assim. Mim não sabe se estar incomodando senhora. 
 
(Sentam-se)
 
BEATRIZ  Oh! o senhor nunca nos incomoda, dá-nos sempre muito prazer.
 
MR. JAMES  Pois mim tem também multo prazer em conversa com vosmecê; (para Beatriz) pois eu gosta muito de brasileiras.
 
BEATRIZ  Mas as inglesas são very beautiful. Eu vi em Londres, no HydePark, verdadeiras formosuras.
 
MR. JAMES  Oh! yes. Inglesas estar muito bonitas, mas brasileira tem mais... tem mais... Como chama este palavra... Eu tem no ponta da língua... Brasileira tem mais pasquim.
 
FILOMENA  Pasquim?!
 
MR. JAMES  No, no, como chama este graça de brasileira?
 
BEATRIZ  Ah! quindins.
 
MR. JAMES  Oh! yes, very well. Quindins.
 
FILOMENA  Muito bem, Mr. James. Falta agora que o senhor confirme o que acaba de dizer casando-se com uma brasileira.
 
MR. JAMES  Mim no pode casa, por ora, porque só tem cinquenta mil libras sterlinas; mas se mim arranja este privilégia, dá palavra que fica em Brasil e casa com brasileira.
 
FILOMENA  Pelo que vejo já está enfeitiçado pelos quindins de alguma?
 
MR. JAMES  Não duvida, senhora, e crê que feitiça não estar muito longe daqui. (Olha significativamente para Beatriz)
 
BEATRIZ (à parte)  Isto já eu sabia.
 
FILOMENA (à parte)  É a sorte grande!
 
 
CENA V Os mesmos e Brito.
 
BRITO (vendo o relógio)  Ainda nada. Oh! Mister James. Como está?
 
MR. JAMES  Criada de Sua Excelência. (Conversa com Beatriz)
 
FILOMENA (levando Brito para um lado) 
 
Este inglês possui uma fortuna de mais de quinhentos contos, parece gostar de Beatriz... Se nós soubermos levá-lo, poderemos fazer a felicidade da menina.
 
BRITO  E o que queres que faça?
 
FILOMENA  Que lhe concedas o privilégio que ele pede.
 
BRITO  Mas, senhora, estas questões não dependem só de mim. Eu não quero comprometer-me.
 
FILOMENA  Então para que te serve ser presidente do Conselho?
 
BRITO  Mas eu não posso nem devo dispor das coisas do Estado para arranjos de família. A senhora já me endividou e quer agora desacreditar-me.
 
FILOMENA  Pois isto há de se fazer. Mr. James, meu marido quer conversar com o senhor a respeito do seu negócio.
 
BRITO  Estarei às suas ordens, senhor James; porém um pouco mais tarde. Espero os meus colegas.
 
MR. JAMES  A que horas mim pode procura Sua Excelência?
 
BRITO  Às duas horas.
 
MR. JAMES Até logo. (Cumprimenta e sai)
 
 
CENA VI Os mesmos, menos Mister James.
 
BRITO  A senhora ainda há de comprometer-me. (Saí)
 
FILOMENA  Dizem todos que é um projeto grandioso.
 
BEATRIZ  Vou acabar a leitura deste romance.
 
FILOMENA  Eu vou dar as ordens para a partida desta noite.
 
 
CENA VII Dona Bárbara, Criado e o Desembargador Francisco Coelho.
 
CRIADO  Sua Excelência não está em casa.
 
COELHO  Quero falar com as senhoras. Aqui tem o meu cartão. 
 
(Criado cumprimenta e sai)
 
DONA BÁRBARA  Está em casa com toda a certeza; mas negou-se.
 
COELHO  Isto sei eu; e por isso é que entrei.
 
DONA BÁRBARA Eu não devia vir. Estas sirigaitas aborrecem-me extraordinariamente.
 
COELHO  Mas, minha filha, tu pensas que em política a gente sobe unicamente por seus belos olhos? Não sou rico, já estou velho, não tenho pai alcaide, se deixar fugir as ocasiões, quando serei ministro?
 
DONA BÁRBARA  E para que você quer ser ministro, seu Chico?
 
COELHO  Ora, tens às vezes certas perguntas? Para quê? Para governar, para fazer o que os outros fazem.
 
DONA BÁRBARA  Você não tem sabido governar a fazenda, e quer governar o Estado!
 
COELHO  A senhora não entende destas coisas.
 
DONA BÁRBARA  Ora, diga cá! Suponha que você é nomeado ministro.
 
COELHO  Sim, senhora.
 
DONA BÁRBARA  Perde a cadeira na Câmara. Tem de sujeitar-se a uma nova eleição.
 
COELHO  E o que tem isto?
 
DONA BÁRBARA  O que tem?! É que se você cair nesta asneira, seu Chico, toma uma derrota, tão certo como eu chamar-me Bárbara Benvinda da Purificação Coelho.
 
COELHO  Eu, ministro, derrotado?
 
DONA BÁRBARA  E por que não? Você é melhor do que os outros?
 
 
CENA VIII Os mesmos, Raul, Beatriz e Filomena.
 
RAUL  Senhor Desembargador.
 
COELHO  Senhor doutor.
 
RAUL  Minha senhora.
 
FILOMENA  Fiz-lhe esperar muito?
 
BEATRIZ (para Raul)  Não sabia que estava também aqui.
 
COELHO  O conselheiro não está em casa?
 
FILOMENA  Está no seu gabinete.
 
DONA BÁRBARA (baixo)  O que te dizia eu?
 
FILOMENA  Quer falar-lhe?
 
COELHO  Se fosse possível.
 
FILOMENA  Entre.
 
COELHO  Com licença. (Sai)
 
 
CENA IX Raul, Beatriz, Dona Bárbara e Filomena.
 
DONA BÁRBARA  Como vão os seus pequenos?
 
FILOMENA  O Chiquinho vai bem; a Rosinha é que tem passado mal.
 
BEATRIZ (a Raul)  Por que não tem aparecido?
 
RAUL  Sabe que o meu desejo era viver sempre a seu lado.
 
BEATRIZ  Está nas suas mãos.
 
RAUL  Se fosse possível... 
 
DONA BÁRBARA  Quem sabe se ela não sofre de vermes?
 
FILOMENA O próprio médico não sabe o que é. Sente umas coisas que sobem e descem; às vezes fica meia apatetada.
 
DONA BÁRBARA  Querem ver que é mau olhado!
 
FILOMENA  Ora, a senhora acredita nessas coisas?!
 
DONA BÁRBARA  É porque a senhora ainda não viu o que eu presenciei com estes que a terra há de comer.
 
FILOMENA  Ah! ah! ah! O senhor crê em mau olhado, senhor Raul?
 
RAUL  Não, minha senhora; apenas no bom olhado de uns olhos feiticeiros. (Olha para Beatriz significativamente)
 
DONA BÁRBARA  Pois eu vi lá em Minas uma criatura, que estava bem atacada. E em dez minutos ficou boa.
 
FILOMENA  Com a homeopatia?
 
DONA BÁRBARA  Com uma oração.
 
FILOMENA  Ah! E como é esta oração?!
 
DONA BÁRBARA  A mulher chamava-se Francisca. Molharam um ramo de arruda em água benta e rezaram-lhe o seguinte: "Francisca, se tens mau olhado, ou olhos atravessados, eu te benzo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Deus te olhe e Deus te desolhe, e Deus te tire essa mau olhado, que entre a carne e os ossos, tens criado; que saia do tutano e vá para os ossos, que saia dos ossos e vá para a carne, que saia da carne e vá para a pele, e que daí saia, e vá para o Rio Jordão, onde não faça mal a nenhum cristão." É infalível. Experimente.
 
BEATRIZ (baixo a Raul)  Quelle bêtise.
 
RAUL  Não acredita na influência dos olhos?
 
BEATRIZ  Sim; mas não creio na eficácia daquelas orações.
 
RAUL  E sabe ler neles?
 
BEATRIZ  Quelque chose.
 
RAUL  O que lhe dizem os meus?
 
BEATRIZ  Que o senhor é um grande bandoleiro.
 
RAUL  Não, não é isto o que eles dizem.
 
BEATRIZ  O que dizem então? Voyons.
 
RAUL  Que aqui dentro há um coração que pulsa pela senhora e só para a senhora.
 
BEATRIZ  Non lo credo.
 
RAUL  Dona Beatriz, se estivesse em condições de fazê-la feliz, hoje mesmo dirigia-me a seu pai, e pedia-lhe o que mais ambiciono neste mundo — a sua mão.
 
BEATRIZ  E o que lhe falta para tornar-me feliz?
 
RAUL  Uma posição social.
 
BEATRIZ  O senhor não é bacharel em Direito?
 
RAUL  É verdade.
 
BEATRIZ  Alors... 
 
RAUL  Porém, se o ser bacharel em Direito fosse um emprego, haveria muito pouca gente desempregada no Brasil. Seu pai está hoje no governo, poderia lançar as suas vistas sobre mim. Como seríamos felizes um ao lado do outro.
 
BEATRIZ  Eu vou falar com mamãe. Comunicar-lhe-ei as suas intenções a meu respeito, e dar-lhe-ei a resposta.
 
RAUL  Advogue bem a minha causa, ou antes a nossa causa.
 
BEATRIZ Sim. (À parte) E eu que o julgava desinteressado. Oh! les hommes! les hommes!
 
FILOMENA  Por que não veio à nossa última partida, senhor Raul?
 
BEATRIZ (para Raul)  Dançamos um cotillon que durou quase duas horas.
 
RAUL  Quem marcava?
 
BEATRIZ  O ministro da Bélgica. Oh! que j'aime le cotillon
 
DONA BÁRBARA  O que vem a ser isto de cotiáo?
 
BEATRIZ  Uma dança arrebatadora.
 
 
CENA X Os mesmos e Coelho.
 
COELHO (zangado)  Vamos embora.
 
FILOMENA  Já?!
 
DONA BÁRBARA (baixo a Coelho)  Então; o que arranjaste?
 
COELHO (baixo) 
 
O que arranjei?! Nada; mas ele arranjou uma oposição de arrancar couro e cabelo. Hei de mostrar-lhe o que valho. Estão aqui estão na rua.
 
DONA BÁRBARA (baixo)  Bem feito.
 
COELHO (baixo)  Vamos embora.
 
FILOMENA (para Coelho e Bárbara, que se despedem)  Espero que apareçam mais vezes.
 
COELHO  Obrigado, minha senhora. 
 
(Saem)
 
RAUL  Há de permitir-me também... 
 
FILOMENA  Então até a noite.
 
RAUL  Até a noite. (Sai)
 
 
CENA XI Filomena e Beatriz.
 
BEATRIZ  O Senhor Raul acaba agora mesmo de pedir-me a mão.
 
FILOMENA  Agora mesmo?
 
BEATRIZ  Mas sob uma condição.
 
FILOMENA  Qual é?
 
BEATRIZ  De arranjar-lhe com papai um emprego. Veja só a senhora o que são os homens de hoje!
 
FILOMENA  E que lhe respondeste?
 
BEATRIZ  Que havia de falar com vosmecê e que dar-lhe-ia depois a resposta.
 
FILOMENA  Muito bem. Não lhe digas nada, por ora, enquanto não se decidir o negócio do inglês. Tenho mais fé em Mr. James. Aquilo é que se pode chamar um bom partido.
 
BEATRIZ  E ele quererá casar comigo?
 
FILOMENA  Ora, não quer ele outra coisa.
 
 
CENA XII Criado, Ministro da Guerra, Ministro da Justiça, Ministro do Império, Ministro de Estrangeiros, Filomena e Beatriz.
 
CRIADO (na porta)  Sua Excelência o Senhor Ministro da Guerra.
 
MINISTRO DA GUERRA  Minhas senhoras. (Cumprimenta Beatriz)
 
FILOMENA (para o criado) — Vá chamar seu amo. 
 
(O criado sai pela porta da esquerda)
 
BEATRIZ  Como está sua senhora?
 
MINISTRO DA GUERRA  Bem, obrigado, minha senhora.
 
FILOMENA (despedindo-se)  Com licença. (Sai com Beatriz)
 
 
CENA XIII Os mesmos e Brito, menos Filomena e Beatriz.
 
BRITO  Meu caro conselheiro. Os outros colegas ainda não vieram?
 
MINISTRO DA GUERRA  Aí está o ministro da Justiça.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Conselheiro... 
 
MINISTRO DA GUERRA  E do Império. 
 
(Entra o ministro do Império)
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O nosso colega de Estrangeiros aí vem.
 
BRITO Ei-lo. (Entra o ministro de Estrangeiros) Meus senhores, precisamos conjurar seriamente as dificuldades que nos cercam.
 
MINISTRO DA GUERRA  Apoiado.
 
BRITO  Há quinze dias apenas que subimos ao poder, e já se notam muitos claros nas fileiras da maioria.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  A oposição se engrossa a olhos vistos.
 
BRITO  Agora mesmo acaba de sair daqui o Desembargador Coelho. É mais um descontente que passa para o outro lado.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Coelho? Ainda ontem, pode-se dizer, aspirava a ser o líder da maioria.
 
BRITO  É verdade! Porém suspira por uma pasta, e nas circunstâncias atuais não é possível.
 
 
CENA XIV O Criado, Brito, Ministro da Guerra, Ministro da Justiça, Ministro do Império, Ministro de Estrangeiros, Conselheiro Felizardo e Doutor Monteirinho.
 
CRIADO (à parte) O Senhor Conselheiro Felizardo.
 
BRITO  Oh! Senhor Conselheiro. (Cumprimentam-se todos) Esperava ansiosamente por vossa excelência.
 
FELIZARDO  Estou às ordens de vossa excelência.
 
BRITO  O seu nome, o prestígio de que goza, a sua dedicação às ideias dominantes, são títulos que muito o habilitam.
 
FELIZARDO  Bondade de meus correligionários.
 
MINISTRO DO IMPÉRIO  Pura justiça.
 
BRITO  Precisamos do apoio de vossa excelência, como do ar que respiramos. A pasta da Marinha ainda está vaga.
 
FELIZARDO  Já estou velho... 
 
BRITO  Não nos animamos a oferecê-la. Longe de nós semelhante pensamento! O lugar de vossa excelência é na presidência do Conselho.
 
FELIZARDO  Se vossas excelências permitem, dou um homem por mim.
 
MINISTRO DO IMPÉRIO  Basta ser de sua confiança... 
 
BRITO  Para ser recebido de braços abertos.
 
FELIZARDO (apresentando o Doutor Monteirinho) 
 
Aqui está o homem, o Doutor Monteiro, meu sobrinho, filho de minha irmã Maria José; e que acaba de chegar da Europa, razão pela qual ainda não tomou assento na Câmara.
 
BRITO (admirado)  Senhor Doutor, folgo muito de conhecê-lo. (Baixo a Felizardo) Acho-o, porém, tão mocinho.
 
FELIZARDO  Formou-se o ano passado em São Paulo. (Baixo) Que inteligência, meu amigo!
 
DR. MONTEIRINHO  Saí apenas dos bancos da academia, é verdade, meus senhores; mas tenho procurado estudar com afinco todas as grandes questões sociais que se agitam atualmente. A minha pena já é conhecida no jornalismo diário e nas revistas científicas. Na polêmica, nas questões literárias, nos debates políticos, nas diversas manifestações, enfim, da atividade intelectual, tenho feito o possível por criar um nome.
 
FELIZARDO (baixo)  É muito hábil.
 
BRITO (baixo)  É verdade.
 
FELIZARDO (baixo)  É um canário.
 
DR. MONTEIRINHO  Se não fossem as influências mesológicas assaz acanhadas, em que vivem nesta terra as inteligências que procuram abrir a corola aos raios ardentes da luz, eu já teria talvez aparecido, a despeito dos meus verdes anos.
 
BRITO (baixo a Felizardo) 
 
Que idade tem?
 
FELIZARDO  Que idade tens, Cazuza?
 
DR. MONTEIRINHO  Vinte e dois anos.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Senhor Doutor Monteiro não é... 
 
FELIZARDO  Chame-o Doutor Monteirinho. É o nome por que ele é conhecido.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Doutor Monteirinho não é o autor da célebre poesia O grito da escravidão, que veio publicada no Correio Paulistano?
 
DR. MONTEIRINHO  E que foi transcrita em todos os jornais do Império. Um seu criado. Já cultivei a poesia em tempos que lá vão. Hoje, em vez de tanger a lira clorótica do romantismo ou de dedilhar as cordas, afinadas ao sabor moderno, dos poetas realistas, leio Spencer, Schopenhauer, Buckner, Littré, todos esses grandes vultos, que constituem o apostolado das sociedades modernas.
 
FELIZARDO (baixo, a Brito)  Este rapaz vai fazer um figurão no ministério.
 
BRITO  Creio. Terá, porém, ele a experiência dos negócios públicos?
 
FELIZARDO  Não lhe dê cuidado. Fica sob as minhas vistas: eu saberei guiá-lo.
 
DR. MONTEIRINHO  A grande naturalização é uma das questões atuais mais importantes para o Brasil.
 
BRITO  Podemos contar, portanto, com o apoio decidido de vossa excelência.
 
FELIZARDO  Se até aqui eu quebrava lanças por este ministério... 
 
BRITO  Lá isso é verdade.
 
FELIZARDO  Imagine agora... (Olhando para Monteirinho) O meu Cazuzinha!
 
DR. MONTEIRINHO  E a questão das terras? Já leram a Questão Irlandesa, de Henry George? É um livro admiravelmente escrito. Um livro do futuro!
 
BRITO  Senhor Doutor Monteirinho, temos a honra de considerar vossa excelência no número dos nossos colegas.
 
DR. MONTEIRINHO  Oh! Senhor Conselheiro.
 
FELIZARDO  Cazuza, faz por seguir o caminho de teu tio. Vou correndo para a casa. Que alegrão vai ter a Maria José. (Sai)
 
 
CENA XV Os mesmos e James, menos Felizardo.
 
BRITO  Vamos para o gabinete.
 
MR. JAMES (aparecendo na porta)  Duas horas em ponta.
 
BRITO (à parte)  Que maçada. Não me lembrava mais dele. (James entra. Alto) Meus senhores, apresento-lhes Mr. James, que requer um privilégio que parece ser de grande utilidade.
 
DR. MONTEIRINHO  Vejamos.
 
MR. JAMES (desenrolando o papel e mostrando)  Aqui tem, senhoras.
 
DR. MONTEIRINHO  O que vem a ser isto?
 
BRITO  Uma estrada especial para o Corcovado.
 
MR. JAMES  Maquinisma estar muito simples. Em vez de duas trilhas, ou de três trilhas, como tem sistema adotada, mim coloca uma só trilha larga, de meu invenção.
 
DR. MONTEIRINHO  É bitola estreita?
 
MR. JAMES  Oh! estreitíssima! É bitola zero.
 
DR. MONTEIRINHO  E como se sustém o carro?
 
MR. JAMES  Perfeitamente bem.
 
DR. MONTEIRINHO  O sistema parece ser facílimo.
 
MR. JAMES  E estar muito econômica, senhorr.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Mas não vejo máquina, vejo apenas cachorros. O que quer dizer isto?
 
MR. JAMES  Ai é que está tuda.
 
BRITO  Não compreendo. Tenha a bondade de explicar-me.
 
MR. JAMES  Ideia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras.
 
DR. MONTEIRINHO  Não era precisa a explicação. Nós todos sabemos que cinófero vem do grego cynos, que quer dizer cão, e feren, que significa puxar, etc.
 
MR. JAMES  Muito bem, senhorr.
 
DR. MONTEIRINHO  Agora o que se quer saber é como é que os cachorros puxam.
 
MR. JAMES  Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha!
 
DR. MONTEIRINHO  E de quantos cachorros precisa o senhor para o tráfego dos trens diários do Cosme Velho ao Corcovado?
 
MR. JAMES  Mim precisa de força de cinquenta cachorras por trem; mas deve muda cachorra em todas as viagens.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Santo Deus! É preciso uma cachorrada enorme.
 
MR. JAMES  Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas cachorras de Inglaterra.
 
BRITO  Mas se estes animais forem atacados de hidrofobia não há perigo para os passageiros?
 
DR. MONTEIRINHO  Eu entendo que não se pode conceder este privilégio, sem se ouvir primeiro a junta de higiene.
 
MR. JAMES  Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se cachorra estar danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais velocidade.
 
BRITO  Em resumo, qual é a sua pretensão?
 
MR. JAMES  Mim quer privilégia para introduzir minha sistema em Brasil, e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil para empresa de caminha de ferro.
 
BRITO  Mas o cachorro não está ainda classificado como motor na nossa legislação de caminhos de ferro.
 
DR. MONTEIRINHO  Neste caso deve levar-se a questão ao poder legislativo.
 
BRITO  Está bem: nós vamos ver e resolveremos como for de justiça.
 
MR. JAMES  Em quanto tempa decide este negócia?
 
DR. MONTEIRINHO  Vamos resolver.
 
MINISTRO NO IMPÉRIO  Tenha paciência, espere.
 
BRITO  Às suas ordens. (Despede-se, os outros despedem-se de James e saem pela esquerda)
 
 
CENA XVI James, só.
 
MR. JAMES  Tem paciência, espera! Sistema de brasileira. Time is money. Eu fala com mulher, e arranja tuda. (Sai)
 
 
CENA XVII Beatriz e depois Filipe.
 
BEATRIZ  Vejamos se aqui posso concluir sossegada a leitura deste romance. (Lê)
 
FILIPE  Ela?! Oh! Eu atiro-me e confesso tudo. Ora adeus! (Tropeça em uma cadeira)
 
BEATRIZ (revolvendo-se)  Quem é?
 
FILIPE  Filipe Flecha, um criado de vossa excelência. Sou repórter.
 
BEATRIZ  Papai está agora em conselho com os outros ministros.
 
FILIPE  Como é bela! 
 
(Beatriz continua a ler)
 
BEATRIZ (à parte)  Este estafermo pretenderá ficar aqui. Que bruta faccia.
 
FILIPE  Eu atiro-me-lhe aos pés. Coragem! (Encaminha-se para Beatriz)
 
BEATRIZ  Quer alguma coisa?
 
FILIPE (tirando uma carteira)  O senhor seu pai onde nasceu, minha senhora?
 
BEATRIZ  No Pará.
 
FILIPE (escrevendo na carteira)  Onde formou-se?
 
BEATRIZ  Em Pernambuco.
 
FILIPE (escrevendo)  Que empregos tem exercido? Que condecorações tem?
 
BEATRIZ  Mas para que o senhor quer saber tudo isto? Oh! qu'il est drole!
 
FILIPE  É que quando ele morrer a notícia para o jornal já está pronta. (À parte) Oh! que diabo de asneira!
 
BEATRIZ  O senhor está doido?
 
FILIPE (ajoelhando-se)  Sim, doido, minha senhora, doido varrido. Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões". A senhora comia uma empada... (Beatriz procura tocar a campainha) O que vai fazer?
 
BEATRIZ  Chamar alguém para pô-lo daqui para fora.
 
FILIPE  Pelo amor de Deus, não faça escândalo. (Levantando-se) Eu vou, eu vou, mas creia que ninguém no mundo a idolatra como eu! (Sai olhando amorosamente para Beatriz)
 
BEATRIZ  Pobre louco! Mas este ao menos não me falou em emprego nem em privilégio! (Senta-se e continua a leitura)
 
 
 
ATO III Sala de espera em casa do Conselheiro Brito.
 
CENA I
 
Brito e Filomena.
 
FILOMENA  Podias ter decidido o negócio perfeitamente sem levá-lo às Câmaras.
 
BRITO  Como?
 
FILOMENA  Como? Colocassem-me na Presidência do Conselho, que eu te mostraria.
 
BRITO  Mas, Filomena, tu não sabes que se tratava de uma espécie completamente nova, que o governo... 
 
FILOMENA  Tanto melhor! Se a espécie era completamente nova, o governo devia resolver por si e não abrir o mal precedente de consultar a Câmara.
 
BRITO  Olha, queres saber de uma coisa? Eu merecia que me vestissem uma camisola de força, por me haver metido em semelhante entrosga.
 
FILOMENA  Ora, qual entrosga! O negócio era muito simples. Tratava-se de uma estrada para o Corcovado... 
 
BRITO  Mas de uma estrada especial, com carros movidos por cachorros... 
 
FILOMENA  E o que tem os cachorros?
 
BRITO É que levantou-se a dúvida se o cachorro podia ser considerado motor, se a estrada estava nas condições da lei.
 
FILOMENA  Pois eu presidente do Conselho cortava a dúvida, dizendo: — o cachorro é motor, e concedia o privilégio.
 
BRITO  Tu não entendes destas coisas.
 
FILOMENA  E o que se lucrou em consultar a Câmara? Em assanhar a oposição, e formar no seio do parlamento dois partidos, o dos cachorros e o dos que se batem, como leões, contra os cachorros.
 
BRITO  E que partidos!
 
FILOMENA  E lá se vai o privilégio, falto à palavra que dei ao inglês, e o casamento da menina, víspora!
 
BRITO  Mas o que queres que faça?
 
FILOMENA  Que envides todos os esforços para que o projeto passe! Hoje é a última discussão... 
 
BRITO  E o último dia talvez do ministério.
 
FILOMENA  Quais são os deputados que votam contra?
 
BRITO  Uma infinidade.
 
FILOMENA  O Elói é cachorro?
 
BRITO  Sim, senhora.
 
FILOMENA  O Azambuja?
 
BRITO  Cachorro.
 
FILOMENA  O Pereira da Rocha?
 
BRITO  Este é de fila.
 
FILOMENA  O Vicente Coelho?
 
BRITO  Era cachorro; mas passou anteontem para o outro lado.
 
FILOMENA  E o Barbosa?
 
BRITO  Está assim, assim. Talvez passe hoje para cachorro.
 
FILOMENA  Ah! Que se as mulheres tivessem direitos políticos e pudessem representar o país... 
 
BRITO  O que fazias?
 
FILOMENA  O privilégio havia de passar, custasse o que custasse. Eu é que devia estar no teu lugar, e tu no meu. És um mingau, não nasceste para a luta.
 
BRITO  Mas com a breca! Queres que faça questão de gabinete?
 
FILOMENA  Quero que faças tudo, contanto que o privilégio seja concedido.
 
BRITO (resoluto)  Pois bem; farei questão de gabinete, e assim fico livre mais depressa desta maldita túnica de Nessus.
 
 
CENA II Os mesmos e o Doutor Monteirinho.
 
DR. MONTEIRINHO (cumprimentando Filomena)  Minha senhora. (Para Brito) Vamos para a Câmara, conselheiro. É hoje a grande batalha.
 
BRITO  Estou às suas ordens.
 
DR. MONTEIRINHO  Havemos de vencer, custe o que custar.
 
FILOMENA  Doutor Monteirinho, empregue todo o fogo de sua palavra.
 
DR. MONTEIRINHO  Fique descansada, minha senhora. Levo o meu discurso na ponta da língua. Hei de tratar a parte técnica, sobretudo, com o maior cuidado. Na discussão deste projeto ou conquisto os foros de estadista, ou caio para nunca mais erguer a fronte.
 
FILOMENA  Bravo! Bravo!
 
BRITO  Vamos, conselheiro, são horas.
 
FILOMENA (para Brito)  Vai. Que Deus te inspire. 
 
(Saem Monteiro e Brito)
 
 
CENA III Filomena e Beatriz.
 
FILOMENA  Que boa madrugada! Onze horas!
 
BEATRIZ (beijando Filomena)  Não posso acordar-me cedo, por mais esforços que faça. Vosmecê não sai hoje?
 
FILOMENA  Não. Estou muito nervosa.
 
BEATRIZ  É mais uma razão para sair.
 
FILOMENA  Se cai o projeto e com ele o ministério... 
 
BEATRIZ  Estamos arranjadas.
 
FILOMENA  Lá se vai o inglês.
 
BEATRIZ  E o Sr. Raul também. (À parte) Se ao menos aquele pobre doido que ofereceu-me o coração... (Alto) Ora, será o que Deus quiser. (Mirando-se ao espelho, canta) La donna é mobile Qual piuma al vento. Muta d'accento E di pensiero. O paquete francês deve chegar hoje?
 
FILOMENA  Creio que sim.
 
BEATRIZ  Estou ansiosa por ver os vestidos de verão que encomendamos.
 
 
CENA IV Beatriz, Filomena e Criado.
 
CRIADO (com uma gaiola com papagaio)  Veio da parte do Senhor Tinoco, com esta carta. (Entrega a carta a Filomena)
 
FILOMENA (depois de ler a carta)  Estes pretendentes entendem que devem encher-me a casa de bichos. Leva para dentro. 
 
(O criado sai)
 
BEATRIZ  E coisa célebre, pelos presentes pode-se conhecer a que província ou a que lugar pertencem os pretendentes. Os do Ceará mandam corrupiões; os do Pará redes, paus de guaraná e macacos de cheiro; os de Pernambuco, cajus secos e abacaxis; os de São Paulo, formigas vestidas, figos em calda.
 
FILOMENA  E arapongas. Se o pretendente é do Maranhão, a mulher do ministro não passa sem lenço de labirinto.
 
BEATRIZ  E se é da Bahia, lá vêm as quartinhas, o azeite de cheiro e os saguis.
 
FILOMENA  Os do Rio Grande do Sul exprimem a gratidão com línguas salgadas e origones.
 
BEATRIZ  E os de Minas com queijos e rolos de fumo. Mas, coitados! Muito sofrem! Só a lida em que eles vivem. — Venha hoje, venha amanhã, espere um pouco, agora não é possível!
 
FILOMENA  É para admirar que a esta hora já não esteja a sala cheia deles.
 
BEATRIZ  É verdade.
 
 
CENA V Filomena, Beatriz e Dona Bárbara.
 
DONA BÁRBARA  Desculpe-me se fui entrando sem anúncio prévio.
 
FILOMENA  A Senhora Dona Bárbara é sempre recebida com prazer a qualquer hora.
 
DONA BÁRBARA  E é por saber disto que vim vê-la, apesar do que se tem passado.
 
FILOMENA  Creio que entre nós nada se tem passado que possa porventura interromper, sequer de leve, as nossas relações amistosas.
 
DONA BÁRBARA  Quero dizer do que se tem passado entre os nossos maridos.
 
FILOMENA  Também não sei o que possa ter havido entre eles. Pertencem ao mesmo credo político, ainda ontem para bem dizer, eram amigos... 
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Se não digo na bochecha desta emproada tudo quanto sinto, estouro. (Alto) Eram amigos, é verdade, porém... meu marido tem razões especiais... Ele está na Câmara cumprindo o seu dever.
 
FILOMENA  Faz muito bem.
 
DONA BÁRBARA  Não é hoje que se discute um célebre privilégio de uma estrada para o Corcovado?
 
FILOMENA  Creio que sim.
 
DONA BÁRBARA  Não sabia; passando por acaso pela rua do Ouvidor... 
 
BEATRIZ  Como é fingida esta vecchía strega!
 
DONA BÁRBARA  Ouvi os garotos apregoarem a "Gazeta da Tarde", traz a notícia da grande patota dos cachorros! E por entre os grupos dos indivíduos que conversavam no ponto dos bondes, pude distinguir estas frases, cujo sentido não compreendi bem: arranjos de família, ministro patoteiro, casamento da filha com o inglês... 
 
FILOMENA  É verdade, minha senhora; mas o que não sabe é que por entre aqueles grupos estava a mulher despeitada de um ministro gorado e que era esta a que mais gritava.
 
DONA BÁRBARA  Um ministro gorado?!
 
BEATRIZ  Sim. Un ministre manqué.
 
DONA BÁRBARA (para Beatriz)  Minha senhora, tenha a bondade de falar em português, se quer que a entenda.
 
FILOMENA  Eu falarei português claro. O ministro gorado é... 
 
BEATRIZ  Seu marido... voila tout.
 
FILOMENA  E a mulher despeitada... 
 
DONA BÁRBARA  Sou eu?!
 
BEATRIZ  Sans doute.
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Eu arrebento. (Alto) Pois já que as senhoras são tão positivas dirlhes-ei que meu marido nunca teve a ideia de fazer parte de semelhante ministério. Ele é um homem de muito bom senso e sobretudo de muita probidade.
 
FILOMENA  Observo à senhora que estou em minha casa.
 
BEATRIZ (à parte)  C'est incroyable! Dreadful.
 
DONA BÁRBARA  Foi a senhora a primeira que esqueceu esta circunstância.
 
FILOMENA  Não me obrigue... 
 
DONA BÁRBARA  Eu retiro-me para nunca mais pôr os pés aqui.
 
FILOMENA  Estimo muito.
 
DONA BÁRBARA  E fique sabendo que o Chico... 
 
FILOMENA (com dignidade)  Minha senhora. (Cumprimenta e sai)
 
BEATRIZ  Au revoir. (Sai)
 
DONA BÁRBARA  Emproada, sirigaita, patoteira! Hei de tomar uma desforra. (Sai zangada)
 
 
CENA VI Pereira, Inácio, Arruda, Ribeiro, Azambuja, mais pessoas e o Criado.
 
CRIADO  Sua Excelência não está. Os senhores que quiserem esperar podem ficar nesta sala.
 
PEREIRA  O homem está em casa.
 
INÁCIO  Eu cá hei de falar-lhe hoje, por força, haja o que houver.
 
ARRUDA  E eu também. Só se ele não passar por aqui.
 
RIBEIRO  O que é bem possível, porque a casa tem saída para outra rua.
 
AZAMBUJA  Há quatro meses que ando neste inferno.
 
RIBEIRO  Console-se comigo, que ando pretendendo um lugar há cinco anos, e ainda não mo deram.
 
ARRUDA  Há cinco anos?!
 
RIBEIRO  Sim, senhor.
 
AZAMBUJA  E tem esperanças de obtê-lo?
 
RIBEIRO  Olé! Já atravessei seis ministérios. Venho aqui duas vezes por dia.
 
INÁCIO  E eu que vim dos confins do Amazonas; e aqui estou há seis meses a fazer despesas, hospedado na casa do Eiras, com uma numerosa família, composta de mulher, seis filhos, duas cunhadas, três escravas, quatorze canastras, um papagaio e um corrupião!
 
 
CENA VIII Os mesmos e Ernesto.
 
ERNESTO  Meus senhores.
 
PEREIRA  Oh! Senhor Ernesto.
 
ERNESTO  Como está, senhor Pereira?
 
PEREIRA  O seu negócio? Ainda nada?
 
ERNESTO  Qual! Trago agora aqui uma carta... Vamos ver se com esta arranjo o que quero. É de um deputado mineiro governista.
 
PEREIRA  É bom empenho?
 
ERNESTO  Quem me arranjou foi um negociante da rua dos Beneditinos, em cuja casa acha-se hospedado o tal deputado.
 
RIBEIRO  Meu amigo, vá à fonte limpa, procure um deputado da oposição e digo-lhe desde já que está servido.
 
ERNESTO  Muito se sofre!
 
AZAMBUJA  É verdade.
 
 
CENA VIII Os mesmos e Filipe.
 
FILIPE  Adeus, senhor Ernesto.
 
ERNESTO  Adeus, Filipe.
 
FILIPE  Ainda perde seu tempo em vir por aqui?
 
ERNESTO  Por quê?
 
FILIPE  Porque o ministério está morto!
 
PEREIRA  Caiu?!
 
FILIPE  A esta hora já deve ter caído. A rua do Ouvidor está assim. (Fechando a mão) Não se pode entrar na Câmara. Há gente nas galerias como terra.
 
ERNESTO  O partido dos cachorros está bravo?
 
FILIPE  Os cachorros?! Estão danados! A tal estrada não passa, não, mas é o mesmo. O Doutor Monteirinho levantou-se para falar... 
 
ERNESTO  Ah! Ele falou hoje?
 
FILIPE  Qual! Não pôde dizer uma palavra. Rompeu uma vaia das galerias, mas uma vaia de tal ordem, que foi preciso entrar a força armada na Câmara.
 
PEREIRA  Lá se vai o meu lugar da Alfândega.
 
AZAMBUJA  E o meu.
 
RIBEIRO  E o meu.
 
FILIPE (levando Ernesto para um lado)  Ainda não a vi hoje.
 
ERNESTO  Mas é verdade tudo isto?
 
FILIPE  Como é bela!
 
ERNESTO  Com os diabos! que transtorno!
 
FILIPE  Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões"... 
 
ERNESTO  Comia uma empada, comia uma empada... 
 
FILIPE  É isso mesmo.
 
ERNESTO  Irra! Não me amoles.
 
PEREIRA (para Ernesto)  O senhor quer saber onde está a minha esperança?
 
ERNESTO  Onde?
 
PEREIRA (tirando um bilhete de loteria do bolso)  Aqui neste bilhete do Ipiranga.
 
FILIPE  Eu também tenho um. (Vendo na carteira) Querem ver que o perdi! Não, cá está. A esta hora já deve ter andado a roda. Com a breca, nem me lembrava! (Olhando para dentro) Se pudesse ao menos verlhe a pontinha do nariz.
 
PEREIRA  Vou ver o que tirei. (Sai)
 
FILIPE  E eu também. Mas qual! Sou de um caiporismo horrendo. Adeus, senhor Ernesto. (Olhando para todos os lados) Onde estará ela?! (Sai)
 
 
CENA IX Os mesmos, menos Pereira e Filipe e Doutor Raul.
 
ERNESTO  Esta notícia veio transtornar-me os planos.
 
AZAMBUJA  Talvez seja mentira.
 
ERNESTO  As más novas são sempre verdadeiras.
 
RAUL  Ora, vivam, meus senhores!
 
ERNESTO  Doutor Raul, o que há acerca do ministério?
 
RAUL  Dizem que está em crise.
 
ERNESTO  Mas há esperanças?
 
RAUL  Hum!... Não sei. Vejo as coisas muito embrulhadas.
 
 
CENA X Os mesmos e Mister James.
 
RAUL  Oh! Mr. James! Fazia-o pela Câmara.
 
MR. JAMES  Mim só sai de casa hoje pra vem aqui... 
 
RAUL  Os negócios estão feios.
 
MR. JAMES  Oh! Yes, muito feias.
 
RIBEIRO (a Ernesto)
 
Este é o tal inglês da patota de que os jornais falam hoje?
 
ERNESTO  É o bicho.
 
MR. JAMES  Você quer sabe de uma coisa. Mim estar muito stupíde.
 
RAUL  Por quê?
 
MR. JAMES  Eu já deve saber que este ministéria não pode dura muite tempo, e mim cai na asneira de faz negócia com ele.
 
RAUL  Mas em que se fundava para saber disto?
 
MR. JAMES  Ora escuta vosmincê, presidenta de Conselho onde estar nascida?
 
RAUL  No Pará.
 
MR. JAMES  Ministra de Império?
 
RAUL  Em São Paulo.
 
MR. JAMES  Ministra de Justiça?
 
RAUL  Creio que é de Piauí.
 
MR. JAMES  No senhor; de Paraíba.
 
RAUL  Ou isso.
 
MR. JAMES  Ministra de Marinha estar de Alagoas, ministra de Estrangeiros... 
 
RAUL  Este é do Paraná.
 
MR. JAMES  Yes. Ministra de Guerra estar de Maranhão, de Fazenda, Rio de Janeiro.
 
RAUL  Mas o que tem isto?
 
MR. JAMES  Não tem uma só ministra de Bahia. E ministéria sem baiana — estar defunta logo, senhor.
 
RAUL  Tem razão.
 
MR. JAMES  Baiana estar gente muito poderosa. Não se pode esquece dela.
 
RAUL  O ministério estava fraco, lá isso é verdade.
 
MR. JAMES  E tem inda mais; Ministra da Marinha... 
 
RAUL  O Doutor Monteirinho?
 
MR. JAMES  Yes. Ministra da Marinha estar muito pequenina.
 
RAUL  Muito moço é que o senhor quer dizer?
 
MR. JAMES  All right. No pode ser estadista e governa país logo que sai de escola. É preciso aprende primeiro, aprende muito, senhor. Todo mundo estar caçoanda, e chama ministra de Cazuzinhe. O senhor sabe dizer o que é Cazuzinhe?
 
RAUL  É um nome de família.
 
MR. JAMES  How? Mas família fica em casa, e no tem nada com ministéria. Vosmecês aqui têm costume de chama homem de estado de Juquinha, Lulu, Fernandinha. Governa estar muito sem-cerimônia.
 
 
CENA XI Os mesmos, Beatriz e Filomena.
 
MR. JAMES  Como está, senhorra?
 
RAUL  Minhas senhoras.
 
FILOMENA  Veio da Câmara? MR. JAMES  No senhorra.
 
FILOMENA  Pois não foi lá? No dia em que se deve decidir o seu negócio... 
 
BEATRIZ (a Raul)  Mamãe ainda não teve tempo de falar com papai acerca da sua pretensão.
 
MR. JAMES  Meu negócia estar perdida.
 
FILOMENA  Tenho fé que não.
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
 
CENA XII Os mesmos e Felizardo.
 
FELIZARDO (entrando apressado) Caiu o ministério!
 
FILOMENA  Caiu! Ai! Falta-me a luz! (Cai desmaiada em uma cadeira)
 
BEATRIZ (correndo)  Mamãe.
 
RAUL  Dona Filomena!
 
MR. JAMES (para todos)  Ó no incomoda! Vai passa já.
 
ERNESTO  Ora sebo! (Sai)
 
INÁCIO  Ora bolas. (Sai)
 
ARRUDA  Ora pílulas. (Sai)
 
RIBEIRO  Ora, com os diabos. (Sai)
 
AZAMBUJA  Ora... (Sai)
 
MR. JAMES (vendo Filomena levantar-se)  Estar pronta, já passou.
 
FELIZARDO  E o pobre do Cazuzinha que tinha tanta coisa que fazer! Também lhes digo, que se ele consegue falar, a despeito das vaias da galeria, o ministério tinha vida por cinco anos, pelo menos.
 
RAUL  Deveras?
 
FELIZARDO  É um rapaz muito hábil. O senhor não imagina que discurso tinha ele preparado. Ontem recitou-mo todo. Sabia-o na ponta da língua.
 
RAUL  Foi uma pena! (À parte) E lá se foi o meu emprego, que é o que mais sinto.
 
FELIZARDO  Como não vai ficar a Maria José quando souber da notícia!
 
RAUL (a Beatriz)  Minha senhora; creio estar desligado dos compromissos que contraí para com vossa excelência.
 
BEATRIZ Eu já o sabia; não era preciso mo dizer. O que o senhor doutor queria era uma posição social e não a minha mão!
 
RAUL (à parte)  Façamos cara de não ter compreendido.
 
 
CENA XIII Felizardo, Raul, Beatriz, Filomena, Mister James, Brito e Doutor Monteirinho.
 
BRITO (abraçando Filomena)  Minha Filomena, tenho necessidade de abraçar-te. Vem cá, Beatriz, abraça-me também. (Beatriz abraça) Foram vocês que me perderam; mas como isto é bom.
 
MR. JAMES  Mim sente muito derrota de vossa excelência; agradece tudo que faz pela minha privilégia e pede desde já a vossa excelência um apresentação para nova ministéria que tem de subir.
 
FELIZARDO (que deve estar abraçado com Monteirinho)  Ah! Cazuza! Não há gosto perfeito neste mundo!
 
DR. MONTEIRINHO  E mamãe, que não teve a ventura de me ver de fardão!
 
FELIZARDO  Mas há de tê-la muito breve; eu te prometo.
 
 
CENA XIV Os mesmos e Criado.
 
CRIADO  Trouxeram estes jornais e esta carta. (Sai)
 
BRITO  O que será? (vendo o sobrescrito da carta, para Filomena) É para ti.
 
FILOMENA (abrindo a carta e lendo)  "Minha senhora, tenho a honra de enviar a vossa excelência o último número da Espada de Dâmocles, que acaba de sair agora mesmo e de chamar a atenção de vossa excelência para a notícia, publicada sob o título À última hora. Sua veneradora e criada, Bárbara Coelho."(Fecha a carta) Que infame!
 
BRITO  Lê. (Filomena quer rasgar o jornal) Lê, eu terei a coragem de ouvir.
 
FILOMENA (lendo)  "Caiu finalmente o ministério das patotas. Parabéns aos nossos concidadãos, estamos livres do homem que mais tem sugado os cofres públicos em proveito dos seus afilhados."
 
BRITO  Saio do ministério mais pobre do que entrei, porque estou crivado de dívidas, e com a pecha de ladrão!
 
FILOMENA  E o que pretendes fazer?
 
 
BRITO  Nada neste país, infelizmente, esta é a sorte de quase todos que descem do poder.
 
 
CENA XV Filomena, Raul, Doutor Monteirinho, Beatriz, Mister James, Felizardo, Brito e Filipe. 
 
MR. JAMES (a Filipe que entra às carreiras, ofegante, e cai-lhe desmaiado nos braços) 
 
How! Tudo estar desmaia nesta casa!
 
FILOMENA  Vão ver depressa vinagre. (Raul corre para dentro)
 
BEATRIZ  Como ele está pálido! Vou buscar água de Colônia. (Corre para dentro)
 
MR. JAMES  Oh! nó, nó, é melhor traz cognac.
 
DR. MONTEIRINHO  Vou buscá-lo. (Sai correndo)
 
BRITO (batendo-lhe nas mãos)  Senhor, senhor! É o pobre do repórter!
 
BEATRIZ  Aqui está. (Põe água de Colônia no lenço e chega-lhe ao nariz. Filipe abre os olhos) Ça y est! Il est gueri!
 
FILIPE  Onde estou? Ah! (Saí dos braços de Mister James)
 
DR. MONTEIRINHO  Cá está o conhaque. Já não é preciso?
 
BRITO  O que tem?
 
FILIPE (não podendo falar)  Comprei este bilhete. (Mostra-o, tirando-o do bolso) Vou ver a lista... 
 
MR. JAMES  Branca.
 
FILIPE  E tirei duzentos contos!
 
FILOMENA  Duzentos contos!
 
BEATRIZ  Ah! Bah!
 
FILIPE (ajoelhando-se aos pés de Beatriz)  Minha senhora, eu adoro-a, idolatro-a. Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões", a senhora comia uma empada. Quer aceitar a minha mão?
 
BEATRIZ  De tout mon coeur.
 
MR. JAMES  All right! Boa negócia.COMÉDIA ORIGINAL DE COSTUMES EM TRÊS ATOS
PERSONAGENS: UM VENDEDOR DE BILHETES DE LOTERIA PRIMEIRO VENDEDOR DE JORNAIS SEGUNDO (idem) TERCEIRO (idem) QUARTO (idem) DR. RAUL MONTEIRO  ERNESTO GOULARTE PEREIRA DESEMBARGADOR ANASTÁCIO FLORINDO FRANCISCO COELHO  BÁRBARA COELHO (sua mulher) MARIQUINHAS (sua filha) FELICIANINHA  FILOMENA BEATRIZ  FILIPE FLECHA  MR. JAMES  CONSELHEIRO FELÍCIO DE BRITO (presidente do Conselho) MINISTRO DA GUERRA MINISTRO DO IMPÉRIO MINISTRO DE ESTRANGEIROS MINISTRO DA JUSTIÇA DR. MONTEIRINHO (ministro da marinha) SENADOR FELIZARDO PEREIRA INÁCIO ARRUDA RIBEIRO AZAMBUJA
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https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/CAIU_O_MINIST_RIO_.jpg
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ATO I O teatro representa parte da rua do Ouvidor. Ao fundo a redação do "Globo", a casa imediata, a confeitaria do "Castelões" e o armarinho vizinho. O interior destes estabelecimentos deve ser visto pelos espectadores. Ao subir o pano a escada que comunica o pavimento inferior do escritório do "Globo" com o superior deve estar ocupada por muitos meninos, vendedores de gazetas; algumas pessoas bem vestidas conversam junto ao balcão. Em casa do "Castelões" muita gente conversa e come. No armarinho grupos de moças, encostadas ao balcão, conversam e escolhem fazendas. Grande movimento na rua.
 
CENA I Um vendedor de bilhetes de loteria, 1º, 2º, 3º e 4º vendedores de jornais, Doutor Raul Monteiro e Ernesto.
 
VENDEDOR DE BILHETES  Quem quer os duzentos contos? Os duzentos contos do Ipiranga!
 
PRIMEIRO VENDEDOR DE JORNAIS  A "Gazeta da Tarde", trazendo a queda do ministério, a lista da loteria, também trazendo a crônica parlamentar.
 
SEGUNDO VENDEDOR  A "Gazeta de Notícias". Traz a carta do Doutor Seabra.
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha".
 
QUARTO VENDEDOR A "Espada de Dâmocles", trazendo o grande escândalo da Câmara dos Deputados, a história do ministério, o movimento do porto, e também trazendo o assassinato da rua do Senado.
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha" e o "Cruzeiro".
 
RAUL MONTEIRO (que deve estar parado à porta do "Globo" a ler os telegramas; voltando-se e vendo Ernesto, que sai do "Castelões")  Oh! Ernesto, como vais?
 
ERNESTO  Bem. E tu?
 
RAUL  Então? Nada ainda?
 
ERNESTO  Ouvi dizer agora mesmo no Bernardo que foi chamado para organizar o ministério o Faria Soares.
 
RAUL  Ora! Ora! O Soares partiu ontem com a família para Teresópolis.
 
ERNESTO  É verdade; porém disseram-me que ontem mesmo recebeu o telegrama e que desce hoje. Aí vem o Goularte.
 
RAUL  Homem, o Goularte deve estar bem informado.
 
 
CENA II Os mesmos e Goularte.
 
RAUL  Oh! Goularte, quem foi o chamado?
 
GOULARTE  O Silveira de Assunção.
 
RAUL  O que estás dizendo?
 
GOULARTE  A pura verdade.
 
ERNESTO  Com os diabos! Por esta não esperava eu. Estou aqui, estou demitido.
 
RAUL  Mas isto é de fonte pura?
 
GOULARTE  E até já está organizado o ministério.
 
RAUL  Quem ficou na Fazenda?
 
GOULARTE  O Rocha.
 
RAUL  E na Justiça?
 
GOULARTE  O Brandão. Para a Guerra entrou o Felício; para a Agricultura o Barão de Botafogo.
 
ERNESTO  O Barão de Botafogo?
 
GOULARTE  Sim, pois não o conheces! É o Ladislau Medeiros.
 
ERNESTO  Ah! já sei.
 
GOULARTE  Para Estrangeiros o Visconde de Pedregulho; para a pasta do Império o Serzedelo.
 
RAUL  Misericórdia!
 
GOULARTE  E para a Marinha o Lucas Viriato.
 
RAUL  Lucas Viriato?! Quem é?
 
ERNESTO  Não o conheço.
 
GOULARTE  Eu também nunca o vi mais gordo, mas dizem que é um sujeito muito inteligente.
 
 
CENA III Os mesmos e Comendador Pereira.
 
PEREIRA  Bom dia, meus senhores. (Aperta-lhes as mãos)
 
RAUL  Ora viva, senhor Comendador.
 
PEREIRA  Então, já sabem?
 
RAUL  Acabamos de saber agora mesmo. O presidente do Conselho é o Silveira de Assunção.
 
PEREIRA  Não há tal, foi chamado, é verdade, mas não aceitou.
 
GOULARTE  Mas, senhor Comendador, eu sei... 
 
PEREIRA  Também eu sei que o homem esteve cinco horas em São Cristóvão, e que de lá saiu à meia-noite, sem se haver decidido coisa alguma.
 
RAUL (vendo Anastácio entrar pela direita)  Ora aí está quem nos vai dar notícias frescas.
 
ERNESTO  Quem é?
 
RAUL  O Conselheiro Anastácio, que ali vem. 
 
(Seguem para a direita, e formam um grupo)
 
GOULARTE  Chama-o.
 
 
CENA IV Os mesmos, Anastácio e vendedores.
 
VENDEDOR DE BILHETES (que juntamente com os outros tem passado pela rua, vendendo ao povo os objetos que apregoam durante as cenas anteriores)  Quem quer os duzentos contos do Ipiranga!
 
PRIMEIRO VENDEDOR  A "Gazeta da Tarde", a 40 réis.
 
SEGUNDO VENDEDOR  A "Gazeta de Notícias".
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha". Traz a queda do ministério. 
 
(Saem os vendedores)
 
RAUL  Senhor Conselheiro, satisfaça-nos a curiosidade. Quem é o homem que nos vai governar?
 
ANASTÁCIO  Pois ainda não sabem?
 
GOULARTE  São tantas as versões,...
 
ANASTÁCIO  Pensei que estivessem mais adiantados. Ora ouçam lá. (Tira um papelinho do bolso; todos preparam-se para ouvi-lo com atenção) Presidente do Conselho, Visconde da Pedra Funda; ministro do Império, André Gonzaga.
 
GOULARTE  Bem bom, bem bom.
 
ANASTÁCIO  Da Marinha, Bento Antônio de Campos.
 
RAUL  Não conheço.
 
ERNESTO   Nem eu.
 
GOULARTE  Nem eu.
 
PEREIRA  Nem eu.
 
ANASTÁCIO  Eu também não sei quem seja. Ouvi dizer que é um sujeito dos sertões de Minas.
 
RAUL  E por conseguinte muito entendido em coisas de mar.
 
ANASTÁCIO  Ministro da Fazenda, o Barão do Bico do Papagaio.
 
RAUL  Para a Fazenda?!
 
ANASTÁCIO  Sim, senhor.
 
RAUL  Porém este homem nunca deu provas de si. É pouco conhecido... Nas circunstâncias em que se acha o país.
 
GOULARTE  Não diga isto, e aquele à parte que ele deu ao Ramiro... Lembra-se, senhor Conselheiro?
 
ANASTÁCIO  Não.
 
GOULARTE  Um à parte dado na questão do Xingu.
 
RAUL  Era melhor que o tivessem deixado à parte. Vamos adiante.
 
ANASTÁCIO  Ministro da Guerra, Antônio Horta.
 
ERNESTO  Magnífico!
 
RAUL  Qual magnífico.
 
ANASTÁCIO  Da Agricultura, João Cesário, e fica na pasta dos Estrangeiros o presidente do Conselho.
 
RAUL  Lá estão pondo um telegrama na porta do "Globo". Vamos ver o que é. 
 
(Dirigem-se à porta do "Globo", ao redor da qual reúnem-se todos que estão em cena, e depois retiram-se. Ernesto entra no "Globo")
 
 
CENA V Dona Bárbara Coelho e Mariquinhas.
 
DONA BÁRBARA (entrando com Mariquinhas pela esquerda)  Que maçada. Se eu soubesse que esta maldita rua estava hoje neste estado, não tinha saído de casa.
 
MARIQUINHAS  Pois olhe, mamãe; é assim que eu gosto da rua do Ouvidor.
 
DONA BÁRBARA  Tomara eu já que se organize o ministério, só para assim ver se teu pai sossega. Encasquetou-se-lhe na cabeça que há de ser por força ministro.
 
MARIQUINHAS  E por que não, mamãe? Os outros são melhores do que ele?!
 
DONA BÁRBARA  E vive há três dias encerrado em casa, como um verdadeiro maluco. Por mais que lhe diga — seu Chico, vá para a Câmara, contente-se em ser deputado, que não é pouco, e o homem a dar-lhe. Já quando caiu o outro ministério foi a mesma coisa. Passa o dia inteiro a passear de um lado para o outro; assim que ouve o ruído de um carro, ou o tropel de cavalos corre para a janela, espreita pelas frestas da veneziana, e começa a dizer-me todo trêmulo: — E agora, é agora, Barbinha, mandaram-me chamar. De cinco em cinco minutos pergunta ao criado: — Não há alguma carta para mim? Que aflição de homem, Santo Deus! Aquilo já é moléstia! Parece que se ele não sair ministro desta vez, arrebenta!
 
MARIQUINHAS  Faz papai muito bem. Se eu fosse homem também havia de querer governar.
 
DONA BÁRBARA  Pois eu se fosse homem acabava com câmaras, com governo, com liberais, conservadores e republicanos e reformava este país.
 
 
CENA VI As mesmas e Felicianinha.
 
MARIQUINHAS  Gentes, Dona Felicianinha por aqui!
 
FELICIANINHA (com embrulhos)  É verdade. Como está, Dona Bárbara? (Aperta a mão de Bárbara e de Mariquinhas e beijam-se)
 
MARIQUINHAS  Como vai a Bibi? A Fifina está boa? Há muito tempo que não vejo a Cocota.
 
FELICIANINHA  Todos bons. Eu é que não tenho andado muito boa. Só a necessidade me faria sair hoje de casa.
 
DONA BÁRBARA  É o mesmo que me acontece.
 
FELICIANINHA  Fui ao Palais-Royal experimentar um vestido, fui depois ao dentista, entrei no Godinho para ver umas fitas para o vestido da Chiquinha... 
 
MARIQUINHAS  Nós também estivemos no Godinho. Não viu a Filomena Brito com a filha?
 
FELICIANINHA  Vi, por sinal que tanto uma como a outra estavam caiadas que era um Deus nos acuda.
 
DONA BÁRBARA  Andam constantemente assim. E a sirigaita da filha a estropiar palavras em francês, inglês, alemão e italiano, para mostrar aos circunstantes que já esteve na Europa.
 
FELICIANINHA  Eu acho uma coisa tão ridícula! E o que quer dizer vestir-se a mãe igual à filha!
 
DONA BÁRBARA  E moda cá da na terra. Andam as velhas por aí todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara! Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em Minas nunca vi disto e estou com cinquenta anos!
 
 
 
CENA VII Dona Bárbara, Mariquinhas, Felicianinha, Filomena e Beatriz.
 
MARIQUINHAS  Lá vem a Filomena com a filha.
 
DONA BÁRBARA  Olhem só que sirigaitas!
 
FILOMENA (saindo com Beatriz do armarinho do fundo)  Como está, Dona Bárbara? 
 
(Cumprimentam-se todas, beijando-se)
 
DONA BÁRBARA  Como está, minha amiga?
 
MARIQUINHAS (para Beatriz)  Sempre bonita e interessante.
 
DONA BÁRBARA (para Filomena)  E a senhora cada vez mais moça.
 
FILOMENA  São os seus olhos.
 
FELICIANINHA (para Beatriz)  Como tem passado?
 
BEATRIZ  Assim, assim. Çá vá doucement, ou como dizem os alemães: so, so.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Começa ela com a algaravia.
 
BEATRIZ Não tive o prazer de vê-la no último baile do Cassino. Esteve ravissant, esplendide. O high-life do Rio de Janeiro estava representado em tudo quanto possui de mais recherchè. O salão iluminado a giorno, e a last fashion exibia os seus mais belos esplendores. Prachtvoll, ausgezeichnet, como dizem os alemães.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Olha só para aquilo. Ausgetz... Parece que tem um pedaço de cará fervendo na boca.
 
FILOMENA  A Beatriz causou sensação. Não leram a descrição da sua toilette?
 
DONA BÁRBARA  Ouvi dizer alguma coisa a respeito.
 
FILOMENA  Pois saiu em todos os jornais, no "Globo", na "Gazetinha", na "Gazeta da Tarde", na "Gazeta de Notícias"...
 
BEATRIZ  O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill'or e inteiramente curta.
 
FELICIANINHA  Vestido curto para baile?
 
BEATRIZ  É a última moda.
 
MARIQUINHAS  Onde mandou fazê-lo?
 
FILOMENA  Veio da Europa.
 
BEATRIZ E foi feito pelo Worth.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Com toda a certeza foi feito em casa, com aviamentos comprados em algum armarinho muito cangueiro.
 
FILOMENA  Mas não vale a pena mandar vir vestidos da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisas.
 
BEATRIZ  O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas... enfim, tout ce qu'il y a de camelote.
 
FELICIANINHA  Não é tanto assim.
 
BEATRIZ  Agora mesmo acabamos de encontrar com as filhas do Trancoso, vestidas de um modo... 
 
FILOMENA  É verdade, vinham muito ridículas.
 
BEATRIZ  Escorridas, coitadas, que pareciam um chapéu de sol fechado. Sapristi!
 
FILOMENA  E onde é que foi a mulher do Seabra buscar aquele vestido branco todo cheio de fofinhos e crespinhos!
 
BEATRIZ  Parecia que estava vestida de tripas. C'est incroyable.
 
DONA BÁRBARA Deixe estar que na Europa também se há de ver muita coisa ridícula. Não é só aqui que... 
 
BEATRIZ  Disto lá nunca vi; pelo menos em Paris.
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Desfrutável! (Para Mariquinhas, alto) Menina, vamos embora, que já é tarde.
 
MARIQUINHAS  Adeus, Dona Beatriz.
 
BEATRIZ  Addio. (Beijam-se todas reciprocamente)
 
FILOMENA (para Dona Bárbara) Apareça; sabe que sou, fui e serei sempre sua amiga.
 
DONA BÁRBARA  Da mesma forma. E se assim não fosse também dizia-lhe logo; eu cá sou muito franca.
 
FILOMENA  É por isso é que a estimo e considero. 
 
(Saem Dona Bárbara, Mariquinhas e Felicianinha)
 
 
CENA VIII Beatriz e Filomena.
 
BEATRIZ (vendo Mariquinhas)  Olhe só como vai aquele chapéu especado no alto da cabeça.
 
FILOMENA E a mãe cada vez se veste pior. Não parece que já tem vindo ao Rio. Viste o Doutor Raul?
 
BEATRIZ  Não senhora.
 
FILOMENA  É singular! Por que desapareceu ele lá de casa?
 
BEATRIZ  Não sei! Alguma intriga talvez. Sou tão infeliz... 
 
FILOMENA  Pois olha, aquele era um excelente partido. Moço, talentoso.
 
BEATRIZ  Tout a fait chique.
 
FILOMENA  E tout a fait, (faz sinal de dinheiro) que é o principal.
 
BEATRIZ  Se papai fosse chamado agora para o ministério... 
 
 
CENA IX As mesmas, Raul e Goularte.
 
RAUL (entrando do fundo com Goularte e vendo Beatriz e Filomena)  Oh! diabo! lá está a mulher do Conselheiro Brito com a filha... Se me descobrem estou perdido.
 
GOULARTE Por quê?
 
RAUL Por quê? Porque a filha namora-me, desgraçado, julga-me muito rico, e noutro dia no Cassino, caindo eu na asneira de dizer-lhe que era bela, encantadora, essas banalidades, tu sabes, que costumamos dizer às moças nos bailes, o diabinho da rapariga fez-se vermelha, abaixou os olhos, e disse-me: — Senhor Doutor Raul, por que não me pede a papai?
 
GOULARTE  Pois pede-lhe.
 
RAUL  Nessa não caio eu! É pobre como Jó, e mulher sem isto (Sinal de dinheiro) está se ninando. Vamos embora. 
 
(Saem)
 
 
CENA X Filomena, Beatriz, Mister James e Pereira.
 
FILOMENA  E Mister James? Não me disseste que ele também?... 
 
BEATRIZ  Faz-me a corte, é verdade; porém aquilo é pássaro bisnau, e não cai assim no laço com duas razões.
 
FILOMENA  Dizem que é o inglês mais rico do Rio de Janeiro.
 
BEATRIZ  Isto sei eu.
 
MR. JAMES (saindo do "Castelões" com Pereira e vendo as duas)  How? Mim não póde fica aqui; vai embora depressa, senhor Comendador.
 
PEREIRA Por quê?
 
MR. JAMES  Semana passada, mim estar na baile de Cassino, diz aquele menina, que ele estar bonita; menina estar estúpida, e diz a mim — How? Por que voucê não mi pede a papai?
 
PEREIRA  Bravo! E por que não se casa com ela?
 
MR. JAMES  Oh! no; mim não estar vem a Brasil pra casa. Mim vem aqui pra faz negócia. Menina não tem dinheiro, casamento estar mau negócia. No, no, no quer. Eu vai embora. (Sai para um lado, e Pereira para outro)
 
FILOMENA (tirando uma carteirinha do bolso)  Vejamos o que há ainda a fazer.
 
BEATRIZ  Vamos à Notre-Dame ver os colarinhos e ao Boulevard do Manuel Ribeiro.
 
FILOMENA  É verdade; vamos Já. 
 
(Saem)
 
 
CENA XI Ernesto e Filipe Flecha.
 
FILIPE (saindo do armarinho com uma caixa de papelão debaixo do braço, a Ernesto, que sai do "Globo") Senhor Ernesto, vê aquela mulher?
 
ERNESTO  Qual delas? Uma é a senhora do Conselheiro Brito, a outra é a filha.
 
FILIPE  Aquela mulher é a minha desgraça.
 
ERNESTO  Quem?... A filha?
 
FILIPE  Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana, no "Castelões". Comia uma empada! Com que graça ela segurava a apetitosa iguaria entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. (Imita) Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento.
 
ERNESTO  Mas, desventurado, não sabes?... 
 
FILIPE  Já sei o que vai dizer-me. Que sou um simples caixeiro de armarinho e que não posso aspirar à mão daquele anjo. Mas dentro do peito deste caixeiro pulsa um coração de poeta. Não pode imaginar as torturas por que tenho passado desde o instante em que a vi... Vi-a pela primeira vez no "Castelões"... 
 
ERNESTO  Comia uma empada. Já me disseste.
 
FILIPE  Mas o que ainda não lhe disse é que por causa dela tenho chuchado as maiores descomposturas dos patrões, e que em um belo dia ficarei na rua a tocar leques com bandurras. A sua imagem não me sai um só instante da cabeça. Estou no armarinho; se me encomendam linha dou marcas de lamparinas; se gritam retrós preto trago sabonetes; a um velho que me pediu ontem suspensórios meti-lhe nas mãos uma bisnaga! O homem gritou, o patrão chamoume de burro, os fregueses tomaram pagode comigo. Estou desmoralizado.
 
ERNESTO  Está bom, já sei.
 
FILIPE  Não pode saber, seu Ernesto.
 
ERNESTO  Olha, se o patrão te vê de lá a conversar aqui, estás arranjado.
 
FILIPE  Noutro dia à noite, quando os outros caixeiros dormiam, eu levantei-me, acendi a vela, e escrevi este soneto. (Tira um papel do bolso e lê) Ouça só o princípio: Quando te vejo radiante e bela, Por entre rendas, filós e escumilha Meu coração ardente se humilha, E minha alma murmura é ela!
 
ERNESTO  Magnífico! Está muito bom.
 
FILIPE  Mandei-o para a "Gazetinha". Pois querem saber o que fizeram? (Tirando a "Gazetinha" do bolso e mostrando) Leia. É aqui na correspondência.
 
ERNESTO (lendo)  "Sr. P. F."
 
FILIPE  Filipe Flecha, sou eu.
 
ERNESTO (lendo)  "Os seus versos cheiram a metro e a balcão; o poeta não passa talvez de um caixeiro de armarinho." (Rindo) É boa! É boa!
 
FILIPE  O maldito filó e a escumilha comprometeram-me. Não leio mais este papelucho. (Sobe) Lá está ela parada à porta do Farani.
 
 
CENA XII Os mesmos, 1º Vendedor, 2° Vendedor, 3° idem, 4° idem (saindo do "Globo").
 
PRIMEIRO VENDEDOR  O "Globo" da tarde a 40 réis.
 
SEGUNDO VENDEDOR  O "Globo", trazendo o ministério e a lista da loteria.
 
TERCEIRO VENDEDOR  O "Globo".
 
QUARTO VENDEDOR  O "Globo" a 40 réis.
 
ERNESTO  Vejamos se já há alguma coisa de novo. (Compra. Para Filipe) Não queres saber quem foi chamado para o ministério?
 
FILIPE  Que me importa o ministério? O meu ministério é ela! Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões". Ela comia... 
 
ERNESTO  Uma empada, com os diabos, já sei; não me amoles. (Sai)
 
 
CENA XIII Filipe e Vendedor de Bilhetes.
 
VENDEDOR DE BILHETES A sorte grande do Ipiranga!... Quem quer os duzentos contos!
 
FILIPE  Oh! Como te amo!
 
VENDEDOR (para Filipe)  Não quer os duzentos contos?
 
FILIPE  Deixa-me.
 
VENDEDOR  Fique com este número que é o último.
 
FILIPE  Não quero... 
 
VENDEDOR  Eu tenho um palpite de que o senhor apanha a taluda.
 
FILIPE Homem, vá-se embora.
 
VENDEDOR  Veja só o número.
 
FILIPE (à parte)  Quem sabe se não está aqui a minha felicidade?!
 
VENDEDOR  Então, não se tenta?
 
FILIPE (à parte, tirando dinheiro do bolso)  Lá se vão os últimos vinte e cinco mil réis, que me restam do ordenado deste mês. (Alto) Tome. Não quero ver o número. (Sai o vendedor) Lá seguiu ela para a rua dos Ourives. (Sai correndo)
 
 
 
CENA XIV Mister James e Raul.
 
RAUL (saindo da direita e lendo o "Globo")  "À hora em que entrou a nossa folha para o prelo, ainda não se sabia..." (Continua a ler baixo)
 
MR. JAMES (que vem lendo também o "Globo", entrando por outro lado)  "Os últimos telegramas da Europa anunciam..." (Continua a ler baixo, encontrando-se com Raul)
 
RAUL  Oh! Mister James! Como está?
 
MR. JAMES  How, senhor Raul, como tem passada?
 
RAUL  Então sabe já alguma coisa acerca do ministério?
 
MR. JAMES  Não estar já bem informada. É difícil este crise. Neste país tem duas coisas que não estar bom; é criadas e ministéria. Criadas não quer pára em casa, e ministéria dura três, quatro meses, bumba! Vai em terra. Brasileira não pode suporta governo muite tempa. Quando ministra começa a faz alguma coisa, tudo grita — No presta, homem estar estúpida, homem estar tratanta... 
 
RAUL  Infelizmente é a pura verdade.
 
MR. JAMES  Quando outra sobe diz mesma coisa, muda presidenta de província, subdelegada, inspetor de quarteirão, e país, em vez de anda, estar sempre parada.
 
RAUL  A verdade nua e crua.
 
MR. JAMES  Voucê escusa, se mim diz isto. Tudo quanto faz neste terra não é pra inglês ver?
 
RAUL  Assim dizem.
 
MR. JAMES  Pois então mim estar inglês, mim estar na direita de faz crítica do Brasil.
 
RAUL A maldita política é que tem sido sempre a nossa desgraça.
 
MR. JAMES  Oh! Yes. Vem liberal, faz couse boe, vem conservador desmanche couse boe de liberal.
 
RAUL  E vice-versa.
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
RAUL  E os republicanos?
 
MR. JAMES  How! Não fala em republicanas. Estar gente toda very good. Mas mim não gosta de republicana que faz barulha no meio da rua; governo dá emprega e republicana cala sua boca.
 
RAUL  Mas no número destes que calam a boca com empregos não se compreendem os republicanos evolucionistas; aqueles que, como eu, querem o ideal dos governos sem sangue derramado, sem comoções sociais... 
 
MR. JAMES  Oh! Republicana evolucionista estar a primeira de todos republicanas. Espera de braço cruzado que república aparece; e enquanto república não aparece, republicana estar ministra, deputada, senador, conselheira, tuda. Republicana evolucionista estar partida que tem por partida tira partida de todas as partidas.
 
RAUL  Não é nos partidos que está o nosso mal.
 
MR. JAMES  Sua mal de voucês está no língua. Brasileira fala muito, faz discursa very beautiful, mas país não anda pra adiante com discursa.
 
RAUL  Tem razão.
 
MR. JAMES  País precisa de braças, de comércia, de indústria, de estradas de ferro... 
 
RAUL  É verdade, e a sua estrada para o Corcovado?
 
MR. JAMES  Mim estar em ajuste com companhia. Mas quando pretende compra estrada e que tem promessa de governa pra privilégia, maldita governa cai, e mim deixa de ganha muita dinheira.
 
RAUL  Mas pode obter o privilégio com esta gente.
 
MR. JAMES  Oh! Yes! Para alcança privilégia em que ganha dinheira mim faz tudo, tudo.
 
RAUL  Se eu pudesse alcançar também... 
 
MR. JAMES  Uma privilégia?
 
RAUL  Não; contento-me com um emprego.
 
RAUL  Mas esta notícia é verdadeira?
 
ERNESTO  Está à porta de todos os jornais. Na "Gazetinha", na "Gazeta de Notícias"...
 
GOULARTE  Na "Gazeta da Tarde", no "Cruzeiro"... no "Jornal do Comércio"... 
 
RAUL  Lá estão pregando um papel no "Globo".
 
(Reúnem-se todos junto ao "Globo", menos Raul, Filipe e Mister James, que ficam no proscênio)
 
RAUL (à parte)  Beatriz julga-me rico, ofereço-lhe a mão, que aliás ela já pediu, e apanho um emprego.
 
MR. JAMES (à parte)  Filha de presidenta de conselha estar apaixonada por mim; mim com certeza apanha privilégia.
 
FILIPE (à parte)  Eu amo-a, adoro-a cada vez mais. Ah! que se eu apanho a sorte grande!!
 
RAUL  Está chovendo. (Abre o chapéu-de-chuva)
 
MR. JAMES  É verdade. (Abre o guarda-chuva. Todos abrem guarda-chuvas, menos Filipe)
 
FILIPE (à parte)  Lá vem ela!
 
RAUL (à parte)  Ela!
 
MR. JAMES (vendo Beatriz)  How! 
 
(Ao entrar em cena Beatriz, acompanhada de Filomena, Raul dá-lhe o braço e cobre-a com o chapéu, James dá o braço a Filomena e cobre-a)
 
RAUL  Dou-lhe os meus sinceros parabéns.
 
MR. JAMES  Minhas felicitaçãos.
 
FILOMENA  Obrigada.
 
FILIPE (tomando os embrulhos de Filomena e Beatriz)  Façam o favor, minhas senhoras!
 
BEATRIZ  Não se incomode.
 
FILIPE (à parte)  Que mão, Santo Deus! Estou aqui, estou-lhe em casa.
 
 
 
ATO II Sala elegantemente mobiliada. Portas ao fundo e laterais.
 
CENA I Ernesto e Filipe.
 
ERNESTO (entrando, a Filipe, que deve estar tomando notas em uma pequena carteira)  Filipe?! Por aqui?!
 
FILIPE  E então?
 
ERNESTO  És também pretendente?
 
FILIPE  Não; sou repórter.
 
ERNESTO  Repórter?
 
FILIPE  É verdade. O amor ou é a minha perdição ou há de ser talvez a causa da minha felicidade. Venho aqui todos os dias, extasio-me diante daquelas formas divinas... Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões", ela... 
 
ERNESTO  Comia uma empada.
 
FILIPE  Ah! Já lhe disse?
 
ERNESTO  Milhares de vezes; já sei esta história de cor e salteado. Mas como diabo te fizeste repórter?
 
FILIPE  Desde o dia em que tive a felicidade de encontrar essa mulher na estrada sinuosa, espinhosa, lacrimosa da existência, tornei-me completamente outro homem. A atmosfera do armarinho pesavame, o balcão acachapava-me, o metro desmoralizava-me, e a ideia de ter um patrão encafifava-me... Eu sentia dentro de mim um não sei quê que me dizia: — Filipe Flecha, tu não nasceste para vender agulhas, alfazema e lamparinas marca de pau, ergue a cabeça... 
 
ERNESTO  E ergueste-a.
 
FILIPE  Não, abaixei-a para evitar um cascudo que o patrão pretendia darme em um belo dia em que estava a olhar para a rua, em vez de servir as freguesas, e não voltei mais à loja. Achando-me só, sem em prego, disse com os meus botões: — é preciso que eu faça alguma coisa. Escrever para o público, ver o meu nome em letra redonda, o senhor sabe, foi sempre a minha cachaça. Fiz-me repórter, nas horas vagas escrevo versos, e daqui para jornalista é um pulo.
 
ERNESTO  És mais feliz do que eu.
 
FILIPE  Por quê?
 
ERNESTO  Porque não pretendes sentar-te a uma grande mesa que há neste país, chamada do orçamento, e onde, com bem raras exceções, todos têm o seu talher. Nesta mesa uns banqueteiam-se, outros comem, outros apenas lambiscam. E é para lambiscar um bocadinho, que venho procurar o ministro.
 
FILIPE  Ele não deve tardar.
 
ERNESTO  Fui classificado em primeiro lugar no último concurso da secretaria.
 
FILIPE  Então está com certeza nomeado.
 
ERNESTO  Se a isso não se opuser um senhor de baraço e cutelo, chamado empenho, que tudo ata e desata nesta terra, e a quem até os mais poderosos curvam a cabeça.
 
FILIPE  Aí vem o ministro.
 
 
CENA II Os mesmos, Conselheiro Felício de Brito.
 
ERNESTO (cumprimentando)  Às ordens de Sua Excelência.
 
FILIPE (cumprimentando)  Excelentíssimo.
 
BRITO  O que desejam?
 
ERNESTO  Vinha trazer esta carta para Sua Excelência e implorar-lhe a sua valiosa proteção.
 
BRITO (depois de ler a carta)  Sim, senhor. Diga ao Senhor Senador que hei de fazer todo o possível por servi-lo. Vá descansado.
 
ERNESTO  Eu tenho a observar a Sua Excelência... 
 
BRITO  Já sei, já sei.
 
ERNESTO  Que fui classificado em primeiro lugar.
 
BRITO  Já sei, já sei. Vá. (Ernesto cumprimenta e sai. A Filipe, que deve estar a fazer muitos cumprimentos) O que quer? Ah! É o senhor?
 
FILIPE  Humilíssimo servo de sua excelência. Desejava saber se já há alguma coisa de definitivo.
 
BRITO  Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida a pasta da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades... Não, não diga isto.
 
FILIPE  E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze dias que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro para a Marinha.
 
BRITO  O verdadeiro é não dizer nada. Venha cá logo, e comunicar-lhe-ei então tudo o que houver ocorrido.
 
FILIPE (à parte)  Onde estará ela?
 
BRITO  Vá, vá, venha logo.
 
FILIPE (à parte)  Se eu pudesse vê-la. (Alto) Excelentíssimo. (Cumprimenta e sai)
 
 
CENA III Brito, Filomena e Beatriz.
 
BRITO (toca a campainha; aparece um criado)  Não deixe ninguém entrar nesta sala. 
 
(O criado inclina-se)
 
FILOMENA (que entra com Beatriz, pela esquerda)  E as minhas visitas?
 
BEATRIZ  E as minhas, papai? Voyons. Ça ne se fait pas.
 
BRITO  Porém, minha querida Beatriz, espero aqui os meus colegas, temos que tratar de negócios do Estado, que são negócios muito sério.
 
BEATRIZ  Ça ne fait rien.
 
FILOMENA  Ao menos dê ordem para que deixem entrar Mr. James.
 
BEATRIZ  E o Senhor Raul também.
 
BRITO Valha-me Deus! Vocês alcançam de mim tudo ó que querem. (Para o criado) Quando o Senhor James e o Senhor Raul chegarem, manda-os entrar. (O criado cumprimenta e sai) Estão satisfeitas?
 
BEATRIZ  I love you, meu querido papai.
 
FILOMENA (reparando a sala)  E então? A sala já não parece a mesma!
 
BEATRIZ  E as cortinas estão assorti com a mobília, Mas este tapete é um escarro.
 
FILOMENA  É verdade. Felício, precisamos comprar um tapete. Vi ontem um muito bonito no Costrejean.
 
BRITO  Não compro mais coisa alguma, minha senhora. A senhora pensa porventura que eu aceitei esta prebenda para ainda em cima arruinar-me?
 
FILOMENA  Quando se está em certa posição, não se deve fazer figura ridícula.
 
BEATRIZ  Noblesse oblige, papai.
 
FILOMENA  Não sei o que quer dizer ser ministro e andar de bonde como os outros, ter uma casa modestamente mobiliada, como os outros, não receber, não dar bailes, não dar jantares, como os outros, vestir-se como os outros... 
 
BEATRIZ  É verdade. C'est ridicule.
 
BRITO  Mas, minhas filhas, não há ninguém por aí que não saiba que tenho poucos recursos, que vivo apenas dos meus ordenados. A vida de um homem de Estado é devassada e esmerilhada por todos, desde os mais ínfimos até os mais elevados representantes da escala social. O que dirão se me virem amanhã ostentando um luxo incompatível com os meus haveres?
 
FILOMENA  Se a gente for dar satisfações a tudo o que dizem... 
 
BRITO  E olha que aqui não se cochila para dizer que um ministro é ladrão. O que mais querem vocês de mim? Já obrigaram-me a alugar esta casa em Botafogo.
 
FILOMENA  Devíamos ficar morando em Catumbi?
 
BRITO  E o que tem Catumbi?
 
BEATRIZ  Ora papai.
 
BRITO  Sim, o que tem?
 
BEATRIZ  Não é um bairro como il faut.
 
BRITO  Obrigaram-me a assinar o Teatro Lírico e... camarote.
 
FILOMENA Está visto. Havia de ser interessante ver a família do presidente do Conselho sentada nas cadeiras... 
 
BEATRIZ  Como qualquer Sinhá Ritinha da Prainha ou da Gamboa... Dieu m'en garde! Eu preferiria lá não ir.
 
BRITO  Obrigaram-me mais a ter criados estrangeiros de casaca e gravata branca, quando eu podia perfeitamente arranjar a festa com o Paulo, o Zebedeu e a Maria Angélica.
 
BEATRIZ  Pois não, são frescos, sobretudo o Zebedeu. No outro dia, à mesa de jantar, mamãe disse-lhe: — Vá buscar lá dentro uma garrafa de vinho do Porto, mas tome cuidado, não a sacuda. Quando chegou com a garrafa, mamãe perguntou-lhe: — Sacudiu? — Não senhora, diz ele, mas vou sacudir agora. E começa, zás, zás, zás. (Faz menção de quem sacode) Quelle ímbecile. Aquilo é que os alemães chamam — ein Schafskopf!
 
BRITO  Até a minha roupa vocês querem reformar.
 
FILOMENA  Com franqueza, Felício, a tua sobrecasaca já estava muito sebosa!
 
BEATRIZ  Papai quer fazer a mesma figura que faz o ministro do Império?
 
BRITO  É um homem muito inteligente. Tem um grande tino administrativo.
 
BEATRIZ  Tem, sim, senhor; mas era melhor que ele tivesse um paletó na razão direta da inteligência. E depois, como come, Santo Deus! Segura na faca assim, olhe, (mostra) e mete-a na boca até o cabo, toda atulhada de comida. Choking.
 
BRITO  Em compensação o ministro de Estrangeiros.
 
BEATRIZ  É o melhorzinho deles. Mas não sabe línguas.
 
BRITO  Estás enganada, fala muito bem francês.
 
BEATRIZ  Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor. Diz monsíù, negligè, bordó, e outras que tais.
 
BRITO  Enfim há quinze dias apenas que subi ao poder e já estou cheio de dívidas!
 
FILOMENA  Não é tanto assim.
 
BRITO  Só ao compadre Bastos devo dez contos de réis.
 
FILOMENA  E se não fosse ele, estaríamos representando um papel bem triste.
 
BEATRIZ  Não poderíamos receber às quintas-feiras o high life do Rio de Janeiro.
 
BRITO  Sim, esse high lífe que aqui vem dançar o cotillon, ouvir boa música, saborear-me os vinhos; e que abandonar-me-á com a mesma facilidade com que hoje me adula, no dia em que eu não puder mais dispor dos empregos públicos.
 
BEATRIZ  Papai não tem razão.
 
BRITO  Pois bem, minha filha, quer tenha ou não razão, só te peço uma coisa, e faço igual pedido à tua mãe. Não exijam de mim impossíveis. Vocês sabem que nada lhes posso negar. (Tirando o relógio e vendo as horas) Os meus companheiros não tardam. Vou ao meu gabinete; já volto.
 
 
CENA IV Filomena, Beatriz e Mister James.
 
BEATRIZ (sentando-se e lendo um livro, que deve trazer na mão)  É muito bem escrito este romance de Manzoni.
 
FILOMENA  Um tapete novo aqui deve fazer um vistão. Não achas?
 
MR. JAMES (com um rolo debaixo do braço)  Mim pode entra?
 
FILOMENA  Oh! Mr. James!
 
MR. JAMES  Como está, senhorra? (Para Beatriz) Vosmecê vai bem?
 
FILOMENA  Pensei que não viesse.
 
MR. JAMES  Oh! mim dá palavra que vem; mim não falta sua palavra.
 
BEATRIZ  Assim deve ser.
 
FILOMENA  Trouxe os seus papéis?
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
BEATRIZ  O seu projeto é a great attraction do dia.
 
MR. JAMES  Projeto estar muita grandiosa. (Desenrola o papel e mostra) Carros sai daqui de Cosme Velha, e sobe Corcovada em vinte minutas.
 
BEATRIZ  E estes cachorros que estão aqui pintados?
 
MR. JAMES  Senhorras não entende deste coisa: mim fala com pai de vosmecê, explica o que é todos esses cachorras.
 
FILOMENA  Tudo quanto temos de bom devemos aos senhores estrangeiros.
 
BEATRIZ  C'est vrai. Os brasileiros, com raras exceções, não se ocupam destas coisas.
 
MR. JAMES  Brasileira estar muito inteligenta; mas estar também muito preguiça. Passa vida no rua do Ouvidor a fala de política, pensa só de política de manhã até a noite. Brasileira quer estar deputada, juiz de paz, vereador... Vereador ganha dinheira?
 
FILOMENA  Não, senhor; é um cargo gratuito.
 
MR. JAMES  Então mim não sabe como tudo quer ser vereador. Senhorra já fala com sua marida a respeita de minha projeta?
 
FILOMENA  Não, senhor, mas hei de falar-lhe.
 
MR. JAMES  Sua marida estar engenheira ou agricultor?
 
BEATRIZ  Papai é doutor em Direito.
 
MR. JAMES  É ministra de Império?
 
BEATRIZ  Também doutor em Direito.
 
MR. JAMES  Ministra de Estrangeiras?
 
FILOMENA  Doutor em Direito.
 
MR. JAMES  How! Toda ministéria estar doutor em direita?
 
BEATRIZ  Sim, senhor.
 
MR. JAMES  Na escola de doutor em direita estuda marinha, aprende planta batatas e café, e sabe todas essas coisas de guerra?
 
FILOMENA  Não, senhor.
 
BEATRIZ  Estudam-se leis.
 
MR. JAMES  No Brasil estar tudo doutor em direita. País no indireita assim. Mim não sabe se estar incomodando senhora. 
 
(Sentam-se)
 
BEATRIZ  Oh! o senhor nunca nos incomoda, dá-nos sempre muito prazer.
 
MR. JAMES  Pois mim tem também multo prazer em conversa com vosmecê; (para Beatriz) pois eu gosta muito de brasileiras.
 
BEATRIZ  Mas as inglesas são very beautiful. Eu vi em Londres, no HydePark, verdadeiras formosuras.
 
MR. JAMES  Oh! yes. Inglesas estar muito bonitas, mas brasileira tem mais... tem mais... Como chama este palavra... Eu tem no ponta da língua... Brasileira tem mais pasquim.
 
FILOMENA  Pasquim?!
 
MR. JAMES  No, no, como chama este graça de brasileira?
 
BEATRIZ  Ah! quindins.
 
MR. JAMES  Oh! yes, very well. Quindins.
 
FILOMENA  Muito bem, Mr. James. Falta agora que o senhor confirme o que acaba de dizer casando-se com uma brasileira.
 
MR. JAMES  Mim no pode casa, por ora, porque só tem cinquenta mil libras sterlinas; mas se mim arranja este privilégia, dá palavra que fica em Brasil e casa com brasileira.
 
FILOMENA  Pelo que vejo já está enfeitiçado pelos quindins de alguma?
 
MR. JAMES  Não duvida, senhora, e crê que feitiça não estar muito longe daqui. (Olha significativamente para Beatriz)
 
BEATRIZ (à parte)  Isto já eu sabia.
 
FILOMENA (à parte)  É a sorte grande!
 
 
CENA V Os mesmos e Brito.
 
BRITO (vendo o relógio)  Ainda nada. Oh! Mister James. Como está?
 
MR. JAMES  Criada de Sua Excelência. (Conversa com Beatriz)
 
FILOMENA (levando Brito para um lado) 
 
Este inglês possui uma fortuna de mais de quinhentos contos, parece gostar de Beatriz... Se nós soubermos levá-lo, poderemos fazer a felicidade da menina.
 
BRITO  E o que queres que faça?
 
FILOMENA  Que lhe concedas o privilégio que ele pede.
 
BRITO  Mas, senhora, estas questões não dependem só de mim. Eu não quero comprometer-me.
 
FILOMENA  Então para que te serve ser presidente do Conselho?
 
BRITO  Mas eu não posso nem devo dispor das coisas do Estado para arranjos de família. A senhora já me endividou e quer agora desacreditar-me.
 
FILOMENA  Pois isto há de se fazer. Mr. James, meu marido quer conversar com o senhor a respeito do seu negócio.
 
BRITO  Estarei às suas ordens, senhor James; porém um pouco mais tarde. Espero os meus colegas.
 
MR. JAMES  A que horas mim pode procura Sua Excelência?
 
BRITO  Às duas horas.
 
MR. JAMES Até logo. (Cumprimenta e sai)
 
 
CENA VI Os mesmos, menos Mister James.
 
BRITO  A senhora ainda há de comprometer-me. (Saí)
 
FILOMENA  Dizem todos que é um projeto grandioso.
 
BEATRIZ  Vou acabar a leitura deste romance.
 
FILOMENA  Eu vou dar as ordens para a partida desta noite.
 
 
CENA VII Dona Bárbara, Criado e o Desembargador Francisco Coelho.
 
CRIADO  Sua Excelência não está em casa.
 
COELHO  Quero falar com as senhoras. Aqui tem o meu cartão. 
 
(Criado cumprimenta e sai)
 
DONA BÁRBARA  Está em casa com toda a certeza; mas negou-se.
 
COELHO  Isto sei eu; e por isso é que entrei.
 
DONA BÁRBARA Eu não devia vir. Estas sirigaitas aborrecem-me extraordinariamente.
 
COELHO  Mas, minha filha, tu pensas que em política a gente sobe unicamente por seus belos olhos? Não sou rico, já estou velho, não tenho pai alcaide, se deixar fugir as ocasiões, quando serei ministro?
 
DONA BÁRBARA  E para que você quer ser ministro, seu Chico?
 
COELHO  Ora, tens às vezes certas perguntas? Para quê? Para governar, para fazer o que os outros fazem.
 
DONA BÁRBARA  Você não tem sabido governar a fazenda, e quer governar o Estado!
 
COELHO  A senhora não entende destas coisas.
 
DONA BÁRBARA  Ora, diga cá! Suponha que você é nomeado ministro.
 
COELHO  Sim, senhora.
 
DONA BÁRBARA  Perde a cadeira na Câmara. Tem de sujeitar-se a uma nova eleição.
 
COELHO  E o que tem isto?
 
DONA BÁRBARA  O que tem?! É que se você cair nesta asneira, seu Chico, toma uma derrota, tão certo como eu chamar-me Bárbara Benvinda da Purificação Coelho.
 
COELHO  Eu, ministro, derrotado?
 
DONA BÁRBARA  E por que não? Você é melhor do que os outros?
 
 
CENA VIII Os mesmos, Raul, Beatriz e Filomena.
 
RAUL  Senhor Desembargador.
 
COELHO  Senhor doutor.
 
RAUL  Minha senhora.
 
FILOMENA  Fiz-lhe esperar muito?
 
BEATRIZ (para Raul)  Não sabia que estava também aqui.
 
COELHO  O conselheiro não está em casa?
 
FILOMENA  Está no seu gabinete.
 
DONA BÁRBARA (baixo)  O que te dizia eu?
 
FILOMENA  Quer falar-lhe?
 
COELHO  Se fosse possível.
 
FILOMENA  Entre.
 
COELHO  Com licença. (Sai)
 
 
CENA IX Raul, Beatriz, Dona Bárbara e Filomena.
 
DONA BÁRBARA  Como vão os seus pequenos?
 
FILOMENA  O Chiquinho vai bem; a Rosinha é que tem passado mal.
 
BEATRIZ (a Raul)  Por que não tem aparecido?
 
RAUL  Sabe que o meu desejo era viver sempre a seu lado.
 
BEATRIZ  Está nas suas mãos.
 
RAUL  Se fosse possível... 
 
DONA BÁRBARA  Quem sabe se ela não sofre de vermes?
 
FILOMENA O próprio médico não sabe o que é. Sente umas coisas que sobem e descem; às vezes fica meia apatetada.
 
DONA BÁRBARA  Querem ver que é mau olhado!
 
FILOMENA  Ora, a senhora acredita nessas coisas?!
 
DONA BÁRBARA  É porque a senhora ainda não viu o que eu presenciei com estes que a terra há de comer.
 
FILOMENA  Ah! ah! ah! O senhor crê em mau olhado, senhor Raul?
 
RAUL  Não, minha senhora; apenas no bom olhado de uns olhos feiticeiros. (Olha para Beatriz significativamente)
 
DONA BÁRBARA  Pois eu vi lá em Minas uma criatura, que estava bem atacada. E em dez minutos ficou boa.
 
FILOMENA  Com a homeopatia?
 
DONA BÁRBARA  Com uma oração.
 
FILOMENA  Ah! E como é esta oração?!
 
DONA BÁRBARA  A mulher chamava-se Francisca. Molharam um ramo de arruda em água benta e rezaram-lhe o seguinte: "Francisca, se tens mau olhado, ou olhos atravessados, eu te benzo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Deus te olhe e Deus te desolhe, e Deus te tire essa mau olhado, que entre a carne e os ossos, tens criado; que saia do tutano e vá para os ossos, que saia dos ossos e vá para a carne, que saia da carne e vá para a pele, e que daí saia, e vá para o Rio Jordão, onde não faça mal a nenhum cristão." É infalível. Experimente.
 
BEATRIZ (baixo a Raul)  Quelle bêtise.
 
RAUL  Não acredita na influência dos olhos?
 
BEATRIZ  Sim; mas não creio na eficácia daquelas orações.
 
RAUL  E sabe ler neles?
 
BEATRIZ  Quelque chose.
 
RAUL  O que lhe dizem os meus?
 
BEATRIZ  Que o senhor é um grande bandoleiro.
 
RAUL  Não, não é isto o que eles dizem.
 
BEATRIZ  O que dizem então? Voyons.
 
RAUL  Que aqui dentro há um coração que pulsa pela senhora e só para a senhora.
 
BEATRIZ  Non lo credo.
 
RAUL  Dona Beatriz, se estivesse em condições de fazê-la feliz, hoje mesmo dirigia-me a seu pai, e pedia-lhe o que mais ambiciono neste mundo — a sua mão.
 
BEATRIZ  E o que lhe falta para tornar-me feliz?
 
RAUL  Uma posição social.
 
BEATRIZ  O senhor não é bacharel em Direito?
 
RAUL  É verdade.
 
BEATRIZ  Alors... 
 
RAUL  Porém, se o ser bacharel em Direito fosse um emprego, haveria muito pouca gente desempregada no Brasil. Seu pai está hoje no governo, poderia lançar as suas vistas sobre mim. Como seríamos felizes um ao lado do outro.
 
BEATRIZ  Eu vou falar com mamãe. Comunicar-lhe-ei as suas intenções a meu respeito, e dar-lhe-ei a resposta.
 
RAUL  Advogue bem a minha causa, ou antes a nossa causa.
 
BEATRIZ Sim. (À parte) E eu que o julgava desinteressado. Oh! les hommes! les hommes!
 
FILOMENA  Por que não veio à nossa última partida, senhor Raul?
 
BEATRIZ (para Raul)  Dançamos um cotillon que durou quase duas horas.
 
RAUL  Quem marcava?
 
BEATRIZ  O ministro da Bélgica. Oh! que j'aime le cotillon
 
DONA BÁRBARA  O que vem a ser isto de cotiáo?
 
BEATRIZ  Uma dança arrebatadora.
 
 
CENA X Os mesmos e Coelho.
 
COELHO (zangado)  Vamos embora.
 
FILOMENA  Já?!
 
DONA BÁRBARA (baixo a Coelho)  Então; o que arranjaste?
 
COELHO (baixo) 
 
O que arranjei?! Nada; mas ele arranjou uma oposição de arrancar couro e cabelo. Hei de mostrar-lhe o que valho. Estão aqui estão na rua.
 
DONA BÁRBARA (baixo)  Bem feito.
 
COELHO (baixo)  Vamos embora.
 
FILOMENA (para Coelho e Bárbara, que se despedem)  Espero que apareçam mais vezes.
 
COELHO  Obrigado, minha senhora. 
 
(Saem)
 
RAUL  Há de permitir-me também... 
 
FILOMENA  Então até a noite.
 
RAUL  Até a noite. (Sai)
 
 
CENA XI Filomena e Beatriz.
 
BEATRIZ  O Senhor Raul acaba agora mesmo de pedir-me a mão.
 
FILOMENA  Agora mesmo?
 
BEATRIZ  Mas sob uma condição.
 
FILOMENA  Qual é?
 
BEATRIZ  De arranjar-lhe com papai um emprego. Veja só a senhora o que são os homens de hoje!
 
FILOMENA  E que lhe respondeste?
 
BEATRIZ  Que havia de falar com vosmecê e que dar-lhe-ia depois a resposta.
 
FILOMENA  Muito bem. Não lhe digas nada, por ora, enquanto não se decidir o negócio do inglês. Tenho mais fé em Mr. James. Aquilo é que se pode chamar um bom partido.
 
BEATRIZ  E ele quererá casar comigo?
 
FILOMENA  Ora, não quer ele outra coisa.
 
 
CENA XII Criado, Ministro da Guerra, Ministro da Justiça, Ministro do Império, Ministro de Estrangeiros, Filomena e Beatriz.
 
CRIADO (na porta)  Sua Excelência o Senhor Ministro da Guerra.
 
MINISTRO DA GUERRA  Minhas senhoras. (Cumprimenta Beatriz)
 
FILOMENA (para o criado) — Vá chamar seu amo. 
 
(O criado sai pela porta da esquerda)
 
BEATRIZ  Como está sua senhora?
 
MINISTRO DA GUERRA  Bem, obrigado, minha senhora.
 
FILOMENA (despedindo-se)  Com licença. (Sai com Beatriz)
 
 
CENA XIII Os mesmos e Brito, menos Filomena e Beatriz.
 
BRITO  Meu caro conselheiro. Os outros colegas ainda não vieram?
 
MINISTRO DA GUERRA  Aí está o ministro da Justiça.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Conselheiro... 
 
MINISTRO DA GUERRA  E do Império. 
 
(Entra o ministro do Império)
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O nosso colega de Estrangeiros aí vem.
 
BRITO Ei-lo. (Entra o ministro de Estrangeiros) Meus senhores, precisamos conjurar seriamente as dificuldades que nos cercam.
 
MINISTRO DA GUERRA  Apoiado.
 
BRITO  Há quinze dias apenas que subimos ao poder, e já se notam muitos claros nas fileiras da maioria.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  A oposição se engrossa a olhos vistos.
 
BRITO  Agora mesmo acaba de sair daqui o Desembargador Coelho. É mais um descontente que passa para o outro lado.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Coelho? Ainda ontem, pode-se dizer, aspirava a ser o líder da maioria.
 
BRITO  É verdade! Porém suspira por uma pasta, e nas circunstâncias atuais não é possível.
 
 
CENA XIV O Criado, Brito, Ministro da Guerra, Ministro da Justiça, Ministro do Império, Ministro de Estrangeiros, Conselheiro Felizardo e Doutor Monteirinho.
 
CRIADO (à parte) O Senhor Conselheiro Felizardo.
 
BRITO  Oh! Senhor Conselheiro. (Cumprimentam-se todos) Esperava ansiosamente por vossa excelência.
 
FELIZARDO  Estou às ordens de vossa excelência.
 
BRITO  O seu nome, o prestígio de que goza, a sua dedicação às ideias dominantes, são títulos que muito o habilitam.
 
FELIZARDO  Bondade de meus correligionários.
 
MINISTRO DO IMPÉRIO  Pura justiça.
 
BRITO  Precisamos do apoio de vossa excelência, como do ar que respiramos. A pasta da Marinha ainda está vaga.
 
FELIZARDO  Já estou velho... 
 
BRITO  Não nos animamos a oferecê-la. Longe de nós semelhante pensamento! O lugar de vossa excelência é na presidência do Conselho.
 
FELIZARDO  Se vossas excelências permitem, dou um homem por mim.
 
MINISTRO DO IMPÉRIO  Basta ser de sua confiança... 
 
BRITO  Para ser recebido de braços abertos.
 
FELIZARDO (apresentando o Doutor Monteirinho) 
 
Aqui está o homem, o Doutor Monteiro, meu sobrinho, filho de minha irmã Maria José; e que acaba de chegar da Europa, razão pela qual ainda não tomou assento na Câmara.
 
BRITO (admirado)  Senhor Doutor, folgo muito de conhecê-lo. (Baixo a Felizardo) Acho-o, porém, tão mocinho.
 
FELIZARDO  Formou-se o ano passado em São Paulo. (Baixo) Que inteligência, meu amigo!
 
DR. MONTEIRINHO  Saí apenas dos bancos da academia, é verdade, meus senhores; mas tenho procurado estudar com afinco todas as grandes questões sociais que se agitam atualmente. A minha pena já é conhecida no jornalismo diário e nas revistas científicas. Na polêmica, nas questões literárias, nos debates políticos, nas diversas manifestações, enfim, da atividade intelectual, tenho feito o possível por criar um nome.
 
FELIZARDO (baixo)  É muito hábil.
 
BRITO (baixo)  É verdade.
 
FELIZARDO (baixo)  É um canário.
 
DR. MONTEIRINHO  Se não fossem as influências mesológicas assaz acanhadas, em que vivem nesta terra as inteligências que procuram abrir a corola aos raios ardentes da luz, eu já teria talvez aparecido, a despeito dos meus verdes anos.
 
BRITO (baixo a Felizardo) 
 
Que idade tem?
 
FELIZARDO  Que idade tens, Cazuza?
 
DR. MONTEIRINHO  Vinte e dois anos.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Senhor Doutor Monteiro não é... 
 
FELIZARDO  Chame-o Doutor Monteirinho. É o nome por que ele é conhecido.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Doutor Monteirinho não é o autor da célebre poesia O grito da escravidão, que veio publicada no Correio Paulistano?
 
DR. MONTEIRINHO  E que foi transcrita em todos os jornais do Império. Um seu criado. Já cultivei a poesia em tempos que lá vão. Hoje, em vez de tanger a lira clorótica do romantismo ou de dedilhar as cordas, afinadas ao sabor moderno, dos poetas realistas, leio Spencer, Schopenhauer, Buckner, Littré, todos esses grandes vultos, que constituem o apostolado das sociedades modernas.
 
FELIZARDO (baixo, a Brito)  Este rapaz vai fazer um figurão no ministério.
 
BRITO  Creio. Terá, porém, ele a experiência dos negócios públicos?
 
FELIZARDO  Não lhe dê cuidado. Fica sob as minhas vistas: eu saberei guiá-lo.
 
DR. MONTEIRINHO  A grande naturalização é uma das questões atuais mais importantes para o Brasil.
 
BRITO  Podemos contar, portanto, com o apoio decidido de vossa excelência.
 
FELIZARDO  Se até aqui eu quebrava lanças por este ministério... 
 
BRITO  Lá isso é verdade.
 
FELIZARDO  Imagine agora... (Olhando para Monteirinho) O meu Cazuzinha!
 
DR. MONTEIRINHO  E a questão das terras? Já leram a Questão Irlandesa, de Henry George? É um livro admiravelmente escrito. Um livro do futuro!
 
BRITO  Senhor Doutor Monteirinho, temos a honra de considerar vossa excelência no número dos nossos colegas.
 
DR. MONTEIRINHO  Oh! Senhor Conselheiro.
 
FELIZARDO  Cazuza, faz por seguir o caminho de teu tio. Vou correndo para a casa. Que alegrão vai ter a Maria José. (Sai)
 
 
CENA XV Os mesmos e James, menos Felizardo.
 
BRITO  Vamos para o gabinete.
 
MR. JAMES (aparecendo na porta)  Duas horas em ponta.
 
BRITO (à parte)  Que maçada. Não me lembrava mais dele. (James entra. Alto) Meus senhores, apresento-lhes Mr. James, que requer um privilégio que parece ser de grande utilidade.
 
DR. MONTEIRINHO  Vejamos.
 
MR. JAMES (desenrolando o papel e mostrando)  Aqui tem, senhoras.
 
DR. MONTEIRINHO  O que vem a ser isto?
 
BRITO  Uma estrada especial para o Corcovado.
 
MR. JAMES  Maquinisma estar muito simples. Em vez de duas trilhas, ou de três trilhas, como tem sistema adotada, mim coloca uma só trilha larga, de meu invenção.
 
DR. MONTEIRINHO  É bitola estreita?
 
MR. JAMES  Oh! estreitíssima! É bitola zero.
 
DR. MONTEIRINHO  E como se sustém o carro?
 
MR. JAMES  Perfeitamente bem.
 
DR. MONTEIRINHO  O sistema parece ser facílimo.
 
MR. JAMES  E estar muito econômica, senhorr.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Mas não vejo máquina, vejo apenas cachorros. O que quer dizer isto?
 
MR. JAMES  Ai é que está tuda.
 
BRITO  Não compreendo. Tenha a bondade de explicar-me.
 
MR. JAMES  Ideia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras.
 
DR. MONTEIRINHO  Não era precisa a explicação. Nós todos sabemos que cinófero vem do grego cynos, que quer dizer cão, e feren, que significa puxar, etc.
 
MR. JAMES  Muito bem, senhorr.
 
DR. MONTEIRINHO  Agora o que se quer saber é como é que os cachorros puxam.
 
MR. JAMES  Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha!
 
DR. MONTEIRINHO  E de quantos cachorros precisa o senhor para o tráfego dos trens diários do Cosme Velho ao Corcovado?
 
MR. JAMES  Mim precisa de força de cinquenta cachorras por trem; mas deve muda cachorra em todas as viagens.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Santo Deus! É preciso uma cachorrada enorme.
 
MR. JAMES  Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas cachorras de Inglaterra.
 
BRITO  Mas se estes animais forem atacados de hidrofobia não há perigo para os passageiros?
 
DR. MONTEIRINHO  Eu entendo que não se pode conceder este privilégio, sem se ouvir primeiro a junta de higiene.
 
MR. JAMES  Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se cachorra estar danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais velocidade.
 
BRITO  Em resumo, qual é a sua pretensão?
 
MR. JAMES  Mim quer privilégia para introduzir minha sistema em Brasil, e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil para empresa de caminha de ferro.
 
BRITO  Mas o cachorro não está ainda classificado como motor na nossa legislação de caminhos de ferro.
 
DR. MONTEIRINHO  Neste caso deve levar-se a questão ao poder legislativo.
 
BRITO  Está bem: nós vamos ver e resolveremos como for de justiça.
 
MR. JAMES  Em quanto tempa decide este negócia?
 
DR. MONTEIRINHO  Vamos resolver.
 
MINISTRO NO IMPÉRIO  Tenha paciência, espere.
 
BRITO  Às suas ordens. (Despede-se, os outros despedem-se de James e saem pela esquerda)
 
 
CENA XVI James, só.
 
MR. JAMES  Tem paciência, espera! Sistema de brasileira. Time is money. Eu fala com mulher, e arranja tuda. (Sai)
 
 
CENA XVII Beatriz e depois Filipe.
 
BEATRIZ  Vejamos se aqui posso concluir sossegada a leitura deste romance. (Lê)
 
FILIPE  Ela?! Oh! Eu atiro-me e confesso tudo. Ora adeus! (Tropeça em uma cadeira)
 
BEATRIZ (revolvendo-se)  Quem é?
 
FILIPE  Filipe Flecha, um criado de vossa excelência. Sou repórter.
 
BEATRIZ  Papai está agora em conselho com os outros ministros.
 
FILIPE  Como é bela! 
 
(Beatriz continua a ler)
 
BEATRIZ (à parte)  Este estafermo pretenderá ficar aqui. Que bruta faccia.
 
FILIPE  Eu atiro-me-lhe aos pés. Coragem! (Encaminha-se para Beatriz)
 
BEATRIZ  Quer alguma coisa?
 
FILIPE (tirando uma carteira)  O senhor seu pai onde nasceu, minha senhora?
 
BEATRIZ  No Pará.
 
FILIPE (escrevendo na carteira)  Onde formou-se?
 
BEATRIZ  Em Pernambuco.
 
FILIPE (escrevendo)  Que empregos tem exercido? Que condecorações tem?
 
BEATRIZ  Mas para que o senhor quer saber tudo isto? Oh! qu'il est drole!
 
FILIPE  É que quando ele morrer a notícia para o jornal já está pronta. (À parte) Oh! que diabo de asneira!
 
BEATRIZ  O senhor está doido?
 
FILIPE (ajoelhando-se)  Sim, doido, minha senhora, doido varrido. Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões". A senhora comia uma empada... (Beatriz procura tocar a campainha) O que vai fazer?
 
BEATRIZ  Chamar alguém para pô-lo daqui para fora.
 
FILIPE  Pelo amor de Deus, não faça escândalo. (Levantando-se) Eu vou, eu vou, mas creia que ninguém no mundo a idolatra como eu! (Sai olhando amorosamente para Beatriz)
 
BEATRIZ  Pobre louco! Mas este ao menos não me falou em emprego nem em privilégio! (Senta-se e continua a leitura)
 
 
 
ATO III Sala de espera em casa do Conselheiro Brito.
 
CENA I
 
Brito e Filomena.
 
FILOMENA  Podias ter decidido o negócio perfeitamente sem levá-lo às Câmaras.
 
BRITO  Como?
 
FILOMENA  Como? Colocassem-me na Presidência do Conselho, que eu te mostraria.
 
BRITO  Mas, Filomena, tu não sabes que se tratava de uma espécie completamente nova, que o governo... 
 
FILOMENA  Tanto melhor! Se a espécie era completamente nova, o governo devia resolver por si e não abrir o mal precedente de consultar a Câmara.
 
BRITO  Olha, queres saber de uma coisa? Eu merecia que me vestissem uma camisola de força, por me haver metido em semelhante entrosga.
 
FILOMENA  Ora, qual entrosga! O negócio era muito simples. Tratava-se de uma estrada para o Corcovado... 
 
BRITO  Mas de uma estrada especial, com carros movidos por cachorros... 
 
FILOMENA  E o que tem os cachorros?
 
BRITO É que levantou-se a dúvida se o cachorro podia ser considerado motor, se a estrada estava nas condições da lei.
 
FILOMENA  Pois eu presidente do Conselho cortava a dúvida, dizendo: — o cachorro é motor, e concedia o privilégio.
 
BRITO  Tu não entendes destas coisas.
 
FILOMENA  E o que se lucrou em consultar a Câmara? Em assanhar a oposição, e formar no seio do parlamento dois partidos, o dos cachorros e o dos que se batem, como leões, contra os cachorros.
 
BRITO  E que partidos!
 
FILOMENA  E lá se vai o privilégio, falto à palavra que dei ao inglês, e o casamento da menina, víspora!
 
BRITO  Mas o que queres que faça?
 
FILOMENA  Que envides todos os esforços para que o projeto passe! Hoje é a última discussão... 
 
BRITO  E o último dia talvez do ministério.
 
FILOMENA  Quais são os deputados que votam contra?
 
BRITO  Uma infinidade.
 
FILOMENA  O Elói é cachorro?
 
BRITO  Sim, senhora.
 
FILOMENA  O Azambuja?
 
BRITO  Cachorro.
 
FILOMENA  O Pereira da Rocha?
 
BRITO  Este é de fila.
 
FILOMENA  O Vicente Coelho?
 
BRITO  Era cachorro; mas passou anteontem para o outro lado.
 
FILOMENA  E o Barbosa?
 
BRITO  Está assim, assim. Talvez passe hoje para cachorro.
 
FILOMENA  Ah! Que se as mulheres tivessem direitos políticos e pudessem representar o país... 
 
BRITO  O que fazias?
 
FILOMENA  O privilégio havia de passar, custasse o que custasse. Eu é que devia estar no teu lugar, e tu no meu. És um mingau, não nasceste para a luta.
 
BRITO  Mas com a breca! Queres que faça questão de gabinete?
 
FILOMENA  Quero que faças tudo, contanto que o privilégio seja concedido.
 
BRITO (resoluto)  Pois bem; farei questão de gabinete, e assim fico livre mais depressa desta maldita túnica de Nessus.
 
 
CENA II Os mesmos e o Doutor Monteirinho.
 
DR. MONTEIRINHO (cumprimentando Filomena)  Minha senhora. (Para Brito) Vamos para a Câmara, conselheiro. É hoje a grande batalha.
 
BRITO  Estou às suas ordens.
 
DR. MONTEIRINHO  Havemos de vencer, custe o que custar.
 
FILOMENA  Doutor Monteirinho, empregue todo o fogo de sua palavra.
 
DR. MONTEIRINHO  Fique descansada, minha senhora. Levo o meu discurso na ponta da língua. Hei de tratar a parte técnica, sobretudo, com o maior cuidado. Na discussão deste projeto ou conquisto os foros de estadista, ou caio para nunca mais erguer a fronte.
 
FILOMENA  Bravo! Bravo!
 
BRITO  Vamos, conselheiro, são horas.
 
FILOMENA (para Brito)  Vai. Que Deus te inspire. 
 
(Saem Monteiro e Brito)
 
 
CENA III Filomena e Beatriz.
 
FILOMENA  Que boa madrugada! Onze horas!
 
BEATRIZ (beijando Filomena)  Não posso acordar-me cedo, por mais esforços que faça. Vosmecê não sai hoje?
 
FILOMENA  Não. Estou muito nervosa.
 
BEATRIZ  É mais uma razão para sair.
 
FILOMENA  Se cai o projeto e com ele o ministério... 
 
BEATRIZ  Estamos arranjadas.
 
FILOMENA  Lá se vai o inglês.
 
BEATRIZ  E o Sr. Raul também. (À parte) Se ao menos aquele pobre doido que ofereceu-me o coração... (Alto) Ora, será o que Deus quiser. (Mirando-se ao espelho, canta) La donna é mobile Qual piuma al vento. Muta d'accento E di pensiero. O paquete francês deve chegar hoje?
 
FILOMENA  Creio que sim.
 
BEATRIZ  Estou ansiosa por ver os vestidos de verão que encomendamos.
 
 
CENA IV Beatriz, Filomena e Criado.
 
CRIADO (com uma gaiola com papagaio)  Veio da parte do Senhor Tinoco, com esta carta. (Entrega a carta a Filomena)
 
FILOMENA (depois de ler a carta)  Estes pretendentes entendem que devem encher-me a casa de bichos. Leva para dentro. 
 
(O criado sai)
 
BEATRIZ  E coisa célebre, pelos presentes pode-se conhecer a que província ou a que lugar pertencem os pretendentes. Os do Ceará mandam corrupiões; os do Pará redes, paus de guaraná e macacos de cheiro; os de Pernambuco, cajus secos e abacaxis; os de São Paulo, formigas vestidas, figos em calda.
 
FILOMENA  E arapongas. Se o pretendente é do Maranhão, a mulher do ministro não passa sem lenço de labirinto.
 
BEATRIZ  E se é da Bahia, lá vêm as quartinhas, o azeite de cheiro e os saguis.
 
FILOMENA  Os do Rio Grande do Sul exprimem a gratidão com línguas salgadas e origones.
 
BEATRIZ  E os de Minas com queijos e rolos de fumo. Mas, coitados! Muito sofrem! Só a lida em que eles vivem. — Venha hoje, venha amanhã, espere um pouco, agora não é possível!
 
FILOMENA  É para admirar que a esta hora já não esteja a sala cheia deles.
 
BEATRIZ  É verdade.
 
 
CENA V Filomena, Beatriz e Dona Bárbara.
 
DONA BÁRBARA  Desculpe-me se fui entrando sem anúncio prévio.
 
FILOMENA  A Senhora Dona Bárbara é sempre recebida com prazer a qualquer hora.
 
DONA BÁRBARA  E é por saber disto que vim vê-la, apesar do que se tem passado.
 
FILOMENA  Creio que entre nós nada se tem passado que possa porventura interromper, sequer de leve, as nossas relações amistosas.
 
DONA BÁRBARA  Quero dizer do que se tem passado entre os nossos maridos.
 
FILOMENA  Também não sei o que possa ter havido entre eles. Pertencem ao mesmo credo político, ainda ontem para bem dizer, eram amigos... 
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Se não digo na bochecha desta emproada tudo quanto sinto, estouro. (Alto) Eram amigos, é verdade, porém... meu marido tem razões especiais... Ele está na Câmara cumprindo o seu dever.
 
FILOMENA  Faz muito bem.
 
DONA BÁRBARA  Não é hoje que se discute um célebre privilégio de uma estrada para o Corcovado?
 
FILOMENA  Creio que sim.
 
DONA BÁRBARA  Não sabia; passando por acaso pela rua do Ouvidor... 
 
BEATRIZ  Como é fingida esta vecchía strega!
 
DONA BÁRBARA  Ouvi os garotos apregoarem a "Gazeta da Tarde", traz a notícia da grande patota dos cachorros! E por entre os grupos dos indivíduos que conversavam no ponto dos bondes, pude distinguir estas frases, cujo sentido não compreendi bem: arranjos de família, ministro patoteiro, casamento da filha com o inglês... 
 
FILOMENA  É verdade, minha senhora; mas o que não sabe é que por entre aqueles grupos estava a mulher despeitada de um ministro gorado e que era esta a que mais gritava.
 
DONA BÁRBARA  Um ministro gorado?!
 
BEATRIZ  Sim. Un ministre manqué.
 
DONA BÁRBARA (para Beatriz)  Minha senhora, tenha a bondade de falar em português, se quer que a entenda.
 
FILOMENA  Eu falarei português claro. O ministro gorado é... 
 
BEATRIZ  Seu marido... voila tout.
 
FILOMENA  E a mulher despeitada... 
 
DONA BÁRBARA  Sou eu?!
 
BEATRIZ  Sans doute.
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Eu arrebento. (Alto) Pois já que as senhoras são tão positivas dirlhes-ei que meu marido nunca teve a ideia de fazer parte de semelhante ministério. Ele é um homem de muito bom senso e sobretudo de muita probidade.
 
FILOMENA  Observo à senhora que estou em minha casa.
 
BEATRIZ (à parte)  C'est incroyable! Dreadful.
 
DONA BÁRBARA  Foi a senhora a primeira que esqueceu esta circunstância.
 
FILOMENA  Não me obrigue... 
 
DONA BÁRBARA  Eu retiro-me para nunca mais pôr os pés aqui.
 
FILOMENA  Estimo muito.
 
DONA BÁRBARA  E fique sabendo que o Chico... 
 
FILOMENA (com dignidade)  Minha senhora. (Cumprimenta e sai)
 
BEATRIZ  Au revoir. (Sai)
 
DONA BÁRBARA  Emproada, sirigaita, patoteira! Hei de tomar uma desforra. (Sai zangada)
 
 
CENA VI Pereira, Inácio, Arruda, Ribeiro, Azambuja, mais pessoas e o Criado.
 
CRIADO  Sua Excelência não está. Os senhores que quiserem esperar podem ficar nesta sala.
 
PEREIRA  O homem está em casa.
 
INÁCIO  Eu cá hei de falar-lhe hoje, por força, haja o que houver.
 
ARRUDA  E eu também. Só se ele não passar por aqui.
 
RIBEIRO  O que é bem possível, porque a casa tem saída para outra rua.
 
AZAMBUJA  Há quatro meses que ando neste inferno.
 
RIBEIRO  Console-se comigo, que ando pretendendo um lugar há cinco anos, e ainda não mo deram.
 
ARRUDA  Há cinco anos?!
 
RIBEIRO  Sim, senhor.
 
AZAMBUJA  E tem esperanças de obtê-lo?
 
RIBEIRO  Olé! Já atravessei seis ministérios. Venho aqui duas vezes por dia.
 
INÁCIO  E eu que vim dos confins do Amazonas; e aqui estou há seis meses a fazer despesas, hospedado na casa do Eiras, com uma numerosa família, composta de mulher, seis filhos, duas cunhadas, três escravas, quatorze canastras, um papagaio e um corrupião!
 
 
CENA VIII Os mesmos e Ernesto.
 
ERNESTO  Meus senhores.
 
PEREIRA  Oh! Senhor Ernesto.
 
ERNESTO  Como está, senhor Pereira?
 
PEREIRA  O seu negócio? Ainda nada?
 
ERNESTO  Qual! Trago agora aqui uma carta... Vamos ver se com esta arranjo o que quero. É de um deputado mineiro governista.
 
PEREIRA  É bom empenho?
 
ERNESTO  Quem me arranjou foi um negociante da rua dos Beneditinos, em cuja casa acha-se hospedado o tal deputado.
 
RIBEIRO  Meu amigo, vá à fonte limpa, procure um deputado da oposição e digo-lhe desde já que está servido.
 
ERNESTO  Muito se sofre!
 
AZAMBUJA  É verdade.
 
 
CENA VIII Os mesmos e Filipe.
 
FILIPE  Adeus, senhor Ernesto.
 
ERNESTO  Adeus, Filipe.
 
FILIPE  Ainda perde seu tempo em vir por aqui?
 
ERNESTO  Por quê?
 
FILIPE  Porque o ministério está morto!
 
PEREIRA  Caiu?!
 
FILIPE  A esta hora já deve ter caído. A rua do Ouvidor está assim. (Fechando a mão) Não se pode entrar na Câmara. Há gente nas galerias como terra.
 
ERNESTO  O partido dos cachorros está bravo?
 
FILIPE  Os cachorros?! Estão danados! A tal estrada não passa, não, mas é o mesmo. O Doutor Monteirinho levantou-se para falar... 
 
ERNESTO  Ah! Ele falou hoje?
 
FILIPE  Qual! Não pôde dizer uma palavra. Rompeu uma vaia das galerias, mas uma vaia de tal ordem, que foi preciso entrar a força armada na Câmara.
 
PEREIRA  Lá se vai o meu lugar da Alfândega.
 
AZAMBUJA  E o meu.
 
RIBEIRO  E o meu.
 
FILIPE (levando Ernesto para um lado)  Ainda não a vi hoje.
 
ERNESTO  Mas é verdade tudo isto?
 
FILIPE  Como é bela!
 
ERNESTO  Com os diabos! que transtorno!
 
FILIPE  Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões"... 
 
ERNESTO  Comia uma empada, comia uma empada... 
 
FILIPE  É isso mesmo.
 
ERNESTO  Irra! Não me amoles.
 
PEREIRA (para Ernesto)  O senhor quer saber onde está a minha esperança?
 
ERNESTO  Onde?
 
PEREIRA (tirando um bilhete de loteria do bolso)  Aqui neste bilhete do Ipiranga.
 
FILIPE  Eu também tenho um. (Vendo na carteira) Querem ver que o perdi! Não, cá está. A esta hora já deve ter andado a roda. Com a breca, nem me lembrava! (Olhando para dentro) Se pudesse ao menos verlhe a pontinha do nariz.
 
PEREIRA  Vou ver o que tirei. (Sai)
 
FILIPE  E eu também. Mas qual! Sou de um caiporismo horrendo. Adeus, senhor Ernesto. (Olhando para todos os lados) Onde estará ela?! (Sai)
 
 
CENA IX Os mesmos, menos Pereira e Filipe e Doutor Raul.
 
ERNESTO  Esta notícia veio transtornar-me os planos.
 
AZAMBUJA  Talvez seja mentira.
 
ERNESTO  As más novas são sempre verdadeiras.
 
RAUL  Ora, vivam, meus senhores!
 
ERNESTO  Doutor Raul, o que há acerca do ministério?
 
RAUL  Dizem que está em crise.
 
ERNESTO  Mas há esperanças?
 
RAUL  Hum!... Não sei. Vejo as coisas muito embrulhadas.
 
 
CENA X Os mesmos e Mister James.
 
RAUL  Oh! Mr. James! Fazia-o pela Câmara.
 
MR. JAMES  Mim só sai de casa hoje pra vem aqui... 
 
RAUL  Os negócios estão feios.
 
MR. JAMES  Oh! Yes, muito feias.
 
RIBEIRO (a Ernesto)
 
Este é o tal inglês da patota de que os jornais falam hoje?
 
ERNESTO  É o bicho.
 
MR. JAMES  Você quer sabe de uma coisa. Mim estar muito stupíde.
 
RAUL  Por quê?
 
MR. JAMES  Eu já deve saber que este ministéria não pode dura muite tempo, e mim cai na asneira de faz negócia com ele.
 
RAUL  Mas em que se fundava para saber disto?
 
MR. JAMES  Ora escuta vosmincê, presidenta de Conselho onde estar nascida?
 
RAUL  No Pará.
 
MR. JAMES  Ministra de Império?
 
RAUL  Em São Paulo.
 
MR. JAMES  Ministra de Justiça?
 
RAUL  Creio que é de Piauí.
 
MR. JAMES  No senhor; de Paraíba.
 
RAUL  Ou isso.
 
MR. JAMES  Ministra de Marinha estar de Alagoas, ministra de Estrangeiros... 
 
RAUL  Este é do Paraná.
 
MR. JAMES  Yes. Ministra de Guerra estar de Maranhão, de Fazenda, Rio de Janeiro.
 
RAUL  Mas o que tem isto?
 
MR. JAMES  Não tem uma só ministra de Bahia. E ministéria sem baiana — estar defunta logo, senhor.
 
RAUL  Tem razão.
 
MR. JAMES  Baiana estar gente muito poderosa. Não se pode esquece dela.
 
RAUL  O ministério estava fraco, lá isso é verdade.
 
MR. JAMES  E tem inda mais; Ministra da Marinha... 
 
RAUL  O Doutor Monteirinho?
 
MR. JAMES  Yes. Ministra da Marinha estar muito pequenina.
 
RAUL  Muito moço é que o senhor quer dizer?
 
MR. JAMES  All right. No pode ser estadista e governa país logo que sai de escola. É preciso aprende primeiro, aprende muito, senhor. Todo mundo estar caçoanda, e chama ministra de Cazuzinhe. O senhor sabe dizer o que é Cazuzinhe?
 
RAUL  É um nome de família.
 
MR. JAMES  How? Mas família fica em casa, e no tem nada com ministéria. Vosmecês aqui têm costume de chama homem de estado de Juquinha, Lulu, Fernandinha. Governa estar muito sem-cerimônia.
 
 
CENA XI Os mesmos, Beatriz e Filomena.
 
MR. JAMES  Como está, senhorra?
 
RAUL  Minhas senhoras.
 
FILOMENA  Veio da Câmara? MR. JAMES  No senhorra.
 
FILOMENA  Pois não foi lá? No dia em que se deve decidir o seu negócio... 
 
BEATRIZ (a Raul)  Mamãe ainda não teve tempo de falar com papai acerca da sua pretensão.
 
MR. JAMES  Meu negócia estar perdida.
 
FILOMENA  Tenho fé que não.
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
 
CENA XII Os mesmos e Felizardo.
 
FELIZARDO (entrando apressado) Caiu o ministério!
 
FILOMENA  Caiu! Ai! Falta-me a luz! (Cai desmaiada em uma cadeira)
 
BEATRIZ (correndo)  Mamãe.
 
RAUL  Dona Filomena!
 
MR. JAMES (para todos)  Ó no incomoda! Vai passa já.
 
ERNESTO  Ora sebo! (Sai)
 
INÁCIO  Ora bolas. (Sai)
 
ARRUDA  Ora pílulas. (Sai)
 
RIBEIRO  Ora, com os diabos. (Sai)
 
AZAMBUJA  Ora... (Sai)
 
MR. JAMES (vendo Filomena levantar-se)  Estar pronta, já passou.
 
FELIZARDO  E o pobre do Cazuzinha que tinha tanta coisa que fazer! Também lhes digo, que se ele consegue falar, a despeito das vaias da galeria, o ministério tinha vida por cinco anos, pelo menos.
 
RAUL  Deveras?
 
FELIZARDO  É um rapaz muito hábil. O senhor não imagina que discurso tinha ele preparado. Ontem recitou-mo todo. Sabia-o na ponta da língua.
 
RAUL  Foi uma pena! (À parte) E lá se foi o meu emprego, que é o que mais sinto.
 
FELIZARDO  Como não vai ficar a Maria José quando souber da notícia!
 
RAUL (a Beatriz)  Minha senhora; creio estar desligado dos compromissos que contraí para com vossa excelência.
 
BEATRIZ Eu já o sabia; não era preciso mo dizer. O que o senhor doutor queria era uma posição social e não a minha mão!
 
RAUL (à parte)  Façamos cara de não ter compreendido.
 
 
CENA XIII Felizardo, Raul, Beatriz, Filomena, Mister James, Brito e Doutor Monteirinho.
 
BRITO (abraçando Filomena)  Minha Filomena, tenho necessidade de abraçar-te. Vem cá, Beatriz, abraça-me também. (Beatriz abraça) Foram vocês que me perderam; mas como isto é bom.
 
MR. JAMES  Mim sente muito derrota de vossa excelência; agradece tudo que faz pela minha privilégia e pede desde já a vossa excelência um apresentação para nova ministéria que tem de subir.
 
FELIZARDO (que deve estar abraçado com Monteirinho)  Ah! Cazuza! Não há gosto perfeito neste mundo!
 
DR. MONTEIRINHO  E mamãe, que não teve a ventura de me ver de fardão!
 
FELIZARDO  Mas há de tê-la muito breve; eu te prometo.
 
 
CENA XIV Os mesmos e Criado.
 
CRIADO  Trouxeram estes jornais e esta carta. (Sai)
 
BRITO  O que será? (vendo o sobrescrito da carta, para Filomena) É para ti.
 
FILOMENA (abrindo a carta e lendo)  "Minha senhora, tenho a honra de enviar a vossa excelência o último número da Espada de Dâmocles, que acaba de sair agora mesmo e de chamar a atenção de vossa excelência para a notícia, publicada sob o título À última hora. Sua veneradora e criada, Bárbara Coelho."(Fecha a carta) Que infame!
 
BRITO  Lê. (Filomena quer rasgar o jornal) Lê, eu terei a coragem de ouvir.
 
FILOMENA (lendo)  "Caiu finalmente o ministério das patotas. Parabéns aos nossos concidadãos, estamos livres do homem que mais tem sugado os cofres públicos em proveito dos seus afilhados."
 
BRITO  Saio do ministério mais pobre do que entrei, porque estou crivado de dívidas, e com a pecha de ladrão!
 
FILOMENA  E o que pretendes fazer?
 
 
BRITO  Nada neste país, infelizmente, esta é a sorte de quase todos que descem do poder.
 
 
CENA XV Filomena, Raul, Doutor Monteirinho, Beatriz, Mister James, Felizardo, Brito e Filipe. 
 
MR. JAMES (a Filipe que entra às carreiras, ofegante, e cai-lhe desmaiado nos braços) 
 
How! Tudo estar desmaia nesta casa!
 
FILOMENA  Vão ver depressa vinagre. (Raul corre para dentro)
 
BEATRIZ  Como ele está pálido! Vou buscar água de Colônia. (Corre para dentro)
 
MR. JAMES  Oh! nó, nó, é melhor traz cognac.
 
DR. MONTEIRINHO  Vou buscá-lo. (Sai correndo)
 
BRITO (batendo-lhe nas mãos)  Senhor, senhor! É o pobre do repórter!
 
BEATRIZ  Aqui está. (Põe água de Colônia no lenço e chega-lhe ao nariz. Filipe abre os olhos) Ça y est! Il est gueri!
 
FILIPE  Onde estou? Ah! (Saí dos braços de Mister James)
 
DR. MONTEIRINHO  Cá está o conhaque. Já não é preciso?
 
BRITO  O que tem?
 
FILIPE (não podendo falar)  Comprei este bilhete. (Mostra-o, tirando-o do bolso) Vou ver a lista... 
 
MR. JAMES  Branca.
 
FILIPE  E tirei duzentos contos!
 
FILOMENA  Duzentos contos!
 
BEATRIZ  Ah! Bah!
 
FILIPE (ajoelhando-se aos pés de Beatriz)  Minha senhora, eu adoro-a, idolatro-a. Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões", a senhora comia uma empada. Quer aceitar a minha mão?
 
BEATRIZ  De tout mon coeur.
 
MR. JAMES  All right! Boa negócia.COMÉDIA ORIGINAL DE COSTUMES EM TRÊS ATOS
PERSONAGENS: UM VENDEDOR DE BILHETES DE LOTERIA PRIMEIRO VENDEDOR DE JORNAIS SEGUNDO (idem) TERCEIRO (idem) QUARTO (idem) DR. RAUL MONTEIRO  ERNESTO GOULARTE PEREIRA DESEMBARGADOR ANASTÁCIO FLORINDO FRANCISCO COELHO  BÁRBARA COELHO (sua mulher) MARIQUINHAS (sua filha) FELICIANINHA  FILOMENA BEATRIZ  FILIPE FLECHA  MR. JAMES  CONSELHEIRO FELÍCIO DE BRITO (presidente do Conselho) MINISTRO DA GUERRA MINISTRO DO IMPÉRIO MINISTRO DE ESTRANGEIROS MINISTRO DA JUSTIÇA DR. MONTEIRINHO (ministro da marinha) SENADOR FELIZARDO PEREIRA INÁCIO ARRUDA RIBEIRO AZAMBUJA
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https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/CAIU_O_MINIST_RIO_.jpg
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ATO I O teatro representa parte da rua do Ouvidor. Ao fundo a redação do "Globo", a casa imediata, a confeitaria do "Castelões" e o armarinho vizinho. O interior destes estabelecimentos deve ser visto pelos espectadores. Ao subir o pano a escada que comunica o pavimento inferior do escritório do "Globo" com o superior deve estar ocupada por muitos meninos, vendedores de gazetas; algumas pessoas bem vestidas conversam junto ao balcão. Em casa do "Castelões" muita gente conversa e come. No armarinho grupos de moças, encostadas ao balcão, conversam e escolhem fazendas. Grande movimento na rua.
 
CENA I Um vendedor de bilhetes de loteria, 1º, 2º, 3º e 4º vendedores de jornais, Doutor Raul Monteiro e Ernesto.
 
VENDEDOR DE BILHETES  Quem quer os duzentos contos? Os duzentos contos do Ipiranga!
 
PRIMEIRO VENDEDOR DE JORNAIS  A "Gazeta da Tarde", trazendo a queda do ministério, a lista da loteria, também trazendo a crônica parlamentar.
 
SEGUNDO VENDEDOR  A "Gazeta de Notícias". Traz a carta do Doutor Seabra.
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha".
 
QUARTO VENDEDOR A "Espada de Dâmocles", trazendo o grande escândalo da Câmara dos Deputados, a história do ministério, o movimento do porto, e também trazendo o assassinato da rua do Senado.
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha" e o "Cruzeiro".
 
RAUL MONTEIRO (que deve estar parado à porta do "Globo" a ler os telegramas; voltando-se e vendo Ernesto, que sai do "Castelões")  Oh! Ernesto, como vais?
 
ERNESTO  Bem. E tu?
 
RAUL  Então? Nada ainda?
 
ERNESTO  Ouvi dizer agora mesmo no Bernardo que foi chamado para organizar o ministério o Faria Soares.
 
RAUL  Ora! Ora! O Soares partiu ontem com a família para Teresópolis.
 
ERNESTO  É verdade; porém disseram-me que ontem mesmo recebeu o telegrama e que desce hoje. Aí vem o Goularte.
 
RAUL  Homem, o Goularte deve estar bem informado.
 
 
CENA II Os mesmos e Goularte.
 
RAUL  Oh! Goularte, quem foi o chamado?
 
GOULARTE  O Silveira de Assunção.
 
RAUL  O que estás dizendo?
 
GOULARTE  A pura verdade.
 
ERNESTO  Com os diabos! Por esta não esperava eu. Estou aqui, estou demitido.
 
RAUL  Mas isto é de fonte pura?
 
GOULARTE  E até já está organizado o ministério.
 
RAUL  Quem ficou na Fazenda?
 
GOULARTE  O Rocha.
 
RAUL  E na Justiça?
 
GOULARTE  O Brandão. Para a Guerra entrou o Felício; para a Agricultura o Barão de Botafogo.
 
ERNESTO  O Barão de Botafogo?
 
GOULARTE  Sim, pois não o conheces! É o Ladislau Medeiros.
 
ERNESTO  Ah! já sei.
 
GOULARTE  Para Estrangeiros o Visconde de Pedregulho; para a pasta do Império o Serzedelo.
 
RAUL  Misericórdia!
 
GOULARTE  E para a Marinha o Lucas Viriato.
 
RAUL  Lucas Viriato?! Quem é?
 
ERNESTO  Não o conheço.
 
GOULARTE  Eu também nunca o vi mais gordo, mas dizem que é um sujeito muito inteligente.
 
 
CENA III Os mesmos e Comendador Pereira.
 
PEREIRA  Bom dia, meus senhores. (Aperta-lhes as mãos)
 
RAUL  Ora viva, senhor Comendador.
 
PEREIRA  Então, já sabem?
 
RAUL  Acabamos de saber agora mesmo. O presidente do Conselho é o Silveira de Assunção.
 
PEREIRA  Não há tal, foi chamado, é verdade, mas não aceitou.
 
GOULARTE  Mas, senhor Comendador, eu sei... 
 
PEREIRA  Também eu sei que o homem esteve cinco horas em São Cristóvão, e que de lá saiu à meia-noite, sem se haver decidido coisa alguma.
 
RAUL (vendo Anastácio entrar pela direita)  Ora aí está quem nos vai dar notícias frescas.
 
ERNESTO  Quem é?
 
RAUL  O Conselheiro Anastácio, que ali vem. 
 
(Seguem para a direita, e formam um grupo)
 
GOULARTE  Chama-o.
 
 
CENA IV Os mesmos, Anastácio e vendedores.
 
VENDEDOR DE BILHETES (que juntamente com os outros tem passado pela rua, vendendo ao povo os objetos que apregoam durante as cenas anteriores)  Quem quer os duzentos contos do Ipiranga!
 
PRIMEIRO VENDEDOR  A "Gazeta da Tarde", a 40 réis.
 
SEGUNDO VENDEDOR  A "Gazeta de Notícias".
 
TERCEIRO VENDEDOR  A "Gazetinha". Traz a queda do ministério. 
 
(Saem os vendedores)
 
RAUL  Senhor Conselheiro, satisfaça-nos a curiosidade. Quem é o homem que nos vai governar?
 
ANASTÁCIO  Pois ainda não sabem?
 
GOULARTE  São tantas as versões,...
 
ANASTÁCIO  Pensei que estivessem mais adiantados. Ora ouçam lá. (Tira um papelinho do bolso; todos preparam-se para ouvi-lo com atenção) Presidente do Conselho, Visconde da Pedra Funda; ministro do Império, André Gonzaga.
 
GOULARTE  Bem bom, bem bom.
 
ANASTÁCIO  Da Marinha, Bento Antônio de Campos.
 
RAUL  Não conheço.
 
ERNESTO   Nem eu.
 
GOULARTE  Nem eu.
 
PEREIRA  Nem eu.
 
ANASTÁCIO  Eu também não sei quem seja. Ouvi dizer que é um sujeito dos sertões de Minas.
 
RAUL  E por conseguinte muito entendido em coisas de mar.
 
ANASTÁCIO  Ministro da Fazenda, o Barão do Bico do Papagaio.
 
RAUL  Para a Fazenda?!
 
ANASTÁCIO  Sim, senhor.
 
RAUL  Porém este homem nunca deu provas de si. É pouco conhecido... Nas circunstâncias em que se acha o país.
 
GOULARTE  Não diga isto, e aquele à parte que ele deu ao Ramiro... Lembra-se, senhor Conselheiro?
 
ANASTÁCIO  Não.
 
GOULARTE  Um à parte dado na questão do Xingu.
 
RAUL  Era melhor que o tivessem deixado à parte. Vamos adiante.
 
ANASTÁCIO  Ministro da Guerra, Antônio Horta.
 
ERNESTO  Magnífico!
 
RAUL  Qual magnífico.
 
ANASTÁCIO  Da Agricultura, João Cesário, e fica na pasta dos Estrangeiros o presidente do Conselho.
 
RAUL  Lá estão pondo um telegrama na porta do "Globo". Vamos ver o que é. 
 
(Dirigem-se à porta do "Globo", ao redor da qual reúnem-se todos que estão em cena, e depois retiram-se. Ernesto entra no "Globo")
 
 
CENA V Dona Bárbara Coelho e Mariquinhas.
 
DONA BÁRBARA (entrando com Mariquinhas pela esquerda)  Que maçada. Se eu soubesse que esta maldita rua estava hoje neste estado, não tinha saído de casa.
 
MARIQUINHAS  Pois olhe, mamãe; é assim que eu gosto da rua do Ouvidor.
 
DONA BÁRBARA  Tomara eu já que se organize o ministério, só para assim ver se teu pai sossega. Encasquetou-se-lhe na cabeça que há de ser por força ministro.
 
MARIQUINHAS  E por que não, mamãe? Os outros são melhores do que ele?!
 
DONA BÁRBARA  E vive há três dias encerrado em casa, como um verdadeiro maluco. Por mais que lhe diga — seu Chico, vá para a Câmara, contente-se em ser deputado, que não é pouco, e o homem a dar-lhe. Já quando caiu o outro ministério foi a mesma coisa. Passa o dia inteiro a passear de um lado para o outro; assim que ouve o ruído de um carro, ou o tropel de cavalos corre para a janela, espreita pelas frestas da veneziana, e começa a dizer-me todo trêmulo: — E agora, é agora, Barbinha, mandaram-me chamar. De cinco em cinco minutos pergunta ao criado: — Não há alguma carta para mim? Que aflição de homem, Santo Deus! Aquilo já é moléstia! Parece que se ele não sair ministro desta vez, arrebenta!
 
MARIQUINHAS  Faz papai muito bem. Se eu fosse homem também havia de querer governar.
 
DONA BÁRBARA  Pois eu se fosse homem acabava com câmaras, com governo, com liberais, conservadores e republicanos e reformava este país.
 
 
CENA VI As mesmas e Felicianinha.
 
MARIQUINHAS  Gentes, Dona Felicianinha por aqui!
 
FELICIANINHA (com embrulhos)  É verdade. Como está, Dona Bárbara? (Aperta a mão de Bárbara e de Mariquinhas e beijam-se)
 
MARIQUINHAS  Como vai a Bibi? A Fifina está boa? Há muito tempo que não vejo a Cocota.
 
FELICIANINHA  Todos bons. Eu é que não tenho andado muito boa. Só a necessidade me faria sair hoje de casa.
 
DONA BÁRBARA  É o mesmo que me acontece.
 
FELICIANINHA  Fui ao Palais-Royal experimentar um vestido, fui depois ao dentista, entrei no Godinho para ver umas fitas para o vestido da Chiquinha... 
 
MARIQUINHAS  Nós também estivemos no Godinho. Não viu a Filomena Brito com a filha?
 
FELICIANINHA  Vi, por sinal que tanto uma como a outra estavam caiadas que era um Deus nos acuda.
 
DONA BÁRBARA  Andam constantemente assim. E a sirigaita da filha a estropiar palavras em francês, inglês, alemão e italiano, para mostrar aos circunstantes que já esteve na Europa.
 
FELICIANINHA  Eu acho uma coisa tão ridícula! E o que quer dizer vestir-se a mãe igual à filha!
 
DONA BÁRBARA  E moda cá da na terra. Andam as velhas por aí todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara! Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em Minas nunca vi disto e estou com cinquenta anos!
 
 
 
CENA VII Dona Bárbara, Mariquinhas, Felicianinha, Filomena e Beatriz.
 
MARIQUINHAS  Lá vem a Filomena com a filha.
 
DONA BÁRBARA  Olhem só que sirigaitas!
 
FILOMENA (saindo com Beatriz do armarinho do fundo)  Como está, Dona Bárbara? 
 
(Cumprimentam-se todas, beijando-se)
 
DONA BÁRBARA  Como está, minha amiga?
 
MARIQUINHAS (para Beatriz)  Sempre bonita e interessante.
 
DONA BÁRBARA (para Filomena)  E a senhora cada vez mais moça.
 
FILOMENA  São os seus olhos.
 
FELICIANINHA (para Beatriz)  Como tem passado?
 
BEATRIZ  Assim, assim. Çá vá doucement, ou como dizem os alemães: so, so.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Começa ela com a algaravia.
 
BEATRIZ Não tive o prazer de vê-la no último baile do Cassino. Esteve ravissant, esplendide. O high-life do Rio de Janeiro estava representado em tudo quanto possui de mais recherchè. O salão iluminado a giorno, e a last fashion exibia os seus mais belos esplendores. Prachtvoll, ausgezeichnet, como dizem os alemães.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Olha só para aquilo. Ausgetz... Parece que tem um pedaço de cará fervendo na boca.
 
FILOMENA  A Beatriz causou sensação. Não leram a descrição da sua toilette?
 
DONA BÁRBARA  Ouvi dizer alguma coisa a respeito.
 
FILOMENA  Pois saiu em todos os jornais, no "Globo", na "Gazetinha", na "Gazeta da Tarde", na "Gazeta de Notícias"...
 
BEATRIZ  O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill'or e inteiramente curta.
 
FELICIANINHA  Vestido curto para baile?
 
BEATRIZ  É a última moda.
 
MARIQUINHAS  Onde mandou fazê-lo?
 
FILOMENA  Veio da Europa.
 
BEATRIZ E foi feito pelo Worth.
 
DONA BÁRBARA (baixo a Mariquinhas)  Com toda a certeza foi feito em casa, com aviamentos comprados em algum armarinho muito cangueiro.
 
FILOMENA  Mas não vale a pena mandar vir vestidos da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisas.
 
BEATRIZ  O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas... enfim, tout ce qu'il y a de camelote.
 
FELICIANINHA  Não é tanto assim.
 
BEATRIZ  Agora mesmo acabamos de encontrar com as filhas do Trancoso, vestidas de um modo... 
 
FILOMENA  É verdade, vinham muito ridículas.
 
BEATRIZ  Escorridas, coitadas, que pareciam um chapéu de sol fechado. Sapristi!
 
FILOMENA  E onde é que foi a mulher do Seabra buscar aquele vestido branco todo cheio de fofinhos e crespinhos!
 
BEATRIZ  Parecia que estava vestida de tripas. C'est incroyable.
 
DONA BÁRBARA Deixe estar que na Europa também se há de ver muita coisa ridícula. Não é só aqui que... 
 
BEATRIZ  Disto lá nunca vi; pelo menos em Paris.
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Desfrutável! (Para Mariquinhas, alto) Menina, vamos embora, que já é tarde.
 
MARIQUINHAS  Adeus, Dona Beatriz.
 
BEATRIZ  Addio. (Beijam-se todas reciprocamente)
 
FILOMENA (para Dona Bárbara) Apareça; sabe que sou, fui e serei sempre sua amiga.
 
DONA BÁRBARA  Da mesma forma. E se assim não fosse também dizia-lhe logo; eu cá sou muito franca.
 
FILOMENA  É por isso é que a estimo e considero. 
 
(Saem Dona Bárbara, Mariquinhas e Felicianinha)
 
 
CENA VIII Beatriz e Filomena.
 
BEATRIZ (vendo Mariquinhas)  Olhe só como vai aquele chapéu especado no alto da cabeça.
 
FILOMENA E a mãe cada vez se veste pior. Não parece que já tem vindo ao Rio. Viste o Doutor Raul?
 
BEATRIZ  Não senhora.
 
FILOMENA  É singular! Por que desapareceu ele lá de casa?
 
BEATRIZ  Não sei! Alguma intriga talvez. Sou tão infeliz... 
 
FILOMENA  Pois olha, aquele era um excelente partido. Moço, talentoso.
 
BEATRIZ  Tout a fait chique.
 
FILOMENA  E tout a fait, (faz sinal de dinheiro) que é o principal.
 
BEATRIZ  Se papai fosse chamado agora para o ministério... 
 
 
CENA IX As mesmas, Raul e Goularte.
 
RAUL (entrando do fundo com Goularte e vendo Beatriz e Filomena)  Oh! diabo! lá está a mulher do Conselheiro Brito com a filha... Se me descobrem estou perdido.
 
GOULARTE Por quê?
 
RAUL Por quê? Porque a filha namora-me, desgraçado, julga-me muito rico, e noutro dia no Cassino, caindo eu na asneira de dizer-lhe que era bela, encantadora, essas banalidades, tu sabes, que costumamos dizer às moças nos bailes, o diabinho da rapariga fez-se vermelha, abaixou os olhos, e disse-me: — Senhor Doutor Raul, por que não me pede a papai?
 
GOULARTE  Pois pede-lhe.
 
RAUL  Nessa não caio eu! É pobre como Jó, e mulher sem isto (Sinal de dinheiro) está se ninando. Vamos embora. 
 
(Saem)
 
 
CENA X Filomena, Beatriz, Mister James e Pereira.
 
FILOMENA  E Mister James? Não me disseste que ele também?... 
 
BEATRIZ  Faz-me a corte, é verdade; porém aquilo é pássaro bisnau, e não cai assim no laço com duas razões.
 
FILOMENA  Dizem que é o inglês mais rico do Rio de Janeiro.
 
BEATRIZ  Isto sei eu.
 
MR. JAMES (saindo do "Castelões" com Pereira e vendo as duas)  How? Mim não póde fica aqui; vai embora depressa, senhor Comendador.
 
PEREIRA Por quê?
 
MR. JAMES  Semana passada, mim estar na baile de Cassino, diz aquele menina, que ele estar bonita; menina estar estúpida, e diz a mim — How? Por que voucê não mi pede a papai?
 
PEREIRA  Bravo! E por que não se casa com ela?
 
MR. JAMES  Oh! no; mim não estar vem a Brasil pra casa. Mim vem aqui pra faz negócia. Menina não tem dinheiro, casamento estar mau negócia. No, no, no quer. Eu vai embora. (Sai para um lado, e Pereira para outro)
 
FILOMENA (tirando uma carteirinha do bolso)  Vejamos o que há ainda a fazer.
 
BEATRIZ  Vamos à Notre-Dame ver os colarinhos e ao Boulevard do Manuel Ribeiro.
 
FILOMENA  É verdade; vamos Já. 
 
(Saem)
 
 
CENA XI Ernesto e Filipe Flecha.
 
FILIPE (saindo do armarinho com uma caixa de papelão debaixo do braço, a Ernesto, que sai do "Globo") Senhor Ernesto, vê aquela mulher?
 
ERNESTO  Qual delas? Uma é a senhora do Conselheiro Brito, a outra é a filha.
 
FILIPE  Aquela mulher é a minha desgraça.
 
ERNESTO  Quem?... A filha?
 
FILIPE  Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana, no "Castelões". Comia uma empada! Com que graça ela segurava a apetitosa iguaria entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. (Imita) Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento.
 
ERNESTO  Mas, desventurado, não sabes?... 
 
FILIPE  Já sei o que vai dizer-me. Que sou um simples caixeiro de armarinho e que não posso aspirar à mão daquele anjo. Mas dentro do peito deste caixeiro pulsa um coração de poeta. Não pode imaginar as torturas por que tenho passado desde o instante em que a vi... Vi-a pela primeira vez no "Castelões"... 
 
ERNESTO  Comia uma empada. Já me disseste.
 
FILIPE  Mas o que ainda não lhe disse é que por causa dela tenho chuchado as maiores descomposturas dos patrões, e que em um belo dia ficarei na rua a tocar leques com bandurras. A sua imagem não me sai um só instante da cabeça. Estou no armarinho; se me encomendam linha dou marcas de lamparinas; se gritam retrós preto trago sabonetes; a um velho que me pediu ontem suspensórios meti-lhe nas mãos uma bisnaga! O homem gritou, o patrão chamoume de burro, os fregueses tomaram pagode comigo. Estou desmoralizado.
 
ERNESTO  Está bom, já sei.
 
FILIPE  Não pode saber, seu Ernesto.
 
ERNESTO  Olha, se o patrão te vê de lá a conversar aqui, estás arranjado.
 
FILIPE  Noutro dia à noite, quando os outros caixeiros dormiam, eu levantei-me, acendi a vela, e escrevi este soneto. (Tira um papel do bolso e lê) Ouça só o princípio: Quando te vejo radiante e bela, Por entre rendas, filós e escumilha Meu coração ardente se humilha, E minha alma murmura é ela!
 
ERNESTO  Magnífico! Está muito bom.
 
FILIPE  Mandei-o para a "Gazetinha". Pois querem saber o que fizeram? (Tirando a "Gazetinha" do bolso e mostrando) Leia. É aqui na correspondência.
 
ERNESTO (lendo)  "Sr. P. F."
 
FILIPE  Filipe Flecha, sou eu.
 
ERNESTO (lendo)  "Os seus versos cheiram a metro e a balcão; o poeta não passa talvez de um caixeiro de armarinho." (Rindo) É boa! É boa!
 
FILIPE  O maldito filó e a escumilha comprometeram-me. Não leio mais este papelucho. (Sobe) Lá está ela parada à porta do Farani.
 
 
CENA XII Os mesmos, 1º Vendedor, 2° Vendedor, 3° idem, 4° idem (saindo do "Globo").
 
PRIMEIRO VENDEDOR  O "Globo" da tarde a 40 réis.
 
SEGUNDO VENDEDOR  O "Globo", trazendo o ministério e a lista da loteria.
 
TERCEIRO VENDEDOR  O "Globo".
 
QUARTO VENDEDOR  O "Globo" a 40 réis.
 
ERNESTO  Vejamos se já há alguma coisa de novo. (Compra. Para Filipe) Não queres saber quem foi chamado para o ministério?
 
FILIPE  Que me importa o ministério? O meu ministério é ela! Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões". Ela comia... 
 
ERNESTO  Uma empada, com os diabos, já sei; não me amoles. (Sai)
 
 
CENA XIII Filipe e Vendedor de Bilhetes.
 
VENDEDOR DE BILHETES A sorte grande do Ipiranga!... Quem quer os duzentos contos!
 
FILIPE  Oh! Como te amo!
 
VENDEDOR (para Filipe)  Não quer os duzentos contos?
 
FILIPE  Deixa-me.
 
VENDEDOR  Fique com este número que é o último.
 
FILIPE  Não quero... 
 
VENDEDOR  Eu tenho um palpite de que o senhor apanha a taluda.
 
FILIPE Homem, vá-se embora.
 
VENDEDOR  Veja só o número.
 
FILIPE (à parte)  Quem sabe se não está aqui a minha felicidade?!
 
VENDEDOR  Então, não se tenta?
 
FILIPE (à parte, tirando dinheiro do bolso)  Lá se vão os últimos vinte e cinco mil réis, que me restam do ordenado deste mês. (Alto) Tome. Não quero ver o número. (Sai o vendedor) Lá seguiu ela para a rua dos Ourives. (Sai correndo)
 
 
 
CENA XIV Mister James e Raul.
 
RAUL (saindo da direita e lendo o "Globo")  "À hora em que entrou a nossa folha para o prelo, ainda não se sabia..." (Continua a ler baixo)
 
MR. JAMES (que vem lendo também o "Globo", entrando por outro lado)  "Os últimos telegramas da Europa anunciam..." (Continua a ler baixo, encontrando-se com Raul)
 
RAUL  Oh! Mister James! Como está?
 
MR. JAMES  How, senhor Raul, como tem passada?
 
RAUL  Então sabe já alguma coisa acerca do ministério?
 
MR. JAMES  Não estar já bem informada. É difícil este crise. Neste país tem duas coisas que não estar bom; é criadas e ministéria. Criadas não quer pára em casa, e ministéria dura três, quatro meses, bumba! Vai em terra. Brasileira não pode suporta governo muite tempa. Quando ministra começa a faz alguma coisa, tudo grita — No presta, homem estar estúpida, homem estar tratanta... 
 
RAUL  Infelizmente é a pura verdade.
 
MR. JAMES  Quando outra sobe diz mesma coisa, muda presidenta de província, subdelegada, inspetor de quarteirão, e país, em vez de anda, estar sempre parada.
 
RAUL  A verdade nua e crua.
 
MR. JAMES  Voucê escusa, se mim diz isto. Tudo quanto faz neste terra não é pra inglês ver?
 
RAUL  Assim dizem.
 
MR. JAMES  Pois então mim estar inglês, mim estar na direita de faz crítica do Brasil.
 
RAUL A maldita política é que tem sido sempre a nossa desgraça.
 
MR. JAMES  Oh! Yes. Vem liberal, faz couse boe, vem conservador desmanche couse boe de liberal.
 
RAUL  E vice-versa.
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
RAUL  E os republicanos?
 
MR. JAMES  How! Não fala em republicanas. Estar gente toda very good. Mas mim não gosta de republicana que faz barulha no meio da rua; governo dá emprega e republicana cala sua boca.
 
RAUL  Mas no número destes que calam a boca com empregos não se compreendem os republicanos evolucionistas; aqueles que, como eu, querem o ideal dos governos sem sangue derramado, sem comoções sociais... 
 
MR. JAMES  Oh! Republicana evolucionista estar a primeira de todos republicanas. Espera de braço cruzado que república aparece; e enquanto república não aparece, republicana estar ministra, deputada, senador, conselheira, tuda. Republicana evolucionista estar partida que tem por partida tira partida de todas as partidas.
 
RAUL  Não é nos partidos que está o nosso mal.
 
MR. JAMES  Sua mal de voucês está no língua. Brasileira fala muito, faz discursa very beautiful, mas país não anda pra adiante com discursa.
 
RAUL  Tem razão.
 
MR. JAMES  País precisa de braças, de comércia, de indústria, de estradas de ferro... 
 
RAUL  É verdade, e a sua estrada para o Corcovado?
 
MR. JAMES  Mim estar em ajuste com companhia. Mas quando pretende compra estrada e que tem promessa de governa pra privilégia, maldita governa cai, e mim deixa de ganha muita dinheira.
 
RAUL  Mas pode obter o privilégio com esta gente.
 
MR. JAMES  Oh! Yes! Para alcança privilégia em que ganha dinheira mim faz tudo, tudo.
 
RAUL  Se eu pudesse alcançar também... 
 
MR. JAMES  Uma privilégia?
 
RAUL  Não; contento-me com um emprego.
 
RAUL  Mas esta notícia é verdadeira?
 
ERNESTO  Está à porta de todos os jornais. Na "Gazetinha", na "Gazeta de Notícias"...
 
GOULARTE  Na "Gazeta da Tarde", no "Cruzeiro"... no "Jornal do Comércio"... 
 
RAUL  Lá estão pregando um papel no "Globo".
 
(Reúnem-se todos junto ao "Globo", menos Raul, Filipe e Mister James, que ficam no proscênio)
 
RAUL (à parte)  Beatriz julga-me rico, ofereço-lhe a mão, que aliás ela já pediu, e apanho um emprego.
 
MR. JAMES (à parte)  Filha de presidenta de conselha estar apaixonada por mim; mim com certeza apanha privilégia.
 
FILIPE (à parte)  Eu amo-a, adoro-a cada vez mais. Ah! que se eu apanho a sorte grande!!
 
RAUL  Está chovendo. (Abre o chapéu-de-chuva)
 
MR. JAMES  É verdade. (Abre o guarda-chuva. Todos abrem guarda-chuvas, menos Filipe)
 
FILIPE (à parte)  Lá vem ela!
 
RAUL (à parte)  Ela!
 
MR. JAMES (vendo Beatriz)  How! 
 
(Ao entrar em cena Beatriz, acompanhada de Filomena, Raul dá-lhe o braço e cobre-a com o chapéu, James dá o braço a Filomena e cobre-a)
 
RAUL  Dou-lhe os meus sinceros parabéns.
 
MR. JAMES  Minhas felicitaçãos.
 
FILOMENA  Obrigada.
 
FILIPE (tomando os embrulhos de Filomena e Beatriz)  Façam o favor, minhas senhoras!
 
BEATRIZ  Não se incomode.
 
FILIPE (à parte)  Que mão, Santo Deus! Estou aqui, estou-lhe em casa.
 
 
 
ATO II Sala elegantemente mobiliada. Portas ao fundo e laterais.
 
CENA I Ernesto e Filipe.
 
ERNESTO (entrando, a Filipe, que deve estar tomando notas em uma pequena carteira)  Filipe?! Por aqui?!
 
FILIPE  E então?
 
ERNESTO  És também pretendente?
 
FILIPE  Não; sou repórter.
 
ERNESTO  Repórter?
 
FILIPE  É verdade. O amor ou é a minha perdição ou há de ser talvez a causa da minha felicidade. Venho aqui todos os dias, extasio-me diante daquelas formas divinas... Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões", ela... 
 
ERNESTO  Comia uma empada.
 
FILIPE  Ah! Já lhe disse?
 
ERNESTO  Milhares de vezes; já sei esta história de cor e salteado. Mas como diabo te fizeste repórter?
 
FILIPE  Desde o dia em que tive a felicidade de encontrar essa mulher na estrada sinuosa, espinhosa, lacrimosa da existência, tornei-me completamente outro homem. A atmosfera do armarinho pesavame, o balcão acachapava-me, o metro desmoralizava-me, e a ideia de ter um patrão encafifava-me... Eu sentia dentro de mim um não sei quê que me dizia: — Filipe Flecha, tu não nasceste para vender agulhas, alfazema e lamparinas marca de pau, ergue a cabeça... 
 
ERNESTO  E ergueste-a.
 
FILIPE  Não, abaixei-a para evitar um cascudo que o patrão pretendia darme em um belo dia em que estava a olhar para a rua, em vez de servir as freguesas, e não voltei mais à loja. Achando-me só, sem em prego, disse com os meus botões: — é preciso que eu faça alguma coisa. Escrever para o público, ver o meu nome em letra redonda, o senhor sabe, foi sempre a minha cachaça. Fiz-me repórter, nas horas vagas escrevo versos, e daqui para jornalista é um pulo.
 
ERNESTO  És mais feliz do que eu.
 
FILIPE  Por quê?
 
ERNESTO  Porque não pretendes sentar-te a uma grande mesa que há neste país, chamada do orçamento, e onde, com bem raras exceções, todos têm o seu talher. Nesta mesa uns banqueteiam-se, outros comem, outros apenas lambiscam. E é para lambiscar um bocadinho, que venho procurar o ministro.
 
FILIPE  Ele não deve tardar.
 
ERNESTO  Fui classificado em primeiro lugar no último concurso da secretaria.
 
FILIPE  Então está com certeza nomeado.
 
ERNESTO  Se a isso não se opuser um senhor de baraço e cutelo, chamado empenho, que tudo ata e desata nesta terra, e a quem até os mais poderosos curvam a cabeça.
 
FILIPE  Aí vem o ministro.
 
 
CENA II Os mesmos, Conselheiro Felício de Brito.
 
ERNESTO (cumprimentando)  Às ordens de Sua Excelência.
 
FILIPE (cumprimentando)  Excelentíssimo.
 
BRITO  O que desejam?
 
ERNESTO  Vinha trazer esta carta para Sua Excelência e implorar-lhe a sua valiosa proteção.
 
BRITO (depois de ler a carta)  Sim, senhor. Diga ao Senhor Senador que hei de fazer todo o possível por servi-lo. Vá descansado.
 
ERNESTO  Eu tenho a observar a Sua Excelência... 
 
BRITO  Já sei, já sei.
 
ERNESTO  Que fui classificado em primeiro lugar.
 
BRITO  Já sei, já sei. Vá. (Ernesto cumprimenta e sai. A Filipe, que deve estar a fazer muitos cumprimentos) O que quer? Ah! É o senhor?
 
FILIPE  Humilíssimo servo de sua excelência. Desejava saber se já há alguma coisa de definitivo.
 
BRITO  Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida a pasta da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades... Não, não diga isto.
 
FILIPE  E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze dias que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro para a Marinha.
 
BRITO  O verdadeiro é não dizer nada. Venha cá logo, e comunicar-lhe-ei então tudo o que houver ocorrido.
 
FILIPE (à parte)  Onde estará ela?
 
BRITO  Vá, vá, venha logo.
 
FILIPE (à parte)  Se eu pudesse vê-la. (Alto) Excelentíssimo. (Cumprimenta e sai)
 
 
CENA III Brito, Filomena e Beatriz.
 
BRITO (toca a campainha; aparece um criado)  Não deixe ninguém entrar nesta sala. 
 
(O criado inclina-se)
 
FILOMENA (que entra com Beatriz, pela esquerda)  E as minhas visitas?
 
BEATRIZ  E as minhas, papai? Voyons. Ça ne se fait pas.
 
BRITO  Porém, minha querida Beatriz, espero aqui os meus colegas, temos que tratar de negócios do Estado, que são negócios muito sério.
 
BEATRIZ  Ça ne fait rien.
 
FILOMENA  Ao menos dê ordem para que deixem entrar Mr. James.
 
BEATRIZ  E o Senhor Raul também.
 
BRITO Valha-me Deus! Vocês alcançam de mim tudo ó que querem. (Para o criado) Quando o Senhor James e o Senhor Raul chegarem, manda-os entrar. (O criado cumprimenta e sai) Estão satisfeitas?
 
BEATRIZ  I love you, meu querido papai.
 
FILOMENA (reparando a sala)  E então? A sala já não parece a mesma!
 
BEATRIZ  E as cortinas estão assorti com a mobília, Mas este tapete é um escarro.
 
FILOMENA  É verdade. Felício, precisamos comprar um tapete. Vi ontem um muito bonito no Costrejean.
 
BRITO  Não compro mais coisa alguma, minha senhora. A senhora pensa porventura que eu aceitei esta prebenda para ainda em cima arruinar-me?
 
FILOMENA  Quando se está em certa posição, não se deve fazer figura ridícula.
 
BEATRIZ  Noblesse oblige, papai.
 
FILOMENA  Não sei o que quer dizer ser ministro e andar de bonde como os outros, ter uma casa modestamente mobiliada, como os outros, não receber, não dar bailes, não dar jantares, como os outros, vestir-se como os outros... 
 
BEATRIZ  É verdade. C'est ridicule.
 
BRITO  Mas, minhas filhas, não há ninguém por aí que não saiba que tenho poucos recursos, que vivo apenas dos meus ordenados. A vida de um homem de Estado é devassada e esmerilhada por todos, desde os mais ínfimos até os mais elevados representantes da escala social. O que dirão se me virem amanhã ostentando um luxo incompatível com os meus haveres?
 
FILOMENA  Se a gente for dar satisfações a tudo o que dizem... 
 
BRITO  E olha que aqui não se cochila para dizer que um ministro é ladrão. O que mais querem vocês de mim? Já obrigaram-me a alugar esta casa em Botafogo.
 
FILOMENA  Devíamos ficar morando em Catumbi?
 
BRITO  E o que tem Catumbi?
 
BEATRIZ  Ora papai.
 
BRITO  Sim, o que tem?
 
BEATRIZ  Não é um bairro como il faut.
 
BRITO  Obrigaram-me a assinar o Teatro Lírico e... camarote.
 
FILOMENA Está visto. Havia de ser interessante ver a família do presidente do Conselho sentada nas cadeiras... 
 
BEATRIZ  Como qualquer Sinhá Ritinha da Prainha ou da Gamboa... Dieu m'en garde! Eu preferiria lá não ir.
 
BRITO  Obrigaram-me mais a ter criados estrangeiros de casaca e gravata branca, quando eu podia perfeitamente arranjar a festa com o Paulo, o Zebedeu e a Maria Angélica.
 
BEATRIZ  Pois não, são frescos, sobretudo o Zebedeu. No outro dia, à mesa de jantar, mamãe disse-lhe: — Vá buscar lá dentro uma garrafa de vinho do Porto, mas tome cuidado, não a sacuda. Quando chegou com a garrafa, mamãe perguntou-lhe: — Sacudiu? — Não senhora, diz ele, mas vou sacudir agora. E começa, zás, zás, zás. (Faz menção de quem sacode) Quelle ímbecile. Aquilo é que os alemães chamam — ein Schafskopf!
 
BRITO  Até a minha roupa vocês querem reformar.
 
FILOMENA  Com franqueza, Felício, a tua sobrecasaca já estava muito sebosa!
 
BEATRIZ  Papai quer fazer a mesma figura que faz o ministro do Império?
 
BRITO  É um homem muito inteligente. Tem um grande tino administrativo.
 
BEATRIZ  Tem, sim, senhor; mas era melhor que ele tivesse um paletó na razão direta da inteligência. E depois, como come, Santo Deus! Segura na faca assim, olhe, (mostra) e mete-a na boca até o cabo, toda atulhada de comida. Choking.
 
BRITO  Em compensação o ministro de Estrangeiros.
 
BEATRIZ  É o melhorzinho deles. Mas não sabe línguas.
 
BRITO  Estás enganada, fala muito bem francês.
 
BEATRIZ  Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor. Diz monsíù, negligè, bordó, e outras que tais.
 
BRITO  Enfim há quinze dias apenas que subi ao poder e já estou cheio de dívidas!
 
FILOMENA  Não é tanto assim.
 
BRITO  Só ao compadre Bastos devo dez contos de réis.
 
FILOMENA  E se não fosse ele, estaríamos representando um papel bem triste.
 
BEATRIZ  Não poderíamos receber às quintas-feiras o high life do Rio de Janeiro.
 
BRITO  Sim, esse high lífe que aqui vem dançar o cotillon, ouvir boa música, saborear-me os vinhos; e que abandonar-me-á com a mesma facilidade com que hoje me adula, no dia em que eu não puder mais dispor dos empregos públicos.
 
BEATRIZ  Papai não tem razão.
 
BRITO  Pois bem, minha filha, quer tenha ou não razão, só te peço uma coisa, e faço igual pedido à tua mãe. Não exijam de mim impossíveis. Vocês sabem que nada lhes posso negar. (Tirando o relógio e vendo as horas) Os meus companheiros não tardam. Vou ao meu gabinete; já volto.
 
 
CENA IV Filomena, Beatriz e Mister James.
 
BEATRIZ (sentando-se e lendo um livro, que deve trazer na mão)  É muito bem escrito este romance de Manzoni.
 
FILOMENA  Um tapete novo aqui deve fazer um vistão. Não achas?
 
MR. JAMES (com um rolo debaixo do braço)  Mim pode entra?
 
FILOMENA  Oh! Mr. James!
 
MR. JAMES  Como está, senhorra? (Para Beatriz) Vosmecê vai bem?
 
FILOMENA  Pensei que não viesse.
 
MR. JAMES  Oh! mim dá palavra que vem; mim não falta sua palavra.
 
BEATRIZ  Assim deve ser.
 
FILOMENA  Trouxe os seus papéis?
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
BEATRIZ  O seu projeto é a great attraction do dia.
 
MR. JAMES  Projeto estar muita grandiosa. (Desenrola o papel e mostra) Carros sai daqui de Cosme Velha, e sobe Corcovada em vinte minutas.
 
BEATRIZ  E estes cachorros que estão aqui pintados?
 
MR. JAMES  Senhorras não entende deste coisa: mim fala com pai de vosmecê, explica o que é todos esses cachorras.
 
FILOMENA  Tudo quanto temos de bom devemos aos senhores estrangeiros.
 
BEATRIZ  C'est vrai. Os brasileiros, com raras exceções, não se ocupam destas coisas.
 
MR. JAMES  Brasileira estar muito inteligenta; mas estar também muito preguiça. Passa vida no rua do Ouvidor a fala de política, pensa só de política de manhã até a noite. Brasileira quer estar deputada, juiz de paz, vereador... Vereador ganha dinheira?
 
FILOMENA  Não, senhor; é um cargo gratuito.
 
MR. JAMES  Então mim não sabe como tudo quer ser vereador. Senhorra já fala com sua marida a respeita de minha projeta?
 
FILOMENA  Não, senhor, mas hei de falar-lhe.
 
MR. JAMES  Sua marida estar engenheira ou agricultor?
 
BEATRIZ  Papai é doutor em Direito.
 
MR. JAMES  É ministra de Império?
 
BEATRIZ  Também doutor em Direito.
 
MR. JAMES  Ministra de Estrangeiras?
 
FILOMENA  Doutor em Direito.
 
MR. JAMES  How! Toda ministéria estar doutor em direita?
 
BEATRIZ  Sim, senhor.
 
MR. JAMES  Na escola de doutor em direita estuda marinha, aprende planta batatas e café, e sabe todas essas coisas de guerra?
 
FILOMENA  Não, senhor.
 
BEATRIZ  Estudam-se leis.
 
MR. JAMES  No Brasil estar tudo doutor em direita. País no indireita assim. Mim não sabe se estar incomodando senhora. 
 
(Sentam-se)
 
BEATRIZ  Oh! o senhor nunca nos incomoda, dá-nos sempre muito prazer.
 
MR. JAMES  Pois mim tem também multo prazer em conversa com vosmecê; (para Beatriz) pois eu gosta muito de brasileiras.
 
BEATRIZ  Mas as inglesas são very beautiful. Eu vi em Londres, no HydePark, verdadeiras formosuras.
 
MR. JAMES  Oh! yes. Inglesas estar muito bonitas, mas brasileira tem mais... tem mais... Como chama este palavra... Eu tem no ponta da língua... Brasileira tem mais pasquim.
 
FILOMENA  Pasquim?!
 
MR. JAMES  No, no, como chama este graça de brasileira?
 
BEATRIZ  Ah! quindins.
 
MR. JAMES  Oh! yes, very well. Quindins.
 
FILOMENA  Muito bem, Mr. James. Falta agora que o senhor confirme o que acaba de dizer casando-se com uma brasileira.
 
MR. JAMES  Mim no pode casa, por ora, porque só tem cinquenta mil libras sterlinas; mas se mim arranja este privilégia, dá palavra que fica em Brasil e casa com brasileira.
 
FILOMENA  Pelo que vejo já está enfeitiçado pelos quindins de alguma?
 
MR. JAMES  Não duvida, senhora, e crê que feitiça não estar muito longe daqui. (Olha significativamente para Beatriz)
 
BEATRIZ (à parte)  Isto já eu sabia.
 
FILOMENA (à parte)  É a sorte grande!
 
 
CENA V Os mesmos e Brito.
 
BRITO (vendo o relógio)  Ainda nada. Oh! Mister James. Como está?
 
MR. JAMES  Criada de Sua Excelência. (Conversa com Beatriz)
 
FILOMENA (levando Brito para um lado) 
 
Este inglês possui uma fortuna de mais de quinhentos contos, parece gostar de Beatriz... Se nós soubermos levá-lo, poderemos fazer a felicidade da menina.
 
BRITO  E o que queres que faça?
 
FILOMENA  Que lhe concedas o privilégio que ele pede.
 
BRITO  Mas, senhora, estas questões não dependem só de mim. Eu não quero comprometer-me.
 
FILOMENA  Então para que te serve ser presidente do Conselho?
 
BRITO  Mas eu não posso nem devo dispor das coisas do Estado para arranjos de família. A senhora já me endividou e quer agora desacreditar-me.
 
FILOMENA  Pois isto há de se fazer. Mr. James, meu marido quer conversar com o senhor a respeito do seu negócio.
 
BRITO  Estarei às suas ordens, senhor James; porém um pouco mais tarde. Espero os meus colegas.
 
MR. JAMES  A que horas mim pode procura Sua Excelência?
 
BRITO  Às duas horas.
 
MR. JAMES Até logo. (Cumprimenta e sai)
 
 
CENA VI Os mesmos, menos Mister James.
 
BRITO  A senhora ainda há de comprometer-me. (Saí)
 
FILOMENA  Dizem todos que é um projeto grandioso.
 
BEATRIZ  Vou acabar a leitura deste romance.
 
FILOMENA  Eu vou dar as ordens para a partida desta noite.
 
 
CENA VII Dona Bárbara, Criado e o Desembargador Francisco Coelho.
 
CRIADO  Sua Excelência não está em casa.
 
COELHO  Quero falar com as senhoras. Aqui tem o meu cartão. 
 
(Criado cumprimenta e sai)
 
DONA BÁRBARA  Está em casa com toda a certeza; mas negou-se.
 
COELHO  Isto sei eu; e por isso é que entrei.
 
DONA BÁRBARA Eu não devia vir. Estas sirigaitas aborrecem-me extraordinariamente.
 
COELHO  Mas, minha filha, tu pensas que em política a gente sobe unicamente por seus belos olhos? Não sou rico, já estou velho, não tenho pai alcaide, se deixar fugir as ocasiões, quando serei ministro?
 
DONA BÁRBARA  E para que você quer ser ministro, seu Chico?
 
COELHO  Ora, tens às vezes certas perguntas? Para quê? Para governar, para fazer o que os outros fazem.
 
DONA BÁRBARA  Você não tem sabido governar a fazenda, e quer governar o Estado!
 
COELHO  A senhora não entende destas coisas.
 
DONA BÁRBARA  Ora, diga cá! Suponha que você é nomeado ministro.
 
COELHO  Sim, senhora.
 
DONA BÁRBARA  Perde a cadeira na Câmara. Tem de sujeitar-se a uma nova eleição.
 
COELHO  E o que tem isto?
 
DONA BÁRBARA  O que tem?! É que se você cair nesta asneira, seu Chico, toma uma derrota, tão certo como eu chamar-me Bárbara Benvinda da Purificação Coelho.
 
COELHO  Eu, ministro, derrotado?
 
DONA BÁRBARA  E por que não? Você é melhor do que os outros?
 
 
CENA VIII Os mesmos, Raul, Beatriz e Filomena.
 
RAUL  Senhor Desembargador.
 
COELHO  Senhor doutor.
 
RAUL  Minha senhora.
 
FILOMENA  Fiz-lhe esperar muito?
 
BEATRIZ (para Raul)  Não sabia que estava também aqui.
 
COELHO  O conselheiro não está em casa?
 
FILOMENA  Está no seu gabinete.
 
DONA BÁRBARA (baixo)  O que te dizia eu?
 
FILOMENA  Quer falar-lhe?
 
COELHO  Se fosse possível.
 
FILOMENA  Entre.
 
COELHO  Com licença. (Sai)
 
 
CENA IX Raul, Beatriz, Dona Bárbara e Filomena.
 
DONA BÁRBARA  Como vão os seus pequenos?
 
FILOMENA  O Chiquinho vai bem; a Rosinha é que tem passado mal.
 
BEATRIZ (a Raul)  Por que não tem aparecido?
 
RAUL  Sabe que o meu desejo era viver sempre a seu lado.
 
BEATRIZ  Está nas suas mãos.
 
RAUL  Se fosse possível... 
 
DONA BÁRBARA  Quem sabe se ela não sofre de vermes?
 
FILOMENA O próprio médico não sabe o que é. Sente umas coisas que sobem e descem; às vezes fica meia apatetada.
 
DONA BÁRBARA  Querem ver que é mau olhado!
 
FILOMENA  Ora, a senhora acredita nessas coisas?!
 
DONA BÁRBARA  É porque a senhora ainda não viu o que eu presenciei com estes que a terra há de comer.
 
FILOMENA  Ah! ah! ah! O senhor crê em mau olhado, senhor Raul?
 
RAUL  Não, minha senhora; apenas no bom olhado de uns olhos feiticeiros. (Olha para Beatriz significativamente)
 
DONA BÁRBARA  Pois eu vi lá em Minas uma criatura, que estava bem atacada. E em dez minutos ficou boa.
 
FILOMENA  Com a homeopatia?
 
DONA BÁRBARA  Com uma oração.
 
FILOMENA  Ah! E como é esta oração?!
 
DONA BÁRBARA  A mulher chamava-se Francisca. Molharam um ramo de arruda em água benta e rezaram-lhe o seguinte: "Francisca, se tens mau olhado, ou olhos atravessados, eu te benzo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Deus te olhe e Deus te desolhe, e Deus te tire essa mau olhado, que entre a carne e os ossos, tens criado; que saia do tutano e vá para os ossos, que saia dos ossos e vá para a carne, que saia da carne e vá para a pele, e que daí saia, e vá para o Rio Jordão, onde não faça mal a nenhum cristão." É infalível. Experimente.
 
BEATRIZ (baixo a Raul)  Quelle bêtise.
 
RAUL  Não acredita na influência dos olhos?
 
BEATRIZ  Sim; mas não creio na eficácia daquelas orações.
 
RAUL  E sabe ler neles?
 
BEATRIZ  Quelque chose.
 
RAUL  O que lhe dizem os meus?
 
BEATRIZ  Que o senhor é um grande bandoleiro.
 
RAUL  Não, não é isto o que eles dizem.
 
BEATRIZ  O que dizem então? Voyons.
 
RAUL  Que aqui dentro há um coração que pulsa pela senhora e só para a senhora.
 
BEATRIZ  Non lo credo.
 
RAUL  Dona Beatriz, se estivesse em condições de fazê-la feliz, hoje mesmo dirigia-me a seu pai, e pedia-lhe o que mais ambiciono neste mundo — a sua mão.
 
BEATRIZ  E o que lhe falta para tornar-me feliz?
 
RAUL  Uma posição social.
 
BEATRIZ  O senhor não é bacharel em Direito?
 
RAUL  É verdade.
 
BEATRIZ  Alors... 
 
RAUL  Porém, se o ser bacharel em Direito fosse um emprego, haveria muito pouca gente desempregada no Brasil. Seu pai está hoje no governo, poderia lançar as suas vistas sobre mim. Como seríamos felizes um ao lado do outro.
 
BEATRIZ  Eu vou falar com mamãe. Comunicar-lhe-ei as suas intenções a meu respeito, e dar-lhe-ei a resposta.
 
RAUL  Advogue bem a minha causa, ou antes a nossa causa.
 
BEATRIZ Sim. (À parte) E eu que o julgava desinteressado. Oh! les hommes! les hommes!
 
FILOMENA  Por que não veio à nossa última partida, senhor Raul?
 
BEATRIZ (para Raul)  Dançamos um cotillon que durou quase duas horas.
 
RAUL  Quem marcava?
 
BEATRIZ  O ministro da Bélgica. Oh! que j'aime le cotillon
 
DONA BÁRBARA  O que vem a ser isto de cotiáo?
 
BEATRIZ  Uma dança arrebatadora.
 
 
CENA X Os mesmos e Coelho.
 
COELHO (zangado)  Vamos embora.
 
FILOMENA  Já?!
 
DONA BÁRBARA (baixo a Coelho)  Então; o que arranjaste?
 
COELHO (baixo) 
 
O que arranjei?! Nada; mas ele arranjou uma oposição de arrancar couro e cabelo. Hei de mostrar-lhe o que valho. Estão aqui estão na rua.
 
DONA BÁRBARA (baixo)  Bem feito.
 
COELHO (baixo)  Vamos embora.
 
FILOMENA (para Coelho e Bárbara, que se despedem)  Espero que apareçam mais vezes.
 
COELHO  Obrigado, minha senhora. 
 
(Saem)
 
RAUL  Há de permitir-me também... 
 
FILOMENA  Então até a noite.
 
RAUL  Até a noite. (Sai)
 
 
CENA XI Filomena e Beatriz.
 
BEATRIZ  O Senhor Raul acaba agora mesmo de pedir-me a mão.
 
FILOMENA  Agora mesmo?
 
BEATRIZ  Mas sob uma condição.
 
FILOMENA  Qual é?
 
BEATRIZ  De arranjar-lhe com papai um emprego. Veja só a senhora o que são os homens de hoje!
 
FILOMENA  E que lhe respondeste?
 
BEATRIZ  Que havia de falar com vosmecê e que dar-lhe-ia depois a resposta.
 
FILOMENA  Muito bem. Não lhe digas nada, por ora, enquanto não se decidir o negócio do inglês. Tenho mais fé em Mr. James. Aquilo é que se pode chamar um bom partido.
 
BEATRIZ  E ele quererá casar comigo?
 
FILOMENA  Ora, não quer ele outra coisa.
 
 
CENA XII Criado, Ministro da Guerra, Ministro da Justiça, Ministro do Império, Ministro de Estrangeiros, Filomena e Beatriz.
 
CRIADO (na porta)  Sua Excelência o Senhor Ministro da Guerra.
 
MINISTRO DA GUERRA  Minhas senhoras. (Cumprimenta Beatriz)
 
FILOMENA (para o criado) — Vá chamar seu amo. 
 
(O criado sai pela porta da esquerda)
 
BEATRIZ  Como está sua senhora?
 
MINISTRO DA GUERRA  Bem, obrigado, minha senhora.
 
FILOMENA (despedindo-se)  Com licença. (Sai com Beatriz)
 
 
CENA XIII Os mesmos e Brito, menos Filomena e Beatriz.
 
BRITO  Meu caro conselheiro. Os outros colegas ainda não vieram?
 
MINISTRO DA GUERRA  Aí está o ministro da Justiça.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Conselheiro... 
 
MINISTRO DA GUERRA  E do Império. 
 
(Entra o ministro do Império)
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O nosso colega de Estrangeiros aí vem.
 
BRITO Ei-lo. (Entra o ministro de Estrangeiros) Meus senhores, precisamos conjurar seriamente as dificuldades que nos cercam.
 
MINISTRO DA GUERRA  Apoiado.
 
BRITO  Há quinze dias apenas que subimos ao poder, e já se notam muitos claros nas fileiras da maioria.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  A oposição se engrossa a olhos vistos.
 
BRITO  Agora mesmo acaba de sair daqui o Desembargador Coelho. É mais um descontente que passa para o outro lado.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Coelho? Ainda ontem, pode-se dizer, aspirava a ser o líder da maioria.
 
BRITO  É verdade! Porém suspira por uma pasta, e nas circunstâncias atuais não é possível.
 
 
CENA XIV O Criado, Brito, Ministro da Guerra, Ministro da Justiça, Ministro do Império, Ministro de Estrangeiros, Conselheiro Felizardo e Doutor Monteirinho.
 
CRIADO (à parte) O Senhor Conselheiro Felizardo.
 
BRITO  Oh! Senhor Conselheiro. (Cumprimentam-se todos) Esperava ansiosamente por vossa excelência.
 
FELIZARDO  Estou às ordens de vossa excelência.
 
BRITO  O seu nome, o prestígio de que goza, a sua dedicação às ideias dominantes, são títulos que muito o habilitam.
 
FELIZARDO  Bondade de meus correligionários.
 
MINISTRO DO IMPÉRIO  Pura justiça.
 
BRITO  Precisamos do apoio de vossa excelência, como do ar que respiramos. A pasta da Marinha ainda está vaga.
 
FELIZARDO  Já estou velho... 
 
BRITO  Não nos animamos a oferecê-la. Longe de nós semelhante pensamento! O lugar de vossa excelência é na presidência do Conselho.
 
FELIZARDO  Se vossas excelências permitem, dou um homem por mim.
 
MINISTRO DO IMPÉRIO  Basta ser de sua confiança... 
 
BRITO  Para ser recebido de braços abertos.
 
FELIZARDO (apresentando o Doutor Monteirinho) 
 
Aqui está o homem, o Doutor Monteiro, meu sobrinho, filho de minha irmã Maria José; e que acaba de chegar da Europa, razão pela qual ainda não tomou assento na Câmara.
 
BRITO (admirado)  Senhor Doutor, folgo muito de conhecê-lo. (Baixo a Felizardo) Acho-o, porém, tão mocinho.
 
FELIZARDO  Formou-se o ano passado em São Paulo. (Baixo) Que inteligência, meu amigo!
 
DR. MONTEIRINHO  Saí apenas dos bancos da academia, é verdade, meus senhores; mas tenho procurado estudar com afinco todas as grandes questões sociais que se agitam atualmente. A minha pena já é conhecida no jornalismo diário e nas revistas científicas. Na polêmica, nas questões literárias, nos debates políticos, nas diversas manifestações, enfim, da atividade intelectual, tenho feito o possível por criar um nome.
 
FELIZARDO (baixo)  É muito hábil.
 
BRITO (baixo)  É verdade.
 
FELIZARDO (baixo)  É um canário.
 
DR. MONTEIRINHO  Se não fossem as influências mesológicas assaz acanhadas, em que vivem nesta terra as inteligências que procuram abrir a corola aos raios ardentes da luz, eu já teria talvez aparecido, a despeito dos meus verdes anos.
 
BRITO (baixo a Felizardo) 
 
Que idade tem?
 
FELIZARDO  Que idade tens, Cazuza?
 
DR. MONTEIRINHO  Vinte e dois anos.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Senhor Doutor Monteiro não é... 
 
FELIZARDO  Chame-o Doutor Monteirinho. É o nome por que ele é conhecido.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  O Doutor Monteirinho não é o autor da célebre poesia O grito da escravidão, que veio publicada no Correio Paulistano?
 
DR. MONTEIRINHO  E que foi transcrita em todos os jornais do Império. Um seu criado. Já cultivei a poesia em tempos que lá vão. Hoje, em vez de tanger a lira clorótica do romantismo ou de dedilhar as cordas, afinadas ao sabor moderno, dos poetas realistas, leio Spencer, Schopenhauer, Buckner, Littré, todos esses grandes vultos, que constituem o apostolado das sociedades modernas.
 
FELIZARDO (baixo, a Brito)  Este rapaz vai fazer um figurão no ministério.
 
BRITO  Creio. Terá, porém, ele a experiência dos negócios públicos?
 
FELIZARDO  Não lhe dê cuidado. Fica sob as minhas vistas: eu saberei guiá-lo.
 
DR. MONTEIRINHO  A grande naturalização é uma das questões atuais mais importantes para o Brasil.
 
BRITO  Podemos contar, portanto, com o apoio decidido de vossa excelência.
 
FELIZARDO  Se até aqui eu quebrava lanças por este ministério... 
 
BRITO  Lá isso é verdade.
 
FELIZARDO  Imagine agora... (Olhando para Monteirinho) O meu Cazuzinha!
 
DR. MONTEIRINHO  E a questão das terras? Já leram a Questão Irlandesa, de Henry George? É um livro admiravelmente escrito. Um livro do futuro!
 
BRITO  Senhor Doutor Monteirinho, temos a honra de considerar vossa excelência no número dos nossos colegas.
 
DR. MONTEIRINHO  Oh! Senhor Conselheiro.
 
FELIZARDO  Cazuza, faz por seguir o caminho de teu tio. Vou correndo para a casa. Que alegrão vai ter a Maria José. (Sai)
 
 
CENA XV Os mesmos e James, menos Felizardo.
 
BRITO  Vamos para o gabinete.
 
MR. JAMES (aparecendo na porta)  Duas horas em ponta.
 
BRITO (à parte)  Que maçada. Não me lembrava mais dele. (James entra. Alto) Meus senhores, apresento-lhes Mr. James, que requer um privilégio que parece ser de grande utilidade.
 
DR. MONTEIRINHO  Vejamos.
 
MR. JAMES (desenrolando o papel e mostrando)  Aqui tem, senhoras.
 
DR. MONTEIRINHO  O que vem a ser isto?
 
BRITO  Uma estrada especial para o Corcovado.
 
MR. JAMES  Maquinisma estar muito simples. Em vez de duas trilhas, ou de três trilhas, como tem sistema adotada, mim coloca uma só trilha larga, de meu invenção.
 
DR. MONTEIRINHO  É bitola estreita?
 
MR. JAMES  Oh! estreitíssima! É bitola zero.
 
DR. MONTEIRINHO  E como se sustém o carro?
 
MR. JAMES  Perfeitamente bem.
 
DR. MONTEIRINHO  O sistema parece ser facílimo.
 
MR. JAMES  E estar muito econômica, senhorr.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Mas não vejo máquina, vejo apenas cachorros. O que quer dizer isto?
 
MR. JAMES  Ai é que está tuda.
 
BRITO  Não compreendo. Tenha a bondade de explicar-me.
 
MR. JAMES  Ideia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras.
 
DR. MONTEIRINHO  Não era precisa a explicação. Nós todos sabemos que cinófero vem do grego cynos, que quer dizer cão, e feren, que significa puxar, etc.
 
MR. JAMES  Muito bem, senhorr.
 
DR. MONTEIRINHO  Agora o que se quer saber é como é que os cachorros puxam.
 
MR. JAMES  Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha!
 
DR. MONTEIRINHO  E de quantos cachorros precisa o senhor para o tráfego dos trens diários do Cosme Velho ao Corcovado?
 
MR. JAMES  Mim precisa de força de cinquenta cachorras por trem; mas deve muda cachorra em todas as viagens.
 
MINISTRO DA JUSTIÇA  Santo Deus! É preciso uma cachorrada enorme.
 
MR. JAMES  Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas cachorras de Inglaterra.
 
BRITO  Mas se estes animais forem atacados de hidrofobia não há perigo para os passageiros?
 
DR. MONTEIRINHO  Eu entendo que não se pode conceder este privilégio, sem se ouvir primeiro a junta de higiene.
 
MR. JAMES  Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se cachorra estar danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais velocidade.
 
BRITO  Em resumo, qual é a sua pretensão?
 
MR. JAMES  Mim quer privilégia para introduzir minha sistema em Brasil, e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil para empresa de caminha de ferro.
 
BRITO  Mas o cachorro não está ainda classificado como motor na nossa legislação de caminhos de ferro.
 
DR. MONTEIRINHO  Neste caso deve levar-se a questão ao poder legislativo.
 
BRITO  Está bem: nós vamos ver e resolveremos como for de justiça.
 
MR. JAMES  Em quanto tempa decide este negócia?
 
DR. MONTEIRINHO  Vamos resolver.
 
MINISTRO NO IMPÉRIO  Tenha paciência, espere.
 
BRITO  Às suas ordens. (Despede-se, os outros despedem-se de James e saem pela esquerda)
 
 
CENA XVI James, só.
 
MR. JAMES  Tem paciência, espera! Sistema de brasileira. Time is money. Eu fala com mulher, e arranja tuda. (Sai)
 
 
CENA XVII Beatriz e depois Filipe.
 
BEATRIZ  Vejamos se aqui posso concluir sossegada a leitura deste romance. (Lê)
 
FILIPE  Ela?! Oh! Eu atiro-me e confesso tudo. Ora adeus! (Tropeça em uma cadeira)
 
BEATRIZ (revolvendo-se)  Quem é?
 
FILIPE  Filipe Flecha, um criado de vossa excelência. Sou repórter.
 
BEATRIZ  Papai está agora em conselho com os outros ministros.
 
FILIPE  Como é bela! 
 
(Beatriz continua a ler)
 
BEATRIZ (à parte)  Este estafermo pretenderá ficar aqui. Que bruta faccia.
 
FILIPE  Eu atiro-me-lhe aos pés. Coragem! (Encaminha-se para Beatriz)
 
BEATRIZ  Quer alguma coisa?
 
FILIPE (tirando uma carteira)  O senhor seu pai onde nasceu, minha senhora?
 
BEATRIZ  No Pará.
 
FILIPE (escrevendo na carteira)  Onde formou-se?
 
BEATRIZ  Em Pernambuco.
 
FILIPE (escrevendo)  Que empregos tem exercido? Que condecorações tem?
 
BEATRIZ  Mas para que o senhor quer saber tudo isto? Oh! qu'il est drole!
 
FILIPE  É que quando ele morrer a notícia para o jornal já está pronta. (À parte) Oh! que diabo de asneira!
 
BEATRIZ  O senhor está doido?
 
FILIPE (ajoelhando-se)  Sim, doido, minha senhora, doido varrido. Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões". A senhora comia uma empada... (Beatriz procura tocar a campainha) O que vai fazer?
 
BEATRIZ  Chamar alguém para pô-lo daqui para fora.
 
FILIPE  Pelo amor de Deus, não faça escândalo. (Levantando-se) Eu vou, eu vou, mas creia que ninguém no mundo a idolatra como eu! (Sai olhando amorosamente para Beatriz)
 
BEATRIZ  Pobre louco! Mas este ao menos não me falou em emprego nem em privilégio! (Senta-se e continua a leitura)
 
 
 
ATO III Sala de espera em casa do Conselheiro Brito.
 
CENA I
 
Brito e Filomena.
 
FILOMENA  Podias ter decidido o negócio perfeitamente sem levá-lo às Câmaras.
 
BRITO  Como?
 
FILOMENA  Como? Colocassem-me na Presidência do Conselho, que eu te mostraria.
 
BRITO  Mas, Filomena, tu não sabes que se tratava de uma espécie completamente nova, que o governo... 
 
FILOMENA  Tanto melhor! Se a espécie era completamente nova, o governo devia resolver por si e não abrir o mal precedente de consultar a Câmara.
 
BRITO  Olha, queres saber de uma coisa? Eu merecia que me vestissem uma camisola de força, por me haver metido em semelhante entrosga.
 
FILOMENA  Ora, qual entrosga! O negócio era muito simples. Tratava-se de uma estrada para o Corcovado... 
 
BRITO  Mas de uma estrada especial, com carros movidos por cachorros... 
 
FILOMENA  E o que tem os cachorros?
 
BRITO É que levantou-se a dúvida se o cachorro podia ser considerado motor, se a estrada estava nas condições da lei.
 
FILOMENA  Pois eu presidente do Conselho cortava a dúvida, dizendo: — o cachorro é motor, e concedia o privilégio.
 
BRITO  Tu não entendes destas coisas.
 
FILOMENA  E o que se lucrou em consultar a Câmara? Em assanhar a oposição, e formar no seio do parlamento dois partidos, o dos cachorros e o dos que se batem, como leões, contra os cachorros.
 
BRITO  E que partidos!
 
FILOMENA  E lá se vai o privilégio, falto à palavra que dei ao inglês, e o casamento da menina, víspora!
 
BRITO  Mas o que queres que faça?
 
FILOMENA  Que envides todos os esforços para que o projeto passe! Hoje é a última discussão... 
 
BRITO  E o último dia talvez do ministério.
 
FILOMENA  Quais são os deputados que votam contra?
 
BRITO  Uma infinidade.
 
FILOMENA  O Elói é cachorro?
 
BRITO  Sim, senhora.
 
FILOMENA  O Azambuja?
 
BRITO  Cachorro.
 
FILOMENA  O Pereira da Rocha?
 
BRITO  Este é de fila.
 
FILOMENA  O Vicente Coelho?
 
BRITO  Era cachorro; mas passou anteontem para o outro lado.
 
FILOMENA  E o Barbosa?
 
BRITO  Está assim, assim. Talvez passe hoje para cachorro.
 
FILOMENA  Ah! Que se as mulheres tivessem direitos políticos e pudessem representar o país... 
 
BRITO  O que fazias?
 
FILOMENA  O privilégio havia de passar, custasse o que custasse. Eu é que devia estar no teu lugar, e tu no meu. És um mingau, não nasceste para a luta.
 
BRITO  Mas com a breca! Queres que faça questão de gabinete?
 
FILOMENA  Quero que faças tudo, contanto que o privilégio seja concedido.
 
BRITO (resoluto)  Pois bem; farei questão de gabinete, e assim fico livre mais depressa desta maldita túnica de Nessus.
 
 
CENA II Os mesmos e o Doutor Monteirinho.
 
DR. MONTEIRINHO (cumprimentando Filomena)  Minha senhora. (Para Brito) Vamos para a Câmara, conselheiro. É hoje a grande batalha.
 
BRITO  Estou às suas ordens.
 
DR. MONTEIRINHO  Havemos de vencer, custe o que custar.
 
FILOMENA  Doutor Monteirinho, empregue todo o fogo de sua palavra.
 
DR. MONTEIRINHO  Fique descansada, minha senhora. Levo o meu discurso na ponta da língua. Hei de tratar a parte técnica, sobretudo, com o maior cuidado. Na discussão deste projeto ou conquisto os foros de estadista, ou caio para nunca mais erguer a fronte.
 
FILOMENA  Bravo! Bravo!
 
BRITO  Vamos, conselheiro, são horas.
 
FILOMENA (para Brito)  Vai. Que Deus te inspire. 
 
(Saem Monteiro e Brito)
 
 
CENA III Filomena e Beatriz.
 
FILOMENA  Que boa madrugada! Onze horas!
 
BEATRIZ (beijando Filomena)  Não posso acordar-me cedo, por mais esforços que faça. Vosmecê não sai hoje?
 
FILOMENA  Não. Estou muito nervosa.
 
BEATRIZ  É mais uma razão para sair.
 
FILOMENA  Se cai o projeto e com ele o ministério... 
 
BEATRIZ  Estamos arranjadas.
 
FILOMENA  Lá se vai o inglês.
 
BEATRIZ  E o Sr. Raul também. (À parte) Se ao menos aquele pobre doido que ofereceu-me o coração... (Alto) Ora, será o que Deus quiser. (Mirando-se ao espelho, canta) La donna é mobile Qual piuma al vento. Muta d'accento E di pensiero. O paquete francês deve chegar hoje?
 
FILOMENA  Creio que sim.
 
BEATRIZ  Estou ansiosa por ver os vestidos de verão que encomendamos.
 
 
CENA IV Beatriz, Filomena e Criado.
 
CRIADO (com uma gaiola com papagaio)  Veio da parte do Senhor Tinoco, com esta carta. (Entrega a carta a Filomena)
 
FILOMENA (depois de ler a carta)  Estes pretendentes entendem que devem encher-me a casa de bichos. Leva para dentro. 
 
(O criado sai)
 
BEATRIZ  E coisa célebre, pelos presentes pode-se conhecer a que província ou a que lugar pertencem os pretendentes. Os do Ceará mandam corrupiões; os do Pará redes, paus de guaraná e macacos de cheiro; os de Pernambuco, cajus secos e abacaxis; os de São Paulo, formigas vestidas, figos em calda.
 
FILOMENA  E arapongas. Se o pretendente é do Maranhão, a mulher do ministro não passa sem lenço de labirinto.
 
BEATRIZ  E se é da Bahia, lá vêm as quartinhas, o azeite de cheiro e os saguis.
 
FILOMENA  Os do Rio Grande do Sul exprimem a gratidão com línguas salgadas e origones.
 
BEATRIZ  E os de Minas com queijos e rolos de fumo. Mas, coitados! Muito sofrem! Só a lida em que eles vivem. — Venha hoje, venha amanhã, espere um pouco, agora não é possível!
 
FILOMENA  É para admirar que a esta hora já não esteja a sala cheia deles.
 
BEATRIZ  É verdade.
 
 
CENA V Filomena, Beatriz e Dona Bárbara.
 
DONA BÁRBARA  Desculpe-me se fui entrando sem anúncio prévio.
 
FILOMENA  A Senhora Dona Bárbara é sempre recebida com prazer a qualquer hora.
 
DONA BÁRBARA  E é por saber disto que vim vê-la, apesar do que se tem passado.
 
FILOMENA  Creio que entre nós nada se tem passado que possa porventura interromper, sequer de leve, as nossas relações amistosas.
 
DONA BÁRBARA  Quero dizer do que se tem passado entre os nossos maridos.
 
FILOMENA  Também não sei o que possa ter havido entre eles. Pertencem ao mesmo credo político, ainda ontem para bem dizer, eram amigos... 
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Se não digo na bochecha desta emproada tudo quanto sinto, estouro. (Alto) Eram amigos, é verdade, porém... meu marido tem razões especiais... Ele está na Câmara cumprindo o seu dever.
 
FILOMENA  Faz muito bem.
 
DONA BÁRBARA  Não é hoje que se discute um célebre privilégio de uma estrada para o Corcovado?
 
FILOMENA  Creio que sim.
 
DONA BÁRBARA  Não sabia; passando por acaso pela rua do Ouvidor... 
 
BEATRIZ  Como é fingida esta vecchía strega!
 
DONA BÁRBARA  Ouvi os garotos apregoarem a "Gazeta da Tarde", traz a notícia da grande patota dos cachorros! E por entre os grupos dos indivíduos que conversavam no ponto dos bondes, pude distinguir estas frases, cujo sentido não compreendi bem: arranjos de família, ministro patoteiro, casamento da filha com o inglês... 
 
FILOMENA  É verdade, minha senhora; mas o que não sabe é que por entre aqueles grupos estava a mulher despeitada de um ministro gorado e que era esta a que mais gritava.
 
DONA BÁRBARA  Um ministro gorado?!
 
BEATRIZ  Sim. Un ministre manqué.
 
DONA BÁRBARA (para Beatriz)  Minha senhora, tenha a bondade de falar em português, se quer que a entenda.
 
FILOMENA  Eu falarei português claro. O ministro gorado é... 
 
BEATRIZ  Seu marido... voila tout.
 
FILOMENA  E a mulher despeitada... 
 
DONA BÁRBARA  Sou eu?!
 
BEATRIZ  Sans doute.
 
DONA BÁRBARA (à parte)  Eu arrebento. (Alto) Pois já que as senhoras são tão positivas dirlhes-ei que meu marido nunca teve a ideia de fazer parte de semelhante ministério. Ele é um homem de muito bom senso e sobretudo de muita probidade.
 
FILOMENA  Observo à senhora que estou em minha casa.
 
BEATRIZ (à parte)  C'est incroyable! Dreadful.
 
DONA BÁRBARA  Foi a senhora a primeira que esqueceu esta circunstância.
 
FILOMENA  Não me obrigue... 
 
DONA BÁRBARA  Eu retiro-me para nunca mais pôr os pés aqui.
 
FILOMENA  Estimo muito.
 
DONA BÁRBARA  E fique sabendo que o Chico... 
 
FILOMENA (com dignidade)  Minha senhora. (Cumprimenta e sai)
 
BEATRIZ  Au revoir. (Sai)
 
DONA BÁRBARA  Emproada, sirigaita, patoteira! Hei de tomar uma desforra. (Sai zangada)
 
 
CENA VI Pereira, Inácio, Arruda, Ribeiro, Azambuja, mais pessoas e o Criado.
 
CRIADO  Sua Excelência não está. Os senhores que quiserem esperar podem ficar nesta sala.
 
PEREIRA  O homem está em casa.
 
INÁCIO  Eu cá hei de falar-lhe hoje, por força, haja o que houver.
 
ARRUDA  E eu também. Só se ele não passar por aqui.
 
RIBEIRO  O que é bem possível, porque a casa tem saída para outra rua.
 
AZAMBUJA  Há quatro meses que ando neste inferno.
 
RIBEIRO  Console-se comigo, que ando pretendendo um lugar há cinco anos, e ainda não mo deram.
 
ARRUDA  Há cinco anos?!
 
RIBEIRO  Sim, senhor.
 
AZAMBUJA  E tem esperanças de obtê-lo?
 
RIBEIRO  Olé! Já atravessei seis ministérios. Venho aqui duas vezes por dia.
 
INÁCIO  E eu que vim dos confins do Amazonas; e aqui estou há seis meses a fazer despesas, hospedado na casa do Eiras, com uma numerosa família, composta de mulher, seis filhos, duas cunhadas, três escravas, quatorze canastras, um papagaio e um corrupião!
 
 
CENA VIII Os mesmos e Ernesto.
 
ERNESTO  Meus senhores.
 
PEREIRA  Oh! Senhor Ernesto.
 
ERNESTO  Como está, senhor Pereira?
 
PEREIRA  O seu negócio? Ainda nada?
 
ERNESTO  Qual! Trago agora aqui uma carta... Vamos ver se com esta arranjo o que quero. É de um deputado mineiro governista.
 
PEREIRA  É bom empenho?
 
ERNESTO  Quem me arranjou foi um negociante da rua dos Beneditinos, em cuja casa acha-se hospedado o tal deputado.
 
RIBEIRO  Meu amigo, vá à fonte limpa, procure um deputado da oposição e digo-lhe desde já que está servido.
 
ERNESTO  Muito se sofre!
 
AZAMBUJA  É verdade.
 
 
CENA VIII Os mesmos e Filipe.
 
FILIPE  Adeus, senhor Ernesto.
 
ERNESTO  Adeus, Filipe.
 
FILIPE  Ainda perde seu tempo em vir por aqui?
 
ERNESTO  Por quê?
 
FILIPE  Porque o ministério está morto!
 
PEREIRA  Caiu?!
 
FILIPE  A esta hora já deve ter caído. A rua do Ouvidor está assim. (Fechando a mão) Não se pode entrar na Câmara. Há gente nas galerias como terra.
 
ERNESTO  O partido dos cachorros está bravo?
 
FILIPE  Os cachorros?! Estão danados! A tal estrada não passa, não, mas é o mesmo. O Doutor Monteirinho levantou-se para falar... 
 
ERNESTO  Ah! Ele falou hoje?
 
FILIPE  Qual! Não pôde dizer uma palavra. Rompeu uma vaia das galerias, mas uma vaia de tal ordem, que foi preciso entrar a força armada na Câmara.
 
PEREIRA  Lá se vai o meu lugar da Alfândega.
 
AZAMBUJA  E o meu.
 
RIBEIRO  E o meu.
 
FILIPE (levando Ernesto para um lado)  Ainda não a vi hoje.
 
ERNESTO  Mas é verdade tudo isto?
 
FILIPE  Como é bela!
 
ERNESTO  Com os diabos! que transtorno!
 
FILIPE  Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões"... 
 
ERNESTO  Comia uma empada, comia uma empada... 
 
FILIPE  É isso mesmo.
 
ERNESTO  Irra! Não me amoles.
 
PEREIRA (para Ernesto)  O senhor quer saber onde está a minha esperança?
 
ERNESTO  Onde?
 
PEREIRA (tirando um bilhete de loteria do bolso)  Aqui neste bilhete do Ipiranga.
 
FILIPE  Eu também tenho um. (Vendo na carteira) Querem ver que o perdi! Não, cá está. A esta hora já deve ter andado a roda. Com a breca, nem me lembrava! (Olhando para dentro) Se pudesse ao menos verlhe a pontinha do nariz.
 
PEREIRA  Vou ver o que tirei. (Sai)
 
FILIPE  E eu também. Mas qual! Sou de um caiporismo horrendo. Adeus, senhor Ernesto. (Olhando para todos os lados) Onde estará ela?! (Sai)
 
 
CENA IX Os mesmos, menos Pereira e Filipe e Doutor Raul.
 
ERNESTO  Esta notícia veio transtornar-me os planos.
 
AZAMBUJA  Talvez seja mentira.
 
ERNESTO  As más novas são sempre verdadeiras.
 
RAUL  Ora, vivam, meus senhores!
 
ERNESTO  Doutor Raul, o que há acerca do ministério?
 
RAUL  Dizem que está em crise.
 
ERNESTO  Mas há esperanças?
 
RAUL  Hum!... Não sei. Vejo as coisas muito embrulhadas.
 
 
CENA X Os mesmos e Mister James.
 
RAUL  Oh! Mr. James! Fazia-o pela Câmara.
 
MR. JAMES  Mim só sai de casa hoje pra vem aqui... 
 
RAUL  Os negócios estão feios.
 
MR. JAMES  Oh! Yes, muito feias.
 
RIBEIRO (a Ernesto)
 
Este é o tal inglês da patota de que os jornais falam hoje?
 
ERNESTO  É o bicho.
 
MR. JAMES  Você quer sabe de uma coisa. Mim estar muito stupíde.
 
RAUL  Por quê?
 
MR. JAMES  Eu já deve saber que este ministéria não pode dura muite tempo, e mim cai na asneira de faz negócia com ele.
 
RAUL  Mas em que se fundava para saber disto?
 
MR. JAMES  Ora escuta vosmincê, presidenta de Conselho onde estar nascida?
 
RAUL  No Pará.
 
MR. JAMES  Ministra de Império?
 
RAUL  Em São Paulo.
 
MR. JAMES  Ministra de Justiça?
 
RAUL  Creio que é de Piauí.
 
MR. JAMES  No senhor; de Paraíba.
 
RAUL  Ou isso.
 
MR. JAMES  Ministra de Marinha estar de Alagoas, ministra de Estrangeiros... 
 
RAUL  Este é do Paraná.
 
MR. JAMES  Yes. Ministra de Guerra estar de Maranhão, de Fazenda, Rio de Janeiro.
 
RAUL  Mas o que tem isto?
 
MR. JAMES  Não tem uma só ministra de Bahia. E ministéria sem baiana — estar defunta logo, senhor.
 
RAUL  Tem razão.
 
MR. JAMES  Baiana estar gente muito poderosa. Não se pode esquece dela.
 
RAUL  O ministério estava fraco, lá isso é verdade.
 
MR. JAMES  E tem inda mais; Ministra da Marinha... 
 
RAUL  O Doutor Monteirinho?
 
MR. JAMES  Yes. Ministra da Marinha estar muito pequenina.
 
RAUL  Muito moço é que o senhor quer dizer?
 
MR. JAMES  All right. No pode ser estadista e governa país logo que sai de escola. É preciso aprende primeiro, aprende muito, senhor. Todo mundo estar caçoanda, e chama ministra de Cazuzinhe. O senhor sabe dizer o que é Cazuzinhe?
 
RAUL  É um nome de família.
 
MR. JAMES  How? Mas família fica em casa, e no tem nada com ministéria. Vosmecês aqui têm costume de chama homem de estado de Juquinha, Lulu, Fernandinha. Governa estar muito sem-cerimônia.
 
 
CENA XI Os mesmos, Beatriz e Filomena.
 
MR. JAMES  Como está, senhorra?
 
RAUL  Minhas senhoras.
 
FILOMENA  Veio da Câmara? MR. JAMES  No senhorra.
 
FILOMENA  Pois não foi lá? No dia em que se deve decidir o seu negócio... 
 
BEATRIZ (a Raul)  Mamãe ainda não teve tempo de falar com papai acerca da sua pretensão.
 
MR. JAMES  Meu negócia estar perdida.
 
FILOMENA  Tenho fé que não.
 
MR. JAMES  Oh! Yes.
 
 
CENA XII Os mesmos e Felizardo.
 
FELIZARDO (entrando apressado) Caiu o ministério!
 
FILOMENA  Caiu! Ai! Falta-me a luz! (Cai desmaiada em uma cadeira)
 
BEATRIZ (correndo)  Mamãe.
 
RAUL  Dona Filomena!
 
MR. JAMES (para todos)  Ó no incomoda! Vai passa já.
 
ERNESTO  Ora sebo! (Sai)
 
INÁCIO  Ora bolas. (Sai)
 
ARRUDA  Ora pílulas. (Sai)
 
RIBEIRO  Ora, com os diabos. (Sai)
 
AZAMBUJA  Ora... (Sai)
 
MR. JAMES (vendo Filomena levantar-se)  Estar pronta, já passou.
 
FELIZARDO  E o pobre do Cazuzinha que tinha tanta coisa que fazer! Também lhes digo, que se ele consegue falar, a despeito das vaias da galeria, o ministério tinha vida por cinco anos, pelo menos.
 
RAUL  Deveras?
 
FELIZARDO  É um rapaz muito hábil. O senhor não imagina que discurso tinha ele preparado. Ontem recitou-mo todo. Sabia-o na ponta da língua.
 
RAUL  Foi uma pena! (À parte) E lá se foi o meu emprego, que é o que mais sinto.
 
FELIZARDO  Como não vai ficar a Maria José quando souber da notícia!
 
RAUL (a Beatriz)  Minha senhora; creio estar desligado dos compromissos que contraí para com vossa excelência.
 
BEATRIZ Eu já o sabia; não era preciso mo dizer. O que o senhor doutor queria era uma posição social e não a minha mão!
 
RAUL (à parte)  Façamos cara de não ter compreendido.
 
 
CENA XIII Felizardo, Raul, Beatriz, Filomena, Mister James, Brito e Doutor Monteirinho.
 
BRITO (abraçando Filomena)  Minha Filomena, tenho necessidade de abraçar-te. Vem cá, Beatriz, abraça-me também. (Beatriz abraça) Foram vocês que me perderam; mas como isto é bom.
 
MR. JAMES  Mim sente muito derrota de vossa excelência; agradece tudo que faz pela minha privilégia e pede desde já a vossa excelência um apresentação para nova ministéria que tem de subir.
 
FELIZARDO (que deve estar abraçado com Monteirinho)  Ah! Cazuza! Não há gosto perfeito neste mundo!
 
DR. MONTEIRINHO  E mamãe, que não teve a ventura de me ver de fardão!
 
FELIZARDO  Mas há de tê-la muito breve; eu te prometo.
 
 
CENA XIV Os mesmos e Criado.
 
CRIADO  Trouxeram estes jornais e esta carta. (Sai)
 
BRITO  O que será? (vendo o sobrescrito da carta, para Filomena) É para ti.
 
FILOMENA (abrindo a carta e lendo)  "Minha senhora, tenho a honra de enviar a vossa excelência o último número da Espada de Dâmocles, que acaba de sair agora mesmo e de chamar a atenção de vossa excelência para a notícia, publicada sob o título À última hora. Sua veneradora e criada, Bárbara Coelho."(Fecha a carta) Que infame!
 
BRITO  Lê. (Filomena quer rasgar o jornal) Lê, eu terei a coragem de ouvir.
 
FILOMENA (lendo)  "Caiu finalmente o ministério das patotas. Parabéns aos nossos concidadãos, estamos livres do homem que mais tem sugado os cofres públicos em proveito dos seus afilhados."
 
BRITO  Saio do ministério mais pobre do que entrei, porque estou crivado de dívidas, e com a pecha de ladrão!
 
FILOMENA  E o que pretendes fazer?
 
 
BRITO  Nada neste país, infelizmente, esta é a sorte de quase todos que descem do poder.
 
 
CENA XV Filomena, Raul, Doutor Monteirinho, Beatriz, Mister James, Felizardo, Brito e Filipe. 
 
MR. JAMES (a Filipe que entra às carreiras, ofegante, e cai-lhe desmaiado nos braços) 
 
How! Tudo estar desmaia nesta casa!
 
FILOMENA  Vão ver depressa vinagre. (Raul corre para dentro)
 
BEATRIZ  Como ele está pálido! Vou buscar água de Colônia. (Corre para dentro)
 
MR. JAMES  Oh! nó, nó, é melhor traz cognac.
 
DR. MONTEIRINHO  Vou buscá-lo. (Sai correndo)
 
BRITO (batendo-lhe nas mãos)  Senhor, senhor! É o pobre do repórter!
 
BEATRIZ  Aqui está. (Põe água de Colônia no lenço e chega-lhe ao nariz. Filipe abre os olhos) Ça y est! Il est gueri!
 
FILIPE  Onde estou? Ah! (Saí dos braços de Mister James)
 
DR. MONTEIRINHO  Cá está o conhaque. Já não é preciso?
 
BRITO  O que tem?
 
FILIPE (não podendo falar)  Comprei este bilhete. (Mostra-o, tirando-o do bolso) Vou ver a lista... 
 
MR. JAMES  Branca.
 
FILIPE  E tirei duzentos contos!
 
FILOMENA  Duzentos contos!
 
BEATRIZ  Ah! Bah!
 
FILIPE (ajoelhando-se aos pés de Beatriz)  Minha senhora, eu adoro-a, idolatro-a. Quando a vi pela primeira vez foi no "Castelões", a senhora comia uma empada. Quer aceitar a minha mão?
 
BEATRIZ  De tout mon coeur.
 
MR. JAMES  All right! Boa negócia.

 

 

                                                                  França Júnior

 

 

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