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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CALAFRIO / Maggie Stiefvater
CALAFRIO / Maggie Stiefvater

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O frio. Grace passou anos a observar os lobos no bosque próximo à sua casa. Um deles, um belo lobo de olhos amarelos, a observa também. Ele parece familiar, mas ela não sabe por quê. O calor. Sam vive duas vidas. Como lobo, ele é um companheiro silencioso da garota que ama. E, por um curto período a cada ano, ele é humano, nunca corajoso o bastante para falar com Grace… até agora. O calafrio. Para Grace e Sam, o amor sempre foi mantido a distância. Mas uma vez revelado, não pode ser negado. Sam precisa lutar para continuar humano, e Grace precisa lutar para ficar ao seu lado — mesmo que isso signifique enfrentar os traumas do passado, a fragilidade do presente e as impossibilidades do futuro.

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO 1

GRACE • - 9º C

Lembro-me de estar deitada na neve, onde até um pequeno ponto vermelho de calor esfriaria, cercada por lobos. Eles me lambiam, me mordiam, me empurravam, me sufocavam. Seus corpos amontoados bloqueavam o mínimo calor do sol. O gelo cintilava na pelagem branca de seus pescoços e a respiração deles criava formas opacas que flutuavam ao nosso redor. O cheiro almiscarado dos pelos me lembrava cachorro molhado e folhas em chamas, ao mesmo tempo agradável e aterrorizante. Suas línguas me derretiam a pele, seus dentes rudes rasgavam as mangas da minha blusa e me arrancavam os cabelos, avançando para minha clavícula, para a veia em meu pescoço.

Eu poderia ter gritado, mas não gritei. Poderia ter lutado, mas não lutei. Só fiquei lá deitada e deixei acontecer, observando o céu branco de inverno se tornar cinza acima de mim.

Um lobo me cutucou a mão e a bochecha com o focinho, projetando uma sombra sobre meu rosto. Seus olhos amarelos penetraram nos meus enquanto os outros lobos me sacudiam para todos os lados.

Me agarrei àqueles olhos o máximo de tempo que pude. Amarelos. E, mais de perto, salpicados de brilhos com todas as nuances de ouro e castanho-claro. Eu não queria que ele desviasse o olhar, e ele não desviou. Eu queria esticar o braço e agarrar o pelo em volta do seu pescoço, mas minhas mãos continuavam enroscadas a meu peito, meus braços petrificados junto ao corpo.

Eu não conseguia me lembrar de como era a sensação de estar aquecida.

Então ele se foi, e, sem ele, os outros lobos se aproximaram, perto demais, sufocantes. Alguma coisa pareceu palpitar em meu peito.

Não havia sol, não havia luz. Eu estava morrendo. Não conseguia me lembrar de como era a cor do céu.

Mas eu não morri. Estava perdida num mar de frio, e depois renasci num mundo de calor.

Me lembro apenas disso: seus olhos amarelos.

Achei que nunca mais fosse vê-los.


CAPÍTULO 2

SAM • - 9º C

Eles arrancaram a menina do balanço de pneu que havia no quintal e a arrastaram para a floresta; seu corpo deixou um leve rastro na neve, uma trilha do mundo dela para o meu. Eu vi tudo acontecer. Não impedi.

Era o inverno mais longo e mais frio da minha vida. Dia após dia sob um sol pálido e inútil. E a fome — fome que queimava e corroía, soberana, insaciável. Nada se moveu naquele mês, a paisagem congelada num quadro destituído de cor e de vida. Um de nós havia levado um tiro ao tentar roubar o lixo largado por alguém, então o resto do bando continuou na floresta e foi aos poucos ficando faminto, esperando pelo calor e por nossos antigos corpos. Até que encontraram a menina. Até que a atacaram.

Eles se curvavam em volta dela, rosnando e abocanhando, disputando para dar a primeira mordida.

Eu vi. Vi seus corpos estremecendo de avidez. Eu os vi puxar o corpo da menina para todos os lados, a neve debaixo dela diminuindo com o movimento. Vi focinhos manchados de vermelho. Mesmo assim, não impedi.

Eu era o chefe da alcateia — Beck e Paul deixaram isso bem claro —, portanto poderia ter feito alguma coisa na mesma hora, mas recuei, tremendo de frio, com neve até os tornozelos. A menina tinha um cheiro morno, vivo, sobretudo humano. O que havia de errado com ela? Se estava viva, por que não lutava?

Eu sentia o cheiro do seu sangue, um cheiro morno e brilhante naquele mundo morto e frio. Vi Salem se encolher e tremer enquanto rasgava suas roupas. Meu estômago se contraiu, dolorido — eu não comia havia muito tempo. Eu queria afastar todos os lobos para me colocar perto de Salem e fazer de conta que não sentia aquele cheiro humano nem ouvia seus débeis gemidos. Era tão pequena sob a nossa selvageria, sob a alcateia que a espremia, querendo trocar sua vida pela nossa.

Com um rosnado e um arreganhar de dentes, avancei. Salem rosnou de volta para mim, mas minha posição era mais alta que a dele, apesar da minha fome e da minha juventude. Paul investiu ameaçadoramente para me fazer recuar.

Eu estava perto dela, e ela olhava o céu infinito com expressão distante. Talvez morta. Toquei sua mão com o focinho. O cheiro da palma da mão, açúcar, manteiga e sal, me lembrou outra vida.

Então, vi seus olhos.

Acordados. Vivos.

A menina olhou firme para mim, seus olhos encarando os meus com terrível honestidade.

Recuei, retrocedi, recomeçando a tremer — mas desta vez, não era a raiva que me sacudia.

Seus olhos nos meus olhos. Seu sangue no meu rosto.

Eu estava me despedaçando, por dentro e por fora.

Sua vida.

Minha vida.

A alcateia se afastou de mim, desconfiada. Rosnaram para mim, não mais um deles, e mostraram os dentes para a presa. Eu achei que ela era a garota mais bonita que eu já tinha visto, um minúsculo e ensanguentado anjo na neve, e eles iam destruí-la.

Eu vi. Eu a vi, como jamais havia visto algo antes.

E impedi.


CAPÍTULO 3

GRACE • 3° C

Eu o vi outras vezes depois daquilo, sempre no frio. Ele ficava parado no limite do bosque com nosso quintal, os olhos amarelos fixos em mim enquanto eu enchia o comedouro dos pássaros ou levava o lixo para fora, mas nunca se aproximou. Entre o dia e a noite, um tempo que durava para sempre no longo inverno de Minnesota, eu me agarrava ao velho balanço congelado até sentir seu olhar. Ou, mais tarde, quando já havia crescido demais para o balanço, descia do deque da varanda dos fundos e me aproximava em silêncio, a mão para a frente, palma para cima, olhos baixos. Sem ameaça. Eu tentava falar a língua dele.

Porém, por mais que eu esperasse, por mais que tentasse alcançá-lo, ele sempre desaparecia por entre a vegetação antes que eu conseguisse cruzar a distância que havia entre nós.

Nunca tive medo dele. Era grande o bastante para me arrancar do balanço, forte o bastante para me derrubar no chão e me arrastar para o bosque. Mas a ferocidade do seu corpo não existia em seus olhos. Eu me lembrava do seu olhar, de cada tom de amarelo, e não podia ter medo. Sabia que ele não me faria mal.

Eu queria que ele soubesse que não o machucaria.

Esperei. E esperei.

E ele também esperou, embora eu não soubesse o quê. Eu sentia que era a única a estender a mão.

Mas ele estava sempre lá. Me observando observá-lo. Nunca nem um pouco mais próximo de mim, mas também nunca mais longe.

E assim tudo continuou igual, por seis anos: a presença alarmante dos lobos no inverno e sua ainda mais alarmante ausência no verão. Eu realmente não pensava no tempo. Pensava que eram lobos. Apenas lobos.


CAPÍTULO 4

SAM • 32º C

O dia em que quase falei com Grace foi o dia mais quente da minha vida. Mesmo na livraria, que tinha ar-condicionado, o calor se insinuava pela porta e entrava em ondas pelas grandes janelas. Atrás do balcão, sobre o banco ensolarado, eu sentia o verão relaxado, como se pudesse manter cada gota dele dentro de mim. Com o lento passar das horas, a luz do sol da tarde descorava todos os produtos nas prateleiras, criando pálidas e douradas versões dos livros, aquecendo papel e tinta dentro das capas a ponto de fazer pairar no ar o cheiro de palavras não lidas.

Era isso o que eu amava, quando era humano.

Eu estava lendo quando a porta se abriu com um pequeno plim, deixando entrar um sufocante jato de calor e um grupo de garotas. Elas riam alto demais para precisarem da minha ajuda, então continuei a ler e deixei-as zanzando por ali, falando de tudo menos livros.

Não acredito que teria prestado mais atenção às garotas se não tivesse percebido, com o canto dos olhos, uma delas sacudir o cabelo louro-escuro e torcê-lo num longo rabo de cavalo. O gesto em si era insignificante, mas o movimento lançou no ar um perfume. Reconheci aquele cheiro. Soube na mesma hora.

Era ela. Tinha que ser.

Puxei o livro para mais perto do rosto e arrisquei um olhar na direção das garotas. As outras duas ainda estavam falando e apontando para um passarinho de papel que eu tinha pendurado no teto acima da seção de livros infantis. Ela, porém, não falava; tinha ficado para trás, o olhar sobre os livros à sua volta. Então, vi seu rosto e reconheci alguma coisa minha naquela expressão. Seus olhos se moviam depressa pelas prateleiras, buscando possibilidades de fuga.

Na minha cabeça, eu tinha planejado mil versões diferentes daquela cena. Agora que o momento chegara, eu não sabia o que fazer.

Ali ela era tão real. Era diferente quando estava no quintal, só lendo um livro ou fazendo o dever de casa num caderno. Lá, a distância entre nós era um vazio impossível; eu podia sentir todas as razões para ficar longe. Mas ali, na livraria, comigo, ela parecia terrivelmente perto, como nunca antes. Não havia nada que me impedisse de falar com ela.

Seu olhar se voltou na minha direção e eu desviei o meu, depressa, para o livro. Ela não reconheceria meu rosto, mas reconheceria meus olhos. Eu precisava acreditar que ela reconheceria meus olhos.

Rezei para que ela saísse, para que eu pudesse respirar de novo.

Rezei para que comprasse um livro, para que eu fosse obrigado a falar com ela.

Uma das garotas chamou:

— Grace, venha aqui dar uma olhada nisso. Chegando lá: entrando na faculdade dos seus sonhos. Parece bom, o que acha?

Respirei devagar e olhei para suas longas costas cheias de sol enquanto ela se inclinava e examinava, com as outras, os livros preparatórios para entrar em uma universidade. Um movimento de seus ombros pareceu indicar apenas um interesse educado; ela concordava com a cabeça quando as amigas apontavam outros livros, mas parecia distraída. Observei o caminho que a luz do sol fazia desde as janelas, pegando um por um os fios do seu rabo de cavalo e transformando cada um deles num cintilante cordão dourado. Sua cabeça se movia quase imperceptivelmente para a frente e para trás no ritmo da música de fundo.

— Oi.

Dei um pulo para trás quando um rosto surgiu na minha frente. Não era Grace. Era uma das outras garotas, de cabelo escuro e bronzeada. Trazia pendurada no ombro uma enorme máquina fotográfica e olhava bem dentro dos meus olhos. Não disse nada, mas eu sabia o que estava pensando. As reações à cor dos meus olhos iam de olhadelas furtivas a olhares absolutamente fixos; pelo menos ela estava sendo honesta.

— Se importa se eu tirar uma foto sua? — perguntou.

Procurei uma desculpa.

— Alguns povos nativos acham que, se você tirar uma foto, está roubando sua alma. Para mim, é um argumento que faz todo sentido, portanto me desculpe, nada de fotos. — Dei de ombros, me desculpando. — Você pode tirar fotos da loja, se quiser.

A terceira garota empurrou a da máquina: cabelo castanho-claro volumoso, e milhares de sardas. Irradiava tanta energia que me deixou exausto.

— Paquerando, Olívia? Não temos tempo para isso. Aqui, vamos levar este.

Peguei o Chegando lá das mãos dela, evitando olhar em volta em busca de Grace.

— São 19 dólares e 99 centavos — falei.

Meu coração disparava.

— Por uma brochura? — observou a garota sardenta, mas me deu uma nota de 20. — Fique com o troco.

Não tínhamos um pote para moedas extras, mas deixei-o no balcão perto da registradora. Botei devagar o livro e a notinha numa sacola, pensando que Grace poderia se aproximar para ver por que demorava tanto.

Mas ela continuava na seção de biografias, a cabeça inclinada para o lado enquanto lia as lombadas. A garota sardenta pegou a sacola e, com um sorriso desagradável, virou-se para mim e Olívia. Depois as duas foram até Grace e a levaram em direção à porta.

Vire-se, Grace. Olhe para mim, estou bem aqui. Se ela se virasse agora, veria meus olhos, e teria que me reconhecer.

A menina sardenta abriu a porta — plim — e emitiu um som impaciente para o resto do bando: hora de ir em frente. Olívia se virou rapidamente, e seu olhar me encontrou outra vez atrás do balcão. Eu sabia que estava com os olhos fixos nelas — em Grace —, mas não conseguia parar.

Olívia fechou a cara e saiu depressa da loja. Sardenta disse:

— Grace, vamos logo.

Meu peito doía, pois meu corpo falava uma língua que minha cabeça não entendia direito.

Esperei.

Mas Grace, a única pessoa no mundo que eu queria que me visse, só passou um dedo interessado sobre a capa dura de um dos lançamentos e saiu da loja sem ao menos perceber que eu estava ali, bem ao seu alcance.


CAPÍTULO 5

GRACE • 6º C

Não percebi que os lobos no bosque eram todos lobisomens até que Jack Culpeper foi morto.

Em setembro, no meu último ano na escola, aconteceu. Jack era o único assunto na nossa cidadezinha. Não que Jack tivesse sido um garoto fantástico quando vivo — a não ser por ter o carro mais caro de todo o estacionamento, mais caro inclusive que o do diretor. Na verdade, ele era meio babaca. Mas quando foi morto... santidade instantânea. Com um aditivo horripilante e sensacionalista, por conta do modo como aconteceu. Nos cinco dias após sua morte, ouvi milhares de versões da história pelos corredores do colégio.

O resultado foi este: todo mundo, agora, estava apavorado com os lobos.

Como mamãe não costumava ver o jornal e papai nunca estava em casa, a ansiedade geral penetrou em nossa família devagar, levando alguns dias para realmente ganhar peso. Meu incidente com os lobos tinha se desbotado na cabeça de minha mãe ao longo dos últimos seis anos, substituído por vapores de terebintina e cores complementares, mas o ataque a Jack pareceu lhe restituir todos os tons originais.

Nem passou pela cabeça de mamãe reduzir sua crescente ansiedade a algo lógico como passar mais tempo com a filha única, a primeira pessoa da região a ter sido atacada por lobos. Em vez disso, tudo o que fez foi usar o incidente para se tornar ainda mais desmiolada do que de costume.

— Mamãe, precisa de ajuda com o jantar?

Ela me olhou culpada, desviando a atenção da televisão que mal conseguia enxergar da cozinha, e depois se concentrando nos cogumelos que estava destruindo na tábua de carne.

— Foi tão perto daqui. O lugar onde o encontraram — disse mamãe, apontando com a faca para a televisão. O locutor parecia fingidamente sincero, enquanto um mapa de nossa área aparecia próximo a uma foto desfocada de um lobo no canto superior direito da tela. “A caça à verdade continua”, disse ele. Era de se esperar que, depois de uma semana repetindo a mesma história várias e várias vezes seguidas, eles conseguissem pelo menos dar informações corretas. Mas a foto que mostravam nem mesmo era da mesma espécie que o meu lobo, com seu belo manto cinzento e seus olhos amarelos.

— Ainda não consigo acreditar — continuou mamãe. — Logo do outro lado do Bosque da Fronteira. Foi onde o mataram.

— Ou onde ele morreu.

Mamãe franziu o rosto para mim, delicadamente cansada e bela como sempre.

— O quê?

Levantei os olhos do meu dever de casa — reconfortantes e ordenadas fileiras de números e símbolos.

— Ele pode simplesmente ter desmaiado na beira da estrada e ter sido arrastado para o bosque enquanto estava inconsciente. Não é a mesma coisa. Não se pode sair por aí tentando espalhar pânico.

A atenção de mamãe já estava de volta à tela, enquanto picava os cogumelos em pedaços tão pequenos que poderiam ser consumidos por amebas. Ela sacudiu a cabeça.

— Eles o atacaram, Grace.

Olhei pela janela para o bosque, as pálidas fileiras de árvores fantasmas se destacando contra a escuridão. Se o meu lobo estava lá, eu não conseguia ver.

— Mãe, foi você quem me disse milhares e milhares e milhares de vezes: os lobos, em geral, são pacíficos.

Lobos são criaturas pacíficas. Esse havia sido o refrão de mamãe por anos e anos. Acho que a única maneira de ela conseguir continuar a viver naquela casa era se convencendo da relativa não periculosidade dos lobos e insistindo em afirmar que meu ataque fora um acontecimento isolado. Não sei se ela acreditava mesmo que eles fossem pacíficos, mas eu acreditava. Olhando para o bosque, observei os lobos durante todos os anos da minha vida, decorando seus rostos e suas personalidades. Claro, havia o lobo malhado, magro e com aspecto doentio, que tinha voltado para o bosque, visível apenas nos meses mais frios. Tudo nele — o pelo fosco e emaranhado, a orelha cortada, o olho purulento e imundo — dava mostras de um corpo enfermo, e o branco de seus olhos sempre em movimento indicava uma mente perturbada. Eu podia imaginá-lo atacando outra vez um ser humano no bosque.

E havia a loba branca. Eu tinha lido que os lobos se unem para a vida toda, e eu a vira com o líder da matilha, um lobo grandalhão, tão preto quanto ela era branca. Eu o observara encostando o focinho no dela e conduzindo-a por entre as árvores esqueléticas, a pelagem surgindo em flashes como um peixe na água. Ela tinha uma espécie de beleza selvagem e irrequieta; eu também a podia imaginar atacando um ser humano. Mas o resto? Eram belos e silenciosos fantasmas no bosque. Eu não os temia.

— Está bem, pacíficos. — Mamãe entalhava a tábua de legumes. — Talvez pudessem só pegar todos eles e jogá-los no Canadá, alguma coisa assim.

Fechei a cara, olhando para o dever de casa. Verões sem meu lobo já eram bem ruins. Quando eu era criança, aqueles meses pareciam inacreditavelmente longos, um tempo que eu apenas esperava passar até que os lobos reaparecessem. E tudo piorou depois que vi meu lobo de olhos amarelos. Durante aqueles longos meses, eu imaginava grandes aventuras em que eu me transformava num lobo à noite e fugia dali com ele para um bosque dourado onde nunca nevava. Agora, eu sabia que o bosque dourado jamais existira, mas a alcateia — assim como meu lobo de olhos amarelos — era real.

Suspirando, afastei meu livro de matemática, empurrando-o sobre a mesa da cozinha, e fui me juntar à mamãe perto da tábua de carne.

— Deixa que eu faço isso. Você está fazendo uma bagunça.

Ela não protestou, nem eu esperava que protestasse. Em vez disso, me recompensou com um sorriso e deu meia-volta, meio que esperando que eu reparasse o péssimo trabalho que estava fazendo.

— Se você acabar de fazer o jantar — disse ela —, vou te amar para sempre.

Fiz uma careta e tirei a faca das mãos dela. Mamãe estava sempre manchada de tinta e com a cabeça no mundo da lua. Nunca seria como as mães dos meus amigos: usando um avental, cozinhando, passando aspirador, a dona de casa perfeita. Eu na verdade não queria que ela fosse como as outras. Mas, sério, eu precisava terminar o meu dever de casa.

— Obrigada, meu bem. Estarei no ateliê.

Se mamãe fosse uma daquelas bonecas que dizem cinco ou seis coisas diferentes quando você aperta sua barriga, essa seria uma de suas frases gravadas.

— Não vá desmaiar com o cheiro de tinta — eu disse, mas ela já subia as escadas correndo.

Jogando os cogumelos mutilados numa tigela, olhei para o relógio pendurado na parede amarelo-vivo. Uma hora para papai chegar do trabalho. Eu tinha tempo suficiente para preparar o jantar e talvez, depois, tentar dar uma olhada no meu lobo.

Havia na geladeira algum tipo de carne já cortada em pedaços, com certeza pronta para ser misturada aos cogumelos mutilados. Tirei-a dali e joguei-a na tábua. Ao fundo, um “especialista” do jornal perguntava se a população de lobos em Minnesota deveria ser reduzida ou levada para outro lugar. Aquilo tudo só serviu para me deixar de mau humor.

O telefone tocou.

— Alô?

— Fala. E aí?

Rachel. Fiquei contente ao ouvir sua voz; ela era exatamente o oposto da minha mãe — superorganizada e ótima em concluir as coisas. Ela fazia com que eu me sentisse menos E.T. Prendi o telefone ao ouvido com o ombro e terminei de picar a carne enquanto falava, separando um punhado para mais tarde.

— Estou só fazendo o jantar e vendo a porcaria do jornal.

Ela entendeu na mesma hora do que eu estava falando.

— Sei. Tudo surreal, né? Parece que eles não se cansam nunca disso. É meio idiota. Poxa, por que eles simplesmente não calam a boca e deixam a gente superar tudo? Já é ruim o suficiente ir para a escola e ouvir falar disso o tempo todo. E você com os lobos e tudo mais, isso deve estar te aborrecendo mesmo. E, sério, os pais de Jack devem estar mais é querendo que os repórteres calem a boca.

Rachel falava tão depressa que eu mal conseguia entendê-la. Perdi um monte de coisa que ela disse no meio, e então ela perguntou:

— Olívia ligou hoje?

Olívia era o terceiro lado do nosso triângulo, a única que chegava vagamente perto de entender meu fascínio pelos lobos. Era rara a noite em que eu não falava com ela ou com Rachel pelo telefone.

— Deve estar por aí tirando fotos. Não tem uma chuva de meteoros hoje à noite? — perguntei.

Olívia via o mundo através de sua câmera; metade das minhas lembranças de escola parecia vir em imagens brilhantes, formato 10x15cm em preto e branco.

Rachel disse:

— Acho que você tem razão. Olívia com certeza vai querer uma amostra dessa emocionante atividade astronômica. Você pode conversar um pouquinho?

Dei uma olhada no relógio.

— Mais ou menos. Só enquanto termino o jantar, depois eu tenho dever de casa.

— Ok. Só um segundo, então. Duas palavras, querida, saca só: Fu. Ga.

Comecei a colocar a carne na chapa do fogão.

— Isso é uma palavra, Rach.

Ela parou.

— É, na minha cabeça parecia melhor. Mas olha, o lance é o seguinte: meus pais disseram que se eu quiser ir a algum lugar nas férias de Natal deste ano, eles pagam. Eu quero tanto ir a algum lugar. Qualquer lugar que não seja Mercy Falls. Meu Deus, qualquer lugar que não seja Mercy Falls! Você e Olívia podem vir aqui e me ajudar a escolher alguma coisa amanhã, depois da escola?

— Claro, com certeza.

— Se for um lugar bem legal, talvez você e Olívia possam ir também — disse Rachel.

Não respondi logo. A palavra “Natal” trouxe no mesmo instante lembranças do cheiro de nossa árvore de Natal, a imensidão escura do céu estrelado de dezembro vista do quintal e os olhos do meu lobo me observando por detrás das árvores cobertas de neve. Não importa quanto tempo ele ficasse ausente durante o resto do ano, eu sempre tinha o meu lobo de volta no Natal.

Rachel gemeu.

— Não fica nesse silêncio de expressão-pensativa-olhando-para-o-nada, Grace! Eu sei que você está fazendo isso! Não vai me dizer que não quer sair deste lugar?

Eu meio que não queria. Eu meio que pertencia àquele lugar.

— Eu não disse não — protestei.

— Você também não disse aimeudeussiiim. Era o que você deveria dizer. — Rachel suspirou. — Mas você vem aqui, não vem?

— Você sabe que eu vou — eu disse, esticando o pescoço para olhar pela janela dos fundos. — Agora tenho mesmo que desligar.

— Ok, ok, ok — disse Rachel. — Traga biscoitos. Não esqueça. Te adoro. Tchau. — Ela riu e desligou.

Corri para botar a panela do ensopado no fogão, para que ele pudesse cuidar da comida sem mim. Pegando o casaco dos ganchos na parede, abri a porta que dava para o deque.

O ar frio mordeu meu rosto e beliscou as pontas de minhas orelhas, lembrando que o verão tinha oficialmente acabado. Meu gorro estava enfiado no bolso do casaco, mas eu sabia que meu lobo nem sempre me reconhecia quando eu o usava, então deixei-o lá. Examinei o fim do quintal e desci do deque, tentando parecer despreocupada. O pedaço de carne na minha mão estava gelado e escorregadio.

Fazendo barulho, segui pela grama descorada e quebradiça até o meio do quintal e parei, por um instante ofuscada pelo violento cor-de-rosa do pôr do sol através das agitadas folhas negras das árvores. Aquela paisagem terrível ficava muito longe da cozinha pequena e aquecida, com seus cheiros reconfortantes de sobrevivência fácil. Ambiente ao qual eu deveria pertencer. Onde eu deveria querer estar. Mas as árvores me chamavam, me instigando a abandonar o que eu conhecia e desaparecer na noite que se aproximava. Esse desejo me assaltava com desconcertante frequência naqueles dias.

A escuridão na beira do bosque se moveu e vi meu lobo de pé atrás de uma árvore, as narinas farejando a carne na minha mão. Meu alívio ao vê-lo logo desapareceu quando ele mexeu a cabeça, deixando o quadrado amarelado de luz da porta cair sobre seu rosto. Eu podia ver agora que seu queixo estava coberto de sangue velho e seco. Seco havia dias.

Suas narinas exploravam; ele podia sentir o cheiro do pedaço de carne na minha mão. A carne, ou a familiaridade da minha presença, foi o bastante para fazê-lo dar alguns passos para fora do bosque. Depois mais alguns. Mais perto do que jamais tinha estado.

Encarei-o tão de perto que poderia ter esticado a mão e tocado seu pelo brilhante. Ou limpado a mancha vermelho-escura em seu focinho.

Eu queria muito que aquele sangue fosse dele. Um velho corte ou arranhão obtido numa briga.

Mas não parecia. Parecia pertencer a outra pessoa.

— Você o matou? — sussurrei.

Ele não desapareceu ao som da minha voz, como eu havia esperado. Estava tão imóvel quanto uma estátua, os olhos observando meu rosto em vez da carne que eu tinha na minha mão.

— Só falam disso nos jornais — disse, como se ele pudesse entender. — Chamam de “selvageria”. Dizem que animais selvagens fizeram aquilo. Foi você?

Ele me olhou fixamente por um minuto inteiro, sem se mover, sem piscar. E então, pela primeira vez em seis anos, fechou os olhos. Aquilo ia contra qualquer instinto natural que um lobo poderia possuir. Uma vida toda de olhar fixo, e agora ele estava congelado numa dor quase humana, os olhos brilhantes fechados, cabeça e cauda baixas.

Era a coisa mais triste que eu já tinha visto.

Devagar, quase sem me mexer, me aproximei dele, com medo apenas de assustá-lo, não de seus lábios manchados de vermelho ou dos dentes por eles cobertos. Suas orelhas tremeram, registrando a minha presença, mas ele não se moveu. Eu me curvei, deixando a carne cair na neve a meu lado. Ele se encolheu quando ela bateu no chão. Eu estava perto o bastante para sentir o cheiro intenso de seu pelo e o calor do seu hálito.

Então fiz o que sempre quis fazer — botei uma das mãos sobre os pelos densos do seu pescoço e, quando ele não se esquivou, mergulhei as duas as mãos em sua pelagem. A parte externa não era tão macia quanto parecia, mas por baixo das pontas ásperas havia uma camada fofa de pelos. Com um gemido baixo, ele apertou a cabeça de encontro a mim, os olhos ainda fechados. Segurei-o como se ele não passasse de um cachorro doméstico, embora seu cheiro selvagem e intenso não me deixasse esquecer o que realmente era.

Por um momento, me esqueci de onde estava — de quem eu era. Por um momento, isso não importava.

Um movimento atraiu meu olhar: ao longe, quase invisível no crepúsculo, a loba branca nos observava da entrada do bosque, olhos ardentes.

Senti um ronco de encontro a meu corpo e percebi que meu lobo rosnava para ela. A loba aproximou-se, excepcionalmente ousada, e ele se torceu em meus braços para encará-la. Vacilei ao som de seus dentes mordendo o ar na direção dela.

Ela não rosnou e, de alguma forma, isso era mau sinal. Um lobo deveria rosnar. Mas ela só observava, os olhos se movendo depressa dele para mim, toda a sua linguagem corporal emanando ódio.

Ainda rosnando, quase inaudível, meu lobo apertou-se ainda mais contra mim, me obrigando a dar um passo atrás, depois outro, me guiando até o deque. Meus pés encontraram os degraus e recuei para a porta corrediça. Ele ficou perto da escada até que abri a porta e me tranquei dentro de casa.

Assim que entrei, a loba branca correu e abocanhou o pedaço de carne que eu tinha deixado cair. Embora meu lobo estivesse mais perto e fosse a mais óbvia ameaça à sua comida, foi a mim que ela encarou, do outro lado da porta de vidro. Ela sustentou o olhar por um longo instante antes de deslizar para o bosque como um espírito.

Meu lobo hesitou na entrada do bosque, seus olhos visíveis à fraca luz da varanda. Ele ainda observava meu vulto através da porta.

Pressionei a mão aberta contra o vidro gelado.

A distância entre nós nunca parecera tão grande.


CAPÍTULO 6

GRACE • 5º C

Quando meu pai chegou em casa, eu ainda estava perdida no mundo silencioso dos lobos, rememorando inúmeras vezes a sensação dos pelos ásperos do meu lobo na palma das mãos. Ainda que, contra minha vontade, eu as tivesse lavado para terminar de preparar o jantar, seu cheiro almiscarado entranhara em minhas roupas, mantendo o encontro vivo em minha mente. Foram precisos seis anos para que ele me deixasse tocá-lo. Abraçá-lo. E ele agora tinha me protegido, exatamente como sempre me protegera. Eu queria desesperadamente contar a alguém, mas sabia que papai não compartilharia da minha animação, ainda mais com os jornais falando incessantemente sobre o ataque. Fiquei de boca fechada.

Papai entrou batendo os pés. Mesmo sem me ver na cozinha, disse alto:

— O jantar está cheirando, Grace.

Foi até a cozinha e me deu tapinhas na cabeça. Seus olhos pareciam cansados atrás dos óculos, mas ele sorriu.

— Onde está sua mãe? Pintando?

Jogou o casaco numa cadeira.

— Ela para, alguma vez? — Olhei para o casaco, apertando os olhos: — Eu sei que você não vai deixar isso aí.

Ele o apanhou com um sorriso amável e chamou, em direção ao topo da escada:

— Trapinho, hora de jantar!

O fato de ele chamar mamãe pelo apelido confirmava seu bom humor.

Mamãe apareceu na cozinha amarela em dois segundos. Estava sem fôlego por ter descido as escadas correndo — aonder quer que fosse, ela nunca andava —, e havia um traço de tinta verde em seu rosto.

Papai beijou-a, evitando a tinta.

— Você foi uma boa menina, minha gatinha?

Ela bateu as pálpebras. Tinha no rosto uma expressão como se já soubesse o que ele iria dizer.

— A melhor de todas.

— E você, Gracie?

— Melhor do que mamãe.

Papai limpou a garganta.

— Senhoras e senhores, meu aumento sai nesta sexta-feira. Então...

Mamãe bateu palmas e girou em círculo, observando-se no espelho da saleta enquanto rodopiava.

— Vou alugar aquele lugar na cidade!

Papai fez uma careta e assentiu.

— E você, menina Grace, vai trocar aquela lata-velha daquele carro assim que eu conseguir tempo para ir com você até o revendedor. Estou cansado de levar aquilo para o conserto.

Mamãe riu, fútil, e bateu palmas outra vez. Ficou dançando pela cozinha, cantarolando uma musiquinha sem sentido. Se ela alugasse o ateliê na cidade, era provável que eu nunca mais visse nenhum dos meus pais. Bem, a não ser para jantar. Eles apareciam para comer.

Mas isso parecia sem importância em comparação com a promessa de um meio de transporte confiável.

— De verdade? Meu próprio carro? Quero dizer, um que funcione?

— Um que pelo menos não esteja caindo aos pedaços. — prometeu papai. — Nada de mais.

Abracei-o. Um carro assim significava liberdade.


Naquela noite, me deitei em meu quarto, os olhos fechados bem apertados, tentando dormir. O mundo do lado de fora da minha janela parecia silencioso, como se tivesse nevado. Era cedo demais para neve, mas todos os sons pareciam abafados. Quieto demais.

Prendi a respiração e me concentrei na noite, atenta a qualquer movimento na escuridão inerte.

Fui aos poucos percebendo que leves estalos quebravam o silêncio exterior, me deixando em estado de alerta. Para qualquer um, aquilo soava como pequenas unhas no deque do lado de fora de minha janela. Haveria um lobo no deque? Talvez fosse um guaxinim. Então houve mais arranhões de leve, e um rosnado — definitivamente, não era um guaxinim. Os pelos da minha nuca se eriçaram.

Colocando a colcha em volta do corpo como uma capa, pulei da cama e andei devagar pelas tábuas do assoalho iluminado por uma meia-lua. Hesitei, me perguntando se tinha sonhado com o barulho, mas o tec tec tec veio outra vez através da janela. Levantei a persiana e olhei para o deque lá fora. Na linha perpendicular ao meu quarto, eu podia ver que o quintal estava vazio. Os troncos negros das árvores projetavam-se como uma cerca entre mim e a floresta cerrada lá no fundo.

De repente, surgiu um focinho exatamente diante do meu rosto, e dei um pulo de surpresa. A loba branca estava do outro lado do vidro, as patas sobre o peitoril externo. Estava tão perto que eu podia ver as gotas de umidade em seus pelos. Seus olhos, azuis como o céu, me fitavam com ferocidade, me desafiando a desviar o olhar. Um ronco baixo atravessou o vidro e eu senti como se pudesse ler o seu significado, com tanta clareza quanto se estivesse escrito na vidraça: Você não é dele para que ele a proteja.

Encarei-a. Então, sem pensar, arreganhei os dentes num rosnado. O ronco que escapou de mim me surpreendeu tanto quanto a ela, e ela pulou para longe da janela. Me lançou um olhar sombrio por cima do ombro e, antes de voltar para o bosque, urinou no canto do deque.

Mordendo o lábio para apagar a estranha marca que o rosnado deixara em minha boca, apanhei meu suéter do chão e engatinhei de volta à cama. Empurrando o travesseiro para o lado, enrolei o suéter para botá-lo debaixo da cabeça.

Adormeci com o cheiro do meu lobo. Pontas de pinheiro, chuva fria, perfume de terra, cerdas ásperas em meu rosto.

Era quase como se ele estivesse ali.


CAPÍTULO 7

SAM • 5º C

Eu ainda podia sentir o cheiro dela em meu pelo. Aquilo se prendeu a mim, a lembrança de um outro mundo.

Estava inebriado, inebriado do cheiro dela. Havia chegado perto demais. Meus instintos me advertiam. Sobretudo quando eu me lembrava do que tinha acabado de acontecer com o garoto.

O cheiro de verão na pele dela, a cadência de sua voz, ainda não de todo esquecida, a sensação de seus dedos em meus pelos. Cada parte do meu corpo cantava com a recordação da sua proximidade.

Perto demais.

Eu não conseguiria ficar longe.


CAPÍTULO 8

GRACE • 18º C

Na semana seguinte, fiquei distraída na escola, flutuando durante as aulas e mal fazendo qualquer anotação. Tudo em que eu conseguia pensar era na sensação do pelo do meu lobo debaixo dos meus dedos e na imagem da loba branca rosnando para mim do lado de fora da janela. Minha atenção foi despertada, porém, quando a sra. Ruminski entrou com um policial em nossa sala, na aula de Capacitação Social.

Ela o deixou sozinho diante da classe, o que eu achei bastante cruel, considerando que estávamos na sétima aula do dia e a maioria de nós estava agitada, querendo sair dali o mais depressa possível. Talvez ela achasse que um membro da força policial conseguiria lidar com simples estudantes do ensino médio. Mas em criminosos se pode atirar, o que não se pode fazer numa sala cheia de adolescentes que não se calam.

— Oi — disse o guarda.

Por trás de um cinturão de acessórios do qual sobressaíam coldres, sprays de pimenta e outras artilharias semelhantes, ele parecia jovem. Deu uma olhada para a sra. Ruminski, que pairava inútil diante da porta aberta da sala. E apontou para a etiqueta brilhante em sua camisa: William Koenig. A sra. Ruminski nos tinha dito que ele era um ex--aluno de nossa excelente escola, mas nem seu nome nem seu rosto me pareceram familiares.

— Sou o guarda Koenig. Sua professora, a sra. Ruminski, me perguntou na semana passada se eu poderia vir falar em sua aula de Capacitação Social.

Olhei para Olívia, na carteira ao lado, para ver o que ela estava achando daquilo. Como sempre, tudo em Olívia parecia claro e ordenado: um boletim escolar nota 10 em forma de gente. Seu cabelo escuro estava preso numa trança embutida perfeita e sua blusa de colarinho tinha sido passada havia pouco tempo. Nunca dava para saber o que Olívia estava pensando apenas observando seus lábios. Era para os olhos que se devia olhar.

— Ele é uma graça — Olívia me cochichou. — Adorei a cabeça raspada. Você acha que a mãe dele o chama de Will?

Eu ainda não tinha descoberto como reagir àquele recém-descoberto e muito verbalizado interesse de Olívia por rapazes, então só revirei os olhos. Ele era bonitinho, mas não meu tipo. Acho que eu ainda não sabia direito qual era o meu tipo.

— Eu entrei para a polícia logo depois de terminar o ensino médio — continuou o guarda Will. Parecia muito cauteloso quando falou, franzindo a testa de um jeito meio servir-e-proteger. — É uma profissão que eu sempre quis seguir, e que levo muito a sério.

— Está na cara — cochichei para Olívia. A mãe dele provavelmente não o chamava de Will.

O guarda William Koenig olhou para nós e pousou a mão no revólver. Acho que foi por hábito, mas pareceu que ele estava pensando em atirar em nós por termos cochichado. Olívia se encolheu na cadeira e algumas garotas deram risinhos.

— É uma excelente carreira e uma das poucas que ainda não exigem faculdade — insistiu ele. — Alguém aqui... ahn... já pensou em ir para a força policial?

Foi aquele ahn que acabou com ele. Se ele não tivesse hesitado, acho que a turma teria se comportado.

Uma mão se ergueu. Elizabeth, uma das inúmeras alunas da escola Mercy Falls que ainda usavam preto desde a morte de Jack, perguntou:

— É verdade que o corpo de Jack Culpeper foi roubado do necrotério?

A turma explodiu em cochichos com aquela audácia, e o guarda Koenig olhou-a como se realmente tivesse um bom motivo para atirar nela. Mas tudo o que ele disse foi:

— Não estou autorizado a discutir detalhes de investigações em curso.

— E há uma investigação? — perguntou uma voz masculina lá na frente.

Elizabeth interrompeu:

— Minha mãe ouviu isso de um telefonista. É verdade? Por que alguém roubaria um corpo?

Teorias brotaram em rápida sucessão.

— Deve ser para encobrir algo. Um suicídio.

— Para contrabandear drogas!

— Experiências médicas!

Um garoto falou:

— Eu ouvi dizer que o pai de Jack tem um urso-polar empalhado em casa. Talvez os Culpeper tenham empalhado Jack também.

Alguém deu um tapa no garoto que fez o último comentário; ainda era tabu dizer alguma coisa negativa a respeito de Jack ou da família dele.

O guarda Koenig olhou apavorado para a sra. Ruminski, que continuava em pé à porta aberta da sala. Ela o encarou solenemente e então se virou para a classe.

— Calados!

Nós nos calamos.

Ela se voltou para o guarda Koenig e perguntou:

— E então, o corpo foi roubado?

Ele repetiu:

— Não estou autorizado a discutir detalhes de investigações em curso.

Mas dessa vez ele soou mais desamparado, como se talvez houvesse um ponto de interrogação no final da frase.

— Guarda Koenig — disse a sra. Ruminski —, Jack era muito querido nesta comunidade.

O que era uma mentira deslavada. Mas estar morto tinha feito maravilhas pela reputação de Jack. Aposto que todo mundo se esquecia de como ele perdia a calma no meio do corredor ou mesmo durante as aulas. E de como eram aquelas cenas. Mas eu não. Mercy Falls era cheia de boatos, e o boato a respeito de Jack era que ele tinha herdado o pavio curto do pai. Eu não acreditava muito nisso. Para mim, era como se cada um pudesse escolher que tipo de gente quer ser, independente de como são os pais.

— Ainda estamos de luto — acrescentou a sra. Ruminski, apontando para o mar de preto na sala de aula. — Não estamos falando de investigação. Estamos falando de termos um ritual de encerramento para uma comunidade unida.

Olívia mexeu os lábios: “Ai. Meu. Deus.” Balancei a cabeça. Incrível.

O guarda Koenig cruzou os braços sobre o peito; isso fez com que parecesse petulante, como um garotinho sendo obrigado a tomar uma atitude.

— É verdade. Estamos cuidando disso. Compreendo que a perda de alguém tão jovem — isso vindo de alguém que não parecia ter mais de vinte anos — tenha um forte impacto na comunidade, mas peço que todos respeitem a privacidade da família e a confidencialidade do processo de investigação.

Ele estava voltando com vontade à terra firme.

Elizabeth sacudiu outra vez a mão.

— Você acha que os lobos são perigosos? Vocês recebem muitos chamados envolvendo eles? Minha mãe disse que vocês recebem um monte de chamados envolvendo eles.

O guarda Koenig olhou para a sra. Ruminski, mas àquela altura já devia ter percebido que ela queria as respostas tanto quanto Elizabeth.

— Não acho que os lobos sejam uma ameaça para a população. Na minha opinião, e também na opinião do resto do Departamento, esse foi um caso isolado.

Elizabeth disse:

— Mas ela também foi atacada.

Ah, genial. Embora eu não pudesse vê-la, eu sabia que Elizabeth estava apontando para mim, porque todos os rostos se voltaram para me olhar. Mordi o lábio por dentro. Não porque a atenção me chateasse, mas porque sempre que alguém lembrava que eu tinha sido arrastada do balanço de pneu, lembrava também que aquilo poderia acontecer com qualquer um. E eu me perguntava quantas lembranças seriam necessárias antes que eles decidissem ir atrás dos lobos.

Ir atrás do meu lobo.

Eu sabia que essa era a verdadeira razão pela qual eu não podia perdoar Jack por ter morrido. Somando isso à sua contraditória passagem pela escola, parecia hipocrisia participar do luto com o resto dos alunos. Mas também não parecia certo ignorá-lo; eu gostaria de saber o que deveria estar sentindo.

— Foi há muito tempo — eu disse ao guarda Koenig, e ele pareceu aliviado quando acrescentei: — Anos. E podem ter sido cachorros.

Eu menti. Quem iria me contradizer?

— Exatamente — disse o guarda Koenig, enfático. — Exatamente. Não há por que difamar animais selvagens por um acidente esporádico. E não há por que criar pânico quando não há provas. O pânico leva ao descuido, e o descuido provoca acidentes.

Exatamente o que eu pensava. Senti uma vaga afinidade com o mal-humorado guarda Koenig quando ele levou a conversa de volta à carreira na força policial. Após o fim da aula, os outros alunos começaram de novo a falar de Jack, mas Olívia e eu fugimos até nossos armários.

Senti um puxão no cabelo e me virei: era Rachel, de pé atrás de mim, olhando para nós duas com ar fúnebre.

— Meninas, tenho que desmarcar o encontro de hoje à tarde para planejar as férias. A madrasta-monstro convocou uma ida familiar até Duluth. Se ela quiser que eu a ame, vai ter que me comprar alguns sapatos novos. Podemos nos encontrar amanhã ou depois?

Eu mal tinha balançado a cabeça em consentimento e Rachel já nos disparava um grande sorriso e saía ventando pelo corredor.

— Quer ir para a minha casa, então? — perguntei a Olívia.

Ainda era esquisito perguntar. No ensino fundamental, ela, Rachel e eu nos encontrávamos todos os dias, num acordo tácito. De algum modo tudo havia mudado depois que Rachel arranjou o primeiro namorado, deixando para trás Olívia e eu, as chatas e desinteressantes, e abalando nossa tranquila amizade.

— Claro — disse Olívia, pegando suas coisas para me seguir pelo corredor. Ela beliscou meu cotovelo: — Olha.

Apontou para Isabel, a irmã caçula de Jack, uma colega de classe nossa que detinha mais do que era permitido da cota de beleza dos Culpeper, completada por um cabelo de anjinho com cachos louros. Ela dirigia um carro branco e tinha um daqueles chihuahua de bolsa, que vestia e enfeitava para combinar com a roupa. Sempre me perguntei quando é que ela se daria conta de que vivia em Mercy Falls, Minnesota, onde as pessoas simplesmente não faziam aquele tipo de coisa.

Naquele momento, Isabel olhava fixamente para dentro de seu armário, como se nele existissem outros mundos. Olívia disse:

— Ela não está de preto.

Isabel saiu do transe e nos fuzilou com o olhar, como se tivesse percebido que falávamos dela. Olhei depressa para o outro lado, mas continuei a sentir seus olhos em mim.

— Talvez ela não esteja mais de luto — eu disse, depois que saímos de perto dela.

Olívia abriu a porta para mim.

— Talvez ela seja a única que já esteve de luto.


De volta à minha casa, fiz café e bolinhos de groselha, e nos sentamos à mesa da cozinha para ficar examinando uma pilha das últimas fotos de Olívia à luz da lâmpada amarela que pendia do teto. Para Olívia, a fotografia era uma religião; ela idolatrava sua máquina e estudava as técnicas como se fossem regras para organizar a vida. Vendo suas fotos, eu quase desejava me tornar adepta. Ela fazia com que a gente se sentisse perfeitamente dentro do cenário.

— Ele era mesmo uma graça. Você não pode dizer que não era — afirmou ela.

— Você ainda está falando do guarda-que-não-ri? O que há de errado com você? — Sacudi a cabeça e peguei a foto seguinte. — Nunca vi você obcecada por uma pessoa real.

Olívia riu com malícia e se inclinou para mim sobre uma caneca fumegante. Mordendo um bolinho, falou de boca cheia, cobrindo os lábios com a mão para não me encher de migalhas:

— Acho que estou virando uma dessas garotas que gostam de caras de uniforme. Ah, vai, você não o achou uma graça? Estou sentindo... estou sentindo a necessidade de um namorado. Deveríamos pedir pizza um dia desses. Rachel me disse que um dos entregadores é uma graça.

Revirei os olhos outra vez.

— De repente você quer um namorado?

Olívia não levantou os olhos das fotos, mas tive a impressão de que ela estava dando total atenção à minha resposta.

— Você não?

Resmunguei:

— Quando aparecer o cara certo, acho que sim.

— Como você vai saber, se não procura?

— Como se você algum dia já tivesse tido peito para falar com um cara. Um que não fosse o James Dean do seu pôster.

Minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia; acrescentei uma risada no final para amaciar o tom. As sobrancelhas de Olívia se aproximaram uma da outra, mas ela não disse uma palavra. Ficamos sentadas em silêncio por muito tempo, folheando as fotos.

Eu me detive num close em que estávamos juntas, Olívia, Rachel e eu; a mãe dela tinha ido à varanda para tirar aquela foto; foi logo antes do início das aulas. Rachel, com o rosto sardento contorcido num sorriso selvagem, tinha um braço firmemente passado pelos ombros de Olívia e o outro pelos meus; parecia que ela estava nos espremendo para cabermos na foto. Como sempre, ela era a cola que nos mantinha unidas: a extrovertida garantindo que nós, as quietas, continuássemos unidas pelos anos afora.

No retrato, com a pele bronzeada e os olhos verdes saturados de cor, Olívia parecia parte do verão. Seu sorriso formava uma perfeita lua crescente para as fotos, com covinhas e tudo. Perto das duas, eu era a personificação do inverno: cabelos de um tom louro-escuro e olhos sérios e castanhos, uma garota de verão desbotada pelo frio. Em geral, eu achava que Olívia e eu éramos muito parecidas, duas introvertidas sempre mergulhadas em livros. Agora, porém, percebia que minha reclusão era voluntária, ao passo que Olívia era apenas dolorosamente tímida. Agora, eu sentia que, quanto mais tempo passássemos juntas, mais difícil seria continuarmos amigas.

— Estou com cara de burra nesta aqui — disse Olívia. — Rachel parece maluca. E você, com raiva.

Minha expressão era de quem não aceitava não como resposta — quase petulante. Gostei.

— Você não parece burra. Parece uma princesa, e eu, um ogro.

— Não parece nada.

— Estava me gabando — confessei.

— E Rachel?

— Você já disse: cara de maluca. Ou pelo menos cheia de cafeína, como sempre.

Examinei outra vez a foto. De fato, Rachel era como um sol, brilhante e energético, segurando duas luas — nós — em órbitas paralelas pela pura força de sua vontade.

— Você viu essa? — Olívia interrompeu meus pensamentos para mostrar outra foto.

Era o meu lobo, no fundo do bosque e parcialmente escondido por uma árvore. Mas ela tinha conseguido capturar, com foco perfeito, um pedaço do rosto dele, e seus olhos fitavam os meus.

— Pode ficar com essa. Aliás, fique com a pilha toda. Podemos colocar as boas num álbum, da próxima vez.

— Obrigada — respondi, querendo dizer muito mais. Apontei para a foto: — É da semana passada?

Ela confirmou com a cabeça. Fitei longamente a foto dele — de tirar o fôlego, mas sem intensidade e vibração, se comparada à realidade. Passei o polegar de leve sobre ele, como se tocasse seu pelo. Senti um nó amargo e triste no peito. Percebi que Olívia me olhava, e isso só me fez sentir pior, mais solitária. No passado, eu teria comentado o assunto com ela, mas agora parecia pessoal demais. Alguma coisa havia mudado — e acho que fui eu.

Olívia me passou uma pilha pequena de fotos impressas que separara do resto.

— Estas são o meu orgulho.

Distraída, folheei-as devagar. Eram impressionantes: uma folha de outono flutuando numa poça, alunos refletidos nas janelas de um ônibus escolar, um autorretrato de Olívia em preto e branco, artisticamente fora de foco. Depois de ohs e ahs de surpresa e aprovação, disfarcei e coloquei a foto do meu lobo no alto da pilha para examiná-la outra vez.

Olívia deu uma espécie de muxoxo irritado.

Voltei depressa à folha flutuando na poça. Por um momento fitei-a pensativa, franzindo a testa, procurando imaginar o tipo de coisa que mamãe diria sobre uma obra de arte. Fiz uma tentativa:

— Gostei dessa. As cores são... fantásticas.

Ela arrebatou a pilha de minhas mãos e me atirou a foto do lobo com tanta força que o pedaço de papel quicou no meu peito e caiu no chão.

— É. Às vezes, Grace, nem sei nem por que me dou o trabalho de...

Não terminou a frase, apenas sacudiu a cabeça. Não entendi. Ela queria que eu fingisse gostar mais das outras fotos do que da do meu lobo?

— Ei! Tem alguém em casa?

Era John, o irmão mais velho de Olívia, me salvando das consequências do que quer que eu tivesse feito para irritá-la. Sorriu para mim do hall, fechando a porta atrás de si.

— E aí, gata.

Sentada à mesa da cozinha, Olívia ergueu os olhos com uma expressão gelada.

— Espero que você esteja falando de mim.

— Claro — disse John, olhando para mim. Ele era bonito de um modo bem convencional: alto, cabelos escuros como os da irmã, mas com um rosto sempre amável e disposto a sorrir. — Seria de muito mau gosto dar em cima da melhor amiga da irmã. Bem... São quatro da tarde. Como o tempo voa quando você... — Fez uma pausa, olhando para Olívia debruçada na mesa com a pilha de fotos, e para mim diante de outra pilha — ... está à toa. Vocês não conseguem ficar à toa sozinhas?

Olívia reuniu sua pilha de fotos em silêncio enquanto eu explicava:

— Somos tímidas. Gostamos de ficar à toa juntas. Só conversa, nenhuma ação.

— Parece fascinante. Olívia, temos que ir agora se não quiser perder a aula. — Ele socou meu braço de leve. — Por que não vem com a gente, Grace? Seus pais estão em casa?

Dei uma risada.

— Está brincando? Eu me crio sozinha. Devia receber um salário do governo por minha função de chefe de família.

John riu, talvez mais do que meu comentário merecia, e Olívia me lançou um olhar com veneno suficiente para matar animais pequenos. Calei a boca.

— Vamos, Olívia — disse John, aparentemente alheio às adagas que voavam dos olhos da irmã. — Você vai pagar pela aula, indo ou não. Você vem, Grace?

Olhei pela janela. Pela primeira vez em meses me imaginei desaparecendo por entre as árvores e correndo até encontrar meu lobo num bosque de verão. Sacudi a cabeça.

— Hoje não. Posso deixar para outro dia?

John me lançou um sorriso torto.

— Está bem. Vamos, Olive. Tchau, gata. Você sabe para quem ligar se quiser alguma ação nas suas conversas.

A mochila que Olívia jogou para o irmão chocou-se contra ele com um ruído sólido. Mas fui eu que recebi de novo um olhar sombrio, como se tivesse feito alguma coisa para encorajar a paquera de John.

— Sai, se manda. Tchau, Grace.

Levei-os até a porta e voltei à cozinha sem objetivo preciso. Uma voz agradavelmente neutra me seguiu, um apresentador da estação de rádio dando nome à música clássica que eu acabava de ouvir e apresentando outra; papai tinha deixado o rádio ligado em seu escritório, perto da cozinha. De alguma forma, os sons da presença de papai apenas acentuavam sua ausência. Sabendo que o jantar seria feijões em lata a não ser que eu mesma preparasse a comida, vasculhei a geladeira e botei no fogão uma panela com restos de sopa, para aquecer até que meus pais chegassem.

Fiquei ali de pé, na cozinha iluminada pela luz oblíqua e fria da tarde que entrava pela porta da varanda, sentindo pena de mim, mais por causa da foto de Olívia do que pela casa vazia. Não via meu lobo em carne e osso desde o dia em que o tocara, há quase uma semana, e, mesmo sabendo que não deveria sentir tal coisa, sua ausência ainda me apunhalava. Era ridículo eu precisar de sua aparição nos fundos do quintal para me sentir completa. Ridículo, mas absolutamente incurável.

Fui até a porta de trás e abri-a, a fim de sentir o cheiro do bosque. Só de meias, patinhei pelo deque e me apoiei no parapeito.

Se não tivesse ido lá fora, não sei se teria ouvido o grito.


CAPÍTULO 9

GRACE • 14º C

Do local além das árvores veio outra vez o grito. Por um segundo pensei que fosse um uivo, mas logo o grito se transformou em palavras: “Socorro! Socorro!”

Eu jurava que a voz parecia a de Jack Culpeper.

Mas isso era impossível. Era só minha imaginação se recordando de sua voz no refeitório, pois sempre parecia mais alta do que as outras quando ele implicava com as garotas no corredor.

Mesmo assim, segui o som da voz, atravessando impulsivamente o quintal e mergulhando por entre as árvores. O solo úmido e áspero me espetava os pés só de meias; a ausência de sapatos me fazia sentir mais desajeitada. O som de meus passos amassando e quebrando as folhas caídas e os emaranhados de arbustos abafava qualquer outro som. Hesitei, tentei escutar. A voz tinha desaparecido, substituída por apenas um gemido nitidamente animal e, depois, pelo silêncio.

A relativa segurança do quintal estava bem longe de mim agora. Parei por um momento, procurando escutar qualquer sinal que me mostrasse de onde viera o primeiro grito. Eu sabia que não o tinha imaginado.

Mas só havia silêncio. E, naquele silêncio, o cheiro do bosque se infiltrava na minha pele e me lembrava ele. Agulhas de pinheiro esmagadas, terra molhada e fumaça de lenha.

Pouco me importava a burrice em fazer aquilo. Eu penetrara no bosque até ali. Ir um pouco mais longe para tentar ver o meu lobo de novo não faria mal a ninguém. Voltei para casa apenas para pôr os sapatos e mergulhei de novo no frio dia de outono. A brisa tinha um toque duro que aludia ao inverno, mas o sol brilhava, e sob o abrigo das árvores o ar estava tépido com a lembrança dos dias quentes não muito distantes no tempo.

À minha volta, as folhas morriam em deslumbrantes tons de vermelho e laranja; corvos crocitavam uns para os outros lá em cima, numa trilha sonora feia e vibrante. Eu não tinha ido tão longe naquele bosque desde os meus 11 anos, quando acordara rodeada de lobos. Mas, estranhamente, não estava com medo.

Pisava com cuidado, evitando os pequenos córregos espalhados irregularmente pela vegetação rasteira. Embora aquele não fosse um território familiar, eu me sentia confiante, segura. Guiada em silêncio como se por um estranho sexto sentido, eu seguia as mesmas trilhas gastas usadas inúmeras vezes pelos lobos.

Claro que eu sabia não ser realmente um sexto sentido. Era apenas eu mesma, reconhecendo que nos meus sentidos havia mais do que eu em geral permitia vir à tona. Quando me entreguei, tais sentidos tornaram-se eficientes, aguçados. Ao me atingir, a brisa parecia trazer informações de uma porção de mapas, me contando quais animais tinham viajado, por onde e quanto tempo antes. Minhas orelhas colhiam sons tênues que eu ainda não havia percebido: o roçar do graveto enquanto um pássaro fazia um ninho lá em cima, o pisar macio de um cervo a vários metros de distância.

Eu me sentia em casa.

Um grito incomum e que não tinha lugar naquele mundo percorreu o bosque. Hesitei, atenta. O lamento chegou a mim de novo, agora mais alto do que antes.

Contornando um pinheiro, me deparei com a fonte do som: três lobos. Era a loba branca e o líder negro da alcateia. Ao avistar a loba, meu estômago se contraiu de nervoso. Os dois tinham em seu poder um terceiro lobo, um jovem macho muito magro e desajeitado, com uma pelagem cinzenta de tom quase azul, um ferimento feio começando a cicatrizar no dorso. Os outros dois lobos o mantinham preso ao solo coberto de vegetação numa demonstração de domínio. Todos se imobilizaram quando me viram. O macho preso torceu a cabeça para me encarar com olhos que imploravam. Meu coração bateu mais forte. Eu conhecia aqueles olhos. Me lembrava deles na escola; me lembrava deles no noticiário local.

— Jack? — sussurrei.

O lobo preso silvou pelas narinas, num lamento de dar pena. Eu apenas continuava a fitar aqueles olhos. Avelã. Lobos tinham olhos cor de avelã? Talvez. Por que pareciam tão estranhos? Enquanto eu os fitava, minha mente era martelada por uma única palavra: humano, humano, humano.

Com um rosnado em minha direção, a loba deixou-o levantar-se. Num movimento brusco, colocou-se ao lado dele, empurrando-o para longe de mim. Seus olhos me fitavam o tempo todo, me desafiando a detê-la, e algo em mim sugeria que eu talvez devesse tentar. Mas quando o tumulto dos pensamentos diminuiu e me lembrei do canivete no bolso da minha calça jeans, os três lobos já eram manchas escuras entre as árvores distantes.

Sem os olhos dos lobos diante de mim, me perguntei se a semelhança com os de Jack tinha sido imaginação. Afinal de contas, duas semanas já se tinham passado desde que eu vira Jack em pessoa, e de fato nunca tinha prestado muita atenção nele. Poderia não me lembrar direito de seus olhos. O que eu estava pensando, afinal? Que ele tinha se transformado num lobo?

Soltei um suspiro profundo. Na verdade, era isso que eu pensava. Não acreditava que tivesse me esquecido dos olhos de Jack. Ou de sua voz. E não havia imaginado o grito humano ou o uivo desesperado. Eu simplesmente sabia que era Jack, do mesmo modo que soubera como encontrar o caminho por entre as árvores.

Havia um nó no meu estômago. Nervos. Expectativa. Eu achava que Jack não era o único segredo escondido naquele bosque.


Naquela noite, na cama, eu fitava a janela com as persianas levantadas e, através dela, o céu noturno. Mil estrelas brilhantes abriam furos em minha consciência, multiplicando os anseios. Eu podia olhar as estrelas por horas e horas, seu número infinito e sua profundidade me arrastando para uma parte de mim que eu ignorava durante o dia.

Lá fora, vindo do fundo do bosque, ouvi um longo e vigoroso lamento, e depois outro, à medida que os lobos começaram a uivar. Mais uivos surgiram, alguns baixos e lamentosos, outros num som alto e curto, todos unidos num coro belo e sinistro. Eu conhecia o uivo do meu lobo; seu tom intenso se destacava acima dos outros como que me implorando que o ouvisse.

O coração me doía no peito, dividido entre querer que parassem e desejar que continuassem para sempre. Me imaginei entre eles no bosque dourado, observando-os jogar a cabeça para trás e uivar sob o céu de incontáveis estrelas. Pestanejei para afastar uma lágrima, me sentindo tola e infeliz, mas não adormeci até que todos os lobos tivessem silenciado.


CAPÍTULO 10

GRACE • 15° C

— Você acha que precisamos levar o livro para casa, para ler? Você sabe, o tal do Explorando as entranhas ou sei lá o nome? Ou posso deixar aqui? — perguntei a Olívia.

Ela fechou a porta de seu armário com os braços cheios de livros. Usava óculos de leitura presos a uma corrente para pendurar no pescoço. Nela, aquilo até que ficava bem, um certo charme de bibliotecária.

— Tem muita coisa para ler. Eu vou levar.

Reabri o armário para pegar o livro. Atrás de nós, a barulheira no corredor era grande; os alunos arrumavam suas coisas para ir para casa. O dia inteiro eu vinha tentando reunir coragem para contar a Olívia sobre os lobos. Normalmente nem teria que pensar sobre isso, mas depois da nossa quase briga do dia anterior o momento não parecia chegar. E agora o dia estava no fim. Respirei profundamente.

— Eu vi os lobos ontem.

Olívia folheava distraidamente o primeiro livro de sua pilha, sem perceber como minha confissão era importante.

— Quais?

— A loba desagradável, o preto e um novo.

Me perguntei mais uma vez se deveria contar ou não. Ela era muito mais interessada nos lobos do que Rachel, e eu não sabia com quem mais falar. Mesmo na minha cabeça, aquilo parecia maluco. Mas desde o final da tarde anterior, o segredo me perseguia, me apertava o peito e o pescoço. Em voz baixa, deixei as palavras saírem.

— Olívia, isso vai parecer maluquice. O novo lobo... acho que alguma coisa aconteceu quando os lobos atacaram Jack.

Ela apenas me encarou.

— Jack Culpeper — falei.

— Eu sei de quem você está falando. — Olívia franziu a testa diante do armário.

Suas sobrancelhas unidas fizeram com que eu me arrependesse de ter começado a conversa. Suspirei.

— Acho que o vi no bosque. Jack. Como um... — Hesitei.

— Lobo?

Olívia bateu os calcanhares — eu nunca tinha visto alguém fazer aquilo de verdade, fora de O Mágico de Oz — e girou sobre eles para me olhar de frente, uma sobrancelha erguida:

— Você está doida.

Eu mal podia ouvi-la com o barulho daquele monte de alunos em torno de nós no corredor.

— Quer dizer, é uma boa fantasia, e eu posso entender por que quer acreditar nela, mas você está doida. Sinto muito.

Me aproximei mais dela, embora o corredor estivesse tão barulhento que eu mesma tinha que lutar para escutar o que dizíamos.

— Olívia, eu sei o que vi. Eram os olhos de Jack. Era a voz dele.

Suas dúvidas me fizeram duvidar, claro, mas eu não iria confessar isso.

— Acho que os lobos o transformaram num deles. Espere aí, o que você quer dizer com isso? Que eu quero acreditar nisso?

Olívia me olhou longamente, depois saiu andando para o salão principal.

— Grace, fala sério. Acha que não sei por que isso tudo?

— Por quê?

Ela respondeu com outra pergunta:

— São todos lobisomens, então?

— O quê? O bando todo? Não sei. Não pensei nisso.

Aquilo não tinha me ocorrido. Deveria, mas não me ocorrera. Era impossível. Aquelas longas ausências eram porque meu lobo desaparecia quando adotava uma forma humana? Não consegui, de imediato, suportar aquela ideia: eu queria tanto que fosse verdade que chegava a doer.

— Não, claro que não. Você não acha que essa obsessão está ficando meio esquisita, Grace?

Minha resposta soou mais defensiva do que eu pretendia.

— Não estou obcecada.

Os alunos nos lançaram olhares irritados quando Olívia parou no corredor, um dedo no queixo.

— Hum, você só pensa nisso, só fala nisso e só quer conversar sobre isso. Que nome poderíamos dar a uma coisa dessas? Ah, é verdade: obsessão!

— Só estou interessada — rebati. — E pensei que você estivesse também.

— Eu estou interessada. Só que não é um interesse fixo, de só pensar nisso o tempo inteiro, chame como quiser. Não fico fantasiando sobre me transformar num lobo. — Seus olhos se estreitaram por trás dos óculos de grau. — Não temos mais 13 anos, Grace, mas parece que você ainda não entendeu isso.

Não respondi. Achava que Olívia estava sendo tremendamente injusta, mas não quis lhe dizer. Não queria lhe dizer nada. Queria apenas me afastar e deixá-la ali no corredor. Mas não o fiz. Em vez disso, mantive minha voz supercalma e controlada:

— Desculpe tê-la aborrecido por tanto tempo. Deve ter sido um saco ter que se mostrar interessada.

Ela fez uma careta.

— Sério, Grace. Não quero ser chata, mas francamente...

— Não, você só está dizendo que eu estou bizarramente obcecada por uma coisa que é importante para mim. Muito...— a palavra que eu queria demorou demais para surgir à minha mente e estragou o efeito — filantrópico da sua parte. Obrigada pela ajuda.

— Ah, vê se cresce — retrucou Olívia, e começou a se afastar.

O corredor parecia muito quieto depois que ela se foi, e meu rosto ardia. Em vez de ir para casa, voltei para o salão vazio, desabei numa cadeira e apoiei a cabeça nas mãos. Não conseguia me lembrar da última vez que brigara com Olívia. Eu vira todas as fotos que ela já havia tirado. Escutara as inúmeras queixas que desfiava contra sua família e a pressão que eles faziam para que fosse boa aluna. Olívia tinha que pelo menos me ouvir. Ela me devia isso.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo som de saltos de cortiça guinchando no piso da sala. O cheiro de perfume caro me atingiu um segundo antes que eu erguesse os olhos e visse Isabel Culpeper de pé à minha frente.

— Eu soube que vocês falaram sobre os lobos ontem com aquele guarda. — A voz de Isabel era agradável, mas a expressão em seus olhos desmentia o tom. A compaixão provocada em mim pela sua presença desapareceu diante de suas palavras. — Estou lhe dando o benefício da dúvida e presumindo que seja uma inocente mal-informada em vez de totalmente retardada. Soube que anda dizendo por aí que os lobos não são um problema. Você não deve ter ouvido a última notícia: aqueles animais mataram o meu irmão.

— Lamento pelo Jack — disse eu, automaticamente querendo saltar em defesa do meu lobo. Por um segundo pensei nos olhos de Jack e o que semelhante revelação significaria para Isabel, mas descartei a ideia quase no mesmo instante. Se Olívia me achava maluca por acreditar em lobisomens, Isabel provavelmente telefonaria para o hospício local antes que eu pudesse terminar a frase.

— Ca-la-da! — disse Isabel, interrompendo meus pensamentos. — Eu sei que está prestes a me dizer que os lobos não são perigosos. Olha, é óbvio que são. E é óbvio também que alguém vai ter que fazer alguma coisa a respeito.

Minha mente divagou para a conversa que se dera na sala de aula: Tom Culpeper e seus animais empalhados. Imaginei meu lobo empalhado e com olhos de vidro.

— Você não tem certeza se aquilo foi feito pelos lobos. Ele pode ter sido... — Parei. Eu sabia que tinham sido os lobos. — Olhe, alguma coisa muito errada aconteceu. Mas pode ter sido um lobo só. É possível que o resto da alcateia não tenha nada a ver com...

— Que maravilha é a objetividade — retrucou Isabel. Ela passou um bom tempo apenas me encarando. Tempo bastante para que eu me perguntasse o que estaria pensando. E então disse: — Estou falando sério. É melhor você desistir logo do seu amor tipo Greenpeace pelos lobos, porque eles não vão continuar aqui por muito tempo, goste você ou não.

Minha voz ficou tensa:

— Por que você está me dizendo isso?

— Estou cheia de ouvir você dizer a todo mundo que eles são inofensivos. Eles o mataram. Mas quer saber? Agora acabou. Hoje. — Isabel deu uma batida na carteira em que eu estava sentada. — É isso aí.

Agarrei-lhe o pulso antes que ela pudesse ir embora; me deparei com um monte de pulseiras enormes na mão.

— Do que você está falando?

Isabel olhou fixamente para minha mão em seu pulso, mas não puxou o braço. Ela queria que eu perguntasse.

— O que aconteceu com Jack nunca mais vai acontecer. Estão matando os lobos. Hoje. Agora.

Ela desvencilhou o pulso da minha mão, agora frouxa, e saiu porta afora.

Por um breve momento fiquei ali sentada, o rosto ardendo, separando as palavras e juntando-as de novo.

Então dei um pulo da cadeira, e meus papéis flutuaram até o chão como pássaros desatentos. Deixei-os no mesmo lugar e corri para o carro.


Quando me sentei ao volante estava sem fôlego, as palavras de Isabel martelando sem parar minha cabeça. Nunca considerara os lobos vulneráveis, mas depois que comecei a imaginar o que um promotor de cidade pequena totalmente egocêntrico como Tom Culpeper podia fazer — instigado pela dor e por uma raiva cada vez maiores e ajudado pela riqueza e a influência —, eles me pareceram de repente tremendamente frágeis.

Girei a chave na ignição, sentindo o carro voltar à vida com relutância, assim como eu. Meus olhos pairavam sobre a fila de ônibus da escola, todos amarelos, esperando junto ao meio-fio, e os grupos de alunos barulhentos ainda ciscando pela calçada, mas meu cérebro imaginava as filas de bétulas brancas como giz por trás de minha casa. Será que um grupo fora reunido para perseguir os lobos? Estariam caçando agora?

Eu precisava chegar em casa.

O carro afogou, meu pé hesitava sobre a engrenagem defeituosa.

— Céus!

Olhei em volta para ver quantas pessoas tinham visto o carro engasgar e morrer. Não que fosse muito difícil isso acontecer naqueles dias, agora que o sensor de calor estava um lixo, mas em geral eu conseguia dar um jeito na engrenagem e chegar à estrada sem muita humilhação. Mordi os lábios, me concentrei e consegui dar a partida de novo.

Havia dois caminhos para ir da escola à minha casa. Um era mais curto mas incluía sinais de trânsito e placas de parar — impossível hoje, quando eu estava preocupada demais para paparicar meu carro. Não tinha tempo para me sentar à beira da estrada. O outro caminho era ligeiramente mais longo, mas só tinha duas placas de parar. Além disso, ele margeava o Bosque da Fronteira, onde viviam os lobos.

Enquanto eu dirigia, acelerando o máximo que podia, sentia o nervoso me revirar o estômago. O motor sacolejou de um jeito nada saudável. Olhei o painel; o motor começava a aquecer demais. Carro idiota. Se meu pai tivesse me levado ao revendedor, como vivia prometendo...

Quando o céu começou a se tingir de um vermelho brilhante no horizonte, transformando as finas nuvens em traços de sangue acima das árvores, meu coração começou a latejar em meus ouvidos e senti a pele elétrica, formigando. Tudo em mim gritava que havia algo errado. Eu não sabia o que me perturbava mais, se os nervos que faziam minhas mãos tremerem ou a urgência de fechar os punhos e lutar.

Mais adiante, avistei uma fila de picapes no acostamento. As lanternas piscavam na noite que caía, iluminando esporadicamente o bosque junto à estrada. Uma figura se inclinou sobre a picape ao final da fila, segurando algo que eu não conseguia distinguir daquela distância. O mal-estar me invadiu novamente, e, quando reduzi a velocidade, o motor engasgou e morreu, me deixando parada num silêncio sinistro.

Girei a chave, minha mão tensa e a linha do sensor de calor já vermelha, mas o carro só fez estremecer, sem pegar de novo. Desejei ter ido eu mesma ao revendedor. O talão de cheques de papai estava comigo.

Rosnando e rangendo os dentes, pisei no freio e fiz o carro deslizar até uma parada que havia atrás das picapes. Liguei do celular para o ateliê de mamãe, mas ninguém atendeu — ela já devia estar no evento de abertura da galeria. Na verdade, como chegar em casa não me preocupava; era perto o suficiente para ir a pé. O que me preocupava eram aquelas picapes ali na frente. Porque significavam que Isabel tinha dito a verdade.

Quando saí do carro no acostamento, reconheci o sujeito de pé junto ao carro da frente. Era o guarda Koenig, sem uniforme, tamborilando no capô. Quando cheguei mais perto, meu estômago ainda se revirando, ele ergueu os olhos e seus dedos pararam. Usava um boné laranja brilhante e segurava uma espingarda.

— Problemas com o carro? — perguntou.

Eu me virei com brusquidão ao ouvir o som de uma porta de carro batendo atrás de mim. Outra caminhonete tinha parado, e dois caçadores de boné laranja desciam o acostamento. Olhei além deles para ver aonde estavam indo, o que me fez perder a respiração. Dúzias de caçadores se amontoavam no acostamento, todos segurando rifles, visivelmente inquietos, suas vozes abafadas. Examinando as árvores pouco nítidas atrás de uma vala rasa, pude ver mais bonés cor de laranja pontilhando o bosque, infestando-o.

A caçada já começara.

Virei para Koenig e apontei a arma que ele segurava.

— Isto é para os lobos?

Ele a olhou como se tivesse se esquecido de que a carregava.

— Isso é...

Ouviu-se um estalo alto vindo do bosque atrás dele. Nós dois nos sobressaltamos com o som. O grupo na estrada deu vivas.

— O que foi isso? — perguntei. Mas sabia a resposta. Era um disparo. No Bosque da Fronteira. Minha voz estava firme, o que me surpreendeu. — Estão caçando os lobos, não estão?

— Com todo o respeito, moça — disse Koenig —, acho que devia esperar no carro. Posso lhe dar uma carona para casa, mas vai precisar esperar um pouco.

Ouviram-se gritos no bosque, ao longe, e outro som de disparo, mais distante. Meu Deus. Os lobos. Meu lobo. Agarrei o braço de Koenig:

— Você tem que mandar eles pararem! Não podem atirar por lá!

Koenig deu um passo para trás, puxando o braço.

— Moça...

Houve outro estalo a distância, um som baixo e insignificante. Em minha cabeça eu via a imagem perfeita de um lobo rolando, rolando, um buraco aberto no flanco, os olhos mortos. Não pensei. As palavras saíram sozinhas:

— Seu telefone. Precisa ligar para eles e mandá-los parar. Uma amiga minha está lá! Ela ia tirar fotos hoje à tarde. No bosque. Por favor, você tem que ligar para eles!

— O quê? — Koenig ficou paralisado. — Tem alguém lá? Tem certeza?

— Tenho — falei, porque tinha certeza. — Por favor, ligue para eles!

Deus abençoe o mal-humorado guarda Koenig, por não ter me pedido mais detalhes. Puxando o celular do bolso, ele discou depressa um número e levou o aparelho ao ouvido. Suas sobrancelhas formavam uma linha reta e dura. Depois de um segundo, ele afastou o telefone e olhou a tela.

— O sinal... — murmurou ele, e tentou de novo.

Continuei junto à picape, braços cruzados no peito enquanto o frio se infiltrava em mim, observando o crepúsculo cinzento invadir a estrada à medida que o sol desaparecia atrás das árvores. Eles sem dúvida teriam que parar quando escurecesse. Mas alguma coisa me dizia que só o fato de haver um policial de guarda na estrada não tornava legal o que faziam.

Olhando outra vez para o telefone, Koenig sacudiu a cabeça.

— Não está funcionando. Espere um instante. Sabe, vai dar tudo certo. Eles estão tomando cuidado. Tenho certeza de que não atirariam numa pessoa. Mas vou até lá avisá-los. Só vou guardar a arma. Coisa de um segundo.

Quando ele começou a guardar a espingarda no carro houve outro disparo no bosque e algo dentro de mim pareceu ceder. Eu simplesmente não podia esperar mais. Pulei a vala e mergulhei por entre as árvores, deixando Koenig para trás. Ainda o ouvi me chamando, mas eu já estava bem dentro do bosque. Precisava detê-los... avisar meu lobo... fazer alguma coisa.

Mas enquanto eu corria, me esgueirando entre as árvores e pulando galhos caídos, tudo em que eu conseguia pensar era que chegara tarde demais.


CAPITULO 11

SAM • 10° C

Corríamos. Éramos silenciosas e escuras gotas d’água, passando sobre espinheiros e por entre as árvores à medida que os homens nos impeliam para a frente.

O bosque que eu conhecia, o bosque que me protegia, tinha sido invadido pelos seus cheiros ácidos e seus gritos. Eu disputava espaço com os outros lobos, guiando e seguindo, nos mantendo juntos. As árvores caídas e a vegetação rasteira eram pouco familiares sob meus pés; eu voava para evitar tropeçar — grandes, intermináveis saltos; eu mal tocava o chão.

Era aterrorizante não saber onde eu estava.

Trocávamos imagens simples em nossa vaga linguagem sem palavras: figuras escuras atrás de nós, com alertas brilhantes nas cabeças; lobos gelados, imóveis; o cheiro da morte em nossas narinas.

Um estalo me ensurdeceu, me fez perder o equilíbrio. Ouvi um gemido a meu lado. Eu soube que lobo era sem virar a cabeça. Eu não podia parar, não havia tempo; nada podia fazer, mesmo que houvesse algo a ser feito.

Um novo cheiro atingiu minhas narinas: podridão de terra e água estagnada. O lago. Estavam nos forçando a chegar ao lago. Formei uma imagem clara na cabeça ao mesmo tempo em que Paul, o líder do bando, fazia o mesmo. A lenta e ondulada margem da água, pinheiros finos crescendo esparsamente no solo pobre, o lago estendendo-se para sempre nas duas direções.

Um bando de lobos amontoados à margem. Nenhuma possibilidade de fuga.

Éramos a caça. Deslizávamos na frente deles, fantasmas no bosque, e seríamos vencidos, lutássemos ou não.

Os outros continuaram a correr em direção ao lago.

Mas eu parei.


CAPÍTULO 12

GRACE • 9° C

Aquele não era o bosque em que eu estivera poucos dias antes, tingido de todos os vivos tons do outono. Era um bosque cerrado, formado por mil troncos escuros enegrecidos pelo anoitecer. O sexto sentido que eu imaginava ter me guiado antes desaparecera; todos os atalhos conhecidos tinham sido destruídos pelos agitados caçadores de bonés laranja. Eu estava completamente desorientada; precisava parar várias vezes para escutar os gritos e os passos longínquos sobre as folhas secas.

A respiração me queimava a garganta quando vi o primeiro boné, brilhando distante no crepúsculo. Gritei, mas o boné nem se virou; a figura estava longe demais para me ouvir. Então vi os outros — pontos cor de laranja espalhados pelo bosque, movendo-se lenta e incessantemente na mesma direção. Fazendo muito barulho. Impelindo os lobos à frente deles.

— Pare! — gritei. Estava perto o bastante para ver a silhueta do caçador mais próximo, espingarda na mão. Diminuí a distância entre nós, as pernas falhando, tropeçando um pouco devido ao cansaço.

Ele parou de andar e se virou, surpreso, esperando que eu me aproximasse. Tive que chegar muito perto para ver seu rosto; era quase noite debaixo daquelas árvores. O rosto do homem, idoso e cheio de rugas, me pareceu vagamente familiar, embora eu não me lembrasse de onde o tinha visto antes. O caçador franziu a testa para mim, de um jeito estranho; achei que parecia culpado, mas podia ser minha imaginação.

— O que está fazendo aqui?

Comecei a explicar, sem perceber que estava tão sem fôlego que mal conseguia falar. Segundos se passaram antes que eu recuperasse a voz.

— Vocês... precisam... parar... de atirar. Uma amiga minha está no bosque. Ela ia tirar fotos.

Ele me examinou, depois olhou para o bosque que escurecia.

— Agora?

— É, agora! — disse eu, tentando não ser áspera. Vi uma caixa preta na cintura dele, um walkie-talkie. — Você precisa ligar para eles e dizer para parar com isso. Já está quase escuro. Como iriam vê-la?

O caçador me olhou fixo por um momento agoniantemente longo, depois assentiu. Levou a mão em direção ao rádio, tirou-o da cintura, levou-o à boca. Parecia fazer tudo em câmara lenta.

— Depressa! — A ansiedade me percorria, era uma dor física.

O caçador apertou o botão do aparelho para falar.

De repente, uma rajada de tiros explodiu como rugidos, não muito distante. Não eram pequenos estouros, como os que eu tinha ouvido no acostamento, mas foguetes explodindo, inequívocas detonações de espingarda. Meus ouvidos zumbiram.

De um modo estranho, eu me sentia totalmente objetiva, como se estivesse fora de meu próprio corpo. Assim, pude perceber que meus joelhos estavam fracos e trêmulos, mas sem saber por quê, e ouvi as batidas do meu coração disparando. E vi o vermelho escorrer por trás de meus olhos, como um sonho escarlate. Como um cruel e nítido pesadelo de morte.

Havia em minha boca um gosto metálico tão convincente que toquei os lábios, esperando encontrar sangue. Mas nada havia. Nenhuma dor. Apenas a ausência de sentidos.

— Tem alguém no bosque — disse o caçador no walkie-talkie, e não parecia ver que parte de mim estava morrendo.

Meu lobo. Meu lobo. Eu só conseguia pensar em seus olhos.

— Ei, moça! — Essa voz era mais jovem do que a do caçador, e a mão que tocou meu ombro era firme.

— Que ideia foi essa de sair correndo daquele jeito? — disse Koenig. — Tem gente armada por aqui.

Antes que eu pudesse responder, Koenig virou-se para o caçador:

— E eu ouvi aqueles tiros. Tenho certeza de que todos em Mercy Falls ouviram aqueles tiros. Uma coisa é carregar isso — apontou para a arma nas mãos do caçador —, outra é ficar se exibindo.

Tentei me desvencilhar de Koenig; ele apertou os dedos por reflexo, mas depois, ao perceber o que fazia, me soltou.

— Você é da escola. Qual o seu nome?

— Grace Brisbane.

O rosto do caçador se iluminou, reconhecendo meu nome.

— A filha de Lewis Brisbane?

Koenig olhou para ele.

— Os Brisbane têm uma casa bem ali, na beira do bosque.

O caçador apontou na direção da casa, invisível por trás do maciço escuro de árvores.

Koenig aproveitou aquele fragmento de informação.

— Vou escoltá-la até sua casa e depois voltar para descobrir o que está acontecendo com sua amiga. Ralph, use essa coisa para dizer a eles que parem de atirar.

— Não preciso de escolta — falei, mas Koenig me acompanhou mesmo assim, deixando Ralph, o caçador, falando no walkie--talkie. O ar gelado começava a ferroar e beliscar meu rosto, a noite ficando cada vez mais fria à medida que o sol desaparecia. Me sentia tão congelada por dentro quanto por fora. Ainda podia ver a cortina vermelha caindo sobre meus olhos e ouvir os disparos das armas.

Tinha absoluta certeza de que meu lobo estava lá.

Parei na saída do bosque, olhando para o vidro escuro da porta dos fundos, que dava para o deque. A casa toda parecia mergulhada na sombra, desabitada, e Koenig pareceu em dúvida ao perguntar:

— Quer que eu...?

— Posso continuar daqui, obrigada.

Ele hesitou até eu ter entrado no quintal. Então ouvi seus passos esmagando as folhas ao voltar seguindo o mesmo caminho pelo qual tínhamos vindo. Por um longo momento fiquei ali no crepúsculo silencioso, escutando as vozes distantes no bosque e o vento farfalhando as folhas secas nas árvores, acima de mim.

E enquanto estava ali no que imaginava ser silêncio, comecei a ouvir sons que não percebera antes. Passos de animais no bosque, revolvendo as folhas secas com suas patas. O ronco distante das caminhonetes na rodovia.

O som de uma respiração rápida e entrecortada.

Fiquei imóvel. Prendi a respiração.

Mas aquele som ofegante não era meu.

Segui o som, subindo com cuidado até o deque, dolorosamente consciente do ruído de cada degrau cedendo ao meu peso.

Senti seu cheiro antes de vê-lo, meu coração acelerando ao máximo no mesmo instante. Meu lobo. Então a lâmpada com detector de movimento acendeu, acima da porta dos fundos, e inundou a varanda de luz amarela. E lá estava ele, meio sentado, meio recostado na porta de vidro.

A respiração me doía na garganta à medida que eu chegava ainda mais perto, hesitante. Seu belo pelo tinha desaparecido e ele estava nu, mas eu soube que era o meu lobo mesmo antes que ele abrisse os olhos. Seus olhos de tom amarelo-claro, tão conhecidos, se abriram de repente ao me ouvir chegar, mas ele não se moveu. Havia vermelho desde as orelhas até os ombros, que eram desesperadamente humanos — a pintura de uma guerra mortal.

Não sei dizer como sabia que era ele, mas nunca duvidei que fosse.

Lobisomens não existiam.

Apesar de dizer a Olívia que tinha visto Jack, eu na verdade não acreditava naquilo. Não daquele jeito.

A brisa trouxe outra vez o cheiro ao meu nariz, me chamando à realidade. Sangue. Eu estava perdendo tempo.

Peguei as chaves e estendi a mão por cima dele para abrir a porta dos fundos. Tarde demais, vi uma de suas mãos se estender, agarrando o ar, e ele caiu porta adentro, deixando uma mancha de sangue no vidro.

— Desculpe! — falei.

Não sei se ele me ouviu. Pulando por cima dele, corri para dentro da cozinha, acendendo as luzes enquanto entrava. Peguei um monte de panos de prato numa gaveta e, ao fazer isso, vi as chaves do carro de meu pai na bancada, jogada ali junto a uma pilha de papéis do trabalho. Então, se eu precisasse, poderia usar o carro de papai.

Corri de volta para a porta dos fundos. Tinha medo de que o rapaz tivesse desaparecido enquanto eu estava de costas, como um produto da minha imaginação, mas ele não se movera. Ali estava ele, deitado, metade para dentro metade para fora, tremendo violentamente.

Sem pensar, agarrei-o por debaixo dos braços e arrastei-o para dentro, o suficiente para poder fechar a porta. Ali, à luz do lugar onde tomávamos o café da manhã, com o sangue criando uma trilha no chão, ele parecia tremendamente real.

Me abaixei rápido. Minha voz era apenas um sussurro:

— O que aconteceu?

Eu sabia a resposta, mas queria ouvi-lo falar.

Os nós de seus dedos pressionando o pescoço estavam brancos, e por entre eles vazava um líquido vermelho e brilhante.

— Tiro.

Meu estômago se retorceu, não pelo que foi dito, mas pelo som daquela voz. Era ele. Palavras, e não um uivo, mas o timbre era o mesmo. Era ele.

— Deixe-me ver.

Tive que puxar as mãos de seu pescoço. Havia sangue demais para se enxergar o ferimento; então, apertei um dos panos de prato sobre a mancha vermelha que se estendia do queixo à clavícula. Aquilo estava muito além da minha capacidade de prestar primeiros socorros.

— Segure isto.

Seus olhos me encararam, familiares mas sutilmente diferentes. O que havia nele de selvagem era amenizado por uma compreensão antes ausente.

— Não quero voltar.

A agonia em suas palavras me transportou no mesmo instante para uma lembrança: um lobo em dor silenciosa, de pé, diante de mim. O corpo do rapaz deu um solavanco, movimento estranho e não natural, que doía só de pensar.

— Não... não me deixe mudar.

Coloquei outro pano de prato, maior, sobre seu corpo, cobrindo sua pele arrepiada o melhor que pude. Em qualquer outro contexto eu teria ficado constrangida com sua nudez; ali, no entanto, com sua pele manchada de sangue e terra, o fato de ele estar nu só tornava sua condição mais digna de pena. Minhas palavras saíram suaves, como se ele ainda pudesse dar um pulo e sair correndo:

— Como é o seu nome?

Ele gemeu baixo, uma das mãos tremendo um pouco quando segurou o pano de encontro ao pescoço. O tecido já estava ensopado de sangue, e um fino traço vermelho escorreu de seu queixo e pingou no chão. Abaixando-se devagar, ele pousou o rosto no piso, sua respiração criando uma nuvem na madeira brilhante.

— Sam.

Ele fechou os olhos.

— Sam — repeti. — O meu é Grace. Vou ligar o carro do meu pai. Preciso levar você para o hospital.

Ele estremeceu. Tive que me aproximar muito para ouvir sua voz.

— Grace... Grace, eu...

Esperei por um breve segundo que ele terminasse o que ia dizer. Como não o fez, fiquei de pé num pulo e peguei as chaves na bancada. Ainda não conseguia acreditar que ele não fosse minha própria invenção — anos de desejo transformados em realidade. Mas, fosse ele o que fosse, estava ali agora, e eu não estava disposta a perdê-lo.


CAPÍTULO 13

SAM • 7° C

Eu não era um lobo, mas também não era Sam ainda.

Era um ventre vazando, e se avolumando com a promessa de pensamentos conscientes: o bosque congelado lá longe, atrás de mim; a menina no balanço de pneu; o som de dedos em cordas de metal. O futuro e o passado, idênticos um ao outro; neve depois verão, e depois neve outra vez.

Uma teia de aranha estilhaçada e composta de muitas cores, tornada gelo e despedaçada, imensamente triste.

— Sam — disse a garota. — Sam.

Ela era passado presente futuro. Eu queria responder, mas estava destruído.


CAPÍTULO 14

GRACE • 7° C

Olhar fixamente para alguém é grosseria, mas o bom de fazer isso com uma pessoa sedada é que ela não sabe que você a está encarando. E a verdade é que eu não conseguia parar de olhar para Sam. Se ele fosse para a minha escola, provavelmente seria rotulado como um emo ou talvez um membro dos Beatles na época errada. Tinha aqueles cabelos escuros que pareciam um esfregão e um nariz interessante que nunca ficaria bem numa garota. Nada nele lembrava um lobo, mas tudo lembrava o meu lobo. Mesmo agora, estando fechados seus olhos tão familiares, uma parte de mim continuava pulando de alegria irracional, lembrando a mim mesma: é ele.

— Meu bem, você ainda está aí? Achei que já tivesse ido.

Me virei quando as cortinas verdes se abriram e deixaram entrar uma enfermeira de ombros largos. Em seu crachá estava escrito Sunny.

— Vou ficar até ele acordar.

Agarrei-me à lateral do leito como se quisesse provar o quanto seria difícil me tirar dali.

Sunny sorriu, com pena de mim.

— Ele está muito sedado, meu bem. Só vai acordar de manhã.

Sorri também, e disse com voz firme:

— Então vou ficar até de manhã.

Eu já esperara horas enquanto removiam a bala e costuravam o ferimento; devia ser mais de meia-noite agora. Continuava achando que a qualquer momento teria sono, mas estava ligada. A cada vez que o via era como um novo choque. Só então me ocorreu que meus pais não tinham se dado o trabalho de me telefonar quando voltaram do evento de mamãe. Era provável que nem tivessem notado a toalha ensanguentada que eu usara para limpar o chão com rapidez, ou o fato de o carro de papai não estar na garagem. Ou talvez simplesmente nem tivessem chegado em casa. Meia-noite era cedo para eles.

O sorriso de Sunny continuou em seu rosto.

— Então está bem — disse ela. — Olha, ele teve uma sorte tremenda. A bala só o arranhou. — Seus olhos cintilaram. — Você sabe por que ele fez isso?

Franzi a testa, os nervos à flor da pele.

— Não estou entendendo. Você quer saber por que ele estava no bosque?

— Meu bem, nós duas sabemos que ele não estava no bosque.

Levantei uma sobrancelha, esperando que ela dissesse mais alguma coisa, mas ela não o fez. Então falei:

— Hã... estava. Estava sim. Um caçador atirou nele por acidente.

Não era mentira. Bem, menos a parte do “acidente”. Eu estava bem certa de que não tinha sido um acidente.

Sunny deu uma risadinha.

— Olha... Grace, não é? Você é namorada dele?

Resmunguei alguma coisa que poderia ser lida como sim ou como não, dependendo da inclinação do ouvinte.

Sunny entendeu como um sim.

— Sei que você está muito envolvida na situação, mas ele precisa de ajuda.

De repente, entendi. Quase comecei a rir.

— Você acha que ele atirou em si mesmo! Olhe, Sunny... é Sunny, não é? Você está enganada.

A enfermeira me lançou um olhar furioso.

— Você acha que somos idiotas? Que não perceberíamos isto?

Do outro lado da cama, ela pegou os braços frouxos de Sam e virou--os de modo que as palmas das mãos se voltassem para o teto numa súplica silenciosa. Apontou para as cicatrizes nos pulsos dele, lembranças de ferimentos profundos e propositais, que poderiam ter sido letais.

Olhei aquilo, mas eram como palavras numa língua estranha. Nada significavam para mim. Dei de ombros.

— Isso foi antes de eu o conhecer. Só estou lhe dizendo que ele não tentou se matar nem atirou em si mesmo hoje à noite. Foi algum caçador maluco.

— Claro, meu bem. Certo. Me avise se precisar de alguma coisa.

Sunny me lançou um olhar raivoso antes de desaparecer atrás da cortina, me deixando a sós com Sam.

Com o rosto corado, balancei a cabeça e fiquei olhando os nós brancos dos dedos com que me agarrava ao leito. Das coisas que mais me irritavam, adultos condescendentes talvez estivessem no topo da lista.

Um segundo depois que Sunny se foi, Sam abriu os olhos, aos poucos. Tive um sobressalto, o coração latejando em meus ouvidos. Foi preciso um bom tempo olhando para ele até que minha pulsação voltasse ao normal. A lógica me dizia para perceber que seus olhos eram cor de avelã, mas na verdade continuavam amarelos. E sem sombra de dúvida estavam fixos em mim.

Minha voz saiu muito mais baixa do que eu pretendia.

— Você deveria estar dormindo.

— Quem é você?

Sua voz tinha o mesmo tom complicado e aflito do seu uivo. Ele apertou os olhos e acrescentou:

— Sua voz me parece tão familiar.

Uma pontada de dor me fez estremecer. Não me ocorrera que ele pudesse não se lembrar dos momentos em que era lobo. Não sabia quais as regras daquilo. Sam me estendeu a mão e eu automaticamente entrelacei os dedos nos dele. Com um sorriso contido e culpado, levou minha mão ao nariz e cheirou-a; e depois de novo. Seu sorriso se ampliou, embora ainda tímido. Era um sorriso adorável, e minha respiração ficou presa na garganta.

— Conheço esse cheiro. Não a reconheci; você parece diferente. Desculpe. Me sinto um idiota por não lembrar. Demora algumas horas para que eu... para que o meu cérebro... volte.

Ele não soltou meus dedos, e eu não os puxei, embora fosse difícil me concentrar com sua pele contra a minha.

— Voltar do quê?

— Voltar de quando — corrigiu ele. — Voltar de quando eu era...

Ele esperou; queria que eu dissesse. Admitir aquilo alto e bom som era mais difícil do que eu imaginava, embora não devesse ser.

— De quando você era lobo — sussurrei. — Por que está aqui?

— Porque levei um tiro — ele falou, brincando.

— Quis dizer desse jeito.

Apontei para seu corpo, tão nitidamente humano sob aquela estúpida camisola de hospital.

Ele apenas me olhou. Depois disse:

— Ah. Porque é primavera. Porque está quente. O calor me transforma em mim. Me transforma em Sam.

Puxei minha mão, afinal, e fechei os olhos, tentando por um instante reunir o que me sobrara de sanidade. Quando os abri, disse a coisa mais corriqueira possível:

— Não é primavera. É setembro.

Não sou boa em interpretar as pessoas, mas pensei ter visto um cintilar de ansiedade em seus olhos; depois ficaram límpidos.

— Isso não é bom — observou ele. — Posso lhe pedir um favor?

Precisei fechar outra vez os olhos ao ouvir o som de sua voz, pois o fato de ele estar falando comigo não deveria ser familiar, mas era, em algum nível profundo, exatamente como seus olhos de lobo sempre haviam sido. Aquilo estava se revelando mais difícil de aceitar do que eu tinha pensado. Abri os olhos. Ele ainda estava lá. Tentei outra vez, fechando e abrindo os olhos de novo. Mas ele ainda estava lá.

Ele riu.

— Está tendo um ataque epilético? Talvez você devesse estar nessa cama.

Olhei para ele de cara feia, e ele ficou muito vermelho ao perceber o outro significado para suas palavras. Poupei-o daquela aflição perguntando:

— Qual é o favor?

— Eu, ahn, preciso de umas roupas. Tenho que sair daqui antes que percebam que sou um monstro.

— Por que diz isso? Não vi nenhum rabo.

Sam estendeu a mão e começou a sondar as pontas dos curativos que havia no pescoço.

— Está maluco?

Me inclinei e agarrei sua mão, tarde demais. Ele tinha puxado a gaze, revelando quatro novos pontos, que desenhavam uma curta linha no tecido já cicatrizado. Não havia nenhum ferimento recente ainda sangrando, nenhuma evidência do tiro além de uma cicatriz brilhante e cor-de-rosa. Meu queixo caiu.

Sam sorriu, evidentemente se divertindo com a minha reação.

— Está vendo? Não acha que eles vão suspeitar de alguma coisa?

— Mas havia tanto sangue...

— É. Minha pele não conseguia cicatrizar enquanto sangrava tanto. Depois que me costuraram... — Ele deu de ombros e fez um pequeno gesto com as mãos, como se abrisse um livrinho. — Abracadabra. Há algumas vantagens em ser como eu.

Suas palavras eram leves, mas sua expressão era de ansiedade, me observando, vendo como eu recebia aquilo tudo. Como recebia o fato de sua existência.

— Muito bem, eu só preciso ver uma coisa aqui — eu disse. — Só... — Dei um passo à frente e encostei a ponta dos dedos na cicatriz em seu pescoço.

De algum modo, sentir a pele firme e lisa me convenceu muito mais que suas palavras. Os olhos de Sam deslizaram por meu rosto e se afastaram de novo, sem saber para onde olhar enquanto eu tocava a antiga cicatriz saliente por baixo das suturas negras e espetadas. Minha mão se demorou em seu pescoço um pouco mais do que o necessário, não sobre a cicatriz, mas para o lado, na pele macia e cheirando a lobo.

— Está bem. Então é claro que você tem que ir embora antes que vejam isso. Mas se você sair daqui antes de o médico lhe dar alta, se simplesmente for embora, vão tentar encontrá-lo.

Ele fez uma careta.

— Não, não vão. Só vão imaginar que sou um vagabundo sem plano de saúde. O que é verdade. Bem, a parte do plano de saúde.

Não adiantava ser sutil.

— Não, eles vão pensar que você fugiu para evitar a terapia. Acham que você atirou em si mesmo por causa...

Sam tinha uma expressão intrigada.

Apontei para seus pulsos.

— Ah, isso. Eu não fiz isso.

Fechei a cara de novo. Não queria dizer algo como “Tudo bem, você tem uma desculpa”, ou “Pode me contar, não vou julgá-lo”, porque, na verdade, isso seria tão ruim quanto a reação de Sunny afirmando que ele tinha tentado se matar. Mas não parecia que aquelas cicatrizes poderiam ter sido causadas por um tombo na escada.

Ele passou um dedo num dos pulsos, pensativo.

— Minha mãe fez essa. Meu pai fez a outra. Lembro que fizeram uma contagem regressiva para agir ao mesmo tempo. Ainda não suporto olhar para uma banheira.

Levei um momento para processar o que ele dizia. Não sei por que — se pelo jeito frio e sem emoção com que ele falou, ou a imagem daquela cena que surgiu na minha cabeça, ou apenas o choque da noite como um todo —, mas de repente me senti tonta. Minha cabeça girou, meu coração latejou forte nos ouvidos, e desabei no chão grudento do quarto.

Não sei quantos segundos fiquei apagada, mas vi a cortina se abrir ao mesmo tempo em que Sam pulou de volta para a cama, prendendo o curativo outra vez no pescoço. E um enfermeiro estava ajoelhado ao meu lado, ajudando-me a sentar.

— Você está bem?

Desmaiei. Eu nunca tinha desmaiado na vida. Fechei e abri os olhos até que as três cabeças do enfermeiro, flutuando lado a lado, se tornassem uma de novo. E aí comecei a mentir.

— Fiquei pensando naquele sangue todo de quando o encontrei... ahhh...

Como eu ainda estava zonza, o ahhh soou muito convincente.

— Não pense nisso — sugeriu o enfermeiro, com um sorriso amigável.

Achei que, para um contato casual, sua mão estava um pouco próxima demais do meu peito, tal fato reforçou minha decisão de seguir com o plano humilhante que acabava de surgir na minha cabeça.

— Acho... preciso fazer uma pergunta embaraçosa — murmurei, sentindo o rosto arder. Aquilo era quase tão ruim quanto dizer a verdade. — Você acha que posso conseguir algum uniforme emprestado? Eu... hã... minha calça...

— Ah! — exclamou o pobre enfermeiro. Seu embaraço diante da minha situação era provavelmente maior por conta do sorriso da paquera anterior. — Claro. Com certeza. Já volto.

Cumprindo a palavra, ele voltou alguns minutos depois, tendo nas mãos um uniforme dobrado, cor de verde-vômito.

— Talvez fique um pouco grande, mas tem cordões que... ah, você sabe.

— Obrigada — murmurei. — Ahn, você se incomoda de sair um minuto? Vou mudar de roupa aqui mesmo. Ele não está enxergando nada agora.

Fiz um gesto na direção de Sam, que parecia convincentemente sedado.

O enfermeiro desapareceu atrás das cortinas. Os olhos de Sam se abriram de novo, exibindo um nítido divertimento.

— Você disse ao homem que fez xixi nas calças? — sussurrou ele.

— Calado — sibilei de volta, e joguei a roupa em cima dele. — Anda logo, antes que descubram que eu menti. Você me deve uma.

Ele sorriu e fez a roupa verde deslizar sob o fino lençol do hospital, se engalfinhando com ela; depois arrancou o curativo do pescoço e o medidor de pressão do braço. Quando o medidor caiu na cama, deu um puxão na camisola e substituiu-a pela camisa do uniforme. O monitor guinchou em protesto, exibindo uma linha reta e anunciando sua morte à equipe.

— Hora de ir — disse ele, abrindo caminho por trás das cortinas. Quando parou, dando uma olhada rápida no quarto ao nosso redor, ouvi as enfermeiras correndo para seu leito oculto pelo pano.

— Ele estava sedado. — A voz de Sunny se erguia acima das outras.

Sam estendeu o braço e pegou minha mão, a coisa mais natural do mundo, me puxando para a luz brilhante do corredor. Agora que estava vestido — com roupa de centro cirúrgico, apenas — e não afogado em sangue, ninguém estranhou quando ele passou pelo posto das enfermeiras em direção à saída. O tempo inteiro eu podia ver sua mente de lobo analisando a situação. A inclinação de sua cabeça me dizia que estava à escuta, e seu queixo erguido sugeria os cheiros que captava. Ágil, apesar do corpo magricelo e desengonçado, ele escolheu um atalho engenhoso, contornando os obstáculos até chegarmos ao saguão principal.

Uma melosa música country saía do sistema de alto-falantes enquanto meu tênis roçava o feio carpete de xadrez azul-marinho; os pés descalços de Sam não produziam som algum. Àquela hora da noite, o saguão estava vazio e não havia atendente alguma na recepção. Minha adrenalina estava tão alta que achei que seria capaz de voar até o carro de papai. A parte eternamente pragmática da minha cabeça me lembrou de que eu precisava chamar o reboque para tirar meu próprio carro do acostamento da estrada. Mas eu não podia ficar muito irritada por causa daquilo, porque tudo o que eu conseguia pensar era em Sam. Meu lobo era um cara bonito e estava segurando minha mão. Eu podia morrer feliz.

Então senti sua hesitação. Ele recuou, os olhos fixos na escuridão além da porta de vidro.

— Como deve estar o frio lá fora?

— Provavelmente não muito pior do que quando eu trouxe você. Por quê? Vai fazer tanta diferença?

O rosto de Sam ficou sombrio.

— Está bem no limite. Detesto essa época do ano. Posso ser tanto uma coisa como outra.

Senti a dor em sua voz.

— Dói quando você se transforma?

Ele desviou os olhos.

— Eu quero ser humano neste momento.

Eu também queria que ele fosse humano.

— Vou ligar o carro e o aquecedor. Assim você só vai ficar no frio por alguns segundos.

Sam pareceu um pouco desamparado.

— Mas eu não sei para onde ir.

— Onde é que você vive normalmente?

Tive medo de que ele dissesse algo lamentável, como o abrigo dos sem-teto no centro da cidade. Deduzi que não morasse com os pais que tinham cortado seus pulsos.

— Quando Beck, um dos lobos, se transforma, muitos de nós ficamos em sua casa. Mas, se ele não se transformou, a calefação pode não estar ligada. Eu poderia...

Sacudi a cabeça e soltei sua mão.

— Não. Eu vou pegar o carro e você vai para casa comigo.

Ele arregalou os olhos.

— Seus pais...?

— O que os olhos não veem... — disse eu, abrindo a porta. Estremecendo com a pancada do ar frio da noite, Sam recuou da entrada, se protegendo com os braços. Mas mesmo enquanto tremia de frio, mordeu os lábios e sorriu para mim, hesitante.

Me virei para o estacionamento escuro, me sentindo mais viva, mais feliz e com mais medo do que nunca.


CAPÍTULO 15

GRACE • 6° C

— Você está dormindo?

A voz de Sam era apenas um murmúrio, mas, no quarto escuro e desconhecido para ele, deu a impressão de um grito.

Rolei na cama na direção do seu vulto no chão, um volume escuro aninhado em cobertores e almofadas. Sua presença, tão estranha e maravilhosa, parecia encher o quarto e se impor sobre mim. Achei que eu nunca mais dormiria.

— Não — falei.

— Posso perguntar uma coisa?

— Já perguntou.

Ele fez uma pausa, refletindo.

— Posso perguntar duas coisas, então?

— Já perguntou.

Sam gemeu e jogou uma das pequenas almofadas do sofá na minha direção. Ela fez um arco no quarto iluminado pelo luar, um projétil escuro, e caiu com um baque inofensivo na minha cabeça.

— Espertinha, hein?

Sorri no escuro.

— Está bem, vou entrar no jogo. O que quer saber?

— Você foi mordida.

Mas isso não era uma pergunta. Eu podia sentir o interesse na voz dele e a tensão em seu corpo, mesmo estando longe no quarto. Me encolhi nos cobertores, me escondendo de suas palavras.

— Não sei — respondi.

A voz de Sam era pouco mais do que um murmúrio.

— Como não sabe?

Dei de ombros, embora ele não pudesse ver.

— Eu era muito nova.

— Eu também era novo. E sabia o que estava acontecendo. — Quando não respondi, ele perguntou: — Foi por isso que ficou lá deitada? Você não sabia que eles iam te matar?

Olhei fixamente para o quadrado escuro de noite através da janela, perdida na lembrança de Sam como lobo. A alcateia ao meu redor, línguas e dentes, rosnados e saltos. Um dos lobos ficou para trás, um colar de gelo eriçado em volta do pescoço, palpitando enquanto me observava na neve. Deitada no frio, sob um céu branco que escurecia, mantive os olhos nele. Era lindo: selvagem e sombrio, olhos amarelos cheios de uma complexidade que eu estava longe de captar. E exalava um cheiro como o dos outros lobos em torno de mim — um cheiro rico, almiscarado, feroz. Mesmo agora, deitado em meu quarto, eu podia sentir nele o cheiro do lobo, embora usasse a roupa do centro cirúrgico e uma nova pele.

De fora, veio um uivo baixo e vigoroso, depois outro. O coro noturno se ergueu, sem a voz queixosa de Sam, mas mesmo assim magnífico. Meu coração acelerou, tomado por um anseio abstrato, e ouvi Sam dar um gemido baixo no chão. O som infeliz, preso entre humano e lobo, me perturbou.

— Você sente falta deles? — sussurrei.

Sam deixou seu leito improvisado e foi à janela, uma silhueta incomum recortada contra a noite, os braços envolvendo o próprio corpo magro.

— Não. Sim. Não sei. Isso me deixa... mal. Como se eu não pertencesse a este lugar.

Isso me soa familiar. Tentei pensar em algo para dizer, algo que pudesse confortá-lo, mas não encontrei nada que parecesse verdadeiro.

— Mas isto sou eu — insistiu ele, apontando com o queixo para o próprio corpo.

Não sabia se ele queria convencer a mim ou a si mesmo. Ele continuou à janela enquanto os uivos dos lobos ficavam mais fortes, trazendo lágrimas aos meus olhos.

— Venha para cá e converse comigo — eu disse, para que nós dois nos distraíssemos.

Sam se virou um pouco, mas não consegui ver sua expressão. Eu insisti:

— Aí no chão está frio e você vai arrumar um torcicolo. Sobe logo aqui.

— E seus pais? — disse ele, o mesmo que me perguntara no hospital. Eu estava quase lhe perguntando por que tanta preocupação com eles, mas então me lembrei da história de seus pais, e das cicatrizes brilhantes e franzidas em seus pulsos.

— Você não conhece meus pais.

— Onde eles estão?

— Na abertura da galeria, acho. Minha mãe é artista plástica.

A voz dele estava cheia de dúvidas:

— São três da manhã.

Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia.

— Venha logo. Sei que você vai se comportar. E que não vai roubar os lençóis. — Como ele ainda hesitava, acrescentei: — Anda logo, antes que a noite acabe.

Obediente, ele pegou uma das almofadas do chão, mas de novo hesitou do outro lado da cama. Na penumbra, pude perceber sua expressão triste ao enfrentar o território proibido do colchão. Eu não sabia se achava charmosa sua relutância em partilhar a cama com uma garota ou se um insulto por, aparentemente, não ser atraente o bastante para que ele investisse como um touro contra o colchão.

Finalmente, ele subiu. A cama estalou sob seu peso e ele estremeceu antes de se instalar na beirada, distante, nem entrou debaixo do cobertor. Eu podia agora sentir melhor o tênue cheiro de lobo, e suspirei com um estranho contentamento. Ele suspirou também.

— Obrigado — disse ele. E soou formal, considerando que estava deitado na minha cama.

— De nada.

Foi então que a verdade me atingiu em cheio. Lá estava eu, na cama, com um rapaz que mudava de forma. Não apenas qualquer rapaz que mudava de forma, mas o meu lobo. Eu continuava a reviver a lembrança da luz da varanda se acendendo, revelando-o pela primeira vez. Uma estranha combinação de excitação e nervoso me arrepiou.

Sam virou a cabeça para me olhar, como se meus nervos à flor da pele tivessem emitido raios. Eu podia ver seus olhos cintilando na penumbra, não muito longe de mim.

— Eles a morderam. Você deveria ter se transformado também, sabia?

Na minha cabeça, os lobos rodeavam um corpo na neve, seus lábios ensanguentados, seus dentes arreganhados, rosnando antes do golpe final. Um lobo, Sam, arrastava o corpo para longe do círculo de lobos. Ele o carregava por entre as árvores sobre duas pernas, deixando pegadas humanas na neve. Eu sabia que estava adormecendo, por isso me sacudi para acordar; não conseguia lembrar se havia respondido a Sam.

— Às vezes, acho que gostaria que tivesse acontecido isso — falei.

Ele fechou os olhos, a quilômetros de distância do outro lado da cama.

— Às vezes, eu também.


CAPÍTULO 16

SAM • 5° C

Acordei de repente. Por um instante, continuei imóvel, piscando, tentando identificar o que tinha me despertado. Os acontecimentos da noite anterior me voltaram de súbito à memória enquanto eu percebia que não tinha sido acordado por um som, e sim por uma sensação: a mão que repousava no meu braço. Grace tinha se virado, aproximando-se, enquanto dormia, e eu não conseguia parar de olhar seus dedos em minha pele.

Ali, ao lado da garota que me salvara, minha simples humanidade me parecia uma espécie de triunfo.

Virei de lado e, por algum tempo, apenas a observei dormindo; ela respirava longa e regularmente, de forma que a mecha de cabelo caída sobre seu rosto tremulava. No sono, ela parecia totalmente certa de estar a salvo, totalmente despreocupada com a minha presença ao seu lado. Aquilo, também, eu sentia como uma sutil vitória.

Quando ouvi seu pai se levantar, fiquei imóvel, o coração disparando em silêncio, pronto para pular da beira do colchão caso ele viesse acordá-la para a escola. Mas ele saiu para trabalhar numa nuvem de loção pós-barba cheirando a zimbro que entrou por debaixo da porta e me antingiu como um turbilhão. A mãe saiu pouco depois, fazendo barulho ao deixar cair alguma coisa na cozinha e xingando com uma voz agradável enquanto fechava a porta. Eu não podia acreditar que não dessem uma espiada no quarto de Grace para terem certeza de que estava viva, ainda mais porque não a tinham visto quando chegaram em casa tarde da noite. Mas a porta continuou fechada.

De qualquer forma, eu me sentia um idiota com aquela roupa de hospital, que ainda por cima não me servia de nada naquele clima horroroso e incerto. Escorreguei então para fora da cama enquanto Grace dormia; ela nem se mexeu. Hesitei na varanda dos fundos, olhando as finas folhas da grama com as pontas congeladas. Mesmo tendo pegado emprestado um par de botas do pai dela, o ar da primeira manhã mordia meus tornozelos nus por baixo da borracha. Eu quase podia sentir a náusea da mudança me revolvendo o estômago.

Sam, eu disse a mim mesmo, querendo que meu corpo acreditasse. Você é Sam. Eu precisava me aquecer; voltei para dentro a fim de procurar um casaco. Droga de tempo. O que tinha acontecido com o verão? Num armário atulhado, que cheirava a lembranças mofadas e naftalina, encontrei uma jaqueta acolchoada de cor azul brilhante, que me fazia parecer um balão, e me aventurei pelo quintal com mais confiança. O pai de Grace tinha os pés do tamanho de um Yeti, o abominável homem das neves; assim, entrei no bosque com a graça de um urso polar numa casinha de bonecas.

Apesar do frio que fazia minha respiração criar fantasmas no ar, o bosque estava lindo naquela época do ano, todo em ousadas cores primárias: folhas onduladas em surpreendentes tons de amarelo e vermelho, o céu num azul-claro brilhante. Detalhes que eu nunca notava como lobo. Mas à medida que me aproximava da minha provisão de roupas, perdia todas as coisas que notava como lobo. Embora ainda tivesse os sentidos aguçados, não sentia o cheiro sutil de muitas trilhas de animais na vegetação rasteira, ou a úmida promessa de tempo mais quente dali a algumas horas. Normalmente, eu era capaz de ouvir a sinfonia industrial de carros e caminhões na rodovia distante e detectar o tamanho e a velocidade de cada veículo. Mas agora, tudo o que eu conseguia sentir era o cheiro da fumaça do outono, suas folhas em brasa e árvores semimortas, e tudo o que conseguia ouvir era o zumbido baixo e quase inaudível do tráfego ao longe.

Como lobo, eu teria sentido o cheiro de Shelby chegando muito antes de avistá-la. Mas não agora. Ela estava quase em cima de mim quando tive a sensação de que algo se aproximava. Os pelinhos de meu pescoço se ergueram, meu corpo alerta, e tive a sensação desconfortável de que estava partilhando minha respiração com alguém. Virei-me e a vi, grande para uma fêmea, o pelo branco de sempre amarelado à luz do dia. Parecia ter sobrevivido à caçada sem um arranhão. Com as orelhas ligeiramente para trás, observou minha roupa ridícula com a cabeça inclinada.

— Shhh — eu disse, e estendi a mão com a palma para cima, deixando o que sobrara do meu cheiro flutuar até ela. — Sou eu.

Seu focinho se franziu com repugnância enquanto recuava lentamente, e adivinhei que ela havia reconhecido o cheiro de Grace misturado ao meu. Eu também o sentia; mesmo agora, seu leve perfume de sabonete se prendia aos meus poros, nos pontos em que meu corpo encostou em sua cama, e à minha mão, onde ela havia segurado.

A cautela cintilou nos olhos de Shelby, espelhando sua expressão humana. Era assim entre mim e ela — eu não conseguia me lembrar de um tempo em que não estivéssemos sutilmente em conflito. Eu me aferrava à minha humanidade — e à minha obsessão por Grace — como um homem que se afoga, mas Shelby dava as boas-vindas ao esquecimento que vinha com sua pele lupina. Claro, não faltavam a ela motivos para esquecer.

Agora, naquele bosque de setembro, olhávamos um para o outro. Suas orelhas se inclinaram para mim e para mais adiante, captando dúzias de sons que escapavam a meus ouvidos humanos, e suas narinas trabalhavam, descobrindo onde eu tinha estado. Eu me peguei recordando a sensação das folhas secas sob minhas patas e o cheiro penetrante, rico e pesado daquele bosque de outono nos momentos em que eu era lobo.

Shelby me olhou nos olhos — uma atitude muito humana, considerando que minha posição no bando era alta demais para que outros lobos além de Paul ou Beck me desafiassem daquele jeito —, e imaginei sua voz humana me dizendo, como tantas vezes antes: Não sente falta?

Fechei os olhos, afastando a intensidade de seu olhar e a lembrança de meu corpo de lobo, e em vez disso pensei em Grace, lá na casa. Nada na minha experiência lupina podia se comparar à sensação da mão de Grace na minha. No mesmo instante, revirei aquela ideia na cabeça, criando a letra de uma música.


Você é minha troca de pele

Meu verão-inverno-outono

Eu corro para te seguir

Que linda é esta perda.


No segundo que levei para compor a letra e imaginar o acorde de violão que a acompanharia, Shelby sumiu no bosque, suave como um sussurro.

O fato de ela poder desaparecer tão silenciosa e furtivamente como chegara me lembrou meu estado vulnerável, e voltei a caminhar desajeitado e depressa até o galpão onde estava minha roupa. Anos antes, Beck e eu tínhamos arrastado o velho galpão, peça a peça, do quintal dele para uma pequena clareira nas profundezas do bosque.

Lá dentro havia um aquecedor, uma bateria de barco e várias latas de lixo de plástico com nomes escritos do lado de fora. Abri a lata com o meu nome e puxei dali de dentro uma mochila. As outras latas de lixo estavam cheias de comida, cobertores e baterias sobressalentes — equipamento que nos permitia hibernar ali dentro, à espera de que outros membros da alcateia mudassem de forma —, mas a minha continha suprimentos para fuga. Tudo que eu mantinha ali se destinava a me levar de volta à humanidade o mais depressa possível, e Shelby não me perdoava por isso.

Vesti depressa minhas várias camadas de camisas de mangas compridas e uma calça jeans, e troquei as botas enormes do pai de Grace por meias de lã e meus velhos sapatos de couro, tirando de dentro deles a carteira com o dinheiro do trabalho de verão e enfiando na mochila tudo o que sobrara. Quando fechava a porta do galpão, percebi com o canto do olho o movimento de algo escuro.

— Paul — chamei, mas o lobo preto, o líder de nossa alcateia, tinha sumido. Duvidei até que tivesse me reconhecido: para ele, eu era apenas mais um ser humano naquele bosque, apesar do meu cheiro vagamente familiar. Minha garganta se fechou, numa espécie de dor. No ano anterior, Paul não se tornara humano até o final de agosto. Este ano, talvez nem se transformasse.

Eu sabia que as transformações que a mim restavam também estavam contadas. No ano anterior eu me transformara em junho, um gigantesco e assustador salto em relação à última mudança, no começo da primavera, quando ainda havia neve no chão. E este ano? Quanto tempo teria se passado até que eu tivesse meu corpo de volta se Tom Culpeper não tivesse atirado em mim? Nem eu mesmo entendia como ter sido alvejado me devolvera a forma humana com aquele clima frio. Me lembrei de como o ar estava gelado quando Grace se ajoelhou perto de mim, pressionando meu pescoço com um pano. Muito se passou desde o último verão.

As cores brilhantes das folhas quebradiças em volta do galpão zombaram de mim, prova de que um ano nascera e morrera sem que eu tivesse consciência disso. Eu soube, com repentina e desanimadora certeza, que aquele era meu último ano.

Só encontrar Grace agora me parecia uma brincadeira terrivelmente cruel do destino.

Não queria pensar naquilo. Portanto, corri de volta à casa dela, vendo se os carros de seus pais continuavam ausentes. Entrando mais uma vez, hesitei por um segundo à porta do quarto e então perambulei bastante tempo pela cozinha, vasculhando os armários, embora não estivesse realmente com fome.

Admita. Você está nervoso demais para voltar lá. Eu queria tanto vê--la de novo, aquele fantasma insistente que assombrara meus anos no bosque. Mas também tinha medo de que vê-la frente a frente na maldita luz do dia pudesse mudar as coisas. Ou pior, que pudesse não mudar. Na noite anterior, eu tinha sangrado quase até a morte na varanda dos fundos da casa dela. Qualquer um poderia ter me salvado. Hoje, eu queria mais do que salvação. Mas e se para ela eu não passasse de uma aberração?

Você é uma abominação para a criação divina. Você é amaldiçoado. Você é o demônio. Onde está o meu filho? O que você fez com ele? Fechei os olhos, me perguntando por que, junto com todas as coisas que eu já perdera, não podiam estar também as lembranças de meus pais.

— Sam?

Dei um pulo ao ouvir meu nome. Grace chamou de novo de seu quarto, pouco mais que um sussurro, imaginando onde eu estava. Não parecia com medo.

Empurrei a porta e passei os olhos pelo quarto. À forte luz do final da manhã, eu podia ver agora que era um quarto de adulto. Nada de coisinhas cor-de-rosa ou bichos de pelúcia havia permanecido com Grace, se é que já os tivera um dia. Fotos de árvores nas paredes, todas as molduras do mesmo estilo, pretas e sóbrias, sem enfeites. Mobília também preta, quadrada e de aparência utilitária. Suas toalhas de banho e rosto cuidadosamente dobradas em cima da cômoda perto de outro relógio — preto e branco, de linhas suaves — e uma pilha de livros da biblioteca, a maioria de não ficção e mistério, a julgar pelos títulos. Provavelmente em ordem alfabética, ou arrumados por tamanho.

De repente, me dei conta de como éramos diferentes. Pensei que, se Grace e eu fôssemos objetos, ela seria um elaborado relógio digital, ajustado de acordo com a hora mundial em Londres com perfeição técnica, e eu seria um globo de neve: lembranças remexidas numa bola de vidro.

Fiz um esforço para encontrar uma frase que não soasse como o cumprimento de um perseguidor que vive entre dois mundos:

— Bom dia — consegui dizer.

Grace se sentou na cama, o cabelo amassado de um lado e achatado contra sua cabeça do outro, os olhos escuros cheios de franco encantamento.

— Você ainda está aqui! E de roupa! Quer dizer, sem ser o uniforme do hospital.

— Fui buscar enquanto você dormia.

— Que horas são? Ai... estou atrasada à beça para a escola, não é?

— São 11 horas.

Grace gemeu e depois deu de ombros.

— Quer saber? Não perco uma aula desde que comecei o ensino médio. Recebi um prêmio por isso no ano passado. E uma pizza grátis ou coisa parecida.

Ela pulou da cama. À luz do dia, eu podia ver como sua camisola era justa e insuportavelmente sexy. Virei o rosto.

— Não precisa ficar tão sem graça, sabe. Eu não estou nua. — Parando na frente do armário, olhou de novo para mim com um ar travesso. — Você não me viu nua, viu?

— Não!

Minha resposta saiu nitidamente às pressas.

Ela sorriu da minha mentira e pegou uma calça jeans no fundo do armário.

— Bem, se não quiser me ver agora, é melhor virar de costas.

Deitei na cama, o rosto enterrado nos travesseiros frios que tinham o cheiro dela. Ouvi o barulho do roçar das roupas enquanto ela se vestia, meu coração batendo a mil por hora. Suspirei, culpado, incapaz de manter a mentira.

— Foi sem querer.

O colchão gemeu quando ela se atirou nele, o rosto perto do meu.

— Você sempre pede tantas desculpas?

Minha voz saiu abafada pelo travesseiro.

— Estou tentando fazer com que você me ache uma pessoa decente. Dizer que vi você nua quando eu estava na outra espécie não ajuda muito.

Ela riu.

— Vou ser boazinha com você, porque eu deveria ter fechado as cortinas.

Houve um longo silêncio, cheio de mil mensagens não proferidas. Eu podia sentir o cheiro de seu nervosismo vindo suavemente de sua pele, e ouvir seu coração batendo rápido através do colchão. Teria sido tão fácil meus lábios avançarem os centímetros de distância entre nossas bocas. Achei que podia ouvir a esperança em suas pulsações: me beije, me beije, me beije. Em geral, eu era bom em captar sentimentos alheios, mas com Grace tudo que eu pensava era toldado pelo o que eu queria.

Ela deu um risinho baixo, um som encantador e também completamente diferente do que eu conhecia dela.

— Estou morta de fome — falou, afinal. — Vamos preparar um café da manhã. Ou um brunch.

Rolei para fora da cama, e ela fez o mesmo. Eu tinha total consciência das suas mãos nas minhas costas, me empurrando para fora do quarto. Juntos, andamos sem ruído até a cozinha. A luz do sol, brilhante demais, trombeteava pela porta de vidro que dava para a varanda, refletindo a bancada branca e os azulejos da cozinha, nos cobrindo de luz. Como já tinha explorado o local mais cedo, eu sabia onde as coisas estavam, então comecei a pegar o que precisávamos.

Enquanto eu me movimentava pela cozinha, Grace me seguia de perto, os dedos encontrando meu cotovelo e as palmas das mãos roçando minhas costas, encontrando pretextos para me tocar. Pelo canto do olho, eu percebia que ela me observava sem disfarçar, quando achava que eu não perceberia. Era como se eu jamais tivesse me transformado, como se ainda a olhasse do bosque e ela continuasse sentada no balanço, me encarando com olhos de admiração.


Despindo a minha pele

Deixando só meus olhos

Você vê dentro de mim

E sabe que ainda é minha.


— Está pensando em quê? — perguntei, quebrando um ovo na frigideira e servindo um copo de suco de laranja com dedos humanos que de repente me pareciam preciosos.

Grace riu.

— Que você está fazendo meu café.

Era uma resposta simples demais; não sabia se podia acreditar. Não quando na minha cabeça mil pensamentos competiam por espaço ao mesmo tempo.

— E em que mais?

— Que é fofo da sua parte. E que espero que você saiba como fazer ovos mexidos.

Mas seus olhos foram da frigideira à minha boca, só por um segundo, e eu soube que ela não estava pensando só na comida. Ela deu meia-volta e fechou as persianas, mudando num segundo o ambiente da cozinha.

— E que está claro demais aqui.

A luz se filtrava através das persianas, lançando listras horizontais sobre seus enormes olhos castanhos e a linha fina de seus lábios.

Voltei para os ovos mexidos e os virei num prato exatamente quando a torrada pulou da torradeira. Estiquei a mão ao mesmo tempo que Grace, e foi um daqueles momentos perfeitos de cinema quando as mãos se tocam e você sabe que os personagens vão se beijar. Só que dessa vez foram os meus braços que por acidente a rodearam, prendendo-a de encontro à bancada enquanto eu estendia a mão para a torrada e empurrando-a contra a geladeira quando me inclinei para a frente. Sem saber o que fazer com minha falta de jeito, nem sequer me dei conta de que aquele era o momento perfeito até ver os olhos de Grace se fecharem, seu rosto erguido para mim.

Beijei-a. Só um leve roçar dos meus lábios nos dela, nada animal. Mesmo naquele momento, analisei o beijo: as possíveis reações de Grace, suas possíveis interpretações, o modo como aquilo me fez estremecer, os segundos entre ter tocado seus lábios e ela ter aberto os olhos.

Grace sorriu para mim. Suas palavras foram zombeteiras, mas a voz era carinhosa:

— Isso é tudo que você tem a oferecer?

Toquei seus lábios de novo e, dessa vez, o beijo foi bem diferente. Valeu por seis anos de espera, sua boca criando vida sob a minha, com gosto de laranja e desejo. Seus dedos correram pelo meu rosto e mergulharam nos meus cabelos antes de me enlaçar o pescoço, vivos e frescos na minha pele quente. Eu me sentia selvagem e domesticado, e feito em pedaços e perdido entre tudo isso ao mesmo tempo. Pela primeira vez na minha vida humana, minha mente não divagou compondo uma letra de música nem guardou o momento para uma reflexão posterior.

Pela primeira vez na vida,

eu estava ali

e em nenhum outro lugar.

E então abri os olhos e éramos apenas Grace e eu — nada além de Grace e eu —, ela apertando os lábios como se quisesse manter meu beijo dentro dela; e eu segurando aquele momento, que era tão frágil quanto um pássaro em minhas mãos.


CAPÍTULO 17

SAM • 15° C

Certos dias parecem compostos de partes que se encaixam como num vitral. Cem pecinhas de cores e aspectos diferentes que, combinadas, criam um quadro completo. As últimas 24 horas tinham sido assim. A noite no hospital era um pedaço de vidro, de um verde doentio e bruxuleante. As horas escuras do início da manhã na cama de Grace eram outro, enevoado e roxo. Depois o frio e azul momento da manhã em que me foi lembrada minha outra vida e, afinal, o vidro brilhante e transparente do nosso beijo.

No pedaço de vidro atual, estávamos sentados no banco gasto de uma velha caminhonete, na beira de um estacionamento decadente e enorme nos arredores da cidade. Parecia que o quadro completo começava a entrar em foco, a imagem trêmula de algo que eu achava não poder ter.

Grace passou os dedos pelo volante do carro com um toque prudente e carinhoso e depois se virou para mim.

— Vamos brincar de perguntas.

Eu estava recostado no banco do carona, olhos fechados, deixando o sol da tarde me banhar através do para-brisa. Era bom.

— Você não devia estar vendo outros carros? Sabe, uma das coisas de comprar um carro é... ir comprar.

— Não sou muito boa em compras — disse Grace. — Só vejo o que preciso e fico com ele.

Eu ri. Começava a entender como aquela declaração era a cara de Grace.

Ela me encarou com os olhos apertados, se fazendo de irritada, e cruzou os braços.

— Então, perguntas. E não são opcionais.

Dei uma espiada no estacionamento para ver se o proprietário, que fora rebocar o carro dela, não tinha voltado. Ali em Mercy Falls, a companhia de reboque e a loja de carros usados eram uma coisa só.

— Está bom. É melhor que não seja nada constrangedor.

Grace deslizou para um pouco mais perto de mim no banco e relaxou, numa posição que espelhava a minha. Senti como se aquela fosse a primeira pergunta: sua perna encostada na minha, seu ombro contra o meu, o tênis bem-amarrado dela descansando em cima do meu sapato velho de couro. Meu coração disparou, uma resposta sem palavras.

A voz de Grace era pragmática, como se ela não soubesse o efeito que provocava em mim.

— Quero saber o que faz você virar lobo.

Essa era fácil.

— Quando a temperatura cai, eu me torno lobo. Quando faz frio à noite e calor durante o dia, posso sentir a coisa vindo, até que, afinal, o clima fica frio o bastante para que eu me transforme num lobo e fique assim até a primavera.

— Os outros também?

Concordei com a cabeça.

— Quanto mais tempo você é lobo, mais quente a temperatura precisa ficar para que você se torne humano. — Fiz uma pausa, pensando se era hora de contar a ela. — Ninguém sabe quantos anos vai ter nessas idas e vindas. É diferente para cada um.

Grace apenas me olhou — o mesmo olhar comprido que me lançou quando era pequena, deitada na neve, erguendo o rosto para mim. Eu não conseguia ler aquele olhar melhor do que naquela época. Senti a garganta apertar em antecipação a sua resposta, mas ela, piedosamente, mudou o rumo das perguntas.

— Quantos vocês são?

Eu não sabia direito, porque muitos de nós não voltavam mais a ser humanos.

— Uns vinte.

— O que vocês comem?

— Filhotes de coelho. — Ela apertou os olhos, então sorri e disse: — Coelhos adultos também. Sou um comedor de coelhos sem discriminações.

Ela continuou, sem perder tempo:

— O que era aquilo no seu rosto na noite em que me deixou tocá-lo?

Sua voz era a mesma, mas algo ao redor de seus olhos se tensionou, como se ela não tivesse certeza de que queria ouvir a resposta.

Precisei fazer um esforço para me lembrar daquela noite — seus dedos em meu pelo, sua respiração movendo os fios finos nas laterais de meu rosto, o prazer cheio de culpa por estar tão perto dela. O rapaz. O que havia sido mordido. Era aquilo, na verdade, o que ela estava perguntando.

— Está dizendo que havia sangue em meu rosto?

Grace assentiu.

Parte de mim ficou um pouco triste por ela ter que perguntar, mas é claro que ela precisava saber. Tinha todos os motivos para não confiar em mim.

— Não era dele... do rapaz.

— Jack — disse ela.

— Jack — repeti. — Eu sabia que o ataque tinha acontecido, mas não estava lá.

Precisei cavar mais fundo na memória para rastrear a origem do sangue em meu focinho. Meu cérebro humano fornecia respostas lógicas — coelho, cervo, animais atropelados na estrada —, todas instantaneamente mais fortes do que minhas lembranças reais de lobo. Afinal, arranquei a resposta correta de meus pensamentos, embora não estivesse orgulhoso dela.

— Era um gato. O sangue. Eu tinha capturado um gato.

Grace soltou o fôlego.

— Não está chateada por ter sido um gato?

— Você tem que comer. Se não era Jack, pouco me importa se era um canguru — ela disse. Mas era óbvio que sua cabeça ainda estava em Jack. Tentei me lembrar do pouco que sabia do ataque, odiando-a por pensar mal do meu bando.

— Ele os provocou, você sabe — falei.

— Ele o quê? Você não estava lá, estava?

Balancei a cabeça e fiz força para explicar.

— Nós não podemos... os lobos... quando nos comunicamos, é por imagens. Nada muito complexo. E não funciona a grandes distâncias. Mas se estamos perto uns dos outros, podemos compartilhar uma imagem com outro lobo. E foi assim com os lobos que atacaram Jack, eles me mostraram imagens.

— Vocês podem ler as mentes uns dos outros? — perguntou Grace, incrédula.

Balancei a cabeça enfaticamente.

— Não. Eu... é difícil explicar como huma... como eu. É só um modo de falar, mas nossos cérebros, como lobos, são diferentes. Na verdade, não há qualquer conceito abstrato. Coisas como tempo, nomes e emoções complicadas estão todas fora de questão. Na verdade, isso funciona para coisas como caçar, ou avisar uns aos outros do perigo.

— E o que você viu sobre Jack?

Abaixei os olhos. Era estranho rastrear uma lembrança de lobo com uma mente humana. Passei em revista as imagens borradas em minha mente, reconhecendo agora que as manchas vermelhas na pelagem dos lobos eram ferimentos a bala, e que as manchas em suas bocas eram o sangue de Jack.

— Alguns lobos me mostraram alguma coisa sobre tiros dados por ele. Um... uma arma? Ele devia estar com uma arma de chumbinho. Vestia uma camiseta vermelha.

Lobos distinguem mal as cores, mas vermelho nós podemos ver.

— Por que ele faria isso?

Balancei a cabeça, em negativa.

— Não sei. Esse é o tipo de coisa que não dizemos uns aos outros.

Grace ficou calada, ainda pensando em Jack, suponho. Ficamos ali sentados juntos em silêncio até que comecei a me perguntar se ela estaria aborrecida. Foi quando ela disse:

— Então você nunca teve chance de abrir presentes de Natal.

Encarei-a, sem saber o que responder. Natal era algo que acontecia em outra vida, a de antes dos lobos.

Ela desviou os olhos para o volante.

— Eu só estava pensando que você nunca estava por perto no verão, e que eu sempre adorei o Natal porque sabia que você sempre estava lá. No bosque. Como lobo. Acho que é por causa do frio, certo? Mas isso deve querer dizer que você nunca teve chances de abrir presentes de Natal.

Balancei a cabeça. Agora eu me transformava tão cedo que nem chegava a ver as decorações de Natal nas lojas.

Grace franziu a testa, olhando o volante.

— Você pensa em mim quando é lobo?

Quando eu era lobo, eu era a lembrança de um garoto lutando para me agarrar a palavras sem sentido. Não queria dizer a verdade a ela: que não conseguia me lembrar de seu nome.

— Penso no seu cheiro — eu disse, com sinceridade.

Estendi a mão e levei ao nariz uma mecha de seu cabelo. O perfume do xampu me lembrou o perfume da sua pele. Engoli em seco e deixei a mecha cair de volta em seu ombro.

Seus olhos seguiram minha mão, do seu ombro ao meu colo, e eu a vi também engolir em seco. A pergunta óbvia — quando me transformaria de novo — pendia entre nós, mas nem eu nem ela a colocava em palavras. Eu ainda não estava pronto para lhe dizer. Meu peito doía ao pensar em deixar tudo aquilo para trás.

— Então — ela falou de novo, e botou a mão no volante —, você sabe dirigir?

Puxei a carteira do bolso da calça e lhe estendi:

— O estado de Minnesota acha que sim.

Ela pegou minha carteira de motorista, segurou-a contra o volante e leu em voz alta:

— Samuel K. Roth. — Acrescentou, então, com certa surpresa: — Esta carteira é autêntica. Você deve mesmo ser real.

Eu ri.

— Ainda duvida?

Em vez de responder, Grace me devolveu a carteira e perguntou:

— É o seu nome verdadeiro? Você não está supostamente morto, como Jack?

Eu não sabia se queria falar sobre o assunto, mas respondi assim mesmo:

— Foi diferente. Não me morderam tanto, e alguns estranhos me salvaram antes de ser arrastado e levado embora. Ninguém me declarou morto, como fizeram com Jack. Portanto, sim, esse é o meu nome verdadeiro.

Grace parecia distraída, e imaginei o que estaria pensando. Então, de repente, ela me olhou com o rosto sombrio.

— Então seus pais sabem o que você é, certo? Foi por isso que eles...

Ela parou e desceu as pálpebras, quase fechando totalmente os olhos. Pude vê-la engolindo em seco de novo.

— Depois você passa semanas doente — disse eu, salvando-a de ter que terminar a frase. — Imagino que seja a toxina de lobo. Enquanto a transformação vai acontecendo. Eu não conseguia parar de mudar de um estado para outro, por mais calor ou frio que sentisse.

Fiz uma pausa, as lembranças se sucedendo na minha cabeça como fotos da câmera de outra pessoa.

— Achavam que eu estivesse possuído. Então o clima esquentou e eu melhorei... quer dizer, fiquei estável, e eles acharam que eu estava curado. Salvo, imagino. Até o inverno. Por algum tempo, recorreram à igreja, para que fizessem alguma coisa por mim. Afinal, decidiram fazer alguma coisa eles próprios. Os dois estão cumprindo prisão perpétua agora. Não perceberam que somos mais difíceis de matar do que a maioria das pessoas.

O rosto de Grace tinha agora um leve tom de verde claro, e os nós dos seus dedos, agarrados o volante, estavam brancos.

— Vamos falar de outra coisa.

— Desculpe — disse eu com sinceridade. — Vamos falar de carros. É esse o seu escolhido? Quer dizer, se é que ele roda bem, não é? Não entendo nada de carros, mas posso pelo menos fazer de conta. “Roda bem” parece algo que alguém diria se soubesse do que está falando, não é?

Ela se agarrou ao assunto, acariciando o volante.

— Gosto dele, sim.

— É muito feio — disse eu, e estava sendo generoso. — Mas parece que consegue tirar a neve de letra. E, se você atropelar um cervo, ele só vai dar um tranco e continuar rodando.

Grace acrescentou:

— Além do mais, ele tem um banco da frente bem bacana. Quer dizer, eu posso...

Ela se inclinou no banco e veio na minha direção, pousando de leve uma das mãos na minha perna. Agora estava a poucos centímetros de mim, tão perto que eu podia sentir o calor de sua respiração em meus lábios. Tão perto que eu podia senti-la à espera de que eu também me inclinasse.

Na minha cabeça, piscou uma imagem de Grace em seu quintal, a mão estendida, implorando que eu fosse ao seu encontro. Mas, naquela época, isso era impossível. Eu estava em outro mundo, um mundo que exigia que eu mantivesse distância. Agora, eu não podia evitar me perguntar se ainda vivia naquele mundo, se ainda estava sob suas regras. Minha pele humana apenas zombava de mim, me provocando com riquezas que desapareceriam com a primeira geada.

Me afastei dela e desviei os olhos antes que pudesse ver sua decepção. O silêncio estava denso entre nós.

— Me conte o que aconteceu depois que você foi mordida — falei, só para dizer alguma coisa. — Ficou doente?

Grace recostou no banco e suspirou. Me perguntei quantas vezes eu a desapontara antes.

— Não sei. Parece que foi há muito tempo. Acho que... talvez. Lembro que fiquei resfriada logo depois.

Quando fui mordido, também me sentira como se estivesse resfriado. Exaustão, tremores frios e quentes, náusea me queimando o fundo da garganta, dores nos ossos para mudar de forma.

Grace deu de ombros.

— Foi naquele ano também que fiquei trancada no carro. Um ou dois meses depois do ataque. Era primavera, mas fazia calor demais. Papai me levou com ele para fazer umas coisas na rua, porque acho que eu era muito pequena para ser deixada sozinha.

Ela me deu uma olhada para ver se eu estava escutando. Estava.

— Bom, aí eu estava resfriada, acho, e zonza de sono. Então, a caminho de casa, dormi no banco de trás... e depois só me lembro de acordar no hospital. Acho que papai chegou em casa, descarregou as compras e se esqueceu de mim. Simplesmente me deixou trancada no carro. Disseram que tentei sair, mas na verdade não me lembro. Não me lembro de nada antes do hospital, quando a enfermeira disse que aquele tinha sido o dia mais quente de maio já registrado em Mercy Falls. O médico disse ao meu pai que o calor no carro poderia ter me matado, portanto eu sou um milagre. O que acha disso, como responsabilidade paterna?

Balancei a cabeça, incrédulo. Houve um breve silêncio que me deu tempo suficiente para notar a consternação na expressão dela e me lembrar que lastimava sinceramente não tê-la beijado pouco antes. Pensei em dizer Mostre o que você queria me mostrar antes, por que você gosta desse banco da frente. Mas não consegui imaginar minha boca formando essas palavras. Em vez disso, só peguei a mão dela e percorri sua palma e seus dedos com os meus, traçando as linhas de sua mão e deixando minha pele memorizar suas impressões digitais.

Grace emitiu um pequeno ruído de satisfação e fechou os olhos, enquanto meus dedos sussurravam círculos em sua pele. De certo modo, aquilo era quase melhor do que beijar.

Demos um pulo quando alguém bateu na janela, do meu lado do carro. O motorista do reboque e dono do estacionamento estava lá, olhando para nós. Sua voz chegou abafada pelo vidro:

— Encontrou o que procurava?

Grace se esticou por cima de mim e abriu a janela. Ela falava com o homem mas olhava para mim, me encarando com intensidade, quando disse:

— Com certeza.


CAPÍTULO 18

GRACE • 3° C

Naquela noite, Sam ficou mais uma vez na minha cama, castamente empoleirado na ponta mais distante do colchão, mas, de algum modo, durante a noite, nossos corpos se juntaram. Meio dormindo, abri os olhos bem cedo, muito antes de o dia nascer, vi o quarto límpido, banhado por um luar pálido, e descobri que estava apertada de encontro às costas de Sam, minhas mãos cruzadas no peito como uma múmia. Mal conseguia ver a curva escura de seu ombro, e algo em sua forma, o movimento que sugeria, me encheu de uma espécie de afeto terrível e feroz. Seu corpo era quente e cheirava tão bem — a lobo, a árvores, a lar — que enterrei o rosto em seu ombro e fechei os olhos de novo. Ele fez um som suave e girou os ombros para trás, se apertando mais ainda contra mim.

Pouco antes de mergulhar outra vez no sono, minha respiração diminuindo e se ajustando à dele, brotou em mim um pensamento rápido e ardente: Não posso viver sem isto.

Tinha que haver uma cura.


CAPÍTULO 19

GRACE • 22° C

O dia seguinte estava bom demais para a estação, bonito demais para se ir à escola, mas eu não poderia faltar um segundo dia sem contar com uma desculpa muito boa. Não que eu fosse me atrasar muito nos estudos, mas parecia que, se você passa muito tempo sem faltar à escola, as pessoas tendem a notar quando você o faz. Rachel já tinha telefonado duas vezes, deixando um recado ameaçador dizendo que eu escolhera um péssimo dia para matar aula, Grace Brisbane! Olívia não tinha ligado desde a nossa discussão no corredor, portanto achei que aquilo queria dizer que não estávamos nos falando.

Sam me levou para a escola dirigindo o carro novo enquanto eu me livrava depressa do dever de casa de inglês que não tinha feito na véspera. Assim que ele estacionou eu abri a porta, deixando entrar uma rajada de ar anormalmente quente para aquela época do ano. Ele virou o rosto para a porta aberta, os olhos quase fechados.

— Adoro esse tempo, me sinto tão eu.

Observando-o se aquecer ao sol, o inverno parecia a um milhão de quilômetros de distância, e eu não podia imaginá-lo me deixando. Queria memorizar a linha incerta de seu nariz para sonhar com ela durante o dia.

Por um momento senti uma pontada irracional de culpa por meus sentimentos por Sam estarem substituindo os que havia tido pelo meu lobo — até me lembrar de que ele era o meu lobo. Mais uma vez, tive a estranha sensação do chão se abrindo debaixo dos meus pés ao pensar na existência de Sam, imediatamente seguida de alívio. Minha obsessão era tão... confortável agora. A única coisa que precisaria explicar às minhas amigas era de onde meu novo namorado tinha aparecido.

— Acho que preciso ir — falei. — Não quero.

Os olhos de Sam se abriram e me encararam:

— Vou estar aqui quando você voltar, prometo. — E acrescentou, muito formal: — Posso usar seu carro? Gostaria de ver se Beck ainda está humano e, caso não esteja, se a casa tem energia.

Assenti, mas parte de mim esperava que a casa de Beck estivesse sem luz. Eu meio que queria Sam de volta à minha cama, onde poderia impedi-lo de desaparecer como o sonho que era. Desci do carro com minha mochila.

— Não me arranje nenhuma multa, campeão.

Quando cheguei na frente do carro, Sam desceu o vidro.

— Ei!

— Que foi?

— Vem cá, Grace — disse ele, tímido.

Sorri pelo jeito como ele disse meu nome e voltei à janela, sorrindo mais ainda quando percebi o que ele queria. Seu beijo cuidadoso não me enganou; assim que abri ligeiramente os lábios, ele suspirou e recuou.

— Vou fazer você se atrasar.

Abri um largo sorriso. Eu estava nas nuvens.

— Vai estar aqui às três da tarde?

— Eu não perderia isso por nada.

Fiquei observando ele sair do estacionamento, já sentindo o longo dia de aula se arrastar à minha frente.

Um caderno bateu no meu braço.

— Quem era?!

Me virei para Rachel e tentei pensar em algo mais fácil do que a verdade.

— Meu carona!...

Rachel não insistiu no assunto, principalmente porque já estava pensando em outra coisa. Agarrou meu braço e começou a me puxar em direção à escola. Com certeza, com certeza haveria algum tipo de recompensa eterna me esperando por ter ido à escola num dia deslumbrante como aquele, estando Sam no meu carro. Rachel me puxou pelo braço para que eu prestasse atenção.

— Grace. Acorda. Tinha um lobo perto da escola ontem. No estacionamento. Todo o mundo o viu quando a aula acabou.

— O quê?

Virei a cabeça e olhei para trás, para o estacionamento, tentando imaginar um lobo entre os carros. Os poucos e esparsos pinheiros que contornavam o lugar não se ligavam com o Bosque da Fronteira; o lobo teria precisado cruzar várias ruas e centenas de metros para chegar até ali.

— Como ele era?

Rachel me deu um olhar estranho.

— O lobo?

Fiz que sim.

— Como um lobo. Cinzento. — Rachel percebeu meu ar desapontado e deu de ombros. — Não sei, Grace. Cinza-azulado? Com arranhões grandes e sujos no lombo. Parecia ter escapado sem muita dificuldade.

Então era Jack. Tinha que ser.

— Deve ter sido um caos total — eu disse.

— É, você devia estar aqui, menina-loba. Sério. Ninguém se machucou, graças a Deus, mas Olívia surtou. A escola toda surtou. Isabel ficou totalmente histérica e fez uma cena tremenda. — Ela apertou meu braço. — Aliás, por que você não atendeu o telefone?

Entramos na escola; as portas estavam escancaradas, para deixar entrar o ar perfumado.

— Sem bateria.

Rachel fez uma careta e falou mais alto para ser ouvida apesar do barulho dos alunos nos corredores.

— Mas então, você está doente? Nunca pensei que viveria para ver você faltar à aula. Primeiro você não aparece, depois animais ferozes ficam perambulando pelo estacionamento... achei que o mundo fosse acabar. Só faltou chover sangue.

— Acho que peguei algum vírus desses que duram um dia.

— Ai, será que eu não deveria encostar em você?

Mas, em vez de se afastar, Rachel bateu o ombro contra o meu, sorrindo com malícia. Dei uma risada e a empurrei de volta, e nisso vi Isabel Culpeper. Meu sorriso murchou. Ela estava apoiada na parede, perto de um dos bebedouros, os ombros caídos para a frente. No início achei que estava olhando para o celular, mas depois percebi que ela não tinha nada nas mãos e que simplesmente olhava para baixo. Se ela não fosse uma rainha de gelo, eu teria achado que ela estava chorando. Me perguntei se deveria ir falar com ela.

Como se lesse meus pensamentos, Isabel olhou para cima e seus olhos, tão parecidos com os de Jack, encontraram os meus. Pude ler neles o desafio: Está olhando o quê, hein?

Virei depressa o rosto e continuei andando com Rachel, mas com a desconfortável sensação de que havia coisas a serem ditas.


CAPÍTULO 20

SAM • 4° C

Deitado na cama de Grace naquela noite, sem sono e perturbado com a notícia do aparecimento de Jack na escola, eu fitava uma escuridão só quebrada pela auréola indistinta de seus cabelos no travesseiro. E pensava em lobos que não agiam como lobos. E pensava em Christa Bohlmann.

Havia anos que a lembrança de Christa não passava pela minha cabeça, mas quando Grace contou, preocupada, que Jack andara espreitando um lugar ao qual ele não pertencia, tudo aquilo voltou.

Me lembrei do último dia em que vi Christa: ela e Beck brigavam na cozinha, na sala, no corredor, outra vez na cozinha, rosnando e gritando um com o outro como lobos que se defrontam, encarando um ao outro enquanto traçavam um círculo. Eu era criança, tinha uns 8 anos, portanto Beck naquela época me parecia um gigante — um deus furioso e intolerante que não conseguia conter a raiva. E os dois continuaram a rodar pela casa, ele e Christa, uma jovem atarracada com o rosto vermelho de raiva.

— Você matou duas pessoas, Christa. Quando vai encarar isso?

— Matei? Matei?

Sua voz soava estridente em meus ouvidos, como garras no vidro.

— E eu? Olhe para mim! Minha vida acabou.

— Não acabou — retrucou Beck. — Você ainda está respirando, não está? Seu coração ainda bate? Não posso dizer o mesmo das suas duas vítimas.

Lembro de ter me encolhido ao ouvir a voz de Christa — um grito gutural e quase incompreensível:

— Isto não é vida!

Beck se enfureceu, falando de egoísmo e responsabilidade, e ela retrucou com uma série de palavrões que me deixaram chocado. Eu nunca tinha ouvido aqueles termos antes.

— E o cara que está lá no subsolo? — retrucou Beck.

Do meu posto de observação no corredor, eu só podia ver as costas dele.

— Você o mordeu, Christa. Estragou a vida dele. E matou duas pessoas. Só porque a chamaram de coisas desagradáveis. Ainda estou esperando que você demonstre algum remorso. Droga, eu só quero uma garantia de que isso não vai acontecer de novo.

— Por que eu iria garantir alguma coisa? O que foi que você já me deu? — rosnou Christa. Seus ombros se retorceram num espasmo. — Vocês se chamam de alcateia? Vocês são é um bando de bruxos. Uma abominação. Uma seita. Vou fazer o que quiser. Vou passar por essa vida do jeito que eu quiser.

A voz de Beck saiu controlada, terrivelmente controlada. Lembro de ter sentido de repente pena de Christa, porque Beck deixava de parecer zangado quando estava no auge da fúria.

— Prometa que isso não vai acontecer de novo.

Ela então olhou direto para mim — não, não para mim. Através de mim. Sua mente estava em algum lugar muito longe, escapando da realidade de seu corpo mutante. Vi uma veia saltar bem no meio da testa dela, e percebi que suas unhas eram garras.

— Eu não devo nada a você. Vá pro inferno.

Beck disse, muito baixo:

— Saia da minha casa.

Ela obedeceu. Bateu a porta de vidro com tanta força que os pratos estremeceram nos armários da cozinha. Alguns momentos depois, ouvi a porta se abrir e fechar de novo, muito mais calmamente, quando Beck foi atrás dela.

Lembrei que estava tão frio lá fora que tive medo de Beck se transformar para o inverno e me deixar sozinho na casa. Aquele medo foi suficiente para me fazer sair do corredor e me esgueirar até a sala, exatamente quando ouvi um grande estrondo.

Beck voltou a entrar em casa devagar, tremendo por causa do frio e da ameaça da transformação; depositou com cuidado uma arma na bancada, como se ela fosse feita de vidro. Então ele me viu, de pé na sala, braços cruzados no peito, os dedos cravados em meus próprios bíceps.

Ainda me lembro do som de sua voz quando disse: “Não toque nisso, Sam.” Abafado. Entrecortado. Ele foi para o escritório e ficou com a cabeça descansando nos braços pelo resto do dia. Quando caiu a noite, ele e Ulrik foram para fora, vozes baixas e contidas; pela janela eu tinha visto Ulrik pegar uma pá da garagem.

E agora ali estava eu, deitado na cama de Grace, e em algum lugar lá fora estava Jack. Pessoas raivosas não davam bons lobisomens.

Enquanto Grace estava na escola, eu tinha ido à casa de Beck. A entrada de carros estava vazia e as janelas, escuras. Não tive coragem de ir lá dentro e ver há quanto tempo estava desocupada. Sem Beck para reforçar a segurança do bando, quem deveria manter Jack na linha?

Um senso de responsabilidade começava a me ferroar o pescoço. Beck tinha um celular, mas eu não conseguia me lembrar do número, por mais que vasculhasse a memória. Afundei o rosto no travesseiro e rezei para que Jack não mordesse ninguém, porque, se ele se tornasse um problema, eu não achava que seria forte o bastante para fazer o que teria que ser feito.


CAPÍTULO 21

SAM • 14° C

Quando o despertador de Grace tocou às 6h45 da manhã seguinte, chamando-a para a escola e gritando obscenidades eletrônicas nos meus ouvidos, fiquei de pé num pulo, o coração acelerado, exatamente como na véspera. Minha cabeça estava repleta de sonhos: lobos, seres humanos e lábios com sangue.

— Hummm — murmurou Grace, despreocupada, puxando os lençóis até o pescoço. — Desligue isso, por favor. Estou levantando. Vou... vou levantar num segundo.

Virou para o outro lado, a cabeça loura quase invisível sob o cobertor, e afundou na cama como se tivesse mergulhado dentro do colchão.

E pronto. Ela dormia, e eu, não.

Me recostei na cabeceira da cama e a deixei deitada a meu lado, aquecida e sonhadora, por mais alguns minutos. Acariciei seus cabelos com dedos cuidadosos, traçando uma linha desde a testa, contornando a orelha e descendo até o alto de seu longo pescoço, onde o cabelo deixava de ser propriamente cabelo e se transformava numa penugem de bebê que crescia para todas as direções. Eram fascinantes aqueles tufos macios que cresceriam até virar seu cabelo. Fiquei terrivelmente tentado a me inclinar e morder toda aquela maciez, acordar Grace, beijá-la e fazê-la chegar atrasada na escola; mas eu não conseguia parar de pensar em Jack e Christa, e em pessoas que davam maus lobisomens. Se eu fosse à escola, será que ainda conseguiria seguir a trilha de Jack com meu faro agora enfraquecido?

— Grace — sussurrei. — Acorde.

Ela fez um barulhinho que, maltraduzido, significava “não enche” na linguagem do sono.

— Hora de acordar — falei, e botei o dedo na sua orelha.

Grace guinchou e me deu um tapa. Estava acordada.

Nossas manhãs juntos começavam a ter o conforto da rotina. Enquanto ela, ainda tonta de sono, foi tropeçando para o chuveiro, botei na torradeira um bagel para cada um e convenci a cafeteira elétrica a fazer algo parecido com café. De volta ao quarto, eu a ouvi cantar desafinada no chuveiro; enquanto isso, enfiei a calça jeans e vasculhei suas gavetas em busca de meias que não parecessem femininas demais, para pegar emprestadas.

Perdi o fôlego. Fotografias, aninhadas entre suas meias cuidadosamente dobradas. Fotos de lobos. De nós. Com cuidado, tirei a gaveta do armário e a levei até a cama. De costas para a porta, como se fizesse algo ilícito, fui passando os retratos com dedos vagarosos. Havia algo de fascinante em ver aquelas imagens com meus olhos humanos. A alguns dos lobos eu podia também dar nomes humanos; aos mais velhos, que sempre se transformaram na minha frente. Beck, grande, corpulento, cinza-azulado. Paul, preto e de aparência bem-cuidada. Ulrik, cinza-amarronzado. Salem, com sua orelha marcada e seus olhos que escorriam. Suspirei, embora não soubesse por quê.

A porta atrás de mim se abriu, deixando entrar uma lufada de vapor com o perfume do sabonete de Grace. Ela parou às minhas costas e encostou a cabeça em meu ombro. Inspirei seu cheiro.

— Procurando por você? — perguntou.

Meus dedos, passando as fotos, congelaram.

— Eu estou aqui?

Grace foi para o outro lado da cama e sentou-se à minha frente.

— Claro. A maioria é sua... não se reconhece? Ah. Claro que não. Me diga quem é quem.

Mais devagar, repassei as imagens, enquanto ela se ajeitava para ficar ao meu lado, a cama rangendo com seus movimentos.

— Este é Beck. Ele sempre tomou conta dos lobos novos.

Só havia tido dois novos lobos depois de mim: Christa e o que ela criara, Derek. O fato era que eu não estava acostumado a recém-chegados mais jovens — o bando em geral só aumentava quando outros lobos, mais velhos, nos descobriam, e não pela adição de novatos nascidos de selvageria, como Jack.

— Beck é como um pai para mim.

Aquilo soou estranho, mesmo sendo verdade. Eu nunca tinha precisado explicar aquelas coisas para ninguém. Foi ele quem me acolheu depois que fugi de casa, e foi ele quem, com cuidado, juntou e colou os cacos da minha sanidade.

— Eu percebi como você se sente em relação a ele — disse Grace, e pareceu surpresa com a própria intuição. — Sua voz fica diferente quando fala dele.

— É? — Foi a minha vez de ficar surpreso. — Diferente como?

Ela deu de ombros, com um ar meio tímido.

— Sei lá. Orgulhosa, talvez. Acho uma gracinha. Quem é esse aqui?

— É a Shelby — respondi, e não havia orgulho na minha voz. — Já lhe falei dela.

Grace me observou.

A lembrança da última vez que eu vira Shelby me torceu por dentro, de um jeito desagradável.

— Ela e eu não vemos as coisas da mesma maneira. Ela acha que ser lobo é uma bênção.

Ao meu lado, Grace assentiu. Fiquei grato por ela não insistir no assunto.

Passei algumas fotos mais, outras de Shelby e Beck, até que parei na figura negra de Paul.

— Este é Paul. O líder do bando quando somos lobos. Ao lado dele está Ulrik. — Apontei para o lobo cinza-amarronzado perto de Paul. — Ulrik é uma espécie de tio maluco. É alemão. Fala muito palavrão.

— Ele deve ser legal.

— É muito engraçado.

Na verdade, eu deveria dizer que ele era muito engraçado. Não sabia se aquele tinha sido seu último ano ou se ele ainda poderia ter outro verão. Me lembrei da risada dele, parecia um bando de corvos levantando voo, e do modo como se agarrava a seu sotaque alemão, como se não pudesse ser Ulrik sem isso.

— Você está legal? — perguntou Grace, franzindo a testa.

Neguei com a cabeça, olhando para os lobos nas fotos — tão nitidamente animais quando eu os via com meus olhos humanos. Minha família. Eu. Meu futuro. De algum modo, as fotos representavam uma linha que eu ainda não estava pronto para cruzar.

Percebi que Grace colocara um braço em meus ombros, o rosto encostado em mim, me confortando mesmo não conseguindo compreender o que me perturbava.

— Queria que você tivesse conhecido todos eles quando eram humanos — falei. Não sabia como explicar a ela a enorme parte de mim que eles eram, suas vozes e seus rostos como humanos, e seus cheiros e formas como lobos. Eu me sentia perdido agora, o único dentro de uma pele humana.

— Me fale deles — disse Grace, a voz abafada pela minha camiseta.

Deixei minha mente voar pelas lembranças.

— Beck me ensinou a caçar quando eu tinha oito anos. Eu detestava aquilo.

Me lembrei de estar na sala de Beck, olhando os primeiros galhos das árvores cobertos de gelo no inverno, brilhantes e trêmulos ao sol da manhã. O quintal lá fora parecia um planeta perigoso e alienígena.

— Por que você detestava?

— Eu não gostava de ver sangue. Não gostava de machucar os bichos. Eu tinha oito anos.

Nas minhas lembranças, eu parecia pequeno, magricela, inocente. Tinha passado todo o verão anterior me convencendo de que aquele inverno, com Beck, seria diferente, que eu não me transformaria e continuaria, para sempre, comendo os ovos que Beck fazia para mim. Mas à medida que as noites ficavam mais frias e até curtos passeios ao ar livre faziam meus músculos tremerem, eu soube que logo chegaria a hora em que não poderia evitar a transformação, e que Beck não estaria ali para cozinhar por muito mais tempo. Mas isso não queria dizer que eu aceitava aquilo de bom grado.

— Por que caçar, então? — perguntou Grace, sempre lógica. — Por que simplesmente não deixar a comida do lado de fora para vocês comerem depois?

— Ah. Fiz a mesma pergunta a Beck, e Ulrik disse: “Ja, e também para quatis e gambás?”

Grace riu, gratuitamente encantada com a minha péssima imitação do sotaque de Ulrik.

Senti um fluxo de calor em meu rosto; era bom conversar com ela sobre o bando. Eu adorava o brilho em seus olhos, a expressão de curiosidade indiscreta de sua boca — ela sabia o que eu era e queria saber mais. Mas isso não queria dizer que fosse certo contar a ela, sendo Grace alguém de fora do bando. Beck sempre dizia: As únicas pessoas que temos para nos proteger somos nós. Mas Beck não conhecia Grace. E Grace não era apenas humana. Podia não ter se transformado, mas tinha sido mordida. Ela era lobo por dentro. Tinha que ser.

— Então o que aconteceu? — ela perguntou. — O que você passou a caçar?

— Coelhinhos, é claro. Beck me levou para fora enquanto Paul esperava numa van para me recolher depois, caso eu ficasse instável demais e me transformasse de novo.

Eu não me esquecia de como Beck tinha me parado na porta antes de sairmos, dobrando-se para poder me olhar no rosto. Eu estava imóvel, tentando não pensar em corpos mutantes e em pescoços dilacerados de coelho entre os dentes. Prestes a me despedir de Beck por todo o inverno. Ele segurou meu ombro magro com a mão e disse:

— Sam, desculpe. Não tenha medo.

Eu não tinha dito nada, porque estava pensando que fazia frio e que Beck não se transformaria de volta após a caçada, e que então eu não teria ninguém que soubesse fazer bem meus ovos. Beck fazia ovos perfeitos. Mais do que isso. Beck me fazia continuar sendo Sam. Naquela época, com as cicatrizes dos pulsos ainda tão recentes, estive perigosamente perto de me fragmentar em algo que não seria nem humano nem lobo.

— Está pensando em quê? — perguntou Grace. — Você parou de falar.

Levantei o rosto. Não tinha percebido que desviara os olhos dela.

— Em transformações.

Ela me olhou; seu queixo pressionou meu ombro. Sua voz era hesitante. Ela me fez uma pergunta que já tinha feito.

— Dói?

Pensei no processo lento e angustiante da transformação, o retesamento dos músculos, a pele se esticando, os ossos sendo moídos. Os adultos sempre tentavam se transformar longe de mim, a fim de me proteger. Mas o que me dava medo não era vê-los se transformar — eu só tinha pena deles, já que até Beck gemia de dor durante o processo. Era minha própria transformação que me apavorava, mesmo agora. Esquecer Sam.

Eu mentia mal, então nem tentei.

— Dói.

— Fico meio triste de pensar que você tinha que fazer isso quando era tão criança.

Ela me olhava com a testa franzida, piscando seus olhos tão brilhantes.

— Na verdade, isso me perturba bastante. Coitadinho do pequeno Sam.

Ela tocou meu queixo com um dedo; repousei a cabeça em sua mão.

Me lembrei de ter ficado todo orgulhoso por não gritar quando me transformei daquela vez, diferente de quando eu era menor e meus pais me observaram, os olhos arregalados de horror. Me lembrei de Beck, o lobo, saindo da casa com um pulo e me guiando pelo bosque, e me lembrei da sensação quente e amarga da minha primeira caçada em meu focinho. Eu me transformei de volta depois que Paul, bem-agasalhado, de casaco e chapéu, foi me buscar. Foi na van a caminho de casa que a solidão me atingiu. Eu estava sozinho; Beck não voltaria a ser humano aquele ano.

Agora, era como se eu tivesse outra vez 8 anos, sozinho e com cicatrizes recentes. Meu peito doía, eu respirava com dificuldade.

— Me mostre como sou — pedi a Grace, estendendo-lhe as fotos. — Por favor.

Deixei-a tirar a pilha de fotos de minhas mãos e vi seu rosto se iluminar enquanto ela as passava, procurando uma específica.

— Pronto! Esta é a minha preferida.

Olhei para o retrato que ela me entregou. Um lobo me olhou de volta, usando meus olhos; um lobo parado no bosque, observando de lá, o sol batendo nas pontas de seu pelo. Fiquei olhando e olhando, esperando que aquilo me dissesse alguma coisa. Esperando uma pontada de reconhecimento. Parecia injusto que as identidades dos outros lobos fossem tão claras para mim em seus retratos e que a minha ficasse oculta. O que havia naquela foto, naquele lobo, que fazia com que os olhos de Grace se iluminassem?

E se não fosse eu? E se ela estivesse apaixonada por outro lobo e só pensasse que era eu? Como eu poderia saber?

Grace, alheia às minhas dúvidas, interpretava meu silêncio como fascínio. Descruzou as pernas e ficou de pé, me encarando, depois passou a mão nos meus cabelos. Levou a palma da mão ao nariz, respirando fundo.

— Sabe, seu cheiro ainda é o mesmo de quando você era lobo.

E, com isso, ela disse o que talvez fosse a única coisa capaz de fazer com que eu me sentisse melhor. Devolvi a foto quando ela foi saindo.

Grace parou à porta, sua silhueta mal definida pela luz matinal cinzenta e sem brilho, e me olhou, olhou para meus olhos, minha boca, minhas mãos, de um jeito que fez algo dentro de mim se torcer e retorcer insuportavelmente.

Eu não acreditava que pertencesse ao seu mundo, um cara preso entre duas vidas, arrastando comigo o perigo dos lobos, mas, quando ela me chamou pelo nome, esperando que eu fosse junto, eu soube que faria qualquer coisa para ficar com ela.


CAPÍTULO 22

SAM • 16° C

Depois de deixar Grace na escola, passei muito tempo rodando pelo estacionamento. Estava frustrado com Jack, frustrado com a chuva, frustrado com as limitações do meu corpo humano. Eu podia sentir, pelo faro, que um lobo tinha estado ali — só um leve traço almiscarado de cheiro de lobo —, mas não conseguia precisar uma direção ou mesmo dizer com certeza se tinha sido Jack. Era como estar cego.

Desisti afinal e, depois de ficar sentado no carro por um bom tempo, decidi ceder ao impulso de ir à casa de Beck. Não conseguia pensar em nenhum lugar em especial para começar a procurar Jack, mas o bosque que havia atrás da casa era logicamente um bom lugar para encontrar lobos em geral. Assim, segui rumo à minha velha casa de verão.

Eu não fazia ideia se Beck tinha virado humano naquele ano; não era nem mesmo capaz de me lembrar com clareza dos meus próprios meses de verão. As recordações se embaralharam até formar uma massa de estações e cheiros de origens obscuras.

Beck vinha se transformando havia mais tempo do que eu, portanto era improvável que ele tivesse virado humano naquele ano em que nem eu tinha. Mas eu também sentia que deveria ter tido mais anos em que houvesse passado de uma forma para outra. Eu não vinha mudando havia tempos. Para onde tinham ido meus verões?

Eu queria Beck. Queria sua orientação. Queria saber por que o tiro me tornara humano. Queria saber quanto tempo eu tinha com Grace. Queria saber se aquilo era o fim.

“Você é o melhor deles”, Beck havia me dito uma vez, e eu ainda me lembrava de sua expressão ao pronunciar tais palavras. Honesta, confiável, sólida. Uma âncora num mar agitado. Entendi o que ele quis dizer: o mais humano do bando. Isso foi depois que os outros puxaram Grace do balanço.

Mas agora, quando cheguei à casa, vi que ainda estava vazia e escura, e minhas esperanças se foram. Me ocorreu que todos os outros lobos já deveriam ter se transformado para o inverno; não havia mais muitos jovens. A não ser Jack, agora. A caixa de correspondência estava entupida de envelopes e folhetos avisando Beck para que fosse buscar mais no correio. Esvaziei-a e levei tudo para o carro de Grace. Eu tinha uma chave da caixa postal de Beck, e depois pegaria o resto.

Recusava-me a pensar que não o veria mais.

Mas o fato era que, se ele não estava por perto, não teria havido ninguém para explicar a Jack o que estava acontecendo. E alguém precisava afastá-lo da escola e da civilização até que terminassem as transformações em momentos imprevisíveis, que era o que acontecia com os recém-chegados àquela situação. Sua morte já causara dano suficiente ao bando. Eu não iria deixá-lo nos expor, fosse por se transformar em público ou por morder alguém.

Como Jack já tinha ido até a escola, resolvi agir presumindo que tentara ir para casa também, e por isso me dirigi à residência dos Culpeper. Onde eles moravam não era segredo algum, todos na cidade conheciam o gigantesco casarão em estilo Tudor que podia ser avistado desde a rodovia. A única mansão de Mercy Falls. Eu achava que não haveria ninguém lá àquela hora do dia, mas, por precaução, estacionei a caminhonete de Grace a uns 800 metros e continuei a pé, por um atalho no bosque de pinheiros.

Como imaginei, a casa estava vazia, pairando alta sobre mim como uma construção maciça saída de uma velha lenda. Uma rápida volta pelas portas me revelou o inequívoco cheiro de lobo.

Eu não era capaz de dizer se ele já havia entrado ou se, como eu, viera quando todos estavam fora e já voltara ao bosque. Lembrando o quanto eu era vulnerável naquela forma humana, dei meia-volta e farejei o ar, examinando os pinheiros ao redor em busca de sinais de vida. Nada. Ou pelo menos nada tão próximo que pudesse ser captado por meus sentidos humanos.

Por desencargo de consciência, invadi a casa para ver se Jack estava lá, já trancafiado num quarto reservado aos monstros. Também não me preocupei em não deixar vestígios da invasão; quebrei uma janela dos fundos com um tijolo e enfiei a mão pelo buraco estilhaçado para destrancar a maçaneta.

Dentro da casa, farejei outra vez o ar. Achei que sentia cheiro de lobo, mas era fraco e meio estragado. Eu não entendia bem por que Jack poderia cheirar daquele jeito, mas fui seguindo o faro pela casa. Minhas andanças me levaram a um maciço par de portas de carvalho; tive certeza de que o fim da trilha estava do outro lado.

Abri as portas com cuidado, depois respirei fundo.

O enorme salão à minha frente era repleto de animais. Animais empalhados. E não do tipo bichinhos de pelúcia. Aquele aposento de teto alto e mal-iluminado lembrava uma exposição de museu, “Animais da América do Norte”, ou uma espécie de santuário da morte. Minha mente tentou se agarrar a letras de música, mas só consegui me concentrar numa única linha: Então encaramos os dentes dos mortos a sorrir.

Estremeci.

Na meia-luz filtrada pelas janelas redondas que havia muito acima da minha cabeça, parecia haver ali animais suficientes para lotar a Arca de Noé. De um lado uma raposa, com uma codorna firmemente presa à boca. Do outro um urso preto, se erguendo para mim com as garras à mostra. Um lince, para sempre se arrastando sobre um tronco. E um urso-polar, com um peixe empalhado entre as patas para completar. Era possível empalhar um peixe? Eu nunca tinha pensado nisso.

E então, em meio a uma manada de cervos de todas as formas e tamanhos, vi de onde vinha o cheiro que eu tinha detectado: um lobo me encarava, virado para trás, dentes arreganhados, olhos de vidro ameaçadores. Fui até ele, me inclinando para tocar seu pelo quebradiço. Sob meus dedos, o cheiro de mofo floresceu, liberando segredos em minhas narinas, e reconheci o cheiro singular do meu bosque. Fechei a mão, recuando para me afastar do lobo de pelos espetados. Um de nós. Talvez não. Talvez só um lobo. Embora eu nunca tivesse visto um lobo normal em nosso bosque.

— Quem era você? — sussurrei. Mas o único traço comum entre as duas formas de um lobisomem — os olhos — tinha sido subtituído há muito tempo por um par de bolinhas de vidro. Me perguntei se Derek, crivado de balas na noite em que fui alvejado, se juntaria a esse outro lobo naquele zoológico macabro. A ideia me revirou o estômago.

Passei uma vez mais os olhos pelo salão e recuei até a porta da frente. Cada vestígio de animal em mim gritava para que eu me afastasse do funesto perfume de morte que enchia a sala. Jack não estava ali. Eu não tinha motivo algum para continuar naquela casa.


CAPÍTULO 23

GRACE • 11° C

— Bom dia.

Papai me olhou enquanto enchia com café uma caneca térmica. Usava uma roupa elegante demais para um sábado, devia estar tentando vender um resort a algum investidor rico.

— Tenho que encontrar Ralph às 8h30 no escritório. Falar do resort Wyndhaven.

Pisquei algumas vezes, os olhos turvos. Todo o meu corpo estava grudento e devagar do sono.

— Não fale comigo ainda. Não estou acordada.

Através daquela névoa, senti uma pontada de culpa por não ser um pouco mais simpática. Fazia dias que eu não o via, muito menos tinha falado direito com ele. Sam e eu tínhamos passado a noite conversando sobre a estranha sala de animais empalhados na casa dos Culpeper e nos perguntando, com aquela irritação constante de uma mordida de mosquito, onde Jack faria sua aparição seguinte. Aquela manhã comum com papai era como um retorno repentino à minha vida pré-Sam.

Papai me mostrou a cafeteira.

— Quer um pouco?

Juntei as mãos em concha e as estendi para ele, dizendo:

— Pode pôr aqui. Vou jogar um pouco no rosto. Cadê mamãe?

Eu não ouvia a barulheira dela no andar de cima. Mamãe se arrumando para sair produzia em geral uma série de batidas de porta e ruídos de sapatos arranhando o chão do quarto.

— Em alguma galeria de Minneapolis.

— Por que ela saiu tão cedo? Ainda é quase ontem.

Papai não respondeu; estava olhando por cima de minha cabeça para a TV, que berrava algum programa de entrevistas matutino. De roupa cáqui, o convidado do programa estava rodeado por filhotes de animais de vários tipos, em caixas e jaulas. Aquilo me lembrou no mesmo instante a sala de animais que Sam descrevera. Papai franziu a testa quando um dos âncoras acariciou com cuidado um gambá bebê, que sibilou. Limpei a garganta.

— Papai, preste atenção. Ou você me dá uma xícara de café ou eu morro. E se eu morrer, não vou remover meu corpo.

Ainda de olho na televisão, papai girou o corpo para pegar uma caneca no armário. Seus dedos encontraram minha preferida — uma azul, com um desenho de ovo de rouxinol, feita por um dos amigos de mamãe — e a empurrou para mim junto com a cafeteira sobre a bancada. O vapor subiu ao meu rosto quando me servi.

— Então, Grace, como vai a escola? — perguntei a mim mesma.

Papai assentiu, os olhos no filhote de coala que agora se contorcia nos braços do convidado.

— Ah, tudo bem — continuei, e papai emitiu um resmungo de concordância. Acrescentei: — Nada de especial além de um carregamento de pandas que levaram para lá, e dos professores nos entregando a canibais selvagens.

Fiz uma pausa para ver se tinha conseguido capturar sua atenção, e então peguei mais pesado:

— O prédio inteiro pegou fogo, depois fui reprovada em interpretação e daí foi só sexo, sexo, sexo.

Os olhos de papai entraram de repente em foco; ele se virou para mim e franziu a testa.

— O que você disse que estavam ensinando na escola?

Bem, ao menos ele captara mais do começo do que eu tinha imaginado.

— Nada interessante. Estamos escrevendo contos para as aulas de inglês. Horríveis. Não tenho talento algum para escrever ficção.

— Ficção sobre sexo? — perguntou ele, cheio de suspeita.

Balancei a cabeça.

— Vá trabalhar, papai. Você vai acabar se atrasando.

Ele coçou o queixo; tinha esquecido um pelo ali, ao se barbear.

— Isso me lembra que preciso devolver aquele lubrificante ao Tom. Você viu a garrafinha?

— Você tem que devolver lubrificante para quem?

— O lubrificante de armas. Acho que botei na bancada. Ou talvez embaixo...

Ele se agachou e começou a remexer no armário sob a pia.

Franzi a testa.

— Por que você precisou de um lubrificante de armas?

Ele fez um gesto na direção do escritório.

— Para a arma.

Sininhos de aviso começaram a tocar na minha cabeça. Eu sabia que papai tinha um rifle; vivia pendurado na parede do escritório. Mas eu não me lembrava de ele ter lubrificado a arma antes. Armas são lubrificadas depois de usadas, certo?

— Por que você pegou o lubrificante emprestado com Tom?

— Ele me deu para limpar o rifle depois que saímos. Eu sei que deveria lubrificá-lo mais vezes, mas simplesmente não me lembro dele quando não uso.

— Tom Culpeper?

Ele tirou a cabeça do armário, garrafinha na mão.

— É.

— Você foi atirar com Tom Culpeper? Foi você no outro dia?

Minhas bochechas começaram a esquentar. Rezei para que ele dissesse que não.

Papai me olhou. O tipo de olhar que era em geral seguido por uma frase do tipo Grace, você é sempre tão sensata...

— Nós tínhamos que fazer alguma coisa, Grace.

— Você estava naquele grupo? O que foi atrás dos lobos? — perguntei. — Não posso acreditar que você...

A imagem de meu pai se esgueirando por entre as árvores, rifle na mão, os lobos fugindo dele de repente era tão forte para mim que tive que parar.

— Grace, eu fiz isso por você também.

Minha voz saiu muito baixa:

— Você atirou em algum deles?

Papai pareceu entender que a pergunta era importante.

— Tiros de advertência.

Eu não sabia se era verdade ou não, mas não queria mais falar com ele. Balancei a cabeça e me virei.

— Não fique emburrada — disse papai.

Ele me beijou o rosto — continuei imóvel —, depois pegou o café e a pasta.

— Seja boazinha. Até logo.

De pé na cozinha, as mãos em volta da caneca azul, ouvi o carro de papai roncar de volta à vida na entrada para carros e se afastar devagar até sumir. Depois que ele se foi, a casa voltou ao seu silêncio familiar, ao mesmo tempo reconfortante e deprimente. Poderia ter sido qualquer outra manhã, só a calma e o café nas minhas mãos — mas não era. A voz de papai — tiros de advertência — ainda pairava no ar.

Ele sabia como eu me sentia em relação aos lobos, e mesmo assim tinha feito planos com Tom Culpeper pelas minhas costas.

A traição me doía.

Um ruído baixo vindo da porta me chamou a atenção. Sam estava no corredor, o cabelo molhado e espetado após um banho de chuveiro, os olhos em mim. Havia uma pergunta escrita em seu rosto, mas eu não falei nada. Estava me perguntando o que papai faria se soubesse a respeito de Sam.


CAPÍTULO 24

GRACE • 11° C

Passei boa parte da manhã e da tarde enrolando para fazer o dever de inglês, enquanto Sam ficava deitado no sofá, um romance nas mãos. Era uma vaga espécie de tortura estar na mesma sala que ele, mas separada com bastante eficiência por um livro didático. Depois de várias horas só interrompidas por um breve almoço, não aguentei mais.

— Sinto como se estivesse desperdiçando nosso tempo juntos — confessei.

Sam não respondeu, e percebi que não tinha me ouvido. Repeti a frase e ele piscou, os olhos se fixando devagar em mim enquanto voltava de seja lá que mundo onde estava.

— Estou feliz só por estar aqui com você — disse Sam. — É suficiente.

Analisei seu rosto por um longo tempo, tentando descobrir se aquelas palavras eram sinceras.

Marcando a página, Sam fechou o livro com cuidado e disse:

— Quer ir a algum lugar? Se já fez o que precisava, podemos dar uma espiada na casa de Beck, ver se Jack voltou lá.

Gostei da ideia. Desde que Jack aparecera na escola, eu estava tensa, imaginando quando e onde ele poderia surgir de novo.

— Você acha que ele está lá?

— Não sei. Os lobos novos parecem sempre ir para aquela área, e ali é onde o bando costuma morar, naquela faixa do Bosque da Fronteira atrás da casa — disse Sam. — Seria bom pensar que ele afinal se integrou ao bando.

Seu rosto pareceu preocupado, mas ele parou logo antes de dizer por quê. Eu sabia por que eu queria que Jack se unisse ao bando: não queria que ninguém revelasse a verdadeira natureza dos lobos. Mas Sam parecia preocupado com outra coisa, algo maior e mais inominável.

À luz dourada da tarde, fui de carro até à casa de Beck, Sam na direção. Tivemos que seguir a estrada sinuosa que contorna o Bosque da Fronteira por uns bons 35 minutos para chegar à casa. Eu não tinha me dado conta da extensão do bosque até o contornarmos por completo. Fazia sentido: como seria possível abrigar uma alcateia inteira sem centenas de acres despovoados à mão? Deixei a caminhonete na entrada de carros, examinando a fachada de tijolos. As janelas escuras pareciam olhos fechados; a casa estava dolorosamente vazia. Quando Sam abriu a porta, o cheiro doce dos pinheiros que montavam guarda em torno do terreno encheu minhas narinas.

— Bela casa.

Olhei as janelas altas que cintilavam ao sol da tarde. Uma casa daquele tamanho poderia facilmente parecer intimidadora, mas havia algo na propriedade que parecia tranquilizador — talvez as sebes da frente, todas espalhadas e com pontas desiguais, ou o velho comedouro dos pássaros, que dava a impressão de ter brotado do gramado. Era um lugar confortável. Parecia o tipo de lugar que criaria um rapaz como Sam.

— Como Beck a conseguiu? — perguntei.

Ele franziu a testa.

— A casa? Ele era advogado de velhos ricos, portanto tinha dinheiro. Comprou o lugar para o bando.

— Isso é muito generoso da parte dele — eu disse. Fechei a porta do carro. — Merda.

Sam se inclinou sobre o capô na minha direção.

— O que foi?

— Acabei de trancar as chaves dentro do carro. Minha cabeça estava em piloto automático.

Ele deu de ombros com displicência.

— Beck tem em casa uma chave-mestra de carro. A gente pega quando voltar do bosque.

— Uma chave-mestra de carro? Que estranho — eu disse, rindo para Sam. — Gosto de homens com poderes ocultos.

— Bem, você tem um — respondeu ele, e apontou com a cabeça para as árvores no fundo do quintal. — Pronta para entrar?

A ideia era ao mesmo tempo atraente e apavorante. Eu não entrava no bosque desde a noite da caçada e, antes disso, desde a noite em que vira Jack dominado pelos outros lobos. Minhas únicas lembranças daquele bosque pareciam ser de violência.

Percebi que Sam me estendia a mão.

— Está com medo?

Imaginei se haveria um jeito de segurar a mão dele sem admitir que sim. Na verdade, não era bem medo. Só algum tipo de emoção que percorria minha pele e me arrepiava os braços. O clima estava ameno, não fazia o frio mortal do inverno; havia comida em abundância para os lobos sem que precisassem nos atacar. Lobos são criaturas tímidas.

Sam pegou minha mão, segurou-a firme, e sua pele encostada à minha era quente no ar fresco de outono. Seus olhos me observaram, grandes e luminosos no brilho da tarde, e por um momento fiquei presa em seu olhar, me lembrando daqueles olhos me examinando num corpo de lobo.

— Não precisamos ir procurá-lo agora — disse Sam.

— Eu quero ir.

Era verdade. Parte de mim queria ver onde Sam vivia naqueles meses frios, quando não estava perambulando pelos fundos do nosso quintal. E parte de mim, a parte que sentia a dor da perda quando a alcateia uivava à noite, implorava por seguir aquele leve cheiro do bando pelo bosque. Tudo isso era mais forte do que qualquer parte minha que estivesse amedrontada. Para provar minha determinação, fui na direção do quintal e me aproximei da margem do bosque, sempre segurando a mão de Sam.

— Eles vão ficar longe de nós — disse ele, como se ainda precisasse me convencer. — Jack é o único que se aproximaria.

Olhei-o com uma sobrancelha erguida.

— Ok. Mas ele não vai aparecer todo furioso e babando como num filme de terror, vai?

— A transformação não faz da gente um monstro. Só tira as inibições. Ele babava muito na escola?

Como todos na escola, eu tinha ouvido a história de como Jack tinha feito um garoto ir parar no hospital depois de uma festa. Descartara o assunto como fofoca até ver com meus próprios olhos o garoto, andando pelos corredores com metade do rosto ainda inchada. Jack não precisava se transformar para virar um monstro.

Fiz uma careta.

— Babava um pouco sim.

— Se isso a faz ficar mais tranquila, não acho que ele esteja aqui — disse Sam. — Mas ainda assim eu queria que estivesse.

Então entramos no bosque. Era diferente daquele que margeava os fundos da minha casa. As árvores ficavam muito próximas umas das outras e a vegetação rasteira preenchia todos os espaços entre os troncos, como se os mantivessem de pé. Sarças grudavam na minha calça jeans, e Sam parava o tempo todo para tirar carrapichos de nossos tornozelos. Não vimos sinal de Jack, nem de qualquer lobo, durante nosso lento avanço. Na verdade, eu não achava que Sam estivesse examinando direito o bosque em torno de nós. Fiz questão de mostrar que estava olhando em volta, para poder fingir que não tinha percebido que ele me olhava a cada dois segundos.

Não demorou muito para que um punhado de carrapichos grudasse em meus cabelos, puxando-os enquanto os embaraçavam, e isso doía.

Sam me fez parar para tirá-los

— Vai melhorar — prometeu ele.

Era gentil da parte dele pensar que eu poderia me aborrecer com aquilo a ponto de voltar para o carro. Como se eu não tivesse coisa melhor a fazer do que deixá-lo tirar as farpas dos carrapichos dos meus cabelos.

— Não estou preocupada com isso — tranquilizei-o. — Só estou pensando que nunca se sabe se tem mais alguém aqui. O bosque não acaba nunca.

Sam passou os dedos pelo meu cabelo como se procurasse mais carrapichos, embora eu soubesse que não havia mais nenhum, e ele provavelmente também. Parou, sorrindo para mim, e então respirou fundo.

— Pelo cheiro, parece que não estamos sozinhos.

Ele me olhou, e eu sabia que estava esperando que eu verificasse isso — que eu admitisse que, se tentasse, sentiria o cheiro da vida oculta do bando ao nosso redor. Em vez disso, segurei outra vez a mão dele.

— Me mostre o caminho, cão de caça.

A expressão de Sam ficou um pouco melancólica, mas ele me levou, através da vegetação rasteira, até uma colina que subia aos poucos. Como tinha prometido, o caminho de fato melhorou. Os espinhos diminuíram e as árvores se tornaram mais altas e mais retas, os galhos só começando acima das nossas cabeças. As cascas brancas e soltas das bétulas pareciam amanteigadas à luz oblíqua e longa da tarde, e suas folhas eram de um dourado delicado. Me virei para Sam, e seus olhos refletiam o mesmo amarelo brilhante.

Parei de repente. Aquele era o meu bosque. O bosque dourado para o qual eu sempre imaginara fugir. Vendo minha expressão, Sam soltou minha mão e deu um passo atrás para me observar melhor.

— O lar — disse ele.

Acho que ele esperava que eu dissesse algo. Ou talvez não; talvez tivesse lido tudo no meu rosto. Eu não tinha o que dizer... só olhava em torno, para a luz oscilante e as folhas, que pendiam dos galhos como plumas.

— Ei.

Ele segurou meu braço, observando meu rosto de lado, como se procurasse lágrimas.

— Você parece triste.

Me virei devagar; o ar à minha volta parecia vibrar, com pequenas manchas.

— Eu vivia me imaginando vindo aqui, quando era menor. Só não consigo entender como poderia já ter visto esse lugar.

Era provável que minhas palavras não fizessem qualquer sentido, mas continuei a falar, tentando raciocinalizar:

— O bosque atrás da minha casa não é como este. Não tem bétulas. Nem folhas amarelas. Não sei como poderia reconhecê-lo.

— Talvez alguém tenha lhe falado dele.

— Acho que eu lembraria se tivessem me contado cada mínimo detalhe desta parte do bosque, até a cor deste ar cintilante. Nem mesmo sei como alguém poderia ter me contado tudo isto.

— Eu lhe contei — disse Sam. — Lobos têm maneiras curiosas de se comunicar: mostram imagens uns aos outros, quando estão próximos.

Me virei para onde ele estava parado, uma mancha escura contra a luz, e o olhei com a expressão séria.

— Você não vai parar, vai?

Ele apenas me encarou, o olhar fixo, lupino e silencioso que eu conhecia tão bem, triste e intenso.

— Por que você continua voltando a este assunto?

— Você foi mordida.

Ele andou devagar ao meu redor, em círculo, espalhando folhas com os pés, me fitando sob suas sobrancelhas escuras.

— E daí?

— E daí que estamos falando de quem você é. De você ser um de nós. Você não poderia ter reconhecido este lugar se não fosse um lobo também, Grace. Só um de nós teria sido capaz de ver o que mostrei a você.

A voz dele estava muito séria, os olhos, muito intensos.

— Eu nem ao menos poderia... nem poderia falar com você neste momento se você não fosse como nós. Não devemos falar sobre quem somos com pessoas comuns. Não é que tenhamos que viver de acordo com uma infinidade de regras, mas Beck me disse que esta é uma regra que simplesmente não quebramos.

Aquilo não fez sentido para mim.

— Por que não?

Sam ficou em silêncio, mas seus dedos tocaram o próprio pescoço, no local em que levara o tiro; quando o fez, notei as cicatrizes pálidas e brilhantes em seu pulso. Não era justo que alguém tão gentil quanto Sam tivesse que carregar para sempre marcas de violência humana. Me arrepiei no frio da tarde, cada vez mais intenso. A voz de Sam era suave:

— Beck me contou histórias. As pessoas nos matam de vários modos horríveis. Morremos em laboratórios, somos alvejados e envenenados. O que nos transforma pode ser ciência, Grace, mas tudo o que as pessoas veem é magia. Acredito em Beck. Não podemos contar a quem não é como nós.

— Eu não me transformo, Sam. Não sou como você.

A decepção formou um bolo tão grande na minha garganta que eu não conseguia engolir.

Ele não respondeu. Ficamos juntos ali no bosque por muito tempo, até que ele suspirou e voltou a falar:

— Depois que você foi mordida, eu sabia o que aconteceria. Esperei que você se transformasse, todas as noites, para que eu pudesse trazê-la e impedir que se machucasse.

Uma rajada gelada de vento sacudiu seu cabelo e despejou ao redor dele uma chuva brilhante de folhas douradas. Ele abriu os braços, deixando-as pousar em suas as mãos. Parecia um anjo sombrio num eterno bosque de outono.

— Sabia que a gente ganha um dia feliz por cada uma que conseguir pegar?

Não entendi o que ele quis dizer, mesmo depois que abriu a mão para me mostrar as folhas trêmulas e amassadas que segurava.

— Um dia feliz por cada folha que você pega no ar.

Sua voz estava baixa.

Observei as bordas das folhas se levantando devagar, flutuando na brisa.

— Quanto tempo você esperou?

Teria sido incrivelmente romântico se ele tivesse tido a coragem de me olhar nos olhos e dizer, mas em vez disso ele desviou o olhar para o chão e esfregou as botas nas folhas caídas — incontáveis possibilidades de dias felizes.

— Nunca deixei de esperar.

E eu também deveria ter dito algo romântico, mas não tive coragem. Então, em vez disso, observei o jeito tímido com que ele mordia os lábios e examinava as folhas, e falei:

— Deve ter sido um tédio.

Ele riu, um riso estranho e autodepreciativo.

— Você lia muito. E passava tempo demais atrás da janela da cozinha, onde eu não podia vê-la muito bem.

— E pouco tempo sem roupa diante da janela do meu quarto? — provoquei.

Sam ficou vermelho.

— Este — disse ele — não é bem o assunto desta conversa.

Sorri docemente diante daquele embaraço e recomecei a andar, chutando folhas douradas. Ouvi seus passos chutando as folhas atrás de mim.

— E qual era mesmo o assunto desta conversa?

— Esqueça! — disse Sam. — Você gosta deste lugar ou não?

Parei onde estava, dando meia-volta para encará-lo.

— Ei. — Apontei um dedo para Sam; ele levantou as sobrancelhas e parou de andar. — Você nunca achou que Jack fosse estar aqui, não é mesmo? — Ele ergueu ainda mais as sobrancelhas longas e espessas. — Você pretendia mesmo procurar por ele?

Ele levantou as mãos, como que se rendendo.

— O que quer que eu diga?

— Você estava tentando descobrir se eu reconheceria isso aqui, não estava?

Dei outro passo, encurtando a distância entre nós. Podia sentir o calor de seu corpo, mesmo sem tocá-lo, no frio crescente do dia.

— De algum jeito, você me falou desse bosque. Como foi que me mostrou?

— Estou tentando lhe dizer. Mas você não escuta. Porque é teimosa. É assim que falamos; são as únicas palavras que temos. Só imagens. Só simples e pequenas imagens. Você mudou, Grace. Só a sua pele que não. Queria que acreditasse em mim.

Suas mãos ainda estavam no ar, mas ele começava a sorrir à luz do poente.

— Então você só me trouxe aqui para que eu visse isso.

Dei mais um passo à frente, e ele recuou.

— Gostou?

— Com um falso pretexto...

Outro passo à frente. Outro recuo. O sorriso se ampliou.

— Então, gostou?

— Sabendo que não encontraríamos ninguém...

Seus dentes brilharam em seu sorriso.

— Você gostou?

Soquei o peito dele.

— Você sabe que eu adorei. Sabia que eu ia gostar.

Avancei para bater nele de novo, mas ele me agarrou os pulsos. Por um momento ficamos ali daquele jeito, ele me olhando com o sorriso meio parado no rosto e eu olhando para ele. Natureza-morta com rapaz e moça. Teria sido o momento perfeito para me beijar, mas ele não o fez. Só me olhou e continuou me olhando e, quando me dei conta de que eu também poderia facilmente beijá-lo, percebi que seu sorriso começava a sumir.

Sam abaixou devagar meus pulsos e soltou-os.

— Estou contente — disse ele, muito baixo.

Meus braços ainda estavam caídos ao lado do corpo, do mesmo jeito como Sam os tinha deixado. Franzi a testa.

— Você deveria ter me beijado.

— Pensei nisso.

Continuei olhando para a linha de seus lábios, triste e macia como sua voz. Devia estar olhando fixo demais, mas não conseguia parar de pensar no quanto eu queria que ele me beijasse e em como era estúpido querer tanto assim.

— E por que não fez isso?

Ele se inclinou e me deu o beijo mais leve possível. Seus lábios, frios e secos, como sempre tão educados e incrivelmente enlouquecedores.

— Preciso entrar logo — sussurrou. — Está ficando frio.

Só então prestei atenção ao vento glacial que penetrava pelas mangas compridas da minha blusa. Uma rajada congelante atirou mais uma vez para o ar milhares de folhas caídas, e, por um segundo, achei que sentia cheiro de lobo.

Sam estremeceu.

Examinando seu rosto àquela luz fraca, percebi de repente que em seus olhos havia medo.


CAPÍTULO 25

SAM • 3° C

Não corremos para voltar à casa. Correr significaria reconhecer algo que eu não estava pronto para encarar na frente dela — algo que eu era. Em vez disso, fomos andando a passos de gigante, folhas e galhos secos estalando sob nossos pés, nossa respiração afogando os outros sons do fim de tarde. O frio serpenteava sob as minhas roupas, arrepiando a minha pele.

Se eu não soltasse a mão dela, ficaria bem.

Qualquer passo na direção errada nos afastaria da casa, mas eu não conseguia me concentrar nas árvores ao redor. Pela minha visão passavam flashes de lembranças de seres humanos se tornando lobos, centenas de transformações ao longo dos meus anos com o bando. A recordação da primeira vez que eu vira Beck se transformar estava viva dentro de mim — mais real que o pôr do sol vermelho e gritante através das árvores à nossa frente. Me lembrei da frígida luz branca escoando pelas janelas da sala da casa de Beck, e da trêmula silhueta de seus ombros enquanto ele firmava os braços nas costas do sofá.

Eu estava de pé ao seu lado, olhando-o, incapaz de falar.

— Leve-o para fora! — gritou Beck, o rosto virado para o corredor mas os olhos semifechados. — Ulrik, tire Sam daqui!

Ulrik apertava meu braço tanto quanto os dedos de Grace apertavam minha mão agora, me levando pelo bosque, voltando pela trilha por onde tínhamos vindo mais cedo. A noite baixava sobre as árvores, esperando para nos dominar, gelada e negra. Mas Grace não desviava os olhos do sol, que cintilava através dos ramos, e ia em direção a ele.

A mancha brilhante do sol quase me cegava, desenhando as silhuetas nítidas das árvores, e de repente eu tinha outra vez sete anos. Vi minha velha colcha toda estrelada com tanta nitidez que tropecei. Meus dedos agarravam o tecido, amassando-o, rasgando-o.

— Mamãe! — Minha voz falhou na segunda sílaba. — Mamãe, eu vou vomitar!

Eu estava no chão, emaranhado em cobertores, barulho e vômito, tremendo e me agarrando ao chão, tentando me segurar em algo, quando minha mãe entrou no quarto, uma silhueta familiar. Olhei para ela, meu rosto no chão, e comecei a chamá-la, mas nenhum som saiu de minha boca.

Ela caiu de joelhos e viu pela primeira vez eu me transformar.

— Finalmente! — disse Grace, trazendo meus pensamentos de volta ao bosque que nos cercava. Sua voz soava ofegante, como se tivéssemos corrido. — Lá está ela.

Eu não podia deixar que Grace visse eu me transformar. Não podia me transformar agora.

Segui seu olhar até os fundos da casa de Beck, um lampejo morno de marrom-avermelhado naquele congelante entardecer azul.

E então corri.

A dois passos do carro, toda a minha esperança de me aquecer dentro dele se perdeu quando Grace tentou inutilmente abrir a maçaneta da porta trancada. Lá dentro, as chaves balançavam na ignição com o esforço que ela fazia. Seu rosto se contorceu de frustração.

— Vamos ter que tentar a casa — disse ela.

Não precisávamos invadir a casa. Beck sempre deixava uma chave reserva entre a porta dos fundos e o revestimento contra o frio. Tentei não pensar nas chaves do carro penduradas na ignição da caminhonete: se as tivéssemos, eu já estaria reaquecido. Minhas mãos tremiam quando peguei a chave sobressalente e tentei enfiá-la na fechadura. Já estava sentindo dor. Depressa, seu idiota. Depressa.

Eu simplesmente não conseguia parar de tremer.

Grace, com cuidado, tirou a chave da minha mão, sem qualquer indício de medo, embora ela soubesse o que estava acontecendo, tinha que saber. Envolveu com uma das mãos quentes as minhas geladas, e com a outra enfiou a chave na fechadura, destrancando-a.

Meu Deus, faça com que tenha energia na casa. Faça com que o aquecimento esteja ligado.

A mão de Grace em meu cotovelo me empurrou para dentro da cozinha escura. Eu não conseguia me livrar do frio; ele se agarrava a cada pedacinho do meu corpo. Comecei a sentir câimbra nos músculos e pus a mão no rosto, os ombros curvados.

— Não — disse Grace, a voz controlada e firme, como se estivesse apenas respondendo a uma simples pergunta. — Não, venha comigo.

Ela me puxou para longe da porta e a fechou atrás de mim. Sua mão deslizou pela parede, em busca dos interruptores, e, por milagre, as lâmpadas piscaram, se acendendo num brilho feio e fluorescente, acima de nós. Grace me puxou para dentro, mas eu não queria me mover. Só queria me curvar em mim mesmo e me dar por vencido.

— Não consigo, Grace. Não consigo.

Não sabia se tinha dito isso em voz alta ou não, mas ela, de qualquer modo, não me ouvia. Em vez disso, me sentou no chão bem em frente a uma saída de ar quente e tirou o casaco, enrolando-o em torno dos meus ombros e da minha cabeça. Então, se acocorou diante de mim e colocou minhas mãos geladas em seu corpo.

Eu tremia e trincava os dentes para que não batessem, tentando me concentrar nela, em continuar humano, em me aquecer. Ela dizia alguma coisa, mas eu não conseguia entender. Falava alto demais. Tudo estava alto demais. Cheirava mal ali dentro. Tão de perto, seu cheiro explodia em minhas narinas. Eu sentia dor. Tudo doía. Gemi, bem baixo.

Ela se levantou de um pulo e foi correndo pelo corredor, apertando os interruptores de luz por onde passava, e depois sumiu. Gemi e apoiei a cabeça nos joelhos. Não, não, não, não. Eu nem conseguia saber contra o que deveria lutar. A dor? O tremor?

Ela voltou. Suas mãos estavam molhadas. Agarrou meus pulsos e sua boca se mexeu, a voz soando, indecifrável. Sons destinados a outros ouvidos. Encarei-a.

Ela me puxou de novo; era mais forte do que eu tinha imaginado. Fiquei de pé; minha altura de alguma forma me surpreendeu. Eu tremia com tanta violência que o casaco caiu dos meus ombros. O ar frio se chocando contra o meu pescoço me sacudiu em outro calafrio, e quase caí de joelhos.

Uma garota segurou meus braços com mais força e foi me puxando, falando o tempo todo, baixinho, sons tranquilizadores, entremeados por um fio de ferro. Ela me empurrou para uma porta; vinha calor lá de dentro.

Meu Deus, não. Não. Não. Lutei contra sua força, me debatendo, os olhos fixos na parede do pequeno cômodo ladrilhado. Uma banheira jazia na minha frente como um túmulo. O vapor subia da água, o calor tentador e maravilhoso, mas cada parte do meu corpo resistia.

— Sam, não resista! Desculpe. Desculpe, não sei mais o que fazer.

De olhos fixos na banheira, agarrei o batente da porta.

— Por favor — murmurei.

Em minha mente, as mãos me seguravam debaixo d’água na banheira, mãos que cheiravam a infância e familiaridade, a abraços e lençóis limpos e a tudo que eu sempre conhecera. Elas me empurravam para debaixo d’água. Era quente a temperatura do meu corpo. As vozes contavam juntas. Não diziam meu nome. Corte. Corte. Corte. Corte. Abriam furos em minha pele, deixando sair o que estava dentro. A água se avermelhava em pequenos jorros. Eu engasgava, lutava, gritava. Eles não falavam. A mulher gritava para a água enquanto me segurava lá embaixo. Sou eu, Sam, eu dizia a eles, erguendo o rosto acima da água vermelha. Sou eu, Sam. Sou eu, Sam. Sou eu “Sam”! A garota me arrancou da porta e empurrou a parede de encontro a mim; tropecei e caí na borda da banheira. Ela me empurrou enquanto eu tentava recuperar o equilíbrio, fazendo com que minha cabeça batesse na parede e mergulhasse na água que emanava vapor.

Fiquei absolutamente imóvel, afundando, a água se fechando sobre meu rosto, me escaldando a pele, fervendo meu corpo, afogando meus tremores. Grace levantou com delicadeza minha cabeça por sobre a água, acalentando nos braços, um pé dentro da banheira, atrás de mim. Ela estava ensopada e tremia.

— Sam — disse ela. — Meu deus, eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Desculpe. Eu não sabia mais o que fazer. Por favor, me perdoe. Desculpe.

Eu não conseguia parar de tremer, os dedos agarrados à borda da banheira. Eu queria sair. Queria que ela me abraçasse, para que eu me sentisse seguro. Queria esquecer o sangue que escorria das cicatrizes nos meus pulsos.

— Me tire daqui — murmurei. — Por favor, me tire daqui.

— Você já se aqueceu?

Não consegui responder. Estava sangrando, morrendo. Cerrei os punhos e os levei ao peito. Cada carícia da água em meus pulsos fazia correr uma nova onda de calafrios pelo meu corpo. O rosto dela estava cheio de dor.

— Vou achar o termostato e ligar o aquecimento. Sam, você tem que ficar aí até eu voltar com toalhas. Desculpe.

Fechei os olhos.

Durou toda uma vida o tempo que passei com a cabeça pouco acima da superfície da água, incapaz de me mover. E então Grace voltou, segurando uma pilha de toalhas diferentes. Ela se ajoelhou junto à banheira e se inclinou por cima de mim. Ouvi um gorgolejo atrás da cabeça. Me senti escorrer pelo ralo, junto com a água, que descia em redemoinhos vermelhos.

— Não posso tirar você daí se você não me ajudar. Por favor, Sam.

Ela me olhou como se estivesse esperando que eu me mexesse. A água escorreu dos meus pulsos, ombros, costas, até que me vi deitado numa banheira vazia. Grace pôs uma toalha em cima de mim; estava muito quente, como se ela a tivesse aquecido. Então, ela pegou um de meus pulsos marcados pela cicatriz e me olhou.

— Agora você pode sair.

Devolvi seu olhar, sem piscar, as pernas dobradas contra a parede de ladrilhos, como um inseto gigante.

Ela estendeu a mão e traçou a linha das minhas sobrancelhas.

— Você tem mesmo uns olhos lindos.

— Ficamos com eles — eu disse.

Grace se assustou ao me ouvir.

— Como?

— É a única coisa que conservamos. Nossos olhos permanecem os mesmos. — Descerrei os punhos. — Eu nasci com estes olhos. Nasci para esta vida.

Como se não houvesse amargura em minha voz, Grace retrucou:

— Bem, eles são lindos. Lindos e tristes.

Ela estendeu a mão e tocou meus dedos, os olhos presos aos meus, sustentando meu olhar.

— Acha que consegue se levantar agora?

E eu consegui. Fitando seus olhos castanhos e nada mais, saí da banheira, e ela me levou para fora do banheiro, de volta à minha vida.


CAPÍTULO 26

GRACE • 1° C

Eu não conseguia unir os pensamentos. Estava de pé na cozinha, olhando para os armários cobertos de fotografias de gente sorridente — os membros da alcateia como seres humanos. Normalmente, eu teria passado por elas em busca do rosto de Sam, mas continuava a ver a forma contorcida de seu corpo na banheira e a ouvir o terror em sua voz. A visão dele tremendo no bosque, pouco antes que eu percebesse o que estava acontecendo, se repetia sem parar na minha cabeça.

Panela. Sopa enlatada. Pão congelado. Colheres. A cozinha de Beck fora obviamente guarnecida por alguém familiarizado com os horários peculiares de um lobisomem. Estava cheia de enlatados e caixas de alimentos com longo prazo de validade. Alinhei na bancada da pia todos os ingredientes para um jantar improvisado, procurando me concentrar na tarefa à minha frente.

Na sala ao lado, Sam estava sentado no sofá, debaixo de um cobertor, suas roupas na máquina de lavar. Minha calça jeans ainda estava ensopada, mas teria que esperar. Ligando uma boca do fogão para a sopa, tentei me concentrar nos polidos acendedores pretos, na superfície brilhante de alumínio.

Mas, em vez disso, eu me lembrava de Sam sofrendo convulsões no chão, os olhos vazios, e do seu gemido animal ao perceber que estava perdendo o controle.

Minhas mãos tremiam ao despejar a sopa na panela.

Não conseguia mantê-las firmes.

Eu iria mantê-las firmes.

Vi a expressão no rosto de Sam quando o empurrei para dentro da banheira, exatamente como seus pais deviam ter... Meu Deus, eu não podia pensar naquilo. Abrindo a geladeira, me surpreendi ao descobrir uma caixa de leite, o primeiro alimento perecível que encontrava na casa. Parecia tão fora de lugar que fiquei alerta. Examinando a data de validade — só três semanas antes —, derramei o leite malcheiroso no ralo e vasculhei a geladeira em busca de outros sinais de vida recente.

Sam ainda se encolhia no sofá quando surgi para lhe dar um prato de sopa e algumas torradas. Ele aceitou com um jeito ainda mais triste do que o habitual.

— Você deve achar que eu sou uma aberração total.

Sentei numa poltrona com forro xadrez diante dele, sobre as pernas dobradas, segurando meu prato de sopa junto ao peito para me aquecer. Como o pé-direito da sala era alto, correntes de ar ainda cruzavam o cômodo.

— Eu sinto tanto.

Sam balançou a cabeça.

— Era a única coisa que você podia fazer. Eu... eu é que não deveria ter perdido o controle daquele jeito.

Estremeci, me lembrando do barulho de sua cabeça batendo na parede e de seus dedos esticados no ar enquanto ele afundava na banheira.

— Você fez muito bem — disse Sam, me olhando enquanto pegava uma torrada. Parecia pesar as palavras, e então apenas repetiu: — Você fez muito bem. Você está...?

Ele hesitou; depois notou que eu estava a certa distância dele. Algo em seu olhar tornou a parte vazia do sofá ao seu lado dolorosamente evidente.

— Não estou com medo de você! — falei. — É isso o que está pensando? Só achei que você gostaria de ter espaço para comer.

Na verdade, em qualquer outro momento eu teria me enfiado feliz da vida debaixo do cobertor junto dele — ainda mais que ele parecia quentinho e sexy dentro dos velhos suéteres que ele pegara no quarto. Mas eu só queria... só precisava colocar meus pensamentos em ordem. E achava que ainda não conseguiria fazer isso sentada muito perto dele.

Sam sorriu, o rosto repleto de alívio.

— A sopa está boa.

— Obrigada.

Não estava tão boa assim. Na verdade, tinha gosto de coisa enlatada, insossa, mas eu estava com tanta fome que não me importava. E a ação mecânica de comer ajudava a embotar as imagens de Sam na banheira.

— Conte mais sobre aquela coisa de misturar as mentes — disse eu, querendo fazê-lo continuar a falar, para ouvir sua voz humana.

Sam engoliu.

— Sobre o quê?

— Você disse que me mostrou o bosque, quando estava em forma de lobo. E que os lobos falam uns com os outros desse jeito. Conte mais sobre isso. Quero saber como funciona.

Sam se inclinou para a frente e colocou o prato no chão. Quando voltou a se recostar e me olhou, seu rosto parecia cansado.

— Não é desse jeito.

— Eu não disse de que jeito era! — falei. — Não é de que jeito?

— Não é um superpoder — ele retrucou. — É um prêmio de consolação. — Como eu fiquei o encarando, acrescentou: — É a única maneira pela qual conseguimos nos comunicar. Não podemos nos lembrar das palavras. Não conseguiríamos dizê-las mesmo que pudéssemos envolvê-las com nossas mentes de lobo. Então, tudo o que temos são pequenas imagens que podemos mandar uns para os outros. Imagens simples. Cartões-postais que retratam o outro lado.

— Você pode me mandar um agora?

Sam deixou-se cair no sofá, apertando o cobertor em torno do corpo.

— Não consigo nem lembrar como se faz isso agora. Enquanto sou eu. Só faço isso quando sou lobo. Por que eu precisaria fazê-lo agora? Tenho as palavras. Posso dizer o que quiser para você.

Pensei em acrescentar Mas palavras não bastam, mas só pensar isso doeu em mim de um modo estranho. Então, em vez disso, eu disse:

— Mas eu não era lobo quando você me mostrou o bosque. Então os lobos conseguem falar com os outros da alcateia quando eles estão em forma humana?

Os olhos de Sam, com suas pálpebras pesadas, piscaram.

— Não sei. Acho que não tentei isso com mais ninguém. Só com lobos. — Ele repetiu: — Por que eu precisaria disso?

Havia algo amargo e cansado em sua voz. Coloquei meu prato na ponta da mesa e me juntei a ele no sofá. Ele levantou o cobertor para que eu pudesse me aninhar ao seu lado e, então, apoiou a testa na minha, fechando os olhos. Por um longo momento, apenas descansou nessa posição, depois voltou a abrir os olhos.

— Minha única preocupação era mostrar a você como chegar em casa — disse ele, em voz baixa. Sua respiração aquecia meus lábios. — Quando você se transformasse, eu queria ter certeza de que saberia como me encontrar.

Passei os dedos pelo triângulo de peito nu visível acima da gola frouxa do suéter. Minha voz saiu meio instável:

— Ora, eu encontrei você.

A centrífuga zumbia no final do corredor, um estranho som de ocupação naquela casa vazia. Sam se recostou.

— Eu devia pegar minhas roupas.

Abriu a boca como se fosse dizer outra coisa, mas, em vez de falar, enrubesceu.

— Elas não vão fugir — respondi.

— Nem nós, se não conseguirmos entrar no carro para pegar as chaves — observou Sam. — Estou pensando que quanto mais cedo fizermos isso, melhor. Ainda mais porque é você quem vai ter que fazer. Não aguento ficar lá fora tanto tempo.

Relutante, me afastei para que ele pudesse se levantar, segurando o cobertor em volta de si como se fosse uma espécie de cacique de algum clã primitivo. Eu podia ver o contorno de seus ombros quadrados por baixo do cobertor e me lembrei de sua pele sob os meus dedos. Ele surpreendeu meu olhar e sustentou por um instante, mas, depois, desapareceu no corredor escuro.

Alguma coisa me angustiava, algo como avidez e desejo.

Depois que ele saiu, fiquei sentada no sofá discutindo comigo mesma se deveria ou não segui-lo até a máquina de lavar, até que o lado racional venceu. Levei os pratos para a cozinha e voltei para a sala, para bisbilhotar as coisas que havia em cima da lareira. Queria entender melhor o lobisomem que ele chamava de Beck, o dono da casa. O que criara Sam.

A sala de estar, assim como o exterior da casa, tinha uma aparência confortável e habitada. Era tudo muito xadrez e vermelho-vivo, com toques de madeira escura. Uma das paredes da sala era quase inteiramente tomada por janelas altas, e a noite de inverno, agora escura, parecia entrar por elas sem permissão. Dei as costas às janelas e observei uma foto sobre a lareira: um grupo de rostos sorrindo para a câmera numa pose displicente. Aquilo me lembrou o retrato de Rachel, Olívia e eu, e senti uma pontada de perda antes de me concentrar nas pessoas daquela fotografia. Entre as seis pessoas, meus olhos imediatamente encontraram Sam. Uma versão dele ligeiramente mais jovem, com a pele bronzeada pelo verão. A única garota na foto estava junto dele e tinha mais ou menos a sua idade, os cabelos louros e compridos. Era a única que não sorria para a câmera. Em vez disso, olhava para Sam de um jeito intenso que me retorceu as entranhas.

Um toque macio no pescoço me fez dar meia-volta, na defensiva, e Sam pulou para trás rindo, as mãos erguidas no ar.

— Calma!

Engoli o rosnado na garganta, me sentindo idiota, e esfreguei a pele ainda sensível no ponto do pescoço em que ele me beijara.

— Você deveria fazer algum barulho.

Apontei para a foto, ainda me sentindo pouco generosa em relação à garota sem nome ao lado dele.

— Quem é?

Sam abaixou as mãos e veio para trás de mim, os braços me envolvendo a cintura. Suas roupas cheiravam a limpeza e sabão, sua pele emitia vestígios do lobo de sua quase transformação naquele dia.

— Shelby.

Apoiou a cabeça no meu ombro, a face encostada na minha.

Mantive a voz casual:

— Ela é bonita.

Sam grunhiu de um jeito suave e selvagem que me deixou tensa de tanto desejo. Ele pressionou os lábios no meu pescoço, não exatamente um beijo.

— Você já a viu, você sabe.

Não foi preciso ir muito longe para descobrir quem era.

— A loba branca. — E então eu simplesmente perguntei, porque queria saber: — Por que ela está olhando para você desse jeito?

— Ah, Grace — disse ele, tirando os lábios do meu pescoço. — Não sei. Ela... sei lá. Ela acha que é apaixonada por mim. Ela quer estar apaixonada por mim.

— Por quê? — perguntei.

Ele deu uma risadinha, não achando nem um pouco divertido.

— Por que você faz perguntas tão difíceis? Sei lá. Ela teve uma vida ruim antes de chegar ao bando, eu acho. Ela gosta de ser lobo. Gosta de pertencer a alguma coisa. Talvez ela veja como eu e Beck somos um com o outro e pense que estar comigo a faria pertencer ainda mais ao grupo.

— É possível alguém se apaixonar por você simplesmente por causa de quem você é — sublinhei.

O corpo de Sam ficou tenso atrás de mim.

— Mas não é por eu ser quem eu sou. É... obsessão — disse ele.

— Eu também estou obcecada.

Sam soltou o ar devagar e se afastou de mim. Suspirei.

— Ei, não precisava se afastar.

— Estou tentando ser um cavalheiro.

Me recostei nele de novo, sorrindo diante de sua expressão preocupada.

— Não precisa tentar tanto.

Sam tragou o ar, esperou um longo momento e então beijou com cuidado o meu pescoço, pouco acima da clavícula. Girei em seus braços para poder beijá-lo nos lábios, ainda encantadoramente hesitantes.

— Eu estava pensando na geladeira — sussurrei.

Sam recuou, bem pouco, sem sair do meu enlace.

— Você estava pensando na geladeira?

— É. Pensando que você não sabia se teria energia aqui durante o inverno. Mas tem.

Ele franziu a testa, ao que eu esfreguei a linha que se formou entre suas sobrancelhas.

— Então quem paga a conta de luz? Beck?

Quando ele fez que sim com a cabeça, continuei:

— Havia leite na geladeira, Sam. De apenas algumas semanas atrás. Alguém esteve aqui. Há pouco tempo.

Os braços de Sam ao redor do meu corpo afrouxaram, e seus olhos tristes ficaram ainda mais tristes. Toda a expressão dele era complicada, seu rosto era um livro numa linguagem que eu não compreendia.

— Sam — disse eu, querendo trazê-lo de volta para mim.

Mas seu corpo enrijecera.

— Tenho que levar você para casa. Seus pais vão ficar preocupados.

Eu ri, uma risada seca e sem humor.

— Aham. Com certeza. O que há de errado?

— Nada.

Sam balançou a cabeça em negativa, mas estava nitidamente perturbado.

— Quer dizer, nada coisa nenhuma. Foi um dia infernal, só isso. Eu só estou... só estou cansado, deve ser isso.

Parecia mesmo cansado, com algo negativo e sombrio em sua expressão. Me perguntei se a quase transformação o teria afetado, ou se eu não deveria ter perguntado nada sobre Shelby e Beck.

— Então você vem comigo para casa.

Ele apontou o queixo ao redor, para aquela casa.

— Vamos — disse eu. — Ainda tenho medo que você desapareça.

— Não vou desaparecer.

Involuntariamente, pensei nele no chão do corredor, encolhido, emitindo um ruído baixo enquanto lutava para continuar humano. No mesmo instante desejei não ter pensado.

— Você não pode prometer isso. Não quero ir para casa. A não ser que você vá comigo.

Sam gemeu baixinho. Ele acariciou minha cintura, a pele nua onde terminava minha camiseta, seus polegares traçando desejo nos meus quadris.

— Não me tente — disse ele.

Eu não disse nada; só continuei em seus braços, olhando-o.

Ele pousou o rosto no meu ombro e gemeu de novo.

— É tão difícil me comportar perto de você.

Ele se afastou de mim.

— Não sei se eu deveria continuar com você. Céus, você só tem, o quê... você só tem 17 anos.

— E você é tão velho, não é? — retruquei, de repente, na defensiva.

— 18 — falou ele, como se houvesse algo triste nisso. — Pelo menos estou dentro da legalidade.

Eu até ri, embora não visse nada de engraçado. Meu rosto ardia e meu coração batia com força no peito.

— Você está me gozando?

— Grace — disse ele, e o som do meu nome acalmou meu coração no mesmo instante. Ele segurou meu braço. — Só quero fazer tudo certo, ok? Só tenho esta chance de fazer a coisa certa com você.

Olhei para ele. A sala estava em silêncio, a não ser pelo bater das folhas contra as janelas, sopradas pelo vento. Imaginei qual seria minha expressão naquele momento, o rosto erguido para Sam. Seria o mesmo olhar intenso de Shelby na foto? Obsessão?

A noite gelada se comprimia de encontro à janela perto de nós, uma ameaça que se tornara ab-ruptamente real naquela noite. Nada a ver com lascívia. Era medo.

— Por favor, volte comigo — falei.

Eu não sabia o que faria se ele dissesse não. Não suportaria voltar no dia seguinte e encontrá-lo transformado em lobo.

Sam deve ter visto isso em meus olhos, porque só concordou com a cabeça e pegou a chave-mestra de carro.


CAPÍTULO 27

SAM • 3° C

Os pais de Grace estavam em casa.

— Eles nunca estão em casa — disse Grace, a voz transmitindo claramente seu desagrado.

Mas lá estavam eles, ou pelo menos seus carros: o Taurus do pai, parecendo prateado ou azul ao luar, e o pequeno VW Rabbit da mãe, encolhido na frente dele.

— Nem pense em dizer “eu avisei”... — ela continuou. — Vou entrar e ver onde eles estão. Depois volto para dar uma ideia da situação.

Eu tensionava os músculos para não tremer. Não sabia se era por nervoso ou pela lembrança do frio. Eu a observei correr para a casa e afundei no banco. Não podia acreditar que estava me escondendo num carro no meio de uma noite fria, esperando que uma garota voltasse correndo para me dizer que a barra estava limpa, que eu podia ir dormir no quarto dela. Não uma garota qualquer. A garota. Grace.

— Isso. Já volto.

Ela apareceu à porta da frente e fez um gesto elaborado. Levei um momento para entender que ela queria que eu desligasse o carro e entrasse. Obedeci, saindo da caminhonete o mais depressa possível e correndo em silêncio para o corredor; o frio cortava minha pele exposta. Sem me deixar sequer parar, Grace me deu um empurrão, me mandando corredor adentro enquanto fechava a porta da frente e ia para a cozinha.

— Esqueci a mochila — anunciou ela alto, no outro cômodo.

Usei a conversa como cobertura para me esgueirar até o quarto de Grace e fechar a porta sem ruído. O interior da casa estava pelo menos 30 graus mais quente, fato pelo qual fiquei muito aliviado. Ainda podia sentir o tremor de meus músculos pelos momentos que passara lá fora, a odiosa sensação de estar entre duas espécies.

O frio me deixara exausto, e eu não sabia quanto tempo Grace ficaria com os pais, então me enfiei na cama sem acender a luz. Ali sentado, sob o luar pálido, recostado nos travesseiros, esfreguei meus dedos dos pés gelados para fazê-los reviver e ouvi a voz distante de Grace do outro lado do corredor. Ela e a mãe conversaram agradavelmente sobre a comédia romântica que acabara de passar na televisão. Eu já notara que Grace e os pais não tinham dificuldades em conversar sobre coisas sem importância. Os três pareciam possuir uma inesgotável capacidade de rir juntos sobre coisas sem sentido, mas eu nunca os ouvira falando sobre algo realmente importante, nem uma vez sequer.

Aquilo era muito estranho para mim, tendo vindo do ambiente do bando. Desde que Beck me tomara sob sua proteção, eu tinha sido rodeado pela família, às vezes de um jeito sufocante, e Beck nunca deixara de me dar sua atenção individual quando eu a desejava. Eu achava aquilo normal, mas agora me sentia mimado.

Ainda estava recostado na cama quando a maçaneta girou em silêncio. Congelei, absolutamente imóvel, e soltei o ar ao reconhecer o som da respiração de Grace. Ela fechou a porta atrás de si e se virou para a janela.

Vi seus dentes na penumbra.

— Você está aí? — sussurrou ela.

— Onde estão seus pais? Vão entrar aqui e me dar um tiro?

Grace ficou em silêncio. No escuro, sem voz, ela era invisível para mim.

Eu estava a ponto de dizer alguma coisa para acabar com aquele estranho constrangimento quando ela falou:

— Não, eles estão lá em cima. Minha mãe está fazendo meu pai posar para que ela o pinte. Então você tem o caminho livre para escovar os dentes e tudo mais. Se for rápido. Cante com voz aguda, para pensarem que sou eu.

A voz dela endureceu quando disse pai, embora eu não pudesse imaginar por quê.

— Com voz desafinada — corrigi.

Grace passou por mim e foi até a cômoda, me dando um tapa no traseiro.

— Vai logo.

Deixando os sapatos no quarto, andei de leve pelo corredor até o banheiro no andar de baixo. Só havia ali um chuveiro, nada de banheira, o que me deixou imensamente aliviado. Grace, mesmo assim, se encarregara de fechar a cortina para que eu não tivesse que ver.

Escovei os dentes com a escova dela. Então fiquei ali, um adolescente magro numa grande camiseta verde que ela pegara do pai, olhando para meus cabelos escorridos e meus olhos amarelos no espelho. O que você está fazendo, Sam?

Fechei os olhos como se o fato de esconder as pupilas, tão lupinas mesmo em minha forma humana, mudasse o que eu era. A saída de ar do aquecimento central zumbia, enviando vibrações sutis através de meus pés descalços, lembrando que o calor era a única coisa que me mantinha naquela forma humana. As noites de outubro já estavam geladas o bastante para me destroçar a pele, e no mês seguinte os dias também seriam assim. O que eu iria fazer, me esconder na casa de Grace o inverno inteiro, temendo cada apavorante corrente de ar?

Abri outra vez os olhos, encarando-os no espelho até que sua forma e sua cor deixassem de ter significado. Me perguntei o que Grace tinha visto em mim, por que eu a fascinava. O que eu era sem a minha pele de lobo? Um garoto presunçoso e tão cheio de palavras que elas transbordavam de mim.

Ali mesmo, cada frase, cada letra de música que eu tinha na cabeça terminava com a mesma palavra: amor.

Precisava dizer a Grace que aquele era o meu último ano.

Examinei o corredor em busca de sinais dos pais dela e me esgueirei de volta ao quarto, onde Grace já estava deitada, um volume comprido e macio debaixo das cobertas. Por um momento, deixei a imaginação correr solta sobre o que ela estaria vestindo. Tinha uma pálida lembrança de lobo que a mostrava saindo da cama numa manhã primaveril, usando apenas uma enorme camiseta, as longas pernas expostas quando ela as tirou de sob as cobertas. Tão sexy que chegava a doer.

No mesmo instante, me senti constrangido por estar fantasiando. Meio que tateei em volta da cama por alguns minutos, pensando em chuveiradas frias, acordes musicais e outras coisas que não fossem Grace.

— Ei — sussurrou ela, a voz entorpecida como se já tivesse adormecido. — O que está fazendo?

— Shhh — falei, o rosto em fogo. — Desculpe se acordei você. Estava só pensando.

A resposta dela foi entremeada por um bocejo.

— Então pare de pensar.

Deitei na beira do colchão. Alguma coisa naquela noite tinha mexido comigo... algo em relação a Grace ter me visto da pior maneira, imóvel na banheira, prestes a desistir. Naquela noite, a cama parecia pequena demais para que eu escapasse do cheiro dela, do som sonolento da sua voz, do calor do seu corpo. Sem me mexer muito, amontoei entre nós algumas cobertas e encostei a cabeça no travesseiro, desejando que minhas dúvidas desaparecessem e me deixassem dormir.

Grace estendeu a mão e começou a passar os dedos pelos meus cabelos. Fechei os olhos e deixei que ela me enlouquecesse.


Ela desenha traços em meu rosto

As linhas criam formas que não podem alterar

a versão de mim que trago aqui dentro

quando estou deitado com você, deitado com você, deitado com você.


— Eu gosto do seu cabelo — ela disse.

Fiquei em silêncio. Pensava na melodia que combinaria com a letra que criara mentalmente.

— Desculpe por hoje à noite — murmurou ela. — Eu não queria forçar a barra.

Suspirei quando seus dedos enlaçaram minhas orelhas e meu pescoço.

— É que é tudo tão rápido. Quero que você... — parei antes de dizer me ame, porque pareceria presunção — queira ficar comigo. Sempre quis. Só nunca pensei que chegaria a acontecer.

Soou sério demais, então acrescentei:

— Afinal, sou apenas uma criatura mitológica. Tecnicamente, não deveria existir.

Grace riu; baixinho, só para mim.

— Garoto bobo. Você é bem real para mim.

— Você também — sussurrei.

Houve uma longa pausa na escuridão.

— Eu queria ter me transformado — disse ela, afinal, quase inaudível. Abri os olhos, pois precisava ver a expressão dela ao dizer aquilo. Era mais significativa do que qualquer outra que eu já tinha visto em seu rosto: incomensuravelmente triste, a boca palpitante de desejo.

Estendi o braço até ela, cobri sua face com a mão em concha.

— Ah, não, você não quer, Grace. Não, não quer, não.

Ela sacudiu a cabeça no travesseiro.

— Me sinto tão mal quando ouço os uivos. Eu ficava péssima quando você desaparecia no verão.

— Ah, meu anjo, eu a levaria comigo se pudesse — disse eu, e fiquei ao mesmo tempo surpreso com a palavra “anjo” que saíra de minha boca e por sentir que estava certo chamá-la daquele jeito. Acariciei seus cabelos, mergulhando os dedos entre as mechas. — Mas você não quer isso. A cada ano eu perco mais de mim.

A voz de Grace estava estranha:

— Conte o que acontece, no fim.

Levei um momento para entender o que ela queria dizer.

— Ah, no fim.

Havia mil maneiras de contar a ela, mil maneiras de dourar a pílula. Como Grace não engoliria a versão cor-de-rosa que Beck me dera no início, falei sem rodeios:

— Eu me torno eu... humano... no final da primavera, todos os anos. E num determinado ano... acho que não vou mais me transformar. Vi isso acontecer com os lobos mais velhos. Num determinado ano, eles não se tornam mais humanos, e são só... lobos. E vivem um pouco mais do que os lobos comuns. Mas mesmo assim... 15 anos, talvez.

— Como você consegue falar assim da sua própria morte?

Olhei para ela: seus olhos brilhavam na penumbra.

— De que outra maneira eu poderia falar?

— Como se lamentasse.

— Lamento todos os dias.

Grace ficou em silêncio, mas senti que processava o que eu tinha dito, colocando pragmaticamente tudo no devido lugar em sua cabeça.

— Você era lobo quando levou o tiro.

Eu queria apertar seus lábios com os dedos, empurrar de volta as palavras que se formavam em sua boca. Era cedo demais. Não queria que ela o dissesse ainda.

Mas Grace continuou, falando baixo:

— Você perdeu os meses mais quentes deste ano. Não estava tão frio quando foi alvejado. Estava frio, mas não um frio de inverno. Mas você estava em forma de lobo. Quando foi humano este ano?

Sussurrei:

— Não me lembro.

— E se não tivesse levado o tiro? Quando teria sido você de novo?

Fechei os olhos.

— Não sei, Grace.

Era o momento perfeito para contar a ela. Este é o meu último ano. Mas não conseguia falar. Ainda não. Eu queria mais um minuto, mais uma hora, mais uma noite fazendo de conta que aquele não era o fim.

Grace inspirou devagar, trêmula. Algo no modo como o fez me levou a perceber que, de algum modo e em algum nível, ela sabia. Soubera o tempo todo.

Ela não estava chorando, mas achei que iria.

Grace botou a mão de volta em meus cabelos, e meus dedos estavam junto aos dela. Nossos braços nus se comprimiam num emaranhado de pele fria. Cada pequeno movimento meu contra o braço dela criava uma minúscula fagulha de seu cheiro, uma tentadora mistura de sabonete floral, um leve traço de suor e desejo por mim.

Me perguntei se ela saberia como seu cheiro a deixava transparente, como me transmitia o que estava sentindo quando não o dizia em voz alta.

Claro, eu a vira farejar o ar com tanta frequência quanto eu. Ela tinha que saber que estava me deixando louco naquele exato momento, que cada toque de sua pele na minha era pura eletricidade, dava choques.

Cada toque levava para mais longe a realidade do inverno que chegava.

Como se quisesse provar que eu tinha razão, Grace se aproximou mais, chutando para longe as cobertas que havia entre nós, comprimindo sua boca contra a minha. Deixei-a abrir meus lábios e suspirei, provando seu hálito. Ouvi seu arquejo quase inaudível quando passei os braços ao redor de seu corpo. Cada sentido meu me sussurrava cada vez mais forte para que eu chegasse mais perto dela, mais perto dela, o mais perto possível. Ela entrelaçou as pernas nuas nas minhas e nos beijamos até perder o fôlego, e nos aproximamos cada vez mais até que uivos distantes do lado de fora da janela me trouxeram de volta à realidade.

Grace emitiu um ruído suave de desapontamento quando desvencilhei minhas pernas das suas, a vontade de ter mais doendo em mim. Me afastei e me deixei ficar ao lado dela, os dedos ainda presos em seus cabelos. Ouvíamos os lobos uivando lá fora, os que não tinham se transformado. Ou que nunca mais se transformariam. E enterramos nossas cabeças uma na outra, até que nada mais ouvíssemos além de nossos corações disparados.


CAPÍTULO 28

GRACE • 9° C

A escola parecia outro planeta na segunda-feira. Fiquei bastante tempo sentada atrás do volante, observando os alunos perambulando pelas calçadas, os carros circulando pelo estacionamento e os ônibus parados em uma fila perfeita, para compreender que a escola não tinha mudado. Eu tinha.

— Você tem que ir à aula — disse Sam, e se eu não o conhecesse não teria percebido a interrogação esperançosa em sua voz. Me perguntei aonde ele iria enquanto eu estivesse na escola.

— Eu sei — respondi, de cara amarrada para os suéteres e cachecóis multicoloridos que entravam na escola, evidência de que o inverno se aproximava. — É que parece tão...

O que parecia era irrelevante, desconectado da minha vida. Era difícil lembrar qual a importância de ficar sentada numa sala de aula com uma pilha de anotações que não teriam mais sentido no ano seguinte.

Ao meu lado, Sam deu um pulo de susto quando a minha porta se abriu. Rachel entrou com sua mochila no Bronco, me empurrando para abrir espaço para ela no banco.

Ela bateu a porta e soltou um grande suspiro. O carro pareceu muito cheio com ela ali dentro.

— Bela caminhonete. — Inclinou-se para a frente e olhou para Sam. — Uau!, um rapaz. Oi, Rapaz! Grace, estou tão elétrica. Café! Você está de mal comigo?

Me recostei no banco, piscando de surpresa.

— Não!

— Ótimo! Porque como você não ligou nunca mais, achei que tivesse morrido ou que estivesse zangada comigo. Já que obviamente não está morta, pensei que fosse a segunda alternativa.

Seus dedos tamborilaram no volante.

— Mas com a Olívia você está zangada, não está?

— Estou — respondi, embora não tivesse certeza se ainda era verdade. Eu lembrava por que tínhamos brigado, mas não conseguia mais lembrar por que tinha sido importante. — Não. Acho que não. Era besteira.

— É, imaginei — disse Rachel.

Ela se inclinou para a frente e descansou o queixo no volante, para poder olhar para Sam.

— Então, Rapaz, por que você está no carro da Grace?

Mesmo sem querer, eu sorri. Sabia que o que Sam era precisava ser mantido em segredo, mas não Sam em si, certo? Tive de repente uma necessidade absoluta de que Rachel o aprovasse.

— É, Rapaz — falei, torcendo a cabeça para ver Sam bem do meu lado. A expressão dele estava entre o divertimento e a dúvida. — Por que você está no meu carro?

— Estou aqui por interesse visual — disse ele.

— Uau! — retrucou Rachel. — Tipo, longo prazo ou curto prazo?

— Pelo tempo em que eu for interessante.

Pousou a cabeça no meu ombro por um momento, num gesto silencioso de afeto. Tentei não sorrir como uma idiota.

— Ah, é assim, não é? Bem, então, meu nome é Rachel, estou ligada e sou a melhor amiga de Grace — disse, estendendo a mão para ele. Usava umas luvas sem dedos que iam até os cotovelos, com as cores do arco-íris. Sam apertou-lhe a mão.

— Sam.

— Muito prazer, Sam. Você vai entrar?

Quando ele balançou a cabeça, Rachel pegou minha mão e disse:

— Imaginei que não. Bem, então vou roubar de você esta simpática pessoa e levá-la para a aula porque vamos nos atrasar e eu tenho um monte de coisas para contar a ela e ela perdeu trilhões de novidades sobre esse negócio bizarro de lobo porque não está falando com a outra melhor amiga dela. Então, você está vendo que temos que ir. Eu ia dizer que em geral não sou tão ligada assim, mas meio que sou. Vamos, Grace!

Sam e eu trocamos olhares, os dele meio preocupados, e aí Rachel abriu a porta do carro e me puxou para fora. Sam deslizou para trás do volante. Por um segundo achei que fosse me dar um beijo de despedida, mas em vez disso ele lançou um olhar para Rachel e pousou os dedos na minha mão por um instante. Suas bochechas estavam rosadas.

Rachel não disse uma palavra, mas sorriu enviesado e saiu me puxando na direção da escola. Sacudiu meu braço.

— Então é por isso que você não tem ligado, hein? O Rapaz é uma gracinha. Ele estuda em casa?

Quando empurramos as portas da escola, olhei para o carro por cima do ombro. Vi Sam erguer a mão num aceno antes de dar marcha a ré para sair do estacionamento.

— É, isso aí — respondi. — Conto mais depois. O que está acontecendo com os lobos?

Rachel, dramática, abraçou meus ombros com força.

— Olívia viu um. Estava bem na varanda, em frente à casa deles, e ele tinha marcas de garras, Grace. Na porta. Sinistro. Um pavor.

Parei de repente, no meio do corredor; os alunos atrás de nós fizeram barulhos irritados e se empurraram para nos contornar. Falei:

— Espere aí. Na casa da Olívia?

— Não, na da sua mãe — disse ela.

Rachel balançou a cabeça e tirou as luvas de arco-íris.

— É, na casa da Olívia. Se vocês duas parassem de brigar, ela mesma teria lhe contado. Por que estão brigadas, afinal? Fico doente de ver minhas amigas se estranhando.

— Eu já falei, foi só besteira — respondi.

Queria que ela parasse de falar para que eu pudesse tentar pensar no lobo que tinha ido à casa de Olívia. Seria Jack de novo? Por que na casa dela?

— Bem, vocês duas precisam começar a se dar bem porque quero as duas comigo no recesso de Natal. E não está assim tão longe. Quer dizer, não tão longe desde que se comece a planejar a coisa. Anda, Grace, diga que vai! — gemeu Rachel.

— Talvez.

Não era bem o lobo na casa de Olívia que me perturbava. Eram as marcas de garras. Precisava falar com ela e descobrir quanto daquilo era verdade e quanto era a paixão de Rachel por uma boa história.

— É por causa do Rapaz? Ele pode ir! Eu não ligo! — disse Rachel.

O corredor esvaziava aos poucos. O sinal tocou.

— Falamos disso depois! — disse eu, e corri com Rachel para a primeira aula. Me sentei no lugar de sempre e comecei a examinar o dever de casa.

— Precisamos conversar.

Pulei de surpresa ao som de uma voz completamente diferente: Isabel Culpeper. Ela deslizou seus gigantescos saltos de cortiça até a outra carteira e se inclinou para mim, o cabelo com luzes emoldurando seu rosto com cachos brilhantes e perfeitos.

— Agora estamos em aula, Isabel — disse eu, indicando com um gesto a TV na parede da sala, que reproduzia o vídeo com os anúncios do colégio para aquela manhã. A professora já estava lá na frente, debruçada sobre a mesa. Ela não prestava atenção, mas mesmo assim eu não estava muito animada com a ideia de ter uma conversa com Isabel. A melhor hipótese seria ela estar precisando de ajuda com o dever de casa ou algo assim; eu tinha fama de ser boa em matemática, então isso era possível.

A pior hipótese seria ela querer falar sobre Jack.

Sam tinha dito que a única regra do bando era que eles não falassem sobre lobisomens com os de fora. Eu não quebraria aquela regra.

Os lábios de Isabel ainda ostentavam um beicinho, mas eu via tempestade em seus olhos. Ela deu uma olhada para a frente da sala e se inclinou mais para mim. Senti aroma de perfume — rosas e verão naquele frio de Minnesota.

— Só vai levar um segundo.

Com os olhos, procurei Rachel, que estava de cara amarrada para Isabel. Eu na verdade não queria falar com a irmã de Jack. Não sabia muita coisa a respeito dela, mas sabia que era uma fofoqueira perigosa que poderia rapidamente reduzir minha posição na escola a um alvo de dardos no refeitório. Eu não fazia muita questão de ser popular, mas me lembrava do que tinha acontecido com a última garota que ficara no caminho de Isabel. Eu ainda estava tentando escapar de um complicado boato envolvendo a dança do ventre e o time de futebol americano.

— Por quê?

— Em particular — enfatizou Isabel. — No corredor.

Revirei os olhos enquanto saía da carteira e ia na ponta dos pés até os fundos da sala. Rachel me lançou um olhar rápido e aflito. Eu tinha certeza de que o meu estava igual.

— Dois segundos, mais nada — disse a Isabel enquanto ela me empurrava do corredor até uma sala vazia.

O quadro de cortiça na parede oposta estava coberto de desenhos anatômicos; alguém tinha prendido com uma tachinha uma calcinha numa das figuras.

— Ok. Que seja. — Isabel fechou a porta atrás de nós e me encarou como se eu fosse de repente começar a cantar espontaneamente ou algo assim. Eu não sabia o que ela estava esperando.

Cruzei os braços.

— Então, o que você quer?

Achei que estava preparada para isso, mas quando ela disse “Meu irmão Jack”, senti o coração disparar.

Não disse uma palavra.

— Eu o vi quando fui correr hoje de manhã — disse ela.

Engoli em seco.

— Seu irmão.

Isabel apontou para mim com uma unha perfeita, o esmalte mais reluzente do que a capota do Bronco. Seus cachos balançaram.

— Ah, não faça essa cara. Eu falei com ele. Ele não morreu.

Resisti, por um momento, à imagem de Isabel correndo. Não conseguia visualizar. Talvez ela quisesse dizer correndo do seu cachorrinho chihuahua.

— Hum.

Ela insistiu:

— Tinha alguma coisa muito bizarra nele. E não diga “É porque ele está morto”. Não está.

Algo na personalidade encantadora de Isabel — e talvez o fato de eu saber que Jack estava realmente vivo — tornava difícil sentir qualquer empatia por ela.

— Isabel, parece que você não precisa de mim para esta conversa. Está fazendo um ótimo trabalho sozinha.

— Cale a boca — disse ela, o que só reforçou minha teoria. Estava prestes a lhe dizer isso, mas suas palavras seguintes me fizeram gelar. — Quando vi Jack, ele disse que não tinha morrido de verdade. Então começou a... a se retorcer... e disse que tinha que ir embora naquele instante. Quando tentei perguntar o que havia de errado com ele, ele disse que você sabia.

Minha voz saiu meio estrangulada.

— Eu?

Mas então me lembrei dos olhos de Jack me implorando enquanto era mantido no solo pela loba. Me ajude. Ele tinha me reconhecido.

— Bem, isto não é exatamente um choque, é? Todo mundo sabe que você e Olívia são doidas por esses lobos, e é claro que tudo isso tem a ver com eles. Então, o que está havendo, Grace?

Não gostei do jeito com que ela fez a pergunta — como se talvez já soubesse a resposta. O sangue zumbia em meus ouvidos e eu estava a ponto de perder a cabeça.

— Olhe, você está chateada, eu entendo. Mas sério, vá procurar ajuda. Deixe-nos fora disso. Não sei o que você viu, mas não foi Jack.

A mentira me deixou um gosto ruim na boca. Eu podia entender o raciocínio por trás do segredo do bando, mas Jack era irmão de Isabel. Ela não teria direito de saber?

— Eu não andei vendo coisas — retrucou Isabel enquanto eu abria a porta. — Vou encontrá-lo de novo. E vou descobrir qual é o seu papel nisso tudo.

— Não tenho papel nenhum. Eu só gosto dos lobos. Agora tenho que voltar para a aula.

Isabel ficou parada na soleira da porta, olhando eu me afastar. Fiquei me perguntando o que, no começo daquilo tudo, ela teria achado que eu diria.

Ela quase parecia infeliz; ou talvez fosse apenas encenação.

De qualquer maneira, eu disse:

— Isabel, procure ajuda.

Ela cruzou os braços.

— Achei que era isso que eu estava fazendo.


CAPÍTULO 29

SAM • 12° C

Enquanto Grace estava na escola, passei um bom tempo no estacionamento, pensando no encontro com a agitada Rachel e imaginando o que ela pretendera dizer com o comentário sobre os lobos. Pensei em procurar Jack, mas queria ouvir o que Grace descobrira na escola antes de me meter numa perseguição às cegas.

Não sabia muito bem como ocupar meu tempo sem Grace e sem meu bando. Me sentia como alguém que tem uma hora até seu ônibus chegar — não muito tempo para fazer algo importante, mas tempo demais para só ficar sentado e esperar.

A sutil mordida do frio por trás da brisa me avisou que eu não podia continuar a adiar para sempre, tinha que entrar logo no ônibus.

Afinal, fui até o correio. Estava com a chave da caixa postal de Beck, mas, acima de tudo, o que eu queria fazer era trazer as lembranças de volta e fazer de conta que esbarraria com ele por lá.

Me lembrei do dia em que Beck me levara ali para pegar meus livros didáticos — eu ainda lembrava que havia sido numa terça-feira, porque naquela época as terças eram os meus dias preferidos. Não sabia a razão — era só algo a ver com o clima que envolvia a chegada daquele dia, e acho que gostava da palavra terça. Sempre gostei de ir ao correio com Beck; era uma caverna do tesouro, com fileiras e mais fileiras de caixinhas trancadas guardando segredos e surpresas só para quem tinha a chave certa.

Com uma nitidez peculiar, revivi aquela conversa claramente, até mesmo a expressão no rosto de Beck.

— Sam. Vamos lá, rapazinho.

— O que é isto?

Beck empurrou desajeitadamente a porta de vidro com o ombro, sofrendo sob o peso de uma caixa enorme.

— Seu cérebro.

— Eu já tenho um cérebro.

— Se tivesse, teria aberto a porta para mim.

Lancei-lhe um olhar sombrio e deixei-o brigar com a porta um pouco mais antes de passar por baixo de seus braços para empurrá-la.

— Fala sério, o que é?

— Livros didáticos. Vamos educar você direito, para que não seja um idiota quando crescer.

Eu me lembrava de ter ficado intrigado com a ideia de uma escola-de-caixinha; apenas-acrescente-água-e-Sam.

O resto do bando estava igualmente intrigado. Eu era o primeiro a ter sido mordido antes de terminar a escola, então a novidade de me educar era fascinante para os outros. Por muitos verões, todos se revezaram com o enorme manual de aulas e os novos e adoráveis livros didáticos cheirando a tinta. Eles mantinham minha cabeça ocupada o dia todo: Ulrik para matemática; Beck para História; Paul para Inglês e, depois, para Ciências. Eles me arguiam à mesa de jantar, inventavam musiquinhas para que eu me lembrasse das datas dos presidentes mortos e transformaram uma das paredes da sala de jantar num quadro gigante que tinha sempre escritas as palavras do dia e piadas sujas cuja autoria ninguém confessava.

Quando acabei com a primeira caixa de livros didáticos, Beck empacotou-os e outra caixa os substituiu. Quando eu não estava estudando em minha escola-de-caixinha, ficava na internet para obter outro tipo de educação. Buscava fotos de aberrações de circo e sinônimos para a palavra intercurso e respostas para por que olhar para as estrelas à noite me enchiam o coração de nostalgia.

Com a terceira caixa de livros chegou um novo membro do bando: Shelby, uma garota bronzeada e esbelta coberta de hematomas e tropeçando sob um o peso de um forte sotaque do Sul. Me lembrei de Beck dizendo a Paul: “Eu não podia simplesmente deixá-la lá. Santo Deus! Paul, você não viu de onde ela veio. Não viu o que estavam fazendo com ela.”

Eu sentia pena de Shelby, que se mostrava inacessível para os outros. Eu tinha sido o único a conseguir fazer uma jangada e chegar até a ilha que era Shelby, arrancando dela palavras e, às vezes, um sorriso. Ela era estranha, um animal frágil e despedaçado que faria qualquer coisa para recuperar o controle de sua vida. Roubava coisas de Beck para que ele tivesse que perguntar onde estavam, brincava com o termostato para ver Paul sair do sofá para consertá-lo, escondia meus livros para que eu conversasse com ela em vez de ler. Mas estávamos todos despedaçados naquela casa, não estávamos? Afinal de contas, eu era o garoto que não aguentava olhar para dentro de um banheiro.

Beck trouxe do correio outra caixa de livros, para Shelby, mas eles não significavam para ela o mesmo que para mim. Ela os deixava juntando poeira e, em vez de ler, pesquisava na internet o comportamento dos lobos.

Agora, ali no correio, parei diante da caixa postal de Beck, número 730. Passei os dedos pela tinta lascada dos números; o 3 quase não era visível e tinha estado assim desde que eu passara a ir lá. Enfiei a chave na caixa mas não a girei. Era tão errado assim querer tanto aquilo? Uma vida comum de anos comuns com Grace, um par de décadas de chaves abrindo caixas postais, deitando em camas e armando árvores de Natal no inverno?

E então eu estava pensando outra vez em Shelby, e as recordações doíam, afiadas como faca em comparação às lembranças de Grace. Shelby sempre achou absurda a ligação que eu tinha com minha vida humana. Eu ainda me lembrava da pior briga que tivemos sobre o assunto. Não a primeira ou a última, mas a mais cruel. Eu estava deitado na cama lendo um volume de Yeats que Ulrik tinha comprado para mim quando Shelby pulou no colchão e pisoteou as páginas do livro, amassando-as com seus pés descalços.

— Vem ouvir os uivos que encontrei na internet — disse ela.

— Estou lendo.

— O que eu encontrei é mais importante — disse ela, de pé sobre mim, os dedos dos pés se curvando e amassando ainda mais as páginas. — Para que se dar o trabalho de ler essa coisa? — E apontou para a pilha de livros didáticos na mesa ao lado da cama. — Não é isto o que você vai ser quando crescer. Não vai ser um homem. Você vai ser um lobo, portanto deveria estar aprendendo coisas de lobo.

— Cale a boca — disse eu.

— Ora, é verdade. Você não é Sam. Todos esses livros são um desperdício. Você vai ser o macho alfa. Eu li sobre isso. E eu serei sua companheira, a fêmea alfa.

O rosto dela estava excitado, vermelho. A única coisa que Shelby queria era deixar seu passado para trás.

Arranquei o livro de sob seus pés e alisei a página.

— Vou ser Sam. Nunca vou deixar de ser Sam.

— Não vai!

Shelby ergueu a voz. Ela pulou da cama e derrubou minha pilha de livros; milhares de palavras caíram no chão.

— Isso é puro fingimento! Não vamos ter nomes, seremos só lobos!

— Cale a boca! — gritei. — Eu ainda posso ser Sam quando sou lobo!

Então Beck irrompeu no quarto e observou a cena em silêncio: meus livros, minha vida, meus sonhos espalhados sob os pés de Shelby, e eu na cama, agarrado a meu Yeats amassado, os nós dos dedos brancos.

— O que está acontecendo aqui? — disse ele.

Shelby apontou para mim.

— Diga a ele! Diga a ele que nunca mais vai ser Sam quando nos tornarmos lobos. Ele não pode ser Sam. Não vai nem mesmo saber o próprio nome. E eu não serei Shelby.

Ela tremia, furiosa.

A voz de Beck saiu tão baixa que eu mal conseguia ouvi-lo.

— Sam será sempre Sam.

Ele pegou Shelby pelo braço e a levou para fora do quarto, os pés dela derrapando nos meus livros. Seu rosto estava em choque; Beck tivera o cuidado de nunca lhe encostar a mão desde que ela chegara. Eu nunca o tinha visto tão zangado.

— Nunca mais diga o contrário a ele, Shelby. Ou levo você de volta para o lugar de onde veio. Levo você de volta.

No corredor, Shelby começou a gritar e não parou até que Beck batesse com força a porta do quarto dela.

Ele voltou até o meu quarto e parou à porta. Eu estava pondo com cuidado os livros de volta na escrivaninha. Enquanto os arrumava, as palavras tremiam nas minhas mãos.

Achei que Beck fosse dizer alguma coisa, mas ele só apanhou um livro caído a seus pés e colocou-o no alto da pilha antes de ir embora.

Mais tarde ouvi Ulrik e Beck conversando; eles não tinham se dado conta de que havia poucos lugares na casa fora do alcance dos ouvidos de um lobisomem.

— Você foi muito duro com Shelby — disse Ulrik. — Ela tem certa razão. O que você acha que ele vai fazer com todo esse maravilhoso aprendizado e leitura, Beck? Ele nunca vai ser capaz de fazer o que você faz.

Houve uma longa pausa. Ulrik continuou:

— Ah, não fique surpreso. Não é preciso ser um gênio para imaginar o que você andou pensando. Mas me diga, como acha que Sam poderia ir para a faculdade?

Outra pausa. Beck disse:

— Ensino a distância.

— Certo. Digamos que Sam se forme. O que é que ele vai fazer com o diploma? Vai estudar direito a distância também? E depois, que tipo de advogado seria? As pessoas aguentam sua excêntrica rotina de férias-durante-o-inverno porque você já estava estabelecido quando foi mordido. Sam terá que tentar arrumar empregos que aceitem seus sumiços imprevistos todos os anos. Apesar de todo o aprendizado que você está enfiando na cabeça dele, vai precisar trabalhar em postos de gasolina, como o resto de nós. Se é que vai passar dos 20 anos.

— Você quer dizer a ele para desistir? Diga você. Eu jamais lhe direi isso.

— Não estou. É a você que estou dizendo para desistir.

— Sam não precisa fazer nada que não queira. Ele gosta de aprender. É inteligente.

— Beck. Você vai torná-lo infeliz. Não pode lhe dar todas as ferramentas para ser bem-sucedido e depois deixá-lo descobrir... puf!... que não pode usar nenhuma delas. Shelby tem razão. No fim, somos lobos. Eu posso ler poesia alemã para Sam, Paul pode ensinar a ele os particípios passados e você pode fazê-lo ouvir Mozart, mas, no fim, o que há para todos nós é uma noite longa e gelada, e aquele bosque.

Houve outra pausa antes que Beck respondesse, parecendo cansado e diferente do seu normal:

— Me deixe em paz, Ulrik, está bem? Me deixe em paz.

No dia seguinte, Beck me disse que eu não precisava fazer os deveres se não quisesse e saiu de carro sozinho. Esperei que fosse embora e então fiz meus deveres, mesmo assim.

Agora, mais do que qualquer outra coisa, o que eu mais queria era que Beck estivesse ali comigo. Girei a chave na fechadura sabendo o que encontraria — uma caixa postal repleta de envelopes de vários meses e provavelmente um lembrete para recolher mais no balcão.

Quando abri a caixa, porém, havia lá dentro duas cartas solitárias e alguns folhetos de propaganda.

Alguém tinha estado ali. Pouco antes.


CAPÍTULO 30

SAM • 5° C

— Você se importa se eu passar na casa da Olívia? — perguntou Grace, entrando no carro e trazendo consigo um jorro de ar frio.

Me encolhi no banco do passageiro, ela fechou depressa a porta.

— Desculpe. Ficou muito frio, não é? Mas eu não quero entrar, sabe. Só passar por lá. Rachel disse que um lobo tem rodeado a casa da Olívia. Então, talvez a gente possa descobrir uma trilha lá perto, quem sabe?

— Vá em frente — respondi.

Peguei sua mão e beijei-lhe os dedos, depois recoloquei-a no volante. Afundei no banco e peguei minha tradução de Rilke que tinha levado para ler enquanto a esperava.

Os lábios de Grace se entreabriram ao meu toque, mas ela nada falou enquanto saía do estacionamento. Examinei seu rosto, em total concentração, a boca fechada numa linha firme, e esperei para ver se ela estava pronta para dizer o que havia em sua mente. Quando não o fez, peguei o livro de Rilke e me ajeitei de novo no banco.

— O que você está lendo? — perguntou ela depois de um longo silêncio.

Eu tinha quase certeza de que a pragmática Grace jamais ouvira falar em Rilke.

— Poesia.

Grace suspirou e contemplou o céu todo branco que parecia esmagar a estrada diante de nós.

— Não entendo poesia. — Ela pareceu achar que o comentário poderia ser ofensivo, porque acrescentou com pressa: — Talvez eu esteja lendo a coisa errada.

— Talvez você só esteja lendo de forma errada — falei.

Eu tinha visto a pilha que Grace separara para ler: não ficção; livros sobre coisas, não sobre como as coisas eram descritas.

— Você tem que prestar atenção ao padrão criado pelas palavras, não só o que elas dizem. Como uma música.

Como ela franziu a testa, passei algumas páginas do livro e deslizei para mais perto dela no banco, até que nossos quadris ficaram juntos. Grace deu uma espiada na página.

— Não é nem em inglês!

— Algumas são — respondi, e suspirei ao lembrar. — Ulrik estava usando Rilke para me ensinar alemão. E agora vou usá-lo para ensinar poesia a você.

— Sem dúvida uma língua estrangeira — disse Grace.

— Sem dúvida — concordei. — Ouça isto. “Was soll ich mit meinem Munde? Mit meiner Nacht? Mit meinem Tag? Ich habe keine Geliebte, kein Haus, keine Stelle auf der ich lebe.”

O rosto de Grace tinha um ar confuso. Ela mordeu o lábio de um jeito gracioso, frustrado.

— E o que quer dizer?

— A questão não é essa. A questão é como soa, não só o que quer dizer.

Foi difícil achar as palavras para me expressar. O que eu queria era fazê-la pensar em como tinha se apaixonado por mim como lobo. Sem palavras. Enxergando além do significado óbvio da minha pele de lobo para ver o que havia dentro. Vendo fosse o que fosse que me fazia ser Sam, sempre.

— Leia de novo — disse Grace.

Eu li de novo.

Ela tamborilou no volante com os dedos.

— Soa como algo triste — disse. — Você está sorrindo... devo estar certa.

Busquei a tradução em outras páginas.

— “O que eu faria então com meus lábios? Com minha noite? Com meu dia? Não tenho...” Ah, eu não gosto dessa tradução. Amanhã vou pegar a outra que tenho em casa. Mas sim, é triste.

— Vou ganhar um prêmio?

— Talvez — disse eu. E deslizei a mão sobre a dela, entrelaçando nossos dedos. Sem tirar os olhos da estrada, ela levou nossas mãos unidas à boca. Beijou meu indicador e depois colocou-o entre os dentes, mordendo-o de leve.

Ela me olhou de lado, e suas pupilas mostravam um desafio não formulado.

Eu estava completamente dominado. Queria dizer a ela que parasse naquele exato instante porque eu precisava beijá-la.

Mas então vi um lobo.

— Grace, pare. Pare o carro!

Ela virou a cabeça para todos os lados, tentando enxergar o que eu tinha visto, mas o lobo já tinha saltado a vala à beira da estrada e ido na direção das árvores esparsas.

— Pare, Grace — falei. — É Jack.

Ela pisou no freio. A caminhonete se sacudia para a frente e para trás enquanto ela guiava até o acostamento. Não esperei o carro parar. Só escancarei a porta e saí tropeçando, os tornozelos protestando quando os bati no solo congelado. Examinei o bosque à minha frente. Nuvens de fumaça de cheiro ácido vagavam por entre as árvores, se misturando às pesadas nuvens brancas que desciam do céu; alguém estava queimando folhas do outro lado do bosque. Através da fumaça, vi o lobo cinza--azulado hesitar em meio às árvores adiante, sem saber ao certo se estava sendo perseguido. O ar gelado fisgava a minha pele, e o lobo olhou para trás, para mim. Olhos cor de avelã. Jack. Tinha que ser.

E então ele desapareceu, assim, de repente, mergulhando na fumaça. Fui atrás dele, saltando a vala da beira da estrada e correndo sobre os restos duros do bosque de inverno, que ia morrendo.

Quando entrei na floresta, ouvi Jack correndo à minha frente, mais interessado em fugir do que em se esconder. Eu podia sentir o cheiro ruim do medo enquanto ele disparava na minha frente. A fumaça do bosque era mais pesada agora, e era difícil dizer onde ela terminava e começava o céu, preso nos ramos nus lá em cima. Jack estava semi--invisível à frente, mais rápido e ágil do que eu em suas quatro patas, e impermeável ao frio.

Meus dedos, semientorpecidos, latejavam de dor, e o frio me beliscava a pele do pescoço e me revirava o estômago. Eu estava perdendo de vista o lobo lá adiante; o lobo que havia em mim pareceu de repente muito mais próximo.

— Sam! — gritou Grace.

Ela agarrou a parte de trás de minha camisa, me puxando para me fazer parar, e jogou seu casaco sobre meu corpo. Eu tossia, buscando ar e tentando engolir o lobo que se erguia em mim. Passando os braços em torno de mim enquanto eu tremia, ela disse:

— O que deu na sua cabeça? O que você estava...

Não terminou. Me puxou de volta através do bosque, nós dois tropeçando, meus joelhos se dobrando. Diminuí o ritmo, sobretudo quando chegamos à vala, mas Grace não vacilou, me pegando pelo cotovelo para me suspender e me enfiar no Bronco.

Dentro do carro, enterrei meu rosto gelado na pele quente do pescoço dela e deixei-a me abraçar, enquanto eu tremia descontroladamente. Eu tinha total consciência das pontas dos meus dedos, de cada pequena agulhada de dor latejando em cada um deles.

— O que você estava fazendo? — perguntou Grace, me apertando tão forte que forçava minha respiração a sair — Sam, você não pode fazer isso! Está congelando lá fora! O que achou que ia fazer?

— Não sei — falei eu para dentro do seu pescoço, fechando as mãos e colocando-as entre nossos corpos, para aquecê-las.

Eu não sabia. Só sabia que Jack era um desconhecido, e que eu ignorava que tipo de pessoa ele era, que tipo de lobo ele era.

— Não sei — repeti.

— Sam, não vale a pena — disse Grace, e apertou o rosto de encontro ao meu, com força. — E se você se transformasse?

Seus dedos estavam rígidos sobre as mangas da minha camisa, sua voz, agora, ofegante.

— O que passou pela sua cabeça?

— Nada — disse eu, sendo sincero.

Me recostei, enfim aquecido o bastante para parar de tremer. Levei as mãos às saídas de ar quente.

— Desculpe.

Por um longo momento, não houve qualquer som além do ronco irregular do motor. Então Grace disse:

— Isabel veio falar comigo hoje. É a irmã do Jack. — Ela fez uma pausa. — Disse que tinha falado com ele.

Fiquei em silêncio, só curvei os dedos nas saídas de ar como se pudesse agarrar fisicamente o calor.

— Mas você não pode simplesmente sair correndo atrás dele. Está ficando frio demais, e o risco não vale a pena. Prometa que não vai mais fazer uma coisa dessas!

Baixei os olhos. Eu não conseguia olhá-la quando ela falava daquele jeito.

— E quanto a Isabel? Me conte o que ela disse.

Grace suspirou.

— Não sei. Ela sabe que Jack está vivo. Acha que os lobos têm a ver com isso. Acha que eu sei alguma coisa. O que vamos fazer?

Comprimi a testa com as mãos.

— Não sei. Queria que Beck estivesse aqui.

Pensei nos dois envelopes solitários na caixa postal do correio, no lobo no bosque e nas pontas de meus dedos que ainda latejavam. Talvez Beck estivesse por ali.

A esperança doía mais do que o frio.

Talvez não fosse Jack quem eu deveria estar procurando.


CAPÍTULO 31

SAM • 11° C

Depois que pensei na possibilidade de Beck ainda ter forma humana, aquela ideia me possuiu. Dormi mal, minha mente vasculhando todos os caminhos que eu podia usar para tentar encontrá-lo. As dúvidas também se acumulavam — qualquer um da alcateia poderia ter ido buscar a correspondência ou comprado o leite —, mas eu não conseguia evitá-las. A esperança vencia tudo. No café da manhã do dia seguinte, conversei com Grace sobre seu dever de casa sobre cálculo — que me parecia totalmente incompreensível —, sobre sua rica e animada amiga Rachel, sobre o tempo e sobre mil outras coisas sem importância, mas, na verdade, eu só pensava em Beck.

Depois de deixar Grace na escola, tentei por um momento fazer de conta que não estava indo direto para a casa de Beck.

Ele não estava lá. Eu já sabia.

Mas não custava nada conferir mais uma vez.

No caminho, fiquei pensando no que Grace tinha dito na outra noite sobre a energia elétrica e o leite na geladeira. Talvez, só talvez, Beck estivesse lá, me aliviando da responsabilidade com Jack e eliminando o insuportável peso de ser o último da minha espécie. Mesmo se a casa ainda estivesse vazia, eu poderia pegar mais roupas e meu outro livro de Rilke, e andar pelos cômodos, sentindo o cheiro das lembranças dos meus amigos.

Me lembrei de três breves anos antes, quando muitos de nós estávamos no auge, podendo voltar à nossa forma real, a humana, ao primeiro indício de calor da primavera. A casa estava cheia, então — Paul, Shelby, Ulrik, Beck, Derek e mesmo o maluco do Salem estavam humanos ao mesmo tempo. Sermos todos tragados ao mesmo tempo pela insanidade fazia ela parecer menos insana.

Diminuí a velocidade quando peguei a entrada para a casa de Beck. Meu coração deu um pulo quando vi um veículo se dirigindo à entrada de carros, mas depois me enchi de decepção quando percebi que o carro era um utilitário Tahoe, desconhecido. As lanternas do freio brilharam enevoadas no dia cinzento e abaixei a janela para tentar captar algum cheiro. Antes que eu sentisse qualquer coisa, ouvi a porta do motorista se abrir e se fechar do outro lado do carro. Então a brisa levou o cheiro diretamente até mim, claro e levemente enfumaçado.

Beck. Estacionei o Bronco à beira da estrada e pulei para fora, abrindo um sorriso ao vê-lo sair de trás do carro. Ele arregalou os olhos por um momento e sorriu também, uma expressão que se adaptava muito bem às linhas de seu rosto.

— Sam! — A voz de Beck carregava algo estranho — surpresa, talvez. Seu sorriso se ampliou. — Sam, graças a Deus. Venha cá!

Ele me abraçou e bateu em minhas costas com aquele jeito afetuoso que sempre conseguia ter sem parecer meloso. Talvez por ele ser advogado, sabia como fazer amigos. Não pude deixar de notar que ele estava maior na altura da cintura; não de gordura. Não sei quantas camisas devia estar usando sob o casaco para se manter quente o bastante para continuar humano, mas vi os colarinhos descombinados de pelo menos duas.

— Por onde você andou?

— Eu...

Estava prestes a lhe fazer um resumo da história toda: ter sido alvejado, conhecer Grace, ver Jack, mas não o fiz. Não sei por que não o fiz. Com certeza não foi por causa de Beck, que me observava com honestidade em seus profundos olhos azuis. Era alguma coisa, algum cheiro estranho, leve, porém familiar, que fazia meus músculos se retesarem e colar minha língua ao céu da boca. Não era assim que deveria ser. Não era assim que eu deveria me sentir. Minha resposta saiu mais reservada do que eu pretendia.

— Estive por aí. Não aqui. Você também não esteve aqui, eu notei.

— Não — admitiu Beck.

Ele se virou para a traseira do Tahoe. Notei que a van estava imunda — uma camada grossa de sujeira. Sujeira que cheirava a outro lugar, entupindo os aros das rodas e pontilhando os para-lamas.

— Salem e eu estávamos no Canadá.

Então era por isso que eu não tinha visto Salem em parte alguma nos últimos tempos. Ele sempre fora problemático: não funcionava muito como humano, então também não funcionava muito quando em forma de lobo. Eu estava convencido de que fora Salem quem arrastara Grace do balanço. Como Beck tinha conseguido fazer uma viagem de carro com ele, estava além da minha compreensão. O porquê de ter feito essa viagem de carro com ele era ainda mais incompreensível.

— Você está cheirando a hospital. — Beck me examinou. — E que aparência horrorosa.

— Obrigado — eu disse.

Acho que estava afinal contando a história. Não tinha imaginado que o cheiro de hospital ainda persistisse depois de uma semana, mas o nariz franzido de Beck dizia o contrário.

— Levei um tiro.

Beck levou a mão aos lábios e falou através dos dedos.

— Meu Deus! Onde? Em nenhum lugar constrangedor, espero.

Apontei para o pescoço.

— Nenhum lugar muito interessante.

— Está tudo bem?

Ele queria perguntar: está tudo bem conosco? Alguém soube? Uma garota. Ela é incrível. Ela sabe, mas tudo bem. Experimentei as palavras na minha cabeça, mas não havia jeito de fazê-las soar direito. Só conseguia me lembrar de Beck me dizendo que não poderíamos confiar nosso segredo a ninguém de fora do bando. Então, apenas dei de ombros.

— Tão bem quanto sempre estivemos.

Então meu estômago se contraiu. Beck sentiria o cheiro de Grace na casa.

— Santo Deus, Sam — disse Beck. — Por que não ligou para o meu celular? Quando foi que levou o tiro?

— Não tenho o seu número. Do telefone deste ano.

Tínhamos números novos todos os anos, já que não usávamos os telefones durante o inverno.

Outro olhar de “não gostei”. Solidariedade. Não, pena. Fingi não ver.

Beck remexeu no bolso e puxou um celular.

— Pronto, fique com este. É de Salem. Parece que ele não vai usar mais.

— Um latido para sim, dois para não?

Beck riu.

— Exatamente. Seja como for, ele já tem o meu número na memória. Então, pode usar. Talvez você tenha que comprar um carregador.

Achei que ele fosse me perguntar onde eu andara dormindo, e eu não queria responder. Então apontei com o queixo para o Tahoe.

— E aí, por que essa sujeira toda? E por que a viagem?

Bati com os nós dos dedos na lateral do carro e, para minha surpresa, algo bateu também do lado de dentro. Mais como um baque. Como um chute. Levantei as sobrancelhas.

— Salem está aí dentro?

— Ele está de volta aos bosques. O patife se transformou no Canadá. Fui obrigado a trazê-lo para cá desse jeito, e ele troca de pele como se ela estivesse saindo de moda. E, você sabe, eu acho que ele é maluco.

Beck e eu rimos — como se aquilo precisasse ser dito.

Olhei de novo para o local onde tinha sentido o choque contra meus dedos.

— Então o que é esse barulho todo aí dentro?

Beck levantou as sobrancelhas.

— O futuro. Quer ver?

Dei de ombros e recuei para que ele pudesse abrir a porta traseira. Se eu achava que estava preparado para o que havia lá dentro, me enganei total e inteiramente.

Os bancos de trás do Tahoe estavam recolhidos para criar mais espaço, e no porta-malas aumentado havia três corpos. Humanos. Um sentado e apoiado no encosto dos bancos, outro encolhido em posição fetal e o terceiro caído todo torto perto da porta. Todos tinham as mãos amarradas com fita isolante.

Encarei-os, e o rapaz apoiado nos bancos me encarou de volta, com os olhos avermelhados. Tinha a minha idade, talvez um pouco menos. Havia vermelho ao longo de seus braços, e eu via agora que o vermelho se espalhava por todo o interior do veículo. Então cheirei-os: o fedor metálico do sangue, o aroma de suor do medo, o cheiro de terra que combinava com a poeira que cobria o exterior do Tahoe. E lobo, lobo por toda parte — Beck, Salem e lobos desconhecidos.

A garota encolhida como uma bola estava tremendo, e quando examinei o rapaz que me olhava da escuridão, vi que ele também tremia, os dedos se abrindo e fechando num nó confuso de medo.

— Socorro — disse ele.

Recuei, dei muitos passos para trás, os joelhos fracos mal me sustentando. Cobri a boca, depois cheguei mais perto para examiná-los. Os olhos do rapaz imploravam.

Eu tinha uma vaga consciência de que Beck estava ali perto, me observando, mas não conseguia parar de olhar para os garotos. Minha voz não parecia a minha:

— Não. Não. Esses garotos foram mordidos. Beck, eles foram mordidos.

Dei meia-volta, trancei as mãos atrás da cabeça, dei outra meia-volta para olhar de novo os três. O rapaz tremia violentamente, mas seus olhos não se desviavam dos meus. Socorro.

— Ah!, merda, Beck! O que foi que você fez? Que merda você foi fazer?

— Terminou? — perguntou Beck, tranquilo.

Eu me virei de novo, apertando os olhos com força e tornando a abri-los.

— Se eu terminei? Como é que eu posso ter terminado? Beck, esses garotos estão se transformando.

— Não vou falar até você se acalmar.

— Beck, você está vendo isso?

Eu me inclinei para a van, olhando para a garota lá dentro, seus dedos como garras fincados no tapete manchado de sangue. Tinha talvez uns 18 anos, e usava uma camiseta colorida apertada. Me afastei, como se isso pudesse fazê-los desaparecer.

— O que está havendo?

Na traseira do carro, o rapaz começou a gemer, enfiando o rosto nos punhos amarrados. Sua pele estava escura; ele começava a se transformar de fato.

Dei meia-volta. Não conseguia olhar. Não quando me lembrava de como era aquilo, aqueles primeiros dias. Tudo o que fiz foi continuar com as mãos entrelaçadas na nuca, e apertando os ouvidos com os braços, dizendo que merda, que merda, que merda vezes sem conta, até me convencer de que não podia ouvir seus gemidos. Nem chegavam a ser pedidos de socorro; talvez ele já tivesse percebido que a casa de Beck era isolada demais para que alguém o escutasse. Ou talvez tivesse desistido.

— Você vai me ajudar a levá-los para dentro? — perguntou Beck.

Me virei para encará-lo, vendo um lobo sair de dentro de uma camisa e da fita isolante agora frouxa rosnando e recuando, enquanto a garota de camiseta gemia a seus pés. Num instante, Beck tinha saltado para a traseira da van, ágil e animal, e jogado o lobo de costas no chão. Agarrou-lhe as mandíbulas com uma das mãos e o olhou fixamente nos olhos.

— Nem pense em lutar — rosnou para o lobo. — Você não está no comando aqui.

Beck soltou seu focinho, e a cabeça do animal caiu sobre o tapete com um baque surdo, sem protestos. O lobo começava outra vez a tremer, já se preparando para se transformar novamente em humano.

Santo Deus. Eu não conseguia ver aquilo. Era tão ruim quanto passar de novo pela mesma experiência, nunca saber que pele se estava usando. Desviei os olhos para Beck.

— Você fez isso de propósito, não fez?

Beck se sentou no porta-malas como se não houvesse um lobo em espasmos atrás dele e uma garota gemendo ao seu lado. E o outro que... ainda não se mexia. Estaria morto?

— Sam, é provável que este seja o meu último ano. Acho que não vou me transformar no ano que vem. Precisei pensar muito e muito depressa este ano para me manter humano quando afinal me transformei.

Ele viu meus olhos se voltarem para os colarinhos de diferentes cores em seu pescoço e assentiu.

— Precisamos desta casa. O bando precisa desta casa. E o bando precisa de protetores que ainda possam se transformar. Você já sabe. Não podemos confiar nos humanos. Somos os únicos que podemos nos proteger.

Não respondi. Ele suspirou pesadamente.

— Este é o seu último ano também, não é, Sam? Eu achava que você nem chegaria se transformar este ano. Você ainda estava em forma de lobo quando eu me transformei, e deveria ter acontecido o contrário. Não sei por que você teve tão poucos anos de transformações. Talvez pelo que seus pais fizeram com você. É uma grande pena. Você é o melhor deles.

Eu não disse coisa alguma, porque não tinha fôlego para falar. Só conseguia me concentrar em tentar saber por que havia um pouco de sangue no cabelo dele. Não tinha percebido antes porque seu cabelo era ruivo-escuro, mas o sangue tinha secado e criado um topete duro.

— Sam, quem ficaria encarregado de vigiar o bando? Shelby? Precisávamos de mais lobos. Mais lobos no começo de sua vida animal, para que, por mais oito ou dez anos, isso não volte a ser um problema.

Olhei fixo para o sangue em seu cabelo. Falei numa voz desanimada:

— E Jack?

— O garoto da arma? — Beck fez uma careta. — Devemos isso a Salem e Shelby. Não posso ficar procurando ele. Está frio demais. Ele vai ter que nos encontrar. Só espero que não faça nenhuma besteira antes disso. Com sorte, vai usar o cérebro que Deus lhe deu e ficar longe das pessoas até ficar estável.

Ao lado dele, a garota gritou, um lamento alto e sem força. Entre um tremor e outro, sua pele tinha o tom azul cremoso de um lobo preto. Seus ombros ondulavam, os braços forçando-a para cima, sobre patas que surgiram onde antes havia mãos. Eu me lembrava da dor com tanta clareza como se eu próprio estivesse me transformando — a dor da perda. Sentia a agonia do momento em que me perdia. Perdia o que me fazia ser Sam. A parte de mim que conseguia se lembrar do nome de Grace.

Enxuguei a lágrima de um dos olhos, observando a dor da garota. Parte de mim queria sacudir Beck por ter feito aquilo com eles. E outra parte apenas continuava pensando Graças a Deus Grace nunca precisou passar por isso.

— Beck — falei, piscando antes de encará-lo. Você vai para o inferno por causa disto.

Não esperei para ver sua reação. Simplesmente fui embora. Minha vontade era nunca ter ido até lá.

Naquela noite, como todas as noites desde que eu a conhecera, aninhei Grace em meus braços, ouvindo os movimentos abafados de seus pais na sala. Eles eram como passarinhos inquietos e desmiolados, esvoaçando para dentro e para fora do ninho a qualquer hora do dia ou da noite, tão envolvidos no prazer de sua construção que não tinham percebido que ele estava vazio havia anos.

Eram barulhentos também, rindo, conversando, batendo pratos na cozinha, embora eu jamais visse indícios de que um ou outro cozinhasse. Eram garotos de faculdade que tinham encontrado um bebê numa cestinha de junco e não sabiam o que fazer com ele. Como teria sido Grace se tivesse tido a minha família — o bando? Se tivesse tido Beck.

Em minha mente, ouvi Beck confirmando o que eu temia. Era mesmo verdade, aquele era o meu último ano.

Sussurrei:

— Fim.

Não cheguei a falar alto. Só experimentei o gosto da palavra na boca.

Na vigilante fortaleza dos meus braços, Grace suspirou e apertou o rosto contra meu peito. Ela já tinha dormido. Ao contrário de mim, que precisava perseguir o sono com flechas envenenadas, Grace era capaz de adormecer num segundo. Invejei-a.

Tudo o que eu conseguia ver era Beck e aqueles garotos, mil versões diferentes da cena dançando diante de meus olhos.

Eu queria contar a Grace. Eu não queria contar.

Sentia vergonha de Beck, estava dividido entre a lealdade a ele e a lealdade a mim — e até então nunca tinha me dado conta de que poderiam ser duas coisas diferentes. Não queria que Grace pensasse mal dele — mas queria um confessionário, um lugar onde pudesse me desfazer daquele insuportável peso no peito.

— Vamos dormir — murmurou ela, quase inaudível, agarrando minha camiseta de um jeito que não me fazia pensar em dormir. — Beijei seus olhos fechados e suspirei. Ela fez um ruído de satisfação e sussurrou, os olhos ainda fechados: — Shh, Sam. Seja lá o que for, vai continuar amanhã de manhã. E, se não, é porque não vale a pena. Durma.

E porque ela mandou, eu consegui.


CAPÍTULO 32

GRACE • 7° C

A primeira coisa que Sam me disse no dia seguinte foi:

— Já é hora de levar você para sair, para namorar direito.

Na verdade, a primeira coisa que ele disse foi:

— Seu cabelo fica todo bagunçado de manhã.

Mas a primeira coisa lúcida que ele disse (recusei-me a acreditar que meu cabelo ficava bagunçado de manhã) foi isso de me levar para sair. Era um dia com atividades extras na escola, e a presença era facultativa, portanto tínhamos o dia todo para nós — o que parecia ótimo. Ele disse isso enquanto mexia o mingau de aveia, olhando por cima do ombro para a porta da frente. Apesar de meus pais terem desaparecido cedo para algum compromisso de negócios do meu pai, Sam ainda tinha medo de que eles aparecessem de novo e o encurralassem com forcados.

Juntei-me a ele na bancada e me debrucei sobre o concreto, espiando a panela. Não estava exatamente encantada com a perspectiva de mingau de aveia. Experimentara isso antes e o sabor tinha sido muito... saudável.

— E quanto ao nosso encontro? Aonde você vai me levar? Algum lugar excitante, como o meio do bosque?

Ele fez pressão com o dedo sobre meus lábios, bem onde se abriam. Não sorriu.

— Um encontro normal. Comida e diversão, diversão, diversão.

Virei o rosto, de forma que a mão dele deslizou pelos meus cabelos.

— É, está parecendo — disse eu, com sarcasmo, porque ele ainda não sorria. — Achei que você não saísse com garotas normais.

— Pegue duas tigelas para mim, por favor — disse ele.

Coloquei-as sobre a bancada e Sam dividiu o mingau entre as duas, liberando um cheiro doce.

— Só quero levar você para um encontro de verdade, para que você tenha alguma coisa real para lem...

Ele parou e olhou para as tigelas, braços apoiados na bancada, ombros encolhidos até as orelhas. Afinal, virou-se e disse:

— Quero fazer as coisas direito. Podemos tentar agir de um jeito normal?

Concordando com a cabeça, aceitei uma das tigelas e experimentei uma colherada — tinha muito açúcar mascavo e mel e algum tipo de tempero picante. Apontei uma colher coberta de mingau de aveia na direção de Sam.

— Não tenho problema algum quanto a agir normalmente. E esse troço é grudento.

— Ingrata — disse Sam, olhando desolado para a própria tigela. — Você não gostou.

— Na verdade, é bonzinho.

— Beck costumava fazer isso para mim, depois que superei minha fixação por ovo.

— Você tinha fixação por ovo?

— Eu fui uma criança estranha — disse Sam. Ele apontou para minha tigela. — Você não precisa comer se não quiser. Quando acabar, a gente sai.

— Sai para onde?

— Surpresa.

Era tudo o que eu precisava ouvir. O mingau de aveia desapareceu num instante e eu já estava de chapéu, casaco e mochila nas mãos.

Pela primeira vez naquela manhã, Sam riu, e fiquei ridiculamente contente com aquilo.

— Você parece um cachorrinho. Eu sacudo as chaves e você fica pulando na porta, esperando o passeio.

— Au, au!

Sam me deu um tapinha na cabeça na saída e nos aventuramos juntos pela manhã fria de cores pastel. Quando já estávamos lá fora e dentro do carro, voltei a insistir:

— Então você não vai me dizer aonde estamos indo?

— Não. A única coisa que vou dizer é para você fazer de conta que foi isso o que fiz com você no dia em que a conheci, em vez de ter levado um tiro.

— Não tenho uma imaginação tão poderosa assim.

— Eu tenho. Vou imaginar para você, e com tanta intensidade que você vai ter que acreditar.

Ele sorriu para demonstrar que estava imaginando, um sorriso tão triste que me deixou sem ar.

— Vou conquistá-la direito e com isso minha obsessão por você não vai parecer tão esquisita.

— Para mim, é a minha que parece esquisita.

Olhei pela janela enquanto saíamos da entrada de carros. O céu deixava cair um floco de neve após o outro, bem devagar.

— Eu tenho aquilo, você sabe, como é o nome? Aquela síndrome de quando a pessoa se identifica com quem a salvou?

Sam sacudiu a cabeça e pegou o caminho oposto ao da escola.

— Você está pensando na síndrome de Munchausen, quando a pessoa se identifica com o sequestrador.

Balancei a cabeça em negativa.

— Não é a mesma. Munchausen não é quando você inventa uma doença para chamar atenção?

— É? É que eu gosto de dizer “Munchausen”. Quando digo, é como se eu realmente soubesse falar alemão.

Ri.

— Ulrik nasceu na Alemanha — disse Sam. — Conhece todo tipo de histórias infantis interessantes sobre lobisomens.

Ele pegou a rua principal que ia dar no centro da cidade e começou a procurar um lugar para estacionar.

— Ele dizia que antigamente as pessoas se deixavam morder com a maior boa vontade.

Pela janela, olhei para Mercy Falls. As lojas, todas em tons de marrom e cinza, pareciam mais marrons e cinzentas sob o céu de chumbo, e, para outubro, o tempo dava a impressão de que o inverno estava ameaçadoramente perto. Não havia mais folhas verdes nas árvores que cresciam ao longo da rua, e algumas já não tinham mesmo folhas, o que aumentava a aparência triste da cidade. Aonde quer que eu olhasse, só havia concreto.

— Por que fariam isso?

— Nos contos folclóricos, as pessoas se transformavam em lobo e roubavam ovelhas e outros animais quando a comida escasseava. E algumas se transformavam só por diversão.

Examinei seu rosto, tentando interpretar sua voz.

— Há algo de divertido nisso?

Ele desviou os olhos. Envergonhado pela resposta, pensei, até perceber que ele só estava olhando para trás, a fim de estacionar paralelamente à calçada em frente a uma fileira de lojas.

— Alguns de nós parecem gostar, talvez até mais do que de serem humanos. Shelby adora. Mas, como eu disse, acho que a vida humana dela foi bem horrível. Não sei. O lobo de metade da minha vida é tão parte de mim agora que é difícil imaginar viver sem ele.

— De um jeito bom ou ruim?

Sam me encarou, os olhos amarelos buscando os meus e neles se fixando.

— Eu sinto falta de ser eu. Sinto falta de você. O tempo todo.

Baixei os olhos para minhas mãos.

— Não, agora você não sente.

Sam estendeu o braço e tocou meus cabelos, passando a mão pelos fios até ficar só com as pontas presas entre os dedos. Examinou os cabelos como se eles pudessem conter os segredos de Grace em suas mechas louras e sem brilho. Suas bochechas ficaram rosadas; ele sempre enrubescia quando era elogiado.

— Não — admitiu. — Neste momento nem consigo me lembrar de como é ser infeliz.

Por alguma razão aquilo encheu de lágrimas os cantos dos meus olhos. Fiquei contente por ele ainda estar olhando para o meu cabelo. Houve uma longa pausa.

— Você não se lembra de ter sido atacada — disse ele.

— O quê?

— Você não tem qualquer lembrança de quando foi atacada, tem?

Franzi a testa e botei a mochila no colo, perplexa com aquela mudança de assunto aparentemente casual.

— Não sei. Talvez. Havia um monte de lobos, eu acho, muito mais do que eu acho que realmente havia. E eu me lembro de você; me lembro de você parado atrás, e depois apenas tocando minha mão — Sam tocou minha mão — e meu rosto — ele tocou meu rosto — enquanto os outros eram brutos comigo. Acho que queriam me comer, não é?

Sua voz soou suave:

— Você não se lembra do que aconteceu depois? Como sobreviveu?

Tentei lembrar. Foi tudo um lampejo de neve, de vermelho e de sopro no meu rosto. Depois mamãe gritando. Mas deve ter havido algo entre uma coisa e outra. De algum modo devo ter sido levada do bosque para casa. Tentei me imaginar andando e tropeçando na neve.

— Eu voltei andando?

Ele me olhou, esperando que eu respondesse a minha própria pergunta.

— Sei que não. Não consigo me lembrar. Por que não consigo me lembrar?

Eu estava frustrada agora, frustrada com a incapacidade do meu próprio cérebro. Parecia um pedido tão simples. Mas eu só me lembrava do cheiro de Sam, Sam por toda parte, e depois do som pouco familiar do pânico de mamãe enquanto ela cambaleava até o telefone.

— Não se preocupe com isso — disse Sam. — Não tem importância.

Mas achei que talvez tivesse. Fechei os olhos, relembrando o perfume do bosque naquele dia e a sensação sacolejante de voltar para casa, braços apertados em torno do meu corpo. Abri de novo os olhos.

— Você me levou.

Sam me encarou de repente.

Estava voltando, da mesma forma como nos lembramos de nossos delírios febris.

— Mas você estava em forma humana — falei. — Eu me lembro de ter visto você como lobo. Mas você devia estar humano para conseguir me carregar. Como fez aquilo?

Ele deu de ombros, desamparado.

— Não sei como me transformei. Foi a mesma coisa de quando levei o tiro, você me encontrou em forma humana.

Senti algo flutuar no meu peito, algo como esperança.

— Você pode determinar quando vai se transformar?

— Não é assim. Foram só duas vezes. E nunca mais consegui fazer de novo, nunca, por mais que eu quisesse. E acredite, tenho desejado muito isso.

Sam desligou o carro com um ar de quem dá um fim à conversa, e eu abri a mochila para pegar um chapéu. Enquanto ele trancava o carro, fiquei na calçada esperando.

Ele contornou o carro por trás e parou bruscamente quando me viu.

— Ah, meu Deus, o que é isto?

Com o polegar e o dedo médio, dei um peteleco no pompom multicolorido que eu carregava no alto da cabeça.

— De onde eu venho, chamam isso de chapéu. Mantém minhas orelhas aquecidas.

— Ah, meu Deus — disse Sam de novo, e chegou mais perto. Pegou meu rosto entre as mãos e me examinou. — É um horror de tão bonitinha!

Então me deu um beijo, olhou para o chapéu, e me deu outro beijo.

Jurei a mim mesma jamais perder o chapéu de pompom. Sam ainda segurava meu rosto; eu tinha certeza de que todos na cidade estavam nos olhando agora. Mas eu não queria me afastar, e deixei-o me beijar de novo, um beijo, desta vez, suave como a neve, ele mal me tocando; então ele me soltou e pegou a minha mão.

Levei um momento para recuperar a voz e, quando falei, não conseguia parar de sorrir:

— Muito bem, aonde estamos indo?

Estava bem frio, portanto eu sabia que o lugar era perto; não poderíamos ficar ali ao ar livre por muito mais tempo.

Os dedos de Sam estavam fortemente entrelaçados aos meus.

— Primeiro, a uma loja com cara de Grace. É o que faria um perfeito cavalheiro.

Dei uma risadinha boba, o que não tinha nada a ver comigo, e Sam riu, porque sabia disso. Eu estava bêbada de Sam. Deixei-o me levar ao longo dos prédios de concreto até a Crooked Shelf, uma pequena livraria independente. Eu não ia lá fazia um ano. Parecia idiota não ter ido, considerando a quantidade de livros que eu lia, mas eu era só uma pobre aluna de ensino médio com uma mesada muito limitada. Pegava meus livros na biblioteca.

— Esta é uma loja com cara de Grace, certo?

Sam abriu a porta sem esperar minha resposta. Um maravilhoso cheiro de livro novo veio ao nosso encontro, me lembrando na mesma hora do Natal. Meus pais sempre me davam livros de Natal. Com um agradável som de sineta, a porta se fechou atrás de nós e Sam largou a minha mão.

— E agora? Vou comprar um livro para você. Eu sei que você quer um.

Sorri para as prateleiras ocupadas, respirando fundo mais uma vez. Centenas de milhares de páginas que nunca tinham sido viradas, à minha espera. As prateleiras eram de madeira clara e quente, repletas de lombadas de todas as cores. As sugestões da livraria estavam arrumadas em mesas, capas lustrosas refletindo as luzes. Por trás do pequeno cubículo onde ficava o caixa, que nos ignorara, degraus cobertos por um carpete cor de vinho levavam a mundos desconhecidos.

— Eu podia morar aqui — falei.

Sam observava meu rosto com óbvio prazer.

— Eu me lembro de ficar olhando você ler livros no balanço de pneu. Mesmo com um tempo horroroso. Por que você não lia dentro de casa quando estava tão frio?

Meus olhos percorriam as fileiras e fileiras de livros.

— Os livros são mais reais quando lidos ao ar livre. — Mordi o lábio, os olhos voando de uma prateleira para outra. — Não sei para onde ir primeiro.

— Vou lhe mostrar uma coisa — disse Sam.

O jeito como ele disse aquilo me fez acreditar que não se tratava só de uma coisa e sim de uma coisa especial e surpreendente, que ele tinha esperado o dia todo para me mostrar. Pegou-me outra vez pela mão e me puxou pela loja, passando pelo caixa desinteressado e subindo os degraus silenciosos que engoliam e guardavam os sons dos nossos passos.

O andar de cima era um pequeno sótão, menos da metade do tamanho da loja no térreo, com um corrimão para impedir que as pessoas despencassem lá de cima.

— Trabalhei aqui num verão. Sente-se. Espere.

Ele me guiou até um sofá de dois lugares, puído e cor de vinho, que ocupava grande parte do espaço. Tirei o chapéu e me sentei, encantada com suas ordens, e fiquei olhando sua bunda enquanto ele procurava nas prateleiras o que quer que fosse. Sem saber que eu o observava, ele se agachou e correu os dedos pelas lombadas como se fossem velhos amigos. Estudei o contorno de seus ombros, a inclinação da cabeça, o modo como uma das mãos se apoiou no chão, dedos espalhados como um caranguejo, quando se ajoelhou junto às prateleiras. Ele enfim encontrou o que tinha ido procurar e veio até o sofá.

— Feche os olhos — disse.

Sem esperar que eu obedecesse, colocou a mão em minhas pálpebras e fechou-as. Senti o sofá estremecer quando ele se sentou ao meu lado, e ouvi o som inexplicavelmente alto da capa de livro abrindo, as páginas roçando umas nas outras à medida que ele as virava.

Então senti seu hálito na minha orelha enquanto ele, a voz muito baixa, lia:

— “Estou sozinho no mundo, mas não tão sozinho que seja capaz de tornar cada minuto nosso sagrado. Estou em baixa neste mundo, mas não tão em baixa que seja capaz de ficar diante de você como uma coisa, sutil, secreta. Quero minha própria vontade, e quero simplesmente estar com minha vontade, quando ela se transforma em ação.”

Ele fez uma pausa longa, em que o único som era o de sua respiração, um pouco entrecortada, antes de continuar:

— “E nos tempos silenciosos e às vezes difíceis das mutações, quando algo se aproxima, quero estar com os que conhecem coisas secretas, ou, senão, sozinho. Quero refletir tudo que há em você, e nunca ser tão cego ou tão antigo que mantenha comigo sua variante e complexa imagem. Quero me revelar. Não quero estar oculto em lugar algum, porque, quando estou oculto, sou uma mentira.”

Virei o rosto na direção de sua voz, os olhos ainda fechados, e ele colou a boca na minha. Senti seus lábios se afastarem um pouco, só por um instante, e ouvi o livro ser depositado com cuidado no chão, e então ele passou os braços em volta de mim.

Seus lábios tinham um gosto frio e picante, menta, inverno, mas suas mãos macias na minha nuca prometiam dias longos e verão e eternidade. Eu me sentia tonta, como se não captasse ar suficiente, como se o ar me fosse roubado assim que eu inspirava. Sam recostou-se no sofá, só um pouco, e me puxou para o círculo criado pelo seu corpo. E me beijou, me beijou e beijou, com muito cuidado, como se meus lábios fossem uma flor que, se tocada de modo brusco, pudesse se ressentir.

Não sei por quanto tempo ficamos aninhados no sofá, nos beijando em silêncio, antes que Sam percebesse que eu estava chorando. Senti-o hesitar, com água salgada na língua, antes de perceber o que significava aquele gosto.

— Grace. Você está... chorando?

Não respondi, porque qualquer resposta tornaria ainda mais real o motivo das minhas lágrimas. Ele as afastou com o polegar, depois puxou a manga da camisa sobre o punho para secar meu rosto.

— Grace, o que foi? Eu fiz alguma coisa errada?

Seus olhos amarelos palpitavam sobre meu rosto, buscando pistas, enquanto eu balançava a cabeça. Do andar de baixo, ouvi o som do caixa registrando outra venda. Parecia muito distante.

— Não — falei, afinal. Limpei outra lágrima dos olhos antes que caísse. — Não, você fez tudo certo. É só que...

Eu não conseguia dizer. Não conseguia.

Sam não se acovardou:

— ... é que este é o meu último ano — ele disse.

Mordi o lábio, com força, e limpei mais uma lágrima.

— Não estou pronta. Nunca vou estar pronta.

Ele não disse uma palavra. Talvez não houvesse o que dizer. Em vez disso, passou outra vez os braços ao redor do meu corpo, só que dessa vez apoiou meu rosto em seu peito e correu a mão por minha nuca, desajeitado mas reconfortante. Fechei os olhos e ouvi as batidas de seu coração até que as batidas do meu entrassem em sintonia com as do dele. Então, ele deitou o rosto no alto da minha cabeça e sussurrou:

— Não temos tempo para tristeza.


O sol brilhava quando saímos da livraria, e percebi com um choque quanto tempo tinha passado. Só então meu estômago reclamou de fome.

— Almoço — falei. — Agora mesmo. Senão vou cair dura e desaparecer. E você vai morrer de culpa.

— Não duvido.

Sam pegou minha sacolinha de livros novos e se virou para colocá-la no carro, mas parou no meio do caminho, olhos fixos em algum ponto atrás de mim.

— Sujou. Lá vem.

Virou de costas para mim e destrancou o carro, empurrando os livros para o banco da frente, tentando ficar invisível. Virei-me e dei de cara com Olívia, parecendo desgrenhada e cansada. Então John surgiu por trás dela e me deu um grande sorriso. Eu não o via desde antes de conhecer Sam, e não conseguia imaginar como podia tê-lo achado bonito. Parecia empoeirado e sem graça diante das mechas negras e os olhos dourados de Sam.

— Oi, gata — disse John.

Aquilo fez Sam se virar de repente. Ele não fez qualquer movimento na minha direção, mas não precisou — seus olhos amarelos detiveram John no mesmo instante. Ou talvez tenha sido só sua postura ao meu lado, os ombros rígidos. Por um segundo, me veio o pensamento de que Sam poderia ser perigoso, de que talvez ele em geral aquietasse o lobo dentro dele muito mais do que deixava transparecer.

John tinha uma expressão estranha e ilegível, o que fez com que eu me perguntasse se todos aqueles meses de brincar de paquera não foram mais verdadeiros do que eu tinha imaginado.

— Oi — disse Olívia.

Ela deu uma espiada em Sam, cujos olhos estavam fixos na câmera que ela levara pendurada no ombro. Ele abaixou a cabeça e esfregou os olhos como se tivesse caído algum cisco neles.

O desconforto de Sam era contagioso, e meu sorriso não parecia sincero.

— Oi. Que engraçado esbarrar com vocês aqui.

— Estamos só fazendo algumas compras para minha mãe.

Os olhos de John giraram até Sam e ele sorriu de um jeito um pouco amável demais. Meu rosto ardeu diante da silenciosa batalha de testosterona que se travava. Era meio que lisonjeiro, mas um pouco estranho.

— E Olívia queria pegar a livraria aberta, já que estávamos na rua. Está frio de morrer aqui fora. Vou entrar.

— E analfabetos podem entrar lá? — provoquei, como nos velhos tempos.

Então toda a tensão se foi, e John deu um sorriso amarelo para mim e deu outro para Sam antes de ir para a loja, como quem diz “É, boa sorte aí”. Sam meio que sorriu de volta, os olhos apertados, ainda agindo como se algo neles o incomodasse. Olívia continuou na calçada, em frente à entrada da loja, os braços envolvendo o próprio corpo.

— Nunca imaginei ver você fora de casa tão cedo num dia sem aula — disse ela. Falava comigo, mas olhava para Sam. — Achei que você hibernasse em dias assim.

— Não, hoje não — respondi.

Depois de tanto tempo sem falar com ela, eu tinha a impressão de que não sabia mais como fazê-lo.

— Saí da cama cedo, para ver como é.

— Incrível. — disse Olívia.

Ela ainda olhava para Sam, uma pergunta muda pairando no ar. Eu não queria apresentá-los, já que Sam parecia tão desconfortável perto de Olívia e sua câmera, mas tinha plena consciência do jeito com que ela nos olhava: o espaço entre nós, como mudava à medida que um de nós se movia, conectados por cordões invisíveis. E o contato casual. Os olhos de Olívia seguiram a mão de Sam até meu braço quando ele tocou de leve a manga do meu casaco, e se moveram para a outra mão, ainda pousada na maçaneta do carro num gesto muito... natural, como se já tivesse aberto aquela porta muitas vezes antes. Como se ele pertencesse à caminhonete e a mim. Afinal, Olívia perguntou:

— Quem é este?

Olhei para Sam em busca de aprovação. Suas pálpebras ainda estavam baixas, cobrindo-lhe os olhos.

— Sam — disse ele, baixo.

Havia algo errado com o timbre de sua voz. Ele não olhava para a câmera, mas era como se eu pudesse sentir sua atenção fixa nela. Minha voz sem querer ecoou sua ansiedade quando eu disse:

— Esta é Olívia. Olívia, Sam e eu estamos saindo. Quer dizer, namorando.

Esperava que ela fizesse um comentário, mas, em vez disso, falou:

— Eu conheço você.

Ao meu lado, Sam ficou paralisado, até ela acrescentar:

— Da livraria, certo? — Sam ergueu os olhos para ela e Olívia assentiu, quase imperceptivelmente.

— É. Da livraria — respondeu ele.

Com os braços ainda cruzados num autoabraço, Olívia passou um dedo pela gola do suéter mas não tirou os olhos de Sam. Parecia estar tentando encontrar as palavras.

— Eu... você usa lentes de contato? Desculpe ser tão direta. Muita gente deve perguntar.

— Uso — disse Sam. — Muita gente pergunta. Eu uso sim.

Algo parecido com desapontamento passou pelo rosto de Olívia.

— São bem legais. Hã... Muito prazer. — Virando-se para mim, disse: — Desculpe. Foi mesmo uma besteira brigar por causa daquilo.

Qualquer coisa que eu tivesse planejado dizer desapareceu quando ela me pediu desculpas.

— Desculpe-me também — respondi, um pouco sem jeito, porque eu não tinha lá muita certeza da razão daquelas desculpas.

Olívia olhou para Sam e depois para mim de novo.

— É. Só que...Você pode me ligar? Mais tarde?

Pisquei os olhos, num sobressalto.

— Claro! Quando?

— Eu... na verdade, posso ligar para você? Não sei quando vai ser uma boa hora. Tudo bem? Posso ligar para o seu celular?

— A qualquer hora. Tem certeza de que não prefere ir a algum lugar e conversar agora?

— Hã, não, agora não. Não posso, por causa do John.

Sacudiu a cabeça e olhou mais uma vez para Sam.

— Ele quer dar uma volta. Mas depois vai ser ótimo falar com você. Hum. Bem. Obrigada, Grace. Mesmo. E sinto muito por aquela briguinha idiota.

Apertei os lábios. Por que ela estava me agradecendo? John pôs a cabeça para fora da livraria:

— Olive! Você vem ou não?

Olívia acenou um tchau para nós e desapareceu na loja com um pequeno plim do sininho da porta.

Sam cruzou as mãos na nuca e soltou um enorme e trêmulo suspiro. Deu alguns passos, fazendo um pequeno círculo na calçada, sem abaixar as mãos.

Adiantei-me e abri a porta do passageiro.

— Você vai me contar o que está havendo? Você só não gosta de tirar fotos ou tem algo mais?

Sam contornou a caminhonete e entrou, batendo a porta como se quisesse deixar do lado de fora Olívia e todo o constrangimento da conversa.

— Desculpe. Só que... eu vi um dos lobos no outro dia e essa coisa do Jack me deixa mal. E Olívia... ela tirou fotos de todos nós. Como lobos. E os meus olhos... fiquei com medo de que ela soubesse mais sobre mim do que estava dizendo e eu... me apavorei. Eu sei. Banquei o doido, não é?

— É. Sua sorte é que ela estava parecendo mais doida do que você. Tomara que ela ligue mais tarde.

Uma sensação de desconforto tomou conta de mim. Sam botou a mão em meu braço.

— Você quer ir comer em algum lugar ou ir direto para casa?

Dei um grunhido e levei a mão à testa.

— Vamos para casa mesmo. Puxa, é tão esquisito não saber do que ela estava falando.

Sam não respondeu, mas tudo bem. Eu estava relembrando, vezes e mais vezes, o que Olívia tinha dito, tentando descobrir por que o diálogo parecera tão esquisito. Tentando descobrir o que não fora dito. Eu deveria ter falado mais alguma coisa depois que ela se desculpou. Mas o que mais poderia ser dito?

Voltamos em silêncio para casa, até que eu percebi como estava sendo egoísta.

— Desculpe, estou estragando nosso encontro.

Estiquei o braço e peguei a mão livre de Sam; ele apertou os dedos em torno dos meus.

— Primeiro eu chorei... o que nunca faço, que fique bem claro... E agora fiquei totalmente absorvida com a Olívia.

— Quieta! — disse Sam, de brincadeira. — Temos o dia inteiro pela frente. E é bom ver você... emotiva... para variar. Em vez de tão irritantemente impassível.

Sorri diante da ideia.

— Impassível? Gostei.

— Imaginei. Mas foi bom não ser o manteiga derretida pelo menos uma vez.

Comecei a rir.

— Eu não usaria essas palavras para descrever você.

— Não pensa em mim como uma flor delicada, em comparação com você? — Como eu ri de novo, ele insistiu: — Está bom, então que palavras você usaria?

Recostei-me no banco, pensando, enquanto Sam me olhava, receoso. Ele tinha razão em temer o que eu diria. Minha mente não funcionava muito bem com palavras... pelo menos não daquele jeito, para descrições e abstrações.

— Sensível — tentei.

Ele traduziu:

— Bobão.

— Criativo.

— Emotivo demais.

— Cuidadoso.

— Feng shui.

Ri tanto que cheguei a roncar.

— Como é que você fez “cuidadoso” virar feng shui?

— Ah, porque no feng shui você arruma os móveis, as plantas e as coisas de um modo bem cuidadoso — disse Sam, dando de ombros. — Para ficar calmo. Zen. Sei lá. Não sei muito bem como funciona, fora a parte do cuidado.

Soquei seu braço, de brincadeira, e olhei pela janela. Estávamos chegando e, passando por uns carvalhos a caminho de casa. Folhas sem brilho, de um laranja meio marrom, secas e mortas, agarravam-se aos galhos e oscilavam ao vento, esperando a rajada que as derrubaria no chão. Era isso o que Sam era: transitório. Uma folha de verão agarrando-se, o máximo que conseguisse, a um galho congelado.

— Você é bonito e triste — falei afinal, sem olhar para ele. — Assim como seus olhos. Você é como uma canção que ouvi quando era criança, mas que esqueci até que a ouvi de novo.

Por um longo momento só houve o som sibilante dos pneus no asfalto, e então Sam disse, baixinho:

— Obrigado.


Fomos para casa e dormimos na minha cama a tarde inteira, nossas pernas cobertas de jeans entrelaçadas e meu rosto enterrado em seu pescoço, o rádio murmurando ao fundo. Mais ou menos à hora do jantar, fomos, meio lentos, até a cozinha em busca de comida. Enquanto Sam fazia sanduíches com todo cuidado, tentei falar com Olívia.

John atendeu.

— Sinto muito, Grace, ela saiu. Quer que eu dê algum recado ou só peça para ela ligar para você?

— Diga a ela para me ligar — falei, sentindo, por alguma razão, que não dera a atenção devida a Olívia.

Desliguei o telefone e passei um dedo pela bancada, distraidamente. Ainda pensava no que ela tinha dito: Uma besteira brigar por causa daquilo.

— Você sentiu, quando entramos, um cheiro lá fora? Nos degraus da frente?

Sam me passou um sanduíche.

— Senti.

— Parecia xixi — eu disse. — Xixi de lobo.

A voz de Sam era de descontento:

— É.

— Quem você acha que foi?

— Eu não acho, eu sei — disse ele. — Foi Shelby. Sinto o cheiro dela. E fez xixi na varanda de novo. Senti o cheiro ontem, quando estive lá.

Me lembrei dos olhos dela, fixos nos meus através da janela do quarto, e fiz uma careta.

— Por que ela está fazendo isso?

Sam balançou a cabeça, e pareceu em dúvida quando falou:

— Só espero que isso seja comigo e não com você. Espero que ela só esteja me seguindo.

Seus olhos se voltaram para o corredor da frente. Ouvi um carro na estrada, distante.

— Acho que é a sua mãe. Vou sumir.

Fiquei ali, intrigada, e ele foi para o meu quarto com seu sanduíche; a porta se fechou sem ruído atrás dele, deixando todas as perguntas e dúvidas sobre Shelby ali comigo.

Lá fora, os pneus alcançavam a frente da casa. Peguei a mochila e me instalei ali sentada, de modo que, quando mamãe entrou, eu estava à mesa da cozinha, contemplando alguns exercícios.

Mamãe entrou como um turbilhão e atirou uma pilha de papéis na bancada da cozinha, trazendo com ela uma lufada de ar frio. Estremeci, torcendo para que Sam estivesse protegido no meu quarto. As chaves de mamãe fizeram barulho ao cair no chão. Ela as pegou, xingando um pouquinho, e jogou-as de volta em cima dos papéis.

— Você já comeu? Estou querendo beliscar alguma coisa. Fomos ao paintball hoje. Quer dizer, o trabalho do seu pai pagou por isso.

Olhei-a intrigada. Metade de meu cérebro ainda pensava em Shelby, no fato de que ela andava espreitando a casa, observando Sam ou me observando. Ou nós dois juntos.

— Hã? Provavelmente para unir o grupo?

Mamãe não respondeu. Abriu a geladeira e perguntou:

— Tem alguma coisa que eu possa comer enquanto vejo TV? Santo Deus! O que é isto?

— Lombo de porco, mãe. É para assar amanhã.

Ela estremeceu e fechou a geladeira.

— Parece uma lesma gigante e fria. Quer ver um filme comigo?

Olhei para além dela, para o hall, procurando papai, mas estava vazio.

— Cadê papai?

— Saiu com os novos colegas de trabalho. Você fala como se eu só convidasse você porque ele não está aqui.

Mamãe saiu fazendo barulho pela cozinha, enquanto se servia de granola e deixava a caixa aberta na bancada para depois bater em retirada para o sofá.

Fossem outros tempos, eu teria dado pulos de alegria diante da rara oportunidade de me enroscar com mamãe no sofá. Mas agora, isso meio que parecia muito pouco, muito tarde. Eu tinha outra pessoa esperando por mim.

— Estou meio esquisita — eu disse à mamãe. — Acho que vou preferir dormir cedo.

Eu queria que ela ficasse de queixo caído, mas só tomei consciência disso quando vi que ela continuou indiferente; só pulou no sofá e agarrou o controle remoto. Quando me virei para sair, ela disse:

— Ah, e não deixe sacos de lixo no deque dos fundos, ok? Tem animais rondando por lá.

— Pode deixar — respondi.

Tive a sensação de que sabia qual era o animal em questão. Deixei mamãe vendo o filme no sofá, peguei meu dever de casa e levei tudo para o quarto. Abrindo a porta, encontrei Sam enroscado na cama, lendo um romance à luz do abajur. Parecia totalmente à vontade. Eu sabia que ele devia ter me ouvido entrar, mas levou alguns instantes para levantar os olhos do livro, terminando o capítulo. Adorei olhar a forma de seu corpo enquanto ele lia, da curva do pescoço inclinado sobre as páginas até as formas longas dos seus pés dentro das meias.

Afinal, ele marcou com o dedo o livro e fechou-o, sorrindo para mim, as sobrancelhas unidas como parte de seu jeito permanentemente triste. Ele esticou o braço como um convite, ao que eu deixei cair os livros aos pés da cama e me juntei a ele, que ficou segurando o livro com uma das mãos e acariciando meu cabelo com a outra. Lemos juntos os três últimos capítulos. Era um livro estranho, em que todos tinham sido levados da Terra exceto o personagem principal e seu par romântico, e eles precisavam escolher entre realizar uma última missão para encontrar os que foram levados ou ter toda a Terra só para eles, repovoando-a como quisessem. Quando terminamos, Sam deitou de barriga para cima e ficou olhando o teto. Desenhei lentos círculos com os dedos em seu peito.

— O que você escolheria? — ele perguntou.

No livro, os personagens foram em busca dos outros, mas acabaram sendo separados e terminando sozinhos. Por algum motivo, a pergunta de Sam fez meu coração bater mais depressa, e, por reflexo, agarrei a camiseta dele.

— Dã — respondi.

Sua boca curvou-se num sorriso.

Só mais tarde percebi que Olívia não tinha retornado meu telefonema. Quando liguei para a casa dela, sua mãe me disse que ela ainda estava na rua.

Uma voz dentro de mim sussurrou: Na rua, onde? Que lugares há em Mercy Falls para alguém ficar na rua?

Naquela noite, quando dormi, sonhei com o rosto de Shelby na janela e os olhos de Jack no bosque.


CAPÍTULO 33

SAM • 5° C

Naquela noite, pela primeira vez em muito tempo, sonhei com os cachorros do sr. Dario.

Acordei suando e trêmulo, com gosto de sangue na boca. Afastei-me de Grace, com medo de que meu coração disparado pudesse despertá--la, e lambi meus lábios ensanguentados. Eu tinha mordido a língua.

Era muito fácil esquecer a violência primitiva do meu mundo quando estava em forma humana, a salvo na cama de Grace. Era fácil nos ver como ela devia nos ver: fantasmas no bosque, silenciosos, mágicos. E se fôssemos apenas lobos, talvez ela tivesse razão em pensar assim. Lobos de verdade não seriam uma ameaça. Mas aqueles não eram lobos de verdade.

O sonho me sussurrou que eu estava ignorando os sinais. Os sinais que mostravam que eu estava trazendo a violência do meu mundo para o de Grace. Lobos na sua escola, na casa de sua amiga e, agora, na dela. Lobos que escondiam corações humanos em seus corpos.

Deitado na cama de Grace no escuro, retesei as orelhas, atento aos sons. Achei que podia ouvir unhas de patas no deque, e imaginei que podia sentir o cheiro de Shelby mesmo através da janela. Eu sabia que ela me queria — queria o que eu representava. Eu era o preferido de Beck — o líder do bando humano — e também de Paul — o líder da alcateia —, além de sucessor lógico de ambos. Em nosso pequeno mundo, eu tinha muito poder.

E, sim, Shelby queria poder.

Os cães de Dario eram prova disso. Quando eu tinha 13 anos e morava na casa de Beck, nosso vizinho mais próximo mudou-se e vendeu sua casa gigantesca para um milionário excêntrico conhecido como sr. Dario. Particularmente, eu não achava o sr. Dario muito impressionante. Um cheiro peculiar sugeria que ele morrera e fora conservado, passava a maior parte do tempo em que estávamos em sua casa explicando o complicado dispositivo de alarme instalado para proteger seu negócio, que envolvia antiguidades (“Ele quer dizer drogas”, me contou Beck depois), e em divagações poéticas sobre os cães de guarda que soltava do lado de fora da casa quando saía.

Então ele nos mostrou os bichos. Eram como gárgulas que haviam voltado à vida, rosnantes máscaras de espuma, a pele pálida e enrugada. Uma raça sul-americana própria para tomar conta de gado, disse o sr. Dario. Ele parecia satisfeito enquanto explicava que os cães dilacerariam o rosto de um homem e o comeriam. A expressão de Beck era dúbia quando ele disse que esperava que o sr. Dario não os deixasse sair da propriedade. Apontando para as coleiras, que tinham pinos metálicos na parte interna (“Dão um choque medonho nos cachorros”, disse Beck depois, e fez um movimento com a mão para indicar a voltagem), o sr. Dario nos assegurou que as únicas pessoas a ter seus rostos dilacerados seriam as que invadissem a propriedade à noite para roubar suas antiguidades. Ele nos mostrou a caixa de energia que controlava as coleiras de choque dos cachorros e os mantinha perto da casa. A caixa estava coberta por uma camada de tinta preta granulosa que deixou manchas escuras em suas mãos.

Parecia que ninguém mais pensava naqueles cães, mas eu fiquei obcecado por eles. Achava que poderiam se soltar e dilacerar Beck ou Paul, rasgando e devorando os rostos deles. Durante semanas, me preocupei com a história dos cachorros, e no calor do verão encontrei Beck na cozinha, de short e camiseta, preparando costeletas para o churrasco.

— Beck?

Ele não desviou os olhos de suas cuidadosas pinceladas.

— O que você quer, Sam?

— Você me ensinaria como matar os cães do sr. Dario?

Ele virou o rosto para me encarar, e eu acrescentei:

— Caso seja preciso.

— Você não vai precisar.

Eu detestava implorar, mas mesmo assim o fiz:

— Por favor.

Beck estremeceu.

— Você não tem estômago para esse tipo de coisa.

Era verdade. Como humano, eu era extremamente sensível à visão de sangue.

— Por favor!

Beck fez uma careta e me disse que não, mas, no dia seguinte, ele levou para casa meia dúzia de galinhas cruas e me ensinou como encontrar a parte fraca das juntas e quebrá-las. Como não desmaiei diante dos ossos das galinhas sendo quebrados, ele trouxe carne vermelha pingando sangue, fazendo meus maxilares tremerem de náusea. Os ossos eram duros, frios e implacáveis sob a força das minhas mãos, impossíveis de quebrar sem encontrar as juntas.

— Já cansou? — perguntou Beck depois de alguns dias.

Neguei com a cabeça. Os cães assombravam meus sonhos e surgiam nas canções que eu escrevia. Então continuamos. Beck achou vídeos caseiros de lutas de cães; juntos vimos os animais arrancarem pedaços uns dos outros. Eu apertava a boca com a mão, o estômago revirado diante de tanto sangue, e observava como alguns cachorros pulavam em busca da jugular e outros atacavam as pernas dianteiras, quebrando-as e deixando os adversários impotentes. Beck me fez observar uma luta especialmente desigual entre um enorme pit bull e um pequeno terrier mestiço.

— Olhe para o cachorrinho. Ele seria você. Quando humano, você é mais forte do que a maioria das pessoas, mas mesmo assim não vai ser tão forte quanto um dos cães do sr. Dario. Agora veja como o pequenino luta. Ele enfraquece o cachorro grande. E depois o sufoca.

Observei o pequeno terrier matar o cachorro maior. E então Beck e eu fomos para fora da casa e lutamos — cão grande, cão pequeno.

O verão se foi. Começamos a nos transformar, um por um, os mais velhos e mais imprudentes primeiro. Logo havia apenas alguns humanos: Beck, por teimosia, Ulrik, por pura astúcia, Shelby, para ficar mais perto de Beck e de mim... e eu, porque era jovem e ainda não tão frágil.

Nunca vou esquecer os sons de uma luta de cães. Quem nunca ouviu não pode imaginar a espécie de selvageria primitiva de dois cachorros decididos a se destruírem. Mesmo como lobo, eu jamais tinha presenciado aquele tipo de luta — membros da alcateia lutavam pelo comando, não para matar.

Eu estava no bosque. Beck tinha me dito para não sair da casa, então é claro que eu saía para caminhar à noite. Tinha metido na cabeça a ideia de escrever uma canção no momento exato entre o dia e a noite, e tinha acabado de rabiscar algumas linhas quando ouvi os cachorros brigando. O som vinha de perto, dali do bosque, não de perto da casa do sr. Dario, mas eu sabia que não podiam ser lobos. Reconheci no mesmo instante o rosnado dilacerante.

Então os avistei. Dois fantasmas gigantes de cães brancos na penumbra do entardecer: os monstros de Dario. Com eles, um lobo preto, lutando, sangrando, rolando na vegetação rasteira. O lobo, Paul, fazia tudo que era recomendado pelo comportamento da alcateia — orelhas caídas, cauda abaixada, cabeça meio virada —, tudo que ele fazia indicava total submissão. Mas os cães não conheciam qualquer comportamento de grupo; tudo o que sabiam era atacar. Então começaram a dilacerar Paul.

— Ei! — gritei, mas minha voz saiu com menos força do que eu esperava. Tentei de novo, e dessa vez foi quase um rosnado: — Ei!

Um dos cães largou a presa e disparou na minha direção; girei e rolei, os olhos no outro demônio branco, seus dentes aferrados na garganta do lobo preto. Paul arquejava em busca de ar, um lado da cara empapado de vermelho. Fui em direção ao cão que o atacava e caímos os três no chão, com um baque. O monstro era pesado, rajado de sangue e puro músculo. Eu quis agarrar sua garganta com uma mão humana desgraçadamente fraca e errei o golpe.

Um peso morto atingiu minhas costas; senti algo morno me escorrer pelo pescoço. Girei a tempo de evitar a mordida fatal de um cachorro, e recebi os dentes de outro no ombro. Senti osso roçar contra osso — a terrível e feroz sensação dos dentes do cão deslizando contra minha clavícula.

— Beck! — berrei.

Era enlouquecedor de tão difícil pensar, sentindo toda aquela dor e assistindo a Paul morrer na minha frente. Mesmo assim, me lembrei do pequeno terrier — rápido, mortal, brutal. Avancei a mão para o cachorro que tinha as presas assassinas no pescoço de Paul. Agarrei-lhe a perna dianteira, encontrei a articulação e não pensei no sangue, não pensei no ruído que aquilo faria, não pensei em coisa alguma exceto na ação mecânica de quebrar um osso.

Crack.

Os olhos do cão rolaram nas órbitas. Ele soltou um silvo pelo focinho mas não largou a presa.

Meu instinto de sobrevivência me gritava para tirar o outro animal de cima de mim; ele se sacudia e moía meu ombro com mandíbulas que pareciam duras como ferro e quentes como fogo. Imaginei estar sentindo meus ossos mudarem de posição, imaginei meu braço sendo arrancado de seu encaixe. Mas Paul não podia esperar.

Eu não conseguia sentir muito bem o braço direito, mas com o esquerdo agarrei parte da garganta do cão e torci, apertei, sufoquei, até ouvir o monstro arquejar. Eu era o pequeno terrier. Incansável, o cão continuava a fazer pressão no pescoço de Paul, mas a minha era igualmente incansável. Tirando o braço debaixo do cão que dilacerava meu ombro, enfiei a mão direita dormente no focinho do primeiro cachorro e tampei suas narinas. Eu não pensava — a mente estava longe, na casa, em algum lugar quente, ouvindo música, lendo um poema, qualquer lugar que não fosse ali, matando.

Por um momento terrível nada aconteceu. Faíscas explodiam diante de meus olhos. Então o cachorro desabou no chão e Paul escapou de suas mandíbulas. Havia sangue por toda parte — meu, de Paul, do cachorro.

— Não o largue!

Era a voz de Beck. E agora eu ouvia passos surdos no bosque.

— Não o largue, ele ainda não morreu!

Eu não conseguia mais sentir as mãos — não conseguia sentir mais coisa alguma —, mas achava que ainda agarrava o pescoço do cão, daquele que mordera Paul. E então senti os dentes no meu ombro darem um solavanco quando o cachorro que me agarrava o pescoço cambaleou. Um lobo, Ulrik, rosnava e se atirava para o pescoço dele, arrancando-o de mim.

Houve um barulho alto e seco, e percebi que era um tiro. Outro estampido soou, muito mais perto, e um solavanco sob meus dedos. Ulrik se afastou de nós, respirando com dificuldade. E a seguir o silêncio foi tão absoluto que meus ouvidos zumbiram.

Beck, com gentileza, tirou minhas mãos da garganta do cão morto e as apertou sobre meu ombro. O fluxo de sangue diminuiu; no mesmo instante comecei a me sentir melhor, pois meu destroçado porém inacreditável corpo começava a curar a si mesmo.

Beck ajoelhou-se à minha frente. Tremia de frio, a pele cinzenta, os ombros curvados numa linha estranha.

— Você o pegou de jeito, hein? Salvou Paul. Aquelas pobres galinhas não foram um desperdício.

Por trás dele, silenciosa, Shelby tinha os braços cruzados observando Paul arquejar entre as folhas ressecadas e mortas. Observando Beck e eu com as cabeças juntas. Seus punhos estavam fechados, e numa das mãos havia uma mancha granulada e preta.

Agora, na suave obscuridade do quarto de Grace, cheguei mais perto dela e pus o rosto em seu ombro. Estranho que meus momentos mais violentos tivessem sido como humano e não como lobo.

Vindo de fora, ouvi um nítido arranhar de unhas no deque. Fechei os olhos e tentei me concentrar no som do coração de Grace.

O gosto de sangue na boca me lembrou o inverno.

Eu sabia que Shelby tinha soltado aqueles cachorros.

Ela me queria no topo do bando, com ela a meu lado, e Paul estava no meu caminho. E agora Grace estava no dela.


CAPÍTULO 34

GRACE • 9° C

Os dias se embaralharam numa colagem de imagens comuns: o frio ao cruzar o estacionamento da escola, o lugar vazio de Olívia na sala de aula, a respiração de Sam em meu ouvido, marcas de patas na grama congelada do nosso quintal.

Quando o fim de semana chegou, eu estava sem fôlego de tanto esperar, embora não soubesse ao certo o que estava esperando. Sam estivera agitado na noite anterior, atormentado por um pesadelo, e parecia tão mal no sábado de manhã que, em vez de fazer qualquer plano para sair, só o deixei no sofá depois que meus pais foram a um brunch na casa de um amigo.

Me aconcheguei no ombro de Sam enquanto ele zapeava por vários filmes ruins. Escolhemos um suspense de ficção científica cujo custo de produção, sem dúvida, era menor do que o preço da minha caminhonete Bronco. Tentáculos de borracha se estendiam por toda parte quando Sam afinal disse alguma coisa:

— Isso incomoda você? Que seus pais sejam do jeito que são?

Aninhei meu rosto em sua axila. O local cheirava muito a Sam.

— Não vamos falar sobre eles.

— Vamos falar sobre eles, sim.

— Por quê? O que há para dizer? Está tudo bem. Eles são legais. São do jeito que são.

Os dedos de Sam gentilmente encontraram meu queixo e levantaram meu rosto.

— Grace, não está tudo bem. Eu estou por aqui há... quantas semanas agora? Nem sei. Mas de uma coisa eu sei, não está tudo bem.

— Eles são quem são. Eu nunca soube que os pais dos outros fossem diferentes dos meus até entrar para a escola. Até começar a ler. Mas a sério, Sam, está tudo bem.

Minha pele queimava. Tirei o rosto da mão dele e olhei para a tela da televisão, onde um carro compacto afundava numa substância viscosa.

— Grace — disse Sam com suavidade. Ele estava sentado, imóvel, como se, dessa vez, eu é que fosse o animal selvagem que poderia desaparecer se ele movesse um músculo. — Você não precisa fingir para mim.

O carro na TV se desmantelava em pedaços, junto com o motorista e o passageiro. No mudo, era difícil dizer o que estava acontecendo, mas parecia que os pedaços se transformavam em tentáculos. Havia um cara passeando com o cachorro ao fundo, e ele nem sequer parecia perceber que alguma coisa ocorria. Como poderia não perceber?

Não olhei para Sam, mas sabia que ele estava olhando para mim, não para a televisão.

Não sei o que ele imaginava que eu fosse dizer. Eu não tinha o que dizer. Aquilo não era um problema. Era um estilo de vida.

Os tentáculos na tela começavam a se arrastar pelo chão, procurando o monstro original para poderem se religar a ele. Mas não tinha como, o alienígena original estava se incendiando em Washington D.C., derretendo perto de uma maquete do Monumento a Washington. Os novos tentáculos teriam que atormentar o mundo sozinhos.

— Por que eu não consigo fazer com que eles me amem mais?

Eu tinha dito aquilo? Não parecera a minha voz. Os dedos de Sam percorreram meu rosto, mas não havia lágrimas. Eu estava muito longe das lágrimas.

— Grace, eles amam você. A questão não é você. O problema é com eles.

— Eu me esforcei tanto. Nunca me meto em encrencas. Sempre faço os deveres de casa. Eu é que preparo a droga da comida para eles, quando estão em casa, ou seja, nunca... — Definitivamente, não era a minha voz. Eu nunca falava palavrão. — E quase morri, duas vezes, mas isso não mudou nada. Não é que eu queira que eles fiquem pulando à minha volta. Eu só queria, um dia, só queria...

Não consegui terminar a frase, porque não sabia como terminava. Sam me puxou para seus braços.

— Ah, Grace, desculpe. Eu não queria fazer você chorar.

— Não estou chorando.

Ele passou o polegar, com cuidado, pelo meu rosto, e me mostrou a lágrima presa na ponta do dedo. Me sentindo uma idiota, deixei que ele me pusesse no colo e que me aconchegasse debaixo do queixo. Ali, no confortável abrigo de seus braços, recuperei minha voz de verdade:

— Talvez eu seja boa demais. Se eu me metesse em encrencas na escola ou incendiasse a garagem dos outros, eles iam ter que prestar atenção em mim.

— Você não é assim. Você sabe que não é —disse ele. — Seus pais são pessoas fúteis e egoístas, só isso. Desculpe ter perguntado, ok? Vamos só ficar vendo este filme idiota.

Encostei o rosto no peito dele e ouvi o tum-tum de seu coração. Parecia tão normal, só um coração humano comum. Ele já estava como humano havia tanto tempo que eu quase não conseguia detectar seu leve cheiro do bosque, ou me lembrar de como era enterrar os dedos em seu pelo. Sam aumentou o volume dos alienígenas e ficamos muito tempo sentados daquele jeito, uma criatura em dois corpos, até que eu me esquecesse do que tinha me perturbado e voltasse a ser eu mesma.

— Eu queria ter o que você tem — falei.

— O que é que eu tenho?

— Seu bando. Beck. Ulrik. Quando você fala deles, vejo o quanto são importantes para você. Eles fizeram de você esta pessoa aqui. — Apertei o dedo em seu peito. — Eles são maravilhosos, portanto você é maravilhoso.

Sam fechou os olhos e disse:

— Isso eu não sei. — Voltou a abri-los: — De qualquer maneira, seus pais também fizeram de você quem você é. Você acha que seria tão independente se eles ficassem mais tempo por perto? Pelo menos você é alguém quando eles estão longe. Sinto como se eu não fosse quem eu era antes. Porque grande parte de ser eu mesmo é estar com Beck, Ulrik e os outros.

Ouvi um carro chegar e manobrar. Sabia que Sam também ouvira.

— Hora de sumir — disse ele.

Mas segurei seu braço.

— Estou cansada de ficar me escondendo. Acho que já é hora de você conhecê-los.

Ele não discutiu, mas lançou um olhar preocupado na direção da porta.

— E agora é o fim — falou.

— Não seja melodramático. Eles não vão matá-lo.

Ele me olhou. O rubor subiu ao meu rosto.

— Sam, eu não quis dizer... Santo Deus. Desculpe.

Eu queria desviar os olhos de seu rosto mas não conseguia, como se estivesse testemunhando uma batida de carro. Continuei esperando o choque, mas a expressão dele não mudou. Era como se houvesse uma pequena desconexão entre as lembranças que ele tinha dos pais e suas emoções, um leve emperramento que piedosamente o mantinha inteiro.

Ele veio em meu socorro mudando de assunto, o que foi uma enorme generosidade:

— Devo bancar o namorado simpático ou somos apenas bons amigos?

— Namorado. Não vou fingir.

Sam se afastou alguns centímetros e puxou o braço que estava sob a minha cabeça, pousando-o nas costas do sofá atrás de mim. Então disse para a parede:

— Alô, pais de Grace. Eu sou o namorado dela. Por favor, observem a casta distância entre nós. Sou muito responsável e nunca pus a língua na boca da sua filha.

A porta se abriu e nós dois pulamos com risos nervosos e simultâneos.

— É você, Grace? — disse a voz tranquila de mamãe do corredor. — Ou é um ladrão?

— Ladrão — respondi.

— Vou fazer xixi nas calças — Sam murmurou em meu ouvido.

— Tem certeza que é você, Grace?

Mamãe parecia em dúvida. Não estava acostumava a me ver rir.

— Rachel está aí?

Papai entrou primeiro na sala e, ao ver Sam, parou.

Num movimento quase imperceptível, Sam virou a cabeça apenas o suficiente para que a luz não incidisse em seus olhos amarelos, um gesto automático que me fez compreender pela primeira vez que ele apresentava um comportamento bizarro mesmo antes de ser lobo.

Os olhos de papai estavam sobre Sam, apenas olhando. Sam o olhava de volta, tenso mas não apavorado. Será que ele continuaria ali sentado com tanta calma se soubesse que papai tinha participado do grupo de caça no bosque? Eu de repente sentia vergonha do meu pai, apenas mais um humano que os lobos precisavam temer; estava contente por não ter contado a Sam.

Minha voz estava tensa.

— Papai, este é Sam. Sam, este é papai.

Papai o encarou por mais uma fração de segundo, e então abriu um grande sorriso.

— Por favor, me diga que você é um namorado.

Os olhos de Sam se arregalaram por completo e eu soltei a respiração com um profundo suspiro.

— É, papai, ele é um namorado.

— Bem, isso é uma boa notícia. Eu estava começando a pensar que você não fazia esse tipo de coisa.

— Papai.

— O que está acontecendo aí?

A voz de mamãe era distante. Ela já estava na cozinha, vasculhando a geladeira. A comida do brunch devia ter sido ruim.

— Quem é Sam?

— Meu namorado.

Com mamãe veio uma sempre presente nuvem de vapores de terebintina; havia tinta em seus antebraços. Conhecendo mamãe, eu podia apostar que ela se deixava ficar suja de tinta daquele jeito de propósito, quando saía. Ela olhou para mim e para Sam e outra vez para mim, com cara de ironia.

— Mamãe, este é Sam. Sam, mamãe.

Senti o cheiro de emoções saindo dos dois, embora não fosse capaz de dizer exatamente quais eram. Mamãe fitava os olhos de Sam, encarando-os sem parar, e Sam parecia colado ao lugar. Soquei seu braço.

— Muito prazer — disse ele, a voz automática.

— Mamãe — sibilei. — Mamãe. Terra para mamãe.

Para crédito dela, seu ar era levemente desconcertado quando saiu do transe. Desculpando-se, disse a Sam:

— Seu rosto me parece muito familiar.

É. Claro. Como se até uma criança não pudesse ver que aquilo era uma desculpa esfarrapada por encarar tanto os olhos dele.

— Eu já trabalhei na livraria no centro.

A voz de Sam era esperançosa.

Mamãe balançou um dedo para ele.

— Aposto que é isso.

Ela o olhou radiante, usando seu sorriso de cem watts, apagando qualquer atrocidade social que tivesse cometido.

— Bem, prazer em conhecê-lo. Vou lá para cima trabalhar um pouco.

Mostrou os braços pintados, indicando o que queria dizer com “trabalho”, e senti um breve lampejo de irritação contra ela. Sabia que seus flertes em série eram só hábito, uma reação automática a qualquer desconhecido que tivesse chegado à puberdade, mas mesmo assim... Cresça.

Sam me surpreendeu:

— Gostaria de ver seu ateliê já que estou por aqui, se não se importar. Grace me falou um pouco do seu trabalho, e eu adoraria ver alguma coisa.

Aquilo era verdade, em parte. Eu tinha falado com ele sobre uma exposição dela especialmente nauseante à qual eu tinha ido: todos os quadros tinham nomes de tipos de nuvens, mas eram retratos de mulheres em roupas de banho. A expressão “arte com significado” flutuou pela minha cabeça. Eu não entendia. Não queria entender.

Mamãe deu um sorriso amarelo. Devia estar pensando que Sam compreendia a arte com significado da mesma forma que eu.

Olhei para Sam, estranhando-o. Aquele tipo de bajulação não era muito a cara dele. Depois que mamãe desapareceu no andar de cima e papai se enfurnou em seu escritório, perguntei:

— Você quer apanhar?

Sam tirou o mudo da televisão a tempo de vermos uma mulher ser comida por algo com tentáculos. Tudo que sobrou depois do ataque foi um braço com cara de artificial caído na calçada.

— Só acho que devo fazer sua mãe gostar de mim.

— A única pessoa nesta casa que tem que gostar de você sou eu. Não se preocupe com eles.

Sam pegou uma almofada do sofá e abraçou-a, apertando-a contra o rosto. Sua voz saiu abafada:

— Ela pode ter que me aguentar por muito tempo, entende?

— Quanto tempo?

Seu sorriso foi extremamente doce.

— O máximo possível.

— Para sempre?

Os lábios dele sorriam, mas, por trás do sorriso, seus olhos amarelos ficaram tristes, como se ele soubesse que era mentira.

— Mais ainda.

Aproximei-me dele, ajeitei-me debaixo do seu braço e voltamos a assistir ao alienígena de tentáculos se infiltrar no sistema de esgotos de uma cidade que nem suspeitava do que acontecia. Sam passeava os olhos pela tela, como se ele estivesse de fato assistindo à fútil batalha intergaláctica, mas eu só fiquei ali sentada tentando entender por que Sam tinha que se transformar e eu, não.


CAPÍTULO 35

SAM • 9° C

Depois que terminou o filme (o mundo foi salvo, mas com um alto número de vítimas civis), me sentei com Grace à pequena mesa de café da manhã perto da porta que dava para o deque e observei-a fazer o dever de casa por algum tempo. Meu cansaço era inimaginável — o clima mais frio me consumia como uma dor, mesmo não tendo força suficiente para fazer com que eu me transformasse —, e eu teria preferido me encolher na cama de Grace ou no sofá para tirar um cochilo. Mas o meu lado lobo estava inquieto e era incapaz de dormir com gente estranha por perto. Então, para me manter acordado, deixei Grace no andar de baixo fazendo os deveres à luz que entrava pelas janelas, cada vez mais fraca, e subi para ver o ateliê.

Foi fácil encontrá-lo; havia apenas duas portas no corredor de cima, e de uma delas vinha um cheiro químico de laranja. A porta estava entreaberta. Empurrei-a e fiquei observando: todo o cômodo estava brilhantemente iluminado por refletores com lâmpadas destinadas a reproduzir a luz natural, e o efeito ficava entre um deserto ao meio-dia e uma loja do Wal-Mart.

As paredes estavam cobertas por enormes telas que se apoiavam em todas as superfícies disponíveis. Deslumbrantes aglomerados de cores, figuras realistas em poses não realistas, formas normais em cores anormais, o inesperado em lugares comuns. Os quadros davam ao observador a sensação de cair dentro de um sonho, onde tudo que se conhece é apresentado de modo não familiar.


Tudo é possível nesta exuberante toca de coelho

O que me deste é retrato ou espelho?

Todos estes sonhos povoarão num lampejo

O adorável deserto de cores que vejo.


Parei diante de duas pinturas em tamanho maior do que o natural, encostadas numa das paredes. Ambas mostravam um homem beijando o pescoço de uma mulher, poses idênticas mas cores radicalmente diferentes. Uma era toda em vermelhos e roxos. Era brilhante, feia, comercial. A outra era sombria, azul, lilás, difícil de ser interpretada. Minimalista e adorável. Me lembrou de quando eu beijara Grace na livraria, da sensação de tê-la em meus braços, ardente e real.

— De qual você gosta?

A voz da mãe dela soava animada e convidativa. Imaginei que fosse sua voz de galeria, a que usava para atrair os visitantes e suas carteiras para seu raio de visão, a fim de capturá-los.

Indiquei a tela azul com a cabeça.

— Sem dúvida, esta.

— É mesmo?

Parecia sinceramente surpresa.

— Nunca ninguém disse isso antes. Aquela ali é muito mais popular — disse, aproximando-se para que eu pudesse vê-la apontando a vermelha. — Já vendi centenas de reproduções dela.

— É muito bonita — eu disse, com simpatia.

Ela riu.

— É medonha. Sabe como se chamam?

Apontou para a tela azul e depois para a vermelha.

— Amor e Luxúria.

Sorri para ela.

— Acho que fracassei no teste de testosterona, não foi?

— Só porque escolheu a Amor? Eu não acho, mas sou só eu. Grace me disse que era uma bobagem pintar a mesma coisa duas vezes. Disse que os olhos dele estão perto demais nas duas telas, aliás.

Eu ri.

— É bem algo que ela diria. Mas Grace não é artista.

Sua boca assumiu uma expressão pesarosa.

— Não. Ela é muito prática. Não sei de quem puxou isso.

Fui andando devagar até o conjunto de telas seguinte — animais selvagens caminhando entre cabides de roupas, cervo empoleirado em janelas altas, peixe espiando de uma calha de chuva.

— Isso decepciona você — disse eu.

— Ah, não. Não. Grace é Grace, temos que simplesmente aceitá-la do jeito que é.

Ela se deixou ficar um pouco para trás, permitindo que eu olhasse as telas, anos de bom treinamento de vendas numa prática inconsciente.

— E imagino que ela vá ter uma vida mais fácil, porque vai conseguir um emprego normal, bom, e será eficiente e estável.

Não olhei para ela quando respondi:

— Desconfio que mamãe se ressente demais.

Ouvi seu suspiro.

— Acho que todos querem que os filhos se pareçam com eles. Grace só se importa com números e livros e o modo como as coisas funcionam. Para mim, é difícil entendê-la.

— E vice-versa.

— É. Mas você é artista, não é? Deve ser.

Dei de ombros. Tinha percebido um estojo de violão perto da porta do ateliê, e estava louco para achar acordes para algumas melodias que me rodavam pela cabeça.

— Não com tinta. Toco um pouco de violão.

Houve uma longa pausa enquanto ela me observava olhar para um quadro de uma raposa espiando por trás de um carro parado, e então perguntou:

— Você usa lentes de contato?

Já tinham me perguntado aquilo tantas vezes que eu nem me surpreendia mais quando alguém o fazia.

— Não — respondi.

— Estou tendo um terrível bloqueio com meu trabalho no momento. Adoraria fazer um rápido estudo de você. — Ela riu. Um som bastante acanhado. — Foi por isso que fiquei olhando tanto para você lá embaixo. Fiquei pensando que seu cabelo preto e seus olhos dariam um estudo de cor surpreendente. Você me lembra os lobos que existem no nosso bosque. Grace lhe contou sobre eles?

Meu corpo ficou rígido. De repente tudo pareceu sufocante demais, como se ela estivesse bisbilhotando, sobretudo depois do encontro com Olívia. Meu instinto imediato de lobo foi fugir como um raio. Descer voando a escada, abrir a porta com um empurrão e mergulhar na segurança do bosque. Precisei de vários e longos momentos para dominar a vontade de correr e me convencer de que era impossível que ela soubesse, de que eu estava lendo coisas demais em suas palavras. E de mais alguns para perceber que estava ali de pé, sem falar, havia tempo demais.

— Puxa... eu não queria deixá-lo sem graça. — Suas palavras tropeçavam umas nas outras. — Você não precisa posar para mim. Sei que algumas pessoas se sentem realmente constrangidas. E você provavelmente quer descer para ficar com Grace.

Me senti obrigado a consertar minha indelicadeza.

— Não, não, tudo bem. Quero dizer, fico mesmo meio constrangido de posar. Posso fazer alguma coisa enquanto você me pinta? Sabe, para eu não ter que ficar só sentado olhando para o nada?

Ela correu para o cavalete.

— Pode! Claro que pode! Por que não toca o violão? Ah, isso vai ser ótimo. Obrigada. Você pode se sentar ali, debaixo daquelas luzes.

Enquanto eu pegava o violão, a mãe de Grace correu de cá para lá no ateliê, várias vezes, trazendo uma cadeira para mim, ajustando os refletores e estendendo uma folha de papel laminado amarelo para refletir luz dourada num dos lados do meu rosto.

— Preciso fazer esforço para ficar parado?

Ela acenou para mim com um pincel, como se isso respondesse à pergunta, depois colocou uma nova tela sobre o cavalete e espremeu montinhos de tinta preta numa paleta.

— Não, não, pode tocar à vontade.

Então afinei o violão e me sentei ali sob a luz dourada. E toquei e cantarolei baixinho algumas músicas, pensando em todas as vezes que tinha me sentado no sofá de Beck e tocado canções para o bando, em Paul me acompanhando com seu violão e nós dois cantando juntos. Ao fundo, eu ouvia o raspar da espátula na paleta e o roçar do pincel na tela e me perguntei o que a mãe de Grace estaria fazendo com meu rosto enquanto eu estava distraído.

— Estou ouvindo você cantarolar — disse ela. — Você canta?

Dei um resmungo, ainda dedilhando as cordas à toa. Seu pincel não parava de se mover.

— As músicas são suas?

— São.

— Já escreveu alguma para Grace?

Eu tinha escrito milhares de músicas para Grace.

— Já.

— Eu ia gostar de ouvir.

Não parei de tocar, só modulei com cuidado para um tom maior. Pela primeira vez naquele ano, cantei alto. Era a canção mais feliz que eu já escrevera, e a mais simples.


Apaixonei-me por ela no verão, minha linda garota de verão

De verão ela é feita, minha linda garota de verão

Eu queria muito passar um inverno com minha linda garota de verão

Mas nunca me aqueço o bastante para minha linda garota de verão

É verão quando ela sorri, fico rindo como criança

É o verão das nossas vidas; vamos fazê-lo durar

Ela guarda o calor, a brisa do verão no círculo da sua mão

Ficarei feliz com este verão se for só o que tivermos


Ela olhou para mim.

— Não sei o que dizer. — E me mostrou o braço: — Estou toda arrepiada.

Coloquei o violão no chão com muito cuidado para que as cordas não emitissem nenhum som. De repente pareceu muito urgente passar meus momentos, tão preciosos e escassos, com Grace.

E, no instante em que tomei essa decisão, houve um terrível baque no andar de baixo. O ruído foi tão alto e estranho que por um momento a mãe de Grace e eu apenas nos entreolhamos, franzindo o cenho, como se não pudéssemos acreditar que aquele barulho pudesse ter acontecido.

Então houve o grito.

Logo depois, ouvi um rosnado, e saí correndo do ateliê antes que ouvisse mais alguma coisa.


CAPÍTULO 36

SAM • 9° C

Me lembrei do rosto de Shelby quando ela perguntou:

— Quer ver minhas cicatrizes?

— De quê? — respondi.

— De quando fui atacada. Pelos lobos.

— Não.

Ela me mostrou mesmo assim. Sua barriga estava encaroçada, cicatrizes que desapareciam sob o sutiã.

— Depois que me morderam, eu parecia um hambúrguer.

Eu não queria saber.

Shelby não abaixou a camiseta.

— Deve ser terrível quando matamos. Ser morto por nós, lobos, deve ser a pior forma de morrer.


CAPÍTULO 37

SAM • 5° C

Um tumulto de sensações me assaltou assim que entrei na sala. O terrível ar gelado me feriu os olhos e me revirou o estômago. Logo percebi o buraco irregular na porta que dava para o deque dos fundos; pedaços de vidro quebrado quase caindo da moldura, e cacos finos, manchados de rosa, espalhados por todo o chão, refletindo a luz.

A cadeira ao canto estava virada. Parecia que alguém tinha jogado tinta vermelha no chão, inúmeras manchas errantes lambuzando o trecho que ia da porta até a cozinha. Então senti o cheiro de Shelby. Por um momento fiquei ali, imobilizado pela ausência de Grace, pelo ar gélido e pelo fedor de sangue e de pelos molhados.

— Sam!

Tinha que ser Grace, embora sua voz soasse estranha e irreconhecível — como se alguém estivesse fingindo ser ela. Avancei aos tropeções, escorregando nas manchas de sangue, agarrando a maçaneta para me puxar para a cozinha.

À luz agradável da cozinha, a cena era surreal. Marcas ensanguentadas de patas nos levaram até onde Shelby tremia e se contorcia, com Grace imprensada contra o armário. Grace lutava e chutava, mas Shelby era maciça e fedia a adrenalina. Vi um lampejo de dor nos olhos de Grace, franco e amplo, antes que Shelby desse um puxão em seu corpo. Eu já tinha visto aquela imagem antes.

Não senti mais o frio. Vi uma frigideira de ferro em cima do fogão e a agarrei; meu braço doeu com o peso. Eu não queria atingir Grace — bati com a frigideira no lombo de Shelby.

Shelby rosnou para mim, os dentes mordendo o ar. Não precisávamos falar a mesma linguagem para que eu soubesse o que ela estava dizendo. Fique longe. Uma imagem encheu meu campo de visão, clara, perfeita, hipnotizante: Grace deitada no chão da cozinha, desmoronando, morrendo, enquanto Shelby assistia. Fiquei paralisado pela nitidez daquele quadro que invadiu minha mente — devia ter sido daquela maneira que eu mostrara a imagem do bosque dourado a Grace. A lembrança dela arquejando para respirar era afiada como navalha.

Larguei a frigideira e me atirei sobre Shelby.

Agarrei seu focinho, que se aferrava ao braço de Grace, e deslizei a mão para trás, até a mandíbula. Afundando as unhas na pele tenra, enfiei os dedos para dentro, até a traqueia, até que Shelby ganisse. Suas presas se abriram o suficiente para que eu empurrasse o armário com os pés e tirasse Shelby de cima de Grace. Cambaleamos pelo chão, as unhas de Shelby arranhando os ladrilhos e meus sapatos rangendo e escorregando no sangue que pingava dela.

Furiosa, Shelby rosnava sob mim, avançando os dentes para meu rosto mas parando pouco antes de me morder. A imagem de Grace sem vida no chão continuava a girar na minha cabeça.

Me lembrei dos ossos de galinha.

Em minha mente, eu via com perfeição como seria matar Shelby.

Ela se afastou de mim e se soltou das minhas mãos num solavanco, como se lesse meus pensamentos.

— Papai, não, cuidado! — gritou Grace.

Uma arma explodiu, bem perto.

Por um breve instante, o tempo parou. Não parou de verdade. Meio que dançou e tremeu no mesmo lugar, as luzes bruxuleando e diminuindo e depois reaparecendo. Se aquele momento fosse algo real, teria sido uma borboleta, batendo asas e flutuando na direção do Sol.

Shelby escorregou das minhas mãos, como um peso morto, e eu caí de costas em cima do armário atrás de mim.

Ela estava morta. Ou pelo menos quase, porque ainda tremia. Mas eu só pensava na bagunça que eu tinha feito no chão da cozinha. Olhei fixo para os quadrados brancos do chão, os olhos seguindo as linhas que meus sapatos tinham feito no sangue e encontrando a única pegada vermelha de lobo no centro da cozinha que, de algum modo, tinha ficado perfeitamente preservada.

Eu não conseguia entender por que cheirava tanto a sangue, então olhei para baixo, para meus braços que tremiam, e vi vermelho espalhado pelas minhas mãos e meus pulsos. Com esforço, lembrei que era o sangue de Shelby. Ela estava morta. Aquele sangue era dela. Não meu. Dela.

Meus pais contavam devagar, contagem regressiva, e o sangue transbordava de minhas veias.

Eu ia vomitar.

Eu era gelo.

Eu

— Temos que tirá-lo dali! — A voz da garota, de tão alta, perfurava o silêncio. — Levá-lo para um lugar quente. Eu estou bem. Eu estou bem. Eu só... me ajudem a levá-lo!

Suas vozes chegavam rasgantes aos meus ouvidos, vozes demais, altas demais. Senti um movimento em torno de mim, seus corpos e minha pele girando e rodopiando, mas bem dentro de mim havia uma parte completamente imóvel.

Grace. Me agarrei a esse nome. Se eu o conservasse em mente, ficaria bem.

Grace.

Eu tremia, me debatia; minha pele se soltava de mim.

Grace.

Meus ossos se comprimiam, me apertavam, pressionavam meus músculos.

Grace.

Os olhos dela sustentavam os meus mesmo depois que parei de sentir seus dedos em meus braços.

— Sam — disse ela —, não vá.


CAPÍTULO 38

GRACE • 3° C

— Quem faria isso a uma criança?

Mamãe fez uma careta. Eu não sabia se era pelo que eu acabara de contar ou se pelo cheiro de urina e antisséptico do hospital.

Dei de ombros e me retorci, desconfortável na cama do hospital. Na verdade, eu não precisava estar ali. O corte em meu braço nem tinha precisado de pontos. Eu só queria ver Sam.

— Então ele está mesmo mal. — Mamãe franziu o cenho, olhando para a televisão que havia acima do leito, embora o aparelho estivesse desligado. Não esperou que eu respondesse. — Ora, é claro. Claro que está. Tem que estar. Ninguém passa por isso sem ficar mal. Pobre garoto. Ele parecia estar mesmo sofrendo.

Eu só esperava que mamãe parasse de tagarelar sobre aquilo quando Sam acabasse de falar com a enfermeira. Eu não queria me lembrar de seus ombros curvados, da forma antinatural que seu corpo assumira em reação ao frio. E esperava que Sam entendesse por que eu contara a mamãe sobre seus pais: ela saber a respeito disso era melhor do que ela saber a respeito dos lobos.

— Eu já disse, mamãe. Ele fica muito perturbado quando se lembra disso. Claro que ele surtou quando viu os braços cobertos de sangue. É um condicionamento clássico, ou seja lá como chamam isso. Procure no Google.

Mamãe envolveu os braços em si mesma.

— Mas se ele não estivesse lá...

— É, eu teria morrido, blá-blá-blá. Mas ele estava lá. Por que todo mundo está muito mais perturbado com isso do que eu?

Muitas das marcas dos dentes de Shelby tinham agora se transformado em machucados feios — embora eu não cicatrizasse nem de longe tão depressa quanto Sam quando levara o tiro.

— Porque você não tem instinto de sobrevivência, Grace. Você é como um tanque, vai em frente, só isso, pensando que nada pode detê--la, até que encontra um tanque maior. Tem certeza de que quer namorar alguém com esse tipo de história? — Mamãe pareceu gostar de sua própria teoria. — Ele pode ter um surto psicótico. Li que as pessoas manifestam isso quando chegam aos 28 anos. Ele pode ser quase normal e então de repente virar psicopata. Bem, você sabe que eu nunca disse o que você deveria fazer com a sua vida. Mas e se... e se eu lhe pedisse para não vê-lo mais?

Eu não esperava por aquilo. Minha voz foi cortante:

— Eu diria que, em virtude do seu comportamento falho como mãe até este momento, você abriu mão da possibilidade de ter qualquer poder sobre mim. Sam e eu estamos juntos. Isso não é uma opção.

Mamãe levantou as mãos como se tentasse parar o tanque Grace antes que passasse sobre ela.

— Tudo bem. Sem problemas. Mas tome cuidado, está bom? Seja lá com o que for. Vou pegar algo para beber.

E pronto, com isso se esgotaram suas energias de mãe. Ela fizera o papel de mãe nos levando para o hospital, observando a enfermeira cuidar de meus ferimentos, e me alertando sobre meu namorado psicótico. E agora sua missão estava cumprida. Era óbvio que eu iria sobreviver, então ela estava liberada.

Alguns minutos depois que mamãe saiu, a porta se abriu. Sam veio até perto da minha cama, parecia pálido e cansado sob as luzes esverdeadas. Cansado, mas humano.

— O que fizeram com você? — perguntei.

Sua boca se torceu num sorriso sem qualquer senso de humor.

— Fizeram um curativo num corte que cicatrizou assim que o cobriram. O que você disse a ela?

Ele olhou em volta, à procura de mamãe.

— Contei sobre seus pais e disse que era isso o que havia de errado com você. Ela acreditou em mim. Tranquilo. Você está bem? Você está... — Eu não sabia direito o que estava perguntando. Afinal, falei:

— Papai me disse que ela morreu. Shelby. Acho que não conseguiu se recuperar como você. Foi rápido demais.

Sam segurou meu pescoço e me beijou. Encostou a testa na minha e ficamos nos encarando; parecia que tínhamos um olho só.

— Eu vou para o inferno.

— O quê?

Seu olho único piscou.

— Porque eu deveria estar me sentindo mal com a morte dela.

Recuei para poder observar sua expressão: estranhamente vazia. Eu não sabia o que dizer diante daquela informação, mas Sam veio ao meu socorro pegando minhas mãos e apertando-as.

— Eu sei que deveria estar chateado. Mas só me sinto como se tivesse parado um míssil gigantesco. Eu não me transformei, você está bem e, no momento, ela é só uma coisa a menos com que me preocupar. Eu só me sinto... me sinto bêbado.

— Mamãe acha que você veio com defeito — eu disse.

Sam me beijou de novo, fechou os olhos por um momento e me beijou uma terceira vez, de leve.

— E é verdade. Você quer fugir?

Eu não sabia se ele estava falando em fugir do hospital ou dele.

— Sr. Roth? — Uma enfermeira apareceu à porta. — O senhor pode ficar aqui, mas, para isso, precisa se sentar.

Assim como eu, Sam precisou tomar uma série de injeções contra raiva — procedimento padrão hospitalar para ataques não provocados de animais. Não podíamos dizer à equipe que Sam conhecia o animal pessoalmente, e que o dito animal era homicida e não raivoso. Me afastei um pouco para abrir espaço para Sam, que se sentou a meu lado com um olhar intranquilo para a seringa nas mãos da enfermeira.

— Não olhe para a agulha — aconselhou ela enquanto levantava a manga ensanguentada de Sam com luvas de borracha.

Ele desviou os olhos, virando-os para o meu rosto, mas seu olhar estava distante e fora de foco, a mente em algum outro lugar enquanto a enfermeira enfiava a agulha em sua pele. Enquanto eu a via esvaziar a seringa, fantasiei que aquela era uma cura para Sam — verão líquido injetado direto em suas veias.

Houve uma batida na porta e outra enfermeira pôs a cabeça para dentro do quarto.

— Já terminou, Brenda? — perguntou a segunda enfermeira. — Acho que precisam de você no 302. Tem uma garota surtando lá.

— Mas que ótimo! — a enfermeira número 1, com um profundo sarcasmo. — Vocês dois estão liberados.

Para mim, ela disse:

— Vou levar os papéis para sua mãe quando eu terminar.

— Obrigado — disse Sam, e pegou a minha mão.

Descemos juntos o corredor e, por um estranho momento, eu me senti como na primeira noite em que nos encontramos, como se o tempo simplesmente não tivesse passado.

— Espere — eu disse, quando passamos pela sala de espera da emergência, e Sam parou.

Examinei a sala cheia, mas a mulher que pensei ter visto não estava mais lá.

— Quem você está procurando?

— Achei que tinha visto a mãe de Olívia.

Examinei mais uma vez a sala de espera, mas ali só havia rostos desconhecidos.

Vi as narinas de Sam tremerem e suas sobrancelhas se estreitarem um pouco mais, mas ele não disse uma palavra enquanto nos dirigíamos às portas de vidro do hospital. Do lado de fora, mamãe já parara o carro perto do meio-fio, sem saber o enorme favor que fizera a Sam.

Mais além, pequenos flocos de neve rodopiavam, o frio delicadamente corporificado. Os olhos de Sam estavam nas árvores do outro lado do estacionamento, pouco visíveis às luzes da rua. Fiquei me perguntando se ele estaria pensando no frio mortal que entrava pelas frestas da porta ou no corpo quebrado de Shelby, que nunca seria humano de novo. Ou se, como eu, ainda pensava na imaginária seringa cheia de verão líquido.


CAPÍTULO 39

SAM • 5° C

Minha vida em retalhos: domingo tranquilo, o hálito de Grace cheirando a café, a visão pouco familiar da nova cicatriz no meu braço, o cheiro perigoso de neve no ar. Dois mundos diferentes cercando um ao outro, aproximando-se cada vez mais, enlaçando-se de um modo que eu jamais imaginara.

Minha quase transformação do dia anterior ainda pairava sobre mim, a obscura lembrança do cheiro de lobo preso em meus cabelos e nas pontas dos meus dedos. Teria sido tão fácil desistir. Mesmo agora, 24 horas depois, eu sentia como se meu corpo ainda lutasse contra aquilo

Estava tão cansado.

Tentei relaxar lendo um romance, encolhido num enorme puff de couro, quase cochilando. Desde que a temperatura do anoitecer começara a cair drasticamente nos últimos dias, vínhamos passando o tempo livre no escritório pouquíssimo usado do pai de Grace. Além do quarto dela, esse era o lugar mais quente e com menos correntes de ar da casa. Eu gostava do escritório. As paredes eram cobertas de enciclopédias de lombadas escuras alinhadas, velhas demais para serem úteis, e entremeadas por placas de madeira escura com prêmios por corridas de maratona, velhas demais para terem algum sentido. Todo o cômodo era muito pequeno e marrom, uma toca de coelho feita de couro escuro, madeira cheirando a fumaça e a envelopes pardos: era um local para se manter seguro e produzir.

Grace estava sentada à mesa fazendo o dever de casa, os cabelos iluminados como num quadro antigo por duas luminárias de mesa, douradas e foscas. Sua posição, com a cabeça inclinada em intensa concentração, prendia minha atenção de um jeito que o livro não conseguia.

Percebi que sua caneta estava parada havia algum tempo. Perguntei:

— Em que está pensando?

Ela girou a cadeira para ficar de frente para mim e tamborilou os lábios com a caneta. Era um gesto charmoso que me dava vontade de beijá-la.

— Lavadoras e secadoras. Estava pensando que, quando sair de casa, vou ter que mandar as roupas para a lavanderia ou comprar uma máquina de lavar.

Continuei apenas a observá-la, hipnotizado e horrorizado por essa estranha visão que eu tivera do funcionamento de sua mente.

— Era isso o que estava distraindo você dos seus exercícios?

— Eu não estava distraída — retrucou, tensa. — Estava só me dando um descanso desse conto idiota que tenho que ler para a aula de inglês.

Girou para sua posição inicial e voltou a se debruçar na mesa.

Tudo ficou em silêncio por um tempo. Mesmo assim, porém, ela continuava com a caneta pairando sobre o papel. Afinal, sem levantar a cabeça, falou:

— Você acha que tem cura?

Fechei os olhos e suspirei.

— Ah, Grace.

Ela insistiu:

— Então me fale. É ciência? Ou é magia? O que você é?

— Isso importa?

— Claro — disse ela, e sua voz soava frustrada. — A magia seria inatingível. A ciência tem suas curas. Você nunca se perguntou como tudo começou?

Não abri os olhos.

— Um dia um lobo mordeu um homem e o homem foi infectado. Magia ou ciência, dá no mesmo. A única coisa mágica a respeito disso é que não se pode explicar.

Grace se calou, mas eu podia sentir sua inquietação. Fiquei ali sentado em silêncio, escondido atrás do livro, sabendo que ela precisava das minhas palavras — palavras que eu não estava querendo pronunciar. Eu não sabia qual de nós estava sendo mais egoísta: ela, por querer algo que ninguém poderia prometer, ou eu, por não lhe prometer algo que era dolorosamente impossível para se querer.

Antes que um de nós dois pudesse quebrar aquele silêncio desconfortável, a porta do escritório foi aberta e o pai dela entrou, a silhueta enevoada pela mudança de temperatura. Examinou o lugar, registrando as mudanças que tínhamos feito. O pouco usado violão do ateliê da mãe de Grace apoiado na cadeira em que eu estava. Minha pilha de livros usados na mesinha ao lado. A arrumada coleção de lápis bem--apontados na escrivaninha. Seus olhos se demoraram na cafeteira que Grace tinha levado para satisfazer sua dependência de cafeína; ele parecia tão fascinado pelo objeto quanto eu ficara antes. Uma cafeteira de tamanho infantil. Para bebês começando a andar que precisassem de um rápido estimulante.

— Cheguei. Vocês se apoderaram do meu escritório?

— Ninguém fazia nada com ele — disse Grace, sem levantar os olhos dos exercícios. — Era útil demais para ser desperdiçado. E agora você não vai poder tê-lo de volta.

— Obviamente — observou ele.

Olhou para mim, afundado em sua cadeira.

— O que está lendo?

— Bel Canto — disse eu.

— Nunca ouvi falar. É sobre o quê?

Apertou os olhos para examinar a capa; dei-lhe o livro para que pudesse vê-la.

— Cantores de ópera e como picar cebolas. E armas.

Para minha surpresa, a expressão do pai dela se iluminou e se encheu de compreensão.

— Parece algo que a mãe de Grace leria.

Grace se virou em sua cadeira para a escrivaninha.

— Pai, o que você fez com o corpo?

— O quê?

— Depois que atirou. O que fez com o corpo?

— Ah. Botei no deque.

— E?

— E o quê?

Grace afastou-se da escrivaninha, irritada.

— E o que fez com ele depois? Eu sei que você não o largou lá, para apodrecer no deque.

Uma lenta sensação de enjoo começava a dar nós no meu estômago.

— Grace, por que isso é tão importante? Tenho certeza de que sua mãe tomou conta de tudo.

Ela apertou a testa com os dedos.

— Pai, como você pode achar que mamãe o tirou dali? Ela estava com a gente no hospital!

— Na verdade, nem pensei muito no assunto. Eu ia chamar o serviço da prefeitura para pegar o corpo, mas ele tinha desaparecido na manhã seguinte, então achei que um de vocês tivesse ligado para lá.

Grace emitiu um pequeno ruído estrangulado.

— Pai! Mamãe não sabe nem pedir uma pizza! Como é que ela ia ligar para a prefeitura?

Ele deu de ombros e mexeu a sopa que tinha na mão.

— Coisas muito mais estranhas já aconteceram. De qualquer maneira, não vale a pena se irritar por isso. Então o corpo deve ter sido arrastado do deque por algum animal selvagem. Acho que outros animais não pegam hidrofobia de um bicho morto.

Grace só cruzou os braços e lhe lançou um olhar furioso, como se aquele comentário fosse imbecil demais para merecer uma resposta.

— Não fique emburrada — disse ele, e empurrou mais a porta com o ombro para poder sair. — Não fica bem.

A voz dela era gelada:

— Eu tenho que tomar conta de tudo sozinha.

O pai sorriu para ela, com carinho, de algum modo reduzindo o efeito da raiva que ela sentia.

— Estaríamos perdidos sem você, claro. Não fique acordada até muito tarde.

A porta se fechou atrás dele com um leve clique, e Grace olhou fixo para as estantes de livros, a escrivaninha, a porta fechada. Qualquer coisa menos o meu rosto.

Fechei o romance sem marcar a página.

— Ela não morreu — concluí.

— Minha mãe deve ter chamado o serviço para recolhê-la — disse Grace para a escrivaninha.

— Sua mãe não fez isso. Shelby está viva.

— Sam. Cale a boca. Por favor. Não sabemos. Um dos outros lobos pode ter arrastado o corpo dela da varanda. Não tire conclusões precipitadas.

Ela olhou para mim, afinal, e vi que Grace, apesar de sua total incapacidade de ler as pessoas, desvendara o que Shelby era para mim. Meu passado se agarrava a mim, tentando me roubar mesmo antes que o inverno o fizesse.

Senti como se as coisas me escapassem. Eu tinha encontrado o paraíso e me agarrava a ele tão apertado quanto podia, mas ele se desfazia, um fio muito frágil escorregando entre meus dedos, fino demais para que eu pudesse segurá-lo.


CAPÍTULO 40

SAM • 14° C

Então fui atrás deles.

Todos os dias, quando Grace estava na escola, eu procurava por eles, os dois lobos em que não confiava e que supostamente teriam morrido. Mercy Falls era pequena. O Bosque da Fronteira era... não tão pequeno, porém mais familiar, e talvez mais disposto a me entregar seus segredos.

Eu encontraria Shelby e Jack e os confrontaria em meus próprios termos.

Mas Shelby não deixara pegadas, então talvez tivesse realmente morrido. E Jack também não estava em lugar algum; uma trilha fria e morta. Um fantasma que não deixara um corpo para trás. Eu sentia como se tivesse vasculhado todo o estado em busca de sinais dele.

Pensei — tive uma leve esperança — que ele tivesse morrido também e deixado de ser um problema. Atropelado por algum veículo do Departamento de Transporte e jogado numa caçamba em algum lugar. Mas não havia pegadas levando a estradas, nenhuma árvore marcada, nenhum cheiro de lobo recém-criado flutuando no estacionamento da escola. Ele tinha desaparecido tão completamente quanto a neve no verão.

Eu deveria estar contente. Desaparecer significava discrição. Desaparecer significava que ele não era mais problema meu.

Mas eu simplesmente não conseguia aceitar aquilo. Nós, lobos, fazíamos muitas coisas: nos transformávamos, nos escondíamos, cantávamos sob uma Lua pálida e solitária — mas nunca desaparecíamos por completo. Seres humanos desapareciam. Os humanos nos tornavam monstros.


CAPÍTULO 41

GRACE • 12° C

Sam e eu éramos como cavalos num carrossel. Seguíamos a mesma trilha vezes sem conta — casa, escola, casa, escola, livraria, casa, escola, casa etc. —, mas, na verdade, estávamos girando em torno da grande questão, sem nunca nos aproximarmos nem minimamente. O verdadeiro ponto central: Inverno. Frio. Perda.

Não falávamos sobre a possibilidade que se aproximava, mas eu sentia que sempre podia perceber a sombra gelada que era lançada sobre nós. Uma vez, numa coletânea realmente terrível de mitos gregos, li uma história sobre um homem chamado Dâmocles, que tinha uma espada pendurada sobre seu trono, presa por um único fio de cabelo. Assim estávamos nós — a humanidade de Sam pendurada por um fio a ponto de arrebentar.

Na segunda-feira, ainda levada pelo carrossel, voltei à escola, como sempre. Embora apenas dois dias se tivessem passado desde que Shelby me atacara, até o hematoma tinha desaparecido. Parecia haver em mim um pouco da capacidade de cicatrização dos lobisomens, afinal de contas.

Fiquei surpresa ao notar a ausência de Olívia. No ano anterior ela não tinha faltado à aula nem um dia.

Continuei a esperar que ela entrasse na sala durante a primeira das duas aulas que fazíamos juntas antes do almoço, mas ela não apareceu. Fiquei olhando para a carteira vazia. Ela poderia só ter ficado doente, mas uma parte de mim que eu tentava ignorar dizia que havia algo mais. Na quarta aula, deslizei para o meu lugar habitual atrás de Rachel.

— Ei, Rachel, você tem visto a Olívia?

Ela olhou para mim.

— Ahn?

— Olívia. Ela não faz ciências junto com você?

Rachel deu de ombros.

— Não sei dela desde sexta-feira. Quando eu liguei, a mãe me disse que ela estava doente. Mas e você, fofa? Por onde andou esse fim de semana? Nunca liga, nunca escreve.

— Fui mordida por um guaxinim — respondi. — Tive que tomar vacina antirrábica e tirei o domingo para dormir. Para ter certeza de que não ia começar a espumar pela boca e atacar os outros.

— Que nojo. Onde ele a mordeu?

Apontei para a calça jeans.

— No tornozelo. Quase não aparece. Mas estou preocupada com Olívia. Não tenho conseguido falar com ela pelo telefone.

Rachel franziu a testa e cruzou as pernas. Como sempre, usava listras, dessa vez uma meia-calça listrada. Respondeu:

— Eu também não. Você acha que ela está nos evitando? Ainda está zangada com você?

— Acho que não.

Rachel fez uma careta:

— Nós estamos bem, não estamos? Quer dizer, a gente não tem se falado. Sobre coisas, você sabe. Têm acontecido coisas. Mas a gente não tem, sabe, se falado. Ou aparecido uma na casa da outra. Ou seja o que for.

— Com a gente, tudo bem — falei com firmeza.

Ela coçou a meia-calça listrada de arco-íris, mordeu o lábio e então disse:

— Você acha que a gente deveria, sei lá, ir à casa de Olívia e ver se consegue encontrá-la?

Não respondi logo, e ela não me pressionou. Aquele era um território pouco familiar para nós. Nunca tínhamos precisado fazer esforço para que nosso trio permanecesse unido. Eu não sabia se ir atrás de Olívia era a coisa certa a fazer ou não. Parecia meio drástico, mas quanto tempo fazia que não a víamos ou falávamos com ela?

Falei, devagar:

— E se esperarmos até o fim da semana? Se até lá não tivermos notícias dela, então...

Rachel assentiu, parecendo aliviada.

— Fechado.

Ela voltou a girar na carteira enquanto o sr. Rink, à frente da classe, limpava a garganta para chamar nossa atenção.

— Então, pessoal, vocês provavelmente já ouviram isso várias vezes dos professores hoje, mas não fiquem por aí lambendo os bebedores de água ou beijando estranhos, está bem? O Departamento de Saúde relatou alguns casos de meningite nesta região do estado. E isso se pega... de qualquer um! Secreção nasal! Muco! Beijar e lamber! Não façam isso!

Houve assobios de aprovação nos fundos da sala.

— Já que não podem fazer nada disso, vamos fazer algo quase tão bom. Estudar ciências sociais! Abram os livros na página 112.

Dei outra olhada para a porta, pela milésima vez, esperando ver Olívia entrar, e abri meu livro.

No intervalo do almoço, corri até o saguão e telefonei para a casa de Olívia. Tocou 12 vezes e caiu na secretária eletrônica. Não deixei recado; se ela estava matando aula por alguma outra razão que não fosse estar doente, eu não queria que a mãe dela me ouvisse perguntando onde ela se enfiara no horário das aulas. Estava prestes a fechar meu armário quando notei que o zíper do menor bolsinho da minha mochila estava semiaberto. Um pedaço de papel saía dali, com meu nome escrito. Desdobrei-o, e meu rosto ficou subitamente quente quando reconheci a letra irregular e feia de Sam.


“Vezes e vezes seguidas, entretanto, conhecemos a linguagem do amor e o pequeno cemitério ali, com seus nomes melancólicos, e o abismo terrivelmente silencioso no qual os outros caem: vezes e vezes seguidas nós dois andamos juntos sob árvores antigas, nos deitamos vezes e vezes seguidas sobre as flores, face a face com o céu.”


É Rilke. Eu queria ter escrito isso para você.

Não entendi aquilo tudo muito bem, mas, pensando em Sam, eu o li em voz alta, sussurrando para mim mesma as palavras. Em minha boca, as formas das palavras se tornaram lindas. Dei um sorriso, mesmo sem ninguém por perto para vê-lo. Minhas preocupações ainda estavam lá, mas, por um instante, flutuei acima delas, aquecida pela lembrança de Sam.

Não quis perder meus sentimentos tranquilos e extasiados no refeitório barulhento, então fui para a sala vazia da aula seguinte e me sentei. Joguei o livro de inglês em cima da carteira e alisei o bilhete para lê-lo de novo.

Ali, sentada na sala de aula vazia e ouvindo os sons distantes dos alunos barulhentos no refeitório, eu me lembrei de uma vez ter me sentido mal durante uma aula e ser mandada para a enfermaria da escola. A sala da enfermaria dava aquela mesma sensação abafada de distância, como se fosse um satélite do planeta agitado que era a escola. Eu tinha passado muito tempo ali depois de ser atacada pelos lobos, sofrendo com aquele resfriado que provavelmente não tinha sido um resfriado de verdade.

Por um tempo imenso fiquei olhando para o celular aberto, lembrando de quando fui mordida. Lembrando que havia ficado doente por causa disso. Que havia ficado boa. Por que eu tinha sido a única a me recuperar?

— Mudou de ideia?

Meu queixo se contraiu ao som da voz, e me vi encarando Isabel na carteira ao lado. Para minha surpresa, ela não parecia tão perfeita como sempre. Sob seus olhos havia olheiras, só em parte ocultas pela maquiagem, e nada disfarçava seus olhos injetados.

— Como?

— Sobre Jack. Em dizer se sabe alguma coisa a respeito dele.

Olhei para ela, temerosa. Eu tinha ouvido dizer que advogados nunca fazem uma pergunta da qual já não saibam a resposta, e a voz de Isabel era surpreendentemente segura.

Ela enfiou na bolsa o braço longo e bronzeado artificialmente e puxou de lá um maço de papéis. Pousou-o em cima de meu livro de poesias.

— Sua amiga deixou cair isso.

Levei um momento para perceber que se tratava de uma pilha de papéis fotográficos brilhantes e que as imagens na minha frente deviam ser impressões de fotos da máquina digital de Olívia. Meu estômago deu uma cambalhota. As primeiras eram do bosque, nada especialmente notável. E então lá estavam os lobos. O lobo malhado maluco, parcialmente escondido entre as árvores. E aquele lobo preto — Sam tinha me dito seu nome? Hesitei, os dedos nos cantos do papel, pronta para passar à seguinte. Ao meu lado, a tensão de Isabel era visível, me preparando para ver o que havia na foto seguinte. Eu sabia que qualquer coisa que Olívia tivesse captado naquele filme seria difícil de explicar.

Impaciente, Isabel se inclinou para a frente e arrancou as primeiras cópias do maço.

— Passe para a próxima.

Era uma foto de Jack. Jack como lobo. Um close de seus olhos num focinho de lobo.

E a seguinte era do próprio Jack. Como pessoa. Nu.

A foto tinha uma espécie de poder cru, artístico, quase com um ar de pose no modo com que os braços de Jack se enrolavam em seu corpo, a cabeça virada sobre o ombro em direção à câmera, mostrando arranhões na curva longa e pálida das costas.

Mordi o lábio e examinei seu rosto nas duas versões. Nenhuma foto dele se transformando, mas a semelhança dos olhos era devastadora. Aquele close do focinho do lobo — aquele era ouro puro. E então caiu a ficha do que aquelas fotos realmente significavam, sua verdadeira importância. Não que Isabel soubesse. Mas Olívia sim. Olívia tirara aquelas fotos, portanto estava claro que devia saber. Mas desde quando, e por que não me contara?

— Diga alguma coisa.

Afinal, ergui os olhos das fotos e encarei Isabel.

— O que quer que eu diga?

Ela deixou escapar um muxoxo irritado.

— Você está vendo as fotos. Ele está vivo. Está bem ali.

Voltei à foto de Jack, olhando fixo lá de dentro do bosque. Parecia gelado em sua nova pele.

— Não sei o que você quer que eu diga. O que quer de mim?

Isabel parecia estar lutando consigo mesma. Por um segundo, tive a impressão de que ela ia me morder; então fechou os olhos. Abriu-os e olhou para longe, para o quadro-negro.

— Você não tem irmão, tem? Irmão nenhum, não é?

— Não. Sou filha única.

Ela deu de ombros.

— Então não sei como explicar. Ele é meu irmão. Achei que ele tivesse morrido. Mas ele não morreu. Está vivo. Está bem ali, mas não sei onde é. Não sei o que é isso. Mas eu acho... acho que você sabe. Só que você não me ajuda.

Ela me encarou e seus olhos brilharam, ferozes.

— O que foi que eu fiz para você?

Tropecei nas palavras. A verdade era que Jack era irmão dela. Achei que ela tinha o direito de saber. Se pelo menos não fosse Isabel quem perguntava. Eu disse:

— Isabel... você deve saber por que eu tenho medo de falar com você. Eu sei que você nunca me fez nada, pessoalmente. Mas conheço gente que você destruiu. Então... me diga, por que devo confiar em você?

Isabel arrancou as fotos das minhas mãos e enfiou-as de volta na bolsa.

— Pelo que você acaba de falar. Porque eu nunca fiz nada a você, pessoalmente. Ou talvez porque eu acho que seja lá o que for que haja de errado com Jack... acho que é a mesma coisa que há de errado com o seu namorado.

Fiquei absurdamente paralisada ao pensar nas fotos que eu não tinha visto naquele maço. Será que Sam estava ali? Talvez Olívia soubesse sobre os lobos havia muito mais tempo do que eu. Tentei repassar exatamente o que ela tinha dito durante nossa discussão, procurando me lembrar de qualquer duplo sentido. Isabel me encarava, esperando que eu dissesse alguma coisa, e eu não sabia o que dizer. Afinal, retruquei:

— Pare de me olhar desse jeito. Deixe-me pensar.

A porta da sala de aula ressoou quando os alunos começaram a entrar. Rasguei uma folha do meu bloco e rabisquei meu número de telefone.

— Meu celular. Me ligue depois da aula e vamos descobrir um lugar para nos encontrarmos.

Isabel pegou o número. Esperava ver satisfação em seu rosto, mas para minha surpresa ela parecia tão tonta quanto eu. Os lobos eram um segredo que ninguém queria compartilhar.


— Temos um problema.

Sam virou-se no banco do motorista para me olhar.

— Você não deveria estar na escola ainda?

— Saí mais cedo. — A última aula era de artes. Ninguém sentiria mesmo falta de mim e de minha medonha escultura em argila e arame. — Isabel sabe.

Sam ficou me olhando por um instante.

— Quem é Isabel?

— A irmã de Jack, lembra?

Diminuí o aquecimento — Sam tinha ajustado para a temperatura do inferno — e deixei a mochila cair a meus pés. Expliquei o confronto, sem mencionar como a foto do Jack humano era horripilante.

— Não tenho ideia do que mostravam as outras fotos.

Sam ignorou a pergunta de Isabel:

— Eram fotos tiradas por Olívia?

— Eram.

Havia preocupação por todo o seu rosto.

— Estou pensando se isso tem algo a ver com o jeito como Olívia se comportou na livraria. Comigo.

Quando não respondi, ele olhou para o volante, ou para qualquer outra coisa além dele.

— Se ela sabia o que somos, isso torna bastante lógico o comentário dela sobre meus olhos. Estava tentando nos fazer confessar.

— É, é verdade. Isso faria todo sentido.

Ele suspirou profundamente.

— De repente, estou pensando no que Rachel disse. Sobre o lobo que esteve na casa de Olívia.

Fechei os olhos e os abri de novo, ainda vendo a imagem de Jack com os braços enroscados em torno de si mesmo.

— Ai. Não quero pensar nisso. E quanto a Isabel? Não posso ficar fugindo dela. E não posso continuar mentindo; fico parecendo uma idiota.

Sam esboçou um sorriso.

— Bem, eu perguntaria que tipo de gente ela é e o que você acha que deveríamos fazer...

— ...mas eu sou péssima para interpretar pessoas — terminei por ele.

— Foi você quem falou, não eu. Lembre-se disso.

— Ok, mas o que vamos fazer? Por que sinto que eu sou a única em pânico aqui? Você está completamente... calmo.

Sam deu de ombros.

— Total falta de preparo para uma coisa dessas, talvez. Não sei o que planejar fazer sem conhecê-la. Se eu tivesse conversado com Isabel quando ela estava com as fotos, talvez estivesse preocupado, mas agora, neste instante, não consigo pensar nisso concretamente. Não sei, Isabel parece o tipo de nome que tem um som agradável.

Dei uma gargalhada.

— Indo pelo caminho errado...

Ele fez um ar melodramático, e seu rosto retorcido em agonia foi tão exagerado que fez com que eu me sentisse melhor.

— Ela é uma pessoa horrível?

— Sempre achei — respondi, dando de ombros. — Mas e agora? Ela ainda está sob julgamento. Então, o que vamos fazer?

— Acho que temos que nos encontrar com Isabel.

— Nós dois? Onde?

— É, nós dois. O problema não é só seu. Não sei onde. Algum lugar tranquilo. Um lugar em que eu possa ter uma impressão dela antes de resolver o que contar. — Ele franziu a testa: — Ela não seria o primeiro parente a descobrir.

Pela expressão de seu rosto, eu soube que ele não poderia estar falando dos pais — se estivesse, ele continuaria com o semblante pesado.

— Não?

— A mulher de Beck sabia.

— Sabia?

— Câncer no seio. Foi muito tempo antes de eu virar lobo. Nunca a conheci. Só descobri a respeito dela por Paul, e por acaso. Beck não queria que eu soubesse. Acho que porque a maior parte das pessoas não lida bem conosco, e ele não queria que eu pensasse que podia sair por aí e arranjar minha própria esposa, uma garotinha legal e tudo mais.

Parecia injusto que duas tragédias tão grandes atingissem um casal. Percebi, tarde demais para comentar, que eu quase tinha deixado passar a amargura pouco comum em sua voz. Pensei em dizer alguma coisa, perguntar de Beck, mas o momento se fora, perdido no barulho quando Sam ligou o rádio e pisou no acelerador.

Ele deu marcha a ré e saiu do estacionamento, a testa cheia de rugas de tanto pensar.

— Danem-se as regras — disse Sam. — Quero me encontrar com ela.


CAPÍTULO 42

SAM • 12° C

As primeiras palavras que eu ouvi de Isabel foram:

— Posso perguntar por que diabos estamos indo fazer quiche em vez de falar sobre meu irmão?

Ela acabava de sair de um grande carro branco que ocupava toda a entrada de carros dos Brisbane. A primeira coisa que notei nela foi a altura — talvez por conta dos saltos de 13 centímetros de suas botas prontas para chutar alguém —, depois os cachos — porque havia mais deles em sua cabeça do que na de uma boneca de porcelana.

— Não — respondeu Grace, e adorei o jeito como ela disse isso, sem possibilidade de negociação.

Isabel emitiu um ruído que, se transformado num míssil, teria força suficiente para arrasar um país de pequeno porte.

— Então posso perguntar quem é ele?

Olhei a tempo de vê-la conferindo a minha bunda. Ela desviou o olhar enquanto eu dizia o mesmo que Grace respondera antes:

— Não.

Seguimos Grace para dentro de sua casa. Virando-se para Isabel no corredor de entrada, ela disse:

— Não faça perguntas sobre Jack. Minha mãe está em casa.

— É você, Grace? — chamou sua mãe do andar de cima.

— Sim! Estamos fazendo quiche!

Grace pendurou o casaco e fez um gesto para que a imitássemos.

— Eu trouxe algumas coisas do ateliê, pode tirar tudo do caminho! — gritou a mãe em resposta.

Isabel fez cara de desgosto e continuou com seu casaco forrado de pele, enfiando as mãos nos bolsos e mantendo distância enquanto Grace empurrava caixas para as paredes, abrindo espaço no meio da confusão. Isabel parecia totalmente deslocada na cozinha confortavelmente entulhada de coisas. Eu não conseguia concluir se seus perfeitos cachos artificiais faziam o piso não muito branco parecer mais patético ou se o piso velho e trincado fazia o cabelo dela parecer mais perfeito e falso. Até então, eu nunca tinha visto aquela cozinha como gasta.

Isabel recuou mais ainda quando Grace enrolou as mangas e lavou as mãos na pia.

— Sam, ligue o rádio e ache alguma coisa boa, está bem?

Encontrei um pequeno aparelho de som na bancada, entre algumas latas de sal e açúcar, e liguei-o.

— Meu Deus, vamos mesmo fazer quiche — gemeu Isabel. — Achei que era um código para alguma outra coisa.

Eu ri. Ela sentiu meu olhar e virou para mim um rosto angustiado. Mas sua expressão era exagerada demais. Não acreditei em todo aquele sofrimento. Alguma coisa em seus olhos me fizeram pensar que estava no mínimo curiosa com a situação. E a situação era a seguinte: eu não confiaria em Isabel até ter certeza absoluta do tipo de gente que ela era.

Então a mãe de Grace entrou na cozinha, exalando vapores de terebintina que lembravam o cheiro de laranja.

— Oi, Sam. Também fazendo quiche?

— Tentando — disse eu, com franqueza.

Ela riu.

— Que divertido. Quem é esta?

— Isabel — disse Grace. — Mãe, você sabe onde está aquele livro de receitas verde? Sempre ficou bem aqui. A receita da quiche está nele.

A mãe deu de ombros, impotente, e ajoelhou-se perto de uma das caixas no chão.

— Deve ter ido dar uma volta. Que negócio é esse saindo do rádio? Sam, você pode fazer melhor do que isso.

Enquanto Grace vasculhava alguns livros de receitas empilhados num canto da bancada, eu percorria as estações de rádio, até que a mãe de Grace disse: “Pare aí!”. Era uma estação de música pop com uma pegada funk. Ela ficou parada, segurando uma caixa.

— Acho que cumpri minha missão por aqui. Divirtam-se, crianças. Volto... qualquer hora dessas.

Grace mal pareceu perceber a saída da mãe. Fez um gesto na minha direção:

— Isabel, os ovos, o queijo e o leite estão na geladeira. Sam, precisamos fazer uma massa de torta comum. Você pode pré-aquecer o forno a 230 graus e nos arranjar algumas panelas?

Isabel olhava fixo para o interior da geladeira.

— Tem uns oito mil queijos diferentes aqui. Para mim são todos iguais.

— Você cuida do forno, deixe que o Sam pega o queijo e as outras coisas. Ele conhece comida — disse Grace.

Ela estava na ponta dos pés para pegar a farinha de trigo na parte de cima do armário; seu corpo se esticava lindamente, fazendo que eu desejasse, com uma urgência absurda, tocar a pele nua na parte inferior de suas costas, exposta com o movimento. Mas aí ela puxou a farinha para baixo e eu perdi a chance, então troquei de lugar com Isabel, peguei um pedaço de um forte queijo cheddar, os ovos e o leite e botei tudo em cima da bancada.

Grace já estava ocupada em misturar manteiga e farinha numa tigela quando terminei de quebrar os ovos e comecei a batê-los com um pouco de maionese. A cozinha estava de repente cheia de atividade, como se fôssemos uma legião.

— Que diabo é isto? — perguntou Isabel, olhando para um pacote que Grace lhe entregara.

Grace sufocou com uma gargalhada.

— Cogumelos.

— Parece que saíram do traseiro de uma vaca.

— Eu adoraria essa vaca — disse Grace, passando por Isabel para pôr um pouco de manteiga numa frigideira. — Seu traseiro valeria milhões. Refogue esses aí por alguns minutos até ficarem lindos e apetitosos.

— Quanto tempo?

— Até ficarem apetitosos — repeti.

— Você ouviu o rapaz — disse Grace, me estendendo a mão. — Formas!

— Ajude Grace — eu disse a Isabel. — Deixe que eu cuido dos cogumelos apetitosos, já que você não sabe fazer.

— Eu já sou apetitosa — murmurou Isabel.

Passou duas formas a Grace, que esticou com habilidade a massa de torta — mágica — no fundo de cada uma e começou a mostrar a Isabel como fazer o acabamento das bordas. Todo o processo lhe parecia muito íntimo; tive a impressão de que Grace poderia ter feito aquilo tudo muito mais rápido sem mim e Isabel em seu caminho.

Isabel me viu sorrir diante da cena das duas ocupadas com as bordas da massa.

— Está rindo de quê? Cuide dos seus cogumelos!

Resgatei os cogumelos a tempo e acrescentei o espinafre que Grace me enfiou nas mãos.

— Meu rímel!

A voz de Isabel elevou-se acima da zoeira crescente. Olhei em sua direção: ela e Grace riam e choravam enquanto cortavam cebolas. Então o poderoso perfume dos pedacinhos de cebola atingiu meu nariz e fez meus olhos arderem também.

Ofereci às duas minha frigideira com os cogumelos refogados.

— Joguem aqui. Vai diminuir um pouco o cheiro.

Isabel passou-as da tábua de carne para a panela, e Grace bateu no meu traseiro com a mão coberta de farinha. Virei o pescoço tentando ver se deixara marca, enquanto ela passava a mão na sobra de farinha para obter uma cobertura melhor e tentava de novo.

— É a minha música! — anunciou Grace de repente. — Aumenta! Aumenta!

Era Mariah Carey em sua pior forma, mas perfeita para o momento. Aumentei o som até que os pequenos alto-falantes começassem a zumbir de encontro às latas ao lado. Peguei a mão de Grace, puxei-a para mim, e começamos a dançar como se fôssemos audaciosos, tremendamente desajeitados e insuportavelmente sexy, ela colada em mim com as mãos no ar e meus braços nada castos num ponto logo abaixo de sua cintura.

Pensei comigo mesmo: A vida é medida por momentos como esse. Grace inclinou a cabeça para trás, o pescoço longo e pálido apoiado no meu ombro, estendendo os lábios para um beijo. Pouco antes de beijá-la, vi Isabel observar com olhos tristes minha boca tocar a de Grace.

— Digam para quanto tempo devo ajustar o timer — falou Isabel, percebendo que eu a notara e desviando o olhar. — E depois quem sabe a gente pode conversar...?

Grace ainda se apoiava em mim, presa em meus braços, coberta de farinha e tão inteiramente comestível que meu corpo doeu de desejo para ficar sozinho com ela, ali, agora. Ela fez um gesto preguiçoso para o livro de receitas aberto na bancada, inebriada com a minha presença. Isabel consultou a receita e ajustou o timer do forno.

Houve um momento de silêncio quando percebi que tínhamos terminado. Então respirei fundo e encarei Isabel.

— Está bom. Vou lhe dizer o que há de errado com Jack.

Tanto Isabel quanto Grace pareceram perplexas.

— Vamos sentar — sugeriu Grace, saindo dos meus braços. — A sala é por ali. Vou levar café.

Então Isabel e eu fomos até a sala, que, assim como a cozinha, eu só percebi que era abarrotada com Isabel ali. Para se sentar, ela precisou tirar do sofá uma pilha de roupa lavada. Eu não queria me sentar ao lado dela, então me instalei na cadeira de balanço à sua frente.

Olhando para mim com o canto dos olhos, Isabel perguntou:

— Por que você não é como Jack? Por que fica se transformando toda hora?

Não movi um músculo. Se Grace não tivesse me avisado até que ponto Isabel tinha adivinhado a situação, era provável que eu me assustasse.

— Eu comecei bem antes. Quanto mais tempo você está nessa situação, mais estável se torna. No princípio, a gente fica passando de uma forma para a outra o tempo todo. A temperatura influencia um pouco, mas não tanto quanto depois.

Ela disparou no mesmo instante outra pergunta:

— Foi você quem fez isso com Jack?

Deixei que a repugnância transparecesse em meu rosto.

— Não sei quem fez. Há alguns como nós, e nem todos são boa gente.

Não mencionei a arma de chumbinho de Jack.

— Por que ele está tão cheio de raiva?

Dei de ombros.

— Não sei. Porque é uma pessoa cheia de raiva?

A expressão de Isabel tornou-se... aguçada.

— Olhe, ser mordido não faz da pessoa um monstro — disse eu. — Faz dela apenas um lobo. A gente é o que é. Quando somos lobos, ou quando estamos nos transformando, não temos as inibições humanas. Então, se alguém é, por natureza, raivoso ou violento, fica pior ainda.

Grace entrou carregando com dificuldade três canecas de café. Isabel pegou a que tinha a imagem de um castor, eu a com o nome de um banco. Grace juntou-se a Isabel no sofá.

Isabel fechou os olhos por um instante.

— Vamos ver se eu entendi direito: meu irmão não foi realmente morto por lobos. Ele só foi ferido por eles e então virou um lobisomem? Desculpem, estou deixando de lado toda a coisa de morto-vivo. E não tem a história de luas e balas de prata e um monte de baboseira desse tipo?

— Ele se curou sozinho, mas levou um tempo — disse eu. — Ele nunca esteve morto de fato. Não sei como fugiu do necrotério. Essa coisa de Lua e balas de prata não passa de mito. Não sei como explicar isso. É... é uma doença que piora quando está frio. Acho que o mito da Lua se deve ao fato de que à noite faz mais frio e porque, então, quando somos novos, nos transformamos em lobos quase sempre do dia para a noite. Então acharam que era a Lua que causava a transformação.

Isabel parecia aceitar aquilo bastante bem. Não estava desmaiando e não exalava o cheiro de medo. Tomou um gole do café.

— Grace, isso está horrível.

— É café solúvel — Grace se desculpou.

— Então meu irmão me reconhece quando é lobo? — perguntou Isabel.

Grace me encarou; não consegui olhar para ela enquanto respondia:

— Talvez um pouco. Alguns de nós não se lembram da vida de antes quando se tornam lobos. Alguns lembram um pouco.

Grace desviou os olhos, ficou tomando o café, fingiu não estar interessada.

— Então há uma alcateia?

Isabel fazia boas perguntas. Assenti.

— Mas Jack ainda não os encontrou. Ou eles não o encontraram.

Isabel ficou um tempo passando o dedo pela borda da caneca. Afinal, olhou para mim e para Grace e de novo para mim.

— Bem, então o que está acontecendo aqui?

— O que você quer dizer?

— Quer dizer, você está sentado aí só falando e Grace está ali fingindo que está tudo muito bem, mas não está, certo?

Não me surpreendi com sua intuição. Ninguém chega ao topo da cadeia alimentar do ensino médio sem ser capaz de interpretar as pessoas. Olhei para minha caneca de café ainda cheia. Não gostava de café — um sabor forte e amargo demais. Eu era lobo havia tempo demais; perdera o gosto pela bebida.

— Temos prazo de validade. Quanto mais tempo passa depois que somos mordidos, de menos frio precisamos para nos transformarmos em lobos. E de mais calor precisamos para nos transformarmos em humanos. Até que não nos transformamos mais, não voltamos a ser humanos.

— Quanto tempo?

Não olhei para Grace.

— Varia de lobo para lobo. Anos e anos para a maioria.

— Mas não para você.

Cale a boca, Isabel. Eu não queria testar a expressão aparentemente calma de Grace por mais tempo. Apenas confirmei com a cabeça, bem de leve, esperando que Grace estivesse olhando pela janela e não para mim.

— E se vocês morassem na Flórida ou em algum lugar bem quente?

Fiquei aliviado por ela tirar o foco de mim.

— Alguns de nós já tentaram. Não funciona. Só faz com que você fique supersensível à menor mudança de temperatura.

Ulrik, Melissa e um lobo chamado Bauer haviam passado um ano no Texas na esperança de superar o inverno. Eu ainda me lembrava do telefonema animado de Ulrik depois de semanas sem se transformar... e de sua volta, derrotado, sem Bauer, depois de terem passado pela porta entreaberta de uma loja com ar-condicionado, o que fez com que Bauer se transformasse no mesmo instante. Aparentemente, o departamento de Controle de Animais do Texas não era adepto de armas com tranquilizantes.

— E os países tropicais, onde a temperatura quase não muda?

— Não sei. — Tentei não parecer irritado. — Nenhum de nós nunca decidiu ir para uma floresta tropical, mas vou me lembrar disso quando ganhar na loteria.

— Não precisa debochar — disse Isabel, pousando a caneca sobre uma pilha de revistas. — Eu só estava perguntando. Então qualquer pessoa que for mordida se transforma?

Todas, exceto aquela que eu gostaria de levar comigo.

— Parece que sim.

Ouvi minha voz, o quanto soava cansada, e não me importei.

Isabel apertou os lábios; achei que ela iria insistir nas perguntas, mas não.

— Então é mesmo isso. Meu irmão é um lobisomem, um verdadeiro lobisomem, e não existe cura.

Os olhos de Grace se estreitaram. Quis saber o que ela estava pensando.

— É. É isso aí. Mas você já sabia de tudo. Por que nos perguntou? — disse ela.

Isabel deu de ombros.

— Acho que estava querendo que alguém saísse de trás da cortina e dissesse: “Arrá! Peguei você! Não existe esse negócio de lobisomem. Que ideia foi essa?”

Eu queria dizer a ela que de fato não existia esse negócio de lobisomem. Que havia humanos e havia lobos, e que havia os que estavam a caminho de ser um ou outro. Mas eu estava cansado demais, então fiquei calado.

— Diga que não vai contar nada para ninguém. — Grace disse de repente. — Acho que não contou até agora, mas não pode contar para ninguém daqui por diante.

— Você acha que eu sou idiota? Meu pai atirou que nem um doido num dos lobos porque ficou furioso com tudo isso. Você acha que vou tentar contar que Jack é um deles? E minha mãe já se entupiu de remédios. É, grande ajuda ela seria. Vou ter que lidar com isso sozinha.

Grace trocou comigo um olhar que dizia: “Boa escolha, Sam.”

— Você tem a nós — acrescentou Grace. — Vamos ajudar no que pudermos. Jack não precisa ficar sozinho, mas primeiro nós temos que achá-lo.

Isabel tirou um cisco invisível de uma das botas, como se não soubesse como reagir à gentileza. Afinal, falou, ainda olhando para a bota:

— Não sei. Ele não foi uma pessoa muito legal da última vez que o vi. Não sei se quero encontrá-lo.

— Lamento — disse eu.

— Por quê?

Por não ser capaz de dizer a você que o péssimo temperamento de seu irmão é culpa da mordida e depois vai embora. Dei de ombros. Tive a impressão de que vinha fazendo muito aquilo nos últimos tempos.

— Por não ter nada melhor a dizer.

Ouviu-se um zumbido baixo e irritante na cozinha.

— A quiche está pronta — disse Isabel. — Pelo menos ganhei um prêmio de consolação. — Ela olhou para mim e depois para Grace. — Então ele logo vai parar de ficar mudando toda hora, não é? Porque o inverno está quase chegando.

Assenti.

— Ótimo — disse Isabel, olhando pela janela os galhos nus das árvores, para o bosque que era agora o lar de Jack e que, em breve, seria o meu. — Tomara que chegue logo.


CAPÍTULO 43

GRACE • 7° C

Eu era um zumbi de tanta insônia. Eu era

Teste de Inglês

Voz do sr. Rink

Luzes fluorescentes piscando lá em cima

Prova de Biologia

Rosto de pedra de Isabel

Olhos pesados.

— Terra chamando Grace — disse Rachel, beliscando meu cotovelo ao passar por mim na calçada. — Olha lá a Olívia. Eu nem a vi na aula, e você?

Segui o olhar de Rachel até os alunos que esperavam o ônibus escolar. Olívia estava entre eles, dando pulinhos para se aquecer. Nada de câmera. Pensei nas fotos.

— Preciso falar com ela.

— Precisa mesmo — disse Rachel. — Porque vocês precisam estar de bem antes de nossas férias em lugares quentes e ensolarados neste Natal. Eu iria com você, mas papai está esperando, e ele tem um compromisso em Duluth. Vai ficar uma fera se eu não for embora neste segundo. Depois me conte o que ela disser!

Rachel correu para o estacionamento e eu apressei o passo até Olívia.

— Olívia. — Ela deu um pulo de susto. Eu a agarrei pelo cotovelo, como se ela fosse fugir se eu não o fizesse. — Tenho tentado ligar para você.

Olívia abaixou um pouco mais o gorro que usava e se abraçou para se proteger do frio.

— É?

Por um momento, pensei em esperar para ver o que ela iria dizer. Para ver se confessaria que sabia sobre os lobos sem ser induzida a isso. Mas os ônibus estavam arrancando e eu não quis esperar. Abaixei a voz e disse em seu ouvido:

— Vi suas fotos. De Jack.

Ela me encarou de repente:

— Foi você quem as pegou?

Tentei, com algum sucesso, manter qualquer vestígio de acusação longe da minha voz.

— Isabel me mostrou.

Olívia empalideceu.

— Por que não me contou? — perguntei. — Por que não me ligou?

Ela mordeu o lábio e olhou o estacionamento em torno.

— Eu ia, no início. Para dizer que você tinha razão. Mas então dei de cara com Jack e ele me disse que eu não podia contar a ninguém sobre ele e daí fiquei me sentindo culpada, como se estivesse fazendo algo errado.

Olhei-a fixamente.

— Você falou com ele?

Olívia deu de ombros, infeliz, e estremeceu no frio crescente da tarde.

— Eu estava tirando fotos dos lobos, como sempre, e o vi. Eu o vi — ela baixou a voz e se inclinou para mim — se transformar. Se tornar humano de novo. Eu não podia acreditar naquilo. E ele não tinha roupas e eu não estava longe de casa, então o fiz vir comigo e peguei umas roupas de John. Acho que só estava tentando me convencer de que não tinha ficado doida.

— Obrigada — falei, sarcástica.

Ela custou a entender. Depois acrescentou depressa:

— Ah, Grace, eu sei. Sei que você me contou bem no começo, mas o que é que eu podia fazer? Acreditar em você? Parecia impossível. Mas senti pena dele. Ele não pertence mais a lugar nenhum.

— Há quanto tempo isso vem acontecendo?

Alguma coisa me fisgava por dentro. Traição, ou coisa parecida. Desde o princípio, eu tinha contado a Olívia minhas suspeitas, e ela tinha esperado até que eu fosse falar com ela para admitir tudo.

— Não sei. Um tempo. Tenho dado comida a ele e lavado sua roupa, essas coisas. Não sei onde ele fica. Conversamos muito, até que tivemos uma briga sobre a cura. Eu estava matando aula para falar com ele e tentar tirar mais fotos dos lobos. Eu queria ver se algum outro se transformava. —Fez uma pausa. — Grace, ele disse que você foi mordida e se curou.

— É verdade. Que eu fui mordida, pelo menos. Você sabia disso. Mas nunca me transformei em lobo, é óbvio.

Seus olhos me olhavam com insistência.

— Nunca?

Sacudi a cabeça.

— Não. Você comentou isso com alguém?

Olívia me deu outro olhar intenso.

— Não sou idiota.

— Bem, Isabel de algum modo conseguiu aquelas fotos. Se ela conseguiu, qualquer um pode conseguir.

— Não tenho nenhuma foto que mostre realmente o que está acontecendo — disse Olívia. — Já falei, não sou uma idiota completa. Só tenho as fotos do antes e do depois. E quem iria acreditar em alguma coisa a respeito disso?

— Isabel — eu disse.

Olívia fechou a cara.

— Tenho tomado cuidado. De qualquer maneira, não o vejo desde que brigamos. Tenho que ir. — Ela fez um gesto para o ônibus. — Você nunca se transformou mesmo?

Foi minha vez de olhar para ela muito séria.

— Eu nunca minto para você, Olive.

Ela me encarou por algum tempo. Então disse:

— Quer ir à minha casa?

Eu meio que esperava que ela pedisse desculpas. Por não confiar em mim. Por não atender meus telefonemas. Por brigar comigo. Por não dizer você tinha razão. Então eu apenas disse:

— Estou esperando Sam.

— Tudo bem. Talvez outro dia da semana?

— Talvez.

E ela desapareceu dentro do ônibus, só uma silhueta nas janelas indo para os bancos de trás. Pensei que ouvi-la admitir que sabia sobre os lobos me daria uma sensação de... término, mas tudo o que senti foi uma aflição desconfortável. Depois de todo aquele tempo gasto à procura de Jack, e Olívia sabendo onde encontrá-lo o tempo todo. Eu estava confusa.

No estacionamento, vi o Bronco entrar devagar e vir em minha direção. Ver Sam ao volante me deu a paz que a conversa com Olívia não me dera. Estranho como a simples visão do meu próprio carro me deixava tão feliz.

Sam se inclinou para destrancar a porta do passageiro. Ele ainda parecia um pouco cansado. Me passou um copo de isopor com café fumegante.

— Seu telefone tocou faz uns minutinhos.

— Obrigada.

Entrei na caminhonete e aceitei o café feliz.

— Estou um zumbi hoje. Estava doida por cafeína. Acabo de ter a conversa mais estranha do mundo com Olívia. Vou contar depois de devidamente cafeinada. Cadê meu telefone?

Sam apontou para o porta-luvas.

Entrando no carro, abri a portinhola do porta-luvas e peguei o telefone. Uma mensagem nova. Liguei para a caixa postal, acionei o viva-voz e botei o telefone no painel enquanto me virava para Sam.

— Agora estou pronta — disse a ele.

Ele me olhou, sobrancelhas arqueadas em dúvida.

— Para?

— Meu beijo.

Sam mordeu o lábio.

— Prefiro o ataque surpresa — disse ele.

— Você tem uma mensagem nova, disse a voz gravada do celular.

Fiz uma careta e me encostei no banco.

— Você me deixa doida.

Ele mostrou os dentes.

“Oi, meu bem! Você não vai adivinhar quem eu encontrei hoje!”, a voz de mamãe veio zumbindo do alto-falante do celular.

— Pode se abrir comigo. Eu aguento.

Mamãe parecia animada.

“Naomi Ett! Você sabe, da minha faculdade!”

— Eu não sabia que você era esse tipo de garota — disse Sam.

Achei que ele só podia estar brincando. Mamãe continuou:

“Ela está casada e tudo mais agora, e está na cidade por pouco tempo. Então seu pai e eu vamos passar algum tempo com ela.”

Fiz uma careta para ele.

— Não sou. Mas com você, tudo é possível.

“Então só vamos voltar bem tarde da noite”, concluía a mensagem de mamãe. “Lembre que sobrou comida, está na geladeira, e, bem, você tem nosso telefone se precisar de nós.”

Minhas sobras. Da comida que eu tinha feito.

Sam olhava para o telefone enquanto a garota do celular assumia de onde mamãe parou.

“Para ouvir outra vez, tecle 1. Para apagar...”

Apaguei. Sam ainda olhava para o telefone, a expressão meio distante. Eu não sabia em que ele estava pensando. Talvez, como eu, tivesse a cabeça cheia de mil problemas diferentes, todos amorfos e intangíveis demais para serem resolvidos.

Fechei o telefone com um plac, e o som pareceu quebrar o transe. Os olhos de Sam voltaram-se para mim de repente, intensos.

— Venha comigo.

Ergui uma sobrancelha.

— Sério. Vamos sair. Posso levá-la a algum lugar esta noite? Algum lugar melhor do que restos de comida?

Eu não sabia o que dizer. Talvez o que eu quisesse responder era: Você realmente acha que precisa perguntar?

Eu o olhava com intensidade enquanto o ouvia tagarelar, as palavras tropeçando umas sobre as outras em sua pressa de sair. Se eu não tivesse respirado fundo naquele instante talvez não tivesse percebido que havia algo errado. Mas vindo dele, em ondas, havia o cheiro adocicado demais da ansiedade. Ansioso por minha causa? Ansioso com alguma coisa que tinha acontecido hoje? Ansioso porque tinha ouvido a previsão do tempo?

— O que foi? — perguntei.

— Só quero sair da cidade esta noite. Só quero sair daqui um pouco. Miniférias. Algumas horas vivendo a vida de outra pessoa, sabe? Quer dizer, não precisamos ir se você não quiser. E se você achar que não é...

— Sam — disse eu —, cale a boca.

Ele calou.

— Dirija.

Ele dirigiu.


Sam entrou na interestadual e rodamos sem parar até que o céu se tornou cor-de-rosa acima das árvores, e os pássaros que voavam sobre a estrada tornaram-se apenas silhuetas negras. Fazia tanto frio que os carros que entravam na rodovia resfolegavam, soltando uma fumaça branca nítida no ar gelado. Sam usava uma das mãos para dirigir e a outra mantinha entrelaçada à minha. Aquilo era muito melhor do que ficar em casa com uma panela de comida requentada.

Quando saímos da interestadual, ou eu me acostumara ao cheiro da ansiedade de Sam ou ele se acalmara, pois o único aroma no carro era seu cheiro amadeirado e almiscarado de lobo.

— Então — disse eu, passando um dedo nas costas de sua mão fria. — Aonde estamos indo, afinal?

Ele me olhou, as luzes do painel iluminando seu sorriso melancólico.

— Tem uma loja de doces maravilhosa em Duluth.

Era inacreditavelmente meigo que ele tivesse dirigido uma hora só para irmos a uma loja de doces. E inacreditavelmente idiota também, considerando a previsão do tempo; mas ainda assim meigo.

— Nunca fui lá.

— Lá têm as maçãs do amor mais incríveis — prometeu ele. — E umas coisas grudentas, nem sei o que são. Devem ter um milhão de calorias. E chocolate quente... Ah!, Grace... É fantástico.

Fiquei sem palavras. Tinha caído estupidamente em transe pelo modo como ele dissera “Grace”. Seu tom. O jeito como seus lábios formaram as vogais. O timbre de sua voz repetia em minha cabeça como música.

— Até escrevi uma canção sobre as trufas de lá — confessou.

Aquilo me chamou a atenção.

— Ouvi você tocando violão para minha mãe. Ela me disse que era uma música sobre mim. Por que você nunca a cantou para mim?

Sam deu de ombros.

Olhei para a cidade brilhantemente iluminada além dele, todos os edifícios e pontes acesos, cheios de coragem contra a prematura escuridão do inverno; íamos na direção do centro da cidade. Eu não me lembrava da última vez que tinha estado ali.

— Seria muito romântico. E aumentaria sua fama de garoto descolado — continuei.

Sam não tirou os olhos da estrada, mas seus lábios se curvaram para cima. Também sorri, depois olhei para a frente, a fim de observar nosso caminho. Ele nem olhava as placas enquanto seguia pelas ruas noturnas. As luzes de rua jogavam listras luminosas sobre o para-brisa e linhas brancas passavam debaixo de nós, marcando o tempo acima e abaixo.

Afinal, Sam estacionou e fez um gesto para uma loja profusamente iluminada, algumas portas adiante. Virou-se para mim:

— O paraíso.

Saímos do carro e fomos correndo até lá. Eu não sabia quantos graus fazia naquele momento, mas minha respiração formava uma nuvem amorfa à minha frente quando empurrei a porta de vidro da loja de doces. Sam entrou no aquecido brilho amarelo depois de mim, os braços enroscados no próprio corpo. O sininho ainda ecoava nossa entrada quando Sam veio por trás de mim e me puxou para ele, me esmagando contra o seu corpo com os braços. Então sussurrou ao meu ouvido:

— Não olhe. Feche os olhos e sinta o cheiro. Sinta de verdade. Eu sei que você consegue.

Inclinei a cabeça para trás, encostada em seu ombro, sentindo o calor de seu corpo contra mim, e fechei os olhos. Meu nariz estava a centímetros do pescoço dele, e foi aquele cheiro que eu senti. Terreno, selvagem, complexo.

— Não o meu — disse ele.

— É só o que eu sinto — murmurei, abrindo os olhos para vê-lo.

— Não seja teimosa.

Sam me virou de leve, me posicionando de frente para o centro da loja. Vi prateleiras de latas com biscoitos e balas e, atrás delas, o brilho do vidro de um balcão de doces.

— Abandone-se, ao menos uma vez. Vale a pena.

Seus olhos tristes me imploravam para explorar algo que eu deixara intocado por anos. Algo mais do que intocado — algo que eu enterrara vivo. Enterrado quando achava que era a única. Agora eu tinha Sam atrás de mim, me amparando de encontro a seu peito como se me mantivesse de pé, sua respiração quente em minha orelha.

Fechei os olhos e abri as narinas, deixando que os cheiros as inundassem. O mais forte, caramelo e açúcar mascavo, tão alaranjado quanto o sol, chegou primeiro. Aquele era fácil. Era o que todos sentiriam ao entrar na loja. Depois chocolate, claro, o chocolate escuro e amargo e o açucarado chocolate ao leite. Acho que uma garota normal não teria sentido o cheiro de mais nada, e parte de mim quis parar ali. Mas eu podia sentir o coração de Sam batendo atrás de mim, e, pela primeira vez, eu me entreguei.

Hortelã penetrou meu nariz, aguda como vidro, e depois framboesa, quase doce demais, como fruta excessivamente madura. Maçã, crocante e pura. Nozes, avelãs e amêndoas, amanteigadas, quentes, terrosas, como Sam. O perfume sutil e suave do chocolate branco. Ai, meu Deus, um tipo de café de boa qualidade, rico, escuro e pecaminoso. Suspirei de prazer, mas havia mais. Os biscoitos amanteigados das prateleiras acrescentavam um cheiro enfarinhado e reconfortante ao todo, e os pirulitos, uma profusão de odores de frutas concentrados demais para ser verdade. A pontada salgada das rosquinhas, o aroma brilhante do limão, a borda afiada do anis. Cheiros que eu nem conseguia nomear. Gemi.

Sam me recompensou com o mais leve dos beijos em minha orelha, antes de falar em meu ouvido:

— Não é fantástico?

Abri os olhos; as cores pareciam opacas em comparação com o que eu acabava de sentir. Não consegui pensar em algo que não soasse trivial, e apenas concordei com a cabeça. Ele me beijou de novo, na bochecha, e examinou meu rosto, a expressão animada, encantado com o que via em mim. Me ocorreu que ele não tinha compartilhado aquele lugar, aquela experiência, com ninguém mais. Só comigo.

— Adorei — disse eu afinal, numa voz tão baixa que nem sabia se ele tinha escutado. Mas claro que tinha. Ele podia ouvir tudo que eu ouvia.

Eu não tinha certeza de estar pronta para aceitar o quanto eu era pouco normal.

Sam soltou meu corpo mas ficou com a minha mão, e me puxou para o interior da loja.

— Vamos. Agora é a parte difícil. Escolher. O que você quer? Escolha alguma coisa. Qualquer coisa. Eu compro para você.

Quero você. Sentindo o aperto de sua mão, o roçar de sua pele na minha, vendo o modo como se movia na minha frente, partes iguais de humano e lobo, e me lembrando do cheiro dele... eu morria de vontade de beijá-lo.

Sam apertou minha mão como se lesse meus pensamentos e me levou ao balcão. Olhei fascinada as fileiras de perfeitos chocolates, petit--fours, pretzels com cobertura, trufas.

— Está frio lá fora hoje, não? — perguntou a moça atrás do balcão. — Deve nevar. Mal posso esperar.

Ergueu os olhos para nós com um sorriso tolo e indulgente, e pensei como devíamos parecer estupidamente felizes, de mãos dadas e babando sobre os chocolates.

— Qual é o melhor? — perguntei.

A moça imediatamente apontou para algumas bandejas de chocolates. Sam sacudiu a cabeça em negação.

— Queremos dois chocolates quentes.

— Com chantilly?

— Precisa perguntar?

A moça deu um sorriso e virou-se para prepará-los. Uma lufada de um rico chocolate varreu o balcão quando ela abriu a lata de cacau. Enquanto ela pingava extrato de menta no fundo dos copos de papel, me virei para Sam e peguei sua outra mão. Fiquei na ponta dos pés e roubei um beijo leve de seus lábios.

— Ataque surpresa — eu disse.

Sam inclinou-se e me beijou de volta, a boca demorando-se na minha, os dentes roçando meu lábio inferior, me dando calafrios.

— Ataque surpresa vingado.

— Não valeu — falei, com a voz mais entrecortada do que pretendia.

— Vocês dois são uma graça — disse a moça, colocando no balcão dois copos com um monte de creme em cima. Tinha uma espécie de sorriso torto e franco, o que me fez achar que ela ria muito.

— Sério. Há quanto tempo estão namorando?

Sam soltou minha mão para apanhar a carteira e tirou algumas notas.

— Seis anos.

Disfarcei a gargalhada. Claro que ele contaria o tempo em que tínhamos sido de duas espécies bem diferentes.

— Uau!

A moça do balcão assentiu em aprovação.

— É de espantar num casal da idade de vocês.

Sam me passou o chocolate quente sem responder. Mas seus olhos amarelos me fitaram possessivamente — me perguntei se ele tinha noção de que o jeito com que me olhava era muito mais íntimo do que se estivesse me acariciando com a mão.

Me abaixei para ver a barquete de amêndoas que havia na última prateleira do balcão. Não tive coragem de olhar para nenhum dos dois quando confessei:

— Foi amor à primeira vista.

A moça suspirou.

— Isso é tão romântico. Façam-me um favor, não mudem nunca. O mundo precisa de mais amor à primeira vista.

A voz de Sam saiu rouca:

— Quer alguns desses, Grace?

Alguma coisa na voz dele, um aperto, me fez perceber que o efeito de minhas palavras fora maior do que o pretendido. Imaginei quando teria sido a última vez que alguém tinha dito a Sam que o amava.

Aquilo era triste demais de se pensar.

Fiquei de pé e segurei outra vez a mão dele. Seus dedos agarraram os meus com tanta força que quase me machucaram.

— Esses amanteigados parecem fantásticos. Podemos levar alguns?

Sam fez um sinal com a cabeça para a moça atrás do balcão. Alguns minutos depois, eu segurava um saquinho de papel cheio de doces e Sam tinha chantilly na ponta do nariz. Quando apontei para o creme em seu rosto, ele fez uma careta, sem graça, limpando-o com a manga da blusa.

— Vou ligar o carro — falei, entregando-lhe o saco. Ele me olhou sem dizer nada, então acrescentei: — Para esquentar o motor.

— Ah! Claro. Bem pensado.

Acho que ele tinha se esquecido do frio lá fora. Mas eu não, e fiz um horrível quadro mental dele tendo espasmos no carro enquanto eu tentava aumentar o aquecedor. Deixei-o na loja e mergulhei na noite escura de inverno.

Foi estranho como, assim que a porta da loja se fechou atrás de mim, me senti absolutamente sozinha, de repente acossada pela vastidão da noite, perdida sem o toque e o cheiro de Sam para me ancorar. Nada ali me era familiar. Se Sam se transformasse em lobo naquele momento, eu não sabia quanto tempo levaria para encontrar o caminho de casa ou o que faria com ele — não seria capaz de simplesmente deixá-lo ali, com quilômetros da estrada interestadual separando-o do seu bosque. Eu o perderia nas duas formas. A rua já estava polvilhada de branco, e mais flocos de neve dançavam à minha volta, delicados e carregados de mau presságio. Quando abri a porta do carro, minha respiração criou formas fantasmagóricas à minha frente.

Aquele desconforto crescente não era comum em mim. Estremeci, e esperei no Bronco até que ele esquentasse, tomando aos poucos o chocolate quente. Sam tinha razão: a bebida era fantástica, e no mesmo instante me senti melhor. O tantinho de menta disparava um toque frio em minha boca, ao mesmo tempo que o chocolate a enchia de calor. Aquilo também era calmante, e, quando o carro aqueceu, me achei uma boba por imaginar que alguma coisa pudesse dar errado naquela noite.

Saltei do carro e enfiei a cabeça na loja de doces, encontrando Sam perto da entrada.

— Pronto.

Ele estremeceu visivelmente ao sentir a rajada de ar gelado entrar pela porta e, sem uma palavra, voou para o Bronco. Gritei um obrigada para a moça do balcão antes de ir atrás de Sam, mas, no caminho até o carro, avistei algo na calçada que me fez parar. Sob as pegadas arrastadas de Sam havia outras, mais antigas, e que eu não percebera antes, indo e vindo na neve recém-caída em frente à loja.

Meus olhos acompanharam seu rastro de ida e volta até a loja, passos longos e leves, e depois deixei meu olhar segui-las pela calçada. Havia um monte escuro a uns quatro metros de distância, fora do círculo brilhante criado pela lâmpada da rua. Hesitei, pensando: Entra logo no Bronco, mas então o instinto me espicaçou e eu fui até lá.

O montinho era uma jaqueta escura, uma calça jeans e uma camisa de gola rulê. E, a partir das roupas, havia uma trilha de pegadas de patas pela leve poeira de neve.


CAPÍTULO 44

SAM • 0° C

Parece bobo, mas uma das coisas que eu adorava em Grace era como ela não precisava falar. Às vezes, tudo o que eu queria era que meus silêncios ficassem como estavam, cheios de pensamentos, vazios de palavras. Num momento em que qualquer outra garota teria tentado me arrastar para uma conversa, Grace tinha apenas buscado minha mão, descansando nossos dedos entrelaçados sobre minha perna e apoiando a cabeça no meu ombro até que estivéssemos fora de Duluth. Não perguntou como eu conhecia o caminho pela cidade, ou por que meus olhos se demoraram na curva da estrada que meus pais costumavam pegar para chegar ao nosso bairro, ou como um garoto de Duluth tinha acabado numa alcateia perto da fronteira canadense.

E quando ela afinal falou, tirando a mão da minha para pegar um biscoito amanteigado no saco da loja de doces, foi para me contar como, quando criança, tinha uma vez feito biscoitos com os ovos cozidos de Páscoa em vez de usar ovos crus. Era exatamente o que eu queria: boa distração.

Até que ouvi o tom musical de um celular, uma sequência descendente de notas digitais, vindo do meu bolso. Por um segundo não consegui entender por que haveria um telefone no meu casaco, e então me lembrei de Beck enfiando o aparelho na minha mão enquanto eu olhava o que estava além dele. “Ligue quando precisar de mim”, ele tinha dito.

Engraçado que tivesse dito “quando” e não “se”.

— Isso é um telefone? — As sobrancelhas de Grace se ergueram. — Você tem um telefone?

A boa distração desabou ao meu redor enquanto eu o buscava no bolso.

— Eu não tinha — respondi baixo. Ela continuou me olhando, e a ponta de mágoa em seus olhos acabou comigo. A vergonha me coloriu o rosto. — Ganhei faz pouco tempo.

O telefone tocou de novo, e apertei o botão atender. Não precisei olhar para a tela para saber quem estava ligando.

— Onde você está, Sam? Está frio.

A voz de Beck estava cheia da genuína preocupação que eu sempre apreciara.

Eu tinha consciência dos olhos de Grace sobre mim.

Não queria a preocupação dele.

— Estou bem.

Beck fez uma pausa, e imaginei-o dissecando o tom de minha voz.

— Sam, as coisas não são tão preto no branco. Procure entender. Você nem me dá chance de falar com você. Quando foi que eu fiz algo errado?

— Agora — respondi, e desliguei.

Enfiei o telefone de volta no bolso, em parte esperando que tocasse de novo. Eu queria que tocasse só para poder não atender.

Grace não perguntou quem era. Não me pediu que lhe contasse o que tinha sido dito. Eu sabia que ela esperava que eu lhe desse todas as informações sem que fosse preciso pedir, e sabia que deveria fazê-lo, mas não fiz. Eu simplesmente... simplesmente não podia suportar a ideia de que ela visse Beck sob aquele ângulo. Ou talvez eu não suportasse a ideia de eu vê-lo sob aquele ângulo.

Fiquei em silêncio.

Grace engoliu em seco antes de pegar seu próprio telefone.

— Isso me lembrou que eu preciso ver se tenho alguma mensagem. Claro. Como se minha família fosse ligar.

Ela examinou o celular; a tela azul iluminou a mão dela e projetou uma luz fantasmagórica em seu queixo.

— Ligaram? — perguntei.

— Claro que não. Estão de papo com velhos amigos.

Ela discou o número deles e esperou. Ouvi um murmúrio do outro lado do telefone, baixo demais para que eu o decifrasse.

— Oi, sou eu. É. Estou legal. Ah! Está bom. Não vou esperar acordada, então. Divirtam-se. Tchau.

Fechou o telefone com violência, olhou para mim e sorriu desanimada.

— Vamos fugir.

— Teríamos que ir a Las Vegas — disse eu. — Ninguém por aqui nos casaria a essa hora, a não ser um cervo ou alguns caras bêbados.

— Teria que ser o cervo — respondeu Grace com firmeza. — Os caras bêbados errariam nossos nomes, e isso estragaria tudo.

— De certa forma, um cervo fazendo o casamento de um lobisomem com uma garota parece estranhamente apropriado.

Grace riu.

— E chamaria a atenção de meus pais. “Pai, mãe, eu me casei. Não olhem para mim deste jeito. Ele só muda de pele parte do ano.”

Balancei a cabeça. Tive vontade de agradecer a ela, mas em vez disso falei:

— Era Beck ao telefone.

— Beck?

— É. Ele estava no Canadá com Salem, um dos lobos que pirou de vez.

Aquilo era apenas parte da verdade, mas pelo menos era verdade.

— Quero conhecê-lo — disse Grace na mesma hora. — Minha expressão deve ter ficado estranha, porque ela acrescentou: — Beck, não Salem. Ele é praticamente seu pai, não é?

Esfreguei as mãos no volante, os olhos passando da estrada para os dedos apertados que agora tinham os nós brancos. Era estranho que todos considerassem sua própria pele como algo garantido, nunca pensando em como seria se a perdessem.


Perdendo minha pele

escapando para seu corpo

despido de mim mesmo

me dói ser como sou.


Pensei na imagem mais paterna que eu tinha de Beck.

— Tínhamos aquela grande churrasqueira, na casa dele, e lembro que, determinada noite, ele estava cansado de cozinhar e disse: “Sam, hoje é você quem vai nos arranjar o que comer.” Ele me mostrou como apertar o centro dos bifes para ver se estavam no ponto, e como fritá-los virando-os depressa na grelha para deixá-los suculentos.

— E ficaram horríveis, não foi?

— Queimei tudo — disse eu, na lata. — Eu diria que ficaram parecendo carvão, mas carvão ainda dá para comer.

Grace começou a rir.

— Beck comeu o dele — falei, com um sorriso melancólico diante da lembrança. — Disse que era o melhor bife que já tinha comido, porque não tinha precisado fazê-lo.

Aquilo parecia muito distante agora.

Grace sorria para mim, como se as minhas velhas histórias sobre mim e meu bando fossem a melhor coisa do mundo. Como se fossem uma inspiração. Como se tivéssemos uma ligação afetiva, Beck e eu, pai e filho.

Na minha cabeça, o garoto na parte de trás do Tahoe olhava para mim e dizia: “Socorro”.

Grace perguntou:

— Faz quanto tempo? Quer dizer... não desde a história dos bifes. Desde que você foi mordido.

— Eu tinha sete anos. Foi há onze anos.

E ela continuou a perguntar:

— Por que você estava no bosque? Você é de Duluth, não é? Pelo menos é o que diz a sua carteira de motorista.

— Não fui atacado no bosque — respondi. — Saiu em todos os jornais.

Os olhos de Grace me amparavam. Desviei a atenção para a estrada mal-iluminada à nossa frente.

— Dois lobos me atacaram quando eu estava entrando no ônibus da escola. Um deles me puxou, o outro me mordeu.

Na verdade, ele tinha rasgado a minha carne, como se seu único objetivo fosse tirar sangue. Mas é claro, aquele era o objetivo, não era? Visto a distância, tudo parecia dolorosamente claro. Eu nunca tinha pensado em ir além das minhas simples lembranças de infância, quando fui atacado pelos lobos, e Beck surgindo como meu salvador depois que meus pais tentaram me matar. Minha ligação com Beck tinha sido tão intensa, e ele tinha sido tão impecável comigo que eu não quis olhar mais fundo. Mas agora, o fato de contar a história a Grace jogou a inevitável verdade diante de mim: não havia sido acidental. Eu tinha sido escolhido, caçado e arrastado para a rua para ser infectado, exatamente como os garotos no banco de trás do Tahoe. Depois, Beck chegara para recolher os pedaços.

Você é o melhor de todos, disse a voz de Beck na minha cabeça. Ele tinha achado que eu viveria mais que ele como humano e lideraria o bando. Eu deveria estar com raiva. Furioso por ter tido minha vida arrancada de mim. Mas por dentro eu só ouvia um enorme burburinho, um zumbido surdo de coisa nenhuma.

— Na cidade? — perguntou Grace.

— Nos arredores. Não havia bosques por perto. Os vizinhos disseram ter visto os lobos correndo pelos seus quintais, quando fugiram.

Grace nada disse. O fato de eu ter sido deliberadamente caçado me parecia óbvio, e continuei esperando que ela o mencionasse. Eu queria que o fizesse, para sublinhar a injustiça da coisa. Mas ela não o fez. Só percebi sua testa franzida, pensativa.

— Que lobos? — perguntou, afinal.

— Não lembro. Um deles pode ter sido Paul, porque era preto. É tudo o que sei.

Ficamos em silêncio por muito tempo, e então chegamos em casa. A entrada de carros continuava vazia, e Grace soltou um longo suspiro.

— Parece que estamos sozinhos de novo — disse ela. — Fique aqui que eu vou abrir a porta, está bem?

Pulou para fora do carro, deixando entrar uma rajada de frio que mordeu meu rosto. Aumentei o aquecimento ao máximo, me preparando para a jornada até o interior da casa. Inclinado sobre a saída de ar, sentindo o calor ferroar minha pele, apertei bem os olhos e tentei mergulhar de novo no bem-estar de antes. Em como eu me sentira a abraçar Grace na loja de doces, sentindo o calor de seu corpo contra o meu, observando-a farejar o ar, sabendo que estava sentindo o meu cheiro... estremeci. Não sabia se poderia aguentar outra noite com ela me comportando bem.

— Sam! — chamou Grace do lado de fora.

Abri os olhos e focalizei sua cabeça na fresta da porta. Ela tentava manter o corredor da entrada o mais quente possível para mim. Garota esperta.

Hora de correr. Fechando o Bronco, saltei para fora e corri pela calçada escorregadia, os pés deslizando um pouco no gelo, minha pele arrepiada e se contorcendo.

Grace fechou a porta atrás de mim com força, trancando o frio do lado de fora, e passou os braços ao meu redor, transferindo o calor do seu corpo para o meu. Sua voz era um sussurro sem fôlego junto à minha orelha.

— Está bem aquecido?

Meus olhos, começando a se ajustarem à escuridão do vestíbulo, captaram um ponto de luz nos dela, o contorno de seus cabelos, a curva dos braços em torno de mim. Um espelho na parede oferecia um retrato também indistinto de seu corpo contra o meu. Deixei que ela me abraçasse por um longo momento antes de dizer:

— Estou bem.

— Quer comer alguma coisa?

Sua voz soou alta na casa vazia, ecoando no chão de madeira. O único outro som era o ar que entrava pelo aquecimento, um sopro contínuo e baixo. Tive a aguda consciência de que estávamos sozinhos.

Engoli em seco.

— Quero ir para a cama.

Ela pareceu aliviada.

— Eu também.

Quase lamentei que concordasse comigo, porque talvez, se eu tivesse continuado de pé, comido um sanduíche, visto televisão, alguma coisa, eu poderia ter me distraído do quanto a queria.

Mas Grace não discordara. Chutando os sapatos para trás da porta, seguiu de meias pelo corredor à minha frente. Entramos em seu quarto às escuras, nenhuma luz além da Lua refletida na fina camada de neve do lado de fora da janela. A porta se fechou com um suave suspiro abafado e Grace se apoiou nela, as mãos ainda na maçaneta às suas costas. Passou-se um longo momento antes que dissesse algo.

— Por que você é tão atencioso comigo, Sam Roth?

Tentei dizer a verdade.

— Eu... é... eu não sou um animal.

— Não tenho medo de você — disse ela.

Não parecia mesmo ter medo de mim. Estava linda, iluminada pela Lua, tentadora, cheirando a menta, sabonete e pele. Eu tinha passado 11 anos vendo os lobos do bando se tornarem animais, recalcando meus instintos, me controlando, lutando para permanecer humano, lutando para fazer a coisa certa.

Como se lesse meus pensamentos, ela disse:

— É só o lobo em você que quer me beijar?

Meu ser inteiro queria beijá-la tanto até que isso me fizesse desaparecer. Envolvi sua cabeça com os braços, a porta estalando quando me apoiei contra ela, e colei minha boca à sua. Grace retribuiu o beijo, lábios quentes, a língua passando por meus dentes, as mãos ainda para trás, o corpo ainda comprimido de encontro à porta. Todo o meu corpo zumbia, elétrico, querendo anular os poucos centímetros que havia entre nós.

Ela me beijou com mais força, sua respiração em minha boca, e mordeu meu lábio inferior. Ah! Aquilo era fantástico. Rosnei antes que pudesse evitar, mas antes que pudesse sequer pensar em ficar constrangido, Grace tirou as mãos de trás do seu corpo e as passou em torno do meu pescoço, me puxando para ela.

— Isso foi tão sexy — disse ela, a voz entrecortada. — Não achava que você poderia ficar ainda mais sexy.

Beijei-a de novo antes que ela pudesse dizer algo mais, mergulhando no quarto com ela, um emaranhado de braços ao luar. Seus dedos agarraram-se à parte de trás do meu jeans, os polegares percorrendo meus quadris, me trazendo para ainda mais perto dela.

— Minha nossa, Grace — arquejei. — Você... você está superestimando demais o meu autocontrole.

— Eu não estou querendo autocontrole.

Minhas mãos estavam dentro da sua blusa, as palmas apertando-lhe as costas, os dedos em seus flancos. Eu nem mesmo me lembrava de como tinham chegado lá.

— Eu... eu não quero fazer nada de que você se arrependa.

As costas de Grace se curvavam sob meus dedos como se meu toque a trouxesse à vida.

— Então não pare.

Eu a imaginara dizendo aquilo de várias maneiras, mas nenhuma de minhas fantasias se comparava à realidade.

Desajeitados, recuamos até a cama, parte de mim pensando que não deveríamos fazer barulho, caso seus pais chegassem. Mas ela me ajudou a arrancar a camisa pela cabeça, desceu a mão pelo meu peito e eu gemi, me esquecendo de tudo exceto seus dedos em minha pele. Minha mente buscou a letra de uma canção, palavras que se harmonizassem para descrever o momento, mas nada surgiu. Eu só conseguia pensar na mão dela me roçando a pele.

— Adoro o seu cheiro — Grace murmurou. — Quanto mais toco em você, mais forte ele fica.

Suas narinas vibraram, como uma loba, o olfato percebendo o quanto eu a desejava. Sabendo o que eu era e, mesmo assim, me querendo.

Ela me deixou empurrá-la com suavidade sobre os travesseiros e firmei os braços nos dois lados dela, colocando suas pernas em torno de meus quadris.

— Tem certeza? — perguntei.

Seus olhos estavam brilhantes, excitados. Ela fez que sim com a cabeça.

Deslizei para baixo, beijando-lhe a barriga. Aquilo parecia tão certo, tão natural, como se eu o tivesse feito mil vezes antes e ainda fosse fazê--lo mil vezes.

Vi as cicatrizes lustrosas e feias que o bando lhe deixara no pescoço e na clavícula, e beijei-as também.

Grace puxou as cobertas sobre nós e, debaixo delas, nos livramos das roupas. Quando nossos corpos se encontraram, despi minha pele com um rosnado, me abandonando, nem lobo nem homem, apenas Sam.


CAPÍTULO 45

GRACE • -1° C

O telefone estava tocando. Foi a primeira coisa que pensei. A segunda coisa que pensei foi que o braço nu de Sam estava sobre o meu peito. A terceira foi que meu rosto estava gelado, o pedaço descoberto. Pisquei, tentando acordar, estranhamente desorientada no meu próprio quarto. Levei alguns instantes para perceber que o mostrador, em geral aceso, do despertador estava escuro e que as únicas luzes no quarto vinham da Lua através da janela e do celular que tocava.

Deslizei a mão no ar, com cuidado para não perturbar o braço de Sam em cima de mim. Quando alcancei o telefone, ele silenciou. Santo Deus, o quarto estava congelante. A energia devia ter caído por causa da tempestade de gelo prometida pelos meteorologistas. Me perguntei quanto tempo ficaríamos sem energia, e se eu precisava me preocupar com o excesso de frio para Sam. Com cuidado, espiei debaixo das cobertas e o vi aconchegado de encontro a mim, a cabeça enterrada ao lado do meu corpo, só a curva pálida e nua de seus ombros visíveis na luz fraca.

Eu não parava de pensar que deveria estar achando aquilo errado, o corpo dele apertado contra o meu, mas simplesmente me sentia tão viva que meu coração batia forte, emocionada. Aquilo, Sam e eu, aquilo era minha vida real. A vida de quando eu ia para a escola e esperava meus pais e ouvia Rachel tagarelar sobre os irmãos — aquilo, em comparação, era como um sonho desbotado. Aquelas eram apenas coisas que eu tinha feito enquanto esperava por Sam. Lá fora, distantes e lúgubres, os lobos começaram a uivar e, alguns segundos depois, o telefone tocou de novo, notas descendentes numa escala, um estranho e digital eco dos lobos.

Só percebi meu engano quando o levei à orelha.

— Sam.

A voz do outro lado era desconhecida. Idiota! Eu tinha apanhado o celular de Sam da mesa de cabeceira, em vez do meu. Hesitei dois segundos antes de dizer alguma coisa. Pensei em fechar o aparelho e desligar, mas não poderia fazer isso.

— Não — respondi. — Não é o Sam.

A voz era agradável, mas senti arestas sob as palavras.

— Desculpe. Devo ter ligado errado.

— Não — falei, antes que ele pudesse desligar. — Este é o telefone de Sam.

Houve uma longa e pesada pausa, e depois:

— Ah! — Outra pausa. — Você é a garota, não é? A garota que esteve na minha casa?

Tentei imaginar o que poderia ganhar negando, mas me deu um branco.

— Sou eu, sim.

— Você tem nome?

— Você não?

Ele deu uma risada curta, sem achar graça alguma, mas não desagradável.

— Acho que gosto de você. Sou Beck.

— Isso faz sentido.

Afastei meu rosto de Sam, que ainda ressonava com força, minha voz abafada pelos seus braços sobre a minha cabeça.

— O que fez para deixá-lo irritado?

Outra vez a risada curta.

— Ele ainda está zangado comigo?

Pensei em como responder.

— Agora não. Está dormindo. Quer deixar um recado?

Olhei fixamente para o número de Beck no telefone, tentando decorá-lo.

Houve outra longa pausa, tão longa que achei que Beck tinha desligado, até que pude ouvi-lo soltando a respiração com folga.

— Um dos... amigos dele foi ferido. Você acha que pode acordá-lo?

Um dos outros lobos. Tinha que ser. Mergulhei ainda mais nas cobertas.

— Ah!... Claro. Claro que posso.

Baixei o telefone e mexi com delicadeza no braço de Sam, para poder ver sua orelha e o lado do seu rosto.

— Sam, acorde. Telefone. É importante.

Ele virou a cabeça para que eu visse seu olho amarelo já aberto.

— Ponha no viva-voz.

Obedeci, pousando o telefone sobre minha barriga, de modo que a tela iluminada fazia um pequeno círculo azul na minha camiseta.

— O que aconteceu?

Sam apoiou-se no cotovelo, fez uma careta ao sentir o frio e puxou os cobertores à nossa volta, fazendo uma tenda sobre o telefone.

— Alguém atacou Paul. Ele está péssimo, dilacerado.

Sam abriu a boca de leve. Acho que ele não estava pensando na aparência de seu rosto; seu olhar estava muito longe dali, junto com o bando. Afinal, ele falou:

— Você poderia... você foi... ele ainda está sangrando? Estava humano?

— Humano. Tentei perguntar a ele quem tinha feito aquilo; para poder matá-lo. Achei... Sam, realmente achei que teria que ligar para contar a você a morte dele. Para você ver como foi grave. Mas acho que agora ele está cicatrizando. Mas é que... havia todas aquelas pequenas mordidas, por toda parte, no pescoço, nos pulsos, na barriga, parecia...

— ...parecia alguém que soubesse como matá-lo — completou Sam.

— Foi um lobo que fez aquilo — disse Beck. — Pelo menos isso ele nos disse.

— Um dos seus novos? — Sam disse, com força surpreendente.

— Sam...

— Pode ter sido?

— Sam. Não. Eles estão dentro de casa.

O corpo de Sam ainda estava tenso a meu lado, e ruminei os possíveis significados daquela frase: Um dos seus novos. Jack não era o único novo?

— Você vem? — perguntou Beck. — Pode vir? Está frio demais?

— Não sei.

Pela boca retorcida de Sam, eu soube que ele estava respondendo apenas à primeira pergunta. O que quer que o tivesse distanciado de Beck, era algo muito sério.

A voz de Beck mudou, mais suave, mais jovem, mais vulnerável:

— Por favor, não fique zangado comigo, Sam. Não aguento isso.

Sam desviou o rosto do aparelho.

— Sam — disse Beck com suavidade.

Senti-o estremecer a meu lado, e ele fechou os olhos.

— Ainda está aí?

Olhei para Sam, mas ele continuou calado. Não pude evitar... tive pena de Beck.

— Eu estou — falei.

Houve uma longa pausa, na qual não se ouvia um ruído sequer, e achei que Beck tinha desligado. Mas então ele perguntou, cauteloso:

— O quanto você sabe sobre Sam, garota-sem-nome?

— Tudo.

Pausa. E depois:

— Eu gostaria de conhecer você.

Sam estendeu a mão e fechou o telefone com rispidez. A luz do mostrador desapareceu, deixando-nos no escuro debaixo das cobertas.


CAPÍTULO 46

GRACE • 7° C

Meus pais nem sabiam. Na manhã seguinte à noite em que Sam e eu... passamos juntos, parecia que a coisa mais importante em minha cabeça era o fato de que meus pais não faziam ideia. Achei que era normal. Achei que sentir um pouco de culpa era normal. Achei que me sentir atordoada era normal. Era como se eu tivesse achado o tempo inteiro que fosse um quadro completo e Sam me mostrasse que eu era um quebra-cabeça, e me tivesse separado em pedaços e me montado de novo. Eu tinha total consciência de cada emoção que sentia, todas se ajustando com perfeição umas às outras.

Sam também estava calado, segurando minha mão direita nas suas enquanto eu dirigia com a outra. Eu teria dado um milhão de dólares para saber o que ele estava pensando.

— O que você quer fazer hoje à tarde? — perguntei, afinal.

Ele olhou pela janela, os dedos acariciando o dorso de minha mão. O mundo lá fora parecia seco, feito de papel. Esperando a neve.

— Qualquer coisa com você.

— Qualquer coisa?

Ele me olhou e sorriu. Foi um sorriso engraçado, meio de lado. Achei que ele talvez se sentisse tão atordoado quanto eu.

— É, qualquer coisa, desde que você esteja junto.

— Quero conhecer Beck — disse eu.

Pronto. Tinha saído. Aquela era uma das peças do quebra-cabeça presas à minha mente desde que eu atendera o telefone.

Sam não disse uma palavra. Seus olhos estavam na escola, talvez imaginando que, se esperasse alguns minutos, poderia me deixar na calçada e evitar a discussão. Mas, em vez disso, ele suspirou como se estivesse extremamente cansado.

— Céus, Grace. Por quê?

— Ele é praticamente seu pai, Sam. Quero saber tudo sobre você. Não é possível que seja tão difícil de entender.

— Você só quer que tudo esteja em seu lugar. — Os olhos de Sam seguiam os grupos de alunos que abriam aos poucos caminho pelo estacionamento. Eu não queria achar uma vaga. — Você só quer criar um encontro mágico entre mim e ele, para que possa sentir que tudo está outra vez no lugar.

— Se está querendo me irritar dizendo isso, não vai conseguir. Eu já sei que é isso mesmo.

Sam ficou em silêncio enquanto eu dava outra volta pelo estacionamento; afinal, gemeu:

— Grace, eu detesto isso. Detesto confronto.

— Não vai haver confronto. Ele só quer ver você.

— Você não sabe de tudo o que está acontecendo. Tem coisas horríveis acontecendo. Vai haver confronto, se ainda restam alguns princípios em mim. Difícil de acreditar, depois da noite passada.

Achei apressadamente um lugar para parar, numa das extremidades mais afastadas do estacionamento, para poder encará-lo sem olhos curiosos nos observando.

— Você está se sentindo culpado?

— Não. Talvez. Um pouco. Estou me sentindo... pouco à vontade.

— Nós usamos camisinha.

Sam não olhou para mim.

— Não é isso. Eu só... só... só espero que tenha sido na hora certa.

— Foi na hora certa.

Ele olhou para longe.

— Só tem uma coisa que fico pensando... você fez... amor... comigo para se vingar dos seus pais?

Tudo o que fiz foi olhar fixo para ele. Então, peguei minha mochila do banco de trás. Eu estava de repente furiosa, o rosto e as orelhas ardendo, e sem saber por quê. Não reconheci minha voz quando respondi:

— Que coisa legal de se dizer.

Sam não olhou para mim. Era como se a lateral da escola fosse fascinante para ele. Tão fascinante que não podia me olhar nos olhos enquanto me acusava de usá-lo. Uma nova onda de raiva me invadiu.

— Sua autoestima é assim tão ruim que você acha que eu não posso querer você só porque você é você? — Empurrei a porta do carro e saí. Sam se encolheu com o ar que entrou, embora o frio não fosse suficiente para afetá-lo. — Belo jeito de estragar tudo. Tudo.

Eu ia bater a porta, mas ele se esticou e segurou-a antes que se fechasse completamente.

— Espere. Grace, espere.

— O quê?

— Não quero que você vá assim.

Seus olhos me imploravam, mais tristes do que nunca. Olhei para os pelos de seus braços que se arrepiavam e para o leve tremor de seus ombros por causa da corrente de ar. E cedi. Por mais raiva que eu pudesse estar sentindo, ambos sabíamos o que poderia acontecer enquanto eu estivesse na escola. Eu detestava aquilo. O medo. Eu detestava o medo.

— Desculpe ter dito isso — disse Sam num rompante, querendo se livrar das palavras antes que eu me fosse. — Você tem razão. Eu só não conseguia acreditar que algo... alguém... tão bom pudesse me acontecer. Não fique zangada, Grace. Por favor, não fique zangada.

Fechei os olhos. Por um breve momento desejei de todo o coração que ele fosse apenas um rapaz normal, para que eu pudesse ir embora furiosa, com meu orgulho e minha indignação. Mas ele não era. Era frágil como uma borboleta no outono, esperando ser destruída pela primeira geada. Então engoli a raiva, um gole amargo, e abri um pouco mais a porta.

— Nunca mais quero que você pense uma coisa dessas, Sam Roth.

Ele apertou um pouquinho os olhos quando eu disse seu nome, as pestanas escondendo as íris amarelas por um segundo, e depois estendeu a mão e tocou meu rosto.

— Desculpe.

Peguei sua mão e a entrelacei na minha, olhando-o de frente.

— Como você acha que Beck se sentiria se você fosse embora furioso?

Sam riu, um riso sem alegria e autodepreciativo que me lembrou o de Beck ao telefone na noite anterior, e desviou os olhos. Ele sabia que eu tinha o número do telefone. Desvencilhou a mão da minha.

— Nós vamos. Tudo bem, nós vamos.

Prestes a ir embora, parei.

— Por que você está tão zangado com Beck, Sam? Por que está tão furioso com ele se nunca vi você ter raiva nem dos seus pais verdadeiros?

A expressão de Sam me disse que ele não tinha pensado nisso antes, e foi preciso um bom tempo para que respondesse.

— Porque Beck... Beck não precisava fazer o que fez. Meus pais sim. Eles achavam que eu era um monstro. Ficaram com medo. Não foi algo planejado.

Seu rosto estava cheio de dor e incerteza. Entrei no carro e beijei-o de leve. Não sabia o que dizer, então só o beijei de novo, peguei a mochila e fui para o dia cinzento.

Quando olhei para trás, ele ainda estava ali sentado, o olhar silencioso e lupino. A última coisa que vi foram seus olhos meio fechados contra a brisa, o cabelo negro despenteado, me lembrando por algum motivo da primeira noite em que o tinha visto.

Uma brisa inesperada levantou meus cabelos, frígida e penetrante.

O inverno de repente parecia muito perto. Parei na calçada, fechando os olhos, lutando contra o incrível desejo de voltar para Sam. No fim, o dever venceu, e fui para a escola. Mas aquilo parecia um erro.


CAPÍTULO 47

SAM • 6° C

Quando Grace saiu do carro, eu me sentia mal. Mal por discutir com ela, mal pela dúvida, mal por causa do frio que era apenas quente o suficiente para me manter humano. Mais do que mal — inquieto, perturbado. Muitas questões não resolvidas: Jack, Isabel, Olívia, Shelby, Beck.

Não podia acreditar que Grace e eu iríamos encontrar Beck. Aumentei o aquecimento do Bronco e encostei a cabeça no volante, ficando assim por muito tempo, até que as arestas do vinil começaram a me machucar a testa. Com o calor no máximo, não levou muito tempo para o carro ficar sufocante e quente, mas era bom. Eu parecia longe de me transformar, como se estivesse firmemente preso à minha própria pele.

No começo, pensei que pudesse ficar ali sentado o dia inteiro, cantarolando baixinho uma canção


Perto do sol é mais perto de mim

Sinto minha pele me apertando o corpo


e esperando Grace, mas em meia hora cheguei à conclusão de que precisava me mexer. Mais do que isso, precisava compensar o que tinha dito à Grace. Então decidi ir à casa de Jack de novo. Ele ainda não tinha aparecido, nem morto nem nos jornais, e aquele era o único lugar onde eu imaginava poder recomeçar as buscas. Grace ficaria feliz por me ver tentando colocar tudo em seus devidos lugares para ela.

Deixei o carro numa estrada isolada de extração de madeira perto da casa dos Culpeper e segui por um atalho no bosque. Os pinheiros estavam descorados com a iminência da neve, as pontas oscilando devagar lá em cima a um vento frio que eu não podia sentir abaixo os galhos. Um arrepio desagradável envolveu minha nuca; o desolado bosque de pinheiros fedia a lobo. O cheiro me dava a impressão de que o garoto urinara em cada árvore. Canalha arrogante.

Um movimento à direita me fez dar um pulo, tenso, e me abaixar até o solo. Prendi a respiração.

Só uma corça. Vi rapidamente seus olhos grandes, suas pernas longas e sua cauda branca antes de ela se afastar, surpreendentemente desprovida de graça sobre a vegetação rasteira. Contudo, sua presença no bosque era reconfortante. O fato de ela estar ali significava que Jack não estava. Eu não tinha nenhuma arma além das mãos, que pouca serventia teriam contra um lobo novo e instável, cheio de adrenalina.

Perto da casa, fiquei parado no limite do bosque, escutando as vozes que flutuavam por entre as árvores. Uma moça e um rapaz, vozes altas e zangadas, em algum lugar perto da porta dos fundos. Me esgueirando por entre as sombras da mansão, contornei um canto e fui na direção deles, silencioso como um lobo. Não reconheci a voz masculina, feroz e profunda, mas o instinto me disse que era Jack. A outra era de Isabel. Pensei em me mostrar mas hesitei, esperando até ouvir o motivo da discussão.

Isabel falava alto:

— Não entendo o que você está dizendo. Por que está se desculpando? Por desaparecer? Por ter sido mordido? Por...

— Por Chloe — disse o rapaz.

Houve uma pausa.

— Como assim “por Chloe?” O que a cachorra tem a ver com tudo isso? Você sabe onde ela está?

— Isabel, que inferno! Não está escutando? Você às vezes é tão burra. Já falei, depois que eu me transformei, não sei o que faço.

Cobri a boca para não rir. Jack tinha comido a cadela de Isabel.

— Você está dizendo que ela... você... Meu Deus! Como você é idiota!

— Não pude evitar. Eu disse a você o que eu era. Você não deveria tê-la deixado sair.

— Você tem ideia de quanto custa aquela cadela?

— Putz!

— Então, o que é que eu devo dizer aos nossos pais? “Mamãe, papai, Jack é um lobisomem e, adivinhem só, vocês sabem por que Chloe sumiu? Ele a comeu.”

— Não diga nada a eles! — disse Jack, apressado. — De qualquer jeito, acho que parei com isso. Acho que descobri a cura.

Franzi a testa.

— Cura. — A voz de Isabel era átona. — Como alguém se “recupera” de ser um lobisomem?

— Não gaste o seu cérebro de loura com nisto. Eu só... me dê mais alguns dias para ter certeza. Quando tiver, vou contar tudo a eles.

— Ótimo. Que seja. Minha nossa... não posso acreditar que você comeu a Chloe.

— Quer parar de falar isso, por favor? Está começando a me irritar.

— Tudo bem. E os outros? Não há outros? Eles não podem ajudá-lo?

— Isabel, cale a boca. Eu já disse, acho que descobri uma saída. Não preciso de ajuda.

— Mas você não acha que...

Um ruído agudo e fora do lugar. Um galho se quebrando? Uma bofetada?

A voz de Isabel parecia diferente quando ela falou de novo. Não tão forte.

— Mas não deixe que eles vejam você, está bem? Mamãe está fazendo terapia, por sua causa, e papai está fora da cidade. Vou voltar para a escola. Não acredito que você me chamou aqui para dizer que comeu minha cadela.

— Chamei você para dizer que descobri um jeito de consertar a coisa. Como você parece animada. Hum. Não, não parece.

— Ótimo. Maravilhoso. Tchau.

Um instante depois, ouvi a picape de Isabel descer a entrada e hesitei de novo. Eu não estava exatamente ansioso para aparecer diante de um lobo novo com problemas para administrar a raiva até saber exatamente em que terreno estava pisando, mas precisava voltar para o carro ou entrar na casa aquecida. E a casa era mais perto. Movi-me devagar pelos fundos, atento aos sons da presença de Jack. Nada. Ele devia ter entrado.

Me aproximei da porta que eu tinha arrombado no começo da semana — a janela já tinha sido consertada — e botei a mão na maçaneta. Destrancada. Quanta gentileza.

Do lado de dentro, logo ouvi Jack se movimentando, enchendo de ruídos a casa silenciosa, a não ser por sua presença, e me esgueirei pelo corredor mal-iluminado até uma cozinha comprida de teto alto, ladrilhada em branco e preto com bancadas pretas até perder de vista. A luz vinda das duas janelas na parede direita era branca e pura, refletindo o branco das paredes e mergulhando nas frigideiras pretas que pendiam do teto. Era como se o lugar inteiro fosse em preto e branco.

Eu preferia mil vezes a cozinha de Grace — calorosa, atravancada, cheirando a canela, alho e pão — àquele ambiente cavernoso e estéril.

Jack estava de costas para mim, agachado em frente à geladeira de aço inoxidável, remexendo nas gavetas. Fiquei imóvel, mas seu ataque à geladeira tinha encoberto os ruídos que eu fazia ao me aproximar. Não havia vento para levar meu cheiro até ele, portanto fiquei ali de pé alguns minutos, avaliando seu aspecto e minhas opções. Ele era alto, ombros largos, cabelos pretos e encaracolados como os de uma estátua grega. Alguma coisa no modo como se movia sugeria uma enorme autoconfiança, e, por algum motivo, isso me irritou. Engoli um rosnado e deslizei para dentro da cozinha, subindo em silêncio na bancada do outro lado da cozinha. A altura me daria uma ligeira vantagem se Jack ficasse agressivo.

Ele se afastou da geladeira e depositou uma montanha de comida no tampo brilhante da bancada que havia no centro da cozinha. Por muitos e longos minutos, eu o observei construir um sanduíche. Ele empilhou com cuidado as fatias de carne e queijo, derramou doses generosas de molho de salada sobre o pão e, enfim, olhou para cima.

— Minha nossa! — ele exclamou.

— Oi — respondi.

— O que você quer?

Não parecia com medo. Eu não era grande o bastante para assustá--lo só pela aparência.

Eu não sabia o que dizer. Ouvir sua conversa com Isabel tinha mudado o que eu queria saber.

— Então, o que acha que vai curar você?

Agora ele parecia estar com medo. Só por um segundo, e logo o temor desapareceu, perdido no autoconfiante avanço do seu queixo.

— Do que você está falando?

— Você acha que encontrou a cura. Por que acharia uma coisa dessas?

— Legal, cara. Quem é você?

Eu decididamente não gostava dele. Não sabia por quê, só tinha essa sensação nas entranhas e decididamente não gostava dele. Se não o considerasse um perigo para Grace, Olívia e Isabel, eu o teria mandado às favas e o largado ali mesmo. No entanto, o fato de não gostar dele tornava o confronto mais fácil. E assim era mais fácil representar o papel do cara que tinha todas as respostas.

— Alguém como você. Alguém que foi mordido.

Ele olhou em torno, pronto para protestar, mas ergui a mão para interrompê-lo.

— Se você está pensando em dizer alguma coisa tipo “Está falando com a pessoa errada”, não se dê o trabalho. Eu vi você como lobo. Então só me diga por que acha que encontrou um jeito de fazer isso parar.

— Por que eu deveria confiar em você?

— Porque, ao contrário do seu pai, eu não empalho animais e não os ponho na minha lareira. E porque não quero você aparecendo na escola nem na porta da casa de ninguém, isso acaba expondo o bando. Só estamos tentando sobreviver com essa droga que nos restou. Não precisamos de um babaca de um riquinho revelando nosso segredo para o resto do mundo, para que venham atrás de nós com forcados.

Jack rosnou. Estava muito próximo de um animal para o meu gosto, e meus pensamentos se confirmaram quando o vi estremecer levemente com calafrios. Sua condição era ainda tão instável que ele poderia se transformar a qualquer momento.

— Não tenho mais que me preocupar com isso. Estou achando a cura, portanto vê se trata de dar o fora daqui e me deixar em paz.

Ele recuou do centro da cozinha, indo até outra bancada atrás dele. Pulei de onde estava.

— Jack, não existe cura.

— Você se engana — retrucou. — Tem um lobo que ficou curado.

Ele deslizava na direção do porta-facas. Eu deveria ter corrido para a porta, mas suas palavras me imobilizaram.

— O quê?

— É, levei esse tempo todo para entender, mas consegui. Tem uma garota na escola que foi mordida e se curou. Grace. Sei que ela sabe qual é a cura. E ela vai me contar, rapidinho.

Meu mundo girou.

— Fique longe dela.

Ele riu para mim, ou talvez aquilo fosse uma careta. Sua mão estava no balcão, avançando para as facas atrás dele, e suas narinas tremeram, captando o leve aroma de lobo que o frio havia trazido à minha pele. E ele falou:

— Por quê? Você também não quer saber? Ou ela já te curou?

— Não existe cura. Ela não sabe de nada.

Detestei perceber o quanto minha voz revelava; meus sentimentos por Grace pareceram perigosamente transparentes.

— Você não pode afirmar isso, cara — disse Jack. Estendeu a mão para uma faca, mas sua mão tremia demais para agarrar o cabo na primeira tentativa. — Agora, dá o fora daqui.

Mas eu não me movi. Não conseguia pensar em nada pior do que ele indo procurar Grace para descobrir uma cura. Ele trêmulo, instável, violento; e ela incapaz de dar as respostas que ele procurava.

Jack conseguiu agarrar o cabo de uma faca de aparência perigosa; a lâmina serrilhada refletia o branco e preto da cozinha numa dúzia de direções diferentes. Ele tremia tanto que mal conseguia manter a faca empunhada na minha direção.

— Eu mandei você dar o fora.

Meus instintos me incitavam a saltar em cima dele, como eu faria com um dos lobos, rosnando em seu pescoço para dominá-lo. Para fazê--lo prometer que ficaria longe dela. Mas as coisas não funcionavam assim quando eu era humano, nem quando meu adversário era tão mais forte. Me aproximei dele, olhando-o nos olhos em vez de fitar a faca, e tentei uma tática diferente.

— Jack, por favor. Ela não tem as respostas, mas eu posso facilitar as coisas para você.

— Fique longe de mim.

Jack deu um passo na minha direção e depois um para trás, antes de tropeçar e cair de joelhos. A faca caiu no piso; eu me encolhi antes de ela bater no ladrilho, mas o som foi surpreendentemente abafado. Jack quase não fez barulho quando, depois da faca, também desabou no chão. Seus dedos eram garras, curvando-se e recurvando-se nos quadrados pretos e brancos. Ele dizia alguma coisa, mas era ininteligível. Na minha cabeça brotou uma letra de música. Os versos deveriam ser a respeito dele, mas na verdade era de mim que falavam.


Mundo de palavras perdidas com os vivos

Assumo meu lugar entre os mortos que andam

Roubado de minha voz estou sempre dando

milhares de palavras a este horror sem nome.


Me agachei perto dele, empurrando a faca para longe de seu corpo para que ele não se cortasse. De nada adiantava lhe pedir qualquer coisa agora. Suspirei e fiquei ouvindo-o gemer, se lamentar, gritar. Éramos iguais agora, Jack e eu. Apesar de todos os seus privilégios e seu belo cabelo e sua atitude confiante, Jack não era melhor do que eu.

Ele choramingou.

— Você deveria estar contente — disse ao lobo ofegante. — Não vomitou desta vez.

Jack me olhou por algum tempo, sem piscar seus olhos cor de avelã, antes de dar um pulo e disparar porta afora.

Eu só queria ir embora, mas não tinha escolha. Qualquer possibilidade de deixá-lo para trás desaparecera no instante em que ele pronunciara o nome de Grace.

Fui atrás dele. Cambaleamos pela casa, suas unhas deslizando na madeira de lei do assoalho, meus sapatos rangendo atrás dele. Caí no salão de animais sorridentes que estavam bem atrás de Jack. O fedor das peles mortas encheu minhas narinas. Jack tinha duas vantagens: conhecia a casa e era um lobo. Eu poderia apostar que ele iria usar seu conhecimento dos arredores para se esconder em vez de confiar em sua ainda pouco familiar força animal.

Apostei errado.


CAPÍTULO 48

GRACE • 9° C

Sam nunca tinha se atrasado antes. Estava sempre à minha espera no carro na hora em que eu saía da escola, portanto nunca precisei me perguntar onde ele poderia estar ou o que fazer enquanto o esperava.

Mas naquele dia eu esperei.

Naquele dia, esperei até que os alunos entrassem nos ônibus. Esperei até que os alunos restantes desaparecessem nos carros e desaparecessem, um a um ou dois a dois. Esperei até que os professores saíssem da escola e entrassem em seus carros. Pensei em adiantar meus exercícios. Pensei no sol arrastando-se em direção à linha de árvores e imaginei como estaria frio na sombra.

— Sua carona está atrasada, Grace? — perguntou o sr. Rink, amável, a caminho da saída. Ele tinha mudado de camisa depois das aulas e cheirava vagamente a água-de-colônia.

Eu devia parecer perdida, sentada no pequeno canteiro coberto de folhas secas na frente da escola, abraçada à mochila.

— Um pouco.

— Quer que eu telefone para alguém?

Com o canto do olho, vi o Bronco entrar no estacionamento e me permiti dar um longo suspiro. Sorri para o sr. Rink.

— Não. Eles acabaram de aparecer.

— Ainda bem — disse ele. — Parece que mais tarde vai fazer frio de verdade. Neve!

— Eba! — falei com amargura, e ele riu e se despediu com um aceno enquanto caminhava para seu carro. Pendurei a mochila no ombro e corri para o Bronco. Abrindo a porta do passageiro, pulei para dentro.

Só um segundo depois de fechar a porta é que eu percebi que o cheiro estava totalmente errado. Ergui os olhos para o motorista e cruzei os braços, tremendo.

— Onde está Sam?

— Você se refere ao cara que deveria estar sentado aqui — disse Jack.

Embora eu já tivesse visto seus olhos num corpo de lobo, embora soubesse que Isabel o vira, embora fizesse semanas que sabíamos do fato de ele estar vivo, eu não estava preparada para me deparar com Jack em carne e osso. Seus cachos pretos, mais compridos do que quando o tinha visto pela última vez pelos corredores, os penetrantes olhos cor de avelã, as mãos agarradas ao volante. Real. Vivo. Meu coração saltou no peito.

Os olhos de Jack estavam na estrada quando ele disparou para fora do estacionamento. Imaginei que pensasse que eu não tentaria sair do Bronco em movimento, mas ele não precisava se preocupar. Eu estava presa ali pela pergunta “Onde estava Sam?”

— É, me refiro ao cara que deveria estar sentado aí. — Minha voz saiu como um rosnado. — Onde ele está?

Jack me deu uma olhada. Estava nervoso, tremendo. Qual era mesmo a palavra que Sam tinha usado para descrever os lobos novos? Instáveis?

— Não estou tentando bancar o mau aqui, Grace. Mas preciso de respostas, e rápido, ou vou ficar mau de verdade bem depressa.

— Você está dirigindo como um idiota. Se não quiser ser parado pela polícia, é melhor desacelerar. Para onde estamos indo?

— Não sei. Você diz. Quero saber como parar isto e quero saber logo, porque está piorando.

Eu não sabia se ele queria dizer que a coisa estava piorando à medida que o tempo ficava mais frio, ou se ele estava ficando pior naquele minuto.

— Eu não vou dizer nada antes de você me levar aonde Sam está. Jack não respondeu. Continuei: — Não estou brincando. Onde é que ele está?

Jack virou a cabeça com brusquidão na minha direção.

— Acho que você não entendeu. Sou eu que estou dirigindo, sou eu que sei onde ele está e sou eu que posso arrancar sua cabeça se me transformar. Então acho que é você que tem que começar a ficar com medo e me dizer o que eu quero saber.

Suas mãos estavam aferradas ao volante, firmando os braços, que estremeciam. Meu Deus, ele ia começar a se transformar logo, logo. Eu tinha que pensar em alguma coisa para tirá-lo da estrada.

— O que você quer saber?

— Como fazer isto parar. Eu sei que você sabe qual é a cura. Sei que você foi mordida.

— Jack, eu não sei como fazer isso parar. Não posso curar você.

— É, achei que você fosse dizer isso. Foi por isso que mordi a sua amiga idiota. Porque, se você não vai se esforçar para me curar, sei que vai fazer isso por ela. Só tinha que ter certeza de que ela iria se transformar mesmo.

O atordoante sentido daquilo me deixou sem fôlego. Eu mal consegui fazer minha voz sair:

— Você mordeu Olívia?

— Você é idiota? Acabei de dizer isso. Então é melhor você começar a falar porque eu vou ahhh.

O pescoço dele se torceu, tremendo de forma bem estranha. Meus instintos de loba gritavam perigo medo terror raiva para mim, as emoções vindo dele em ondas.

Estiquei o braço e girei o botão do aquecimento. Não sabia se faria alguma diferença, mas mal também não poderia fazer.

— É o frio. O frio transforma você em lobo e o calor interrompe a transformação. — Eu falava depressa, tentando impedir que ele dissesse alguma coisa, tentando impedir que ficasse com mais raiva. — É pior logo que você é mordido. Você vai e volta de uma forma para outra o tempo todo, mas depois fica mais estável. Você passa a ficar humano por mais tempo... vai ficar assim o verão inteiro.

Outro espasmo sacudiu os braços de Jack. O carro derrapou no cascalho do acostamento, depois voltou para a estrada.

— Você não pode dirigir agora, Jack! Por favor. Eu não vou fugir. Eu quero ajudar você, quero mesmo. Mas você tem que me levar até Sam.

— Cale a boca. — A voz dele era quase um rosnado. — Aquela vaca também disse que queria me ajudar. Cansei disso. Ela me disse que você tinha sido mordida e que não tinha se transformado. Eu segui você. Estava frio. Você não se transformou. Então o que aconteceu? Olívia disse que não sabia.

Minha pele ardia com o aquecimento do carro no máximo e com a força das emoções de Jack. Cada vez que ele dizia “Olívia” era como um soco no meu estômago.

— Ela não sabe. Eu fui mordida sim, é verdade. Mas nunca me transformei, nem uma vez sequer. Não conheço a cura. Simplesmente não me transformei. Não sei por quê, ninguém sabe. Por favor...

— Pare de mentir para mim. — Era difícil entender o que ele dizia a essa altura. — Eu quero a verdade agora ou você vai se dar mal.

Fechei os olhos. Senti como se tivesse perdido o equilíbrio e o mundo todo se afastasse, girando, de mim. Tinha que haver alguma coisa que eu pudesse dizer a Jack para melhorar a situação. Abri os olhos.

— Tudo bem. Há uma cura. Mas não tem o bastante para todos, por isso ninguém queria lhe contar.

Me encolhi quando ele socou o volante com dedos de unhas pretas. Minha imaginação passou daquela estranha realidade para uma imagem da enfermeira mergulhando a agulha com a injeção antirrábica na pele de Sam.

— É uma espécie de vacina, dada direto na veia. Mas dói. Muito. Tem certeza de que quer tomar aquilo?

— Isto aqui dói — rosnou Jack.

— Muito bem. Se eu levar você para onde tem a vacina, você vai me dizer onde está Sam?

— Qualquer coisa! Diga para onde devo ir. E que Deus me ajude, porque eu mato você se estiver mentido.

Dei as direções para chegar à casa de Beck, e rezei para que ele conseguisse dirigir até lá. Peguei meu celular na mochila.

O Bronco deu uma guinada quando a atenção de Jack se concentrou em mim.

— O que você está fazendo?

— Estou ligando para Beck. É o cara que tem o remédio. Tenho que dizer a ele para não gastar a última dose antes de chegarmos lá. Tudo bem?

— Sério, é melhor você não estar mentindo para mim...

— Veja. Estou discando para este número. Não é para a polícia.

Me lembrei do número de Beck; sempre fui melhor com números do que com palavras. Começou a chamar. Atende. Atende. Tomara que esta seja a decisão certa.

— Alô?

Reconheci a voz.

— Oi, Beck. É Grace.

— Grace? Desculpe, sua voz parece familiar mas eu...

Cortei suas palavras:

— Você ainda tem um pouco daquilo? Da cura? Por favor, diga que não usou a última dose!

Beck ficou em silêncio. Fingi que ele tinha respondido.

— Graças a Deus. Ouça, Jack Culpeper está comigo no carro. Ele prendeu Sam em algum lugar e não vai me dizer onde, se não tomar primeiro uma dose do remédio. Estamos, sei lá, a uns dez minutos daí.

Beck falou, muito baixo:

— Droga.

Por algum motivo, aquilo fez meu peito estremecer. Levei um momento para entender que era um soluço reprimido.

— É. Então, você vai estar aí?

— Vou. Claro. Grace... Você ainda está aí? Ele pode me ouvir?

— Não.

— Mostre confiança, está bem? Tente não sentir medo. Não o olhe nos olhos, mas seja assertiva. Vamos esperar na casa. Faça ele entrar. Eu não posso sair ou me transformo, e aí estaremos todos ferrados.

— O que ele está dizendo? — perguntou Jack.

— Está dizendo por que porta você deve entrar quando chegar lá. Para você entrar depressa, para não se transformar. Ele não pode aplicar o remédio se você virar lobo.

— Boa menina — disse Beck.

Por algum motivo, a inesperada amabilidade de Beck foi difícil de suportar. Fez meus olhos se encherem de lágrimas, o que as ameaças de Jack não tinham conseguido.

— Vamos estar aí logo.

Fechei rapidamente o telefone e olhei para Jack. Não direto para seus olhos, mas para o lado da cabeça.

— Suba direto a entrada de carros, eles vão deixar a porta da frente destrancada.

— Como vou saber se posso confiar em você?

Dei de ombros.

— É como você disse: você sabe onde Sam está. Não vai lhe acontecer nada, porque precisamos saber onde ele está.


CAPÍTULO 49

SAM • 4° C

O frio se agarrava à minha pele. A escuridão terrena apertava meus olhos com tanta força que pisquei para tirá-la das retinas. Ao fazer isso, vi um nebuloso retângulo branco à minha frente — as frestas de uma porta. Sem qualquer outra coisa para me guiar, eu não sabia se aquilo estava desesperadamente perto ou terrivelmente longe. Muitos cheiros me cercavam, poeirentos, orgânicos, químicos. Minha respiração soava alto em meus ouvidos, portanto o lugar em que eu estava tinha que ser pequeno. Um quartinho de ferramentas? Um depósito de tralhas?

Merda. Estava frio. Não o suficiente para que eu me transformasse, ainda não. Mas aconteceria logo. Eu estava deitado — por que estava deitado? Levantei cambaleando e mordi o lábio com força para não ofegar alto. Havia algo errado com meu tornozelo. Tentei outra vez, com cuidado, uma frágil corça sobre pernas novas, e o chão cedeu. Caí de lado, bracejando, tentando achar algum apoio. As palmas das minhas mãos roçaram por uma série de instrumentos pontudos de tortura pendurados nas paredes. Eu não tinha ideia do que fossem — gelados, metálicos, sujos.

Engatinhei por um momento, escutando minha respiração, sentindo o sangue brotar das minhas mãos e pensando em desistir. Estava tão cansado de lutar. Eu me sentia como se tivesse passado semanas lutando.

Afinal, fiquei de pé e fui mancando até a porta, braços estendidos à frente para proteger de outras surpresas meu corpo desarmado. Um ar gelado infiltrava-se pelas fendas da porta. Escorria pelo meu corpo como água. Estendi a mão em busca de uma maçaneta mas havia apenas madeira de bordas irregulares. Uma farpa entrou no meu dedo e eu xinguei bem baixo. Então apoiei o ombro na porta e empurrei, pensando: Se houver alguma justiça no mundo, que por favor esta porta se abra.

Nada.


CAPÍTULO 50

GRACE • 4 ° C

Peguei a mochila.

— Chegamos.

De certa forma, parecia um absurdo que a casa de Beck tivesse exatamente a mesma aparência de quando Sam me levara até lá para caminhar pelo bosque dourado, já que as circunstâncias eram tão diferentes, mas tinha. A única diferença era a pesada picape de Beck na entrada de carros.

Jack já estava parando no acostamento. Pegando as chaves, ele me encarou com olhos desconfiados.

— Saia depois de mim.

Obedeci, esperando que contornasse o carro e abrisse a porta do meu lado. Deslizei para fora e ele agarrou meu braço com força. Seus ombros estavam torcidos demais para trás e a boca pendia ligeiramente aberta — acho que ele nem percebia. Eu deveria estar preocupada com a possibilidade de ele me atacar, mas tudo o que conseguia pensar era: Ele vai se transformar e não saberemos onde Sam está antes que seja tarde demais.

Rezei para que Sam estivesse em algum lugar quente, algum lugar fora do alcance do inverno.

— Depressa — disse eu, puxando meu braço da mão de Jack e quase correndo para a porta. — Não temos tempo.

Jack experimentou a porta da frente. Estava destrancada, como prometido, e ele me empurrou para dentro primeiro, antes de bater a porta atrás de si. Meu nariz captou um leve aroma de alecrim — alguém tinha cozinhado, e, por algum motivo, me lembrei da história de Sam sobre os bifes para Beck —, e então ouvi um grito e um rosnado.

Os dois sons vinham de Jack. Aquela não era a luta silenciosa de Sam tentando permanecer humano que eu já tinha visto. Aquela era violenta, raivosa, estridente. Os lábios de Jack rasgaram-se num rosnado e seu rosto se abriu num focinho, a pele mudando instantaneamente de cor. Ele esticou as mãos para mim como se fosse me bater, mas suas mãos viraram patas, com unhas duras e escuras. A pele dele inchava e reluzia por um momento antes de cada mudança radical, como uma placenta recobrindo um apavorante filhote de fera.

Olhei fixo para a camisa que pendia em torno da cintura do lobo. Eu não conseguia desviar os olhos. Era o único detalhe capaz de me convencer de que aquele animal tinha sido mesmo Jack apenas um momento antes.

Este Jack estava tão raivoso quanto estivera no carro, mas agora sua raiva não tinha direção, nem controle humano. A boca se arreganhou, mostrando os dentes, e criou a forma de um rosnado, mas não houve som.

— Para trás!

Um homem projetou-se no corredor, surpreendentemente ágil para sua altura, e correu direto para Jack, que, desprevenido, agachou-se na defensiva. O homem então caiu sobre ele com todo o seu peso.

— Deitado! — rosnou o homem, e eu recuei antes de perceber que ele falava com o lobo. — Fique deitado! Esta casa é minha. Você não é nada aqui.

Ele tinha uma das mãos em volta do focinho de Jack e gritava diretamente para ele. Jack silvou através da mandíbula apertada, e Beck forçou-lhe a cabeça para baixo. Os olhos de Beck voaram até mim e, apesar de estar prendendo um lobo enorme no chão com uma das mãos, sua voz estava perfeitamente controlada.

— Grace? Você pode ajudar?

Eu estava de pé, absolutamente imóvel, observando.

— Posso.

— Agarre a ponta do tapete em que ele está. Vamos arrastá-lo para o banheiro. É...

— Eu sei onde é.

— Ótimo. Vamos. Vou tentar ajudar, mas tenho que ficar em cima dele.

Juntos, arrastamos Jack pelo corredor até o banheiro onde eu tinha enfiado Sam na banheira. Metade em cima do tapete e metade fora dele, Beck segurou Jack por trás e empurrou-o para dentro do banheiro. Chutei o resto do tapete atrás dele. Beck pulou para trás e bateu a porta, trancando-a. A maçaneta tinha sido colocada ao contrário, a chave pelo lado de fora, me fazendo pensar com que frequência coisas daquele tipo tinham acontecido antes.

Beck deixou escapar um suspiro profundo, que pareceu fraco diante da situação, e olhou para mim.

— Tudo bem? Ele mordeu você?

Fiz que não, infeliz.

— De qualquer jeito, isso não importa. Como vamos achar Sam agora?

Beck fez um movimento de cabeça para que eu o seguisse até a cozinha perfumada a alecrim. Assim fiz, observando o lugar com cautela quando vi outra pessoa sentada junto à bancada. A única palavra que eu poderia usar para descrevê-lo seria sombrio. Ele era apenas sombrio, além de imóvel, silencioso e com cheiro de lobo. Tinha nas mãos cicatrizes que pareciam recentes. Só podia ser Paul. Não disse uma palavra, e Beck também não falou com ele quando se apoiou na bancada e pegou um celular.

Discou um número e colocou em viva-voz. Olhou para mim:

— Ele está muito zangado comigo? Jogou o celular fora?

— Acho que não. Não sei o número.

Beck olhou intensamente o telefone e escutamos a campainha, pequena e distante. Por favor, atenda. Meu coração dava saltos, descontrolado. Me apoiei na bancada que havia no centro da cozinha e olhei para Beck, para a estrutura quadrada de seus ombros, a forma quadrada do maxilar, a linha quadrada das sobrancelhas. Tudo nele parecia forte, honesto, seguro. Eu queria confiar nele. Queria acreditar que nada de ruim poderia acontecer porque Beck não estava em pânico.

Ouviu-se um estalo do outro lado da linha.

— Sam? — Beck aproximou-se mais do telefone.

A voz estava muito entrecortada.

— Gr... v...cê?

— Sou eu, Beck. Onde você está?

— ...ack. Grace... Jack pe... fri...

Tudo o que eu conseguia entender era o desespero dele. Eu queria estar lá, onde quer que ele estivesse.

— Grace está aqui — disse Beck. — Tudo sob controle. Onde você está? Em segurança?

— Frio.

A palavra chegou até nós, terrivelmente nítida. Me afastei da mesa. Ficar parada não parecia ser uma opção possível.

A voz de Beck continuava calma:

— Não estou ouvindo muito bem. Tente de novo. Diga onde está. Do modo mais claro que puder.

— Diga a Grace... ligar... abel... um... pão algum ...gar. Ouvi... gora.

Voltei para o meio da cozinha, me apoiei na bancada.

— Você quer que eu ligue para Isabel. Você está num galpão na propriedade deles? Ela está aí?

— ...tá. — A voz de Sam era enfática. — Grace?

— O quê?

— ... te amo.

— Não diga isso — falei. — Vamos tirar você daí.

— Depre...

Ele desligou.

Os olhos de Beck se voltaram para mim e, neles, pude ver toda a preocupação que sua voz não revelava.

— Quem é Isabel?

— A irmã de Jack.

Pegar a mochila e tirar o celular de um dos bolsos pareceu levar tempo demais.

— Sam deve estar preso em algum lugar na propriedade deles. Num galpão, ou coisa parecida. Se eu conseguir falar com Isabel no telefone, talvez ela possa achá-lo. Se não, vou até lá.

Paul olhou pela janela, para o sol moribundo, e eu soube que ele estava pensando que eu não teria tempo suficiente para chegar à casa dos Culpeper antes de a temperatura cair. Não adiantava pensar nisso. Achei o número de Isabel na lista de chamadas recebidas e liguei.

Chamou duas vezes.

— Oi.

— Isabel, é Grace.

— Não sou idiota. Vi o seu número.

Quis atravessar o telefone e estrangulá-la.

— Isabel, Jack trancou Sam em algum lugar perto da sua casa. — Interrompi-a antes que continuasse uma pergunta. — Não sei por quê. Mas Sam vai se transformar se ficar muito mais frio e, onde quer que ele esteja, está trancado. Por favor, me diga que está em casa.

— Aham. Acabei de chegar. Estou aqui dentro. Não ouvi nenhuma confusão ou coisa parecida.

— Vocês têm um galpão ou coisa parecida?

Isabel deu um muxoxo irritado.

— Temos seis galpões.

— Sam deve estar num deles. Ele ligou de dentro de um galpão. Se o sol se pôr, vai ficar gelado lá dentro em dois segundos.

— Já entendi! — retrucou Isabel com rispidez.

Houve um ruído de tecido roçando em tecido.

— Estou vestindo o casaco. Estou saindo. Você está me ouvindo? Já estou fora de casa. Estou congelando os ossos por sua causa. Estou atravessando o quintal, passando pela grama onde minha cadela costumava fazer xixi antes que o desgraçado do meu irmão a comesse.

Paul sorriu de leve.

— Pode ir mais depressa? — pedi.

— Estou correndo para o primeiro galpão. Estou chamando por ele. Sam. Sam! Sam! Você está aí? Não ouço coisa alguma. Se ele virou lobo num desses galpões e eu deixar ele sair e ele arrancar minha cabeça, vou fazer minha família processar você.

Ouvi um estalo surdo, baixo.

— Droga. A porta está presa.

Outro estalo.

— Sam? Garoto-lobo? Você está aí? Nada no depósito do cortador de grama. Aliás, onde é que está Jack, se ele fez isso?

— Aqui. Por enquanto ele está bem. Você consegue ouvir alguma coisa?

— Duvido que ele esteja bem mesmo. Ele está é totalmente ferrado, Grace. Quero dizer, da cabeça. E não, eu falo se ouvir alguma coisa. Vou para o próximo.

Paul encostou as costas da mão no vidro da janela acima da pia e se encolheu. Tinha razão. Estava ficando frio demais.

— Ligue outra vez para Sam — implorei a Beck. — Diga a ele para gritar, para que ela possa ouvi-lo.

Beck pegou o telefone, apertou um botão e segurou o aparelho junto ao ouvido.

Isabel parecia meio sem fôlego.

— Estou no galpão seguinte. Sam! Você está aí? Hein, cara?

Houve um guincho quase inaudível quando a porta foi aberta. Uma pausa.

— Se ele não se transformou numa bicicleta, também não está aqui.

— Quantos outros galpões existem aí?

Eu queria estar na propriedade dos Culpeper, no lugar de Isabel. Seria mais rápida do que ela. Estaria berrando a plenos pulmões para encontrá-lo.

— Já disse. Mais quatro. Só dois aqui perto. Os outros são lá no meio do campo, atrás da casa. São celeiros.

— Ele tem que estar num dos próximos. Ele disse que era um galpão.

Olhei para Beck, que ainda mantinha o telefone junto à orelha. Ele me olhou e sacudiu a cabeça. Ninguém atende. Sam, por que você atende?

— Estou no galpão do jardim. Sam! Sam, é Isabel, se você virou lobo, não arranque meu rosto.

Eu ouvia sua respiração ao telefone.

— A porta está presa, que nem a outra. Estou chutando ela com o meu sapato caro e isso está me deixando irritada.

Beck jogou o telefone na bancada e se afastou de Paul e de mim. Entrelaçou os braços na nuca. O gesto era tão Sam que me chocou.

— Consegui abrir. Está fedendo. Tem lixo por toda parte. Não tem nada... epa.

Ela parou e sua respiração chegou pelo telefone, mais pesada que antes.

— O quê? O quê?

— Peraí. Cala a boca. Estou tirando o meu casaco. Ele está aqui, está bom? Sam, Sam, olhe para mim. Sam, estou falando, olhe para mim, seu maldito, você não vai virar lobo logo agora. Não ouse fazer isso com ela.

Afundei devagar ao lado da bancada, apertando o telefone na orelha. O rosto de Paul não tinha mudado, ele só me observava, parado, quieto, sombrio, lobo.

Ouvi um som de tapa e o murmúrio leve de um palavrão. A seguir o vento uivando pelo telefone.

— Estou levando ele para dentro. Graças a Deus meus pais não estão em casa esta noite. Ligo para você daqui a pouco. Preciso das duas mãos agora.

O telefone silenciou em minhas mãos. Levantei os olhos para Paul, que ainda observava, pensando o que eu devia dizer a ele. Mas percebi que ele já sabia.


CAPÍTULO 51

GRACE • 3° C

O granizo dançava no para-brisa do carro quando subi a entrada dos Culpeper, e os pinheiros pareciam engolir os faróis. A pesada casa era quase invisível na escuridão, exceto por algumas poucas luzes brilhando nas janelas do térreo. Apontei o Bronco para elas como se pilotasse um navio em direção às luzes de um porto e parei perto da picape branca de Isabel. Nenhum outro carro.

Peguei o casaco sobressalente de Sam e pulei para fora. Isabel me recebeu à porta dos fundos, me guiando por um cômodo cheirando a fumaça, cheio de botas, coleiras de cachorro e chifres de veados. O cheiro de fumaça aumentou quando saímos dali e entramos numa cozinha linda e perfeita. Sobre a bancada central, abandonado, jazia um sanduíche não comido.

— Ele está na sala, perto da lareira — disse Isabel. — Parou de vomitar pouco antes de você chegar. Vomitou no tapete todo. Mas tudo bem porque eu gosto de deixar meus pais irritados comigo o tempo todo. Por que alterar um padrão constante?

— Obrigada — disse eu, muito mais grata do que a palavra era capaz de transmitir. Segui o cheiro de fumaça até a sala.

Felizmente para Isabel e sua incapacidade de fazer fogo, o teto era muito alto, e a maior parte da fumaça tinha subido. Sam era uma trouxa curvada junto à lareira, com um cobertor de pele de carneiro sobre os ombros. A seu lado, uma caneca intocada com algo de beber, ainda fumegante.

Corri até lá, tive um movimento de recuo por causa do calor do fogo, e parei de repente ao sentir o cheiro: ácido, terreno, selvagem. Um cheiro dolorosamente familiar que eu adorava — mas que não queria sentir naquele momento. O rosto que se virou para mim, porém, era humano; me agachei ao lado dele e o beijei. Ele me puxou cuidadosamente, como se um de nós pudesse se quebrar, e fechou os braços ao meu redor, descansando a cabeça no meu ombro. Senti-o estremecer sem parar, apesar do fogo pequeno e fumoso que ainda assim era tão quente que queimava meu ombro mais próximo.

Eu queria que Sam dissesse alguma coisa. Aquele silêncio mortal me assustava. Me afastei dele e acariciei seus cabelos por um minuto antes de dizer o que precisava:

— Você não está bem, está?

— É como uma montanha-russa — disse ele, baixinho. — Eu subo, subo, subo em direção ao inverno e, enquanto não chego ao topo, ainda posso cair para trás.

Desviei os olhos para a lareira, observando o coração do fogo, a parte mais quente, até que as cores e luzes perderam o significado, transformando minha visão em luzes brancas e dançantes.

— E agora você está exatamente no topo.

— Talvez esteja. Espero que não. Mas, meu Deus, me sinto tão mal...

Ele pegou minha mão com dedos congelados.

Não pude suportar o silêncio:

— Beck queria vir. Mas ele não podia sair da casa.

Sam engoliu em seco, e o som que produziu foi tão alto que eu ouvi. Será que ele estava passando mal de novo?

— Não vou mais vê-lo. Este é o último ano dele. Achei que tinha razão em ficar com raiva dele, mas agora parece bobagem. Não posso... não posso ficar com isso me atormentando.

Eu não sabia se ele estava falando do que despertara sua raiva em relação a Beck ou da montanha-russa em que se encontrava. Só continuei a olhar para o fogo. Tão quente. Um minúsculo verão, contido e furioso. Se pelo menos eu conseguisse colocar aquele calor dentro de Sam e mantê-lo aquecido para sempre. Eu tinha consciência de que Isabel continuava parada à porta da sala, mas ela parecia distante.

— Continuo me perguntando por que não me transformei — falei devagar. — Se nasci imune ou coisa parecida. Mas não foi isso, sabe? Porque peguei aquele resfriado. E também porque não sou realmente... normal. Sinto melhor os cheiros e ouço melhor. — Fiz uma pausa, tentando organizar os pensamentos. — Acho que foi meu pai. Acho que foi quando ele me deixou no carro. Fiquei tão quente que os médicos disseram que eu deveria ter morrido, lembra? Mas não morri. Sobrevivi. E não me transformei em lobo.

Sam me olhou com ar triste:

— Deve ser isso mesmo.

— Mas veja, isso poderia ser uma cura, não poderia? Fazer você ficar muito quente?

Sam meneou a cabeça. Estava muito pálido.

— Acho que não, meu anjo. Qual era a temperatura da água naquela banheira em que você me fez entrar? E... Ulrik... ele tentou ir para o Texas naquele ano... lá faz 39, 40 graus. E ele ainda é lobo. Se foi aquilo que a curou, foi porque você era pequena e porque teve uma febre maluca muito alta que a fez queimar de dentro para fora.

— Você podia provocar uma febre — falei de repente. Mas, assim que falei, balancei a cabeça. — Mas acho que não há um remédio para se aumentar a temperatura.

— Talvez haja — disse Isabel da porta.

Olhei para ela. Estava apoiada no portal, os braços cruzados, as mangas do pulôver imundas devido a sabe-se lá o que tinha feito para conseguir tirar Sam do galpão.

— Minha mãe trabalha numa clínica para pessoas de baixa renda dois dias por semana, e já a ouvi falando sobre um sujeito que teve 41 graus de febre. Tinha meningite.

— O que aconteceu com ele? — perguntei. Sam largou minha mão e desviou o rosto.

— Morreu. — Isabel deu de ombros. — Mas talvez um lobisomem não morresse. Talvez tenha sido por isso que você não morreu quando era criança, porque foi mordida pouco antes de seu pai idiota ter deixado você assando no carro.

Ao meu lado, Sam ficou de pé com dificuldade e começou a tossir.

— Não na droga do tapete! — disse Isabel.

Dei um pulo quando Sam pôs as mãos nos joelhos, com ânsia de vômito, mas sem vomitar. Ele se virou para mim, trêmulo, e vi algo em seus olhos que me fez desabar.

A sala cheirava a lobo. Por um momento atordoante, éramos apenas eu e Sam, meu rosto enterrado em seu pelo, a 160 quilômetros dali.

Sam apertou os olhos por um segundo e, ao abri-los, disse:

— Desculpe, Grace... Sei que é uma coisa horrível de pedir. Mas podemos ir à casa de Beck? Tenho que vê-lo de novo se isso for...

Ele parou.

Mas eu sabia o que ele quase havia dito. O fim.


CAPÍTULO 52

GRACE • 0,5° C

Dirigir em noites nubladas sempre me inquietou. Era como se a cobertura de nuvens baixas não só escondesse o luar como também tirasse todo o poder dos faróis, sugando sua luz assim que ela batia no ar. Agora, com Sam, eu sentia como se estivesse dirigindo por um túnel negro que ficava cada vez mais estreito. O granizo tamborilava no para-brisa. Minhas duas mãos agarravam o volante enquanto os pneus do carro derrapavam na estrada escorregadia.

O aquecimento estava ligado no máximo, e eu queria acreditar que Sam estava um pouco melhor. Isabel tinha lhe dado uma caneca térmica com café, e eu obrigava Sam a bebê-lo enquanto rodávamos, apesar da náusea que ele sentia. O café parecia estar ajudando mais do que as fontes externas de calor, aliás. Tomei aquilo como um possível reforço de nossa nova teoria sobre o calor interno.

— Estou pensando mais a respeito da sua teoria — disse Sam, como se lesse minha mente. — Faz muito sentido. Mas seria preciso algo para induzir a febre. Talvez meningite, como disse Isabel, mas fico achando que isso seria ruim.

— Além da febre em si, você quer dizer?

— É. Além disso. Ruim ao ponto de ser perigoso, sabe? Ainda mais considerando que não vamos poder testar primeiro em animais para saber se vai funcionar.

Sam me deu uma olhada para ver se eu tinha entendido a piada.

— Não teve graça nenhuma.

— Melhor do que nada.

— Aham.

Ele estendeu a mão e tocou meu rosto.

— Mas estou disposto a tentar. Por você. Para ficar com você.

Disse aquilo com tanta simplicidade e despojamento que levei um instante para receber o impacto completo da declaração. Eu quis dizer alguma coisa, mas me senti completamente sem ar.

— Não quero mais isso, Grace. Já não basta mais ficar observando você do bosque, não agora que já estive com você... de verdade. Não posso mais só olhar. Prefiro arriscar, prefiro seja lá o que possa acontecer...

— A morte...

— É, a morte... a ficar vendo tudo isto ir embora. Não posso, Grace. Quero tentar. Só que... acho que teria que estar humano para que haja uma chance. Acho que não dá para matar o lobo enquanto se é lobo.

Eu tremia. Não porque fizesse frio, mas porque aquilo pareceu possível. Horrível, mortal, medonho — possível. E eu queria. Queria nunca precisar abrir mão de sentir os dedos dele em meu rosto ou ouvir o som triste de sua voz. Eu deveria dizer a ele: Não, não vale a pena. Mas teria sido uma mentira de proporções tão gigantescas que não consegui.

— Grace — disse Sam ab-ruptamente. — Se você me quiser.

— O quê? — perguntei, e depois entendi o que ele tinha dito.

Parecia impossível que ele precisasse perguntar. Eu não podia ser tão difícil assim de ser entendida. E então compreendi — que palerma, que lerda — que ele queria ouvir aquilo. Ele me dizia o tempo todo como se sentia, e eu era apenas... estoica. Acho que nunca dissera o que sentia por ele.

— É claro que quero. Sam, eu amo você, você sabe que amo. Amo você há anos. Você sabe disso.

Ele envolveu o corpo com os braços.

— Eu sei. Mas queria ouvir você dizendo.

Estendeu a mão para a minha, antes de perceber que eu não podia tirá-la do volante. Então, em vez disso, enrolou uma mecha do meu cabelo em seus dedos e encostou-os no meu pescoço. Imaginei que podia sentir nossas pulsações se sincronizando através daquele contato mínimo. Isso pode ser meu para sempre.

Sam afundou no banco, parecendo cansado, e apoiou o rosto no ombro, para me olhar enquanto brincava com meu cabelo. Começou a murmurar uma canção e então, depois de alguns compassos, passou a cantá-la. Baixinho, meio cantado, meio falado, incrivelmente suave. Eu não peguei todas as palavras, mas era sobre sua garota do verão. Eu. Talvez sua garota eterna. Seus olhos amarelos estavam meio escondidos pelas pálpebras enquanto ele cantava, e naquele momento dourado, pairando tenso em meio a uma paisagem coberta de gelo como uma bolha de néctar de verão, eu pude ver como a vida poderia se desenrolar à minha frente.

O Bronco deu um solavanco violento e, um segundo depois, vi um cervo cair sobre o capô. Uma fissura correu pelo para-brisa, explodindo um segundo depois em mil rachaduras, como teia de aranha. Pisei no freio, mas nada aconteceu. Nem um sussurro de resposta.

Vire o volante, disse Sam, ou talvez eu o tenha imaginado dizendo isso, mas quando virei o volante o carro continuou em linha reta, deslizando, deslizando, deslizando. Me lembrei, no fundo da mente, de meu pai me dizendo: Obedeça às rodas traseiras. E fiz isso, mas era tarde demais.

Ouvimos um som como o de um osso quebrando, e havia um cervo morto em cima do carro e, dentro do carro, vidro por toda parte, e, Deus do céu, uma árvore espetada no capô, e havia sangue nos meus dedos por causa do vidro, e eu tremia, e Sam olhava para mim com aquela expressão no rosto como se não dissesse: ah não, e então percebi que o carro não estava andando, e que havia um ar gelado se infiltrando pelo buraco estilhaçado do para-brisa.

Perdi um momento olhando para Sam. Então tentei o motor, que nem mesmo respondeu quando virei a chave do carro. Falei:

— Vamos chamar a Emergência. Eles vêm nos buscar.

Os lábios de Sam criaram uma curva triste e ele concordou com a cabeça, como se aquilo realmente fosse funcionar. Liguei e comuniquei o acidente, falando rápido, tentando adivinhar onde poderíamos estar, e depois tirei o casaco, com cuidado para que as mangas não roçassem em meus dedos ensanguentados, e o coloquei sobre Sam. Ele ficou quieto, sem se mover, enquanto peguei um cobertor do banco de trás e também o coloquei em cima dele, e depois deslizei sobre o banco e me encostei nele, esperando que o calor de meu corpo o aquecesse.

— Ligue para Beck, por favor — disse ele.

Liguei. Pus o telefone em viva-voz e pousei-o sobre o painel.

— Grace?

A voz de Beck.

— Beck — disse Sam —, sou eu.

Houve uma pausa, e depois:

— Sam. Eu...

— Não temos tempo — disse Sam. — Nós atropelamos um cervo. Estamos parados.

— Meu Deus! Onde é que vocês estão? O carro está funcionando?

— Longe demais. Chamamos a Emergência. O carro enguiçou.

Sam deu a Beck um momento para que compreendesse o que ele queria dizer.

— Beck, desculpe eu não ter aparecido. Tem algumas coisas que preciso dizer...

— Não, me escute primeiro, Sam. Aqueles garotos. Preciso que você saiba por que os recrutei. Eles sabiam. Sabiam o tempo todo. Não fiz isso contra a vontade deles. Não foi como com você. Lamento tanto, Sam. Nunca deixei de lamentar.

As palavras não faziam sentido para mim, mas era claro que faziam para Sam. Seus olhos estavam brilhantes demais, e ele piscava.

— Eu não lamento. Eu te amo, Beck.

— Também te amo, Sam. Você é o melhor de nós, e nada pode mudar isso.

Sam estremeceu, o primeiro sinal que vi do frio agindo sobre ele.

— Tenho que desligar — disse ele. — Não tenho mais tempo.

— Adeus, Sam.

— Adeus, Beck.

Sam fez um sinal para mim com a cabeça, ao que desliguei o telefone.

Por um segundo ele ficou imóvel. Então, sacudiu todos os cobertores e casacos para libertar os braços e me abraçou o mais apertado que podia. Eu o sentia tremer, tremer encostado em mim, enquanto enterrava o rosto nos meus cabelos.

— Sam, não vá — falei, em vão.

Ele pegou meu rosto entre as mãos e me olhou nos olhos. Eram olhos amarelos, tristes, de lobo, meus.

— Eles continuam os mesmos. Lembre-se disso quando olhar para mim. Lembre que sou eu. Por favor.

Por favor, não vá.

Sam me soltou e abriu os braços, apoiando-se no painel e nas costas do banco. Curvou a cabeça e vi seus ombros estremecerem e se sacudirem. Assisti à silenciosa agonia da transformação até aquele grito suave, terrível, quando ele se perdeu de si mesmo.


CAPÍTULO 53

SAM • 0,5° C


caindo no vácuo trêmulo

estendendo a mão para você

me perdendo no gélido remorso

é este frágil amor

um modo

de dizer

adeus


CAPÍTULO 54

GRACE • 0° C

Quando os paramédicos chegaram, eu estava encolhida no banco do passageiro entre uma pilha de casacos, as mãos no rosto.

— Você está bem, moça?

Não respondi, só botei as mãos no colo e olhei meus dedos, cobertos de lágrimas ensanguentadas.

— Moça, você está sozinha?

Fiz que sim com a cabeça.


CAPÍTULO 55

SAM • 0° C

Eu a observava, como sempre tinha observado.

Os pensamentos eram escorregadios e transitórios, cheiros vagos num vento gelado, distantes demais para serem captados.

Ela estava sentada, fora do bosque, perto do balanço, encolhida e pequena, até que o frio a fez tremer, e mesmo assim ela não se moveu. Por muito tempo, eu não soube o que ela estava fazendo.

Eu a observava. Parte de mim queria ir até ela, embora o instinto gritasse contra isso. O desejo acendeu uma fagulha de pensamento, que por sua vez trouxe a lembrança de bosques dourados, dias flutuando e caindo ao meu redor, dias deitados imóveis e amassados no chão.

Mas percebi o que ela fazia, encolhida ali, tremendo com o frio cruel. Ela esperava, esperava que o frio lhe desse outra forma. Talvez o aroma não familiar que eu sentia vindo dela fosse esperança.

Ela esperava se transformar, eu esperava me transformar, e nós dois queríamos o que não podíamos ter.

Afinal, a noite arrastou-se pelo quintal, esticando as linhas, puxando-as do bosque até cobrirem o mundo inteiro.

Eu a observava.

A porta se abriu. Eu me encolhi mais para a escuridão. Um homem saiu, pegou a garota do chão. A luz da casa fazia cintilarem as marcas congeladas no rosto dela.

Eu a observava. Os pensamentos, distantes, fugiram em sua ausência. Depois que desapareceu dentro da casa, apenas uma coisa restou: saudade.


CAPÍTULO 56

GRACE • 1° C

Os uivos eram o mais difícil de suportar.

Por mais terríveis que fossem os dias, as noites eram piores; dias eram apenas apáticos preparativos para de algum modo atravessar mais uma noite povoada por suas vozes. Eu ficava deitada na cama e abraçava o travesseiro até não existirem mais vestígios do cheiro dele. Dormia em sua poltrona no escritório de papai até que ela tomasse minha forma em vez da dele. Andava descalça pela casa numa dor tão minha que não podia dividir com ninguém.

A única pessoa com quem eu poderia dividi-la, Olívia, não podia ser alcançada por telefone, e meu carro — o carro em que eu não suportava sequer pensar — estava quebrado e inútil.

E assim era apenas eu na casa e as horas se estendendo à minha frente, e as imutáveis árvores sem folhas do Bosque da Fronteira do lado de fora da janela.

A noite em que eu o ouvi uivar foi a pior. Os outros começaram primeiro, como tinham feito nas três noites anteriores. Afundei na poltrona de couro do escritório de papai, enterrei o rosto na última camiseta com cheiro de Sam e fiz de conta que aquilo era apenas uma gravação de uivos dos lobos, não lobos de verdade. Não pessoas de verdade. E então, pela primeira vez desde o acidente, escutei o uivo dele se juntar aos outros.

Aquilo me dilacerou o coração, porque escutei sua voz. Os lobos cantavam lentamente por trás dele, uma harmonia agridoce, mas tudo o que eu ouvia era Sam. Seu uivo tremia, erguia-se, descia até a angústia.

Escutei por um longo tempo. Rezei para que parassem, para que me deixassem em paz, mas ao mesmo tempo sentia um medo desesperado de que o fizessem. Muito tempo depois de desaparecidas as outras vozes, Sam continuava uivando, muito suave e lentamente.

Quando ele afinal silenciou, a noite morreu de repente.

Ficar sentada imóvel era intolerável. Levantei, andei, abri e fechei as mãos. Afinal, peguei o violão que Sam tinha tocado e gritei e bati com ele na escrivaninha de papai até que ficasse em pedaços.

Quando papai saiu do quarto, me encontrou sentada em meio a um mar de pedaços de madeira e cordas arrebentadas, como se um barco carregado de música tivesse se chocado de encontro a uma costa rochosa.


CAPÍTULO 57

GRACE • 1,6° C

Nevava quando peguei o telefone pela primeira vez depois do acidente. Leves e delicados flocos vagavam pelo quadrado preto de minha janela, como pétalas de flores. Eu não teria atendido, mas ela era a única pessoa com quem eu vinha tentando entrar em contato desde o acidente.

— Olívia?

— G-gr-r-ace?

Olívia, quase irreconhecível. Ela soluçava.

— Olívia, calma, o que aconteceu?

Era uma pergunta idiota. Eu sabia o que lhe tinha acontecido.

— Le-lembra que eu falei que sabia dos lobos? Ela puxava grandes lufadas de ar entre as palavras. — Não falei do hospital. Jack...

— Ele mordeu você — eu disse.

— É — Olívia soluçou a resposta. — Achei que nada iria acontecer, porque os dias passavam e eu continuava a mesma!

Minhas pernas ficaram bambas.

— Você se transformou?

— Eu... eu não posso... eu...

Fechei os olhos, imaginando a cena. Meu Deus.

— Onde você está agora?

— No p-ponto de ônibus. — Ela fez uma pausa, fungando. — Está f-frio.

— Ai, Olívia. Olívia, venha para cá. Fique comigo. Vamos dar um jeito nisso. Eu iria até aí, mas ainda estou sem carro.

Olívia voltou a soluçar.

Levantei e fechei a porta do quarto. Não que mamãe fosse me ouvir; ela estava no andar de cima.

— Olívia, está tudo bem. Eu não vou me apavorar. Eu vi Sam se transformar e não me apavorei. Sei como é. Acalme-se, está bem? Eu não posso ir buscar você. Estou sem carro. Você vai ter que dirigir até aqui.

Acalmei-a por mais alguns minutos e lhe disse que a porta da frente estaria destrancada quando ela chegasse. Pela primeira vez desde o acidente, eu me senti outra vez mais parecida comigo.

Quando Olívia chegou, os olhos vermelhos e descabelada, eu a empurrei para o chuveiro e fui buscar roupas para ela. Sentei na tábua do vaso fechado enquanto ela ficava debaixo da água quente.

— Eu conto a minha história se você me contar a sua — falei para ela. — Quero saber quando Jack mordeu você.

— Já contei como eu o encontrei, tirando fotos dos lobos, e como dei comida a ele. Foi tão idiota não contar a você... mas é que eu estava me sentindo tão culpada por ter brigado com você que não contei logo. Então comecei a matar aula para ajudar Jack, e então achei que não podia contar a você sem... não sei o que pensei. Desculpe.

— São águas passadas — disse eu. — Como ele agia? Obrigou você a ajudá-lo?

— Não — disse ela. — Na verdade ele era bem legal quando as coisas corriam como ele queria. Ficou com muita raiva quando se transformou, mas aquilo parecia doer. E ele continuava a perguntar sobre os lobos, querendo ver fotos. E conversamos, e depois que ele descobriu que você tinha sido mordida...

— Descobriu? — repeti.

— Ok, eu contei a ele! Não imaginei que fosse ficar maluco por causa disso! A partir daí, ele falava sem parar numa cura, e tentou me obrigar a contar como resolver o caso dele. E então ele, ahn, ele... — Ela enxugou os olhos. — Me mordeu.

— Espere. Ele mordeu você quando estava humano?

— É.

Estremeci.

— Santo Deus. Que coisa horrível. Canalha filho da mãe. Então você vem passando por isso esse tempo todo, sozinha?

— A quem eu podia contar? — disse Olívia. — Achei que Sam fosse um deles, por causa dos olhos, porque achei que tinha reconhecido os olhos das minhas fotos... mas, quando o conheci, ele me disse que usava lentes de contato. Então, pensei que tinha me enganado, ou que, de qualquer jeito, ele não iria me ajudar.

— Você devia ter me contado. Aliás, eu já tinha falado com você sobre os lobisomens.

— Eu sei. Eu só estava... culpada. Fui uma... — ela fechou a água — imbecil. Não sei. O que é que posso fazer, aliás? Como foi que Sam ficou tanto tempo humano? Eu o via. Ele esperava no carro por você o tempo todo, e nunca se transformou.

Passei-lhe uma toalha por sobre a cortina.

— Vamos para o meu quarto. Vou contar tudo.


Olívia passou a noite comigo, tremendo e se debatendo tanto que, depois de algum tempo, fez um ninho com cobertores e meu saco de dormir ao lado da cama, para que pudéssemos as duas dormir. Depois de um café da manhã atrasado, fomos comprar pasta de dente e outros itens pessoais para Olívia. Mamãe já tinha ido trabalhar, indo de carona com papai, portanto eu pude usar o carro dela. Ao sair da loja, meu telefone tocou. Olívia pegou o telefone, sem atender, e leu o número para mim.

Beck. Será que eu queria mesmo falar com ele? Suspirei e estendi a mão para o telefone.

— Alô?

— Grace?

— Eu.

— Desculpe ligar para você — disse ele. Sua voz estava desprovida de entonação. — Sei que os últimos dias devem ter sido difíceis para você.

Eu deveria dizer alguma coisa? Tomara que não, pensei, pois eu não conseguia pensar em coisa alguma. Meu cérebro parecia enevoado.

— Grace?

— Estou aqui.

— Liguei por causa de Jack. Ele está melhor agora, mais estável, e não falta muito para se transformar para o inverno. Mas ainda tem algumas semanas de idas e vindas, eu acho.

Meu cérebro não estava enevoado a ponto de eu não perceber o quanto Beck estava confiando em mim naquele momento. Me senti vagamente honrada.

— Então ele não está mais trancado no banheiro?

Beck riu, não um riso de quem estivesse se divertindo mas, de qualquer maneira, um riso bom de se ouvir.

— Não, ele foi promovido do banheiro para o porão. Mas tenho medo de que, hã, eu vá me transformar logo... quase aconteceu hoje de manhã. E isso deixaria Jack numa situação muito ruim nas próximas semanas. Detesto pedir isso, porque você corre o risco de ser mordida... mas você poderia ficar de olho nele até que se transforme?

Hesitei.

— Beck, eu já fui mordida.

— Meu Deus!

— Não, não — acrescentei depressa. — Não recentemente. Há muitos anos.

A voz de Beck ficou estranha.

— Você é a garota que Sam salvou, não é?

— Sim.

— E você nunca se transformou.

— Não.

— Há quanto tempo conhece Sam?

— Só nos encontramos pessoalmente este ano. Mas eu o observava desde que ele me salvou.

Subi a entrada de carros, mas não desliguei o carro. Olívia se inclinou, aumentou o aquecimento e ficou recostada no banco, de olhos fechados.

— Eu queria ir aí antes de você se transformar. Conversar um pouco, se não for problema para você.

— Seria ótimo, mas infelizmente tem que ser logo. Estou chegando ao ponto do qual não vou poder voltar.

Droga. Meu telefone apitava, avisando de outra chamada.

— Hoje à tarde? — perguntei. Quando ele concordou, eu disse: — Tenho que desligar, desculpe. Tem alguém me ligando.

Nós nos despedimos e apertei a tecla para aceitar a outra chamada.

— Mas que saco, Grace, quantas vezes você ia deixar isso tocar? Dezoito? Vinte? Cem?

Era Isabel; não tinha notícias dela desde o dia seguinte à batida, quando lhe disse onde Jack estava.

— Você sabe muito bem que eu estava na escola, e sendo torturada pelo telefone tocando durante as aulas.

— Você não estava na escola. Enfim. Preciso da sua ajuda. Minha mãe viu outro caso de meningite, do pior tipo, na clínica em que trabalha. Enquanto eu estava lá, tirei sangue do sujeito. Três frascos.

Levei vários segundos para entender o que ela estava dizendo.

— Você o quê?! Por quê?

— Grace, eu achava que você era a melhor aluna da turma. Sem dúvida, ser parte dos excluídos fez maravilhas por você. Tente se concentrar. Enquanto mamãe estava ao telefone, fingi que era uma enfermeira e tirei sangue do cara. Aquele sangue nojento, infectado.

— Você sabe tirar sangue?

— Sei, eu sei tirar sangue! Todo mundo sabe, não? Você não está entendendo? Três frascos. Um para Jack. Um para Sam. Um para Olívia. Preciso que você me ajude a levar Jack para a clínica. O sangue está na geladeira de lá. Tenho medo de tirá-lo de lá e a bactéria morrer ou sei lá o que as bactérias fazem. Enfim, não sei onde é a casa desse sujeito onde Jack está.

— Você quer injetar o sangue. Para que eles peguem meningite.

— Não, quero que peguem malária. É, sua idiota, quero que eles peguem meningite. O sintoma principal da meningite é... tantantantan... febre. E, para ser franca, estou me lixando se você vai fazer o mesmo com Sam e Olívia. É provável que não funcione mesmo com Sam, porque ele já virou lobo. Mas achei que tinha que arrumar sangue suficiente para todos, se quisesse que você me ajudasse.

— Eu teria ajudado você de qualquer maneira, Isabel. — Suspirei. — Vou lhe dar um endereço. Me encontre lá daqui a uma hora.


CAPÍTULO 58

GRACE • 5° C

Estar no porão de Beck me deixou ao mesmo tempo o mais feliz e o mais triste desde que Sam se transformara em lobo, porque ver Beck ali, em seu próprio mundo, era como ver Sam outra vez. Começou quando deixamos Olívia vomitando no banheiro e encontramos Beck no alto da escada para o porão. Fazia frio demais para que ele nos recebesse à porta, e percebi que Sam herdara muitos maneirismos e movimentos de Beck. Mesmo os gestos mais simples: estender a mão para acender a luz, inclinar a cabeça para nos fazer acompanhá-lo, encolher-se desajeitado para evitar uma viga mais baixa no final da escada. Era tão Sam que chegava a doer.

Então, chegamos ao fim da escada e prendi a respiração. A grande sala principal do subsolo estava cheia de livros. Não eram só alguns. Era uma biblioteca. As paredes estavam cobertas de prateleiras que iam até o alto do teto, e repletas de volumes. Mesmo sem me aproximar, eu podia ver que estavam organizados: altos e gordos atlas e enciclopédias numa prateleira; brochuras pequenas e coloridas com as bordas amassadas em muitas outras; grandes livros de fotografia com letras de forma nas lombadas; romances de capa dura com sobrecapas lustrosas. Andei devagar até o meio da sala e parei no carpete laranja escuro, girando lentamente para ver todos os livros.

E o cheiro — o cheiro de Sam estava por toda parte naquela sala, como se ele estivesse ali comigo, segurando minha mão, olhando todos aqueles volumes e esperando que eu dissesse: “Adorei.”

Eu estava quase quebrando o silêncio para dizer algo tipo “Posso ver de quem Sam herdou o hábito de leitura” quando Beck falou, quase se desculpando:

— Quando a gente passa muito tempo em casa, lê muito.

Me lembrei então, de repente, do que Sam tinha me dito sobre Beck: aquele era seu último ano como humano. Ele jamais leria aqueles livros de novo. Fiquei sem palavras, só consegui olhar para Beck e dizer, bobamente: “Adoro livros.”

Ele sorriu, como se soubesse. Então olhou para Isabel, que esticava o pescoço como se Jack pudesse estar enfiado numa das prateleiras.

— Jack deve estar na outra sala, jogando videogame — disse Beck.

Isabel seguiu o olhar dele até a porta.

— Ele vai rasgar meu pescoço se eu entrar lá?

Beck deu de ombros.

— Não mais que o habitual, suponho. Aquela é a sala mais quente da casa, e acho que ele se sente mais confortável ali. Embora ainda se transforme de vez em quando. É só ficar atenta.

Era interessante como ele falava de Jack — mais animal do que humano. Como se aconselhasse Isabel sobre como chegar perto dos gorilas no jardim zoológico. Depois que ela desapareceu na outra sala, Beck fez um gesto indicando uma das macias poltronas vermelhas da sala.

— Sente-se.

Fiquei contente de me instalar numa das poltronas. Cheirava a Beck e a alguns outros lobos, mas sobretudo a Sam. Era tão fácil imaginá--lo ali, encolhido naquele lugar, lendo e desenvolvendo um vocabulário irritantemente grande. Encostei a cabeça num dos braços da poltrona fazendo de conta que estava aconchegada em Sam e me virei para olhar para Beck, sentado na poltrona oposta. Não ereto, mas afundado nela, com as pernas esticadas. Ele parecia cansado.

— Fico um tanto espantado por Sam ter mantido você em segredo todo esse tempo.

— Fica?

Ele deu de ombros.

— Acho que não deveria ficar. Não contei a ele sobre minha mulher.

— Ele sabia, me falou dela.

Beck riu, um riso curto e afetuoso.

— Eu não deveria me surpreender com isso também. Guardar segredo de Sam era impossível. Pode ser lugar comum, mas ele podia ler as pessoas como a um livro.

Nós dois falávamos dele no passado, como se estivesse morto.

— Você acha que eu vou vê-lo de novo?

Sua expressão era distante, indecifrável.

— Acho que este ano foi o último dele. Acho mesmo. Sei que é o meu. Não entendo por que ele teve tão poucos anos. Simplesmente não é normal. Quer dizer, varia, mas eu fui mordido há pouco mais de vinte anos.

— Vinte?

Beck assentiu.

— No Canadá. Eu tinha 28 anos, estava crescendo na empresa, e estava de férias, fazendo caminhadas.

— E quanto aos outros? De onde são?

— De toda parte. Quando soube que havia lobos em Minnesota, achei que poderia haver uma boa chance de que fossem como eu. Então comecei a procurá-los, descobri que estava certo, e Paul me tomou sob sua proteção. Paul é...

— O lobo preto.

Ele assentiu.

— Você quer café? Eu seria capaz de matar por café, se me perdoa a expressão.

Fiquei imensamente grata pela oferta.

— Seria maravilhoso. Se você me mostrar onde está o bule, eu faço.

Beck apontou para onde estava, escondido num canto entre as prateleiras, perto de uma pequena geladeira.

— E pode continuar falando — disse eu.

Ele pareceu achar graça.

— De quê?

— Do bando. De como é ser lobo. De Sam. De por que você o transformou. Fiz uma pausa, filtro de café na mão. — É, isso. Gostaria que me contasse principalmente isso.

Beck escondeu o rosto com uma das mãos.

— Meu Deus, o pior de tudo. Transformei Sam porque eu era um canalha egoísta e desalmado.

Medi a quantidade de café. Senti o remorso na voz de Beck, mas eu não o deixaria escapar.

— Isso não é um motivo.

Suspiro profundo.

— Eu sei. Jen, minha mulher, tinha acabado de morrer. Ela tinha câncer em fase terminal quando nos conhecemos, portanto eu sabia que aquilo ia acontecer. Mas eu era jovem e burro, achei que aconteceria um milagre e que viveríamos felizes para sempre. Enfim. Nenhum milagre aconteceu. Fiquei deprimido. Pensei em me matar, mas o engraçado de ter um lobo dentro de você é que o suicídio não parece uma boa ideia. Já reparou que animais não se matam de propósito?

Nunca tinha reparado. Registrei a informação.

— Enfim, eu estava em Duluth no verão, e vi Sam com os pais. Céus, isso parece horrível, não é? Mas não foi assim. Jen e eu falávamos o tempo todo em ter filhos, mesmo sabendo, nós dois, que jamais aconteceria. Que diabos, a expectativa de vida para ela era de só mais oito meses. Como poderia ter tido um filho? Bem, então, eu vi Sam. Lá estava ele com seus olhos amarelos, exatamente como os de um verdadeiro lobo, e eu fiquei totalmente obcecado com a ideia. E... você não precisa me dizer, Grace, eu sei que foi errado... mas eu o vi com aqueles pais idiotas e pouco inteligentes, tão desmiolados como um par de pombos, e achei que eu poderia ser melhor para ele. Poderia ensiná-lo mais.

Fiquei em silêncio, e Beck levou outra vez a testa até a mão. Sua voz soava como a de alguém com séculos de idade. Fiquei em silêncio, mas ele gemeu.

— Oh, Deus, eu sei, Grace. Eu sei. Mas sabe o que é mais estúpido? É que eu realmente gosto de ser quem sou. Quer dizer, não desde o início. Era uma maldição. Mas, com o tempo, passou a ser como alguém que ama o verão e o inverno. Isso faz sentido? Eu sabia que um dia eu me perderia de mim, mas já estou em paz com isso há muito tempo. Achei que Sam também superaria.

Achei as canecas num cantinho acima da cafeteira e peguei duas.

— Mas não superou. Leite?

— Um pouco. Não demais. Beck suspirou. — Para ele, é o inferno. Eu criei um inferno pessoal para ele. Ele precisa daquela espécie de autoconsciência para se sentir vivo, e quando a perde e se torna um lobo... é horrível. Ele é sem sombra de dúvida a melhor pessoa que conheci no mundo, e eu o destruí por completo. Há anos sinto remorso por isso, a cada dia.

Ele provavelmente merecia o remorso, mas eu não podia fazê-lo afundar ainda mais. Entreguei uma caneca a ele e voltei a me sentar.

— Sam adora você, Beck. Ele pode odiar ser lobo, mas adora você. E tenho que confessar, é uma tortura para mim ficar sentada aqui com você, porque tudo em você me lembra ele. Se você o admira, é porque fez dele quem ele é.

Beck pareceu estranhamente vulnerável, as mãos em torno da caneca, me olhando através do vapor que saía do café. Ficou em silêncio por muito tempo, depois disse:

— O remorso é uma das coisas que eu vou ter prazer em perder.

Franzi a testa para ele. Tomei um gole de café.

— Você vai se esquecer de tudo?

— Não se esquece tudo. Apenas se vê as coisas de modo diferente. Através do cérebro de um lobo. Algumas coisas perdem por completo a importância quando se é lobo. Outras são emoções que os lobos simplesmente não têm. Essas nós perdemos. Mas as coisas mais importantes... essas podemos conservar. A maioria.

Como o amor. Me lembrei de Sam me observando antes de nos conhecermos como gente, e de eu o olhando de volta. Estávamos nos apaixonando, por mais impossível que fosse. Algo me doeu por dentro, terrivelmente, e por um instante não consegui falar.

— Você foi mordida — disse Beck.

Eu já tinha ouvido aquilo antes, aquela pergunta sem ponto de interrogação. Concordei com a cabeça.

— Há pouco mais de seis anos.

— Mas nunca se transformou.

Contei a história de ter ficado trancada no carro, e depois expliquei a teoria de uma possível cura que Isabel e eu tínhamos desenvolvido. Beck ficou quieto por bastante tempo, fazendo um pequeno círculo na lateral da caneca com um dos dedos, fitando com olhos vazios os livros na parede.

Afinal, assentiu.

— Pode funcionar. Posso entender como funcionaria. Mas acho que você tem que estar humano quando for infectado de meningite para dar certo.

— Foi o que Sam disse. Ele disse que, se você fosse matar o lobo, não poderia ser lobo quando fosse infectado.

Os olhos de Beck pareciam mais distantes quando ele pensava.

— Puxa, mas é arriscado. Você não pode tratar a meningite até ter certeza de que a febre matou o lobo. A meningite bacteriana tem uma taxa de mortalidade incrivelmente alta, mesmo que você a descubra logo e trate desde o começo.

— Sam me disse que se arriscaria a morrer pela cura. Você acha que ele falou sério?

— Sem dúvida — disse Beck, sem hesitação. — Mas ele é um lobo. E é provável que fique assim pelo resto da vida.

Baixei os olhos para a caneca semivazia, observando como o líquido mudava de cor nas bordas.

— Eu estava pensando que poderíamos levá-lo até a clínica para ver se ele se transformava com o calor do lugar.

Houve uma pausa, mas não levantei a cabeça para ver a expressão de Beck. Ele disse, com doçura:

— Grace.

Engoli em seco, ainda olhando para o café.

— Eu sei.

— Tenho observado lobos por vinte e tantos anos. É previsível. Chegamos ao fim... e este é o fim.

Eu me sentia como uma criança teimosa.

— Mas ele se transformou este ano, quando não deveria ter mudado, não é? Quando levou o tiro, ele virou humano.

Beck tomou um grande gole de café. Seus dedos tamborilaram na lateral da caneca.

— Para salvar você. Ele virou humano para salvar você. Não sei como ele fez isso. Ou por quê. Mas fez. Sempre pensei que teria algo a ver com a adrenalina, enganando o corpo para fazê-lo achar que estava aquecido. Sei que tentou fazer isso outras vezes, mas nunca conseguiu.

Fechei os olhos e me permiti imaginar Sam me carregando. Quase podia ver a cena, cheirá-la, vivê-la.

— Que inferno! — Beck não disse nada por muito tempo. — Que inferno! — repetiu. — Era o que ele iria querer fazer. Tentar. Esvaziou a caneca. — Eu vou ajudar você. Como pensa em fazer isso? Drogá-lo até chegar lá?

Na verdade, eu estava pensando naquilo desde que Isabel telefonara.

— Acho que temos que fazer isso, não é? Do contrário ele não vai suportar.

— Benadril — disse Beck, pragmático. — Tenho um pouco lá em cima. Vai deixá-lo zonzo o bastante para não enlouquecer no carro.

— Só não consegui imaginar como fazê-lo vir até aqui. Não o vejo desde o acidente.

Eu tomava cuidado com as palavras. Não podia me deixar levar pela esperança. Simplesmente não podia.

A voz de Beck foi assertiva:

— Eu posso fazer isso. Vou apanhá-lo. Vou fazê-lo vir. Vamos botar o Benadril num hambúrguer ou coisa parecida.

Levantou e pegou a caneca de café da minha mão.

— Gosto de você, Grace. Gostaria que Sam pudesse ter tido...

Ele parou, pôs a mão no meu ombro. Sua voz era tão gentil que me deu vontade de chorar.

— Pode funcionar, Grace. Pode funcionar.

Eu podia ver que ele não acreditava, mas também via que ele queria acreditar. Por enquanto, era o bastante.


CAPÍTULO 59

GRACE • 3° C

Uma fina camada de neve cobria o chão quando Beck chegou ao quintal, os ombros morenos e quadrados sob o suéter. Dentro de casa, Isabel e Olívia olhavam pela janela comigo, prontas para ajudar, mas eu me sentia como se estivesse sozinha, observando Beck mergulhar lentamente em seu último dia como humano. Numa das mãos tinha um pedaço de carne crua e vermelha empapada de Benadril; na outra, um tremor incontrolável.

A uns 10 metros da casa Beck parou, largou a carne no chão e deu vários passos na direção do bosque. Por um momento ficou ali, a cabeça inclinada de um jeito que eu reconhecia. Atento a sons.

— O que é que ele está fazendo? — perguntou Isabel, mas não respondi.

Beck fez uma concha com as mãos em torno da boca e, mesmo lá dentro, eu podia ouvi-lo com clareza.

— Sam! — ele gritou de novo. — Sam! Eu sei que você está aí! Sam! Sam! Lembra-se de quem você é? Sam!

Tremendo, Beck continuou gritando o nome de Sam para o bosque vazio e gelado, até cambalear e recuperar o equilíbrio pouco antes de cair.

Cobri a boca com a mão, as lágrimas desciam pelo meu rosto.

Beck gritou por Sam mais uma vez, e então seus ombros se arquearam, envergando e se retorcendo, mãos e pés descontrolados riscando a camada de neve em volta. A roupa ficou pendurada nele, grande e embolada, e ele então recuou e se livrou dela, sacudindo a cabeça.

O lobo cinzento ficou no meio do quintal, olhando na direção das portas de vidro, os olhos nos vendo observá-lo. Ele se afastou das roupas que jamais usaria outra vez e então se imobilizou, virando a cabeça na direção do bosque.

Por entre os pinheiros despidos e negros surgiu outro lobo, de cabeça baixa e cauteloso, o pelo coberto de neve como um pó branco. Seus olhos me encontraram atrás do vidro.

Sam.


CAPÍTULO 60

GRACE • 2° C

O anoitecer estava cinzento, cor de aço. O céu era uma extensão interminável de nuvens geladas à espera da neve e da noite. Os pneus do utilitário esmigalhavam as estradas cobertas de sal, e o granizo tamborilava sobre o para-brisa. Dentro da picape, ao volante, Isabel se queixava sem parar do “cheiro de cachorro molhado”, mas para mim aquilo era pinheiro e terra, chuva e almíscar. E, ao fundo, o toque ácido e contagioso de ansiedade. No banco do passageiro, Jack gemia baixinho, a meio caminho entre o ser humano e o animal. No banco traseiro, a meu lado, Olívia apertava tanto a minha mão que chegava a doer.

Sam estava atrás de nós. Quando o carregamos até o veículo, seu corpo estava pesado de sono induzido pela droga. Agora, sua respiração era profunda e desigual, e eu fazia um enorme esforço para conseguir ouvi-lo acima do barulho da lama espirrada pelos pneus; queria manter alguma conexão com ele, já que não podia tocá-lo. Como estava drogado, eu poderia ter me sentado a seu lado e acariciado seu pelo, mas isso teria sido um tormento para ele.

Ele agora era um animal. De volta ao seu mundo, distante de mim.

Isabel parou em frente à pequena clínica. Àquela hora, o estacionamento estava escuro e apagado, e a clínica em si era um quadradinho cinzento. Não parecia um lugar capaz de produzir milagres. Parecia um lugar aonde alguém iria quando estivesse doente e sem dinheiro. Tirei aquele pensamento da cabeça.

— Roubei as chaves da minha mãe — disse Isabel. Devo reconhecer que sua voz não soava nervosa. — Vamos, Jack, faça um esforço para não atacar ninguém antes de entrarmos, ok?

Jack murmurou alguma coisa impublicável. Olhei para trás; Sam estava de pé, oscilando.

— Depressa, Isabel. O efeito do Benadril está passando.

Isabel derrubou a barreira que havia na entrada do estacionamento.

— Se nos prenderem, vou dizer que vocês todos me sequestraram.

— Ande! — retruquei. Abri a porta. Tanto Olívia quanto Jack se encolheram de frio. — Depressa! Vocês dois precisam correr.

— Eu volto para ajudar você com ele — disse Isabel, e pulou do carro. Me virei para Sam, que ergueu os olhos para mim. Parecia desorientado, tonto.

Fiquei por um instante imobilizada pelo seu olhar, me lembrando dele deitado na cama, nossos narizes encostados, seus olhos mergulhados nos meus.

Ele deixou escapar um leve ruído de ansiedade.

— Desculpe — disse.

Isabel voltou, e fui para trás, para ajudá-la. Ela tirou o cinto e, com habilidade, passou-o à volta do focinho de Sam. Eu me encolhi, mas não podia dizer a ela que não fizesse aquilo. Ela nunca tinha sido mordida e não havia qualquer garantia de que Sam reagiria bem àquele procedimento.

Num esforço conjunto, nós o levantamos e o arrastamos com dificuldade até a clínica. Isabel chutou a porta, que já estava ligeiramente entreaberta.

— As salas de exames são por ali. Tranque-o numa das salas e vamos cuidar primeiro de Olívia e Jack. Talvez Sam se transforme de novo, se ficar no calor muito tempo.

A mentira de Isabel era de uma gentileza extraordinária; nós duas sabíamos que ele não se transformaria sem algum tipo de milagre. O máximo que eu podia esperar era que Sam tivesse se enganado em sua suposição — que aquela cura não o mataria se ele estivesse em forma de lobo. Segui Isabel até uma pequena salinha de suprimentos, lotada e fedendo a uma espécie de cheiro medicinal de borracha. Olívia e Jack já nos esperavam ali, as cabeças inclinadas e próximas como se conversassem, o que me surpreendeu. Jack ergueu o rosto quando entramos.

— Não aguento esta espera — disse ele. — Não podemos acabar logo com essa droga?

Olhei para um recipiente com compressas de gaze embebidas em álcool.

— Preciso desinfetar o braço dele?

Isabel me olhou.

— Estamos infectando-o de propósito com meningite. Me parece inútil nos preocuparmos com a possibilidade de infectar o lugar da injeção.

De qualquer modo, desinfetei o braço dele enquanto Isabel tirava uma seringa cheia de sangue da geladeira.

— Ai, meu Deus — Olívia murmurou, os olhos fixos na seringa.

Não tínhamos tempo para prepará-la. Peguei a mão gelada de Jack e a virei com a palma para cima, como me lembrava de ter visto a enfermeira fazer antes das injeções antirrábicas que havíamos tomado.

Isabel encarou Jack.

— Você tem certeza de que quer isto?

Ele mostrou os dentes num rosnado. Cheirava a medo.

— Ande logo.

Isabel hesitou, e levei um momento para entender por quê.

— Deixe que eu faço — falei. — Ele não pode me fazer mal.

Isabel me passou a seringa e deu um passo para o lado. Tomei o seu lugar.

— Olhe para o outro lado — ordenei a Jack.

Ele virou a cabeça. Enfiei a agulha nele e, depois, lhe dei uma bofetada no rosto com a outra mão quando ele avançou para cima de mim.

— Controle-se! — falei, áspera. — Você não é um animal.

— Desculpe — ele murmurou.

Esvaziei toda a seringa, tentando não pensar demais no sanguinolento conteúdo dela, e puxei a agulha. Havia um ponto vermelho no lugar da injeção; não sei se era do sangue de Jack ou do sangue infectado. Isabel só conseguia olhar fixo para a marca, então me virei, peguei um band-aid e cobri o lugar. Olívia deixou escapar um gemido.

— Obrigado — disse Jack. Ele envolveu o corpo com os braços. Isabel parecia enjoada.

— Me dê a outra — eu disse a Isabel.

Ela me passou a outra seringa e nos viramos para Olívia, que, de tão pálida, eu podia ver uma veia correndo na sua testa. Suas mãos tremiam de nervoso. Isabel assumiu meu trabalho de desinfetar o braço. Era como se uma regra tácita nos dissesse que ambas precisávamos nos sentir úteis para tornar possível aquela tarefa odiosa.

— Mudei de ideia! — implorou Olívia. — Não quero fazer isso! Vou correr o risco!

Peguei a mão dela.

— Olívia. Olive. Calma.

— Não consigo.

Os olhos dela estavam fixos no líquido vermelho-escuro da seringa.

— Não sei se prefiro morrer a ser assim.

Eu não sabia o que dizer. Não queria convencê-la a fazer uma coisa que poderia matá-la, mas não queria que, por medo, ela deixasse de tentar.

— Mas sua vida inteira, Olívia...

Ela sacudiu a cabeça.

— Não. Não vale a pena. Deixe o Jack tentar. Eu vou correr o risco. Se funcionar com ele, então eu tento. Mas eu... eu não consigo.

— Você sabe que já é quase novembro, não sabe? — interveio Isabel. — Está frio demais! Você logo vai se transformar para o inverno, e não teremos outra chance até a primavera.

— Deixe ela esperar — disse Jack, com rispidez. — Não faz mal. É melhor seus pais acharem que ela sumiu alguns meses do que descobrirem que ela é um lobisomem.

— Por favor.

Os olhos de Olívia estavam cheios de lágrimas.

Dei de ombros, impotente, e baixei a seringa. Eu sabia tanto quanto ela. E, em meu coração, eu sabia que, no lugar dela, faria a mesma escolha: era preferível viver com os lobos que ela tanto adorava a morrer de meningite.

— Muito bem — disse Isabel. — Jack, leve Olívia para o carro. Espere lá e fique de olho para ver se aparece alguém. Venha, Grace. Vamos ver o que Sam aprontou na sala de exames enquanto o deixamos sozinho.

Jack e Olívia foram para o corredor, abraçados um ao outro em busca de calor, para não se transformar, enquanto Isabel e eu nos voltamos para o que já era lobo.


À porta da sala de exames onde estava Sam, Isabel pôs a mão no meu braço e me fez parar antes que eu girasse a maçaneta.

— Tem certeza de que quer fazer isto? — perguntou. — Porque pode matá-lo. É provável que o mate.

Em vez de responder, empurrei a porta.

Sob a feia luz fluorescente da sala, Sam parecia comum, pequeno, mais como um cachorro, agachado ao lado da mesa de exames. Me ajoelhei diante dele, desejando que tivéssemos pensado nessa possível cura antes que fosse tarde demais.

— Sam.

Eu não quero ficar diante dele como se fosse uma coisa, traiçoeiro, dissimulado. Eu sabia que o calor não voltaria a transformá-lo em humano. Nada além de egoísmo me fizera levá-lo para a clínica. Egoísmo e uma suposta cura praticamente impossível de funcionar com ele naquela forma.

— Sam, ainda quer fazer isso?

Toquei seu pelo, imaginando-o como seu cabelo preto. Engoli em seco, infeliz.

Sam silvou pelo nariz. Eu não tinha ideia do quanto ele entendia o que eu dizia. Só sabia que, em seu estado semidrogado, ele não se encolheu ao meu toque.

Tentei de novo:

— Isto pode matar você. Quer tentar mesmo assim?

Atrás de mim, Isabel deu uma tossida proposital.

Sam gemeu com o ruído, os olhos se voltando velozes para Isabel no corredor. Alisei sua cabeça e olhei-o nos olhos. Meu Deus, eram os mesmos. Olhar para eles agora acabava comigo.

Isso tem que funcionar.

Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Não me dei o trabalho de enxugá-la ao me virar para Isabel. Eu queria aquilo como nunca quisera nada na vida.

— Temos que fazer.

Isabel não se moveu.

— Grace, eu não acho que ele tenha alguma chance se não estiver em forma humana. Não acho mesmo que vá funcionar.

Passei um dedo sobre os pelos curtos e macios perto de sua boca. Se ele não estivesse sedado, não teria tolerado aquilo, mas o Benadril embotara seus instintos. Ele fechou os olhos. Aquilo era tão pouco típico de um lobo que me deu esperanças.

— Grace. Vamos ou não vamos fazer? Sério.

— Espere — falei. — Estou tentando uma coisa.

Sentei no chão e sussurrei para Sam.

— Quero que você me escute, se puder.

Pousei meu rosto contra seu pelo e recordei o bosque dourado que ele me mostrara tanto tempo antes. Me lembrei do modo como as folhas amarelas, da cor dos seus olhos, flutuavam e giravam no ar, como borboletas amassadas, a caminho do solo. Os esbeltos troncos brancos das bétulas, cremosos e suaves como pele humana. Me lembrei de Sam de pé no meio do bosque, os braços estendidos, uma forma escura e sólida no sonho das árvores. Ele indo até mim, eu lhe dando um pequeno soco de brincadeira no peito, o beijo suave. Me lembrei de cada beijo que tínhamos trocado, e recordei cada vez que me aninhara em seus braços humanos. Me lembrei do calor de sua respiração na minha nuca enquanto dormíamos.

Me lembrei de Sam.

Me lembrei dele se obrigando a sair de sua forma de lobo por mim. Para me salvar.

Sam se afastou de mim. Sua cabeça estava baixa, o rabo entre as pernas, e ele tremia.

— O que está acontecendo?

Isabel estava com a mão na maçaneta da porta.

Sam se afastou mais ainda, chocando-se contra o armário atrás dele, enrolando-se como uma bola, desenrolando-se. Sacudia-se para se livrar da pele. Sacudia-se, saindo do seu pelo. Era lobo e era Sam, e depois

Era

Apenas

Sam.

— Depressa — sussurrou ele.

Seu corpo dava solavancos, batendo com força no armário. Seus dedos eram garras no ladrilho.

— Depressa. Agora.

Isabel estava imóvel à porta.

— Isabel! Rápido!

Ela saiu do transe e veio até nós. Acocorou-se ao lado de Sam, perto da extensão nua de suas costas. Ele mordia tanto o lábio que o fazia sangrar. Me ajoelhei, peguei sua mão.

Sua voz era tensa.

— Grace... depressa. Estou quase indo.

Isabel não fez mais perguntas. Agarrou o braço dele, virou-o e enfiou a agulha. Injetou metade do conteúdo, mas a seringa escapou do braço quando Sam estremeceu com violência. Ele se afastou de mim, arrancando sua mão da minha, e vomitou.

— Sam...

Mas ele já se fora. Na metade do tempo que levara para se tornar humano, ele voltara a ser lobo. Tremendo, cambaleando, as unhas arranhando os ladrilhos, caindo no chão.

— Desculpe, Grace — disse Isabel.

Foi tudo que ela disse. Pousou a seringa na bancada.

— Droga. Estou ouvindo a voz de Jack. Já volto.

A porta se abriu e se fechou. Ajoelhei junto ao corpo de Sam e enterrei meu rosto em seu pelo. Seus arquejos eram entrecortados e exaustos. E tudo o que eu conseguia pensar era: Eu o matei. Isto vai matá-lo.


CAPÍTULO 61

GRACE • 2° C

Foi Jack quem abriu a porta da sala de exames.

— Grace, vamos. Temos que ir... Olívia não está muito bem.

Levantei, constrangida por ser encontrada com o rosto banhado em lágrimas. Me virei para jogar a seringa usada no perigoso recipiente de lixo tóxico junto à bancada.

— Preciso de ajuda para carregá-lo.

Ele me olhou de cara amarrada.

— Foi para isso que Isabel me mandou aqui.

Olhei para baixo, e meu coração parou. Chão vazio. Girei, torcendo a cabeça para olhar debaixo da mesa.

— Sam?

Jack tinha deixado a porta aberta. A sala estava vazia.

— Me ajude a encontrá-lo! — gritei para Jack, empurrando-o para alcançar o corredor.

Não havia sinal de Sam. Enquanto eu corria até o vestíbulo, podia ver a porta escancarada no final, a noite negra por trás dela. Era o primeiro lugar para onde um lobo correria, quando o efeito da droga passasse. A fuga. A noite. O frio.

Vasculhei o estacionamento, procurando qualquer sinal de Sam na estreita faixa do Bosque da Fronteira que se estendia atrás da clínica. Mas a escuridão era mais do que total. Nenhuma luz. Nenhum som. Nenhum sinal de Sam.

— Sam!

Eu sabia que ele não viria, mesmo se me ouvisse. Sam era forte, mas os instintos eram ainda mais fortes.

Era intolerável imaginá-lo lá em algum lugar, meia seringa de sangue infectado misturando-se lentamente ao seu.

— Sam! — Minha voz era um lamento, um uivo, um grito na noite. Ele tinha desaparecido.

Faróis me cegaram: era o carro de Isabel rangendo a meu lado e estremecendo até parar. Ela se inclinou e abriu a porta; seu rosto era fantasmagórico sob as luzes do painel.

— Entre, Grace. Depressa, merda! Olívia está se transformando e já ficamos aqui tempo demais.

Eu não podia deixá-lo.

— Grace!

Jack foi para o banco de trás, tremendo. Seus olhos me imploravam. Eram os mesmos olhos que eu vira logo no início, quando ele havia se transformado pela primeira vez. Antes que eu soubesse de qualquer coisa.

Entrei e bati a porta, olhando pela janela a tempo de ver uma loba branca em pé à margem do estacionamento. Shelby. Viva, exatamente como Sam imaginara. Encarei-a pelo espelho retrovisor. A loba ficou no estacionamento olhando diretamente para nós. Pensei ter visto triunfo em seus olhos quando ela se virou e desapareceu na escuridão.

— Que lobo é aquele? — perguntou Isabel.

Mas não consegui responder. Tudo o que eu conseguia pensar era Sam, Sam, Sam.


CAPÍTULO 62

GRACE • 4° C

— Não acho que Jack esteja bem — disse Olívia.

Ela estava no banco do passageiro do meu carro novo, um pequeno Mazda que cheirava a produto de limpeza para carpete e a solidão. Embora usasse duas suéteres minhas e um gorro, ainda tremia, as mãos encolhidas junto à barriga.

— Se ele estivesse bem, Isabel teria nos avisado.

— Talvez — respondi. — Ela não é do tipo que avisa as coisas.

Mas não podia deixar de pensar que ela tinha razão. Estávamos no terceiro dia, e a última vez que eu tivera notícias de Isabel fora oito horas antes.

Primeiro dia: Jack teve uma dor de cabeça de rachar e torcicolo.

Segundo dia: Dor de cabeça pior. Temperatura subindo.

Terceiro dia: Recado na caixa postal de Isabel.

Fui com o Mazda até a casa de Beck e estacionei atrás do carro gigante de Isabel.

— Pronta?

Olívia não parecia pronta, mas saiu do carro e foi correndo para a porta da frente. Eu a segui e fechei a porta do carro.

— Isabel?

— Aqui.

Seguimos a voz dela até um dos quartos no térreo. Era um quartinho alegre e amarelo que parecia não combinar com o cheiro podre de doença que enchia o local.

Isabel estava sentada de pernas cruzadas numa cadeira aos pés da cama. Círculos profundos, como impressões digitais arroxeadas, marcavam suas pálpebras inferiores.

Entreguei-lhe o café que tínhamos levado.

— Por que não ligou?

Ela me olhou.

— Os dedos dele estão morrendo.

Eu tinha evitado olhar para ele, mas acabei olhando, e o vi deitado na cama, encolhido como uma borboleta semimorta. As pontas dos seus dedos tinham um desconcertante tom de azul. Seu rosto brilhava de suor, os olhos fechados. Minha garganta se fechou.

— Procurei na internet — disse Isabel, erguendo o celular, como se o gesto explicasse tudo. — A dor de cabeça é porque uma parte do cérebro está inflamada. Os dedos das mãos e dos pés estão azuis porque o cérebro parou de ordenar ao corpo que envie sangue para lá. Medi a temperatura. Mais de 40 graus.

— Preciso vomitar — disse Olívia.

E me deixou no quarto com Isabel e Jack.

Eu não sabia o que dizer. Se Sam estivesse ali, saberia a coisa certa a ser dita.

— Sinto muito.

Isabel deu de ombros, os olhos embotados.

— Funcionou como a gente esperava. No primeiro dia, ele quase se transformou quando a temperatura caiu durante a noite. E foi a última vez, mesmo quando a energia caiu, noite passada. Achei que estava funcionando. Ele não se transformou desde que começou a febre. — Fez um gesto para a cama. — Você deu uma desculpa para as minhas faltas na escola?

— Dei.

— Ótimo.

Fiz um gesto para que Isabel me seguisse. Ela se levantou da cadeira como se fosse muito difícil, e foi atrás de mim no corredor.

Puxei a porta do quarto até quase fechá-la, para que Jack, se estivesse prestando atenção, não pudesse me ouvir. Em voz baixa, falei:

— Temos que levá-lo para o hospital, Isabel.

Ela deu uma risada. Um som esquisito, feio.

— E dizer a eles o quê? Todos o consideram morto. Você acha que não tenho pensado nisso? Mesmo que déssemos um nome falso, o rosto dele esteve em todos os noticiários por dois meses.

— Então vamos correr o risco, certo? Vamos inventar alguma história. Temos que pelo menos tentar, não?

Ela me encarou com seus olhos cercados de vermelho por um longo momento. Quando afinal falou, sua voz era oca:

— Você acha que eu quero que ele morra? Não acha que quero salvá-lo? É tarde demais, Grace! É difícil escapar deste tipo de meningite mesmo se a pessoa foi tratada desde o começo. Mas agora, depois de três dias? Eu não tenho nem analgésicos para dar a ele, quanto mais alguma coisa que possa ter algum efeito sobre a doença. Pensei que a parte lobo dele pudesse salvá-lo, como salvou você. Mas ele não tem chance. Nenhuma chance.

Tirei a xícara das mãos dela.

— Não podemos simplesmente ficar aqui olhando ele morrer. Vamos levá-lo para um hospital que não o reconheça de imediato. Vamos até Duluth, se for preciso. Não vão reconhecê-lo lá, pelo menos não na mesma hora, e quando acontecer já teremos pensado em qualquer coisa para dizer a eles. Vá lavar o rosto e pegar alguma coisa dele que quiser levar. Vamos, Isabel. Mexa-se.

Isabel não respondeu, mas foi em direção à escada. Depois que ela saiu, fui até o banheiro do térreo e abri o armário, achando que talvez pudesse haver algo de útil ali. Uma casa cheia de gente tende a acumular um monte de remédios. Havia paracetamol e alguns analgésicos de manipulação, num vidro datado de três anos antes. Peguei tudo e voltei ao quarto de Jack.

Ajoelhando perto da cabeceira, perguntei:

— Jack, você está acordado?

Senti cheiro de vômito em seu hálito e imaginei o inferno que ele e Isabel estavam vivendo nos últimos três dias. Aquilo me revirou o estômago. Tentei me convencer de que ele, de algum modo, merecia o que estava acontecendo, por me fazer perder Sam, mas não consegui.

Ele levou muito tempo para responder:

— Não.

— Posso fazer alguma coisa? Para você ficar mais confortável?

Sua voz era muito débil.

— A cabeça está me matando.

— Tenho uns analgésicos. Acha que pode engolir sem vomitar?

Ele fez um ruído vagamente afirmativo, portanto peguei um copo d’água da mesinha ao lado da cama e o ajudei a tomar duas cápsulas. Ele resmungou algo que pode ter sido um agradecimento. Esperei 15 minutos, até que o remédio começasse a fazer efeito, e vi seu corpo relaxar um pouco.

Em algum lugar, Sam passava por aquilo. Imaginei-o deitado em qualquer parte, o cérebro explodindo de dor, a febre devastando-o, morrendo. Parecia que, se algo acontecesse com Sam, eu de algum jeito saberia; sentiria uma minúscula pontada de angústia no momento em que ele morresse. Na cama, Jack deixou escapar um ruído, um som involuntário de dor, um pequeno gemido em seu acidentado sono. Tudo em que eu conseguia pensar era que o mesmo sangue tinha sido injetado em Sam. Na minha cabeça, eu continuava a ver Isabel empurrando aquilo para dentro de suas veias, um coquetel mortal.

— Já volto — disse para Jack, embora ele estivesse dormindo. Entrei na cozinha e encontrei Olívia apoiada na bancada do centro, dobrando um pedaço de papel.

— Como ele está?

Sacudi a cabeça.

— Precisamos levá-lo para um hospital. Você pode vir?

Olívia me olhou de um jeito que não consegui interpretar.

— Acho que estou pronta. — Empurrou o pedaço de papel na minha direção. — Preciso que você encontre um jeito de entregar isso aos meus pais.

Comecei a desdobrá-lo; ela sacudiu a cabeça. Ergui uma sobrancelha.

— O que é isso?

— É um bilhete dizendo a eles que estou fugindo e que não tentem me encontrar. Mesmo assim vão tentar, é claro, mas pelo menos não vão achar que fui raptada ou coisa parecida.

— Você vai se transformar.

Não era uma pergunta.

Ela fez que sim com a cabeça, e outra expressão estranha surgiu em seu rosto.

— Está ficando muito difícil não me transformar. Mas... talvez seja só porque é tão desagradável... isso de tentar evitar... mas eu quero que aconteça. Na verdade, estou ansiosa para que aconteça logo. Sei que parece um retrocesso.

Para mim, não parecia. Eu daria qualquer coisa para estar no lugar dela, para estar com meus lobos e com Sam. Mas eu não queria lhe dizer isso, então só fiz a pergunta óbvia:

— Você vai se transformar aqui?

Olívia fez um gesto para que eu a seguisse até a cozinha. Ficamos perto da janela que dava para o quintal.

— Quero que você veja uma coisa. Olhe. Precisa esperar um segundo. Mas fique olhando.

Ficamos à janela olhando aquele mundo morto do inverno, os arbustos emaranhados do bosque. Por um longo tempo não vi nada além de um pássaro pequeno, sem cor, que adejava de um galho nu para outro. Então outro leve movimento capturou meu olhar, mais perto do chão, e vi um lobo grande e escuro no bosque. Seus olhos claros, quase sem cor, pousaram na casa.

— Não sei como eles sabem — disse Olívia —, mas tenho a sensação de que estão esperando por mim.

De repente, percebi que a expressão dela era de excitação. Isso me fez sentir estranhamente só.

— Você quer ir agora, não quer?

Ela confirmou com a cabeça.

— Não aguento mais esperar. Não posso mais esperar para, no final, desistir.

Suspirei e olhei para os olhos dela, muito verdes e brilhantes. Tinha que memorizá-los agora para poder reconhecê-los depois. Pensei que devia lhe dizer alguma coisa, mas não sabia o quê.

— Eu entrego a carta para seus pais. Tenha cuidado. Vou sentir falta de você, Olívia.

Fiz deslizar a porta de vidro. O ar frio nos invadiu.

Ela, na verdade, riu quando o vento lhe arrancou um calafrio. Era uma criatura estranha e leve, que eu não reconhecia.

— Vejo você na primavera, Grace.

E correu para o quintal, deixando cair os casacos enquanto se afastava, e antes de chegar à linha das árvores ela era um lobo leve, bem leve, alegre e saltitante. Não havia ali qualquer vislumbre da dor presente na transformação de Jack ou de Sam — era como se tivesse nascido para aquilo. Alguma coisa me apertou o coração ao vê-la daquele jeito. Tristeza, ou inveja, ou felicidade.

Éramos só nós três então, os três que não tinham se transformado.

Liguei o motor do carro para aquecê-lo, mas isso acabou não tendo importância. Quinze minutos depois, Jack morreu. Agora éramos só nós duas.


CAPÍTULO 63

GRACE • -5° C

Vi Olívia depois disso, depois de ter deixado seu bilhete no carro dos seus pais. Ela se movia com leveza pelo bosque, ao crepúsculo, os olhos verdes tornando-a instantaneamente identificável. Nunca estava sozinha; outros lobos a guiavam, ensinavam e protegiam dos primitivos perigos do desolado bosque de inverno.

Quis perguntar se ela o tinha visto.

Acho que ela quis me dizer “não”.


Isabel telefonou alguns dias antes do recesso de Natal e da viagem que eu planejara com Rachel. Eu não sabia por que tinha ligado em vez de simplesmente ir até meu carro falar comigo. Eu podia vê-la, do outro lado do estacionamento da escola, sentada dentro do seu carro, sozinha.

— Como você está? — ela perguntou.

— Tudo bem — respondi.

— Mentirosa. — Isabel não olhava para mim. — Você sabe que ele morreu.

Era mais fácil admitir isso ao telefone do que cara a cara.

— Eu sei.

Do outro lado do estacionamento cinzento e gelado, ela fechou o telefone, desligando. Ouvi-a ligar o motor do carro; ela dirigiu até onde eu estava, de pé ao lado do meu carro. Houve um clique quando ela destrancou a porta do banco do passageiro e um vrrr quando o vidro desceu.

— Entre. Vamos a algum lugar.

Fomos ao centro da cidade e compramos café. E depois, porque havia um lugar para estacionar bem em frente, fomos até a livraria. Isabel olhou para a fachada da loja por muito tempo antes de sair do carro. Ficamos paradas na calçada gelada, olhando para a vitrine. Tudo era Natal. Renas, biscoitos de gengibre e Noite Feliz.

— Jack adorava o Natal — disse Isabel. — Acho que é um feriado idiota. Não o celebro mais. — E fez um gesto para a loja: — Quer entrar? Não venho aqui há semanas.

— Não venho aqui desde...

Parei. Não queria falar daquilo. Queria entrar, mas não queria ter que dizer aquilo.

Isabel abriu a porta para mim.

— Eu sei.

A livraria era um mundo diferente naquele inverno deprimente e morto. As prateleiras azuis e acinzentadas tinham agora um tom diferente. A luz era de um branco puro. Tocava música clássica ao fundo, mas o zumbido do aquecimento era a verdadeira trilha sonora. Olhei para o rapaz atrás do balcão, de cabelos escuros e escorridos, debruçado sobre um livro, e por um momento uma bolha se formou na minha garganta, grande demais para ser engolida.

Isabel puxou meu braço com tanta força que doeu.

— Vamos descobrir um livro de engordar.

Fomos à seção de culinária e nos sentamos no chão. O carpete estava frio. Isabel fez uma confusão enorme, puxando uma pilha para perto dela e colocando tudo de volta fora da ordem. Eu me perdi entre as letras das lombadas, puxando os livros distraída e fazendo caírem vários ao mesmo tempo.

— Quero aprender a engordar — disse Isabel, me passando um livro de doces. — Que tal esse?

Folheei o volume.

— Todas as medidas são em gramas. E nada de xícaras. Você vai precisar de uma balança digital.

— Esqueça. — E guardou o livro, no lugar errado. — Tente este.

Aquele era todo sobre bolos. Lindas camadas de chocolate explodindo com framboesas, esponjas amarelas sufocadas em cremes batidos, açucaradas cheesecakes cobertas com néctar de morango.

— Não dá para levar uma fatia de um bolo desses para a escola. — Passei para ela um sobre biscoitos e barras. — Tente este.

— Este é perfeito — acusou ela, e pôs o livro numa outra pilha. — Você não sabe fazer compras? Ser eficiente não é uma boa. Não demora muito tempo. Vou ter que ensinar a você a arte de só olhar. Você nitidamente tem deficiência no assunto.

Isabel me ensinou a só olhar na seção de cozinha até eu não aguentar mais, então a deixei lá e vaguei pela loja. Não queria, mas subi a escada de carpete cor de vinho para o andar de cima.

O dia lá fora, nublado pela neve, fazia o andar de cima parecer mais escuro e até menor do que antes, mas o sofá de dois lugares ainda estava lá, assim como as pequenas prateleiras na altura da cintura que Sam tinha vasculhado. Eu ainda podia ver a forma de seu corpo dobrado diante delas, procurando o livro perfeito.

Não deveria, mas me sentei no sofá e apoiei a cabeça no espaldar. Fechei os olhos e fiz de conta que Sam estava recostado atrás de mim, que eu estava em segurança em seus braços e que a qualquer momento eu sentiria sua respiração mover meus cabelos, fazer cócegas na minha orelha.

Ali, se fizesse um esforço, quase podia sentir seu cheiro. Não havia muitos lugares que ainda guardavam o cheiro de Sam, mas eu quase podia detectá-lo — ou talvez só quisesse tanto senti-lo que chegava a imaginá-lo.

Me lembrei dele insistindo para que eu sentisse o cheiro de tudo na loja de doces. Para que eu cedesse ao que era de fato. Agora, eu captava os cheiros na livraria: o aroma do couro com seu toque de noz, o produto de limpar tapete um pouco perfumado, a doce tinta preta e as tintas coloridas cheirando a gasolina, o xampu do rapaz atrás do balcão, a colônia de Isabel, o aroma da lembrança de Sam e eu nos beijando no sofá.

Eu não queria que Isabel me visse em lágrimas tanto quanto Isabel não queria que eu presenciasse as dela. Compartilhávamos muitas coisas agora, mas de choro jamais falávamos. Enxuguei o rosto na manga da blusa e me sentei empertigada.

Fui à prateleira onde Sam pegara o livro e examinei os títulos até encontrá-lo: Poemas, de Rainer Maria Rilke. Levei-o ao nariz e cheirei-o para ver se era o mesmo volume. Sam.

Comprei-o. Isabel levou o livro de receitas de doces e fomos para a casa de Rachel, onde fizemos seis dúzias de biscoitinhos tomando cuidado para não falar em Sam ou Olívia. Depois, Isabel me deixou em casa e eu me fechei no gabinete com Rilke. Li e desejei.


Deixando para você (é impossível desemaranhar os fios)

sua própria vida, tímida e imensa e crescendo

tanto que, às vezes frustrante, às vezes

compreensível,

em determinado momento sua vida é uma pedra em você, e, em ou- [tro, uma estrela.


Eu começava a compreender poesia.


CAPÍTULO 64

GRACE • -9° C

Não havia Natal sem meu lobo. Era a única época do ano em que eu sempre o tivera, uma presença silenciosa se demorando no início do bosque. Quantas vezes eu ficara à janela da cozinha, as mãos cheirando a gengibre, noz-moscada, pinheiro e centenas de outros odores de Natal, e sentira seu olhar em mim? Eu erguia os olhos e me deparava com Sam imóvel junto às primeiras árvores do bosque, os olhos dourados firmes e sem piscar.

Não naquele ano.

Fiquei parada à janela da cozinha, as mãos cheirando a nada. De que adiantava fazer biscoitos de Natal ou montar uma árvore aquele ano? Em 24 horas eu partiria numa viagem de duas semanas com Rachel. Para uma praia de areia branca da Flórida, bem longe de Mercy Falls. Bem longe do Bosque da Fronteira e, o mais importante, bem longe daquele quintal vazio.

Enxaguei lentamente minha caneca térmica e, pela milésima vez naquele inverno, levantei os olhos para olhar para o bosque.

Nada havia ali além de árvores em tons de cinza, os galhos carregados de neve recortados contra um pesado céu de inverno. A única cor era o lampejo brilhante de um cardeal macho, voando para o comedouro dos pássaros. Ele empoleirou-se na base de madeira vazia antes de levantar voo, uma mancha vermelha contra o céu branco.

Eu não queria ir para o quintal com sua neve sem marcas, as pegadas ausentes, mas também não queria deixar o comedouro dos pássaros vazio enquanto eu estivesse fora. Pegando o saco de sementes debaixo da pia, vesti o casaco, pus o chapéu e as luvas. Fui até a porta dos fundos e a abri.

O cheiro do bosque no inverno me atingiu com força, me lembrando ferozmente de cada Natal que tinha importado alguma coisa.

Mesmo sabendo que estava sozinha, eu ainda sentia calafrios.


CAPÍTULO 65

SAM • -9° C

Eu a observava.

Eu era um fantasma no bosque, silencioso, imóvel, frio. Eu era o inverno corporificado, a forma física do vento gélido. Permanecia junto aos limites do bosque, onde as árvores ficavam mais finas, e cheirei o ar: sobretudo cheiros mortos típicos daquela fase da estação. O aroma agudo das coníferas, o almiscarado do lobo, a doçura dela; nada mais havia a cheirar.

Ela ficou à porta por vários instantes. Seu rosto se voltava para as árvores, mas eu era invisível, intangível, nada além de olhos no bosque. A brisa intermitente trazia até mim, vezes sem conta, o cheiro dela, cantando em outra linguagem sobre lembranças de uma outra forma.

Enfim, ela foi até o deque e deixou a primeira pegada na neve do quintal.

E eu estava bem ali, quase ao seu alcance, mas ainda assim a quilômetros e quilômetros de distância.


CAPÍTULO 66

GRACE • -9° C

Cada passo que eu dava em direção ao comedouro dos pássaros me levava para mais perto do bosque. Senti o cheiro das folhas quebradiças da vegetação rasteira, córregos rasos movendo-se preguiçosamente sob a crosta do gelo, o verão adormecido e latente nos inúmeros esqueletos de árvores. Algo nas árvores me lembrava os lobos uivando à noite, e aquilo me recordou o bosque dourado dos meus sonhos, oculto agora sob um cobertor de neve. Eu sentia uma imensa falta do bosque.

Sentia falta dele.

Dei as costas às árvores e pousei o saco de sementes no chão, ao meu lado. Tudo o que eu precisava fazer era encher o comedouro dos pássaros, voltar para dentro de casa e apanhar as malas para pegar o avião com Rachel, para um lugar onde poderia tentar esquecer os segredos que se escondiam naquele bosque de inverno.


CAPÍTULO 67

SAM • -9° C

Eu a observava.

Ela ainda não tinha me visto. Com um barulhinho seco, toc toc toc, ela quebrava e tirava o gelo do comedouro dos pássaros. Seguindo lenta e automaticamente as etapas para limpá-lo, abri-lo, enchê-lo, fechá-lo e ver como ficou, como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo.

Eu a observava. Esperei que se virasse e avistasse minha forma escura no bosque. Ela puxou o gorro para baixo, para cobrir as orelhas, e soprou no ar para observar a nuvem que se formou e rodopiou ao vento. Bateu as mãos enluvadas uma na outra para se livrar da neve e se virou para ir embora.

Eu não podia mais me esconder. Deixei também escapar um grande sopro no ar. Foi um ruído tênue, mas, no mesmo instante, sua cabeça se voltou para o ponto de onde viera o som. Seus olhos descobriram o nevoeiro do meu sopro e depois a mim, quando avancei, devagar, cauteloso, sem saber como ela reagiria.

Ela estacou. Completamente imóvel, como um cervo. Continuei a me aproximar, deixando na neve pegadas hesitantes e cuidadosas, até me encontrar fora do bosque, bem diante dela.

Ela estava tão silenciosa quanto eu, e completamente imóvel. Seu lábio inferior tremia. Quando piscou, três lágrimas brilhantes deixaram--lhe um rastro de cristal no rosto.

Ela poderia ter olhado para os pequenos milagres à sua frente: meus pés, minhas mãos, meus dedos, a forma dos meus ombros sob o casaco, meu corpo humano. Mas só fitava meus olhos.

O vento assobiou de novo, através das árvores, mas já não tinha força ou poder sobre mim. O frio cortante me mordia os dedos, mas eles continuavam a ser dedos.

— Grace — falei, muito baixo. — Diga alguma coisa.

— Sam — disse ela, e eu a esmaguei em meu peito.

 

 

                                                   Maggie Stiefvater         

 

 

 

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